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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO - UFOP INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA Programa de Pós-Graduação em Filosofia A filosofia da vontade e as interpretações da tragédia: uma análise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzsche. Raul Moraes de Euclides OURO PRETO 2010

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO - UFOP INSTITUTO …

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1

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO - UFOP

INSTITUTO DE FILOSOFIA ARTES E CULTURA

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia

A filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia uma

anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzsche

Raul Moraes de Euclides

OURO PRETO

2010

2

Raul Moraes de Euclides

A filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia uma

anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzsche

Dissertaccedilatildeo apresentada ao programa de

Poacutes-graduaccedilatildeo em Esteacutetica e Filosofia da

Arte do Instituto de Filosofia Artes e

Cultura da Universidade Federal de Ouro

Preto como requisito parcial para obtenccedilatildeo

do tiacutetulo de Mestre em Filosofia

Aacuterea de concentraccedilatildeo Esteacutetica e Filosofia

da Arte

Orientador Prof Dr Heacutelio Lopes da Silva

Co-orientador Prof Dr Eduardo Soares

Neves Silva

OURO PRETO

2010

3

Catalogaccedilatildeo sisbinsisbinufopbr

E86f Euclides Raul Moraes de

A filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia [manuscrito]

uma anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzsche Raul

Moraes de Euclides - 2010

99f

Orientador Prof Dr Heacutelio Lopes da Silva

Co-orientador Prof Dr Eduardo Soares Neves Silva

Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto

Instituto de Filosofia Artes e Cultura

Aacuterea de concentraccedilatildeo Esteacutetica e Filosofia da Arte

1 Schopenhauer Arthur 1788-1860 - Teses 2 Nietzsche Friedrich

Wilhelm 1844-1900 - Teses 3 Trageacutedia - Teses I Universidade Federal

de Ouro Preto II Tiacutetulo

CDU 179221

4

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

INSTITUTO DE FILOSOFIA ARTES E CULTURA

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA

MESTRADO EM ESTEacuteTICA E FILOSOFIA DA ARTE

Dissertaccedilatildeo intitulada ldquoA filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia

uma anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzscherdquo de autoria do

mestrando Raul Moraes de Euclides apresentada agrave banca examinadora constituiacuteda pelos

seguintes professores

____________________________________________________

ProfDr Heacutelio Lopes da Silva - Orientador- UFOP

___________________________________________________

ProfDr Eduardo Soares Neves Silva ndash Co-orientador - UFMG

____________________________________________________

Prof Dr Douglas Garcia Alves Juacutenior - UFOP

____________________________________________________

Prof Dr Rogeacuterio Antocircnio Lopes - UFMG

Ouro Preto 24 de Marccedilo de 2010

5

Agrave minha famiacutelia

6

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente ajudaram na elaboraccedilatildeo deste

trabalho

Agrave minha esposa pelo amor paciecircncia e apoio

Ao corpo docente do curso de mestrado e em especial ao meu co-orientador

cujo incentivo foi essencial agrave continuaccedilatildeo da pesquisa

Ao meu orientador pelas observaccedilotildees valiosas

Aos colegas de mestrado companheiros indispensaacuteveis nas diaacuterias procissotildees de

embriaguez dionisiacuteaca pelas labiriacutenticas ladeiras de Ouro Preto

7

A existecircncia eacute um episoacutedio do nada

Arthur Schopenhauer

8

RESUMO

O projeto que aqui se apresenta tem como objetivo principal percorrer as

teorias do traacutegico schopenhaueriana e nietzscheana no intuito de apresentar as

principais caracteriacutesticas de cada uma destas teorias Este percurso teraacute como ponto de

partida o fundamento metafiacutesico comum a elas qual seja a filosofia schopenhaueriana

da vontade Atraveacutes desta exposiccedilatildeo pretendemos demonstrar natildeo somente a real

amplitude da influecircncia de Schopenhauer nos primeiros escritos de Nietzsche mas

tambeacutem algumas das peculiaridades existentes em cada uma das citadas teorias

Palavras-chave Schopenhauer - Nietzsche - Trageacutedia - Traacutegico - Filosofia da

vontade

ABSTRACT

The research presented herein has as its ultimate goal to discuss the

theories of the tragedy developed by Schopenhauer and Nietzsche highlighting the

main characteristics ndash points of convergence and divergence ndash of both Our trajectory

shall start from the metaphysical foundations apparently displayed in both theories

which is ndash the schopenhauerian philosophy of the will Throughout our exposition we

intend to show not only that Schopenhauers philosophy had a huge impact in

Nietzsches first writings but also reveal the peculiarities beneath the development of

their aforementioned theories

Keywords Schopenhauer - Nietzsche - Tragedy - Tragic ndash Philosophy of the will

9

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO11

1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES NA

FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA 17

2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU

SUBSTRATO METAFIacuteSICO42

21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo43

22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo45

23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana49

24 A finalidade moral da trageacutedia56

25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera62

3 A TEORIA DA TRAGEacuteDIA DO JOVEM NIETZSCHE65

31 A influecircncia de Schopenhauer na obra do primeiro Nietzsche66

32 O projeto subjacente ao nascimento da trageacutedia72

33 A teoria da trageacutedia publicada75

4 CONCLUSAtildeO pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo da

vida85

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS93

10

ABREVIATURAS

Obras de Schopenhauer

MVR = Mundo como vontade e como representaccedilatildeo (2005)

MVR II ndash Mundo como vontade e como representaccedilatildeo volume II (2005)

MB = Metafiacutesica do belo (2003)

SOE = Sobre o ofiacutecio de Escritor (2005)

QRPRS = De la cuadruple raiz del principio de razon suficiente (1981)

PP = Parerga e paralipomena (1974)

SFM = Sobre o fundamento da moral (2001)

SFU = Sobre a filosofia universitaacuteria (2001)

Obras de Nietzsche

NT = O nascimento da trageacutedia (1992)

VD = Visatildeo dionisiacuteaca do mundo (2005)

CORRESPONDEcircNCIA = Correspondecircncias de Nietzsche (2007)

OC = Obras completas de Nietzsche (1963)

11

INTRODUCcedilAtildeO

ldquoDias sem nuacutemero nunca reservam a

ningueacutem nada mais que dissabores mais

proacuteximos da dor que da alegria Quanto aos

prazeres natildeo os discernimos e nossa vista os

buscaraacute em vatildeo logo que para nossa

desventura chegamos ao limite prefixado E

desde entatildeo o nosso aliacutevio uacutenico seraacute aquele

que daraacute a todos o mesmo fim na hora de

chegar de suacutebito o destino procedente do

tenebroso reino onde natildeo haacute cantos nem

liras onde natildeo haacute danccedilas ndash ou seja a morte

epiacutelogo de tudo Melhor seria natildeo haver

nascido como segunda escolha bom seria

voltar logo depois de ver a luz agrave mesma

regiatildeo de onde se veiordquo

(Soacutefocles)

As teorias sobre a trageacutedia de Schopenhauer e Nietzsche satildeo parte

indispensaacutevel no estudo da histoacuteria da filosofia da trageacutedia Dentre os diversos

pensadores contemporacircneos que tratam sobre o problema da trageacutedia e do traacutegico e que

deram visiacutevel destaque agraves teorias dos nossos filoacutesofos podemos destacar Walter

Benjamin1 e Peter Szondi

2 Entretanto nos trabalhos destes autores o problema do

1 BENJAMIN Walter Origem do drama barroco alematildeo Traduccedilatildeo Sergio Paulo Rouanet Satildeo Paulo

Brasiliense 2004

12

relacionamento e da interdependecircncia entre as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche

natildeo eacute detalhado a contento Diante disto mesmo para um olhar historicamente

caracterizador torna-se vaacutelido um estudo comparado destas teorias que leve em

consideraccedilatildeo o quecirc ou o quanto haacute de comum em suas metafiacutesicas e a partir desta

perspectiva trace os aspectos coincidentes e dissidentes das mesmas mostrando seus

pontos de interdependecircncia e discrepacircncia muacutetua

Apesar de estar entre as teorias da trageacutedia mais estudadas do periacuteodo do

idealismo alematildeo a teoria Schopenhaueriana que eacute sempre analisada em relaccedilatildeo a seus

pressupostos metafiacutesicos ao ser vista sob outra perspectiva ganharia contornos

intensamente enriquecidos Esta perspectiva atraveacutes da qual nos propomos a examinar a

teoria do traacutegico do filoacutesofo eacute aquela que levaraacute em consideraccedilatildeo as influecircncias

histoacutericas culturais e filosoacuteficas que agiram diretamente sobre a esteacutetica do traacutegico

schopenhaueriana Ao lanccedilarmos um olhar sobre estas referidas influecircncias estaremos

abrindo caminho para uma melhor compreensatildeo sobre a teoria esteacutetica

schopenhaueriana o que conseguintemente refletiraacute em um juiacutezo mais adequado da

teoria nietzscheana

Para um entendimento mais eficiente das teorias propostas nas obras do

jovem Nietzsche parece-nos essencial o conhecimento de uma de suas mais decisivas

influecircncias a filosofia de Schopenhauer A analogia almejada erige-se na verdade

como meacutetodo de anaacutelise ou seja o que pretendemos eacute alcanccedilar uma maior compreensatildeo

dos problemas com os quais Nietzsche se deparou quando da elaboraccedilatildeo de sua primeira

obra e procurar identificar a existecircncia de alguma apropriaccedilatildeo eou adaptaccedilatildeo de alguns

conceitos da filosofia de Schopenhauer na resoluccedilatildeo destes problemas A necessidade

deste estudo comparativo torna-se ainda mais evidente quando e este eacute o caso

2 SZONDI Peter Ensaio sobre o Traacutegico Traduccedilatildeo Pedro Suumlssekind Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

13

defrontamo-nos com uma influecircncia que se apresenta tatildeo clara e assumidamente

admitida pelo autor Todavia natildeo se pretende aqui apenas a justaposiccedilatildeo de um

pensamento ao outro Apesar de ser identificaacutevel em toda a obra posterior de Nietzsche

encontra-se nos seus primeiros escritos sobretudo na obra O nascimento da trageacutedia

aquele momento discursivo no qual podemos apontar uma influecircncia mais direta da

filosofia de Schopenhauer

Dos trabalhos que fazem um estudo comparativo entre estes filoacutesofos a

maioria se ateacutem em identificar as diferenccedilas conceituais entre eles mais

especificamente no campo eacutetico e metafiacutesico Grosso modo tratam principalmente dos

problemas relativos agrave diferenciaccedilatildeo entre os conceitos de vontade nestes autores

vontade de viver e vontade de poder Estes estudos tecircm como foco a filosofia tardia de

Nietzsche onde este apesar da assumida influecircncia torna-se um criacutetico de

Schopenhauer A real extensatildeo da influecircncia deste filoacutesofo na primeira obra de

Nietzsche bem como o relacionamento entre suas teorias da trageacutedia permanecem

assim como territoacuterios ainda pouco explorados Ao lanccedilarmos olhar sobre esse

afastamento que Nietzsche mais tarde realizaraacute em relaccedilatildeo agrave filosofia

Schopenhaueriana verificamos mais uma vez a importacircncia do estudo de sua primeira

fase na qual poderemos detectar o referido afastamento

Podemos observar entretanto o crescimento do interesse no estudo da

obra O nascimento da trageacutedia de Nietzsche Nos uacuteltimos anos assistimos tambeacutem no

Brasil agrave publicaccedilatildeo de vaacuterios trabalhos que tecircm sob perspectiva a complexidade desse

seu primeiro livro Na bibliografia sugerida neste projeto constam publicaccedilotildees dos

seguintes autores Roberto Machado (2006) Rosa Maria Dias (2005 e 2009) Iracema

Macedo (2006) Marcio Joseacute Silveira Lima (2006) Estas publicaccedilotildees tratam temas

diversos da esteacutetica nietzscheana tais como a muacutesica a trageacutedia o traacutegico ou a

14

repercussatildeo do livro de Nietzsche e sua influecircncia wagneriana Podemos ver entretanto

naqueles e em outros trabalhos a constante chave de leitura que atribui a Schopenhauer

a influecircncia decisiva natildeo apenas sobre o jovem Nietzsche como usualmente se aponta

mas tambeacutem sobre um peculiar imbricamento entre metafiacutesica e esteacutetica o qual se

sustentaria sobre os ldquoimpulsos artiacutesticos da naturezardquo o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco Nos

termos de Dias (2005 27)

A oposiccedilatildeo apoliacutenea e dionisiacuteaca considerada no plano

metafiacutesico se daacute a partir da noccedilatildeo de vontade ou querer

estendida (sic) no sentido que a ela deu Schopenhauer de

ldquocentro e nuacutecleo do mundordquo ou ldquoforccedila que eternamente quer

deseja e aspirardquo () O mundo fenomecircnico como resultado

desse movimento do querer () faz um segundo movimento

dessa vez esteacutetico reproduzindo o movimento inicial que a

vontade realizou em direccedilatildeo agrave aparecircncia

Tendo em vista o fato de que as teorias sobre o traacutegico dos dois filoacutesofos tecircm como

ponto de partida o sistema metafiacutesico schopenhaueriano fica clara a necessidade de

analisar em cotejo estas teorias tendo como fio condutor o meacutetodo de investigaccedilatildeo ora

proposto

Aleacutem de um aprofundamento no problema da influecircncia de

Schopenhauer na obra esteacutetica de Nietzsche o estudo de suas teorias sobre o traacutegico nos

daraacute a oportunidade de identificar as peculiaridades de cada uma destas teorias bem

como de estabelecer a sua importacircncia histoacuterica para uma filosofia do traacutegico

Em um primeiro momento traccedilaremos um panorama histoacuterico que

objetiva entender o status quo da filosofia do traacutegico no periacuteodo anterior ao

desenvolvimento da teoria schopenhaueriana da trageacutedia Esta investigaccedilatildeo seraacute

norteada pelas referecircncias constantes na proacutepria obra de Schopenhauer bem como por

um levantamento biograacutefico do filoacutesofo ou seja trabalharemos somente os momentos

que satildeo fundamentais para uma melhor compreensatildeo da obra schopenhaueriana Dentre

15

estes momentos daremos ecircnfase aos seguintes pontos o estudo sobre o helenismo de

Winckelmann e sua repercussatildeo a criacutetica teatral de Lessing Schiller e Goethe seu

projeto de criaccedilatildeo de um teatro alematildeo e suas produccedilotildees dramaacuteticas

Traccedilado o panorama histoacuterico no qual se insere a teoria da trageacutedia

schopenhaueriana passaremos para o toacutepico seguinte a apresentaccedilatildeo do sistema

metafiacutesico de Schopenhauer no qual estaacute embasada a sua teoria da trageacutedia bem como

a teoria nietzscheana A apresentaccedilatildeo seraacute feita de forma a expor os aspectos gerais da

filosofia da vontade atendo-se aos pontos deste sistema que estatildeo intrinsecamente

relacionados agraves teorias da trageacutedia dos nossos autores

Apoacutes os passos descritos reuniremos em um esboccedilo geral as

caracteriacutesticas do relacionamento existente entre o jovem Nietzsche e a filosofia de

Schopenhauer Para tanto utilizaremo-nos das referecircncias que Nietzsche faz a

Schopenhauer em suas cartas e escritos de juventude Com esta pesquisa pretendemos

identificar a opiniatildeo que o jovem Nietzsche tinha sobre a filosofia de Schopenhauer e a

profundidade da influecircncia desta em sua primeira obra Percorreremos ainda o ambiente

circundante agrave primeira obra de Nietzsche no intuito de realccedilar alguns dos conceitos

formativos de O nascimento da trageacutedia

Estabelecida a ligaccedilatildeo entre os autores passaremos ao estudo do apoliacuteneo

e do dionisiacuteaco par conceitual que nos forneceraacute a chave para se fazer um estudo

comparativo entre os filoacutesofos Para cumprir esta etapa analisaremos O nascimento da

trageacutedia bem como escritos contemporacircneos a este livro atraveacutes dos quais poderemos

delinear melhor a significaccedilatildeo desta duplicidade de impulsos e visotildees de mundo

Delinearemos assim os contornos das definiccedilotildees fundamentais da esteacutetica nietzscheana

e procuraremos construir um paralelo entre o mundo dionisiacuteaco e o mundo metafiacutesico

da vontade schopenhaueriano Temos a intenccedilatildeo de demonstrar a origem desta

16

metafiacutesica da vontade ou seja o criticismo kantiano e sua importacircncia para o conceito

de dionisiacuteaco Demonstraremos tambeacutem as caracteriacutesticas do mundo fenomecircnico

schopenhaueriano em sua identidade com o apoliacuteneo nietzscheano retomando a

epistemologia de Schopenhauer

Realizada a aproximaccedilatildeo e expostas tanto as semelhanccedilas como as

particularidades dos conceitos principais dos dois autores percorreremos sempre

focando um estudo paralelo entre os filoacutesofos outros conceitos que encontram

similaridade em suas esteacuteticas Com esse intuito procuraremos identificar nos dois

filoacutesofos o destaque dado agrave muacutesica dentro de suas teorias e o lugar dado agraves outras artes

em suas obras Discorreremos sobre a criacutetica que eles em uniacutessono fazem ao que

nomeiam racionalismo dogmatismo e o otimismo Finalizadas as aproximaccedilotildees

voltaremos nossa atenccedilatildeo ao aspecto de dissensatildeo que propicia o afastamento

fundamental entre as teorias dos dois filoacutesofos o efeito da trageacutedia Com isto

demonstraremos que a base metafiacutesica comum quando alinhada a pressupostos

esteacuteticos distintos geraraacute a referida dissensatildeo

17

1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES

NA FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA

Por que minha filosofia natildeo encontrou

simpatia e interesse Porque a verdade natildeo

estaacute de acordo com a tagarelice dos tempos

(Schopenhauer)

Neste primeiro capiacutetulo objetivamos apresentar as fontes filosoacuteficas

incutidas no sistema schopenhaueriano no intuito de situar historicamente o surgimento

da filosofia da vontade e trazer agrave baila o seu ambiente circundante bem como as teorias

filosoacuteficas com as quais Schopenhauer se propotildee a dialogar Apontaremos inicialmente

as influecircncias filosoacuteficas assumidamente presentes no sistema schopenhaueriano bem

como aquelas que fundamentam sua metafiacutesica e consequumlentemente sua teoria esteacutetica

Em um segundo momento procuraremos fazer um breve esboccedilo do ambiente artiacutestico-

cultural que dominava o pensamento alematildeo de entatildeo com o qual direta ou

indiretamente Schopenhauer e o jovem Nietzsche se depararam Com isto esperamos

posteriormente demarcar as singularidades que caracterizam as teorias destes filoacutesofos

Ressaltamos todavia que natildeo se trata de um mapeamento completo das fontes que

influenciaram esses autores ndash tarefa que exigiria um esforccedilo bem maior do que aquele

18

proposto por esta pesquisa ndash e sim de um breve panorama que se pautaraacute nas influecircncias

marcantemente presentes em suas obras

No contato com a obra de Schopenhauer a primeira impressatildeo que natildeo

passa despercebida aos seus leitores eacute a qualidade de sua prosa3 Tal qualidade

revelada na diversidade de recursos literaacuterios utilizados pelo autor eacute produto da visiacutevel

erudiccedilatildeo cultivada pelo filoacutesofo Conhecedor do grego do latim e suas respectivas

literaturas Schopenhauer transitava ainda pela obras literaacuterias cientiacuteficas e filosoacuteficas

contemporacircneas em suas liacutenguas originais conhecia o inglecircs o italiano o francecircs e o

espanhol Em sua juventude conviveu com vaacuterias personalidades do meio cultural

germacircnico que frequumlentavam o salatildeo de sua matildee em Weimar dentre eles Goethe a

maior figura das letras germacircnicas com quem teve um relacionamento mais proacuteximo

Sua obra eacute repleta de citaccedilotildees de poetas dramaturgos e seu conhecimento das artes

plaacutesticas e da muacutesica natildeo satildeo superficiais Em suas viagens pela Europa pocircde admirar

diversas esculturas e pinturas e como ele proacuteprio dizia pocircde ler diretamente no ldquolivro

do mundordquo Essa erudiccedilatildeo pode ser notada mesmo diante do desconhecimento de sua

biografia pela observaccedilatildeo da enorme quantidade de citaccedilotildees e menccedilotildees que estatildeo

espalhadas no interior de suas obras traduzidas ou como em sua maior parte citadas

em suas respectivas liacutenguas Frequumlentava as mais diversas aacutereas de conhecimento de sua

eacutepoca como sustenta Aramayo

3 O cuidado com a qualidade da produccedilatildeo literaacuteria tanto no que se refere agrave clareza quanto agrave riqueza de

recursos linguumliacutesticos eacute uma das caracteriacutesticas que Schopenhauer e Nietzsche tecircm em comum Esta

qualidade torna-se mais evidente ainda quando seus trabalhos satildeo natildeo raramente comparados com os

escritos filosoacuteficos alematildees daquele periacuteodo principalmente aos de Fichte Schelling e Hegel O elogio agrave

prosa schopenhaueriana feito por literatos e filoacutesofos contemporacircneos influenciados por sua obra pode

ser ilustrado agrave exaustatildeo entre eles encontram-se Thomas Mann Goethe Wittgenstein e o proacuteprio

Nietzsche ldquoMas a imensa forccedila de penetraccedilatildeo deste pensamento explica-se antes de tudo pelo fato de o

autor ser ao lado de Nietzsche o maior entre os escritores filosoacuteficos alematildeesrdquo (Rosenfeld 1996 177)

Jorge Luis Borges em uma entrevista publicada por Die Welt em 25 de marccedilo de 1975 realizava esta

confissatildeo ltPara mim existe um escritor alematildeo ao qual prefiro Schopenhauer Sei que deveria dizer

Goethe poreacutem Schopenhauer me interessa muitiacutessimo mais Tanto que estudei alematildeo ndash que aprendi

sobre os versos de Heine ndash fundamental e especificamente para poder ler a Schopenhauer em sua proacutepria

liacutenguagt (Aramayo 2001 18)

19

ldquoEm sua busca pela verdade Schopenhauer natildeo desdenha

nenhum aliado Os dramaturgos novelistas e poetas estatildeo quando

menos em peacute de igualdade com os mais egreacutegios filoacutesofos A perspicaacutecia

de Shakespeare ou a genialidade de Voltaire e a sutileza de Goethe nada

devem para a eloquumlecircncia Platocircnica a precisatildeo de um Spinoza e o rigor

conceitual do admirado Kant Sua curiosidade natildeo conhece limites nem

prejuiacutezo algum e por esta razatildeo tampouco menospreza quando o

considera oportuno prestar suficiente atenccedilatildeo aos fenocircmenos

paranormais agrave hipnose ou ao caacutelculo cabaliacutestico se entende que em

algo isto pode servir-lhe para demonstrar sua tese ou avaliar algumas de

suas intuiccedilotildees E na mesma direccedilatildeo aponta seu grande empenho por

incorporar o pensamento das religiotildees orientais a nosso acervo cultural

na possibilidade de um enriquecimento muacutetuordquo (Aramayo 2001 14-15)

A comparaccedilatildeo feita atraveacutes de metaacuteforas4 paraacutebolas ou alegorias em

sua maioria retiradas de obras literaacuterias ou cientiacuteficas torna-se recurso literaacuterio

constantemente presente na obra do filoacutesofo e ao mesmo tempo termocircmetro de suas

influecircncias e de seu relacionamento com o pensamento de seus contemporacircneos Tais

recursos satildeo utilizados contudo com o objetivo consciente de construir conhecimento

de ilustrar a mateacuteria do seu pensamento Nas palavras do filoacutesofo ldquoAs comparaccedilotildees satildeo

de grande valor na medida em que reduzem uma relaccedilatildeo desconhecida a uma

conhecida Inclusive as comparaccedilotildees mais detalhadas transformadas em paraacutebola ou

alegoria satildeo somente a reduccedilatildeo de uma relaccedilatildeo qualquer agrave sua exposiccedilatildeo mais

simples ilustrativa e palpaacutevelrdquo (Schopenhauer SOE 86) Se o nosso objetivo eacute mostrar

as raiacutezes da filosofia de Schopenhauer ou seja as influecircncias que formaram a mateacuteria

de seu pensamento eacute sobre esta mateacuteria que devemos nos debruccedilar Natildeo podemos

contudo nos furtar a apontar a riqueza das fontes formalmente presentes em seus

escritos5 A percepccedilatildeo da presenccedila desta numerosa miscelacircnea de referecircncias dentro da

