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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO VIVIANE DA SILVA MASSAVI POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: DESVENDANDO OLHARES DAS RAZÕES VULNERÁVEIS. CUIABÁ-MT 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

VIVIANE DA SILVA MASSAVI

POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: DESVENDANDO OLHARES

DAS RAZÕES VULNERÁVEIS.

CUIABÁ-MT

2017

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VIVIANE DA SILVA MASSAVI

POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: DESVENDANDO OLHARES

DAS RAZÕES VULNERÁVEIS.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Educação da Universidade Federal de

Mato Grosso como requisito para a obtenção do título

de Mestre em Educação na Área de Concentração

Educação, Linha de Pesquisa Movimentos Sociais,

Política e Educação Popular.

Orientador: Prof. Dr. Celso Luiz Prudente

Coorientador: Prof. Dr. Luiz Augusto Passos

Cuiabá-MT

2017

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus pela oportunidade desta encarnação aqui na terra e a energia que

me foi destinada no nascimento, Iemanjá, energia criadora que esteve presente para a

concepção e nascimento deste trabalho: Odoya, minha mãe!

As amigas que conquistei e aqueles que ficaram para trás por inúmeros motivos, aos

meus familiares por apoiarem incondicionalmente minhas decisões de cunho pessoal e

profissional.

Agradeço também àqueles que indiretamente contribuíram para preencher meu leque

de experiências em minha passagem pela Pós-Graduação.

Ao Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação (GPMSE) e ao Grupo de

Estudos Educação & Merleau-Ponty (GEMPO) no qual fui acolhida desde meu primeiro

contato ainda como aluna especial do mestrado.

Ao meu querido professor Luiz Augusto Passos, meu primeiro orientador e que

posteriormente assumiu minha coorientação, pela paciência e generosidade, foi como um pai

amoroso que me tomou pelas mãos e instruiu as minhas caminhadas pelas ruas e becos de

Cuiabá, obrigada por me dar a primeira oportunidade como pesquisadora, me sinto

extremamente honrada por tê-lo como amigo.

Ao meu orientador professor Celso Luiz Prudente, pela honra, dedicação e paciência

na condução dessa produção.

À minha família com todo apoio incondicional, com agradecimento especial , minha

mãe (in memoriam) minha maior fonte de inspiração, aquela que cuidou e me tratou com

carinho, não só a mim como as minhas irmãs, trabalhando arduamente para que tivéssemos

uma educação, que ela não teve oportunidade de conseguir. Minha mãe, minha inspiração e

espelho: se eu me tornar uma pequena parte da pessoa e profissional que a senhora foi, a vida

já terá valido a pena.

Ao meu amor, companheiro desta jornada aqui na terra, meu esposo Murilo Alves de

Oliveira, que suportou todos os momentos de maiores dificuldades me amparando,

aconselhando e incentivando para que eu conseguisse concluir este trabalho, minha eterna

gratidão.

Ao Barba, meu companheiro desta empreitada, obrigada pela confiança e por me

mostrar os encantos e desencantos desse estar na rua. Que Deus perdoe a cada um de nós por

permitirmos que tantos irmãos e irmãs vivam em condições tão precárias nas ruas de nosso

país, que suas vozes sejam ecoadas em cada canto de nossa cidade.

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RESUMO:

O fenômeno “pessoas em situação de rua” não surgiu ou se restringiu às sociedades

capitalistas, contudo, na história percebe-se que neste sistema o problema da pobreza tem se

agravado. A condição de situação de rua transforma a vida de qualquer sujeito social, as

mudanças permeiam o seu modo de olhar o outro e a si próprio, a sociedade os tratam de uma

maneira não-humana. No desejo de contribuir de forma científica e próxima, no estudo desta

realidade, esta pesquisa de mestrado foi realizada na área da Educação, linha de pesquisa

Movimentos Sociais Políticas e Educação Popular e traz a proposta de dar voz a uma pessoa

representativa em sua experiência na rua, para descrever a partir do olhar dele, e do seu corpo

singular e também universal, o mundo que o rodeia. Compreender os mecanismos que lhe

oprime e que provoca sua invisibilidade ou sua visibilidade a partir de padrões de colonização

que buscou reificá-lo chamando-o à luta de resistência e resiliência para conquista da

autonomia e emancipação, possíveis. Mediante diálogos longos, e momentos de vivência com

esta pessoa, trago a descrição densa da vivência desta experiência de duas pessoas, Barba e

minha em torno de sua condição, valores, vida e sentidos. As pessoas em situação de rua não

escolheram este lugar sem razões fortes de o fazê-lo. Foram coagidas a buscarem um espaço

pré-definido pela sociedade como uma vida indigna de ser vivida, isto é, uma vida matável

sob a apatia e permissividade social. Nesta condição elas buscam se tornar invisíveis ao

direito e à sociedade, para livrar-se dos atos de crueldade de toda espécie. Como sobreviver a

este campo de torturas e campo de concentração, que a rua pública, se tornou? A questão a ser

compreendida é desafiadora, pois nos faz pensar como funcionam esses mecanismos em nós,

na sociedade como um todo, que favorecem a nossa quase completa indiferença a essa

população, ao ponto de não nos incomodar com o seu abandono social. Acreditando que uma

das possibilidades de resposta, seria uma forma de banalidade do mal, pois não há uma

preocupação em intervir nesta situação. Em verdade ocorre uma anuência implícita de um

desejo de abreviação da existência dessas pessoas. Reforçando a tese de que são vidas

indignas de ser vivida, negando-lhes a humanidade. Barba é um fenômeno vivo de vontade de

viver. Gerou o sentido pela relação com o outro/a. Adotou um sentido voltado à Vida, sem

excedências de quaisquer tipo. Para a realização da pesquisa optamos por um estudo de

caráter qualitativo de orientação fenomenológica fundamentada em Merleau-Ponty na análise

compreensiva e interpretativa desta realidade.

Palavras Chaves: População em situação de Rua; Vulnerabilidade; Fenomenologia

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ABSTRACT

The phenomenon "people in a street situation" did not arise or was restricted to capitalist

societies, however, in history it is perceived that in this system the problem of poverty has

worsened. The condition of the street situation transforms the life of any social subject, the

changes permeate his or her way of looking at the other and himself, society treats him in an

almost non-human way. In the imminence of the need to contribute scientifically to the study

of this reality, this masters research in the area of Education, line of research Political Social

Movements and Popular Education brings the proposal to give voice to a person in a street

situation to describe How he sees himself and sees the world around him, in order to

understand the mechanisms that oppress him and that provokes his invisibility or his visibility

from patterns of colonization and his reification, through a dense description of the experience

of this experience . People on the street have become a life unworthy of being lived, that is, a

life that can be killed under apathy and social permissiveness, in this condition they become

invisible to the law and society enabling acts of cruelty of all kinds. How to survive this

concentration camp that the street has become? The question to be understood is challenging

because it makes us think about how these mechanisms work in us, in society as a whole, that

favor our almost complete indifference to this population, to the point of not bothering with

their social abandonment. Believing that one of the possibilities for response would be a form

of banality of evil, since there is no concern to intervene in this situation, in fact there is an

implied consent of a desire to abbreviate their existence. Reinforcing the thesis that they are

lives unworthy of being lived, denying them humanity. For the accomplishment of the

research we opted for a qualitative study of phenomenological orientation based on Merleau-

Ponty in the comprehensive analysis of this reality.

Keywords: Population in Street situation; Vulnerability; Phenomenology.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................08

CAPÍTULO I - O sistema capitalista e a intensificação da pobreza - da exclusão e o

estado de exceção.....................................................................................................................16

1.1 Táticas de sobrevivência e as trocas de saberes............................................................23

CAPÍTULO II - O fenômeno pessoas em situação de Rua no Brasil – Da abolição da

escravatura às políticas públicas sociais atuais....................................................................27

2.1– As Politicas públicas de atenção à população em situação de rua no

Brasil.........................................................................................................................................36

CAPÍTULO III - A Fenomenologia Merleau-Pontyana como caminho possível na

compreensão do outro na rua................................................................................................47

CAPÍTULO IV - O caminho é a história, a história se fez caminho – Barba e o

compartilhar de sua trajetória...............................................................................................55

4.1- O Local dos encontros.......................................................................................................57

4.2- Barba: companheiro nesta jornada de sentidos ................................................................57

4.3- Os encontros......................................................................................................................58

Para continuar existindo: A Guisa de Provocações ............................................................71

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................78

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INTRODUÇÃO

O interesse em pesquisar a população em situação de rua não nasceu, em mim, com

esta dissertação, ele vem entrelaçado com minha historia de vida, compreendo que falar deste

povo é descrever também a origem social do meu viver, não que eu tenha vivido nas ruas, mas

que o que vulnerabiliza essas pessoas também tocou a mim e à minha família.

E assim sou eu, segunda filha de um casal descendente indígena, minha mãe Bororo e

meu pai Chiquitano. Minha origem foi descoberta a pouco mais de quatro anos e estou

mergulhada em pesquisas sobre sua história que também é minha. Vivo em uma união estável

há três anos, sem filhos, natural de Cáceres-MT, mas resido na cidade de Cuiabá/MT a cerca

de vinte seis anos, desde que minha mãe veio em busca de novas oportunidades, na capital.

Foi em Cáceres que realizei meus estudos em nível fundamental e o ensino médio em

Cuiabá, em escolas municipais e estaduais. Ao quatorze anos de idade iniciei meu primeiro

trabalho como balconista em uma locadora de vídeos, assim conciliava o trabalho e os estudos

em períodos alternados e auxiliava minha mãe financeiramente. Este foi um período de

amadurecimento, onde comecei a idealizar um futuro profissional e iniciar meu processo de

conhecimento e formação.

Fazer uma reflexão sobre meu percurso acadêmico e profissional é deparar com toda

inquietação que o saber sempre me causou, é lembrar que as dúvidas e questionamentos foram

sempre à força motivadora para esta proposta. Afirmo ainda, ser esta inquietação que

impulsiona as razões para esta pesquisa a que me proponho. Não são perguntas genéricas e

longínquas. Me diz respeito e estão em mim.

Em 2001, fui aprovada no vestibular na UFMT, fruto de muita luta, pois fui umas das

primeiras, em minha família, a conseguir ingressar em uma universidade. Minha formação

acadêmica se constitui no bacharelado em Serviço Social, obtido na Faculdade de Serviço

Social, pela UFMT, onde concluí no ano de 2005. Nestes cinco anos vivendo a universidade,

em todos os sentidos, aproveitei cada segundo esse encontro de tantos saberes. Devido o meu

curso ser matutino e noturno, as possibilidades de trabalho ficaram extremamente restritas.

Passei a visitar todos os murais onde me deparei com um universo quase que paralelo e pouco

“frequentado” pela maioria dos estudantes. Minha primeira opção foi a bolsa atividade na

PROVIVAS, onde me possibilitou estar “antenada” a todas as informações referentes a

estágios dentro e fora da UFMT.

Foram quatro anos de estágios, contatos maravilhosos com profissionais com diversos

conhecimentos, Secretaria de Justiça e Segurança Pública, com reeducandos usuários de

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drogas; Serviço Social do Comércio com população e entidades carentes. Secretaria

Municipal de Saúde no cadastramento do Cartão do SUS, dentre tantas outras oportunidades.

Saí da universidade com uma bagagem profissional que se implica até hoje em minha vida.

Ainda na universidade, minha vida foi regada a desafios. Militante no Centro

Acadêmico de Serviço Social e iniciei minhas primeiras leituras sobre os movimentos sociais.

E no meio desse turbilhão de informações, me aproximei e identifiquei com o Núcleo de

Estudos, Pesquisa e Organização da Mulher - NUEPOM, assim me aprofundei no tema,

expandindo meus conhecimentos, que gerou meu primeiro contato com a pesquisa cientifica

um Trabalho de conclusão de Curso, sobre o Movimento Feminista, movimento este que se

constituiu com bases firmes na luta por direitos igualitários.

Minha atuação profissional iniciou na Política de Assistência Social, no município de

Porto Estrela, situado no interior do Estado, no ano de 2006. Deparei-me atuando em um local

considerado “o pior lugar pra se viver no Estado”, segundo um noticiário nacional que listava

as cidades de piores Índices de Desenvolvimento Humano - IDH do Brasil. Ali percebi, a

diversas faces do capitalismo, ainda recém-formada, saindo com sonhos grandiosos, a pouca

distância do município com relação a capital, não era igualmente proporcional às

desigualdades de todas as formas instaladas ali. A desigualdade social, a miséria de muitos em

detrimento da riqueza de poucos; a precariedade dos serviços essenciais; os gastos com a

assistência aos mais carentes se davam fortemente por um viés eleitoreiro, partidário e

meramente de cunho assistencialista, e e prejuízo óbvios à saúde.

Foi nesse contexto, que desprotegida dos muros da universidade, iniciei minha

caminhada, já como Assistente Social. Os debates, ora acadêmicas, ora no quotidiano, criaram

vida, se tornando desafios até hoje ainda encarados. Após um ano do interior, de volta a

Cuiabá, me inseri na Secretaria de Assistência Social e Desenvolvimento Humano da Capital,

atuando em um Centro de Referência de Assistência Social-CRAS na periferia. A realidade

era outra, porém os desafios ainda maiores. Aliado a isso, havia ainda a precarização do

trabalho, a falta de condições mínimas, apesar do enorme montante de recursos destinados

para tal atividade. Após praticamente dois anos no CRAS, fui trilhar novos desafios. No ano

de 2008, fui selecionada para ser parte da equipe do Lar da Criança, abrigo destinado a

crianças que sofreram qualquer tipo de violência ou foram abandonados pela família.

No ano de 2009, após uma aprovação em concurso público, fui convocada a assumir o

Serviço Social do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas "Adolescer" -

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CAPS AD1. Nesse período, já com certa experiência, dei início a me aprofundar meus estudos

direcionando ao tratamento a dependentes químicos, especificamente adolescentes, visto que

na academia pouco se discutiu saúde mental, no meu período de graduação.

Em 2010, com a aprovação de um projeto pelo Ministério da Saúde, iniciei minha

atuação em um Consultório de Rua do SUS, onde atendíamos usuários de drogas e pessoas

em situação de rua que se encontram em extrema vulnerabilidade.

Este trabalho me possibilitou momentos de muitas reflexões, dos sentidos de se viver

na rua, no cerceamento dos direitos dessas pessoas, lá, onde nenhuma política pública alcança

estas pessoas em condição de apartheid. Essa população tem seus direitos violados

diariamente, são proibidos de ir e vir, através das chamadas “limpezas”, que nada mais é do

que práticas higienistas, presentes há décadas em nossa sociedade. São maltratados por uma

polícia despreparada, discriminatória e desumana, inclusive por serem militares, e serem

treinadas para olhar toda a diferença como ameaça à “sociedade” generalizada, que se

representa de fato, na classe dominante. Estes moradores, em condição de rua, são

criminalizados e culpabilizados por sua condição físico-psíquica, pelo seu status e segregados

pela diferença que não é a deles, mas aquela que foi nele introjetadas para justificar a

violência da sociedade e seus perigos, e montar sistemas de perseguição, prisão, torturas,

morte e desaparecimentos justificáveis pelo risco que eles implicam de estar à margem do

sistema. Margem provocada pela classe dominante, pelo capital, e que se visibiliza naquelas

pessoas, como responsáveis pela violência nas ruas, nas praças, durante a noite e dia. Ali

encontramos as ditas minorias, de todas as idades, mas principalmente de adultos jovens, que

são culpabilizados por toda violência local, essa realidade, na qual me deparo diariamente:

violência gestada e parida pelas formas „superiores‟ de cultura realizada pela chamada

inapropriadamente „elite” segundo Professor Celso Luiz Prudente.

Foram essas vivências da minha vida profissional que me levaram a perceber que os

movimentos sociais e educação popular em saúde se apresentam como espaços efetivos

capazes de despertar nas pessoas o sentimento de pertencimento ao mundo, levando-as ao

protagonismo de suas histórias de vida; por isso, a escolha em pesquisar essa população.

Por outro a metodologia usada aqui é inédita, de certa forma. Ela foi realizada durante

o Projeto RuAção (http://projetorua.gempo.com.br/sobre) que punha a dificuldade das

pesquisas realizadas ficarem entre amostragens e debates a partir da visão dominante do

capitalismo que pensava em formas de ajuste destas pessoas e „integração‟ delas na mesma

1 AD: Álcool e Drogas.

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sociedade que as marginalizava. E, por isso, não havia nenhuma atuação capaz de ao menos

avaliar o que se passava com os mecanismos de reprodução desta mesma sociedade, de uma

perversidade compreendida como natural e de minorar o sofrimento e a miséria. Não se

pensava em uma condição de justiça. Por outro, as pesquisas centravam-se não nas pessoas e

suas experiências, mas em conceitos genéricos encontradas em grandes fatias desta

população, e, portanto geravam um „morador(a) de rua” como se fosse um tipo standard

comum pelas “falhas administrativas” da economia e da política. E as questões de inserir no

trabalho como resolução central de sua absorção no sistema produtivo capitalista do qual ele

também era produto. A pesquisa tomava um diálogo entre Merleau-Ponty – pela leitura de

Fabio Di Clemente – e Paulo Freire, mediada pelo Grupo de Pesquisa Movimentos Sociais e

Educação.

Em 2014, no primeiro semestre, me inscrevi para seleção como aluna especial no

Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação do Instituto de Educação/UFMT, na

disciplina Seminário Avançado I: Movimentos Sociais, Política e Educação Popular –

Movimentos Sociais e Educação. Com a vivência em sala de aula consegui me encontrar na

fenomenologia de Merleau-Ponty e com a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, onde pude

compreender que essa seria a metodologia que poderia dar conta de responder meus anseios

relacionados à pesquisa. Toda a minha trajetória profissional atendendo a população em

situação de rua foi criando corpo quando pude olhá-la por um olhar fenomenológico no

sentido de apreendê-lo como o “outro eu de mim”. Haveria entre eu e ele(a) a possibilidade de

uma intracorporalidade capaz de trocar minhas condições também de marginalização por

minha ascendência negro-indígena e a destes mesmos moradores e moradoras,

marginalizado(as) pela formas racistas e higienistas da cultura e das economias políticas de

Plantão.

Foram estas as razões que me implicaram a realizar esta pesquisa, a relevância social e

profissional que se legitima pelos conhecimentos que poderão contribuir para um novo olhar

sob a população em situação de rua, novas percepções e perspectivas, tanto no âmbito da

formação acadêmica e técnica na área da saúde, quanto da educação.

Dar voz a uma pessoa em situação de rua a fim de descrever como ele se vê e vê o

mundo que o rodeia, a fim de se compreender os mecanismos que a oprimem e que provocam

sua invisibilidade ou sua visibilidade a partir de padrões de colonização e de sua reificação é o

objetivo deste estudo.

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Respeitar a pessoa em situação de rua como protagonista cerceado pelo processo

civilizatório de sua história, inclusive desta pesquisa, visto que ela somente está sendo

possível por um encontro libertador entre eles e a pesquisadora.

As linhas que se seguem descreve uma relação de uma infinita cumplicidade entre

aquele que vive nas ruas de Cuiabá, negro e filho da terra, mas que não são incluídos com

orgulho pela cultura dominante das elites e, que toma, em parte, o povo mato-grossense,

sendo, por isso, destinados à invisibilidade quando o assunto são políticas públicas,

acolhimento, atenção, respeito e dignidade, porém é visível a mão opressora do estado e de

uma grande parte da população.

Esta pesquisa busca sugerir inspirações que nos conduzam ao despertar para ouvir o

clamor das razões vulneráveis, compreender a origem de tanto abandono, violência, descaso

para com a população em situação de rua, hoje ampliada a todos e todas, brasileiros

empobrecidos para o quais se fazem atos de terrorismo, expropriação, bandidagem, venda e

desregulação da economia, da cultura, de todos os cuidados públicos devidos, necessários à

vida.

Talvez muitos e muitas de nós jamais fizemos essa reflexão, do contrário,

reproduzimos ideias e teorias que tentam explicar a vida e os sentidos da vida dos outros (as)

valendo-nos, e incluindo nosso ponto de vista, no sentido expresso por Clifford Geertz, de

„forasteiros; ‟ e, portanto, a partir da cultura vigente nossa, opressora e estigmatizante, bem

como de nossa apartação parcial dela em face das nossas experiências de opressão vividas,

nos mesmos, neste contexto e de nossos estudos e críticas, mas sobretudo, nosso ativismo

político. Existe um jogo de poder que encobre nossos olhos e nos fazem acreditar em

verdades irreais, mas que estão encharcadas de mentiras, pressupostos e necessidade

ideológicas de legitimar uma sociedade em que tudo o que não serve para o mercado e para o

uso e a produção são sumariamente considerados como „fora da humanidade‟.

O caminho que está foi percorrido por esta pesquisa não existia, antes; faz parte de um

trilhar no escuro, como as ruas onde as pessoas em situação de rua permanecem durante a

noite buscando abrigo, assim como e com eles e elas encontramos nesta trajetória forças para

compreender quem somos, algo forte, mas também frágil, porém com a certeza que até

mesmo nos locais mais impensáveis existem a solidariedade, a partilha e uma imensa vontade

de viver que nos sustentou como pessoas semelhantes em fragilidade e força, e por meio de

laços fraternos.

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A pesquisa buscou compreender como essa população em situação de rua sobrevive

sob a lógica capitalista e através de uma reflexão, acerca das políticas públicas atuais de

atenção a esse grupo específico, seja ela social, saúde, mas principalmente as educacionais,

abarcar quais as vivências que os sustentam em locais inóspitos recriando e criando valores

por eles mesmos. Em uma relação de troca de olhares, escuta e diálogos, procuramos

desocultar ou desmistificar, nas atitudes, gestualidades, modos de vida a presença de um

direito nu, vivido como referência e como orientação de toda a ação, o qual se voltasse à

defesa e afirmação da vida como imperativo ético categórico dos oprimidos, e que se

estenderia a todas as pessoas das nossas sociedades.

Em meio à compreensão de que toda epistemologia é uma construção cultural,

histórica e, portanto, dinâmica, esta pesquisa está se realizando com as reflexões da

fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty e junto aos diversos autores por elas influenciados,

em particular para nós, Paulo Freire, Martin Buber, Jean Paul Sartre. O senso comum

encharcado de discursos de ódio e os mitos criados em torno da população em situação de rua

e teorias prontas construídas por grupos hegemônicos é a visão a ser descontruída na relação

com “o povo da rua” é o vir a ser que nos interessa.

Buscar a invisibilidade e os contornos dos silêncios, buscar compreender o desenho

pela trama do verso: ao avesso somente foi possível porque elegemos como referencial

teórico-metodológico inspirado na fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty. A investigação

fenomenológica busca compreender como a percepção de um povo constrói um mundo, de

modo que não procura defini-lo. As ideias não são inatas, nascem das relações

experimentadas no histórico de vida coletiva e individual. Para Merleau-Ponty (ibidem, p.

