Upload
vunga
View
228
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
Departamento de História
Programa de Pós-Graduação em História
IZAAC ERDER SILVA SOARES
UM NARRADOR DE SI E DA GUERRA:
TESTEMUNHOS DE UM PRAÇA DA FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA
Mariana
2014
IZAAC ERDER SILVA SOARES
UM NARRADOR DE SI E DA GUERRA:
TESTEMUNHOS DE UM PRAÇA DA FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História do Instituto de Ciências
Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro
Preto, como requisito à obtenção do grau de Mestre em
História.
Área de concentração: Poder e Linguagens.
Linha de pesquisa: Ideias, Linguagens e Historiografia.
Orientador: Prof. Dr. Marcelo Santos de Abreu
(UFOP).
Mariana
Instituto de Ciências Humanas e Sociais / UFOP
2014
S676n Soares, Izaac Erder Silva.
Um narrador de si e da guerra [manuscrito]: testemunhos de um praça da força expedicionária brasileira / Izaac Erder Silva Soares. - 2014.
227f. Fotografias.
Orientador: Prof. Dr. Marcelo Santos de Abreu.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro
Preto. Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Departamento
de Historia. Programa de Pós-graduação em História.
Área de Concentração: Poder e Linguagens.
1. Forças armadas - Brasil - Teses. 2. Guerra Mundial,
1939-1945 - Teses. 3. Brasil - História - Força Expedicionária Brasileira - Teses. I. Abreu, Marcelo Santos de. II. Universidade Federal de Ouro Preto. III. Titulo.
CDU: 94(81).082/.083
Catalogação: www.sisbin.ufop.br
Para os Praças da Força Expedicionária
Brasileira, os que voltaram para o Brasil e
também aqueles que ficaram nos campos de
batalha da Itália.
Agradecimentos
Agradecer é sempre uma tarefa difícil e, às vezes, esquecemo-nos de demonstrar
gratidão àqueles que de alguma forma contribuíram para nossas conquistas. Nesse sentido,
começo agradecendo a Deus, pelo mais importante, que é o dom da vida e também a todos
aqueles que de alguma maneira contribuíram para a realização desse trabalho e que, por
esquecimento, não são citados nessas linhas. A todos esses, o meu mais sincero muito
obrigado!
Sou muito grato ao professor Marcelo Santos de Abreu, que gentilmente assumiu a
orientação desse trabalho e que, durante todo o percurso do mestrado, acompanhou-o e fez
relevantes considerações e contribuições para o desenvolvimento do mesmo. Tendo
participado do exame de qualificação e em vários momentos desse trabalho, sempre soube
conduzir o desenvolvimento desse estudo com calma e sabedoria. Sinceramente: muito
obrigado!
Também sou muito grato ao professor Mateus Henrique de Faria Pereira, que
acreditou nessa pesquisa e permitiu que ela fosse realizada, que orientou grande parte desse
trabalho e muito contribuiu para seu desenvolvimento. Ao professor Alexandre Sá Avelar por
suas importantes considerações durante o exame de qualificação e ao professor Jefferson José
Queler que também deu contribuições significativas para essa pesquisa.
Agradeço também aos meus familiares, a todos os que ajudaram e deram apoio
fundamental para que eu pudesse concluir essa etapa de minha vida: aos meus pais, pelo amor
e paciência, ao meu irmão, às minhas irmãs, à minha afilhada e ao meu sobrinho, tios, tias,
primos e primas (especialmente a Angélica Oliveira). A minha madrinha Sandra (tia Léia),
pelas valiosas dicas sobre o universo dos saberes, a quem eu devo minha inclinação
acadêmica e muito daquilo que sou hoje, ao meu avô Ari Soares de Oliveira pelas grandes
lições, pela humildade e por seu humanismo, ensinados, sobretudo através do exemplo. Ao
meu avô Jonas José da Silva, que me mostra cotidianamente o valor e a importância do que
representa a memória para nossas vidas.
Sou grato a todos os professores do ICHS da UFOP: Marco Antônio da Silveira,
Sérgio da Mata, Valdei Lopes de Araujo e a professora Virgínia A. de Castro Buarque.
Agradeço também a todos os colegas da turma do mestrado, especialmente a Camilla Cristina
Silva, Riler Barbosa Scarpati e Ana Carolina Arêdes, pela amizade, confiança, discussões e
pelo companheirismo.
A todos os amigos republicanos, moradores das repúblicas Everest e Cabaré, pelos
momentos tristes e felizes que compartilhamos, aos amigos Fábio (Binho), Fabrício, Lucas
Proença, Mateus, Diego, Rafael Veloso, Marlon Bento, Jorge Lelis, Samuel, Lucas,
Fernandinha, Loli, entre tantos outros.
Aos colegas da turma de História do ano de 2009 e aos professores da FUNEDI-
UEMG que, de alguma forma, contribuíram para esse estudo, especialmente a professora e
amiga Flávia Lemos Mota de Azevedo, que tanto me orientou e incentivou na criação do pré-
projeto que foi a base desse trabalho; ao professor e amigo Guilherme Guimarães Leonel,
pelas muitas ajudas e orientações durante a faculdade e também durante o percurso do
mestrado; aos professores João Ricardo Pires e Leandro Pena Catão, pela amizade e
companheirismo, e todos outros que, de alguma forma, contribuíram para minha formação
durante a graduação e que direta ou indiretamente também são responsáveis pela continuidade
dos estudos e a conclusão do mestrado na UFOP.
Aos “pracinhas” e seus familiares que em muito colaboraram com a pesquisa,
especialmente aos veteranos da Força Expedicionária: João Okada, Donaldo Ronaldo
Vespúcio, Aristides Coelho e, sobretudo, ao veterano Osmar Gomes de Oliveira e sua filha
Tânia, pelos quais agradeço pela imensa confiança investida em mim, quando me confiaram
os documentos desse veterano, sem os quais não teria sido possível a realização desse estudo.
Aos arquivos militares nas cidades do Rio de Janeiro e São João Del Rey, sobretudo a
pessoa do tenente Nascimento do Arquivo do 11º RI, que se prontificou em ajudar e facilitar a
pesquisa sobre os registros militares do veterano Osmar Gomes Oliveira.
A todo o pessoal do Centro de Memória da FUNEDI, especialmente as amigas Denise
Brito e Lúcia Arruda e a professora, amiga e orientadora Batistina Corgozinho (in memorian).
Ao Arquivo Público Municipal de Divinópolis, pela ajuda, apoio e paciência, sobretudo aos
amigos Marquinho, Faber Clayton e Cláudio.
A todos os amigos, com os quais não pude estar e que souberam entender esse
momento de construção de conhecimento, de solidão e autoprivação. Especialmente a
Francisco Avelino (Xicão), Maycol Alves, Leandro Carmo, Pedro Aleixo, Alysson Santos,
entre outros.
Por último, e tão importante, agradeço a minha noiva, Thais Carolina da Silva Maciel,
por todo o carinho e dedicação, por tudo suportar com sabedoria e amor, por toda paciência e
força a mim dedicadas durante a escrita e a reta final desse trabalho. A quem dedico todo meu
amor, muito obrigado por tudo!
O esquecimento é a morte de tudo quanto vive
no coração.
Jean-Baptiste Alphonse Karr
RESUMO
A presente dissertação propõe um estudo acerca da participação dos praças brasileiros da
Força Expedicionária Brasileira na Segunda Grande Guerra Mundial, a partir dos testemunhos
do terceiro-sargento brasileiro Osmar Gomes de Oliveira. Não apenas como relato
autobiográfico, mas no sentido da constituição e organização de um testemunho que apresenta
sentidos e significados desse veterano, sobre si mesmo e também sobre a participação
brasileira na guerra. Para esse sujeito, a criação e a organização de testemunhos sobre o
passado se apresentam, sobretudo, com a constituição de um acervo documental, composto
por coleções de fotografias comentadas, cartas, postais, diário entre outros, que, de alguma
maneira, ajudam a compreender como esse veterano representa e dá sentido a sua trajetória
durante o percurso da guerra. Contudo, não se pretende tratar somente do caráter singular e
subjetivo desses testemunhos, mas também de suas implicações e desdobramentos no meio
social: seja nas relações estabelecidas com testemunhos de outros veteranos da FEB, nos
processos de formalização histórica e também nos embates para a constituição de memória
pública acerca dos veteranos da FEB. Para tanto, se apresentam outros testemunhos de
veteranos da FEB, não como contraposição aos testemunhos de Osmar Gomes de Oliveira,
mas no sentido de compreender como as relações entre essa pluralidade de discursos
testemunhais se estabelecem no meio social, sempre num campo de tensões e conformidades
que, minimamente, buscam estabelecer uma memória pública dos veteranos da ANVFEB.
PALAVRAS-CHAVE: Testemunho; Força Expedicionária Brasileira; Segunda Guerra
Mundial; Memória.
ABSTRACT
This dissertation proposes a study about the participation of soldiers of Expeditionary Force
Brazilian in the Second World War, from the testimonies of the third sergeant Brazilian
Osmar Gomes de Oliveira. Not only as autobiographical report, but in the sense of the
constitution and organization of a witness who has senses and meanings of this veteran, about
himself and also on the Brazilian participation in the war. For this subject, the creation and
organization of testimonies about the past shows, above all, with the constitution of a
documentary collection, composed of collections of photos commented, letters, postcards,
daily among others, that in some way help to understand how this veteran represents and
gives meaning to its trajectory during the course of the war. But not if you want to treat only
the particular character and subjective of these reports, but also of its implications and
consequences in the social environment: is the relationships established with testimonials
from other veterans of EFB, in processes of formalisation historic and also in battles for the
constitution of public memory about veterans of EFB. For both if present other testimonies of
veterans of EFB, not as opposed to testimony of Osmar Gomes de Oliveira, but in order to
understand how the relationship between this plurality of discourses are established in the
social environment, always a space of tensions and compliances that seek to establish a public
memory of the veterans of ANVFEB.
KEYWORDS: Witness; Expeditionary Force Brazilian; Second World War; Memory.
LISTA DE ABREVIATURAS
EUA – Estados Unidos da América
OCCIA – Gabinete de Coordenação de Assuntos Interamericanos (Office of the Coordinatior
of Inter-American Affairs)
UNE – União Nacional dos Estudantes
FEB – Força Expedicionária Brasileira
DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda
SEMTRA – Serviço especial de mobilização de Trabalhadores para a Amazônia
CLT – Consolidação das Leis do Trabalho
DIE – Divisão de Infantaria Expedicionária
EFOM – Estrada de Ferro Oeste de Minas
RMV – Rede Mineira de Viação
DOP – Departamento Oficial de Propaganda
ANVFEB – Associação Nacional dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira
TEPT – Transtorno de Estresse Pós-Traumático
SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................................................14
Capítulo 1 – O Brasil na Segunda Guerra Mundial..................................................................19
1.1 – A entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial............................................................19
1.1.1 – As aspirações da ditadura do Estado Novo e o jogo duplo internacional................19
1.1.2 – Relações e influências alemãs e estadunidenses no Brasil.......................................24
1.2 – A participação brasileira na conflagração mundial..........................................................30
1.2.1 – A campanha submarina do eixo no litoral brasileiro e o reconhecimento do estado
de beligerância com a Alemanha e a Itália...........................................................................30
1.2.2 – A participação brasileira na defesa continental: a guerra anti-submarina contra o
eixo e o Teatro de Operações do Nordeste...........................................................................40
1.2.3 – Mobilização interna e esforço de guerra brasileiro..................................................45
1.3 – A FEB..............................................................................................................................56
1.3.1 – Criação da FEB........................................................................................................56
1.3.2 – Concentração e treinamento da FEB........................................................................62
1.3.3 – A FEB no Teatro de Operações do Mediterrâneo....................................................67
1.3.4 – Desmobilização da FEB e os veteranos no pós-guerra............................................71
Capítulo 2 – A guerra segundo um praça da FEB: narrar, guardar e escrever sobre si e sobre a
guerra........................................................................................................................................74
2.1 – Entre a história e a biografia............................................................................................74
2.1.1 – Algumas considerações preliminares.......................................................................74
2.1.2 – Entre lembranças e a história....................................................................................75
2.2 – Um velho e suas coleções: entre lembranças e esquecimentos........................................81
2.2.1 – O acervo entre lembranças e esquecimentos...........................................................81
2.2.2 – Narrativas organizadas: as lembranças nos espaço público e privado.....................88
2.2.3 – A constituição do acervo: vestígios do passado, a presença e algo ausente...........98
2.3 – Uma trajetória entre lembrança e acervos......................................................................100
2.3.1 – A fazenda e a família..............................................................................................101
2.3.2 – Na Itália distante.....................................................................................................117
2.3.3 – A Segunda Guerra de Osmar Gomes.....................................................................122
2.3.4 – O fim da guerra na Itália e o expedicionário viajante............................................138
2.3.5 – De volta ao lar........................................................................................................140
Capítulo 3 – Tensões e conformidades nas memórias sobre a FEB e a participação brasileira
na Segunda Guerra Mundial...................................................................................................144
3.1 – Memórias e testemunhos: disputas e conformidades no lembrar da guerra pelos
veteranos da ANVIFEB de Divinópolis – MG.......................................................................144
3.1.1 – Memórias particulares: entre o social e o particular...............................................144
3.1.2 – ANVFEB de Divinópolis: um lugar do “nós”........................................................151
3.2 – Tensões e conformidades nos processos de formalização das narrativas......................158
3.2.1 – As guerras plurais..................................................................................................162
3.3 – Memórias públicas dos veteranos da ANVFEB – Seção Divinópolis MG: entre a
lembrança e o esquecimento...................................................................................................183
3.3.1 – Múltiplos discursos e a construção de memórias públicas sobre os praças FEB...183
3.3.2 – A cidade de Divinópolis e seus veteranos..............................................................188
3.3.3 – Lugares de memórias dos praças da FEB/ANVFEB na cidade de Divinópolis.....192
Conclusão................................................................................................................................195
Referências..............................................................................................................................199
Anexos....................................................................................................................................214
14
INTRODUÇÃO
As duas Guerras Mundiais, na primeira metade do século XX, levaram milhões de
homens comuns a lutarem nas frentes de batalha por todo o mundo, expondo-os ao cotidiano
extremo da guerra moderna: a destruição, a miséria, a violência, a degradação física e a
permanente possibilidade de morte. Esses homens que lutaram nas duas Grandes Guerras
Mundiais, em sua maioria, não eram militares profissionais, mas sim oriundos da própria
sociedade civil, que foram convocados ou mesmo se voluntariaram para ingressar nas forças
armadas de seus respectivos países.
Esses conflitos foram vivenciados de diferentes formas, seja pelas populações civis,
pelos governos beligerantes, pelas lideranças militares, pelo oficialato ou pelos soldados. De
forma extrema, cada sujeito teve um contato muito particular com a guerra, e assim suas
representações sobre o conflito assumem formas diversificadas. Os soldados, que
efetivamente tiveram um contato mais visceral com o conflito, construíram representações
muito particulares sobre a guerra, e esses geralmente destoam das versões oficiais produzidas
pelos governos ou por oficiais e lideranças militares. Não que essas representações constituam
uma espécie de oposição aos testemunhos desses últimos, mas diferem especialmente em
detrimento do local social de onde cada um constrói seu testemunho.
No contexto da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial (1942-1945), as
lideranças nacionais enviaram um corpo expedicionário composto por mais de 25 mil
brasileiros para atuar nas frentes de batalha na Itália, dentre esses: oficiais, enfermeiras,
médicos, aviadores e toda uma diversidade de pessoal que compunha a FEB. Contudo, a
maior parte dos efetivos da FEB foi constituída por civis, vindos de várias regiões do Brasil, e
que, em sua maioria, não tinha qualquer vínculo anterior com as forças armadas nacionais.
Esses sujeitos experimentaram trajetórias muito distintas durante o conflito,
construindo testemunhos com sentido, significado e representações muito particulares, que
partem, sobretudo, de suas perspectivas pessoais sobre sua atuação nas frentes de batalha da
Itália. Com isso, os testemunhos constituem possibilidades subjetivas de representação tanto
da experiência particular de cada um desses narradores quanto da própria participação
brasileira na Segunda Guerra Mundial.
Neste sentido, esse estudo se preocupa muito mais com as possibilidades de sentidos e
significados atribuídos pelas testemunhas ao passado do que as formalizações e construções
historiográficas puramente. Não é o caso de negar essas formalizações, que são legítimas e
15
necessárias, mas de dizer que elas não conseguem abarcar toda a pluralidade de sentidos e
significados sobre um dado passado.
Assim, os testemunhos são tomados também como possibilidades de ampliação dos
discursos e das versões sobre o passado, bem como das atribuições singulares e subjetivas de
sentido e significado que as testemunhas constroem sobre um determinado passado. Passado
esse entendido sempre como possibilidades de representação, de testemunhos polissêmicos,
subjetivos e potencialmente sociais.
Deste modo, o estudo dos testemunhos de um veterano da FEB se constitui como
possibilidade de análise das atribuições de sentido e significado de um sujeito ao seu passado
e, consequentemente, também da participação brasileira na Segunda Grande Guerra, além das
possibilidades e potencialidades sociais desses testemunhos.
Osmar Gomes de Oliveira nasceu no ano de 1921, na Fazenda do Rio do Peixe,
município de Rezende Costa, no Estado de Minas Gerais. Filho de Maria José de Oliveira e
Aristides Batista Gomes. Foi convocado para integrar as fileiras da FEB no ano de 1942,
incorporado ao 11º Regimento de Infantaria do Exército Brasileiro na cidade de São João Del
Rey. Serviu no Teatro de Operações da Itália durante a Segunda Guerra Mundial entre 6 de
outubro de 1944 e 4 de setembro de 1945. Quando retornou para o Brasil, se fixou na cidade
de Divinópolis, também no Estado de Minas Gerais.
O veterano da FEB, terceiro-sargento Osmar Gomes de Oliveira se associou à 3ª seção
regional da Associação Nacional dos Veteranos da FEB no Estado de Minas Gerais,
localizada na cidade de Divinópolis, onde constituiu família e deu continuidade a sua vida.
Durante vários anos, participou da seção regional da ANVFEB na cidade de Divinópolis, de
inúmeras reuniões e encontros com outros veteranos da FEB, que também participaram da
Segunda Guerra Mundial. Neste sentido, é importante ressaltar as potencialidades de relações
estabelecidas entre esses sujeitos no espaço da seção regional ANVFEB.
Dentre os motivos que nos levaram à eleição desse personagem para o estudo aqui
apresentado, podemos destacar a disponibilidade, volume e qualidade de seu acervo particular
sobre a guerra, a existência de duas entrevistas bastante substanciais realizadas com esse
sujeito e, ainda, a especificidade e singularidade desse personagem, que nos parece um caso
desviante daquilo que se convencionou sobre os praças da FEB em grande parte da
historiografia.
É curioso notar a preocupação desse sujeito em preservar suas representações
construídas sobre seu passado, em constituir uma narrativa organizada sobre sua trajetória na
16
guerra através de seu acervo. Neste sentido, devemos levar em conta a pluralidade de outras
vozes contidas nesse acervo, como, por exemplo, nas cartas recebidas na Itália ou nas
mensagens registradas numa caderneta de capa vermelha. Isso é considerar que esse sujeito
pode ser entendido num contexto social, inserido em redes ou círculos de sociabilidades, tais
como sua família, seus amigos entre outros. Assim, esse estudo se constitui, sobretudo, como
uma tentativa de leitura de duas entrevistas e do acervo privado desse veterano, além do
entrecruzamento dessas fontes com outras entrevistas realizadas com veteranos ligados à
seção regional da ANVFEB na cidade de Divinópolis.
Desta forma, a indagação central que orienta esse estudo passa pela questão de como o
veterano Osmar Gomes de Oliveira, terceiro-sargento da FEB, representa, através de seus
testemunhos, o seu passado na guerra. Evidentemente, essa questão nos leva a outras, tais
como: de que forma esse lembrar e testemunhar sobre si também implica em testemunhar
sobre outros? Isso é, de que maneira os testemunhos desse sujeito são sociais e de que forma
estes se relacionam com testemunhos de outros veteranos da FEB? Neste sentido, podemos
questionar quais seriam as implicações sociais do testemunho desse personagem? De forma
mais geral, pretende-se responder como esse sujeito se insere, através de seus testemunhos e
suas formas singulares de significação e valoração do passado, no curso da história?
Por consequência, esses questionamentos nos levam a outra série de perguntas, como,
por exemplo: os motivos que levaram esse sujeito à constituição desse acervo-testemunho ou
o que esse sujeito deseja comunicar com esses testemunhos? Neste sentido, os acervos e as
entrevistas desse veterano são tomados como testemunhos sobre ele mesmo e sobre a guerra,
uma construção de um discurso subjetiva que revela representações sobre um determinado
passado.
Para tentar responder a tais perguntas, esse trabalho foi estruturado em três capítulos,
que, por sua vez, estão divididos em algumas seções e subseções. No primeiro capítulo, O
Brasil na Segunda Guerra Mundial, almejamos apresentar uma visão geral do que se
convencionou historiograficamente como a participação brasileira na Segunda Grande Guerra
Mundial. Assim, pretendemos situar o leitor acerca dos eventos, em nível macro da amplitude
da participação brasileira nesse conflito mundial.
Neste sentido, no primeiro capítulo pretendemos apresentar uma síntese do
envolvimento e da atuação nacional na Segunda Guerra. Primeiramente, tentamos
compreender como se deu o envolvimento brasileiro na conjuntura internacional no que
antecede a entrada brasileira na guerra (1939-1942), como foram firmadas as alianças
17
políticas e econômicas entre o Brasil e os países beligerantes e ainda de que forma o governo
brasileiro acabou por se posicionar junto a um dos lados beligerantes. Em um segundo
momento, pretende-se apresentar como se deu a entrada do Brasil na guerra, assim como a
extensão da participação brasileira no conflito, ou seja, de que forma o Brasil atuou na guerra,
e quais foram suas principais contribuições junto ao esforço de guerra aliado. Por último,
trataremos da questão da criação de um corpo expedicionário nacional que foi enviado para
lutar ao lado dos aliados nas frentes de batalha do norte italiano, tentando compreender os
motivadores da criação dessa força, a extensão de sua ação em batalha e os desdobramentos
políticos de sua existência.
Vislumbramos, a partir disso, informar o leitor acerca de uma espécie de memória
oficial construída sobre a participação brasileira neste conflito. Entretanto, é importante notar
que essa memória oficial ou formalização histórica acerca da guerra na maioria das vezes
contrasta com as memórias individuais.
No segundo capítulo, A guerra segundo um praça da FEB: narrar, guardar e escrever
sobre si e sobre a guerra, pretende-se analisar, mais especificamente, a trajetória do Terceiro
Sargento Osmar Gomes Oliveira durante a Segunda Guerra através de todo um conjunto
documental que versa sobre sua trajetória, incluindo seu acervo privado, entrevistas e
documentação oficial. Isso é, uma possibilidade de atribuição de sentido e significado sobre a
guerra e sobre o próprio passado através dos testemunhos.
Neste sentido, esse segundo capítulo tenta estabelecer uma discussão teórica sobre a
questão da construção da noção biografia, assim como analisar as possibilidades de
representação e inserção desse sujeito na história através desse acervo. Trata-se de uma
tentativa de análise e leitura desse acervo, uma confrontação teórica dessas coleções, que tem
como pretensão compreender os motivos que levaram esse sujeito a guardar e organizar essas
coleções, assim como esse testemunho assume, mesmo para esse sujeito, uma espécie de
caráter de testemunho – um acervo com sentido, significado e que, de alguma forma,
representa seu passado. Além disso, se faz importante notar como esse testemunho se
estabelece entre o espaço privado e público, expondo os desdobramentos sociais e toda uma
pluralidade de vozes e círculos sociais com que esse sujeito estabeleceu relações e expôs
através dessa construção.
Tenta-se compreender de que forma o veterano Osmar Gomes opera esse reconstrução
do seu passado, isto é: as formas com que ele atribui sentidos, significados e reconstrói seu
passado e a história através de seus testemunhos.
18
No terceiro capítulo, Tensões e conformidades nas memórias sobre a Força
Expedicionária Brasileira e a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial,
pretendemos verificar a questão do caráter social dos testemunhos, isso é, buscar compreender
como os testemunhos de diversos veteranos da FEB são compartilhados e se relacionam com
outros testemunhos e com a sociedade. É admitir que os discursos produzidos por um
determinado sujeito, no caso desse estudo, pelo veterano Osmar Gomes de Oliveira,
estabelecem relações com outros discursos no meio público, ou seja, suas memórias são
organizadas, produzidas e compartilhadas com outros indivíduos, em relações intersubjetivas.
É assumir que as memórias são individuais, mas que elas são postas a público, influenciam e
sofrem influência e podem ser apropriadas ou refutadas por sujeitos e grupos específicos.
Consideramos que as memórias são produções individuais e que, às vezes, passam por
processos de organização e veiculação social, o que é diferente de assumir que a sociedade
como um todo constitui uma memória coletiva de forma natural. Isso é, assumir que a
memória é sempre um ato individual, mas, contudo, os testemunhos se estabeleçam em meios
ou círculos sociais onde esse indivíduo vive e desenvolve suas relações sociais.
Interessa-nos, nesse terceiro capítulo, compreender como os testemunhos de alguns
dos veteranos da seção regional da ANVFEB na cidade de Divinópolis se relacionam entre
eles mesmos e no contexto social da cidade de Divinópolis, Minas Gerais. Nesse sentido,
compreendemos os espaços sociais, onde esses testemunhos são postos a público, como locais
de encontro de diversos e diferentes discursos, que se relacionam entre disputas e
conformidades.
Neste sentido, pressupomos que a seção regional da ANVFEB – Divinópolis talvez
possa constituir para esses sujeitos um lugar/espaço do grupo, entendido não como uma
constituição natural, mas um espaço em permanente construção e reconstrução, isso é, onde as
memórias individuais se encontram e produzem discursos públicos, através da
(tensão/confronto) produção de generalizações, do estabelecimento de valores e sentidos que
pretensamente pertence à totalidade desse grupo.
Assim, é notório perceber a potencialidade social desses testemunhos e a forma como
o passado se torna um fator aglutinador para esses veteranos, que se reúnem com pretensões e
anseios sociais, como a afirmação de pertença a um grupo (ANVFEB), reivindicação de sua
participação na história, reconhecimento e prestígio social, além de ganhos políticos
estratégicos, entre outros.
19
CAPÍTULO 1 – O BRASIL NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
1.1 – A entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial
1.1.1 – As aspirações da ditadura do Estado Novo e o jogo duplo internacional
Talvez, na história do século XX, nenhum outro evento teve caráter tão transformador
quanto a Segunda Grande Guerra Mundial. Foi o maior conflito do contemporâneo, e se
configurou em um enfrentamento bélico entre quase todas as nações do mundo, tendo como
precedente direto a Primeira Grande Guerra Mundial. Cidades foram destruídas, populações
exterminadas, pessoas de todas as nações e localidades foram afetadas de algum modo pelo
conflito1. A cadeia de destruição e terror produzida pela Segunda Guerra extinguiu milhões de
vidas. Desnudou o potencial destrutivo humano. Sem dúvidas, foi o evento mais traumático e
influente do século XX2.
Quase todas as nações do mundo estiveram diretamente ou indiretamente envolvidas
no conflito, os sistemas de alianças e pactos internacionais acabaram por levar os Estados a se
posicionar de um lado ou de outro na conflagração bélica3. O Brasil também esteve envolvido
nessa complexa trama de alianças durante a Segunda Guerra Mundial. Depois de um período
inicial de neutralidade, o governo brasileiro acabou por se posicionar ao lado dos aliados, e
posteriormente, com os ataques de submarinos do eixo à Marinha Mercante Nacional, o Brasil
se viu envolvido diretamente no conflito4.
Num primeiro momento, buscamos compreender como se deu o envolvimento
brasileiro na Segunda Grande Guerra Mundial. Logo, nos interessa o contexto precedente à
entrada efetiva do Brasil na Segunda Guerra. Desta forma, pretendemos compreender as
razões que levaram o governo brasileiro a se posicionar de determinada forma diante a
1 TOTA, Pedro. Segunda Guerra Mundial. In: MAGNOLI, Demétrio (Org.). História das guerras. 3 ed. São
Paulo: Contexto, 2006. p. 354-389. 2 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: O breve século XX: 1914 - 1991. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. pp.
113-143. 3 Ibidem. pp. 113-143.
4 O período da neutralidade oficial brasileira na Segunda Grande Guerra vai do dia 5 de setembro de 1939, com a
publicação do decreto-lei nº 4.623, e se estende até a declaração de rompimento das relações econômicas e
internacionais com as nações do eixo em janeiro de 1942. Ver: GARCIA, Eugênio Vargas (Org.). Diplomacia
brasileira e política externa: documentos históricos 1493-2008. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. pp. 426-444.
20
conflagração mundial e como tal posicionamento levou o Brasil a reconhecer o estado de
beligerância com a Alemanha e a Itália em agosto 19425.
A década de 1930 foi um dos momentos mais agitados e transformadores do século
XX. A grave crise econômica mundial que se instalou depois do crash da bolsa de Nova
Iorque, em 1929, as tensões políticas e econômicas que culminaram no declínio dos regimes
liberal-democráticos e no fortalecimento e ascensão dos regimes totalitários ao redor do
mundo, e ainda os vários conflitos bélicos que ruíram o frágil equilíbrio mundial criado no
pós-Primeira Guerra com a Liga das Nações, prenunciavam a violenta conflagração mundial
que se aproximava6.
Como quase todas as nações, o Brasil também foi afetado por essas mudanças políticas
e pelas crises econômicas na cena internacional. A política brasileira no final da década de
1920 foi marcada pelo declínio e descrença nas políticas de cunho liberal-democrático e pela
ascensão de políticas autoritárias, nacionalistas e centralizadoras. No Brasil, em novembro de
1937, foi dado um golpe que instaurou a ditadura do Estado Novo, permitindo a manutenção
do então presidente Getúlio Vargas no poder7.
O Estado Novo foi um regime com perceptíveis inspirações nos modelos autoritários
de extrema direita europeus, como o fascismo italiano, o nazismo alemão, o estado novo
português, entre outros. No entanto, o governo brasileiro não pode ser compreendido como
uma mera cópia desses regimes europeus ou tampouco apenas inspirado em suas ideologias.
A ditadura do Estado Novo brasileiro foi um regime extremamente complexo e paradoxal.
Apesar dos traços autoritários, das políticas ditatoriais e de todas as suas ações
antidemocráticas e antiliberais, percebe-se, por parte da ditadura do Estado Novo, um discurso
fazendo com que o governo fosse percebido como “defensor” dos ideais democráticos e
republicanos8. Essa ambiguidade do Estado Novo brasileiro é importante para se compreender
o envolvimento brasileiro na Segunda Guerra Mundial. Numa circular do Ministério das
Relações Exteriores, enviada às nações estrangeiras em novembro de 1937, que trata das
“mudanças” que levaram à implementação do Estado Novo, observa-se esse discurso:
5 Ministério das Relações Exteriores. O Brasil e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1944, v. II, p. 189-190 In: Ibidem. p. 450. 6 PARKER, Selwyn. The great crash: how the stock market crash of 1929 plunged the world into depression.
London: Brown Book Group, 2008. 7 Getúlio Vargas chegou ao poder em outubro de 1930, depois de um golpe de estado que depôs o presidente
Washington Luís, e se manteve à frente da nação até 1945, quando foi deposto. Ver: PANDOLFI, Dulce (Org.).
Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1999. 8 Alguns intelectuais defenderam essa perspectiva, como, por exemplo, Oliveira Viana, que classifica o Estado
Novo brasileiro como uma “democracia autoritária”. Ver: VIANA, Oliveira. O idealismo da Constituição. São
Paulo: Cia. Editora Nacional, 1939, 2ª ed.
21
A transformação política por que acaba de passar o Brasil em nada altera a sua
tradicional política internacional. Continuamos fiéis como sempre aos ideais
democráticos, pacifistas e pan-americanistas para a realização dos quais estamos
agora com meio de ação mais fortes, rápidos e decisivos (...) 9
O Estado Novo foi marcado por contradições, uma ditadura que se rogava democrática
ou defensora dos direitos democráticos e fazia claras menções ao pacifismo e ao pan-
americanismo. Ainda nesse mesmo documento se pode notar um esforço no discurso do
governo em se mostrar afastado dos regimes de extrema direita europeus:
A nossa carta política não obedece aos ditames de nenhuma ideologia exótica. (...)
Não nos seduziram conselhos, inspirações ou sugestões que nunca existiram nem o
nosso patriotismo admitiria de qualquer líder de grande fama mundial. Não
cogitamos tampouco por nós mesmos de imitar exemplos de fora.10
Apesar dessa retórica, na qual o governo se apresentava com distância dos regimes
europeus de extrema direita, as similitudes e simpatias com esses regimes eram várias11
. O
governo brasileiro se firmou com traços autoritários e ditatoriais: o fechamento do Congresso
Nacional, a concentração dos poderes Executivo e Legislativo nas mãos do presidente, o fim
do liberalismo econômico, a pena de morte, o fim do direito de greve aos trabalhadores, a
extinção dos partidos políticos, a segregação e assimilação de elementos estrangeiros, entre
outras tantas medidas12
. Contudo, ainda assim, não se pode tentar entender as dinâmicas
políticas do Estado Novo brasileiro apenas pelas simpatias e similitudes que alguns de seus os
membros e lideranças nutriam pelos regimes europeus13
.
Deve-se considerar que a ditadura brasileira teve características e objetivos próprios.
De modo geral, podemos afirmar que, apesar das simpatias e mesmo da proximidade do
governo com os regimes de extrema direita na Europa, as políticas do Estado Novo foram
9 Relatório apresentado ao dr. Getúlio Vargas, presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, pelo dr.
Mário de Pimentel Brandão, ministro de Estado das Relações Exteriores, ano de 1937, Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1939, Anexo C, p. 310-311. In: GARCIA, Eugênio Vargas (org.). Op. Cit., 2008. p. 420. 10
Relatório apresentado ao dr. Getúlio Vargas, presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, pelo dr.
Mário de Pimentel Brandão, ministro de Estado das Relações Exteriores, ano de 1937, Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1939, Anexo C, p.310-311. In: GARCIA, Eugênio Vargas (org.). Op. Cit., 2008. p. 420. 11
Podemos citar como exemplo da influência dos regimes de extrema direita no governo brasileiro: a própria
Constituição nacional de 1937. Mais sobre esse assunto, ver: MOURA, G. de Almeida. O Fascismo italiano e o
Estado Novo brasileiro. Ed. Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1940. 12
LOPEZ, Adriana; MOTA, Carlos Guilherme. História do Brasil: uma interpretação. Editora Senac: São
Paulo, 2008. pp. 684-713. 13
Para citar apenas alguns: o chefe da polícia política Filinto Müller, o ministro da Justiça Francisco Campos, os
oficiais Góis Monteiro e Eurico Gaspar Dutra.
22
orientadas de forma bastante autônoma, de modo a concretizar objetivos próprios do governo
brasileiro, tidos, neste momento, como essenciais para o desenvolvimento nacional.
O Estado Novo almejava objetivos muito específicos: a modernização e
reaparelhamento das forças armadas nacionais e o financiamento de um complexo siderúrgico
nacional. Contudo, esses objetivos não poderiam ser alcançados autonomamente pelo Estado
Brasileiro, tanto pela carência de capital interno para investimento quanto pelo atraso
tecnológico e pela falta de mão de obra qualificada para a execução desses projetos. Dessa
forma, estes objetivos só poderiam ser alcançados através de financiamento com capital
estrangeiro.
Na proclamação proferida pelo presidente Vargas em 10 de novembro de 1937,
mesmo dia do golpe do Estado Novo, podemos encontrar esses objetivos postos de forma
“essencial” para o desenvolvimento e defesa do país e dos ideais pan-americanos:
Por outro lado, essas realizações [os projetos de modernização nacional] exigem que
se instale a grande siderurgia, aproveitando a abundância de minério, num vasto
plano de colaboração do governo com os capitais estrangeiros que pretendam
emprego remunerativo, e fundando, de maneira definitiva, as nossas indústrias de
base, em cuja dependência se acha o magno problema da defesa nacional. É
necessidade inadiável também dotar as forças armadas de aparelhamento eficiente
que as habilite a assegurar a integridade e a independência do país, permitindo-lhes
cooperar com as demais nações do continente na obra de preservação da paz.14
Através deste discurso, é possível perceber como o capital estrangeiro é posto de
forma necessária para se chegar à concretização desses objetivos. Encontra-se, aí, um ponto
muito peculiar que vai orientar as relações internacionais do Brasil nesse momento: a busca
incessante por acordos internacionais que possibilitem a concretização desses dois objetivos
em especial. Como defendeu Gerson Moura, a política brasileira desse momento pode ser
entendida como uma “autonomia na dependência” 15
.
O Brasil se envolveu num jogo de alianças provisórias com potências estrangeiras16
tendo por finalidade atingir os objetivos vistos como “essenciais” pelo Estado Novo. Esses
objetivos motivaram uma neutralidade estratégica frente ao conflito mundial. Também
devemos considerar que o posicionamento brasileiro foi várias vezes reconfigurado diante das
14
D‟ARAUJO, Maria Celina (Org). Perfis parlamentares 62: Getúlio Vargas. Centro de Documentação e
Informação. Edições Câmara: Brasília, 2011. pp. 358-368. 15
Referindo-se ao título da obra do autor. Ver: MOURA, Gerson. Autonomia na dependência: a política externa
brasileira de 1935 a 1942. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1980. 16
Leia-se os EUA e a Alemanha, como os principais países interessados em firmar relações políticas e
comerciais com o Brasil. Ver: MOURA, Gerson. Sucessos e ilusões: relações internacionais do Brasil durante e
após a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: FGV, 1991.
23
mudanças ocorridas na cena política internacional, que, de uma forma ou outra, afetavam o
Brasil. O governo brasileiro se manteve oficialmente neutro até janeiro de 194217
, quando foi
declarado o rompimento de relações diplomáticas e comerciais com as nações do eixo18
.
O posicionamento brasileiro foi articulado através de um complexo jogo político
internacional, no qual o governo articulou o interesse das nações estrangeiras no Brasil19
,
tendo em vista atrair capital e recursos necessários para a concretização de seus objetivos.
Essa “política de barganhas” foi caracterizada por idas e vindas nas negociações com a
Alemanha e com os EUA, objetivando o financiamento do complexo siderúrgico nacional e o
reaparelhamento e modernização das armas nacionais20
.
Assim, não se pode afirmar que antes de janeiro de 1942 o Brasil esteve
definitivamente aliado a uma nação ou outra. Muito menos pode ser dito que o Brasil tenha
tomado partido no conflito mundial, apesar de todas as aspirações e similitudes possíveis com
o fascismo e o nazismo ou das atitudes pró-pan-americanismo e do apoio abertamente
declarado ao governo dos EUA.
As atitudes do Estado Novo nos levam a perceber que os interesses próprios e o
sentimento nacionalista foram postos acima de qualquer alinhamento político ou ideológico
com qualquer nação estrangeira. O governo brasileiro barganhou seu apoio em troca do
financiamento e apoio para a concretização de seus objetivos, tidos como essenciais. Neste
sentido, é importante tentar compreender como se desenvolveram as relações comerciais e
diplomáticas do Brasil com a Alemanha e com os EUA durante a década de 1930 até o
rompimento das relações do Brasil com as nações do eixo, em 1942.
17
A primeira atitude brasileira, em relação ao começo do conflito, foi uma declaração de neutralidade oficial
través de um decreto-lei, o de nº 4.623, publicado em cinco de setembro de 1939. Ver: Ministério das Relações
Exteriores. O Brasil e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944, v.I, p.77. apud
GARCIA, Eugênio Vargas (org). Op. Cit., 2008. p.426. 18
Ministério das relações exteriores. O Brasil e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1944, v.II, p. 22-23 apud GARCIA, Eugênio Vargas (org.). Op. Cit., 2008. p 444. 19
O Brasil ocupava um lugar periférico no cenário político internacional, no entanto, representava uma nação
potencialmente estratégica, visto suas imensas reservas de recursos naturais, sua localização geográfica e seu
potencial produtivo, ocupando posição de destaque como nação não industrializada e importante fornecedor de
matérias primas no mercado internacional. Ver: ALVES. Vágner Camilo. O Brasil e a Segunda Guerra
Mundial: História de um envolvimento forçado. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2002. 20
O termo “Política de barganhas” foi cunhado por Gerson Moura, utilizado em várias de obras. Ver: MOURA,
Gerson. Op.Cit., 1980.
24
1.1.2 – Relações e influências alemãs e estadunidenses no Brasil
Na década de 1930, as relações comerciais e políticas entre Brasil e Alemanha foram
bastante promissoras. De 1933 até o início de 1938, as relações comerciais obtiveram um
aumento bastante significativo, e as relações políticas eram estáveis21
. Podemos notar que o
partido nazista no Brasil funcionava livremente, sem nenhum impedimento legal ou qualquer
tipo de perseguição política ou policial. Muito pelo contrário, neste momento, podemos
observar uma estreita relação entre as polícias políticas da Alemanha e do Brasil, além da
simpatia de elementos da população civil e das forças armadas nacionais aos regimes
totalitários europeus, sobretudo o nazismo22
.
Contudo, no final de 1937, tem início uma crise diplomática entre Brasil e
Alemanha23
. Em decorrência da instauração do novo regime brasileiro, a ditadura do Estado
Novo, foram implementadas várias ações que atingiram diretamente os imigrantes alemães: a
proibição dos partidos políticos, inclusive do partido nazista no Brasil, e as medidas de
assimilação dos estrangeiros em território nacional, que acabaram por atingir vários grupos
que mantinham traços de sua cultura originária no Brasil. No entanto, essas medidas de
assimilação de estrangeiros atingiram, sobretudo, os imigrantes alemães24
.
A crise entre os governos do Brasil e da Alemanha deu-se, sobretudo, pelas medidas
nacionalistas e assimiladoras impostas pelo Estado Novo, a população alemã no Brasil e pela
proibição do partido nazista em território brasileiro. As relações diplomáticas entre as duas
nações se deterioraram ainda mais diante do posicionamento intransigente de Karl Ritter,
então embaixador alemão no Brasil, e de seu antagonismo com o então ministro de Relações
Exteriores do Brasil, Oswaldo Aranha25
. Além dessa indisposição diplomática, surgiram
21
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. O Brasil de Getúlio Vargas e a formação dos blocos: 1930-1942. O
processo de envolvimento brasileiro na II Guerra Mundial. São Paulo: Ed. Nacional; (Brasília): INL, Fundação
Nacional Pró-Memória, 1985. pp. 68-113. 22
DIETRICH, Ana Maria. Nazismo tropical? O partido nazista no Brasil. São Paulo, jan. 2007. pp. 169-177. 23
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Op. Cit., 1985. pp. 174-230. 24
Vale destacar que, apesar das simpatias com os regimes autoritários, o Estado Novo praticou políticas que
cercearam e assimilaram as populações estrangeiras, além de proibir o envolvimento dessas na política nacional,
sobretudo os imigrantes e descendentes alemães. Contudo, devemos ter em mente que as políticas internacionais
praticadas pela Alemanha nazista na década de 1930 se justificavam no discurso de minorias alemãs. Várias
regiões foram anexadas pelos nazistas sob esse argumento. Para citar apenas algumas: a região do Sarre em
1935; os Sudetos, em 1938, e a invasão da Polônia em 1939. Ver: Grande crônica da Segunda Guerra Mundial.
Volume I: de Munique a Pearl Harbor. Rio de Janeiro: Seleções do Reader‟s Digest. Editora Ypiranga, 1969. pp.
29-55. 25
MENEZES, Alberne Miriram. Tensão política entre o Brasil e a Alemanha, o pulsar dos acontecimentos
em 1938. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011. Disponível em:
25
suspeitas de apoio nazista na tentativa de golpe de estado engendrada pela ação integralista
brasileira, em maio de 1938. Alguns jornais brasileiros passaram a acusar a Alemanha de
praticar políticas antibrasileiras em território nacional26
. Essa crise, de aspecto mais
diplomático, pode ser entendida como um embate entre políticas nacionalistas divergentes dos
governos do Brasil e da Alemanha. Contudo, essa crise pouco afetou as relações comerciais
entre as duas nações naquele momento27
.
Somente em setembro de 1939 acontece uma reaproximação diplomática entre as duas
nações, e é fechado um grande contrato de compra de equipamentos militares com a
Alemanha, e se iniciam as negociações para o financiamento através de capital alemão, para a
construção do complexo siderúrgico brasileiro28
. Contudo, essa reaproximação é momentânea
e extremamente limitada, visto que, depois de setembro de 1939, notadamente com o início da
guerra entre Alemanha e Inglaterra, a entrega dos equipamentos comprados das companhias
alemãs fica seriamente comprometida e, posteriormente, impossível diante do bloqueio naval
britânico imposto à Alemanha no Oceano Atlântico29
.
O bloqueio naval britânico é tão eficaz que o comércio entre Brasil e Alemanha em
1941 representa apenas a décima parte do que foi em 193830
. O bloqueio acaba por minar as
relações econômicas entre os dois países e, consecutivamente, abrir espaço para uma
ampliação nas relações comercial e política entre Brasil e EUA.
Já as relações econômicas com os EUA, no período entre 1933 e 1937, se mantiveram
praticamente estáveis, notando somente uma diminuição no volume das exportações
brasileiras, de forma geral os EUA ocupavam um importante papel econômico no Brasil. No
http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308160109_ARQUIVO_TENSAOPOLITICAENTREOBR
ASILEAALEMANHAversaocorrigidaem15dejunhode2011.pdf . Acesso em: 26 ago. 2012. 26
Aqui fazemos referência a grupos pró-nazistas em território nacional, mais especificamente às sedes urbanas
do partido nazista no Brasil, às grandes empresas e bancos alemães que depois se converteriam em bases de uma
complexa rede de espionagem nazista em território brasileiro e que, de alguma forma, vão justificar as ações
nacionalistas e assimiladoras do governo brasileiro que atingiram a população alemã e seus descendentes no
país. Ver: PERAZZO, Priscila Ferreira. O perigo alemão e a repressão policial no Estado Novo. Governo do
Estado de São Paulo, Secretaria de Estado da Cultura, Departamento de Museus e Arquivos, Divisão de Arquivo
do Estado, 1999. 27
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Op. Cit., 1985. pp. 174-230. 28
Idem. pp. 324-330. 29
Uma parte desses equipamentos chega a ser entregue ao Brasil. No entanto, a maior parte fica em portos
europeus ou nem chegam a ser preparada para o envio ao Brasil. Ver: BASTOS, Expedito Carlos Stephani.
Primórdios da motorização no exército brasileiro 1919 a 1940. p. 30. Disponível em:
http://www.ecsbdefesa.com.br/fts/DC4.pdf . Acesso em: 26 ago. 2012. 30
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Op. Cit., 1985. pp. 84-326.
26
âmbito das relações políticas, o Brasil mantinha uma tradição de apoio aos EUA como o
principal parceiro estratégico estadunidense nas políticas pan-americanas31
.
Depois da implantação do Estado Novo, surgiram algumas preocupações por parte dos
EUA em relação ao novo regime brasileiro: uma ditadura de inspiração fascista que encerrava
o breve e conturbado regime democrático no país com o fechamento do Congresso Nacional
em 10 de novembro de 1937 e, logo depois, a proibição dos partidos políticos, em dezembro
do mesmo ano. Além disso, existiam aproximações e simpatias evidentes com os regimes
totalitários europeus: a expansão do comércio com a Alemanha, os vínculos entre o fascismo
italiano e a ação integralista brasileira, além de importantes elementos do governo brasileiro
que declaravam abertamente sua admiração e simpatia pelos regimes totalitários de direita
europeus32
.
Ainda devemos considerar algumas demonstrações de proximidade e de relações
efetivas entre os governos do Brasil e da Alemanha: os encontros secretos entre o então
embaixador alemão no Brasil, Kurt Prünfer, e o presidente Vargas, nos quais se podem
observar as promessas brasileiras de manter sua neutralidade diante do conflito e as propostas
alemãs de financiamento para a concretização dos objetivos do Estado Novo33
. Além disso,
vale lembrar o nebuloso discurso feito por Getúlio Vargas a bordo do encouraçado Minas
Gerais, no dia 11 de junho de 1940, que acabou sendo interpretado pelo governo dos EUA
como uma declaração de apoio brasileiro aos regimes totalitários de direita europeus.
No entanto, por mais que sejam latentes os eventos que demonstram a proximidade do
Brasil com o nazismo e o fascismo, o bloqueio britânico, imposto à Alemanha e à Itália no
Oceano Atlântico, desarticulou praticamente todo o comércio desses países com o Brasil e
também com outros mercados americanos, inviabilizando quase todos os acordos e propostas
alemãs ao governo brasileiro. No máximo, as aproximações entre Brasil e Alemanha depois
de 1939 devem ser vistas como um impossível “sonho alemão”, ou como uma possível
estratégia do governo brasileiro para pressionar um acordo vantajoso com os EUA34
.
Depois da saída forçada da Alemanha do palco das disputas econômicas, as relações
comerciais entre os EUA e o Brasil vão ser grandemente expandidas. Em setembro de 1940, é
31
Devemos considerar a tradicional política de apoio do Brasil aos EUA na América latina e ainda as intensas
campanhas promovidas por agências estadunidenses, sobretudo o Office of Inter-American Affairs – OIAA, para
“americanizar” o Brasil. Ver: TOTA, Antônio Pedro. O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na
época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 32
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Op. Cit., 1985. pp. 337. 33
GARCIA, Eugênio Vargas (Org.). Op. Cit., 2008. p. 432. 34
O termo “Sonho alemão” se refere a um subtítulo da obra de Ricardo Seitenfus. Ver: SEITENFUS, Ricardo
Antônio Silva. Op. Cit., 1985.
27
firmado um acordo entre Brasil e EUA para a construção da “grande siderurgia” brasileira,
com financiamento de capital dos EUA35
. Outros acordos estratégicos são firmados entre as
duas nações: a divisão do mercado consumidor de café nos EUA entre os países produtores,
ficando reservado ao Brasil mais de 65% desse mercado consumidor; acordos sobre a
exportação de material estratégico36
para os EUA; e ainda um acordo de divisão do mercado
consumidor de algodão do Canadá entre as produções do Brasil e dos EUA37
. Pode-se dizer
que os acordos firmados nesse momento entre as duas nações foram vantajosos para o Brasil e
que os EUA, literalmente, “pagaram o preço” pelo apoio brasileiro.
No entanto, longe da esfera econômica e comercial, os acordos militares entre EUA e
Brasil não foram tão exitosos antes do ataque japonês a Pearl Harbor no final de 1941. A
cooperação militar entre as duas nações foi marcada por desencontros e por tentativas
frustradas de acordo, em grande medida devido à resistência dos militares brasileiros. Os
desacordos iniciais podem ser resumidos na oposição dos líderes militares brasileiros em
aceitar a ocupação de bases no nordeste do Brasil pelas forças armadas estadunidenses e
quanto ao posicionamento que o Brasil viria a assumir caso os EUA entrassem na guerra. O
Brasil manteria sua neutralidade oficial ou se declararia solidário com a causa pan-americana
e romperia as relações com as nações do eixo e colaboraria efetivamente na defesa
continental?
Em 1941, podemos observar alguns avanços nas relações militares entre as duas
nações: as missões militares estadunidenses no Rio de Janeiro e a criação da Comissão Militar
Conjunta Brasileiro-Americana, em junho desse mesmo ano. No entanto, a resistência dos
militares persiste até fins desse ano38
, quando o próprio presidente Vargas declara
publicamente sua posição favorável à solidariedade continental, e, em 10 de novembro de
1941, Vargas fala diretamente aos militares sobre sua posição favorável aos princípios pan-
americanos, a solidariedade continental e a cooperação militar entre Brasil e os EUA.
35
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Op. Cit., 1985. p. 339. 36
Material estratégico são matérias-primas utilizadas pela indústria bélica estadunidense. De forma geral, os
principais produtos brasileiros considerados como materiais estratégicos nesse momento são: bauxita, cromo,
berilo, níquel, diamantes industriais e manganês, entre outros. Vale notar que, depois da entrada dos EUA no
conflito, em 1941, essa lista vai se tornar mais extensa. 37
Os exemplos citados não compreendem a totalidade de acordos firmados entre o Brasil e os EUA nesse
período (1939-1941). 38
Declaradamente simpáticos ao fascismo e ao nazismo, os dois principais militares no Estado Novo, Góis
Monteiro, então chefe do Estado Maior, e Eurico Gaspar Dutra, então ministro da Guerra, foram os principais
opositores de uma aliança militar entre Brasil e EUA. Ver: SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Op. Cit., 1985.
p. 356.
28
Depois do dia 7 de dezembro de 1941, quando o império japonês lançou um ataque em
larga escala contra a base estadunidense de Pearl Harbor; o que acabou levando os EUA a
declarar guerra contra o império japonês39
, o governo brasileiro foi pressionado a assumir
uma posição definida frente à nova conjuntura mundial que se desenhava. A guerra havia
chegado ao continente americano, e o Brasil teria de firmar um posicionamento efetivo:
reforçar sua neutralidade ou assumir os acordos pan-americanos e se envolver diretamente na
solidariedade continental.
No mesmo dia do ataque, Vargas envia um telegrama ao presidente dos EUA, Franklin
D. Roosevelt, e, mesmo que oficiosamente, declara sua posição de solidariedade com os
EUA. Nesse telegrama, o presidente Vargas comunica “que ficou resolvido por unanimidade
que o Brasil se declarasse solidário com os Estados Unidos, coerente com as suas tradições e
compromissos na política continental”40
. No dia seguinte, Roosevelt responde ao telegrama de
Vargas:
Senhor presidente Vargas – Hoje, oito, apresso-me a acusar, com o meu mais
profundo apreço e o do povo dos Estados Unidos, a pronta e cordial mensagem de
solidariedade com o meu país, na crise provocada pelos traiçoeiros e não provocados
ataques praticados ontem pelos japoneses contra as vidas e territórios dos Estados
Unidos. A mensagem de V. Ex. é a prova culminante da afirmação feita tão
eloqüentemente, faz poucas semanas, de que o pan-americanismo passara do
domínio dos convênios ao campo da ação positiva, o que profundamente me
comoveu e encorajou. Franklin Roosevelt.41
A afirmação que Roosevelt remete pode ser referência a uma entrevista realizada com
o presidente Vargas, pelo jornal argentino La Nacion, em junho de 1941, no qual Vargas faz
pomposos elogios à política estadunidense de “boa vizinhança”, ao presidente Roosevelt, à
solidariedade continental e ao pan-americanismo42
. Vale ressaltar o caráter de pró-
estadunidense da fala de Vargas nessa entrevista, visto que a Argentina se firmou como o
principal desarticulador das tentativas de consolidar medidas práticas do movimento pan-
americano, se opondo claramente aos EUA43
.
O movimento pan-americano foi utilizado pelos EUA como esforço de manter as
nações do continente americano neutras diante a guerra europeia, articulando um acordo
39
Depois do ataque japonês a Pearl Harbor, os EUA declararam guerra ao império do Japão no dia 8 de
dezembro de 1941. Logo depois, em 11 de dezembro do mesmo ano, a Alemanha e a Itália declaram guerra aos
EUA. 40
GARCIA, Eugênio Vargas (Org.). Op. Cit., 2008. p. 439. 41
Ibidem. p. 439. 42
D‟ARAUJO, Maria Celina (Org). Op. Cit., 2011. pp. 438-442. 43
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Op. Cit., 1985. pp. 124-125.
29
mútuo de defesa do continente contra os imperativos dos países beligerantes e qualquer outra
nação não-americana. Em detrimento das hostilidades na Europa, foram realizadas duas
reuniões de consulta dos ministros das relações exteriores das repúblicas americanas: a
primeira no Panamá, em setembro de 1939, devido ao início da guerra na Europa, e a segunda
na cidade de Havana, em julho de 1940, depois da queda da França diante da Alemanha
nazista.
A última reunião de consulta dos ministros das relações exteriores, durante a Segunda
Guerra, foi convocada depois do ataque japonês à base naval estadunidense de Pearl Harbor, e
aconteceu em janeiro de 1942, na cidade do Rio de Janeiro. A importância dessa reunião foi a
recomendação do rompimento das relações diplomáticas das nações americanas com as
nações do eixo, diante ao ataque japonês e a declaração de guerra dos outros dois países aos
EUA:
(...) As repúblicas americanas reafirmam-se em sua declaração de considerar todo
ato de agressão de um estado extracontinental contra uma delas como ato de
agressão contra todas, por constituir uma ameaça imediata à liberdade e
independência da América. (...) recomenda a ruptura das relações diplomáticas com
o Japão, Alemanha e Itália, por haver o primeiro desses estados agredido e os outros
declarados guerra a um país americano (...)44
.
Apesar do caráter não-obrigatório dessa recomendação pan-americana, a terceira
reunião de consulta dos ministros das Relações Exteriores provocou efeitos práticos quase
imediatos, a recomendação de ruptura com as nações do eixo foi bastante exitosa, e, em
poucos meses, vários países americanos declararam o rompimento de relações com as nações
do eixo45
. Ainda na reunião, o ministro Oswaldo Aranha anuncia o rompimento das relações
brasileiras com as nações do eixo:
(...) hoje, às 18 horas, de ordem do Senhor Presidente da República, os
Embaixadores do Brasil em Berlim e Tóquio e o Encarregado de Negócios do Brasil
em Roma passaram nota aos governos junto aos quais estão acreditados,
comunicando que, em virtude das recomendações da III Reunião de Consulta dos
Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas, o Brasil rompia suas
relações diplomáticas e comerciais com a Alemanha, a Itália e o Japão (...)46
.
44
BRASIL. Acta final de la tercera reunion de consulta de los ministros de Relaciones Exteriores de las
Republicas Americanas. Disponível em: http://www.oas.org/consejo/sp/RC/Actas/Acta%203.pdf. Acesso em:
22 ago. 2012. 45
Vale lembrar que, logo após o ataque japonês contra os EUA, algumas nações americanas já declaram guerra
contra o Japão e tantas outras se mostraram solidárias com os EUA. Ver: SANDER, Roberto. O Brasil na mira
de Hitler: a história do afundamento de 34 navios brasileiros pelos nazistas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. 46
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Op. Cit., 1985. p. 391.
30
O rompimento das relações diplomáticas e comerciais do Brasil com as nações do eixo
representa, em efetivo, o fim da “política de barganhas” e o posicionamento definitivo do
governo brasileiro ao lado dos aliados na Segunda Guerra Mundial. Essa política de
“barganhar” do governo brasileiro atingiu seus objetivos principais: o financiamento da
construção da Siderúrgica Nacional47
e os acordos militares entre as duas nações se
desenvolveram, sobretudo depois do acordo assinado no dia 3 de março de 1942: “Acordo de
Empréstimo e Arrendamentos” (Lend & Lease), onde o governo dos EUA se compromete a
disponibilizar “armas e munições” para o Brasil num crédito de 200 milhões de dólares48
.
Além das facilidades de pagamento, o Brasil obteve uma redução de 65% do valor
desse crédito. Outros acordos militares importantes foram concluídos: a cooperação entre
Brasil e EUA na defesa continental, a luta contra os submarinos do eixo e, inclusive, chega-se
a um acordo positivo sobre a presença de militares estadunidenses no nordeste brasileiro49
.
A consolidação desses acordos comerciais e militares, estratégicos para o esforço de
guerra dos EUA, é resultado em certa medida, da ação do ministro das Relações Exteriores do
Brasil, Oswaldo Aranha, em conjunto com o então subsecretário de Estado estadunidense,
Sumner Welles, e influi grandemente para o entendimento e o processo de estreitamento dos
laços comerciais, políticos e militares entre as duas nações, que se consolida efetivamente
depois de janeiro de 1942. A partir desse momento, o governo brasileiro vai contribuir
intimamente com o esforço de guerra dos EUA na Segunda Guerra Mundial.
Os desdobramentos do conflito mundial exigiram dos EUA uma resposta rápida. A
neutralidade das nações americanas esteve ameaçada desde o início do conflito. Era só uma
questão de tempo até que as circunstâncias do conflito exigissem uma posição clara das
nações americanas diante da guerra. O esforço estadunidense com a “política de boa
vizinhança”, as reuniões pan-americanas e mesmo ações clandestinas de infiltração
promovidas pela OCCIA e outras organizações estadunidenses são reflexo dessa preocupação
acerca dos rumos que o conflito tomava e das mudanças na conjuntura internacional50
.
Se a defesa do continente americano exigiu dos EUA um extensivo trabalho de
mobilização, a entrada efetiva desse país na guerra significou um colossal serviço de
mobilização e organização de contingentes humanos e quantidades notáveis de material
47
O que veio a ser o financiamento da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, no Estado
do Rio de Janeiro. 48
SILVA, Hélio. 1942 – Guerra no continente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. pp. 419-427. 49
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Op. Cit., 1985. p. 393. 50
OCCIA, ou Gabinete de Coordenação de Assuntos Interamericanos (Office of the Coordinatior of Inter-
American Affairs). Ver: TOTA, Antônio Pedro. Op. Cit., 2000. pp. 23-36.
31
estratégico para o conflito51
. A mobilização dos EUA envolveu quase todos os países
americanos num esforço de guerra gigantesco para atender às demandas de duas frentes de
batalha simultâneas. Grosso modo, podemos dizer que a “guerra total” estadunidense não se
limitou às suas fronteiras próprias, mas envolveu potencialidades e recursos materiais e
humanos de vários países americanos, a reordenação da produção interna de determinados
gêneros e também o racionamento de outros para suprir as necessidades do esforço de guerra
daquele país52
.
Assim, podemos dizer que o envolvimento brasileiro na Segunda Guerra Mundial se
deu em detrimento de vários fatores: interesses ideológicos, políticos e econômicos do
governo brasileiro, mudanças na conjuntura política e econômica internacional e o interesse
de determinadas nações estrangeiras no Brasil. Neste sentido, foi possível ao governo
brasileiro negociar com essas nações estrangeiras seu “apoio” antes de 1941, quando o Brasil
gozou de uma “autonomia na dependência” e fez uso de uma espécie de “Política de
Barganhas” 53
.
Vários fatores conjunturais levaram o Brasil a se aproximar dos EUA54
. Alinhamento
que, primeiramente, se concretizou no âmbito comercial e, depois, também no âmbito militar
e político55
. A atitude do rompimento do governo brasileiro com o eixo, em janeiro de 1942,
acabou por gerar desdobramentos diretos e trágicos. Nos meses que se seguiram ao
rompimento, vários navios mercantes brasileiros foram alvos de ataques de submarinos do
eixo, o que levou o governo brasileiro ao envolvimento de fato na guerra em agosto de 1942.
51
Visto que efetivamente as conferências e reuniões pan-americanas, exceto a terceira reunião de consulta
ministros de Relações Exteriores, no Rio de Janeiro, em janeiro de 1942, não conseguiram atingir efeitos práticos
imediatos. 52
Em seu momento máximo, o esforço de guerra estadunidense vai compreender quase a totalidade do potencial
produtivo e humana daquele país. Devemos ter em mente que os EUA se viram envolvidos em duas amplas
frentes de batalha: uma, no Oceano Pacifico contra o império japonês e outra, no norte-africano e na Europa
contra o nazi-fascismo. Ver: Grande crônica da Segunda Guerra Mundial. Volume I: de Munique a Pearl
Harbor. Rio de Janeiro: Seleções do Reader‟s Digest, Editora Ypiranga, 1969. 53
Ambos os termos entre aspas se referem a conceitos cunhados por Gerson Moura em suas obras sobre história
diplomática do Brasil. 54
Em especial o bloqueio naval britânico imposto à Alemanha no Oceano Atlântico e a entrada dos EUA no
conflito, em fins de 1941. Ver: Grande crônica da Segunda Guerra Mundial. Volume I: de Munique a Pearl
Harbor. Rio de Janeiro: Seleções do Reader‟s Digest. Editora Ypiranga, 1969. 55
A ideia de alinhamento político é um tanto mais complexa, visto que, apesar do discurso democrático, ou da
“democracia autoritária”, o Brasil era, nesse momento, uma ditadura de fato, e pouco tinha de afinidade política
com o liberalismo estadunidense.
32
1.2 – A participação brasileira na conflagração mundial
1.2.1 – A campanha submarina do eixo no litoral brasileiro e o reconhecimento do
estado de beligerância com a Alemanha e a Itália
Pouco antes do rompimento das relações diplomáticas e comerciais do Brasil com as
nações do eixo, em 1942, o governo brasileiro foi alertado por Prüfer, então embaixador
alemão no Brasil, do que “A ruptura das relações diplomáticas entre o Brasil e a Alemanha
(...) equivaleriam à eclosão da guerra efetiva”56 e, assim como o embaixador alemão, os
embaixadores do Japão e da Itália enviaram mensagens similares ao Brasil: de que o
rompimento de relações equivaleria à guerra de fato.57
Neste sentido, o governo brasileiro tinha consciência de que o rompimento de relações
com as nações do eixo equivaleria ao estado de guerra com essas nações. E que, mesmo com
um discurso de “neutralidade”, o governo do Brasil, de fato, se alinhava ao esforço de guerra
dos aliados, sobretudo dos EUA. A diplomacia alemã já sabia da efetiva ampliação das
relações econômicas e políticas entre os EUA e o governo brasileiro desde 194158
. Não se
pode esquecer que, desde setembro de 1939, as relações comerciais entre Brasil e Alemanha
se tornaram praticamente impossíveis59
. Já a declaração do rompimento das relações
diplomáticas ocorrida em 1942, notadamente liderada pelo governo brasileiro, e seguida por
quase todas as nações latino-americanas, seria interpretada pelo eixo como uma afronta direta,
e a definição pública do “lado” assumido pelo Brasil no conflito mundial, notadamente ao
lado dos aliados.
O ataque japonês à base naval estadunidense de Pearl Harbor foi um evento que
mudou toda a conjuntura do conflito, forçando as nações americanas a se posicionar diante o
conflito. Primeiramente, porque levou os EUA a declarar guerra contra o império japonês, o
que vai motivar as declarações de guerra da Alemanha e da Itália contra os EUA, e, segundo,
porque esse ataque aos EUA vai por à prova os acordos e as resoluções pan-americanas, que
até então se limitavam a meras “recomendações”. O grande desafio era fazer com que essas
56
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. O Brasil vai à guerra. São Paulo: Editora Manole, 2003. p. 267. 57
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. Op. Cit., 1985. p. 460. 58
A consciência alemã acerca da aproximação entre os governos do Brasil e dos EUA pode ser notada nos vários
telegramas enviados pelo embaixador alemão no Brasil para o governo alemão. Ver: RAHMEIER, Andrea
Helena Petry. Relações diplomáticas e militares entre a Alemanha e o Brasil: da proximidade ao rompimento
(1937-1942). 2009. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS), Porto Alegre. pp. 257-260. 59
Visto o bloqueio naval imposto aos navios alemães pelos britânicos no Oceano Atlântico.
33
recomendações ganhassem efeito prático junto às repúblicas americanas. Logo após o ataque
japonês aos EUA, foi convocada a 3ª reunião de consulta dos ministros de Relações
Exteriores das Repúblicas Americanas, que aconteceu na cidade do Rio de Janeiro, no início
de 1942, com o propósito de transformar recomendações em efeito prático, mais
especificamente estimular o rompimento de relações das Repúblicas Americanas com as
nações do eixo60
.
O Brasil era, então, o principal parceiro dos EUA na América Latina, e a atuação
brasileira durante a reunião foi no sentido de recomendar o rompimento de relações
diplomáticas das Repúblicas Americanas com as nações do eixo, devido à agressão japonesa e
às declarações de guerra da Alemanha e da Itália contra uma nação americana neutra61
. Fora
as várias nações americanas que já haviam declarado guerra ao eixo, logo após o ataque
japonês aos EUA, quase todas outras nações americanas vão romper relações com as nações
do eixo durante a 3ª reunião de consulta dos ministros de Relações Exteriores das Repúblicas
Americanas, no Rio de Janeiro, o que faz dessa reunião bastante proveitosa para os interesses
dos EUA62
.
Era a mudança final no jogo da neutralidade das nações americanas; a guerra “exigia”
um posicionamento das nações americanas. Importante ressaltar o papel fundamental do
governo brasileiro, no sentido de que, durante essa reunião, resultasse o alinhamento de
grande parte dos países americanos. O Brasil passaria, então, a colaborar diretamente no
esforço de guerra estadunidense, e, consecutivamente, ao lado dos aliados, e, mesmo que no
discurso oficial ainda se classificasse como “neutro”, as atitudes brasileiras eram
completamente voltadas à causa dos aliados na guerra. Ou seja, o Brasil estava empenhado
numa atitude de apoio amplo à causa aliada, o que configurava para a Alemanha um “estado
de guerra não declarado”.
A resposta do eixo a essa “afronta” brasileira não tardaria a chegar, e a guerra se
mostraria muito mais próxima do que qualquer brasileiro esperava. A guerra submarina do
eixo seria estendida ao litoral leste de toda a América do Norte desde os últimos dias de 1941,
e, durante os primeiros seis meses de 1942, os submarinos do eixo ampliariam sua área de
atuação aos litorais da América Central e da América do Sul, quando ocorrem os primeiros
60
Ver: SANDER, Roberto. Op. Cit., 2011. pp. 13-45. 61
A nação em questão é os EUA. Vale notar que a neutralidade dos EUA era, sobretudo, uma neutralidade no
discurso, visto que essa nação vinha apoiando abertamente a Grã-Bretanha no seu esforço de guerra contra as
nações do eixo, que considerava esse tipo de envolvimento como um quadro de “Guerra não declarada”. 62
Ver: SCHOUTZ, Lars. Estados Unidos: poder e submissão. Uma história da política norte-americana em
relação à América Latina. Bauru: Edusc, 2000.
34
afundamentos de navios mercantes nacionais, demonstrando o quão perto o conflito estava
dos brasileiros63
.
A ação dos submarinos do eixo, antes de dezembro de 1941, concentrava-se em três
distintas frentes: no Atlântico Norte, com a finalidade de isolar a Ilha Britânica; no Mar
Mediterrâneo; nas proximidades do Egito, e no Ártico, com a finalidade de isolar a URSS.