4 ldquoSua profusa e brilhante utilizaccedilatildeo das metaacuteforas eacute o que o converte sem duacutevida alguma em um grande

escritor cujo estilo se nos afigura tatildeo ameno quanto sugestivordquo (Aramayo 2001 54) 5 Mateacuteria e forma satildeo na concepccedilatildeo do filoacutesofo planos ou instacircncias da produccedilatildeo escrita que servem

como referecircncia para o julgamento de valor do pensamento de um autor ldquo Um livro nunca pode ser mais

do que a impressatildeo dos pensamentos do autor O valor desses pensamentos reside na mateacuteria ou seja

naquilo sobre o que ele pensou ou na forma isto eacute na elaboraccedilatildeo da mateacuteria naquilo que pensou a

respeitordquo (Schopenhauer SOE 11) A importacircncia dada agrave forma por Schopenhauer seraacute melhor

esclarecida quando posteriormente apresentarmos a caracteriacutestica fundamentalmente epistemoloacutegica de

toda produccedilatildeo artiacutestica dentro de sua metafiacutesica do belo

20

obra schopenhaueriana diz-nos algo sobre seu estilo e seu arcabouccedilo cultural

entretanto quando voltamo-nos para a busca das influecircncias diretamente presentes em

seu sistema ie agraves raiacutezes da mateacuteria de seu pensamento percebemos que elas natildeo satildeo

tatildeo numerosas

Uma leitura das fontes filosoacuteficas do sistema schopenhaueriano torna-se

diferentemente do que ocorre em outros sistemas de seu tempo menos trabalhosa por

dois motivos Primeiramente o autor natildeo esconde suas influecircncias mas ao contraacuterio

faz questatildeo de apontaacute-las citaacute-las e quando lhe parece necessaacuterio as critica ou exalta

Em segundo lugar o que facilita o mapeamento destas fontes eacute a caracteriacutestica de

unidade do sistema schopenhaueriano como um todo Apesar da longevidade do

filoacutesofo e da distacircncia temporal entre suas obras suas intuiccedilotildees fundamentais

continuaram sendo as mesmas ao longo de sua vida Nas palavras de Rosset

ldquoSchopenhauer eacute homem de um soacute livro o MVR e de um soacute pensamento (qualificado

por ele mesmo de ltpensamento uacutenicogt nas primeiras linhas de sua obra)rdquo (2005 35)6

Natildeo satildeo poreacutem coetacircneas as influecircncias que marcaram a obra do filoacutesofo

como talvez a constante menccedilatildeo a seus contemporacircneos possa sugerir Nas palavras do

filoacutesofo como citado por Lefranc (2005 17) ldquoPude amar prosseguir aperfeiccediloar a

minha obra soacute por ela mesma em tranquumlilidade completa ao abrigo de toda influecircncia

externa e meus contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes

permaneci estranhosrdquo Conhecia a filosofia de seu tempo todavia natildeo a tinha como

interlocutora na verdade a desdenhava satildeo famosas as criacuteticas de Schopenhauer contra

as filosofias de seus contemporacircneos principalmente as de Fichte Schelling e Hegel

6 Sobre a unidade da produccedilatildeo schopenhaueriana destacamos aleacutem de Rosset os apontamentos de outros

dois de seus maiores comentadores Arthur Huumlbscher e Alexis Philonenko Na introduccedilatildeo aos manuscritos

schopenhauerianos Huumlbscher aponta a importacircncia dos manuscritos na percepccedilatildeo desta unidade uma vez

que podemos notar em diversas fases da vida do filoacutesofo o desenvolvimento dos temas pontuais que

marcaram sua obra principal Vide Hubscher Introduction Manuscript Remains 1985 Alexis

Philonenko trata desta unidade no proacutelogo de sua obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia

(Philonenko 1989 41-45)

21

(chamados de ldquoos trecircs sofistasrdquo) Quando faz referecircncias a eles comumente estaacute

imbuiacutedo de trecircs propoacutesitos criticar a qualidade formal de suas produccedilotildees

principalmente no que tange ao uso da liacutengua germacircnica apontar uma motivaccedilatildeo

individualista (subsistecircncia pessoal e status social) que existiria por traacutes de suas

elucubraccedilotildees filosoacuteficas e ressaltar a falta de atenccedilatildeo por parte daqueles filoacutesofos no

que se refere ao conteuacutedo da primeira criacutetica kantiana

Schopenhauer diagnosticava em seu tempo um periacuteodo de

empobrecimento da expressatildeo literaacuteria e do uso da liacutengua germacircnica e apontava como

os principais responsaacuteveis por estes acontecimentos os ldquoprofessores de filosofiardquo e seus

disciacutepulos As investidas schopenhauerianas contra a filosofia de seus contemporacircneos

podem ser encontrada em praticamente todas as suas obras mas estatildeo concentradas de

forma mais persistente em sua produccedilatildeo mais tardia na segunda ediccedilatildeo da QRPRS de

MVR em seus ensaios sobre a liberdade e o fundamento da moral e nos PP 7

Nesta

uacuteltima obra temos dedicados a estas criacuteticas alguns textos que podemos destacar Sobre

o ofiacutecio de escritor Da leitura e dos livros Da liacutengua e das palavras e Sobre a filosofia

universitaacuteria A liacutengua alematilde no que se refere agrave sua capacidade expressiva era tida em

mais alta consideraccedilatildeo por nosso filoacutesofo Afirmava que dentre as liacutenguas modernas

era ldquoa uacutenica na qual se pode escrever quase tatildeo bem quanto em grego ou em latimrdquo

(Schopenhauer SOE 72) Esta capacidade de expressatildeo de uma liacutengua eacute segundo o

filoacutesofo resultado de sua aptidatildeo em representar conceitos Desta forma na medida em

que surgem novos conceitos a elaboraccedilatildeo de novas palavras que os representem eacute um

sinal de evoluccedilatildeo adequaccedilatildeo e riqueza da liacutengua Entretanto para o filoacutesofo os

neologismos e adaptaccedilotildees criados por seus contemporacircneos natildeo eram resultados da

7 Muitos historiadores da filosofia bioacutegrafos e comentadores apontam que esta criacutetica adveacutem do

ressentimento pelo fracasso de Schopenhauer como docente na universidade de Berlim onde Hegel

reinava absoluto bem como da falta de reconhecimento de sua filosofia diante do sucesso dos professores

da mesma universidade

22

tentativa de representaccedilatildeo de novos conceitos mas ao contraacuterio eram comprovaccedilatildeo de

sua ldquopobreza de espiacuterito que a todo custo quer colocar algo no mercado e por natildeo ter

novos pensamentos chega com palavras novasrdquo (Schopenhauer SOE 129)

Schopenhauer condenava a atitude de seus contemporacircneos de utilizarem-se de

artifiacutecios como a natildeo designaccedilatildeo do caso a expressatildeo dos preteacuteritos por meio do

imperfeito a supressatildeo dos prefixos e outros subterfuacutegios para com isso disfarccedilar a sua

imprecisatildeo conceitual De acordo com Schopenhauer tratavam displicentemente a

liacutengua alematilde por dois motivos por natildeo possuiacuterem uma mateacuteria conceitualmente

relevante a ser expressa ou entatildeo para conscientemente causar a impressatildeo de que a

possuem e neste caso a responsabilidade pela natildeo compreensatildeo do texto seria atribuiacuteda

agrave incompetecircncia intelectual do leitor

Os que compotildeem discursos difiacuteceis obscuros enleados e

ambiacuteguos natildeo sabem ao certo o que querem dizer tecircm somente uma

consciecircncia vaga a esse respeito que luta primeiro por uma ideacuteia poreacutem

amiuacutede querem tambeacutem ocultar de si mesmos e dos outros que na

realidade eles natildeo tecircm nada a dizer Como Fichte Schelling e Hegel

querem parecer saber o que natildeo sabem pensar o que natildeo pensam e dizer

o que natildeo dizem Algueacutem que tenha algo correto a dizer se esforccedilaraacute por

exprimi-lo de maneira indistinta ou distinta (Schopenhauer SOE 39)

Podemos perceber entatildeo que ao criticar o estilo ldquoobscurordquo e ldquopomposordquo de seus

contemporacircneos Schopenhauer aponta como causa deste estilo natildeo somente a sua falta

de mateacuteria mas tambeacutem uma atitude consciente e arquitetadamente maldosa e com

toda a sua forccedila retoacuterica condena esta atitude

Nobre bdquoatualidade‟ magniacuteficos epiacutegonos geraccedilatildeo crescida no

leite materno da filosofia hegeliana Pela gloacuteria eterna quereis apertar

vossas garras em nossa antiga liacutengua para que a marca com um icnoacutelito

conserve para sempre o vestiacutegio de vossa existecircncia insiacutepida e sombria

Mas Dicirc Meliora Fora paquidermes fora Esta eacute a liacutengua alematilde Nela se

expressaram homens ou melhor nela cantaram grandes poetas e grandes

pensadores escreveram Arredai as patas Ou natildeo tereis o que comer (Soacute

isso os assusta) (Schopenhauer SOE 72-73)

23

A uacuteltima frase desta citaccedilatildeo nos eacute aclarada pelo texto Sobre a filosofia universitaacuteria

onde o filoacutesofo expotildee os argumentos de sua criacutetica agrave filosofia produzida em seu tempo

Para Schopenhauer os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo podem devido agrave sua funccedilatildeo

estatal se imiscuir do compromisso poliacutetico-religioso que seu cargo exige e

conseguintemente sustentados pelo Estado tratam de fazer sua apoteose Nas palavras

de Cacciola constantes na introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo brasileira do referido texto

ldquoSchopenhauer eacute um continuador da criacutetica romacircntica ao filisteiacutesmo que se origina em

Tieck A ironia que visa os homens de vida tatildeo regular como o reloacutegio lhe eacute bem

familiar O filisteu eacute o erudito pedante que soacute pensa na proacutepria vantagem O professor

de filosofia que pauta seus ensinamentos de acordo com os ditames do Estado e da

religiatildeo eacute o tipo acabado do filisteu A idolatria do Estado eacute a apoteose do filisteiacutesmo

(Schopenhauer SFU XXX) Por traacutes das ideacuteias dos ldquofiloacutesofos de profissatildeordquo estaria

incutido o retorno disfarccedilado da ldquoteologia judaicardquo de uma ldquopsicologia racionalrdquo da

ldquoliberdade da vontaderdquo e outros dogmas que de acordo com Schopenhauer refletem a

sua vocaccedilatildeo de trabalharem ldquoin maiorem Dei gloriamrdquo como exigido pela ideologia

estatal daquele periacuteodo Natildeo podem sob a pena de perderem o sustento financeiro

pessoal e familiar bem como sob o custo de perderem o status que o cargo lhes confere

contrariar os dogmas patronais

ldquo[] o intelecto dessa gente permanece fiel agrave sua destinaccedilatildeo

natural de trabalhar a serviccedilo da vontade como normalmente acontece

Mas por isso mesmo existe sempre uma intenccedilatildeo como fundamento do

seu agir e pensar eles tecircm fins o tempo todo e soacute tomam conhecimento

do que diz respeito a esses fins e portanto soacute do que corresponde a

esses fins A atividade do intelecto liberto da vontade condiccedilatildeo da pura

objetividade e por isso de todas as grandes realizaccedilotildees permanece-lhes

eternamente estranha ndash eacute uma faacutebula para seu coraccedilatildeordquo (Schopenhauer

SFU 63)

Desta forma os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo estariam voltados para a investigaccedilatildeo

objetiva da ldquoverdaderdquo a qual exigiria o distanciamento de todo e qualquer interesse

24

pessoal De acordo com o sistema schopenhaueriano tal distanciamento eacute um dom raro

com o qual a natureza a poucos contempla Na metafiacutesica schopenhaueriana a natureza

eacute aristocraacutetica O gecircnio eacute fenocircmeno raro seja ele filoacutesofo ou artista A percepccedilatildeo

objetiva do mundo alheia aos interesses pessoais da vontade individual eacute uma exceccedilatildeo

que soacute se manifesta raramente e as pessoas atadas aos interesses pessoais de sua

vontade natildeo podem reconhececirc-lo imediatamente Estes gecircnios produzidos pela natureza

seriam os verdadeiros educadores do mundo e os ldquoprofessores de filosofiardquo ao tentar

representar este papel que soacute agrave natureza cabe eleger causam-lhe repulsa

Tantas mentes comuns que se acham por cargo e profissatildeo no

dever de representar papeacuteis que a natureza nem ao menos lhes atribuiacutera e

de transportar cargas que exigem ombros de gigantes espirituais

oferecem na realidade um espetaacuteculo deveras lamentaacutevel Pois escutar

cantar os roucos e ver danccedilar os coxos eacute penoso mas ouvir filosofar a

mente limitada eacute insuportaacutevel (Schopenhauer SFU 34)

Prova do embotamento da capacidade de reconhecimento de uma produccedilatildeo genial era

para o filoacutesofo o fato de seus contemporacircneos ignorarem ou mesmo passarem agrave

margem do que seria a mais importante produccedilatildeo filosoacutefica do periacuteodo a cisatildeo entre o

real e o ideal perpetrada pela primeira criacutetica kantiana Esta era para o filoacutesofo a maior

prova do demeacuterito filosoacutefico de seus contemporacircneos preocupados com seus interesse

pessoais alheios a uma observaccedilatildeo objetiva do mundo natildeo levaram em consideraccedilatildeo os

limites impostos pela primeira criacutetica kantiana a toda investigaccedilatildeo racional

Depois de Kant ter cortado o nervo de todas as provas possiacuteveis

da teologia ndash tatildeo incisivamente que desde entatildeo ningueacutem mais pocircde

meter-se com elas ndash o esforccedilo filosoacutefico em quase cinquumlenta anos tem

consistido nas diversas tentativas de insinuar sutil e astuciosamente a

teologia e os escritos filosoacuteficos nada mais satildeo na sua maioria do que

tentativas infrutiacuteferas de reanimar um cadaacutever sem vida (Schopenhauer

SFU 81)

Natildeo nos interessa aqui adentrarmo-nos aos reais motivos existentes por

traacutes dos vitupeacuterios schopenhauerianos contra os pensadores de seu tempo nem

25

tampouco fazer juiacutezo valorativo sobre a importacircncia da filosofia da vontade em

comparaccedilatildeo ao idealismo absoluto Dentro do objetivo proposto qual seja situar

historicamente a filosofia da vontade e apontar suas influecircncias o importante eacute ressaltar

que a filosofia contemporacircnea a Schopenhauer natildeo fez efeito sobre a sua proacutepria a ponto

de modificaacute-la em seu conteuacutedo conforme esclarece o proacuteprio filoacutesofo ldquo [] meus

contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes permaneci

estranhosrdquo (apud Lefranc 2005 17) Eacute fundamental verificarmos que apesar do

sistema schopenhaueriano ter se desenvolvido agrave margem do idealismo de entatildeo seu

autor natildeo o desconhecia e muitas das ilustraccedilotildees e argumentaccedilotildees utilizadas por ele na

explicaccedilatildeo de suas teorias apoiavam-se nesta sua contenda com o seu tempo

Entretanto como a filosofia de seu tempo pretende-se herdeira do kantismo assim

tambeacutem procede Schopenhauer e a suas criacuteticas ao idealismo absoluto estatildeo

fundamentadas em sua pretensatildeo a uma heranccedila direta da filosofia kantiana Sobre a

heranccedila de Kant Schopenhauer esclarece ldquoEm todo caso natildeo reconheccedilo que tenha

acontecido algo na filosofia entre ele e mim por conseguinte ligo-me imediatamente a

elerdquo (Schopenhauer MVR 525)

Natildeo obstante as diversas criacuteticas ao retorno kantiano ao dogmatismo8

das quais a obra de Schopenhauer estaacute recheada sua admiraccedilatildeo por ele foi tambeacutem

abundantemente expressa Considerava-o ldquoa inteligecircncia mais original jaacute criada pela

naturezardquo (Schopenhauer SFU52) e afirmava que seus escritos capitais eram o ldquo[]

fenocircmeno mais importante que ocorreu ao longo dos uacuteltimos dois mil anos na filosofia

[]rdquo (Schopenhauer MVR 22) O maior reflexo desta admiraccedilatildeo pode ser observada

8 Nas palavras de Cacciola ldquoO criticismo de Kant teria segundo Schopenhauer perdido sua forccedila inicial

na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura Ou seja Schopenhauer acusa Kant de uma ldquorecaiacuteda no

dogmatismordquo por ter amenizado seu confronto com a teologia A ameaccedila dogmaacutetica jaacute configurada na

filosofia teoacuterica concretiza-se na Eacutetica de Kant quando esta acolhe como postulados Deus

imortalidade da alma e liberdade No poacutes-kantismo a importacircncia crescente atribuiacuteda agrave filosofia praacutetica

de Kant a expensas de sua criacutetica do conhecimento teria levado a uma espeacutecie de contaminaccedilatildeo da

razatildeo teoacuterica pela razatildeo praacutetica fazendo com que a primeira se transformasse num oacutergatildeo apto para

captar o Absolutordquo (Cacciola 1994 20)

26

no fato de que eacute da filosofia kantiana que Schopenhauer retira o leitmotiv para o

desenvolvimento da ideacuteia central9 de sua filosofia Esta ideacuteia central eacute aquela contida

concisamente no tiacutetulo de sua obra principal O mundo como vontade e como

representaccedilatildeo10

A dualidade formada entre representaccedilatildeo e vontade atraveacutes da qual

Schopenhauer acredita ter desvendado o ldquomisteacuteriordquo cosmoloacutegico eacute uma apropriaccedilatildeo

assumida dos conceitos kantianos de fenocircmeno e coisa-em-si respectivamente

Dizemos apropriaccedilatildeo pois aqueles conceitos satildeo acrescidos na filosofia

schopenhaueriana de caracteriacutesticas singulares Eacute com base nesta dualidade de

perspectivas de conhecimento do mundo inspirada na primeira criacutetica kantiana que o

filoacutesofo desenvolve as demais teorias que compotildeem seu sistema sejam elas a esteacutetica a

eacutetica a poliacutetica etc

Para Schopenhauer ldquoo maior meacuterito de Kant eacute a distinccedilatildeo entre

fenocircmeno e coisa-em-sirdquo (Schopenhauer MVR 526) Esta distinccedilatildeo foi o que

possibilitou a ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo realizada sobre o dogmatismo anterior A partir

daquele momento ldquoo mundo objetivo como o conhecemos natildeo pertence agrave essecircncia das

coisas em si mesmas mas eacute seu mero FENOcircMENO condicionado exatamente por

aquelas mesmas formas que se encontram a priori no intelecto

humanordquo(Schopenhauer MVR 530) Na teoria kantiana temos o espaccedilo e o tempo

como formas da sensibilidade que na filosofia de Schopenhauer satildeo associadas agrave

faculdade do entendimento juntamente com a causalidade uacutenica das doze categorias

kantianas do entendimento mantidas por Schopenhauer em seu sistema Desta forma o

mundo enquanto representaccedilatildeo eacute aquele que se apresenta para o sujeito enquanto objeto

9 Quando dizemos ideacuteia central havemos de lembrar que no sistema schopenhaueriano esta categorizaccedilatildeo

eacute singular (o tema seraacute tratado no iniacutecio do proacuteximo capiacutetulo) 10

A importacircncia que o filoacutesofo daacute ao tiacutetulo de uma obra eacute esclarecedora para a compreensatildeo da

importacircncia de sua ideacuteia central ldquoo que o sobrescrito deve ser para uma carta eacute o que um tiacutetulo deve ser

para um livro ou seja antes de tudo deve ter o objetivo de destinaacute-lo agrave parte do puacuteblico que pode se

interessar por seu conteuacutedo Sendo assim o tiacutetulo precisa ser caracteriacutestico e por ser naturalmente

breve deve ser conciso lacocircnico pregnante e se possiacutevel um monograma do conteuacutedordquo

(Schopenhauer SOE 09-10)

27

condicionado por estas trecircs formas presentes a priori no intelecto humano tempo

espaccedilo e causalidade Quanto ao mundo noumecircnico que dentro da teoria kantiana eacute um

ldquox desconhecidordquo Schopenhauer o explica atraveacutes da Vontade sua traduccedilatildeo da coisa-

em-si Essa dualidade que traz agrave tona a ldquocompleta diversidade entre o ideal e o realrdquo

(Schopenhauer MVR 527) doutrina que de acordo com Schopenhauer (MVR 528) foi

expressa por Kant de forma soacutebria calma demonstrada e incontestaacutevel jaacute havia sido

expressa tambeacutem em linguagem mais miacutetica e poeacutetica por outras duas doutrinas que

tambeacutem estatildeo profundamente presentes na obra Schopenhaueriana Platatildeo e os escritos

indianos dos Vedas e Puranas

Os estudos das obras de Platatildeo e Kant foram recomendaccedilatildeo de Schultze

um dos professores de Schopenhauer em Gottingen (Weissmann 1980 54) e formam os

pilares filosoacuteficos do sistema schopenhaueriano A separaccedilatildeo entre o real e o ideal

executada por Kant eacute vista tambeacutem na obra platocircnica Sua teoria das ideacuteias bem como

sua alegoria da caverna satildeo expressotildees de uma intuiccedilatildeo da existecircncia daquela separaccedilatildeo

O que Kant teria sistematizado a seu modo eacute a mesma verdade que ldquojaacute Platatildeo

incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte

modo este mundo que aparece aos sentidos natildeo possui nenhum verdadeiro ser mas

apenas um incessante devir ele eacute e tambeacutem natildeo eacute sua apreensatildeo natildeo eacute tanto um

conhecimento mas uma ilusatildeordquo (Schopenhauer MVR 528)

Aleacutem de Platatildeo os livros sagrados dos indianos afirmavam esta ldquoilusatildeordquo

ldquofantasmagoriardquo do mundo e constituem tambeacutem uma fonte frequumlentemente utilizada

por Schopenhauer O contato do nosso filoacutesofo com o pensamento oriental se deu

quando do seu encontro com o orientalista Friedrich Majer no salatildeo de sua matildee em

28

Weimar A partir de entatildeo o interesse do filoacutesofo pelo pensamento oriental foi se

intensificando ao longo de sua vida 11

A mesma verdade representada de modo completamente outro eacute

tambeacutem uma doutrina capital dos vedas e puranas a saber a doutrina de

Maia pela qual natildeo se entende outra coisa senatildeo aquilo que Kant nomeia

o fenocircmeno em oposiccedilatildeo agrave coisa-em-si pois a obra de maia eacute

apresentada justamente como este mundo visiacutevel no qual estamos um

efeito maacutegico que aparece na existecircncia uma aparecircncia inconstante e

inessencial em si destituiacuteda de ser comparaacutevel agrave ilusatildeo de oacutetica e ao

sonho um veacuteu que envolve a consciecircncia humana um algo do qual eacute

igualmente falso e igualmente verdadeiro dizer que eacute ou natildeo eacute

(Schopenhauer MVR 528)

Estas trecircs doutrinas estavam admitidamente presentes quando da

elaboraccedilatildeo do nuacutecleo conceitual fundamental da posteriormente nominada Filosofia da

Vontade Entretanto aleacutem de formarem seu nuacutecleo conceitual podemos encontraacute-las

ainda posteriormente em outros instantes desta filosofia O pensamento oriental seraacute

figura fortemente presente na eacutetica schopenhaueriana desenvolvida no quarto livro do