109), “É preciso que reencontremos a origem do objeto no próprio coração de nossa

experiência”.

Optamos em deixar vir à tona nossas vivências do período que estivemos na rua

atendendo a população em situação de rua e enriquecendo com o que foi construído durante a

pesquisa, portanto neste trabalho ouviremos uma pessoa que se encontra em situação de rua.

Utilizaremos da observação participante e da descrição densa segundo orientação de Geertz,

que busca explicar e interpretar expressões sociais que “são enigmáticas na sua superfície”

(GEERTZ, 2008, p.4).

Tendo como base a pesquisa realizada, foi possível a construção final deste trabalho,

apresentado em quatro capítulos. No primeiro capítulo, fizemos uma abordagem histórica

sobre como o sistema capitalista intensifica a pobreza, exclusão e o estado de exceção e

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trazemos uma reflexão sobre os modos de vida evidenciando as táticas que as pessoas em

situação de rua utilizam para sobreviver às ruas.

O segundo capítulo percorremos pela história do país, buscando perceber a origem do

fenômeno população em situação de Rua no Brasil, elegemos o século XIX, passando pela

reforma sanitária no inicio do século XX. Sabemso que sempre houve em todas as

civilizações, formas de moradores e moradoras presentes, como sinais singulares de diálogo

com a cultura existente. Sempre compondo como elementos imprescindíveis de diálogo com a

cultura geral. Contudo, deixaremos essa abrangência e tomaremos no Brasil apenas o período

que se conecta com a República. Não supondo que este jejum seja ignorar a história desta

população, mas é na proximidade de nós, que alguns fenômenos se mostram apresentar certa

complexidade, no diálogo com estruturas modernas que nos dizem respeito de maneira

particular, agora, pela crise absoluta dessa vigência. Abordaremos as políticas públicas,

sociais e as ações filantrópicas destinadas à situação de rua, finalizando com uma

demonstração do quadro atual das politicas de governo na atualidade em atenção a esse grupo

vulnerável.

O terceiro capítulo traz o caminho metodológico escolhido para pesquisa. Para

realização da pesquisa, optamos por um estudo de caráter qualitativo de orientação

fenomenológica fundamentada em Merleau-Ponty, que pressupõe a intersubjetividade e a

recriação de significados no processo da relação com o objeto de pesquisa. Essa metodologia

representou para nós neste estudo, uma nova maneira de olhar o ser humano e sua relação

com o mundo e nos implicarmos nesta vivencia enquanto um ser encarnado nesta realidade,

como bem afirma o autor: “Nós estamos misturados com o mundo e com os outros numa

confusão inextricável” (Merleau-Ponty, 2006, p. 518).

Na experiência relatada neste estudo, a metodologia fenomenológica sob a luz dos

pressupostos de Merleau-Ponty, direcionou a ênfase na dimensão existencial do viver humano

e nos significados vivenciados pelas pessoas em situação de rua, buscando os sentidos tal

como se apresentaram na relação, em uma descrição densa desta vivencia.

A descrição densa caracteriza-se na forma como o pesquisador ou pesquisadora

descreve seus estudos, segundo GEERTZ (2008, p.4) devemos buscar compreender e

interpretar as expressões sociais que são “enigmáticas na sua superfície” deve-se descrever

seu objeto de estudo em suas mais diversas particularidades, levando em conta todos os

pequenos fatos que cercam sua vida social, não bem os fatos em si, mas a ação econômica,

social, política e simbólica destes fatos. Não se busca leis gerais, mas sim

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significados/significações, conforme essevera, Clifford Geertz. Não as generalidades, mas

aquilo precisamente que quebra a ordem dominante de plantão.

Utilizamos também da observação participante, onde tratamos de estabelecer uma

adequada entrada no campo de pesquisa, favorecendo que reduzíssemos a estranheza entre a

pesquisadora e o nosso companheiro de pesquisa. Um dos pressupostos da observação

participante é o de que a convivência do investigador com a pessoa ou grupo estudado cria

condições privilegiadas para que o processo de observação seja conduzido e dê acesso a uma

compreensão que de outro modo não seria alcançável. Admite-se que a experiência direta do

observador com a vida cotidiana do outro, seja ele indivíduo ou grupo, é capaz de revelar na

sua significação mais profunda, ações, atitudes, episódios, etc. Tal perspectiva é assim

expressa por EZPELETA & ROCKWELL (1986): "Na observação participante, as relações

interpessoais entre pesquisador e sujeito, ali chamadas 'relações sociais', constituem as teorias;

é a relação que determina o pensamento e não o contrário." (p. 83).

O quarto capítulo, narramos nossos encontros com a pessoa em situação de rua de

nossa pesquisa, o Barba, procurando captar a essência de suas fala. As falas do Barba nos

possibilitou compreender, dialogando com Hanna Arendt e Agamben, a banalidade do mal,

como uma das razões da indiferença e ódio para com as pessoas em situação de rua.

Nas considerações finais buscamos refletir sobre os resultados do trabalho e sobre

sentidos que possibilitarão a continuidade da pesquisa e a ampliação da reflexão sobre a

temática que envolve as pessoas em situação de rua.

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CAPÍTULO I

O SISTEMA CAPITALISTA E A INTENSIFICAÇÃO DAPPOBREZA-

DA EXCLUSÃO AO ESTADO DE EXCEÇÃO

O passado do homem é o seu passado que o acompanha no seu presente, e

que age sob a forma invisível da latência, que não permanece encerrada em

um deposito morto. O passado humano é como o outro que está em nós, que

já imprimiu em nós seus traços, por caminhos „esquecidos‟ que recobrem de

poeira os traços que o indicam, que vêm ao encontro de nosso presente

vivente como se fossem resistências que experimentamos e como se

escapassem a nosso domínio ou que deveríamos ultrapassar (CAPALBO,

2004, p. 8).

Os termos utilizados, para conceituar o grupo social por nós pesquisado varia muito,

na academia e nos trabalhos que buscam compreende-lo e interpretar. Nenhum conceito é

neutro. Carregam neles marcas decisivas, por vezes fruto de determinados preconceitos, ou

formas de ver, que já predefinem, antes mesmo de ouvi-los. Os termos variam como

“população de rua”, “morador de rua”, ”pessoas em situação de rua”, “povo da rua”,

”mendigos” ou “sem teto”, compreendemos que, apesar de parecerem sinônimos, não são e

cada um carregam ideologias, conceitos e simbolismos históricos. Nesta pesquisa, um dos

personagens principais - Barba - idenficou-se por autodeclaração como "não sendo da rua",

mas sim que “estava na rua”. Compreendia que a rua não é um lugar que denote pertença.

Eles e elas estão na rua por uma série de problemas pessoais e sociais, de sorte que escolhem

a situação de rua, que inclusive traz ao ser humano a possibilidade de mudança se assim ele

quiser e puder, e também de viver condições menos conflitivas, do que a família, muitas

vezes, o bairro e o lugar de trabalho.

Assim sendo, nesta pesquisa utilizaremos dos termos “situação de rua ou pessoas em

situação de rua”, por englobar, conforme afirma Andrade,

As ruas também são ocupadas por pessoas que as utilizam para sobreviver:

são vendedores, ladrões, mendigos, artistas e outras. Dentre essas pessoas

estão às crianças e adolescentes em situação de rua que são encontradas

roubando, mendigando, usando drogas, fazendo apresentações artísticas nas

principais vias urbanas ou dormindo sob qualquer cobertura que lhes ofereça

proteção. Estar na rua e ser abordado por uma criança mal vestida que pede

dinheiro, comida ou dorme sobre papelões e coberta com o que possuem não

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é inusual. Cenas como essa se tornaram um retrato comum, normalidade

(Andrade, 2013: 185).

Giorgetti (2006) reforça que a utilização da expressão “pessoas em situação de rua”,

possui a intenção de destacar o caráter processual do fenômeno:

Delimitar as trajetórias (idas e vindas) e enfraquecer a ideia predominante (e

pejorativa) de que se trata de pessoas de rua, que não tem outra característica

senão o fato de pertencer às ruas da cidade (GIORGETTI, 2006, p.20).

Partindo da compreensão que, apesar do fenômeno pobreza, não se restringir às

sociedades capitalistas, contudo, na história percebemos que este sistema tem se mostrado

extremamente eficaz na produção de miséria e exclusão, tal como entendem Karl Max e muito

bem interpretada por Pete Alcock, entre outros. Esse quadro de intensificação e

reconfiguração da pobreza neste sistema favorece um aumento gradativo de pessoas em

situação de rua no país.

Segundo Lena Lavinas (2003)2, independente do conceito, pobreza sempre se

configura como um “problema” da pobreza seja ele moral, político ou econômico e afirma,

Na acepção mais imediata e generalizada, pobreza significa falta de renda ou

pouca renda. Uma definição mais criteriosa vai definir pobreza como um

estado de carência, de privação, que pode colocar em risco a própria

condição humana. Ser pobre é ter, portanto, sua humanidade ameaçada, seja

pela não satisfação de necessidades básicas (fisiológicas e outras), seja pela

incapacidade de mobilizar esforços e meios em prol da satisfação de tais

necessidades. (LAVINAS, 2003, p.29)

Assim como para Pereira (2008), neste trabalho, a abordagem sobre a pobreza a qual

acreditamos ser considerada mais pertinente é a que se associa ao conceito de necessidades

humanas trabalhada por Ian Gough,

(...) que defende a universalidade e a objetividade dessas necessidades para

além das diferenças culturais e históricas. O que pode variar, diz ele, são as

formas de satisfação dessas necessidades básicas, e não as necessidades em si.

Baseando-se nessa concepção, pode-se argumentar que não se utilizará um

alimento típico da Amazônia brasileira, como o açaí, como fonte de energia

nutricional para as populações do sul do Brasil; nem será necessário um

sistema de aquecimento habitacional nos países tropicais. Dessa maneira,

torna-se imperativo definir necessidades básicas como base de análise

comparativa sobre pobreza. Para Gough, “necessidades básicas são aquelas

2 http://www.uff.br/revistaeconomica/v4n1/lavinas.pdf

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que se não forem devidamente satisfeitas implicarão sérios prejuízos à vida

material e à autonomia do ser humano”. E por sérios prejuízos devem-se

entender impactos negativos cruciais que impedem ou põem em sério risco a

possibilidade objetiva dos seres humanos de poder expressar sua capacidade

de participação ativa e crítica. São, portanto, danos cujos efeitos nocivos

independem da vontade de quem os padece ou da cultura em que se verificam

(PEREIRA, 2008, p.22).

Portanto, a pobreza absoluta, pode ser definida pela não satisfação de necessidades

básicas universais e objetivas. Estende-se, todavia às dimensões subjetivas, sobretudo aquelas

de possuir um espaço territorial que permita situá-lo no mundo, e também compreender-se em

um tempo de continuidade, e de elos, que conotam o sentido de vida. Ninguém sobrevive sem

relação, ninguém sobrevive sem reconhecimento dos outros semelhantes ainda que diversos

ninguém vive sem carinho, comunicação, amor, e reconhecimento de valor. Neste sentido a

pessoa é um ser político, aberto a ser mais, no sentido freireano.

Mais do que nunca, o contraste entre a pobreza e o crescimento vertiginoso das

riquezas produzidas é visivelmente assustadoras. O mundo contemporâneo observa a

proliferação de uma desigualdade social latente, em que, é preciso comparar pelo menos mais

do que uma década, para compreender essa desconstituição meteórica. Informações de 1999:

“20% da população do mundo detém 82,7 do conjunto da renda; os 20%

seguintes, 11,7% e os 60% restantes da população mundial dividem entre si

somente 5,6% da riqueza produzida pelo conjunto do planeta” (Salama &

Destremau, 1999: 22).

No período de pouco mais que uma década:

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Essa desigualdade crescente, não é fruto da natureza de processos sociais ou

históricos. Ela é fruto de indução, e desconstituição de sentidos, valores, bens necessários,

necessidades artificiais, seguidas de muita ideologia e mecanismo de opressão, dominação e

dessubstanciação dos seres humanos, dos seres de natureza em mutação, e das formas

agressivas e letais. Desemprego maciço de amplos seguimentos da população, não é estranha,

nem nova para um sistema que se baseia na exploração do trabalho e na apropriação privada

da riqueza socialmente produzida, deixando para os trabalhadores somente a venda da força

de trabalho como possibilidade, por vezes única, de obter sua reprodução física e espiritual.

“O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto

mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador torna-se

uma mercadoria mais barata, quanto maior número de bens produz. Com a

valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a

desvalorização do mundo dos homens”. (Marx, 2002, p.111).

Partindo do pressuposto que o trabalho assalariado se configura como a base do

sistema capitalista, para que ele funcione corretamente, é imprescindível à existência da

pobreza. Neste sentido, Pereira (2008) afirma:

É usando a pobreza como uma ameaça constante que o sistema disciplina e

obriga os indivíduos a recorrerem incondicionalmente ao mercado de

trabalho. E é através da exploração e da miséria dos mais pobres que o

capital se reproduz. Assim, os pobres não são excluídos do sistema como um

todo; não se localizam fora dele, mas na sua margem. (PEREIRA, 2008,

p.24)

Nesse contexto, após conceituar a pobreza, torna-se importante associa-la ao

fenômeno “pessoas em situação de rua”, que desde sua origem, carrega um estigma da

vadiagem e falha de caráter e tratada com repressão e violência pelo Estado.

Essas pessoas são de certa forma a cara de exclusão no país, exclusão que compõe de

assimetrias econômicas, mas também o desreconhecimento de pertencimento social. Implica

simbolicamente na destruição dos sentidos de vida, na falta de perspectivas para garantir o

fluxo da vida, bloqueio ao acesso à informação, e a consequente perda de autoestima. Sua

condição adversa, de apartheid, preconceito e carimbagem prévia de sinais de diferença e de

rejeição dos valores em conflito, com a cultura genérica, acabam por destiná-las ao limbo,

mas em especial a graves danos na saúde, ausência de acompanhamento de distúrbios,

principalmente, mentais, relacionados as mundo do tráfico de drogas, relativização de valores

de convivência, e surgimento de padrões e perspectivas de emancipação social muito restrito.

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A sobrevivência nas ruas exige um esforço diário dessas pessoas, nem mesmo seu

mundo social é produto de escolha ou criação própria, pelo contrário, são empurrados a estar

nele.

Decorrente disso acaba por construir uma ―cultura de rua‖ através de uma

sociabilidade própria. Os moradores de rua partilham um destino particular,

único, nesse mundo: ―o de ter que sobreviver nas ruas e becos da cidade.

Assim, no contexto da rua, a sobrevivência do morador de rua se dá em

lugares os mais inusitados e estranhos, mas que os abrigam das intempéries

da natureza, dos olhares acusadores, das atitudes de desprezo e dos perigos

cotidianos. A rua, com todos os seus contrastes e perigos ocultos, protege

seus moradores, os quais através da construção de sociabilidades próprias e

buscando as mais diversas formas de abrigo, procuram também proteger suas

identidades, camuflar suas almas, esconder suas tragédias e dores. (COSTA,

2013, p. 48-49)

As pessoas em situação de rua partilham, contudo, da mesma fatalidade, com

significados muito diversos, cujo imperativo é manter-se vivo nas grandes cidades, sobretudo

durante a noite onde toda a ameaça possa por fim à vida. Não há paz para quem está nestas

condições e isto está longe de ser compreendido como um ato de liberdade ou de simples

escolha.

A condição de situação de rua transforma a vida de qualquer pessoa, que precisará

aprender formas de relações entre pares, que estão nesta condição, e poderão desenvolver

socialidade importantes, pra manter o vínculo de solidariedade, as mudanças permeiam o seu

modo de olhar o outro e a si próprio, a sociedade o tratam de uma maneira quase não-humana.

Os direitos sociais, existenciais, políticos - apesar de tê-los formalmente- são subtraídos os

elevando a um estado de exceção, ou seja, “a suspensão (total ou parcial)” (AGAMBEN,

2004, p. 39).

As possibilidades do estado de exceção são, em termos gerais, a criação de um campo

onde a legalidade seja ”confusa” e se possa flexibilizar as leis pelo bem da gestão e a

legitimação e extensão do poder do gestor para, ao seu bel prazer, ser subserviente aos fluxos

econômico. Busca-se o enfraquecimento das respostas contrárias aos mesmos, além de criar

formas de vidas submetidas a este poder e consequentemente condenação e gestão de

qualquer atitude desviante. Como disse Deleuze (1992, p.220) sobre os últimos trabalhos de

Foucault, nos quais ele pensava cada vez mais as questões contemporâneas, saímos das

sociedades disciplinares e entramos na sociedade de controle.

As pessoas em situação de rua são submetidas diariamente e em sua grande maioria

por toda vida, aos mecanismos do estado de exceção. Para Benjamin (1994, p. 226) “a

tradição dos oprimidos nos ensina que o „estado de exceção‟ em que vivemos é na verdade a

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regra geral”. Para Cabral é na situação, contudo, de rua que os limites de uma vida

condicionada pelo estado de exceção chega ao absoluto, em uma democracia. Complementa:

[...] a vontade soberana que decreta o estado de exceção - dignificando uns e

„indignificando‟ outros – é a vontade soberana do Estado democrático

brasileiro, é a vontade soberana do Capital que diz possibilitar a todos e

todas as mesmas condições. A unificação destas duas soberanias é a

estruturação de um “estado capitalista” o qual “irá, historicamente, utilizar

duas formas de regime político: a ditadura burguesa aberta e a ditadura

burguesa oculta, a democracia”. O poder soberano do Estado e do Capital

governa a vida produtiva, os locais de morada, o estudo, o consumo e até

(em parte) o desejo, emoção, sentimentos, medos, angústias, alegrias etc.

(2014, p. 218).

O espaço da rua, como se pode visualizar facilmente em Cuiabá, em espaços como o

“Morro da Luz”, “Beco do Candieiro”, “Praça do Porto”, “Cracolândia da Rodoviária”, dentre

outros, onde podemos compreender como espaço onde o estado de exceção opera e torna-se

regra, adquire o status que Agamben (2007, p. 175) descreve como “campo”,

[...] o campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a

tornar-se a regra. Nele, o estado de exceção, que era essencialmente uma

suspensão temporal do ordenamento com base numa situação factícia de

perigo, ora adquire uma disposição espacial permanente que, como tal,

permanece, porém, estavelmente fora do ordenamento normal. [...] Não

existe ordem alguma nem instrução alguma para a origem dos campos: estes

não foram instituídos, mas um certo dia vieram a ser.

Se para Agamben, o campo de concentração é o paradigma biopolítico do moderno,

não é extremo afirmar que para as pessoas que estão em situação de rua, ela funciona como

um autêntico campo de concentração.

(...) se a essência do campo consiste na materialização do estado de exceção

e na consequente criação de um espaço em que a vida nua e a norma entram

em um limiar de indistinção, deveremos admitir, então, que nos encontramos

virtualmente na presença de um campo toda vez que é criada tal estrutura,

independentemente da natureza dos crimes que aí são cometidos e qualquer

que seja a sua denominação ou topografia específica. (AGAMBEN, 2000,

p.41)

Neste campo de concentração que a rua se tornou, é a criminalização da pobreza que

reina. Favorece o fortalecimento de um estereótipo do ”mendigo criminoso”, justamente

porque o estado e a sociedade trata como se fosse criminal um problema social, negando o

fato de que essas pessoas se encontram neste estado por uma sonegação e negligência

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histórica do poder público e do poder econômico, negando-lhes direitos fundamentais. Neste

sentido, poderíamos afirmar que essas pessoas possui uma vida encarnada enquanto “vida

nua”, onde a sua fragilidade e vulnerabilidade é exposta a todos. A sua condição social o

reduz enquanto vida humana, favorecendo a episódios de todo tipo de violência pelo estado e

sociedade, esses ataques não são repreendidos com o mesmo entusiasmo quando são

direcionados aos que não estão em situação de rua.

Essa vida nua, diz ao que é colocado as pessoas em situação de rua, que esta vida sua é

a “vida indigna de ser vivida” (AGAMBEN, 2002, p. 20). Uma vida matável sob a apatia e/ou

permissidade social. As pessoas em situação de rua sentem, percebem, tem consciência de sua

vulnerabilidade à violência, consequência lógica da condição de estar desprovido de direitos.

Torna-se, a partir desta condição, não só para aquela sociedade, mas, por vezes, para si

mesmo um não-humano (CABRAL, 2014, p.223). Agamben (2002, p.91) complementa,

[...] se ao soberano, na medida em que decide sobre o estado de exceção,

compete em qualquer tempo o poder de decidir qual vida possa ser morta

sem que se cometa homicídio, na idade da biopolitica este poder tende a

emancipar-se do estado de exceção, transformando-se em poder de decidir

sobre o ponto em que a vida cessa de ser politicamente relevante.

Nesta condição de “vida indigna de ser vivida”, as pessoas em situação de rua se

tornam invisíveis ao direito e à sociedade. Esse cenário social possibilita que atos de

crueldade sejam constantes para com eles, pois a rua se torna uma espécie de “terra sem lei”,

as ações concretas do estado, normalmente se restringem a políticas higienistas, a final, essas

pessoas se transformaram em uma espécie de lixo que precisa ser retirado dos espaços

urbanos, com o apoio da sociedade. Agamben conclui sobre os horrores que ocorrem nos

campos, como a rua relacionada nesta pesquisa:

A questão correta sobre os horrores cometidos nos campos não é, portanto,

aquela que pergunta hipocritamente como foi possível cometer delitos tão

atrozes para com seres humanos; mais honesto e, sobretudo mais útil seria

indagar atentamente quais procedimentos jurídicos e quais dispositivos

políticos permitiram que seres humanos fossem tão integralmente privados

de seus direitos e de suas prerrogativas, ate o ponto em que cometer contra

eles qualquer ato não mais se apresentasse como delito (a esta altura, de fato,

tudo se tinha tornado verdadeiramente possível). (AGAMBEN, 2002, p. 178)

A condição das pessoas em situação de rua, não é uma sobra natural da forma como

a sociedade busca viver e sobreviver no tempo e no espaço, com as dificuldades para recriar

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um processo de convivência. É antes uma estratégia da destruição do todo o “solo natural” das

relações intencionadas de por grande parte da sociedade à mercê da violência dos que a

querem dominar:

Não é como parece, uma questão de trabalho produtivo, nem apenas de

reserva de mercado. Vai muito mais longe. É a forma perversa e sanguinária

dos dominadores adquirirem uma aura divina de superioridade surreal,

adquirida proporcionalmente no poder trucidar os outros como nada,

estabelecendo a diferença radical entre o Grandioso e Onipotente, contra a

fragilidade absoluta do outro. Investem-se desta forma, de prazer sádico, de

investir da força do poder maléfico, e de se colocarem acima de todos os

altares no culto à humanidade caucasiana e sem margens e limites, que se

reforçam pelos rituais sacrificiais que expressam sua crescente sede de

sangue (PASSOS, 2017, 31-46).