Apesar da atuação nessas três frentes, a atividade submarina do eixo poderia ser considerada
quase que insignificante64
. Os ataques submarinos contra navios mercantes nos litorais
americanos ainda não haviam ocorrido65
.
No entanto, as declarações de guerra da Alemanha e da Itália contra os EUA, em
dezembro de 1941, resultariam numa mudança drástica nos planos do eixo e,
consecutivamente, nos planos e ações dos submarinos u-boats contra as marinhas mercantes
das nações americanas.66
Assim, depois da reunião de consulta dos ministros de Relações Exteriores ocorrida no
Rio de Janeiro, em 1942, os submarinos do eixo tinham permissão de atacar livremente navios
mercantes de quase todas as nações americanas67
. Primeiramente, a ação submarina do eixo se
deu ao longo da costa leste da América do Norte, e, devido à falta de preparo das marinhas
estadunidense e canadense frente à ação submarina, os assaltos do eixo foram
extraordinariamente exitosos68
. A ação submarina foi rapidamente ampliada para o litoral
leste da América Central e América do Sul, sendo realizados ataques a navios mercantes,
praticamente indefesos, de várias das Repúblicas Americanas. As ações dos u-boats do eixo,
até meados de 1942, aconteceram praticamente sem qualquer tipo de defesa por parte das
63
Acerca das atividades submarinas do eixo na costa leste estadunidense, ver: OSTROM, Thomas P. The United
States Coast Guard in World War II: a history of domestic and overseas actions. McFarland, 2009. 64
No começo da guerra, a Alemanha dispunha de apenas 57 submarinos, dos quais apenas 20 podiam operar no
Oceano Atlântico. O desinteresse de Hitler pela marinha de guerra antes de 1942 é algo bastante conhecido.
Contudo, com o desenvolvimento do conflito e com a insistente influência de Karl Dönitz, a Alemanha investe
na construção de mais de 1.000 aparelhos submarinos, chegando a ter 400 U-boats operando simultaneamente no
Atlântico. Ver: Grande crônica da Segunda Guerra Mundial. Volume I: de Munique a Pearl Harbor. Rio de
Janeiro: Seleções do Reader‟s Digest. Editora Ypiranga, 1969. pp. 331-342. 65
CARRUTHERS, Bob. The third reich from original sources – The u-boat war in the Atlantic. Coda Books
Ltd. 2011. (vol. I, II e III). 66
Esse mesmo tipo de tratamento é destinado a várias outras nações americanas que, seguindo o exemplo
brasileiro, rompem relações com Alemanha e Itália. Nesse momento, ressalvo a Argentina e o Chile, todas as
nações americanas haviam rompido relações diplomáticas ou declarado guerra à Itália e à Alemanha e, em
alguns casos, se incluía também o império do Japão. Ver: SANDER, Roberto. Op. Cit., 2011. pp. 13-44. 67
Com exceção dos navios mercantes da Argentina e do Chile e também observando algumas regras da Marinha
de guerra alemã, que regiam as ações desses submarinos. Vale notar que os mercantes da Argentina atuaram
inclusive como colaboradores dos submarinos do eixo, fornecendo, por rádio, a localização de possíveis alvos no
Atlântico Sul para os u-boats do eixo. Ver: Ibidem. pp. 141-148. 68
Calcula-se que os u-boats do eixo tenham afundado pelo menos 2 milhões de toneladas em carga nos
primeiros quatro meses de operações submarinas no litoral leste da América do Norte. Ver: MILNER, Marc.
Battle of the Atlantic. The History Press; Reprint Edition. 2011.
35
marinhas americanas, o que foi denominado pela marinha de guerra alemã de “tempos
felizes”69
.
Os primeiros ataques a navios brasileiros aconteceram na costa leste estadunidense em
fevereiro e março de 1942. Foram afundados cinco navios mercantes brasileiros. Com o
avanço das tecnologias e das táticas de combate anti-submarinas no litoral norte-americano,
ocorre, então, uma ampliação da área de atuação dos submarinos do eixo para a América
Central e, posteriormente, para a América do Sul. Entre os meses de maio e julho, na região
do Golfo do México e nos mares do Caribe, são afundados mais sete navios mercantes
brasileiros70
.
Além das pesadas perdas materiais, a marinha mercante brasileira já contabilizava
mais de uma centena de vítimas fatais causadas pelos ataques dos submarinos do eixo. O
governo brasileiro realizou vários protestos junto ao governo alemão e italiano, todos sem
resposta. Em março de 1942, Vargas chega a interromper a navegação mercante nacional e
exige maior segurança junto aos EUA para a retomada das navegações mercantes, de grande
importância para o esforço de guerra estadunidense.
O despreparo da marinha brasileira em se defender da ameaça submarina do eixo não
foi uma exclusividade: a própria marinha de guerra estadunidense e as marinhas das demais
nações americanas viveram um momento extremamente delicado, primeiramente devido à
surpresa dos ataques submarinos nas regiões litorâneas e, depois, por causa da situação de
despreparo frente à modalidade de guerra submarina praticada pelo eixo71. A eficiência dos
primeiros ataques dos u-boats é estrondosa, e ainda devemos considerar que a marinha
estadunidense estava quase que totalmente mobilizada para a guerra no Pacífico contra os
japoneses, deixando a Costa Leste Atlântica relativamente desprotegida72
.
Até meados de 1942, os submarinos do eixo atuaram com grande liberdade por todo
Atlântico, causando pesadas perdas aos aliados. As resistências do comandante supremo das
forças navais dos EUA, o almirante Ernest J. King, em adotar o sistema britânico de comboios
e a inexistência de táticas e tecnologias que possibilitassem identificar os submarinos,
69
As ações de defesa são organizadas muito lentamente, e acontecem, primeiramente, no litoral da América do
Norte e, posteriormente, são estendidas aos litorais da América Central e da América do Sul. Ver: ALVES,
Vágner Camilo. Op. Cit., 2002. pp. 162-169. 70
Ibidem. pp. 166-171. 71
Diante das ações exitosas dos submarinos alemães, o governo nazista concorda em atender aos pedidos de
Karl Dönitz de ampliar a frota de submersíveis para a guerra no Atlântico. GANNON, Michael. Operation
Drumbeat: germany’s u-boat attacks along the American Coast in World War II. Harper Perennial. 1991. pp.
125-148. 72
Ibidem.
36
contribuiu para o êxito do eixo no Atlântico até esse período73
. Mudanças nesse quadro só
viriam a ocorrer depois da intervenção direta do presidente Roosevelt para a adoção do
sistema de comboios na segunda metade de 1942 e com o desenvolvimento de estratégias e
tecnologias para despistar, encontrar e atacar os submarinos do eixo74
.
Além dos protestos do governo brasileiro junto os representantes da Alemanha e da
Itália, restou ao Brasil tomar atitudes preventivas contra a ação dos u-boats75
. Desde abril de
1942, sob orientação da marinha de guerra dos EUA, os navios mercantes brasileiros já
tomavam precauções contra ataques de submarinos: navegação às escuras durante a noite, a
pintura do casco dos navios para diminuir a visibilidade dos submarinos e, inclusive, a
instalação de armamento anti-submarino nos mercantes nacionais76
.
A situação diplomática brasileira com os governos da Alemanha e da Itália se
deteriora rapidamente, e a situação da iminência da guerra de fato é latente em ambos os
governos. Num trecho do discurso do presidente Vargas de 1º de maio, excepcionalmente lido
pelo ministro do Trabalho, Marcondes Filho77
, Vargas expõe o momento delicado que vive o
país:
Jornais e rádios europeus acusam-nos de fazer “guerra privada” aos países do eixo,
confiscando-lhes bens de Estado e particulares, submetendo-lhes os súditos a
restrições de liberdade. E rematam tais alegações, feitas evidentemente de má-fé,
com alusões e ameaças a um futuro ajuste de contas. As acusações, ninguém no país
ou fora dele o ignora, baseiam-se em deformação de fatos e adulteração de
intenções, pois a verdade é bem outra.
A nossa declaração de solidariedade ao povo norte-americano, a quem nos liga
secular amizade, e o consequente rompimento de relações diplomáticas com os
países que o arrastaram à guerra, era um imperativo de obrigações solenemente
assumidas em tratados e convênios (...) Equivocam-se, portanto, os que nos imputam
atos de guerra. Não é ato de guerra repelir ofensas, acautelar-se de prejuízos e privar
73
MILNER, Marc. Op. Cit., 2011. 74
Dentre essas estratégias, podemos citar as mais importantes: a formação de grandes comboios, a pintura do
casco dos navios mercantes, com a finalidade de tornar sua identificação mais difícil e, ainda, a navegação às
escuras. As tecnologias a que nos referimos são o desenvolvimento do radar, do sonar e das cargas de
profundidade, etc. Ver: HACKMANN, Willem. Seek & Strike: sonar, anti-submarine warfare and the Royal
Navy 1914-54. London: Her Majesty‟s Stationery Office, 1984. 75
Devemos considerar, também, o decreto-lei nº 4.166, de 11 de março de 1942, segundo o qual o governo
brasileiro decreta a tomada dos bens de “súditos do eixo” no Brasil como indenização pelos prejuízos sofridos
pela marinha mercante brasileira. Ver: BRASIL. DECRETO-LEI Nº 4.166, de 11 de março de 1942. Disponível
em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-4166-11-marco-1942-414196-
publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 18 abr. 2013. 76
Atitude que o eixo utilizaria como justificativa para o ataque aos mercantes brasileiros, visto que, depois de 16
de maio de 1942, o governo alemão autoriza o ataque a qualquer embarcação que estivesse equipada com
armamento anti-submarino. Ver: RAHMEIER, Andrea Helena Petry. Relações diplomáticas e militares entre a
Alemanha e o Brasil: da proximidade ao rompimento (1937-1942). 2009. Tese (Doutorado em História) –
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre. pp. 317-329. 77
O referido discurso não foi lido por Vargas, visto que ele se encontrava em repouso depois de sofrer um
acidente automobilístico. Ver: SANDER, Roberto. Op. Cit., 2011. pp. 160-169.
37
espiões da faculdade de nos serem nocivos. Não nos preocupam, pois, as ameaças.
Nada devemos, e só Deus sabe com quem terão de ajustar contas os homens e as
nações pelas faltas ou crimes que praticarem.78
A complicada querela que “justificaria” a escalada das hostilidades entre o Brasil e os
governos da Itália e da Alemanha, iria se agravar ainda mais. Em 29 de maio de 1942, vários
jornais nacionais e internacionais noticiavam um ataque da aeronáutica brasileira contra
submarinos do eixo, inclusive afirmando o afundamento de um desses79
.
Na Alemanha, eram estudados planos de ataque aos principais portos brasileiros. É
importante notar que o governo da Alemanha considerava o Brasil como um dos principais
fornecedores de material estratégico para o esforço de guerra dos EUA, contando com a maior
frota de navios mercantes da América Latina80
. A resposta do eixo ao posicionamento
brasileiro ao lado dos aliados viria depois que a marinha de guerra alemã tomasse duas
decisões importantes: a autorização para o ataque de qualquer navio brasileiro e a liberação da
ação dos u-boats dentro da faixa de segurança continental ao longo da costa brasileira, o que
na prática colocava na linha de fogo os submarinos a navegação de cabotagem brasileira81
.
Nos dias 15, 16, 17 e 19 de agosto de 1942, o submarino alemão U-507 torpedeou e
afundou seis embarcações brasileiras e causou a morte de mais de 600 pessoas; ambos os
ataques ocorreram extremamente próximos ao litoral do atual nordeste, dentro da faixa de
segurança continental82
. Na prática, esses ataques significavam o completo desrespeito do
eixo às zonas de segurança marítima estipuladas pelos países americanos neutros, e mais
diretamente o posicionamento claro de beligerância do eixo em relação ao Brasil. A reação
mais imediata do governo brasileiro é o reconhecimento do estado de beligerância com a
Alemanha e a Itália no dia 22 de agosto de 1942. Assim, o Ministério das Relações Exteriores
emitiu uma circular (nº 1.647) às Missões Diplomáticas Estrangeiras no Rio de Janeiro,
notificando o reconhecimento do estado de guerra.
(...) O governo brasileiro levou ao conhecimento dos governos de todas as
repúblicas americanas que, na noite de quinze para dezesseis do corrente, foram
78
D‟ARAUJO, Maria Celina (Org.). Op. Cit., 2011. pp. 445-449. 79
Estranho notar que esse evento não causou qualquer reação, ou foi motivador de planos de ataques pelos
países do eixo, pois nunca passou de uma suspeita. Ver: RAHMEIER, Andrea Helena Petry. Op. Cit., 2009. p.
329. 80
O ataque do eixo aos portos brasileiros não é colocado em prática por dois motivos: primeiramente, porque a
maior parte dos recursos das máquinas de guerra alemã está concentrada no leste contra os soviéticos e, também,
porque essa atitude poderia levar o Chile e a Argentina, até então países neutros, a romper relações e até mesmo
a declarar guerra ao eixo. Ver: RAHMEIER, Andrea Helena Petry. Op. Cit., 2009. pp. 329-342. 81
RAHMEIER, Andrea Helena Petry. Op. Cit., 2009. p. 343. 82
RAHMEIER, Andrea Helena Petry. Op. Cit., 2009. p. 352.
38
torpedeados, a 20 milhas da costa do Estado de Sergipe, cinco vapores brasileiros de
passageiros, que navegavam de porto para porto nacional (...) À vista disso, o
governo brasileiro faz saber aos governos da Alemanha e da Itália que, a despeito de
sua atitude sempre pacífica, não há como negar que esses países praticaram atos de
guerra, criando uma situação de beligerância que somos forçados a reconhecer na
defesa da nossa dignidade, da nossa soberania, da nossa segurança e da América
(...)83
.
Na circular de Oswaldo Aranha, podemos notar alguns pontos importantes levantados
pelo ministro. Primeiramente, que o ataque do U-507 não objetivou nenhum alvo estratégico
no que diz respeito à guerra no Atlântico: foi uma ofensiva dirigida essencialmente à
navegação nacional, e nenhum dos alvos fazia navegação intercontinental ou sequer
transportava gêneros destinados ao esforço de guerra. Outro ponto relevante é o número alto
de vítimas fatais, o que denota o descumprimento das regras que regiam a guerra marítima,
visto que, minimamente, o agressor deveria permitir que os tripulantes dos navios atacados
deixassem a embarcação. A ação do U-507 foi essencialmente uma retaliação ao rompimento
de relações e ao envolvimento indireto do Brasil na guerra junto aos aliados84
. No dia 24 de
agosto de 1942, o governo alemão é informado pela diplomacia portuguesa da circular, na
qual o governo brasileiro reconhecia o estado de guerra com a Alemanha e a Itália.
Os ataques do U-507 foram amplamente divulgados pela imprensa nacional e geraram
comoção e indignação em toda a sociedade brasileira. Nas principais capitais brasileiras e no
Distrito Federal, foram realizados vários protestos contra a Alemanha e a Itália, e diferentes
setores da sociedade brasileira se uniram pedindo retaliação pelos torpedeamentos dos navios
mercantes brasileiros e pelas centenas de mortos decorrentes desses ataques. Estudantes da
UNE, liderados por Luis Pinheiro Pais Leme, também se mobilizaram pedindo uma reação do
governo. Nas faixas dos estudantes da UNE, se liam os dizeres: “Morte à 5ª Coluna” e
“Queremos a Guerra”, entre outros85
.
Além das manifestações internas, todos os países americanos manifestaram
solidariedade junto ao governo brasileiro. Jornais de vários países noticiaram o drama vivido
83
A circular é assinada pelo próprio ministro de Relações Exteriores, Oswaldo Aranha. Ver: GARCIA, Eugênio
Vargas (Org.). Op. Cit., 2008. pp. 450-451. 84
É importante notar que o Brasil, mesmo que oficialmente neutro, atuava ativamente ao lado dos aliados, mais
especificamente ao lado dos EUA. Grosso modo, a atuação do Brasil, até esse momento, consistia no
fornecimento de materiais estratégicos e a seção de regiões estratégicas, no litoral do nordeste brasileiro, ao
esforço de guerra dos EUA. Ver: DUARTE, Paulo de Queiroz. O Nordeste na II Guerra Mundial: antecedentes
e ocupação. Record: Rio de Janeiro, 1971. 85
SANDER, Roberto. Op. Cit., 2011. pp. 240-258.
39
pelo Brasil86
. As manifestações nacionalistas e anti-eixo dentro do país ganhavam cada vez
mais vulto, e muitas eram realizadas com violência contra imigrantes alemães, italianos e
japoneses e seus descendentes87
.
As manifestações públicas pediam insistentemente que o governo tomasse uma
posição clara diante dos ataques sofridos no Atlântico. Nos principais centros urbanos do
Brasil, os últimos dias de agosto de 1942 representaram uma verdadeira ebulição popular
pedindo a entrada do Brasil na guerra88
. Uma grande manifestação na capital federal, liderada
pelo chefe da polícia, o coronel Alcides Etchegoyen, foi até Vargas, demonstrando o repúdio
às nações do eixo, O presidente os recebeu de forma bastante calorosa, se colocando ao lado
das manifestações populares:
Quando há meses procurei alertar a consciência pública do país sobre os perigos que
ameaçavam, (...) O perigo está aí, mas sempre tive certeza de que o povo assumiria a
atitude que está tendo nesse momento, que o povo atenderia o apelo do governo e
marcharíamos como um único brasileiro para o cumprimento do nosso dever (...)89
.
O posicionamento do governo foi exatamente de encontro aos anseios populares. O
Brasil já havia reconhecido o estado de beligerância com a Alemanha e a Itália no dia 22 de
agosto90
. Diante das pressões populares e do apoio estadunidense, no dia 31 de agosto, o
governo brasileiro declara estado de guerra em todo o território nacional através do decreto-lei
nº 10.358, oficializando, assim, a entrada brasileira na Segunda Guerra Mundial junto aos
aliados e contra a Alemanha e a Itália91
.
86
Notadamente, os jornais nacionais veicularam essas notícias com muito apelo. Contudo, é importante lembrar
que o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) intervinha diretamente nas redações dos jornais brasileiros,
censurando e veiculando notícias de interesse do governo. Ver: ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. O
risco das idéias: intelectuais e a polícia política (1930-1945). São Paulo: Associação Editorial Humanitas:
Fapesp, 2006. pp. 117-135. 87
Além dos ataques a estabelecimentos comerciais e instituições de propriedade de alemães e italianos. 88
Importante notar que houve uma intensa mobilização popular nas principais capitais nacionais, exigindo uma
reação do governo diante dos ataques do U-507 contra os navios mercantes nacionais. Contudo, devemos
considerar que o governo, através do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), exercia amplo controle
sobre os meios de comunicação do país e, assim, indiretamente estava implicado na mobilização e comoção
popular. Ver: CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem guerra – A mobilização e o cotidiano em São Paulo
durante a Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Edusp/Fundação do Desenvolvimento da Educação, 2004. pp.
199-217. 89
SANDER, Roberto. Op. Cit., 2011. pp. 246-247. 90
É importante notar que, de forma indireta, o governo brasileiro, através do DIP, teve grande participação na
incitação da população contra o eixo e em favor do reconhecimento da beligerância contra a Alemanha e a Itália.
Ver: FERRAZ, Francisco César. Os brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2005. pp. 20-32. 91
BRASIL. DECRETO-LEI Nº 10.358, de 31 de agosto de 1942. Disponível em:
http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1940-1949/decreto-10358-1-setembro-1942-467907-
publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 25 abr. 2013.
40
Apesar de já participar efetivamente do esforço de guerra aliado desde 1941, o Brasil
assumia, depois do dia 31 de agosto de 1942, a posição de país beligerante no conflito
mundial. Entretanto, o posicionamento brasileiro como país beligerante não se deu como no
episódio do rompimento de relações diplomáticas com a Alemanha e a Itália, mas foi uma
resposta direta a uma agressão sofrida. Como afirma Jefferson Caffery, embaixador dos
Estados Unidos no Brasil: “A guerra, como a nós, vos foi imposta”92
.
1.2.2 – A participação brasileira na defesa continental: a guerra anti-submarina contra o
eixo e o Teatro de Operações do Nordeste
Em 1939, com o início do conflito na Europa, as nações americanas se organizam e
criam uma série de medidas com a finalidade de afastar a guerra do continente93
. Uma dessas
medidas foi a criação de uma zona de segurança marítima que idealmente estaria livre do
conflito94
. Contudo, essa zona de segurança nunca foi respeitada totalmente, visto que em
vários episódios os países beligerantes europeus realizaram operações de guerra nessa área
supostamente protegida95
.
Logo com o começo do conflito o Brasil, se prontificou em realizar patrulhas pelo
litoral nacional, mesmo que os recursos para tal empreendimento fossem praticamente
inexistentes. Nos primeiros momentos, a patrulha aérea brasileira na zona de segurança
continental foi realizada por apenas duas aeronaves, ambas muito limitadas para a época, e
apenas uma dessas contava com armamento96
.
A ineficiência das forças armadas nacionais era um ponto bastante conhecido pelo
governo, tanto que o presidente Vargas se refere à modernização das armas nacionais como
92
SANDER, Roberto. Op. Cit., 2011. p. 254. 93
Esses esforços se concentraram nas várias Conferências e Reuniões Pan-Americanas que estabeleceram
princípios para a proteção dos países americanos dos efeitos da Segunda Guerra Mundial na Europa. Ver:
BUENO, Clodoaldo. Pan-americanismo e projetos de integração: temas recorrentes na história das relações
hemisféricas (1826-2003). In: Política externa, São Paulo, v.13, n.1, p. 65-80, 2004. 94
Essa foi uma das principais resoluções tomadas na Primeira Reunião de Consultas dos Ministros de Relações
Exteriores das Repúblicas Americanas, que aconteceu entre os dias 23 de setembro e 3 de outubro de 1939.
Disponível em: http://www.oas.org/consejo/pr/RC/atas.asp. Acesso em: 15 fev. 2013. 95
Para citar apenas dois casos: o episódio do navio brasileiro, o Itape, que foi detido por um cruzador britânico
no litoral fluminense; e o caso do navio de guerra alemão Graf Von Spee, que lutou contra navios de guerra da
marinha britânica e depois foi afundado pelo seu comandante, Hans Langsdorff, no porto de Montevidéu, no
Uruguai. Ver: Grande crônica da Segunda Guerra Mundial. Volume III: de Stalingrado a Hiroshima. Rio de
Janeiro: Seleções do Reader‟s Digest. Editora Ypiranga, 1969. p. 275. Ver: POWELL, Michael. A última viagem
do Graf Spee. Rio de Janeiro: Record, 1956. 96
CUNHA, Rudnei Dias da. Uma breve história da aviação de patrulha da Força Aérea Brasileira na IIª
Guerra Mundial. Disponível em: http://www.rudnei.cunha.nom.br/FAB/br/patrulha.html. Acesso em: 15 set.
2012.
41
uma questão vital para a atuação brasileira na guerra97
. Assim, o patrulhamento e a defesa do
litoral brasileiro são uma tarefa literalmente impraticável para as armas nacionais, visto a falta
de materiais tecnológicos e humanos para vigiar o extenso litoral nacional98
. Com efeito, a
tarefa de patrulhamento e a defesa só poderiam ser feitas com o apoio militar dos EUA99
.
Ainda no período de neutralidade continental, quando nenhuma nação americana havia
se envolvido efetivamente no conflito, os EUA já atribuíam importância à proteção da região
nordeste do Brasil. Em 1941, os avanços do eixo no norte da África preocupavam os
estadunidenses quanto à possibilidade de um plano real de invasão das Américas pelo estreito
Dacar-Natal. Assim, somando a importância desta “ponte” estratégica e a incapacidade das
armas brasileira de proteger essa região de seu território, os EUA viram a necessidade urgente
de realizar a proteção dessa região. De fato, a tomada do nordeste brasileiro por forças do eixo
representavam um perigo potencial a todas as nações americanas e poderia ser facilmente
transformado pelo eixo num valioso posto de sustentação para uma possível invasão de suas
forças.
Contudo, devemos notar as dificuldades encontradas entre as forças armadas
estadunidense e brasileira em chegar a um acordo sobre a questão do nordeste brasileiro. Os
militares brasileiros eram relutantes em aceitar a ocupação de qualquer parte do território
nacional por armas estrangeiras, pois isso representaria um ultraje à soberania nacional. Já os
militares estadunidenses viam nas forças armadas brasileiras uma perigosa proximidade e
admiração com as nações do eixo, sobretudo em relação aos oficiais brasileiros, e, por isso,
criavam diversos empecilhos e atrasos no envio de equipamentos e armas para suprir as forças
armadas brasileiras100
.
97
Esse ponto já foi tratado anteriormente, contudo vale lembrar que as tentativas de modernização das armas
brasileiras se deram em duas frentes: contratos com a Alemanha, que foram interrompidos devido ao inicio da
guerra, e, posteriormente, contratos com os EUA. Ver: MOURA, Gerson. Op. Cit., 1991. 98
Referimo-nos, especificamente, à falta de pessoal treinado para a realização de tais operações. Esse tipo de
treinamento só terá início depois do rompimento de relações com a Alemanha e a Itália, em 1942, e será
conduzido pelas forças armadas dos EUA. Quanto ao obsoletismo das armas nacionais, apesar dos intensos
esforços do governo Vargas em implementar a produção moderna de armas, munições, embarcações, aviões e
outros no próprio país, esse quadro só vai mudar depois de 1942, quando os EUA começam a entregar os
modernos materiais bélicos ao Brasil. Ver: ALVES, Vágner Camilo. Op. Cit., 2005. pp. 151-177. 99
Numa nota enviada ao presidente Vargas logo depois do rompimento de relações com Alemanha e Itália, o
Estado Maior brasileiro alerta que “as forças armadas não se achavam suficientemente equipadas para assegurar
a defesa de nosso território”. Ver: LATFALLA, Giovanni. O Estado-Maior do Exército e as negociações
militares Brasil-Estados Unidos entre os anos de 1938 e 1942. In: Caminhos da História. Vassouras, v. 6, n. 2, p.
61-78, jul./dez., 2010. 100
Alguns autores afirmam a existência de um plano estadunidense de invasão e ocupação do nordeste brasileiro,
caso o governo nacional não permitisse que forças estadunidenses utilizassem militarmente a região. Esse plano
chegou a ser cogitado pelo Estado-Maior estadunidense, contudo concluíram que invadir o Brasil poderia trazer
mais problemas que soluções. Ver: www2.uol.com.br/JC/_1999/1710/cd1710b.htm. Acesso em: 8 fev. 2013.
42
Esse quadro só mudaria depois do rompimento das relações diplomáticas do Brasil
com a Alemanha e a Itália, em janeiro de 1942, o que demonstrou, inevitavelmente, a
concretização dos planos de consolidação da aliança econômica e militar entre Brasil e EUA.
Já em abril de 1942, o governo brasileiro vai autorizar a “abertura de todos os portos, bases
aéreas e navais brasileiras às forças do almirante Jonas Ingram”, o comandante das forças
navais no Atlântico Sul101
.
O acordo realizado entre os governos do Brasil e dos EUA em outubro de 1941 é
modificado e é assinado em março de 1942. Esse novo acordo, o Lend & Lease, ou acordo de
empréstimos e arrendamentos com os EUA, passa a vigorar logo de imediato, prevendo, de
modo mais geral, a defesa mútua do continente americano, além de estabelecer normas,
limites e condições para a transferência de armamentos e munições dos EUA para o Brasil e
para o fornecimento de materiais de defesa do Brasil para os EUA102
.
O governo brasileiro vai se mobilizar internamente para enviar aos EUA vários
gêneros importantes para o esforço de guerra dos aliados, tais como: minério de ferro,
borracha, cromo, manganês, níquel, bauxita, tungstênio, diamantes industriais, areias
monazíticas ricas em tório, entre outros.
Os ataques de submarinos do eixo às embarcações brasileiras, antes do
reconhecimento do estado de guerra pelo governo do Brasil, em agosto de 1942, contribuíram
para aproximar o país ainda mais do conflito. Os afundamentos e a ameaça constante sobre a
Marinha Mercante Nacional levaram o Brasil a buscar maior proteção junto aos EUA: a
autorização de atuação e abertura dos portos brasileiros à marinha estadunidense foram os
primeiros esforços nesse sentido. Seguiu-se a criação de duas comissões militares binacionais
em maio de 1942, uma em Washington e outra no Rio de Janeiro, com o intuito de coordenar
as ações conjuntas de defesa.103
Durante a primeira metade de 1942, as forças do eixo, comandadas pelo general
alemão Erwin Rommel, conseguiram importantes vitórias contra os aliados no norte da
101
ALVES, Vágner Camilo. Ilusão desfeita: a “aliança especial” Brasil-Estados Unidos e o poder naval
brasileiro durante e após a Segunda Guerra Mundial. Revista Brasileira de Política Internacional. 2005, vol. 48,
n.1, pp. 151-177. 102
GARCIA, Eugênio Vargas (Org.). Op. Cit., 2008. p. 446-449. 103
Essas comissões foram de grande importância, visto que, através delas, foram realizados acordos importantes
na defesa conjunta do litoral brasileiro. Foi também por meio dessas comissões que a Marinha e a Força Aérea
Brasileira receberam equipamentos e treinamento e foram integradas às ações de defesa do Atlântico Sul. Ver:
ALVES, Vágner Camilo. Op. Cit., 2005. pp. 151-177.
43
África. Esses êxitos militares colocavam em xeque a segurança das Américas104
. Para o
comando de guerra estadunidense, o ponto provável de uma invasão do eixo seria o nordeste
brasileiro.105
A preocupação é tamanha que o embaixador brasileiro nos EUA, Carlos Martins,
envia uma carta ao ministro de Relações Exteriores, Oswaldo Aranha, comunicando as
apreensões estadunidenses sobre o assunto:
A situação na América do Sul voltou a tomar vulto nas rodas políticas e nos órgãos
de opinião pública. Os motivos foram as recentes vitórias de Rommel (...). Que uma
vitória alemã na África do Norte é condição preparatória para eventual ataque contra
o Brasil não resta dúvida. Que um ataque à América do Sul seria o melhor caminho
para um ataque aos Estados unidos é verdade atestada, frequentemente até nos
discursos do presidente Roosevelt. Entretanto, essa possibilidade depende da
abertura da segunda frente. Se a segunda frente for aberta pela Alemanha, uma vez
terminada a sua campanha oriental na Rússia e no Egito, a América do Sul estará
plenamente dentro da esfera de perigo de guerra. Se a segunda frente for aberta pelos
Estados Unidos ou pela Grã-Bretanha, a América do Sul terá a garantia de
segurança. A verdade é que o hemisfério inteiro, direta ou indiretamente, está
envolvido no problema da segunda frente, solução não só para a Rússia e o Egito,
para os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, como para o Brasil e demais países sul-
americanos.106
Nessa mensagem do embaixador brasileiro, podemos perceber como o nordeste
brasileiro era destacado como local vital para a guerra nas Américas, mas ainda podemos
destacar um ponto de grande importância: a possibilidade da abertura da “segunda frente”
pelos EUA ou pela Grã-Bretanha. O que de fato viria a acontecer no final de 1942, quando as
forças armadas estadunidenses colocariam em prática a Operation Torch, utilizando bases no
nordeste brasileiro para a intensa movimentação de tropas, suprimentos e armas para a frente
de batalha criada no norte da África. 107
A declaração de estado de guerra em todo o território nacional, feita no dia 31 de
agosto pelo governo brasileiro, ampliaria ainda mais as relações de ação conjunta entre
militares do Brasil e dos EUA. Quase que imediatamente é adotado o sistema de comboios
nas navegações entre os portos nacionais, visto que esse sistema já vigorava para a navegação
104
A fama de Rommel era notável. A “Raposa do Deserto”, como foi apelidado, foi responsável direto pelo
sucesso do eixo no norte da África. Sua competência foi reconhecida por diversas personalidades, entre estas o
próprio primeiro ministro inglês, Winston Churchill. Ver: CHURCHILL, S. Winston. Memórias da Segunda
Guerra Mundial. V. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. 105
MORTON, Louis. As grandes decisões estratégicas: Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército, 2004. 106
SANDER, Roberto. Op. Cit., 2011. pp. 186-187. 107
É importante notar que algumas bases no nordeste brasileiro foram de extrema importância estratégica para a
ação de guerra estadunidense, sobretudo a base de Parnamirim, ou Parnamirim Field, que se tornou peça
fundamental para a Operation Torch. Para além de esforços defensivos, o nordeste brasileiro foi ponto-chave
para o desencadeamento das ofensivas estadunidenses no norte africano. Ver: KELLY, Orr. Meeting the Fox:
The Allied Invasion of Africa, from Operation Torch to Kasserine Pass to Victory in Tunisia. Wiley. 2002.
44
internacional. Em setembro, a força naval brasileira é integrada operacionalmente à Marinha
de guerra dos EUA, que já vinha realizando a proteção do litoral brasileiro desde dezembro de
1941.
As comissões militares binacionais, através do Lend & Lease, foram responsáveis
diretamente pelos esforços na defesa do nordeste brasileiro e, consequentemente, das águas do
Atlântico Sul, pelo reequipamento e treinamento da Marinha de Guerra e da Força Aérea
Brasileira, que atuaram em conjunto com as forças estadunidenses. Até o fim do conflito,
foram afundadas 34 embarcações nacionais, culminando na morte de 1.081 brasileiros108
,
além do afundamento de mais 39 embarcações estrangeiras no litoral brasileiro, entre os anos
de 1942-1945109
. Ainda é importante notar que a campanha aliada anti-submarina no
Atlântico Sul foi responsável pelo afundamento de pelo menos 11 submarinos do eixo,
contabilizando, ainda, várias ações de ataque a submarinos que não resultaram em
afundamentos110
.
Apesar da atuação diminuta das forças armadas brasileiras111
, devemos considerar que
as ações militares nacionais, nesse momento, foram consideráveis para o esforço de guerra
aliado e de bastante envergadura, se considerarmos o quadro operacional das forças armadas
nacionais naquele momento: a instalação e ampliação de bases aéreas e navais em importantes
cidades do nordeste; a ampliação do efetivo do Exército na região, de 5 mil para 60 mil
homens; a criação do Teatro de Operações do Nordeste, com a consecutiva instalação de
bases e postos de vigilância em diversos locais estratégicos ao longo do litoral; o constante
treinamento e a atuação da Marinha e da Aeronáutica brasileira na guerra anti-submarina; e as
operações anti-submarinos e de escolta a navios mercantes que circulavam pelo Atlântico
Sul112
.
Neste sentido, é importante destacar que os esforços para a efetivação, mesmo que
limitada, do Teatro de Operações do Nordeste, envolveu milhares de civis e militares
brasileiros que atuaram, notadamente sob a tutela extraoficial dos EUA, contribuindo
108
SANDER, Roberto. Op. Cit., 2011. 109
SILVA, Marcelo. Marinha Mercante Brasileira na II Guerra Mundial. Disponível em:
http://www.marcelosilva.com.br/?p=455. Acesso em: 26 fev. 2013. 110
DUARTE, Paulo de Queiroz. Dias de guerra no atlântico sul. Bibliex: Rio de Janeiro, 1968. 111
Classificamos como diminuta, se compararmos a participação brasileira ao esforço de guerra dos Estados
Unidos, que já atuavam na batalha do pacífico contra o império japonês e desde fins de 1942 contra a Itália e a
Alemanha na batalha pelo norte africano. 112
MATTOS, General Carlos Meira. O Brasil na II Guerra Mundial. In: O Globo Expedicionário. Agência
Globo: Rio de Janeiro, 1985.
45
ativamente para o esforço de guerra dos aliados113
. As ações militares no nordeste brasileiro
são, grosso modo, a maior expressão da participação brasileira no conflito mundial,
superando, inclusive, o posterior envio da FEB para o conflito na Europa.
1.2.3 – Mobilização interna e esforço de guerra brasileiro
O envolvimento brasileiro no conflito se deu, inicialmente, de forma indireta. Na
prática, o Brasil passou a colaborar ativamente com os EUA, nação oficialmente neutra até
dezembro de 1941, e, assim, indiretamente, contribuía com os esforços de guerra da Grã-
Bretanha. Contudo, depois da entrada efetiva dos EUA no conflito e, posteriormente, com o
rompimento de relações diplomáticas do governo brasileiro com a Alemanha e a Itália, o
Brasil assume uma participação mais efetiva no conflito, ou seja, os ataques de submarinos do
eixo, amplamente veiculadas pelos meios de comunicação nacionais, durante a primeira
metade de 1942, materializaram a guerra no Brasil.
Essas manifestações ocorreram nos principais centros urbanos nacionais, sobretudo na
capital federal, o Rio de Janeiro. Em sua maioria, foram organizados por estudantes, mas
também contaram com ampla adesão popular de vários setores sociais, como bancos, clubes,
sindicatos e outros. A população saiu às ruas com cartazes e faixas exigindo uma atitude do
governo contra as nações do eixo, repudiando os afundamentos e exigindo justiça.
Uma nova sequência de ataques a embarcações brasileiras, realizadas pelo submarino
alemão U-507 em agosto de 1942, e a divulgação em grande escala desses afundamentos pela
mídia nacional foram responsáveis pela intensificação dessas manifestações contra as nações
do eixo.
Os ataques submarinos vitimaram mais de 600 brasileiros e, rapidamente, as notícias
se espalharam por todo o país, impulsionando uma nova onda de protestos populares
motivadas pelas ações de guerra promovidas pelo eixo contra o Brasil. Essas manifestações
tomaram as ruas das principais cidades brasileiras e exigiam uma resposta do governo contra
as nações do eixo114
.
113
A atuação brasileira na defesa do Atlântico Sul ainda é um tema muito pouco estudado no Brasil. A
bibliografia sobre esse tema é bastante escassa. Ver: DUARTE, Paulo de Queiroz. Op. Cit., 1971. 114
A intensidade se deu, sobretudo, nos grandes centros urbanos do Brasil. Evidentemente ocorreram
manifestações em algumas cidades interioranas, assim como ações violentas. No entanto, é impossível
estabelecer um quadro mais ampliado acerca dessas manifestações populares no Brasil. Ver: SANDER, Roberto.
Op. Cit., 2011. pp. 242-251.
46
Em 22 de agosto de 1942 o governo brasileiro reconhece o estado de beligerância com
a Alemanha e a Itália e, no dia 31 do mesmo mês, o presidente Vargas declara o estado de
guerra em todo o território nacional115
. Ambas as medidas equivaleram a uma declaração de
guerra do Brasil contra a Alemanha e a Itália e, efetivamente, atenderam às manifestações
populares que pediam a entrada brasileira no conflito.
Essas medidas alcançaram alguns objetivos do governo brasileiro: reforçar a nova
postura de alinhamento do Brasil com os EUA e com os aliados e expressar, publicamente, à
população brasileira o posicionamento internacional do governo, além de ir ao encontro das
várias manifestações populares que exigiam uma resposta do governo em relação aos ataques
dos submarinos nazifascistas.
Mesmo que esse novo posicionamento fosse contraditório, o governo brasileiro tentou,
mesmo que simbolicamente, demonstrar essas mudanças na prática116
. O exemplo mais
significativo dessas “novas mudanças” forma as demissões de importantes membros do
governo que se declaravam abertamente pró-eixo: por exemplo, o chefe da Polícia Política do
Distrito Federal, Filinto Müller; o ministro da Justiça, Francisco Campos; e o diretor do DIP,
Lourival Fontes117
.
O caso de Filinto Müller demonstra bem como o governo capitalizou certos eventos
para autopromoção. Ainda em julho de 1942, Müller tentou impedir uma manifestação pró-
aliados promovida pela UNE no Rio de Janeiro. Entretanto, o ministro da Justiça interino,
Vasco Leitão da Cunha, havia autorizado tal manifestação. O episódio gerou um desafeto
entre os dois e terminou com o afastamento de Müller de seu cargo. A manifestação acabou
por acontecer como estava programada, e foi capitalizada em prol da ação do governo,
contando com a participação do próprio Vasco Leitão da Cunha e, inclusive, da filha do
presidente, Alzira Vargas118
.
115
Vale notar que o governo brasileiro não faz propriamente uma declaração de guerra contra a Alemanha e a
Itália. O governo brasileiro, primeiramente, reconhece o estado de beligerância e, depois, anuncia uma
declaração de estado de guerra no território nacional, que na prática vão equivaler à declaração de guerra. A
posição assumida pelo governo brasileiro é muito similar à posição dos EUA depois do ataque de Pearl Harbor:
há um reconhecimento do estado de guerra; é uma resposta a agressões sofridas. Ver: GARCIA, Eugênio Vargas
(org.). Op. Cit., 2008. pp. 450-451. 116
A contradição a que fazemos referência é o fato de uma ditadura que cunho personalista e nacionalista, como
era o caso do Brasil na época, se posicionar ao lado de nações “democráticas” que lutavam contra regimes
ditatoriais de cunhos personalistas, nacionalistas e antidemocráticas. 117
Todos citados foram demitidos no mesmo dia, em 17 de julho de 1942. Ver: ABREU, Alzira et al. Dicionário
Histórico-Biográfico Brasileiro (Pós 1930). Rev. Amp. Atual. Rio de Janeiro: Editora FGV; CPDOC, 2001. v. 1. 118
ABREU, Alzira Alves & BELOCH, Israel. (Coord.). Dicionário histórico biográfico brasileiro pós 1930. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/
biografias/filinto_muller. Acesso em: 25 abr. 2013.
47
Essas manifestações podem ser entendidas sob dois aspectos: primeiramente, como
protestos de origem genuinamente populares, que surgiram como uma resposta aos
afundamentos dos navios mercantes brasileiros, e que, em certa medida, estiveram fora do
alcance e controle direto do Estado Novo; num segundo momento, essas manifestações
passam a ter maior intervenção do governo, mais especificamente do DIP, que apoiou e
incentivou de variadas formas esses movimentos populares, inclusive com a presença de
membros importantes do governo e com a cobertura e divulgação dessas manifestações na
imprensa nacional.
Neste sentido, as manifestações populares pró-aliados e em favor da entrada brasileira
na guerra podem ser entendidas tanto como um elemento de pressão para a tomada de atitude
do governo brasileiro como um elemento relativamente manipulado por órgãos
governamentais, visando a justificar publicamente a nova postura brasileira junto à população
e também às autoridades aliadas.
A postura assumida pelo governo brasileiro traz, em si mesma, uma contradição, um
estado ditatorial abertamente antidemocrático, que exercia intenso controle sobre a vida da
população civil, como era o caso do Estado Novo brasileiro, se alinhava a nações
democráticas e liberais na luta contra estados ditatoriais europeus. A contradição era latente:
se lutava por liberdades contra o nazismo e o fascismo, contudo o próprio país vivia num
contexto antidemocrático, autoritário, com a presença de repressão política e ideológica,
censura dos meios de comunicação, etc.119
Assim, o Estado Novo consolida sua importância através de um discurso de uma
pretensa necessidade da existência de um “regime forte”, que pudesse agir para a defesa e
manutenção da nação sem os entraves legais de um regime liberal democrático. Ou seja, o
Estado Novo se mantém sob o discurso de que a excepcionalidade do contexto da guerra
justificava sua própria existência, um
novidade, visto que, desde 1935, o governo brasileiro manteve um estado de exceção governo
forte, ditatorial e autoritário, que pudesse tomar atitudes radicais frente à ameaça da guerra.
Neste sentido, o governo brasileiro se envolveu no conflito de forma a não ameaçar sua
própria existência.
Essa postura da ditadura varguista não foi, exclusivamente sob a justificativa de
“manutenção da ordem” e de “proteção nacional”. O governo difundiu, constantemente, a
119
Talvez seja relevante relativizar os ideais “democráticos e libertários” das nações aliadas, visto que o
conjunto dessa aliança comportou regimes muito diversos, nos quais os conceitos de liberdade e democracia
assumem significados relativamente diferentes.
48
figura de um “inimigo da pátria”, grupos que, segundo o governo, ameaçavam o
desenvolvimento e o progresso da nação, e que, por isso, deveriam ser combatidos por um
estado “forte”120
. Sob essa justificativa, Vargas conseguiu suprimir os instrumentos
democráticos e efetivamente dar o golpe que culminou na ditadura do Estado Novo.
Inicialmente, o “inimigo” era a suposta ameaça de uma tentativa de golpe comunista no
Brasil121
. Contudo, no contexto da entrada brasileira na Segunda Guerra Mundial, essa figura
do “inimigo da pátria” ia sendo modificada. A justificativa para as ações extremas do governo
vai ganhar novos contornos. Além da ameaça submarina das marinhas de guerra da Alemanha
e da Itália, devemos considerar os espiões estrangeiros, o “quinta-coluna”, elementos que
estariam realizando sabotagens para atrasar a entrada brasileira no conflito e também
colaborando com as ações dos espiões nazistas em território nacional, além de todos aqueles
que não contribuíram para o esforço de guerra brasileiro.122
Essa nova gama de “ameaças” vai possibilitar ao governo brasileiro a tomada de ações
emergenciais, no sentido de conter os “inimigos da pátria”. Importante lembrar que medidas
nesse sentido já vinham sendo realizadas contra grupos estrangeiros desde o golpe que
instaurou a ditadura do Estado Novo, em 1937. Ou seja, apesar das visíveis inspirações e
similitudes entre o Estado Novo brasileiro e os regimes de extrema direita europeus, devemos
notar que a proximidade entre a ditadura brasileira e os regimes do eixo nunca foram
exclusivamente amistosos.
Desde fins de 1937, quando a ditadura brasileira foi efetivada, o governo estado-
novista levou a cabo várias medidas internas que, de uma maneira ou outra, cercearam
direitos de grupos de estrangeiros e seus descendentes dentro do território nacional. Essas
medidas, tomadas no sentido de conter os “súditos do eixo”, acabaram por gerar grande
120
A lógica adotada pelo Estado Novo brasileiro assume o principio de razão de Estado, visando a,
exclusivamente, sua própria preservação. Ainda poderíamos relacionar a lógica estado-novista com a teoria
proposta por Carl Schmitt do “amigo/inimigo”. Ver: SCHMITT, Carl. O Conceito do Político – Teoria do
Partisan. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. pp. 1-141. 121
Desde a tentativa fracassada de golpe comunista em 1935, o governo vinha utilizando a ideia de uma
constante ameaça comunista, o que justificou ações de caráter ditatoriais e anticonstitucionais, tais como o
“estado de emergência” em 1935, as “Leis de Segurança Nacional”, o “estado de guerra” decretado no país em
março de 1936, assim como a criação do o Tribunal de Segurança Nacional e do Departamento de Imprensa e
Propaganda, o DIP. O elemento “justificador” do golpe que instituiu o Estado Novo foi, inclusive, a descoberta
do suposto plano de golpe comunista, denominado plano Cohen. Ver: CARNEIRO, Glauco. História das
revoluções brasileiras. 2º volume: Da revolução liberal à revolução de 31 de março (1930/1964). Rio de
Janeiro: O Cruzeiro, 1965. pp. 415-435. 122
Sobre a questão da presença de espiões no Brasil durante a Segunda Guerra. Ver: SANDER, Roberto. Op.
Cit., 2011. pp.95-140.
49
insatisfação nos governos da Itália e da Alemanha123
. As primeiras ações, relativamente mais
brandas, vão motivar uma grave crise diplomática entre o Brasil e a Alemanha124
.
O Estado Novo instituiu medidas com a finalidade de coibir a ação de grupos
estrangeiros dentro do país, sobretudo no que diz respeito às atividades políticas e ideológicas.
Cerceou direitos de estrangeiros, colocou na ilegalidade grupos e associações de estrangeiros
e seus descendentes e destinou tratamento diferenciado aos estrangeiros no país, sobretudo
aos de origem alemã, italiana e japonesa125
.
As medidas contrárias aos estrangeiros se pautaram em dois decretos-leis: o de nº 383,
de 18 de abril de 1938, e o de nº 431, de 18 de maio de 1938126
. O primeiro estabelece uma
série de proibições políticas e mesmo culturais, relativas aos estrangeiros que residem no
Brasil, vedando a eles qualquer participação na política nacional, e também alijando
elementos culturais dos imigrantes, como o ensino da língua natal nas escolas em território
nacional, conjuntamente à instituição, a obrigatoriedade do ensino da língua portuguesa em
todas as escolas. O Estado Novo ainda promoveu uma caçada aos clubes, jornais, grupos e
associações de caráter internacional, políticos ou mesmo culturais, proibindo-os e os
considerando ilegais127
.
O segundo foi ainda mais severo, prevendo penalidades para crimes contra “a
personalidade internacional, a estrutura e a segurança do Estado”, punidos com prisão e
mesmo com a sentença de morte128
. Esse decreto-lei pode ser entendido como uma
justificativa legal para a prática da reclusão de emigrantes alemães, japoneses e italianos que
viviam no Brasil e foram acusados ou considerados suspeitos de atentar contra o Estado
brasileiro.
123
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. O Brasil vai à guerra: o processo do envolvimento brasileiro na
Segunda Guerra Mundial. 3. ed. Barueri, SP: Manole, 2003. pp. 64-140. 124
Sobretudo no que diz respeito à proibição das atividades do partido nazista no Brasil, que funcionou
legalmente no por quase dez anos, atuou em 17 Estados brasileiros, com sede nacional em São Paulo e
escritórios no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul, e oficialmente contou com quase três
mil membros. Ver: DIETRICH, Ana Maria. Nazismo tropical? O partido nazista no Brasil. São Paulo: Todas as
musas, Janeiro de 2007. 125
Apesar da existência de uma extensa ramificação da espionagem nazista na América do Sul, grandes partes
dos estrangeiros presos nesse período não tinham qualquer relação com as atividades de espionagem do eixo no
Brasil. Ver: PERAZZO, Priscila Ferreira. Op. Cit., 1999. 126
O primeiro decreto esta disponível em: GARCIA, Eugênio Vargas (Org.). Op. Cit., 2008. pp. 421-432. Para
consultar o segundo decreto, ver: disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/126751/decreto-lei-431-
38. Acesso em: 24 jun. 2013. 127
Vários clubes desportivos foram obrigados a mudarem de nome, visto que esses faziam alusão às nações com
que o Brasil se encontrava em guerra. Ver: PERAZZO, Priscila Ferreira. Op. Cit., 1999. 128
Penalidade que, de fato, nunca chegou a ser aplicada legalmente durante a vigência da ditadura do Estado
Novo. Ver: SOUSA, Bruna Maggi de. A pena de morte no Brasil. Disponível em:
http://www.viajus.com.br/viajus.php?pagina=artigos&id=50. Acesso em: 22 mai. 2013.
50
Depois da primeira metade do ano de 1942, as medidas do governo brasileiro contra os
“súditos do eixo” vão se tornar cada vez mais severas, sobretudo depois dos consecutivos
afundamentos de navios mercantes brasileiros e do reconhecimento do estado de beligerância
com a Alemanha e a Itália em agosto do mesmo ano. A ação da espionagem nazista no Brasil
e em outros países da América Latina contribuiu diretamente para o sucesso das ações
submarinas no Atlântico Sul, e isso fez com que o governo brasileiro intensificasse a
perseguição policial contra espiões nazistas e seus colaboradores em território nacional129
.
Foram criados pelo menos 12 campos de prisioneiros em território nacional,
destinados exclusivamente à reclusão de estrangeiros suspeitos de espionagem, atividades
antibrasileiras ou prisioneiros de guerra130
. Para além desses locais especialmente criados para
detenção dos “inimigos da pátria”, existem relatos de prisões que também receberam “súditos
do eixo” como, por exemplo, o hospício Oscar Schneider, em Joinville, Santa Catarina, ou as
prisões em Ilha Grande e na Ilha das Flores, no Rio de Janeiro. Outros tantos suspeitos eram
detidos nas próprias delegacias de polícia131
.
Foram presas várias pessoas consideradas “inimigos da pátria”; a polícia política
brasileira investigou estrangeiros, sobretudo italianos, alemães e japoneses, considerados
“potencialmente perigosos à nação”. Acredita-se que o governo brasileiro tenha detido, nesses
campos, entre 3 mil e 5 mil “súditos do eixo”, que foram mantidos presos durante o período
da participação brasileira no conflito, entre 1942 e 1945132
.
A mobilização interna e o esforço de guerra brasileiro giraram especificamente no
sentido de instituir uma ideia de constante luta contra o inimigo nazifascista junto à população
brasileira. Isso possibilitou ao governo uma espécie de justificativa para a manutenção do
regime ditatorial, além de um salvo-conduto para cumprir seus deveres junto aos aliados,
129
Em relação ao funcionamento da rede de espionagem nazista no Brasil, ver: SANDER, Roberto. O Brasil na
mira de Hitler: a história do afundamento de 34 navios brasileiros pelos nazistas. Rio de Janeiro: Objetiva,
2011. pp. 95-148. 130
Foram cinco campos no Estado de São Paulo, em Guaratinguetá, Pindamonhangaba, Bauru, Pirassununga e
Ribeirão Preto; um no Rio Grande do Sul, em Daltro Filho; um em Santa Catarina, em Trindade; um no Paraná,
em Curitiba; um no Rio de Janeiro, em Niterói; um nas Minas Gerais, em Pouso Alegre; um em Pernambuco, em
Araçoiaba (Chã Estevam), e um no Pará, em Tomé-Açu. Ver: DIETRICH, Ana Maria, Caça às suásticas, o
Partido Nazista em São Paulo sob a mira da Polícia Política. São Paulo: Humanitas/Fapesp/Imprensa Oficial,
2007. pp. 75-204. 131
DIETRICH, Ana Maria, Op. Cit.,, 2007. pp. 75-204. 132
DIAS, Valéria. Brasil colocou alemães, italianos e japoneses em campos de concentração na 2ª Guerra.
Disponível em: http://integras.blogspot.com/2009/07/brasil-colocou-alemaes-italianos-e.html. Acesso em: 22
mai. 2013.
51
tanto no sentido da produção de materiais estratégicos enviados para as frentes de batalha
como na ampliação do apoio militar brasileiro ao esforço de guerra aliado133
.
Através do DIP, o governo tentou promover uma ampla mobilização nacional em
torno da luta contra o nazi-fascismo. De forma geral, o Estado Novo convocou as massas
populares para lutarem na guerra contra os inimigos da nação. Evidentemente, a ideia de luta
seria diferente para cada brasileiro; cada um, em seu local específico, contribuiria para a
vitória contra as forças que hostilizavam o país naquele momento. No discurso pronunciado
pelo presidente Vargas no dia 7 de setembro de 1942, podemos perceber a extensão da
mobilização nacional em torno da guerra:
A declaração do estado de beligerância colocou-nos na posição de combatentes, e,
de acordo com ela, já assentamos os planos de trabalho e de ação. Militarmente,
teremos de completar a mobilização para fazer face às necessidades efetivas da
guerra. No setor econômico, chefes de empresa e operários cerram fileiras em torno
do governo; e, estou certo, em benefício coletivo, ninguém poupará esforços ou
bens. Os dissídios classistas e os choques de natureza política não nos farão,
felizmente, perder tempo. Existe, generalizada, a firme compreensão de que
precisamos nos unir e esquecer divergências e particularismos, para só cuidarmos
dos objetivos supremos da defesa da pátria. (...)134
.
Esse discurso, proferido logo depois da entrada brasileira na guerra, traz vários
elementos importantes: a ideia de que a vontade popular, expressa pelos inúmeros protestos
públicos, teria sido responsável direta pelo reconhecimento do estado de guerra por parte do
governo. Há intenção de criar, mesmo que aparentemente, uma relação direta entre a
população e o governo.
Vargas ainda traz a questão da nova condição em que se encontrava o país, o estado de
guerra. Segundo o governo, a guerra trazia consigo exigência de sacrifícios coletivos para a
defesa da nação, impondo à condição de combatentes a todos os brasileiros. É
necessariamente a ideia de união da nação, que todos os brasileiros, “soldados” militares e
civis coletivamente combatessem o inimigo, esquecendo as divergências políticas, ideológicas
ou particularismos.
133
Essa ampliação do apoio militar visava também à concretização da modernização das forças armadas
nacionais através de crédito para a compra de materiais bélicos estadunidenses. Durante o período da Guerra, o
apoio militar brasileiro vai se efetivar, tanto nas ações de defesa realizadas no litoral brasileiro quanto no envio
da Força Expedicionária Brasileira e de um grupo de caças da Força Aérea Brasileira para atuação na frente de
batalha no norte da Itália. Ver: COSTA, Octavio. Jornal de guerra. In: O Globo Expedicionário. Agência Globo:
Rio de Janeiro, 1985. 134
Discurso pronunciado pelo presidente Getúlio Vargas no dia 7 de setembro de 1942, no Estádio do Vasco da
Gama, na cidade do Rio de Janeiro, na ocasião das comemorações do Dia da Independência. Ver: D‟ARAUJO
Maria Celina (Org.). Op. Cit., 2011. pp. 449-452.
52
Podemos perceber, na fala do presidente, a ideia de dever, que se impõe acima de
quaisquer divergências internas, uma obrigação quase natural de defender a pátria de qualquer
“inimigo”. Ou seja, o Estado colocava o esforço conjunto para a defesa da nação como
imperioso, assim como a necessidade da constituição da “frente interna”, a guerra inserida no
meio da própria população civil.
O DIP vai ser responsável por levar esse “espírito” de guerra para o meio popular,
através de cartazes, filmes e programas radiofônicos135
. Podemos notar, também, uma
mudança na linguagem utilizada pelo governo, no qual a temática da guerra vai ganhar
destaque central; termos como “batalha da produção”, “soldado da borracha”, “bônus de
guerra”, “pão de guerra”, entre outros, são inseridos no cotidiano brasileiro136
.
Além das notícias sobre a guerra na Europa e das propagandas acerca da mobilização
interna e das ações militares no litoral brasileiro, a população percebeu a guerra de outras
formas. Notadamente, o conflito foi sentido de formas distintas em diferentes regiões do país:
os centros urbanos e o litoral do nordeste brasileiro foram os locais mais impactados, e
algumas regiões interioranas tiveram uma relação menos impactante com o conflito137
.
De forma geral, o envolvimento brasileiro na Segunda Guerra Mundial se deu de duas
maneiras: através de atuação militar, que se constituiu de ações militares na defesa do litoral
brasileiro e do Atlântico Sul em conjunto com as forças armadas estadunidenses, e no envio
de efetivos militares para lutar na frente de batalha do norte da Itália138
. E, também, através da
colaboração econômica brasileira com o esforço de guerra estadunidense, seguindo os
135
Ver: PAULO, Heloísa Helena de Jesus. O DIP e a juventude – Ideologia e propaganda estatal. Revista
Brasileira de História. São Paulo, v. 7. n. 14. pp. 99-113. mar./ago. 1987. 136
A divulgação da guerra no cotidiano brasileiro se deu de várias formas, através de jornais impressos, do
cinema e, sobretudo, através do rádio. A radiodifusão foi extremamente ampliada no Brasil durante o período
Vargas (1930-1945), e seu uso como ferramenta de divulgação foi fundamental para a promoção da guerra e das
ações do Estado Novo, ajudando a estabelecer uma interlocução, aparentemente estreita entre população e
governo. Ver: HAUSSEN, Doris Fagundes. Rádio e política: tempos de Vargas e Perón. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2001, 2ª ed. p. 13. 137
Precisar a relação que cada região teve com o conflito é tarefa bastante complexa e ainda a ser realizada.
Contudo, devemos relativizar um pouco a ideia de que regiões interioranas do país ficaram “ilesas” dos efeitos
da guerra. De uma maneira ou de outra, as notícias da guerra e as políticas de mobilização do Estado Novo
chegavam a regiões nacionais bastante afastadas dos centros urbanos nacionais. Ver: AMARAL, Karla Cristina
de Castro. Getúlio Vargas – O criador de ilusões. Trabalho apresentado no NP03 – Núcleo de Pesquisa,
Publicidade, Propaganda e Maketing, XXV Congresso Anual em Ciência da Comunicação, Salvador/BA, 4 e 5.
Set. 2002. p. 3. 138
Em relação à atuação militar brasileira interna, o assunto já foi abordado anteriormente. A atuação militar no
estrangeiro se constituiu no preparo e envio de uma FEB, contando com mais de 25 mil homens, divididos em
infantaria, artilharia, grupo médico, grupo de observação, grupo de caça da Força Aérea Brasileira, entre outros
efetivos. Ver: MATTOS, General Carlos Meira. Op. Cit., 1985.
53
princípios do artigo V do “Acordo de Empréstimos e Arrendamentos” firmado com os EUA
em 3 de março de 1942139
.
A questão da mobilização econômica gerou inúmeros desdobramentos junto à
população civil: possibilitou arbitrariedades por parte do governo e dos patrões, justificadas
pelo “dever de lutar” conferido a todos os brasileiros. Na prática e no discurso, o Estado Novo
cria a “frente interna”, a guerra é estendida ao cotidiano dos brasileiros e os cidadãos tomados
como soldados na batalha pela ampliação da produção, que segundo os discursos
governamentais, era tão importante quanto as militares nas frentes de batalha. Para o Estado
Novo, a guerra só seria vencida por essas duas frentes de batalha: a militar e a econômica140
.
Desde o início do conflito na Europa, em 1939, o governo brasileiro tomou medidas
para assegurar a economia nacional e criou a Comissão de Defesa da Economia Nacional e a
Comissão de Abastecimento. No entanto, depois da entrada do Brasil na guerra, essas duas
comissões são substituídas pela Coordenação da Mobilização Econômica.
Através do decreto-lei nº 4.750, de 28 de setembro de 1942, o governo cria a
Coordenação de Mobilização Econômica, com o intuito de mobilizar os recursos econômicos
brasileiros em prol da guerra141
. A mobilização coloca a serviço do Brasil, ou mais
especificamente do Estado Novo, todos os recursos econômicos existentes no território
nacional, inclusive o trabalho humano. Além de criar a Coordenação de Mobilização
Econômica, o referido decreto-lei institui suas competências que, de modo geral, são: a
coordenação da produção de artigos de grande necessidade; o planejamento, a direção e
fiscalização do racionamento de determinados gêneros; e o julgamento de crimes contra as
determinações da Coordenação de Mobilização Econômica.
A Coordenação de Mobilização Econômica foi criada como órgão federal logo depois
do decreto nº 4.750, ainda em setembro de 1942. Estava diretamente subordinada ao
presidente da República e possuía escritórios nas principais capitais. Durante sua existência
139
GARCIA, Eugênio Vargas (Org.). Op. Cit., 2008. pp. 446-449. 140
A reorientação econômica nacional se deu depois dos “acordos de Washington”. Efetivamente, depois da
entrada dos EUA no conflito, o que reorientou a política econômica estadunidense na América Latina, visando,
sobretudo, ao esforço de guerra. Ver: BANDEIRA, Luiz Alberto de Vianna Moniz. Presença dos Estados
Unidos no Brasil (dois séculos de História). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1973. 141
BRASIL. Decreto-lei nº 4750, de 28 de setembro de 1942. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-4750-28-setembro-1942-414829-
publicacaooriginal-1-pe.html . Acesso em: 8 jun. 2013.
54
teve três coordenadores: João Alberto Lins de Barros, João Carlos Vidal e o general Anápio
Gomes. Logo depois do fim da guerra, o órgão foi dissolvido142
.
Através desse órgão, o Estado Novo pode intervir diretamente na economia,
controlando a produção de gêneros importantes para o esforço de guerra. Em alguns setores, a
intervenção era incomensurável, e o Estado aumentava as jornadas de trabalho, proibia folgas,
férias e outros direitos dos trabalhadores. Faltas e abandono de trabalho eram punidos com
severidade, e o trabalhador que descumprisse as exigências poderia ser condenado até como
desertor. O termo “batalha da produção” foi efetivamente levado a sério, e trabalhadores de
setores estratégicos, tais como comunicações, mineração, indústria e até mesmo a agricultura
e a pecuária, foram sujeitos a exigências extremas da Coordenação de Mobilização
Econômica143
.
Em certas áreas, a mobilização econômica e o racionamento de alguns artigos
obedeciam a demandas e escassez provenientes da guerra144
. Em alguns casos, a produção de
armas, munições e peças para aparelhos bélicos nos EUA estavam relativamente ligadas ao
fornecimento de produtos brasileiros, tais como manganês, bauxita, cobalto, tungstênio,
níquel, berilo, cromo, cristais de quartzo, diamantes industriais entre outros. Foram, também,
exportados, para as nações aliadas, vários gêneros alimentícios, como café, cacau, açúcar,
entre outros145
.
Um produto brasileiro em especifico teve atenção especial da mobilização econômica:
a borracha extraída das seringueiras do norte do país. A borracha era um produto de extrema
importância para a indústria bélica aliada. Depois do início do conflito no Pacífico, em 1941,
o acesso aos mercados produtores de borracha do leste asiático se tornou impossível146
. A
142
Coordenação da Mobilização Econômica. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/
AEraVargas1/ anos37-5/OBrasilNaGuerra/MobilizacaoEconomica. Acesso em: 5 mai. 2013. 143
CAPELATO, Maria Helena Rolim. O Estado Novo: o que houve de novo?. In: O Brasil Republicano: o
tempo do nacional-estadismo. V. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. pp. 107-143. 144
Para Roney Cytrynowicz, a mobilização nacional e os racionamentos teriam obedecido a princípios do Estado
Novo, e não propriamente às demandas da guerra. Contudo, é importante relativizar tal afirmação, visto que, em
decorrência do fim da importação de vários produtos ou da ampliação da exportação de outros, a escassez desses
gêneros no mercado brasileiro era inevitável, logo o racionamento ou mesmo a inexistência de tais produtos
disponíveis à população. Ver: CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em
São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. São Paulo: EDUSP, 2003. pp. 199-217. 145
FERRAZ, Francisco César. Os brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2005. 146
A ampliação dos domínios do Império Japonês sobre as regiões produtoras de borracha no leste asiático
foram responsáveis por impedir o acesso dos aliados a essa produção, vital para a indústria bélica dos EUA. O
fornecimento de borracha natural do leste asiático representava 90% do total do consumo estadunidense desse
produto. Ver: DEAN, Warren. A luta pela borracha no Brasil. São Paulo: Nobel, 1989. pp. 131-154.
55
produção brasileira de borracha foi uma das saídas para suprir o abastecimento das indústrias
bélicas estadunidenses.
A ampliação da produção de borracha no Brasil foi tomada pelas autoridades como
uma verdadeira operação militar, ficando denominada como “batalha da borracha”, e os
brasileiros que foram empregados para a extração da borracha em meio à selva amazônica
ficaram conhecidos como “soldados da borracha”.
Toda a operação e mobilização de pessoal para a extração da borracha foi financiada
pelo banco de importação e exportação e pela Rubber Reserve Company147
. Em setembro de
1942, foi criado o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia, o
SEMTRA, com o objetivo inicial de recrutamento e envio de pelo menos 50 mil trabalhadores
para a extração da borracha norte do país. Posteriormente, esse número vai ser ampliado para
100 mil trabalhadores. Acredita-se que, de fato, tenham sido enviados entre 32 e 55 mil
trabalhadores para a “batalha da borracha”.
Todo um sistema para a extração e exportação da borracha foi criado pelo governo
brasileiro, contudo pouco se preocupou com uma estrutura mínima para os “soldados da
borracha”. Em sua grande maioria, esses homens foram recrutados no nordeste brasileiro com
promessas de grandes ganhos, no entanto foram transportados para trabalhar na floresta sem
qualquer fiscalização ou assistência do governo e foram vítimas de abusos dos seringalistas e
dos comerciantes de borracha, explorados num local extremamente afastado e sem condições
mínimas de trabalho. Esses homens sofreram com doenças como a malária e a febre amarela e
foram vitimadas por toda sorte de animais perigosos da floresta. Acreditasse que entre 15 e 20
mil dos trabalhadores enviados para extrair borracha das seringueiras tenham morrido em
decorrência de doenças, ataques de animais e falta de assistência médica. Os “soldados da
borracha” foram literalmente abandonados pelo governo no meio da floresta, e as promessas
de recondução dos trabalhadores de volta aos seus locais de origem foram descumpridas148
.
A “batalha da borracha” não alcançou seus objetivos, e o fracasso se deu devido a
vários problemas, tais como a dificuldade de transportes, as permanentes cheias e vazantes
dos cursos fluviais da Floresta Amazônica, o descompromisso e descaso dos mercadores da
147
A Rubber Reserve Company, ou Companhia de Reserva de Borracha, foi um órgão criado em 1939 o pelo
governo estadunidense com o objetivo de racionar o consumo de borracha nos EUA, além de elaboarar medidas
para preservar uma reserva mínima de borracha. Entre essas medidas, estão o financiamento para a produção de
borracha sintética por grandes companhias estadunidenses e a criação e o incentivo de novos mercados
fornecedores de borracha natural, entre esses o Brasil. Disponível em: http://acswebcontent.acs.org/
landmarks/landmarks/rbb/rbb_war.html. Acesso em: 20 mai. 2013. 148
DEAN, Warren. Op. Cit., 1989.
56
borracha para com o esforço da guerra nacional, entre outros. A produção nacional ficou
muito abaixo das metas estipuladas pelos governos do Brasil e dos EUA e, com o fim da
Segunda Guerra, a região novamente deixou de receber investimentos governamentais,
demonstrando que, na verdade, a “batalha da borracha” não era um plano de valorização
regional em longo prazo149
.
De modo geral, a constituição da frente interna objetivou justificar privações
econômicas junto à população, e o governo associou suas ações como parte imprescindível do
“esforço de guerra” nacional. Isso proporcionou uma maior intervenção estatal na economia e
no cotidiano dos brasileiros, possibilitando uma maior exploração dos trabalhadores,
privando-os de vários direitos previstos na CLT.
Os racionamentos e a escassez de gêneros de primeira necessidade possibilitaram
abusos de preços e o surgimento do mercado negro em várias localidades do Brasil. Os
desabastecimentos atingiram mais vigorosamente os centros urbanos nacionais e a dificuldade
de importar máquinas, produtos industriais e combustíveis acabaram por forçar mudanças de
hábitos da população civil150
. Para além das necessidades exigidas pela condição da entrada
do país na guerra, empresários obtiveram grandes lucros com aumentos indevidos nos preços
de seus produtos. Além de utilizar da legislação para explorar da mão de obra do quadro de
funcionários, ganharam muito com o aumento de preços.