Mundo onde o filoacutesofo adotaraacute como fundamento de sua eacutetica o sentimento da

compaixatildeo jaacute presente na doutrina budista Platatildeo e Kant satildeo ainda influecircncias

fundamentais como veremos no proacuteximo capiacutetulo da esteacutetica schopenhaueriana O

primeiro novamente atraveacutes de sua teoria das ideacuteias seraacute utilizado por Schopenhauer na

definiccedilatildeo do objeto artiacutestico Do segundo poderemos notar sua influecircncia nas teorias

schopenhauerianas do sublime da imaginaccedilatildeo e da contemplaccedilatildeo desinteressada todas

elas fundamentais agrave compreensatildeo da teoria da arte poeacutetica

- - - - - - - - - -

11

Suas fontes principais eram o Oupnekacutehat uma traduccedilatildeo latina dos vedas e o Asiatic Journals jornal

publicado pela sociedade asiaacutetica fundada em 1784 Para uma referecircncia completa das citaccedilotildees orientais

na obra de Schopenhauer veja o apecircndice do artigo de Moira Nicholls The influences of Eastern Thought

on Schopenhaueracutes Doctrine of the Thing-in-itself (in Janaway 1999 197-204)

29

Apresentadas as principais influecircncias teoacutericas do sistema

schopenhaueriano passemos a uma breve descriccedilatildeo do ambiente cultural que naquele

momento tinha como foco um projeto de fundaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para o teatro e a

literatura germacircnicas Tal projeto envolveu os mais importantes dramaturgos criacuteticos

escritores e pensadores do periacuteodo imediatamente anterior a Schopenhauer12

e eacute

tambeacutem posteriormente retomado por Nietzsche em seu Nascimento da Trageacutedia Sua

importacircncia para a filosofia da vontade pode ser medida pela recorrente referecircncia feita

a estes pensadores nas obras dos filoacutesofos Seu iniacutecio em meados do seacuteculo XVIII deu-

se pela influecircncia exercida pelo historiador da arte Johann J Winckelmann junto aos

escritores poetas e dramaturgos posteriores dentre eles Lessing Goethe e Schiller

A influecircncia winckelmanniana que de acordo com Butler (1958 11)

criou ondas cujo violento distuacuterbio ldquoainda varrem as praias do seacuteculo XXrdquo se pautou

em duas noccedilotildees fundamentais13

a imitaccedilatildeo dos antigos e o belo ideal Winckelmann

propunha um novo modelo no qual a arte germacircnica deveria se basear para atingir uma

grandiosidade rara e ldquoinimitaacutevelrdquo a imitaccedilatildeo dos gregos Por esta imitaccedilatildeo o

historiador natildeo propunha uma mera coacutepia das obras de arte gregas poreacutem uma imitaccedilatildeo

do modo de produccedilatildeo artiacutestica dos gregos qual seja sintetizar a beleza ideal descoberta

na observaccedilatildeo da diversidade objetiva da natureza Esta proposta de um retorno ao

modelo antigo coloca Winckelmann na esteira da conhecida querela entre antigos e

modernos e eacute a igniccedilatildeo para o periacuteodo literaacuterio conhecido como classicismo germacircnico

Esta disputa quanto agrave valorizaccedilatildeo das obras poeacuteticas antigas ou modernas estaraacute de um

modo ou de outro presente nas teorias schopenhaueriana e nietzscheana da trageacutedia

12

De acordo com Schopenhauer as obras de tais poetas e escritores assim como a filosofia de Kant satildeo

exemplos para os quais a literatura e a filosofia pobres de seu tempo deveriam se voltar No que se refere

ao uso da liacutengua ele aconselha ldquoLede vede qual liacutengua Winckelmann Lessing Klopstock Wieland

Goethe Buumlrger Schiller falaram e emulai-a mas natildeo fazei o mesmo com o jargatildeo estupidamente

excogitado pelos miseraacuteveis literatos atuais e entre eles pelos professores que vatildeo agrave escola de liacutenguardquo

(Schopenhauer SOE 57-58) 13

Esta duas noccedilotildees fundamentais satildeo ressaltadas por Suumlssekind e Machado em seus trabalhos sobre o

tema Veja Suumlssekind 2008 67-77 e Machado 2006 9-14

30

Como veremos posteriormente Schopenhauer privilegiaraacute a trageacutedia moderna em

detrimento da antiga argumentando que aquela cumpre com maior competecircncia o seu

objetivo enquanto forma de arte qual seja provocar repulsa agrave vontade de viver e

estimular sua negaccedilatildeo Apesar deste privileacutegio pelas obras traacutegicas modernas o filoacutesofo

natildeo deixa como seus contemporacircneos de ter os gregos como modelo e natildeo satildeo raros

seus elogios agraves produccedilotildees helecircnicas Para Schopenhauer Winckelmann foi para a

histoacuteria da arte assim como ele o eacute para a da filosofia um exemplo do modo epiciacuteclico

atraveacutes do qual a natureza de tempo em tempo faz avanccedilar o conhecimento do gecircnero

humano Para o filoacutesofo a retomada do projeto kantiano realizada pelo seu sistema eacute a

demonstraccedilatildeo de que entre ele e Kant nenhum conhecimento foi produzido Como

exemplo deste esquema epiciacuteclico na histoacuteria da arte Schopenhauer utiliza-se do

retorno de Winckelmann agrave beleza claacutessica o que nos mostra a importacircncia dada pelo

filoacutesofo agrave forma de arte grega bem como ao projeto inaugurado pelo historiador da arte

Apoacutes explicar o esquema epiciacuteclico da evoluccedilatildeo dos progressos humanos

Schopenhauer diz

Para quem deseja poreacutem ter uma prova do esquema geral dos

epiciclos aqui exposto com base na histoacuteria da arte basta observar a

escola de escultura de Bernini que florescia ainda no seacuteculo passado

particularmente em seu desenvolvimento francecircs sucessivo e que

representava a natureza comum em vez da beleza claacutessica e o decoro do

minueto francecircs em vez da simplicidade e da graccedila antigas Tal escola

faliu quando apoacutes a repreensatildeo de Winckelmann voltou-se agrave escola dos

antigos (Schopenhauer SOE 110)

Nietzsche por sua vez seguiraacute o caminho winckelmanniano de exaltaccedilatildeo da forma de

arte antiga apresentando a trageacutedia grega como modelo para a arte moderna e elogiando

a iniciativa de seus predecessores em valorizar e recuperar a arte helecircnica

31

Conviria que alguma vez se pesasse diante dos olhos de um juiz

insubornaacutevel em que tempo e em que homens o espiacuterito alematildeo se

esforccedilou mais vigorosamente por aprender dos gregos e se admitirmos

com confianccedila que esse louvor uacutenico deveria ser atribuiacutedo agrave nobiliacutessima

luta de Goethe Schiller e Winckelmann pela cultura haveria em todo

caso que acrescentar que desde aquele tempo e depois das influecircncias

imediatas daquela luta tornou-se cada vez mais fraca de maneira

incompreensiacutevel a aspiraccedilatildeo de se chegar por uma mesma via agrave cultura e

aos gregos (Nietzsche NT 120)

Podemos perceber entatildeo a importacircncia do helenismo proposto por Winckelmann no

pensamento germacircnico ao observarmos a sua duraccedilatildeo tendo em vista que mais de um

seacuteculo separa o historiador da arte e o filoacutesofo da vontade de poder o que confirma a

forccedila de suas propostas para uma cultura em formaccedilatildeo e justifica o epiacuteteto com o qual

Butler caracterizou este periacuteodo dizendo que nele vemos ldquoa tirania da Greacutecia sobre a

Alemanhardquo14

O segundo ponto fundamental da teoria da arte winckelmanniana o belo

ideal natildeo provocou menor interesse em seu tempo Este belo ideal era alcanccedilado a

partir da reuniatildeo em uma uacutenica obra harmocircnica daquilo que o artista observa de mais

belo na natureza

A natureza tem seus defeitos o corpo mais belo natildeo deixa de tecirc-los e

nele encontramos frequumlentemente partes que em outros satildeo mais belas ou

podem supor-se mais perfeitas [] Os gregos trataram de reunir as formas

elegantes de vaacuterios corpos belos como sabemos pelo diaacutelogo de Soacutecrates com o

ceacutelebre pintor Parrasio [] Esta seleccedilatildeo das partes belas e sua harmocircnica

associaccedilatildeo em uma soacute figura produziu a beleza ideal (Winckelmann 2002

130)

Tal beleza encontrou sua manifestaccedilatildeo primeira na Greacutecia do periacuteodo helecircnico devido

ao favorecimento das condiccedilotildees geograacutefico-climaacuteticas15

e poliacuteticas16

Aleacutem da beleza

14

Tiacutetulo de sua obra Butler 1958 15

Sobre a influecircncia climaacutetica Winckelmann deduz ldquoA natureza depois de haver se manifestado em

gradaccedilotildees extremas de frio e de calor se estabeleceu na Greacutecia como em seu centro e por isso reina

naquele paiacutes uma temperatura intermediaacuteria entre o inverno e o veratildeo E quanto mais se aproxima deste

centro mais claridade e serenidade oferece e suas obras se manifestam em formas mais graciosas e

amaacuteveis e com detalhes mais caracteriacutesticos e decididosrdquo (Winckelmann 2002106) 16

Sobre as condiccedilotildees poliacuteticas sejam elas patriarcais democraacuteticas ou tiracircnicas Winckelmann conclui o

seguinte ldquoCom relaccedilatildeo ao regime poliacutetico e o governo da Greacutecia a liberdade eacute uma das causas da

preeminecircncia dos gregos na arte Tambeacutem a liberdade parece ter estabelecido na Greacutecia a sua sede existia

32

formal retirada da diversidade das formas naturais eleitas as mais belas as obras gregas

eram exemplares devido agrave importacircncia dada pelos artistas agrave sua expressatildeo A obra de

arte deve sua forccedila tanto agrave beleza das formas quanto agrave expressatildeo da alma nela contida

De acordo com Winckelmann ldquoa expressatildeo de uma alma grande vai muito aleacutem da

plasmaccedilatildeo de uma bela naturezardquo isto ocorre devido ao fato de que para o historiador

da arte ldquona Greacutecia a sabedoria estendia a matildeo agrave arte e insuflava nas figuras almas

mais que comunsrdquo (Winckelmann 1958 19) As caracteriacutesticas que esta expressatildeo deve

possuir satildeo aquelas contidas na passagem mais famosa da obra de Winckelmann na

qual ele descreve ainda como exemplo daquela expressatildeo artiacutestica o grupo estatuaacuterio

do Laocoonte que por sua vez seraacute alvo de uma grande controveacutersia posterior da qual

participaratildeo dentre outros Lessing Herder Goethe Schelling e Schopenhauer

Reproduzimos a passagem de Winckelmann em sua integridade

A caracteriacutestica geral e principal das obras mestras gregas eacute uma

nobre simplicidade e uma serena grandeza tanto na atitude como na

expressatildeo Assim como nas profundidades o mar estaacute sempre calmo por

muito que se agite a superfiacutecie do mesmo modo a expressatildeo nas figuras

dos gregos mostra em meio a todas as paixotildees uma alma grande e

comedida Isso transmite o rosto do Laocoonte ndash e natildeo soacute o dele ndash em

meio agrave mais violenta dor O sofrimento que aparece em todos os

muacutesculos e fibras do corpo e que no baixo ventre contraiacutedo se

experimenta tatildeo intensamente que parecemos senti-lo natildeo se exterioriza

contudo mediante qualquer ira no rosto e em toda a atitude Natildeo lanccedila

um grito terriacutevel tal como Virgiacutelio cantou em seu Laocoonte A abertura

da boca natildeo o permitiria Mais parece um suspiro angustiado como o

descreve Sadolet A dor do corpo e a grandeza da alma estatildeo distribuiacutedos

com igual forccedila atraveacutes de toda a composiccedilatildeo da figura e em certa

medida estatildeo equilibrados Laocoonte sofre mas sofre como o

Filoctetes de Soacutefocles sua dor nos toca a alma mas desejariacuteamos poder

suportar essa dor com a grandeza desse homem (Winckelmann 1958

18-19 grifo nosso)

inclusive junto ao tronos de seus reis que governavam paternalmente a seus suacuteditos antes que mais

ilustrados gozassem do destino de uma completa liberdade Homero chama a Agamemnoacuten de pastor de

seus povos com o que queria designar sua ternura com seus subordinados e sua preocupaccedilatildeo constante

pela felicidade dos mesmos Eacute bem verdade que depois surgiram tiranos mas natildeo o foram mais para uma

determinada cidade e a naccedilatildeo inteira jamais reconheceu um soberano uacutenicordquo (Winckelmann 2002 109)

33

Desta famosa passagem retiramos dois momentos que especialmente nos interessam O

primeiro dele eacute a enunciaccedilatildeo que caracterizaraacute o ideal de beleza das obras gregas nobre

simplicidade e uma serena grandeza Este ideal winckelmanniano de beleza eacute o que

torna a arte grega nas palavras de Suumlssekind ldquoinimitaacutevel e ao mesmo tempo faz dela o

modelo a ser imitadordquo (Suumlssekind 2008 69) Interessa-nos especialmente devido agrave

influecircncia desta definiccedilatildeo para a teoria do jovem professor de filologia da Basileacuteia

Podemos ver ateacute mesmo pelo vocabulaacuterio utilizado para descrever a arte grega a

proximidade e a influecircncia exercida por estes conceitos nas teorias esteacuteticas do primeiro

Nietzsche Luminosidade serenidade harmonia satildeo alguns dos conceitos que

posteriormente seratildeo utilizados por Nietzsche ao definir o seu impulso artiacutestico

apoliacuteneo17

O segundo momento - quando Winckelmann defende o espiacuterito grego na

escultura do Laocoonte em contraposiccedilatildeo ao personagem de Virgiacutelio comparando esta

representaccedilatildeo escultural com o Filoctetes de Soacutefocles - seraacute o precursor do posterior

debate sobre as fronteiras que separam as formas de arte Para Winckelmann ldquoa nobre

simplicidade e a serena grandeza das estatuas gregas eacute tambeacutem a verdadeira

caracteriacutestica dos escritos gregos da melhor eacutepoca dos escritos da escola

socraacuteticardquo(Winckelmann 1958 31) O debate sugerido pela passagem do qual

participaraacute posteriormente o proacuteprio Schopenhauer seraacute iniciado por outro pensador

de grande importacircncia para o projeto cultural alematildeo Gotthold Ephraim Lessing

Lessing em sua obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da

poesia apresentaraacute a contenda que chegaraacute ateacute Schopenhauer Para Lessing o ponto de

discordacircncia com Winckelmann estaacute no motivo pelo qual na escultura o Laocoonte natildeo

17

Segundo Rodriges (2007 93-126) tambeacutem o conceito do impulso dionisiacuteaco estaria mesmo que em

germe presente nos estudos de Winckelmann Segundo seu artigo o mapeamento da origem e

desenvolvimento da discussatildeo sobre os citados impulsos artiacutesticos da natureza ou seja sobre a

importacircncia dos deuses Apolo e Dioniacutesio na cultura grega abrangeria necessariamente diversas aacutereas do

pensamento alematildeo desde Winckelmann dentre elas os estudos filoloacutegicos o movimento romacircntico e as

filosofias idealistas

34

apresenta as caracteriacutesticas de quem grita e lamenta Como vimos para Winckelmann o

conjunto estatuaacuterio em questatildeo eacute exemplar pelo fato de transmitir atraveacutes da atitude

estoacuteica diante da dor a grandeza de alma que seria a regra universal da verdadeira arte

grega Esta grandeza enquanto regra universal estaria ainda de acordo com o

historiador da arte presente tanto nas formas pictoacutericas como nas obras poeacuteticas

Contrapondo-se a Winckelman Lessing afirma - exemplificando atraveacutes de passagens

de poetas queridos ao proacuteprio Winckelmann como Homero e Soacutefocles - que em vaacuterios

momentos da poesia antiga diversos personagens dentre eles deuses e heroacuteis proferem

exaltados lamentos e gritos e isto natildeo lhes subtrai a grandeza da alma Sendo assim se

na poesialdquoo gritar na sensaccedilatildeo de dor corporal pode coexistir muito bem com uma

grande alma portanto a expressatildeo de uma tal alma natildeo pode ser a causa pela qual

apesar disso o artista natildeo quer imitar esse grito no seu maacutermore antes deve haver um

outro motivo por que aqui ele separa-se do seu rival o poeta que expressa esse grito

com o melhor propoacutesitordquo(Lessing 1998 86) O motivo pelo qual em sua representaccedilatildeo

estatuaacuteria o Laocoonte natildeo grita eacute para Lessing uma questatildeo de limitaccedilatildeo da forma de

expressatildeo escultoacuterica que ao se submeter agrave ldquolei da belezardquo natildeo pode representar o grito

desfigurador Em suas palavras

O mestre visava a suprema beleza sob as condiccedilotildees aceitas da dor

corporal Esta em toda a sua violecircncia desfiguradora era incompatiacutevel

com aquela Ele foi obrigado a reduzi-la ele foi obrigado a suavizar o

grito em suspiro natildeo porque o grito denuncia uma alma indigna mas

antes porque ele dispotildee a face de um modo asqueroso (Lessing 1998

92)

Devemos ressaltar que segundo a teoria artiacutestica de Lessing para quem as leis a que

devem obedecer a arte estatildeo ligadas agrave sua interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica a arte eacute

julgada atraveacutes do seu efeito Neste contexto ao conceder a seus personagens

caracteriacutesticas de humanidade como por exemplo a manifestaccedilatildeo da dor atraveacutes de

35

lamentos e gritos o poeta estaria aproximando o heroacutei traacutegico do puacuteblico a ser atingido

e consequumlentemente maximizando a identificaccedilatildeo entre eles e com isto o efeito

esperado qual seja a catarse atraveacutes do temor e da compaixatildeo Esta identificaccedilatildeo

alcanccedilada por via da demonstraccedilatildeo dos lamentos dos heroacuteis dramaacuteticos natildeo pode ser

obtida da mesma forma pelas artes pictoacutericas Nestas que satildeo expressotildees de um

momento uacutenico a beleza natildeo pode deixar de estar presente pois ela eacute um dos

ingredientes mais fundamentais do efeito buscado Na poesia o heroacutei natildeo seraacute

caracterizado em uma uacutenica accedilatildeo como ocorre na escultura Sendo assim o grito

narrado eacute apenas um momento do conjunto que iraacute definir o personagem

O Laocoonte de Virgiacutelio grita mas esse Laocoonte que grita eacute

justamente aquele que noacutes jaacute conhecemos e amamos como o patriota

mais cordato e o pai mais afetuoso Noacutes vinculamos o seu grito natildeo ao

seu caraacuteter mas antes apenas ao seu sofrimento insuportaacutevel Apenas

esse uacuteltimo noacutes ouvimos no seu grito e o poeta pode tornaacute-lo sensiacutevel

apenas graccedilas a esse grito (Lessing 1998 106)

Com isto tanto o escultor que suprime o grito quanto o poeta que o descreve ao

fazerem o fazem de acordo com as leis que regem suas respectivas formas de arte

Da contenda sobre o grito do Laocoonte e sua representaccedilatildeo escultoacuterica e

poeacutetica iratildeo participar ainda diversos pensadores Dentre os mais ilustres podemos

destacar Goethe cuja explicaccedilatildeo sobre a escultura proacutexima em muitos pontos da de

Lessing encontra-se nos Propileus Para o poeta o grupo estatuaacuterio ldquoesgota o seu objeto

e preenche com sucesso todas as condiccedilotildees da arterdquo (Goethe 2005126) Segundo

Goethe a escultura eacute limitada a um uacutenico momento da accedilatildeo e sua comparaccedilatildeo com a

poesia de Virgiacutelio eacute injusta O poeta a avalia assim como Lessing atraveacutes de seu efeito

ainda dentro das categorias poeacuteticas de Aristoacuteteles e destaca

O ser humano possui apenas trecircs sentimentos no sofrimento

proacuteprio e alheio o medo o terror e a compaixatildeo a previsatildeo temerosa de

um mal que se aproxima a percepccedilatildeo inesperada do sofrimento presente

36

e a participaccedilatildeo no sofrimento duradouro ou que passou todos os trecircs

sentimentos satildeo representados e suscitados por esta obra de arte e na

verdade na gradaccedilatildeo a mais conveniente (Goethe 2005 126)

Em sua obra principal Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 46 a seus comentaacuterios do

Laocoonte que seratildeo acrescidos de exemplos no posterior volume de suplementos

Reconhece o avanccedilo feito por Lessing ao colocar no lugar de um fundamento

psicoloacutegico um fundamento puramente esteacutetico e critica ainda as teorias psicoloacutegicas e

fisioloacutegicas de seu tempo como as de Hirt e Fernow18

Para Schopenhauer apesar de

sua aproximaccedilatildeo do que seria uma ldquoexplicaccedilatildeo corretardquo da obra Lessing natildeo encontrou

o seu ponto exato qual seja a explicaccedilatildeo de que o grito natildeo pertence ao domiacutenio de

uma representaccedilatildeo escultoacuterica

Antes de qualquer investigaccedilatildeo psicoloacutegica e fisioloacutegica sobre se

Laocoonte em sua situaccedilatildeo poderia gritar ou natildeo deve-se decidir em

relaccedilatildeo ao grupo de esculturas o seguinte que nele o grito natildeo pode ser

exposto pelo motivo de que a exposiccedilatildeo do grito reside por inteiro fora

do domiacutenio da escultura (Schopenhauer MVR 2005 303)

Para Schopenhauer a simples exposiccedilatildeo que representaria o grito ou seja ldquoo

escancarar violento da bocardquo natildeo pode ocasionar o efeito que o grito mesmo enquanto

forma de expressatildeo ocasionaria O efeito que o grito pode causar em uma arte

descritiva atraveacutes do uso da imaginaccedilatildeo do leitor ou mesmo na arte representativa no

teatro tornar-se-ia motivo de riso caso seja representado por uma boca escancarada na

arte plaacutestica Schopenhauer utiliza-se do exemplo do Laocoonte para demonstrar a

necessidade do estabelecimento de fronteiras entre as artes que devido agrave suas formas

devem obedecer agraves competecircncias determinadas pelo objeto representado (no caso da

teoria schopenhaueriana as competecircncias seratildeo determinadas pelas ideacuteias a serem

representadas como veremos posteriormente) Esta preocupaccedilatildeo com os limites entre as

18

Segundo Schopenhauer Hirt (Horen 1797 parte 10) apresenta a explicaccedilatildeo de que Laocoonte natildeo grita

pois estaacute impossibilitado pela sufocaccedilatildeo que o leva agrave morte Fernow por sua vez faz uma amalgama das

opiniotildees de Winckelmann Lessing e Hirt

37

formas artiacutesticas presente na esteacutetica schopenhaueriana e no Laocoonte de Lessing foi

contudo como nos lembra Suzuki (Rosenfield 2001 36-56) ignorada por Goethe

(como podemos ver pelos elementos da poeacutetica aristoteacutelica utilizados pelo poeta para

explicar a escultura na citaccedilatildeo presente na paacutegina anterior) e seraacute posteriormente

tambeacutem desconsiderada por Nietzsche em seu projeto de uma obra de arte total

Diante do acima exposto ainda tratando de Lessing podemos perceber

que toda a discussatildeo acerca do Laocoonte foi desencadeada pela motivaccedilatildeo de defesa da

arte poeacutetica agrave qual Lessing dedicou sua vida como escritor diretor e criacutetico teatral

Desta forma a importacircncia de Lessing para o tema em questatildeo nesta dissertaccedilatildeo estaacute

mais ligado ao seu papel junto a um projeto de formaccedilatildeo de um teatro alematildeo e sua

interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica Enquanto teoacuterico e criacutetico do teatro o autor da