1.1 Táticas de sobrevivência e as trocas de saberes

Para Mattos e Ferreira (2004), o trabalho consiste,

(...) constitui uma das categorias responsáveis pela coesão da sociedade

atual, além de conferir ao indivíduo dignidade pessoal. Dessa forma, o

trabalho surge como fator primordial para a pessoa, por dois aspectos:

provém a subsistência física por meio dos rendimentos recebidos; e sustenta

a subsistência simbólica, dada a importância do trabalho (ou identidade

profissional) na constituição da identidade pessoal.

Apesar de um grande número de brasileiros atualmente encontrar-se no mercado

informal, ainda se tem o entendimento que identidade profissional se dá através do emprego

formal e registro em carteira. Neste contexto, as pessoas em situação de rua apesar de

desenvolverem atividades informais, são, sob a ótica do trabalho, frequentemente

consideradas como improdutivas, inúteis, preguiçosas, incapazes e vagabundas. Sendo assim,

as pessoas em situação de rua são culpabilizados por não possuir um emprego formal, neste

sentido completa Di Flora,

(...) a população em situação de rua é assim estigmatizada, pois escancara as

contradições básicas do modo capitalista de produção: a falácia de que todos

possuem iguais oportunidades e a evidência de que, embora a produção seja

social, a apropriação dos ganhos é sempre individual, sendo as pessoas em

situação de rua testemunhas vivas de que a exploração e a desigualdade

estão no cerne deste modo de produção. (DI FLORA, 1987, p. 47)

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Porém, apesar de todos os estigmas e barreiras sociais, inclusive destituídos da

condição de humanos, as pessoas em situação de rua precisam buscar diariamente alternativas

de trabalho para sobreviver. Buscam sem a possibilidade de escolha, nas atividades mais

degradantes possíveis, alcançarem o status de trabalhador tão importante numa sociedade

capitalista. Distanciam-se do mercado formal, onde teriam os direitos assegurados pela

legislação trabalhista e previdenciária e lhes empurram a uma linha tênue de desumanidade,

lhes sobrando como alternativa o trabalho informal, a mendicância, além da execução de

pequenos furtos, tráfico de drogas, prostituição, etc.

Em uma breve busca em publicações que tem como objeto ou sujeito de pesquisa a

população e situação de rua, percebe-se que ainda são restritas, apesar de que nos últimos

anos obteve-se certo aumento, talvez por ampliação e criação de alguns programas de atenção

a este grupo específico. Tais pesquisas constituem-se como dados importantes que, em muitas

situações, balizam a proposição de políticas públicas para este grupo.

Segundo Kunz (2012), percebe-se que muitas políticas governamentais, e também as

pesquisas acadêmicas, lidam com estes modos de vida a partir de várias perspectivas que

abarcam: práticas/ações que tentam domesticá-los; práticas que os vitimizam; práticas que os

tomam como perigosos, criminalizando-os; e práticas que vêm se esforçando no sentido de

mergulhar nesta experiência e com ela tecer saberes da/na rua.

Nesses territórios há códigos que seus usuários entendem e respeitam

criando regras de convivência. Nesse contexto, é possível.

definir convivência a partir do pensamento de Certeau (2009, p. 49), quando

afirma que “a convivência é o gerenciamento simbólico da face pública de

cada um de nós desde que nos achamos na rua”. Aos

mais fortes torna-se comum à liderança representada muitas vezes pela

dominação. Destaco que a existência de um território na rua esta diretamente

ligada às relações de poder que se estabelecem e são também essas relações,

importantes para manutenção do território, que provocam a elaboração,

reelaboração e execução das táticas de sobrevivência instituídas por eles,

mas também instituintes, para situações específicas e mutantes.

(ANDRADE, 2014, p.186)

As táticas de sobrevivência, compreendidas a partir do espaço da rua, afirma Andrade

(2014),

Normalmente essas táticas de sobrevivência (“viração”, “mangueamento” ou

“desenrascaço” e em Cuiabá se chama ainda de “correria” ou “caçá jeito”)

exigem uma convivência grupal entre os usuários do espaço urbano, o que

possibilita a otimização do seu tempo e promove a eficácia da ação

executada por eles. Tendo como base a criação de grupos, (...) podem ser

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compreendidos em dois: 1) os que perderam os vínculos familiares, tomando

a rua como moradia; 2) os que mantêm vínculo com a família, indo à rua

desenvolver atividades, a fim de contribuírem com a renda familiar ou de a

gerarem. São diversas as atividades desenvolvidas por esses dois grupos –

trabalho, mendicância, furto, brincadeiras, uso de drogas, etc. Assim, para

eles, a rua se torna um lugar de dinâmicas variadas. (ANDRADE, 2014, p.

183)

Em se tratando de táticas de sobrevivência das pessoas em situação de rua é preciso

não descartar as práticas ilícitas, visto que,

Considerar roubo como trabalho seria buscar o significado do trabalho

no aparente não trabalho (BLASS, 2006). Sendo assim, é possível

visualizar as atividades antes conceituadas como vagabundagem ou

banditismo enquanto trabalho, mesmo que sejam ilícitas ou que

desafiem a ordem estabelecida pelo Estado. Quando abordo as táticas

de sobrevivência desenvolvidas e executadas pelas crianças e

adolescentes em situação de rua enquanto trabalho, considero essas

duas táticas enquanto trabalhos lícitos e ilícitos, sem desprezar sua

importância para manutenção da vida (...). (ANDRADE, 2014, p.191)

Como prática comum, às pessoas em situação de rua de Cuiabá, a exemplo de nosso

companheiro de pesquisa, sobrevive realizando limpezas de quintais, fazendo pequenos

reparos, artesanato com garrafas, guardando carro na rua, carregando sacolas, etc.,

desmistificando o que se tem em um discurso comum da sociedade, que as pessoas em

situação de rua sobrevivem somente de mendicância, aliás, essa não é uma prática comum

nesta região. Os grupos que permaneceram nas regiões centrais realizam outras táticas para

sobreviver, além das já citadas, inclui a limpeza de para-brisas nos semáforos, limpeza nos

quintais dos bares, prostituição, malabares, no caso das práticas ilícitas, se utilizam

frequentemente do termo “corre” para identifica-las, são os furtos, roubos, venda de drogas,

etc.

Olhar para todo esse movimento que as pessoas em situação de rua fazem para

sobreviver, requer como anuncia Geertz, do pesquisador e da pesquisadora convivência de

campo e uma atenção cuidadosa, pois se corre o risco de cair em armadilhas de se tentar

moralizar ou romantizar as maneiras que essas pessoas encontram para sobreviver. Ao se

deparar com um mundo social onde as práticas ilícitas se tornaram um modo de vida,

independente do que se tem como valor pessoal, é preciso não desqualifica-los com o seres

humanos onde sua dignidade fora escamoteada por um sistema onde não dispõem de um

“lugar ao sol”, são seres descartáveis, mas que “teimam” em sobreviver.

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Diferentemente do que acreditávamos a população em situação de rua não vive em um

mundo paralelo aos que não estão nesta situação, pelo contrário, estas táticas de sobrevivência

são fabricadas de forma entrelaçada a todos os processos e relações sociais que se dão na

cidade de forma geral.

Durante a nossa trajetória trabalhando ou pesquisando a população em situação de rua

de Cuiabá, pudemos perceber algumas táticas utilizadas para sobreviver nas ruas, tais como:

alimentação, a correria, as regras, a relação com a cidade, incluindo aqui as igrejas, os

comerciantes, a segurança pública, o banho, o cuidado com os pertences pessoais, o trabalho

que realizam na rua, dentre outros, que de algum modo expressam como se desenrola a vida

nas ruas.

Atrelado às táticas de sobrevivência, as práticas educativas se dão entre e com eles,

isso se dá entre os que já estão em situação de rua e os que chegam de forma quase que

natural. Frequentemente estão agrupados e em uma conversa informal, onde através de sua

história ou no contar o seu dia-a-dia, o outro também aprende, a fabricação e troca de saberes

também se constitui uma forma de se se olhar as táticas de sobrevivência e implica a aprender

a lidar com a imprevisibilidade permanente. Para Freire (1980, p.64), “(...) o educador já não

é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando

que, a ser educado, também educa”.

A educação não se caracteriza apenas por práticas de ensino institucionalizadas

formais, em se tratando de pessoas em situação de rua, ela se dá principalmente nas trocas de

saberes e essa prática educativa, garante muitas vezes, a possibilidade de permanecer vivo nas

ruas. No último capítulo deste trabalho, conseguiremos visualizar com clareza como estas

táticas se dão no dia a dia do nosso companheiro de pesquisa.

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CAPITULO II

O FÊNOMENO PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA NO BRASIL – DA

ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS ATUAIS

[...] a existência desvela, em face da liberdade uma figura do

mundo totalmente nova, o mundo como promessa e ameaça

para ela, o mundo que lhe arma ciladas, a seduz ou lhe cede,

não mais o mundo uniforme dos objetos de ciência kantianos,

mas uma paisagem de obstáculos e de caminhos, enfim o

mundo que nós „existimos‟ e não somente o teatro do nosso

conhecimento e do nosso livre arbítrio. (MERLEAU-PONTY)

É objetivo deste capítulo é realizar um percurso sucinto da complexa história do

Brasil, salientando alguns pontos que dizem respeito ao nosso trabalho, buscando perceber a

origem do fenômeno da chamada “população em situação de rua” no Brasil.

Nunca foi antes na historia da humanidade estranho as ruas terem um caráter público.

De certa forma, na Idade Média, não havia um espaço de vida privada, somente com as

corporações começam simultaneamente um controle do tempo de trabalho, o relógio como

marcação de um horário que atingiria uma ordem para todos e todas. Nas sociedades tribais a

casa, nem à noite é utilizada, para ser lugar de acolhimento. As pessoas ou recorrem a ela em

situações especificas, chuvas, ventos, perseguições, etc.

Nem mesmo a sexualidade eram práticas privadas, porque sendo parte da natureza,

e as crianças não consideradas senão com adultas de tamanho pequeno, não tinham um status

ou formas de comportamento sob controle específico, e compartilhavam de toda a vida de

todos e todas (Ariés, 1991).

O extraordinário é a privatização do espaço público da rua. Isso não é apenas um

sintoma, uma prática de um tipo de economia e cultura de criar a privatização de espaços com

prerrogativas arraigadas somente àqueles espaços, e proibido o acesso aos considerados

estrangeiros e forasteiros. Pessoa alguma vive sem estar em um território de onde organiza

sua vida. Não somos pássaros, não somos peixes... A terra é o lugar onde podemos viver, e

dela retirar o conjunto de coisas para continuarmos vivendo.

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Historicamente a existência de pessoas em situação de rua, tem mostrado não ser este,

um fenômeno restrito ao Brasil, nem às sociedades capitalistas modernas, mesmo

compreendendo que estas tenham sido as mais eficazes em produção de miséria e exclusão.

De acordo com Simões Junior (1992, p. 19), na antiguidade, já eram registrados grupos

habitando as ruas e vivendo quase que exclusivamente da mendicância.

Desde a antiguidade, já era registrada a presença de determinados grupos de

pessoas habitando as ruas e vivendo quase que exclusivamente de

mendicância. Apesar de o fenômeno em si adquirir conotações ao longo da

história, o morar na rua sempre manteve uma característica fundamental: é

observável unicamente em aglomerações humanas permanentes, o que

significa ser ele um fato tipicamente urbano. (SIMÕES, 1992, p. 19)

O autor também afirma que, na civilização grega e no Império Romano, este

movimento de pessoas vivendo nas ruas já existiam,

As primeiras referências sobre a existência de populações habitando as ruas

remontam a Grécia antiga. Com a decomposição da sociedade arcaica, a

consolidação da propriedade privada e a expropriação de terras comuns,

ocorre um grande êxodo de populações de população de despossuídos para

as cidades, vindo dar origem aos primeiros grupos de mendicantes é

vacantes urbanos.

Em Roma, o fenômeno reveste-se de características semelhantes: despejos

Rurais, vítimas de guerra, exército dissolvidos, enfim, todo um contingente

de população sem-terra e sem ofício, de mutilados, de doentes, que se

desloca para a cidade sem outra alternativa a não ser a mendicância, a

vadiagem ou à prática de atividades consideradas marginais. (SIMÕES,

1992, p. 19 e 20)

Na Idade Média, as pessoas que perambulava pelas ruas eram má vistas, tinha um

caráter questionável e independente da época em que se investigue, uma das características

marcantes era a apartação social e territorial. Para Frangella (2009, p.39), desde esse período

já se observa o estigma de vadiagem que essas pessoas carregavam.

(...) a mobilidade era justificada para a ordem social quando se traduzia em

um caráter migratório dentro da estrutura e da rede que a controlava; (...)

Assim, a errância era aceitável como uma condição passageira e não como

um modo de vida. Dessa forma, quando a perambulação era – e é ainda –

justificada dentro da moralidade da busca de trabalho, mais amplamente

legitimada, essa relação de estranhamento se atenuava. Mesmo assim, o

imaginário em torno dos errantes os marca como agentes poluidores,

perigosos; mais contemporaneamente, como fracassados.

Essa vida em espaço público perdurou e se aprofundou, nas sociedades ocidentais,

inclusive no período da Idade Média. As praças, becos eram lugares de poder estar, viver,

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dormir, fazer sexo, sem restrições. Dado o conceito da sexualidade não estar expulsa do

cotidiano. Não havia ainda preocupação com crianças, pois eram seres considerados idênticos

aos adultos ainda em crescimento, e deveriam aprender com a vida vivida, a convivência

cotidiana.

O espaço delimitado inicia quando as atividades de trocas ganham o sentido de

mercado. E a produção passa a exigir, sobretudo nas cidades que começam a se organizar, não

como forma de convivência, mas como fatores de tronar possíveis o trabalho da corporação

que se organizava, e do controle do tempo de trabalho, e dos espaços reservados a este.

Surgem, para demarcar o tempo, relógios e sinos nas torres das Igrejas, como forma de

padronizar os tempos, fatiá-los e distribuir uniformemente para os interesses mercantis.

Aprofunda-se do feudalismo o controle territorial pelo senhorio, ou nobre.

Estabeleceram-se, então, espaços voltados a controle de uso e usufruto privado. De sorte que

viver e usufruir este espaço, eram sempre sob a forma de favores, e não raro, de perda

inclusive da liberdade, e de vida ameaçada.

Com o fim da escravidão no Brasil e novos postos de trabalhos que estavam surgindo,

a elite brasileira passou a se preocupar em substituir a mão de obra negra pela dos imigrantes

brancos vindos da Europa. Essa política de segregação racial fez com os negros vivessem as

margens da sociedade, como cita ANDRADE (2014, p.22):

Devemos considerar que o fato de a maioria da população negra

brasileira estar em péssimas condições de vida no século XX origina-

se com o fim do tráfico de escravos em 1850, com o fim da escravidão

em 1888 e com a tentativa de substituir a mão de obra escrava (negra)

pela assalariada (imigrante), o que não alcançou todo o território

brasileiro. Também não podemos desconsiderar a importância das leis

contra a escravidão para melhoria da vidada população negra. O que

levantamos como reflexão é que o Estado não criou políticas de

atendimento aos escravos, que os inserissem no mercado de trabalho.

As leis apenas libertaram juridicamente, mas os negros continuaram

escravos, seres inferiores, sob o olhar do branco.

Progressivamente a mão-de-obra negra foi perdendo espaço para o trabalho

assalariado imigrante europeu nas lavouras agrícolas brasileiras, pois as maiorias dos

fazendeiros se recusavam a assalariar os ex-escravos. Com isso, os negros foram

abandonados nas ruas, estavam livres, porém sem a mínima condição para sobreviver, isto é,

o fim da escravidão não cessou os maus tratos, a humilhação e a sua negação como seres

humanos. Como afirma Forestan Fernandes (1978, p. 15):

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A desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil, sem

que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de

assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de

trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela

manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer

outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto

prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. (...)

Essas facetas da situação (...) imprimiram à Abolição o caráter de uma

espoliação extrema e cruel. (2008: p.28)

O que se conforma à mesma percepção de Abdias do Nascimento que a crueldade

operou uma marca muito maior por dentro, a partir de uma relação de aniquilação e

hospedagem do hospedeiro no escravo, buscando a perda de sua referencia e de sua memória,

através do corpo e do imaginário opressor:

A ação do racismo no Brasil, por si só com altos graus de intolerância

e perversidade, tentou com todos os recursos que o conhecimento

permite anular o homem e a mulher negros na sua dimensão

existencial, buscando liquidar a sua memória, a sua identidade, o seu

corpo e o seu espírito (NASCIMENTO apud HUNTLEY, 2000, p.

231)3.

A história do trabalho no Brasil carrega com ela as marcas das senzalas, o trabalhador

escravo que gerou tantas riquezas ao Brasil carrega consigo a invisibilidade, se quando

escravos já eram invisíveis a essas análises, pós-abolição não houve grandes mudanças, o foco

era voltado ao trabalhador branco e imigrante. Esse período se estabeleceu como um

momento de transição da formação do trabalho livre, onde os ex-escravos foram ficando a

mercê de sua própria sorte. MARTINS (1979) traz em sua obra:

(...) a questão abolicionista foi conduzida em termos da substituição do

trabalhador escravo pelo livre, isto é, no caso das fazendas paulistas, em

termos de substituição física do negro pelo imigrante. O resultado não foi

apenas a transformação do trabalho, mas também substituição do

trabalhador.

Os ex-escravos, além de serem discriminados pela cor, pois na época havia uma

exaltação do imigrante branco, associada à ideia da incapacidade do negro para o trabalho e

somando-se à população pobre que se constituía em mulheres empregadas nas casas-grandes,

filhos ilegítimos dos brancos ou escravos velhos, doentes e incapazes para o trabalho, muitos

cativos, diligentes que compraram sua alforria com o fruto de seu trabalho além dos que

3 http://vencontro.anpuhba.org/anaisvencontro/L/Leonardo_do_Amaral_Alves.pdf

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fugiram enquanto estavam em condição de escravidão. Formaram os indesejados, os

deserdados da República. Como afirma Cardoso:

[...] ao longo dos séculos, os cativos e/ou seus descendentes se libertaram da

escravidão e passaram a compor a população não diretamente envolvida com

a economia escravista, que com o tempo se avolumou em virtude da

miscigenação. Em 1850, quando cessou o tráfico negreiro, havia cerca de

dois milhões de escravos numa população estimada em oito milhões de

almas, das quais mais de 90% viviam no campo. A força de trabalho já não

era majoritariamente escrava. O censo demográfico de 1872 contou perto de

dez milhões de brasileiros, dos quais 1,5 milhão de cativos. Como considerar

intersticiais, ou sem lugar, os 75% de brasileiros que já não eram escravos

em 1850? Esse grupo heterogêneo, mestiço, majoritariamente miserável,

disperso pelo território nacional e afeito à migração constante em busca de

meios de vida não participava diretamente do setor dinâmico da economia

(que então se deslocava para as lavouras de café de São Paulo), mas era parte

da dinâmica social mais geral. (2008, p 76 e 77).

Segundo Rodas e Prudente (2009, p. 503)4, não houve uma preocupação coma

integração dos ex-escravos na sociedade vigente:

Nem mesmo a abolição da escravatura com a Lei Áurea se preocupou com a

integração do ex-escravos na sociedade vigente, deixando-o estigmatizado

com a negatividade pautada a toda sorte de um sistema de trabalho livre, que

não tinha lugar para aqueles que hora vieram para servirem no trabalho

compulsório. Situação que contribuiu para formação do estigma de mau

cidadão, marcado pela: malandragem, prostituição, vadiagem, entre outros.

Esse grupo sequer era considerado na época como povo brasileiro, representava a

maior parte da população do país, chegando a cerca de 65%, excluindo indígenas. E a

interpretação da população branca burguesa, que se continua era de que seriam milhares de

pessoas vistas como parasitas, inúteis e vagabundas e que não tinham acesso às benesses da

sociedade em formação como expressa de maneira violenta, Manoel Bomfim:

Nos interstícios dessa malha de feudos, uma população de mestiçagem,

produto de índios e negros, negras e refugos de brancos, indígenas e

escravos revés, uma mescla de gente desmoralizada pela escravidão ou

animada de rancores, uma população vivendo à margem da civilização,

contaminada de todos os seus vícios e defeitos, sem participar de nenhuma

de suas vantagens. (BOMFIM apud SPRANDEL, 2004, p.38).

E o panorama ainda persiste na visão autoritária, branca, eugênica dos processos de

higienização, que enxergavam apenas o aumento do número de desocupados, trabalhadores,

4 http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67867

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lumpens5 – no sentido clássico – excrecências - em situação de rua; e, crianças abandonadas

nas ruas redundaram também em aumento da violência, sobretudo da população branca, do

aparato policial contra a população carimbada como animais, no sentido de Agamben. O

historiador Luiz Edmundo (1880-1961), em sua obra ”O Rio de Janeiro do meu tempo” fez

uma descrição do cenário desse período:

“Por elas vivem mendigos, os autênticos, quando não se vão instalar

pelas hospedarias da rua da Misericórdia, capoeiras, malandros,

vagabundos de toda sorte: mulheres sem arrimo de parentes, velhos

que já não podem mais trabalhar, crianças, enjeitados em meio à gente

válida, porém o que é pior, sem ajuda de trabalho, verdadeiros

desprezados da sorte, esquecidos de Deus...(...) No morro, os sem- -

trabalho surgem a cada canto”.

Nas principais cidades do Brasil, como Rio de Janeiro, as favelas e cortiços, foram às

saídas encontradas pelos descendentes de escravos e pelas pessoas de baixa renda, para

ocupar e sobreviver. Segundo Valladares (1998, p.07) eram “considerados [...] como o lócus

da pobreza, espaço onde residiam trabalhadores e se concentravam, em grande número vadios

e malandros, a chamada “classe perigosa””. A última audiência na Câmara de Cuiabá, semana

passada, retoma esse mesmo refrão. A audiência considerada pública era para abrir

perspectivas de negociação com grupos externos interessados em financiamento ao turismo os

lugares onde havia afluxo de “drogas”. Esse discurso trazido por Valladares é fruto da classe

burguesa dominante que possuía na classe trabalhadora uma imagem de homogeneização,

tanto econômica como espacial. Buscava, segundo o autor, diluir a ideia de identidade

positiva da sociedade para com esses moradores e com suas residências.

Durante o Império, as pessoas mais abastadas da sociedade viviam em grandes

casarões nas regiões centrais das cidades, com o passar dos tempos, já no século XIX, devido

à falta de cuidado, esses casarões foram abandonados e um grande número de pessoas que não

tinham lugar para morar invadiram esses locais e assim se deu a origem dos cortiços, essa

forma de abrigamento acabou favorecendo a invisibilidade dessas pessoas. Situação ainda

presente ao observarmos a região central de Cuiabá e bairros como o Porto, as pessoas em

5Lumpen, Inclusive na literatura marxista foi considerado as pessoas “perversas” ou „sobrantes‟ nas ruas que não se

enquadravam dentro da ordem produtiva à qual pertenciam. E, como delinquentes e maus, mantinham uma vida em agressão

aberta à sociedade, e como setores antissociais. Na revolução Bolchevique, coube à Máximo Gorki e a Makarenko

reorganizar a educação socialista com estas crianças e adolescentes considerados delinquentes. Atualmente a literatura sobre

população de rua, inclusive as pesquisas trabalham sempre na perspectiva de „integração‟ destas pessoas via trabalho

produtivo, que na verdade não é um processo de sentido, mas de escravidão declarada, de sua exploração. E de atá-los ao

Estado que temos... e não ao que queremos.