1.3 – A FEB
1.3.1 – Criação da FEB
A participação militar brasileira se deu de duas formas bastante específicas: a ação das
armas nacionais no nordeste brasileiro, atuando em colaboração com as forças armadas
estadunidenses na defesa do Atlântico Sul – o que já vimos anteriormente –, e o envio de uma
força expedicionária para atuação no estrangeiro, mais especificamente no teatro de operações
do Mediterrâneo, no norte da Itália, atuando entre 16 de julho de 1944 e 3 de outubro de 1945,
149
CYTRYNOWICZ, Roney. Op. Cit., 2003. pp. 219-217. 150
O governo tentar incutir junto à população um clima intenso de ameaças: por meio de treinamentos anti-
bombardeios nas grandes cidades, através de programas radiofônicos como o Repórter Esso e também com
continuas propagandas do DIP inseridas em jornais e revistas. Ver: FERRAZ, Francisco César. Op. Cit., 2005.
pp. 20-28.
57
quando retornaram os últimos elementos da força ao Brasil151
. Essa força foi denominada
Força Expedicionária Brasileira, ou simplesmente FEB152
.
No entanto, a ideia de corpo expedicionário nacional para atuar fora do Brasil remonta
ao ano de 1942, logo depois do rompimento de relações diplomáticas do Brasil com a Itália e
a Alemanha e antes da efetiva entrada brasileira na Segunda Guerra. Os acordos militares
entre brasileiros e estadunidenses foram consolidados com a criação da Comissão Mista de
Defesa Brasil-EUA, em maio de 1942. Todas as atividades militares nacionais junto aos
aliados durante o conflito foram coordenadas por essa comissão binacional, que contava com
duas centrais: uma na cidade do Rio de Janeiro e outras na cidade de Washington, nos
EUA153
.
Ainda em 1942, mesmo que em caráter informal, o presidente Getúlio Vargas fala à
cúpula das Forças Armadas nacionais sobre a importância do envio de tropas brasileiras para
atuar no exterior durante o conflito:
(...) o dever de zelar pela vida dos brasileiros obriga-nos a medir as
responsabilidades de uma ação fora do continente. De qualquer modo, não devemos
cingir-nos à simples expedição de contingentes simbólicos. Queremos ser eficientes
e, para isso, precisamos dispor de forças complemente treinadas e aparelhadas,
aguardando a marcha dos acontecimentos que determinará a forma e o lugar onde
tenham de operar.154
O esforço de mobilizar as forças armadas nacionais com esse objetivo não se deu
somente por parte do governo brasileiro; a própria comissão de defesa de Washington cogitou
junto ao militares brasileiros sobre a possibilidade de criação, preparo e envio de um corpo
expedicionário brasileiro para lutar fora do continente americano. Contudo, o processo de
análise dos militares brasileiros acerca dessa possibilidade foi marcado por grande lentidão, e,
somente no dia 28 de janeiro de 1943, o ministro da Guerra, General Eurico Gaspar Dutra,
apresentou ao presidente Vargas um conjunto de documentos, incluindo um parecer favorável
do Estado Maior Brasileiro, sobre da possibilidade do envio de tropas expedicionária para
atuar fora do continente155
.
151
MATTOS, General Carlos Meira. Op. Cit., 1985. 152
A abreviação FEB foi adotada no próprio decreto-lei que a criou, o de nº 6.018-A, de 23 de novembro de
1943. Ver: GARCIA, Eugênio Vargas (Org.). Op. Cit., 2008. p. 453. 153
MATTOS, General Carlos Meira. Op. Cit., 1985. 154
Tal fala foi oportunamente apresentada aos militares brasileiros durante almoço de confraternização das
classes armadas em 31 de dezembro de 1942. Ver: VARGAS, Getúlio. A nova política do Brasil (volume V). Rio
de Janeiro: José Olympio, 1943. p. 346. 155
A lentidão dos militares pode estar associada a elementos contrários à criação da FEB, tais como militares
simpáticos às nações do eixo ou ainda militares que nutriam certas suspeitas e apreensões em relação às relações
58
Um dia depois da entrega dos documentos pelo ministro da Guerra o assunto, foi
retomado, durante a conferência entre o presidente dos EUA e o presidente brasileiro na
cidade de Natal, no Rio Grande do Norte. Roosevelt em pessoa teria cogitado o envio de
tropas brasileiras para atuar na defesa de ilhas estratégicas na costa oeste africana156
.
No entanto, os sucessos militares no norte africano afastaram os riscos de invasão das
ilhas portuguesas, e por isso se tornou desnecessário o envio de tropas para defendê-las.
Contudo, a possibilidade de atuação militar fora do país era de grande interesse das
autoridades brasileiras, visto que isso possibilitaria ganhos estratégicos para o Brasil na
conjuntura do pós-guerra. Tanto no que diz respeito ao reaparelhamento das armas nacionais
com modernos equipamentos de guerra e o acesso à nova instrução militar estadunidense
quanto à posição que a nação assumiria na conjuntura do pós-guerra157
.
Em 15 de março de 1943, Getúlio Vargas aprova a criação de um corpo
expedicionário. A decisão brasileira de enviar tropas para lutar no exterior é divulgada com
entusiasmo pela imprensa de forma geral158
. Mas, apesar da aprovação, o presidente faz
algumas observações importantes no que diz respeito a essa ampliação da atuação brasileira
no conflito:
Aprovado. Embora não nos tenha sido feita nenhuma solicitação nesse sentido, o
estado de guerra em que nos achamos impõe-nos o dever da preparação de um
Corpo Expedicionário para colaborar nas operações de guerra, onde e quando for
necessário, de acordo com os aliados. Esta operação está, porém, adstrita ao
recebimento do material que necessitamos para o aparelhamento, tanto da Força
Expedicionária como da que deve ficar guarnecendo o nosso litoral.159
A fala de Vargas expõe alguns pontos relevantes. Primeiramente, que a criação, o
treinamento e o envio de um corpo expedicionário brasileiro para lutar na Europa estavam
militares entre Brasil e os EUA. Ver: McCANN Jr., Frank D. The Força Expedicionária Brasileira in the Italian
Campaign, 1944-5. The Professional Bulletin of Army History. Washington, EUA, 1993. 156
As ilhas citadas acima são as ilhas portuguesas de Madeira, Sal e Açores. Para além de tratar da ação
brasileira na guerra, Roosevelt tratou da adesão brasileira às Nações Unidas. Ver: ALBINO, Daniel. Cobras
fumando: a Força Expedicionária Brasileira na Campanha da Itália (1944-1945). In: SILVA, Francisco Carlos
Teixeira da. et al. (Org.). O Brasil e a Segunda Guerra. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2010. pp. 321-341. 157
Os EUA viam a ampliação da atuação brasileira na guerra de forma positiva, visto que isso asseguraria a
influência estadunidense na América Latina, e mais especificamente a continuidade de boas relações com o
Brasil. Em contrapartida, o Brasil via nessa ampliação a oportunidade de se destacar como principal nação na
América Latina, além da modernização da modernização das armas nacionais. McCAAN, Frank. Aliança Brasil-
Estados Unidos. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1995. p. 277. 158
A decisão do presidente foi noticiada em jornais internacionais, inclusive na edição do jornal estadunidense
New York Times do dia 31 de março de 1943. Ver: ARAGÃO, José Campos de. O Brasil na Segunda Guerra
Mundial. V. LV. Rio de Janeiro: Revista do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil, 1984. 159
MORAES, João Baptista Mascarenhas de. A FEB pelo seu comandante: Campanha da Itália (1944-45). 2ª
ed. Rio de Janeiro: Estabelecimento General Gustavo Cordeiro de Faria, 1951.
59
atrelados à condição do recebimento de materiais bélicos necessários para o treinamento e
equipamento dessas novas forças160
. Outro ponto relevante que podemos perceber na fala do
presidente brasileiro diz respeito à configuração mesma da FEB; ele apresenta, de forma
muito sutil, uma divisão entre a força expedicionária e as forças que já atuavam no litoral
brasileiro. Ou seja, as forças brasileiras, já treinadas e bem equipadas, que guarneciam o
litoral brasileiro, não iriam compor os efetivos da FEB.
Em abril de 1943, os militares estadunidenses dão sinal positivo para a criação da
FEB, contudo pensou-se nessa atuação de forma mais representativa, como já havia adiantado
Roosevelt na conferência de Natal, sobre a possibilidade da atuação brasileira na defesa de
ilhas portuguesas na costa africana161
.
No mês de abril, os planos de criação da FEB apresentaram grandes avanços práticos.
O representante brasileiro da Comissão Mista de Defesa, o general Estevão Leitão de
Carvalho, apresentou ao estadunidense os planos brasileiros para o envio da FEB para as
frentes de batalha. Em maio, a Junta dos Chefes dos Estados Maiores (Joint Chiefs of Staff)
aprovaram o plano para a criação de três divisões expedicionárias e uma unidade de força
aérea; esse mesmo plano foi também aprovado pelo ministro da Guerra, Eurico Gaspar
Dutra162
.
As autoridades estadunidenses estavam convencidas da capacidade de atuação das
tropas brasileiras, desde que fossem mobilizadas e treinadas para tal. Contudo, o governo e
algumas importantes autoridades militares brasileiras não se prontificaram em fundar as bases
para a efetiva criação da FEB, o que acaba gerando grande atraso na criação de fato do corpo
expedicionário brasileiro. Somente no dia 9 de agosto, uma portaria ministerial estabeleceu a
estrutura da primeira Divisão de Infantaria Expedicionária, ou a primeira DIE, e o comando
geral dessa primeira divisão de infantaria ficou a cargo do general João Baptista Mascarenhas
de Moraes163
.
No entanto, as negociações se tornaram complicadas, e instala-se um clima de impasse
entre as autoridades militares brasileiras e estadunidenses. Numa viagem aos EUA, no mês de
160
O recebimento se daria junto ao governo dos EUA, tanto no que diz respeito à concessão de novos créditos
quanto à venda de equipamentos bélicos. Ver: FERRAZ, Francisco César. Op. Cit., 2005. pp. 43-65. 161
Além do motivo já citado acima, o envio de tropas brasileiras em ilhas portuguesas não era bem visto pela
Grã-Bretanha, porque que a ocupação dessas ilhas por tropas brasileiras representaria forte presença dos EUA na
região. Ver: MOURA, Gerson. Relações exteriores do Brasil: 1939-1945: mudanças na natureza das relações
Brasil-Estados Unidos durante e após a Segunda Guerra Mundial. Brasília: FUNAG, 2012. p. 129-130. 162
Ibidem. p. 131. 163
O comando da 1ª DIE foi oferecido ao general João Baptista Mascarenhas de Moraes no mesmo dia da
publicação da portaria ministerial nº 47/44. O General Mascarenhas de Moraes aceita o comando, comunicando
a decisão ao ministro da Guerra por telégrafo logo no dia seguinte. Ver: COSTA, Octavio. Op. Cit., 1985.
60
agosto, o ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, apresenta às autoridades estadunidenses o
projeto brasileiro de criação do corpo expedicionário. Esse projeto trazia algumas mudanças
em relação à constituição da FEB e a mudança de alguns equipamentos solicitados para suprir
o corpo expedicionário164
. O representante estadunidense, George Marshall, não concorda
com as novas exigências do ministro da Guerra do Brasil, dando início a um clima de
desentendimento.
As autoridades militares dos EUA apontaram a excessiva lentidão das autoridades
brasileiras para a mobilização da FEB: somente uma DIE havia sido planejada, e ainda havia
sido estruturada de forma diferente da proposta estadunidense. Havia, também, a suspeita, por
parte das autoridades militares estadunidenses, de que o Brasil estaria utilizando a FEB como
“assunto de manipulação política”, com o objetivo de conseguir mais armamentos via Lend-
lease165
. Por sua vez, as autoridades militares brasileiras entendiam as propostas
estadunidenses com várias ressalvas, sobretudo no que diz respeito à composição dos efetivos
da FEB e aos recorrentes atrasos na entrega de material para o treinamento das novas tropas
brasileiras.
Os efeitos negativos dessa situação foram relativamente amenizados pela ação de dois
membros da Comissão Mista de Defesa Brasil-EUA: o general estadunidense, James
Garesche Ord. e o representante brasileiro, o general Leitão de Carvalho. Apesar das
discordâncias sobre o projeto da FEB, ambos atuaram na intenção de concretizar a
mobilização e o envio do corpo expedicionário brasileiro para atuar fora do continente166
.
Apesar das críticas à postura do governo brasileiro em relação à criação da FEB,
vários militares estadunidenses apoiavam o envio de tropas brasileiras para lutar no exterior,
dentre esses o general Ord. No entanto, a proposta de criação do corpo expedicionário
brasileiro pela Comissão Mista de Defesa Brasil-EUA continha vários pontos considerados
pelos militares brasileiros como problemáticos. Os militares estadunidenses aconselharam o
uso das tropas brasileiras estacionadas no nordeste, visto que esses contingentes já se
encontravam treinados segundo as lógicas militares estadunidenses, o que facilitaria a
composição da FEB por contingentes já treinados167
.
164
MOURA, Gerson. Op. Cit., 2012. pp. 130-134. 165
Para ler o acordo na integra. Ver: SILVA, Hélio. 1942 – Guerra no continente. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1972. pp. 419-427. 166
PINHEIRO, Letícia. A entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. In: Revista USP, São Paulo (26), pp.
108-119, jun./ago. 1995. 167
ALBINO, Daniel. Op. Cit., 2010. pp. 321-341.
61
Esse ponto é visto de forma muito negativa pelas autoridades brasileiras, que nutriam
certo receio quanto à larga presença militar dos EUA no nordeste brasileiro, e a possibilidade
da manutenção dessas tropas no pós-guerra. Os contingentes brasileiros aquartelados no
nordeste representariam, mesmo que minimamente, uma espécie de segurança contra qualquer
tentativa de manutenção dessas bases pelas forças estadunidenses168
. Esse receio em utilizar
as já treinadas tropas do teatro de operações do nordeste para compor os efetivos da FEB
contribuiu para que, de forma mais geral, a FEB tenha sido integrada majoritariamente por
elementos civis, convocados ou voluntários, e não soldados profissionais, que em sua maioria
estavam atuando na defesa do nordeste.
Outros pontos que causaram discordâncias entre as autoridades militares brasileiras e
estadunidenses estão relacionados com a criação de novos centros de treinamentos e a
quantidade de material necessário para o treinamento dessas novas tropas. O ministro da
Guerra (brasileiro) tinha como objetivo a criação de três novos centros de treinamento – um
no nordeste, um em São Paulo e outro no Rio de Janeiro –, além de solicitar, junto aos
militares estadunidenses, metade do material necessário para suprir uma divisão para cada um
dos três centros de treinamento pretendidos pelo ministro169
.
O general Ord não concordou com nenhuma das solicitações do ministro brasileiro.
Ele defendeu a proposta de criar um centro de treinamento no nordeste brasileiro, e, em
relação ao fornecimento de materiais para treinamento, disponibilizou apenas a metade do
necessário para suprir uma divisão para todos os centros de treinamento propostos por
Dutra170
. Na prática, chegaram a um consenso, as divisões de infantaria seriam treinadas
sucessivamente, contudo o plano era a criação de um corpo de exército com três divisões de
infantaria, somando cerca de 60 mil homens. As forças brasileiras aquarteladas no nordeste
não foram utilizadas para compor os contingentes da FEB, e o local escolhido para a
concentração e treinamento das tropas foi a cidade do Rio de Janeiro. Ainda se decidiu que as
tropas brasileiras seriam equipadas na frente de batalha e todo material utilizado para o
treinamento ficaria no Brasil, para dar continuidade ao treinamento de novas tropas171
.
168
Ibidem. pp. 321-331. 169
Ibidem. pp. 332-341. 170
A proposta do Estado Maior estadunidense, comunicada pelo general Ord, era de que fossem treinadas as três
DIE fossem sucessivamente, e enviadas também sucessivamente para as frentes de batalha. Havia um receio das
autoridades militares estadunidenses em ampliar demasiadamente o poderio militar brasileiro, visto que isso
poderia causar problemas futuros. Ver: MOURA, Gerson. Op. Cit., pp. 119-156. 171
Texto do historiador Frank D. McCann, apresentado na Conferência de Historiadores do Exército em
Washington, D.C. (EUA), em 9 de junho de 1992. In: SILVEIRA, Joel & MITKE, Thassilo. A luta dos
62
A FEB é, então, oficialmente criada no dia 23 de novembro de 1943, através do
decreto-lei nº 6.018-A. Condicionada à atuação “ao lado dos exércitos dos Estados Unidos”, e
idealizada como um corpo expedicionário composto por três divisões de infantaria172
. Ficava
claro, através do referido decreto-lei, que a FEB atuaria estritamente sob os auspícios das
Forças Armadas dos EUA. A criação da FEB é, para o governo Vargas, um projeto político
cujas intenções mais objetivas são a ampliação e o fortalecimento das armas nacionais, uma
oportunidade de projeção nacional no cenário do pós-guerra e ainda uma resposta à população
brasileira, no sentido de oferecer uma espécie de “vingança” contra as nações do eixo.
1.3.2 – Concentração e treinamento da FEB
Diante da perspectiva de atuação, as autoridades militares brasileiras iniciaram,
durante o fim de 1943, as convocações, a mobilização e o treinamento de efetivos, seguindo a
nova instrução militar estadunidense. Iniciavam-se, de fato, os preparativos para a criação de
corpo expedicionário para lutar na Segunda Guerra. Restava, entretanto, saber se esse corpo
expedicionário seria, de fato, levado para combater fora do continente.
O primeiro grande desafio era criar o corpo expedicionário seguindo o modelo de
instrução militar estadunidense, ou seja, adequar às tropas expedicionárias para atuar ao lado
dos EUA, seguindo sua lógica militar. Para tal, as autoridades militares brasileiras iniciaram a
preparação da primeira Divisão de Infantaria Expedicionária, seguindo os modelos da
instrução militar estadunidense. Segundo Octavio Costa, uma divisão de infantaria era
(...) grande unidade básica da força terrestre, a divisão de infantaria era, na
organização americana daquele tempo, constituída, essencialmente, por três
regimentos de infantaria, formados, cada um, por três batalhões, igualmente
integrados por três companhias de fuzileiros. A essa organização rigidamente
ternária correspondiam os indispensáveis apoios de artilharia e engenharia, capazes
de incrementar a potência de fogo e a capacidade de movimento da infantaria.173
As forças armadas brasileiras vinham, desde o início do século XX, sendo treinadas
segundo a instrução militar francesa, e a mudança de toda a instrução representava grande
esforço, tanto no sentido de treinamento dos contingentes das tropas quanto na adaptação dos
pracinhas. 3ª edição revista e aumentada: A FEB 50 anos depois. Uma visão crítica. Rio de Janeiro: Record,
1993. 172
Na prática, a FEB enviou apenas uma DIE para frente de batalha no norte da Itália. Ver: GARCIA, Eugênio
Vargas (Org.). Op. Cit., 2008. p. 453. 173
COSTA, Octavio. Op. Cit., 1985.
63
oficiais a essa nova instrução174
. Apesar do fato de que oficiais brasileiros já vinham
realizando cursos nos EUA desde 1938, e assim tiveram contato com a instrução militar
estadunidense, contudo havia outras dificuldades em implementar a instrução militar
estadunidense junto aos contingentes da FEB175
.
Essas dificuldades decorriam de problemas relacionados à tradução dos manuais em
língua inglesa, à necessidade de qualificação de grande número de especialistas, à questão
física dos expedicionários, à distância das quatro regiões militares que integravam os efetivos
da FEB e a dificuldades de operar os novos equipamentos176
.
Algumas unidades da nova instrução nem sequer existiam na estrutura do Exército
brasileiro, e, por isso, tiveram de ser criadas e qualificadas rapidamente. De modo mais geral,
as autoridades militares brasileiras e estadunidenses conseguiram realizar o treinamento e a
qualificação do corpo expedicionário brasileiro, mesmo que de forma precária, em tempo
hábil. Contudo, restava a necessidade de conclusão do treinamento das tropas nacionais na
frente de batalha, junto aos exércitos do EUA em atividade na frente de batalha italiana177
.
No dia 6 de dezembro de 1943, o comandante da FEB, general Mascarenhas de
Morais, junto a um grupo de oficiais, foi enviado para estágio no teatro de operações no norte
da África e também na Itália. Essa viagem teve como objetivo iniciar os contatos do comando
da FEB com as autoridades aliadas nessas regiões178
. Somente em 28 de janeiro de 1943
Mascarenhas de Moraes é nomeado oficialmente comandante da 1ª DIE. No mesmo mês,
inicia-se a concentração dos efetivos da força expedicionária na cidade do Rio de Janeiro,
174
Importante notar que a antiga instrução militar brasileira não era exatamente atrasada e devemos considerar
que, durante o interregno entre as guerras mundiais, os estrategos do eixo desenvolveram uma nova modalidade
de atuação, notadamente mais veloz devido ao uso de novos veículos terrestres e ainda de aviões. Em pouco
mais de 20 anos, as formas de se fazer a guerra haviam mudado drasticamente, e as instruções militares que
remontavam à Primeira Guerra e a suas táticas de trincheira foram literalmente abolidas, devido à sua
ineficiência diante das novas instruções. Os exércitos aliados se adaptaram diante das novas formas de luta das
nações do eixo, e os EUA vinham desenvolvendo, desde o final da Primeira Guerra, uma nova instrução militar,
devidamente posta à prova em duas amplas frentes de combate: no Pacífico e na Europa. Ver: CORUM, James
S. The roots of Blitzkrieg: hans von seeckt and German Military Reform. University Press of Kansas, 1992. 175
Segundo Frank D. McCann, o número de oficiais brasileiros enviados para treinamento nos EUA foi bastante
expressivo. O Estado Maior do Brasil enviou vários grupos de oficiais para treinamento e cursos em diversas
especialidades na instrução militar estadunidense. Foi, inclusive, criado um curso na Escola de Comando e
Estado-Maior em Fort Leavenworth para treinar oficiais brasileiros. Ver: SILVEIRA, Joel & MITKE, Thassilo.
Op. Cit., 1993. 176
MORAES, João Baptista Mascarenhas de. Op. Cit., 1951. 177
COSTA, Octavio. Op. Cit., 1985. 178
MORAES, João Baptista Mascarenhas de. Op. Cit., 1951.
64
seguindo-se a seleção física, o recrutamento de especialistas e a convocação de oficiais da
reserva179
. A concentração dos efetivos dura de janeiro a março de 1944180
.
A primeira DIE foi formada por elementos dispersos, originários de quatro diferentes
regiões militares: uma no Estado do Rio de Janeiro, uma em São Paulo, uma em Minas Gerais
e uma última no Mato Grosso. Essa formação, através de regiões militares afastadas, se deu
muito mais por um critério político do que militar. Depois dos preâmbulos legais: as
convocações de praças; suboficiais e oficiais; exames físicos e médicos; cursos e
qualificações, mais de 25 mil e 300 brasileiros de todos os Estados do país, integraram os
efetivos da FEB181
.
Apesar de todo o trabalho para a mobilização da FEB por parte das autoridades
militares brasileiras e do extensivo apoio dos militares estadunidenses da comissão mista de
defesa, restavam entraves que ainda impediam o embarque da força expedicionária para atuar
fora do continente. As principais autoridades militares estadunidenses e britânicas não
desejavam o envio da FEB para qualquer frente de batalha. Acreditava-se, sigilosamente, que
enviar a FEB para frente de batalha traria problemas adicionais para os exércitos aliados,
contudo uma negativa explicita a atuação da FEB, e um pedido direto do governo brasileiro
poderia causar uma crise nas relações entre o Brasil, a Inglaterra e os EUA. Neste sentido, os
comandos militares aliados adiaram a saída da FEB o máximo possível, pois já se antevia o
fim do conflito, o que impossibilitaria a atuação da FEB sem qualquer problema
diplomático182
.
Contudo, esse quadro relativamente estático vai se modificar diante o surgimento de
um novo cenário na América do Sul. Dois subsequentes golpes de estado, na Argentina, em 6
de junho de 1943, e na Bolívia, em dezembro de 1943, alteram radicalmente a situação na
região do rio da Prata, gerando serias complicações diplomáticas183
. A crescente ampliação da
influência política da Argentina no Cone Sul foi vista com temor pelos governos do Brasil e
dos EUA184
.
179
Grande parte do oficialato da FEB foi ocupada por oficiais da reserva; do quadro de 870 oficiais de Infantaria
da FEB, 302 vinham da reserva. Ver: SILVEIRA, Joel & MITKE, Thassilo. Op. Cit., 1993. 180
COSTA, Octavio. Op. Cit., 1985. 181
Ibidem. 182
MOURA, Gerson. Op. Cit., 2012. pp. 119-142. 183
El extraño devenir del falangismo bolivian. Disponível em: http://memoriazul.lacoctelera.net/post/2007/
04/30/el-estrano-devenir-del-falangismo-boliviano-y-3-. Acesso em: 10 jun. 2013. 184
Vale lembrar que a Argentina vinha se posicionando contra as políticas estadunidenses nas Américas desde a
década de 1930. A posição argentina era de dissuadir outras nações a integrar a proposta estadunidense do pan-
americanismo. Especificamente, sobre esse cenário, os temores giravam em torna da influencia do partido
65
Depois desses golpes de estado na Argentina e na Bolívia, a situação vai se agravar
ainda mais, e a resposta dos EUA a esse “perigo” a estabilidade sul-americana foi a ampliação
dos apoios militares estadunidenses ao governo brasileiro, como uma forma de desestimular a
mobilização militar na Argentina. Importante notar que o governo brasileiro estava
diretamente interessado na segurança territorial e na defesa da região sul do país185
.
Os EUA tiveram interesse em manter “alguma presença militar” nas bases do nordeste
brasileiro depois do fim da Segunda Guerra como uma forma de conter a instabilidade política
na América do Sul. Oportunamente, o governo Vargas faz uso desse interesse para barganhar
algumas vantagens junto aos EUA. Mesmo diante de protestos dos militares brasileiros,
Vargas propõe aceitar o pedido estadunidense, desde que fossem cumpridas as três condições
do governo brasileiro: o fornecimento de meios para a construção de duas bases aéreas na
região sul do país, a entrega de carregamentos de munição e o envio da FEB para atuar no
exterior.
A crise na América do Sul era a menor das preocupações do governo dos EUA, visto
que os exércitos estadunidenses atuavam em duas distintas frentes de batalha: no Pacífico e na
Europa. Contudo, as autoridades militares dos EUA entenderam que a crise sul-americana
poderia se resolver desde que o Brasil fosse aparelhado devidamente, ou seja, com a cessão de
armamentos, o financiamento da construção das bases aéreas no sul brasileiro e, finalmente, o
envio da FEB para atuar no exterior; os EUA poderiam, indiretamente, criar impedimentos
para frear a ampliação da influência da Argentina na região.
Em 1944, o governo dos EUA autoriza o financiamento da construção das bases aéreas
no sul do país, e envia elementos das forças armadas estadunidenses para auxiliar nos planos
de transporte da FEB, que seria enviada para lutar no Teatro de Operações do Mediterrâneo
junto aos Exércitos dos EUA. Evidentemente, o envio da FEB para o norte da Itália se deu
muito mais como resultado de uma manobra política do que uma necessidade militar186
.
Restava, entretanto, vencer as resistências britânicas quanto ao envio das tropas
brasileiras para lutar na Itália. As autoridades militares dos EUA sabiam da posição assumida
pelos britânicos acerca da participação brasileira numa frente de batalha na Europa, ou seja,
qualquer solicitação brasileira junto às autoridades britânicas, nesse sentido, seria negada. As
nazista dentro da Argentina, e sua atuação política em países vizinhos. Ver: MOURA, Gerson. Op. Cit., 2012.
pp. 119-156. 185
Vale lembrar o longo histórico de conflitos entre as nações de fronteira na região do rio da Prata, a mais
recente, a guerra do Chaco (1932-1935). Notadamente, o longo histórico de rivalidades políticas entre Brasil e
Argentina, e a disputa pela supremacia na região da Prata. Ver: Ibidem. pp. 81-153. 186
Ibidem. pp. 81-153.
66
autoridades estadunidenses intervêm diretamente nesse assunto, primeiramente com a Missão
Stettinius, que, em abril de 1944, tentou conseguir autorização junto aos britânicos para o
envio das tropas da FEB para o Mediterrâneo187
. Contudo, essas negociações do subsecretário
Edward Stettinius não surtiram grandes efeitos. O próprio Churchill teria sugerido ao
subsecretário dos EUA o envio de uma “pequena brigada brasileira” para atuar na Itália188
.
Apesar do descaso britânico, os EUA sabiam da importância política que a FEB
representava para o governo brasileiro, e o envio de uma “pequena brigada brasileira”, como
sugeriu Churchill, não seria suficiente para satisfazer os desejos do ditador brasileiro.
Novamente, os EUA intervêm junto ao governo britânico, contudo, nessa ocasião, o próprio
secretário de Estado estadunidense, Cordell Hull, interveio nas conversações. Em nota, ele
esclarece para o subsecretário Edward Stettinius a importância de obter a autorização
britânica em relação ao envio da FEB para a Europa:
Em outras palavras, os brasileiros ofereceram uma força militar para deveres de
combate e nós aceitamos. O compromisso é firme. O presidente Vargas fez da Força
Expedicionária Brasileira um pilar de sua política de cooperação militar com os
Estados Unidos e outras Nações Unidas. Ele já evocou apoio público para ela a tal
ponto que agora sua reputação está envolvida. Deixá-lo de lado agora com a
sugestão que pode ser considerada depreciativa de simplesmente enviar uma brigada
nos envolverá num grave constrangimento e pode até enfraquecer seu governo, cujo
histórico de cooperação na guerra tem sido total.189
Diante do apoio e da intervenção direta das autoridades estadunidenses, no dia 5 de
maio de 1944, o governo britânico aprova o envio da FEB para atuar no norte italiano, desde
que a FEB ficasse sob o comando direto do Exército dos EUA. Era o fim do último entrave
para que a FEB fosse, de fato, enviada para atuar na Europa190
.
Com essa nova perspectiva, o comando da primeira DIE iniciou os preparativos finais
para o embarque da FEB. Foram realizados os últimos treinamentos em solo brasileiro,
manobras, demonstrações públicas e desfiles na capital federal. O embarque foi planejado
sigilosamente e previsto para o final do mês de julho de 1944191
. Contudo, a data prevista para
187
Edward Stettinius 1900-1949. Disponível em: http://www.historiasiglo20.org/BIO/stettinius.htm. Acessado
em: 15 jun. 2013. 188
MOURA, Gerson. Op. Cit., 2012. pp. 81-153. 189
Hull para Stettinius, 21 de abril de 1944, NA/RG 59 740.0011 S.M./46i. apud MOURA, Gerson. Ibidem. p.
148. 190
MOURA, Gerson. Ibidem. pp. 81-153. 191
COSTA, Octavio. Op. Cit., 1985.
67
o embarque é antecipada192
. Entre os dias 29 e 30 de junho, o primeiro escalão embarca no
navio estadunidense General Mann e, no dia 2 de julho, os primeiros efetivos da FEB partem
rumo à guerra no Velho Mundo193
.
1.3.3 – A FEB no Teatro de Operações do Mediterrâneo
O transporte das tropas brasileiras foi realizado pela Marinha de Guerra dos EUA. O
primeiro escalão da FEB foi transportado para a frente de batalha no navio USS General
Mann, que foi escoltado por forças combinadas da Marinha do Brasil e dos EUA até o estreito
de Gibraltar, quando a marinha britânica assume a escolta das tropas brasileiras até o porto de
Nápoles, na Itália. As operações de transporte dos efetivos brasileiros foram realizadas com
muita cautela e sigilo, tendo em vista os temores de ataques submarinos do eixo194
.
O primeiro escalão da FEB chegou a Nápoles no dia 16 julho de 1944. Em agosto,
seguiu para região de Tarquínia, onde, oficialmente, foi incorporado ao Quinto Exército
estadunidense. Ainda em Tarquínia, os primeiros contingentes brasileiros receberam material
de guerra necessário para atuar no conflito. Entre os dias 18 e 20 de agosto, esses efetivos
foram transportados para Varda, onde receberam os treinamentos finais195
.
O segundo e terceiro escalões da FEB embarcaram para a Itália no dia 22 de setembro,
respectivamente no USS General Mann e no USS General Meigs, e chegaram a Nápoles em 6
de outubro 1944. Posteriormente, seguem por mar em embarcações de invasão USS 55 CLI
até Livorno, de onde são conduzidos em caminhões para Quinta Reale de San Rossore,
próximo à cidade de Pisa, e finalmente para a área de Filétole onde recebem equipamentos e
instruções finais196
. O quarto e quinto escalões deixam o Brasil no dia 8 de fevereiro de 1945
e desembarcam na Itália no dia 22 do mesmo mês – ambos os escalões são destinados ao
Depósito de Pessoal da FEB197
.
Ao chegar à Itália, a FEB teve acesso aos equipamentos, vestimentas e armamentos
que viriam a utilizar na frente de batalha, além de receber instruções e treinamentos finais
192
Considerando os temores que a espionagem nazista ainda era atuante no país, e as embarcações de transportes
poderiam ser alvos de submarinos nazistas durante o trajeto. Ver: SANDER, Roberto. Op. Cit., 2011. pp. 273-
290. 193
COSTA, Octavio. Op. Cit., 1985. 194
ALBINO, Daniel. Op. Cit., 2010. pp. 327-328. 195
COSTA, Octavio. Op. Cit., 1985. 196
Ibidem. 197
O depósito pessoal da FEB era destinado a suprir eventuais baixas nos efetivos das tropas nacionais. Ver:
Ibidem.
68
para atuar na frente de batalha, subordinada ao Quinto Exército estadunidense198
. Um total de
25.334 brasileiros forma os efetivos da FEB, divididos em divisão de infantaria; depósito
pessoal; serviço de Justiça; serviço de Saúde; serviço religioso; contingente de ligação e
intendência, entre outros componentes199
. A primeira Divisão de Infantaria Expedicionária era
um conjunto tático-operacional composto por: infantaria, artilharia, cavalaria-motorizada,
engenharia, aviação de ligação e observação e serviço de apoio e combate200
.
Quando ao primeiro escalão da FEB, este desembarcou em Nápoles, e a batalha da
Itália já estava em curso desde junho de 1943. Naquele julho de 1944, quando os brasileiros
chegavam ao Velho Mundo, a frente de batalha italiana deixava de ser o principal objetivo
dos aliados na guerra europeia e outra frente de batalha se tornava o principal objetivo aliado:
a invasão da França201
. Para reforçar os efetivos empregados na invasão da França, os aliados
retiraram dois Corpos de Exércitos da frente italiana, o VI Corpo Americano e o Corpo
Expedicionário Francês. Apesar dessa diminuição dos efetivos na frente italiana, a guerra
ainda não havia sido vencida naquele país, e grande parte do norte italiano permanecia sob
ocupação alemã202
.
Aos efetivos aliados na Itália, restava continuar empreendendo ofensivas contra as
posições alemãs e tentar impedir que esses efetivos do eixo na Itália se retirassem para o
norte, o que possibilitaria ampliar as defesas na França e, eventualmente, dificultar os planos
de invasão aliada naquele país203
.
A FEB chega à Itália num momento de desfalque de importantes efetivos aliados na
frente italiana. Não que a força brasileira tenha representado efetivamente um reforço para
suprir o desfalque desses efetivos mobilizados para outra frente, mas esse contexto acaba por
influir diretamente na forma de atuação que tropas brasileiras empreenderiam na Itália. A
FEB não foi empregada para simples tarefas de defesa de retaguarda ou mesmo como força de
ocupação em localidades já libertas pelos aliados; ela foi integrada aos efetivos
estadunidenses que atuavam em ofensivas contra posições alemãs e remanescentes das forças
fascistas. A FEB atuou no norte italiano entre 16 de junho 1944 e 3 de outubro de 1945,
198
ALBINO, Daniel. Op. Cit., 2010. 199
MATTOS, General Carlos Meira. Op. Cit., 1985. 200
Vale notar, também, que a atuação da Força Aérea Brasileira se deu através de um grupo de caça, esquadrilha
de observação e ligação e, posteriormente, com um grupo de bombardeio. Ver: Ibidem. 201
O principal foco das forças aliadas no Ocidente Europeu foi a invasão da França, operação denominada
Overlord, que se desencadearia sobre o norte francês. Ver: HASTINGS, Max. Overlord: D-day and the battle for
Normandy. Vintage; Reprint Edition, 2006. 202
COSTA, Octavio. Op. Cit., 1985. 203
Grande crônica da Segunda Guerra Mundial. Volume 3: de Stalingrado a Hiroshima. Seleções do Reader‟s
Digest. Rio de Janeiro: Editora Ypiranga, 1969. pp. 15-94.
69
compreendendo, nesse período, sua chegada à Itália, treinamento, atuação militar, ocupação
militar e, finalmente, a concentração de efetivos para retornar ao Brasil.
As forças brasileiras atuaram em três diferentes regiões na frente italiana. Inicialmente,
no vale do Rio Serchio, onde as tropas da FEB receberam seu batismo de fogo e realizaram
suas primeiras missões ofensivas, geralmente contra o inimigo em retirada para o norte. Nos
primeiros dias de novembro de 1944, a FEB foi transferida para outra frente de batalha,
substituindo a 1ª divisão de blindados estadunidense.
Em novembro, as forças brasileiras chegaram ao vale do Reno, região onde a FEB
conheceu um tipo de guerra diferente, onde os inimigos estavam bem posicionados em
fortificações nos topos de terrenos elevados. A região do vale do Reno contava com maior
contingente inimigo, é um dos principais acessos à cidade de Bolonha, até então sob domínio
alemão. A FEB integra os planos dos aliados de tomar todas as localidades e acessos à cidade.
De forma mais geral, esse plano objetivava tomar Bolonha antes do Natal de 1944. As forças
nacionais foram empregadas nas ofensivas na rota oeste da cidade, conjuntamente ao Quinto
Exército estadunidense.
Essa região foi onde as tropas nacionais encontraram maiores dificuldades durante sua
atuação no norte italiano, mas foi também onde a FEB pôde demonstrar seu preparo e valor
em batalha. Várias importantes localidades foram tomadas pelas forças nacionais nessa
região, dentre essas se destacam Monte Castello e a cidade de Montese. As operações da FEB
no vale do Reno foram as mais intensas e que mais tempo duraram; as forças nacionais
atuaram nessa região por aproximadamente seis meses.
Entre 24 e 25 de abril, a FEB foi novamente transferida para outra frente, desta vez
para a região do rio Enza, Collecchio e Fornovo di Taro, onde tomaram várias outras
localidades ainda em domínio dos alemães. Nessa última região, destaca-se a rendição de toda
a 148ª divisão alemã às forças brasileiras, feito reconhecido pelas autoridades do comando do
Quinto Exército estadunidense.
Ao final do conflito, o comandante da FEB, general Mascarenhas de Moraes, fez uma
pequena avaliação acerca da participação das tropas brasileiras sob seu comando na frente de
batalha italiana:
A Força Expedicionária que representou o Brasil nesta sanguinolenta guerra
cumpriu galhardamente a missão que lhe foi confiada, mercê de Deus e a despeito de
condições e circunstâncias adversas. Num terreno montanhoso, a cujos píncaros o
homem chega com dificuldade; num inverno rigoroso que a totalidade da tropa veio
enfrentar pela primeira vez e contra um inimigo audacioso, combativo e muito bem
70
instruído, podemos dizer assim mesmo, e por isso mesmo, que os nossos bravos
soldados não desmereceram a confiança que neles depositavam os seus chefes e a
própria nação brasileira. (...) É bem verdade, e vale a pena afirmar, que preço bem
alto pagamos por esse resultado. O sangue dos nossos bravos camaradas tingiu de
vermelho essas belas verde-escuras montanhas dos Apeninos e algumas centenas
dos nossos companheiros já não retomarão à Pátria, conosco, porque dormem o sono
eterno, sob as terras úmidas e verdejantes das planícies da Toscana. (...)204
A síntese do comandante da FEB sobre a atuação brasileira na Itália é relativamente
plausível; ele tenta circunscrever a atuação das forças brasileiras aquilo que ela desempenhou
de fato na campanha da Itália. Mascarenhas de Moraes ainda descreve as condições adversas
dos locais de combate e fala sobre a questão dos inimigos que a FEB combateu na Itália. A
FEB atuou ao lado de tropas aliadas, contribuindo, dentro de suas possibilidades materiais e
de efetivos, para a libertação do norte da Itália. Contudo, é importante reconhecer que as
forças brasileiras não desempenharam qualquer papel decisivo na batalha da Itália.
A atuação brasileira na Europa se deu de forma reduzida, tendo em vista o pequeno
contingente enviado para atuar no conflito. Contudo, a atuação da FEB também não pode ser
diminuída à irrelevância. A FEB integrou o 5º Exército estadunidense, foi instruída e atuou
sob seu comando, esteve presente em diversas batalhas relevantes, tais como Montese e
Monte Castello, e não pode ser considerada inferior a qualquer outra tropa desse exército. A
atuação da FEB se deu dentro de suas possibilidades de efetivos e sob ações de comando do
Quinto Exército; as forças brasileiras não decidiram a guerra na Itália, nem tampouco
realizaram um mero passeio turístico pela Europa. Na interpretação de Frank McCann:
A FEB representa um caso insólito na história militar americana. Não se tratava de
uma força colonial como o foram as unidades britânicas indianas, ou integrante do
Commonwealth como as tropas do Canadá, Nova Zelândia ou África do Sul, nem
nada do tipo “Livre” como os contingentes da Polônia ou França; não, a FEB foi
uma divisão extraída do Exército de um Estado soberano e independente que
voluntariamente colocou seus homens sob comando americano. Mas não foi apenas
o comando a única coisa envolvida no relacionamento; a FEB foi orientada,
treinada, equipada, uniformizada, calçada e alimentada pelos americanos. O
relacionamento não poderia ter sido mais íntimo, e ainda assim foi mantida a
integridade da estrutura de comando da força. A despeito do alto nível de integração,
a FEB nunca perdeu sua identidade como brasileira, e os americanos nunca a viram
de outro modo.205
204
Diário Oficial do Estado de São Paulo (DOSP), de 13 de maio de 2005. p. 21. Disponível em:
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/5195542/dosp-legislativo-13-05-2005-pg-21. Acesso em: 16 jun. 2013. 205
Texto do historiador Frank D. McCann, apresentado na Conferência de Historiadores do Exército em
Washington, D.C. (EUA), em 9 de junho de 1992. In: SILVEIRA, Joel & MITKE, Thassilo. A luta dos
pracinhas. 3ª ed. revista e aumentada: A FEB 50 anos depois. Uma visão crítica. Rio de Janeiro: Record, 1993.
71
A atuação da FEB na campanha da Itália foi significativa. A força brasileira completou
todas as missões que o comando do Quinto Exército lhe confiou, libertou várias localidades
italianas e forçou a rendição de toda a 148ª Divisão Alemã206
. Para McCann, a atuação da
FEB foi um sucesso “de tal ordem, que os líderes americanos pretenderam que ela
permanecesse na Europa como parte das forças de ocupação”. Contudo, isso foi
impossibilitado diante da rápida desmobilização da Força Expedicionária pelas autoridades
brasileiras207
.
Oficialmente, se declarou o fim das hostilidades em toda a Itália no dia 2 de maio de
1945, e a FEB foi então designada para participar da ocupação militar em Piacanza, Torona-
Voghera, Salvatore, Alessandria e Solero. As ocupações tinham como objetivo manter a
ordem em território italiano, e duraram até 20 de junho de 1945. Todos os efetivos da FEB
foram enviados para a cidade de Francolise, a fim de aguardar o embarque para regressar ao
Brasil. A operação de retorno se deu de forma similar ao envio da FEB para a Europa: os
primeiros contingentes chegaram ao Rio de Janeiro em 18 de junho, e os últimos
desembarcaram no Brasil no dia 3 de outubro de 1945208
.
1.3.4 – Desmobilização da FEB e os veteranos no pós-guerra
Quando o primeiro escalão da FEB desembarcou no Rio de Janeiro, em junho de 1944,
a recepção popular foi extremamente calorosa e as ruas da capital federal estavam repletas de
pessoas felicitando os expedicionários: jornalistas, autoridades e representantes militares de
países aliados congratulavam os soldados brasileiros por sua atuação na frente de batalha no
norte italiano. Contudo, as festividades da chegada das forças expedicionárias ao Rio de
Janeiro escondiam temores, sobretudo das lideranças brasileiras.
Paradoxalmente, quando os primeiros contingentes da FEB desembarcavam em solo
brasileiro, a FEB já não mais existia. A força expedicionária é extinta com a portaria
ministerial nº 8.250. de 11 de maio de 1945, baixada pelo ministro da Guerra, Eurico Gaspar
206
A 148ª Divisão alemã que se rendeu às forças brasileiras era composta de 800 oficiais, quase 15 mil soldados
e copioso material de guerra. Ver: COSTA, Octavio. Op. Cit., 1985. 207
SILVEIRA, Joel & MITKE, Op. Cit., 1993. 208
COSTA, Octavio. Op. Cit., 1985.
72
Dutra209
. Em 6 de junho, um aviso ministerial nº 217-184 previa a desmobilização das forças
brasileiras que lutaram na Itália210
.
Para as autoridades militares brasileiras, a presença da FEB no país poderia
representar uma ameaça. Não se tratava de uma ameaça direta ao Estado Novo, visto que, de
modo geral, grande parte dos efetivos da força não representava perigo ao ditador brasileiro.
Contudo, essas desconfianças em relação aos efetivos da FEB vinham das próprias
autoridades militares brasileiras, sobretudo dos generais Eurico Gaspar Dutra e Góis
Monteiro.
A desmobilização da FEB em solo nacional se deu de forma extremamente rápida.
Logo ao chegar ao Brasil, a maior parte dos efetivos foi dispensada e recebeu o soldo ainda no
Rio de Janeiro. Dos efetivos que permaneceram nas forças armadas nacionais, todos foram
dispersos pelos vários quartéis localizados no território nacional. Essa medida fragmentou até
mesmo as pequenas unidades que compunham a FEB. As autoridades militares ainda
conduziram outras medidas bastante arbitrárias em relação aos expedicionários, tais como a
proibição de qualquer declaração sobre a força expedicionária, suas operações na Europa ou
sobre a guerra, sem a prévia autorização do Ministério da Guerra, e a proibição do uso dos
uniformes, insígnias, adereços e mesmo condecorações referentes à FEB em público211
.
Na opinião de Frank McCann, a extinção da FEB fez com que as Forças Armadas
nacionais perdessem uma oportunidade ímpar de aprimorar os adestramentos e mesmo a
instrução militar das tropas nacionais. A dispersão do grupo impossibilitou qualquer
oportunidade de utilizar os conhecimentos e as instruções recebidas pela FEB dos exércitos
aliados no momento do conflito dos efetivos em território nacional212
.
Com o fim da FEB e a dispensa da maior parte dos efetivos, uma massa de milhares de
jovens ex-soldados voltou para a sociedade brasileira. Os veteranos que estavam trabalhando
em emprego público antes da guerra tiveram a oportunidade de retomar seus antigos cargos,
contudo a grande maioria dos veteranos não teve a mesma sorte e foi procurar novas
ocupações na vida civil213
.
209
ROSA, Alessandro dos Santos. A reintegração social dos ex-combatentes da Força Expedicionária
Brasileira (1946-1988). Dissertação de mestrado Universidade Federal do Paraná – Curitiba, 2010. 210
COSTA, Octavio. Op. Cit., 1985. 211
PINTO, Júlia Amabile Aparecida de Souza. A participação brasileira na Segunda Guerra Mundial e a
reintegração social dos veteranos de guerra da Força Expedicionária Brasileira: notas de pesquisa. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/afroatitudeanas/volume-2-2007/Julia%20Amabile.pdf. Acesso em: 5
jun. 2013. 212
SILVEIRA, Joel & MITKE, Thassilo. Op. Cit., 1993. 213
PINTO, Júlia Amabile Aparecida de Souza. Op. Cit., 2013.
73
A grande maioria dos veteranos da FEB foi literalmente abandonada pelo governo
brasileiro no pós-guerra, e não foi realizada qualquer preparação social ou programa de
ressocialização desses homens, e não houve mesmo a existência de uma legislação que,
minimamente, previa resguardar os direitos dos veteranos; na maioria dos casos, ela foi
descumprida, e os pracinhas ficaram à sua própria sorte. Além do descumprimento da
legislação e da ausência de qualquer auxílio por parte do governo, muitos veteranos foram
vítimas de preconceito, taxados pela sociedade como sujeitos “problemáticos” e ou com
“problemas mentais”. Milhares de veteranos enfrentaram esse estigma social durante toda sua
vida e tiveram problemas para conseguir empregos e se reinserir na sociedade brasileira214
.
Além do descumprimento de leis que deveriam atender aos veteranos da FEB, da falta
de fiscalização, da indiferença e do despreparo do governo brasileiro para reinserir esses
homens na vida social do país, devemos notar o descaso social, o esquecimento e o
desmerecimento que esses sujeitos tiveram de enfrentar. Os veteranos foram abandonados por
grande parte da sociedade brasileira, salvo alguns núcleos de preservação da memória desses
sujeitos: os familiares, as sedes da Associação Nacional dos Veteranos da FEB ou ainda
ocasiões cívicas especificas, quando esses sujeitos são vagamente lembrados215
.
A FEB e seu envio para atuação na Itália foi um projeto multifacetário e representou
os anseios do governo Vargas e das massas populares, que pediam a entrada brasileira na
guerra, os interesses das autoridades militares, que desejavam obter maior poder e visibilidade
no contexto nacional, e, ainda, o desejo de lutar pela nação de milhares de jovens que se
juntaram à força expedicionária. A FEB ainda foi utilizada como objeto de manobra, seja
como resposta do governo à população ou como forma de garantir um status de destaque para
o Brasil no contexto do pós-guerra.
O projeto da FEB concentrou muitos desejos, foi assediado impiedosamente pela
sanha ufanista do Estado Novo, contribuiu ativamente para reforçar a ideologia nacionalista
do DIP e ajudou a construir a ideia de “heróis da nação”. Contudo, a maior parte desses
desejos foi frustrada, e a retórica ufanista de feitos gloriosos e heroicos difundida pelo
governo destoava grandemente da imagem daqueles homens que voltavam da guerra,
marcados pela brutalidade e pelo horror que presenciaram no conflito.
214
Sobre a questão dos traumas de guerra que afetaram alguns veteranos da FEB, ver: ROSA, Alessandro do
Santos. Op. Cit., 2010. p. 76. 215
Ibidem.
74
CAPÍTULO 2 – A GUERRA SEGUNDO UM PRAÇA DA FEB: NARRAR, GUARDAR
E ESCREVER SOBRE SI E SOBRE A GUERRA
2.1 – Entre a história e a biografia
2.1.1 – Algumas considerações preliminares
As fontes não possibilitam acesso completo à existência humana, e o objetivismo
pleno é uma utopia por excelência. Sempre existirão ligações imperceptíveis, recados
invisíveis ou escondidos, segredos, códigos indecifráveis e relações perdidas. Na maioria das
vezes, o que temos em mãos nada mais é do que a ossada consumida da baleia descrita por
Herman Melville216
.
Assim como a ossada descrita por Melville, desprovida de “toneladas de carne,
músculos, sangue e vísceras”, são as fontes utilizadas pelos historiadores para escrever suas
histórias, modestos fragmentos do passado que dão “apenas uma ideia imperfeita” do universo
do qual fizeram parte um dia. Resta-nos apenas aquilo que o tempo e a morte não roubaram,
fragmentos soltos, pedaços desconexos e, às vezes, separados, distantes de sua plenitude
original, desfigurados e ressignificados pelo tempo e pelos homens, isso é, assim como a
ossada da baleia, o passado só pode ser alcançado precariamente, numa incerta emulação
mental, cujas fontes e fragmentos minimamente orientam os historiadores num terreno
pantanoso, difícil e quase impossível.
Contudo, por mais utópico que o objetivismo histórico possa parecer, devemos nos
ater às fontes, tentar ouvir aquilo que elas nos dizem, extrair-lhes seus segredos e nuanças e,
sobretudo, reconhecer nossa incapacidade de dar conta do passado tal qual foi, desse sonho
utópico objetivista e totalizante.
Isso quer dizer que, apesar das fontes e do rigor histórico objetivista, cuja finalidade
última é a reconstrução plena do passado, devemos reconhecer que a história é tributária
também da imaginação, da ficção, de processos de significação e ressignificação do passado e
de todo um universo que escapa ao real. O historiador se divide entre o rigor das fontes, seu
compromisso com a verdade última e, ao mesmo tempo, a consciência da impossibilidade de
se alcançar essa verdade, soma-se a isso a imaginação que, às vezes, completa precariamente
216
Aqui fazemos referência à passagem do livro onde Herman Melville descreve a incapacidade de um
observador imaginar uma baleia viva somente através de ossada. Ver: MELVILLE, Herman. Moby Dick. São
Paulo: Martin Claret, 2004. p. 459-460.
75
os espaços do quadro em branco, as lacunas e as regiões onde os fios da tessitura estão
ausentes, os espaços onde as fontes não deixam pistas, onde o “real” só pode ser imaginado,
intuído imprecisamente e, às vezes, “criado”, tal qual uma ficção.
2.1.2 – Entre lembranças e a história
Osmar Gomes de Oliveira, filho de Maria José de Oliveira e Aristides Batista Gomes,
brasileiro nascido em 1921, na fazenda do rio do Peixe, município de Rezende Costa, Minas
Gerais. Em detrimento do envolvimento brasileiro na Segunda Guerra Mundial, foi
convocado para integrar as fileiras da FEB em de 1942, quando foi incorporado ao 11º
Regimento de Infantaria do Exército Brasileiro, na cidade de São João Del Rey, em Minas
Gerais. Serviu no Teatro de Operações no norte da Itália ao lado dos aliados entre 6 de
outubro de 1944 a 0 de setembro de 1945217
.
Talvez, dessa maneira, poderíamos sintetizar a participação de Osmar Gomes na
Segunda Guerra Mundial; ele é um dos milhares de veteranos brasileiros que serviram na
Itália ao lado dos aliados durante o conflito. Contudo, devemos nos questionar se o nome
próprio, esse “ponto fixo no mundo” que, para Pierre Bourdieu, “é o atestado visível da
identidade do seu portador através dos tempos e dos espaços sociais”, poderia dar conta de
todo esse momento de sua existência social.218
. Decerto o nome próprio, esse índice ideal que
se refere a um sujeito cuja existência pode ser atestada por certificados, diplomas e toda sorte
de documentos oficiais, não consegue dar conta de toda a multiplicidade, descontinuidade e
caótica complexidade que é a existência humana.
Bourdieu nos lembra que a vida humana não pode ser tomada como um todo com
sentido a priori, como um conjunto coerente que guarda em si mesmo um significado e uma
lógica. Ele nos lembra de um trecho da obra de William Shakespeare, na peça Macbeth,
quando um dos protagonistas diz a célebre frase: “A vida é uma história contada por um
idiota, cheia de som e de fúria, sem sentido algum”.219
Para Bourdieu, devemos reconhecer
que não existe um sentido a priori, que a vida em si não guarda qualquer significação por ela
mesma:
217
ROMEIRO, Jacy Gomes. Gota de arte no sangue. Divinópolis: Artes Gráficas Santo Antônio, 1986. 218
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, J. & FERREIRA, M. M. (Orgs.). Usos e abusos da
história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006. pp. 183-191. 219
SHAKESPEARE, William. Macbeth. São Paulo: Martin Claret, 2002.
76
(...) o real é descontínuo, formado por elementos justapostos sem razão, todos eles
únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos porque surgem de modo
incessantemente imprevisto, fora de propósito, aleatório.220
Neste sentido, Bourdieu não acredita que a vida de um sujeito possa ser considerada
como “um todo coerente e orientado”. Para ele, são sempre os sujeitos que numa ação
posterior atribuem significados e sentidos às suas próprias vidas. Se tomarmos as fontes que
se referem ao veterano, podemos perceber vários discursos desse sujeito acerca desse
momento de sua vida; a guerra vista em retrospectiva em distintos momentos, discursos que
guardam significados e sentidos que variam de um momento para outro.
Ainda devemos reconhecer que o sujeito é sempre múltiplo, fracionado e que coexiste
em diversos “mundos sociais”, ou seja, devemos assumir que um sujeito não permanece o
mesmo durante toda sua vida e que os sentidos que ele atribui a si mesmo em momentos
específicos de sua trajetória dependem também do período em que ele realiza essa reflexão.
Os discursos do velho Osmar Gomes, presentes nas entrevistas de 2004 e 2007, são muito
diferentes daqueles encontrados em documentos que ele guardou ou produziu na guerra ou
logo depois que ele voltou do conflito.
Diante do caos existencial apontado por Shakespeare e da ilusão que a vida tem por si
só sentido, de que nos fala Bourdieu, nos resta tentar compreender as possibilidades de se
chegar aos sujeitos e às formas com que esses entendem e significam sua própria trajetória,
mesmo que isso constitua uma tarefa extremamente precária e fragmentada, cujos resultados
se fundam através da consciência de não podermos saber de todos os aspectos inerentes à vida
de um sujeito.
Neste sentido, qualquer intento biográfico, ou seja, qualquer tentativa de reconstrução
de uma história de vida de um sujeito é, de certa forma, uma abstração literária, uma tentativa
sempre reducionista de acesso a um infinito complexo que é uma vida humana, realizada
através de uma ordenação lógica historiográfica e literal. Todavia, isso é tudo o que resta
como acesso ao passado: precários fragmentos de um todo universal que se perdeu,
deslocados de sua função original e lidos em outros tempos por outros atores.
Para Giovanni Levi,
220
Ver: BOURDIEU, Pierre. Op. Cit., 2006. pp. 183-191. Poderíamos questionar essa postura de Bourdieu, visto
que, se invertêssemos sua teoria, provar o contrário também se constitui numa impossibilidade. Não podemos
afirmar que a vida tenha ou não sentido, talvez o que possamos afirmar é que, através das ciências, não
conseguimos dar conta da complexidade do real; somos incapazes de saber de todas as coisas acerca da natureza.
77
a literatura comporta uma infinidade de modelos e esquemas biográficos que
influenciaram amplamente os historiadores. Essa influência, em geral mais indireta
do que direta, suscitou problemas, questões e esquemas psicológicos e
comportamentais que puseram o historiador diante de obstáculos documentais
muitas vezes intransponíveis: a propósito, por exemplo, dos atos e dos pensamentos
da vida cotidiana, das dúvidas e das incertezas, do caráter fragmentário e dinâmico
da identidade e dos momentos contraditórios de sua constituição.221
Os recursos literários são, na verdade, uma forma possível de transmissão das
memórias dos sujeitos. Mesmo que seja latente o fato de que é impossível transmitir pela
linguagem tudo aquilo que as lembranças nos trazem, devemos ponderar a falta de recursos
necessários para transmitir os sons, os gostos, os cheiros, o tato, tudo aquilo que nos vem à
mente enquanto lembramos e narramos. Entretanto, são os recursos da literatura que
minimamente possibilitam ao narrador contar suas histórias.
Uma operação que reduz a realidade ao verbo, que reduz as lembranças em todas suas
potencialidades perceptíveis e significativas ao mundo literário, omitindo, destacando, mas,
ao mesmo tempo, opera essa possibilidade de transmitir algo, de dizer ao outro aquilo que se
percebeu e significou.
Para além da questão do nome próprio, apontada por Bourdieu, devemos atentar para a
existência de outros espaços na vida dos sujeitos que estão longe das instituições: as trocas
íntimas, os círculos familiares, as confidências, as representações que um sujeito faz de sua
própria vida, as relações que ele estabelece com outros sujeitos, a constituição de laços de
sociabilidade entre outras.
Bourdieu atenta para a necessidade de uma reconstrução contextual para se
compreender minimamente o mundo social no qual se desenrola a trajetória do sujeito, isto é,
o que Bourdieu chama de “superfície social”
Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de
acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um “sujeito”
cuja constância certamente não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão
absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a
estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes
estações.222
Preocupa-nos, nesse momento, compreender como um veterano da Segunda Guerra
Mundial, o terceiro-sargento do Exército Brasileiro Osmar Gomes de Oliveira, constrói
221
LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: AMADO, J. & FERREIRA, M. M. (Orgs.). Usos e abusos da história
oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006. p. 168. 222
BOURDIEU, Pierre. Op. Cit., 2006. pp. 183-191.
78
relatos sobre um momento específico de sua vida: o período em que esteve envolvido na
Segunda Guerra Mundial, entre os anos de 1939-1945. Preocupam-nos as particularidades
desse sujeito, suas especificidades, as formas de significações que ele apresenta em distintos
momentos quando constrói, de uma forma ou de outra, relatos sobre esse momento de sua
vida.
Acreditamos que as formas de retomada do passado desse sujeito, suas maneiras de
significação, interpretação e mesmo a constituição e manutenção de seu acervo o tornam um
ser singular. Os relatos de Osmar Gomes o tornam único, e suas narrativas constituem um
acesso específico daquilo que ele formulou sobre seu passado e, consequentemente, sobre a
história, e, assim, a história, esse todo que se pretende generalizante, não pode mais ser
afirmado como nada além de um espaço de tensão entre singularidades, entre discursos
distintos de seres sociais, que se inserem nesse universo dialético, nesse sem-fronteiras que é
privado e público, individual e social.
Partimos do princípio223
de que os indivíduos se organizam coletivamente em grupos e
ocupam diferentes posições e funções dentro destes mesmos grupos, constituindo, assim,
configurações sociais224
complexas e específicas. Essas configurações proporcionam aos
sujeitos, minimamente, noções de identidade e pertencimento, além de códigos de conduta e
regras sociais, advindas de heranças sociais, convenções estabelecidas socialmente ou
instituídas pelo Estado e que, de certa forma, orientam o agir desses sujeitos para uma
coexistência social mais ou menos equilibrada dentro de um determinado grupo, ou
configuração social.
Contudo, não é a ideia de se entender essas configurações sociais como entidades
supra-humanas e totalizantes, ou seja, completamente descoladas e impositivas aos sujeitos.
Apesar de essas estruturas sociais se apresentarem dessa forma, devemos estar atentos que as
sociedades, ou os grupos humanos, são sempre constituídos por relações de interdependência
complexas, e são os sujeitos que perpetuam, sustentam, modificam, criam e suprimem essas
configurações sociais específicas com suas estruturas, regras, posições sociais, valores e
convenções socialmente aceitas, etc225
.
223
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Trad.Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. 224
Fazemos referência, aqui, ao conceito de configuração social em Norbert Elias. Ver: ELIAS, Norbert.
Introdução à sociologia. Trad. Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Lisboa: Edições 70, 2008. 225
Neste sentido, entendemos estruturas ou sistema sociais não como leis gerais estáticas que descrevem “a
sociedade dos indivíduos”, mas sim como estruturas mutáveis e fluídas que nascem da imbricação das relações
de interdependência dos sujeitos, norteadas sempre pelas pressões, limites e espaços existentes no interior dessas
mesmas configurações sociais complexas.
79
Neste sentido, podemos afirmar que os sujeitos estão inseridos numa dinâmica,
relativamente maleável, mas também relativamente rígida, de interdependência com outros
sujeitos. Assim, devemos considerar tanto os limites e as obrigações que são socialmente
impostas aos sujeitos e que refletem e influem diretamente em seu agir quanto os espaços de
liberdade individual, sempre limitados, que permitem minimamente aos sujeitos uma relativa
liberdade de ação, reação, inventividade, criatividade e, talvez, genialidade.
Ou seja, obstante de uma total sujeição às regras e aos determinismos sociais, ou
inversamente, de uma total liberdade de ação individual e desprendimento das relações
socialmente estabelecidas, concordamos que, “para o bem ou para o mal, os seres humanos
individuais ligam-se uns aos outros numa pluralidade, isto é, numa sociedade”226
. Só podemos
entender os indivíduos imersos em configurações sociais complexas, ou seja, em cadeias de
relações de interdependência com outros sujeitos, nas quais são produzidas, modificadas,
transformadas ou mesmo extinguidas determinadas configurações sociais, seja totalmente ou
mesmo parcialmente.
Essas configurações sociais devem ser entendidas como espaços de constante tensão,
entre o desejo dos indivíduos de agir livremente, mesmo que essa liberdade seja sempre
limitada de alguma forma, e a necessidade, ou quase obrigatoriedade, desses indivíduos de se
integrarem às dinâmicas da vida social, aceitando, mesmo que parcialmente, quadros
referenciais de valores, costumes e práticas socialmente aceitas227
.
Partindo desse princípio – de que os homens se organizam em grupos, em sociedade –,
Norbert Elias228
chama de configuração social a forma como esses grupos são constituídos,
através de relações complexas de interdependência entre os sujeitos. Considerando, tanto as
potencialidades limitadas da agência individual, que podem, inclusive, implicar mudanças e
transformações nessa mesma configuração social quanto as potencialidades das estruturas e
convenções sociais, que se mostram aos indivíduos como elementos supra-humanos, apesar
de realmente não o serem, e que exercem pressões e, de certa maneira, orientam ou norteiam o
agir social dos indivíduos.
A posição dos sujeitos dentro de uma determinada configuração de grupo acaba por
imputar obrigações e liberdades características desse posicionamento, relevando um frágil
226
ELIAS, Norbert. Op. Cit., 1994. pp. 7-8. 227
É quase impossível a um indivíduo rejeitar totalmente uma determinada configuração social em que ele está
inserido; o ato do indivíduo de rejeitar certas relações de interdependência estabelecidas pode levar a certas
sanções e exclusões sociais. 228
ELIAS, Norbert. Op. Cit., 2008.
80
equilíbrio, mais ou menos estável, entre as possibilidades de ação e criação do sujeito e as
obrigatoriedades e os determinismos impostos pelas estruturas sociais.
O que pretendemos, nesse momento, é tentar compreende esse sujeito num contexto de
significados, compreender o terceiro-sargento não como reflexo ou índice de seu tempo, mas
como um agente social que dialoga com os valores, os códigos, as ideologias e os
acontecimentos de seu tempo, evidentemente criando uma forma particular de se inserir e
relacionar-se com esses elementos. Então, o que se quer compreender é como esse sujeito
pode ter se posicionado socialmente dentro desses diferentes momentos históricos, ou seja, de
que forma esse sujeito significa o mundo ao seu redor, de que maneira esse sujeito constrói a
sua participação na Segunda Guerra Mundial e atribui sentidos a esse evento. Portelli pontua a
importância de se pensar na memória como um ato individual e critica a aceitação passiva da
memória coletiva como algo natural.
Mas não se deve esquecer que a elaboração da memória e o ato de lembrar são
sempre individuais: pessoas, e não grupos, se lembram. (...) Se toda memória fosse
coletiva, bastaria uma testemunha para uma cultura inteira; sabemos que não e
assim. Cada indivíduo, particularmente nos tempos e sociedades modernos, extrai
memórias de uma variedade de grupos e as organiza de forma idiossincrática. Como
todas as atividades humanas, a memória é social e pode ser compartilhada (razão
pela qual cada indivíduo tem algo a contribuir para a história “social”); mas do
mesmo modo que langue se opõe a parole, ela só se materializa nas reminiscências e
nos discursos individuais229
.
Assim, as memórias individuais se confirmam como contraposição a qualquer intento
generalizador, no sentido de entender que a história oral fique nessa confluência entre as
lembranças do indivíduo e a forma como ele se coloca e significa a história, essa que Portelli
chama de história “social”. Evidentemente, as lembranças individuais podem ajudar a
entender melhor as implicações políticas e ideológicas do período. Contudo, não é o caso de ir
de uma generalização à outra, mas a possibilidade de se perceber uma multiplicidade de
discursos e formas de apropriação e relações estabelecidas pelos sujeitos em seu meio social –
o que, de certa forma, pode questionar as generalizações historiográficas e propor novas
perspectivas e minimamente demonstrar que essas generalizações são sempre reducionistas.
Daí a importância social e política de se ouvir vários atores, de pontuar os relatos
individuais como únicos, considerando os sujeitos em suas especificidades, em suas
características próprias e não apenas no que ele confirma como valores sociais estabelecidos,
229
PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Vai di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944). In:
AMADO, J. & FERREIRA, M. M. (Orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 2006. pp. 103-130.
81
mas naquilo que o torna singular. Isto é, tentar compreender como esse sujeito apresenta suas
formas de significação e valoração, suas crenças e filiações, além das maneiras como ele se
posiciona diante das pressões sociais que incidem sobre seu agir, nessa constante tensão social
entre as possibilidades do agir relativamente livre e as obrigatoriedades que são constantes
nos momentos de guerra.
2.2 – Um velho e suas coleções: entre lembranças e esquecimentos
2.2.1 – O acervo entre lembranças e esquecimentos
Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar,
com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é
trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, “tal como foi”, e
que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída
pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações
que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça à lembrança de
um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque
nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela,
nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o
passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e
propõe a sua diferença em termos de ponto de vista.230
O que pode nos contar um veterano da FEB sobre sua trajetória durante a guerra?
Seria ele capaz de nos contar tudo aquilo que viveu e sentiu? Seriam suas lembranças
suficientes para resgatar o passado tal qual foi? Para as últimas duas questões, a resposta
certamente é não. Contudo, a primeira questão persiste, e sua resposta é menos evidente, mais
complexa e difícil de alcançar do que parece. As lembranças não são reflexos do passado,
mas, na verdade, processos de retomada do passado por um sujeito, que constantemente
reconstrói e ressignifica seu passado.
O velho que nos conta sua trajetória na guerra não descreve exatamente o passado tal
qual foi, mas, na verdade, expõe, mesmo que precariamente, todo um processo de retomada,
construção e reconstrução de seu próprio passado, significado e ressignificado sucessivas
vezes, abrangendo uma diversidade de presentes e sentidos, entre silêncios e esquecimentos.
Nos anos de 2004 e 2007, foram realizadas duas entrevistas com o veterano da FEB, o
terceiro-sargento Osmar Gomes de Oliveira231
. Essas entrevistas tinham como objetivo ouvir
230
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade – Lembranças de velhos. 3ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 1994. p. 55. 231
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia; OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a
Izaac Erder Silva Soares.