Dramaturgia de Hamburgo exerceu grande influecircncia na cultura posterior ao oferecer a

seu tempo uma nova interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica que vai de encontro agraves

interpretaccedilotildees francesas e de Gottsched que eram por sua vez inflexiacuteveis em relaccedilatildeo agraves

regras (das unidades de espaccedilo tempo e lugar do estatuto social dos personagens da

linguagem e do nuacutemero de atos) Lessing atento agraves necessidades de uma burguesia em

ascensatildeo que natildeo se identificava mais com as concepccedilotildees aristocraacuteticas do modelo de

teatro francecircs e imbuiacutedo na construccedilatildeo do projeto de formaccedilatildeo cultural de uma naccedilatildeo

fragmentada oferece atraveacutes de suas interpretaccedilotildees uma seacuterie de elementos que estaratildeo

presentes nas consideraccedilotildees de pensadores posteriores Dentre estes elementos podemos

destacar as seguintes uma discussatildeo acerca dos conceitos de mimese temor

compaixatildeo catarse a defesa da utilizaccedilatildeo de caracteres mistos a liberdade do gecircnio

ante as regras o enaltecimento dos teatros espanhol e inglecircs principalmente de

Shakespeare

38

Ao tratarmos do referido projeto de um teatro alematildeo e tambeacutem do

classicismo germacircnico dois nomes ainda satildeo fundamentais para sua formaccedilatildeo bem

como eacute incontestaacutevel sua influecircncia sobre Schopenhauer e o jovem Nietzsche19

satildeo

eles Goethe e Schiller O primeiro deles maior dos poetas do classicismo germacircnico

foi um ampliador do projeto Winckelmanniano ldquoPois Goethe pensa o ideal de beleza

natildeo soacute em relaccedilatildeo agrave pintura e agrave escultura mas tambeacutem e principalmente em relaccedilatildeo agrave

poesia ou agrave arte dramaacutetica ampliando as ideacuteias de Winckelmann nesse domiacutenio como

teoacuterico e como criador de obras teatraisrdquo (Machado 2006 14) Seu classicismo

impresso em seus textos teoacutericos e na forma e conteuacutedo de diversas de suas produccedilotildees

literaacuterias eacute o auge do projeto Winckelmanniano Podemos ver na esteira de Machado

(2006 14-22) que o ideal de beleza proposto por Winckelmann eacute ainda o que domina a

noccedilatildeo Goetheana dos gregos e eacute apoiado neste ideal que o poeta interpreta a arte do

mundo helecircnico e a apresenta como um exemplo para a arte de seu tempo Ressaltamos

poreacutem que dada a sua extrema heterogeneidade como nos adverte Butler (1958 85)

encontrar um senso de harmonia interna no todo da obra goetheana eacute tarefa tatildeo incerta

como determinar o grau de sua influecircncia no pensamento de nossos filoacutesofos No que se

refere a Schopenhauer entretanto natildeo podemos deixar de ressaltar que sua convivecircncia

com o poeta foi norteada pelas discussotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas que ocupavam o palco

de seus estudos agrave eacutepoca Goethe dedicou vinte anos de sua vida ao estudo das cores e

sua obra Doutrina das cores eacute o resultado desta investigaccedilatildeo Ela atraiu o interesse do

jovem Schopenhauer que apoacutes alguns encontros com Goethe dedicou-se a escrever a

sua proacutepria teoria que divergia em diversos pontos da teoria do poeta fato que marcou o

fim da relaccedilatildeo amistosa dos mesmos Sobre este periacuteodo de convivecircncia

19

De acordo com Martin (1996) a obra desenvolvida por Nietzsche enquanto escritor e pensador eacute

demasiado complexa para ser reduzida ou atribuiacuteda a determinada influecircncia Entretanto em uma

estatiacutestica crua podemos ter o vislumbre desta influecircncia como se segue ldquoSchopenhauer eacute referenciado

394 vezes na obra de Nietzsche Wagner 327 vezes a Goethe existem 311 menccedilotildees Schiller encontra-se

em nono lugar com 126 menccedilotildeesrdquo (Martin 1996 5)

39

especificamente sobre o episodio citado Goethe vai escrever mais tarde conforme

citaccedilatildeo de Safranski

O Dr Schopenhauer foi para mim um amigo benevolente

Estivemos de acordo em muitas coisas mas foi impossiacutevel evitar ao final

um certo distanciamento como dois amigos que ateacute certo momento

caminharam juntos se datildeo a matildeo para despedir pois querem dirigir-se um

ao norte outro ao sul perdendo-se rapidamente de vista um ao outro

(apud Safranski 1991 265)

Ainda na esteira do movimento de estabelecimento de um projeto

artiacutestico nacional encontramos Schiller que ao lado de Goethe foi o responsaacutevel pelas

maiores obras do classicismo literaacuterio de Weimar Para o estudo em questatildeo o que mais

nos interessa em sua obra eacute o periacuteodo no qual antes do contato com Goethe Schiller

produz seus escritos teoacutericos sobre a trageacutedia Estes estudos podem ser considerados

em uma perspectiva histoacuterica como uma ponte entre a interpretaccedilatildeo da trageacutedia nos

moldes puramente aristoteacutelicos e a trageacutedia vista enquanto forma de arte que para

atingir o efeito dela esperado deve refletir a condiccedilatildeo traacutegica do homem pensada com

base em elementos retirados da filosofia moral e da esteacutetica kantiana Em seus textos

teoacutericos sobre a poesia traacutegica pertencentes ao periacuteodo que Schiller assume ter estado

sob influecircncia da filosofia kantiana ele descreve a trageacutedia como expressatildeo do sublime

ndash conceito extraiacutedo da criacutetica kantiana do juiacutezo ndash como a representaccedilatildeo sensiacutevel da

dicotomia entre a liberdade moral a vontade individual (vontade tomada enquanto

faculdade de pensar e agir livremente) por um lado e a necessidade natural e instintiva

por outro Vemos pela primeira vez em Schiller a utilizaccedilatildeo de categorias filosoacuteficas

kantianas na elaboraccedilatildeo de uma teoria da trageacutedia o que teraacute continuidade com as

teorias do idealismo absoluto e a do proacuteprio Schopenhauer Este eacute um momento

extremamente importante devido ao fato de marcar toda a reflexatildeo futura sobre o tema

ao fundar o deslocamento de uma interpretaccedilatildeo poeacutetica da trageacutedia baseada em

40

comentaacuterios da obra aristoteacutelica para uma interpretaccedilatildeo do traacutegico enquanto fenocircmeno

que descreve a situaccedilatildeo do homem no mundo De acordo com Machado ldquoEacute do

encontro de um grande dramaturgo como Schiller com a filosofia de Kant -

principalmente a sua eacutetica considerada como uma filosofia da liberdade e sua

esteacutetica no que diz respeito agrave teoria do juiacutezo sobre o sublime ndash que nasce a primeira

filosofia do traacutegico uma reflexatildeo filosoacutefica original que criou um tipo novo de

pensamento sobre a trageacutediardquo (Machado 2006 54) Na teoria schopenhaueriana da

trageacutedia podemos ver caracteriacutesticas da teoria schilleriana Primeiramente a presenccedila

marcante da influecircncia kantiana no que se refere ao sublime Em segundo lugar a

leitura da trageacutedia enquanto instrumento para a percepccedilatildeo de uma ordem moral do

mundo Tais caracteriacutesticas seratildeo aprofundadas no capiacutetulo posterior Vale antecipar que

na obra do jovem Nietzsche poderemos ver a exaltaccedilatildeo de Schiller em sua tentativa de

compreensatildeo do mundo helecircnico aleacutem do elogio agrave teoria schilleriana do coro Veremos

entretanto uma criacutetica acirrada no que se refere ao projeto de um teatro enquanto

instituiccedilatildeo moral

Neste capiacutetulo foram delineadas as principais influecircncias filosoacuteficas que

alicerccedilaram o sistema schopenhaueriano bem como esboccedilaram-se as diversas teorias

artiacutesticas que surgiram no periacuteodo em questatildeo teorias estas que propuseram mateacuteria

para a formaccedilatildeo do pensamento de nossos filoacutesofos A partir da cisatildeo entre fenocircmeno e

noumeno proposta por Kant e sua primeira criacutetica Schopenhauer elabora as matrizes de

seu sistema e para ilustraacute-lo encontra apoio na cosmologia platocircnica e no pensamento

oriental Vimos ainda que sua teoria esteacutetica eacute alimentada pela frequumlentaccedilatildeo agraves

categorias apresentadas por artistas teoacutericos e criacuteticos de arte de seu periacuteodo Por seu

turno vimos com Winckelmann a origem do estudo sobre os gregos e sua arte aleacutem do

estabelecimento destes como um modelo para a arte alematilde projeto este que foi

41

retomado por Lessing que por sua vez intensificou o estudo e propocircs um modelo de um

teatro nacional independente projeto que seraacute mais tarde revisitado e aprofundado por

Goethe e Schiller Esta apresentaccedilatildeo de influecircncias eacute imprescindiacutevel para identificarmos

a origem de certos elementos que satildeo fundamentais ao entendimento da proacutepria doutrina

schopenhaueriana tais como o caraacuteter moral de sua teoria esteacutetica sua preocupaccedilatildeo

com o estabelecimento de limite entre as artes sua interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo da poeacutetica

sua utilizaccedilatildeo de conceitos esteacuteticos kantianos (sublime belo e desinteresse) sua

apreciaccedilatildeo das obras modernas seu reconhecimento da produccedilatildeo claacutessica seu desprezo

agrave filosofia de seu tempo Eacute tambeacutem atraveacutes do mapeamento aqui feito de algumas de

suas influecircncias mesmo que brevemente apontado que poderemos mais tarde

identificar alguns dos aspectos originais e singulares de sua teoria

Quanto agraves influecircncias presentes na teoria da trageacutedia do jovem Nietzsche

apontaremos complementos no capiacutetulo correspondente Eacute imprescindiacutevel dar destaque

no que se refere agrave obra nietzscheana agrave sua formaccedilatildeo filoloacutegica ao seu conviacutevio com

Richard Wagner e agrave sua leitura do proacuteprio Schopenhauer - e isto seraacute feito

posteriormente Esperamos ter deixado claro ateacute aqui que diferentemente de Zaratustra

Nietzsche natildeo desceu simplesmente de uma montanha mas faz parte de uma tradiccedilatildeo

histoacuterica assim como Schopenhauer e que a contextualizaccedilatildeo de suas teorias eacute

fundamental para a identificaccedilatildeo dos elementos ali presentes que singularmente se

originaram do sistema metafiacutesico da Vontade

42

2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU

SUBSTRATO METAFIacuteSICO

ldquoOra se todo mundo como representaccedilatildeo eacute

a visibilidade da Vontade a arte eacute o

clareamento dessa visibilidade a cacircmera

obscura que mostra os objetos mais

puramente permitindo-nos melhor abarcaacute-

los e compreendecirc-los eacute o teatro dentro do

teatro a peccedila dentro da peccedila em Hamletrdquo

(Schopenhauer)

Utilizando-se de uma metaacutefora retirada do Eacutedipo de Soacutefocles Schopenhauer nos

oferece um exemplo da caracteriacutestica de conexatildeo interna dos temas abordados em sua

obra20

ldquo minha filosofia eacute como a Tebas de cem portas desde todos os lados se pode

entrar e atraveacutes de todos se pode chegar por um caminho direto ateacute o centrordquo

(Schopenhauer 2002 4) Tendo em vista que nosso objetivo neste capiacutetulo eacute apresentar

a teoria schopenhaueriana da trageacutedia e seus fundamentos filosoacuteficos utilizaremo-nos

desta porta para termos acesso ao sistema schopenhaueriano Procuraremos percorrer o

20

Barboza define bem esta caracteriacutestica marcante da filosofia schopenhaueriana ldquoSchopenhauer eacute o

filoacutesofo da organicidade Procura-a porque com ela onde quer que se esteja no seu sistema estar-se-aacute

em toda parte O todo conteria as partes e seria contido por elas De uma metafiacutesica da efetividade se vai

para uma do belo desta para a da eacutetica que por sua vez pode remeter agrave muacutesica por seu turno a nos

enviar para a efetividade numa por assim dizer circularidade virtuosa A unidade natildeo se perde do

horizonte de observaccedilatildeordquo (Barboza 2001 137)

43

substrato metafiacutesico sustentador da teoria do traacutegico schopenhaueriana e perceber assim

a conectividade interna existente entre sua cosmologia sua teoria esteacutetica e sua eacutetica

De posse deste meacutetodo procuraremos destacar os conceitos fundamentais da teoria

traacutegica e de sua visatildeo de mundo que viratildeo posteriormente se fazer presentes tambeacutem

na obra do jovem Nietzsche

21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo

Agrave descriccedilatildeo das artes poeacuteticas Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 51 do primeiro

volume e o capiacutetulo 37 do segundo volume de sua obra principal Tais descriccedilotildees

encontram-se por sua vez ao final dos trechos dedicados agrave teoria esteacutetica (livro III de

MVR e sus complementos) e finalizam seus apontamentos do que podemos chamar na

esteira de Young (2005) das artes natildeo-musicais21

Em ambos os casos a teoria da

trageacutedia estaacute localizada ao final da apresentaccedilatildeo Esta localizaccedilatildeo juntamente com as

diversas citaccedilotildees e exemplos retirados de peccedilas traacutegicas das quais o filoacutesofo se utiliza ao

longo de seu trabalho nos permite ver a importacircncia da arte traacutegica para Schopenhauer

Em sua teoria artiacutestica existe uma hierarquizaccedilatildeo das artes que leva em consideraccedilatildeo a

capacidade de cada uma em apresentar um grau especiacutefico de objetivaccedilatildeo da vontade

Na cosmologia schopenhaueriana a vontade essecircncia do mundo identificada como

sendo a coisa-em-si kantiana manifesta-se (torna-se objeto de conhecimento) atraveacutes de

diversos graus ndash que exprimem a nitidez com que a vontade se manifesta para o

observador - representados pelos reinos da natureza e finalmente pelo homem Desta

forma ela se objetivaria no mundo inorgacircnico atraveacutes das forccedilas magneacuteticas e da

gravidade no mundo vegetal atraveacutes das funccedilotildees orgacircnicas no mundo animal atraveacutes

21

Como veremos mais adiante a muacutesica eacute uma exceccedilatildeo no sistema das artes schopenhaueriano pois natildeo

se relaciona a uma objetivaccedilatildeo da vontade mas expressa a proacutepria vontade e desta forma natildeo figura na

sistematizaccedilatildeo hieraacuterquica

44

dos instintos e dos motivos assim como o faz no homem A classificaccedilatildeo das artes

corresponde portanto a esta hierarquizaccedilatildeo cosmoloacutegica de objetivaccedilatildeo da vontade22

Sendo assim a arquitetura e a hidraacuteulica mostram a objetivaccedilatildeo da vontade no seu grau

mais baixo ao expor o jogo das forccedilas que caracterizam a mateacuteria tais como a gravidade

rigidez dureza resistecircncia luz A jardinagem e a pintura da natureza satildeo as formas

artiacutesticas cujo fim eacute a exposiccedilatildeo da objetivaccedilatildeo da vontade que se manifesta no reino

vegetal A pintura de animais encontra-se em um niacutevel superior pois o reino animal

objeto de sua representaccedilatildeo expotildee de forma mais evidente a vontade objetivada Temos

ainda as pinturas de retratos a pintura histoacuterica e a escultura que das artes plaacutesticas

formam a categoria superior cujo objeto eacute a exposiccedilatildeo da vontade no grau mais elevado

de sua cognoscibilidade o homem Esta mesma exposiccedilatildeo a do homem eacute tambeacutem o

objeto da arte poeacutetica que agrave diferenccedila das artes que fazem sua exposiccedilatildeo de modo

puramente intuitivo eacute auxiliada pela imaginaccedilatildeo No aacutepice das artes poeacuteticas

encontramos a trageacutedia a uacuteltima arte natildeo-musical a ser descrita A arte traacutegica eacute aquela

que possui a caracteriacutestica de por sua natureza representar de forma mais ilustrativa a

objetivaccedilatildeo mais desenvolvida da vontade a vida humana e suas relaccedilotildees Veremos

mais tarde que aleacutem de corresponder agrave hierarquia de objetivaccedilatildeo da vontade mais

desenvolvida a arte traacutegica ocupa um lugar especial na filosofia schopenhaueriana

devido agrave ldquograndeza de seu efeitordquo (Schopenhauer 2005 333) Diante do exposto

podemos depreender que a arte possui na filosofia schopenhaueriana um papel

cognitivo e a trageacutedia por sua vez eacute a forma artiacutestica que por sua competecircncia cognitiva

ocupa o primeiro lugar entre as artes natildeo musicais

22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo

22

Vemos aqui um exemplo da citada inter-conectividade existente no sistema schopenhaueriano tendo

em vista que a elaboraccedilatildeo de sua classificaccedilatildeo artiacutestica obedece ao construto metafiacutesico do livro II de

MVR e sua consequumlente cosmologia

45

A tarefa a que se propotildee o sistema schopenhaueriano eacute a decifraccedilatildeo do ldquoenigma

do mundordquo ie encontrar uma resposta agrave pergunta o que eacute o mundo Esta tarefa tem

origem no idealismo subjacente na primeira criacutetica kantiana e de certa forma era uma

tarefa da qual estava imbuiacutedo todo o pensamento filosoacutefico daquele periacuteodo ie por

decifraccedilatildeo do enigma do mundo podemos entender a decifraccedilatildeo da coisa-em-si

kantiana Temos daiacute o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer o idealismo

transcendental do mundo fenomecircnico Sob o ponto de vista da representaccedilatildeo o mundo eacute

objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito agraves condiccedilotildees a priori do

entendimento que para o filoacutesofo satildeo as categorias do espaccedilo do tempo e da

causalidade

Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das formas a priori do entendimento eacute

interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos advindos da filosofia Platocircnica e oriental

como um mundo ilusoacuterio Conforme a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana Platatildeo jaacute

identificava esta caracteriacutestica ilusoacuteria do mundo em sua contraposiccedilatildeo teoacuterica entre o

mundo fiacutesico onde o devir impossibilitava a apreensatildeo do ser e o mundo das ideacuteias

onde haveria o verdadeiro encontro com o ser das coisas Ainda de acordo com a

interpretaccedilatildeo de Schopenhauer os livros sagrados indianos Vedas e Puranas faziam

esta distinccedilatildeo atraveacutes da noccedilatildeo do veacuteu de maia a consciecircncia humana seria envolvida

por um veacuteu o que resultaria em uma visatildeo oniacuterica do mundo e impediria assim a

percepccedilatildeo da realidade

Entretanto o mundo pode ainda ser conhecido atraveacutes de um segundo ponto de

vista como vontade Este eacute o ponto de vista que Schopenhauer utiliza-se para decifrar a

incognosciacutevel coisa-em-si kantiana Percorrendo uma ldquovia subterracircneardquo de modo

imanente Schopenhauer identifica nas accedilotildees do corpo bioloacutegico os atos da vontade

46

enquanto coisa-em-si e de forma analoacutegica a estabelece como essecircncia governante do

mundo Faz-se necessaacuterio aqui ressaltar como o fazem Brum (1998 23) e Rosset23

que

natildeo devemos interpretar esta analogia como uma visatildeo antropomoacuterfica do mundo Essa

essecircncia do mundo encontrada empiricamente natildeo eacute todavia um ente racional uma

ldquoalma do mundordquo Se por um lado o mundo fenomecircnico eacute aquele onde o princiacutepio de

razatildeo24

estabelece as normas de funcionamento um mundo natildeo-fenomecircnico mundo em

si enquanto vontade se expressa por sua alogicidade irracionalidade Grundlosigkeit

(falta de fundamento) Essa essecircncia irracional que manifesta-se nos diversos reinos e

indiviacuteduos do mundo eacute a raiz da visatildeo pessimista da existecircncia que de acordo com o

filoacutesofo pode ser a todo momento constatada empiricamente

As diversas manifestaccedilotildees da vontade suas objetidades carregam inerentemente

a sua iacutendole puro impulso cego vontade de vida insaciabilidade Notadamente o

mundo fenomecircnico objetivaccedilatildeo da vontade expressa a essecircncia desta vontade atraveacutes

de um conflito permanente Desenha-se um cenaacuterio de batalha onde cada objetidade da

vontade cada ser do mundo eacute orientado por sua essecircncia irracional desguarnecida de

qualquer telos ldquoAssim a vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria

carne e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimentordquo (Schopenhauer MVR 211) Este

fundamento ontoloacutegico a vontade determina assim o caraacuteter absurdo que a vida

humana toma na filosofia schopenhaueriana eterno esforccedilo carente de ordem ou

finalidade O ldquomecanismo internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens

marionetes guiados pela carecircncia

[]nenhuma satisfaccedilatildeo todavia eacute duradoura mas antes sempre eacute um

ponto de partida de um novo esforccedilo o qual por sua vez vemos travado em

toda parte de diferentes maneiras em toda parte lutando e assim portanto

23

[] natildeo haacute que transpor a experiecircncia da motivaccedilatildeo humana ao conjunto das forccedilas naturais para

compreender o segredo da natureza senatildeo o contraacuterio transpor o misteacuterio das forccedilas naturais ao conjunto

das motivaccedilotildees psicoloacutegicas para desvendar-se o segredo da vontade humana (Rosset 2005 31) 24

Princiacutepio tratado na tese de doutoramento de Schopenhauer SRQPRS bem como no livro I de MVR

O princiacutepio estabelece que todo acontecimento possui uma causa uma razatildeo de ser

47

sempre como sofrimento natildeo haacute nenhum fim uacuteltimo do esforccedilo portanto natildeo

haacute nenhuma medida e fim do sofrimento (Schopenhauer 2005 399)

Se carecircncia vontade e desejo satildeo a tocircnica da vida humana na maior parte do tempo e

satildeo experimentados como dor e infelicidade a felicidade por sua vez eacute definida

negativamente como um momento de ausecircncia daquela dor

Sentimos a dor e natildeo a ausecircncia da dor a inquietude e natildeo a

tranquumlilidade o medo e natildeo a seguranccedila Sentimos desejo como quando

temos fome e sede entretanto ao alimentarmo-nos estas sensaccedilotildees

deixam de existir para noacutes (MVR II 630)

Toda satisfaccedilatildeo momentacircnea de um querer eacute imediatamente suprimida por outro querer

ou se perdurar por algum tempo por menor que seja este transforma-se em teacutedio Um

ldquopecircndulo entre a dor e teacutediordquo eacute a definiccedilatildeo que Schopenhauer propotildee para a vida

humana Assim se daacute tambeacutem com a sauacutede a juventude e a liberdade Todos satildeo

conceitos definidos negativamente soacute os conhecemos atraveacutes de sua ausecircncia Este afatilde

por prolongar e conservar a vida essecircncia iacutentima de cada indiviacuteduo natildeo eacute contudo

resultado de uma observaccedilatildeo objetiva da mesma de um conhecimento que eleja a vida

como algo de valor a ser mantido e preservado e portanto os ldquo[] seres natildeo satildeo

atraiacutedos por algo que se lhes apresenta mas satildeo empurrados a elerdquo (MVR II 398) A

luta eterna observada nos diversos reinos da natureza a busca por alimento o esforccedilo da

procriaccedilatildeo se comparados aos momentos fugazes de satisfaccedilatildeo fazem da vida ldquoum

negoacutecio cujos investimentos natildeo cobrem nem de longe os custosrdquo (MVR II 399)

Em todas estas consideraccedilotildees se faz claro que a vontade de viver

natildeo eacute a consequecircncia do conhecimento da vida natildeo se trata de uma

bdquoconclusio ex praemissis‟ nem em geral eacute algo secundaacuterio antes

contudo eacute o primeiro e incondicionado a premissa de todas as premissas

e precisamente por isso aquilo do que haacute de partir a filosofia pois a

vontade de viver natildeo se apresenta como a consequumlecircncia do mundo senatildeo

o mundo como consequumlecircncia da vontade de viver (MVR II 405)

Um dos pontos essenciais a ser verificado nesta visatildeo de mundo eacute o

destronamento da razatildeo O ceacuterebro oacutergatildeo da razatildeo eacute o resultado de um esforccedilo da