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situação de rua, costumam invadir os casarões antigos e abandonados que por conta do seu

tombamento histórico, não podem ser demolidos e o restauro oneroso aos donos.

Eram nesses locais que a população obtinha pagamentos irrisórios por sua mão de

obra, encontrava taxas de aluguel que conseguiam pagar, uma vez que as habitações

concentravam um grande número de pessoas, em um espaço muito reduzido, onde o abandono

por parte dos serviços públicos mantinha uma infraestrutura das moradias era precária, como

o acesso mínimo à agua potável, coleta de lixo e serviços de esgoto.

Os cortiços, apesar de se apresentarem como uma boa forma de lucro para seus

diversos proprietários, para o Estado eles representavam não só um local com grande

agrupamento de doenças contagiosas, mas também “um foco potencial de agitações

populares, residência que era de um número elevado de trabalhadores, imigrantes em sua

maioria, que viviam no limiar da subsistência” Muitos deles, ligados aos movimentos

anarquistas que tomaram o Brasil, em função do baixo preço, pago pelo trabalho deles

(ABREU, 2003, p.212).

Surge pela primeira vez o impulso de se construir uma sociedade capaz de se tornar

menos diferenciada, e superar, pelo progresso, uma base nacional popular, para superar a

herança colonial, a escravidão e construir um conjunto de dimensões e „temperos” que

criassem o nacional popular. Vencendo a resistência de núcleos isolados.

A ideia, de progresso, mudança, transformação rápida pelo trabalho, pelo arcabouço de

controle jurídico, e exigir que os grupos abrissem mãos de suas diversidades locais, e

adquirem-se formalmente aspectos de uma cultura de massa, popular. O interesse era

necessário, pois era impossível uma sociedade divida entre muitas nações, costumes, tribos,

sem uma língua comum, um sentimento comum, uma base para uma nacionalidade, mais

imposta do que negociada. Importante foi a contribuição de Marilena Chauí no seu trabalho

acerca do Nacional Popular. Importante compreender que o Nacional Popular foi estratégia e

continua sendo de homogeneizar a sociedade brasileira para o controle político, normalmente,

pelos déspotas esclarecidos, no mesmo sentido deles, de produzir um fenômeno em que se

busca uma convivialidade com o abandono do que se é, para realizar uma síntese harmoniosa.

Foi nesse período que vivenciamos no país uma supervalorização do progresso, onde se

exigia que houvesse uma superação da herança colonial e da escravidão para assim se

construir uma identidade nacional. Com esse objetivo, o Estado passou a interferir na vida

social e reconstruir os espaços urbanos se utilizando de ações higienistas para controlar

socialmente a população. Neste contexto, a pobreza passa a se tornar um problema social da

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época, deixando de ser encarado simplesmente como um fenômeno sem importância, visto

que o Estado visava grandes transformações sociais, políticas, industriais para o país. No

entanto, a primeira reforma se deu somente em 1902, no Rio de Janeiro, gerando um grande

processo de urbanização e uma melhoria considerável na saúde pública.

Para Valladares (1990, p.7), neste contexto, os pobres passaram a ser considerada uma

classe perigosa e que necessitária ser reprimida e controlada para que não se comprometesse a

ordem. Eram vistos como inúteis para sociedade e onerosos para o Estado, portanto precisava

ser ajustada, para isso a solução seria os libertarem dos “vícios da pobreza”, como a preguiça,

a mendicância, a vagabundagem e a doença. Essa época se caracterizou pelo destaque que os

médicos e sanitaristas obtiveram devido às medidas tomadas com relação à saúde pública e

higienização das cidades, como o fechamento dos cortiços, as campanhas de enfrentamento de

epidemias, demolição dos locais de moradias insalubres, o intuito era de moralizar a pobreza e

a miséria.

A Reforma Urbana aos poucos foi transformando a paisagem da cidade do Rio de

Janeiro. Decretos que mudavam, aleatoriamente, havia decretos proibindo entre outras pautas,

a construção/reestruturação de imóveis sem o aval da Prefeitura. Milton Campos falava de um

processo urbano que não tinha nada de normal, nem organizado, todo contrário. Convivia com

o improviso. Os cortiços existentes e diversas formas de trabalho “não oficiais” que

aconteciam no centro da cidade, como marreteiros, vendedores ambulantes, camelôs,

trabalhavam nas ruas, sem impostos do imóvel onde moravam. Priorizavam, os mais pobres,

migrantes, sem teto, morar em cortiços localizados no centro, mesmo em péssimas condições

de habitabilidade, pois naquela época, no caso de procura de emprego, era a área central da

cidade que oportunizava bicos, pequenas ajudas, e mais possibilidades de trabalho eventuais.

Tanto como contribuía com maior economia de gastos por não pagar transporte, e haver vagas

de emprego que precisavam rapidamente ser preenchidas.

A população mais pobre de diversas capitais brasileiras morava em cortiços, e, por

conta da grande concentração de pessoas em um local pequeno, a propagação de doenças,

como a febre amarela e a cólera, era muito comum, desinterias, viroses.

Ora, a Reforma, queria organizar a sociedade brasileira, com se fora uma única

entidade, sem diversidades e singularidades, sem as dimensões linguísticas próprios das

tribos, sem sinais de todo traduzíveis. Ela se baseava no tripé: “saneamento, abertura de ruas e

embelezamento, e objetivou a atração de capitais estrangeiros para o país”. (PINHEIRO e

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JUNIOR, 2006, p.04) o poder público expulsou os moradores desses cortiços, demolindo uma

parte dos imóveis e no local abriu novas ruas que contribuíram na circulação interna e na

diminuição nos custos do transporte de mercadorias do comércio, ou seja, beneficiou o

crescimento do capital.

A segregação sócio-espacial, que pode ser notado inclusive nos dias atuais, passou a

ser visto então, em diversas capitais brasileiras. São nas regiões mais afastadas dos grandes

centros que vivem os negros e pobres, se destacando na paisagem urbana as favelas e morros

em condições mínimas de habitabilidade onde os serviços públicos praticamente inexistem e

com poucas oportunidades de empregos. A dificuldade de acesso, o não transporte, levou a

que as pessoas mais ricas ficassem no abrigo, sem risco, perto de linhas de bonde e ônibus,

considerando a morro como o inferno, lugar infecto, sem alegria só tristeza, destituído de

educação, bem estar e higiene.

Ali onde a exclusão confunde-se com confinamento e serve para armazenar

grandes contingentes populacionais em situação de longa exclusão, porque

não têm acesso ao emprego e a renda. (CARRIL, 2006, p.17)

Com as diversas expedições científicas ocorridas no Brasil entre 1900 e 1915, ficou

evidente a forma precária de vida das populações que residiam nas áreas periféricas das

cidades. Essas expedições levaram para áreas rurais do país às linhas telegráficas, estradas de

ferro, usinas hidrelétricas, bem como as inspeções sanitárias e combate a doenças como

malária, tuberculose, hanseníase e peste bubônica. De acordo com Márcia Sprandel,

As descrições feitas não davam margem a dúvidas sobre a exploração a que

era submetida à população rural. Além disso, as narrativas sobre a pobreza

da dieta, o estado das residências e a escassez de água tinham um impacto

redobrado em função da utilização de fotografias (SPRANDEL, 2004, p.51).

A partir desta descoberta, a ideologia médico‐eugênica ganhou força por defender que

a única forma de salvar o Brasil do atraso e da miséria seria “amputar a parte gangrenada do

país para que restasse uma população suscetível ao progresso” (SCHWARCZ apud

SPRANDEL, 2004, p.52). Com este pensamento, a partir de 1920, se deu a divisão entre os

que teriam recuperação e isso poderia se dar através da educação, proibição de más condutas e

estabelecimento de boas redes de relacionamento. Por outro lado, se estabeleceu o grupo que

não havia possibilidade de recuperação, lá se encontravam as pessoas em situação de rua, bem

como as prostitutas, criminosos, prisioneiros e doentes mentais, para esses o que restavam

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eram a punição e a esterilização em massa como solução para o fim da miséria, perversões e a

doença. Concordando com as palavras de Márcia Sprandel, considera‐se este um.

(...) estranho movimento que propõe acabar com a miséria

esterilizando os miseráveis, acabar com o pecado esterilizando os

pecadores, acabar com os vícios esterilizando os viciados, acabar com

a loucura esterilizando os doentes mentais (SPRANDEL, 2004, p.53).

Percebe‐se, em face do exposto, que a intervenção estatal tinha um objetivo específico:

a modernidade; e qualquer ação que pudesse se esgotar em “apenas” oferecer dignidade e

direitos ao povo, era rechaçada. Desta forma,

durante o longo período da transição para o capitalismo (...), cujo

momento mais intenso foi os anos 1870 a 1930, o Estado brasileiro

concentrou sua atuação médica na higiene sanitária (...). A assistência

médica aos trabalhadores e às classes pobres em geral do Rio de

Janeiro era prestada pelas beneficências, as mutualidades e a

filantropia (SOLIS; RIBEIRO, 2003, p.136).

2.1– As Politicas Públicas de Atenção à População em Situação de Rua no Brasil

Ao fazermos uma retrospectiva nos fatos concernentes às políticas públicas e sociais

de atenção a população em situação de Rua no Brasil, é imprescindível que façamos uma

breve contextualização sobre a política de assistência social no país, visto que, ambas

possuem raízes na caridade, filantropia e na solidariedade religiosa. Suas práticas eram

pautadas em ações paternalistas e concedidas na forma de favores aos indivíduos, com isso, a

compreensão que se tinha era que essas pessoas eram favorecidas e não pessoas de direito.

Confundia-se a assistência com caridade, era mais uma prática que uma política, quem

prestava a benesse era vista com bons olhos à sociedade e a Deus e os que eram beneficiados

lhe restavam à gratidão, pois estavam sendo agraciados com um auxilio no qual não era lhes

de direito.

Desde o século XVIII, a assistência social, era entendida como mais um recurso de

legitimação e manutenção do poder, além de uma forma eficaz de controle dos movimentos

sociais e da classe trabalhadora. Suas práticas dependiam de iniciativas voluntárias e isoladas

de auxílio aos que se encontravam desempregados, autônomos, trabalhadores rurais,

prostitutas, população em situação de rua, loucos, criminosos, isto é, aos pobres e desvalidos

da “sorte”.

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Segundo Sposati (2006), com a concepção do Conselho Nacional de Serviço Social,

no governo de Getúlio Vargas, instituiu-se pela primeira vez uma assistência pública, neste

cenário, viu-se a criação da Legião Brasileira de Assistência – LBA, onde o comando fora

dado a então primeira dama Sra. Darcy Vargas, o órgão se destinava a atender de forma

pontual, emergencial e fragmentada às pessoas excluídas do sistema de proteção trabalhista.

Sposati reforça a afirmação que, apesar do trato da pobreza e da miséria ter deixado de ser

tratado como um problema de polícia, no entanto a assistência assumiu uma posição

conservadora em uma versão filantrópica baseada no “primeiro damismo”,

O trato da assistência social no âmbito da moral privada, e não da ética

social e pública, é um dos equívocos dessa versão filantrópica. O primeiro –

damismo, a benemerência está no âmbito da moral privada. Neste sentido, é

que os conservadores pretendem agir (e agem) modelando a atenção àqueles

mais cravados pela destituição, desapropriação e exclusão social,

organizando atividades que vinculam as relações de classe, sob a égide do

favor transclassista, do mais rico ao mais pobre, com a vinculação do

reconhecimento da bondade do doador pelo receptor. (...).

O modelo conservador trata o Estado como uma grande família, na qual as

esposas de governantes, as primeiras damas, é que cuidam dos “coitados”. É

o paradigma do não direito, da reiteração da subalternidade, assentado no

modelo de Estado patrimonial (...). Neste modelo, a assistência social é

entendida como espaço de reconhecimento dos necessitados, e não de

necessidades sociais. (SPOSATI, 2001:76).

. A LBA era o retrato da forte relação do Estado e da filantropia privada, a assistência

disponível na época, desconstruía toda e qualquer noção de direito, cidadania e justiça social.

A autora Vera Telles (2001), reforça que a assistência era um lugar do “não direito”:

(...) esse é o lugar dos não‐ direitos e da não‐ cidadania. É o lugar no qual

pobreza vira „carência‟, a justiça se transforma em caridade e os direitos, em

ajuda a que o indivíduo tem acesso não por sua condição de cidadania, mas

pela prova de que dela está excluído (TELLES, 2001, p. 26).

A Assistência Social se se configurou como uma política pública, somente com a

Constituição de 1988, aliás, esse período se configurou como um divisor de água no campo

dos direitos sociais. Os movimentos sociais articularam um intenso debate em torno das

políticas sociais e da assistência social e, no qual culminou com a sua integração no tripé da

Seguridade Social juntamente com a Saúde e Previdência, cada uma com suas respectivas

atribuições e viabilização do acesso aos direitos, tornando-se uma política pública que

significa direito do cidadão e dever do Estado.

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Nesse sentido a Seguridade Social implica que todo cidadão tenha acesso a

um conjunto de certezas e seguranças que venham cobrir, diminuir ou

precaver os riscos e as vulnerabilidades sociais. A partir dessa nova

concepção foi instituído o reconhecimento do direito universal, independente

se o cidadão contribuísse com o sistema previdenciário ou não. (YASBECK,

1997, p.13).

Discorrer sobre a política de Assistência Social nos importa a esta pesquisa, por que

ela está totalmente atrelada ao atendimento às necessidades básicas, sobretudo da população

em maior risco e vulnerabilidade social, como o caso das pessoas em situação de rua.

Na década de 70, a assistência prestada especificamente para as pessoas em situação

de rua era realizada pela Pastoral do Povo da Rua, da Igreja Católica, que inicia um

movimento de organização de pessoas em situação de rua, com destaque para os municípios

de São Paulo e Belo Horizonte. Essas iniciativas religiosas implantaram casas de assistência

às pessoas em situação de rua organizaram movimentos de representação popular, sobretudo

em relação aos catadores de materiais recicláveis, e realizou eventos e comemorações de

mobilização social de cunho local (BASTOS, 2003; CANDIDO, 2006). Na década de 90,

alguns episódios dão maior destaque e visibilidade à população em situação de rua,

evidenciando-se a urgência de sua inclusão nas legislações. O primeiro deles é o Fórum

Nacional de Estudos sobre População de Rua, em 1993, seguido do Grito dos Excluídos a

partir de 1995.

A Lei Orgânica da Assistência Social- LOAS, aprovada em 07 de dezembro de 1993,

atribui um caráter de maturidade legal aos serviços sócioassitenciais, tendo como instância de

coordenação o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Tal lei

instituiu o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) enquanto instância máxima de

deliberação. Suas competências principais consistem em aprovar a Política Nacional de

Assistência Social (PNAS), normatizar e regular a prestação de serviços sejam eles de caráter

público ou privado no campo da política em questão. Acompanhar e fiscalizar as entidades e

organizações de assistência social, zelar pela efetivação do sistema participativo e

descentralizado; acompanhar e avaliar a gestão dos recursos, divulgar no Diário Oficial da

União todas as decisões, bem como do Fundo Nacional de Assistência Social, dentre outras.

(BRASIL, CNAS, 2010).

A LOAS como Lei inova ao afirmar para a Assistência Social seu caráter de

direito não contributivo (independentemente de contribuição à Seguridade e

para além dos interesses do mercado), ao apontar a necessária integração

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entre o econômico e o social e ao apresentar novo desenho institucional para

a Assistência Social. (YASBECK, 2006, p.12).

Com a aprovação da LOAS, fica estabelecido que cabe ao Estado e suas instituições

consolidarem em rede uma política pública de direito, rompendo com práticas remotas de

benemerência e filantropia, inclusive as de atenção a população em situação de rua. Fica

instituído, também na LOAS em seus artigos 4° e 5º, enquanto modelo de gestão, o Sistema

Único da Assistência Social (SUAS). A aprovação da Política Nacional de Assistência Social

ocorreu em 2004, nela se atribuiu à Proteção Social Especial o atendimento da população em

situação de rua.

De acordo com a Política Nacional de Assistência Social,

“... a Assistência Social, enquanto política pública que compõe o tripé da

Seguridade Social, e considerando as características da população atendida

por ela, deve fundamentalmente inserir-se na articulação intersetorial com

outras políticas sociais, particularmente, as públicas de Saúde, Educação,

Cultura, Esporte, Emprego, Habitação, entre outras, para que as ações não

sejam fragmentadas e se mantenha o acesso e a qualidade dos serviços para

todas as famílias e indivíduos”. (PNAS, 2004, p. 42)

Entretanto, ao se fazer menção às políticas públicas para a população em situação de

rua, observa-se que a intersetorialidade ainda é uma meta distante a ser alcançada e um

desafio na execução destas políticas. Para Adorno (2004) e Varandas (2004) os programas

sociais dirigidos às pessoas nesta situação ideologicamente reproduzem o descarte social de

uma população considerada como excedente, sendo caracterizados pelas práticas de retirada

dos indivíduos das ruas, penalizando-os pela situação em que se encontram. São as frequentes

operações de "higienização”, como as que aconteciam no passado da cidade, expulsando-se as

pessoas dos lugares nos quais elas encontram recursos para sobreviver.

Outro importante evento que marcou a trajetória das políticas públicas de atenção as

pessoas em situação de rua no Brasil, ocorreu em setembro de 2005, em Brasília, evento

pioneiro que pode representar o primeiro passo para a construção de uma política pública de

abrangência nacional direcionada para pessoas que estão em situação de rua, o Primeiro

Encontro Nacional sobre População em Situação de Rua6. Organizado pelo Ministério do

Desenvolvimento Social - MDS e pela Secretaria Nacional de Assistência Social - SNAS, o

6 O Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e a Secretaria Nacional de Assistência

Social (SNAS) realizaram um levantamento nacional no sentido de obtenção de dados a respeito da população

em situação de rua, em 76 municípios (incluindo todas as capitais), com população acima de 300 mil habitantes,

no período entre dezembro de 2004 e 27 de abril de 2005. (Fonte: Relatório Simplificado do Primeiro Encontro

Nacional sobre População em Situação de Rua do Governo Federal, 2005).

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objetivo deste encontro foi discutir os desafios e estratégias para construção de políticas

públicas específicas para este público, além de uma troca de experiência entre os trinta e

quatro representantes de doze capitais ou municípios brasileiros, que estavam desenvolvendo

ações com população em situação de rua.

Segundo DANTAS (2007, p.38), os principais objetivos e desafios do encontro foram:

(...) a troca de experiências entre entidades que atuam com população em

situação de rua; o conhecimento das principais demandas que estão sendo

dirigidas aos estados relativas ao tema; a discussão de estratégias de

participação popular na elaboração das políticas públicas e o conhecimento

das ações do Ministério do Desenvolvimento Social que já beneficiam as

pessoas em situação de rua. Como pontos inovadores, a discussão de

estratégias de participação popular e controle democrático das políticas

públicas destinadas à população em situação de rua e o reconhecimento do

papel das ONGs e de entidades ou fóruns de população em situação de rua,

neste processo.

Entre os principais desafios no enfrentamento da questão reconhecidos no

evento, está a produção de dados e informações; a superação da cultura

dominante de preconceito e assistencialismo; o apoio ao processo de

organização das pessoas em situação de rua; a articulação das políticas

setoriais, adequando-as às demandas deste grupo populacional e as políticas

de financiamento com fontes de base diversificada. Outros desafios incluem

o desenvolvimento de políticas de valorização dos trabalhadores e das

condições de trabalho nos espaços de acolhida de população em situação de

rua; ações educativas para a sociedade acerca do fenômeno, e, por último,

mobilizar e adequar os serviços de segurança e justiça de modo a prevenir

ações de violência e responsabilizar os culpados por crimes cometidos contra

esta população.

Os desafios discutidos neste primeiro encontro, ainda hoje são latentes, demonstrando

o longo caminho que ainda teremos principalmente no que tange a superação do

assistencialismo e do apoio ao processo de organização das pessoas em situação de rua. Com

relação a esse último, podemos destacar a articulação e organização política que as

associações e cooperativas de catadores de materiais reaproveitável obtiveram, pois

começaram a constituir um movimento organizado na luta pela formulação de políticas

públicas direcionadas ao segmento.

Ainda em 2001, se realizou em Brasília o Primeiro Congresso Nacional dos Catadores

de Materiais Recicláveis e a 1ª Marcha Nacional da População de Rua, os participantes

apresentaram a toda a sociedade e às autoridades responsáveis pela implantação e efetivação

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das políticas públicas, através de uma Carta a Brasília7, com as reivindicações e propostas que

seguem:

Em relação ao Poder executivo, propomos:

Garantia de que, através de convênios e outras formas de repasse, haja

destinação de recursos da assistência social para o fomento e subsídios dos

empreendimentos de Catadores de Materiais Recicláveis que visem sua

inclusão social por meio do trabalho.

Inclusão dos Catadores de Materiais Recicláveis no Plano Nacional de

Qualificação Profissional, priorizando sua preparação técnica nas áreas de

gestão de empreendimentos sociais, educação ambiental, coleta seletiva e

recursos tecnológicos de destinação final.

Adoção de políticas de subsídios que permitam aos Catadores de

Materiais Recicláveis avançar no processo de reciclagem de resíduos

sólidos, possibilitando o aperfeiçoamento tecnológico dos empreendimentos

com a compra de máquinas e equipamentos, como balança, prensas etc.

Definição e implantação, em nível nacional, de uma política de coleta

seletiva que priorize o modelo de gestão integrada dos resíduos sólidos

urbanos, colocando os mesmos sob a gestão dos empreendimentos dos

Catadores de Materiais Recicláveis.

Garantia de que a política de saneamento tenha, em todo o país, o

caráter de política pública, assegurando sua dimensão de bem público. Para

isso, sua gestão deve ser responsabilidade do Estado, em seus diversos níveis

de governo, em parceria com a sociedade civil.

Priorização da erradicação dos lixões em todo o país, assegurando

recursos públicos para a transferência das famílias que vivem neles e

financiamento para que possam ser implantados projetos de geração de renda

a partir da coleta seletiva. E que haja destinação de recursos do programa de

Combate à Pobreza para as ações emergenciais.

Em relação à cadeia produtiva:

Garantir nas políticas de financiamentos e subsídios, que os recursos

públicos sejam aplicados, prioritariamente, na implantação de uma política

de industrialização dos materiais recicláveis que priorizem os projetos

apresentados por empresas sociais de Catadores de Materiais Recicláveis,

garantindo-lhes acesso e domínio sobre a cadeia da reciclagem, como

estratégia de inclusão social e geração de trabalho e renda.