82
os relatos desse sujeito acerca de suas lembranças sobre sua participação na Segunda Grande
Guerra Mundial. O veterano vivia sob os cuidados de sua filha; era um idoso já debilitado por
enfermidades, um homem muito distante temporalmente daquele de suas experiências na
juventude como terceiro-sargento da FEB, que serviu no Teatro de Operações da Itália entre
outubro de 1944 e setembro de 1945, mas, ainda sim, o homem que refere a si mesmo como
terceiro-sargento da FEB e se identifica como veterano, expedicionário e pracinha232
.
Osmar Gomes havia vivido toda sorte de outras experiências no pós-guerra, constituiu
família, criou filhos, trabalhou e viveu uma infinidade de momentos felizes e infelizes. Isto é,
a guerra não pode ser entendida como totalizante em sua vida. Decerto ela é uma parte
constituinte da existência desse sujeito, talvez um momento marcante, mas que não determina
a totalidade do vivido por ele.
Nas duas entrevistas, o objetivo era bastante similar: ouvir os relatos desse sujeito
sobre sua participação na guerra. Em ambas, foi possível perceber alguns aspectos bem
significativos: uma espécie de narrativa organizada de forma cronológica e episódica; a
existência de um acervo particular, com volume considerável sobre a guerra, constituído de
vários objetos que ele trouxe do conflito; a consciência de sua debilidade física, de sua idade
relativamente avançada e a apreensão de que suas lembranças estão se perdendo, que ele está
se esquecendo de seu passado; e, por último, a percepção de que os objetos de seu acervo
estão sendo desorganizados, fragmentados e se perdem aos poucos.
Essas entrevistas revelam um sujeito que relata suas experiências vividas há décadas,
ressignificadas, reordenadas e contadas tantas vezes. Um velho que conta sua trajetória na
guerra através de relatos orais e também de seu acervo privado, mas que, ao mesmo tempo,
revela sua fragilidade, sua incapacidade de lembrar tudo e ser compreendido totalmente.
Preocupa-nos compreender de que forma os objetos e itens que compõem o acervo
criado e mantido pelo veterano constituem uma narrativa relativamente organizada sobre sua
trajetória na guerra. Acreditamos que o acervo de Osmar Gomes pode contar sobre sua
trajetória durante a guerra, e, mesmo que essa seja uma narrativa incompleta, cheia de lacunas
e momentos ilegíveis, acreditamos que ainda assim seja possível uma construção particular e
subjetiva, que apresenta um sentido sobre sua trajetória na guerra, além de outras vozes sobre
o passado desse sujeito.
232
Ver: ANEXO 01 – Fotografia do terceiro-sargento da FEB Osmar Gomes de Oliveira. Foto pertencente ao
acervo do Arquivo Público Municipal de Divinópolis, Caixa 08.
83
Neste sentido, é importante pensar as formas como esse acervo foi criado, organizado
e mantido por Osmar Gomes, as suas estratégias de seleção, a trajetória própria de cada um
dos itens que compõem esse acervo e a forma como este era vinculado à narrativa e
apresentado por esse sujeito a outras pessoas. Ainda pretendemos levantar outras questões
importantes, tais como: o que motivou esse sujeito a guardar esses itens? O que o levou a criar
seu acervo de forma organizada? Parece-nos que ele tem uma atitude de colecionador, pois ele
separa os itens de seu acervo em tipologias. Mas, apesar disso, ele se opõe à ideia de ser
considerado um colecionador, o que nos coloca outras questões pertinentes: o que é um
colecionador para esse sujeito? Como ele entende sua própria atitude, visto que ele não se
considera um colecionador?
Entendemos que essas coleções constituem seleções e recortes que seguem
organização e lógica estabelecidas por Osmar Gomes e representam um discurso próprio
sobre sua trajetória, ou seja, são elementos que esse sujeito considerou suficientemente
importantes e representativos para serem preservados e servirem como um índice de
lembranças acerca de sua trajetória na Itália, recordando situações e momentos específicos
que esse sujeito desejou guardar.
A resposta mais óbvia à pergunta anterior talvez seja a de que este sujeito não era um
colecionador comum ou típico, talvez apenas alguém que desejou guardar uma parte de sua
própria vida, mais especificamente de sua trajetória na Segunda Guerra. Os itens dessa
coleção guardam lembranças muito específicas para esse sujeito e que, às vezes, pode guardar
significados ininteligíveis para outros observadores. Diferentemente de uma coleção típica, os
itens desta coleção criada por Osmar Gomes remetem a ligações mnemônicas com eventos
que esse sujeito vivenciou e desejou guardar. O acervo assume a ideia de remontar a algo que
foi perdido, a algo que passou e não pode mais ser acessado, a algo que falta especificamente
a esse sujeito.
Isso implica numa operação impossível, a certeza que só podemos acessar esses
acervos de forma fragmentária, incompleta e precária. É reconhecer a impossibilidade de
realizar todas as ligações existentes entre as lembranças desse sujeito e os itens que compõem
seu acervo, de saber a quais lembranças os itens remetem originalmente. Em sua maioria, são
perguntas sem respostas, e podemos, no mínimo, especular sobre essas ligações, sobre as
associações realizadas por esse sujeito no momento em que ele selecionava um novo item
para o seu acervo.
84
Apesar dessa longa reflexão, as perguntas ainda persistem: o que levou Osmar Gomes
a criar seu acervo? Qual o significado desse conjunto de itens para esse sujeito? O acervo
privado sempre remete a algo ausente que se deseja lembrar, sempre remete a uma falta, a um
momento que se passou e só pode ser acessado novamente através da lembrança. Assim, o
acervo constitui, de certa forma, um índice material dessas lembranças, uma evidência física
acerca de algo que falta a esse sujeito, um testemunho do seu passado, daquilo que não está
mais presente, um relato organizado e reorganizado várias vezes no tempo.
Nas entrevistas realizadas com Osmar Gomes em 2004 e 2007, pode-se perceber uma
espécie de consciência da falência de sua capacidade narrativa. Durante as entrevistas, por
diversas vezes, ele assume a condição de perda da capacidade de narrar suas lembranças
devido às suas limitações em detrimento da idade avançada. Outro elemento perceptivo nessas
entrevistas, que surge entre o choro e o desespero da consciência, é que algo não pode ser
lembrado, que algo foi esquecido e perdido; é o medo de perder suas lembranças, o medo de
esquecer seu passado e imperiosamente o medo de perder sua própria identidade e deixar de
ser quem é. No entanto, esse medo parece superar o temor do esquecimento gerado pela morte
física; significa mais que isso, não é apenas deixar de existir fisicamente, é nunca ter existido
de fato, é o medo de ser esquecido definitivamente, de ter todas suas lembranças “apagadas”,
de parecer nunca ter vivido.
Neste sentido, as coleções surgem como lembranças físicas, que teriam a função de
suprir a certeza do esquecimento biológico, o medo de ser esquecido depois da morte, o medo
do esquecimento completamente. O acervo é visto pelo velho como um recurso; é a certeza de
que suas lembranças irão faltar, de que seu corpo irá envelhecer e perecer definitivamente. De
certa forma, há uma aceitação da condição humana por excelência – a morte física –, mas há,
também, a não-aceitação da condição do esquecimento completo, pois morrer é deixar de
existir fisicamente, mas não exatamente deixar de ser lembrado, pois as lembranças podem
vencer a própria morte do corpo.
Talvez, para o velho Osmar Gomes, suas coleções representem essa permanência,
mesmo depois da morte; ser lembrado mesmo depois que seu corpo perecer. De certa forma, é
uma maneira de vencer o esquecimento e a morte, de afirmar sua existência. Neste sentido, as
lágrimas e o desespero, expressados na entrevista em 2004, não retratam o medo
especificamente da morte física de seu corpo, mas o medo do esquecimento perpétuo233
.
233
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia.
85
Diante desse esquecimento que atormenta o homem, suas coleções e seus relatos
surgem como elementos materiais que parecem dar a ilusão de transcender sua própria
existência física e imortalizar seus feitos, ou pelo menos perpetuar suas narrativas, tão
cuidadosamente organizadas, para além da finitude de sua própria vida.
O velho Osmar Gomes das entrevistas pode se assemelhar ao herói grego Aquiles,
visto que reconhece que a morte faz parte da natureza humana, que morrer é algo humano,
que nenhum mortal pode fugir dessa certeza última: todos os homens enfrentaram Tânatos,
todos os homens deixaram a vida e desceram ao Hades234
. Contudo, as lembranças poderiam
fazer com que seu nome e feitos sejam imortalizados através do tempo. Para Aquiles, a
condição mortal da finitude só pode ser vencida pela imortalidade da lembrança de seu nome
e feitos; é através das lembranças que os homens podem escapar de sua condição mortal e
alcançar uma suposta imortalidade.
Quando Tetís, mãe de Aquiles, lhe apresenta a visão do oráculo, que condicionou a
vitória grega contra Tróia, com a morte de Aquiles, ela oferece uma escolha ao herói: ser
lembrado eternamente por seus feitos gloriosos e ter uma vida curta ou ter uma vida longa e
feliz, mas depois da morte ter seu nome esquecido completamente. Para Aquiles, ser
lembrado no pós-morte é equipar-se aos deuses imortais; ser lembrado para sempre é uma
maneira de se igualar aos deuses, de superar a condição mortal dos homens, a condição de
finitude e ter o nome e feitos lembrados através dos milênios235
.
Os acervos do terceiro-sargento são lembranças não-biológicas, externas ao seu corpo
e que, idealmente, deveriam perpetuar suas memórias depois de sua morte física,
proporcionando a ideia de ser lembrado depois da morte, de ter seu nome dito mesmo depois
de não poder responder a esse chamado. Assim como Aquiles, Osmar Gomes lutou numa
grande guerra, e assim também desejou ser lembrado por sua trajetória na guerra. Contudo,
não nos parece que esse sujeito veja a guerra como Aquiles; em sua perspectiva, a guerra não
é tida como o local de feitos gloriosos e heroicos, mas sim como o lugar dos bárbaros, dos
imorais e desumanos, o momento de encarar a morte, a brutalidade da guerra moderna e
fragilidade da vida humana.
Diferente de Aquiles, Osmar Gomes não tem certeza acerca de seu futuro. Ele sofre o
drama de sentir faltar suas lembranças. Ele sofre a condição do esquecimento imposto pela
velhice e a tristeza de saber que esquece seu próprio passado; por diversas vezes, seu choro
234
KURY, Mário da Gama. Dicionário de mitologia grega e romana. 8ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2009. p. 38-367-169. 235
HOMERO. Ilíada. São Paulo: Martin Claret, 2003.
86
apresenta o trauma e o desespero da condição de esquecer, a percepção de ter esquecido algo
precioso, um vazio que não pode ser preenchido diante da certeza de que “algo falta”.
Em alguns momentos das entrevistas, o veterano expõe suas falhas de memória,
reconhece sua incapacidade de lembrar seu passado, mas também apresenta a capacidade de
reconhecer que algo foi perdido, que uma parte daquilo que ele lembrava deixou de existir.
Não queremos dizer que esse sujeito esteja preocupado em se lembrar de tudo o que viveu,
não nos referimos aos esquecimentos que nossa memória opera naturalmente, mas de um
esquecimento perceptível e que se dá devido à idade avançada, que deixa marcas e que
ameaça mesmo sua identidade, aquilo que ele é.236
Durante as entrevistas, nos deparamos com esses momentos, confissões como “eu não
lembro o nome” ou “tem muita coisa que a gente não lembra...”, “eu não lembro se foi em
setembro... acho que foi setembro” ou “já esqueci muita passagem interessante que a gente
passou lá na Itália, né...” – são geralmente seguidas por choro, momentos de silêncio e
tristeza237
.
As entrevistas revelam um sujeito que parece se afastar do dever de falar sobre a
guerra. Ele parece julgar que suas lembranças não são mais suficientes para transmitir o que
viu, para realizar a tarefa que representa, ao mesmo tempo, uma impossibilidade e uma
possibilidade de tornar o real intercambiável através da linguagem, através do narrar238
.
Talvez a perda da memória possa ser o motivo da recusa desse sujeito de se reconhecer como
testemunha autorizada a falar sobre a guerra. Entretanto, Osmar Gomes concorda em falar, ele
aceita ser entrevistado em dois momentos distintos, mas ainda assim opera esse processo de
não se considerar tão apto para testemunhar, e inclusive indica outro veterano que ele julga
mais apto a narrar do que ele próprio. Em um determinado momento da entrevista realizada
em 2004, o veterano interrompe sua fala ao perceber que havia esquecido algo: “(...) eu não
tenho certeza não, mas eu acho que foi... você já foi lá no Cândico? (...) ele é mais calmo e
conhece história, mais história do que eu...” Logo depois dessa fala, ele desaba em lágrimas e
fica um longo tempo em silêncio.
Seu choro e tristeza parecem não estar ligados especificamente à condição de finitude
corporal, mas sim à condição do esquecimento e do não ser lembrado, à condição de perder-se
236
CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011. 237
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia; OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a
Izaac Erder Silva Soares. 238
BENJAMIN. Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. IN: BENJAMIN, Walter.
Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
87
de si mesmo, a certeza de que seu passado está se perdendo, está sendo apagado. Essa
preocupação de Osmar Gomes não está ligada unicamente as suas lembranças, mas também
se estende a suas coleções; ele percebe, com bastante pesar, que os objetos de sua coleção
estão sendo fragmentados e perdidos.
A perda e a fragmentação desses suportes materiais de suas lembranças aparecem em
alguns momentos das entrevistas e, de certa forma, expõem um sentimento de medo diante da
possibilidade da falência de seu acervo organizado e consequentemente, desses suportes
materiais de suas lembranças. Em um momento da entrevista de 2004, Osmar Gomes fala
sobre uma pequena exposição de seus objetos da guerra organizada por seu filho Delber e
apresentada no restaurante deste, onde ele explica a importância desses itens, mas também
expõe a questão da perda de parte desses: “Fiquei com um objeto daqueles que veio da guerra,
dei pro Delber por lá, eu estava perdendo tudo, ficando jogado (...)”. Em outro momento, na
entrevista de 2007, enquanto falava sobre os alimentos enlatados que os soldados consumiam
na guerra, ele novamente apresenta a questão da perda desses objetos de seu acervo:
Já sumiu, quando eu vim, eu trouxe as latinhas é, de tudo, mas nas mudanças, lá, lá
do Rio pra vir pra casa, Aureliano Mourão, depois de Aureliano Mourão, quando eu
mudei pra aqui (Divinópolis), depois aqui eu mudei pra umas três ou quatro casas,
veio mudando, muita coisa foi desaparecendo.239
Em outro momento, essa questão volta a aparecer. Enquanto folheava seu álbum de
fotografias, ele encontra um espaço em branco, de onde uma fotografia foi retirada: “Aqui o
retrato saiu, deve estar com o Delber...” Importante notar que em nenhuma dessas situações
Osmar Gomes falava especificamente da fragmentação de seu acervo, mas isso aparece
enquanto ele relata alguma lembrança e surge a questão da falta de um objeto em específico, a
latinha, a fotografia, entre outros.
O drama da perda de suas lembranças físicas e biológicas povoa os relatos desse
sujeito e, recorrentemente, ele percebe que suas recordações estão sendo destruídas, estão se
perdendo, e, nesses momentos, ele se vê ameaçado pelo esquecimento e pela perda de suas
lembranças e dos significados que atribuiu a sua trajetória no conflito mundial. É a
consciência de saber que algo que existia nas lembranças não pode mais ser recuperado; são
vazios, espaços em brancos que não podem mais ser preenchidos, que deixam claro que algo
existia e perdeu-se e que não pode ser mais recuperado e narrado.
239
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares.
88
Ao colecionar seus itens, Osmar Gomes não se propunha ser um colecionador típico,
que tem o interesse voltado para tipologias especificas, tais como cédulas, moedas, selos ou
outros tipos colecionáveis. Esse sujeito estava interessado em preservar as lembranças que ele
associou aos seus objetos. Neste sentido, devemos considerar que não existem lembranças nos
objetos por si só, por mais que esses conservem aspectos indiciários daquilo que representam
ou representavam as lembranças associadas a eles e que sempre são exteriores e realizadas de
formas diversas pelos sujeitos.
Assim como os itens de suas coleções, seus próprios relatos concentram essa
atribuição de sentidos, significados e valoração. Narrar assume uma característica subjetiva,
no momento em que o sujeito atribui significação àquilo que ele viveu e àquilo que ele tenta
transmitir a outros através de seus relatos. Assim, devemos concordar com Alessandro Portelli
acerca dessas formas narrativas:
Isso não significa que aquilo que se segue não tenha sentido, mas que o sentido
repousa menos numa história dos fatos do que numa história dos seus significados
para aqueles que a viveram e para quem a conta.240
Isso é, os relatos e as coleções de Osmar Gomes exprimem muito mais uma “história
dos significados” que esse sujeito atribuiu a sua trajetória na guerra do que uma história da
guerra em si. Osmar Gomes assume o papel de testemunha da guerra, no sentido de tentar
contar sua trajetória na guerra, seu testemunho acerca dos eventos que viveu no conflito
mundial, mesmo que esse testemunho seja exclusivamente uma construção sua acerca dos
episódios que ele vivenciou e apresente suas formas próprias de valorizar, entender e atribuir
significados a esses mesmos eventos.
2.2.2 – Narrativas organizadas: as lembranças nos espaço público e privado
Ao narrar sua trajetória na guerra, Osmar Gomes parece assumir um papel de
testemunha, um sujeito que, de alguma forma, tenta comunicar suas experiências durante o
conflito. Neste sentido, devemos entendê-lo como uma testemunha que esteve envolvida no
evento e que deseja, de alguma forma, transmitir suas construções e impressões acerca de seu
envolvimento na guerra. O veterano organiza sua narrativa através daquilo que viu,
240
PORTELLI, Alessandro. Op. Cit., 2006. pp. 187-189.
89
expressando suas formas de julgar e os episódios em que esteve envolvido241
, e, ainda,
cumprindo um suposto dever moral de contar sobre os eventos que vivenciou; uma obrigação
de relatar suas experiências passadas a outros.
O que leva o sujeito a se considerar uma testemunha é a condição de ter visto, vivido e
sobrevivido a uma situação extrema. Nesse caso em específico, sobrevivido à Segunda
Guerra. Para além do fato de esse sujeito ter experienciado a guerra de maneira bastante
particular, ele exprime, em seus relatos, toda uma forma de julgar e significar os eventos em
que esteve envolvido. Isso implica no fato de esse sujeito se considerar autorizado a falar
sobre a guerra; é uma testemunha possível, que “pode” relatar o que viu e a forma como
significou e julgou o que viu.
Neste sentido, os testemunhos de Osmar Gomes sobre a guerra podem ser vistos como
uma forma exclusiva de se observar o conflito num determinado tempo, uma vez que nenhum
outro sujeito viveu exatamente o que esse sujeito experienciou. Mesmo que outros sujeitos
tenham vivido conjuntamente situações especificas com Osmar Gomes, nenhum deles
construiu uma narrativa que fosse exatamente a mesma construída por esse veterano, ou ainda
narrativas construídas em diferentes momentos por esse sujeito.
Neste sentido, as narrativas desse sujeito podem ser entendidas como estruturas que
são submetidas a constantes reordenações, reconstruções e ressignificações em momentos
diversos na vida do sujeito, podendo, inclusive, assumir sentidos e discursos diferentes.
As narrativas são construídas e expostas por esse sujeito através de estruturas de
linguagem e de gestos, que tentam comunicar a outros ouvintes sua trajetória no conflito.
Além da linguagem, o gestual é uma importante maneira de articular suas lembranças.
Enquanto narra seus relatos, as mãos de Osmar Gomes bailam no ar como se dessem forma e
materializassem o que ele tenta descrever com as palavras,
pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo
da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente com seus gestos,
aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do
que é dito.242
No entanto, devemos atentar para os limites da narração e da própria figura da
testemunha como possibilidade de transmitir suas experiências vividas a outros. Seligmann
241
SELIGMANN SILVA, Márcio. TÉMOIGNAGE/Testimony; personnal experience narrative. Disponível
em: http://www.flsh.unilim.fr/ditl/Fahey/TMOIGNAGETestimonyPersonnalexperiencenarrative_n. html.
Acesso em: 8 dez. 2012. 242
BENJAMIN. Walter. Op. Cit., 1987. pp. 221-222.
90
atenta que, ao narrar o testemunho, opera um ato que compreende, ao mesmo tempo, uma
possibilidade e uma impossibilidade, pois a testemunha tenta dar forma ao real através da
linguagem e dos gestos, e esses elementos não conseguem dar conta de toda a realidade, ou
mesmo de todos os sentidos desse sujeito.243
Num determinado momento, o veterano relata sobre a forma como eram realizadas as
patrulhas com que ele esteve envolvido durante a guerra:
(...) as patrulhas corria mais risco, porque a gente encontrava por acaso, né (...) por
acaso encontrava uma patrulha alemã lá, aí dava combate, a gente tinha que atirar,
ou matar ou morrer, como se diz (...)244
De forma muito discreta, ele se incomoda pelo entrevistador não compreender a
profundidade de seu relato e se mostra bastante emocionado. Então, apresenta essa
consciência de que a linguagem não é suficiente para dar conta de comunicar suas
experiências: “Porque a gente explicar assim, muita gente não entende, porque a gente é que...
eu, por exemplo, estando contando pra você eu vejo como se eu estivesse lá”. E, logo depois
desse momento, o veterano cai em choro.
Osmar Gomes, de certa forma, apresenta uma consciência de uma espécie de crise de
representação da linguagem. Ele entende que a linguagem é insuficiente para dar conta de
tudo aquilo que ele passou; ele percebe que seus ouvintes não podem dimensionar todas suas
experiências da forma como ele as dimensiona. Contudo, ainda assim, a narrativa é uma
possibilidade, é uma espécie de dever moral, o dever de contar as atrocidades da guerra, de
narrar sua trajetória em meio ao conflito e de tentar preservar seu testemunho.
A linguagem é uma espécie de gargalo da realidade. Ela não é suficiente para
descrevermos todas as nossas sensações físicas e psíquicas, e não podemos dar conta de tudo
aquilo que sentimos e significamos. No entanto, nosso cérebro, através das operações
mnemônicas, traz à tona muitos desses sentidos. Osmar Gomes sabe que não pode
proporcionar um quadro fidedigno daquilo que vivenciou na guerra aos seus ouvintes. Ele
compreende que a linguagem é insuficiente para isso, mas, mesmo assim, tenta relatar seu
passado e, através da narrativa, transmite, mesmo que precariamente, suas experiências
significadas e ressignificadas. Isso também pode indicar a particularidade de suas lembranças,
já que é ele quem lembra, organiza e expõe o que viveu e não outro; a linguagem não
243
SELIGMANN SILVA, Márcio. Op. Cit., 2012. 244
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia.
91
possibilita que outros tenham exatamente o quadro daquilo que ele viveu e sentiu, e a
narrativa possibilita apenas um vislumbre parcial, opaco e destorcido desse quadro, mas ainda
assim possibilita algo.245
Não é o caso de tomar os testemunhos desse sujeito como mera ficção ou inverdades,
mas de entender que essas narrativas representam um retorno desses sujeitos à história.
Segundo Seligmann Silva, os testemunhos se firmam como uma complexificação do “fato
histórico”; é assumir que a história, na verdade, é um campo de tensão, composto por uma
multiplicidade de discursos individuais, que se materializam em testemunhos diversos e até
antagônicos. Neste sentido, por mais particular que o testemunho seja, ele deve ser entendido
como um documento para a historiografia, pois ele cumpre papel de justiça para aquele que o
profere e se inscreve como um registro histórico.246
Há também, nesse trecho, uma espécie confissão do trauma. Ele assume que lembrar é
doloroso, que lembrar faz com que ele “reviva” momentos ruins. Quando fala “eu vejo como
se eu estivesse lá”, ele expõe que o ato de narrar traz à tona memórias incontroláveis e
lembranças traumáticas como, por exemplo, a perda de companheiros durante as patrulhas:
“(...) ai a gente ia, e chagava lá, você via os alemão, atiravam em cima da gente; eu mesmo
perdi muito... perdi uns três do meu grupo (...)”.
Neste sentido, o veterano se coloca como uma obrigatoriedade em falar, em
testemunhar a guerra, em registrar de alguma forma aqueles que não sobreviveram à guerra e
conviveram com ele. Quando fala “perdi uns três do meu grupo”, ele presta uma espécie de
homenagem a esses homens, testemunha que esses sujeitos morreram em patrulhas realizadas
na guerra – é como se ele afirmasse que esses sujeitos existiram, vivenciaram os horrores
extremos da guerra e não sobreviveram para dar testemunho de suas trajetórias.
Os sobreviventes, aqueles que enfrentaram os horrores da guerra, mas não tiveram
suas vidas consumidas por eles, são testemunhas que lembram aqueles que pereceram; eles
vêm a público e narram sobre a guerra, se julgam no direito de narrar suas trajetórias, de
contar sobre aqueles que pereceram, pois eles viram a guerra com seus próprios olhos e
sobreviveram para dar testemunho.
245
OLIVEIRA, Lucas Amaral de. O testemunho literário como documento empírico: uma reflexão
metodológica sobre a memória a partir da obra de Primo Levi. Disponível em: http://www.
ufpel.tche.br/isp/ppgcs/eics/dvd/documentos/gts_llleics/gt20/g20lucasamaraldeoliveira.pdf. Acesso em: 10 dez.
2012. 246
SELIGMANN SILVA, Márcio. Op. Cit., 2012.
92
É possível perceber que as narrativas e as coleções desse sujeito extrapolam a ordem
do privado e familiar. Nas entrevistas, fica claro que, em alguns momentos, seus acervos e
narrativas eram expostos em espaços públicos diversos, tais como escolas, restaurante e
museu. Osmar Gomes, em algumas vezes, expunha suas narrativas e coleções como uma
testemunha pública, que narra sua trajetória na guerra para outras pessoas longe de seu círculo
familiar. Num momento da entrevista de 2004, o veterano fala sobre esses momentos de
exposição pública de seus testemunhos:
Fiquei com um objeto daqueles que veio da guerra, dei pro Deber por lá, eu estava
perdendo tudo, ficando jogado... então, ele pediu pra fazer aquele quadro e eu dei
pra ele, mas eu tenho muito retrato aí, da Itália, ainda... mas de menos valor do que
aqueles que estão lá... lá em Ermida fizeram uma festa lá, a professora veio aí e me
levou muita coisa pra lá, e ficou lá, lá em Ermida, na aula dos meninos... eu ia muito
era aqui na escola da Erika, como é que chama? Essa escola aqui atrás do morro...
Coteon, e aí eu ia lá fazer palestra, na palestra que ela lembrava, aí eu chegava na
aula, mandava os alunos ir perguntando e eu respondia, assim como você fez a
pergunta e eu respondo247
O quadro a que se refere Osmar Gomes é uma espécie de caixa com tampa de vidro,
uma vitrine de tamanho razoável onde seu filho Delber exibia, em seu restaurante, objetos
vindos da guerra e que tinham algum “valor” para o veterano. O caso da professora de Ermida
mostra que ele permitiu que ela levasse alguns itens de seu acervo para serem exibidos na
escola, “na aula dos meninos” 248
. Por fim, ele fala de momentos em que visitava a escola da
neta para falar sobre a guerra, numa dinâmica de pergunta e resposta. No entanto, esses
momentos, infelizmente, não foram registrados.
Para além das visitas na escola da neta, Osmar fala de visitas que fez a outras escolas
na cidade de Divinópolis: “Ali na avenida eu fui muito, dar palestra, no grupo aqui da
avenida...”249
. O “grupo aqui na avenida” a que se refere o veterano é um dos maiores e mais
tradicionais colégios da cidade de Divinópolis, a Escola Estadual Joaquim Nabuco, localizada
na avenida 1º de Junho, conhecida também apenas como “avenida”, uma das principais vias
do Centro da cidade de Divinópolis.
Podemos supor que o veterano se dispunha a apresentar suas lembranças em público,
seja na forma de suas narrativas, no que ele chama de “palestras” ou na exibição de seus
247
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia. 248
A localidade de “Ermida”, citada pelo veterano, se refere a um distrito da cidade de Divinópolis conhecido
também como Santo Antônio dos Campos, no Estado de Minas Gerais. 249
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia.
93
acervos, seja no restaurante de seu filho ou em alguma escola. Podemos perceber, aí, uma
espécie de desejo em expor suas lembranças em público e, indiretamente, afirmar para outras
pessoas: “Eu estive lá e, por isso, posso tentar contar o que meus olhos viram e tudo aquilo
que meus sentidos perceberam”. Osmar Gomes se afirma como uma testemunha que transita
entre essa possibilidade de contar algo e a impossibilidade de dar conta de tudo aquilo que ele
passou e mesmo as formas como essas coisas lhe vem à mente enquanto ele lembra. Quando
diz “eu vejo como se eu estivesse lá”, ele nos apresenta a consciência dessa impotência da
linguagem em dar conta de tudo o que significa lembrar para ele. O que ele opera, ao narrar, é
uma tentativa quase impossível de intercambiar o que ele entende como sendo suas
experiências passadas, uma promessa de que seu testemunho seja fidedigno. Segundo
Seligmann Silva:
O testemunho exige uma visão “referencial” que não reduza o “real” à sua “ficção”
literária. Ou seja, o testemunho impõe uma crítica da postura que reduz o mundo ao
verbo.250
Neste sentido, os testemunhos de Osmar Gomes transitam entre o real referencial e a
construção literal. São uma tentativa de comunicar esse “real” apreendido por esse sujeito
através de uma construção que “reduz o mundo ao verbo”, mas que nem por isso se constitui
como ficção. O veterano é um sujeito que se julga autorizado a testemunhar acerca de suas
experiências na guerra, ou seja, o que ele narra é aquilo que ele organizou e significou como
sendo sua trajetória na guerra; são suas impressões mais particulares acerca do conflito, e o
que ele acaba por narrar é de alguma maneira a própria guerra. Segundo Portelli, as memórias
são sempre individuais. Ele alerta que
(...) não se deve esquecer que a elaboração da memória e o ato de lembrar são
sempre individuais: pessoas e não grupos se lembram (...) [a memória] só se
materializa nas reminiscências e nos discursos individuais.251
Por mais que consideremos que os aspectos sociais da memória, como o próprio
Portelle afirma – “a memória é social e pode ser compartilhada” –, devemos ter em mente
que, em princípio, testemunhos e as memórias são sempre operações individuais e não de
grupos. Neste sentido, devemos considerar a importância do testemunho e das memórias
individuais para a história, pois essas narrativas individuais, por mais precárias que sejam,
250
SELIGMANN SILVA, Márcio. Op. Cit., 2012. 251
PORTELLI, Alessandro. Op. Cit., 2006. p. 127.
94
cumprem um retorno à História. Contudo, como afirma Seligmann Silva, não a uma “história
purista”, mas ao que ele chama de “história como trauma”, uma história que se constitui num
campo de tensões, numa multiplicidade de discursos individuais que se encontram, se
enfrentam, se distanciam e às vezes se mostram contraditórios e até mesmo antagônicos.252
Portelli traz uma definição bastante significativa para o que ele chama de memória
coletiva. Segundo ele, a memória
(...) só se torna memória coletiva quando é abstraída e separada da individual: no
mito e no folclore, na delegação e nas instituições (...) Quando compreendermos que
a “memória coletiva” nada tem a ver com memória de indivíduos, não mais
podemos descrevê-la como a expressão direta e espontânea de dor, luto, escândalo,
mas como uma formalização igualmente legítima e significativa, mediada por
ideologias, linguagens, senso comum e instituições253
Assim, os relatos de Osmar Gomes cobram um lugar público na história, e esse sujeito
tenta, de certa forma, inserir suas narrativas no universo social – ele deseja ser ouvido para
além de seus círculos familiares. O testemunho do veterano, proferido em espaços públicos, é
uma maneira de cobrar por justiça, de ter seu discurso particular e seus pontos de vista
inseridos na cena pública e na história da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial.
Neste sentido, o veterano aparentemente não cobra que sua versão da guerra seja
entendida como correta ou verdadeira. Ele apenas busca apresentar sua versão, ser ouvido e
ter seu testemunho aceito como uma versão possível, uma versão particular que deve ser
considerada como qualquer outra. Ele não se considera como o detentor de todo o
conhecimento sobre a participação brasileira na guerra. Ele não se vê como um sujeito
responsável por retratar e guardar a memória da guerra; o que ele tenta guardar e comunicar é
a sua própria trajetória, sua participação no conflito.
Contudo, indiretamente, ele acaba por se constituir como uma interseção, do seu
universo mais particular, com seus significados e formas de valorizar suas experiências com a
própria história da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial, isto é, o lugar onde a
testemunha se inscreve na história, não numa história generalizante, mas nessa história que se
constitui num campo de disputas e tensões entre múltiplos e variados discursos individuais.
Osmar Gomes, aparentemente, não se via como um colecionador da guerra. Na
entrevista realizada em 2004, o entrevistador pergunta sobre seus acervos, se ele “sempre teve
interesse em tirar fotografias e guardar esse material sobre a guerra? (...) como é que o senhor
252
SELIGMANN SILVA, Márcio. Op. Cit., 2012. 253
PORTELLI, Alessandro. Op. Cit., 2006. p. 127.
95
conseguiu esse material todo que o senhor tem?”254
. Infelizmente, o veterano não responde às
perguntas diretamente. Talvez ele não se entenda como um colecionador; talvez a questão de
organizar os itens que ele trouxe da guerra tenha surgido depois de seu retorno ao Brasil.
Interessante notar que, ao responder o entrevistador, o veterano deixa parecer que suas
coleções são frutos do acaso e estão ligadas mais a um desejo de trazer o universo da guerra
aos seus familiares do que a uma vontade própria de guardar para si mesmo:
isso foi, bem dizer, as lembranças da família, que tinha minhas irmãs, e eu lembrei
de trazer pra elas, pra minhas irmãs, aí chegou aqui, eu guardei...255
Apesar de associar seus acervos à curiosidade de suas irmãs e de afirmar que não
guardava objetos na Itália, devemos considerar que suas coleções são bastante volumosas e
demonstram uma organização bem definida, seguindo uma lógica própria, organizada por
tipos, às vezes até dividida em séries especificas, como postais, cartas, fotografias e cédulas.
Outro ponto a ser considerado é o fato de ser perceptível, através das correspondências que
mantinha com seus familiares, que ele enviava fotografias, revistas e até maços de cigarro
para o Brasil.
Essa é uma questão em aberto: se ele realmente pensava como um colecionador, que
juntava itens para trazer ao Brasil, ou se realmente esses itens estavam vinculados a sua
família e se constituíam meros “presentes”. Nunca chegaremos a uma certeza. Contudo,
podemos entender esses itens como uma forma de comunicar outro mundo, pois esses são
elementos que, de alguma maneira, ajudam a contar sua trajetória durante a guerra. No
mínimo, constituem itens exóticos retirados do conflito, um ato de “trazer essas lembranças”,
de trazer consigo um mundo distante, elementos que lhe remetam a sua trajetória na guerra.
Decerto, o acervo de Osmar Gomes representa uma ligação bastante estreita com a família,
que se concretizava, mesmo a distância, através das cartas trocadas durante todo o conflito.256
Ele comunicava a sua maneira o universo da guerra e, em contrapartida, recebia, através das
correspondências, noticias de seu mundo, da fazenda em Aureliano Mourão e de seus
familiares.
254
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia. 255
Ibidem. 256
A coleção de cartas do veterano é constituída quase que exclusivamente por correspondências que ele recebeu
durante a guerra. No entanto, é possível perceber, através dessas, que Osmar Gomes enviou correspondências
para seus familiares durante todo o período em que esteve na Europa.
96
Entretanto, devemos atentar para um detalhe importante no final de sua fala. Ele
admite suas coleções e se assume como um colecionador ao se afirmar como o guardião
desses itens: “Eu guardei”. Mesmo que não possa ser considerado um colecionador num
sentido mais tradicional, ele é uma espécie de colecionador cujos itens estão intimamente
ligados a sua trajetória e que se constituem, de certa maneira, como uma referência de suas
lembranças particulares acerca desse momento específico de sua vida: o período em que
esteve envolvido com a guerra.
Talvez por esse motivo, ele não se considere um colecionador de fato. Parece-nos que
ele não está guardando apenas objetos do passado ou itens advindos da Segunda Guerra, mas,
na verdade, parece guardar seu próprio passado, que está, segundo suas impressões, indexado
em suas coleções. É importante pensar nas lembranças que foram associadas a esses objetos e
que podem assumir a forma de pontos nebulosos e impenetráveis a outros observadores, isto
é, as coleções desse veterano assumem um aspecto muito particular, às vezes, impenetráveis
para outros observadores.
Neste sentido, em alguns momentos, se torna impossível saber quais lembranças estão
associadas aos itens que compõem as coleções de Osmar Gomes. Por exemplo, o que
significaria um postal italiano datado de 1939 e que, no verso, podemos ver um desenho que
parece uma criança e um soldado? Outros itens também chamam a atenção, tal como uma
fotografia de uma jovem alemã retratada numa janela, ou uma pequena coleção de cédulas
monetárias de diversos países. Esses itens não dizem por si só, e surgem questões como: por
que teriam sido guardados? Em quais situações esses itens foram conseguidos? São meras
hipóteses, cujas respostas se perderam junto ao veterano.257
Segundo Blom, as coleções podem ter características específicas: uma forma de se
fazer presente um passado ausente ou como uma maneira de organizar o próprio passado, de
dar conta da impotência de organizar aquilo que vivemos.258
Neste sentido, as coleções de
Osmar Gomes podem ser uma forma de ele organizar a sua trajetória na guerra, já que as
coleções possibilitam uma ideia de controle sobre seu passado. Ele pode, através da
multiplicidade de itens que compõem seu acervo, exercer uma espécie de controle sobre seu
passado, organizá-lo a seu modo, contornar questões traumáticas e silenciar pontos confusos e
indesejáveis.
257
O veterano Osmar Gomes de Oliveira faleceu em 2007. 258
BLOM, Philipp. Ter e manter: uma história íntima de colecionadores e coleções. Rio de Janeiro: Editora
Record, 2003.
97
Para Blom, as coleções podem assumir uma forma de controle do sujeito sobre as
formas como elas veem o seu passado, uma possibilidade de reordenação material cuja
finalidade, muitas vezes, é suprir a impotência de controle em determinadas situações que
vivenciamos. Assim, surge um desejo de estabelecer uma reordenação e relativo controle
acerca desse momento, e as coleções podem dar conta desse desejo, proporcionando um local
minimamente seguro para o entendimento do passado por quem lembra. Segundo Blom, as
coleções possibilitam
um mundo diferente, mais significativo, mais ordenado, pode[m] nos falar a partir
de coisas humildes, como sapatos ou garrafas, autógrafos ou primeiras edições, os
quais, em seu agradável arranjo, em sua estrutura e variedade, nos falam da beleza,
da segurança; e cada objeto que tanto desejamos é, de fato, um atributo daquilo que
desejamos.259
De certa maneira, suas coleções legitimam suas lembranças sobre a guerra; elas são,
para ele, uma espécie de prova material e, por isso, ele as enxerga como mais que simples
coleções: são provas que validam suas narrativas, que lhe possibilitam o ato de exibição
pública de seu passado, que lhe permitem afirmar que ele esteve e pode contar sobre a guerra.
Refletir sobre as coleções de Osmar Gomes, e as formas como esse acervo foi constituído, nos
leva a pensar que talvez esse não tenha sido, de fato, organizado tal como um acervo ainda na
guerra, como nos lembra Rousso:
É quase um truísmo lembrar que um vestígio do passado raramente é o resultado de
uma operação consciente, capaz de se pensar enquanto vestígio, e não enquanto ação
inscrita no seu tempo, e portanto capaz de antecipar o olhar que lançarão sobre ele as
gerações futuras, ainda que às vezes exista em alguns atores a vontade de deixar
rastros de sua passagem.260
Parece certo que o veterano tinha o desejo de guardar seus vestígios, “de deixar rastros
de sua passagem”. Contudo, nenhuma de suas coleções se mostra como uma narrativa
organizada no sentido de ser uma operação consciente. O que sabemos, com certeza, é que ele
recolheu e guardou esses itens durante a guerra, os trouxe para o Brasil e depois os organizou
seguindo uma lógica e ordem próprias. Outros pontos que podemos considerar sobre o acervo
do veterano, sobretudo quanto ao que ele significava para ele mesmo, são: ele pode ser
entendido como um acervo privado, que guarda associações com o que ele chama de
259
Ibidem. p. 83. 260
ROUSSO, Henry. O arquivo ou o indício de uma falta. In: Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, 1996,
n.17. p. 3.
98
“lembranças da família”, tendo em vista a grande quantidade de itens que remetem aos seus
círculos familiares; o acervo, mesmo que de forma superficial e precária, se tornou para o
veterano uma forma de legitimar e difundir sua trajetória a um público maior e diferente dos
seus círculos familiares, exprimindo um desejo de falar suas experiências a outros; e, por fim,
esse acervo talvez possa ter sido entendido pelo veterano como uma forma de controle sobre
seu passado, o que pode ter lhe possibilitado maneiras minimamente confortáveis de entender
sua própria trajetória na guerra.
2.2.3 – A constituição do acervo: índices do passado, a presença e algo ausente
Sabemos que quase todos os itens que compõem o acervo de Osmar Gomes foram
selecionados e recolhidos quando o veterano participou da Segunda Guerra Mundial.
Infelizmente, sabemos muito pouco acerca das situações nas quais os itens foram
conseguidos; sobre alguns podemos intuir, sobre outros restam informações mais consistentes,
mas a grande maioria é uma incógnita.
Assim como tantos outros praças da Força Expedicionária, Osmar Gomes guardou e
trouxe uma grande variedade de objetos da guerra e da Itália para o Brasil. Conscientemente
ou não, ele iniciou a formação de um acervo privado, constituído por diversificadas coleções.
No Brasil, essas coleções foram organizadas e preservadas pelo próprio Osmar Gomes.
Sabemos muito pouco sobre os motivos que levaram Osmar Gomes a formar seu acervo, a
compor suas coleções. Entretanto, sabemos que ele se ocupou de juntar esses itens durante a
guerra, organizou-os e os manteve preservados até sua morte, quando grande parte desse
acervo ficou em poder de sua filha Tânia Maria de Oliveira.261
Em 2011, em detrimento de um Trabalho de Conclusão de Curso, o acervo de Osmar
Gomes passou por um processo de digitalização da maior parte de seu acervo. Atualmente,
encontra-se disponível ao público no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef). O acervo de
Osmar Gomes é composto por variadas coleções, que tentamos descrever: uma coleção
fotográfica organizada num álbum fotográfico composto por 213 fotografias, seguidas por
descrição, e distribuídos em 75 páginas. Em sua maior parte, são fotografias de familiares
antes da guerra, fotografias enviadas por familiares ao veterano durante o conflito e ainda
261
Todo o acervo do veterano foi guardado sob os cuidados de sua filha Tânia Maria de Oliveira. A digitalização
do acervo foi realizada no ano de 2011 por Izaac Erder Silva Soares. O acervo digital Osmar Gomes de Oliveira,
encontra-se disponível ao público no Centro de Memória da FUNEDI – CEMEF.
99
fotografias tiradas por ele na guerra. Em menor quantidade, existem fotografias que foram
recebidas ou recolhidas de soldados da FEB e do eixo durante o conflito.
Um diário, contendo um registro de suas movimentações na Itália, durante a guerra e
depois da guerra. Escrito numa pequena caderneta de capa verde, se constitui de um relato
bem sucinto sobre sua trajetória durante a guerra e, depois do fim das hostilidades, também
traz um relato sobre sua trajetória como um “soldado viajante”, que visitou vários locais por
toda a Itália. Essa caderneta também foi utilizada pelo veterano para anotar endereços de
pessoas que ele conheceu na Itália.
Uma coleção de cartas e um telegrama: conjunto bastante substancial de cartas de
familiares e amigos que o veterano recebeu na Itália. Também é composta por apenas uma
carta escrita pelo próprio veterano e um telegrama. Em sua maioria, as cartas tratam de
assuntos domésticos e do dia a dia de sua família no Brasil; algumas poucas tratam mais
especificamente do drama da guerra.
Coleção de cédulas monetárias de países diversos: uma alemã, duas gregas, seis
italianas e uma soviética. Entre essas cédulas monetárias, também se encontra a coleção de
moeda militar aliada (allied military corrency), impressa na Itália ocupada pelos aliados, em
seis cédulas com valores diferentes262
.
Uma pequena série de documentos oficiais, compostos por certidões do Exército
nacional que comprovam que o veterano esteve na guerra, e ainda seu tempo de serviço no
Exército brasileiro.
Uma coleção de insígnias, divisas, medalhas dos exércitos brasileiro, alemão e
italiano, uma boina característica dos veteranos da FEB, broches e o dog-tag de Osmar
Gomes263
.
E, por fim, uma coleção de postais italianos, comprados e adquiridos no pós-guerra,
quando das viagens do veterano pelas cidades que visitou.
262
Sobre a emissão de moeda militar aliada (allied military corrency), ver: disponível em:
http://translate.google.com.br/translate?hl=ptBR&sl=en&tl=pt&u=http%3A%2F%2Fusers.skynet.be%2Fjeeper
%2Fcurrency.html&anno=2. Acesso em: 5 dez. 2013. 263
Dog-tag é a uma pequena placa utilizada durante a Segunda Guerra Mundial para identificar os soldados
mortos no conflito.
100
2.3 – Uma trajetória entre lembrança e acervos
Neste momento, pretendemos realizar uma tentativa de compreender a constituição
desse sujeito nos distintos universos sociais em que ele esteve inserido durante o período da
Segunda Guerra. É uma tentativa de entender como esse sujeito estabeleceu suas relações
sociais no período entre 1939 e 1945; um ator que esteve inserido em distintos universos e
estabeleceu relações intersubjetivas com vários outros atores desse mesmo período. Para
tanto, iremos utilizar toda sorte de fontes, desde entrevistas realizadas com o veterano nos
anos de 2004 e 2007 até seu acervo documental, bem como outras fontes que falam sobre a
vida desse sujeito, como uma entrevista com Jacy Gomes, uma das irmãs do veterano, e
mesmo documentação oficial do Exército brasileiro que fala sobre o período em que o
veterano esteve no conflito.264
Esse esforço não se constitui, exclusivamente, como uma tentativa de remontar apenas
os discursos de Osmar Gomes sobre esse momento de sua vida, mas, na verdade, é uma forma
de retomar os discursos desse sujeito em diferentes períodos de sua trajetória e também a voz
de outros sujeitos que estiveram, de alguma forma, ligados à trajetória do veterano no período
do conflito mundial.
Neste sentido, o que trazemos aqui é uma tentativa de reconstrução que se firma
através da voz de vários atores sociais que, de uma forma ou outra, se relacionaram com o
veterano no período da guerra. Em alguns momentos, nos distanciamos do relato do Osmar
Gomes e consideramos outras vozes. Em outros pontos, apresentamos os diversos discursos
produzidos pelo veterano sobre sua estada na guerra e a forma com que esses diversificados
discursos se constituem e se relacionam.
Assim, a trajetória de Osmar Gomes no período da guerra pode ser entendida através
de uma pluralidade de vozes que, apesar de serem outros discursos, diferentes das narrativas
multi-temporais do veterano, constituem vozes próximas a esse sujeito, vozes que realizam
uma espécie de diálogo, de encontro e ou desencontro com as falas construídas por esse
sujeito.
264
ROMEIRO, Jacy Gomes: depoimento [2011]. Belo Horizonte, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares.
101
2.3.1 – A fazenda e a família
A família Gomes de Oliveira se constituiu no interior do Estado de Minas Gerais, na
zona rural do município de Resende Costa. Os pais de Osmar Gomes de Oliveira, Aristides
Batista Gomes e Maria José de Oliveira, casaram-se em 1905 e se instalaram na fazenda do
rio do Peixe, em Resende Costa. Osmar Gomes nasceu nessa mesma fazenda, em 1921. Em
1930, quando Osmar já contava com seus nove anos, sua família se mudou para a fazenda da
Grama, uma propriedade rural bastante próxima à importante estação ferroviária Aureliano
Mourão, no município de Bom Sucesso, Minas Gerais265
.
A fazenda da Grama ficava muito próxima à estação de Aureliano Mourão, o que de
certa forma pode ter constituído um ambiente diferenciado nas propriedades no entorno da
estação ferroviária. As relações entre a estação férrea e as fazendas no seu entorno são, de
certa forma, inevitáveis e transformadoras. A estação ferroviária, inevitavelmente, trouxe
grandes transformações nas vidas das pessoas que residiam em seu entorno. Tamanha era a
influência da estação, que as pessoas que viviam em propriedades próximas a ela passaram a
chamar o local de Aureliano Mourão. Contudo, ali nunca foi constituído um vilarejo ou
povoado que tenha recebido oficialmente o nome de Aureliano Mourão.266
A vida das pessoas no entorno da estação ferroviária foi envolvida por várias
“modernidades” trazidas junto à ferrovia, como a rapidez nas comunicações, a facilitação de
acesso a importantes cidades que estavam conectadas pela malha ferroviária e, ainda, uma
ampliação nas possibilidades de acesso a informações, que chegavam junto à ferrovia, como o
serviço dos Correios, que levavam cartas, jornais e revistas das grandes cidades brasileiras até
a localidade e, ainda, o serviço de telégrafos. No entanto, a dinâmica rural da localidade não
foi totalmente afetada, e o trato com as lavouras e a criação de animais constituiu o grosso das
atividades da população que vivia no entorno da estação ferroviária nas décadas de 1930 e
1940.267
A família Gomes de Oliveira se mudou para a fazenda da Grama, no entorno da
estação, em 1930, e, apesar dessas novas dinâmicas, condicionadas à questão da ferrovia, a
265
ROMEIRO, Jacy Gomes. Gota de arte no sangue. Divinópolis: Artes Gráficas Santo Antônio, 1986. 266
Sobre a estação ferroviária Aureliano Mourão, ver: disponível em: www.estacoesferroviarias.com.br/
rmv_efom/aureliano.htm. Acessado em: 28 out. 2013. 267
ROMEIRO, Jacy Gomes: depoimento [2011]. Belo Horizonte, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares.
102
família se firmou em atividades rurais na localidade, como podemos perceber num trecho da
entrevista realizada com Jacy Gomes, irmã do veterano:
(...) quando meu pai comprou, a fazenda estava um pouco abandonada, ele reformou
a fazenda todinha, pintou tudo, fez fogão novo, fez tanque, ele fez represa numa
mina, canalizou a água até na fazenda, e fez água dentro de casa, colocou o tanque
de água lá, fez um sanitário, fez uma privada como eles falam pra baixo do moinho,
arrumou tudo, fábrica de polvilho, sabe (...) a vida era muito assim, a gente era
muito unido... Eram muitos irmãos e éramos muito unidos, e não podia brigar,
porque se brigasse a gente tomava castigo, então... Mas de vez em quando a gente
ainda brigava, dava uma briga e tudo... Agora, ele, como já era mais velho do que eu
e tudo, ele às vezes fazia umas travessuras, umas brincadeiras com a gente, ele era
assim meio moleque sabe, tanto que ele era expansivo, ele resolveu ir voluntário pro
regimento antes da idade, ele não tinha idade e foi... Mas, então, a gente brincava
demais, a fazenda era muito animada, pertinho da estação ferroviária... Então, tinha,
era na estação o cruzamento de três trens, vinha um de São João Del Rey e um de
Lavras e um daqui de Belo Horizonte, os trens cruzavam lá, então, a gente ia todos
os dias, as tardes, pra ver os trens passar... Nos domingos, sábados, é uma turma
muito alegre... E na fazenda mesmo, iam rapazes, moças de outros lugares, os
empregados da ferrovia iam pra lá, de tarde, de noite pra jogar baralho, fazer
brincadeira de salão (...)268
Podemos perceber, através do relato de Jacy Gomes, que existiam relações muito
próximas entre a família do veterano e as pessoas que trabalhavam na estação ferroviária. Eles
se relacionavam num espaço bastante peculiar, no sentido que ali se concentravam dinâmicas
do mundo rural e também alguns elementos de um mundo idealizado como urbano, moderno
e mais sofisticado. Acreditamos que esse ambiente possibilitou novas oportunidades para as
pessoas que moravam na localidade, acesso a uma maior quantidade de informações e a
possibilidade de maior instrução e empregos menos penosos e mais rentáveis, além de
constituir um contato privilegiado com as cidades que estavam ligadas pela estação férrea:
São João Del Rey, Divinópolis, Lavras e Belo Horizonte.
Apesar de toda a influência da estação, a vida rural na fazenda da Grama prevalecia. O
relato de Jacy nos apresenta um pouco como deveriam ser as atividades na propriedade de
seus pais:
E a fazenda tinha dois carros de boi, muito movimento, e todo mundo trabalhava...
Na época de fazer o polvilho, chegava... Tinha empregados, muitos empregados,
seis casas dos colonos que trabalhavam lá, tinham as mulheres deles que iam fazer
biscoitos, e era dia de matar porco, que fazia carne pra um mês quase, né... E tudo
assim, tinham umas empregadas, mas a gente trabalhava junto... Minha mãe falava
assim “quem não sabe fazer, não sabe mandar”... Então, nos trabalhávamos juntos,
268
Ibidem.
103
íamos pra fábrica de polvilho juntos. (...) vinha, recebiam a casa pra morar e fazia as
plantações, meeiros, como fala, depois dividia, era esse o processo.269
Apesar de as atividades cotidianas na fazenda da Grama girarem em torno da produção
de polvilho, da lavoura e da criação de animais, nos parece haver uma vontade, por parte dos
pais, de que os filhos saíssem da fazenda e tivessem novas oportunidades em atividades
urbanas. Numa das cartas enviadas ao veterano por suas irmãs, ele recebe a notícia de que um
de seus irmãos conseguira ser aprovado em concurso público, e iria trabalhar num banco. A
maior parte dos filhos dessa família não ficou na fazenda ou deu continuidade às atividades
rurais; acabou por constituir família e trabalho nas cidades de maior porte que estavam ligadas
a Aureliano Mourão pela via férrea.
A família de Osmar Gomes era bastante volumosa, composta por 12 irmãos, sendo
sete mulheres e cinco homens. A fazenda também se constituía como lar e espaço de trabalho
para outras tantas famílias. Foi nesse espaço bastante diferenciado, um misto entre o universo
rural e elementos modernos ligados à estação férrea, em que Osmar Gomes foi criado, desde
os nove anos de idade, quando seus pais se mudaram para o local. Havia, também, outros
parentes da família que viviam na cidade de São João Del Rey, o que, de certa forma,
constituía outras oportunidades de sociabilidade e acesso a outros meios de comunicação,
sobretudo o rádio270
. Para Jacy Gomes, as notícias vinham
de todo lado, e comunicava muito com São João Del Rey; eu tinha muitos primos e
parentes em São João Del Rey, e o regimento era lá, né!? A gente ia lá visitar a
família e tudo (...)271
Podemos dizer que a fazenda da Grama tornou-se uma espécie de mundo rural que foi
“invadido” por elementos modernos, sobretudo no que diz respeito à velocidade das
comunicações, ao acesso a um volume maior de informações e pessoas e, também, a uma
ampliação de possibilidades de locomoção. Entretanto, é importante notar que, apesar de
todos esses aspectos, ainda assim a localidade, denominada pelos moradores pelo mesmo
nome da estação, estava inserida num universo com características predominantemente rurais,
269
Ibidem. 270
Numa das cartas que Osmar Gomes recebeu na Itália, uma de suas irmãs pede que ele fale na rádio nacional.
Carta de Raimunda enviada a Osmar Gomes no dia 14 de janeiro de 1945. Acervo digital Osmar Gomes de
Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef). 271
ROMEIRO, Jacy Gomes: depoimento [2011]. Belo Horizonte, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares.
104
um local onde não existia energia elétrica, onde nunca se desenvolveu qualquer núcleo de
povoação e onde as atividades econômicas eram essencialmente rurais.
A dinâmica entre esses dois universos se dava de forma um tanto quanto complexa, e
as influências da ferrovia sobre as fazendas no seu entorno não eram especificamente algo
novo, visto que a estação ferroviária Aureliano Mourão era já bastante antiga, pois a primeira
estação foi construída na região em 1887.272
Neste sentido, podemos dizer que as “facilidades” que a ferrovia proporcionava às
populações das fazendas no entorno da estação não era algo especialmente novo. A chegada
de cartas, jornais e revistas, as notícias de outros locais, que eram transmitidas pelos
passageiros e que, de uma forma ou outra, chegavam até as populações das fazendas e as
facilidades de locomoção até as cidades que estavam ligadas à estação já eram uma dinâmica
bastante conhecida na localidade desde o final do século XIX.
A estação de Aureliano Mourão foi inaugurada em 1887. Aqui era o entroncamento
das linhas que seguiam para Divinópolis e para Lavras. O seu nome homenageava o
Dr. Aureliano Marins de Carvalho Mourão, primeiro presidente da EFOM. Nos anos
1930, o lugarejo vivia em torno da estação. Tudo dependia de Bom Sucesso, ali
perto. O prédio não tinha nem luz, apesar do enorme movimento de trens. O prédio
original da estação foi substituído pelo atual em 1940. O novo prédio, em forma de
triângulo, facilitava as baldeações. Os trens que chegavam de São João Del Rey
entravam pela direita do prédio e dali seguiam para Divinópolis. Os que vinham
desta cidade seguiam para Lavras, e os que vinham de Lavras seguiam para São
João Del Rey. O horário era fixado para que chegassem na mesma hora. Quando
tudo dava certo, o movimento na estação era impressionante.273
A substituição do prédio da estação em 1940 sinaliza um momento de mudanças na
política federal em relação às ferrovias. A antiga Estrada de Ferro Oeste de Minas (EFOM)
havia sido incorporada ao estado, passando a fazer parte da Rede Mineira de Viação (RMV),
que foi criada em 1931274
. Ao passar para o controle do Estado de Minas Gerais, alguns
pontos da antiga EFOM recebem melhorias estruturais; no caso, a estação de Aureliano
Mourão recebeu uma ampla reforma, com a substituição do prédio principal e ampliação de
sua capacidade de atuação275
.
Apesar de as ferrovias brasileiras passarem por um momento de desgaste no final da
década de 1930, elas representavam, naquele momento, as vias mais seguras e rápidas que
272
SOUZA, Tarcísio José de. Certa ocasião... São João Del Rey: FUNREI, 2000. p. 133. 273
Ibidem. p. 133. 274
A criação da RMV se deu através da fusão de duas estradas férreas da antiga Central do Brasil: a EFOM e a
Sul de Minas. Ver: BATISTA, Felipe de Alvarenga. Transportes, modernização e formação regional: subsídios
a história da era ferroviária em Minas Gerais, 1870-1940. Belo Horizonte: UFMG/CEDEPLAR, 2012. 275
Ibidem.
105
conectavam as várias regiões brasileiras, sobretudo se lembrarmos que, antes da década de
1950, o país contava com uma ainda pequena e precária malha rodoviária. Além da infinidade
de produtos e pessoas que eram transportados, as linhas férreas transportavam ideias, notícias
e boatos; as estações ferroviárias eram verdadeiros centros onde as pessoas se encontravam,
trocavam conversas e informações e por onde chegavam cartas e jornais de outras localidades.
A localidade, denominada pelo veterano e também por seus parentes como Aureliano
Mourão, constituiu-se como um local bastante peculiar, pois, desde sua criação, ainda no
século XIX, se firmou como estação bastante movimentada, e depois, em 1940, com a
construção de um novo prédio, a importância da estação se ampliou. Contudo, não podemos
perceber, ali, qualquer intento urbanizador, qualquer movimento para a criação de um
povoado276
. O que talvez explique a existência dessa estação férrea nessa localidade seja sua
posição geografia, localizada entre três importantes cidades do Oeste Mineiro: São João Del
Rey, Divinópolis e Lavras.
Para além das formas de comunicação de que já tratamos e que possibilitavam um
maior volume e frequência de informações a essas populações que viviam no entorno da
estação férrea, devemos consideraras conversas, os boatos e os comentários que os
passageiros e funcionários da ferrovia traziam – essas trocas de informações que ocorrem na
vida cotidiana, as notícias que vinham das cidades e chegavam através desses transeuntes que
passavam rotineiramente pela estação férrea Aureliano Mourão.
Ainda podemos considerar que a família Gomes de Oliveira teve bastante contato com
as notícias que vinham através do rádio, mesmo que não tivessem um aparelho na fazenda. Na
entrevista com Jacy Gomes, ela relata sobre alguns de seus parentes viviam em São João e
sobre a questão do rádio:
eu tinha muitos primos e parentes em São João Del Rey, e o regimento era lá, né!? A
gente ia lá visitar a família e tudo (...) a estação tinha muito movimento, trem todo
dia, vindo de todos os lugares. A gente não tinha nem rádio na fazenda, porque não
tinha luz, não é, mas as pessoas que tinham contato, às vezes, com um, comentavam
também277
.
A família em São João, decerto, era proprietária de um aparelho de rádio, como
podemos confirmar através de uma carta que Osmar Gomes recebeu na Itália, de Raimunda
276
Estações ferroviárias do Brasil: Aureliano Mourão. Disponível em: http://www.estacoesferroviarias.
com.br/rmv_efom/aureliano.htm Acesso em: 22 out. 2013. 277
ROMEIRO, Jacy Gomes: depoimento [2011]. Belo Horizonte, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares.
106
Maria da Conceição, uma parenta sua que residia em São João Del Rey, na qual faz o seguinte
pedido ao veterano: “Por que você não fala pelo rádio? Seria um prazer imenso, se
pudéssemos ouvir a sua voz pelo rádio”278
. Neste sentido, podemos indicar que o rádio
também era um veículo que chegava até a família. Contudo, de maneira menos pontual, visto
que eles só tinham acesso ao rádio enquanto estavam na cidade de São João Del Rey.
Acreditamos que a família do veterano manteve significativo e constante contato com
jornais, revistas e outras formas de comunicação que lhe chegavam através da estação
ferroviária. A família acompanhou as notícias da guerra que se desenvolvia na Europa e
também as mudanças políticas por que passava o país no final da década de 1930. De certa
forma, esses contatos acabaram por influenciar e possibilitar um posicionamento político
desta família, uma espécie de filiação ao projeto proposto pelo regime varguista, quando foi
instituído o Estado Novo brasileiro, em 1939.
No entanto, antes de dedicar nossa atenção aos elementos que, de certa forma, nos
possibilitam supor essa filiação política da família Gomes de Oliveira, devemos tentar notar
as estratégias estatais para propagandear seu regime. Refletir acerca dos meios de
comunicações no período do Estado Novo brasileiro é pensar em censura, em propaganda de
Estado e, sobretudo, pensar no Departamento de Imprensa e Propaganda. O DIP foi criado no
em 1939, substituindo o antigo Departamento Oficial de Propaganda, o DOP. Dentre as
principais atividades do DIP, podemos destacar a censura dos meios de comunicação e a
propaganda do regime ditatorial estado-novista e da figura do presidente Getúlio Vargas279
.
O Estado Novo, através do DIP, censurava os meios de comunicação e,
conjuntamente, fazia uso dessas estruturas para se promover, de forma a consolidar o próprio
regime ditatorial do Estado Novo como uma necessidade a conjuntura internacional daquele
momento280
. Assim, desenvolveu-se um amplo programa de divulgação que fazia uso dos
jornais impressos, da radiodifusão e do cinema e que estava em consonância com as vontades
e os ditames do governo representados pelo DIP.
Em primeiro plano, podemos observar que essas ações propagandísticas estão
vinculadas a uma forma de controle estatal sobre a população brasileira, mas também
278
Carta de Raimunda enviada a Osmar Gomes no dia 14 de janeiro de 1945. Acervo Digital Osmar Gomes de
Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef). 279
WYLER, Lia. Que censura? D.E.L.T.A., 19: Especial, 2003. p. 109-116. 280
D'ARAUJO, Maria Celina (Org.). Perfis parlamentares 62: Getúlio Vargas. Brasília: Centro de
Documentação e Informação. Edições Câmara, 2011. pp. 358-367.
107
devemos considerar que existe, aí, uma vontade de difundir uma ideia de nação moderna, de
gestar um sentimento popular de unicidade, de nacionalismo. Para Haussen:
O alcance e o sentido das tecnologias de comunicação em relação à cultura, nesse
momento, remetem, então, ao movimento social que dá origem ao populismo: o
aparecimento das massas urbanas constituídas em sujeito social justamente a partir
da idéia de nação (...) O projeto nacional, por sua vez, somente é possível mediante a
comunicação, o encontro entre massas populares e Estado.281
Este encontro entre “massas populares e Estado”, ao qual se refere Haussen, pode ser
percebido nos próprios meios de comunicação, onde podemos verificar que os desejos
políticos e as regras nacionais impostas pelo regime eram publicadas e veiculadas em meio às
massas populares através desses veículos de comunicação, notadamente sob censura do DIP.
O uso de jornais impressos, revistas, rádio e cinema como ferramenta política não foi
exclusivo do governo ditatorial de Getúlio Vargas. Nas primeiras décadas do século XX,
fascismos, populismos e mesmo regimes democráticos fizeram grande uso dos meios de
comunicação de massa para a promoção de seus respectivos governos. De forma geral,
governos que tinham a necessidade estabelecer uma interlocução aparentemente muito estreita
com suas populações, sobretudo, os regimes intervencionistas282
.
Durante o Estado Novo, o DIP se converteu numa das mais importantes instituições de
censura e promoção dos meios de comunicação de massa no Brasil, uma espécie de “conexão
direta” entre o Estado Novo e o povo brasileiro. O DIP tinha a pretensão de gestar um ideia de
sentimento nacionalista, de pertença a uma comunidade brasileira e a promoção da figura do
“líder nacional”, o que, na prática, foi uma forma extensiva de controle ideológico estatal e de
homogeneização cultural283
.
Alguns indícios mostram que a família Gomes de Oliveira se filiava, de alguma forma,
ao modelo político proposto por Vargas. O curioso é que essa família estava bastante distante
dos centros urbanos, isto é, ela não estava inserida nas “massas urbanas” de que nos fala
Haussen, mas se encontrava especificamente no universo rural. Evidente que devemos
considerar as peculiaridades das fazendas no entorno da estação férrea de Aureliano Mourão,
281
HAUSSEN, Doris Fagundes. Rádio e política: tempos de Vargas e Perón. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001,
2ª ed. p. 13. 282
Ibidem. p. 13. 283
NUNES, Márcia Vidal. Rádio e política: do microfone ao palanque: os radialistas em Fortaleza. São Paulo:
Annablume, 2000. pp. 51-60.
108
e a forma e a velocidade como as notícias chegavam até a localidade, sobretudo através de
jornais impressos e revistas284
.
A relativa adesão da família ao projeto de estado varguista pode ser percebida em
fontes específicas, primeiramente numa pequena caderneta de capa dura e vermelha,
produzida pelo veterano, e logo depois de receber a carta de convocação até antes de seguir
para o 11º Regimento de Infantaria, na cidade de São João Del Rey, e também em algumas
das cartas de familiares que o veterano recebeu enquanto estava no norte da Itália.
Antes de analisarmos as fontes propriamente ditas, vale apontarmos algumas
considerações que pensamos ser importantes. Primeiramente, que a caderneta de capa
vermelha foi produzida como um objeto de caráter estritamente íntimo, isto é, são mensagens
que familiares e amigos deixaram naquelas páginas para o veterano e que não estariam de
qualquer forma sujeitas à leitura de qualquer instituição estatal ou militar. Já as cartas são
produções de que se tinha total ciência de que seriam lidas pela censura, ou seja, textos
particulares e íntimos, produzidos com a certeza que seriam lidos e permitidos pela censura.
Curiosamente, os trechos de maior fervor nacionalista estão presentes na caderneta de
capa vermelha. Nessa fonte, na maioria das mensagens podemos perceber essas
características:
Osmar: você será mais um brasileiro que irá incorporar as fileiras do nosso exército.
Deverá ter sempre em mente e seguir o exemplo do imortal brasileiro: Duque de
Caxias. Não demorará a seguir, talvez para longe, mas, quando a amizade é sincera,
mesmo longe dos olhos, sente-se perto do coração. Da amiguinha. Hilda285
Essa primeira mensagem, cuja autora não conseguimos identificar, mostra um pouco
esse fervor militar, a ideia de “seguir o exemplo” de um ícone da história militar nacional,
Duque de Caxias, um personagem bastante relevante na guerra do Paraguai. Mas ainda
surgem outras mensagens nesse mesmo sentido:
Bom Sucesso 7-XII-942
Osmar: A Pátria te chama nesta hora, com bravura e patriotismo, cumpra teu dever
de soldado! Vai começar, talvez amanhã, a escalada gloriosa nos caminhos incertos
e difíceis da existência, porém, não deve esmorecer: vá e vencei, é o que te escreve
uma amiguinha que distinguiste com a honra de ser tua conselheira. A felicidade de
284
Dos jornais e revista que a família fazia assinatura, só temos certeza do jornal Estado de Minas. Entretanto,
sabemos que o número de publicações que tinham acesso periódico era maior. Ver: ROMEIRO, Jacy Gomes:
depoimento [2011]. Belo Horizonte, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac Erder Silva Soares. 285
Caderneta de capa vermelha. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no Centro de Memória da
FUNEDI (Cemef).
109
nossa Pátria depende dos briosos soldados de nosso exército. E tu sendo um deles,
que Jesus seja teu guia e voltes cheio de glórias é o que te deseja a Laura.286
Nessa outra mensagem, cuja autora também não conseguimos identificar, podemos
perceber muitos elementos que remontam às propagandas do DIP e até mesmo aos discursos
de Getúlio Vargas, nos quais se percebe uma pregação inflamada, que defende uma suposta
necessidade de que os jovens se tornem soldados, que se alinhem às fileiras do Exército e
defendam sua pátria.
Osmar, muito breve partirás para o exército. A Pátria te chama. Vai cumprir o teu
dever. Confia em Jesus e serás feliz. Seja patriota, defenda o nosso querido Brasil da
barbaridade dos outros povos. Sejas sempre um valente soldado e nunca desanimes.