48

vontade em seu percurso de objetivaccedilatildeo A racionalidade humana estaacute a serviccedilo da

vontade que eacute em sua essecircncia grundlos A razatildeo eacute ferramenta para que o homem

enquanto objetidade da vontade consiga satisfazer a seus anseios Em oposiccedilatildeo agrave

filosofia racionalista de entatildeo onde o ldquoreal eacute o racionalrdquo assistimos ao surgimento de

uma filosofia irracionalista das forccedilas inconscientes onde a razatildeo na medida em que eacute

mecanismo da vontade estaacute sempre a serviccedilo desta O comportamento humano eacute

naturalmente egoiacutesta voltado para os proacuteprios interesses e estes por sua vez satildeo

expressatildeo desta vontade aloacutegica desprovida de telos Schopenhauer se mostrava

consciente da singularidade desta sua biparticcedilatildeo do ego e da consequumlente visatildeo de

mundo que ela trouxe agrave luz e enfatizou isto em seus manuscritos berlinenses ldquo[] a

divisatildeo da mente o eu em duas partes diferentes - em vontade como parte essencial e

primaacuteria e em intelecto como secundaacuteria - eacute o grande princiacutepio e meacuterito de minha

filosofia e tambeacutem a principal diferenccedila dos demais sistemasrdquo (MR III 328)

Temos entatildeo os dois pontos de vista do mundo que fundamentam a visatildeo de

Schopenhauer e que posteriormente seratildeo transformados pela teoria nietzscheana da

trageacutedia nos dois impulsos da natureza o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco O primeiro deles eacute o

mundo da individualidade da pluralidade regido pelo que Schopenhauer vai chamar

utilizando-se de um termo retirado da escolaacutestica de principium individuationis

Nesse sentido servindo-me da antiga escolaacutestica denomino

tempo e espaccedilo pela expressatildeo principium individuationis que peccedilo para

o leitor guardar para sempre Tempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais

aquilo que eacute uno e igual conforme a essecircncia e o conceito aparece como

pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem (MVR 171)

No segundo toto genere diferente do primeiro existe a vontade una indivisiacutevel natildeo

submetida ao princiacutepio de razatildeo e por isso sem fundamento

Em apoio a sua tese Schopenhauer invoca ao final do capiacutetulo 46 (Sobre a

nulidade e o sofrimento da vida) dos complementos de MVR a opiniatildeo de diversos

49

pensadores dentre eles Heroacutedoto Platatildeo Teoacutegnis Homero os tragedioacutegrafos gregos

Shakespeare Byron Voltaire Rousseau Faz-se importante neste momento ressaltar que

o filoacutesofo aponta a invenccedilatildeo da trageacutedia pelos gregos como uma expressatildeo desta visatildeo

de mundo ponto de vista que como veremos tambeacutem seraacute adotado pelo primeiro

Nietzsche

Ante tudo mencionarei que os gregos por mais distantes que

estivessem da visatildeo de mundo cristatilde e da alta Aacutesia e por muito que se

mantiveram sob o ponto de vista da afirmaccedilatildeo da vontade se fizeram

profundamente impressionados pela miseacuteria da existecircncia Isso eacute

demonstrado pela invenccedilatildeo da trageacutedia obra deles (MVR II 640)

23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana

Existe poreacutem uma forma de conhecimento que eacute ndash agrave diferenccedila daquela

subordinada ao princiacutepio de razatildeo que percebe os objetos em sua relaccedilatildeo com os outros

objetos do espaccedilo-tempo ndash uma forma mais universal pois mostra o objeto em sua

caracteriacutestica mais geral qual seja a de ser objeto para o sujeito A esta forma de

conhecimento Schopenhauer associa a apreciaccedilatildeo esteacutetica O seu objeto eacute a ideacuteia

platocircnica25

um grau determinado de objetivaccedilatildeo da coisa-em-si

Os diferentes graus de objetivaccedilatildeo da Vontade expressos em

inumeraacuteveis indiviacuteduos e que existem como seus protoacutetipos

inalcanccedilaacuteveis ou formas eternas das coisas que nunca aparecem no

tempo e no espaccedilo meacutedium do indiviacuteduo mas existem fixamente natildeo

submetidos a mudanccedila alguma satildeo e nunca vindo-a-ser enquanto as

coisas nascem e perecem sempre vecircm-a-ser e nunca satildeo os GRAUS DE

OBJETIVACcedilAtildeO DA VONTADE ia dizer natildeo satildeo outra coisa senatildeo as

IDEacuteIAS DE PLATAtildeO (MVR 191)

Esta instacircncia do conhecimento eacute alcanccedilada intuitivamente pela contemplaccedilatildeo

esteacutetica da natureza ou pela facilitaccedilatildeo de uma obra de arte Desta forma as obras de

25

Conforme o filoacutesofo ldquo A expressatildeo mais breve e sucinta daquele famoso dogma platocircnico foi dada por

Dioacutegenes Laeacutercio (II 12) Platatildeo ensina que as ideacuteias da natureza existem como protoacutetipos jaacute as demais

coisas apenas se assemelham a elas e satildeo suas coacutepiasrdquo (MVR 191)

50

arte na teoria schopenhaueriana satildeo uma exposiccedilatildeo destes graus de objetivaccedilatildeo da

vontade as ideacuteias Ao contraacuterio da criacutetica agrave arte presente na repuacuteblica platocircnica - onde a

arte seria uma coacutepia mais imperfeita da ideacuteia por retratar o mundo fenomecircnico sua

coacutepia direta - Schopenhauer aproxima as obras artiacutesticas das ideacuteias eternas as define

como suas expressotildees diretas Contudo a intuiccedilatildeo das ideacuteias exige um estado de

consciecircncia diferente do estado comum Neste uacuteltimo o aparelho cognitivo sob a eacutegide

da vontade estaacute voltado para a realizaccedilatildeo dos interesses individuais e entatildeo se

movimenta no mundo guiado por estes interesses ldquoCaso entretanto a Ideacuteia deva de

alguma maneira tornar-se conhecimento e ser conhecida pelo sujeito entatildeo isso soacute

pode ocorrer graccedilas agrave supressatildeo da individualidade no sujeito que conhecerdquo (MB 30)

A forma artiacutestica de conhecimento cujo possuidor eacute o denominado gecircnio estaacute

associada a um desprendimento das reacutedeas da vontade O gecircnio eacute entatildeo aquele que livre

dos interesses da vontade percebe as ideacuteias por traacutes dos objetos alheio aos princiacutepios

de razatildeo e de individuaccedilatildeo e traduz este objeto na obra de arte O observador esteacutetico eacute

portanto um partiacutecipe da genialidade na medida em que intui a ideacuteia por traz do objeto

observado conforme tambeacutem ao seu grau de desinteresse26

Durante a apreciaccedilatildeo

esteacutetica o homem se vecirc livre momentaneamente daquela parte de si que eacute a causadora

de todo o sofrimento individual e coletivo a vontade para transformar-se em um ldquopuro

sujeito de conhecimentordquo Este estado de satisfaccedilatildeo decorrente da suspensatildeo da vontade

individualizada eacute o sentimento do belo

Aquilo que se poderia nomear o lado mais belo e a pura alegria

da vida precisamente porque nos arranca da existecircncia real e nos

transforma em espectadores desinteressados diante dela eacute o puro

conhecimento que permanece alheio a todo querer eacute a fruiccedilatildeo do belo a

alegria autecircntica na arte Mas mesmo isso requer dispositivos raros e

cabe apenas a pouquiacutessimos e mesmo para estes eacute um sonho

passageiro (MVR 404)

26

Vemos nesta forma de associaccedilatildeo entre conhecimento e interesse mais uma heranccedila kantiana no caso

provinda da definiccedilatildeo de belo da criacutetica da faculdade de juiacutezo

51

- - - - - - - - - -

Ao descrever a apreciaccedilatildeo artiacutestica como um ato cognitivo Schopenhauer

preocupa-se em diferenciaacute-la do conhecimento cientiacutefico De fato boa parte das

consideraccedilotildees sobre a arte eacute dedicada ao esclarecimento desta diferenccedila

Podemos por conseguinte definir a arte como o modo de

consideraccedilatildeo das coisas independente do princiacutepio de razatildeo em oposiccedilatildeo

justamente agrave consideraccedilatildeo que o segue que eacute o caminho da experiecircncia e

da ciecircncia O modo de consideraccedilatildeo que seque o princiacutepio de razatildeo eacute o

racional o uacutenico que vale e que auxilia na vida praacutetica e na ciecircncia o

modo apartado do conteuacutedo do princiacutepio de razatildeo eacute o genial o uacutenico que

vale e que auxilia na arte (MB 59)

No caso da trageacutedia cujo objetivo eacute o conhecimento do homem e de suas relaccedilotildees a

ciecircncia que mais se assemelha a esta forma artiacutestica seria a histoacuteria Esta natildeo tem como

objetivo a demonstraccedilatildeo da essecircncia do homem em sua forma atemporal ou seja a

demonstraccedilatildeo daquilo que fundamenta toda accedilatildeo humana independente dos

acontecimentos empiacutericos

[ ]toda ciecircncia no sentido proacuteprio do termo compreendida como

conhecimento sistemaacutetico guiado pelo fio condutor do princiacutepio de

razatildeo parte sempre de dois dados baacutesicos um deles sem exceccedilatildeo eacute o

princiacutepio de razatildeo em uma de suas figuras como oacuterganon outro eacute o

objeto especiacutefico de cada uma delas enquanto problema (Schopenhauer

MVR 73)

Desta forma a histoacuteria teria a lei de motivaccedilatildeo e o os fatos humanos como oacuterganon e

problemas respectivamente Entretanto interessa a Schopenhauer um conhecimento

mais universal que soacute pode ser apresentado pela arte e que aponta por sua proximidade

agrave essecircncia daquilo que eacute a uma ldquoiacutendole imutaacutevelrdquo das manifestaccedilotildees

Podemos ver entatildeo que sendo consideradas como meios para o

conhecimento da essecircncia da humanidade arte poeacutetica e histoacuteria possuem todavia

objetos de conhecimento diferentes A primeira quando produzida pelo verdadeiro

gecircnio tenciona manifestar a ideacuteia por traacutes destes conceitos a ideacuteia de homem de

humanidade intuitivamente independentemente do princiacutepio de razatildeo do devir como

52

objeto puro de conhecimento alheio agrave corrente dos motivos em suas caracteriacutesticas

essenciais atemporais A histoacuteria por sua vez segue o rastro do princiacutepio de razatildeo

procurando apresentar o fenocircmeno humano em suas relaccedilotildees descrever-lhe em suas

situaccedilotildees particulares individuais empiacutericas Nas palavras de Schopenhauer

Arte e ciecircncia tecircm em uacuteltima instacircncia o mesmo estofo a saber

justamente o mundo tal como ele se posta diante de noacutes ou antes uma

parte destacada dele quanto ao todo do mundo soacute a filosofia o

considera Contudo a grande diferenccedila entre ciecircncia e arte reside na

maneira como elas consideram o mundo e trabalham seu estofo Tal

oposiccedilatildeo pode ser indicada com uma palavra a ciecircncia considera os

fenocircmenos do mundo seguindo o fio condutor do princiacutepio de razatildeo ao

passo que a arte coloca totalmente de lado o princiacutepio de razatildeo

independente dele para que assim a ideacuteia entre em cena

(SCHOPENHAUER MB 57)

Podemos notar que a valorizaccedilatildeo do que eacute imutaacutevel alheio agrave idealidade do tempo eacute a

raiz da valorizaccedilatildeo do conhecimento artiacutestico frente ao histoacuterico Este uacuteltimo natildeo visa o

acesso aos modelos eternos pois seu objeto satildeo os acontecimentos individuais do

mundo fenomecircnico que satildeo eventos meramente aparentes se considerarmos a

idealidade do tempo O que se manifesta no fluxo temporal do mundo fenomecircnico satildeo

sempre as mesmas formas eternas as ideacuteias entretanto com roupagens diferentes o

mesmo homem enquanto objetivaccedilatildeo da vontade a mesma humanidade Onde quer que

seja e em qualquer momento especiacutefico sua essecircncia eacute a mesma e esta essecircncia eacute o que

deve ser alvo de uma compreensatildeo privilegiada de entendimento e natildeo as suas diversas

manifestaccedilotildees Por este motivo Schopenhauer deixando explicito o seu chamado anti-

historicismo afirma que ldquose algueacutem jaacute lera Heroacutedoto jaacute estudara bastante histoacuteria e

efeitos filosoacuteficos Pois laacute jaacute estaacute tudo o que compotildee a posterior histoacuteria mundial a

atividade o obrar o sofrimento e o destino do gecircnero humano (Schopenhauer MVR

II 496) Podemos notar claramente a oposiccedilatildeo entre a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana

da histoacuteria e as tendecircncias de seu tempo principalmente presentes na filosofia de

Hegel Este de acordo com a criacutetica de Schopenhauer ignorando a filosofia critica de

53

Kant toma o fenocircmeno histoacuterico como coisa em si ao atribuir-lhe uma unidade de

consciecircncia Entretanto unidade de consciecircncia eacute um atributo dos indiviacuteduos e natildeo do

gecircnero humano Estas filosofias de acordo com o Schopenhauer satildeo frutos do realismo

otimista queldquo tomam o mundo como perfeitamente real e potildeem como fim do mesmo

uma miseraacutevel felicidade terrena (Schopenhauer MVR II 495)

- - - - - - - - - -

Colocando de lado o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e mirando-se no

conhecimento da ideacuteia imutaacutevel atemporal encontramos a trageacutedia como fenocircmeno que

apresenta agrave intuiccedilatildeo o homem e sua condiccedilatildeo Eacute a forma de arte que tem como objeto o

grau mais elevado de objetivaccedilatildeo da vontade A intenccedilatildeo do artista traacutegico eacute de acordo

com Schopenhauer transmitir a ideacuteia intuiacuteda tarefa que seraacute bem sucedida de acordo

com a habilidade de utilizaccedilatildeo da teacutecnica artiacutestica por um lado e com a capacidade de

percepccedilatildeo esteacutetica do apreciador por outro O tragedioacutegrafo diferentemente do

historiador que relata os fatos empiacutericos explicitando seus motivos e consequumlecircncias

deve para obter o efeito esperado em sua obra expor uma situaccedilatildeo tal em que o homem

possa manifestar todas as suas potencialidades e dessa forma transmitir ao apreciador

esteacutetico a ideacuteia representada ldquoO poeta expotildee com escolha e intenccedilatildeo caracteres

significativos em situaccedilotildees significativas jaacute o historiador toma aos dois como eles

aparecemrdquo (Schopenhauer MVR 323) A qualidade da obra traacutegica seraacute julgada entatildeo

pela sua capacidade de representaccedilatildeo da ideacuteia de humanidade e Schopenhauer qualifica

as trageacutedias de acordo com esta capacidade Natildeo existe em seu sistema uma

consideraccedilatildeo histoacuterica da produccedilatildeo traacutegica Ele natildeo leva em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees

histoacutericas no que se refere agrave origem ou mesmo quanto ao desenvolvimento desta forma

artiacutestica e a avalia unicamente conforme o seu efeito E neste ponto a trageacutedia apresenta

uma peculiaridade frente agraves demais artes ela eacute a forma de arte que provocaraacute o

54

sentimento do sublime Como vimos o correlato subjetivo de toda apreciaccedilatildeo esteacutetica eacute

o sentimento causado pela anulaccedilatildeo da vontade individual mediante a elevaccedilatildeo ao

estado de puro sujeito de conhecimento O sublime assim como o belo satildeo expressotildees

deste sentimento que se diferenciam unicamente por sua forma

Se tal estado surgiu por si mesmo na medida em que o objeto foi

solicitado e se apresentou ndash e fomos postos sem resistecircncia pelo mero

desaparecer da vontade da consciecircncia no estado do conhecer puro ndash ou

se primeiro foi despertado por elevaccedilatildeo livre consciente sobre a vontade

na medida em que o objeto contemplado tem com esta uma relaccedilatildeo

desfavoraacutevel hostil cuja prossecuccedilatildeo suprimiria a contemplaccedilatildeo ndash aiacute

reside a diferenccedila entre o belo e o sublime (MB 119)

A impressatildeo do sublime eacute portanto uma forma de colocar-se no estado do puro conhecer

ao nos depararmos com o objeto que por sua apresentaccedilatildeo sugere uma ldquorelaccedilatildeo hostilrdquo

com o indiviacuteduo27

Jaacute vimos que a visatildeo de mundo de Schopenhauer identifica a vida humana como

sofrimento infindaacutevel no entanto ao elaborar sua definiccedilatildeo da trageacutedia Schopenhauer

aponta para o desfecho moral de sua obra (livro IV de MVR) e afirma que a trageacutedia

melhor eacute aquela que expotildee a renuacutencia agrave vida O filoacutesofo compara obras contemporacircneas

agraves antigas e afirma sua preferecircncia por estas em decorrecircncia da capacidade que elas tecircm

de provocar esta a renuacutencia agrave vida Vejamos a descriccedilatildeo que Schopenhauer faz da

trageacutedia

No aacutepice da arte poeacutetica tanto no que se refere agrave grandeza do seu

efeito quanto agrave dificuldade da sua realizaccedilatildeo deve-se ver a trageacutedia e de

fato ela assim foi reconhecida Observe-se aqui algo de suma significaccedilatildeo

para toda a nossa visatildeo geral de mundo o objetivo dessa suprema

realizaccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute outro senatildeo a exposiccedilatildeo do lado terriacutevel da vida

27

Vemos na teoria do sublime Schopenhaueriana mais uma vez a influecircncia de Kant Schopenhauer iraacute

identificar duas formas de sublime e utilizar-se-aacute dos termos kantianos ldquosublime dinacircmicordquo e ldquosublime

matemaacuteticordquo para diferenciaacute-los No primeiro o objeto de apreciaccedilatildeo se mostra a princiacutepio uma ameaccedila

ao observador ldquoum poder que suprimiria qualquer resistecircnciardquo(MB 104) No sublime matemaacutetico o

segundo o objeto eacute visto em sua incomensuraacutevel grandiosidade diante da qual o observador infere a sua

infimidade A afinidade entre Schopenhauer e a teoria criacutetica do juiacutezo eacute expressa em sua obra principal

ldquoDe longe o que haacute de mais excelente na criacutetica da faculdade de juiacutezo eacute a teoria do sublime Ela eacute

incomparavelmente mais bem sucedida que a teoria do belo e daacute natildeo apenas como esta o meacutetodo geral

da investigaccedilatildeo mas tambeacutem um trecho do correto caminho de maneira que embora natildeo forneccedila a

soluccedilatildeo propriamente dita do problema chega bem perto delardquo(MVR 660)

55

a saber o inominado sofrimento a miseacuteria humana o triunfo da maldade

o impeacuterio ciacutenico do acaso a queda inevitaacutevel do justo e do inocente E

em tudo isso se encontra uma indicaccedilatildeo significativa da iacutendole do mundo

e da existecircncia Eacute o conflito da Vontade consigo mesma que aqui

desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade entra em

cena de maneira aterrorizante Ele se torna visiacutevel no sofrimento da

humanidade em parte produzido por acaso e erro que se apresentam

como os senhores do mundo e personificados como destino e perfiacutedia os

quais aparecem enquanto intencionalidade em parte advindo da

humanidade mesma por meio dos entrecruzados esforccedilos voluntaacuterios dos

indiviacuteduos e da maldade e perversatildeo da maioria Trata-se de uma uacutenica e

mesma Vontade que em todos vive e aparece cujos fenocircmenos

entretanto combatem entre si e se entredevoram [] Por fim esse

conhecimento no indiviacuteduo purificado e enobrecido pelo sofrimento

mesmo atinge o ponto no qual o fenocircmeno o veacuteu de maia natildeo mais o

ilude Ele vecirc atraveacutes da forma do fenocircmeno do principium

individuationis com o que tambeacutem expira o egoiacutesmo nele baseado Com

isso os ateacute entatildeo poderosos MOTIVOS perdem o seu poder e em vez

deles o conhecimento perfeito da essecircncia do mundo atuando como

quietivo da vontade produz a resignaccedilatildeo a renuacutencia natildeo apenas da vida

mas de toda a vontade de vida mesma (Schopenhauer MVR 333)

Percebemos nesta descriccedilatildeo que a trageacutedia aleacutem de expor a visatildeo de mundo construiacuteda

pelo filoacutesofo tem como fim uacuteltimo provocar um efeito moral no apreciador esteacutetico

qual seja a renuacutencia ao mundo Vejamos entatildeo a relaccedilatildeo entre a visatildeo de mundo

schopenhaueriana o efeito esteacutetico provocado pela trageacutedia e o projeto moral existente

por traacutes de suas teorias

24 A finalidade moral da trageacutedia

Para que possamos perceber a relaccedilatildeo intriacutenseca entre cosmologia metafiacutesica

arte e a eacutetica faz-se necessaacuterio uma pequena excursatildeo sobre esta uacuteltima Que todo o

sistema schopenhaueriano possui um viacutenculo inseparaacutevel com o seu projeto eacutetico eacute fato

que natildeo passa despercebido a seus comentadores Um projeto de juventude eacute descrito

por Safranski (1991 188-198) Young (2006 07 200) Aramayo (2001 56-59) e

Cartwright (Janaway 1999 252) como uma premissa no desenvolvimento da filosofia

56

schopenhaueriana trata-se do projeto de uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Young a descreve

como uma transcendecircncia do mundo ordinaacuterio para o ldquomundo verdadeirordquo Esta

consciecircncia melhor poderia ser experimentada atraveacutes da apreciaccedilatildeo artiacutestica e da

consciecircncia eacutetica ambas originadas do desvelamento de maia Assim Schopenhauer a

descreve conforme citaccedilatildeo de Young (2006 9) ldquopersonalidade e causalidade existem

neste mundo compreensiacutevel temporal sensorial Mas a consciecircncia melhor me leva a

um mundo onde nem personalidade nem sujeito ou objeto existem maisrdquo Safransky

descreve a consciecircncia melhor como um estado semelhante ao ecircxtase miacutestico

Este arrebatamento estaacute livre das coordenadas espaccedilo-temporais

cujo ponto de interseccedilatildeo eacute o eu corporal apartado do espaccedilo do tempo

do eu Os miacutesticos chamam a esta experiecircncia ldquonunc stansrdquo agora

permanente A intensidade deste presente natildeo conhece princiacutepio nem fim

e soacute pode desaparecer porque noacutes desaparecemos dele (Safransky1991

190)

Conforme Aramayo tanto a figura do gecircnio como a do santo satildeo expressotildees do

reconhecimento desta consciecircncia melhor e a filosofia de Schopenhauer pretende-se

uma terceira via que tambeacutem apontaria para este estado de consciecircncia A caracteriacutestica

primordial deste estado eacute o desprendimento dos desejos individuais e o comportamento

virtuoso que adveacutem deste desprendimento Eacute na esteira do entendimento desta

consciecircncia melhor que as bases eacutetico-metafiacutesicas do filoacutesofo foram elaboradas Em

apoio a esta afirmaccedilatildeo Aramayo apresenta duas citaccedilotildees a partir das quais em

momentos distintos de sua vida Schopenhauer apresenta seu projeto de identificaccedilatildeo

entre eacutetica e metafiacutesica Nos escritos de Juventude em 1813 vemos o projeto

Em meu espiacuterito encontra-se em gestaccedilatildeo uma filosofia onde

metafiacutesica e eacutetica devem constituir uma soacute coisa cuja dissociaccedilatildeo eacute tatildeo

errocircnea como agrave da alma e do corpo (Aramayo 2001 41)

Jaacute nos escritos tardios especificamente em seu ensaio de 1836 Sobre a vontade na

natureza veremos Schopenhauer identificar esta uniatildeo

57

Tatildeo soacute esta metafiacutesica que jaacute eacute eacutetica por si soacute ao estar construiacuteda

com esse material primordialmente eacutetico que se supotildee a vontade

constitui real e imediatamente um sustentaacuteculo para a eacutetica em vista de

que poderia haver colocado em minha metafiacutesica o nome de eacutetica (apud

Aramayo 2001 43)

Cartwright aponta ainda na uacuteltima obra schopenhaueriana de 1851 Parerga e

paralipomena a afirmaccedilatildeo de que a ldquosua real filosofia culminou em um ponto de vista

altamente eacutetico-metafiacutesicordquo (Janaway 1999 252)