Em vista da cidadania dos Moradores (as) de Rua

Reconhecimento, por parte dos governos, em todos os níveis e

instâncias, da existência da População de Rua, incluindo-a no Censo do

IBGE e garantindo em lei a criação de políticas específicas de atendimento

às pessoas que vivem e trabalham nas ruas, rompendo com todos os tipos de

discriminação.

Integração plena da População de Rua na política habitacional que

garanta e subsidie a construção de casas em áreas urbanizadas, e que parta da

recuperação e desapropriação dos espaços ociosos nos centros das cidades,

garantindo-lhes o direito à cidade.

Priorização da geração de oportunidades de trabalho, com garantia de

acesso a todos os direitos trabalhistas, aos Moradores de Rua, superando

7 Movimento Nacional dos Catadores de Material Reciclável. Carta de Brasília. Disponível:

http://www.mncr.org.br/sobre-o-mncr/principios-e-objetivos/carta-de-brasilia (acessado em 28/set/2016).

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especialmente as discriminações originadas na falta de domicílio e/ou na

indicação de endereços de albergues.

Promoção de políticas públicas de incentivo às associações e

cooperativas de produção e serviços para e com os Moradores de Rua.

Garantia de acesso à educação de todos os Moradores de Rua,

especialmente das crianças, em creches e escolas, independente de

comprovante de residência, possibilitando também a inclusão das famílias

que moram nas ruas no programa Bolsa-Escola.

Inclusão dos Moradores de Rua no Plano Nacional de Qualificação

Profissional, como um segmento em situação de vulnerabilidade social,

garantindo seu encaminhamento a formas de trabalho que geram renda.

Garantia de atendimento no Sistema Único de Saúde - SUS aos

Moradores de Rua, abrindo também sua inclusão nos programas especiais,

como “saúde da família” e similares “saúde mental”, DST/AIDS/HIV e

outros, instituindo “casas-abrigo” para apoio dos que estão em tratamento.

Com esta carta, os catadores de materiais recicláveis, demonstraram o seu fortaleceram

enquanto movimento social percebeu-se que juntos e organizados podem pressionar o Estado

e a sociedade a valorizá-los como trabalhadores que são. No entanto, somente em 2009, após

a realização do Segundo Encontro Nacional sobre População em Situação de Rua, que o

movimento conseguiu consolidar a Política Nacional para a População em Situação de Rua –

PNPR, através do Decreto nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009.

A PNPR8 traz uma definição para população em situação de rua, que passa a ser

utilizada por diversos pesquisadores no Brasil, acerca de questões sobre essa população

específica e na criação de políticas setoriais para a inclusão dessa população nos programas

sociais:

(...) o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza

extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a

inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros

públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de

forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento

para pernoite temporário ou como moradia provisória.

No mesmo ano de 2009, o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) aprovou

a Resolução nº 109, de 11 de novembro de 2009 – Tipificação Nacional de Serviços

Socioassistenciais, que é responsável pela organização e descrição das unidades, serviços

ofertados e público alvo do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Na Tipificação,

encontramos alguns serviços específicos para a população em situação de rua: Serviço

Especializado em Abordagem Social – oferecidos nos CREAS ou Centros POP; o Serviço

8 Decreto nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-

2010/2009/decreto/d7053.htm

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Especializado para a População em Situação de Rua – oferecido nos Centros POP e os

Serviços de Acolhimento Institucional.

Com relação às políticas públicas no âmbito da saúde, destacam-se as dificuldades

extremas de acesso aos serviços públicos pela população em situação de rua. Esta população

está imersa em uma realidade na qual a negação de direitos básicos é a tônica, a necessidade

de sobrevivência torna-se imperativa e nem sempre está relacionada ao cuidado à saúde. Tal

fato reforça a tendência dos indivíduos a não priorizar procurar tratamento médico, a não ser

em situações de emergência, como traumatismos, agudização dos sintomas ou em estágios

avançados de enfermidade. Sua atenção à saúde se volta somente principalmente para as

unidades de pronto atendimento, visto que as políticas de prevenção ainda não conseguiram

sua efetividade.

No universo em que vivem, onde o adoecimento se dá fisicamente por conta da má

alimentação, privação das necessidades básicas além do forte desgaste devido sua luta diária

pela sobrevivência, acarretam também um adoecimento psíquico atrelado a um imenso

sentimento de desamparo, tristeza, abandono e indiferença. As pessoas em situação de rua são

intensamente vulneráveis aos agravos à saúde, apresentando uma série de patologias inerentes

às suas condições de vida.

Nesse contexto, políticas públicas de atenção à saúde a este público implicam um

olhar diferenciado e desafiador, principalmente pela necessidade de considerar os princípios

doutrinários do Sistema Único de Saúde, a universalidade, a equidade e a integralidade.

A universalidade da atenção incorpora o direito à saúde como uma das faces da

cidadania. Como assegurar a universalidade em um modelo de saúde ainda excludente em

relação à população em situação de rua?

A equidade no texto constitucional assegura que a disponibilidade dos serviços deve

considerar as diferenças entre os grupos de indivíduos, é, portanto, um princípio de justiça

social, conceituado na Constituição como aquele que visa “assegurar ações e serviços de

todos os níveis de acordo com a complexidade que o caso requeira, more o cidadão onde

morar, sem privilégios e sem barreiras”. (RONCALLI, 2003, p 28-49). Como garantir a

equidade em um sistema que não reconhece que as pessoas em situação de rua apresentam

necessidades específicas no seu atendimento?

A integralidade na organização das práticas nos serviços de saúde deve observar a

perspectiva de ações programáticas horizontalizadas, buscando ampliar a apreensão das

necessidades dos diferentes grupos populacionais. Como garantir a integralidade em um

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sistema que não está preparado para ouvir as pessoas em situação de rua em seu contexto

social e assim atender às suas demandas?

No que tange os serviços públicos, a atenção à população em situação de rua

enfrentam desafios diários, as dificuldades vão desde a rejeição dos profissionais de saúde,

muitas vezes devido ao seu aspecto físico, as dificuldades em manter uma higiene regular que

pode provocar atitudes de repulsa por parte das equipes, a falta do comprovante de residência,

muitas vezes sem documentos de identificação e cartão do SUS, as pessoas em situação de rua

enfrentam pesados entraves burocráticos no acesso às unidades de saúde, principalmente nas

unidades ambulatoriais, dificultando sua passagem pelos diferentes estágios do tratamento,

entre eles o recebimento de medicação, a marcação de consulta de retorno e o agendamento

de exames.

Com intuito de superar estes desafios no atendimento a pessoas em situação de rua, o

governo federal no ano de 2009, lançou alguns serviços específicos para o atendimento a essa

população. Dentre eles, o Programa de Consultório de Rua do SUS - CRS, a princípio ligado

à atenção secundária, na coordenação de saúde mental e atualmente, na atenção primária com

uma mudança na nomenclatura para Consultório na Rua. Segundo Tondin (2011.p. 48)

A primeira experiência de Consultório de Rua no Brasil foi iniciada em

Salvador, ao final dos anos 90, consistindo na disponibilidade de veículos

móveis para abordagem e acolhimento das situações de uso prejudicial de

álcool e outras drogas nos locais onde vivem ou se agrupam os usuários,

principalmente crianças e adolescentes.

O idealizador do primeiro Consultório de Rua no Brasil Nery Filho, no início dos anos

90, na época doutorando em Sociologia, em Paris, conheceu a ONG “Médicos do Mundo”,

organização francesa, formada por profissionais de saúde que atendiam pessoas em situação

de vulnerabilidade social, como: moradores de rua9, profissionais do sexo, através de um

ônibus equipado como uma unidade móvel de saúde. (TONDIN, 2011). A partir desse modelo

de atendimento, onde se dava em onde as pessoas em situação de rua se agrupavam e sem um

ponto fixo, como a maioria das instituições q prestam atendimento à saúde, conseguiam se

aproximar desses grupos vulneráveis.

Assim, segundo a Portaria GM 1059/2005 os Consultórios de Rua se constituem como

dispositivo público, componentes da rede de atenção substitutiva em saúde mental,

oferecendo as pessoas com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas ações de

promoção, prevenção e cuidados primários no espaço de rua. Preconiza ainda promover ações

9 O termo “morador de rua” foi utilizado pela autora.

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que enfrentem as diversas formas de vulnerabilidade e risco, especialmente em crianças,

adolescentes e jovens, tendo como eixo principal o respeito às diferenças, a promoção dos

direitos humanos e da inclusão social, o enfrentamento do estigma, as estratégias de redução

de danos e a intersetorialidade. Estando alinhado às políticas de saúde do Sistema Único de

Saúde (SUS).

Em Cuiabá-MT, a equipe do CAPS AD – Adolescer sob a coordenação da psicóloga

Mara Cristina Tondin, enviou uma proposta ao Ministério da Saúde solicitando a implantação

do Consultório de Rua em setembro de 2010 e no mesmo ano recebeu sua aprovação. O

programa foi implantado de fato no ano de 2011 e após um mapeamento da cidade, definiu os

pontos estratégicos de atuação, pelo número significativo de pessoas em situação de rua em

uso/abuso de álcool e outras drogas a região do Bairro Porto e Bairro Alvorada nas

proximidades da Rodoviária. Sobre os atendimentos nestas regiões, Massavi e Tondin (2014,

p. 131) afirmam:

As abordagens realizadas nos locais onde se concentram pessoas em situação

de rua possibilitam ações educativas de prevenção e promoção da saúde e de

cuidados básicos clínicos, além da aproximação desta população e, quando

necessário e de forma integrada, acompanhadas de outros serviços de saúde

e assistência social. Seu principal objetivo é oferecer esta intervenção e

cuidados no próprio espaço de rua, preservando o respeito ao contexto

sociocultural da população.

O Programa tinha como diretriz norteadora a Redução de Danos – RD, a estratégia que

surgiu em meados de 1989 no intuito de se fazer um enfrentamento ao aumento significativo

de pessoas infectadas com HIV, principalmente pelo uso de drogas injetáveis. Ao longo da

história, a RD se mostrou uma estratégia fundamental, pois como não visa somente à

abstinência, ampliou a oferta de atendimento e intervenções em saúde junto às populações

vulneráveis que estão ou não em situação de rua.

A RD possui um grande potencial de ser uma prática libertadora, pois atua

com vistas a proporcionar que o sujeito seja protagonista de sua própria

história e promova a construção de caminhos diferentes e possíveis. A

relação construída é horizontal, baseada no diálogo franco e aberto, por isso

podemos afirmar, com toda a certeza, que o melhor atendimento como

redutora de danos foi no dia em que nos sentamos no chão para conversar

com um grupo de moradores de rua. A partir daquela noite, não houve mais

a diferenciação: eles estavam em mim como eu estava neles. (MASSAVI &

TONDIN, 2014, p.138)

Outro serviço lançado no Brasil para o atendimento específico das pessoas em

situação de rua, esse ligado a Política de Assistência Social, o CREAS POP- Centro de

Referência Especializado para População em Situação de Rua em 2010, com objetivos de

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reintegração social, pessoal e familiar, favorecendo um espaço de fortalecimento de vínculos

interpessoais, além do atendimento psicossocial10

.

Em Cuiabá, o CREAS POP foi fechado durante a preparação da capital como uma

das sedes no país da Copa do Mundo ocorrida em 2014, pois se localizava no Centro

Histórico e por pressão dos comerciantes locais, com a reclamação que este serviço acabou

“atraindo” um grande número de pessoas em situação de rua e que isto estaria “atrapalhando”

suas vendas e descaracterizando a beleza no centro, sendo assim a Prefeitura de Cuiabá

cederam as pressões e fecharam o serviço. Até o fim desta pesquisa, Cuiabá não sinalizou a

sua reabertura, os atendimentos foram direcionados para o CREAS que não possuem

especificidade para atender essa população, demonstrando desinteresse em oferecer um

atendimento especializado a esse grupo que vive em constante vulnerabilidade.

Este capítulo contribuiu para que compreendêssemos o caminho construído na

história do Brasil que pudesse nos levar a entender a origem da vulnerabilidade em que hoje

vivem as pessoas em situação de rua e de como as políticas públicas ainda não conseguiram

garantir um acesso igualitário aos serviços de saúde e aos direitos da cidadania. Apesar de

toda legislação vigente, os serviços instalados nos municípios ainda apresentam dificuldades

em sua execução, ações higienistas, paternalistas e assistencialistas ainda são práticas comuns

nestes serviços. A prática precisa ser voltada a uma busca incessante pela justiça social e em

defesa pela vida, oferecendo a essa população uma possibilidade de resgate de sua cidadania e

garantia de direitos.

10

Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome. CREAS POP para a População em Situação de Rua. Extraído de [http://www.mds. gov.br/saladeimprensa/noticias/2010/junho/creas-pop-para-a-populacao-emsituacao-de-rua], acesso em [26 de fevereiro de 2017].

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CAPITULO III

A FENOMENOLOGIA MERLEAU- PONTYANA COMO CAMINHO

POSSÍVEL NA COMPREENSÃO DO OUTRO QUE VIVE NA RUA

“Gostaria que as pessoas que não vivem nas ruas conseguissem se

enxergar com os meus olhos, será possível? Será que elas

enxergariam a imagem que elas se veem no espelho?” (Barba, 2016)

Em uma noite, aproveitei da minha preguiça em cozinhar e saí em busca de algo

rápido nas redondezas para jantar, parei em uma lanchonete onde vende o famoso espetinho,

sentei e no período de espera percebi o Barba se aproximando de minha mesa, estava

diferente, aparência entristecida, o sorriso sempre constante deu lugar a uma expressão mais

dura. Perguntou se poderia se aproximar, respondi que sim e o convidei a sentar, não aceitou,

disse não querer criar problema para mim. Apesar de minha insistência, foi enfático em sua

decisão, Barba evitava criar problemas com a vizinhança e populares do bairro, isso lhe

garantia um mínimo de condição para sobreviver ali. Foi nessa conversa que ele me disse a

frase citada no início deste texto, dizia que o olhar do outro sobre ele, apesar de algumas

tentarem desviar o olhar e dele era muito cruel, se questionava se as pessoas se percebiam

assim.

Esse momento com o Barba me trouxe algumas reflexões que ultrapassam a pesquisa,

me fez reavaliar, inclusive o meu olhar sob o outro. Fez-me perceber o quanto preconceituosa

ainda sou ou ainda estou, prefiro pensar que seja um verbo de ação e que posso modificar isso

em mim. E porque estou assim? Porque muitos estão olhando a população em situação de rua

com toda a uma imagem pré-concebida? Criamos tantas imagens sobre essas pessoas, mas

quase nunca o são positivas e essas criações transferiam como verdade absoluta quando nos

deparamos com essa população. Criamos um ser tão triste, violento, fétido, imundo baseados

em nosso padrão de vida, como se elas não merecessem viver declaramos sua morte como

pessoa, passamos inclusive a não enxerga-la. Passamos a excluí-las de nosso mundo, como se

isso fosse possível, é extremamente penoso para nós pensarmos que estamos juntos e que eu

muitas vezes sentenciei alguém a sua invisibilidade, estamos ligados umbilicalmente.

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Pesquisar as pessoas em situação de rua só é possível se adentrarmos essa realidade,

ou nos perderíamos em nossos sentidos. Por isso é preciso estar junto com eles para sentir

como sobreviver neste mundo que criamos para nós, onde não deixamos espaço para o

diferente. Foi neste contexto que como pesquisadora e estudiosa deste fenômeno, que a

fenomenologia Merleaupontyana se mostrou como percurso metodológico possível a fim de

desvelar oque propomos como objetivo desta.

Estabelecer um diálogo com Merleau-Ponty é um desafio a qualquer pesquisador ou

pesquisadora, optar por uma metodologia que é um organismo vivo que vai se criando

conforme a experienciamos, não a nada pronto, não há um manual de como fazer ou não

fazer, ela se dá na minha relação com o outro. Citamos o professor Passos e Rezende (2016, p.

01),

Sintonizar os saberes corporeificados pela experiência, e realizar o melhor

que se possa, a difícil parturição em palavras de conceitos que comuniquem,

ao menos, alusivamente, a experiência. Os fenômenos invadem o corpo do

pesquisador enunciando sentidos, sempre inéditos, jamais vãos. Eles não se

amoldam, não se amansam ao leito de Procusto de qualquer metodologia

preestabelecida, posto que toda a vida seja ebulição.

Refletir sobre uma questão que nos inquieta, como as razões das vulnerabilidades da

população em situação de rua, busca-se a compreensão do vivido dessas pessoas numa

situação a qual eles se relacionam com o mundo já dado, que está aí, no qual são lançadas,

que ela necessariamente terá de enfrentar. Nas descrições focalizei a sua percepção do morar

na rua e nos significados atribuídos nesta experiência. A fenomenologia existencial de

Merleau Ponty nos dá condições de oferecer contribuições importantes, pois procura colocar o

pesquisador e pesquisadora na perspectiva dos sujeitos da pesquisa, compreender sua

experiência e seus sentimentos, desvelando assim o que é, na visão deles, estar vivenciando

nestas condições. Este percurso nos conduza um referencial fenomenológico, investigando a

verdade a partir da origem de todo conhecimento, a experiência do mundo, procurando, a

partir daí, descrever o fenômeno, analisá-lo e interpretá-lo, assim chegando à compreensão do

que é essencial na estrutura do fenômeno. Neste sentido, a fenomenologia emerge como o

método mais adequado para conduzir o estudo no sentido de permitir a aproximação e a

compreensão das várias perspectivas dos sujeitos da pesquisa.

Você poderia me contar a história da sua vida com os antecedentes que são

mencionados por sua família e pessoas conhecidas, incluindo seu nascimento?

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Esta interrogação contém a minha própria inquietação, que faz parte da experiência

vivenciada coma população em situação de rua ao longo da minha vida profissional. Neste

pesquisar busco desenvolver a compreensão deste fenômeno.

Escolhi adentrar nesta compreensão pela perspectiva da própria pessoa em situação de

rua, a escolha pelas pessoas que estão na praça do bairro Porto em Cuiabá se deu por uma

afinidade com o grupo, conquistada durante o trabalho no Projeto Consultório de Rua do SUS

nos anos de 2011 a 2013, mesmo após o encerramento dos atendimentos a nossa relação não

se findou, outros trabalhos se iniciaram, dentre eles o “RuAção”. Foi neste contexto que a

minha inquietação se desvelou: Quais as razões que nos levam a vulnerabilizar essa população

e a resposta esperamos vir da história de vida de nosso entrevistado, são nele que toca a

injustiça e o nosso ódio e que provocam cicatrizes profundas injustificáveis, buscamos sair

dos discursos caridosos e escancarar nosso verdadeiro eu na relação com esse outro.

Optei por observar e acompanhar o grupo que vive no Porto, seu cotidiano e como se

relacionam e escolher uma pessoa em situação de rua em específico que devido à escolha de

Cuiabá como uma das sedes da última copa do mundo e a higienização realizada pelos

governos estaduais e municipais, foi procurar abrigo longe do seu grupo em um bairro

periférico na capital, Tijucal. Essa escolha também está embriagada de vivências pessoais,

pois ele vive no bairro onde vivi desde minha vinda de Cáceres com 11 anos de idade, passei

minha adolescência e parte da minha vida adulta neste local.

Por acreditar que, estar vivenciando no presente esta experiência na rua, os seus

sentimentos a respeito dessa vivência aparecerá na sua percepção antes de passarem por um

processo reflexivo. Procuro, nos seus relatos, a experiência pré-reflexiva, que é a origem de

toda a reflexão e dos conhecimentos sobre o mundo. Explicitados os sujeitos e a região do

inquérito, volto à interrogação que foi dirigida a pessoa em situação de rua em forma de uma

pergunta geradora. É necessário que eu a verbalize na forma de uma pergunta clara, que me

possibilite obter mais do que uma simples resposta. Desejo um depoimento que responda à

inquietação que me instiga a pesquisar. Não apenas uma descrição restrita do que seja estar na

rua, mas sim a descrição de uma experiência que envolve sentimentos e pensamentos sobre

uma realidade vivida, e a percepção desta realidade dentro de um contexto, levando à reflexão

dos seus significados e das suas repercussões na existência das pessoas. A intenção da

interrogação foi de obter uma compreensão do que seja o morar na rua e sua vulnerabilidade,

através da análise interpretativa dos seus discursos, chegar às características essenciais do

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fenômeno estudado, as quais permitirão compreender os seus significados essenciais a sua

estrutura.

Para tentar minimizar a influência da pesquisadora na descrição dos fatos da vida do

Barba, decidimos tentar entrar no mundo invisível da rua e deixar a sua voz ecoar. Assim,

optamos por acompanha-lo, realizando uma observação participante. Nesse momento a escuta

se torna o método de pesquisa mais apropriado e vamos a campo acreditando, que as falas

sempre nos dizem mais do que seus autores imaginam. Dessa forma, optamos, por meio da

observação e do diálogo, por ouvir e compreender o que o Barba tinha a nos dizer.

Durante as entrevistas procurei manter uma postura fenomenológica: apresentei-me,

descrevi o meu trabalho, solicitei a sua colaboração, assim como a permissão para gravar.

Nesse momento, expliquei-lhes que o projeto havia sido aprovado pela instituição, e obtive o

seu consentimento formal. Busquei ouvi-las de forma compreensiva e aberta, sem limite de

tempo, envolvendo-me empaticamente, evidenciando o meu interesse. Outras vezes nos

encontrávamos por acaso e ele me chamava para contar algo que havia se esquecido, os locais

foram diversos, na calçada, em frente de um bar, num posto de combustível, em baixo do

viaduto do Tijucal. Nesses momentos aproveitava para questioná-lo sobre alguns pontos que

me gerou dúvidas, nem sempre consegui gravar, muitas vezes escrevi em meu caderno de

campo, o deixei livre para contar suas histórias sem interromper ou fazer outros

questionamentos. Nesta abordagem, o sujeito da pesquisa se expressará espontaneamente a

respeito dos significados da sua experiência. Os depoimentos foram posteriormente transcritos

exatamente como foram expressos.

O objetivo do método fenomenológico é descrever a estrutura total da experiência

vivida, os significados que a experiência tem para os sujeitos que a vivenciam.

Diferentemente do positivismo, que pretende descobrir causas e formular leis, a

fenomenologia utiliza a observação atentiva para descrever os dados como eles se apresentam.

A fenomenologia preocupa-se com a compreensão do fenômeno, não com a sua explicação

(MARTINS, 1993).

Para realização da pesquisa, optamos por um estudo de caráter qualitativo de

orientação fenomenológica fundamentada em Merleau-Ponty, que pressupõe a

intersubjetividade e a recriação de significados no processo da relação com o objeto de

pesquisa. Essa metodologia representou para nós neste estudo, uma nova maneira de olhar o

ser humano e sua relação com o mundo e nos implicarmos nesta vivencia enquanto um ser

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encarnado nesta realidade, como bem afirma o autor: “Nós estamos misturados com o mundo

e com os outros numa confusão inextricável” (Merleau-Ponty, 2006, p. 518).