Cumpre sempre seus deveres para com Deus e para com a Pátria. Nos será triste a
separação, mas ao mesmo tempo sentiremos a alegria de ter um mano que trabalha
pela Pátria. Um bom brasileiro. Digo-te que vai e serás feliz. Mesmo distante
lembrarei de ti. Em minhas orações, pedirei pela tua felicidade. Muito breve o nosso
Brasil vencerá, e voltaras, para o nosso lar, alegre, dando louvores a Jesus por ter
auxiliado a Pátria. Nunca te esqueças desta mana que muito te tem amizade. Jacy.
A. M. 7-12-42.287
Na mensagem de sua irmã Jacy Gomes, podemos perceber outros elementos ainda
mais significativos, como a ideia de que a pátria literalmente “chamasse” seus filhos à luta e
que a ideia de nação constituía um ser com vontade e desejos próprios, e que ela convoca seus
filhos para defendê-la diante das afrontas sofridas. De fato, houve um esforço, por parte do
DIP, em demonstrar que a pátria havia sido ultrajada por “povos bárbaros”, o que remete
indubitavelmente à velha dicotomia civilização contra barbárie288
. Além da ideia de que o
Brasil, com seu “povo cristão e civilizado”, havia sido obrigado a entrar na Segunda Guerra,
existe uma espécie de demonização das populações da Alemanha e Itália. A associação entre a
fé e o dever cívico é algo bastante recorrente nesse momento, e a ideia de associar uma futura
vitória dos aliados à justiça divina, como faz Jacy Gome, não é algo exclusivo dela – em
vários discursos e programas, o próprio presidente Vargas recorria à tal artifício.289
O próprio Osmar Gomes expressa esse sentimento de dever cívico, de uma obrigação
imanente aos brasileiros de se colocarem à disposição do seu país. Em seu álbum fotográfico,
podemos ler, junto a uma foto panorâmica da cidade de São João Del Rey, a seguinte
dedicatória: “A pátria ultrajada convoca seus filhos para defendê-la. Cabo Osmar G. Oliveira
286
Ibidem. 287
Ibidem. 288
Em várias ocasiões, o DIP, e mesmo Getúlio Vargas, fizeram uso desse recurso para justificar suas ações.
Ver: nota 28, no capítulo 1. Ver: GARCIA, Eugênio Vargas (Org.). Op. Cit., 2008. pp. 450-451. 289
Ver: D'ARAUJO, Maria Celina (Org.). Op. Cit., 2011. pp. 449-453.
110
convocado pelo 11º R.I. de São João Del Rey”.290
Seguindo a ordem da organização das
fotografias, esse foi o momento em que ele recebeu a convocação, visto que ele ainda
assinava como Cabo e que só receberia a patente de terceiro-sargento depois de realizar curso
em São João.
A última mensagem da caderneta de capa vermelha é bastante significativa: uma
lembrança escrita pela própria mãe de Osmar Gomes; é um texto relativamente curto que se
refere especificamente à convocação do filho, mas que apresenta uma espécie de misto entre o
temor pela vida de seu filho e esse furor nacionalista que, de certa forma, contagiava a família
Gomes de Oliveira.
Meu filho, não sei como expressar-te a tristeza que sinto vendo aproximar a hora de
tua partida. Sinto-me alegre também por ver que estás satisfeito por ir defender a tua
Pátria, que Deus o acompanhe e breve voltes salvo, alegre pela vitória de nosso
Brasil. Deixo aqui em tua caderneta estas linhas para que nunca te esqueças de tua
afetuosa mãe. Maria José291
.
Osmar Gomes foi voluntário no Exército em 1939, serviu no 11º Regimento de
Infantaria na cidade de São João Del Rey, Minas Gerais. Segundo uma anotação numa
certidão expedida pelo Ministério da Guerra, é certificado que
(...) no arquivo geral desta unidade consta a inclusão em primeiro de março de
novecentos e trinta e nove, como voluntário, e exclusão em dois de janeiro de mil
novecentos e quarenta, por conclusão de tempo de serviço.292
O mais interessante é que Osmar Gomes se voluntariou ao Exército em 1939. Ele não
esperou completar idade para prestar o serviço militar obrigatório, se antecipou ao mesmo e
apresentou-se antes da idade obrigatória. Segundo Jacy Gomes, a atitude de seu irmão estava
relacionada exclusivamente a sua vontade:
(...) é o gosto dele, vontade de ir, de sair da fazenda, de ser militar mesmo, foi idéia
dele, tanto que precisava de autorização dos pais, não é!? Porque ele era menor,
porque era só depois de dezoito anos que era convocado, agora quando foi pra
guerra, pra ele ir pra guerra, quando falou e tudo que ia, ele falou que queria ir, aí
minha mãe falou assim “espera um pouco”; ela que falou com ele pra poder esperar,
e, nessa espera, chegou a convocação pra ele, e ele foi. (...) Ele tinha falado que ele
290
Álbum fotográfico. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI
(Cemef). 291
Caderneta de capa vermelha. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no Centro de Memória da
FUNEDI (Cemef). 292
Certidão do Ministério da Guerra sobre Osmar Gomes de Oliveira. Acervo digital de Osmar Gomes de
Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef).
111
ia se apresentar voluntário de novo, aí a minha mãe tirou ele de ideia, porque falou
com ele pra esperar, quando chegou a convocação, no dia, parece que ele ficou um
pouco preocupado... Mas a gente aceitou todo mundo, não tinha como recusar (...)293
A primeira passagem de Osmar Gomes pelo Exército foi relativamente curta. Parece-
nos que se resumiu à prestação do serviço militar obrigatório. Foi nesse período em que o
veterano conseguiu a patente de cabo. Existem poucas referências a esse período no acervo do
veterano; apenas três páginas de seu álbum de fotografias retratam esse período e, das duas
entrevistas, apenas na realizada em 2007, ele fala sobre esse momento, mas de forma bastante
rápida: “Fui voluntário em 1939; dei baixa em 1940”.294
Em 1942, quando do reconhecimento do governo brasileiro do estado de guerra com a
Alemanha e a Itália295
, sua irmã fala da vontade explícita de Osmar Gomes em novamente se
voluntariar para a guerra. Infelizmente, além da fala de sua irmã, poucos indícios restaram
sobre esse desejo do veterano em se voluntariar para “defender sua nação”. Em nenhuma das
duas entrevistas, o veterano relata esse seu desejo de se voluntariar logo quando o Brasil entra
de fato na guerra. E o texto de sua mãe, na caderneta de capa vermelha, minimamente indica
um temor pela vida de seu filho. Contudo, esse texto foi escrito depois que Osmar Gomes
recebeu a convocação e pouco antes de ele partir para São João Del Rey.
O veterano, primeiramente, realizou o serviço militar entre 1939 e 1940, ainda
enquanto era menor. Logo depois da entrada brasileira na guerra, ele teria expressado seu
desejo de novamente se voluntariar, mas, contudo, sua mãe o teria convencido a esperar a
convocação, o que de fato veio a ocorrer em 1942. Quando a convocação chegou a sua casa,
ele, então, seguiu para o 11º R.I. na cidade de São João Del Rey.
Em 42 eu fui convocado, eu estava na fazenda, eu morava em Aureliano Mourão,
tava na fazenda quando eu recebi a convocação, até a mamãe chorou muito, minhas
irmãs, que eu fui convocado pra ir para a guerra, né... Mas eu até que gostei, achei
bom, eu fui pra São João Del Rey, apresentei lá, eu quando dei baixa era primeiro
cabo, quando eu fui convocado não tinha mais o posto de primeiro cabo, aí eles me
puseram logo como terceiro sargento, mas eu tive que fazer o curso em São João Del
Rey, tive que fazer o curso pra terceiro-sargento, aí eu fui promovido no onze em
São João Del Rey (...)296
293
ROMEIRO, Jacy Gomes: depoimento [2011]. Belo Horizonte, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 294
Álbum de fotografias. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI
(Cemef); OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a
Izaac Erder Silva Soares. 295
GARCIA, Eugênio Vargas (Org.). Op. Cit., 2008. p. 450-451. 296
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares.
112
Interessante notar que, nesse trecho da entrevista, ele apresenta sua opinião em relação
ao recebimento da convocação para a guerra. Esse gosto em relação a sua convocação e ao
fato de seguir para a guerra pode ser relacionado a uma espécie de adesão ao Estado Novo
brasileiro e a uma possível consciência de que, fazendo isso, ele estava cumprindo com seu
“dever patriótico”, como ele mesmo escreve na dedicatória da fotografia, citada acima: “A
pátria ultrajada convoca seus filhos para defendê-la”297
. Neste sentido, poderíamos dizer que
Osmar Gomes não foi movido exclusivamente por uma obrigatoriedade estatal que o coagia a
seguir para a guerra, mas havia um desejo próprio desse sujeito em participar da conflagração,
em “defender a pátria ultrajada”.
Sabemos que o veterano teve acesso a jornais, cartas e conversas que minimamente lhe
noticiavam sobre a guerra, e devemos ainda considerar os possíveis impactos das notícias dos
afundamentos de embarcações brasileiras em 1942, que causou bastante repercussão junto à
população brasileira298
. Contudo, apesar de todos esses indícios, precisamos questionar o que
mais teria motivado esse sujeito a desejar participar da guerra? Seriam apenas essas notícias,
ou houve algo mais que influenciou nesse desejo de Osmar Gomes? Estas são questões
extremamente complexas e de difícil solução, e suas respostas se limitam à escassez de
documentação. No entanto, ainda podemos intuir alguns pontos que julgamos significativos.
Primeiramente, devemos notar que o Estado Novo gestou todo um programa de
mobilização e educação da juventude nacional, visando, sobretudo, a legitimar o governo e
exercer uma espécie de controle sobre as massas populares brasileiras. Segundo Capelato,
durante o período ditatorial, Vargas
(...) sentiu, mais fortemente, a necessidade de investir em propaganda. Nesse
sentido, lançou mão de todos os recursos das novas técnicas de persuasão que
estavam sendo usadas em diversos países, especialmente na Alemanha de
Goebbels.299
Esses novos recursos, a que se refere Capelato, estão ligados tanto à questão da
censura e promoção do regime realizada especificamente pelo DIP quanto em relação à
questão da educação e mobilização cívica dos jovens brasileiros. Para Maurício Parada, o
297
Álbum de fotografias. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI
– CEMEF. Ver: ANEXO 02 – Álbum de fotografias. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no
Centro de Memória da FUNEDI (Cemef). 298
SANDER, Roberto. Op. Cit., 2011. pp. 240-258. 299
CAPELATO, Maria Helena. Propaganda política e controle dos meios de comunicação. In: PANDOLFI,
Dulce (Org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1999. pp. 167-178.
113
Estado Novo se preocupou com a criação de uma espécie de política cultural, que tinha como
objetivo estabelecer, junto à população, o que ele chama de “cultura cívica”, que, segundo ele,
(...) aparece na recriação do calendário de festas nacionais, no caráter nacionalista
dado às aulas de canto orfeônico e de educação física, e também nas grandes
comemorações que utilizavam a rua como palco, ações que tinham no adestramento
físico e na disciplina moral do “jovem nacional” um de seus principais objetivos.300
Neste sentido, alinhavam-se os projetos estado-novistas de controle social, educação
nacionalista e soberania nacional, tendo como ferramentas mais elementares os meios de
propaganda, a instituição da censura e medidas relativas à política educacional, visando,
sobretudo, a alcançar a juventude brasileira. Francisco Campos, ministro da Justiça durante o
Estado Novo, apoiou a criação da Organização Nacional da Juventude, que seria uma
instituição paramilitar nos moldes dos regimes de extrema direita europeus e que tinha, como
objetivo, a mobilização da juventude nacional em prol da ditadura do Estado Novo301
. Para
Bomeny,
o projeto de Organização Nacional da Juventude estava ancorado em uma concepção
política mais amadurecida que Campos cuidou de esmiuçar em seu clássico livro O
Estado Nacional. Estão ali os fundamentos político-ideológicos de defesa da criação
de um Estado totalitário que deveria substituir o Estado liberal-democrático, uma
experiência que, para ele, estava em franco processo de decadência e desintegração.
(...) Na pretensão de arregimentar militarmente a juventude em torno de uma
organização nacional, Francisco Campos a retirou dos modelos de organização
fascista difundidos a partir das experiências alemã, italiana e portuguesa,
basicamente. No entanto, o empreendimento teria que esbarrar na resistência da
estrutura militar constituída, uma vez que se implantava com o projeto uma estrutura
paralela àquela mantida pelo Exército, comprometendo, dessa forma, a autonomia e
o monopólio da organização militar na orientação e preparação dos quadros militares
do país.302
As pretensões de Francisco Campos eram, efetivamente, criar uma organização
paramilitar de largo escopo entre a juventude brasileira, um gigantesco corpo nacional
treinado e doutrinado que atenderia aos ditames do governo ditatorial brasileiro.
Evidentemente, esse projeto de mobilização paramilitar incomodava as Forças Armadas
nacionais, que se empenharam para sua inviabilização. De fato, a mobilização de lideranças
300
PARADA, Maurício. Educando corpos e criando a nação: cerimônias cívicas e práticas disciplinares no
Estado Novo. Rio de Janeiro: Apicuri Editora, 2009. 301
Organização Nacional da Juventude. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/
anos3745/PoliticaAdministracao/OrganizacaoNacionalJuventude. Acesso em: 12 dez. 2013. 302
BOMENY, Helena M. B. Três decretos e um ministério: a propósito da educação no Estado Novo. In:
PANDOLFI, Dulce (Org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1999. pp.
137-166.
114
militares, inclusive a figura do general Eurico Gaspar Dutra, contrárias ao projeto e à
impossibilidade real de se efetivar algo dessa dimensão no Brasil daquele momento, acabaria
por fazer com que o projeto da Organização Nacional da Juventude fracassasse.
No entanto, devemos considerar que havia, por parte do Estado Novo, um programa,
mais ou menos organizado, para mobilizar a população civil para a guerra. E, para tanto, a
propaganda e a educação ocupavam um lugar de destaque na tarefa de conscientizar a
população quanto aos seus “deveres” patrióticos. A ideia de “front interno”, as demandas de
racionamento de gêneros alimentícios e estratégicos e a intervenção direta em determinados
setores econômicos constituíram, verdadeiramente, uma política de estado voltada para a
inclusão da sociedade no conflito303
. Mais do que coagir a população a agir em prol das
demandas do governo, havia uma preocupação em mobilizar, de fato, a população em favor
do governo.
Acreditamos que esses esforços doutrinários e nacionalistas surtiram efeito em
determinadas camadas da população. De fato, houve uma crença em um novo modelo político
para o país, o Estado Novo varguista, um Estado totalitário, intervencionista e nacionalista
que se opunha ao modelo liberal-democrático, em franco declínio na década de 1930.
Entretanto, toda essa longa exposição sobre as políticas de mobilização do governo ditatorial
de Getúlio Vargas não nos ajuda, de forma incisiva, visto que não podemos confirmar muita
coisa, diante da inexistência de fontes que tratam da educação institucional que Osmar Gomes
recebeu. Não podemos afirmar, por exemplo, se ele teve, de fato, acesso a colégios na cidade
de São João Del Rey ou em outra cidade. No entanto, é importante notar que vários membros
de sua família apresentam uma espécie de adesão ao regime varguista.
Ao que tudo indica, quando a convocação chegou até a casa da família Gomes de
Oliveira, em 1942, não houve qualquer forma de recusa ou protesto contrário, pois parece
haver um orgulho em se ter um expedicionário na família, uma espécie reconhecimento social
de estar cumprindo seus deveres para com a Pátria. Numa das cartas que Osmar Gomes
recebe de sua irmã Estelita, alguns meses depois de ir para a Itália, podemos perceber um
pouco desse universo de reconhecimento social:
303
BONET, Fernanda dos Santos. Mobilização e união: O discurso oficial brasileiro sobre a política interna
durante a II Guerra Mundial na revista Cultura Política. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História.
ANPUH: São Paulo, jul. 2011. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300311564_
ARQUIVO_MOBILIZACAOEUNIAO.pdf. Acesso em: 25 nov. 2013.
115
Aqui em casa o dia todo tem gente que vem ver os objetos que você manda – olhar
seu retrato. E cada notícia que chega, ganhamos abraços de muitas pessoas, por
sermos irmãs de um guerreiro. O seu nome aqui é pronunciado por todos. Quando
você chegar, falaremos melhor.304
Não sabemos, especificamente, a data em que Osmar Gomes recebeu a convocação
para a guerra, mas sabemos que ele foi reincluído no 11º R.I. em São João Del Rey no dia 26
de dezembro de 1942305
. Sobre esse período no regimento em São João, sabemos que ele fez o
curso para terceiro-sargento e que realizou alguns treinamentos antes de seguir para o Rio de
Janeiro, onde os efetivos da FEB foram concentrados antes de seguirem para a Itália. Muito
pouco se sabe acerca dos treinamentos realizados em São João Del Rey; apenas algumas
páginas do álbum de fotografias Osmar Gomes são dedicadas a esses treinamentos, e as
descrições dos retratos falam apenas de “Manobras do 11º R.I na região de Nazaré – Minas,
em aperfeiçoamento a técnica de guerra” e ainda em “caminhadas de 1 dia e 1 noite, nas
célebres manobras de 1943”306
. Depois desse período em São João, Osmar Gomes recebeu
ordens para seguir para o Rio de Janeiro.
Pra fazer treinamento de guerra, lá no Rio nós ficamos quase um ano fazendo
treinamento, quando nos tínhamos feito treinamento, veio a ordem de embarcar no
segundo escalão (...) gastamos um mês na travessia para ir pra Itália, um mês de
navio, o navio que nos levou era americano General Meigs, nós fomos cinco mil
homens no navio307
.
Depois do período de treinamentos no Rio de Janeiro, Osmar Gomes seguiu para a
cidade de Nápoles, na Itália. Em seu diário pessoal, ele descreve esse momento de sua partida
para a Europa:
A 20 de setembro de 1944, saímos de Capistrano, embarcamos na estação da Vila
Militar, com destino ao cais do porto, onde embarcamos no navio Genral Meiker
[USS General M. C. Meigs]. A 22 partimos às 12 horas com destino à Europa308
.
304
Carta de Estelita enviada a Osmar Gomes no dia 6 de maio de 1945. Acervo Digital Osmar Gomes de
Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef). 305
Certidão do Ministério da Guerra sobre Osmar Gomes de Oliveira. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira.
Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef). 306
Álbum de fotografias. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI
(Cemef). 307
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 308
Diário. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef).
116
Apesar de todo o sigilo em relação ao embarque das tropas da FEB que seguiram para
a Itália, Osmar Gomes teria enviado uma carta a seus familiares avisando de sua partida para a
guerra na Itália. Na entrevista com a irmã Jacy Gomes, ela aponta a forma como o veterano
teria enviado essa carta a sua família:
(...) quando ele foi, ele deixou, com um dos colegas, uma carta pra gente, para os
pais, os irmãos... Falando que ele estava indo e tudo, deixou com um primo, e esse
primo mandou a carta pra nós... Então, a gente sabia que ele estava viajando, foi um
sofrimento terrível, minha mãe chorava, porque o que que vai acontecer? Eram os
alemães bombardeando os navios e tudo (...) a gente sabendo que ele estava no
navio, no mar viajando, e que podia ser bombardeado a qualquer hora, né!?309
Nesse pequeno trecho, podemos perceber o receio em relação a possíveis ataques de
submarinos nazistas contra os navios que levavam tropas da FEB, um medo de que as
embarcações pudessem ser torpedeadas e afundadas durante a viagem rumo à Itália. Esse
medo não foi algo exclusivo da família de Osmar Gomes, visto que o veterano relata algo
relacionado a isso durante a entrevista realizada em 2007:
(...) durante a viagem, dizem que... Os meus companheiros, que nós fomos atacados
à noite por um submarino alemão, mas eu não vi não, eu estava dormindo... Quem
viu foi os outros, não é (...)310
O envio das tropas brasileiras foi recoberto de sigilo e segurança reforçada incluindo
escolta até a Itália. Contudo, o medo de possíveis ataques submarinos era real, visto que,
naquele momento, as atividades dos u-boats do eixo ainda eram intensas. Apesar da versão
apresentada por Osmar, na qual seus companheiros relatam que o navio estadunidense USS
General M. C. Meigs teria sofrido um ataque de submarinos enquanto transportava o segundo
escalão da FEB, as Forças Armadas brasileiras não relatam nenhum ataque desse tipo; talvez
o temor tenha criado essas versões. A travessia teria durado, aproximadamente, um mês e, “a
6 de outubro, pela manhã, avistamos a histórica cidade de Nápoles; às 12 horas, o navio
ancorava”. No dia 6 de outubro de 1944, Osmar Gomes de Oliveira chegou à Itália, e
encarava, pela primeira vez, a guerra.
309
ROMEIRO, Jacy Gomes: depoimento [2011]. Belo Horizonte, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 310
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia.
117
2.3.2 – Na Itália distante311
Quando o navio estadunidense USS General M. C. Meigs ancorava no porto de
Nápoles, em 6 de outubro de 1944, vários eventos haviam transformado o cenário político e
militar na Itália. Quando os expedicionários da FEB entraram, de fato, no conflito, a Itália, há
muito tempo, não era sequer a sombra da orgulhosa Itália fascista de Benito Mussolini. Os
longos anos da guerra e as constantes derrotas haviam alquebrado toda a pompa e glória
pretendidas durante a década de 1930.
Os aliados, há muito tempo, já vinham impondo pesadas derrotas às nações do eixo, e
a linha de ação definida pelas lideranças aliadas na Conferência de Casablanca, em janeiro de
1942, previa a completa retomada do norte da África e o início da invasão do sul da Itália
antes da abertura de uma nova frente no oeste europeu pelas forças aliadas312
.
A retomada no norte da África, concluída com a conquista da cidade de Túnis, em 13
de maio de 1943, obrigou as forças do eixo a recuar para o sul da Itália. Efetivamente, os
aliados deram continuidade aos combates do continente africano em solo europeu, iniciando a
operação de invasão da Itália. A invasão italiana, ou a operação Husky, foi iniciada com a
retomada da Sicília e, depois, com o desembarque de tropas em vários outros pontos do sul da
Itália continental.
A operação Husky, iniciada em 10 de julho de 1943, com a invasão da Sicília e todo o
sul italiano, foi significativamente rápida. Os aliados pretendiam fazer com que a população
italiana sentisse a guerra na própria pele e, em 19 de junho, a cidade de Roma foi
bombardeada pelos aliados pela primeira vez313
. A miséria, os racionamentos e as privações
pelas quais a maioria da população italiana passava e o crescente descrédito em relação ao
governo fascista de Mussolini e os resultados negativos da guerra levavam a uma grave crise
política interna na Itália:
(...) O desastre de Stalingrado e as pesadas perdas sofridas pelos exércitos italianos
na frente russa tinham enfraquecido a confiança de Mussolini. O governo fascista
não podia ignorar a corrente do derrotismo que se propagava entre as tropas e, pior
ainda, no meio dos estados-maiores. Na própria Itália, apesar das proibições e
fiscalizações da polícia fascista, produziram-se manifestações hostis ao regime,
durante o inverno, nos centos fabris do norte. Em Turim, a 12 de março, perto de
311
Esse título é utilizado por Osmar Gomes para se referir a uma série de retratos no seu álbum de fotografias.
Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef). 312
Grande crônica da Segunda Guerra Mundial. Volume II: de Pearl Harbor a Stalingrado. Rio de Janeiro:
Seleções do Reader‟s Digest. Editora Ypiranga, 1969. p. 15. 313
Ibidem. p. 44.
118
100.000 trabalhadores entraram declararam-se em greve, paralisando a produção das
indústrias de guerra nas fábricas Fiat e noutras sete grandes fábricas turinenses. O
movimento estendeu-se nos dias seguintes a toda a Lombardia. Aparecendo em
Milão uns pasquins incitando à greve, os trabalhadores da Pirelli iniciaram-na em e
percorreram as ruas aos gritos de “paz e liberdade” A reação das autoridades
fascistas foi tardia e ineficaz.314
Vários fatores, tais como as derrotas de tropas italianas no leste europeu, o surgimento
de movimentos grevistas, o crescente descrédito em relação ao governo de Mussolini, o
fortalecimento de opositores ao regime fascista dentro da Itália e os avanços aliados no sul
italiano, fizeram com que altos membros do governo buscassem alternativas menos danosas
ao país para resolver a grave crise gerada pela guerra315
. A deposição de Benito Mussolini do
poder e a assinatura de um armistício com os aliados surgem como uma possibilidade de que
as batalhas dentro da Itália cessassem. Em 25 de julho de 1943, o Grande Conselho Fascista
se reuniu e decidiu por depor definitivamente Benito Mussolini, passando todos os poderes,
inclusive o comando das Forças Armadas italianas, para as mãos do rei Vitor Emanuel, e, em
agosto do mesmo ano, o novo governo italiano assina um armistício com os aliados316
.
Desaparecido Mussolini do cenário político, o governo do Marechal Badoglio
liquidou com a maior rapidez os restos do regime fascista. O partido foi dissolvido,
numerosas personalidades políticas e militares foram presas sem a menor resistência
do povo italiano. Bem ao contrário, a população acolheu a queda do Duce com
entusiasmo, porque via, nela, sobretudo, o prelúdio da paz. Em todas as grandes
cidades, se realizaram grandes manifestações aos gritos de: “acabado Mussolini,
acabada a guerra”317
.
Apesar da esperança da população italiana de que a queda de Mussolini representaria o
final da guerra no país, isso não se confirmou, uma vez que as lideranças nazistas, antevendo
o fim do fascismo e o desmoronamento do “pacto de aço”, passaram a uma linha de ação mais
agressiva, iniciando um sistemático movimento de ocupação de todo o norte italiano318
. A
assinatura do armistício pelo novo governo italiano com as nações aliadas, em 19 de agosto de
1943, foi responsável pela reação alemã em solo italiano. A Itália passou, de um momento a
outro, de principal aliada à inimiga declarada da Alemanha Nazista:
314
Ibidem. p. 16. 315
Ibidem. p. 17. 316
Ibidem. p. 51. 317
Ibidem. p. 59. 318
O “Pacto de Aço” foi um acordo firmado entre Alemanha nazista e a Itália fascista pouco antes do início da
Segunda Guerra Mundial. Ver: Grande crônica da Segunda Guerra Mundial. Volume I: de Munique a Pearl
Harbor. Rio de Janeiro: Seleções do Reader‟s Digest. Editora Ypiranga, 1969. p. 62.
119
Ante a ameaça de um novo bombardeio sobre Roma, Badogglio assinou a
capitulação, na Sicília, em 3 de setembro de 1943, no momento em que as tropas de
Montgomery pisavam o continente, no extremo sul da Itália, em Reggio de Calábria.
Para não provocar a ocupação da Itália pela Wehrmacht, o armistício deveria
permanecer secreto até o dia do desembarque das tropas de Eisenhower na Itália
meridional, previsto para 9 de setembro. A 8, porém, a rádio Argel e a BBC
difundiram a notícia do armistício. Deste modo, o povo italiano e o Mundo inteiro
tomaram conhecimento de que o eixo se quebrara e terminara definitivamente a
política imperialista do Fascismo. Mas a Itália ia agora experimentar na sua própria
carne os horrores da guerra, pois nesse mesmo dia seus antigos aliados, atacando e
desarmando as tropas italianas – que se ressentiam de ordens de Badogglio – se
dispuseram a defender encarniçadamente a península, onde desembarcaria logo a
seguir o V Exército anglo-norte-americano comandado pelo General Clark.319
Para legitimar o longo plano de ocupação da Wehrmacht e dos remanescentes fascistas
no norte da Itália, o governo nazista e lideranças italianas fiéis ao regime fascista se uniram
para a criação de um novo Estado, a República Social Italiana ou República de Saló,
instaurada em 23 de setembro de 1943 em todos os territórios italianos ainda não ocupados
pelos aliados320
.
Al mismo tiempo que se produjo el Armisticio de Italia con los Aliados el 8 de
Septiembre de 1943, las tropas de Estados Unidos desembarcaron en Salerno y las
de Reino Unido en Calabria y el Golfo de Tarento. Simultánemente el resto del país
desde Salerno al norte, incluyendo la capital de Roma, fue ocupado por el Tercer
Reich. Tanto el jefe de Gobierno, Pietro Badoglio, como el Rey Víctor Manuel III
con su familia, se exiliaron a territorio angloamericano. (...) Comandos alemanes
bajo el mando del capitán de las SS Otto Skorzeny, el 12 de Septiembre de 1943,
liberaron a Benito Mussolini de la prisión del Gran Sasso en los Apeninos que se
encontraba arrestado desde su derrocamiento. Inmediatamente Mussolini fue llevado
a Alemania donde se entrevistó con Adolf Hitler para mostrar agradecimiento.
Sorprendentemente el Führer le concedió el mando de toda la Italia que todavía no
estaba en manos de los Aliados. Nacía la República Social Italiana (RSI), más
conocida como República de Saló.321
Depois da libertação de Mussolini pelos nazistas, o Duce assumiu o comando da
República de Saló pelo menos em aparência, visto que o controle da ocupação foi exercido
pela Wehrmacht e pelas lideranças nazistas. A República de Saló se confirmou como uma
espécie de estado fantoche, que minimamente tentava legitimar o controle exercido pelos
nazistas na ocupação de grande parte da Itália. Na prática, as lideranças italianas da República
de Saló tiveram muito pouco poder de decisão ou controle sobre seu próprio território, e a
população foi submetida à legislação e aos caprichos nazistas. Na prática, a crise política na
319
Grande crônica da Segunda Guerra Mundial. Volume II: de Pearl Harbor a Stalingrado. Rio de Janeiro:
Seleções do Reader‟s Digest. Editora Ypiranga, 1969. p. 60-61. 320
La República Social Italiana “República de Saló”. Disponível em: http://www.eurasia1945.com/
acontecimientos/fascismo/la-republica-social-italiana-republica-de-salo/ Acesso em: 22 dez. 2013. 321
Ibidem.
120
Itália se agravou ainda mais, o avanço dos aliados rumo ao norte italiano e as sangrentas
batalhas contra a Wehrmacht e as forças armadas da República de Saló ocorriam,
concomitantemente, à guerra civil que se desenvolveu na Itália entre partidários ainda fiéis ao
fascismo e seus opositores mais ferrenhos e diversos grupos de resistência, também
conhecidos como “partisanos”.
Durante la ocupación de Italia, el pueblo italiano sufrió en cuantiosas ocasiones los
extremos abusos de los alemanes. Las SS arrestaban constantemente a comunistas,
fascistas traidores, partisanos y judíos, a los que se deportaba a campos de
concentración repartidos por Alemania, Polonia y dentro de la propia Italia. En
cuantiosas ocasiones las milicias de la República de Saló participaron en las
masacres cometidas por los alemanes, un ejemplo de ello es que guardias
republicanos eran los encargados de los campos de concentración dentro de Italia
como Fossoli, Gries, Ferramoti di Tarsia y La Arrocera de San Sabba. Pero lo cierto
es que la República de Saló siempre intentó frenar estas matanzas, por ejemplo
Mussolini por todos los medios quiso evitar sin tener éxito la Masacre de las Fosas
Ardeatinas donde 335 italianos fueron asesinados como represalia por el Atentado
de Vía Rasella que había matado a 33 alemanes. Los judíos italianos como era
lógico fueron objetivo de los alemanes desde el principio, por suerte la población y
cuantiosos fascistas italianos les ayudaron, consiguiendo que a pesar de un número
mucho mayor, sólo 7.000 muriesen durante el Holocausto, muy escasos en
comparación con otros países. (...) Poco a poco el país fue siendo devastado. La
principal razón fueron los duros bombardeos aéreos que soportaron los civiles
italianos por parte de la aviación estadounidense contra Roma, Génova, Milán,
Turín, etcétera, que costaron miles de muertos. También a medida que avanzaban los
americanos, las tropas republicanas italianas fueron practicando el proyecto de
“tierra quemada”, consistente en quemar los campos y destruir las infraestructuras
para dificultar el avance enemigo. (...) Con crueldad la lucha en la retaguardia entre
los partisanos y los fascistas llegó a unos niveles de violencia jamás vista antes.
Comunistas, monárquicos o soldados desertores, la guerrilla italiana no sólamente se
extendió en Italia, también a los Balcanes y Grecia por los ex-combatientes que
antes ocupaban esos países. La entidad más fuerte era el Comité de Liberación
Nacional Alta Italia (CLNAI) que operaba entre los Apeninos y los Alpes. Otras
ramas se dedicaron al terrorismo como el Grupo de Acción Patriótica (GAP) de los
comunistas. Aunque muchos luchaban por restaurar la monarquía y la democracia,
la mayoría de partisanos estaban compuestos por comunistas que cada vez que
realizaban incursiones se dedicaban a asesinar y torturar322
.
Quando os primeiros efetivos da FEB desembarcaram em Nápoles, na Itália, em julho
de 1944, muito havia mudado. A Itália fascista de Mussolini, a nação dos grandes comícios
públicos, das grandes marchas, havia se perdido no passado. Os brasileiros encontraram uma
nação em ruínas, cidades inteiras desfiguradas por constantes bombardeios e uma população
completamente afetada pela guerra. Os expedicionários brasileiros se depararam com uma
nação em escombros, esfacelada por longas batalhas internas e externas; a guerra que se
mostrava em suas mais diversas faces: a guerra civil, a guerra entre aliados e nazistas, a
322
Ibidem.
121
resistência contra o domínio alemão, a guerra, enfim. Os brasileiros chegaram num momento
de grandes dificuldades na campanha da Itália, o avanço aliado, que, inicialmente marcado
pela rapidez da tomada da Sicília e do sul da Itália Continental, deu lugar a uma guerra lenta e
danosa, de conquistas árduas e difíceis rumo ao norte ocupado pela Wehrmacht e as forças
armadas da República de Saló. Quando o primeiro escalão da FEB desembarcou na Itália, em
julho, os aliados havia menos de um mês conseguiram tomar a linha de Monte Cassino e a
cidade de Roma323
.
Contudo, havia outra questão que veio a influir diretamente na atuação da FEB na
Itália: a mobilização aliada para o plano de invasão no oeste europeu, a operação Overlord.
Ela fez com que vários dos contingentes aliados que participaram da retomada da África, da
Sicília e do sul da Itália Continental fossem deslocados para essa operação monumental que
aconteceria em junho de 1944, nas praias do noroeste da França.
Ao chegar à Itália, em julho de 1944, o 1º escalão da FEB se incorporava ao V
Exército, comandado pelo General Mark, no final da ofensiva que, desde a queda de
Roma, se fazia no encalço de um inimigo em retirada para o norte. Depois da
tomada de Livorno, Pisa e Siena, o V Exército perdera o VI Corpo Americano e o
Corpo Expedicionário Francês, levando para a invasão do sul da França, no rumo da
Provença. Desfalcado o V Exército de algumas de suas melhores tropas, a 1ª DIE
chegava em hora crítica, de extrema escassez de efetivos. (...) Ao V e VIII Exércitos,
norte-americano e britânico, do lado do Tirreno e do lado do Adriático, cumpria
fixar as forças alemãs que ainda combatiam na Itália e impedi-las de reforçar as
frentes principais.324
Quando o segundo escalão ancorava no porto de Nápoles, no dia 6 de outubro de
1944, os efetivos do primeiro escalão já participavam dessas ações de combate contra os
remanescentes do eixo na Itália. Os efetivos da FEB, incorporados ao V Exército aliado,
foram designados a atuar de forma bastante diferente daquela prevista nos acordos entre o
governo brasileiro e os aliados; a ausência de efetivos aliados na frente italiana fez com que
os brasileiros fossem designados a tarefas de tomada de posições, libertações de cidades e
lugarejos e constantes patrulhas, o que acarretava em combates diretos com soldados do eixo.
Ou seja, é dizer que a atuação da FEB na Itália não foi meramente uma formalidade e que os
efetivos da FEB não foram empregados em simples tarefas de defesa de retaguarda ou como
força de ocupação de localidades já libertadas pelos aliados. Os soldados brasileiros foram
integrados aos efetivos estadunidenses e atuaram em violentas e encarniçadas ofensivas contra
323
SOLAR, David. Mussolini, un trágico y sórdido epílogo. In: Revista la Aventura de la Historia (2005). pp.
24-35. 324
COSTA, Octavio. Op. Cit., 1985.
122
posições alemãs muito bem guarnecidas. Por mais que o volume das tropas brasileiras
enviadas ao Teatro de Operações do Mediterrâneo tenha sido reduzido, é importante dizer que
esses soldados atuaram nas mesmas frentes de experimentados soldados aliados, tomando
posições e combatendo inimigos bem guarnecidos na irregular geografia italiana.
2.3.3 – A Segunda Guerra de Osmar Gomes
Osmar Gomes seguiu para a Itália a bordo do navio estadunidense USS General M. C.
Meigs, integrando o segundo escalão da FEB. Em seu diário, ele anota sua chegada à Itália:
“A 6 de outubro, pela manhã, avistamos a histórica cidade de Nápoles; às 12 horas, o navio
ancorava, e permanecemos ali os dias 6, 7 e 8 desembarcamos do navio”325
. Logo depois de
sua chegada à cidade de Nápoles, ele e todo o segundo escalão foram conduzidos para a
cidade de Livorno:
nós chegamos em Nápoles, de Nápoles nos fomos pra Livorno e aí trocamos de
navio, saímos de navio grande e fomos numas barquinhas pequenas, que cabia
cem homens em cada barquinha, aí gastamos mais três dias pra chegar em Livorno,
de Livorno nos fomos pra Pisa, lá em Pisa nos acampamos e ficamos lá mais mês
esperando a ordem pra ir pra linha de frente 326
.
Logo que chegaram à cidade de Pisa, Osmar Gomes e outros sargentos receberam
ordens de seguir para junto do primeiro escalão da FEB, para realizar estágio com as tropas
brasileiras já experimentadas no conflito. Para o expedicionário, não houve treinamento na
Itália; ele passou por um período de estágio e, segundo ele próprio, “lá não era treinamento, lá
nós já estávamos em guerra”327
. Numa das entrevistas, ele se refere ao estágio no primeiro
escalão, qualificando esse momento como um período de aprendizado:
Ai quando foi prazo de 15 dias que eu estava em Pisa, eu fui fazer estágio no
primeiro batalhão, pra quando eu entrasse na linha de frente, eu já sabia comandar
meus soldados328
.
325
Diário. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef). 326
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 327
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia. 328
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares.
123
Logo depois desse período de estágio, Osmar Gomes retorna ao seu acampamento
junto a outros sargentos do segundo escalão para efetivamente iniciarem suas operações de
guerra, já com soldados e cabos sob seu comando329
. Osmar descreve esse momento como sua
entrada, de fato, nas ações de combate na Segunda Guerra Mundial:
Aí nós voltamos para... Para Pisa, onde estava nosso acampamento com o pessoal
todo, aí a primeira entrada em combate mesmo que nós entramos foi em Monte
Castello, depois de Monte Castello nós fomos para Montese, Montese também foi
duro o combate lá330
.
Apesar de alguns pontos específicos onde o veterano nos fala sobre determinadas
batalhas em que esteve envolvido, esses momentos sempre aparecem, em suas narrativas, de
forma precária, curta e sem muitos detalhes. É perceptível que os momentos de combates e as
cenas mais violentas são extremamente evitadas e, de certa forma, autocensuradas durante os
relatos desse veterano. Os traumas inerentes da guerra moderna, a tarefa rotineira de matar ou
morrer e as misérias e mazelas sofridas pela população italiana são elementos pouco
compreensíveis e nada confortáveis de se retomar.
Nos relatos de Osmar Gomes, as batalhas são sempre elementos que acontecem ao
fundo, sempre descritos de forma sugestiva e tratados com uma distância quase indireta. Em
todas as fontes disponíveis sobre Osmar Gomes, as batalhas passam quase despercebidas.
Contudo, duas batalhas em específico aparecem nos testemunhos de Osmar Gomes: a tomada
do Monte Castello e a batalha na cidade de Montese. Ambos os episódios são bastante
recorrentes também na historiografia sobre a participação brasileira na Segunda Guerra e nas
memórias de outros veteranos brasileiros.
Segundo seu diário, no dia 24 novembro de 1944, Osmar Gomes e outros
expedicionários brasileiros saíram de Filetone para tomar parte no ataque ao Monte Castello.
Outros efetivos da FEB já haviam participado de um primeiro ataque ao monte nesse mesmo
dia, e, apesar de terem conseguido tomar o Monte, ele foi novamente retomado pelos alemães
num violento contra-ataque. O expedicionário não participa do ataque do dia 24; não sabemos
se ele teria participado do ataque do dia 29 de novembro. Entretanto, sabemos que ele esteve
no ataque ao Monte Castello no dia 12 de dezembro daquele ano, o último ataque ao Monte
329
Ver ANEXO 03 – Álbum de fotografias. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no Centro de
Memória da FUNEDI (Cemef). 330
Ibidem.
124
naquele ano, também referido pelo expedicionário como o fim “primeira fase” das operações
em Monte Castello.
O dia 12 de dezembro de 1944 é tido por muitos como um dos piores momentos da
FEB durante suas operações na Itália, visto que as ações daquela data somavam a terceira
tentativa fracassada de tomar o Monte dos inimigos. Para Osmar Gomes, esse dia ficou
marcado como um dia de mortes e reveses:
Lá morreu muita gente... Ficou dezessete mortos debaixo da neve, na primeira etapa
(...) Pois é, nós atacamos, ainda... Ainda era neve, então esses dezessete que foram
mortos lá na neve, e quando o alemão contra-atacou, nós tivemos que correr, sair do
lugar, né, pra não morrer... Mas morreu dezessete por lá... Eles falam muito em
dezessete de Abetaia, é os que morreram (...)331
Esse episódio ficou bastante conhecido na memória daqueles que lutaram em Monte
Castello. Além da morte desses 17 expedicionários, que, na tentativa de tomar o morro foram
fatalmente atingidos pelos inimigos, soma-se o fato de que os corpos desses brasileiros não
puderam ser recolhidos para o sepultamento logo depois do combate. Os corpos dos “17 de
Abateia” ficaram no morro durante todo o inverno, preservados pela neve e pelo frio, até que
surgisse uma oportunidade de serem recolhidos e sepultados:
Com os primeiros albores da primavera, num certo dia de fevereiro surgem, enfim, a
oportunidade da revanche. Aos 21 de fevereiro de 1945, o Regimento Sampaio
esmagou a final, uma por uma, as famosas casamatas do Monte Castello. Após a
conquista, saem em campo o Reverendo Soren com seus voluntários, em piedosa
missão: recolher e dar sepultamento aos cadáveres. Transferindo sua pesquisa para
os lados de C. Viteline e Cá de Cá e diante do fatídico corredor que flanqueava o
Castelo, aos olhos se depara um quadro de surpreendente e tétrica Alegoria das
Armas: em torno à casamata reduto de Abetaia, em formação semicircular, a uma
vintena de metros das seteiras, jaziam dezessete cadáveres de brasileiros, hirsutos,
agressivos, colhidos por traiçoeira ceifa da morte, no momento mesmo em que o
assalto final coroaria cumprimento de sua difícil missão sobre Abetaia. Soren
examinou os cadáveres; muitos ainda comprimiam ainda o gatilho que disparara o
último tiro e outros tinham nas mãos cerradas, a granada já sem o grampo de
segurança, que não chegará a partir e que só a rigidez cadavérica impedia de
explodir. (...) Estavam ali os 17 desaparecidos em ação no ataque de 12 de dezembro
de 1944 semi-conservados ainda, pelo manto protetor das nevadas em degelo.332
O comando do V Exército fazia planos para lançar outra ofensiva contra o Monte
Castelo ainda em dezembro. Contudo, essa campanha seria adiada em detrimento das
331
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia. 332
Sobre os 17 de Abetaia, ver: disponível em: http://www.anvfeb.com.br/os-17-de-abetaia/. Acesso em: 23 dez.
2013.
125
condições climáticas adversas que afetaram a região em dezembro daquele ano333
. A neve
impôs uma relativa trégua aos combatentes de ambos os lados; o objetivo dos aliados de
tomar a cidade de Bolonha antes do Natal de 1944 estava sendo deixado de lado, e restava aos
efetivos da FEB a manutenção de suas posições, ações de patrulha e vigilância de trincheiras
nos Fox-holes avançados334
.
O frio intenso na região de Monte Castello e a constante atividade nas trincheiras e nos
Fox-holes fizeram com que Osmar Gomes contraísse o “pé de trincheira”. No dia 14 de
dezembro, ele foi retirado da frente de batalha para tratamento no hospital de campanha em
Porretta Terme335
. O episodio é retratado pelo expedicionário nas duas entrevistas:
Eu tive em Porreta por quase um mês tratando do pé, que deu o tal que eles falam
“pé de trincheira”, vai congelando, congelando, no fim eu não sabia, estava tudo
duro, congelado... Chama pé de trincheira, e o médico me internou e o tratamento
era uísque, e eu tomava uísque todo dia, pra dá a circulação do sangue (...) teve
gente que chegou a perder até a perna, porque ia congelando, congelando e teve que
cortar, pra não pegar o corpo todo... Lá teve muitos doentes com esse “pé de
trincheira”336
.
A gente andava na neve, não tinha água pra tomar banho nem pra lavar os pés, ia
congelando os pés, eu tive o tal pé de trincheira, congelou a metade do pé aqui, aí eu
baixei no hospital lá, pra tratar, né, eu fiquei um mês no hospital tratando... O
remédio melhor que eles davam lá era uísque, pra esquentar o sangue e a
circulação... Aí, eu sarei, graças a Deus... O pé sarou e eu voltei pra linha de
frente337
.
O “pé de trincheira” é uma lesão provocada pelo frio extremo que acomete soldados
que ficam expostos ao frio e com o pé úmido durante vários dias. O pé se torna pálido e
gélido e a circulação diminui drasticamente; se não tratado, pode gerar feridas e infecções
mais complicadas338
. O tratamento de Osmar Gomes se deu de forma relativamente rápida e,
no dia 25, ele já havia ganhado alta e retornado até seu batalhão para tomar parte nas ações de
inverno.
333
Sobre a campanha da FEB em Monte Castello, ver: disponível em: http://www.pitoresco.com
/historia/guerra/guerra04.htm. Acesso em: 23 dez. 2013. 334
Fox-hole ou “buracos de raposa” eram pequenas trincheiras no chão onde os soldados montavam guarda em
pontos avançados, com a finalidade de registrar a movimentação de unidades inimigas. Ver: ANEXO 04 –
Fotografia de Horácio de Gusmão Coelho Sobrinho – Fotógrafo da FEB/Arquivo Correio da Manhã/Arquivo
Nacional. 335
Diário. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef). 336
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia. 337
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 338
Sobre a enfermidade denominada popularmente como “pé de trincheira”, ver: disponível em:
http://www.manualmerck.net/?id=307&cn=1338. Acesso em: 26 dez. 2013.
126
A longa pausa nas ações ofensivas contra o Monte Castello teve fim em fevereiro de
1945, quando o inverno intenso deixava a região e o Comando do V Exército se preparava
para uma nova investida contra o Monte. Em 19 de fevereiro de 1945, iniciou-se uma nova
onda de ataques contra essa posição inimiga. Em 25 de fevereiro, os aliados conquistavam
definitivamente o Monte Castello. O episódio também é narrado por Osmar Gomes, que fia
uma versão bastante aterradora do que viu no cume do Monte, depois da conquista deste:
Em Monte Castello, foi o seguinte, nossa artilharia bombardeou o morro a noite
inteira; de manhã cedo nós fizemos um ataque; o alemão já tinha retirado que ele viu
que não ia aguentar, né, ai retirou tudo pra trás, quando nós subimos no morro já não
achamos alemão mais, tinha muito, muito morto, alemão, né, foi caindo o
bombardeio matou muito, aí nós seguimos eles até dobrar o morro, fomos atrás do
alemão, né.339
A visão dos “muitos” alemães mortos parece que, de alguma forma, assustou Osmar
Gomes, assim como os mortos em Abetaia, que permaneceram por mais de um mês sem o
sepultamento devido. O terror da guerra escapa a sua própria censura e, de alguma forma,
aparece entre suas palavras. A outra batalha citada com relativo destaque no relato de Osmar
Gomes é a tomada da cidade de Montese, que aconteceu em 14 de abril de 1945.
“É, pra mim, foi mais ruim do que Monte Castello”.340
Desta forma Osmar Gomes
inicia seu relato sobre a tomada de Montese no dia 14. A tomada dessa cidade se deu através
de uma série de enfretamentos urbanos, bem diferente do que ocorreu em Monte Castello.
Cada casa, cada rua e cada beco deveriam ser cuidadosamente tomados, e o avanço se deu de
maneira lenta e meticulosa. A tomada de Montese é considerada por muitos como uma das
batalhas mais sangrentas em que a FEB esteve envolvida. Primeiramente, devido ao excessivo
número de baixas de soldados brasileiros que foram feridos ou mortos nesse combate e,
também, pela destruição da própria cidade, que foi severamente bombardeada pelas artilharias
alemã e brasileira341
.
339
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 340
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia. 341
O número de baixas registradas na batalha de Montese é: 34 mortos, 382 feridos e 10 extraviados. A
quantidade de casas destruídas na localidade é de, aproximadamente, 800 das 1.121 casas que haviam na cidade.
Ver: PINTO, Henrique de Moura Paula. Tomada de Montese, 14 e 15 de abril de 1945. Disponível em:
http://henriquemppfeb.blogspot.com.br/2011/04/tomada-de-montese-14-e-15-de-abril-de.html. Acesso em: 26
dez. 2013.
127
Montese foi só um dia, nós começamos a luta de manhã cedo, seis horas da manhã, e
foi até a tarde, foi só um dia... Porque lá nós combatíamos frente a frente, e já em
Monte Castello nós combatíamos de longe, o alemão estava longe dos brasileiros
(...)342
Montese! lá o alemão estava acampado em frente, no ultimo morro, um morro
pequeno, né, lá, nós tivemos que organizar o ataque, de noite organizou todo, de
manhã cedo, às seis horas da manhã, nós partimos pro ataque, lá o alemão tava bem
acampado... bem entrincheirado, nós partimos às seis horas, dez horas nós não tinha
andado nem um quilômetro ainda, porque o alemão tava atirando, até mesmo lá em
Montese aconteceu, nos brigamos dentro de cemitério, que na minha, a minha faixa
de terreno que era pra mim combater deu dentro do cemitério, aí nós escondia atrás
da sepultura pra atirar no alemão, quando nos saímos do cemitério eles passaram pra
uma casa, aí nessa casa eles atiraram na gente (...) eu deitei no chão, o grupo tudo,
né, aí veio dois tanque americano “tedesque”, aí nós mostramos a casa, os tanques
foi atirando na casa, de cima pra baixo, e derrubou a casa toda, aí nós prendemos
nesse lugar 49 alemão, eles foi saindo, punha a mão na cabeça “brasiliano não me
mate”, eles sabiam que era brasiliano, que era soldado brasileiro que tava ali,
naquela frente, né, a gente já não tinha coragem de atirar mais num homem desse
com a mão na cabeça, ia só desarmando, tomando armamento, tirava as granada,
jogava fora, eles oferecia pra nos lembrança que eu acho que ainda tá aí guardado aí
(...) aí nós mandava eles pra retaguarda343
A cena do cemitério é narrada nas duas entrevistas de Osmar Gomes e parece ter
marcado-o de alguma forma. Curioso que outro elemento quase passa despercebido, e não
aparece em nenhuma das duas entrevistas: a perda de companheiros na tomada de Montese. O
primeiro indício aparece em seu diário, quando o expedicionário registra seus passos na
referida batalha:
A 14 de abril saímos de às 4 horas da manhã de Lé Bons para a base de partida. Às
10 horas foi desencadeada a paragem geral. Às 10 e 10 iniciamos a progressão, às 12
horas atingimos o primeiro objetivo, às 5 horas atingimos o 2º e às 6 horas atingimos
o objetivo final, fazendo 29 prisioneiros e entramos no morro de Para-Vento. Neste
combate, perdemos nosso camarada Sgt. Roberto e o Sol. Osvaldo344
.
A perda de dois camaradas surge de forma indicativa apenas. O expedicionário não
indica a condição dessas perdas na batalha de Montese, mas elas aparecem e estão registradas.
Outro indício interessante, que complementa a morte de um desses seus companheiros, está
em seu álbum de fotografias, onde encontramos um retrato de bodas de prata datado de 22 de
junho de 1943345
, com a seguinte dedicatória no verso: “Lembrança e Benção e que Deus te
342
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia. 343
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 344
Diário. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef). 345
ANEXO 05 – Álbum de fotografias. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no Centro de
Memória da FUNEDI (Cemef).
128
guie em todos teus caminhos, são os ardentes votos de teus pais”. Essa fotografia tem a
seguinte descrição de Osmar Gomes:
Fotografia encontrada com o Sargento Roberto Boering de Petrópolis – Estado do
Rio. Heroicamente tombado em combate no dia 14 de abril de 1945, às 4 horas da
tarde, ao atingirmos a cota 824, no moro do “Para-Vento” – Montese.346
Sobre o soldado Osvaldo, citado no diário, não restou nenhum indício escrito.
Contudo, em relação ao sargento Boering, ainda temos outros elementos minimamente
significantes. Na entrevista realizada em 2004, enquanto folheava seu álbum de fotografias,
Osmar Gomes se detém por alguns instantes na fotografia dos pais do sargento Boering, e diz
o seguinte: “Esse aqui é alemão, o filho dele foi pra guerra e morreu lá (...) ele era do meu
pelotão (...) ele era descendente de alemão”.
Quando da digitalização do acervo de Osmar Gomes, sua filha Tânia também conta
uma história sobre essa referida fotografia dos pais do sargento Boering. Segundo ela, seu pai,
o veterano, teria levado a fotografia para devolvê-la aos pais de Boering, mas esses se
recusaram a aceitá-la347
. Na entrevista com Jacy Gomes, irmã do veterano, surge novamente
esse momento da morte desses companheiros de seu irmão durante a tomada de Montese:
Ele me contou um fato, e esse não tem anotado... Que ele estava com outro rapaz,
que é mineiro também, e esse rapaz tinha ido assim, voluntário, porque o Osmar foi
voluntário quando ele foi servir o regimento e que ele foi até sargento, ele fez o
curso lá, mas pra guerra ele não foi voluntário, ele foi convocado, e esse outro rapaz
foi voluntário... E eles estavam na mesma trincheira, na casamata, como eles
chamavam, escondidos no mato, e uma granada, uma bomba que veio, o outro era
um rapazinho frágil e tudo, e o outro morreu perto do Osmar, isso ele contou pra
nós, mas não tem nada escrito348
.
Infelizmente, não podemos explorar muito a fala de Jacy Gomes porque ela não nós dá
muito poucos elementos no sentido de identificar qual era o companheiro de Osmar que ela
descreve: aparentemente poderia ser o soldado Osvaldo, visto que ele era um voluntário
mineiro, e sabemos que o sargento Boering residia no Rio de Janeiro. Contudo, a fala da irmã
nos mostra que essa era uma questão bastante delicada para o veterano, era quase um segredo,
um não-dito, e que toda a trama da morte desses seus camaradas não se fez presente em
346
Dedicatória no verso de fotografia transcrita. Álbum de fotografia. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira.
Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef). 347
Essa informação foi relatada pela filha de Osmar Gomes, durante o processo de digitalização do acervo do
veterano, mas, infelizmente, essa fala não foi registrada na forma de entrevista audiovisual. 348
ROMEIRO, Jacy Gomes: depoimento [2011]. Belo Horizonte, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares.
129
nenhuma das duas entrevistas; talvez também não estivesse presente em seus relatos orais
públicos. Contudo, esses elementos escapam de alguma forma, sejam nas fontes escritas ou
mesmo nos relatos orais desse veterano.
A tomada de Montese, em 14 de abril, foi descrita pelo veterano como pior do que as
batalha no Monte Castello. Talvez as mortes de seus companheiros próximos o tenham
afetado de forma mais contundente. Interessante notar que esse episódio da morte de seus
próximos se passa no mesmo dia em que ele relata ter combatido no cemitério; coincidência
ou não, o elemento da morte aparece nesse dia de forma bastante explícita. Infelizmente, é
impossível saber se, de fato, existem associações entre esses dois elementos, mas, ainda
assim, resta a pergunta: a descrição da batalha do cemitério em Montese seria uma forma de
expor a morte de seus camaradas de pelotão naquele mesmo dia? Infelizmente, a resposta a
essa pergunta é algo improvável e talvez impossível.
Osmar Gomes participou de várias outras ações de combates, patrulhas e tomada de
posições e localidades inimigas. Entretanto, esses momentos são menos retratados em suas
fontes; eles aparecem de forma bastante fragmentada e sempre em pano de fundo. Há uma
espécie de não-dito estratégico, momentos que são completamente evitados nos relatos do
expedicionário e que, talvez, remetam a situações de extrema violência, a visões
especificamente traumáticas da guerra.
As guerras modernas são vistas por muitos como causadora de traumas bastante
profundos. É muito difícil aceitar que combatentes que estiveram nas linhas frente não tenham
sido afetados de alguma forma pelas situações extremas a que são expostos e de que, em
alguns casos, são os próprios causadores. A maior parte desses sujeitos é afetada de alguma
forma. Pensar em combatentes que não são afetados pela condição de “matar ou morrer” é
pensar em alguém que não tem o mínimo de respeito pela vida humana, é pensar um sujeito
minimamente perturbado, sobretudo, se levarmos em conta que a maior parte do efetivo da
FEB foi composto por cidadãos comuns e não por soldados profissionais349
.
A guerra enfrentada por esses jovens não é gloriosa; a tarefa de honrar a Pátria não é
heroica, pois nas guerras as pessoas morrem, seus corpos e suas almas são mutilados pelo
horror e pela bruteza que encontram nos campos de combate. O heroísmo e a glória, tão
349
Sobre a questão do trauma de guerra ver: TICK, Edward. War and the soul: healing our nation's veterans
from post-traumatic stress disorder. Quest Books, 2005.
130
aclamados pelas propagandas ufanistas difundidas pelos governos, destoam profundamente
dos relatos daqueles que estiveram “face a face com a morte”350
.
Os soldados cumprem a tarefa rotineira de matar outras pessoas. O seu serviço, em
última instância, é levar o outro à completa submissão e, no extremo, causar a morte. Mas
como é possível aos combatentes dar sentido à condição de matar outros seres humanos,
outros iguais a ele mesmo? Devemos considerar que a guerra cria um espaço em que a
violência impera e matar faz parte das tarefas rotineiras dos combatentes. Contudo, a
sociedade, em tempos de paz, não é um espaço da violência; ao contrário, a violência e a ação
de matar sempre são vistos como atos extremamente reprováveis.
As atividades de patrulhas que muitos dos soldados da FEB realizaram na Itália
envolveram a defesa de regiões recém-tomadas ou a identificação das cercanias de localidades
em posse dos nazistas. As ações de patrulha, de forma geral, foram atividades muito
perigosas. Osmar Gomes relata uma patrulha em específico de que ele participou na Itália:
Participei muito (...) as patrulha eram designadas, por exemplo, vinha uma ordem do
regimento, pra nós que estava aqui descansando, recebia a ordem pra ir lá (...), por
exemplo, aí nós marchava pra lá, até reconhecer lá, as casas tudo, se não tinha
inimigo lá... Eu fiz muita patrulha num lugar, chamava “Três Casa”, nós íamos lá, o
alemão ia, saia embora, nós chegávamos e entravamos, tomava conta da casa pra vê,
até, o alemão já tinha ido embora... Eu comandei um pelotão lá, um mês lá, pro
tenente de pelotão, era o tenente Moacir, e ele era meio doido, muito doido (...) nós
fizemos uma patrulha, e o alemão viu que nós íamos pro lado deles, abriu um
círculo, por exemplo, daqui até lá, pra nós entrar e eles fechavam o círculo embaixo,
nós ficava preso, né, mas nós desconfiamos o que eles iam fazer, nós comunicamos
o major, e foi mais soldado brasileiro, nós contra-atacamos e tocamos os alemães
pra longe do... do lugar lá, que nós estávamos (...) era perigoso (...) eu mesmo perdi
muito... Perdi uns três do meu grupo, o cabo Aragão do grupo de combate, ele foi
ferido, teve que vir embora pro Brasil, porque foi ferido na perna (...) as patrulhas
corria mais risco, porque a gente encontrava por acaso, né, por exemplo, eu ia aqui
pra encontrar, pra... reconhecer lá (...) e por acaso encontrava uma patrulha alemã lá,
aí dava combate, a gente tinha que atirar, ou matar ou morrer, como se diz (...)351
.
As patrulhas expunham os expedicionários a condições extremamente adversas. Não
se podia prever o que aconteceria numa patrulha, e os encontros com tropas inimigas eram na
maior parte das vezes violentos. Havia certo horror relacionado às atividades de patrulhas,
uma tarefa rotineira de matar e morrer, como diz Osmar Gomes. Entretanto, as patrulhas
também assumiam outro aspecto; às vezes, os combatentes presenciavam momentos de
350
Sobre essa forma de se enxergar a guerra moderna, ver: REMARQUE, Erich Maria. Nada de novo no front.
Trad. Helena Runyanek. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1974. 351
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia.
131
trégua, outras vezes situações um tanto quanto cômicas. O expedicionário relata outras
patrulhas que realizou nessa localidade denominada “Três Casa”:
Nesse lugar de Três Casa eu fiz muita patrulha na Três Casa e o alemão tava lá
dentro, um dia eu fiz uma patrulha lá, eu cheguei e entrei num prédio das Três Casa
embaixo, e andei lá olhando, e lá em cima tinha alemão e eu não vi, aí eu recuei,
quando eu recuei e já tava uns seiscentos metros das três casa os alemão desceram e
saíram... Nesse lugar, nas “Três Casa”, nós ficamos no inverno, então, tem aquele
negócio, toda semana mandava uma patrulha verificar se o alemão ainda tava lá, mas
ficou tão, como diz o outro, tão rotineiro que a gente chegava num morrinho antes
das três casas, abanava a mão pro alemão, ele abanava a mão pra gente, aí a gente
dava uns tiro pro lado deles, pra dizer que manteve contato, o alemão escondia e
nós vinha embora pra nossa trincheira cá atrás (...)352
.
Outro elemento que aparece nos relatos de Osmar Gomes é relativo aos períodos de
folga nos acampamentos e aos momentos de lazer que os combatentes recebiam depois de um
tempo nas frentes de batalha. No álbum fotográfico do expedicionário, ele registra a seguinte
frase: “Nas tréguas das lutas era o banho, a limpeza da mochila, os passeios, o repouso e o
baralho para “matar o tempo””353
. Os períodos de permanência dos expedicionários nas
frentes de batalha são, na maior parte das vezes, relatados com momentos severos e de
grandes privações, seja pela natureza cruel da guerra ou pelas condições climáticas adversas
que esses enfrentaram:
Quando fazia um mês, ia outra tropa nos substituir, nós vínhamos pra retaguarda pra
tomar banho, fazer barba, porque lá no morro nós não tinha nem água pra tomar
banho, e a água pra gente tomar, os burros que subia o morro, nem... nem, nem carro
de jipe tinha jeito de subi, ia no lombo dos burro, a hora que levava a boia pra gente,
a água dividia pra gente tomar, nós recebia a ração de água. E a alimentação lá ia
nuns latões grandes assim, chegava lá, punha lá nos reunia o pessoal e dividia, né
(...)354
.
As privações vividas pelos expedicionários nas frentes de batalha eram, de certa
forma, recompensadas por períodos de descanso nos acampamentos e momentos de folgas,
utilizados pelos pracinhas para se divertir de alguma forma. As formas mais usuais de lazer
eram jogos de baralho e o futebol dentro do acampamento, e ainda bailes em localidades
352
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 353
Álbum de fotografias. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI
– CEMEF. Ver: ANEXO 06 – Álbum de fotografias. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no
Centro de Memória da FUNEDI (Cemef). 354
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares.
132
italianas já em poder dos aliados. Osmar Gomes descreve um pouco acerca desses bailes de
que os expedicionários participavam:
No fim de semana, a gente vinha tomar banho, fazer barba, tudo, e depois ia pro
baile dançar, isso era pra distrair os soldados, né... E lá o ingresso era uma moça, e
pra entrar pra dançar tinha que entrar com uma moça italiana lá, então nós arranjava,
e tinha muita sabidinha, como em todo lugar, elas ficavam só levando brasileiro lá
pra dentro, chegava pegava um, levava, pegava outro e levava, no fim o salão era
quase só homem, porque moça não entrava quase nenhuma (...)355
.
Esses bailes não eram a forma exclusiva de contato entre os expedicionários
brasileiros e a população italiana. Durante o período de ocupação das tropas nazistas na Itália,
grande parte da população daquele país foi vitimada pelas misérias e privações advindas da
guerra. A escassez de toda sorte de gêneros em meio à população italiana fez dos soldados
aliados uma espécie de acesso indireto a certos itens que não existiam mais nos mercados
italianos. Os negócios entre soldados e a população se davam de maneira informal e
permitiam aos italianos, minimamente, acesso a alguns produtos de necessidades básicas.
Osmar Gomes fala sobre a questão da escassez de vestimentas e as alternativas encontradas
pela população italiana para tal problema:
Lá num tinha... Roupa, tudo tinha acabado pra vender, nós recebia cobertor né,
aqueles cobertor de lona fina, e vendia pro italiano, aí as moças pegavam e faziam
blusa e saia, conjunto, pra elas dessa roupa, sapato a gente vendia, porque a gente já
tinha, aí era só falar “meu sapato está rasgado” e eles mandava outro, tinha o... O
nosso (...) armazém que era pra substituir tudo, né, armamentos, roupa, cobertor,
sapato, camisa de baixo branca, camisa de meia, né, e... Cueca, meia que a gente
usava, aquelas meias de lã, né, que vinha até o meio do joelho (...)356
.
A maior parte da população italiana com que a FEB teve contato no norte daquele país
estava literalmente na condição de reféns dos alemães. As ações de tomada das localidades,
vilarejos e cidades fizeram com que os expedicionários brasileiros ficassem conhecidos pela
população italiana como liberatori, os libertadores da Itália. É importante ressaltar que, desde
as primeiras ações no sul italiano, as tropas aliadas passaram, na maioria das vezes, a ser
recebidas como libertadores pela população italiana357
:
355
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia. 356
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 357
Sobre obras italianas que falam sobre a FEB, ver: GIANNASI, Andréa. II Brasile in guerra: la FEB nella
campagna d'Italia. Tese. Universidade de Pisa, Itália, 2000; GABRIELE, Mariano. La Forza di Spedizione
Brasiliana. Itália: Ufficio Storico SME, 1986.
133
Nós chegamos numa cidade de tarde, tinha um dormitório do alemão e nós
acampamos ali, a cidade na beirada de um rio, um dia de manhã nós atravessamos o
rio de canoa e entramos na cidade, mas já não tinha mais ninguém, eles já tinham
corrido, só tinha o pessoal, até aconteceu um dado interessante que os italianos
ficavam na berada da rua dando vinho pra nós, aquele vinho espumante e eles falava
“graças... graças a Deus que vocês chegaram, brasiliano” (...) e o italiano
agradecido, as moças vinha abraçavam a gente “graças a Deus vocês chegaram pra
nos libertar”, dava vinho pra nós tomar, vinho branco, porque nos não podia sair de
forma, ia... Aí, beirando as casas pra proteger, e as moças vinham correndo abraçava
a gente, dava beijo no rosto, né, aí eu até acho interessante, que eu tava passando e
veio um casal de velhos, “é meu filho, até que enfim você veio nos libertar”, aí que
eu fico comovido até, que as moças era farra, né, agora o caso lá dos velhinhos, né,
vê que eles estavam comovidos mesmo.358
Essas privações levaram os italianos a buscar várias formas e estratégias de
sobrevivência, dentre as quais Osmar Gomes destaca a questão da prostituição de moças na
Itália. A prostituição foi uma saída para que algumas jovens e suas famílias pudessem tirar
algum proveito da guerra e conseguir mais dinheiro e recursos para sobreviverem naquele
momento de privações.
Prostituição, lá, era uma coisa medonha, você ia numa, por exemplo, numa casa de
prostituição, entrava com a moça lá pro quarto, quando acabava você pagava, ela
chegava na porta da casa “Baba” jogava o dinheiro pro pai e saía pra rua arranjar
outro, a prostituição foi uma... Era o que o nosso capelão, nosso padre lá falava,
muito, “gente, vocês pode fazer o que quiser, mas não aproveite da miséria, não”359
.
Alguns elementos que aparecem nesse trecho do relato de Osmar Gomes são
relevantes. Primeiramente, o fato de ele narrar todo esse episódio utilizando o pronome
pessoal “você”. Fazendo isso, ele se distancia da ação, e conta uma história de outros e não a
dele próprio. O expedicionário se afasta da ação ao mesmo tempo em que apresenta a postura
do capelão militar de não se aproveitar da miséria humana, postura que o expedicionário
parece tomar para si próprio.
Além dos bailes na Itália, e das casas de prostituição que Osmar Gomes classifica
como uma “coisa medonha”, ele fez alguns amigos italianos durante a guerra. Em seu álbum
de fotografias, ele dedica duas páginas a esses amigos. Na primeira página, encontramos a
dedicatória que diz o seguinte: “Os italianos souberam ser acolhedores e amigos”. Podemos
ver uma foto retratando Osmar Gomes, três moças e outro expedicionário não identificado,
além de podermos perceber que uma fotografia foi retirada do álbum. Na segunda página,
358
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 359
Ibidem.
134
também se encontram mais duas fotografias. Uma retrata uma moça italiana e nela está escrito
“uma (bionda) italiana de Castelazzo”; na descrição dessa fotografia, está anotado: “Rosa –
uma loira (bionda) e delicada italiana, entre as muitas que se fizeram amigas dos brasileiros”.
Na outra fotografia, podemos ver três pessoas, duas mulheres e um homem; na descrição:
“Um ricordo di Edmondo – Marisa e Ondina al‟loro caro amico Osmar. Asti 17-6-1945-
Italia”360
. Além dessas fotografias, existem postais que o expedicionário ganhou de seus
amigos italianos e vários endereços que remetem à Itália e que estão anotados em seu
diário361
.