Na filosofia schopenhaueriana como vimos o indiviacuteduo humano eacute uma

expressatildeo da objetidade da vontade e seu ponto de partida por natureza eacute a satisfaccedilatildeo

manutenccedilatildeo e o prolongamento desta vontade de vida Este estado de consciecircncia onde

todos os esforccedilos estatildeo voltados para a satisfaccedilatildeo da vontade individual eacute a causa de

todo o sofrimento do mundo Aprisionado agrave perspectiva fenomecircnica do mundo o

homem natildeo percebe a unidade da vontade e age de acordo com os motivos estabelecidos

pela sua proacutepria individualidade Para este homem existe uma separaccedilatildeo profunda entre

o proacuteprio eu e os objetos do mundo

Por meio da intuiccedilatildeo que o ceacuterebro efetua a partir dos dados do sentido

e portanto mediatamente conhecemos o proacuteprio corpo como um objeto no

espaccedilo e por meio do sentido interno conhecemos a seacuterie sucessiva de nossos

desejos e atos de vontade que surgem por ocasiatildeo dos motivos externos e

finalmente conhecemos os muacuteltiplos movimentos fortes ou fracos da proacutepria

vontade aos quais todos os sentimentos internos deixam-se reconduzir Isto eacute

tudo pois o conhecer natildeo eacute ele proacuteprio de novo conhecido (Schopenhauer

2001 213)

Eacute deste estado que surge todo o comportamento humano considerado pelo filoacutesofo

como comportamento antimoral Egoiacutesmo eacute o nome dado ao resultado da influecircncia do

princiacutepio de individuaccedilatildeo sobre o comportamento dos homens Este egoiacutesmo chega ao

extremo de o homem considerar-se o centro do mundo e transformar o seu querer em

mandamento para os objetos exteriores ldquoalguns homens seriam capazes de assassinar

um outro soacute para engraxar suas botas com a gordura delerdquo (SFM 124) Nestas

58

condiccedilotildees ldquose fosse dado pois a um indiviacuteduo escolher entre a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo

e a do mundo nem preciso dizer para onde a maioria se inclinariardquo (SFM 121) Da

forma como ocorre com o egoiacutesmo a ilusatildeo fenomecircnica daacute origem a outro sentimento

o oacutedio Estes dois egoiacutesmo e oacutedio satildeo os princiacutepios originadores de todos os viacutecios do

homem Desta leitura pessimista da natureza humana Schopenhauer retira seu conceito

perspectivista das ideacuteias de bem e mal satildeo consideradas boas ou maacutes as coisas que

agradam ou desagradam agrave vontade do indiviacuteduo ldquoPortanto tudo o que eacute favoraacutevel agrave

vontade em alguma de suas exteriorizaccedilotildees e satisfaz seus fins eacute pensado pelo conceito

bom por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectosrdquo (MVR 459)

Este estado eacute definido por Schopenhauer como ldquoafirmaccedilatildeo da vontaderdquo nele o amor-

proacuteprio Eros dita as regras de comportamento Definido o Eros enquanto

fundamentador das accedilotildees antimorais humanas sendo este surgido de uma percepccedilatildeo

subordinada ao principium individuationis entendemos o motivo pelo qual o filoacutesofo

rejeita a validade de qualquer moral baseada em argumentos abstratos

Uma moral sem fundaccedilatildeo portanto um simples moralizar natildeo pode

fazer efeito pois natildeo motiva Uma moral entretanto que motiva soacute pode fazecirc-

lo atuando sobre o amor proacuteprio O que entretanto nasce daiacute natildeo tem valor

moral algum Segue-se assim que mediante moral e conhecimento abstrato em

geral nenhuma virtude autecircntica pode fazer efeito mas esta tem de brotar do

conhecimento intuitivo o qual reconhece no outro indiviacuteduo a mesma essecircncia

que a proacutepria (MVR 468)

Desta forma em contraposiccedilatildeo ao comportamento antimoral produzido

pela ilusatildeo causada pelo principium individuationis o filoacutesofo apresenta o outro lado da

moeda a accedilatildeo moral Esta seria a accedilatildeo praticada em funccedilatildeo do bem-estar de um outro

indiviacuteduo tendo em vista que as accedilotildees praticadas em funccedilatildeo do mal-estar do outro ou

do bem e mal estar de si mesmo satildeo justamente as accedilotildees antimorais baseadas no

egoiacutesmo ou no oacutedio ldquoTodo amor que natildeo eacute compaixatildeo eacute amor-proacuteprio Amor-proacuteprio eacute

59

Eros compaixatildeo eacute Aacutegaperdquo (MVR 478) Todo ato moral eacute por consequumlecircncia um ato de

compaixatildeo ou seja um ato que eacute praticado a partir da percepccedilatildeo do sofrimento do

outro Entretanto a percepccedilatildeo do sofrimento alheio natildeo eacute dada atraveacutes do conhecimento

abstrato E somente por uma percepccedilatildeo intuitiva direta do sofrimento do outro como o

meu proacuteprio sofrimento que surge a compaixatildeo Tal percepccedilatildeo assim como a

apreciaccedilatildeo esteacutetica tem origem em uma visatildeo que vai aleacutem do principium

individuationis Desfaz-se a ilusatildeo causada por este princiacutepio de que existe em realidade

um eu e um natildeo-eu ilusatildeo essa que eacute originada pelos condicionantes do conhecimento

tempo espaccedilo e causalidade Livre do principium individuationis natildeo haacute mais

diversidade natildeo existe mais indiviacuteduo passado futuro motivaccedilotildees existe apenas o

instante presente do ser a vontade Natildeo nos vemos mais como uma vontade separada de

outras ao contraacuterio vemos nos outros a mesma vontade pela qual somos Necessaacuterio

faz-se ressaltar que este conhecimento intuitivo que demonstra a unidade da vontade

em todo indiviacuteduo eacute entendimento de verdade tatildeo profundo que supera qualquer

especulaccedilatildeo abstrata do conhecimento e por isso seu efeito eacute marcante

Para o conhecimento que vecirc atraveacutes do principium individuationis uma

vida feliz no tempo presenteada pelo acaso ou conquistada deste pela

sabedoria em meio ao sofrimento de inumeraacuteveis outros eacute apenas um sonho de

mendigo no qual eacute um rei poreacutem tem de acordar e reconhecer que era tatildeo-soacute

uma ilusatildeo fugidia aquilo que o separava do sofrimento da sua vida (MVR

452)

A experimentaccedilatildeo deste estado de consciecircncia faz-nos perceber a vida como engano

luta infinita e provoca em noacutes a renuacutencia a esta mesma vida agrave vontade de viver O

homem natildeo mais afirma a sua essecircncia mas a repudia

Agrave semelhanccedila do estado de negaccedilatildeo da vontade o proacuteprio estado de

contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee um desinteresse pelos mandamentos da vontade

60

individual um desligamento do caraacuteter egoiacutestico do sujeito empiacuterico28

Para que possa

perceber a Ideacuteia por traacutes do objeto contemplado o observador deve estar em um estado

de consciecircncia que se vecirc livre dos grilhotildees da vontade Neste estado ele eacute alccedilado para

aleacutem da individualidade torna-se puro sujeito de conhecimento Para que este estado se

manifeste eacute imprescindiacutevel natildeo estar interessado nas relaccedilotildees do objeto apreciado seja

com outros objetos seja consigo mesmo O apreciador esteacutetico natildeo se preocupa com o

ldquoonderdquo o ldquocomordquo o ldquoporquecircrdquo dos objetos Estas formas de interjeiccedilatildeo sinalizam para a

relaccedilatildeo dos objetos com o mundo O apreciador esteacutetico no momento da apreciaccedilatildeo

tem em vista somente o ldquoquerdquo do objeto transforma-se em um ldquoolho que vecircrdquo livre do

princiacutepio de individuaccedilatildeo eacute o puro sujeito de conhecimento Vemos nestes dois estados

(o esteacutetico e o compassivo) exemplos de estados de consciecircncia que por suas

caracteriacutesticas de alccedilarem o indiviacuteduo a uma anulaccedilatildeo do sofrimento fazem parte do

projeto de juventude de estabelecer uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Percebemos entatildeo que a

consideraccedilatildeo esteacutetica e a consideraccedilatildeo eacutetica possuem em comum esta caracteriacutestica da

consciecircncia de se apartar do princiacutepio de individuaccedilatildeo

No caso da trageacutedia como descreve Schopenhauer seu fim uacuteltimo eacute despertar a

compaixatildeo no apreciador Desta forma o filoacutesofo associa agrave trageacutedia um efeito singular e

adverso das demais artes ou pelo menos reconhece na trageacutedia a arte capaz de

demonstrar a semelhanccedila entre os modos de consideraccedilatildeo artiacutestico e eacutetico Ao ilustrar o

conflito das vontades no mundo atraveacutes da exposiccedilatildeo do sofrimento humano a trageacutedia

cumpre seu papel artiacutestico ao expor a ideacuteia de humanidade Aleacutem deste atributo

podemos dizer que a trageacutedia tem que cumprir ainda seu papel moral ao causar no

28

Neste ponto de semelhanccedila eacute fundamental apontar mais uma vez a heranccedila kantiana Nas palavras de

Barboza (2001 82) ldquoA negaccedilatildeo da Vontade diante da beleza realmente obedece a uma leitura do

conceito criacutetico de desinteresse Quando Kant diz que o belo eacute aquilo que satisfaz bdquosem nenhum

interesse‟ o autor de O mundo leu essa expressatildeo como equivalente da negaccedilatildeo do querer visto que

interesse e motivo satildeo conceitos intercambiaacuteveis [] e a vontade neutraliza-se desinteressa-se ou seja eacute

indeterminaacutevel por motivos na contemplaccedilatildeo da Ideacuteia do belordquo

61

espectador a renuacutencia a toda vontade O modelo exemplar da trageacutedia eacute para

Schopenhauer a trageacutedia cristatilde onde o heroacutei conscientemente abandona o querer e

conseguintemente a vida Na trageacutedia antiga havia somente a identificaccedilatildeo do

sofrimento humano e sua exposiccedilatildeo A renuacutencia agrave vontade de vida eacute caracteriacutestica das

trageacutedias posteriores ao advento cristatildeo Schopenhauer exemplifica O priacutencipe de

Calderoacuten Gretchen em Fausto A Donzela de Orleans a Noiva de Messina etc Assim

ldquotoda a exposiccedilatildeo traacutegica eacute para o espectador um chamado agrave resignaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo livre

da Vontade de vida Somente a eacutetica pode tornar tudo isso mais compreensiacutevelrdquo (MB

223) Vemos entatildeo de forma clara na teoria da trageacutedia de Schopenhauer um momento

onde ocorre a coalizatildeo dos fundamentos metafiacutesicos de sua filosofia do pessimismo

originado nestes fundamentos e da atitude eacutetica existente por traacutes de seu pensamento

25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera

Faz-se necessaacuterio aqui uma incursatildeo sobre a teoria da muacutesica de Schopenhauer

tendo em vista de que ela ocuparaacute um papel decisivo na teoria nietzscheana da trageacutedia

As relaccedilotildees que Nietzsche estabelece entre a muacutesica a vontade as palavras e

finalmente a trageacutedia satildeo delineadas como veremos pela metafiacutesica schopenhaueriana

da muacutesica No intuito de perceber estas relaccedilotildees propomos aqui um breve esboccedilo da

teoria da muacutesica na filosofia de Schopenhauer

A filosofia da muacutesica encontra seu lugar ao final do terceiro livro de MVR bem

como no capiacutetulo 39 dos complementos fechando assim as consideraccedilotildees de

Schopenhauer sobre a metafiacutesica do belo e as artes29

29

Na esteira de Lydia Goehr (Jacquette 1996 200) ressaltamos que tendo em vista a influecircncia que sua

filosofia da muacutesica exerceu sobre o pensamento artiacutestico e filosoacutefico posterior e comparada agrave dimensatildeo

de sua obra as consideraccedilotildees sobre a muacutesica ocupam um espaccedilo diminuto em sua obra

62

Para o filoacutesofo da vontade a muacutesica eacute a arte que pela natureza de seu objeto de

expressatildeo natildeo encontra lugar apropriado dentro do sistema das demais artes Estas

conforme sua competecircncia em traduzir uma determinada objetidade da vontade uma

ideacuteia satildeo classificadas hierarquicamente A muacutesica entretanto figura aleacutem desta

hierarquizaccedilatildeo pois representa o conceitualmente irrepresentaacutevel ldquoa coacutepia de um

modelo que ele mesmo nunca pode ser representado imediatamenterdquo(MVR 338) a

Vontade mesma Esta arte eacute especialmente considerada devido agrave peculiaridade uacutenica de

seu efeito esteacutetico ldquoeacute uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente

sobre o mais iacutentimo do homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele

como se fora uma linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do

mundo intuitivordquo (MVR 336) A muacutesica estaacute aleacutem da intuiccedilatildeo pois representa aquilo

que estaacute aleacutem desta forma agrave semelhanccedila das ideacuteias que satildeo objetivaccedilotildees imediatas da

vontade a muacutesica eacute tambeacutem uma destas objetivaccedilotildees representaccedilatildeo imediata da coisa

em si O que o compositor apresenta atraveacutes da muacutesica eacute a essecircncia mais iacutentima do

mundo em uma ldquolinguagem natildeo compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo

magneacutetico fornece informaccedilotildees sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito

algumrdquo (MVR 342) Por estar em um acircmbito inalcanccedilaacutevel pelo conceito a muacutesica

atraveacutes de sua linguagem arrebata o homem de forma mais marcante e direta e ateacute

mesmo a explanaccedilatildeo sobre a muacutesica estaacute condenada agrave pobreza e agrave insuficiecircncia Desta

forma o filoacutesofo se utilizaraacute de uma analogia para explanar sobre a muacutesica ie

procederaacute a uma explicaccedilatildeo da muacutesica atraveacutes de um paralelismo entre ela as ideacuteias e o

mundo enquanto objetivaccedilotildees da vontade

Esta analogia expressa atraveacutes de diversos exemplos leva em consideraccedilatildeo que

em suas duas formas de objetivaccedilatildeo (o mundo e a muacutesica) a Vontade deixa transparecer

semelhanccedilas Na muacutesica os tons mais graves aproximam-se ao que satildeo no mundo os

63

graus mais baixos de objetivaccedilatildeo da vontade quais sejam a natureza inorgacircnica A lei

da harmonia estabelece que os tons agudos satildeo originados daquele tom mais grave

fundamental Da mesma forma no mundo os corpos tecircm como fonte e sustentaacuteculo a

natureza inorgacircnica ldquoagrave partir da qual tudo se eleva e desenvolverdquo(MB 230) As vozes

intermediaacuterias da melodia que estatildeo entre o baixo fundamental e a voz condutora

correspondem no mundo aos demais graus de objetivaccedilatildeo da vontade na natureza ldquoAs

vozes mais proacuteximas do baixo correspondem aos graus mais baixos ou seja os corpos

ainda inorgacircnicos poreacutem jaacute se exteriorizando de diversas maneiras As vozes mais

elevadas por sua vez representam os reinos vegetal e animalrdquo(MB 231)

O objeto de representaccedilatildeo da muacutesica eacute a Vontade e esta por sua vez eacute

intraduziacutevel atraveacutes das palavras da configuraccedilatildeo racional pois a razatildeo natildeo pode

alcanccedilar sua profundidade Trata-se de ldquouma linguagem universal cuja

compreensibilidade eacute inata e cuja clareza ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo

(MB 228) Diante desta caracteriacutestica cognitiva a muacutesica natildeo deve se inspirar no texto

nas palavras a natildeo ser para ilustraacute-las e conceder-lhes assim significaccedilatildeo mais

profunda A muacutesica natildeo deve ser composta com base em conceitos ou em objetos e

ocorrecircncias do mundo pois trata-se de uma expressatildeo da ordem do essencial do

universal ldquoela eacute a alma mais interior dessas ocorrecircncias sem o corpordquo (MB 235) Os

objetos e situaccedilotildees do mundo satildeo manifestaccedilotildees e portanto sua representaccedilatildeo

conceitual satildeo reproduccedilotildees circunstanciais da essecircncia do mundo expressa pela muacutesica

Daiacute se compreende o fato de a muacutesica realccedilar em cada

pintura sim em cada cena da vida efetiva e do mundo o

aparecimento de uma significaccedilatildeo mais elevada e tanto mais

quanto mais anaacuteloga eacute sua melodia ao espiacuterito iacutentimo do

fenocircmeno dado A muacutesica combina com tudo em todas as

exposiccedilotildees Nada lhe pode ser estranho pois exprime a essecircncia

de todas as coisas Caso se soe uma muacutesica que combine com

alguma cena da vida humana ou da natureza destituiacuteda de

conhecimento ou com alguma accedilatildeo acontecimento ambiente ou

64

alguma imagem ndash entatildeo ela revela o sentido secreto dessa cena e eacute

seu comentaacuterio mais correto e claro (MB 235)

Esta caracteriacutestica que daacute agrave muacutesica um privileacutegio cognitivo sobre as demais formas

artiacutesticas eacute o que delineia as consideraccedilotildees do filoacutesofo sobre a oacutepera30

A oacutepera ideal eacute

portanto aquela onde o livreto estaacute para a muacutesica como um exemplo para um conceito

geral A muacutesica tem a funccedilatildeo de expor ldquoo profundo e misterioso sobre a essecircncia

iacutentimardquo daquilo que a palavra exemplifica O compositor que maior ecircxito conseguiu

neste sentido conforme o filoacutesofo foi Rossini cuja ldquomuacutesica fala tatildeo distinta e

puramente a sua linguagem PROacutePRIA visto que quase natildeo precisa de palavras e por

conseguinte provoca todo o seu efeito mesmo se executada soacute com instrumentosrdquo

(MVR 344)

Vemos entatildeo a muacutesica como a mais profunda das artes cujo efeito eacute o mais

avassalador e que portanto quando conjugada com outras formas de expressatildeo como a

oacutepera deve formar a base e orientar a sua elaboraccedilatildeo Entretanto ao contraacuterio da

trageacutedia cujo fim eacute o estiacutemulo agrave renuacutencia da vontade de viver a muacutesica segundo a

metafiacutesica exposta por Schopenhauer ldquonatildeo faz mais do que agradar a vontade de viver

jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo seus ecircxitos e ao final expressa sua

satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509)

30

ldquoAo adotar esta atitude Schopenhauer transtorna toda a tradiccedilatildeo jaacute secular que havia afirmado natildeo

poucas vezes desde os tempos do nascimento da oacutepera o predomiacutenio da palavra sobre a muacutesica e em

consequumlecircncia a subordinaccedilatildeo desta uacuteltima agrave primeirardquo (Fubini 1988 289)

65

3 A teoria da trageacutedia do Jovem Nietzsche

Debalde espreitamos por uma raiz

vigorosamente ramificada por um pedaccedilo

de terra sadia e feacutertil por toda parte poacute

areia rigidez consunccedilatildeo Aqui um

solitaacuterio desconsolado natildeo poderia escolher

melhor siacutembolo do que o Cavaleiro com a

Morte e o Diabo como Duumlrer o desenhou o

cavaleiro arnesado com o olhar duro

brocircnzeo que sabe tomar o seu caminho

assustador imperturbado por seus

hediondos companheiros e natildeo obstante

desesperanccedilado sozinho com o seu corcel e

o seu catildeo Um tal cavaleiro duumlreriano foi

nosso Schopenhauer faltava-lhe qualquer

esperanccedila mas queria a verdade Natildeo haacute

quem se lhe iguale

(Nietzsche)

Neste capiacutetulo procuraremos apontar primeiramente o modo pelo qual se deu o

encontro entre Nietzsche e a filosofia de Schopenhauer Em um segundo momento

percorreremos o desenvolvimento histoacuterico das produccedilotildees nietzscheanas que

culminaram com a publicaccedilatildeo da obra que caracteriza o primeiro periacuteodo do filoacutesofo

qual seja O nascimento da trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica Concluiremos entatildeo

apresentando um esboccedilo desta obra dando ecircnfase em todos os momentos aos

66

elementos que caracterizam sua teoria da trageacutedia especialmente agravequeles relacionados agrave

metafiacutesica schopenhaueriana da vontade

31 Schopenhauer e o jovem Nietzsche uma breve contextualizaccedilatildeo histoacuterica

Foram nos anos de universidade em Leipzig que Nietzsche se deparou com a

filosofia de Schopenhauer Este periacuteodo entre os anos de 1865 e 1869 eacute especialmente

importante devido ao fato de que nele podemos assistir ao surgimento de alguns

aspectos fundamentais ao projeto filosoacutefico de Nietzsche Janz descreve este periacuteodo

como aquele em que o filoacutesofo estabeleceu ldquoseus encontros espirituais determinantes a

partir dos quais se defrontou consigo mesmo e com sua tarefardquo(1987 151)

O primeiro contato do jovem Nietzsche com o mundo schopenhaueriano deu-se

em meados de outubro de 1865 pouco tempo apoacutes sua chegada a Leipzig O

arrebatamento causado no jovem estudante de filologia pelo encontro com a filosofia

schopenhaueriana eacute descrito por ele apoacutes dois anos da seguinte maneira

Sentia-me naquela eacutepoca desorientado solitaacuterio sem

princiacutepios sem esperanccedilas inconsolado e com algumas

experiecircncias dolorosas e decepccedilotildees Construir uma vida proacutepria e

adequada era para mim uma aspiraccedilatildeo que me ocupava da manhatilde

ateacute a noite No feliz apartamento em que vivia procurava

concentrar-me a mergulhar em mim mesmo e quando me

encontrava com amigos estes eram sempre Mushacke e Von

Gersdorff os quais por sua parte alentavam objetivos muito

semelhantes aos meus Creio que natildeo seraacute difiacutecil imaginar a

impressatildeo que nesta situaccedilatildeo me causou a leitura da obra

principal de Schopenhauer Encontrei um dia este livro no sebo do

velho Rohm Ignorando tudo sobre ele o tomei em minhas matildeos e

me pus a folheaacute-lo Natildeo sei que democircnio me sussurrou bdquoleve este

livro para a casa‟ Aconteceu de compraacute-lo apesar do meu usual

costume de natildeo me precipitar na compra de livros Uma vez em

casa num canto do sofaacute me lancei sobre o tesouro receacutem

adquirido e comecei a deixar que aquele gecircnio eneacutergico e sombrio

influiacutesse sobre mim Em cada linha sua gritava a renuacutencia

negaccedilatildeo resignaccedilatildeo tinha diante de mim um espelho no qual

podia contemplar o mundo a vida e meu proacuteprio acircnimo com uma

67

grandeza deprimente Um espelho desde o qual o olho solar da

arte me mirava desde sua absoluta falta de interesse Vi

enfermidade e cura desterro e refuacutegio inferno e paraiacuteso A

necessidade de autoconhecimento inclusive de auto-

experimentaccedilatildeo apoderou-se de mim com forccedila indomaacutevel

provas daquela mutaccedilatildeo profunda satildeo hoje todavia para mim as

paacuteginas desassossegadas e melancoacutelicas do diaacuterio que agravequela

eacutepoca escrevi com suas auto-acusaccedilotildees inuacuteteis e sua desesperada

busca de salvaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do inteiro nuacutecleo humano Na

medida em que propus a submeter todas as minhas caracteriacutesticas

e aspiraccedilotildees ao tribunal de uma sombria auto-depreciaccedilatildeo minha

atitude estava cheia de amargura possuiacuteda de um oacutedio injusto e

desenfreado contra mim mesmo Nem sequer renunciei agraves

mortificaccedilotildees corporais Obriguei-me com efeito durante

quatorze dias seguidos a deitar-me agraves duas da noite e acordar agraves

seis da manhatilde Uma excitaccedilatildeo nervosa muito singular se apoderou

assim de mim e quem sabe ateacute que grau de loucura haveria

chegado se natildeo tivesse modificado frente agravequele estado de

acircnimo os atrativos da vida da vaidade e o imperativo de retornar

a meus estudos regulares (conforme citaccedilatildeo de Janz 1987 158)

Da citaccedilatildeo podemos inferir a mudanccedila de acircnimo que o encontro com