Na experiência relatada neste estudo, a metodologia fenomenológica sob a luz dos

pressupostos de Merleau-Ponty, direcionou a ênfase na dimensão existencial do viver humano

e nos significados vivenciados pelas pessoas em situação de rua, buscando os sentidos tal

como se apresentaram na relação, em uma descrição densa desta vivencia.

Para Merleau-Ponty (2006), a fenomenologia estuda as essências na própria

existência e não busca compreender o homem e o mundo de outra forma, senão a partir de sua

facticidade. No entanto, a busca dos significados não se realiza por meio de um

distanciamento neutro, nem de uma passagem ao real, uma vez que, não há possibilidade para

uma percepção pura. Ele acontece no contato direto com o vivido, na relação de encontro e

imbricamento do sujeito e do objeto de estudo.

A análise do fenômeno situado é uma das possibilidades da pesquisa fenomenológica.

A análise da estrutura do fenômeno situado é uma das possibilidades da pesquisa

fenomenológica. É orientada pelas ideias fundamentais da fenomenologia, e segue os passos

que apresento a seguir, de acordo com MARTINS (1993): 1º passo consiste na descrição, que

deve retratar e expressar a experiência consciente do sujeito; 2º passo é a redução

fenomenológica, que consiste na crítica reflexiva dos conteúdos da descrição; O 3º passo do

método é a interpretação fenomenológica. Segundo MARTINS (1993), a fenomenologia

existencial utiliza a comunicação interpessoal para chegar à compreensão dos significados da

experiência vivida pela pessoa. Focaliza a experiência consciente deste sujeito (intenção) que

permite limites epistemológicos a serem definidos em nível de descrição.

No decorrer do processo de entrevistas buscamos compreender a construção da

memória do entrevistado através dos possíveis eixos, tais como Infância, Família, Vida nas

Ruas, Educação, táticas de sobrevivência e Desemprego, amizades e inimizades, conflitos e o

que lhe dá sentido para sua vida.

Ou seja, este estudo pretendeu obter uma reflexão acerca da experiência enquanto

pesquisadora e militante dos movimentos sociais, tomada sob a perspectiva da descrição

densa e sensível dessa vivência com as pessoas em situação de rua. Compreendendo nossa

proposta, como apenas uma possibilidade de vislumbrar esta realidade diante de tantas outras

possíveis. A observação participante e a descrição densa nos possibilitaram um caminhar

seguro nesta trilha metodológica.

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Com a observação participante, nos possibilitou uma adequada entrada no campo de

pesquisa, favorecendo que reduzíssemos a estranheza entre a pesquisadora e o nosso

companheiro de pesquisa. Um dos pressupostos da observação participante é o de que a

convivência do investigador com a pessoa ou grupo estudado cria condições privilegiadas

para que o processo de observação seja conduzido e dê acesso a uma compreensão que de

outro modo não seria alcançável. Admite-se que a experiência direta do observador com a

vida cotidiana do outro, seja ele indivíduo ou grupo, é capaz de revelar na sua significação

mais profunda, ações, atitudes, episódios, etc.. Tal perspectiva é assim expressa por

EZPELETA & ROCKWELL (1986): "Na observação participante, as relações interpessoais

entre pesquisador e sujeito, ali chamadas 'relações sociais', constituem as teorias; é a relação

que determina o pensamento e não o contrário." (p. 83).

Nem sempre foi possível entrevistar, utilizar o gravador ou fazer as anotações em

campo, partindo dessa dificuldade comum em pesquisas com pessoas em situação de rua,

buscamos suporte metodológico na observação participante como método. Com a observação

participante, nos possibilitou uma adequada entrada no campo de pesquisa, favorecendo que

reduzíssemos a estranheza entre a pesquisadora e o nosso companheiro de pesquisa. A

observação participante, com apoio nos princípios da fenomenologia, diferentemente quando

aliada a Antropologia, utiliza a observação participante como algo para desvendar redes mais

complexas de relacionamentos do ser humano, de forma descritiva, a Fenomenologia procura

estudar o senso comum, o cotidiano desse ser, com base em teorias compreensivas e/ou

interpretativas preestabelecidas, que são levadas a campo para teste e comprovação ou

falseamento.

O processo na pesquisa da observação participante se deu em três etapas, segundo

orientações de RICHARDSON, 1999: Na primeira, houve a nossa aproximação ao local onde

normalmente o Barba costumava ficar, este momento não houve muitas dificuldades, pois o

mesmo já nos conhecia desde o trabalho no Consultório de Rua do SUS. Neste momento, o

Barba nos aceitou como pesquisadora, alguém externo interessado em realizar com ele, um

estudo. Segundo RICHARDSON, essa aproximação exige paciência e honestidade, pois é

condição inicial necessária para que o percurso da pesquisa possa, de fato, ser realizada com a

participação do Barba como protagonista.

Na segunda etapa, houve o esforço da pesquisadora em obter uma visão conjunta do

campo pesquisado com o Barba. Concomitantemente, com as nossas observações da vida

cotidiana na rua, realizamos um estudo de documentos oficiais, leituras de dissertações e teses

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acerca do tema escolhido, artigos e livros que nos subsidiaram na compreensão da realidade.

Os dados eram, assim que possível registrado em um diário de campo, para não haver perda

de informações relevantes e detalhadas sobre o que fora observado, após esse momento,

passa-se para terceira fase, na qual foi preciso sistematizar os dados. A compreensão dos

dados precisou informar a pesquisadora a situação real do Barba e sobre a percepção que este

possui de seu estado, principalmente de sua relação com a rua.

Para subsidiar a descrição em si, procuramos suporte metodológico na descrição densa

segundo Geertz (2008, p.4), onde devemos buscar explicar e interpretar as expressões sociais

que são “enigmáticas na sua superfície” deve-se descrever seu objeto de estudo em suas mais

diversas particularidades, levando em conta todos os pequenos fatos que cercam sua vida

social, não bem os fatos em si, mas a ação social destes fatos. Não se buscou leis gerais, mas

sim significados/significações.

A descrição densa caracteriza-se na forma como o pesquisador ou pesquisadora

descreve seus estudos, segundo GEERTZ (2008, p.4) devemos buscar explicar e interpretar as

expressões sociais que são “enigmáticas na sua superfície” deve-se descrever seu objeto de

estudo em suas mais diversas particularidades, levando em conta todos os pequenos fatos que

cercam sua vida social, não bem os fatos em si, mas a ação social destes fatos. Não se busca

leis gerais, mas sim significados/significações.

Com relação à experiência pessoal da investigação etnográfica, esta significa lançar-se

em uma aventura em que os êxitos só se vislumbram a léguas de distância. É um esforço que

nos leva a interpretar e observar os “nativos” baseados em nossas conversas com eles. “O que

procuramos, no sentido mais amplo do termo, que compreende muito mais do que

simplesmente falar, é conversar com eles [...]” (GEERTZ, 2008, p.10). O antropólogo então

deve ter essa habilidade especial, de se deslocar, abandonar seu lugar de falante para ouvinte.

Abrir espaço para o outro.

É no campo que se faz etnografia densa, instrumento sine qua non da

antropologia; numa convivência intensa com os diversos; fisgando a cada

momento a diversidade em sua singularidade; mergulhando extensivamente

no microscópico; induzindo a totalidade imanente a qual ela aponta;

relacionando parte/todo, dialeticamente, a cada instante, ligando

particularidades à universalidade, relativizando ambas, referenciadas ao

cotidiano às estruturas macro-políticas; perspectivando toda ação cultural e

suas tramas para um horizonte de relatividade; mantendo a tensão com a

objetividade - distanciado dos „mitos‟ da objetividade; aferrando os vôos

indômitos da subjetividade e imaginação à discrição da inteligência, em

todo o processo; teorizando por sobre a prática, localizada espacial e

temporalmente; não se deixando ofuscar pela tentação cartesiana do

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esgrimamento lógico; precavendo-se, a todo o momento, dos riscos das

grandes conclusões; “ater-se ao mínimo, sem deixar-se conter pelo

máximo”; perscrutando os sentidos possíveis e a teia de significações que

anima e estrutura um grupo, uma comunidade e seus indivíduos; não

dissociando o estudo das diversidades de nossa própria condição humana,

evitando fetichizá-las a tal ponto que elas reificando-nos, nos destituam do

significado ético-político inerentes à nossa condição de pesquisadores e de

compromisso com o mundo que pesquisamos e as superfícies duras da vida.

(PASSOS, 2003, p. 236 e 237)

Assim sendo, este estudo pretendeu obter uma reflexão sobre as críticas das razões

vulneráveis ouvindo o relato de uma pessoa em situação de rua, tomada da descrição e

compreensão dessa experiência vivenciada, com vistas, por sorte, sensibilizar pessoas que

trabalham com estes setores, com a sociedade de maneira geral que os invisibiliza ou legitima

a violência geral contra estas populações, por não conhecerem as razões de suas recusas de

participação em uma sociedade que constrói o altar da imolação das vítimas, por mecanismos

sutis, ou as utiliza como se fossem „instrumentos‟ para produção, (des) reconhecendo sua

humanidade. Por outra, o trabalho pretende, eventualmente, subsidiar políticas públicas.

Durante a pesquisa várias experiências foram desveladas, tanto na entrevista

individual quanto na observação e vivencia com nosso companheiro desta pesquisa, trazendo

reflexões acerca da utilização de metodologias cientificas que valorizem outras

epistemologias, num movimento de ruptura com a ideologia de que conhecimentos são

produzidos exclusivamente nos limites da universidade.

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CAPÍTULO IV

O CAMINHO É A HISTÓRIA, A HISTÓRIA SE FEZ CAMINHO –

BARBA E O COMPARTILHAR DE SUA TRAJETÓRIA.

Ser uma consciência, ou, antes, ser uma experiência, é

comunicar interiormente com o mundo, com o corpo e com os

outros, ser com eles em lugar de estar ao lado deles.

(MERLEAU-PONTY)

Se pudéssemos escolher um verbo norteador para este capítulo, com certeza seria,

olhar, no sentido de uma busca frenética por informações e significações e Merleau-Ponty

contribuiu durante a pesquisa, em nos ensinar a olhar, pois é através do olhar que primeiro

interrogamos as coisas, e devemos compreender o corpo, de forma geral, como um sistema

voltado para a inspeção do mundo. É uma descoberta corpo a corpo com o mundo vivido,

percebendo a ligação entre o olhar do outro e o meu corpo vivo, que remete a um único

mundo, neste sentido, o outro não se torna objeto ao ser olhado por não poder ao olhá-lo, ser

abarcado por inteiro. Somos ambos “sujeitos anônimos da percepção”, conforme o pensador:

Pela reflexão fenomenológica, encontro a visão não como „pensamento de

ver‟, segundo a expressão de Descartes, mas como um olhar em posse de um

mundo visível, e é por isso que aqui pode haver para mim um olhar de

outrem, este instrumento expressivo que chamamos de um rosto pode trazer

uma existência assim como minha existência é trazida pelo aparelho

cognoscente que é meu corpo (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 471).

Ouvir mais do que falar, foi assim que se constituíram as nossas entrevistas com o

Barba, sem que isso negasse um diálogo com ele, porém era preciso ter claro a definição do

papel do sujeito que fala e do sujeito que ouve na pesquisa. Para Merleau-Ponty,

Se a fala pressupusesse o pensamento, se falar fosse em primeiro lugar unir-

se ao objeto por uma intenção de conhecimento ou por uma representação,

não se compreenderia por que o pensamento tende para a expressão como

para seu acabamento, por que o objeto mais familiar parece-nos

indeterminado enquanto não encontramos seu nome, por que o próprio

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sujeito pensante está em um tipo de ignorância de seus pensamentos

enquanto não os formulou para si ou mesmo disse e escreveu como mostra o

exemplo de tantos escritores que começam um livro sem saber exatamente o

que nele colocarão (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 241).

Para Merleau-Ponty, a fala não é a expressão do pensamento, mas o próprio

pensamento, ou seja, o sujeito que fala não é falante, é pensante. Nesta perspectiva dialógica

da fenomenologia, nos colocamos com o Barba, na posição de pesquisador (a) como de

pesquisado (a), numa relação pautada na alteridade, olhar e ser olhado, falar e ouvir a fala do

outro, pautada em um sentido afetivo.

Assim a fala não traduz naquele que fala um pensamento já feito, mas o

consuma. Com mais razão ainda, é preciso admitir que aquele que escuta

recebe o pensamento da própria fala (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 242).

Por tanto, existe uma retomada do pensamento do outro através da fala, uma

reflexão no outro, um poder de pensar segundo o outro que enriquece nossos

pensamentos próprios (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 243).

De forma solidária, fomos para rua amparada pelas contribuições de Merleau-Ponty,

fomos em busca da fala do Barba, nosso companheiro nesta pesquisa. Fala que é o próprio

pensamento e não seu mero instrumento, daí a possibilidade de “pensar segundo o outro” e

enriquecer “nossos pensamentos”.

As ruas e becos de Cuiabá, das históricas as mais modernas, apresentam um cenário que

depende muito da maneira com que você a olha, depende inclusive do ponto de vista de cada

um. Contemplar o óbvio pode nos levar a banalidade de tudo ou ainda tomar uma cena

irrelevante em algo extremamente profundo, em todos esses anos trabalhando e percorrendo

por essas ruas e becos da Capital, pude compreender tantos aspectos que por quase uma vida

não enxergava, mas eles estavam ali independentemente da minha existência.

Para Merleau-Ponty,

Quando minha mão direita toca minha mão esquerda, sinto-a como uma

"coisa física", mas no mesmo momento, se eu quiser, ocorrerá um

acontecimento extraordinário: eis que a mão esquerda também começará a

sentir a mão direita. A coisa física anima-se - ou mais exatamente permanece

o que era o acontecimento não a enriquece, mas uma potencia exploradora

vem assentar-se nela ou habitá-la. Logo, toco-me tocante, meu corpo efetua

"uma espécie de reflexão". Nele, por ele, não há somente relação em sentido

único daquele que sente com aquilo que sente: a relação inverte-se, a mão

tocada torna-se tocante, e sou obrigado a dizer que o tato esta espalhado em

meu corpo, que o corpo e "coisa que sente", "sujeito-objeto”. (MERLEAU-

PONTY, 1991, p. 183-184).

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Os relatos que se seguem e que transcrevemos, são histórias contadas durante as

entrevistas com o Barba, são lembranças trazidas pela fala que envolve o tempo passado e o

tempo presente. Pouco apouco esses relatos foram se transformando em olhares de quem

conta e de quem escreve, sem a mínima intenção de afirma-las enquanto verdadeiras ou

falsas, sem a intenção de interpretá-las, mas buscando compreendê-las como outra forma de

estar no mundo. Uma narrativa que não esconde o envolvimento da pesquisadora, revelando

um diálogo feito onde foi possível, sem cerimonias formais.

4.1 O Local dos encontros:

Para realização da pesquisa optamos pelo afastamento das áreas centrais da cidade,

regiões conhecidas pelo grande número de pessoas vivendo em situação de rua, isto se deu

por duas razões: primeira porque nosso protagonista já estava há algum tempo se

“refugiando” 11

em um bairro periférico de capital, visto que fora expulso da região do bairro

Porto de Cuiabá com extrema violência estatal com advento da Copa do Mundo, onde a

capital foi uma das cedes no Brasil. Segundo, fomos escolhidos por ele, de alguma forma,

devido aos anos de trabalho como o Consultório de Rua do SUS, conseguimos estabelecer

vínculos preciosos em nossos atendimentos, sendo assim, barreiras comuns na aproximação

com este grupo social já estavam superadas.

4.2 Barba: nosso companheiro nesta jornada

Nosso protagonista, que recebeu dos companheiros da rua o apelido de Barba, nos

relatou estar vivendo na rua aproximadamente 13 anos, é negro, nasceu em Cuiabá, filho de

uma família tradicional e de classe alta da capital, possui nível superior, tem uma fala

coerente e articulada. Relata ser formado em Direito e que ainda possui o contato com sua

família, apesar de não ser frequente.

A história que se conta no bairro tijucal, era que ele é trabalhador, vive na rua, não

rouba ninguém, mas usa drogas, por isso era melhor manter distância dele. Após anos atuando

11

No período pré Copa do Mundo em Cuiabá, houveram várias ações governamentais ligados a Segurança

Pública que realizou a retirada da população de rua de vários lugares estratégicos da cidade, existiram várias

denuncias inclusive de extermínio dessa população, outros expulsos, presos sem terem cometidos nenhum crime,

como fora denunciado em vários textos do Livro Ruação das epistemologias da rua à política da rua, disponível

no link: http://200.129.241.80/editora2/download/ebook_RuAcao.pdf. Barba conseguiu fugiu para um bairro

periférico e mesmo após o evento, permaneceu na mesma região.

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com usuários de drogas e população em situação de rua, isso me soava como um empurrão

para ouvi-lo, compreender quem era aquela pessoa por traz daquela barba e de um olhar

curioso. Por certo que não haveria ninguém melhor para trilhar este caminho comigo senão

está figura de um humor impressionante, reservado e de vivencias duras familiares e da rua.

Assim me percebi parte de todo aquele cenário de miséria e abandono, onde a palavra

viver é pouco expressada, a palavra sobreviver se torna um mantra, um suspiro diante da

morte da individualidade. Por isso também, a pessoa em situação de rua desta pesquisa tem

um nome, aquele escolhido por ele, abundante de significados, diz muito dele, pois o tira da

invisibilidade que todos nós sociedade o colocamos, ele não deseja ser “todo mundo” ele

deseja ser o Barba.

De fato, o Barba é o retrato da exclusão social no Brasil, a violência dirige-se ao plano

das diferenças físico-corporais e étnicas, o racismo é inegável ao percebermos que os que

estão nas ruas, são negros em sua maioria. Os valores dessa população nem sempre são

reconhecidos e legitimados pela sociedade, pelo contrário, são negados e reprimidos, assim

como bem sublinha Xiberras,.

os excluídos não são rejeitados apenas fisicamente (racismo),

geograficamente (gueto) ou materialmente (pobreza), são excluídos

também das riquezas espirituais: seus valores não são reconhecidos e

são ausentes ou excluídos do universo simbólico. Quando surgem,

esses valores figuram como invertidos, atributos negativos que os

situam na categoria dos estigmatizados, a categoria negativa.

(XIBERRAS, 1993, p. 52).

4.3 Os encontros...

Sentimentos de inferioridade, pequenez e incapacidade são despertos como uma

espécie de controle sobre aqueles que se encontra em situação de rua, atingindo-os o nível

emocional-afetivo, levando-os a um imenso vazio interior, vazio que surge não da falta de

comida, mas de afeto e sonhos, de perspectivas em relação a seu futuro. Isto é facilmente visto

e compreendido na necessidade que muitos possuem em contar sua história, ou contar uma

história, ainda assim continua sendo a sua.

Era uma noite quente, munida de gravador, caderno e caneta me aproximei desse

homem, estava deitado em um colchão em uma cabana feita de restos de diversos materiais

em uma calçada de chão batido. Estava sem camisa e de shorts olhando para algo além do que

pude identificar ou compreender, cheguei lhe desejando uma boa noite e perguntando se

poderia me aproximar, ele se levantou e me autorizou. Expliquei o motivo da minha presença

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e pedi para ouvi-lo, questionou do porque a história dele teria algum valor para os outros, mas

sem me deixar tempo para respondê-lo, disse “porque também tenho meu valor, também sou

gente né dona?” o respondi com um sorriso, “assim como eu”. Perguntou-me se gostaria de

sentar para começarmos e assim inicia a nossa história, Barba passou a existir na minha vida

assim como eu na dele.

Dirigi a pergunta suleadora da nossa pesquisa: Você poderia me contar a história da

sua vida com os antecedentes que são mencionados por sua família e pessoas conhecidas,

incluindo seu nascimento? Assim o Barba iniciou sua fala.

Meu nome verdadeiro já nem faço questão de lembrar, faz um bom tempo

que não uso, hoje me chamo Barba, só de olhar pra minha cara já dá pra

perceber o porquê né (risos). Meu pai já foi pro outro lado, minha mãe ainda

vive, tenho duas irmãs que casaram bem, quase nunca vejo elas, só no natal e

no meu aniversário que elas vem me ver. Eu era o filho preferido, único filho

homem, cada vez que minha mãe engravidava eu rezava para que fosse um

irmão, não aguentava a pressão todo dia na minha cabeça. Para meu azar só

nascia mulher, para elas a pressão era para conseguir fisgar um pretendente

rico, na verdade não sabia o que era pior a minha vida ou a delas. (Barba)

Assim eu cresci, estudei em boas escolas, mas sempre eu tentava sair da

linha não aguentava essa história do filho perfeito do papai, então arrumava

briga na escola andava só com os malas, em troca levava muita porrada do

meu pai, nunca na minha cara, ele dizia “você será juiz não pode ter cicatriz

na cara”, mas toda vez que eu brigava eu pedia para os caras me bater

justamente nela, meu pai ficava só o ódio e minha mãe tentava apagar o

fogo, nem sempre conseguia. (Barba)

Minha relação com meu pai sempre foi difícil ele queria que eu fosse uma

pessoa que eu nunca quis ser, ele era advogado sabe, tentou várias vezes

concurso para ser promotor, juiz, mas nunca conseguiu passar então decidiu

o que eu seria, tipo, esse era o sonho dele não meu, ele nunca me perguntou

o que eu queria talvez tinha medo de ouvir a verdade (...)12

eu não queria ser

nada só queria viver e não ser escravo desse mundo maldito. (Barba)

Acabei fazendo muita coisa do que ele queria, não tinha muita escolha,

terminei o segundo grau e fiz direito em uma faculdade particular, porque

não me esforçava para entrar numa pública e quando terminei, saí de casa

direto para rua. Loucura né?! Eu acho né, larguei todo conforto, vida boa,

dinheiro, mulheres, em troca da minha liberdade, em troca de ser o que

quero ser, mas ela teve um preço que eu pago dia após dia, fiquei só. (Barba)

A senhora sabe que não é todo dia que tem alguém para conversar, é bem

difícil, por isso minha vida hoje se resume a montar minha casa, muitos

acham que não tenho direito de viver aqui então a destroem. Trabalhar

porque não sou bandido dona, tenho minha consciência limpa ando de

12

Sinal utilizado para evidenciar momentos de silêncio na sua fala

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cabeça erguida, trabalho até de graça e fumo meu brau porque para aguentar

esse lugar é preciso companhia. (Barba)

Cena comum em nosso cotidiano é a de limitar a solução para resolver o problema da

existência de pessoas em situação de rua, a uma reinserção ou inserção na esfera produtiva,

porém a exclusão vivida por essas pessoas, incluindo o Barba possui uma abrangência maior,

“evidencia um processo que envolve trajetórias de vulnerabilidade, fragilidade ou

precariedade e até a ruptura dos vínculos nas dimensões sócio familiar, do trabalho, das

representações culturais, da cidadania e da vida humana”. (ESCOREL, 1999, p. 259).