Mas as relações do expedicionário e os italianos não se limitavam a amizades. Na
entrevista de 2007, podemos perceber que Osmar Gomes teve uma namorada na Itália, apesar
de ser algo que aparece furtivamente durante a entrevista, uma espécie de silêncio, de segredo,
algo que beira uma confissão:
Eu tinha uma família lá, italiana, fiquei muito amigo deles, fiquei, como diz outro...
Fiquei, na verdade, estava namorando a moça, né, e ela tinha a mãe e o irmão, o pai
já tinha morrido, eu até tenho retrato deles aí, no meu álbum, tem que perguntar o
Delber (...)362
.
Em todas as fontes, a questão da namorada italiana aparece em apenas dois momentos,
na entrevista realizada em 2007 e numa das cartas que Osmar Gomes recebeu de sua irmã na
Itália. Nessa correspondência, podemos perceber que, talvez, não se tratava apenas de um
relacionamento superficial, mas de algo que o expedicionário considerava muito. O trecho da
carta de Jacy Gomes parece ser uma resposta à outra carta que Osmar Gomes enviou a sua
irmã, à qual não tivemos acesso:
Então, está gostando de uma italianinha? Quem sabe você vai trazê-la para junto de
nós? Se ela for boazinha, ficaremos satisfeitos. Eu tinha vontade de ver uma
fotografia da tal363
.
Infelizmente, não podemos dizer muito acerca dessa namorada italiana de Osmar
Gomes. Algumas questões podem ser levantadas: o veterano pretendia trazê-la ao Brasil?
360
Ver ANEXO 07 – Álbum de fotografias. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no Centro de
Memória da FUNEDI (Cemef). 361
Diário. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef). 362
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 363
Carta de Jacy Gomes enviada a Osmar Gomes no dia 30 de abril de 1945. Acervo Digital Osmar Gomes de
Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef).
135
Suas intenções eram de fato se casar com essa moça? Contudo, essas são perguntas sem
respostas, já que muito pouco restou sobre essa ragazza. Não sabemos seu nome, nem
qualquer indicação de que ela esteja em algumas das fotografias do álbum; talvez seu retrato
seja aquela ausente, mas não podemos afirmar com certeza.
Para além dos contatos com a população italiana, os brasileiros estiveram ligados a um
universo bastante plural, o constante contato com os alemães e o próprio caráter multicultural
das tropas que compunham o V Exército aliado fizeram das frentes de combate do norte
italiano um local de intensas trocas culturais. Osmar Gomes relata o V Exército aliado como
um local onde se encontravam diferentes tropas de diversos países:
Tinha africano, tinha brasileiro, tinha mexicano, todo país pequeno que entrou na
guerra, que mandou força igual a nossa, incorporou tudo no quinto exército, o quinto
exército era tudo de gente de outras nação, tinha americano também, mas, mais era
de outra... Do Canadá, tinha muita gente também, né, africano tinha muito e
brasileiro, então, era muita gente, e combinava tudo bem364
.
As tropas estadunidenses, ou as tropas “americanas”, como se refere Osmar Gomes,
aparecem de forma menos pontual; os americanos eram vistos a distância, e não
estabeleceram grandes vínculos com as tropas brasileiras. Contudo, no relato do
expedicionário, os americanos aparecem de forma bastante positiva:
A gente encontrava pouco, porque, por exemplo, o norte-americano estava aqui (...),
nós ia substituir eles pra eles ir descansar, nós chegávamos, entrávamos no lugar
deles e eles iam embora, e depois a dificuldade de língua, a gente não entendia, né,
porque, por exemplo, eu não falava inglês, não falo (...) agora, o americano, muita
gente fala deles mais tem... Eu sou a favor do americano, nós tivemos lá, por
exemplo, um ano na Itália, o americano é que sustentou a gente lá de tudo, de
comida, tanto quando nós fomos o navio levou carne seca e farinha de mandioca, o
americano não deixou descarregar, não, deu pro italiano, porque diz que soldado não
podia comer carne seca nem farinha de mandioca, porque o almoço que o americano
dava pra nós era almoço tudo brasileiro, tinha arroz, feijão, macarrão e uma verdura,
né, agora, à tarde, quando era janta, que era americana, era tudo enlatado, né, carne
de porco, tudo... lá, no Natal, lá nós comemos peru, lá, o americano mandou peru
pra, pro nosso rancho e fez o peru e nós comemos peru no Natal. (...) O americano
dava apoio a todo mundo.
A percepção de Osmar Gomes acerca dos estadunidenses é bastante superficial.
Segundo seu relato, os americanos podem ser vistos como grandes benfeitores das tropas
brasileiras. De fato, as tropas estadunidenses ficaram com o dever de cumprir os acordos
estabelecidos entre o governo brasileiro e estadunidense para a manutenção da FEB na
364
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares.
136
Itália365
. Entretanto, o relato do veterano não leva em consideração a existência desses
acordos que justificavam o esforço de custeio das tropas brasileiras na Europa pelos
estadunidenses. Vários fatores podem contribuir para essa percepção, e devemos considerar
que ele pode não ter tido qualquer acesso às informações sobre esses acordos entre brasileiros
e aliados para o envio e a manutenção da FEB na Itália.
Outro ponto pertinente sobre essas relações com tropas de diferentes nacionalidades é
a forma com que o veterano se refere aos alemães. Nos relatos do expedicionário, as tropas
alemãs não aparecem como o Exército poderoso constituído pelos nazistas
Não! O exército alemão, porque já tava no fim da guerra, e já tinha morrido muitos e
mais era muito novo, era tudo uma classe de 16 anos, 17 e 18, é uma meninada, mas
eles respeitavam a gente muito, por exemplo, prendiam, eles entregava os trem tudo,
né, e num tinha... Não faziam reação nenhuma, depois que eles entregavam, né
(...)366
.
As derrotas alemãs e a ampliação do uso de tropas já experimentadas nas campanhas
do leste, contra os soviéticos, acabaram por expor uma realizada extrema para a Wehrmacht,
tendo a necessidade de recrutar adolescentes alemães nas linhas de frente europeias.
Entretanto, devemos levar em conta que esses jovens soldados alemães não eram apenas
“crianças despreparadas” que compunham um “exército deficiente”, como fazem crer alguns
autores367
. O nazismo se preocupava em demasiado com a mobilização e o treinamento de sua
população. A Juventude Hitleriana instituía que todo jovem alemão, a partir dos 10 anos,
deveria integrar, obrigatoriamente, essa organização de caráter paramilitar. Desde 1936,
crianças alemãs eram levadas a um ambiente extremamente militarizado e recebiam
treinamento de guerra mesmo antes de seguir, de fato, para a Wehrmacht368
.
Neste sentido, não podemos considerar esses jovens soldados alemães como meras
crianças despreparadas. Evidentemente, eles também não podem ser comparados aos
veteranos alemães que lutavam na guerra desde 1939. Mas a escassez de efetivos junto às
tropas alemãs fez com que a Wehrmacht arregimentasse jovens alemães nas linhas de frente
do norte italiano369
. Osmar Gomes relata alguns episódios sobre seus encontros com tropas
365
MOURA, Gerson. Op. Cit., 2012. pp. 81-153. 366
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 367
WAACK, Willian. As duas faces da glória. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 368
CLAY, Catrine & LEAPMAN, Michael: Master race: the Lebensborn experiment in Nazi Germany.
Publisher: Hodder & Stoughton, 1995. 369
ERICSSON, Kjersti & SIMONSEN, Eva. Children of world war II: the hidden enemy legacy. Nova York:
Berg Publishers, 2005.
137
alemãs na Itália durante a guerra – neste relato, podemos identificar alguns elementos bastante
significativos:
Um dia, eu tava num posto avançado, posto avançado é, por exemplo, (...) porque se
o alemão viesse esse pessoal do posto avançado dava o sinal primeiro pra num pegar
de surpresa os outros cá embaixo, eu tava num posto avançado, num... num meio
morrinho, assim, de lado, eu fui e fiz uma trincheira dentro da terra, cobri com folha
de zinco, chegava a gente arranjava, a gente pedia e o comando dava, e pôs terra por
cima, e ficou só a cerqueira pra por a metralhadora e a porta, que era camuflada, era
de zinco e eu coloquei ramo na porta, você fechava ela por dentro, quem passava na
estrada não via a porta, pensava que era mato, né, (...) e lá dentro nós tinha tudo,
tinha fogãozinho (...) de carvão, né, pra esquentar café, tudo, porque nós ficava a
noite inteira acordado, que disser, eu não, os soldado, de duas em duas horas a gente
trocava, por exemplo, eu tinha dez soldados, dava pra trocar a noite inteira (...)
soldados só ficava duas horas. E uma noite eu tava dormindo e o soldado me bateu
com o pé, “sargento Osmar... tem gente aqui na frente, tem inimigo aqui na frente”,
aí eu levantei, olhei e, de fato, tinha três soldados alemães lá... na minha frente,
como daqui... uns 300 metros da onde que eu tava, aí eu falei, “dá uma rajada de tiro
lá perto deles, pra eles deitarem pra nós... nós comunicar com o capitão da
companhia”, ai ele deu uma rajada, eles deitaram e eu comuniquei com o tenente do
meu pelotão, porque eu não podia sair, porque lá tinha só seis soldados, era eu e seis,
se eu mandasse três lá pra prender eles, eu ficava desguarnecido, né, aí eu pedi o
capitão pra mandar um outro grupo pra ir lá prender, aí o capitão ordenou, veio
outro grupo de combate, mais um sargento e dez soldado, aí ele foi lá, o outro
sargento, eu indiquei onde que ele tava deitado, o outro sargento foi lá e prendeu os
três alemão, até eu lembro muito o que o alemão falou pra gente, “hoje, quando me
mandaram fazer essa patrulha, eu sabia que eu não voltava porque estava aqui era
brasileiro”, os alemão tinha muito medo dos brasileiros, medo assim de combate,
né, porque diz que brasileiro era bom pra combater, andava de rastro no chão igual
cobra370
.
Nesse trecho, o veterano apresenta sua ação de forma bastante consciente.
Aparentemente, ele decide não matar o inimigo e prendê-los e faz com que isso se realize. É
interessante notar que essa atitude de Osmar Gomes, em preservar a vida humana, é repetida
em outro documento. Segundo um registro de atividades do expedicionário, durante o período
da guerra, encontrado no 11º R.I. de São João Del Rey, o expedicionário teria feito outra ação
muito parecida com a citada acima:
Fevereiro: A 6, foi público o seguinte elogio do Cmt. da 9ª Cia. levava o terceiro-
sargento Osmar Gomes de Oliveira, comandante da posição de F.A., diante do qual
foram aprisionados os elementos inimigos pela calma e sangue frio com que agiu,
deixando que estes se aproximassem à certa distância de sua posição sem abrir fogo,
e, depois, orientando a força de sua arma automática de maneira a não permitir o
retraimento inimigo371
.
370
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 371
Documento arquivado na pasta da 9ª Cia – Nº 202 no arquivo 11º R.I. São João Del Rey, Minas Gerais.
Intitulado: 11º Regimento de Infantaria. Alterações ocorridas com o militar abaixo designado.
138
O mais interessante é notar que esse documento é um registro interno de ação de
militares, guardado pelo 11º R.I., e vários dos episódios descritos nesse documento não
aparecem nas narrativas do veterano. De uma forma ou de outra, é significativo notar que, por
várias vezes, Osmar Gomes leva a crer que suas ações em combate induziram à rendição dos
inimigos, seja nessa citação acima, no episódio do cemitério a que também já nos referimos
anteriormente, ou mesmo nesse registro do 11º R.I.
Em seus relatos, o veterano se distancia o quanto pode da morte. Ele não descreve
episódios de morte, seja de seus companheiros ou de militares inimigos; ela aparece apenas de
forma distante – a morte é uma sombra quase indecifrável em seus relatos, e ela pode ser
percebida e se faz presente, mas em poucos momentos o veterano a enfrenta enquanto fia seus
testemunhos.
2.3.4 – O fim da guerra na Itália e o expedicionário viajante
Depois de longos meses de intensas ofensivas aliadas contra as forças da Alemanha
nazista e dos remanescentes fascistas da República de Saló, as forças aliadas conseguiram
impor uma rendição às tropas do eixo na Itália. Desde abril de 1945, as forças do eixo na
Itália vinham se retirando em todas as frentes em virtude das pesadas perdas sofridas em
combates, Em 29 de abril desse mesmo ano, o general Heinrich Von Vietinghoff assinou a
rendição de todos os exércitos alemães na Itália e, formalmente, foi declarado o fim das
hostilidades na Itália no dia 2 de maio de 1945372
.
No dia 4 de maio, Osmar Gomes chegava à cidade de Alessandria, no norte da Itália,
onde recebeu a notícia do fim da guerra373
. Esse momento também aparece em seus relatos:
nas duas entrevistas, ele fala sobre o fim da guerra e o que acontece logo depois:
O dia que eu fiquei sabendo que a guerra tinha acabado, eu estava lá na divisa da
França, o lugar lá (...) Alessandria! Eu estava em Alessandria no dia em que a guerra
acabou, e eu saí pra rua, a gente estava na cidade, e eu saí pra rua e encontrei os
companheiros e aquela festa, os americanos, o italiano fazendo festa igual carnaval,
aí eu fiquei sabendo que a guerra tinha acabado, que o alemão tinha entregado (...)
comemorou bastante, primeiro o brasileiro, tinha muito brasileiro no meio, que eu
não tinha muito entusiasmo, não, pra essas coisas eu sempre fui meio fechado, então
eles estavam fazendo a festa pra lá e eu pra cá374
.
372
RUSH, Robert S. US infantryman in world war II: Mediterranean Theater of Operations 1942-45. Osprey
Publishing, 2002. 373
Diário. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef). 374
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia.
139
De Alexandria, nós voltamos pra... Onde tem aquele Vesúvio, né... Tem aquele
vulcão (...). Nápoles... Voltamos pra Nápoles, e acampamos lá perto de Nápoles,
esperando o navio pra nos ir embora pro Rio, né... Lá nós acampamos (...) em uma
praia, tipo de uma praia, mas cheio de árvore de castanha, nós armamos as barracas
pra dormir lá de baixo, e lá nós ficamos um tempo, de lá eu fui até Roma,
passeando, né, fui em Veneza, passeando, fui em Turim... Mas tudo passeando,
porque tinha trem, tinha ônibus, nós não pagava, nós parava o trem, pegava e ia375
.
O fim da guerra é visto pelo veterano com pouco entusiasmo. Ele nota os festejos na
Itália, as comemorações de soldados e da população italiana, mas ele mesmo revela pouco
entusiasmo com essa notícia. Contudo, o final da guerra revela um novo momento da
passagem de Osmar Gomes pela Itália. Ele passa de combatente para um turista assumido. O
fato de os soldados não pagarem para se locomover de ônibus e trens fez com que o
expedicionário se aventurasse por várias cidades turísticas italianas. Em seu diário, ele nota
que, no dia 14 de maio, realizou sua primeira viagem “a passeio” pela Itália. Osmar Gomes
visitou diversas cidades e locais naquele país e, em seu diário, ele registra brevemente
algumas das cidades em que esteve: Veneza, Milão, Modena, Bologna, Pompéia, Asti, Roma
(local onde ele recebeu a benção do Papa Pio XIII). Algumas localidades também são
registradas, como o Castelo de Sant‟Angelo, o Coliseu e a Catedral de São Pedro. O
expedicionário também anota a visita que fez à cidade de Messina, na Sicília, sua ida até o
Monte Cassino e, por último, sua viagem à Ilha de Capri, em 24 de agosto de 1945376
.
Osmar Gomes visitou várias cidades e localidades na Itália, se deslocou por todo o
território daquele país, guardou uma grande quantidade de postais das cidades e locais em que
esteve. Sua coleção de postais compreende 13 coleções encadernadas com fotografias em
preto e branco, além de cerca de 50 postais avulsos. Apesar das indicações dos locais
visitados e da data dessas visitas, o expedicionário não registrou qualquer descrição dessas
viagens; os postais, em sua maioria estão em branco ou, no máximo, trazem escrito em sua
capa “lembrança de...” e a data em que essa viagem ocorreu.
No dia 12 de setembro de 1945, Osmar Gomes registra, em seu diário, o embarque no
navio de tropas USS General M. C. Meigs, o mesmo navio que o trouxera do Brasil para a
Itália.
Acho que foi setembro, que chegou um navio pra nós vir embora, o mesmo que
tinha nos levado, o “General Meigs”, era grande, um navio grandão, ele tinha uns
375
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 376
Diário. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef).
140
180 metro de largura e uns 300 de cumprimento, era um navio muito grande, era pra
transporte de tropa mesmo, que eles adaptaram ele, ele era... Porque, antes da guerra,
ele navio de passeio, né, de turnê lá nos Estados Unidos, então, eles adaptaram ele
pra transporte de tropa377
.
Já no dia 17 desse mesmo mês, o navio de tropas estadunidense ancorava no porto do
Rio de Janeiro, e Osmar Gomes, junto aos efetivos do segundo escalão da FEB, desembarcava
no Brasil, retornando definitivamente da guerra na Itália.
2.3.5 – De volta ao lar
Quando Osmar Gomes desembarcou no Rio de Janeiro, em setembro, as festividades
para receber os expedicionários já haviam terminado, e as grandes manifestações cívicas para
receber os pracinhas brasileiros aconteceram apenas no desembarque do primeiro escalão da
FEB, em 18 de julho de 1945; os demais expedicionários encontraram apenas familiares e
amigos que os aguardavam no porto378
.
Quando Osmar Gomes é questionado sobre as festividades para a recepção dos
pracinhas brasileiros na então capital do Brasil, ele afirma que “no Rio não tive festa
nenhuma”379
. Sua recepção ao chegar ao Brasil se resume ao reencontro com uma prima, que
ele não cita nem sequer o nome: “Eu desembarquei no segundo navio, aí ela gritou, „ô,
Osmar”; aí eu fui lá, ela me deu um abraço; ela morava lá no Rio mesmo”380
.
Do Rio de Janeiro, o expedicionário seguiu de trem para a cidade de São João Del
Rey. E, de São João, ele foi para a estação de Aureliano Mourão, e daí para sua casa, na
fazenda de seus pais381
. Na fazenda de seus pais, ele foi recebido com festa. Além de uma
fotografia na qual podemos ver o veterano e seus familiares na porta da sede da fazenda,
enfeitada com bandeirinhas, ramos e uma faixa com os dizeres “benvindo ao lar”, ele relata
um pouco acerca de sua chegada a sua casa: “Foi uma festa na fazenda lá, eu morava na
377
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 378
COSTA, Octavio. Op. Cit., 1985. 379
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia. 380
Ibidem. 381
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares.
141
fazenda, teve missa também na fazenda, teve baile, teve jantar, o meu pai ofereceu pros
conhecidos, né”382
.
Eu fui pra São João, de São João eu fiquei lá uns dias, tinha festa lá de
comemoração, depois de São João eu vim pra fazenda em Aureliano Mourão,
Aureliano Mourão... era uma estação lá, cruzava três trem, o que ia de Divinópolis, o
que vinha de São João e o que vinha de Lavras; a estação era feita num triângulo; lá
minha família me recebeu e meu compadre era dono de restaurante lá, deu umas
moça também com o um pessoal, aí eu fui pra fazenda (...) porque o trem chegou
cedo, aí eu fui pra lá e assisti à missa; de noite, meu pai com meus irmãos fizeram
baile pra nós dançar, eu fui bem recebido lá (...)383
.
Contudo, o fim da guerra para Osmar Gomes guarda ainda ressentimentos. Logo
quando chegou ao Brasil, a FEB já não mais existia, o Ministério da Guerra já havia tomado
medidas no sentido de desmobilizar a FEB antes mesmo de o primeiro escalão desembarcar
no Rio de Janeiro384
. Apesar de suas aspirações militares, numa das entrevistas o veterano
relata que, ao chegar no Rio, deu baixa e voltou para casa. No entanto, numa outra entrevista,
Osmar Gomes expõe seu ressentimento quanto a um fato ocorrido na Itália:
Eu cheguei no Rio e dei baixa, aí meu capitão que era o capitão Hugo, né, falou
comigo, “uai, Osmar porque que você vai dar baixa?” (...) lá na Itália houve uma
ordem do comando pra indicar um sargento pra ser promovido a tenente, aí no meu
pelotão, o capitão da Companhia, que era o capitão Hugo, indicou o sargento
Moacir, que era comandante de pelotão de morteiro, ficava lá na retaguarda. Eu
falei, “uai, capitão, lá na Itália o senhor indicou o Sargento Moacir, que ele ficava na
retaguarda e eu tava na linha de frente, agora aqui eu não vou ficar não, porque eu
vim pro Exército não para ganhar posto, foi pra defender a minha Pátria”; aí, eu fui
embora do Rio (...)385
.
Esse ocorrido apresenta uma faceta desse ressentimento, a promoção de um sargento
da retaguarda e não a sua, que, segundo seu próprio relato, é justificada pela sua atuação nas
linhas de frente, que o fez abandonar definitivamente o Exército. Contudo, ainda existem
outros elementos sobre essa questão. Numa carta do também terceiro-sargento da FEB,
Raimundo Nunes, amigo de Osmar Gomes, ele fala com o expedicionário sobre a questão da
promoção:
382
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia. Ver: ANEXO 08 – Álbum de fotografias. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira. Locado no Centro de
Memória da FUNEDI (Cemef). 383
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 384
COSTA, Octavio. Op. Cit., 1985. 385
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares.
142
Oxalá esta o encontre forte e rijo como sempre. Eu tenho passado relativamente
bem. Então, como vai de guerra e de atividades? Ontem lendo os boletins
regimentais, deparei com o elogio que lhe foi feito, elogio justo, digno da pessoa que
mereceu. Com isto, o sr. capitão contribuiu com quatro pontinhos para sua
promoção a 2º. Você já deve contar atualmente com 7.500 pontos, não é? Quando
voltarmos ao Brasil, você terá no braço mais uma branquinha! Eu sabia que o velho
Osmar, o mascote da nossa república, não teria pausa e que se revelaria aqui na linha
de frente386
.
Raimundo Nunes fala a Osmar Gomes com intimidade de amigos. Ele apresenta a ele
informações, aparentemente exclusivas, sobre suas possibilidades de promoção. Entretanto,
não temos como saber se de fato havia, por parte do terceiro-sargento, um desejo de ser
promovido dentro das fileiras do Exército Brasileiro. Além dessas indicações aos elogios que
Osmar Gomes teria recebido, e do número de pontos que esse vinha acumulando para
alcançar o patente de segundo-sargento, outra fonte fala desses elogios às ações do
expedicionário, o registro do 11º R.I. apresenta várias menções a ações exitosas desse
sujeito387
. Apesar desses indícios e dessas possibilidades que nos permitem falar que talvez
Osmar Gomes desejasse, de fato, ser promovido, e talvez estivesse ainda buscando cumprir os
requisitos para tal, não podemos ter certeza sobre esse desejo. No entanto, a indicação de
outro sargento ao posto de tenente o deixou bastante ressentido e o faz expor um discurso de
“defesa da Pátria”; que sua ida para a Itália foi motivada por sua vontade de defender sua
nação388
.
Os sentidos atribuídos à guerra pelo veterano são bastante contraditórios, e variam
conforme o momento em que é elaborado. Quando de sua convocação, em 1942, ele se refere
a ela como um “chamado da Pátria aos seus filhos para defendê-la” – esse discurso ufanista se
mantém, em certa medida, em 1945, quando o veterano já está de volta ao Brasil e escreve a
seguinte dedicatória:
Certamente não fugirá das nossas lembranças os fantasmas desta dolorosa guerra,
mas tudo passou... Voltei cantando sob a abençoada bandeira brasileira que levamos
aos campos de luta da Itália. Podem descansar vendo novamente juntos de vocês o
mano que souber ser brasileiro e sentiu-se feliz de ser expedicionário. Osmar – 28-
12-1954.389
386
Carta de Raimundo enviada a Osmar Gomes no dia 3 de fevereiro de 1945. Acervo Digital Osmar Gomes de
Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef). 387
Documento arquivado na pasta da 9ª Cia – Nº 202 no arquivo 11º R.I. São João Del Rey, Minas Gerais.
Intitulado: 11º Regimento de Infantaria. Alterações ocorridas com o militar abaixo designado. 388
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 389
ROMEIRO, Jacy Gomes. Op. Cit., 1986. p. 21.
143
Esse sentido novamente aparece quando ele responde ao capitão Hugo que foi à Itália
“defender a sua Pátria” e não por outro motivo. Contudo, na entrevista realizada em 2004,
Osmar Gomes apresenta outros sentidos da guerra, e novamente surge o ressentimento, agora
em relação ao tratamento destinado aos veteranos depois da guerra:
Eu digo o seguinte, os ex-combatentes foram toda vida muito desprezados, as
autoridades não ligam, porque quando nós estivemos na Itália, brigando pelo povo
brasileiro, nós tinha mais... e os nossos direitos são muito poucos, tem alguma
coisinha, né... Eu sou reformado, e eu era da ativa, ai, depois dei baixa, né... Eu
reformei como sargento, eu sou terceiro-sargento (...). Pra dizer a verdade, eu não
aprendi nada com a guerra, a guerra não era nossa, era do povo, que dizer, como os
alemães, italianos, também, tinham a guerra como uma coisa pessoal, igual nós
tivemos na Itália, nós brigávamos por uma obrigação, a gente cumpria uma ordem
só, eu acho que não estimulou nada não (...)390
.
Nesse relato, Osmar Gomes não só apresenta seu ressentimento quanto ao governo,
mas também sua estada na guerra como uma obrigatoriedade. Os sentidos de sua luta na Itália,
apresentados nessa última entrevista, podem ser um reflexo indireto do próprio ressentimento
para com o governo e a forma como os veteranos da FEB foram tratados, mas também
mostram que as formas de elaboração do passado são diversas e, às vezes, um mesmo sujeito
pode dar sentidos distintos ao seu próprio passado. O mais peculiar é que os sentidos não
mudam definitivamente, mas são sempre releituras feitas no tempo, o momento em que
passado e presente se encontram e no qual os relatos são proferidos. Longe de definir um
sentido único para a guerra de Osmar Gomes, encontramos sentidos plurais, que dialogam no
tempo, que se articulam com os elementos apresentados durante o testemunho, ora
considerando um ponto, ora outro, como diz o próprio Osmar Gomes: “A gente tem muitas
passagens na vida, né, quer dizer, umas fazem a gente esquecer as outras”391
.
´
390
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia. 391
Ibidem.
144
CAPÍTULO 3 – TENSÕES E CONFORMIDADES NAS MEMÓRIAS SOBRE A FEB
E A PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
3.1 – Memórias e testemunhos: disputas e conformidades no lembrar da guerra pelos
veteranos da ANVIFEB de Divinópolis – MG
3.1.1 – Memórias particulares: entre o social e o particular
Quando pensamos em lembranças ou memórias particulares, primeiramente pensamos
nas especificidades, em pontos de vista, em formas e maneiras bem peculiares de se entender,
julgar e significar um determinado passado. É assumir que as lembranças particulares não
afluem para uma formação natural, objetiva e passiva de uma pretensa memória coletiva392
.
As narrativas particulares devem ser entendidas como produções subjetivas, leituras, formas
de se olhar, julgar e sentir as lembranças do passado e as retomadas deste. Portelli nos lembra
que: “(...) não se deve esquecer que a elaboração da memória e o ato de lembrar são sempre
individuais: pessoas, e não grupos, se lembram”.393
Dito isso, podemos concordar que toda memória é particular, é elaborada e produzida
por uma subjetividade. Entretanto, não podemos esquecer que essas mesmas lembranças
particulares podem ser inseridas e estarem presentes no universo social, ou seja, as
lembranças também são potencialmente sociais394
.
Não queremos defender que a sociedade, as famílias, os grupos ou instituições
lembrem como um todo organizado e coeso. Contudo, devemos reconhecer que as lembranças
particulares, gestadas pelas várias e distintas subjetividades que compõem o universo social e
um incontável número de micro e macro esferas, são gestadas, influenciadas e influenciam o
social e também outras memórias pessoais. Devemos considerar que, ao mesmo tempo em
que as lembranças e os discursos são produções particulares e subjetivas, também interagem
com o universo social, isto é, são socializáveis.
Primeiramente, devemos considerar que as lembranças são produzidas e organizadas
internamente pelos sujeitos, e que essas lembranças são formulações que partem de retomadas
392
Sobre o conceito de memória coletiva, ver: HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad: Beatriz
Sidou. São Paulo: Centauro, 2006. 393
PORTELLI, Alessandro. Op. Cit., 1996. 394
Potencialmente, devido à ideia de que as lembranças de um determinado sujeito podem não ser
compartilhadas socialmente, seja porque são silenciadas e não ditas, esquecidas ou mesmo indescritíveis.
145
exclusivamente subjetivas do passado, constantemente significadas e ressignificadas,
evocando imagens, sons, cheiros e toda sorte de impressões e associações sensitivas e
significativas que impregnam as lembranças de um determinado sujeito. Partindo deste ponto,
podemos afirmar que as narrativas são sempre uma redução das lembranças internas dos
sujeitos395
. Contudo, é somente através das estruturas narrativas que os sujeitos podem
disseminar no social suas lembranças reduzidas e codificadas, pois, ao verbalizar um
complexo de impressões e associações sensitivas e significativas, eles tornam público aquilo
que era exclusivamente pessoal e que residia essencialmente no íntimo do seu ser.
Ao fazer essa redução de suas lembranças particulares a conjuntos de códigos
socialmente identificáveis, os sujeitos tentam transmitir, mesmo que precariamente, suas
experiências a outros sujeitos. Essa tentativa de transmissão se dá em determinados círculos
sociais, tais como a família, grupos de amigos, estudantes de um colégio, entre outros396
.
Nesses círculos, a memória particular é verbalizada e exposta a outros, é colocada a
julgamento e para apropriação de outros sujeitos. Nesses espaços, a memória pessoal pode ser
questionada, contestada, aprovada e apropriada de diferentes formas possíveis, inclusive pode
ser sistematizada junto a uma narrativa organizada sobre um determinado assunto, o que
Portelli chama de “formalização da memória”397
.
As relações estabelecidas entre diferentes memórias particulares no espaço público
constituem, de alguma forma, um universo de possibilidades de novos usos e apropriações
dessas narrativas. Os contatos e as trocas que podem ocorrer em diferentes espaços públicos,
entre sujeitos que testemunharam e compartilham um passado comum, sempre permitem
novas retomadas, ressignificações e reapropriações de elementos sobre o passado.
Não é o intento de se buscar uma verdade objetiva acerca dos fatos, mas de se pensar
que os sujeitos que compartilham um passado em comum e que constroem narrativas
particulares sobre esse passado podem ajudar a entender que tanto a escolha do que é
relevante para ser considerado como fato histórico como as possibilidades de se entender e
significar esse passado são produções subjetivas e, por isso, estabelecem um campo contínuo
de produção, retomada e discussão mnemônica sobre esse passado em questão398
.
395
PORTELLI, Alessandro. Op. Cit., 1996. Retomar discussão já apresentada no capítulo 2 desse trabalho. 396
E em cada um desses círculos as possibilidades de narrativa, daquilo que é dito e a forma como é dito, se
modificam. 397
Sobre conceito de formalização da memória para Alexandro Portelli, ver: Ibidem. 398
PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos: Narração, interpretação e significado nas memórias e nas
fontes orais. In: Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, nº 2, 1996, p. 59-72. Sobre essa questão ver também:
“Representações e „fatos‟ não existem em esferas isoladas. As representações se utilizam dos fatos e alegam que
146
Quando as memórias e os discursos particulares se tornam sociais e passam a buscar
um espaço de consideração pública, essas memórias acabam por se inserir num lugar de
disputas e tensões por reconhecimento público, seja na busca de outras narrativas particulares
ou formalizações gerais que confirmem e justifiquem os sentidos e juízos expressos em suas
próprias narrativas, ou ainda desacreditando, desmentindo ou colocando em dúvida narrativas
que contradizem elementos presentes em seu relato.
São nesses lugares públicos, de exposição das narrativas particulares, que existe a
possibilidade de uma espécie de formalização e também de contestação das memórias
particulares ou formalizadas. Segundo Portelli, esse processo de formalização da memória é
legítimo, mas não pode ser entendido como algo dado e natural, isto é, como uma espécie de
memória coletiva que se constitui por si só399
.
Essa memória pública, materializada em suas próprias narrativas e em seus
narradores gabaritados, nos livros de depoimentos e nas peças sacras, não só é
totalmente legítima, mas também está repleta de valores importantes, como
inocência, humildade, obediência, compaixão, perdão, solidariedade familiar e
grupal. Ela se fundamenta na experiência vivida e em emoções profundamente
sentidas. Mas não deixa de ser uma construção bastante ideológica e institucional,
distinta das memórias pessoais nas quais se baseia400
.
Assim, essas memórias públicas organizadas sempre constituem uma formalização,
logo uma generalização e redução de lembranças particulares, constituindo formas de
retomada de determinadas representações do passado, mediadas por valores, sentidos,
ideologias e forma de julgar, como Portelli afirma, sempre construções ideológicas e
institucionais401
. Devemos considerar que essas formalizações nunca constituem uma
narrativa uníssona e monolítica, mas expõem um discurso fragmentado, não homogêneo e
dividido, o que possibilita uma pluralidade de vozes e perspectivas diferentes sobre o passado,
num universo onde se apresentam disputas e tensões pelo estabelecimento de uma pretensa
são fatos; os fatos são reconhecidos e organizados de acordo com as representações; tanto fatos quanto
representações convergem na subjetividade dos seres humanos e são envoltos em sua linguagem. Talvez essa
interação seja o campo específico da história oral, que é contabilizada como história com fatos reconstruídos,
mas também aprende, em sua prática de trabalho de campo dialógico e na confrontação crítica com a alteridade
dos narradores, a entender representações.” In: PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val de Chiana
(Toscana 29 de junho de 1994): mito e política, luto e senso comum. In: AMADO, Janaina & FERREIRA,
Marieta de Moraes (Org.). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1996. 399
Ibidem. 400
Ibidem. 401
Ibidem.
147
memória coletiva, através de narrativas e versões plurais de um mesmo passado402
. Ou seja, é
preciso concordar que, socialmente, as memórias organizadas sobre um determinado passado
sempre são divididas. Portelli acredita que é necessária a ampliação desse conceito de
“memória dividida”403
:
(...) na verdade, quando falamos numa memória dividida, não se deve pensar apenas
num conflito entre a memória comunitária pura e espontânea e aquela “oficial” e
“ideológica”, de forma que, uma vez desmontada esta última, se possa
implicitamente assumir a autenticidade não-mediada da primeira. Na verdade,
estamos lidando com uma multiplicidade de memórias fragmentadas e internamente
divididas, todas, de uma forma ou de outra, ideológica e culturalmente mediadas404
.
Precisamos considerar que os sujeitos sempre são sociais, isto é, uma individualidade
última ou em essência é impossível ou impraticável, pois os sujeitos somente existem através
das relações que estabelecem com outros sujeitos, compartilhando, modificando e
transformando elementos sociais através de relações de interdependência entre eles. Logo,
ideologias, culturas e outras formas que mediam as relações entre os sujeitos podem ser
apresentadas nas narrativas particulares proferidas por uma testemunha.
Deste modo, é preciso lembrar a dialética proposta pelo sociólogo Norbert Elias acerca
da relação estabelecida entre indivíduos e a sociedade, na qual os sujeitos somente existem em
relações com outros sujeitos, compartilhando, modificando e transformando elementos sociais
através de relações de interdependência405
.
Longe de considerar os praças da FEB como “um sujeito” que, de forma natural,
constrói uma memória homogênea e pacífica sobre as experiências compartilhadas de forma
mais ou menos similar entre os milhares de praças brasileiros que experimentaram as
angústias da participação na Segunda Guerra Mundial. Precisamos reconhecer que cada praça
construiu uma narrativa própria, que guarda elementos específicos de sua experiência, cada
um constrói e significa suas memórias com sentidos e representações específicas, partindo de
suas perspectivas e formas mais particulares de ver o mundo. Contudo, ainda assim, devemos
considerar que esses sujeitos estão ligados a outros sujeitos através de relações sociais, que
402
Sobre o conceito de memórias em disputa, ver: ABREU, Marcelo Santos de. Os mártires da causa paulista:
culto aos mortos e usos políticos da Revolução Constitucionalista de 1932 (1932-1957). 2010. Tese (Doutorado
em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro. p. 77. 403
CONTINI, Giovanni. La memoria divisa. Osservazioni sulle due memorie della etrage del 29 giugno 1944 a
Civitella Val di Chiana. Trabalho apresentado na conferência internacional. In: Memory. For an european
memory of nazi crimes after the end of the cold war, Arezzo, 22-24 jun. 1994. 404
PORTELLI, Alessandro. Op. Cit., 1996. 405
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
148
compartilham suas experiências, histórias e mesmo um universo simbólico em conjunto com
outros indivíduos, e que essas relações sociais ficam expostas nas narrativas e discursos
particulares, que podem ser levados aos espaços públicos.
Elias atenta para o fato de que os indivíduos estão ligados em redes de relações de
interdependência, ocupam locais sociais específicos e cumprem papéis sociais específicos:
(...) cada pessoa que passa por outra, como estranhos aparentemente desvinculados
na rua, está ligada a outras por laços invisíveis, sejam estes laços de trabalho e
propriedade, sejam de instintos e afetos. Os tipos mais díspares de funções tornaram-
na dependente de outrem e tornaram outros dependentes dela. Ela vive, e viveu
desde pequena, numa rede de dependências que não lhe é possível modificar ou
romper pelo simples giro de um anel mágico, mas somente até onde a própria
estrutura dessas dependências o permita; vive num tecido de relações móveis que a
essa altura já se precipitaram nela como seu caráter pessoal. E aí reside o verdadeiro
problema: em cada associação de seres humanos, esse contexto funcional tem uma
estrutura muito específica. (...) Entretanto, esse arcabouço básico de funções
interdependentes, cuja estrutura e padrão conferem a uma sociedade seu caráter
específico, não é a criação de indivíduos particulares, pois cada indivíduo, mesmo o
mais poderoso, mesmo o chefe tribal, o monarca absolutista ou o ditador, faz parte
dele, é representante de uma função que só é formada e mantida em relação a outras
funções, as quais só podem ser entendidas em termos da estrutura específica e das
tensões específicas desse contexto total (...)406
Assim, ao pensarmos nas memórias construídas pelos praças da FEB, seja numa
instância mais particular ou mesmo nas formalizações e nos enquadramentos de uma memória
de grupo, estaremos pensando nessas redes de relações complexas estabelecidas entre esses
sujeitos e também nos significados que, de uma forma ou outra, influenciam e estão presentes
no agir e nas lembranças individuais desses sujeitos. Isso que dizer que o social sempre
permeia o individual, assim como o individual sempre permeia o social, e que essa relação
dialética estabelecida entre o social e o individual aparece nos discursos e nas narrativas
particulares sobre o passado.
Neste momento, pretendemos analisar as relações estabelecidas entre uma pluralidade
de narrativas e discursos produzidos por alguns veteranos da FEB, ligados, de alguma forma,
à seção regional da Associação Nacional dos Veteranos da FEB da cidade de Divinópolis,
Minas Gerais (ANVFEB – Divinópolis). Mais especificamente, pretendemos analisar como
alguns membros da Associação dos Veteranos da cidade de Divinópolis apresentam suas
narrativas sobre o seu passado e, consequentemente, sobre o passado da FEB no espaço
público da cidade de Divinópolis, e ainda vamos tentar compreender como esses diversos
discursos e narrativas particulares se relacionam no espaço público.
406
Ibidem, p. 22.
149
Acreditamos que essas narrativas particulares não confluem naturalmente e
passivamente para o estabelecimento de uma memória hegemônica e homogênea sobre a
FEB, mas que esses discursos e narrativas particulares se aproximam e se distanciam no
sentido de contribuir para uma maior difusão social e para a manutenção de uma constante
discussão pública sobre as memórias da participação desses sujeitos na Segunda Guerra
Mundial.
Neste sentido, as memórias particulares de alguns veteranos tentam reforçar uma
espécie de formalização pública sobre a participação dos praças na Segunda Guerra, isto é,
um desejo por parte de alguns membros desse grupo em constituir uma memória
pretensamente coletiva e hegemônica sobre essas questões ou, de forma mais delimitada, uma
memória desse grupo: os veteranos da FEB ligados à ANVFEB da cidade de Divinópolis.
Entretanto, essa memória de grupo não pode ser entendida como uma memória hegemônica,
homogênea e bem estabelecida socialmente; o que percebemos são memórias divididas,
narradores com motivações diversas que expõem seus discursos e narrativas em uma
variedade de locais e propõem, de forma direta e indireta, constantes reformulações dessa
memória que se pretende total acerca desse grupo.
Desta forma, devemos considerar que as narrativas de um único veterano, por mais
significativas que sejam, não dão conta de toda a complexidade desse passado. Contudo,
expõem uma possibilidade de acesso, leitura e julgamento do passado. A especificidade, aqui,
reside exatamente na possibilidade de que cada sujeito, em sua particularidade narrativa,
possa contribuir para uma ampliação das formas de se entender e julgar o passado. Isto é, cada
sujeito é, ao mesmo tempo, uma peça que compõe uma totalidade do real, e suas narrativas
criam um viés interpretativo, uma possibilidade única de julgar e significar esse mesmo
passado.
No segundo capítulo, analisamos as narrativas e o acervo organizado pelo veterano
Osmar Gomes de Oliveira, um complexo discurso narrativo e expositivo construído e
organizado por esse sujeito sobre seu passado, que apresenta, em alguns círculos sociais, suas
formas de entender a guerra. Na narrativa de Osmar Gomes, podemos perceber que ele
sempre faz referência à “associação dos expedicionários”, se identificando como membro
desse grupo de veteranos que compõem a Associação dos Veteranos de Divinópolis,
sobretudo nos momentos em que usa a terceira pessoa, o “nós”, para se referir ao grupo e a si
mesmo.
150
Nas suas narrativas, Osmar Gomes reconhece e afirma ser reconhecido por esse grupo;
ele admite que a ANVFEB seja o local desse grupo, dos veteranos da FEB que vivem em
Divinópolis. Nesse lugar, as narrativas e memórias desse veterano se encontram com outras,
de outros sujeitos, constituindo um espaço de possibilidades, de negociações e ordenações de
uma memória de grupo407
.
A relevância desse espaço de encontro dessas diversas narrativas plurais é porque
institui, mesmo que de forma reduzida, um lugar de discursos e narrativas convergentes e
divergentes, múltiplas possibilidades de entendimento e de associações sobre o passado,
formas subjetivas de retomada e organização das lembranças e, consequentemente, formas e
possibilidades plurais de associações e dissociação entre essas diversificadas narrativas sobre
esse passado. Portelli atenta que
(...) a história oral e as memórias, pois, não nos oferecem um esquema de
experiências comuns, mas sim um campo de possibilidades compartilhadas, reais ou
imaginárias. A dificuldade para organizar estas possibilidades em esquemas
compreensíveis e rigorosos indica que, a todo momento, na mente das pessoas se
apresentam diferentes destinos possíveis. Qualquer sujeito percebe estas
possibilidades à sua maneira, e se orienta de modo diferente em relação a elas. Mas
esta miríade de diferenças individuais nada mais faz do que lembrar-nos que a
sociedade não é uma rede geometricamente uniforme como nos é representada nas
necessárias abstrações das ciências sociais, parecendo-se mais com um mosaico, um
patchwork, em que cada fragmento (cada pessoa) é diferente dos outros, mesmo
tendo muitas coisas em comum com eles, buscando tanto a própria semelhança
como a própria diferença. É uma representação do real mais difícil de gerir, porém
parece-me ainda muito mais coerente, não só com o reconhecimento da
subjetividade, mas também com a realidade objetiva dos fatos.408
Sendo assim, procuramos compreender de que forma essas diferentes e variadas
narrativas se encontram e como se dão as negociações entre essa pluralidade de formas de se
entender o passado entre alguns veteranos de Divinópolis. Interessam-nos compreender o que
motiva a organização ou a formalização de um discurso hegemônico por alguns membros
desse grupo, assim como se produzem as disputas políticas e ideológicas, entre outras. Além
da intenção de afirmação do grupo, da busca por uma posição social ou do desejo de uma
manutenção de uma memória grupal, é em meio a esse espaço grupal que ocorrem as relações
entre diferentes memórias, um campo de tensões e disputas, no qual as narrativas são sempre
revisadas, revisitadas, apropriadas e reapropriadas.
407
Memória nunca entendida de forma objetiva e hegemônica, mas sim fragmentada, dividida, e esse lugar de
encontro é sempre um lugar de tensão, de disputas e constantes reordenações. 408
PORTELLI, Alessandro. Op. Cit., 1996, pp. 59-72. pp. 71-72.
151
Neste sentido, a Associação dos Veteranos de Divinópolis pode ser o local prioritário,
onde os veteranos reproduzem e expõem suas narrativas e discursos junto àqueles que são
considerados seus pares; é o lugar onde essas narrativas e discursos se encontram, onde
influem e são influenciados, modificam e são modificados.
3.1.2 – ANVFEB de Divinópolis: um lugar do “nós”
(...) Eu digo o seguinte, os ex-combatentes foram toda vida muito desprezados, as
autoridades não ligam, porque quando nós estivemos na Itália, brigando pelo povo
brasileiro (...) e os nossos direitos são muito poucos, tem alguma coisinha, né... (...)
quando eu andava eu ainda ia muito lá na sede [ANVIFEB], e lá nós reunia toda
semana, todo domingo ia lá e reunia com a turma, todo ano na passagem de ano nós
fazia comemoração, mas depois eu adoeci...409
Neste trecho da entrevista realizada com o veterano Osmar Gomes de Oliveira,
podemos perceber uma afirmação de uma filiação com um grupo específico, que ele
denomina “ex-combatentes”. Esse trecho da entrevista é bastante significativo, pois
identificamos nele a ideia da constituição, reconhecimento e pertença desse sujeito a um
grupo. Quando diz “quando nós estivemos na Itália”, “nossos direitos” ou “lá nós reunia toda
semana”, ele se insere em meio a esse grupo, um grupo que não se funda no momento do
estabelecimento da Associação Nacional dos Veteranos, mas, ainda, quando esses homens
estavam em solo italiano, combatendo na Segunda Guerra Mundial.
Neste sentido, segundo Osmar Gomes, esse grupo de sujeitos pretende constituir uma
organização autorizada por sua própria condição fundadora pelo fato de que esses sujeitos
estiveram combatendo juntos na frente de batalha no norte da Itália e pela ideia de que a
ANVFEB não seja apenas uma Associação de Veteranos que se funda depois da guerra, mas
uma própria continuidade do grupo de combatentes a que esses sujeitos pertenceram. O
veterano Horizontino Neves entende o grupo de maneira muito parecida a de Osmar Gomes.
Para ele,
a Associação é uma coisa natural, já faz parte de nós. Faço questão de participar.
Estou lá toda quarta-feira. Inclusive, agora, que o número de ex-combatentes vem
diminuindo. Eu sou um dos mais novos, tínhamos aproximadamente 70 associados,
agora só temos uns 12; então, temos que estar lá presente.410
409
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia. 410
NEVES, Horizontino: depoimento [1º de outubro de 2003]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida
a Heloisa Helena Corgosinho.
152
Mesmo o veterano Agripino Pereira da Silva, que em sua entrevista faz várias críticas
negativas à Associação dos Veteranos em Divinópolis, admite a ideia de um grupo ao utilizar
a terceira pessoa em suas narrativas, assumindo e se inserindo como parte de uma coletividade
maior: “fomos”, “nossos”, “nós”, entre outros411
. Neste sentido, partimos do princípio de que
alguns dos veteranos da FEB, filiados à ANVFEB da cidade de Divinópolis, concordam que,
desde sua ida para frente de batalha, se integram ao grupo de brasileiros que combateram em
solo italiano.
Apesar de parecer um grupo que se formou e se constituiu de forma natural, devemos
entender que esse grupo é uma construção datada, ou seja, uma organização que parte de
indivíduos, uma construção deliberada de sujeitos que, de uma forma ou de outra,
compartilham experiências comuns e um desejo de formalizar uma memória sobre essas
experiências. Este é um grupo de sujeitos que se reúne com alguns objetivos comuns.
A Associação Nacional dos Veteranos da FEB foi originalmente fundada na cidade do
Rio de Janeiro em 16 de julho de 1963, com o nome de Clube dos Veteranos da Campanha da
Itália, e pretendia, desde esse primeiro momento, ter um caráter nacional, ou seja, representar
todos os veteranos brasileiros que participaram da Campanha da Itália412
. É importante notar
que, desde a fundação da primeira organização de veteranos da FEB, já existia uma
preocupação em diferenciar os veteranos que estiveram na Campanha da Itália e aqueles que
não estiveram413
.
Segundo o estatuto da ANVFEB, somente compete fazer parte do seu quadro social os
veteranos que de fato estiveram no Teatro de Operações da Campanha da Itália. Ainda assim,
para a filiação do veterano, é obrigatória a apresentação do Diploma e da Medalha de
Campanha da FEB na Itália414
. A questão da diferenciação e do estabelecimento de um recorte
411
SILVA, Agripino Pereira da: depoimento [07 de outubro de 2003]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista
concedida a Heloisa Helena Corgosinho. 412
SANTOS, Claudney Silva dos. Veteranos e vigilantes: o caso da Associação dos ex-combatentes da
região Cacaueira – Um recorte historiográfico. Disponível em: http://www.uesc.br/eventos/cicloshistoricos/
anais/claudney_silva_dos_santos.pdf Acesso em: 7 out. 2013. 413
Vários soldados, aviadores e marinheiros brasileiros que participaram da 2ª Guerra Mundial não foram
enviados para a Campanha da Itália. Alguns estiveram envolvidos na defesa do litoral da região do norte e
nordeste brasileiro ou ainda foram militares convocados e estavam em treinamento nos quartéis espalhados pelo
país, aguardando a oportunidade para seguir para a Itália. Sobre o Teatro de Operações do Nordeste, ver:
DUARTE, Paulo de Queiroz. O nordeste na II Guerra Mundial: antecedentes e ocupação. Rio de Janeiro:
Record, 1971. 414
Ver: Estatuto da ANVFEB citado na Ata de criação da 3ª Seção Regional ANVFEB Divinópolis, MG –
Acervo do Arquivo Público Municipal de Divinópolis. O diploma e a Medalha de Campanha da FEB foram
criados através do Decreto nº 6.795, de 17 de agosto de 1944. BRASIL. Decreto nº 6.795, de 17 de agosto de
153
que pretende determinar aqueles que podem pertencer a esse grupo e aqueles que não podem
pertencer é algo marcante na constituição de uma ideia de identidade dos sujeitos que formam
esse grupo. Recentemente, na cidade de Divinópolis, essa questão tomou o espaço público,
quando, no desfile pela comemoração do aniversário da cidade, um veterano que participou
do Teatro de Operações da Itália se recusou a desfilar no mesmo carro com um veterano que
não participou do Teatro de Operações da Itália415
.
Além desse episódio citado acima, numa entrevista realizada com o veterano
Aristóteles Gonçalves Coelho, que participou especificamente do Teatro de Operações do
Nordeste, podemos perceber que essa diferenciação é algo recorrente e ainda mais agressivo.
Aristides Coelho afirma:
(...) mas eles tinham um negócio, eu não ia lá muito porque eles não gostavam de
nós, nós que fomos aposentados do jeito que eu sou, eles não gostava de nós, eles...
Eles falavam mesmo, que nós não tínhamos ido à guerra não, que nós aposentamos
foi sem ter ido à guerra. Não, ué, sem ter ido à guerra ninguém aposenta, não,
aposenta? (...) ele foi lá, tá certo, mas eu também lutei, eu fui guardar, não é? Eu
estava lutando também (...) eu participei da guerra416
.
A distinção defendida por alguns membros da ANVFEB de Divinópolis – os veteranos
que foram para a Itália e os que não foram – ultrapassa a simples questão de ter ou não ido ao
Teatro de Operações da Itália. Para alguns, “ir à guerra” se resume exclusivamente à partida
dos expedicionários para a Itália. Todos os outros veteranos que estiveram mobilizados em
ações militares no território brasileiro são considerados como aqueles que “não teriam ido à
guerra” e, por isso, não deveriam ter direito aos benefícios que aqueles que “foram à guerra”
conquistaram417
. No caso do veterano Aristóteles Coelho, que atuou especificamente no
Teatro de Operações do Nordeste Brasileiro, é pertinente dizer que ele não foi lutar na Itália,
contudo, não podemos dizer que ele não teve participação na Segunda Guerra Mundial, uma
vez que participou das ações de defesa do litoral brasileiro durante o conflito.
Além das finalidades previstas no estatuto da ANVFEB, como o culto à memória da
FEB, a reverência aos heróis, a comemoração de datas e das principais vitórias na Itália, a
1944. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-6795-17-agosto-1944-
382902-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 7 jul 2014. 415
Segundo os organizadores do desfile de aniversário da cidade de Divinópolis, MG, em 2014. Secretaria
Municipal de Cultura de Divinópolis, MG. 416
COELHO, Aristóteles Gonçalves: depoimento [17 de Junho de 2014]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista
concedida a Izaac Erder Silva Soares. 417
Sobre essas outras frentes de batalha em território nacional e no mar continental, ver: DUARTE, Paulo de
Queiroz. Op. Cit., 1971.
154
manutenção do museu da FEB, no Rio de Janeiro, e de sua reserva técnica, a divulgação da
memória da FEB através de palestras e apresentações em unidades educacionais, museus,
bibliotecas e, principalmente, entre os militares e a promoção da assistência social aos
veteranos da FEB e seus familiares, é importante notar que a ANVFEB e suas filiais
espalhadas por todo país congregavam outros objetivos.
Logo depois da desmobilização e desmilitarização da FEB, que ocorreu antes mesmo
de os primeiros contingentes retornarem ao país418
, a grande maioria dos praças brasileiros da
FEB se viu de volta à vida civil e, depois das comemorações pela vitória e pelo retorno dos
expedicionários, os praças foram considerados pela sociedade como “desajustados ou
incapazes”, com dificuldades para conseguir trabalho, mutilados, traumatizados física e
mentalmente. Anos depois, a fundação da ANVFEB, no Rio de Janeiro, e das várias filiais
pelo país possibilitou um espaço de união entre os antigos membros da FEB, que passaram a
lutar por melhores direitos, reconhecimento e pela obtenção de benefícios em detrimento do
período em que estivem na guerra419
. Segundo Patrícia da Silva Ribeiro, a ANVFEB ainda
seria fruto de uma ausência de planejamento destinado aos expedicionários no pós-guerra. É
certo afirmar que os expedicionários brasileiros foram desmobilizados e quase que
abandonados à própria sorte, contudo é difícil afirmar, com certeza, que o abandono dos
veteranos se refere, especificamente, a uma tentativa de exaurir a força política desse grupo,
como afirma Patrícia da Silva Ribeiro 420
, ou se existe uma relação com o momento político
por que passou o Brasil no período do retorno dos expedicionários, um processo de
redemocratização nacional e o fim do Estado Novo brasileiro ou, ainda, os dois elementos
juntos.
Depois da fundação da ANVFEB, na cidade do Rio de Janeiro, em julho de 1963,
foram criadas, ao longo dos anos seguintes, pelo menos outras 42 seções regionais espalhadas
por vários Estados brasileiros. Essas seções congregaram cerca de 14 mil veteranos421
. No
Estado de Minas Gerais, foram criadas cinco seções regionais: Belo Horizonte, Divinópolis,
Juiz de Fora, São João Del Rey e Uberaba.
418
Sobre a desmobilização da FEB, ver: ROSA, Alessandro dos Santos. A reintegração social dos ex-
combatentes da Força Expedicionária Brasileira (1946-1988). Dissertação de mestrado. Universidade Federal
do Paraná – Curitiba 2010. 419
RIBEIRO, Patrícia da Silva. Em luto e luta: construindo a memória da FEB. 2013. Tese (Doutorado em
História) – Fundação Getulio Vargas (FGV-CPDOC), Rio de Janeiro. p. 175. 420
Ibidem. p. 181. 421
LUIZ, Andre. ANVFEB – Endereços de Associações de Ex-Combatentes da FEB. Disponível em:
http://segundaguerra.net/anvfeb-enderecos-de-associacoes-de-ex-combatentes-da-feb/. Acesso em: 12 mai. 2014.
155
A seção da ANVFEB da cidade de Divinópolis foi criada entre os anos de 1973 e
1976, sob a supervisão e fiscalização da seção da ANVFEB de Belo Horizonte e da seção
central da cidade do Rio de Janeiro422
. Além dos veteranos naturais da cidade de Divinópolis,
vários outros que, por um motivo ou outro, vieram para a cidade, se filiaram à sede da
Associação, como o caso do terceiro-sargento Osmar Gomes de Oliveira. Em quase todas as
entrevistas realizadas com os veteranos, podemos perceber que a Associação figura como um
ponto de encontro entre esses sujeitos; é quase sempre referida com saudosismo e também
como que condenada a um fim certo, visto que esses sujeitos percebem que suas vidas estão
chegando ao fim e, junto a eles, a própria Associação dos Veteranos.
Num trecho de uma entrevista com o veterano Donaldo Vespúcio, podemos perceber
um pouco dessa angústia sobre o definhar e a perspectiva de um futuro fim da Associação:
Antigamente quando nós tínhamos saúde, aqui na nossa sede, nós chegamos a ter
uma média de uns 60 companheiros, não é tudo nascido em Divinópolis, não, é ex-
combatente que mudou de outra cidade para aqui; então, criamos Associação em 63
e tínhamos mais ou menos 60 associados. Hoje, restam apenas oito vivos; desses
oito, tem companheiro em cadeira de roda, a maioria já tem ponte de safena, tem um
ou dois só que estão assim com mais saúde (...)423
No trecho acima, a data de fundação da seção da cidade de Divinópolis se confunde
com a fundação da ANVFEB central no Rio de Janeiro, em 1963, apesar de o veterano
Donaldo Vespúcio ter sido um dos fundadores da Associação de Divinópolis. Esse recuo da
data pode não ser apenas uma confusão nas lembranças desse sujeito, mas talvez possa
demonstrar um papel de permanência dessa Associação na vida desse sujeito, uma ideia de
que, “desde sempre”, a Associação existe. Em entrevista com o veterano Osmar Gomes de
Oliveira, essa característica também pode ser percebida:
Depois quando eu vim para Divinópolis, aqui já tinha a Associação dos ex-
combatentes, aí, passado muito tempo que eu estava aqui, eles me descobriram, o
pessoal da Associação mesmo vieram atrás de mim pra fazer parte, aí, então, desde
que eu vim para aqui em 49 [1949] que eu faço parte na Associação, mas até hoje eu
faço parte, mas nós aí era em 51 [ex-combatentes], agora nós temos cinco só,
restamos só cinco, Seu Donaldo, o Frederico, (...) esse João Okada, o Cândico, (...) o
Horizontino... ficamos só cinco, e assim mesmo já tá quase tudo... O Cândico tá
muito ruim, tem marca-passo, ele não tá andando direito sozinho (...), quando fazia
aniversário da cidade, nós desfilava na frente da banda, de todo mundo... Éramos
aplaudidos, por fim, agora nós não aguentávamos desfilar, eles arranjaram um jipe e
422
Ver: Ata de Criação e Termo de posse da ANVFEB, 3ª Seção Regional Divinópolis, MG – Arquivo Público
Municipal de Divinópolis, MG. 423
VESPÚCIO, Donaldo Ronaldo: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares.
156
nós desfilávamos motorizados, de jipe, né, outro dia mesmo (...) eles desfilaram, aí,
mas de jipe, mas eu não fui não, porque eu já tava doente, né424
.
O veterano Osmar Gomes recua ainda mais o período de existência da Associação. Em
seu relato, ele deixa entender que, desde 1949, a Associação já existia na cidade. Outro ponto
de encontro entre os dois veteranos citados acima é a percepção de que a Associação está aos
poucos acabando, chegando ao fim, já que seus membros estão definhando.
A “sede”, a “associação” ou simplesmente “lá” sempre é referida por esses veteranos
como um espaço de encontro e de sociabilidade, e, mesmo que as reuniões semanais possam
se resumir as mesas de carteado, ainda assim a Associação representa um lugar de relativa
importância na vida desses veteranos. Por mais que a seção da cidade de Divinópolis não
tenha constituído ou organizado qualquer tipo de espaço destinado ao público, exposição ou
museu, esse espaço constitui uma espécie de marco, símbolo e continuidade física desse grupo
em meio à cidade de Divinópolis.
Neste sentido, acreditamos que é nesse espaço, ou pelo menos a partir dele, que os
diversos discursos de parte dos veteranos da FEB da cidade de Divinópolis se encontram, se
aproximam ou se distanciam. E é nesse local que acontece uma tentativa de construção
relativamente organizada de um discurso que se pretende unificador e geral sobre esse grupo.
É possível identificar a existência de um desejo de se produzir um discurso coletivo
homogêneo, uma espécie de memória de grupo autorizada. Contudo, essa tentativa de
monopolização do discurso sobre “nós” não se dá de maneira tão eficiente. A entrevista
realizada com o veterano Agripino Pereira da Silva revela a existência de tensões acerca da
produção desse discurso social sobre essa coletividade, mesmo no interior desse grupo. Esse
veterano assume uma postura crítica contra o governo brasileiro e os militares daquele
período. Durante toda sua narrativa, ele expõe uma série de questões com tom de denúncias, e
a FEB é sempre representada de forma diferente da maioria dos veteranos. Além disso, o
veterano Agripino da Silva revela as censuras internas e alguns dos silêncios deliberadamente
produzidos por esse grupo:
De forma que eu falo o seguinte, falei isso na Associação e falaram até em me
prender, muitos não falam o que eu vou falar para não desfazer de nossa Pátria, mas
se não fossem os americanos, o que não morresse de frio e fome na guerra morreria
424
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares.
157
a tiro. Os comandos brasileiros engrandeciam falando que na batalha de tal local
perdemos tantos soldados, isso para se engrandecerem425
.
É bastante relevante notar a existência dessas tensões, pois elas nos levam a concluir
que essas produções organizadas sempre se dão em meio a conflitos, disputas e afirmações,
sejam através de censuras, resistências, desabafos, rejeições, contradições, vergonhas,
confirmações, acordos mútuos, entre outros. Neste sentido, podemos falar em memórias em
disputa, numa constante luta pelo enquadramento e na formalização de uma memória que se
pretende social e geral sobre esse grupo426
.
Essa tentativa de enquadrar as memórias particulares dos veteranos, sejam com a
finalidade de “não desfazer de nossa pátria”, tentar afirmar uma identidade de grupo ou
mesmo defender alguns direitos desses veteranos, sempre ocorre num ambiente de tensão e
disputa, o que nos leva à outra questão pertinente: não há uma versão única, não é possível
falar numa generalização, mas sim numa pluralidade de discursos, narrativas e versões válidas
e relevantes, construídas em meio a tensões e influências.
Ainda devemos notar que esses discursos e narrativas são sempre revistos, seja pelos
próprios autores, já que as lembranças são constantemente reelaboradas e ressignificadas, ou
ainda por outros membros desse grupo, que usam da arena pública para disputar uma
formalização do passado.
Todas essas retomadas partem de uma intricada rede de influências ideológicas,
opiniões e posicionamentos políticos e institucionais, ou seja, o que nos interessa, aqui, não é
apenas o que esses sujeitos revelam sobre seu passado, mas a forma como eles entendem e
significam esse passado, as influências sociais e grupais que pesam sobre esses sujeitos, os
valores sociais que eles levam em consideração, seus sentimentos, suas vergonhas e suas
verdades; não é uma tentativa de retomar o passado como um dado pretensamente objetivo,
mas uma maneira mais ampliada de entender a intricada forma como os fios se entrelaçam na
urdidura, isto é, buscar uma história mais próxima dos sentimentos e das formas de significar
o passado e não propriamente uma história objetiva e factual427
.
Neste sentido, a relevância da narrativa do veterano Agripino da Silva não é apenas
uma atitude de denúncia, ou uma afronta ao enquadramento pretendido por alguns sujeitos do
grupo, mas ela expõe as próprias tensões; ao lembrar em conjunto, demonstra a censura, visto
425
SILVA, Agripino Pereira da: depoimento [7 de outubro de 2003]. Divinópolis, Minas Gerais. Heloisa Helena
Corgosinho. 426
ABREU, Marcelo Santos de. Op. Cit., p. 79. 427
PORTELLI, Alessandro. Op. Cit., pp. 59-72. pp. 8-9.
158
que Agripino foge daquilo que poderia ou deveria ser dito; ele expõe aquilo que não pode ou
não deve ser dito publicamente – é uma narrativa desviante, que pode causar vergonha,
espanto ou culpa, mas, mesmo assim, é uma narrativa possível e legítima e, por isso mesmo, é
transmitida por esse sujeito, que se autoriza como autoridade para falar.
Quando o veterano afirma que “muitos não falam o que eu vou falar”, ele rompe uma
pretensa cumplicidade de grupo, expõe as fraturas desse processo ao lembrar em grupo; ele
fala da fome, das violências de alguns expedicionários contra a população italiana e do
descaso com que os veteranos foram tratados pelo governo brasileiro enquanto estiveram na
Itália, enfim, expõe uma versão, sua versão428
. São exatamente essas versões, essa pluralidade
de discursos, que acabam por impedir um enquadramento pleno, uma formalização que se
pretende total, geralmente reducionista e generalizante da História, revelando as tensões e
disputas por uma espécie de controle daquilo que é considerado por algumas testemunhas
como “o que pode ser dito” e “o que não pode ser dito”; uma forma de controle da memória
do grupo.
Contudo, essa disputa é legítima, visto que esses sujeitos se inserem no universo social
e buscam reconhecimento e autoridade e, de alguma forma, são autorizados pela própria
sociedade a falar sobre esse passado, mas não podemos entender esse passado tal qual foi,
mas sim como uma possibilidade de retomada do passado e das representações do passado
desse sujeito; não é exatamente o que eles viram e viveram de forma compartilhada, mas as
formas como eles entendem, significam e narram aquilo que viram e viveram, e mais, como
essas diferentes perspectivas sobre um passado em comum se relacionam no espaço público.
3.2 – Tensões e conformidades nos processos de formalização das narrativas
É possível falar numa construção objetiva de uma formalização ou enquadramento de
uma memória grupal sobre os veteranos da ANVFEB na cidade de Divinópolis? Se sim, de
que forma esses veteranos, em conjunto, podem capturar, objetivamente, o passado que
experimentaram em comum e organizá-lo de forma que o possam expor em suas
formalizações e enquadramentos? As duas questões acima nos levam a refletir sobre a
possibilidade ou impossibilidade de um objetivismo pleno, isto é, os homens podem retomar o
passado tal qual ele foi, em toda a sua complexidade?
428
SILVA, Agripino Pereira da: depoimento [7 de outubro de 2003]. Divinópolis, Minas Gerais. Heloisa Helena
Corgosinho.
159
Acreditamos que tal retomada não é possível. O objetivismo, em última instância, é
uma impossibilidade em sua própria essência. Uma abordagem total da realidade é sempre
uma tentativa vã, visto que as ciências são feitas pelos homens, e uma das condições dos
homens é a parcialidade. Só podemos ver uma parte do quadro total que chamamos de
realidade, um pequeno fragmento. Estamos fadados ao subjetivismo, e apenas o “eu” vê o
mundo; o “eu” é, em última instância, o gargalo por que passa toda a realidade; é o eu que
significa, valoriza e julga o real e, mesmo que esse “eu” seja orientado e influenciado pelo
social, é ele quem opera o entendimento do real. O “eu”, o subjetivo, o indivíduo é quem
media o real; é ele quem percebe a realidade através de seus sentidos e sentimentos; é ele
quem lembra e narra o seu passado; é o “eu” quem produz documentos e toda sorte de fontes
que possibilitam as tentativas de formalização e enquadramento do passado429
. Cada
indivíduo constitui uma singularidade por si só, e é uma possibilidade de percepção e sentido
acerca do passado, desse real ideal, mesmo que isso nos leve à condição de assumir a
impossibilidade de conhecer a totalidade ou a realidade última.
É admitir que o experimentável não pode ser recuperado em sua totalidade, nem pela
narrativa do próprio sujeito que as vivenciou nem tampouco por aqueles que desejam retomá-
la numa representação histórica. No caso daqueles que organizam suas memórias em
narrativas, temos alguns pontos importantes: primeiramente, porque, na sua fala, ele fica
restrito a expor toda a complexidade daquilo que foi experimentado através de todos os seus
sentidos: as texturas, os sons, os cheiros, os gostos, etc. Devemos, também, considerar seu
próprio inconsciente, ou seja, as estruturas de memória não estão sob um controle total e
racional dos sujeitos, e a memória não é uma estrutura lógica e ordenada, mas uma infindável
conjuntura caótica e ilógica, que imputou um sentido lógico e possibilita um enquadramento
minimamente confortável daquilo que foi experimentado pelos sujeitos430
.
Essa reordenação talvez tenha dois pareceres importantes, primeiramente porque ela se
realiza sempre no momento presente, ou seja, aquele que narra não pode jamais se desprender
do presente vivo, e isso tem implicações diretas nessa reorganização do passado. O outro
ponto, intimamente ligado ao primeiro, é que não se pode ter acesso às contradições e às
possibilidades que estão em aberto ao indivíduo no momento vivido. No momento da agência
individual, há uma infinidade de possibilidades abertas, e o poder de escolha e decisão ainda
429
Neste caso, é preciso notar que essas formalizações e enquadramentos são produções de outras subjetividades,
outros sujeitos ou grupos de sujeitos. 430
Neste sentido, devemos considerar que não só o cientista social, mas também o próprio sujeito que lembra,
realiza uma operação de atribuição de sentido e lógica aos eventos vividos e ao passado.