Schopenhauer provocou A partir daquele momento diversas correspondecircncias datildeo-nos

ainda informaccedilotildees do impacto que a filosofia de Schopenhauer provocou na concepccedilatildeo

de mundo do jovem estudante Em algumas destas correspondecircncias vemos transparecer

a influecircncia atraveacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio schopenhaueriano bem

como das ideacuteias nelas expressas Assim acontece em carta enviada agrave sua matildee e irmatilde

datada de 5 de novembro de 1865 onde ao discorrer acerca da frivolidade da vida

humana o jovem Nietzsche conclui utilizando-se dos argumentos propostos pela eacutetica

schopenhaueriana

Existem dois caminhos ou se esforccedila e se acostuma a ser

o mais limitado que se possa e uma vez que se reduz o maacuteximo

possiacutevel a luz do espiacuterito se busque bens de fortuna e se viva com

os prazeres do mundo ou por outro lado se sabe que a vida eacute

miseraacutevel se sabe que somos seus escravos tanto mais quanto

mais procuramos dela gozar e por tanto se desprende dos bens da

vida exercita a sobriedade e se eacute austero consigo mesmo e cordial

com os demais ndash e isto porque sente compaixatildeo pelos

companheiros de miseacuteria ndash em uma palavra se vive de acordo

68

com as rigorosas exigecircncias do cristianismo primitivo (OC

470)

Vemos ainda em carta a Mushacke em 12 de julho de 1866 o impacto que a

interpretaccedilatildeo schopenhaueriana pessimista de mundo causou em Nietzsche ldquoDesde que

Schopenhauer nos retirou dos olhos a venda do otimismo as coisas satildeo percebidas

mais agudamente A vida eacute mais interessante ainda que mais feiardquo (conforme citaccedilatildeo

de Janz 1987 172) Percebemos tambeacutem a linguagem schopenhaueriana na descriccedilatildeo

dos momentos de contemplaccedilatildeo Eacute o caso da carta datada de 07 de abril de 1866 a

Gersdorf onde Nietzsche descreve seu estado que nos remeteraacute agrave contemplaccedilatildeo

artiacutestica na filosofia de Schopenhauer ao discorrer sobre os dias de veratildeo ldquo[] a

natureza se faz perfeita e noacutes tambeacutem entatildeo nos sentimos livres do poderio da vontade

sempre alerta e somos olho puro intuitivo desinteressadordquo (OC 472)

Estas influecircncias nortearam de forma definitiva as produccedilotildees acadecircmicas de

Nietzsche mesmos suas pesquisas filoloacutegicas A concepccedilatildeo traacutegica do mundo tornou-se

um feixe condutor para as reflexotildees do jovem filoacutelogo Seus companheiros no estudo da

obra de Schopenhauer eram Gersdorff e Mushacke Em carta agrave sua matildee de 01 de

fevereiro de 1866 Nietzsche deixa saber sobre a frequumlecircncia dos estudos ldquoCom

Gersdorff me encontro uma noite por semana para ler grego a cada duas semanas me

reuacuteno com ele e com Mushacke e nos entregamos a Schopenhauer Este filoacutesofo ocupa

uma posiccedilatildeo importante em meus pensamentos e estudos e meu respeito por ele cresce

incomparavelmenterdquo (OC 471) Se o conteuacutedo da filosofia schopenhaueriana foi

absorvido intensamente pelo jovem Nietzsche como podemos ver a partir dos trechos

transcritos acima a forma estiliacutestica tambeacutem se configura como preocupaccedilatildeo Em um

periacuteodo onde as pesquisas acadecircmicas exigiam o esforccedilo da escrita ali tambeacutem a

autoridade das regras schopenhauerianas exibia sua feiccedilatildeo Eacute tambeacutem em uma carta a

69

Gersdorff datada de 06 de abril de 1867 onde Nietzsche expotildee sua preocupaccedilatildeo com o

estilo

Nestas divagaccedilotildees quero redigir meu trabalho sobre as

fontes de Dioacutegenes Laeacutercio e estou todavia no iniacutecio Para seu

regozijo confessarei que o que mais me daacute trabalho eacute meu estilo

em alematildeo Agora me caem os veacuteus dos olhos e vejo que

durante muito tempo vivi em estado de inocecircncia estiliacutestica O

imperativo categoacuterico bdquodeves escrever‟ me foi despertado[] nos

ouvidos me soavam todos os preceitos estiliacutesticos de Lessing de

Lichtenberg e de Schopenhauer Meu uacutenico consolo eacute que estas

trecircs autoridades afirmavam unanimemente que eacute difiacutecil escrever

bem que por natureza ningueacutem tem um bom estilo e que haacute que

trabalhar e trabalhar para consegui-lo (OC 476)

Entretanto apesar do profundo arrebatamento causado pela filosofia de

Schopenhauer que fez com que o universo das preocupaccedilotildees do entatildeo jovem Nietzsche

se fundamentasse nos pressupostos da metafiacutesica schopenhaueriana outros elementos

tambeacutem fundamentais para o pensamento futuro do filoacutesofo foram tambeacutem neste

periacuteodo despertados Como apontam Dias (2009 42) Janaway (2007 16) e Lopes

(2008 27) jaacute neste periacuteodo que podemos tratar como um periacuteodo de despertar para o

pensamento filosoacutefico encontraacutevamos os elementos que a partir de Humano demasiado

humano conformaratildeo a criacutetica nietzscheana agrave filosofia de Schopenhauer Os

comentadores citados chamam a atenccedilatildeo para o fato de que embora nas obras

publicadas de Nietzsche possamos assistir a criacuteticas diretas a Schopenhauer somente

apoacutes Humano demasiado humano tais criacuteticas agrave filosofia schopenhaueriana surgiram

em um momento imediatamente posterior agrave descoberta da metafiacutesica da vontade Rosa

Maria Dias chama a atenccedilatildeo para os fragmentos poacutestumos e para a correspondecircncia que

agrave partir de 1867 trazem algumas criacuteticas agrave metafiacutesica da vontade Rogeacuterio Lopes e

Cristopher Janaway apontam que algumas destas criacuteticas estatildeo embasadas nas leituras

que o jovem Nietzsche fez de Friedrich A Lange Rudolf Haym Kuno Fischer dentre

outros Tais criacuteticas contudo natildeo afastaram o jovem Nietzsche do discipulado

70

schopenhaueriano mas transformaram sua aceitaccedilatildeo do sistema da vontade No lugar de

uma defesa da consistecircncia loacutegica do sistema Nietzsche passou a adotar uma postura de

defesa da bdquonatureza edificante‟ e preponderantemente artiacutestica deste sistema Exemplos

desta postura podem ser encontrados tambeacutem na correspondecircncia daquele periacuteodo

Para escrever uma apologia a Schopenhauer eu tenho

unicamente que considerar o fato de que olho esta vida livre e

bravamente diante do fato de que encontrei um suporte para me

apoiar obviamente que isto natildeo eacute mais que uma apologia

totalmente individual Mas eacute como as coisas satildeo Se algueacutem

deseja refutar Schopenhauer para mim atraveacutes de argumentos

racionais murmuro em seu ouvido bdquoporeacutem meu amigo visotildees de

mundo natildeo satildeo criadas nem destruiacutedas pela loacutegica‟ (carta a

Deussen Outubro-Novembro de 1867 citada por Janaway

(200718))

Ou ainda em carta a Gersdorff onde apoacutes apresentar a criacutetica de Lange agrave metafiacutesica da

vontade Nietzsche conclui contra Haym ainda com os argumentos de Lange

Natildeo apenas a verdadeira essecircncia das coisas a coisa em si

eacute desconhecida para noacutes tambeacutem seu conceito eacute nada mais nada

menos que o uacuteltimo rebento de um contraste condicionado por

nossa organizaccedilatildeo do qual natildeo sabemos se conserva algum

significado fora de nossa experiecircncia Disso resulta pensa Lange

que os filoacutesofos natildeo devem ser importunados na medida em que

nos edificam A arte eacute livre tambeacutem na regiatildeo dos conceitos

Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro

uma Madonna de Rafael Como vocecirc pode perceber o nosso

Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista

criacutetico ele se torna quase ainda mais valioso para noacutes Se filosofia

eacute arte entatildeo que Haym se anule diante de Schopenhauer se a

filosofia deve edificar entatildeo eu pelo menos natildeo conheccedilo nenhum

filoacutesofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer (apud

Lopes 2008 86-87)

Vimos ateacute entatildeo que a descoberta de Schopenhauer provocou no jovem

estudante de filologia transformou sua forma de perceber o mundo e o influenciou de

forma definitiva a ponto de fazer com que Nietzsche se definisse como um seguidor e

divulgador da obra schopenhaueriana Contudo eacute no fim de seus anos de estudo em

Leipzig que o disciacutepulo de Schopenhauer iraacute se defrontar com a personalidade que lhe

71

reforccedilaraacute de forma ainda mais contundente o selo da rotunda schopenhaueriana

Richard Wagner

Foi atraveacutes de seu amigo Brockhaus cuja esposa era irmatilde do muacutesico que em

novembro de 1868 Nietzsche encontrou-se pela primeira vez com Wagner A partir

daquele encontro se estabeleceria um relacionamento que de uma forma ou de outra

marcaraacute Nietzsche pelo resto de sua vida Em uma carta a seu amigo Erwin Rohde

Nietzsche descreve o primeiro encontro e sua perplexidade ao encontrar em Wagner um

admirador de Schopenhauer ldquo[]mantive com ele uma longa conversa sobre

Schopenhauer Ah Compreenderaacutes minha felicidade em ouvir-lhe falar com um

entusiasmo completamente indescritiacutevel ao qual ele agradecia como Schopenhauer

era o uacutenico filoacutesofo que havia compreendido a essecircncia da muacutesicardquo (Correspondecircncia

2007 21) A impressatildeo deste encontro eacute tambeacutem claramente visiacutevel atraveacutes de

correspondecircncia endereccedilada ao proacuteprio Wagner em maio de 1869 ldquoVeneradiacutessimo

senhor quanto tempo tive a intenccedilatildeo de lhe manifestar sem nenhuma timidez o grau de

gratidatildeo que sinto em relaccedilatildeo ao senhor pois realmente os melhores e mais elevados

momentos de minha vida se ligam ao seu nome e eu soacute conheccedilo mais um homem aleacutem

disso seu grande irmatildeo em espiacuterito Arthur Schopenhauer em quem penso com a

mesma veneraccedilatildeo ateacute senso religiosordquo (Correspondecircncia 2007 56) Como podemos

ver a pessoa de Wagner eacute associada agrave de Schopenhauer Esta associaccedilatildeo tornar-se-aacute

uma constante e poderaacute ser identificada ainda na fase tardia onde as criacuteticas a estes

pensadores e ao que eles entatildeo representavam se daraacute de forma inter-relacionada Este

primeiro encontro com Wagner conforme Janz (1987 22) foi um dos principais

motivos que levaram Nietzsche a aceitar em detrimento de outros planos que

formulava assumir a caacutetedra de filologia em Basel A proximidade de Tribschen

residecircncia dos Wagner e a possibilidade de uma convivecircncia com o muacutesico o

72

inspiraram E assim aconteceu Ao mudar-se para Basel pocircde desfrutar de uma

convivecircncia constante com o casal Wagner Desde a chegada de Nietzsche ateacute a

mudanccedila de Wagner em 1872 encontravam-se com muita frequumlecircncia e os assuntos que

pautavam tais encontros eram amiuacutede arte muacutesica a literatura claacutessica e a filosofia de

Schopenhauer Wagner tornar-se-ia para Nietzsche a personificaccedilatildeo do gecircnio

schopenhaueriano aquele capaz de atraveacutes da muacutesica expor a essecircncia do mundo No

projeto wagneriano de ldquoarte totalrdquo Nietzsche pocircde vislumbrar a uniatildeo entre muacutesica e

filosofia e satisfazer assim em certa medida as expectativas oriundas da metafiacutesica da

vontade

32 O projeto subjacente ao Nascimento da Trageacutedia

Eacute famosa a passagem onde Nietzsche em carta a Deussen datada de janeiro de

1870 informa sobre seu estado de espiacuterito ldquo Ciecircncia arte e filosofia crescem agora

juntas em mim e de tal modo que um dia haverei de parir centaurosrdquo (Janz 1981 66)

Esta afirmaccedilatildeo eacute ilustrativa no que se refere ao ambiente onde o Nascimento da trageacutedia

foi gerado Podemos identificar claramente as figuras por detraacutes dos termos filosofia

arte e ciecircncia satildeo elas Schopenhauer Wagner e a filologia claacutessica Neste periacuteodo

Nietzsche entatildeo jovem professor de filologia estava imbuiacutedo pela pretensatildeo de poder

unir os estudos filoloacutegicos aos filosoacuteficos Sua preleccedilatildeo inicial Homero e a filologia

claacutessica em Basel nos daacute uma amostra desta pretensatildeo Ali podemos assistir a uma

aproximaccedilatildeo entre filologia e filosofia atraveacutes da proposta de uma leitura filosoacutefica do

mundo antigo ldquoCom isto quero expressar que toda atividade filoloacutegica deve estar

impregnada de uma concepccedilatildeo filosoacutefica do mundo na qual todo o particular e singular

seja visto como algo sem proveito e soacute permaneccedila de peacute a unidade do todordquo (OC 26)

73

Sua escolha por trilhar caminhos mais proacuteximos agrave filosofia pode tambeacutem ser observada

pela tentativa frustrada de ocupar uma cadeira desta disciplina que se mostrou livre em

janeiro de 1871 Se por um lado podemos diagnosticar certa decepccedilatildeo e ateacute um

determinado desacircnimo na atividade acadecircmica por outro lado os laccedilos com os Wagner

se estreitavam cada vez mais No refuacutegio de Tribschen sob a aura de Richard Wagner

Nietzsche discorria sobre o mundo grego enquanto modelo de cultura e ouvia os planos

wagnerianos sobre seu projeto de uma obra de arte total Como pano de fundo destas

discussotildees a metafiacutesica da muacutesica schopenhaueriana e sua concepccedilatildeo traacutegica do mundo

Eacute em torno destes eixos formadores que vemos se materializar a primeira publicaccedilatildeo de

Nietzsche

O desenvolvimento das ideacuteias que formaratildeo a obra contudo se deu de forma

gradual Ao longo do periacuteodo compreendido entre a chegada de Nietzsche a Basel e a

publicaccedilatildeo de seu livro determinados trabalhos deixam transparecer o delineamento de

algumas das ideacuteias centrais da obra Satildeo eles O drama musical grego Soacutecrates e a

trageacutedia A visatildeo dionisiacuteaca do mundo e Introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles31

Em o drama musical grego conferecircncia puacuteblica datada de janeiro de 1870

Nietzsche efetua uma comparaccedilatildeo entre a arte traacutegica da antiguidade e as oacuteperas

modernas Estas de acordo com o filoacutesofo satildeo uma imperfeita ldquocaricatura do drama

musical antigordquo (VD 48) Muacutesica pintura escultura e poesia formavam um todo na

arte traacutegica da antiguidade Nas artes modernas por sua vez as formas artiacutesticas satildeo

fragmentadas fato que dificulta o entendimento da trageacutedia grega e que causaria

espanto ao apreciador de arte moderno A muacutesica teria para a trageacutedia antiga uma

31

Como ressaltam M S Silk e J P Stern em sua obra Nietzsche on tragedy (1981 59) o nascimento da

trageacutedia eacute composto de forma estrutural pelos conceitos encontrados nestes trabalhos O iniacutecio do livro

(sectsect1-10) eacute substancialmente baseado no ensaio a visatildeo dionisiacuteaca do mundo enquanto a sequumlecircncia

composta pelos paraacutegrafos 5 e 6 estaacute mais proacutexima da introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles O trecho

composto pelos paraacutegrafos 11 a 14 pode ser derivado diretamente da leitura Soacutecrates e a trageacutedia O resto

do livro eacute formado por uma amaacutelgama destes escritos Partes dispersas ainda satildeo formadas pelo ensaio do

drama musical grego

74

importacircncia capital como elemento intensificador de seu efeito Podemos ver a intenccedilatildeo

por traacutes da anaacutelise nietzscheana da trageacutedia antiga em comparaccedilatildeo agrave opera Ao final da

conferecircncia no elogio que confere a Wagner o tiacutetulo de ldquoatual reformador da arterdquo bem

como na descriccedilatildeo de seu projeto de arte total retratado como um acontecimento que jaacute

teve lugar na trageacutedia da antiguidade claacutessica Nietzsche deixa claro seu engajamento ao

projeto wagneriano

No mecircs seguinte ao da citada conferecircncia uma segunda intitulada Soacutecrates e a

trageacutedia foi proferida por Nietzsche O assunto em pauta era a morte repentina da

trageacutedia grega Esta morte teria ocorrido pelas matildeos de Euriacutepides apoacutes uma decadecircncia

iniciada nos uacuteltimos periacuteodos das produccedilotildees de Eacutesquilo passando por Soacutefocles e

culminando com o advento da comeacutedia Tal decadecircncia teria sido provocada pela saiacuteda

de cena da muacutesica que de forma progressiva foi substituiacuteda pelo diaacutelogo racionalista

Soacutecrates ocupa aqui um lugar importante Eacute sua influecircncia sobre Euriacutepides que

transforma de uma forma definitiva a arte instintivamente musical da trageacutedia em uma

manifestaccedilatildeo do discurso eacutetico racionalista Esta ldquoesteacutetica racionalista e conscienterdquo

pode ser identificada no proacutelogo euripidiano e na inserccedilatildeo do deus ex machina

enquanto agentes de racionalizaccedilatildeo da obra artiacutestica A trageacutedia de Euriacutepides teria

assumido assim os pressupostos do racionalismo socraacuteticos ldquoVirtude eacute saber peca-se

somente por ignoracircncia O virtuoso eacute felizrdquo (VD 90) Esta assunccedilatildeo que liga a virtude

ao saber impotildee agrave trageacutedia um caraacuteter eacutetico alheio agrave sua caracteriacutestica puramente

esteacutetica O elemento culpa na dialeacutetica socraacutetica toma o lugar que era ocupado pela

compaixatildeo Jaacute podemos perceber nesta conferecircncia o esboccedilo da dicotomia que mais

tarde seraacute ilustrada atraveacutes dos deuses Apolo e Dioniso Os pares formadores da

dicotomia satildeo aqui expressos pela separaccedilatildeo entre instinto e razatildeo muacutesica e discurso

pessimismo e otimismo arte e ciecircncia

75

Temos a primeira referecircncia agrave arte dionisiacuteaca como impulso formador da

trageacutedia e sua contraposiccedilatildeo agrave arte apoliacutenea nas aulas proferidas por Nietzsche no veratildeo

daquele mesmo ano Neste curso sobre a trageacutedia de Soacutefocles do qual temos a

introduccedilatildeo podemos ver o esforccedilo de Nietzsche em caracterizar e apontar as

peculiaridades da trageacutedia da antiguidade que a tornam um fenocircmeno uacutenico em

comparaccedilatildeo agraves trageacutedias modernas Tal discussatildeo demonstraraacute pelos aspectos ali

expostos a aproximaccedilatildeo de Nietzsche com autores do periacuteodo claacutessico alematildeo e

sobretudo da chamada querela entre antigos e modernos Vemos claramente a influecircncia

de Schiller e F A Schlegel em algumas das definiccedilotildees adotadas por Nietzsche

No texto denominado A visatildeo dionisiacuteaca do mundo jaacute podemos assistir a um

desenvolvimento das duas pulsotildees artiacutesticas que satildeo o nuacutecleo da interpretaccedilatildeo

nietzscheana da trageacutedia O apoliacuteneo e o dionisiacuteaco satildeo ali explicados no acircmbito de seu

surgimento no mundo helecircnico e simbolizam a uniatildeo entre verdade e beleza na forma de

arte traacutegica Sua descriccedilatildeo como veremos abaixo estaacute permeada de conceitos retirados

da filosofia schopenhaueriana que vatildeo desde a biparticcedilatildeo do mundo entre verdade e

aparecircncia perpassam as noccedilotildees de belo e sublime e apontam a trageacutedia e a muacutesica como

forma de arte superiores

Em janeiro de 1872 Nietzsche daacute luz a seu ldquoCentaurordquo sob o nome O nascimento

da trageacutedia atraveacutes do espiacuterito da muacutesica Em carta a Rohde datada de 23 de novembro

de 1871 podemos notar atraveacutes da ansiosa expectativa nietzscheana a amaacutelgama

formadora da obra ldquo Temo sempre que os filoacutelogos natildeo o queiram ler por causa da

muacutesica os muacutesicos por causa da filologia e os filoacutesofos por causa da muacutesica e da

filologia e sinto logo medo e compaixatildeo de mim mesmordquo (Correspondecircncia 2007 237)

33 A teoria da trageacutedia publicada

Como escopo geral da primeira obra de Nietzsche podemos dizer na esteira de

Silk e de Stern (1981 52) que ela se propunha a esclarecer o problema do nascimento e

76

da morte da trageacutedia helecircnica Trageacutedia que por sua vez era a expressatildeo artiacutestica que

simbolizava um problema vital o de que sob uma superfiacutecie bela podiacuteamos ter acesso agrave

terriacutevel profundidade do ser Tal forma de arte poderia novamente vir agrave luz por uma

geraccedilatildeo criativa que ao combater a superficialidade moderna que reinava no mundo

germacircnico poderia produzir o renascimento moderno do mundo Helecircnico

Em sua essecircncia o nascimento da trageacutedia aponta para as divindades Apolo e

Dioniacutesio como ldquorepresentantes vivosrdquo de princiacutepios diacutespares que irrompem da proacutepria

natureza e que ao serem conciliados de certa forma tornaram possiacutevel que atraveacutes dos

atritos de tal uniatildeo a trageacutedia grega despontasse como manifestaccedilatildeo artiacutestica exemplar

do sublime Em linhas gerais a arte do ldquofigurador plaacutesticordquo estaria entatildeo associada ao

deus Apolo enquanto a arte ldquonatildeo figuradardquo a da muacutesica estaria associada ao deus

Dioniacutesio O apoliacuteneo eacute um impulso da vontade grega que ao almejar a vida a apresenta

transfiguradamente como um belo sonho plasmado no mundo dos deuses oliacutempicos O

princiacutepio apoliacuteneo seria aquele que estabeleceria a ordem a beleza estaacutetica e a clareza

dos limites O dionisiacuteaco eacute oriundo das festas do oriente e seu efeito eacute comparado ao da

embriaguecircs A ele cabe a sabedoria profunda da essecircncia da vida lugar do acaso do

impermanente do horriacutevel e do sofrimento A Apolo eacute facultado tecer o veacuteu que

encobre a sabedoria dionisiacuteaca e torna a vida suportaacutevel atraveacutes da ilusatildeo do sonho

Assim segundo Nietzsche o desenvolvimento contiacutenuo da arte estaacute vinculado agrave

duplicidade dos princiacutepios apoliacuteneo e dionisiacuteaco Perfazendo um caminho histoacuterico da

cultura grega podemos notar uma sobreposiccedilatildeo intermitente entre os impulsos divinos

Temos momentos onde o impulso apoliacuteneo se mostrou dominante e outros onde

Dioniacutesio recupera seu predomiacutenio O mundo oliacutempico homeacuterico com sua arte eacutepica e

sua escultura do periacuteodo doacuterico nascem a partir de uma necessidade de redenccedilatildeo para a

realidade de horror e sofrimento que o povo helecircnico presenciava Em substituiccedilatildeo ao