A senhora deve ter ficado curiosa para saber o que meu pai fez quando

descobriu que eu fui morar na rua né, quase me matou de tanta porrada fui

parar no hospital não poupou nem minha cara (risos), mas não demorou

muito, fugi e voltei para Praça do Porto, quando ele descobriu me internou

no hospital de louco13

fiquei lá um tempo, nem lembro quanto, me davam

um sossega leão toda vez que eu acordava, ouvia muita gente dizendo no que

eu era louco por largar minha casa pra morar na rua, colocaram até a culpa

„brau‟ que fumo de vez em quando, mas na verdade eu só queria me livrar da

minha pior droga, meu pai, é muito triste dizer isso, mas é a verdade. (Barba)

Barba ao retratar a sua história familiar, nos possibilitou compreender como se dá,

muitas vezes essa desvinculação sócio familiar, o empurrando para um não-lugar, que

segundo Andrade (2014, p. 187) é um ”território sem significados, o que remete para a

questão da desresponsabilização do papel do Estado”.

Fazia um tempão que não falava dele, ninguém nunca quer ouvir minhas

histórias, bem da verdade as pessoas não querem nem que eu exista (risos),

mas conselhos é o que mais me dão, mais do que comida (risos) falam pra eu

sair da rua, até parece que meu pai morreu e pedaços deles foram pra várias

pessoas, muitas que passam aqui repetem frases que sempre ouvi do meu

pai. (Barba)

O pai do Barba faleceu em decorrência de um câncer, falou muito pouco sobre este

episódio, percebe-se que essa é uma ferida ainda não cicatrizada, apesar de toda divergência,

havia uma extrema relação de amor de barba por ele, remorso talvez por algumas palavras e

atitudes, mas a saudade era evidente, durante sua fala, houve momentos de silêncio, silêncio

carregado de significados, lágrimas ousavam descer pelo seus olhos, mesmo com sua

insistência em limpá-las ou escondê-las.

Findamos nossa entrevista nesta noite e marcamos para continuar no dia seguinte.

Cheguei ao local marcado e o aguardei, logo o avistei com um sorriso largo trazendo sua

carriola cheia de recicláveis, ele amplia sua casa com que encontra nas calçadas do bairro.

13

Se refere ao Hospital Psiquiátrico Adalto Botelho, situado em Cuiabá.

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Que bom que a senhora voltou, posso continuar a contar a minha história?

Respondo que sim lhe oferecendo um sorriso de agradecimento. Tô contente

porque alguém se interessou por o que eu falo. Onde mesmo que eu parei?

Ahhh lembrei, no hospital de doidos (risos), já fui para lá outras vezes volta

e meia à assistência social e a polícia tirava nós lá da praça, levavam a gente

para delegacia e depois pra algum outro lugar, já fui para o Adalto, pra

clinicas para noiados14

, mas eu sempre voltava pro meu lugar. (Barba)

Um certo dia meu pai cansou, viu que não adiantava e que era minha

decisão, proibiu minha mãe de ir me ver e de me dar algum dinheiro, mas

mãe é mãe né, ela sempre dava um jeito e assim é até hoje. (Barba)

Agora vou contar como é viver nessa Babilônia, mais conhecida como a rua.

aqui só sobrevive os fortes, nos primeiros dias já entendi que seria barra

pesada. Foram os moradores da praça que me ensinaram a sobreviver, que

dividiram o pão comigo. Cada um tá aqui por algum motivo, mas somos

descriminados, as pessoas tem nojo. Se parassem para conversar iriam ver

que aqui tem de tudo: médico, professor, enfermeiro, pessoas que, como eu,

fizeram escolhas diferentes da sua na vida, mas que não deixaram de ser

gente. (Barba)

A primeira coisa que aprendi foi que não se deve se apegar com nada, nem

mesmo com sua cueca, você pode dormir com ela e acordar pelado, na rua as

pessoas deixa livres quem realmente elas são e não falo só de quem vive

aqui, já vi pessoas tidas como normais que não ta na rua, mas ta roubando

noiado aqui. Exemplo, no frio sempre aparece alguém doando agasalho, não

adianta pegar dois porque vai acabar sem nenhum (risos), parece que Deus

achou uma forma de nos ensinar que tudo nesta terra é passageiro, então não

adianta bancar o egoísta, se ganhou dois já doa pra outro senão se fica

marcado como alguém que não contribui com o grupo, não pense que é fácil,

fora da rua somos movidos ao egoísmo e individualismo, aqui é diferente,

não temos nada nosso, se não aprender isso não sobrevive aqui. (Barba)

Neste mundo sem paredes dependemos um do outro até para continuar vivo.

Não adianta guardar muita coisa, nem dinheiro, existe gente boa dentro das

casas como tem nas ruas. O que eu tenho eu divido, aprendi quando morava

na praça e faço isso até hoje e não é só com quem vive na rua não, é com

qualquer um, o triste é que muitos têm nojo do que nós tocamos e acaba não

aceitando. Ganho muitas roupas, mas só tenho o que preciso. (Barba)

A existência de um espírito solidário e cooperativo entre as pessoas em situação de rua

é um fato que surpreende a sociedade. Costumam ajudar-se mutualmente e dividem a comida

e a bebida, mesmo que seja pouca. A rua se faz comunidade, mas isso se faz com certo tempo

de rua, normalmente quando a pessoa é recém-chegada, relata Barba, ela ainda possui muitos

traços individualistas, mas o tempo ela compreende que socializar o que ela tem é um ponto

chave para sobreviver nas ruas.

14

Se refere à Clinicas para dependentes químicos.

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Falando em Deus, não sei se a senhora tem religião, vai que vou te chatear

com o que vou dizer, mas como a senhora não tá aqui por conta de igreja é

pela Universidade, me sinto tranquilo em comentar, tanto na praça quanto

aqui vem sempre um povo de certas igrejas que me cansa. Quem ajuda a

gente de verdade são pessoas que não querem nada em troca, porque o

estado vem e destroem o que a gente construiu, levam nossas cobertas,

colchões, as igrejas ajudam, mas tem que ficar ouvindo um monte de coisas,

aí eu prefiro nem pegar nada, nunca me perguntam se quero ouvir, vai que

não acredito em nada, será que sou obrigado a virar crente em troca de um

pão com margarina ou de um prato de sopa? (Barba)

Muitas ações, sejam elas individuais ou até do próprio estado, apresentam com fortes

marcas paternalistas e com um viés da caridade, em alguns momentos estes sujeitos que

naquele momento são “dignos” de receber ajuda são tidos como privilegiados, quando na

realidade, lhes eram de direito, porém essa cultura tuteladora, ainda tão presente no cotidiano

das pessoas em situação de rua não favorece o protagonismo e a emancipação desses sujeitos.

Não pense a senhora que não acredito em Deus, mas creio que ele seja mais

do que isso que muitos pregam é a natureza que envolve todo universo é o

sol e a lua também. Assim que eu me guio, dia a dia, sei quando é dia pelo

sol que está lá em cima e sei que é noite porque a lua também está lá em

cima, não tenho relógio nem celular (neste momento da uma risada me

lembrando de que não teria como recarregar a bateria do seu celular se o

tivesse), é a vida que me acorda e um dia será a morte que não me deixará

acordar, isso não me deixa triste porque tudo tem um fim, aprendi isso

vivendo onde estou. (Barba)

Nem sempre tenho o que calçar, e a senhora acha que fico triste com isso,

claro que não, aproveito pra sentir a terra no meu pé, mas por esses dias

ganhei dois tênis, to bonito perante a sociedade.

Eu muito aprendi dentro da minha casa, na época em que morava com meus

pais, mas nesses anos que estou na rua eu amadureci uns cinquenta anos

aprendi o que é dividir, cuidar e mais ainda, o que é viver um dia de cada

vez. O amanhã não existe, até que eu acordo e abro meus olhos, por isso

repito para senhora, eu não moro na rua, eu vivo. (Barba)

Assim como para Almeida e Oliveira (2005, p. 150) 15

, “compreendemos os sujeitos

que vivificam a rua como produtores de saberes e criadores de um jeito de viver, de

trabalhar, de ser, de estar, tramadas em opções e posturas presentes em todos os âmbitos de

sua participação”. São pessoas que resistem e que lutam para permanecerem vivos, mesmo

convivendo em um universo de violência constante.

Acredito que a minha sorte foi ter vindo pra este bairro, à polícia tocou toda

a galera lá da praça, ouvi dizer que muita gente sumiu, entendi que nós não

15

file:///C:/Users/Vivi/Downloads/1321-3251-1-SM.pdf

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combinávamos com a Copa do Mundo. Mas não me arrependo, aqui

ninguém mexe comigo, sou trabalhador e não roubo ninguém, com meus

braços carpino quintal, levo compra, limpo as mesas dos bares, por onde eu

passo vou limpando (deu uma gargalhada), sou pobre, mas sou limpinho

dona. Eu num nego que uso minhas porcarias (se referindo ao uso de drogas)

só que pago com dinheiro fruto do meu trabalho, nunca cometi crime

nenhum. (Barba)

As pessoas em situação de rua constroem suas redes de relações sociais, isso

proporciona certa segurança para sobreviver às diversidades e na construção de

conhecimentos, nessas relações de convívio, segundo Almeida e Oliveira (2005, p. 150)

podem “ser amistosas ou tensas, acolhedoras ou opressoras, as pessoas se educam na e para

a sua humanidade, para a cidadania negada, conquistada e assumida”.

Foi muito triste o dia que tive que fugir de lá, me senti um criminoso,

quando vi que a coisa era séria saí correndo pro meio do mato, a polícia

levou todo mundo, não sobrou ninguém, a Senhora acredita? Veio até ônibus

pra carregar o povo, depois disso não vi mais muita gente não, fico me

perguntando, será que mataram todo mundo? O que é pior é pensar que qual

a razão pra tudo isso, nós também somos gente, fazemos parte da cidade,

queiram ou não queiram. A justiça passa longe de nós, tudo que eu estudei

me parece uma grande fantasia, nem direitos humanos chega na rua. (Barba)

Dona as pessoas acham que somos lixo porque vivemos na rua, mas não

somos, sou um ser humano como qualquer outro é muito sofrido saber que

não nos consideram porque não vivemos dentro de um quadrado, qual a

diferença entre nós, por exemplo? E isso é grave, porque se todo mundo

acreditar que não somos nada ou ainda que não existisse, qualquer um pode

vir até aqui e meter uma bala em nós, quem vai reclamar né, eu ainda tenho

uma mãe e quem não tem? (Barba)

Neste momento, Barba me fez lembrar uma frase do Padre Júlho Lancellotti em uma

entrevista para o IHU, “O morador de rua não pode ser tratado como lixo. Deve ser tratado

como pessoa, ter a sua dignidade respeitada. É preciso ter coragem para amá-los” 16

, o

desprezo, a invisibilidade, o não levar em conta a indiferença, a ausência de políticas públicas

que não o tenham como clientes, mas como uma pessoa sujeita de direitos que deve ser

respeitada. Contrariando o que se é dito no senso comum e expressado pelas mídias ou pela

opinião pública – de que a população em situação de rua é constituída por pessoas loucas,

sujas, vagabundas, quase animais - sua voz exprime que “não é”. E o Barba continua seu

relato,

16

Entrevista disponível no link: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/504712-moradores-de-rua-e-preciso-ter-coragem-para-ama-los-entrevista-especial-com-julio-lancellotti, acessada dia 19/10/2016

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Já vi tanta coisa feia nessas ruas, vi gente acordar com chute de polícia,

apanhava sem saber até o que fez de errado e quando perguntava ouvia “por

você ter nascido desgraçado”. Agora a senhora me diz uma coisa, a polícia

não serve para mim, eu não mereço ser protegido? Teve um caso que

presenciei, colocaram um saco na cabeça de um cara, sufocando, pra que ele

entregasse o traficante, ou ele entregava ou levaria ele pra quebrada e

apagaria ele! (Barba)

Segundo Rozendo17

(2011), ainda sobre a herança higienista imperial que se apresenta

como uma força bastante ativa na atualidade, onde o Estado encontra ainda mais subsídios

para intervir repressivamente sobre a vida das pessoas em situação de rua, legitimando a

repressão e desqualificando seus hábitos e costumes, como ocorre no caso da Polícia Militar.

Barba relata com clareza, nesse episódio de abuso de autoridade e uso de métodos de tortura,

por parte da polícia militar, contra uma pessoa em situação de rua.

Muitos acreditam que quem manda na rua são os traficantes, pra mim isso

não é verdade, os verdadeiros donos das ruas são os policiais, a regra é deles,

aqui não existe direito civil ou constituição. Por isso é melhor não andar com

muita coisa para evitar problema. Esses dias um cara foi debater com um

policial e tomou um cacete, deram tanta porrada e chutes que foi parar no

hospital, levado pela própria PM e ainda jogaram todas suas coisas no lixão.

A gente tem que andar assim, sem nada, policial mandou parar, eu obedeço,

cansei de apanhar. Já cheguei de perguntar se fiz alguma coisa errada, me

responderam que sou um estorvo para sociedade, a melhor escolha é o

silêncio, assim você tem mais chance de continuar vivo. (Barba)

Então ficamos em uma situação complicada, não podemos carregar nossa

casa nas costas porque corremos o risco de perder tudo, sendo assim resolvi

construir um barraco aqui nesta calçada, nesses anos que estou aqui já perdi

as contas de quantas vezes a prefeitura, polícia, presidente de bairro e

vereador já mandaram destruir tudo, saio para trabalhar quando volto não

tem mais nada, lá vou eu dormir no relento. Essa calçada é dum terreno

baldio que só é limpo por mim, pra não infestar de rato ou cobra, nunca

soube que o dono foi responsabilizado por abandonar isso aqui, agora só

conseguem ver que eu sou o problema. (Barba)

Utilizando os locais públicos como moradia, locais considerados de ninguém, ao

mesmo tempo em que é de todo mundo, Barba acabou por não pertencer mais a nenhuma

comunidade política, permanecendo à margem da cidadania, que constitui o primeiro direito

humano, o direito a ter direitos. Ao se ocupar dos locais públicos para ficar, Barba acabou por

expor tudo que se é considerado de domínio privado, não o suficiente, a realização de ações

privadas no espaço público é entendida como transgressão dos princípios básicos da

organização social, que distinguem, “o que é próprio da casa e o que concerne à rua”

17

http://seer.assis.unesp.br/index.php/revpsico/article/viewFile/546/348

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(Damatta 1991). Desta forma, apenas como transgressores da lei é que são restituída as

pessoas em situação de rua a condição de cidadãos. Somente como criminosos é que são

referendados e considerados pela lei, sobretudo como indivíduos portadores de deveres para

com o restante da população.

A senhora acha que só polícia é contra nós? Que nada, o que eu já ganhei de

marmita azeda, uma vez até bicho tinha, como pode alguém ser tão mau de dar

comida estragada para alguém. O pior é a sede, as pessoas nem água querem nos

dar, mandam a gente trabalhar. (Barba)

O senso comum e o destaque negativo evidenciado pelos diversos meios de

comunicação nos levam a crer que essas pessoas vivem em um eterno ócio e que possuem

uma vida fácil, pois não assumem responsabilidades, ledo engano, as pessoas que estão nesta

condição precisam lutar insistentemente para manter-se vivos diariamente, a eminência da

morte ultrapassa barreiras do tempo, não por condições naturais da vida, não está ligada a

velhice, mas por uma exposição corriqueira de violência, seja ela da ordem natural ou estatal.

São renegamos a uma vida puramente biológica, os isolamos de toda e qualquer

participação no mundo, não são mais considerados cidadãos, se tornaram supérfluos e

desnecessários à vida social, à condição de descartáveis18

. Na maioria das vezes, passam

despercebidos mesmo quando nos interpelam na busca de alguns trocados ou alimentos, que

são angariados à custa de sua retirada, de seu afastamento e isolamento.

(...) e ainda nos chamam de vagabundo, aqui onde to vivendo não acontece

muito isso, as pessoas já me conhecem, trabalho até de graça pra eles, mas

quem ta lá na praça vive num deserto, às vezes tem que beber a água do rio.

As pessoas mudam pro outro lado da rua com medo ou nojo, sei lá! Fingem

que não nos vê, olham pro outro lado. (Barba)

O outro como um “nada”, caracterizado como um não-ser, ganha dimensões políticas e

é, segundo Giorgio Agamben, uma “vida matável” ou “vida nua”. Vida nua é a vida “matável

e insacrificável do homo sacer”. É a vida que foi colocada fora da jurisdição humana, seu

exemplo supremo é a vida no campo de concentração. Estando fora da jurisdição, a “vida

nua” é a vida que pode ser exterminada sem que se cometa qualquer crime ou sacrifício, como

foi explorado por nós no primeiro capítulo desta dissertação. De acordo com Mattos e Ferreira

(2004) As noções que circulam sobre as pessoas em situação de rua fazem com que a

sociedade, mesmo que involuntariamente, os marginalize.

18

Na sua introdução à obra No meio da rua, Marcel Bursztyn (2003) sublinha o fato de que o sistema global

produz pessoas descartáveis, que passam a viver do descarte do consumo, do lixo como a única ponte que une os

excluídos aos incluídos. Como se os indivíduos humanos fossem lixo, vivendo na rua e da rua, do lixo dos ricos.

O descarte humano e o descarte do consumo se entrelaçando, um alimentando-se do outro.

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Contudo, se refletirmos sobre a qualidade destas interações, observaremos

que comumente nós as olhamos amedrontados, de soslaio, com uma

expressão de constrangimento. Alguns as veem como perigosas, apressam o

passo. Outros logo as consideram vagabundas e que ali estão por não

quererem trabalhar, olhando-as com hostilidade. Muitos atravessam a rua

com receio de serem abordados por pedido de esmola, ou mesmo por pré-

conceberem que são pessoas sujas e mal cheirosas. Há também aqueles que

delas sentem pena e olham-nas com comoção ou piedade. Enfim, é comum

negligenciarmos involuntariamente o contato com elas. Habituado com suas

presenças parece que estamos dessensibilizados em relação à sua condição

(sub) humana. Em atitude mais violenta, alguns chegam a xingá-las e até

mesmo agredi-las ou queimá-las, como em alguns lamentáveis casos

noticiados pela imprensa. (MATTOS e FERREIRA, 2004, p. 47).

Em resumir um ser humano a nada, ao mesmo tempo em que o equipara com um

objeto, que como qualquer objeto ele será medido pelo seu valor e utilidade, circunstância

intuitivamente as pessoas em situação de rua a perceberem que lucram mais quando lavam os

para-brisas dos automóveis ou cuidam dos carros em vias públicas do que se esmolar. Eles

passam a ter algum valor e a existir, no momento que “servem” para alguma coisa.

Em um paralelo entre a ideologia nazista e o neoliberal, MOREIRA, 2007 afirma

sobre a apartação social:

Portanto, tal como no sistema nazista, em que somente o ariano era

considerado como cidadão e ser superior; no sistema capitalista também

apenas os melhores sobrevivem. Mas como não há lugar para todos nessa

sociedade excludente, aqueles que não se adaptam são marginalizados,

perseguidos e não sofrem a morte na câmara de gás, mas na inanição, na

desonra e nos presídios [...] O capitalismo, hodiernamente imposto, mata aos

poucos, retira a dignidade e a autoestima, provocando uma verdadeira tortura

psicológica, antes da eliminação física das pessoas não produtivas, ou seja,

das classes inferiores. (MOREIRA, 2007, p. 177)

Podemos ver no relato do “Barba” seu processo de invisibilização “olham para o outro

lado” num esforço de mantê-los longe, ao menos da vista. A sua fala é carregada de

subjetividade, de sentimentos que expressam uma moralidade excludente por parte daqueles

que querem mantê-los à distância. Moralidade esta desumana, que promove um processo de

invisibilização o qual o Barba percebe como um fator humilhante. É um sentimento

expressivo, repetido e enfatizado em seu relato muitas vezes, como quem angustiadamente

pede socorro diante marginalização e construção de uma identidade que lhe é imposta, a de

inúteis. Invisibilidade e identidade que lhes são impostas, que é prontamente naturalizada

simbolicamente na sociedade.

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O que eu queria saber, quem sabe a sra. me ajuda a entender, porque cada

dia tem mais gente na rua, muitos dizem que é por causa da droga, mas não

acredito nisso não, eu mesmo conheci poucos que pararam aqui por conta da

maldita, agora tem muito bêbado, alcoólatra né, que na loucura tomam até

álcool de posto, esses dias mesmo soube que um companheiro meu lá da

praça morreu com cirrose, não devia nem ter mais fígado e ele vivia com o

corotinho nos braços, dizia ser a mulher dele (risos), será que no céu tem

rua? Se tiver é lá que ele tá (risos) porque era gente boa, ele merece o céu,

porque aqui na terra viveu no inferno. (Barba)

Antes de vir pra rua eu acreditava que aqui eu seria livre, mas na verdade

aqui é uma prisão também, agora sem parede e sem lei, a partir da hora que

virei morador da rua, perdi até meu nome, sou um Zé ninguém que não

combina com a cidade, às vezes fico me perguntando se ainda existo. Uma

noite dessas, estava aqui na minha dormindo de boa e acordei com uns

playboys jogando água em mim, me chingando, fico imaginando se eu era

assim também antes de virar isso aqui. (Barba)

Muitas pessoas me falam, então se a rua é esse inferno porque você não sai

dela, sua família tem condições, mas isso não basta, eu estou me

reconstruindo e não me vejo em outro lugar. Peço perdão a minha família se

minhas escolhas as fizeram sofrer, peço perdão às pessoas que não são de

rua por ser quem eu sou, sinto muito, mas vou permanecer aqui. (Barba)

“Sinto muito, mas vou permanecer aqui”, reafirma Barba sua condição de rua, assim

como ele, muitas pessoas estão nesta situação, apesar de toda diversidade, expostos a todo

tipo de violência e indiferença. Assim me despeço de Barba, um homem incrível sobrevivente

das ruas e de todo sistema que nos cerca, após o final do período das entrevistas, fui visita-lo

algumas vezes, e na última vez não encontrei seu barraco, novamente a prefeitura “limpou” a

calçada onde ele vive a pedido da população do bairro, mais uma vez foi dormir ao relento.

Assim a história do Barba encontra eco em todos os cantos do país, infelizmente ele não é o

único que não tem o direito de sonhar com um futuro melhor, pois precisa lutar para continuar

vivo hoje, agora.

Toda a fala do Barba nos traz inquietações profundas, buscamos dialogar, após ouvir

tudo que ele tinha a nos contar, com autores que pudessem nos dar algum norte para

compreensão, principalmente a cerca dos motivos ou até motivações para que o extermínio

seja justificável em se tratando desta população já fragilizada desde sua essência. Podemos

perpassar pelos caminhos religiosos, raciais, econômicos e muitos outros, mas todos eles de

alguma forma tentam se justificar. Tentar compreender a falta de envolvimento de todos nós,

do se importar com o outro, na indiferença, no lavar as mãos, simplesmente a banalidade do

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mal. Foi através de leituras das obras de Hannah Arendt, que nos possibilitou ter em mãos

uma possibilidade de resposta.