160
paira como o momento fugidio que precede o “lançar da flecha”, quando a ação ainda não foi
realizada, quando as possibilidades ainda não se fecharam no passado, quando o passado
ainda é presente. Avelar nota que, dessa condição pouco coerente e racional, muitas vezes são
desconsiderados:
Como nós, nossos personagens históricos não são modelos de coerência, de
continuidade, de racionalidade; como para nós, as tensões entre o vivido e o que foi
imaginado e desejado são fundamentais em suas vidas. E, para eles, como para nós,
há uma parte indecifrável do aleatório, do imprevisível, do misterioso da vida431
Neste sentido, a realidade última e objetiva não pode ser tomada como algo dado ou
natural, visto que ela é percebida e constituída, na verdade, por uma pluralidade de
subjetividades diversas e distintas e, a menos que possamos saber tudo aquilo por que todos
os indivíduos passaram, viram, sentiram, significaram e julgaram, e mais, que possamos estar
em todos os lugares ao mesmo momento, e associar tudo isso e produzir uma formalização e
enquadramento com sentido que compreenda todas as diversidades de sujeitos envolvidos
num mesmo momento, não poderemos chegar a essa totalidade ou verdade última432
.
Mas aqui não pretendemos nos alongar nessa discussão relativa à possibilidade de se
atingir uma objetividade total, mas entender que a realidade só pode ser retomada através das
subjetividades; o que nos interessa, aqui, são essas possibilidades subjetivas, plurais e
legítimas de retomar do passado433
. Portelli atenta para a importância dessas possibilidades
subjetivas:
Mas esta miríade de diferenças individuais nada mais faz do que lembrar-nos que a
sociedade não é uma rede geometricamente uniforme como nos é representada nas
necessárias abstrações das ciências sociais, parecendo-se mais com um mosaico, um
patchwork, em que cada fragmento (cada pessoa) é diferente dos outros, mesmo
tendo muitas coisas em comum com eles, buscando tanto a própria semelhança
como a própria diferença. É uma representação do real mais difícil de gerir, porém
parece-me ainda muito mais coerente, não só com o reconhecimento da
subjetividade, mas também com a realidade objetiva dos fatos434
.
431
AVELAR, Alexandre de Sá. A biografia como escrita da História: possibilidades, limites e tensões. In:
Dimensões, v. 24, 2010, pp. 157-172. 432
Para tal, seria preciso que o homem chegasse à condição do Deus monoteísta judaico-cristão-mulçumano:
Onipresença, Onisciência e Onipotência, aquele que tem consciência de tudo, está em todos os lugares e tem
todo o poder. Somente com essas características seria possível contemplar a verdade última. 433
Essas retomadas não podem ser classificadas como ficcionais ou factuais, mas são possibilidades de
retomada. É uma questão muito mais complexa do que parece, visto que a própria eleição dos fatos, tidos como
objetivos, sempre passa por uma subjetividade. 434
PORTELLI, Alessandro. Op. Cit., pp. 8-9.
161
Portanto, essa pluralidade de representações subjetivas do real possibilita uma
retomada mais coesa do passado, como afirma Portelli, uma retomada da realidade mais
difícil de gerir, contudo mais coerente435
. Neste sentido, a resposta à primeira pergunta feita
acima é que a produção de uma formalização ou enquadramento de uma memória grupal
sobre os veteranos da ANVFEB de Divinópolis talvez seja possível, mas essa produção não
pode ser tomada como algo natural ou objetivo, mas sim uma construção realizada através de
perspectivas subjetivas que, de alguma maneira, produzem uma espécie de memória que se
pretende coletiva acerca do grupo. E essa produção se dá em meio a um campo de disputas, de
versões e formas de significar e julgar o passado, ou seja, podemos afirmar que alguns desses
veteranos pretendem criar uma formalização da memória do grupo ao qual pertencem, mas
essa produção sempre é disputada, é constantemente posta à prova, revisada, desafiada e
modificada.
Essa memória social, ou memória de grupo, é produzida por vários sujeitos, em
narrativas que podem se aproximar ou se distanciar. Neste sentido, não podemos falar que
esses veteranos possam capturar objetivamente o passado que experimentaram em comum, ou
que seja possível uma construção organizada, homogênea e pacífica sobre esse passado, mas
que essas narrativas subjetivas se relacionam em disputas sociais também subjetivas, o que
faz com que as tentativas de formalização e enquadramento desse passado sejam sempre
revistas e modificadas e estejam constantemente em mudança e agitação.
As narrativas de alguns dos veteranos associados à seção da ANVFEB na cidade de
Divinópolis não pretendem dar conta de todo o real, mas são significativas no sentido de
representarem uma variedade de possibilidades de retomadas do passado através desses
sujeitos, isto é, possibilidades de conhecer formas diferentes de retomada, percepção e sentido
atribuídas a esse passado comum. É como se cada um desses veteranos pudesse proporcionar
a retomada de um ponto de vista, uma maneira única e subjetiva de vislumbre e retomada do
passado.
Neste sentido, voltamos ao mosaico proposto por Portelli, ou seja, cada veterano
constitui uma forma diferente de ver a guerra e o passado, uma perspectiva intimamente
vinculada à função que cada veterano ocupava durante o período da guerra, as suas
preferências políticas, o seu meio familiar, suas crenças religiosas, aquilo que ele entende e
julga como certo e errado, enfim, todo um universo social em que cada um desses sujeitos
435
Ibidem. pp. 8-9.
162
esteve inserido e as formas como cada um lida com esse universo social, ou seja, onde se dá
ao mesmo tempo a constituição mesma dessas subjetividades e as relações intersubjetivas436
.
É assumir que esses diferentes pontos de vista, essas diferentes possibilidades e formas
de se entender a guerra e o próprio passado são significativos, ou seja, representam
possibilidades de se ampliar o entendimento acerca das formas como o passado é retomado
pelos sujeitos: isto é, como as diferentes subjetividades significam e narram seu passado e
como essas diferentes narrativas subjetivas se encontram e se influenciam mutuamente em
meio ao universo público e social. Mais especificamente, pretendemos compreender como
essas relações entre essas diversas narrativas particulares e subjetivas se estabelecem em meio
ao grupo dos praças, veteranos associados à ANVFEB na cidade de Divinópolis, MG. Para tal
abordagem, pretendemos analisar, além das narrativas do veterano Osmar Gomes Oliveira,
outras entrevistas realizadas com alguns veteranos ligados a essa seção da ANVFEB437
.
3.2.1 – As guerras plurais
Quando falamos em guerras plurais, não pretendemos afirmar a existência de diversas
guerras completamente distintas, mas sim que cada um desses sujeitos representa uma
possibilidade de retomada desse conflito único, formas singulares e subjetivas de se entender
a guerra, formas plurais do lembrar e narrar sobre si e sobre a guerra. Neste sentido, quando
falamos em guerras plurais, estamos afirmando possibilidades plurais de construções
subjetivas sobre um passado vivido de forma relativamente comum.
As experiências vividas por cada um desses veteranos, e as narrativas produzidas por
eles, podem ser entendidas como fios que compõem uma urdidura, e essa miríade de fios
subjetivos e, ao mesmo tempo, sociais, que tem seus caminhos entrelaçados, cruzados e
enredados, talvez possam nos dar uma visão mais significativa sobre as representações de um
determinado momento do passado e como essas representações se relacionam.
Quando o Exército começou as convocações para compor a FEB, no final de 1943, já
havia algum tempo que uma parte significativa da população brasileira, sobretudo nos grandes
centros urbanos, convivia com a mobilização interna e também conhecia as ações de defesa
436
ELIAS, Norbert. Op. Cit., 1994. 437
Além das duas entrevistas realizadas com o veterano Osmar Gomes de Oliveira (2004 e 2007), utilizamos
outras nove entrevistas com veteranos da ANVFEB Divinópolis, MG. Os veteranos entrevistados são: Agripino
Pereira da Silva (2003); Aristóteles Gonçalves (2014); Donaldo Ronaldo Vespúcio (2007); Horizontino Neves
(2003); João Alves (2003); João Okada (2007); Joaquim Guadalupe (2003); José Candido (2003); e Pedro
Pereira (2003).
163
do litoral brasileiro e do Atlântico Sul. Mas precisamos considerar que cada indivíduo tem
uma relação distinta com a guerra e com envolvimento brasileiro no conflito, ou seja, não é a
questão de verificar se os veteranos tinham ou não consciência da complexidade de motivos
que levaram o Brasil a reconhecer o estado de guerra com a Alemanha e a Itália ou de todas as
atitudes das autoridades nacionais relativas ao conflito, mas sim uma tentativa de
compreender como eles fazem essas representações sobre o conflito e o envolvimento
brasileiro. Essas representações apresentam um pouco de como esses sujeitos percebem suas
vidas e seu passado, como entendem as estruturas sociais em que estavam inseridos e sua
própria posição social naquele dado momento.
A convocação para a guerra é um momento muito significativo para percebermos
essas construções, sobretudo porque esses veteranos entendem esse momento de maneiras
diferentes. Se retomarmos a narrativa do veterano Osmar Gomes de Oliveira, podemos
perceber que ele desejava ir voluntariamente para a Guerra, apesar de ter aguardado a
convocação diante um pedido de sua mãe. Contudo, outros apresentam diferentes
possibilidades, por exemplo, quando o veterano Horizontino Neves afirma: “Fui obrigado
(...), não foi escolha minha, eu não podia fugir ao chamado, eu tinha que cumprir” 438
. Alguns
veteranos desejavam seguir para a guerra; outros não.
Essas diferenças podem ajudar a compreender como esses jovens se inseriram
socialmente, isto é, as pressões sociais que insidiam sobre a convocação desses sujeitos para a
guerra. Quando o veterano Horizontino Neves fala sobre a questão do cumprimento do dever
e do “chamado” para a guerra, ele revela uma obrigação legal, uma prerrogativa das
instituições brasileiras que obrigavam os jovens brasileiros naquele momento a se
apresentaram para servir no Exército e, consecutivamente, participar no conflito. O veterano
Agripino Pereira da Silva reforça essa questão da obrigatoriedade de se cumprir esse
“chamado”, além de notar punições legais que, segundo ele, teriam sido veiculadas no meio
social:
Quando eu cheguei em casa e falei para o velho (...) ele ficou abalado, começou a
chorar, minha irmã era bem mais nova que eu e também começou a chorar. (...) Eles
me perguntaram se eu não fosse o que podia acontecer, e respondi que seria um
homem inútil, havia uma promessa, que não foi cumprida, de que eu não poderia
438
NEVES, Horizontino: depoimento [1º de outubro de 2003]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida
a Heloisa Helena Corgosinho.
164
comprar nada, não conseguiria tirar documentos, o único jeito era ir e voltar ou
morrer; graças a Deus, fui e voltei.439
Além dessas sanções legais, havia outro tipo de sanção, a social. O governo brasileiro,
através do DIP, recorrentemente veiculava a ideia de uma guerra vista como justa e nacional,
um dever patriótico, ressaltando o ufanismo para a mobilização de todos os brasileiros. Logo,
existia também uma espécie de mobilização social contra os desertores, os jovens que
fugissem da convocação ou membros da sociedade que se posicionassem contra o esforço de
guerra nacional440
. De alguma forma, a sociedade incorporava essa ideia de uma suposta
necessidade de que todos os jovens devem se mobilizar para combater na guerra, exatamente
a ideia de “chamado” e “dever”.441
É significativo notar que essas narrativas, mesmo que opostas, apresentam
possibilidades de apropriações diferentes num mesmo contexto social; aqueles que, de alguma
forma, atendiam voluntariamente ao chamado do governo e das Forças Armadas nacionais e
aqueles que percebiam esse chamado como uma obrigatoriedade que, se negada, seria passiva
de sanções legais e sociais. As motivações que levaram esses sujeitos para a guerra são
variadas: os veteranos que viam a convocação como uma obrigatoriedade, como Agripino
Pereira da Silva, e os veteranos que afirmavam seu desejo de ir para a guerra, como fizeram
Osmar Gomes de Oliveira e também o veterano José Cândido.
Entretanto, mesmo esse desejo de seguir para a guerra pode ter motivadores
diferenciados. Enquanto Osmar Gomes relaciona sua vontade de voluntariar ao seu civismo e
ao desejo de defender e vingar as afrontas sofridas pelo Brasil, o veterano José Cândido
apresenta outro motivo:
Apresentei-me, voluntariamente, para prestar o Exército e tirar a carteira de chofer,
fui militar durante três anos, dois meses e 16 dias; deste tempo, um ano foi de
guerra. Entrei para o Exército em junho de 1942 (...) meu pai não se incomodou de
eu ir para a guerra; ele não se importa comigo, eu queria ir mesmo, alguns não
queriam ir de jeito nenhum, mas eu queria. Minha avó é italiana, Nona, então, ela
me dizia para ir conhecer Belfiore. Eu dizia que estávamos longe de lá, mas fomos
avançando e estava perto da cidade, acabei conhecendo-a após o fim da guerra,
quando fui a Veneza.442
439
SILVA, Agripino Pereira da: depoimento [7 de outubro de 2003]. Divinópolis, Minas Gerais. Heloisa Helena
Corgosinho. 440
Sobre o DIP, ver: PAULO, Heloísa. Estado Novo e propaganda em Portugal e no Brasil: o SPN/SNI e o DIP.
Coimbra, Portugal: Livraria Minerva, 1994. 441
Sobre a mobilização de guerra ver: CYTRYNOWICZ, Roney. Op. Cit., 2004. 442
CÂNDIDO, José Marchiori: depoimento [1º de outubro de 2003]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista
concedida a Heloisa Helena Corgosinho.
165
Para o veterano José Cândido, o que o motivou a ir para a guerra girou em torno de
outras questões: sua ida para o Exército para “tirar carteira de chofer”, o fato de que seu pai
não se importava com ele ou ainda porque a convocação representava uma oportunidade de
conhecer a terra natal de sua avó na Itália, a pequena província de Belfiore443
. Isso mostra que
as motivações e o desejo de ir para a guerra são variados; cada um desses sujeitos tinha
interesse de ir a para a guerra por um motivo diferente.
Para outros veteranos, a convocação é entendida de forma mais passiva. Contudo,
revela outros pontos significativos, como, por exemplo, a entrevista do veterano Donaldo
Ronaldo Vespúcio:
Em junho de 1944, eu fui convocado para servir o Exército, e servi à força, primeiro
eu fui convocado para São João Del Rey, onde eu recebi ensinamentos dos militares
e fiz um curso chamado CRFG, é curso regional de formação de graduados, e nesse
curso, em três meses, eu fui promovido a cabo, daí a mais três meses, eu fui
promovido a sargento, terceiro-sargento. (...) foram pra Itália cinco expedições de
soldados brasileiros, soldados e oficiais, a maioria civis que eles convocaram,
porque os da ativa tiraram o corpo fora, foram muito pouco o pessoal do Exército,
chamaram mais civis, civis não tinham experiência nenhuma444
.
O relato de Donaldo pode revelar um ressentimento. Apesar de não se posicionar
diretamente em relação a sua convocação em específico, ele entende que a convocação de
uma maioria de civis para a composição da FEB foi motivada porque os militares “da ativa
tiraram o corpo fora”. Neste sentido, o fato de os militares de carreira não atuarem nas FEB
resulta na convocação de civis, incluindo a sua própria.
O relato do veterano João Alves tem sentido similar ao de Donaldo Vespúcio. Não só
podemos perceber esse ressentimento em relação à convocação de civis, como também
podemos notar a questão da obrigatoriedade de obedecer à convocação:
Eu era civil e morava na zona rural, eu fui sorteado, eles iam ao cartório e pegam os
registros com o nome da “turma”, ia para a sucursal, aqui a mais perto era a de
Itaúna e convocaram os que tinham serviço militar (...) não senti muito bem não,
naquele tempo a gente não tinha medo de nada, ninguém liga. Mas fiquei muito
preocupado, porém não tinha jeito (...) o Brasil declarou guerra em agosto de 1942,
eu fui para o quartel em outubro de 42 (...).445
443
Disponível em: http://www.sistan.it/index.php?id=197&tx_wfqbe_pi1[soggetto]=3334 Acesso em: 26 jun.
2014. 444
VESPÚCIO, Donaldo Ronaldo: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 445
OLIVEIRA, João Alves de: depoimento [1º de outubro de 2003]. Carmo do Cajuru, Minas Gerais. Entrevista
concedida a Heloisa Helena Corgosinho.
166
Além dos pontos já elencados acima, podemos destacar outra questão expressiva.
Quando o veterano diz que “naquele tempo a gente não tinha medo de nada, ninguém liga”,
ele pode estar se referindo à questão da ignorância dos jovens de seu tempo em relação à
realidade da guerra. O nacionalismo e o ufanismo foram fomentados pelo governo e pelas
Forças Armadas nacionais, propagandeados através do cinema, do rádio e de jornais
impressos com o objetivo de veicular uma imagem idealizada do herói nacional, do soldado
que defende sua nação e luta, destemidamente, contra os inimigos do bem comum. Entretanto,
essa imagem ideal destoa profundamente dos relatos dos veteranos que estiveram “face a face
com a morte”. Quando João Alves diz “naquele tempo”, indiretamente ele assume que sentiu
medo, que vivenciou o terror da guerra, mas, naquele momento da convocação, isso não era
uma preocupação para ele.
Da mesma forma que Remarque, veterano da Primeira Guerra Mundial e autor da obra
Nada de novo no front446
, a maioria dos relatos dos praças brasileiros sobre suas experiências
na frente de batalha não são nada romântico ou heroicos. Remarque afirma que “a morte não é
uma aventura para aqueles que se deparam face a face com ela” e que os soldados, sobretudo
aqueles que se envolveram nas guerras modernas, são “uma geração de homens que, mesmo
tendo escapado às granadas, foram destruídos pela guerra”. O veterano Joaquim Xavier
descreve um pouco essa angústia de experimentar a guerra:
A guerra não é heroica. Não há bandeiras, nem tambores, nem cornetas com toques
marciais, nem tampouco heróis condecorados que voltam para casa e beijam a noiva.
O que há na guerra é sujeira, lama, frio, fome, cansaço de noites a fio sem dormir,
medo de ser atacado, sofrimento e monotonia, esses problemas de todas as guerras.
A monotonia de cavar uma trincheira e ficar escutando aqueles ruídos
ensurdecedores, que não param nunca.447
A guerra poética, gloriosa e ufanista, constantemente propagandeada pelo governo
através das mídias sociais, destoa da guerra testemunhada por alguns veteranos da FEB.
Agripino Pereira, ao relatar sua primeira batalha na Itália, mostra essa diferença entre a guerra
na Itália e a guerra falada nos quartéis e nos treinamentos:
Durante o dia aguardávamos os amigos que estavam no front vir nos contar as
histórias, as notícias eram todas ruins. Quando víamos um colega do primeiro
escalão chegando, que tinha ido à nossa frente, era uma alegria, foi uma escola, pois
446
REMARQUE, Erich Maria. Nada de novo no front. Trad. Helena Runyanek. São Paulo: Abril S.A. Cultural e
Industrial, 1974. 447
SILVEIRA, Joaquim Xavier. A FEB por um soldado. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1989. p. 23.
167
nos orientavam de como era a guerra realmente, e falavam que não era como
ensinavam no Brasil (...)448
Essa troca entre combatentes já experimentados na “guerra de verdade” e os
combatentes recém-chegados não está presente apenas nos relatos de Agripino Pereira. O
veterano João Okada também relata uma situação semelhante:
Quando, na hora do café, tomamos café e um companheiro, aquele que já, já
acostumado a estar ali, “companheiro você faz isso quando você ver, a primeira
coisa você deve deitar” (...) nós seguimos mais perto um pouquinho lá do front onde
a gente ia seguir, esse companheiro que estava dando instrução, passou mais ou
menos meia hora, eu segui num caminhão e veio outro e falou, “o companheiro,
você sabe aquele companheiro que estava dando instrução pra nós? Ô, caiu um tiro
de canhão, mais ou menos 500 metros, veio um estilhaço e cortou o pescoço dele”, a
cabeça caiu, a cabeça ainda ficou piscando, que demora a morrer até o sangue sair
(...).449
No relato do veterano João Okada, surge outra questão relevante, o estabelecimento de
uma relação cotidiana com a morte. Mesmo o “companheiro” experimentado, que dava
instruções aos novatos de como se comportar nos conflitos, era vitimado pela guerra; a morte
não escolhia, nem as instruções eram capazes de proteger os soldados das violências da guerra
ou da morte que espreitava em todos os lugares. Essa consciência da constante possibilidade
da morte é uma questão destacada nos relatos de alguns veteranos.
Em todas as entrevistas utilizadas nesse trabalho, a morte aparece de formas bastante
específicas; ela sempre surge de forma indireta, quase irrompe em meio a outro assunto
tratado pelo narrador. Quanto ao ato de narrar a ação de guerra propriamente dita, o ato de
matar o inimigo, o trabalho cotidiano de matar, esses episódios são quase sempre silenciados
ou esquecidos. A questão da morte aparece, também, nos momentos de batalhas e violências,
na dureza e no calor dos combates, e cada veterano guarda essas ocasiões que marcaram suas
vidas, revelando um pouco dessas experiências traumáticas que passaram na guerra. O
veterano João Alves apresenta um desses momentos:
Eles nos bombardearam, lembro do dia e da hora, não me esqueci, não! Foi em 14
de abril, domingo, às 9 horas da manha. Desceu a bomba, matou dois colegas meus
na hora, quando eu vi que estava muito perigoso eu deitei, a granada entra na terra e
depois explode, então, caiu uma granada e explodiu, um estilhaço me pegou na
perna direita, um outro estilhaço picou a veia da mão e um terceiro estilhaço passou
448
SILVA, Agripino Pereira da: depoimento [7 de outubro de 2003]. Divinópolis, Minas Gerais. Heloisa Helena
Corgosinho. 449
OKADA, João: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac Erder Silva
Soares.
168
de raspão pelo meu pescoço, e eu, deitado, o ferimento da mão sangrava muito.
Quando o bombardeiro acabou, eles me pegaram e levaram-me para um jipe, recebi
o primeiro socorro, depois me deram umas injeções para aguentar a dor, o médico
disse que eu teria que aguentar a dor até umas 7 horas da noite, pois eu tinha
companheiros meus que estavam muito pior do que eu e precisavam operar. Fui para
o hospital de emergência, coberto por lonas imensas, tinha uma grande quantidade
de colegas meus despedaçados e picados de pedaço de ferro (...).450
Além da morte de dois colegas e de sua própria desventura, o veterano João Alves
relata a questão dos feridos na guerra, os homens que, segundo o veterano, “estavam piores”
do que ele, ou ainda o momento em que esteve no hospital de emergência, quando fala sobre
os “colegas meus despedaçados e picados”. A morte, a possibilidade de ferimentos graves e
mutilações aparecem de forma atrelada aos relatos pessoais desse veterano.
Estima-se que o total de vítimas fatais da FEB seja maior que 450 brasileiros – o
número de feridos é ainda maior, cerca de 2.700451
. O retorno desses homens feridos,
sobretudo, desses soldados mutilados pela guerra, é lembrado pelo veterano Aristóteles
Coelho, no momento em que presenciou o retorno da FEB na cidade do Rio de Janeiro:
Foi uma coisa feia, veio muita gente defeituosa, que quando eu estava no Rio, eu fui
lá onde ficavam os hospitalizados, tinha um hospital lá, só dos que vinham
defeituosos da guerra, mas eu fui lá só duas vezes e não tive coragem de ir lá mais,
tinha soldado lá que veio e não tinha nenhum braço e nenhuma perna, aquele
toquinho, é triste, tudo marcado o corpo por causa daquelas bombas, é triste, nem
queira saber o tanto que é triste, você vê uma pessoa assim, que era perfeita, e ficar
desse jeito é triste demais (...).452
Os mortos e os soldados mutilados são, na maior parte das vezes, retratados como uma
visão incompreensível ou assustadora. A tristeza ressaltada no relato de Aristóteles Coelho ao
visitar os soldados mutilados pela guerra, pessoas perfeitas que voltavam para sempre
marcadas pela guerra. Não só os feridos e mortos são motivo de pavor por parte dos
veteranos, às vezes outras marcas, como os bombardeios inimigos e a neve, aparecem nos
relatos desses homens, como, por exemplo, na narrativa de Pedro Pereira sobre seu batismo de
fogo:
Tive meu primeiro combate (...) no front, em Monte Castello vigiando, éramos uma
turma e era muito perigoso, em 21 de fevereiro nós descemos para bem perto do
450
OLIVEIRA, João Alves de: depoimento [1º de outubro de 2003]. Carmo do Cajuru, Minas Gerais. Entrevista
concedida a Heloisa Helena Corgosinho. 451
MORAES, Alexandre Pouchain de. Nos passos da FEB. Disponível em: http://www.portalfeb.com.br/nos-
passos-da-feb/. Acesso em: 27 jun. 2014. 452
COELHO, Aristóteles Gonçalves: depoimento [17 de junho de 2014]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista
concedida a Izaac Erder Silva Soares.
169
front, todos estavam esparramados, os americanos faziam uma cortina de fumaça
para que os alemães não avistassem nosso batalhão, mas eles jogavam bomba na
fumaça assim mesmo, de madrugada nós descemos e vimos alguns amigos
brasileiros bombardeados, uma coisa louca, íamos mesmo com artilharia em cima, a
terra tremia, nos horrorizávamos com o barulho. Os americanos tomavam o
Belvedere e os brasileiros o Monte Castello, foi uma alegria, pois estávamos ali há
muito tempo debaixo da neve, um inverno muito rigoroso e forte.453
Nos relatos desses veteranos, a guerra não é apresentada de forma gloriosa. Eles não se
posicionam nas narrativas como heróis, mas de outra forma. O heroísmo, veiculado pelo
governo e pelas Forças Armadas, não é tão compatível com a realidade vivenciada na frente
de batalha na Itália, a “guerra real” é sangrenta, e nela os soldados são “despedaçados” e
mortos. A questão levantada por esses veteranos não gira em torno de um possível
enquadramento na figura do herói nacional pretendida pelas instituições, mas sim de um
conflito violento, no qual a maior preocupação era sobreviver e voltar para casa.
Neste sentido, o governo e as Forças Armadas quase não aparecem nos relatos desses
veteranos. Essas instituições figuram de forma neutra. Na maioria das narrativas, não há uma
crítica contundente em relação a essas instituições, a não ser num desses relatos, o do veterano
Agripino Pereira, que denuncia o despreparo e a negligência das instituições governamentais e
militares brasileiras em relação às tropas brasileiras nas Itália. Em sua fala, Agripino afirma
que apanhou e passou fome durante a guerra; seu relato apresenta uma visão extremamente
crítica em relação às instituições brasileiras e as formas como estas tratavam os soldados da
FEB na frente de batalha na Itália:
Lá, o americano já tinha organizado barraquinhas para cada dois soldados, nós
ficamos sob o comando deles, (...) mas eles organizavam comida, tudo, não nos
faltou nada. Quando mudamos para outro lugar, um arraial próximo a Stáfole, o
americano não pode nos acompanhar. Nessa ocasião, passamos fome, e o que
reclamava foi amarrado no pau, eu fui preso. (...) Como estávamos com fome,
alguns soldados fugiam e iam ao arraial de Stáfole comprar cachaça e carne de
carneiro, que para eles é técone.454
Agripino associa a fome especificamente à ausência dos militares americanos. De
alguma forma, o veterano expõe o que ele considera um abandono das tropas por parte das
autoridades brasileiras responsáveis pela manutenção delas. Para ele, a fome não é associada a
uma condição da guerra, mas à falta de organização ou ao preparo das autoridades brasileiras:
453
GONTIJO, Pedro Pereira: depoimento [2 de outubro de 2003]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista
concedida a Heloisa Helena Corgosinho. 454
SILVA, Agripino Pereira da: depoimento [7 de outubro de 2003]. Divinópolis, Minas Gerais. Heloisa Helena
Corgosinho.
170
De forma que falo o seguinte, falei isso na Associação, e falaram até em me prender,
muitos não falam o que eu vou falar para não desfazer de nossa Pátria, mas se não
fossem os americanos, o que não morresse de frio e fome na guerra morreria a
tiro.455
Além de notar as censuras feitas contra seus relatos na Associação dos Veteranos,
Agripino associa o que motiva outros veteranos a não relatarem as privações vivenciadas na
Itália a um desejo de “não desfazer de nossa Pátria”. Assim, ele associa a manutenção e
instrução dos brasileiros aos “americanos”, isto é, as autoridades militares estadunidenses.
Essa veiculação da manutenção e tutela da FEB pelas autoridades militares estadunidenses
não é exclusividade da narrativa deste veterano. Esta relação próxima aparece nos relatos de
outros praças. A ideia de que os “americanos” são tutores dos brasileiros na guerra se dá
devido aos diversos acordos estabelecidos entre as autoridades militares dos EUA e o governo
brasileiro, e em quase todos os relatos, os militares estadunidenses são retratados de forma
positiva456
. No relato de Osmar Gomes, ele faz uma espécie de defesa dos estadunidenses,
como grandes colaboradores das tropas brasileiras:
Agora, o americano, muita gente fala deles, mas tem... Eu sou a favor do americano,
nos tivemos lá, por exemplo, um ano na Itália, o americano é que sustentou a gente
lá de tudo, de comida, tanto quando nós fomos, o navio levou carne seca e farinha de
mandioca, o americano não deixou descarregar não, deu pro italiano, porque diz que
soldado não podia comer carne seca nem farinha de mandioca, porque o almoço que
o americano dava pra nós era almoço tudo brasileiro, tinha arroz, feijão, macarrão e
uma verdura, agora, à tarde, quando era janta, que era americana, era tudo enlatado,
carne de porco (...) O americano dava apoio a todo mundo.457
Apesar dessa visão bastante positiva em relação aos militares estadunidenses, que é
seguida de alguma forma pela maioria dos veteranos, também existem pontos de contradição.
Um veterano em especifico vê essa aliança entre Brasil e EUA de outra forma. Para Donaldo
Vespúcio, a associação da imagem dos militares estadunidenses como benfeitores, construída
por grande parte dos veteranos da ANVFEB de Divinópolis, não é correta.
Esse veterano não limita sua análise apenas ao contexto da guerra, mas busca uma
explicação para os motivos que levam os militares estadunidenses a colaborar com as tropas
455
Ibidem. 456
Sobre a comissão mista de defesa e a questão das condições de envio da FEB para o teatro de operações da
Itália, ver: McCAAN, Frank. Op. Cit., 1995. 457
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares.
171
brasileiras. Assim, no relato desse veterano, os “americanos” passam de benfeitores a
oportunistas:
(...) O Brasil vivia uma época de muita fartura, não havia inflação, o Brasil não
devia nenhum centavo a nenhum outro país, então eu acho que a dívida externa
começou com a guerra, porque o americano não faz guerra a não ser para ganhar
dinheiro, e tudo que, a manutenção dos soldados brasileiros na guerra, na Itália, nós
fomos aliados dos americanos na guerra contra os alemães (...) tudo o que os
americanos nos forneciam era cobrado, era cobrado a preço de ouro, os uniformes, o
armamento, a alimentação, a condução, e então o Brasil começou a dívida externa
brasileira, eu acho, durante a guerra, porque quando eu cheguei no Rio, porque eu
peguei um jornal, o Correio da Manhã, e estava assim em destaque na primeira
página “custo da guerra: 300 milhões de dólares”, foi o início da dívida externa
brasileira.458
Apesar de não ser possível comprovar a veracidade dessa edição do referido jornal, a
associação feita por esse veterano nos leva a outra possibilidade, em que a aliança militar e
econômica entre Brasil e EUA se deu, unicamente, em vista dos interesses econômicos
estadunidenses. Como o próprio Donaldo Vespúcio afirma, “americano não faz guerra a não
ser para ganhar dinheiro”459
. Contudo, o que importa aqui não é verificar a veracidade dessa
edição do jornal Correio da Manhã, mas a própria existência desse relato, que nos leva a uma
possibilidade de associação diferente de grande parte dos relatos dos veteranos do ANVFEB
de Divinópolis.460
As diferentes possibilidades de associações e representações que surgem nos relatos
desses veteranos podem ser entendidas exatamente pela subjetividade da constituição desses
relatos: cada um desses veteranos ocupava um lugar social antes de ir para a guerra; cada um
passou por um percurso bastante singular, realizando uma leitura, e, posteriormente, uma
releitura desse universo pelo qual passou muito singular. As possibilidades diversas se dão
exatamente por essas diferentes singularidades, pelos diversificados lugares sociais e pela
própria constituição dos sujeitos.
Neste sentido, devemos partir da premissa que só acessamos o passado de forma
fragmentária, incompleta e precária, ou seja, só acessamos uma dada realidade que não mais
458
VESPÚCIO, Donaldo Ronaldo: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 459
Não encontramos a referida edição do jornal Correio da Manhã no acervo da hemeroteca digital da Biblioteca
Nacional. Contudo, acreditamos que o referido acervo não esteja completo. Ver acervo da hemeroteca digital
disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=089842_05&pasta=ano%20194&pesq
Acesso em: 23 jun. 2014. 460
Se essa associação se realizou durante a guerra, ou como o próprio relato nos leva a crer, logo depois do
retorno desse sujeito ao Brasil, ou num momento posterior, é mais difícil saber com certeza, contudo devemos
considerar que essa associação existe e é proferida no relato desse veterano.
172
existe, um contexto específico de significados, no qual o que talvez persista seja um
amontoado de ruínas e sentidos desfigurados, transformados e ressignificados pelo transcorrer
do tempo. A grande maioria das fontes possíveis, admitidas como testemunhos desse passado,
são produções subjetivas, são pontos de vista advindos de sujeitos diversos, que apresentam
seus testemunhos conforme suas crenças, seus códigos de valores, suas releituras do passado
e, ainda, refletindo o lugar social que esse sujeito ocupou e ocupa.
Só temos acesso, mesmo que de forma parcial, a uma determinada porção da realidade
passada, quase que exclusivamente através dos testemunhos de outros. O real só nós é
permitido enquanto acesso indireto, parcial, fragmentário e através de uma subjetividade que
julga e deposita sentido e valor a esse real.
O relato sempre se origina de um sujeito que lembra, que ressignifica, que faz
constantes releituras de suas experiências vividas, um sujeito que, às vezes, silencia um
trauma sofrido ou mesmo a vergonha de seus atos, que esquece e que atribui valor e sentido
àquilo que vivenciou no passado. Ou seja, o testemunho, o relato, é sempre uma reapropriação
de algo que falta, de algo que comove, mas que não mais está presente. Assim, devemos ter
sempre em mente que
(...) o testemunho opera em uma zona fronteiriça: ora faz a mimese de fatos, de
modo a apresentá-los “tais como aconteceram” e “construindo, para tanto, um ponto
de vista confiável ao suposto leitor médio; ora exprime determinados estados de
alma ou juízos de valor que se associam, na mente do autor, às situações evocadas”.
Considerando que o testemunho é elaborado na fronteira entre a objetividade
pretendida na ordenação dos fatos e a subjetividade alcançada quando da
interpretação e descrição singular de um acontecimento (...)461
Os relatos residem exatamente nessa intercessão, à referência a fatos, à realidade
passada, mas também carregam consigo maneiras de se entender essa mesma realidade, essa
subjetividade e singularidade interpretativa de cada testemunho em especifico. Por isso, os
relatos devem ser tomados como possibilidades distintas de representações do passado, pois
fiam modelos interpretativos particulares e singulares, mas não perdem sua ligação com uma
determinada realidade passada.
Outra questão que aparece na maioria dos relatos desses veteranos é a respeito dos
inimigos, sobretudo sobre os soldados alemães que os praças brasileiros combateram na Itália
durante a Segunda Guerra. Assim como as tropas estadunidenses, os alemães são
461
OLIVEIRA, Lucas Amaral de. O testemunho literário como documento empírico: uma reflexão
metodológica sobre a memória a partir da obra de Primo Levi. Disponível em: http://www.ufpel.tche.br
/isp/ppgcs/eics/dvd/documentos/gts_llleics/gt20/g20lucasamaraldeoliveira.pdf. Acesso em: 10 dez. 2012.
173
mencionados de formas distintas por cada um dos veteranos em seus relatos, e essas
representações giram em torno de extremos quase opostos: entre a demonização e a
humanização desses soldados.
O veterano Horizontino Neves, quando questionado sobre os inimigos que combateu
na Itália, apresenta uma visão fronteiriça, isto é, os alemães são, ao mesmo tempo, membros
de um povo admirável e originários de um país “muito desenvolvido”, mas também são
maléficos:
Inimigos só os alemães, pois nessa época os italianos, no território conquistado, já
tinham se entregado a nós. Mas a impressão que temos de uma pessoa que quer nos
atacar é que ele é mau (...) Foi uma coisa absurda, eu fico pensando como um
homem, o Hitler, que era simples e sem preparo intelectual, conseguiu “dobrar” uma
nação inteira e um povo inteligente, pois a Alemanha sempre foi um país muito
desenvolvido, como um homem conseguiu fanatizar esse povo.462
A visão de Horizontino Neves é dividida: ao mesmo tempo em que descreve o soldado
alemão como “mau” e “fanático”, ele faz elogios ao povo alemão. Sua versão vê a maldade
como originaria da figura de Adolf Hitler, um homem “simples e sem preparo” que teria
persuadido toda uma nação. A ideia de soldados fanáticos, ensandecidos por uma espécie de
mágica hipnotizante pelo líder nazista Adolf Hitler, também aparece no relato do veterano
Agripino Pereira da Silva:
A convicção deles era só para maldade. Os tais SS tinham juramento de morrer e
não se entregar. Em Montese, um SS estava debaixo da linha e matou cinco
brasileiros. Quando saiu com a mão na cabeça falando “camarada, camarada”, o
tenente mandou fazermos dele uma peneira. Todos atiraram, e ele caiu no chão ainda
chamando por Hitler, que era o Deus deles, tomou uns 200 tiros. (...) Eu tinha medo,
pois eram perigosos e traiçoeiros.463
Assim como no relato de Horizontino Neves, o veterano Agripino Pereira também
associa a figura dos soldados inimigos à ideia de maldade e os retratam como “perigosos e
traiçoeiros”. É relevante notar que essas representações negativas sobre os inimigos do Brasil
durante a Segunda Guerra não são exclusivas dos veteranos brasileiros, mas surgem antes
mesmo da formação da FEB.
462
NEVES, Horizontino: depoimento [1º de outubro de 2003]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida
a Heloisa Helena Corgosinho. 463
SILVA, Agripino Pereira da: depoimento [7 de outubro de 2003]. Divinópolis, Minas Gerais. Heloisa Helena
Corgosinho.
174
Logo depois dos ataques dos U-boats alemães aos navios mercantes brasileiros, em
1942, o presidente Vargas começou a propagandear essas ideias negativas em relação aos
alemães e italianos, tratando-os como traiçoeiros, mesquinhos e covardes e, em contraposição,
afirmando a população brasileira como pacífica e educada em “virtudes cristãs”, defensores
da justiça e da liberdade464
. De certa maneira, as instituições nacionais fomentaram uma
aversão contra a Alemanha e a Itália logo depois dos ataques contra os navios mercantes
nacionais. As instituições nacionais tentaram despertar nos brasileiros uma ideia de vinganças
e mesmo de uma espécie de cruzada, uma luta justa contra o bárbaro traiçoeiro, o incivilizado,
o violento, o agressor e o não cristão.465
Essa aversão contra os inimigos, especialmente os alemães, continua na frente de
batalha na Itália. Num dos periódicos brasileiros que circulava entre as tropas nacionais na
Itália, O Cruzeiro do Sul, podemos ver uma continuidade dessa visão negativa em relação aos
nazistas, numa matéria denominada “Os panfletos de Hitler”:
Abrimos aqui um parêntesis para vos contar, soldados brasileiros, o quanto o
inimigo que combatemos é vil e traiçoeiro. No mês passado, procurou comunicar-se
com as tropas brasileiras por meio de panfletos escritos em português e
profusamente lançados sobre nossos combatentes da primeira linha. Nesses
panfletos, os alemães e seus comparsas dizem-se de uma bondade a toda prova –
chamam-se a si próprios, soldados perfeitos e fiéis aos tratados internacionais que
dizem obedecer criteriosamente (...)466
Ainda nessa referida matéria, o redator do jornal se refere aos alemães como
“embusteiros”, “traiçoeiros” e “canalhas”, e os panfletos lançados pelos alemães são vistos
como mentiras, uma tentativa suja de desmobilizar as tropas nacionais. O redator, que assina
com o pseudônimo de “Vigilante”, termina sua matéria com as seguintes palavras: “O Brasil
tem razões para fazer esta guerra. Nós devemos combater com ardor e com ódio o inimigo
que quer nos vencer”.467
Para alguns veteranos, o envio de tropas brasileiras para lutar na frente de batalha da
Itália é uma resposta direta aos afundamentos dos navios mercantes nacionais, o que causou a
morte de centenas de brasileiros468
. O veterano Donaldo Vespúcio associa a entrada do Brasil
464
Ver discurso de Getúlio Vargas no dia 7 de setembro de 1942. Ver: D‟ARAUJO, Maria Celina (Org.). Op.
Cit., pp. 384-386. 465
Sobre a questão da construção da imagem do inimigo, ver: PERAZZO, Priscila Ferreira. Op. Cit., 1999. 466
MORAIS, Roberto Mascarenhas de. (org.) O Cruzeiro do Sul: coleção completa do órgão especial da FEB
na Itália. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2011. Edição do dia 10 de janeiro de 1945, nº 3, ano I. 467
MORAIS, Roberto Mascarenhas de. O Cruzeiro do Sul: Coleção completa do órgão especial da FEB na
Itália. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2011. Edição do dia 10 de janeiro de 1945, nº 3, ano I. 468
SANDER, Roberto. Op. Cit., 2011.
175
na guerra especificamente a esses eventos: “O motivo da guerra foi o seguinte, (...) em 1943,
foram afundados vários navios mercantes na costa do Brasil”.469
Esses “panfletos de Hitler” tentavam minimizar os motivadores e convencer os
soldados brasileiros de que aquela não era uma guerra deles, mas sim uma guerra dos EUA. O
veterano Pedro Pereira faz referência especificamente a esses panfletos e a guerra de
informações vivenciada na frente de combate:
O Exército alemão se achava o melhor do mundo. E tinha uma coisa importante,
jogavam aqueles folhetos, junto com outros papéis, escritos em português e
“metendo o pau” nos Estados Unidos; guerra é política. Falavam que o EUA tinha
selecionado o melhor soldado brasileiro para tomar conta, pois já mandava aqui. E
que não foram os alemães que afundaram nossos navios, e sim os americanos (...)
mostravam os americanos pisando na bandeira do Brasil e a bandeira americana bem
no alto.470
O relato de Pedro Pereira é bem significativo, pois propõe uma origem para uma
versão segundo a qual os navios mercantes nacionais teriam sido afundados pelos
estadunidenses, além de descrever, com muita clareza, o que ele chama de “aqueles
folhetos”471
. O conteúdo desses referidos folhetos, que eram lançados sob as tropas
brasileiras, complementa o relato de Pedro Pereira, pois a ideia de superioridade alemã
indicada pelo veterano pode ser confirmada e, ainda, de forma geral, esses folhetos
convidavam os brasileiros a se entregarem às tropas alemãs, e eles valeriam como uma
espécie de salvo-conduto. Entretanto, a mensagem alemã era, no mínimo, provocativa:
E por que é que vocês abandonaram a vossa terra, cheia de sol e radiante, e
combatem agora aqui na neblina, na lama e na imundície, esperando o inverno
horrível, com suas tempestades de neve e as intermináveis avalanches de neve? Isso
vale os 95 dólares que recebeis mensalmente? O corpo esburacado pelas balas ou
uma sepultura na Itália sempre deveriam ser melhor pagos. Sim, porque não é outra
coisa que vos espera, porque nós, soldados alemães, defenderemos tenazmente e
com pertinácia cada metro da nossa frente. Mas vocês próprios bem nos devem ter
sentido em Abetaia.472
469
VESPÚCIO, Donaldo Ronaldo: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. 470
GONTIJO, Pedro Pereira: depoimento [2 de outubro de 2003]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista
concedida a Heloisa Helena Corgosinho. Ver: ANEXO 09 – Folhetos Inimigos. Acervo do Arquivo Público
Municipal de Divinópolis. p. 3. 471
A versão de que os navios mercantes nacionais teriam sido afundados pela Marinha estadunidense nunca foi
fundamentada em provas fiáveis, e já foi tratada em alguns estudos, no sentido de comprovar a inverdade dessa
versão. Ver: RAHMEIER, Andrea Helena Petry. Op. Cit., 2009. 472
Folhetos Inimigos. Acervo do Arquivo Público Municipal de Divinópolis. p. 1.
176
Apesar de essa não ser uma mensagem especificamente dos soldados alemães, mas de
algum setor de contra inteligência ou mesmo de propaganda de guerra alemã que, de fato,
deve ter redigido essa mensagem, o sentido do folheto é bastante hostil e desafiador, pois
perfila uma suposta superioridade militar alemã, além de fazer alusão ao episódio dos 17
brasileiros mortos em Abetaia. E a maior parte dos outros panfletos e “papéis” também segue
esse mesmo teor provocativo e desafiador.473
Contudo, alguns veteranos apresentam outras visões sobre o inimigo, fugindo um
pouco desse estereótipo negativo entronizado pelo governo e pelas instituições militares
brasileiras e reproduzido por alguns praças. Não que isso signifique ver os soldados alemães
como “bons homens”, mas sim vê-los como humanos, como semelhantes aos próprios
veteranos474
. Em seu relato, João Okada tenta humanizar os inimigos que enfrentou. Ele se
refere a eles como inteligentes e acostumados com a guerra, homens como quaisquer outros,
que seguiam ordens e, assim, como ele, foram mandados para frente de batalha:
Quando a pessoa tem uma grande vitória, tenho certeza que atirei tanto e matei
tanto, mas a gente, pensando bem, aqueles outros que está lá também, foi porque
foram mandados, nós vimos filho de alemão, rapaz novo, aí, com 16, 17 anos,
começando a vida, perdendo a vida ali, então, é uma coisa que é triste para um lado
e é triste para o outro, eles também mata a gente, mas nós nunca encontramos, nunca
fez nada, e a pessoa ali tem que matar, ou matar ou morrer (...).475
Essa incômoda condição do trabalho cotidiano com a morte, e de obrigatoriamente ter
de “ou matar ou morrer”, não é motivada pela aversão ou pelo ódio ao outro, mas pela própria
condição dos combates – as questões estratégicas de tomadas de posições ou da defesa de uma
determinado ponto. Okada chama a atenção que o inimigo é um estranho, é uma pessoa que
você nunca encontrou e, por isso, não pode ter nada contra, mas a condição da guerra gera
esse universo em que “a pessoa ali tem que matar”, mesmo que o inimigo não seja o outro, o
bárbaro e incivilizado, mas o semelhante, um homem igual e que foge do estereótipo odioso
propagandeado pelo governo e pelas instituições militares.
Os contatos e as relações entre os praças da FEB e a população italiana também são
bastante recorrentes nos relatos dos veteranos. A população italiana que os praças
encontraram na Itália, em sua maioria, passava por grandes privações em detrimento da
473
Folhetos Inimigos. Acervo do Arquivo Público Municipal de Divinópolis p. 2. Sobre os mortos em Abetaia,
ver: FINATO, Alexei Bueno. João Tarcisio Bueno: o herói de Abetaia. Rio de Janeiro: Editora G. Ermakoff,
2010. 474
Ibidem. 475
OKADA, João: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac Erder Silva
Soares.
177
guerra, e essa constante privação de alimentos e toda sorte de gêneros de primeira necessidade
colaboraram para uma situação de proximidade entre os soldados aliados e a população
italiana, que via nos soldados uma possibilidade de acesso à comida, a roupas, a
medicamentos e outros produtos.
Quase todos os veteranos relatam que encontraram uma população italiana faminta,
vivendo em péssimas condições, em cidades e lugarejos atingidos pelas batalhas e
desfigurados pela guerra. O veterano João Alves descreve essa situação por que passavam os
italianos durante a guerra: “Fomos passear na cidade de Nápoles, e foi muito triste, era muita
fome, muita gente, muita criança, todos pedindo comida”.476
Ainda em seu relato, João Alves descreve essa proximidade entre os soldados
brasileiros e a população italiana:
Nós cuidamos muito deles que estavam passando fome, queriam cigarro e pediam
restos de comida. (...) e tinha que ajudar pois a turma estava a tempo de cair de
fome, então ajudavam muito.477
O veterano Agripino Pereira também descreve essa relação em que os soldados
brasileiros assumem uma espécie de responsabilidade sobre os italianos, que sofriam um
momento de privação: “Levávamos roupas, cigarro, lenço, tudo que sobrava levávamos para
eles; o lugar que estávamos eles comiam de tudo conosco”. O veterano João Okada também
descreve essa situação de miséria e fome por que passavam os italianos:
Lá em Livorno eu vi mais a tristeza do povo italiano, aqueles que tinham perdido pai
ou mãe ou irmão, um isso ou outros, ou estava na guerra também, então com a
destruição eles ficavam pedindo até comida. Então, via aquela coisa de tristeza
mesmo, então eu sempre pensei (...) a pessoa como soldado, como militar, ele vai
pra guerra sabendo o que que vai fazer, mas, quando a população sofre, é uma
calamidade que a gente sente muito no coração, vê aqueles avôs pedindo comida, vê
aquelas moças perdendo... Às vezes, não tinha coragem de fazer isso... Chega perto
do soldado pedindo isso, pedindo aquilo, então, eu penso que aquilo é uma
humilhação; então, a guerra faz todas essas coisas.478
As relações entre os praças e os italianos não se limitaram aos atos de caridade
descritos pelos veteranos para com os populares do norte italiano, mas os próprios italianos se
esforçavam para acolher os soldados brasileiros da melhor forma possível. Talvez isso se deva
476
OLIVEIRA, João Alves de: depoimento [1º de outubro de 2003]. Carmo do Cajuru, Minas Gerais. Entrevista
concedida a Heloisa Helena Corgosinho. 477
Ibidem. 478
OKADA, João: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac Erder Silva
Soares.
178
à ideia de que os soldados aliados e, consequentemente, os soldados da FEB foram
considerados pelos italianos como libertadores da Itália do julgo nazifascista479
. Os veteranos
João Alves e Agripino Pereira relatam uma relação muito próxima com os italianos. Ambos
afirmam que permaneceram hospedados na residência de famílias italianas por algum tempo
durante a guerra:
Fiquei uns três meses em uma casa de italianos, acho que éramos seis companheiros.
A casa tinha uns dois andares, o italiano ficava em cima com sua família. Ele tinha
gado e guardava o feno para dar ao animal, nós aproveitávamos aquilo para
esquentar no frio, tínhamos também um tambor de ferro com carvão de pedra que
nos aquecia, pois o frio era terrível, você não via o sol.480
Chegávamos numa casa e eles separavam os italianos em outro cômodo e nós
tomávamos conta do resto, mas a comida que vinha para nós eles comiam de um
tudo. Mas o brasileiro não respeitava tanto, judiavam das famílias. Vejo eles
contarem por aí, mas lá aconteceram casos vergonhosos.481
Além desse relacionamento fraterno entre brasileiros e italianos, o veterano Agripino
Pereira fala de “casos vergonhosos”, envolvendo soldados brasileiros que teriam faltado com
respeito para com as famílias italianas. Contudo, o veterano se recusa a descrever
especificamente quais eram esses casos482
. Esse comportamento desviante por parte de alguns
soldados brasileiros nas cidades italianas é mencionado num outro trecho do relato de
Agripino. Ele afirma que “uma frente de um outro batalhão estava em um armazém na maior
confusão, querendo até assaltá-lo”483
. Apesar do relato de Agripino, ou de qualquer um dos
outros veteranos, não revelar muito sobre esses episódios de abusos contra os italianos, são de
conhecimento outros casos de violências cometidas por membros da FEB contra a população
italiana, entre eles estupros, pequenos roubos e agressões são os mais recorrentes484
. O
episódio de maior destaque, neste sentido, foi o estupro de uma adolescente italiana e o
assassinato de um tio dela. Esse crime, que ganhou certo destaque na mídia nacional, foi
479
Ver: RIGONI, Carmen Lúcia. La Forza di Spedizione Brasiliana (FEB) – Memória e História: marcos na
monumentalística italiana. 2003. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Paraná,
Curitiba. 480
OLIVEIRA, João Alves de: depoimento [1º de outubro de 2003]. Carmo do Cajuru, Minas Gerais. Entrevista
concedida a Heloisa Helena Corgosinho. 481
SILVA, Agripino Pereira da: depoimento [7 de outubro de 2003]. Divinópolis, Minas Gerais. Heloisa Helena
Corgosinho. 482
Ibidem. 483
Ibidem. 484
Sobre os crimes cometidos por expedicionários da FEB, ver: PEREIRA, Carolina Mendes. Delitos sexuais
cometidos pelos soldados brasileiros em Campanha na Itália durante a Segunda Guerra Mundial: do estupro e
homicídio ao indulto. 2003. Monografia (Bacharelado e licenciatura em História) – Universidade Federal do
Paraná, Curitiba.
179
cometido por dois integrantes da FEB, que foram julgados pela Justiça Militar e chegaram a
ser, inclusive, condenados à morte. Entretanto, posteriormente, esses veteranos tiveram suas
penas convertidas em prisão.485
O fim das hostilidades na frente italiana se deu no dia 2 de maio de 1945. Contudo, a
maior parte dos expedicionários brasileiros permaneceu na Itália até junho daquele mesmo
ano, cumprindo missões de ocupação militar em cidades do norte italiano486
. Esse período
aparece, na maioria dos relatos, de forma diminuta, como um momento em que os
combatentes brasileiros teriam visitado cidades turísticas por toda a Itália. O momento em que
os expedicionários receberam a notícia do fim da guerra aparece em destaque em quase todos
os relatos.
A forma como a notícia chega até esses homens, o lugar em que estão e a forma como
cada um deles lida com o fim das hostilidades são bastante significativos, pois revela como
um evento de orientação macro, como é a ordem de cessar-fogo na frente italiana, é
representado e associado de forma tão subjetiva por cada um desses veteranos.
Nós chegamos em Valença, à tarde, os alemães fugiram de um prédio e deixaram
para trás fuzil, uma prateleira cheia de bolacha que parecia bosta de vaca seca, eles
já estavam num rumo onde não tinham mais farinha de trigo e mais nada.
Aproveitamos a cama que eles fizeram para dormir, ajeitamos com palha de trigo, a
janta não chegou e com fome comemos as bolachas do inimigo, não podíamos ter
comido, pois poderiam estar envenenadas, eu mesmo fui um que comi, e muito.
Quando amanheceu o dia, chegou um cara de outra companhia que nos disse que a
guerra acabou; nós não acreditamos e vaiamos ele; quando foi a hora do almoço (...)
chegou um carro com dois americanos e foram conversar com o intérprete, na nossa
companhia, o intérprete era o sargento, (...) e o sargento transmitiu para nós que a
guerra no nosso front havia acabado e que acabaria nos próximos três dias nos
outros também.487
Estávamos no hospital que tinha o mapa da guerra, com os locais de combate,
quando foi de manhã, fomos tomar café, e o mapa estava todo riscado, o italiana
danou a gritar “finito, finito la guerra”, e nós sabíamos que a guerra havia acabado;
depois de uns dois dias é que oficializaram o fim.488
485
Apesar da condenação, os dois expedicionários não foram executados por um pelotão de fuzilamento, pois
tiveram suas penas convertidas em prisão. Ver: MEDEIROS, Rostand. Eles desonraram a farda da FEB.
Disponível em: http://tokdehistoria.com.br/2013/02/08/eles-desonraram-a-farda-da-forca-expedicionaria-
brasileira/. Acesso em: 1º jul. 2014. 486
FERNANDES, Fernando Lourenço. A estrada para Fornovo: a FEB-Força Expedicionária Brasileira,
outros exércitos & outras guerras na Itália, 1944-1945. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2009. pp. 131-
299. 487
SILVA, Agripino Pereira da: depoimento [7 de outubro de 2003]. Divinópolis, Minas Gerais. Heloisa Helena
Corgosinho. 488
OLIVEIRA, João Alves de: depoimento [1º de outubro de 2003]. Carmo do Cajuru, Minas Gerais. Entrevista
concedida a Heloisa Helena Corgosinho.
180
Assim como o fim da guerra, que é associado pelos combatentes às bolachas secas
deixadas pelos alemães ou aos gritos dos italianos num hospital, o momento da chegada dos
veteranos no Brasil também guarda essa característica de forte subjetividade. Cada um dos
expedicionários vivenciou algo único ao retornar para o Brasil e, para alguns, esse é o
momento mais emocionante, como relatam os veteranos João Okada e Agripino Pereira:
Agora coisa gostosa é quando a gente recebeu uma vitória, fomos chegando perto do
Rio de Janeiro, quando avistou o Rio de Janeiro, gente falando “está chegando”, dá
aquele tremor no corpo da gente, que a gente voltava pro país da gente, estava
voltando, é uma vitória, e a pessoa está pronta pra passar em qualquer coisa, em
qualquer necessidade, e ainda acha bom. Porque lá eu fiz um pedido a Deus,
“Senhor, me guarda eu, eu quero voltar pro meu Brasil, posso ser varredor de rua,
mas eu quero voltar pro Brasil”.489
Agora emoção foi na chegada de lá pra cá, na volta ao Brasil. Eu nunca vi um chorar
de ir para a guerra, mas na nossa chegada você olhava e estava todo mundo
chorando de emoção de voltar. Quando chegamos na Baía de Guanabara, o dia
estava começando a clarear, você olhava ao redor do nosso navio e só via barco,
navio grande e pequeno, rodearam nosso navio. (...) Quando chegamos ao cais, a
emoção virou tristeza por causa da quantidade de mãe que procurava o filho e havia
morrido, várias mães desmaiaram no cais, foi dureza. E show e balão em volta de
nós, foi aquela emoção, nós chegamos a chorar.490
Ambos os expedicionários relatam a emoção de voltar para casa, entretanto essa
emoção é associada a diferentes elementos. Enquanto Okada revela sua promessa, Agripino
fala das embarcações que “rodeavam” o navio de tropas que traziam os veteranos e da tristeza
das mães que procuravam os filhos que haviam morrido em solo italiano. Apesar de os dois
veteranos partilharem um momento em comum – o retorno ao Brasil –, ambos constroem seus
relatos e fazem associações de formas diferentes um do outro.
Geralmente, junto aos relatos dos veteranos sobre o retorno ao Brasil, surgem,
também, os ressentimentos em relação à atuação do governo brasileiro para com os
expedicionários no pós-guerra. Na maior parte dos relatos, podemos perceber uma sensação
geral de abandono e recorrente queixa de que as promessas feitas pelo governo antes da
guerra não foram cumpridas. O veterano Agripino fala dessas promessas não cumpridas:
O Getúlio Vargas estava em um palanque em uma altura doida e nós dentro do
navio, pois havíamos embarcado à noite, mas nos despedimos no outro dia cedo. O
Getúlio fez tudo quanto foi promessa para nós: “aqueles que voltarem encontrarão o
489
OKADA, João: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac Erder Silva
Soares. 490
SILVA, Agripino Pereira da: depoimento [7 de outubro de 2003]. Divinópolis, Minas Gerais. Heloisa Helena
Corgosinho.
181
Brasil assim porque eu vou fazer isso e vou fazer aquilo outro” (...) fez tudo quanto
foi promessa, e, quando chegamos, não tinha nada.491
Neste trecho do relato, Agripino destaca as promessas não cumpridas, que tudo aquilo
que o próprio presidente teria lhes prometido não fora realizado. Ainda é relevante notar que,
para o veterano, a figura do governo e do então presidente se confundem. Vargas é lembrado
quase como sinônimo do regime. É difícil dizer se o não-cumprimento dessas promessas
feitas por Vargas está de fato associado ao descaso do governo ou se tem relação com o fim
do regime e o retorno do país ao sistema político democrático. Entretanto, é significativo
notar que essa ideia de descaso dos governantes em relação aos veteranos não é exclusivo do
período final do Estado Novo brasileiro, assim como alguns governantes são associados como
“melhores” em relação às políticas de auxílio aos veteranos. O veterano João Alves descreve
bem essa situação:
Voltei para casa e me casei no mesmo ano que voltei, construí uma casa com o
dinheiro que o governo nos deu e fui trabalhar na roça, aí a situação começou a
piorar, eu já tinha filhos e estava preocupado, fui a Belo Horizonte e a turma toda
começou a pedir emprego que não nos davam, em 1970 e poucos, governo de
Tancredo Neves e João Goulart nos colocaram no Correio, então, saí da zona rural e
vim para a cidade de Carmo do Cajuru, trabalhei no Correio uns 11 anos, não me
aposentei, depois passaram o Correio para empresa privada e queriam nos colocar
em dificuldade, tínhamos de dar uns pulos, recorri ao Exército, chamaram-me,
passei no exame de saúde e voltei à vida militar de novo, fui arquivado como cabo.
No governo do Collor, a turma toda reuniu outra vez, trabalhou, e fomos
promovidos e reformados como segundo-tenente, onde estou até hoje.492
Apesar de não seguir uma ordem cronológica exata em relação aos governos dos
referidos presidentes, o relato de Alves nos ajuda ao pontuar uma questão bem significativa:
uma ideia de grupo, de pertencimento, de segurança e de ajuda mútua, uma noção de que os
veteranos poderiam, de alguma forma, se ajudar coletivamente. Quando os problemas surgem
na narrativa, em nenhum momento o veterano se refere apenas a ele na primeira pessoa, mas
se insere num contexto mais ampliado – ele se refere ao grupo, ao coletivo: “a turma” ou
“tínhamos de dar uns pulos”, isto é, ele se coloca em um meio maior, um grupo que se
mobiliza e age em prol do bem de todos os seus membros.
Essa noção de grupo, mesmo no pós-guerra, é recorrente nos relatos de quase todos os
veteranos da ANVFEB da cidade de Divinópolis. De alguma maneira, esses sujeitos ligam-se
491
Ibidem. 492
OLIVEIRA, João Alves de: depoimento [1º de outubro de 2003]. Carmo do Cajuru, Minas Gerais. Entrevista
concedida a Heloisa Helena Corgosinho.
182
uns aos outros como um grupo que, por ter compartilhado um passado comum, acredita que
divide um destino semelhante.
Quando acabou a guerra, jogaram todos na rua; para irmos lutar, tivemos que fazer
exames rigorosos, mas, na volta, não fizeram exame; muitos vieram muitos com
tuberculose.493
Depois que voltamos, começaram os problemas, muitos voltaram sem profissão e
viviam com dificuldade, como o governo não tinha um programa de readaptação dos
militares para a vida civil. Com os problemas, passaram a tomar providências, as
coisas foram se ajeitando, fomos promovidos e, com a pensão militar, melhorou
ainda mais.494
Não se pode medir todas as formas de envolvimento pessoal de cada um dos praças da
FEB, pois variam de um engajamento político-ideológico voluntário até uma obrigatoriedade
instituída pelo Estado. Contudo, devemos ter em mente que a criação da FEB e a organização
do pessoal para compô-la proporcionaram a reunião de milhares de brasileiros em diversos
centros de treinamento militar para a formação desse corpo expedicionário nacional,
possibilitando, assim, a conformação de um grupo mais ou menos: milhares de civis de todos
os Estados brasileiros que seriam enviados aos campos de batalha na Itália para lutar na
Segunda Guerra Mundial.
Acreditamos que, depois da guerra e da extinção da FEB, esse grupo de homens
manteve essa ideia de grupo, o “nós”, se unindo não apenas para relembrar e ou preservar seu
passado, mas para se organizar política e socialmente, visando aos momentos de luta por seus
direitos junto ao governo, notadamente reunidos nas várias seções da Associação Nacional
dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira (ANVIFEB). Essa conformação como
grupo proporcionou, à grande parte desses veteranos, noções de identidade e pertencimento e
a criação de possibilidades de luta e resistência, deles próprios e de suas memórias, mesmo
depois da guerra.
493
GONTIJO, Pedro Pereira: depoimento [2 de outubro de 2003]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista
concedida a Heloisa Helena Corgosinho. 494
NEVES, Horizontino: depoimento [1º de outubro de 2003]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida
a Heloisa Helena Corgosinho.
183
3.3 – Memórias públicas dos veteranos da ANVFEB – Seção Divinópolis MG: entre a
lembrança e o esquecimento
3.3.1 – Múltiplos discursos e a construção de memórias públicas sobre os praças da FEB
Existe uma diferença significativa entre as memórias públicas construídas pelos
veteranos através de suas entrevistas, depoimentos e obras literárias e as variadas
formalizações e usos públicos diversos elaborados por outros grupos e sujeitos, que
geralmente não exprimem especificamente os sentidos e significados que os veteranos
desejam dar ao seu passado. Portanto, é relevante notar que a FEB, enquanto símbolo e ideal
de memória, foi utilizada em diversos momentos como referência política e militar, sendo
associada em meio ao debate público a determinados grupos e a ela foram atribuídos sentidos
e significados que não refletem as construções subjetivas elaboradas por grande parte dos
veteranos dessa Força Expedicionária.
Isto é, a memória pública da FEB não pode ser pensada apenas como o conjunto pouco
coeso das formulações e elaborações daqueles milhares de brasileiros que foram enviados aos
campos de batalha do norte italiano, mas também com as apropriações e os usos públicos e,
necessariamente, os sentidos e significados aí implícitos, que tratam dessa memória pública.
Não se trata propriamente de uma disputa aberta sobre a memória da FEB, mas de uma
pluralidade de sentidos atribuídos a essa Força Expedicionária que, muitas vezes, coexistem e
se relacionam. Neste sentido, não pretendemos tratar algo ordenado e lógico, mas exatamente
algo desordenado e, às vezes, com pouca ou nenhuma lógica. É a necessidade de conduzir um
questionamento: o que é a memória pública da FEB? Seriam os relatos e expressões
subjetivas de seus milhares de veteranos ou as formalizações organizadas por diferentes
grupos e instituições?
Para responder à tal pergunta, primeiramente devemos notar alguns dos usos públicos
da simbologia e imagem da FEB. Esses usos remontam mesmo antes da própria criação desse
corpo expedicionário pelo governo, que se deu muito mais como uma oportunidade de gerar
ganhos em reaparelhamento bélico e treinamento moderno para as Forças Armadas nacionais
do que como uma resposta às ofensas sofridas pelo Brasil.495
Contudo, o motivo da criação da FEB divulgada no meio público era outro: uma
resposta direta ao afundamento das embarcações brasileiras pelos submarinos do eixo, isto é,
495
Ver: McCAAN, Frank. Op. Cit., 1995.
184
de alguma forma representou a materialização dos desejos populares de vingança, fomentados
pelo Estado Novo através do DIP, contra as potencias nazifascistas. Para Mattos, capitão da
FEB durante a campanha da Itália, o corpo expedicionário brasileiro
(...) foi uma resposta altiva de um povo soberano a tão insólitas agressões. A FEB
foi a nossa participação como força combatente ao lado das nações que quiseram
preservar no mundo os ideais de democracia e liberdade (...)496
Durante o percurso da guerra, o DIP se ocupou em difundir, constantemente, a
participação do Brasil no conflito, havia um interesse em manter junto à população uma noção
de que as Forças Armadas nacionais participavam, continuamente, nas operações de guerra497
.
Nessas divulgações, o DIP recorrentemente associava o expedicionário à figura do herói e do
libertador. Não é estranho que, em alguns casos, e aqui podemos citar a família do veterano
Osmar Gomes, tenha-se criado um verdadeiro furor nacionalista junto à população.
Quando foi anunciado o fim das hostilidades na frente italiana e, posteriormente, se
iniciou a organização logística para o retorno dos expedicionários ao Brasil, também foram
anunciados grandes festejos e comemorações nacionais pelo retorno desses homens,
sobretudo para o retorno do primeiro escalão na cidade do Rio de Janeiro. Para Capellato:
O retorno dos ex-combatentes da FEB, como todas as datas nacionais brasileiras até
então realizadas pelo governo Vargas, foi comemorada em grande estilo, em um
curto período de tempo, com a participação do povo empunhando suas flâmulas e
bandeiras, legitimando a política de massas Varguista.498
A grandiosa festa de comemoração pelo retorno dos veteranos contrastava com o
clima político instável, e senão com o agonizar do regime ditatorial chefiado por Getúlio
Vargas. Como mesmo afirma Capellato, as comemorações foram curtas e não duraram mais
do que o período gasto para trazer de volta ao Brasil todos os elementos que compunham a
FEB.
Antes mesmo de os expedicionários retornarem ao país teve início um processo de
desmobilização e o estabelecimento de proibições do uso público de símbolos da FEB e
também de declarações dos expedicionários sobre a FEB e a guerra499
. Nesse momento, houve
496
MATTOS, General Carlos Meira. Op. Cit., 1985. p. 11. 497
Ver: ANEXO 10 – Cartaz de propaganda de guerra do DIP. Acervo do Arquivo Público Municipal de
Divinópolis. 498
CAPELLATO, Maria Helena Rolim. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no peronismo.
São Paulo: Papirus, FAPESP, 1998. p. 47-61. 499
ROSA, Alessandro do Santos. Op. Cit., 2010.
185
uma intensa disputa pelo uso do prestígio dos veteranos recém-chegados para fins políticos, e
os praças foram compulsoriamente arregimentados como “soldados da democracia”, e
supostamente exigiam o fim da ditadura do Estado Novo500
.
Essa vertente, que imputa aos praças da FEB um papel decisivo no fim do Estado
Novo, é bastante questionada. Não houve, por parte dos veteranos, qualquer tipo de
mobilização coletiva no sentido de se posicionar contra o Estado Novo ou a figura de Getúlio
Vargas. Não existe um manifesto, um abaixo-assinado ou qualquer tipo de movimento que
expresse, minimamente, o desejo desses sujeitos em se contrapor ao regime estado-novista.
Contudo, essa ideia foi difundida no meio público por outros agentes, o que faz com que essa
versão seja questionada, como afirma Ferraz:
É possível questionar a hipótese de que a FEB “derrubou” o Estado Novo e/ou
Vargas. O regime autoritário de 1937 já estava agonizando quando a FEB sequer
tinha tomado o Monte Castello. Embora seu simbolismo pudesse ser usado – e foi –
para reforçar a campanha contra o Estado Novo, foram as ações concretas de vários
grupos políticos que minaram a possibilidade de continuísmo de Vargas.501
Para Ferraz, seria mais plausível a possibilidade de os veteranos assumirem uma
postura próxima a “soldados de Vargas” do que contra Vargas, mas essa possibilidade
também não se afirma, apesar de poder ser elencada como um dos motivos da rápida
desmobilização da FEB502
.