A questão a ser compreendida é desafiadora, pois nos faz pensar como funcionam

esses mecanismos em centenas de pessoas nas grandes cidades, de forma que quase em sua

totalidade, que os leva a desviar de uma pessoa deitada em uma calçada como se fosse apenas

um obstáculo a ser ultrapassado, fazendo com que Ignore qualquer atrocidade cometida contra

esses seres humanos, apenas seguem o seu caminho naturalmente. Essa atitude só pode ser

vista como uma nova forma de banalidade do mal, pois não há uma preocupação em intervir

para alterar a situação, na verdade ocorre uma anuência implícita de um desejo de abreviação

da existência dessas pessoas.

Qual seria a razão deste enredo acontecer diariamente e de uma forma pouco empática

para a maioria da sociedade? Como olhar e não se importar? Seria a banalidade do mal19

?

Segundo Leister (2010),

A recuperação desse momento particularmente cruel na história da

humanidade tem como finalidade única introduzir a discussão sobre uma

espécie contemporânea de “mal” que vitima milhares de pessoas em situação

de rua, nos grandes centros urbanos brasileiros, lenta e gradualmente, uma

forma de violência particular: a supressão de sua dignidade humana.

(LEISTER, 2010, p. 189 - 190)

Fazemos essa associação do termo “banalidade do mal”, com a situação atual das

pessoas que estão em situação de rua, visto que este grupo sofre um processo de eliminação

físico e moral, visível a toda sociedade, no entanto, aparenta não incomodar a maioria das

pessoas.

As pessoas em situação de rua são vistos somente quando “teimam” em sair de sua

invisibilidade, quando provocam certo incomodo a sociedade em geral, quando se é preciso

desviar dos seus corpos quando estão dormindo nas calçadas ou quando nos interpolam

pedindo algum trocado nos sinaleiros. Desviar, fechar o vidro do carro, fingir que não ouviu

um pedido de ajuda, deixar todas essas cenas urbanas para trás e continuar a se ocupar de seus

assuntos e seus smartfones é uma dinâmica frequente nas cidades, essas figuras maltrapilhas e

19

Quando Hannah Arendt criou a expressão “banalidade do mal”, referia-se tão somente ao mal que se abateu

sobre os judeus da Europa continental, alvos da política nazista de eliminação sistemática. A expressão

“banalidade do mal” relaciona-se, portanto, com a indiferença dos executores da política nazista, de extermínio

da raça judia, enquanto pessoas normais, e ao sofrimento infringido nos campos de concentração. O “mal” ao

qual Hannah Arendt se referiu é aquele ligado à eliminação física de homens, mulheres e crianças. Essa

expressão sintetizou a tese defensiva de Eichmann, basicamente de que apenas era um executor de ordens e que a

“Solução Final” naquele contexto não poderia ser considerada uma violência quando executada nas câmaras de

gás. (LEISTER, 2010,p. 188)

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malcheirosas não são reconhecidas pela maioria das pessoas, como seu semelhante. Não é

preciso se culpar por não se sentir tocado por este cenário, porque ninguém é culpado, a não

ser a própria pessoa em situação de rua que exerceu seu poder de escolha em estar nesta

condição tão degradante da sua condição humana.·.

A invisibilidade social das pessoas em situação de rua, em Mato Grosso é notícia

frequente nas mídias casos de violência contra as pessoas em situação de rua onde quando se

consegue descobrir o agressor, ele consegue demonstrar a total indiferença e se justifica com

histórias banais. É o caso de um assassinado ocorrido em abril de 2016 em uma cidade do

interior de Mato Grosso, Lucas do Rio Verde, situada a 360 km de Cuiabá. Um contador de

34 anos, identificado pelo nome de Thiago Bernini, confessou ter atropelado propositalmente

Francisco Vianei dos Santos Silva de 61anos, que vivia em situação de rua naquele município,

segundo palavras do agressor, o motivo do assassinato foi porque estava se sentindo

incomodado com a presença do Francisco, que usava a obra dele, que está orçada em dois

milhões de reais, como abrigo no período noturno.

Justificou que procurou a Assistência Social da cidade para que o retirassem do local,

porém nada foi feito e relatou que ele queria só dar um susto e que não tinha intenção de

matar, no entanto, câmeras20

que gravaram o atropelamento, mostra o Francisco sendo

atropelado quando estava de costas e o agressor continua o trajeto não prestando socorro à

vítima. Francisco foi enterrado como indigente, mesmo tendo documentos de identificação.

A história trágica no qual Francisco foi à vítima e de tantos outros Franciscos, e seu

crime foi estar em condições de rua! Demonstra o quanto o totalitarismo pode promover e

instaurar a banalidade do mal, a violência generalizada gratuita e perversa traduzindo no dia-

a-dia a crueldade para com grupos já vulnerabilizados. A banalidade do mal se tornou uma

realidade, pois a perversividade passou a constituir como algo costumeiro e deixou de causar

estranhamento, a violência passou a fazer parte do cotidiano das pessoas em situação de rua

de maneira tão intensa que não produz espanto algum.

O Francisco se tornou um mero obstáculo para seu algoz, como qualquer objeto sem

valor, foi descartado, e o mesmo seguiu seu caminho sem olhar para trás. A indiferença, a

coisificação do outro fica evidente na sua morte que até mesmo após findar sua vida quando

fora enterrado como indigente. A exclusão por indiferença, isto é, o deixar morrer que esses

indivíduos experimentam no próprio corpo dia-a-dia, é ainda coroada com o advento da

morte, pois são enterrados como indigentes, perdendo até mesmo o nome, não restando

20

Cenas das câmeras disponíveis no seguinte link: http://g1.globo.com/mato- grosso/noticia/2016/05/contador-

atropela-morador-de-rua-de-proposito-e-e-preso-em-mt-veja-video.html

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qualquer rastro de sua passagem pelo mundo. Desta maneira, morrem sem deixar vestígio

algum de terem existido e a memória de sua passagem pelo mundo abisma-se nas sombras do

esquecimento, tal como acontece com tantas pessoas que são mortas diariamente nas ruas de

nossas cidades.

Em fim, a invisibilidade do Barba e do Francisco, nos remete a uma palavra, um

sentimento, “esperança”. Palavra, sobretudo, é o que me toca no ouvir a história do Barba e

me movimenta a criar meios que contribua com a superação de visões distorcidas acerca da

realidade da rua, uma delas é dar voz a essas pessoas, somente ela pode dizer o que elas

vivem. “Não é, porém, a esperança um cruzar de braços e esperar. Movo-me na esperança

enquanto luto e se luto com esperança espero” (FREIRE, 2005, p. 95).

O Barba não deseja ser tutelado por ninguém, deseja ser ouvido e a universidade

precisa continuar possibilitando momentos como o Ruação, onde possibilitou que diversos

pesquisadores e pesquisadoras pudessem se colocar no lugar do outro, de escutar seus apelos e

de priorizar a vida humana.

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PARA CONTINUAR EXISTINDO: A GUISA DE PROVOCAÇÕES

Levando em consideração o objetivo deste estudo, dar voz a uma pessoa em situação

de rua a fim de descrever como ele se vê e vê o mundo que o rodeia, a fim de se compreender

os mecanismos que o oprime e que provoca sua invisibilidade ou sua visibilidade a partir de

padrões de colonização e de sua reificação, buscamos respeitá-lo como protagonista cerceado

pelo processo civilizatório de sua história, inclusive desta pesquisa, visto que ela somente foi

possível por um encontro libertador entre nós e ele.

Os termos utilizados para identificar o grupo social a que esta pesquisa se propôs a

compreender foram “pessoas em situação de rua ou situação de rua”, visto que por englobar

não apenas os que dormem na rua, mas todos os que estão nas ruas, seja mendigando,

roubando, fazendo uso de algum tipo de drogas por certo período, catando materiais

recicláveis, jogando malabares nos sinaleiros, dormindo, etc., a intenção foi destacar o caráter

processual do fenômeno. Reforçando o desejo de nosso sujeito de pesquisa quando afirmou e

se identificou como não sendo da rua, mas que “está na rua” e por compreender que a rua não

é um lugar que denota pertença, eles estão na rua por uma série de problemas pessoais e

sociais, assim estão em situação de rua, o que inclusive traz ao ser humano a possibilidade de

mudança se assim ele quiser e puder.

O Barba neste processo, sujeito imbuído de significados gerados no diálogo com o

mundo e com a cultura, principalmente pela verdade de suas experiências sensíveis, que se

dão no espaço da rua, foi escolhido por mim, assumo, porém também nos escolheu, a partir do

momento que nos acolheu de forma solidária e curiosa, com uma sede incomum de reafirmar

sua condição de ser vivente, “eu existo”, “eu existo”. Através da história de vida do Barba,

nos favoreceu uma compreensão ampla de todo o processo do estar na rua, obvia que não em

sua totalidade e isso não foi um objetivo que gostaríamos de alcançar, pelo contrário, foi a sua

individualidade que nos seduziu.

Neste sentido, a fenomenologia de Merleau-Ponty como método, nos convidou a fazer,

na pesquisa qualitativa, uma experiência onde aos poucos foram desvelando os sentidos da

existência do Barba e sua relação com a rua. Chegamos porque a fenomenologia de Merleau-

Ponty nos ajudou a abrir trilhas e nos trouxe a compreensão do corpo próprio que surge

quando deixa de ser um mero instrumento da alma e passa a ser o lugar de toda a experiência

e pensamento possível. O corpo próprio é o lugar da experiência e da singularidade, da

ambiguidade e das contradições, ser corpo próprio é inevitavelmente ser-com. Corpos que

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interagem, se encontram, compartilham e se angustiam juntos, buscando sempre ser com ele,

assim como afirma Merleau-Ponty, “ser uma consciência, ou antes, ser uma experiência, é

comunicar interiormente com o mundo, com o corpo e com os outros, ser com eles em lugar

de estar ao lado deles” (Merleau-Ponty, 2006, p. 142).

A possibilidade, contudo, de dar voz ao Barba, não me exclui desse processo de forma

alguma, pois tendo eu também um corpo inserido neste mundo e que em alguns momentos da

pesquisa se viu confundido com o corpo dele e demais coisas físicas manifestadas no mundo,

no entanto, este corpo ao qual chamo de meu é o corpo com o qual escrevo e observo os

outros corpos existentes junto ao meu, simultaneamente acabei por ter uma percepção única

deste corpo que é meu. Essa experiência perceptiva foi minha e demais ninguém, pois tenho

consciência do meu corpo através dela e do mundo, e se é verdade que o meu corpo é.

no centro do mundo, o termo não-percebido para o qual todos os objetos voltam a sua face, é verdade pela mesma razão que meu corpo é o

pivô do mundo: sei que os objetos têm várias faces porque eu poderia fazer a

volta em torno deles, e neste sentido tenho consciência do mundo por meio

de meu corpo. (Merleau-Ponty, 2006, p. 122)

Por isso, esta pesquisa é única, pois o corpo fenomenal, tanto o meu quanto do Barba,

possuiu uma particularidade própria na qual fomos simultaneamente sujeito e objeto e que se

revelou como portadores de existência de um sentido para a realidade. Assim como afirmou

Merleau-Ponty,

a experiência do corpo próprio opõe-se ao movimento reflexivo que destaca

o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que nos dá apenas o pensamento

do corpo ou o corpo em ideia, e não a experiência do corpo ou o corpo em

realidade. (Merleau-Ponty, 2006, p. 269)

Nem sempre foi possível entrevistar, utilizar o gravador ou fazer as anotações em

campo, partindo dessa dificuldade comum em pesquisas com pessoas em situação de rua,

buscamos suporte metodológico na observação participante como método. Com a observação

participante, nos possibilitou uma adequada entrada no campo de pesquisa, favorecendo que

reduzíssemos a estranheza entre a pesquisadora e o nosso companheiro de pesquisa. A

observação participante, com apoio nos princípios da fenomenologia, diferentemente quando

aliada a Antropologia, utiliza a observação participante como algo para desvendar redes mais

complexas de relacionamentos do ser humano, de forma descritiva, a Fenomenologia procura

estudar o senso comum, o cotidiano desse ser, com base em teorias compreensivas e/ou

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interpretativas preestabelecidas, que são levadas a campo para teste e comprovação ou

falseamento.

O processo na pesquisa da observação participante se deu em três etapas, segundo

orientações de RICHARDSON, 1999.

Na primeira, houve a nossa aproximação ao local onde normalmente o Barba

costumava ficar, este momento não houve muitas dificuldades, pois o mesmo já nos conhecia

desde o trabalho no Consultório de Rua do SUS. Neste momento, o Barba nos aceitou como

pesquisadora, alguém externo interessado em realizar com ele, um estudo. Segundo

RICHARDSON, essa aproximação exige paciência e honestidade, pois é condição inicial

necessária para que o percurso da pesquisa possa, de fato, ser realizada com a participação do

Barba como protagonista.

Na segunda etapa, houve o esforço da pesquisadora em obter uma visão conjunta do

campo pesquisado com o Barba. Concomitantemente, com as nossas observações da vida

cotidiana na rua, realizamos um estudo de documentos oficiais, leituras de dissertações e teses

acerca do tema escolhido, artigos e livros que nos subsidiaram na compreensão da realidade.

Os dados eram, assim que possível, registrados em um diário de campo, para não haver perda

de informações relevantes e detalhadas sobre o que fora observado.

Após esse momento, passei para terceira fase, na qual foi preciso sistematizar os

dados. A compreensão dos dados precisou informar a pesquisadora a situação real do Barba e

sobre a percepção que este possui de seu estado, principalmente de sua relação com a rua.

Para subsidiar a descrição em si, procuramos suporte metodológico na descrição densa

segundo Geertz (2008, p.4), onde devemos buscar compreender e interpretar as expressões

sociais que são “enigmáticas na sua superfície” deve-se descrever seu objeto de estudo em

suas mais diversas particularidades, levando em conta todos os pequenos fatos que cercam sua

vida social, não bem os fatos em si, mas a ação social destes fatos. Não se buscava, segundo o

próprio Geertz, leis gerais, mas sim significados/significações.

Com relação à experiência pessoal da investigação etnográfica, esta significou lançar-

se em uma aventura em que os êxitos só se vislumbram a léguas de distância. É um esforço

que nos levou a interpretar e observar o Barba baseado em nossas conversas com ele.

“O que procuramos, no sentido mais amplo do termo, que compreende muito mais do

que simplesmente falar, é conversar com eles [...]” (GEERTZ, 2008, p.10). A pesquisadora

precisou ter essa habilidade especial, de se deslocar, abandonar seu lugar de falante para

ouvinte. Abrindo espaço para o outro.

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Partimos, pois do entendimento que pessoas em situação de rua não surgiram ou se

restringiram às sociedades capitalistas, contudo, na história percebemos que este sistema tem

se mostrado extremamente eficaz na produção de miséria e exclusão. Nesse contexto inserem-

se as pessoas em situação de rua, que desde sua origem, foi diagnosticada como vício e falha

de caráter e tratada com repressão e violência pelo Estado. Essas pessoas são o retrato do

processo de exclusão no país, exclusão esta com origens econômicas, já referidas, mas

caracteriza também pela falta de pertencimento social, falta de perspectivas, dificuldade de

acesso à informação e perda de autoestima.

A condição de situação de rua transforma a vida de qualquer sujeito social, as

mudanças permeiam o seu modo de olhar o outro e a si próprio, a sociedade o tratam de uma

maneira quase não-humana. Os direitos sociais, existenciais, políticos - apesar de tê-los

formalmente – lhes são subtraídos, „elevando-os” a um estado de exceção.

A rua se tornou um campo de concentração onde a legalidade é confusa e a

flexibilidade das leis é uma constante, é a criminalização da pobreza, o estado e a sociedade

passam a tratar um problema social como se fosse criminal, negando o fato de que essas

pessoas se encontram neste estado por uma sonegação e negligência histórica do poder

público e do poder econômico, negando-lhes direitos fundamentais. A sua condição social o

reduz enquanto vida humana, favorecendo episódios de todo tipo de violência pelo estado e

sociedade, esses ataques não são repreendidos com o mesmo entusiasmo quando são

direcionados aos que não estão em situação de rua.

As pessoas em situação de rua se tornaram uma vida indigna de ser vivida, isto é, uma

vida matável, sob a apatia e permissividade social, nesta condição elas se tornam invisíveis ao

direito e a sociedade possibilitando atos de crueldade de toda espécie. As ações concretas do

estado normalmente se restringem a políticas higienistas, a final, essas pessoas se

transformaram em uma espécie de lixo que precisa ser retirado dos espaços urbanos, com o

apoio da sociedade.

Como sobreviver a este campo de concentração que a rua se tornou para essas

pessoas? Driblar todos os estigmas e barreiras sociais, inclusive destituídos da condição de

humanos, as pessoas em situação de rua precisam buscar diariamente alternativas de trabalho

para sobreviver. Buscam sem a possibilidade de escolha, nas atividades mais degradantes

possíveis, alcançarem o status de trabalhador tão importante numa sociedade capitalista.

Distanciam-se do mercado formal, onde teriam os direitos assegurados pela legislação

trabalhista e previdenciária e lhes empurram a uma linha tênue de desumanidade, lhes

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sobrando como alternativa o trabalho informal, a mendicância, além da execução de pequenos

furtos, tráfico de drogas, prostituição, etc.

Observar as táticas e modos de vida que essas pessoas criam no seu dia-a-dia, olhar a

tudo isto nos requisitou como pesquisadora uma atenção cuidadosa par não cair em

armadilhas de se tentar moralizar as maneiras de viver destes sujeitos, por vezes

desqualificando-as ou romantizando os processos de sucateamento da vida com as quais

convivem, afirmando, equivocadamente, que a rua é, por excelência, espaço de liberdade. A

população em situação de rua não vive em um mundo paralelo aos que não estão nesta

situação, pelo contrário, estes modos de vida são fabricados de forma entrelaçada a todos os

processos e relações sociais que se dão na cidade de forma geral.

Como já mencionado a cima, o fenômeno situação de rua não nasce com sistema

capitalista e muito menos no Brasil, desde a Grécia antiga já se tem notícia. No Brasil, a partir

da abolição da escravidão e da queda do Império, a incorporação da mão de obra de

imigrantes brancos europeus em detrimento dos escravos e dos nacionais livres, é apontada

como o inicio no da ocorrência de pessoas em situação de rua, visto que sem a realização de

reformas que os integrassem socialmente os ex-escravos foram abandonados nas ruas,

vivendo de forma precária como vagabundos e sem identidade, estavam livres, mas não

podiam se manter. Maus tratos, desrespeito, negação de sua condição, humilhações não

mudaram com o fim da escravidão. Por trás disso, havia um projeto de modernização

conservadora que não tocou no regime do latifúndio e exacerbou o racismo como forma de

discriminação. Barba é negro, se identifica assim, segundo fonte do Ministério da Saúde -

Departamento de Apoio à Gestão Participativa (DAGEP/SGEP/MS) apontam que estimam

que 67% da população em situação de rua no Brasil é composta por negros ou pardos.

Até o momento não vimos por parte do estado, seu interesse em criar ou implementar

políticas públicas que busquem autonomia e participação da população em situação de rua,

pelo contrário, observa-se que as existentes reproduzem o descarte social, sendo caracterizado

pelas práticas higienistas de retirada compulsoriamente dessas pessoas das ruas, penalizando-

as pela situação que se encontram. Em Cuiabá-MT, as políticas são pontuais e os serviços não

dialogam na assistência social o atendimento se resume a abordagens de rua e albergues e na

saúde, o Consultório na Rua labuta sozinho para garantir atendimentos básicos e mínimos a

essa população, no campo educacional é onde se encontra a maior lacuna, apesar de algumas

iniciativas em nível nacional onde algumas escolas abrem seus portões para atender as

pessoas em situação de rua, em Cuiabá iniciativas como esta inexistem.

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Esta pesquisa procurou respeitar o protagonismo do Barba, e descrever como ele

mesmo se vê e vê o mundo que o rodeia. Seus relatos cheios de vida, pode nos contar sua

trajetória nas ruas. Aprendemos, com ele, os mecanismos que o oprimem e provocam ora sua

invisibilidade, ora sua visibilidade. Foram dois anos, com a sensação de esgotamento já

presente, buscando compreender as inspirações que pudessem nos conduzir ao despertar a

possibilidade de tradução de uma razão vulnerável – a dele – pela qual abriga o direito de

tantos, reconhecidamente parceiros na luta de sobrevivência, de tentar compreender a origem

de tanto abandono, violência, descaso para com a população em situação de rua, da qual é

parte.

Percebemos pelos relatos do Barba, que as pessoas em situação de rua, são vistos

quando teimam em sair de sua invisibilidade, quando provocam certo incômodo a sociedade

em geral. Então, é frequente se ter notícia nas diversas mídias, de uma pessoa em situação de

rua, quando ela comete algum crime ou quando se noticia sua morte, no último caso precisa

ter sido de uma forma que comova, do contrário, será mais uma morte que não mereceu

audiência. De outra forma, sempre que se opta pelo desaparecimento de moradores e ou

pessoa em condição de rua, liga-se o corpo à droga posta junta, como forma de “justificar” a

necessidade de sua retirada da convivência, pelo risco que representa à “sociedade”.

A questão a ser compreendida é desafiadora, pois, nos faz entender melhor como

funcionam esses mecanismos em nós, na sociedade como um todo, que favorecem a nossa

quase completa indiferença a essa população, ao ponto de não nos incomodar com o seu

abandono social e, ou a sua execução impiedosa. Acreditando que uma das possibilidades de

resposta, seria uma forma de banalidade do mal, no sentido descrito por Hannah Arendt, de

legitimar a não despreocupação em intervir nesta situação, evidencia a anuência implícita de

um desejo de abreviação da existência dessas pessoas. Reforça a tese de que são vidas

indignas de ser vivida, negando-lhes a humanidade.

Apesar do quadro desanimador, passar esse tempo com o Barba, nos alimentou de esperança

de que este trabalho não foi em vão. As histórias que foram relatadas falmm mais que da vida

nas ruas, de violências, de episódios tristes; e, que elas falem também do inusitado mundo

daqueles que mesmo que considerados mortos teimam em continuar vivos, falem da vida de

sobreviventes, falem da vida repleta de solidariedade e que elas possam nos ajudar a resgatar

a nós próprios desse fosso perverso de maldade contra o outro, que é o que nos faz viver. Nos

reencontremos com nossas origens: a RELAÇÃO com todos outros e outras: “Nós estamos

misturados com o mundo e com os outros numa confusão inextricável” (Merleau-Ponty,

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2006, p. 518). Há uma tarefa de vida toda, de encontrarmos os sentidos lá onde eles se

refugiam, LIBERTANDO-NOS da nossa maldosa e perversa civilização.

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