Contudo, o que podemos notar é a existência, e também a permanência, da ideia de
que o retorno dos praças tem efeito de acelerar o fim do Estado Novo e a deposição de
Getúlio Vargas do poder. Essa associação pode estar relacionada à veiculação e aos usos
dessa versão em jornais, rádios e discursos políticos daquele momento. Entretanto, essa
associação é uma mera apropriação da imagem e do simbolismo da FEB junto à população
brasileira naquele momento para fins políticos.503
Essas associações políticas divulgadas no meio público influíram muito pouco ou nada
na vida dos praças veteranos. Na prática, esses homens foram desmobilizados e, em sua
500
SILVEIRA, Joel. II Guerra: momentos críticos. Rio de Janeiro: Mauad, 1995. pp. 175-192. 501
FERRAZ, Francisco Cesar Alves. Polêmicas historiográficas sobre a participação da Força Expedicionária
Brasileira na Segunda Guerra Mundial. In: XXVII Simpósio Nacional de História ANPUH. Conhecimento
histórico e diálogo social – Natal – RN, 2013. 502
Talvez a questão seja exatamente oposta, os praças podem ter representado, no imaginário dos adversários
políticos de Vargas, uma ameaça aos seus interesses, visto que esses poderiam se mobilizar mais facilmente em
prol do ditador, como afirma Ferraz. 503
IERVOLINO, Ana Paula. Democracia, ditadura e soberania nacional para os ex-combatentes da FEB. In:
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH – São Paulo, jul. 2011, pp. 3-7.
186
esmagadora maioria, devolvidos à vida civil de forma muito rápida. Com exceção de uma
parte significativa do oficialato da FEB, poucos elementos da força expedicionária se
envolveram na vida política nacional.504
Na maioria dos casos, os veteranos se sentem abandonados pelo governo e também
pela sociedade. O veterano Osmar Gomes relata esse sentimento de descaso:
eu digo o seguinte, os ex-combatentes foram toda vida muito desprezados, as
autoridades não liga, porque, quando nós estivemos na Itália, brigando pelo povo
brasileiro, nós tinha mais... E os nossos direitos são muito poucos (...)505
Não houve qualquer tipo de programa de reintegração social, qualquer tipo de preparo
para o retorno desses homens à vida civil ou da população para recebê-los novamente num
contexto de paz. A imagem inicial sobre os pracinhas foi rapidamente dissipada. Os heróis
nacionais celebrados nos festejos de seu retorno ao Brasil se deparavam com uma série de
preconceitos e problemas para se readaptar à sociedade, e o mais significativo é que muitos se
viram numa situação de descaso e desprezo.506
Alguns veteranos conseguiram se manter em seus antigos empregos, e outros tiveram
a oportunidade de seguir carreira na vida militar ou ainda conseguiram se remanejar para
outras atividade. Contudo, alguns tiveram grandes dificuldades em encontrar trabalho e seguir
com suas vidas depois da guerra. Novamente, essa sensação de abandono e descaso aparece
no relato de um veterano:
Para os governos que dizem “os heróis, heróis, heróis”, heróis nada, nós somos é
ultrapassados, sucata, velhos, cansados (...) ninguém se importa, ninguém se importa
com os veteranos, com os “heróis” 507
O heroísmo largamente difundido junto à sociedade brasileira antes da guerra é, de
alguma forma, poético. Na realidade, a guerra moderna, enfrentada pelos praças brasileiros
nas frentes de batalha italiana, foi extremamente cruel e violenta. Neste sentido, o heroísmo
504
Sobre o envolvimento de oficiais da FEB na vida política, ver: DULLES, John W. Foster. Castelo Branco – O
caminho para a Presidência. São Paulo: Livraria José Olímpio Editora, 1979. Ver também: CUNHA, Paulo
Ribeiro da. Um manifesto elaborado no calor das batalhas. In: Manifestos políticos: do Brasil contemporâneo.
Lincoln de Abreu Penna (Org.) Rio de Janeiro: E-papers, 2008. 505
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2004]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Jader
Maia. 506
ROSA, Alessandro dos Santos. Op. Cit., 2010. 507
Trecho da entrevista com o veterano da FEB Benno Armindo Schirmer, no documentário Força
Expedicionária Brasileira – Heróis esquecidos. Produzido por alunos do curso de comunicação social da
Feevale. Jun. de 2005. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Xr-QId_QceY. Acesso em: 25 ago.
2012.
187
de muitos desses sujeitos não reside numa poética nacionalista gloriosa pré-anunciada pelo
Estado, mas no fato de terem sido enviados para combater numa frente de batalha
extremamente desumana, conseguir voltar para suas casas e seguir com suas vidas. A guerra,
como descreve Remarque, é um lugar onde os homens se deparam recorrentemente com a
possibilidade de morte, e o que destrói não são apenas as granadas e as balas inimigas, mas a
própria experiência na frente de batalha, que despedaça mais fundo que a própria carne.508
A indignação de Schirmer com o termo “heróis” se explica, de alguma forma, porque a
sociedade e o governo não estavam preparados para receber esses veteranos. Quando afirma
que “ninguém se importa”, ele denuncia esse despreparo social. Esses heróis, tão
profusamente celebrados nos festejos do seu retorno para o Brasil, se mostraram, para uma
sociedade sem qualquer preparo para recebê-los, como um amontoado de “heróis com
defeito”, homens marcados pela guerra com cicatrizes em seus corpos e suas almas.
Quando as comemorações pelo retorno dos veteranos chegaram ao fim e esses homens
voltaram para suas famílias na tentativa de retomar o rumo de suas vidas, uma parte
significativa desses sujeitos se deparou com vários preconceitos: a dificuldades para se
conseguir emprego e o estigma de desajustados ou afetados por “neurose de guerra”. Segundo
Tick, um em cada 20 veteranos que participaram da Segunda Guerra apresentou sintomas de
transtorno de estresse pós-traumático, ou TEPT. Esse transtorno, denominado vulgarmente de
“neurose de guerra”, acaba por afetar todo o universo de relações sociais do sujeito que sofre
dessa enfermidade.509
Neste sentido, a condição social de uma parcela substancial dos praças da FEB no pós-
guerra esta permeada por preconceitos, abandono e descaso. E não seria exagero dizer que nos
anos que se seguiram ao retorno desses expedicionários iniciou-se um processo de
esquecimento das memórias e dos usos políticos e sociais da simbologia da FEB e de seus
veteranos.
Esse quadro social de abandono e preconceito pode ter motivado a criação dos
primeiros grupos organizados de veteranos, uma aglutinação no sentido de autopreservação
dos veteranos e seus familiares, de ajuda mútua e de preservação das memórias desses
sujeitos, isto é, um caráter de resistência social, de lutas por direitos e benefícios e a
manutenção de uma memória pública, mesmo que fragmentada, disputada e pouco organizada
sobre os veteranos da FEB.
508
REMARQUE, Erich Maria. Op. Cit., 1974. 509
TICK, Edward. Op. Cit., 2005. pp. 87-118.
188
Longe de encontrar uma resposta derradeira à questão proposta logo acima, a memória
da FEB pode não ser uma soma métrica e objetiva dessas diversas e diferentes partes, desses
desejos e sentidos diversos que se encontram num campo de tensão e disputa no meio social,
mas talvez possa ser essa constante e interminável construção de memórias públicas plurais e
que se relacionam umas com as outras.
3.3.2 – A cidade de Divinópolis e seus veteranos
A Segunda Guerra Mundial foi um evento que fez presente das formas mais diversas
na vida das pessoas. A guerra povoou o cotidiano de quase todas as cidades e lugarejos do
mundo desde o final da década de 1930 e durante toda a primeira metade da década de 1940.
Suas ramificações e desdobramentos alastraram-se por todo o mundo e seus efeitos foram
sentidos em lugares muito distantes de seu “palco original”, como a pequena cidade de
Divinópolis.
Neste sentido, a Segunda Guerra não foi feita apenas de grandes batalhas, mas se fez
presente e transformou dinâmicas cotidianas das pessoas nas mais distantes localidades. O
conflito passou a ser noticiado em jornais impressos e nos rádios, foi comentado e discutido
nos diversos círculos sociais e se tornou motivo de preocupação, medo e incertezas para
pessoas que passavam a viver a Segunda Guerra de formas muito distintas.
A cidade de Divinópolis era apenas uma dentre tantas outras que ouviram os sussurros
da terrível e destrutível guerra que acontecia no Velho Mundo. Esses sussurros chegavam
pelos poucos rádios, pelos jornais impressos locais, por cartas, pelas notícias trazidas pelos
passageiros da ferrovia ou pelos fios do telégrafo. Contudo, Divinópolis não estaria sujeita
apenas a receber notícias do distante conflito; as pessoas passaram a sofrer certas limitações e
carências de determinados produtos devido ao esforço de guerra brasileiro, e ainda vários
jovens divinopolitanos e das cercanias seriam enviados para combater na frente de batalha do
norte italiano.510
Depois do término do conflito, Divinópolis vai se tornar residência fixa de vários
expedicionários de outras localidades do país, e muitos desses se estabeleceram na cidade, e
ali criaram suas famílias e construíram suas vidas. Interessa-nos, aqui, compreender como se
510
SOARES, Izaac Erder Silva. Sombras da Segunda Guerra Mundial na cidade do divino. In: CATÃO, L. P.
(Org.); PIRES, J. R. F. (Org.); CORGOZINHO, B. M. S. (Org.). Divinópolis História & memória: política e
economia. 1ª ed. Belo Horizonte: Crisálida, 2013. v. 3.
189
estabeleceram as relações entre alguns elementos da sociedade divinopolitana com esses
veteranos que voltaram da guerra e recomeçavam suas vidas nessa localidade.
Segundo a seção da ANVFEB da cidade, 28 expedicionários que integraram as fileiras
da FEB eram naturais da cidade, outros 56 vieram para a cidade e ali estabeleceram residência
fixa511
. O número de expedicionários relacionados como associados a essa seção da
ANVFEB, segundo os próprios veteranos, pode ter chegado a 60 ou 70 ex-combatentes.512
Dentre os expedicionários que partiram da cidade, ou que tinham algum tipo de
ligação com a população local, como é o caso do capelão Frei Orlando, que viveu muito
tempo na cidade antes de seguir para a guerra, ou do soldado Reny Rabelo, podemos destacar
uma espécie de relação pública com a população local, feita através de cartas publicadas na
cidade por meio dos jornais locais513
. Nesses periódicos, o Divinópolis Jornal e A Semana,
foram publicadas algumas dessas cartas enviadas por esses expedicionários para a população
da cidade.
As cartas enviadas pelo soldado Reny Rabelo ao Divinópolis Jornal são bem
relevantes, sobretudo porque demonstram uma espécie de dialogo público entre o praça em
solo italiano e Ataliba Lago, o redator do jornal. No total, foram publicadas duas cartas de
Reny Rabelo nesse referido periódico, respectivamente em 11 de fevereiro e 15 de abril de
1945. Na correspondência publicada no dia 15, intitulada como “Outra carta de Reny
Rabelo”, podemos ver essa relação acima citada:
Reny Rabelo, o bravo expedicionário divinopolitano, teve a gentileza de nos enviar
outra carta, exaltando a fibra combativa, o destemor e o idealismo daqueles que, no
solo europeu, em defesa da democracia, erguem bem alto o estandarte rubro do
soldado brasileiro. (...) Prezado amigo Ataliba Lago: Abraço-o. Acabo de passar um
dos melhores momentos aqui em pleno front italiano. Li há pouco, em voz alta, para
os amigos de armas e ideal, o órgão sempre crescente e noticioso, possuidor de
caracteres puramente brasileiros – Divinópolis Jornal – que me enviara meu pai. Os
amigos, embora não fossem divinopolitanos e nem mineiros na maioria, sentiram
um quê de extraordinário, como se nele fossem encontrar o que até então lhe
falava.514
511
Ver: folder da 3ª Seção Regional ANVFEB. Acervo Arquivo Público Municipal de Divinópolis (Caixa 08 –
FEB). Esse documento contém uma lista completa dos nomes dos veteranos da FEB que se associaram à seção
da ANVFEV na cidade. 512
OLIVEIRA, Osmar Gomes de: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista concedida a Izaac
Erder Silva Soares. e VESPÚCIO, Donaldo Ronaldo: depoimento [2007]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista
concedida a Izaac Erder Silva Soares. 513
PALHARES, Gentil. Frei Orlando: o capelão que não voltou. Rio de Janeiro: BiblioEx, 1982. 2ª ed. 514
Divinópolis Jornal, 15 de abril de 1945. Acervo do Centro de Memória da FUNEDI (Cemef).
190
O retorno da FEB no Brasil foi excessivamente festejado, e as comemorações que
começaram na cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, seguiram nas capitais estaduais,
nos grandes centros e mesmo nas pequenas localidades onde os “pracinhas” chegavam. Na
cidade, o Divinópolis Jornal noticiou esse momento com bastante euforia. As notícias do fim
do conflito se misturavam à expectativa do retorno dos expedicionários que partiram da
cidade. A comemoração pelo fim da guerra e pela vitória aliada, denominada como “Parada
da Vitória”, foi descrita pelo Divinópolis Jornal como um evento bem movimentado:
Mais de 15 mil pessoas tomaram parte na Parada da Vitória realizada nesta cidade
no dia 8 deste mês. A vibração popular teve início no dia 7 e foi até as quatro horas
do dia 9. Um espetáculo impressionante, em que o povo local soube demonstrar o
seu júbilo pela esplendente vitória das Democracias.515
Em algumas edições desse referido periódico, podemos identificar notícias destacando
o fim da guerra e o retorno dos contingentes da FEB ao Brasil e, sobretudo, a cidade: “Já
estão preparadas retumbantes homenagens aos bravos expedicionários divinopolitanos” 516
ou
“Já estão chegando os bravos expedicionários divinopolitanos” 517
. As notícias sobre o retorno
dos praças divinopolitanos seguem por várias edições, às vezes contendo entrevistas e notas
mais significativas, às vezes apenas uma nota curta informando a chegada de um determinado
veterano.
Os jornais Divinópolis Jornal e A Semana informaram, ainda, uma série de
homenagens públicas feitas aos expedicionários depois da guerra, homenagens realizadas,
sobretudo, por colégios e clubes da cidade. Dentre essas, podemos destacar a homenagem
realizada pelo Divinópolis Clube aos veteranos que retornavam a cidade. Essa homenagem se
deu na forma da inauguração de um “quadro artístico”518
, evento também noticiado pelo
Divinópolis Jornal:
No dia 7 deste, realizou-se a tocante homenagem que o Divinópolis-Clube prestou
aos bravos expedicionários divinopolitanos. Às 21 horas, no saguão de entrada do
Clube, foi inaugurado o artístico quadro reunindo as fotografias dos combatentes
divinopolitanos. Quadro que é um magnífico trabalho executado pelo estúdio
Constantino, de Belho Horizonte. Nessa galeria, além das fotografias dos
expedicionários de Divinópolis, são homenageadas as seguintes pessoas: Generais
Eurico Dutra e Mascarenhas de Moraes, organizador e comandante respectivamente,
515
Divinópolis Jornal, 8 de maio de 1945. Acervo do Centro de Memória da FUNEDI (Cemef). 516
Divinópolis Jornal, 20 de maio de 1945. Acervo do Centro de Memória da FUNEDI (Cemef). 517
Divinópolis Jornal, 5 de agosto de 1945. Acervo do Centro de Memória da FUNEDI (Cemef). 518
Ver: ANEXO 11 – Reprodução do quadro artístico da FEB. Publicado pela Revista Divinews, 15 de agosto de
1994. Divinópolis, MG. p. 21.
191
da FEB; exmas. sras. Donas Darcy Vargas, Odete Valadares e Ermelinda Matos,
respectivamente presidentes das Comissões Nacional, Estadual e Municipal da LBA.
(...).519
Entretanto, depois desse curto período de intensas comemorações pelo retorno dos
expedicionários, que podem ter durado até o final de 1945, muito pouco foi registrado em
termos de comemoração e lembranças públicas sobre esses homens e seus feitos na cidade.
Além dos desfiles cívicos de comemoração pelo aniversário da cidade de Divinópolis, quando
os veteranos participam das festividades e são minimamente vistos pela sociedade e também
em algumas comemorações militares no Tiro de Guerra da cidade, esses sujeitos são pouco
lembrados pelas autoridades municipais no meio público.
Dentre alguns momentos em que os veteranos se tornaram foco público na cidade,
podemos destacar a visita do comandante da FEB à cidade de Divinópolis, o general
Mascarenhas de Morais, à Seção da ANVFEB de Divinópolis em 1954, ocasião em que veio a
cidade para a entrega de uma carta aos familiares do sargento José da Costa Valério,
expedicionário desaparecido em combate e depois considerado morto. Dessa visita, que de
alguma forma mobilizou a cidade, restaram apenas duas fotografias no acervo do Arquivo
Público Municipal de Divinópolis, onde aparece o general cumprimentado os veteranos
Horizontino Neves e Raimundo de Almeida dos Santos.520
Outro momento em que os veteranos foram lembrados publicamente na cidade se deu
na ocasião de uma exposição sobre a FEB no Museu Histórico de Divinópolis, intitulada
como Divinopolitanos expedicionários na II Guerra Mundial, evento realizado em
comemoração pela Semana do Expedicionário, entre os dias 8 e 24 de maio de 2002. O
evento, realizado pela Fundação Municipal de Cultura e Prefeitura Municipal de Divinópolis,
se constituiu de uma exposição fotográfica e de objetos pertencentes a alguns veteranos
residentes na cidade, além da distribuição de um panfleto que descreve resumidamente a
participação brasileira na guerra e lista todos os nomes dos veteranos da cidade.521
519
Divinópolis Jornal, 8 de julho de 1945. Acervo Centro de Memória da FUNEDI (Cemef). 520
Ver fotografias da visita do general Mascarenhas de Moraes a Divinópolis, MG. Acervo Arquivo Público
Municipal de Divinópolis (Caixa 08 – FEB). 521
Ver: panfleto de propaganda da exposição sobre a FEB. Acervo do Centro de Memória da FUNEDI (Cemef).
192
3.3.3 – Lugares de memórias dos praças da FEB/ANVFEB na cidade de Divinópolis
Para além dessas poucas relações estabelecidas no meio público entre a sociedade
divinopolitana e seus veteranos, resta, ainda, tratar dos lugares de memória que de alguma
maneira nos remetem a esses sujeitos, ou seja, pensar nesses lugares e espaços físicos que são
vinculados aos veteranos e a FEB. Aqui, nos referimos a “lugares de memória” como locais
que guardam formas de associações entre um determinado grupo de sujeitos, o grupo de ex-
combatentes ligados à ANVFEB – Divinópolis, e certos monumentos, prédios ou espaços
públicos.
A cidade de Divinópolis é sede da 3ª Seção Regional da ANVIFEB do Estado de
Minas Gerais, mas, apesar dessa relativa importância, não encontramos nenhum grande
monumento, museu, arquivo público ou centro de memória que trate exclusivamente sobre
esses sujeitos. Dentre os locais públicos dedicados aos veteranos da FEB na cidade, podemos
destacar dois: a sede da ANVFEB e um pequeno monumento localizado numa praça da
cidade.
O prédio da seção da ANVFEB foi utilizado pelos veteranos por muito tempo como
local de encontros e reuniões frequentes. Contudo, atualmente, o local passa grande parte do
ano fechado ou sendo utilizado pelo poder público com outras finalidades522
. As relações
estabelecidas entre esse espaço e as memórias públicas dos veteranos se dão em dois sentidos:
primeiramente, como local de reunião desses sujeitos, uma espécie de lar e lugar de conforto,
e também como um lugar que, de alguma maneira, veicula publicamente a imagem da FEB e
seus veteranos, seja no sentido de constituir como uma lembrança concreta do “lugar dos
pracinhas” ou na própria estrutura da edificação que ostenta o emblema da FEB em sua
fachada523
.
O monumento referido acima está localizado numa praça no Centro da cidade e foi
inaugurado no dia 1º de junho de 1983. Nele, podemos ler os dizeres: “Aos ex-combatentes a
homenagem do povo de Divinópolis”524
. O monumento não é um exemplo muito claro de
representatividade dos ex-combatentes ou da FEB, mas, ainda assim, constitui a única forma
522
O prédio foi utilizado pelos veteranos entre 1974 até meados de 2008, quando as reuniões deixaram de ser
frequentes e devido à impossibilidade de locomoção e ao falecimento de vários dos sócios da ANVFEB
Divinópolis, MG. 523
Ver: fotografia da inauguração da sede da ANVFEB em Divinópolis. Acervo Arquivo Público Municipal de
Divinópolis (Caixa 09 – FEB). 524
Ver: ANEXO 12 – Monumento em homenagem à FEB em Divinópolis, MG. Fotografia do monumento,
Acervo pessoal Izaac Erder Silva Soares, 2014.
193
de homenagem pública permanente construída na cidade pelas autoridades em homenagem
aos veteranos da FEB.
Neste sentido, se pensarmos no monumento e na sede da ANVFEB como lugares de
memória, isto é, um lugar que, de alguma forma, rememorem a FEB e os ex-combatentes,
devemos considerar que esses constituem tipos diferenciados. A sede não é uma construção
que tenha por si uma finalidade monumental, mas atende um objetivo mais simples: abrigar a
seção da ANVFEB e ser o local das reuniões dos veteranos; o monumento, por sua vez, é uma
construção que tem como objetivo específico relembrar e homenagear os veteranos da cidade,
entretanto é considerado pelos veteranos como “pouco representativo”.
Para além desses espaços públicos, esses lugares de memória, é significativo notar
outras formas encontradas pelos praças ou seus familiares para socializar suas memórias e
narrativas. De algum modo, isso ocorre quando as coleções privadas, que residem no meio
íntimo, dentre os familiares desses veteranos, alcançam o meio público. Essa passagem das
memórias do meio privado para o meio público se dá de forma muito discreta, e, às vezes, é
percebida por poucos, como, por exemplo: através das contribuições dos veteranos e de suas
famílias para a realização da exposição no Museu Histórico de Divinópolis; ou a doação de
acervos para o Arquivo Público Municipal de Divinópolis ou para o Centro de Memória da
FUNEDI (Cemef).525
Também é significativo notar o surgimento de lugares de memória que transitam entre
o público e o privado, locais onde certos objetos privados são expostos em meio público,
como é o caso do veterano Osmar Gomes de Oliveira, que tem parte de seu acervo exposto
por seu filho num restaurante da cidade de Divinópolis, ou uma coleção de fotografias do
veterano Horizontino Neves, que é organizada e mantida por seu filho e é exposta numa
papelaria de sua propriedade. Ou seja, coleções particulares expostas no meio público, mas
que são preservadas no meio familiar e, de alguma forma, constituem um espaço de difusão,
defesa e promoção pública desses homens e de suas memórias.
Para os veteranos, existe um descaso social em relação a eles e suas memórias,
materializado por uma falta de reconhecimento público desses sujeitos, pela inexistência de
um museu da FEB na cidade, ou qualquer tipo de iniciativa das autoridades municipais ou da
sociedade divinopolitana para lembrá-los. Uma matéria publicada na revista Divinews, em
1994, apresenta um pouco desse descaso denunciado por alguns veteranos:
525
Ambos os acervos são constituídos, em sua maioria, por entrevistas realizadas com os veteranos e coleções
doadas por esses e seus familiares.
194
Por enquanto o que os pracinhas desejam, como pede o presidente da ANVFEB
regional, Raimundo de Almeida dos Santos, é que as autoridades do município
reconheçam a importância dos ex-combatentes no contexto da vida e da história de
Divinópolis e possam contemplá-los com a mudança da sede alagadiça e um
monumento que seja mais representativo que o bodoque que lhes dedicado na
Savassinha.526
A sede, descrita como “provisória” na ata de fundação, nunca mudou do endereço
“alagadiço”, e o “bodoque” pouco representativo são, para os veteranos, a representação do
descaso das autoridades municipais em relação a suas memórias.
Contudo, para além do descaso e a ideia de que a sociedade se esquece dos veteranos,
existe, também, uma consciência deles próprios de que a Associação está chegando ao fim.
Segundo o veterano Joaquim Guadalupe:
Na prática só quatro participam da associação, associação fica sem movimento (...),
muitos já estão doentes e não dão conta. O Osmar, por exemplo, está na cadeira de
rodas e quase não vai à associação; outro dia ele saiu da cadeira de rodas, entrou
dentro do jipe e fomos todos desfilar pela cidade. (...) Sou presidente da associação e
já fui várias outras vezes; agora não tenho substituto; a associação não tem quase
ninguém, apenas três se reúnem às quartas-feiras; vamos acabar fechando. Para
manter, o Rio de Janeiro [a ANVFEB matriz] está querendo criar um sócio especial,
qualquer civil, para tentar manter a associação.527
A ideia da finitude natural do corpo está presente nos relatos de quase todos os
veteranos citados nesse trabalho. A morte é uma certeza indelével, entretanto, a esperança da
manutenção das memórias e o desejo de continuar povoando o presente através das
lembranças também estão presentes nos relatos desses veteranos, um horizonte incerto, um
tênue e estreito fio que separa essa expectativa sobre o futuro: serão lembrados ou
esquecidos?
526
Revista Divinews, 15 de agosto de 1994. Divinópolis, MG. p. 23. 527
GUADALUPE, Joaquim: depoimento [1º de outubro de 2003]. Divinópolis, Minas Gerais. Entrevista
concedida a Heloisa Helena Corgosinho.
195
CONCLUSÃO
A representação da guerra construída pelo veterano Osmar Gomes de Oliveira, através
de seus testemunhos, constituiu-se como uma construção singular sobre o passado e é uma
tentativa, por parte desse sujeito, em inserir-se no curso da História. Esse sujeito foi um dos
milhares de praças brasileiros que participaram diretamente da Segunda Guerra Mundial, e,
neste sentido, suas percepções e seus testemunhos sobre o conflito são tão legítimos como
qualquer organização ou formalização historiográfica acerca da participação brasileira na
Segunda Guerra Mundial.
Levando-se em consideração esses aspectos, devemos notar a precariedade dos
testemunhos como representações totais e factuais acerca do passado. Neste sentido, só
acessamos o passado de forma fragmentária, incompleta e precária, ou seja, só temos acesso a
uma dada realidade que não mais existe, um contexto específico de significados, no qual o
que talvez persista seja um amontoado de ruínas e sentidos desfigurados, transformados e
ressignificados diversas vezes pela testemunha no transcorrer do tempo. A grande maioria das
fontes possíveis, admitidas como testemunhos de um passado, são produções subjetivas, são
pontos de vista advindos de sujeitos diversos, que apresentam seus testemunhos conforme
suas crenças, seus códigos de valores, suas leituras e releituras de si mesmo e do passado, e
ainda remetem ao lugar social que esse sujeito ocupou e ocupa.
Apesar da ilusão de sentido e significado sobre um determinado passado que o
testemunho desse veterano produz, entendemos que os sujeitos só dão sentido a sua existência
quando humanizam o mundo ao seu redor, ou seja, quando se significa e atribui significado ao
mundo. Neste sentido, só entendemos o mundo à medida que damos sentido a ele e o
significamo-lo.
Entretanto, podemos perceber que os processos mnemônicos, de retenção e
recuperação da realidade, se dão sempre de forma precária e fragmentada, assim como as
possibilidades de verbalização da memória, que produz uma redução linguística das
impressões sensoriais e dos sentidos e significados que o sujeito atribui ao mundo
experimentado, ou seja, admitir a impossibilidade de reprodução plena da experiência
humana, mas falar da possibilidade, mesmo que fragmentada e precária, de testemunhar para
outros sobre aquilo que foi vivido.
É admitir que o experimentável não pode ser recuperado em sua totalidade, nem pela
narrativa do próprio sujeito que as vivenciou, nem tampouco por aqueles que desejam retomá-
196
la numa representação histórica. Quando o veterano Osmar Gomes organiza seus acervos e
narrativas como testemunhos, no seu discurso, ele fica restrito de expor toda a complexidade
daquilo que foi experimentado através de todos os seus sentidos e de suas formas de valorizar
e significar o mundo. Entretanto, esse discurso se constitui como uma possibilidade de
comunicação desse passado.
Neste sentido, falamos de uma História muito mais próxima dos sentidos e
sentimentos, uma História de possibilidades precárias e fragmentadas, mas, ainda assim,
possibilidades de representação do passado através dos testemunhos que, de alguma forma,
não se pretendem como uma história factual e objetiva. Contudo, somos levados a questionar
a possibilidade de uma história totalizante e puramente factual. A inquietude se dá exatamente
quando questionamos o caráter das fontes históricas, que, em sua maioria, são produções
humanas, e logo produções subjetivas. Neste sentido, percebe-se, nas formalizações
históricas, essa contínua incompletude e constante necessidade de revisão e questionamento
sobre as verdades e sentidos atribuídos ao passado, o que somente se dá através das formas
como os sujeitos se inserem e reivindicam para si um espaço nas representações do passado.
De alguma maneira, e guardadas as proporções, é uma reivindicação desse sujeito ao
seu direito e papel na história, do reconhecimento de sua participação na guerra. Um sujeito
que constrói um testemunho sobre sua experiência vivida, que se afirma como um
personagem autorizado a falar sobre esse passado, isto é, a sua Segunda Guerra Mundial, com
suas formas de entender e atribuir sentido e significado ao mundo.
Evidentemente, trata-se de uma representação subjetiva do passado, de um processo de
formulações de significado e sentido particular atribuídos por esse sujeito ao real
experimentado. Trata-se de uma História mais sobre o significado da guerra para esse sujeito,
do que uma construção factual e objetiva. Contudo, não é afirmar que essa memória-
testemunho seja uma ficção pura, mas que sua importância se encontra exatamente nas formas
de reconstrução e representação do passado por esse sujeito.
Não que essa representação subjetiva da História se constitua apenas como uma
oposição, ou contraposição às formalizações históricas generalistas, mas talvez essas
representações subjetivas (não só o testemunho do veterano Osmar Gomes de Oliveira, mas
também os testemunhos de outros veteranos), se constituem como formas plurais de
ampliação das possibilidades de representação acerca do passado. Neste sentido, somos
levados a acreditar que as testemunhas exigem uma revisão da História através de seus
discursos.
197
Além da pluralidade de possibilidades de discursos, na maior parte das vezes os
testemunhos não se fixam tão rigidamente, isto é, não se cristalizam no rigor da escrita
acadêmica e, por isso, são constantemente modificados, reordenados e ressiginificados,
impedindo uma formalização histórica uníssona e totalizante, pois os sujeitos sempre
reivindicam mudanças no quadro geral da história, uma história plural, que contempla
variadas vozes e se constitui como um espaço de tensão, com possibilidades de revisões.
Em virtude desses elementos, entendemos que os testemunhos do veterano Osmar
Gomes Oliveira, apesar de constituir produções singulares, também apresentam implicações e
relações sociais. Os testemunhos desse praça acabam por expor uma intricada relação
discursiva e social com os testemunhos de outros veteranos que também participaram do
conflito e, posteriormente, se reuniram em uma Associação (ANVFEB), e essas relações
constituem possibilidades de aproximações, tensões, conformações, conflitos, leituras e
releituras de uma pluralidade de testemunhos de veteranos da FEB.
Quando trazemos à baila uma pluralidade de outros testemunhos, de veteranos também
ligados à seção regional da ANVFEB de Divinópolis, e, consequentemente, ao veterano
Osmar Gomes de Oliveira, podemos perceber que esses discursos convergem para a
construção de uma memória, discurso público sobre os veteranos da ANVFEB. Notadamente,
é impossível afirmar que um grupo, por si só, se lembre, mas sim que os indivíduos
pertencentes ao grupo negociam de algumas maneiras seus testemunhos, se aproximando ou
se distanciando dos testemunhos dos outros membros desse grupo.
Percebemos, ainda, como certas lembranças são censuradas, mesmo no interior desse
grupo, lembranças que, para alguns, são memórias recrimináveis, episódios de violência,
abusos contra a população civil italiana ou qualquer outro tipo de exploração da situação de
guerra e excessos cometidos por algum praça da FEB.
Portanto, o lembrar individual e subjetivo se conecta a outros testemunhos para fazer
lembrar o grupo, mesmo que essa construção se dê sempre num campo de tensões e disputas,
uma formalização relativamente instável, que apresenta uma memória social e pública, que
está sempre em construção. Entendemos que essa memória social, essa formalização de
grupo, é construída através de diversos testemunhos de praças da FEB, notadamente entre
conflitos, tensões e conformidades, uma formalização social que busca valorizar e significar
determinados modos de agir e significar suas participações durante o conflito.
Percebemos, também, que essas memórias de grupo ou formalizações têm pretensão
generalista, pois pretendem se firmar como verdadeiros, mas operam muito mais próximas de
198
uma História sentida do que de uma História factual. Contudo, essas formalizações podem
confluir interesses comuns aos membros desse grupo, como a busca por distinção social,
reconhecimento histórico, ganhos políticos e sociais e resistência, entre outros.
Por isso tudo, somos levados a acreditar que, por mais que se tenham memórias
oficiais, os testemunhos do veterano Osmar Gomes de Oliveira e dos outros veteranos citados
neste trabalho, se constituem como possibilidades singulares, potencialmente sociais de
testemunho sobre a guerra, testemunhos esses que imprimem toda uma carga de subjetividade
aos seus discursos, revelando suas formas de valoração, significação e atribuição de sentido
sobre o passado, toda dor, glória, alegrias e frustrações de se ter experimentado as desventuras
da participação na Segunda Grande Guerra Mundial.
199
REFERÊNCIAS
ABREU, Alzira et. Alii: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro (Pós 1930). Rev. Amp.
Atual. Rio de Janeiro: Editora FGV; CPDOC, 2001. v.1. Disponível em:
http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/filinto_muller Acessado no dia
25/04/2013. Acesso em: 13 out. 2013.
ABREU, Marcelo Santos de. Os Mártires da causa paulista: culto aos mortos e usos políticos
da Revolução Constitucionalista de 1932 (1932-1957). 2010. Tese (Doutorado em História) -
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro.
ADES, César. A Memória Partilhada. Psicologia USP, 2004,15(3), 233-244.
ALBERTI, Verena. A vocação totalizante da história oral e o exemplo da formação do acervo
de entrevistas do CPDOC. In: International Oral History Conference (10.1998: Rio de
Janeiro, RJ). Oral history challenges for the 21st. century: proceedings [of the] International
Oral History Conference. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV/FIOCRUZ, 1998. v.1. p.509-515.
ALBERTI, Verena. Computerizing oral history archives. In: International Oral History
Conference (12.2002: Pietermaritzburg, South Africa). The power of oral history: memory,
healing and development / Ed. by Phillipe Denis and James Worthington. Pietermaritzburg,
South Africa: The International Oral History Association, 2002. v.1.p.47-59.
ALBERTI, Verena. História oral na Alemanha: semelhanças e dessemelhanças na
constituição de um mesmo campo. Rio de Janeiro: CPDOC, 1996.
ALBERTI, Verena. Indivíduo e biografia na história oral. Rio de Janeiro: CPDOC, 2000.
ALBERTI, Verena. Tratamento das entrevistas de história oral no CPDOC. Rio de Janeiro:
CPDOC, 2005.
ALBINO, Daniel. Cobras fumando: A Força Expedicionária Brasileira na Campanha da Itália
(1944-1945). In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. et alii (Org.). O Brasil e a Segunda
Guerra. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2010. pp. 321-341.
ALMEIDA, Adhemar Rivermar de. Montese: Marco glorioso de uma trajetória. Rio de
Janeiro: Biblioteca do Exército, 1985.
ALVES, Vágner Camilo. Ilusão desfeita: a "aliança especial" Brasil-Estados Unidos e o poder
naval brasileiro durante e após a Segunda Guerra Mundial. Revista Brasileira de Política
Internacional. 2005, vol.48, n.1, pp. 151-177.
ALVES. Vágner Camilo. O Brasil e a Segunda Guerra Mundial: História de um
envolvimento forçado. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2002.
AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos & abusos da história oral. 4ª ed.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
200
AMARAL, Karla Cristina de Castro. Getúlio Vargas - O criador de Ilusões. Trabalho
apresentado no NP03 - Núcleo de Pesquisa, Publicidade, Propaganda e Maketing, XXV
congresso Anual em Ciência da Comunicação, Salvador/BA, 04 e 05. Setembro 2002.
ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. O risco das idéias: intelectuais e a polícia
política (1930-1945). São Paulo: Associação Editorial humanitas: Fapesp, 2006.
ARAGÃO, José Campos de. O Brasil na Segunda Guerra Mundial. Revista do Instituto de
Geografia e História Militar do Brasil, Volume LV, 1984, Rio de Janeiro.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.
ARIÈS, Philippe. O tempo da história. Tradução Roberto Leal Ferreira. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1989.
ARRUDO, Demócrito Cavalcanti de. Depoimento dos Oficiais da Reserva sobre FEB. São
Paulo: IPE, 1947.
ASSY, Bethânia. Eichmann, banalidade do mal e pensamento em Hannah Arendt. In: Hannah
Arendt: diálogos, reflexões, memória. (org) Eduardo Jardim de Morais, Newton Bignotto.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
AVELAR, Alexandre de Sá. A Biografia como escrita da História: possibilidades, limites e
tensões. Dimensões, vol.24, 2010, p. 157-172.
AVELAR, Alexandre de Sá. Figurações da escrita biográfica. ArtCultura, Uberlândia, v. 13,
n. 22, p. 137-155, jan.-jun. 2011.
AVELAR, Alexandre de Sá. Narrar vidas, escrever história. ArtCultura, Uberlândia, v. 13, n.
22, p. 117-118, jan.-jun. 2011.
BANDEIRA, Luiz Alberto de Vianna Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil (Dois
Séculos de História). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1973.
BARBOSA, João Felipe Sampaio. Regresso e desmobilização da FEB: problemas e
consequências. in: A Defesa Nacional, N. 719, mai-jun. Rio de Janeiro, 1985.
BARCELLOS, Luciano Alfredo. A flagelação dos ex-combatentes. in: LOUZEIRO, José
(org.). Assim marcha a família. Onze dramáticos flagrantes da sociedade cristã e
democratica, no ano do IV Centenario da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1965.
BARROS, José D‟Assunção Barros. História e memória – uma relação na confluência entre
tempo e espaço. MOUSEION, vol. 3, n.5, Jan-Jul/2009.
BASTOS, Expedito Carlos Stephani. Primórdios da motorização no exército brasileiro 1919
a 1940. p.30. Disponível em: http://www.ecsbdefesa.com.br/fts/DC4.pdf. Acesso em: 26 ago.
2012.
201
BATISTA, Felipe de Alvarenga. Transportes, modernização e formação regional: subsídios
a história da era ferroviária em Minas Gerais, 1870-1940. Belo Horizonte:
UFMG/CEDEPLAR, 2012.
BENJAMIN. Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. IN:
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas. São Paulo:
Brasiliense, 3.ed., 1987.
BERABA, Ana Luiza. América Aracnídea: teias culturais interamericanas. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008.
BONALUME NETO, Ricardo. A Nossa Segunda Guerra - os brasileiros em combate. Rio de
Janeiro: Expressão e Cultura, 1995.
BONATO, Massimo. A Micro-História E A Metodologia Qualitativa De Pesquisa. Anais Do
Iii Encontro Nacional Do Gt História Das Religiões E Das Religiosidades – Anpuh -
Questões teórico-metodológicas no estudo das religiões e religiosidades. IN: Revista
Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011. ISSN 1983-2859.
Disponível em: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html. Acesso em: 13 out. 2011.
BONET, Fernanda dos Santos. Mobilização e união: O discurso oficial brasileiro sobre a
política interna durante a II Guerra Mundial na revista Cultura Política. In: Anais do XXVI
Simpósio Nacional de História ANPUH: São Paulo, julho 2011. Disponível em:
http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300311564_ARQUIVO_MOBILIZACA
OEUNIAO.pdf Acesso em: 25 nov. 2013.
BOSI, Ecléa. A Pesquisa em Memória Social. Psicologia USP, São Paulo, 4(1/2), p. 277-284,
1993.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. Lembrança de velhos. 3 ed. São Paulo: Cia das Letras,
1994.
BOSI, Ecléa. O campo de Terezin. Estudos Avançados, 13(37), 7-32. Dossiê Memória.
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2003.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO,
Janaina. (org.). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1996.
BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Tradução André Telles. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
BLOM, Philipp. Ter e Manter: Uma História Íntima de Colecionadores e Coleções. Rio de
Janeiro: Editora Record, 2003.
BRAGA, Rubem. Crônicas da Guerra da Itália. Rio de Janeiro: Record, 1985.
202
BRAYNER, Floriano de Lima. A verdade sobre a FEB. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1968.
BUENO, Clodoaldo. Pan-americanismo e projetos de integração: temas recorrentes na
história das relações hemisféricas (1826-2003). In: Política Externa, São Paulo,v.13, n.1,
p.65-80, 2004.
BURKE, Peter. A invenção da Biografia e o individualismo Renascentista. Tradução José
Augusto Drummond, Estudos Históricos 1997 – 19.
CAMPOS, Aguinaldo J. Senna. Com a FEB na Itália - páginas do meu diário. Rio de Janeiro:
Imprensa do Exército, 1970.
CAMERINO, Olímpia de Araújo. A Mulher brasileira na Segunda Guerra Mundial. Rio de
Janeiro: Capemi Editora e Gráfica, 1983.
CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011.
CAPELLATO, Maria Helena Rolim. Multidões em cena: propaganda política no varguismo
e no peronismo. São Paulo: Papirus, FAPESP, 1998.
CAPELATO, Maria Helena Rolim. O Estado Novo: o que houve de novo?. In: O Brasil
Republicano: o tempo do nacional-estadismo. Vol.2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003.
CARNEIRO, Glauco. História das revoluções brasileiras. 2º Volume: Da revolução liberal à
revolução de 31 de março (1930/1964). Rio de Janeiro: o cruzeiro, 1965.
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci & KOSSOY, Boris (orgs.). A Imprensa confiscada pelo
DEOPS 1924-1954. São Paulo: Ateliê Editorial: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo;
Arquivo do Estado, 2003.
CARRUTHERS, Bob. The Third Reich From Original Sources - The U-Boat War In the
Atlantic. Coda Books Ltd. 2011. (vol. I, II e III).
CARVALHO, Estevão Leitão de. A serviço do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Rio de
Janeiro: Editôra a Noite, 1952.
CARVALHO, I.C.M. Biografia, identidade e narrativa: elementos para uma análise
hermenêutica. Horizontes antropológicos. v.9, nº19, PoA, julho de 2003.
CATROGA, Fernando. Memória e História. In: Pesavento, Sandra Jatahy (org.). Fronteiras
do milênio. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001, p. 43-69.
CHURCHILL, S. Winston. Memórias da Segunda Guerra Mundial. Volume 1. Nova
Fronteira. 2005.
CLAY, Catrine & LEAPMAN, Michael: Master race: the Lebensborn experiment in Nazi
Germany. Publisher: Hodder & Stoughton, 1995.
203
COSTA, Octavio. Jornal de guerra. In: O Globo Expedicionário. Agencia Globo: Rio de
Janeiro, 1985.
Comissão encarregada da construção do Monumento aos Mortos da Segunda Guerra aos
expedicionários (Org.). Frei Orlando: o Capelão que não voltou. Barbacena: Tip. do Bazar
Moderno, 1946.
CONDE, Idalina. Problemas e virtudes na defesa da biografia. SOCIOLOGIA - Problemas e
Práticas. Nº13, 1993, pp.39-57
CONTINI, Giovanni. La memoria divisa. Osservazioni sulle due memorie della etrage del 29
giugno 1944 a Civitella Val di Chiana, trabalho apresentado na conferência internacional. In:
Memory. For an European Memory of Nazi Crimes after the End of the Cold War, Arezzo,
22-24 de junho de 1994.
CORSI, Francisco Luiz. Estado Novo: política externa e projeto nacional. São Paulo: Editora
UNESP: FAPESP, 2000.
CORUM, James S. The Roots of Blitzkrieg: Hans von Seeckt and German Military Reform.
University Press of Kansas, 1992.
CUNHA, Paulo Ribeiro da. Um manifesto elaborado no calor das batalhas. In: Manifestos
políticos: do Brasil contemporâneo. Lincoln de Abreu Penna. (org.) Rio de Janeiro: E-papers,
2008.
CUNHA, Rudnei Dias da. Uma breve história da Aviação de Patrulha da Força Aérea
Brasileira na IIª Guerra Mundial. Disponível em:
http://www.rudnei.cunha.nom.br/FAB/br/patrulha.html. Acesso em: 15 set. 2012.
CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem guerra - A mobilização e o cotidiano em São Paulo
durante a Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Edusp / Fundação do Desenvolvimento da
Educação, 2004.
D'ARAUJO, Maria Celina (Org). Perfis parlamentares 62: Getúlio Vargas. Centro de
Documentação e Informação. Edições Câmara: Brasília, 2011.
DEAN, Warren. A luta pela borracha no Brasil. São Paulo: Nobel, 1989.
DIEHL, Astor Antônio. Cultura Historiográfica: memória, identidade e representação.
Bauru, SP: EDUSC, 2002.
DIETRICH, Ana Maria, Caça às suásticas, o Partido Nazista em São Paulo sob a mira da
Polícia Política. São Paulo: Humanitas/ Fapesp/ Imprensa Oficial, 2007.
DIETRICH, Ana Maria. Nazismo tropical? O partido nazista no Brasil. São Paulo: Todas as
musas, Janeiro de 2007.
204
DUARTE, Paulo de Queiroz. Dias de Guerra no atlântico sul. BIBLIEX: Rio de Janeiro,
1968.
DUARTE, Paulo de Queiroz. O Nordeste na II Guerra Mundial: antecedentes e ocupação.
Record: Rio de Janeiro, 1971.
DULLES, John W. Foster. Castelo Branco - O Caminho para a Presidência. São Paulo:
Livraria José Olímpio Editora, 1979.
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1994.
ELIAS, Norbert. Envolvimento e alienação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Tradução: Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Lisboa:
Edições 70, 2008.
ELIAS, Norbert. Mozart - Sociologia de um Gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
ERICSSON, Kjersti & SIMONSEN, Eva. Children of World War II: the Hidden Enemy
Legacy. Nova York: Berg Publishers, 2005.
FERNANDES, Fernando Lourenço. A estrada para Fornovo: a FEB-Força Expedicionária
Brasileira, outros exércitos & outras guerras na Itália, 1944-1945. Rio de Janeiro: Editora
Nova Fronteira, 2009.
FERRAROTTI, Franco. Sobre a autonomia do método biográfico. SOCIOLOGIA -
Problemas e Práticas. Nº9, 1991, pp.171-177
FERRAZ, Francisco César. Os brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2005.
FERRAZ, Francisco Cesar Alves. Polêmicas historiográficas sobre a participação da Força
Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial In: XXVII Simpósio Nacional de
História ANPUH. Conhecimento histórico e diálogo social – Natal – RN, 2013.
FERREIRA, Marieta de Moraes. Desafios e dilemas da história oral nos anos 90: o caso do
Brasil. História Oral, São Paulo, nº 1, p.19-30, jun. 1998.
FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.); ABREU, Alzira Alves de, et al. Entre-vistas:
abordagens e usos da História oral. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1998.
FERREIRA, Marieta de Moraes. História oral, comemorações e ética. Projeto História. Ética
e História oral, São Paulo, nº 15, p.157-164, abr. 1997.
FINATO, Alexei Bueno. João Tarcisio Bueno: o herói de Abetaia. Rio de Janeiro: Editora G.
Ermakoff, 2010.
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
205
FOUCAULT, Michel. Verdade e subjectividade (Howison Lectures). Revista de
Comunicação e linguagem. nº 19. Lisboa: Edições Cosmos, 1993. p. 203-223.
FROCHTENGARTEN, Fernando. A memória oral no mundo contemporâneo. Estudos
Avançados 19(55), 2005.
GAMA, Arthur Oscar Saldanha da. A Marinha do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Rio de
Janeiro: Capemi Editora e Gráfica, 1982.
GANNON, Michael. Operation Drumbeat: Germany's U-Boat Attacks Along the American
Coast in World War II. Harper Perennial. 1991.
GARCIA, Eugênio Vargas (org.). Diplomacia brasileira e política externa: documentos
históricos 1493-2008. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
GERTZ, Rene Ernaini. O fascismo no sul do Brasil: germanismo, nazismo, integralismo.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido
pela inquisição. São Paulo: Companhia das letras, 2002.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990.
GIOVANNI SULLA, Ezio Trota. Gli eroi Venuti dal brasile storia fotografica del corpo di
dispedizione brasiliano in Italia (1944-1945). Modena, II Fiorino, 2005.
GOLIN, Cida & ABREU, João Batista de (org.). Batalha Sonora: o rádio e a Segunda
Guerra Mundial. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006.
GONÇALVES, Carlos Paiva. Seleção médica do pessoal da FEB. Rio de Janeiro: Biblioteca
do Exército, 1950.
GONÇALVES, José & MAXIMIANO, Cesar Campiani. Irmãos de Armas: um pelotão da
FEB na II Guerra. São Paulo: Códex, 2005.
Grande Crônica da Segunda Guerra Mundial. Volume I: de Munique a Pearl Harbor.
Seleções do Reader‟s Digest. Editora Ypiranga: Rio de Janeiro, 1969.
Grande Crônica da Segunda Guerra Mundial. Volume II: De Pearl Harbor a Stalingrado.
Seleções do Reader‟s Digest. Editora Ypiranga: Rio de Janeiro, 1969.
Grande Crônica da Segunda Guerra Mundial. Volume III: De Stalingrado a Hiroshima.
Seleções do Reader‟s Digest. Editora Ypiranga: Rio de Janeiro, 1969.
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da
História: micro-história. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.23 nº45, pp. 317-318 –
2003.
206
HACKMANN, Willem. Seek & Strike: Sonar, anti-submarine warfare and the Royal Navy
1914-54. London: Her Majesty's Stationery Office, 1984.
HALBWACHS, Maurice. A memória Coletiva. Tradução Laurent Léon Schaffter. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais LTDA. Edições Vértice, 1990.
HASTINGS, Max. Overlord: D-Day and the Battle for Normandy. Vintage; Reprint edition,
2006.
HAUSSEN, Doris Fagundes. Rádio e Política: Tempos de Vargas e Perón. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2001, 2ª edição.
HENRIQUES, Elber de Mello. A FEB doze anos depois. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército, 1959.
HEYMANN, Luciana Quillet. Indivíduo, Memória e Resíduos Históricos: uma reflexão a
sobre arquivos pessoais e o casos Filinto Müller. Revistas de Estudos Históricos. Rio de
Janeiro: Editora FGV, v. 19. 1997.
HILTON, Stanley. O Brasil e as Grandes Potências, 1930-1939: os aspectos políticos da
rivalidade comercial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
HOBSBAWM, Eric. Era Dos Extremos: O breve século XX: 1914 - 1991. São Paulo: Cia das
Letras, 1995.
HOMERO. Ilíada. Martin Claret: São Paulo, 2003.
IERVOLINO, Ana Paula. Democracia, ditadura e soberania nacional para os ex-combatentes
da FEB. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH - São Paulo, julho 2011
p. 3-7.
JUNIOR, Alexandre Guilherme da Cruz Alves. Disputas pela Política de Boa Vizinhança: o
choque de ideias no interior do governo norte-americano e a reação latino-americana durante
a Conferência do Rio de Janeiro em 1942. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História –
ANPUH: São Paulo, julho 2011.
KELLY, Orr. Meeting the Fox: The Allied Invasion of Africa, from Operation Torch to
Kasserine Pass to Victory in Tunisia. Wiley. 2002.
KOLLERITZ, Fernando. Testemunho, juízo político e história. In: Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 24, nº 48, p.73-100 – 2004.
KURY, Mário da Gama. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. 8ª Edição. Jorge Zahar
Editor: Rio de Janeiro, 2009.
LACAPRA, Dominick. Escribir la historia, escribir el trauma. 1ª ed. Buenos Aires: Nueva
Visión, 2005.
207
LACAPRA, Dominick. Historia y memora después de Auschwitz. 1ª. Ed. Buenos Aires:
Prometeo Libros, 2009.
LAFER, Celso. Gerson Moura - In Memorian (1939-1992). Estudos Históricos, Rio de
janeioro, Vol.5, n. 10, 1992, p.131-133.
LANGLEY, Lester D. America and the Americas: the United States in the western
hemisphere. Athens: The University of Georgia Press, 1989.
LATFALLA, Giovanni. O Estado-Maior do Exército e as negociações militares Brasil-
Estados Unidos entre os anos de 1938 e 1942. In: Caminhos da História. Vassouras, V.6, N.2,
p. 61-78, jul./dez., 2010.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução Bernardo Leitão [et al.] - Campinas, SP
Editora da UNICAMP, 1990.
LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: AMADO, J. & FERREIRA, M. M. (orgs.). Usos e
abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006.
LOPES, A. M. H.; PEREIRA, Mateus. H. F.; CORGOSINHO, H. H. F.: Jogos de Escala: a 2ª.
Guerra Mundial vista pelos jornais de Divinópolis. Cadernos da Pós-Graduação (UEMG), v.
2, p. 75-93. 2007.
LOPEZ, Adriana; Mota, Carlos Guilherme. História do Brasil: uma interpretação. Editora
Senac: São Paulo, 2008.
MALAMUD, Samuel. A Segunda Guerra Mundial na visão de um Judeu brasileiro. Rio de
Janeiro: Aeroplano, 1997.
MATTOS, Carlos Meira. O Brasil na II Guerra Mundial. In: O Globo Expedicionário.
Agencia Globo: Rio de Janeiro, 1985.
MAXIMIANO, Cesar Campiani. Barbudos, Sujos & Fatigados; Soldados brasileiros na II
Guerra Mundial. São Paulo: Grua, 2010.
MAXIMIANO, Cesar Campiani. Onde estão nossos heróis: uma breve história dos
brasileiros na 2ª Guerra. Selbstverl, 1995.
MAXIMIANO, Cesar Campiani. Trincheiras da mémoria: brasileiros na campanha da Itália,
1944-1945. Tese de doutorado. São Paulo, USP, 2004.
McCANN Jr., Frank D. Aliança Brasil - Estados Unidos. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército, 1995.
McCANN Jr., Frank D. Soldados da Pátria: história do exercito brasileiro, 1889-1937.
Tradução: Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
McCANN Jr., Frank D. The Força Expedicionária Brasileira in the Italian Campaign, 1944-
5. The Professional Bulletin of Army History. Washington, EUA, 1993.
208
MELVILLE, Herman. Moby Dick. Martin Claret: São Paulo, 2004.
MENEZES, Alberne Miriram. Tensão política entre o Brasil e a Alemanha, o pulsar dos
acontecimentos em 1938. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História - ANPUH. São
Paulo, julho 2011. Disponível em:
http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308160109_ARQUIVO_TENSAOPOLI
TICAENTREOBRASILEAALEMANHAversaocorrigidaem15dejunhode2011.pdf. Acesso
em: 26 ago. 2012.
MILNER, Marc. Battle of the Atlantic. The History Press; Reprint edition. 2011.
MINELLA, Jorge Lucas Simões. A Segunda Guerra Mundial e o Pan-Americanismo
Brasileiro. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH: São Paulo, julho 2011.
MONTAGNER, Miguel Ângelo. Trajetórias e biografias: notas para uma análise
bourdieusiana. Sociologias, Porto Alegre, ano 9, nº17, jan,/jun.2007,p.240-264.
MOTTA, Aricildes de Moraes. História Oral do Exército na Segunda Grande Guerra
Mundial. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2001. (8 Tomos).
MOURA, Gerson. Autonomia na dependência: a política externa brasileira de 1935 a 1942.
Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1980.
MOURA, Gerson. Relações exteriores do Brasil: 1939-1915: mudanças na natureza das
relações Brasil - Estados Unidos durante e após a Segunda Guerra Mundial. Brasília:
FUNAG, 2012.
MOURA, Gerson. Sucessos e ilusões: Relações internacionais do Brasil durante e após a
Segunda Guerra Mundial. FGV: Rio de Janeiro, RJ - 1991.
MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil: a penetração cultural americana. São Paulo:
Brasiliense, 1988.
MOURA, G. de Almeida. O Fascismo Italiano e o Estado Novo Brasileiro. Ed. Empresa
Gráfica da "Revista dos Tribunais", 1940.
MORAES, J. B. Mascarenhas de. A FEB pelo seu comandante. São Paulo: Instituto Progresso
Editorial S.A. 1947.
MORAES, Roberto Mascarenhas de (Org.). O Cruzeiro do Sul. Rio de Janeiro: Léo
Christiano Editorial, Biblioteca do Exército, 2011.
MORTON, Louis. As Grandes Decisões Estratégicas: Segunda Guerra Mundial. Rio de
Janeiro: Biblioteca do Exército, 2004.
NORA, Pierre - Entre Memória e História a problemática dos lugares. In: Projeto História 10:
Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História.
São Paulo: Nº10. p.1-178. Dezembro/93.
209
NUNES, Márcia Vidal. Rádio e política: do microfone ao palanque: os radialistas em
Fortaleza. São Paulo: Annablume, 2000.
OLIVEIRA, Lucas Amaral de. O testemunho literário como documento empírico: uma
reflexão metodológica sobre a memória a partir da obra de Primo Levi. Disponível em:
<http://www.ufpel.tche.br/isp/ppgcs/eics/dvd/documentos/gts_llleics/gt20/g20lucasamaraldeo
liveira.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2012.
OLIVEIRA, Valeska Fortes de. Educação, memória e História de Vida: usos da história oral.
História Oral, v.8, n.1,p.91-106,jan.-jun.2005.
OSTROM, Thomas P. The United States Coast Guard in World War II: A History of
Domestic and Overseas Actions. McFarland, 2009.
PANDOLFI, Dulce (org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio
Vargas, 1999.
PARADA, Maurício. Educando corpos e criando a nação: cerimônias cívicas e práticas
disciplinares no Estado Novo. Rio de Janeiro: Apicuri Editora, 2009.
PARKER, Selwyn. The Great Crash: How the Stock Market Crash of 1929 Plunged the
World into Depression. London: Brown Book Group, 2008.
PAULO, Heloísa Helena de Jesus. Estado Novo e propaganda em Portugal e no Brasil: o
SPN/SNI e o DIP. Coimbra, Portugal: Livraria Minerva, 1994.
PAULO, Heloísa Helena de Jesus. O DIP e a Juventude - Ideologia e Propaganda Estatal.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v.7. nº. 14. pp.99-113. mar./ago. 87.
PERAZZO, Priscila Ferreira. O perigo alemão e a repressão policial no estado novo.
Governo do Estado de São Paulo, Secretaria de Estado da Cultura, Departamento de Museus e
Arquivos, Divisão de Arquivo do Estado, 1999.
PEREIRA, Carolina Mendes. Delitos sexuais cometidos pelos soldados brasileiros em
Campanha na Itália durante a Segunda Guerra Mundial: Do estupro e homicídio ao indulto.
2003. Monografia (Bacharelado e licenciatura em História) - Universidade Federal do Paraná,
Curitiba.
PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. A Máquina da Memória/Almanaque Abril: o tempo
presente entre a história e o jornalismo. Bauru: EDUSC, 2009.
PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Almanaques, evento e imagens: a experiência da
Grande Guerra representada pelos almanaques Hachette e Bertrand. Patrimônio e Memória.
São Paulo, Unesp, v. 8, n.1,p.98-118,janeiro-junho, 2012
PEREIRA, Maria Juvanete Ferreira da Cunha. O Arquivo Público enquanto lugar de
memória. Em Tempo de Histórias - Publicação do Programa de Pós-Graduação em História
PPG-HIS/UnB, n.10, Brasília, 2006. p. 94-116.
210
PINHEIRO, Letícia. A entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. In: Revista USP, São
Paulo (26), pp. 108-119, Jun/Ago, 1995.
PINTO, Aline Magalhães. & VALINHAS, Mannuella de Oliveira. Historicidade, retórica e
ficção: interlocuções com a historiografia de Dominick LaCapra. In: Revista Rhêtorikê. No3.
1-18. Junho de 2010.
PINTO, Júlia Amabile Aparecida de Souza. A participação brasileira na Segunda Guerra
Mundial e a reintegração social dos veteranos de guerra da Força Expedicionária
Brasileira: notas de pesquisa. Disponível em:
http://www.uel.br/revistas/afroatitudeanas/volume-2-2007/Julia%20Amabile.pdf. Acesso em:
05 jun. 2013.
POLLAK, Michael. A gestão do indizível. In: WebMosaica Revista do Instituto Cultural
Judaico Marc Chagall, Rio Grande do Sul, Vol.2 n.1, (jan-jun) 2010. p.9-49.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social, Estudos Históricos. Rio de Janeiro,
CPDOC-FGV, v.5, n.10, 1992, p. 200-215.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio, Estudos Históricos. Rio de Janeiro,
CPDOC-FGV, v. 2, n. 3, 1989, p.3-15.
PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos: Narração, interpretação e significado nas
memórias e nas fontes orais. In: Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, nº. 2, 1996, p. 59-72.
PORTELLI, Alessandro. Ensaios de história oral. Tradução: Fernando Luiz Cássio e Ricardo
Santhiago. São Paulo: Letra e Voz, 2010.
PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val de Chiana (Toscana 29 de junho de
1994): mito e política, luto e senso comum. In: AMADO, Janaina & FERREIRA, Marieta de
Moraes. (org.). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1996.
POWELL, Michael. A Última Viagem do Graf Spee. Rio de Janeiro: Record, 1956.
RAHMEIER, Andrea Helena Petry. Alemanha e Brasil: as relações diplomáticas em 1938. IX
Encontro Estadual de História, Associação Nacional de História - Secão Rio Grande do Sul -
ANPUH-RS. 14 a 18 julho de 2008.
RAHMEIER, Andrea Helena Petry. Relações diplomáticas e militares entre a Alemanha e o
Brasil: da proximidade ao rompimento (1937-1942). 2009. Tese (Doutorado em História) –
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre.
REMARQUE, Erich Maria. Nada de novo no front. Tradução Helena Runyanek. São Paulo:
Abril S.A. Cultural e Industrial, 1974.
REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas. A experiência da microanalise. Rio de Janeiro:
Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998.
211
RIBEIRO, Patrícia da Silva. Em luto e luta: construindo a memória da FEB. 2013. Tese
(Doutorado em História) – Fundação Getúlio Vargas (FGV-CPDOC), Rio de Janeiro.
RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007.
RIGONI, Carmen Lúcia. "La Forza di Spedizione Brasiliana" (FEB) - Memória e História:
Marcos na monumentalística italiana. 2003. Dissertação (Mestrado em História) -
Universidade Federal do Paraná, Curitiba.
ROMEIRO, Jacy Gomes. Gota de arte no sangue. Artes Gráficas Santo Antônio: Divinópolis,
1986.
ROSA, Alessandro do Santos. A reintegração social dos Ex-Combatentes da Força
Expedicionária Brasileira (1946-1988). Dissertação mestrado UF do Paraná - Curitiba 2010.
ROUSSO, Henry. O arquivo ou o indício de uma falta. Revista Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, n. 17, 1996.
ROWLAND, Donald. History of the Office of the Coordinator of Inter-Americans Affairs:
Historical Reports on War Administration. Washington: Government Printing office, 1947.
RUSH, Robert S. US Infantryman in World War II: Mediterranean Theater of Operations
1942-45. Osprey Publishing, 2002.
SANDER, Roberto. O Brasil na mira de Hitler: a história do afundamento de 34 navios
brasileiros pelos nazistas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
SANTOS, Claudney Silva dos. Veteranos e vigilantes: o caso da Associação dos ex-
combatentes da região Cacaueira - Um recorte historiográfico. Disponível em:
http://www.uesc.br/eventos/cicloshistoricos/anais/claudney_silva_dos_santos.pdf. Acesso em:
07 out. 2013.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. História e Memória: o caso do Ferrugem. Revista
Brasileira de História. São Paulo, v.23, nº 46, pp. 271-295 – 2003.
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. O Brasil de Getúlio Vargas e a formação dos blocos:
1930-1942. O processo de envolvimento brasileiro na II Guerra Mundial. São Paulo: Ed.
Nacional; (Brasília): INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1985.
SEITENFUS, Ricardo Antônio Silva. O Brasil vai à Guerra. São Paulo: Editora Manole,
2003.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma – a questão dos testemunhos de catástrofes
históricas. In: PSIC. CLIN., Rio de Janeiro, vol. 20, n.1, p.65–82, 2008.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. TÉMOIGNAGE / Testimony; Personnal experience
narrative. Disponível em:
212
http://www.flsh.unilim.fr/ditl/Fahey/TMOIGNAGETestimonyPersonnalexperiencenarrative_
n.html. Acessado em: 8 dez. 2012.
SCHAPP, Wilhelm. Envolvido em histórias. Porto Alegre: Sérgio Antônio fabris, 2004.
SCHMITD, Benito. Construindo biografias. Historiadores e jornalistas: aproximações e
afastamentos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.19, 1997.
SCHMITT, Carl. O Conceito do Político - Teoria do Partisan. Belo Horizonte: Del Rey,
2009.
SCHOUTZ, Lars. Estados Unidos: poder e submissão. Uma história da política norte-
americana em relação à América Latina. Bauru: Edusc, 2000.
SHAKESPEARE, William. Macbeth. Martin Claret: São Paulo, 2002.
SILVA, Hélio. 1942 – Guerra no continente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
SILVA, Maria Aparecida de Oliveira. Biografia como fonte histórica. Cadernos de Pesquisa
do CDHIS – n.36/37 – ano 20 – p. 9-15 – 2007.
SILVEIRA, Joaquim Xavier da. A FEB por um soldado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1989.
SILVEIRA, Joel & MITKE, Thassilo. A Luta dos Pracinhas. 3ª Edição revista e aumentada:
A FEB 50 anos depois. Uma visão Crítica. Rio de Janeiro: Record, 1993.
SILVEIRA, Joel. II Guerra: momentos críticos. Rio de Janeiro: Mauad, 1995.
SOARES, Leonercio. Verdades e vergonhas da Força Expedicionária Brasileira. Curitiba:
Edição do Autor, 1984.
SOLAR, David. Mussolini, un trágico y sórdido epílogo. In: Revista la Aventura de la
Historia (2005). p.24-35.
SOUZA, Tarcísio José de. Certa Ocasião... São João Del-Rei: FUNREI, 2000.
STRAUSS, Anselm. Identity, Biography, history, and symbolic representations. Social
Psychology Quarterly, Vol.58, No.1 (Mar., 1995), pp.4-12. Disponível no site:
<http://www.jstor.org/stable/2787139> acessado em: 08 de Jan. de 2011.
THOMPSON, E. P. A Miséria da Teoria ou um planetário de erros. Uma crítica ao
pensamento de Althusser. Tradução Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981.
THOMPSON, E. P. Folclore, Antropologia e História Social. in NEGRO, Antônio Luigi e
SILVA, Sérgio (org.). As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas:
UNICAMP, 2001.
213
THOMPSON, Paul. A voz do passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
TICK, Edward. War and the soul - Healing our nation's Veterans from post-traumatic stress
disorder. First Question, 2005.
TOTA, Antônio Pedro. Segunda Guerra Mundial. In: MAGNOLI, Demétrio (Org.). História
das Guerras. 3 ed. São Paulo: Contexto, 2006.
TOTA, Antônio Pedro. O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da
Segunda Guerra. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
VARGAS, Getúlio. A Nova Política do Brasil (Volume V). Rio de Janeiro: José Olympio,
1943.
VIANNA, Aurélio et al. A vontade de guardar: lógica da acumulação em arquivos privados.
Arquivo e Administração, Rio de Janeiro, v.10-14, n.2, jul/dez. 1986.
VIANA, Oliveira. O idealismo da Constituição. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1939, 2ª
ed.
VIDAL, Germano Seidl Vidal & COSTA, Octávio Pereira da. Trinta anos depois da volta.
Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1976.
VIDAL-NAQUET, Pierre. Os assassinos da memória: um Eichmann de papel e outros
ensaios. Campinas: Papirus, 1988.
WAACK, Willian. As duas faces da Glória. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
WAENY, Maria Fernanda Costa. História, memória e Abordagens Históricas: Situando um
problema. Memorandum, Abr/2002. Belo Horizonte: UFMG; Riberão Preto: USP. Disponível
em: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos02/waeny01.htm. Acesso em: 22 ago.
2011.
WYLER, Lia. Que Censura? D.E.L.T.A., 19: Especial, 2003.
214
ANEXOS
ANEXO 01
Fotografia do terceiro-sargento da FEB Osmar Gomes de Oliveira. Foto pertencente ao
acervo do Arquivo Público Municipal de Divinópolis, Caixa 08.
215
ANEXO 02
Vista panorâmica de São João Del Rey. Álbum de fotografias. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira.
Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef).
216
ANEXO 03
Osmar Gomes de Oliveira em acampamento na Itália. Álbum de fotografias. Acervo Digital Osmar Gomes de
Oliveira. Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef).
217
ANEXO 04
Terceiro-sargento Osmar Gomes de Oliveira em fox-hole. Fotografia de Horácio de Gusmão Coelho Sobrinho –
Fotógrafo da FEB/Arquivo Correio da Manhã/Arquivo Nacional.
218
ANEXO 05
Lembrança das Bodas de Prata. Álbum de fotografias. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira.
Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef).
219
ANEXO 06
Momentos de descanso. Álbum de fotografias. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira.
Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef).
220
ANEXO 07
Amigos italianos. Álbum de fotografias. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira.
Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef).
221
ANEXO 08
“Benvindo ao lar”. Álbum de fotografias. Acervo Digital Osmar Gomes de Oliveira.
Locado no Centro de Memória da FUNEDI (Cemef).
ANEXO 09
222
Propaganda de guerra alemã (S.A.). (Cópia). Acervo do Arquivo Público
Municipal de Divinópolis. p. 3.
ANEXO 10
223
A FEB na Itália. Cartaz de propaganda de guerra do DIP. (S.A.). (Cópia.).
Acervo do Arquivo Público Municipal de Divinópolis.
ANEXO 11
224
Reprodução do Quadro artístico da FEB. Publicado pela revista Divinews, 15 de agosto de 1994.
Divinópolis, MG. p. 21.
ANEXO 12
225
Monumento em homenagem à FEB em Divinópolis, MG. Fotografia do monumento,
Acervo pessoal Izaac Erder Silva Soares, 2014.