77

mundo titacircnico temos o mundo dos deuses oliacutempicos exemplificadores de uma

existecircncia divinizada que exalta a vida Nas palavras de Nietzsche ldquoo grego conheceu

e sentiu os temores e os horrores do existir para que lhe fosse possiacutevel de algum modo

viver teve de colocar ali entre ele e a vida a resplendente criaccedilatildeo oniacuterica dos deuses

oliacutempicosrdquo (NT 36) Entretanto a sabedoria dionisiacuteaca portadora da visatildeo abismal do

ser natildeo pocircde ser contida por muito tempo e a muacutesica veiacuteculo da uniatildeo orgiaacutestica aos

poucos foi se infiltrando no mundo construiacutedo pelo divino Apolo Os gregos foram se

tornando conscientes de seu estado sonambuacutelico que sob a graccedila do deus Apolo enleva

e transporta pela extraordinaacuteria beleza natural ou esteacutetica Em um estado semelhante ao

do indiviacuteduo que restabelecido em suas forccedilas pelo efeito renovador do sono ao findar

de uma noite comeccedila a ouvir os sons a sua volta e aos poucos vai se despertando da

mesma forma os gregos comeccedilaram novamente a ouvir o sussurro do Sileno

companheiro de Dioniacutesio ldquoo melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter

nascido e natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo

(NT 36) O artista que representa este retorno do dionisiacuteaco com a mesma envergadura

com que Homero representa as forccedilas apoliacuteneas eacute Arquiacuteloco Tomando-o como modelo

do gecircnio liacuterico Nietzsche faz uma descriccedilatildeo de seu processo de criaccedilatildeo Conforme a

metafiacutesica esteacutetica adotada por Nietzsche - que mais agrave frente veremos ser retirada da

esteacutetica schopenhaueriana - toda arte tem que ser objetiva livre dos interesses

individuais Nesta situaccedilatildeo a liacuterica que tem como objeto o eu do poeta seus desejos e

emoccedilotildees natildeo seria uma forma de arte Entretanto atraveacutes de uma descriccedilatildeo que Schiller

faz da inspiraccedilatildeo poeacutetica Nietzsche aponta o caminho para percebermos a liacuterica como

obra de arte e portanto objetivamente Conforme a passagem de Schiller citada por

Nietzsche (NT 44) ldquoo sentimento se me apresenta no comeccedilo sem um objeto claro e

determinado este soacute se forma mais tarde Uma certa disposiccedilatildeo musical de espiacuterito

78

vem primeiro e somente depois eacute que se segue em mim a ideacuteia poeacuteticardquo Desta forma

Arquiacuteloco em seu processo criativo a princiacutepio entraria em um estado de consciecircncia

ou de criaccedilatildeo onde renunciaria agrave sua individualidade e dionisiacamente participaria do

uno-primordial ldquoabismo do serrdquo estado que por sua vez materializa-se atraveacutes da

representaccedilatildeo musical A muacutesica assim produzida seraacute condiccedilatildeo para o surgimento da

inspiraccedilatildeo que a posteriori daraacute nascimento atraveacutes da aplicaccedilatildeo das formas

apoliacuteneas agrave poesia liacuterica geacutermen da trageacutedia e dos ditirambos dramaacuteticos Esta uniatildeo da

poesia liacuterica com a muacutesica eacute uma expressatildeo sinteacutetica da relaccedilatildeo dos deuses Apolo e

Dioniacutesio Eacute no quinto capiacutetulo de sua obra que Nietzsche iraacute tratar da poesia liacuterica

Neste capiacutetulo o filoacutesofo se distancia de Schopenhauer em sua interpretaccedilatildeo do

fenocircmeno liacuterico Para Schopenhauer na citaccedilatildeo reproduzida por Nietzsche (NT 46) a

liacuterica eacute produzida atraveacutes de uma percepccedilatildeo da consciecircncia onde os estados da vontade

individualizada se alternam com o conhecimento objetivo Como vimos o poeta liacuterico

assistiria ao jogo do eu em sua afetaccedilatildeo emocional e descreveria este estado atraveacutes de

sua poesia Nietzsche ao descrever a liacuterica utiliza-se da teoria da muacutesica

schopenhaueriana qual seja o poeta liacuterico produz primeiramente a muacutesica como forma

geral de expressatildeo da vontade mesma e desta produccedilatildeo gera posteriormente o texto que

se torna um exemplificador do evento musical sua forma plaacutestica objetiva A muacutesica eacute

a aparecircncia da vontade e as imagens apoliacuteneas que dela se originaram satildeo conforme seu

espiacuterito A imagem e o conceito satildeo desta forma na liacuterica originados a partir da

muacutesica

Tem-se portanto na trageacutedia grega uma relaccedilatildeo de interdependecircncia que evoca

um aparente paradoxo ndash ou seja ao lado da necessidade esteacutetica da beleza Apolo exige

dos seus a medida (limites fronteiras do indiviacuteduo presentes no ldquonada em demasiardquo) e

o auto-conhecimento necessaacuterio para determinaacute-la (ldquoconhece-te a ti mesmordquo) o

79

desmedido os excessos o dionisiacuteaco seriam identificados pelo apoliacuteneo como

democircnios de uma era preacute-apoliacutenea era dos Titatildes reminiscecircncias de barbarismo O

paradoxo estaacute em que para que o comedimento apoliacuteneo possa existir o desmedido

dionisiacuteaco faz-se necessaacuterio (na linguagem de Nietzsche como ldquosubstratordquo) assim

como para que o desmedido dionisiacuteaco possa existir faz-se necessaacuterio a existecircncia do

comedido do apoliacuteneo Natildeo obstante a trageacutedia grega depende da conjugaccedilatildeo destes

dois princiacutepios para existir ndash indo aleacutem poder-se-ia dizer que a proacutepria muacutesica compotildee

o princiacutepio primeiro que possibilita o surgimento da trageacutedia no jogo das formas

apoliacuteneo A trageacutedia eacute entatildeo definida como ldquoo coro dionisiacuteaco a descarregar-se sempre

de novo em um mundo de imagens apoliacuteneordquo (NT 60)

Em seu iniacutecio a trageacutedia grega era representada pelo coro traacutegico Este coro natildeo

era uma ldquorepresentaccedilatildeo constitucional do povordquo muito menos um espectador ideal

como o queria August Schlegel Nietzsche acompanha Schiller na definiccedilatildeo de que o

coro cria um terreno ideal para a manifestaccedilatildeo da arte O efeito da trageacutedia eacute a

manifestaccedilatildeo de um estado de unidade que transporta ao abismo do ser O coro eacute a

manifestaccedilatildeo deste sentimento da consciecircncia de que por traacutes da vida cotidiana haacute uma

realidade ldquoindestrutivelmente poderosa e cheia de alegriardquo (NT 55) Este eacute o consolo

metafiacutesico propiciado pela arte traacutegica Ao retornarmos deste estado o cotidiano nos

causa asco nojo Natildeo eacute possiacutevel interpretar mais o papel da vida comum A vida soacute

passa a se justificar atraveacutes da arte Perceba-se aiacute que o coro possui um papel

fundamental no processo O coro atua como impulso artiacutestico dionisiacuteaco em

contraposiccedilatildeo agrave forma apoliacutenea ou seja agraves imagens e agrave beleza plaacutestica Assim o

indiviacuteduo atraveacutes do coro tem para si revelado aquele substrato dionisiacuteaco encoberto

pela beleza e comedimento apoliacuteneos isto eacute ao indiviacuteduo era possiacutevel submergir na

80

torrente dionisiacuteaca do auto-esquecimento permitindo-se pocircr de lado os preceitos

apoliacuteneos

E foi assim que em toda parte onde o dionisiacuteaco penetrou o apoliacuteneo

foi suspenso e aniquilado Mas eacute igualmente certo que laacute onde o primeiro

assalto foi suportado o prestiacutegio e a majestade do deus deacutelfico se externaram de

maneira mais riacutegida e ameaccediladora do que nunca(NT 41-42)

De acordo com Nietzsche as trageacutedias eram em seu iniacutecio representaccedilotildees do

sofrimento de Dioniacutesio Mesmo as trageacutedias do periacuteodo aacutetico traziam Dioniacutesio como

heroacutei traacutegico O sofrimento representado era o do despedaccedilamento de Dioniacutesio o deus

que sofreu o padecimento da individuaccedilatildeo causa de todo o sofrer O mito de Dioniacutesio eacute

interpretado aqui sob a luz da filosofia de Schopenhauer que apresenta a individuaccedilatildeo

como fonte do sofrimento ldquoNos pontos de vista aduzidos temos jaacute todas as partes

componentes de uma profunda e pessimista consideraccedilatildeo do mundo e ao mesmo tempo

a doutrina misteriosoacutefica da trageacutedia o conhecimento baacutesico da unidade de tudo o que

existe a consideraccedilatildeo da individuaccedilatildeo como a causa primeira do mal a arte como a

esperanccedila jubilosa de que possa ser rompido o feiticcedilo da individuaccedilatildeo como

pressentimento de uma unidade restabelecidardquo (NT 70)

Contudo ressalta Nietzsche a trageacutedia grega que como vimos desenvolve-se a

partir do embate contiacutenuo entre as representaccedilotildees dos deuses antiacutepodas ndash envolvidos em

um enfrentamento aparentemente sem fim ndash eacute reestruturada por Euriacutepides de forma a

diminuir o impacto do coro ou seja um golpe quase mortal para Dioniacutesio que

agonizante lanccedila matildeo de seus uacuteltimos esforccedilos O que em Euriacutepedes suscitou esta

reestruturaccedilatildeo que conforme Nietzsche eacute responsaacutevel pelo afastamento progressivo do

dionisiacuteaco tem suas origens no que o filoacutesofo chamou de uma ldquotendecircncia socraacuteticardquo O

socratismo euripidiano e a sua nova concepccedilatildeo esteacutetica satildeo as causadoras do

afastamento dos impulsos esteacuteticos primevos o dionisiacuteaco e o apoliacuteneo Em seu lugar o

discurso consciente passa a imperar O deus ex machina e os proacutelogos satildeo exemplos das

81

interferecircncias racionais que datildeo novo tom agrave trageacutedia aacutetica Soacutecrates e seu racionalismo

expulsam da trageacutedia o conhecimento primevo dionisiacuteaco e estabelecem novas regras

esteacuteticas regras racionais que fazem com que o bom sinocircnimo do belo seja aquilo

alcanccedilado conscientemente

Se a trageacutedia grega foi para Nietzsche a manifestaccedilatildeo mais sublime de uma

forma artiacutestica isto se daacute em decorrecircncia do efeito por ela provocado qual seja o de

justificar o mundo enquanto fenocircmeno esteacutetico Foi exatamente o decliacutenio deste efeito

constatado pela produccedilatildeo racionalizada de Euriacutepides o responsaacutevel pela morte da

trageacutedia Ao fortalecer em demasia os princiacutepios racionais da forma Euriacutepides suprimiu

o dionisiacuteaco por meio da flacircmula que nas palavras de Nietzsche o tragedioacutegrafo

ldquolevava agrave testardquo ndash a saber uma espeacutecie de socratismo esteacutetico cujos princiacutepios se davam

a partir da remissatildeo do belo ao inteligiacutevel e deste ao virtuoso Identifica-se portanto a

racionalidade otimista socraacutetica como grande responsaacutevel pela supressatildeo do impulso

dionisiacuteaco Nietzsche alude agrave proximidade de convivecircncia entre Soacutecrates e Euriacutepides

para justificar a presenccedila do racionalismo nas obras Euripidianas Soacutecrates frequumlentava

o teatro somente para assistir agraves apresentaccedilotildees de Euriacutepides De todos os atenienses

Soacutecrates era apontado como o mais saacutebio e Euriacutepides como o segundo em sabedoria

Entretanto na contraposiccedilatildeo proposta por Nietzsche entre conhecimento instintivo e

racional Soacutecrates era descomunalmente racional ao contraacuterio do intuitivismo criativo

que reinava ateacute entatildeo Era questionando aos atenienses sobre seus atos que Soacutecrates

percebia que eles natildeo agiam conscientemente mas por intuiccedilatildeo A crenccedila socraacutetica de

que toda accedilatildeo boa deve ser consciente dominou o teatro atraveacutes de Euriacutepides Uma

chave para o entendimento da racionalidade socraacutetica segundo Nietzsche nos eacute

revelada pela ldquomonstruosa inversatildeordquo representada pela consciecircncia criacutetica de Soacutecrates ndash

ou seja a nota destoante em Soacutecrates revela-se pelo instinto criacutetico em contraposiccedilatildeo agrave

82

consciecircncia criacutetica a consciecircncia criadora em contraposiccedilatildeo ao instinto como forccedila

criadora Intui-se assim o motivo pelo qual Soacutecrates natildeo compreendia a trageacutedia grega

- o dionisiacuteaco a tornava ininteligiacutevel para as exigecircncias racionalistas e criacuteticas da

ldquodialeacutetica otimistardquo socraacutetica ldquoA Soacutecrates [] parecia que a arte traacutegica nunca bdquodiz a

verdade‟ sem considerar o fato de que se dirigia agravequele que bdquonatildeo tem muito

entendimento‟ portanto natildeo aos filoacutesofos daiacute um duplo motivo para manter-se dela

afastadordquo(NT 87) Nietzsche compara Soacutecrates ao heroacutei euripidiano que

diferentemente (ateacute mesmo antagonicamente) agrave trageacutedia de Eacutesquilo e Soacutefocles ldquoprecisa

defender suas accedilotildees por meio da razatildeo e contra a razatildeordquo O que estaacute em jogo no

socratismo eacute a substituiccedilatildeo das verdades expressas miticamente religiosamente pelas

verdades loacutegicas A razatildeo tenta abarcar o todo e para isso desconsidera a arte e seus

impulsos A excelecircncia estaacute no saber e atraveacutes deste alcanccedila-se a felicidade erro do

otimismo racionalista Ilusatildeo da razatildeo que se acha soberana e independente A loacutegica

torna-se essecircncia da trageacutedia procura-se por relaccedilotildees causais e pelo bom telos O

diaacutelogo formata sua estrutura e expulsa seu fundamento musical O ldquoheroacutei dialeacuteticordquo eacute

portanto impulsionado pelo elemento otimista da dialeacutetica A justiccedila transcendental

presente nas obras Esquilianas ldquoeacute rebaixada ao niacutevel do raso e insolente princiacutepio da

bdquojusticcedila poeacutetica‟ com seu habitual deus ex machinardquo (NT 89) A racionalidade de

Soacutecrates atraveacutes de sua investigaccedilatildeo cientiacutefica da natureza de seu processo de

construccedilatildeo loacutegica da realidade daraacute origem ao que Nietzsche denominaraacute de ldquohomem

teoacutericordquo ou ldquohomem cientiacuteficordquo a quem a razatildeo ergue-se acima da proacutepria realidade ao

ponto mesmo de ndash e aiacute reside o proacuteprio otimismo ndash propor-se a tarefa de corrigir as

falhas da proacutepria realidade Mais ainda a razatildeo socraacutetica acena ao homem com a

promessa de conferir sentido agrave existecircncia pelo conhecimento e desta forma busca

justificar tal existecircncia

83

Em face ao pessimismo praacutetico eacute Soacutecrates o protoacutetipo do

otimista teoacuterico que na jaacute assinalada feacute na escrutabilidade da

natureza das coisas atribui ao saber e ao conhecimento a forccedila de

uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo

(NT 94)

Natildeo obstante o otimismo no conhecimento na racionalidade socraacutetica encontra seu

maior dragatildeo em sua proacutepria loacutegica interna Assim nas palavras de Nietzsche

[] a periferia do ciacuterculo da ciecircncia possui infinitos pontos

e enquanto natildeo for possiacutevel prever de maneira nenhuma como se

poderaacute alguma vez medir completamente o ciacuterculo o homem

nobre e dotado ainda antes de chegar ao meio de sua existecircncia

tropeccedila e de modo inevitaacutevel em tais pontos fronteiriccedilos da

periferia onde fixa o olhar no inesclareciacutevel Quando divisa aiacute

para seu susto como nesses limites a loacutegica passa a girar em

redor de si mesma e acaba por morder a proacutepria cauda ndash entatildeo

irrompe a nova forma de conhecimento o conhecimento traacutegico

que mesmo para ser apenas suportado precisa da arte como meio

de proteccedilatildeo e remeacutedio (NT 95)

Afigura-se-nos aqui o problema apontado por Nietzsche como o ldquoproblema da

ciecircncia mesmardquo a saber um problema que nos envolve a todos por abarcar (ou

contaminar) toda a cultura ocidental - isto eacute ainda mantemos o dionisiacuteaco agrave baila

ocupando diminuta posiccedilatildeo em detrimento ao culto acerbado ao racionalismo socraacutetico

A cultura socraacutetica impotildee-se pelo homem-teoacuterico e qualquer outra existecircncia que fuja

aos olhos perscrutadores de Soacutecrates deve ldquolutar penosamente para pocircr-se agrave sua altura

como existecircncia permitida e natildeo como existecircncia propostardquo

Nietzsche nos atenta para o fato de reconhecermos comumente no homem culto

erudito o homem douto saacutebio ndash consecutivamente o dionisiacuteaco a arte eacute colocada de

forma perifeacuterica de modo a nunca poder encontrar espaccedilo para superar sua condiccedilatildeo de

ldquoremeacutedio-arterdquo A vontade aacutevida faz seu caminho mesmo atraveacutes da completa falta de

respostas de fundamentos de sentido assim eacute preferiacutevel ao ser humano querer o nada

no sentido de ainda sim querer alguma coisa do que nada querer do que reconhecer a

84

falta de fundamentos da qual consistem em todos os tempos as ilusotildees que

costumeiramente adota-se como engodo ao absoluto sem-sentido da vida

Por fim Nietzsche atenta-nos para o fato de como o homem de seu tempo vem

perdendo a crenccedila na ciecircncia otimista socraacutetica isto eacute pressentindo que a cultura

racionalista socraacutetica torna-se iloacutegica ao vislumbraacute-la em seus horizontes afastando-se

de suas consequumlecircncias Nietzsche diagnostica na oacutepera de seu periacuteodo a subordinaccedilatildeo da

muacutesica agrave arte figurada agrave palavra e expotildee a expectativa de que possa haver no cansaccedilo e

na percepccedilatildeo do insucesso dos esforccedilos racionalistas um renascimento da trageacutedia

85

4 Conclusatildeo pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo

da vida

Retribui-se mal a um mestre continuando-

se sempre apenas aluno

(Nietzsche)

Natildeo podemos ver na filosofia schopenhaueriana qualquer instacircncia que

justifique a vida Ao conhecermos a sua essecircncia - a vontade cega e irracional que se

deixa ver atraveacutes das manifestaccedilotildees do seu querer incessante - percebemos o absurdo de

sua existecircncia e somos por essa percepccedilatildeo levados agrave sua negaccedilatildeo Nietzsche por sua

vez utilizando-se dos conceitos da filosofia de Schopenhauer procura em sua obra

justificar a vida e encontra esta justificaccedilatildeo na arte Nesta conclusatildeo da pesquisa

pretendemos entatildeo apresentar um esboccedilo do modo pelo qual alguns elementos da

filosofia schopenhaueriana foram utilizados no projeto do primeiro livro de Nietzsche e

explicitar o modo como estes elementos foram configurados no interior de seu projeto

Dentre estes elementos percorreremos o paralelo entre os pares dionisiacuteacoapoliacuteneo e

vontaderepresentaccedilatildeo os conceitos de arte e apreciaccedilatildeo esteacutetica e sua cisatildeo entre as

86

artes figurativas e a musical a especificidade da muacutesica o conceito de gecircnio e sua

divisatildeo e os limites da racionalidade e da ciecircncia

Jaacute no primeiro paraacutegrafo de NT a associaccedilatildeo entre os pares nietzscheanos do

dionisiacuteaco e apoliacuteneo e as visotildees de mundo schopenhauerianas satildeo expliacutecitas Nietzsche

define o impulso apoliacuteneo atraveacutes do sonho do princiacutepio de individuaccedilatildeo e o dionisiacuteaco

atraveacutes da embriaguez da consciecircncia de unidade da vontade do livrar-se do veacuteu de

maia Os deuses gregos tornam-se representativos destes estados schopenhauerianos de

consciecircncia Como vimos no capiacutetulo segundo desta dissertaccedilatildeo sob o ponto de vista da

representaccedilatildeo o mundo eacute objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito

agraves condiccedilotildees a priori do entendimento Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das

formas a priori do entendimento eacute interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos

advindos da filosofia Platocircnica e oriental como um mundo aparente ilusoacuterio artificial

O sonho efeito do encantamento apoliacuteneo eacute utilizado como metaacutefora da realidade

fenomecircnica no mundo Schopenhaueriano Os Vedas e Puranas tantas vezes citados por

Schopenhauer tratam o mundo como um sonho imposto pelo deus Maia o deus da

ilusatildeo que cobre a visatildeo do homem com seu veacuteu A mitologia oriental aludida por

Schopenhauer toma conta do mundo helecircnico em Nietzsche que transforma Apolo no

deus Maia o configurador de sonhos O sonho eacute utilizado como ilustraccedilatildeo da realidade

pelo fato de que durante o sonho natildeo sabemos estar sonhando O mundo dos sonhos nos

eacute naquele momento real Vemo-nos como indiviacuteduos e vemos o mundo da

individuaccedilatildeo e suas leis causais espaccedilo-temporais Somente o momento empiacuterico do

despertar informa-nos do sonho Haacute portanto uma identificaccedilatildeo do ldquoparentesco iacutentimo

entre vida e sonhordquo(MVR 60) Como ilustraccedilatildeo desta metaacutefora Schopenhauer elogia

ainda a obra do ldquovaterdquo Calderoacuten de La Barca A vida eacute sonho agrave qual denominaraacute como

um ldquodrama metafiacutesicordquo por expor esta faceta de seu sistema A consciecircncia de que a

87

vida eacute sonho eacute para Schopenhauer um despertar metafiacutesico cujo propiciador foi Kant

ao demonstrar o caraacuteter fenomecircnico do mundo Este despertar contudo natildeo causa

prazer O filoacutesofo e o gecircnio personagens que na metafiacutesica schopenhaueriana alcanccedilam

este despertar satildeo atormentados pela realidade com a qual se deparam qual seja a de

que a vida eacute puro sofrimento Eacute no intuito de deixar velada esta faceta da vida que

Apolo ofusca a visatildeo dos homens com seu mundo luminoso de sonho seu objetivo eacute

encobrir esta verdade aterrorizadora As artes natildeo musicais tanto na teoria de

Schopenhauer como na nietzscheana manteacutem o homem em um juacutebilo prazeroso

ocasionado pela contemplaccedilatildeo puramente objetiva Neste momento natildeo se percebe o

jogo da vontade individualizada somos afastados da realidade do querer insuflados

pela caracteriacutestica quietiva da apreciaccedilatildeo esteacutetica nas palavras de Nietzsche

encontramos na arte um ldquoremeacutedio-arterdquo32

Esta visatildeo do lado terriacutevel da vida ocasionada pelo despertar do dogmatismo

metafiacutesico na teoria schopenhaueriana eacute associada em NT agrave sabedoria dionisiacuteaca

Verificamos na descriccedilatildeo do impulso dionisiacuteaco os elementos que caracterizam a

vontade schopenhaueriana A visatildeo dionisiacuteaca do mundo carrega consigo o despertar

para o caraacuteter absurdo da vida Ao olhar para a proacutepria essecircncia o homem descobre-se

enquanto manifestaccedilatildeo de uma vontade aacutevida desprovida de telos O ldquomecanismo

internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens marionetes guiados pela

carecircncia Esta realidade eacute assustadora pois subtrai do horizonte todos os propoacutesitos da

vida individual Dioniacutesio trava aqui sua batalha contra Apolo ao apontar a ilusatildeo da

individuaccedilatildeo como mecanismo para uma fuga daquilo que em essecircncia somos Apesar

de seu caraacuteter aterrorizador a sabedoria dionisiacuteaca eacute acompanhada do deleite

32

Podemos ver aqui o nuacutecleo da dissenssatildeo entre as teorias dos dois filoacutesofos Para Schopenhauer este

remeacutedio eacute temporaacuterio e tatildeo logo o efeito da apreciaccedilatildeo esteacutetica se esvaia os interesses da vontade voltam

a agir sobre o indiviacuteduo e a vida de sofrimento continua seu percurso restando apenas o caminho da

negaccedilatildeo daquela vontade da vida mesma em direccedilatildeo ao nada Nietzsche ao contraacuterio aponta para uma

forma de cura atraveacutes do remeacutedio-arte ver a vida enquanto forma de arte afirmaacute-la

88

indescritiacutevel da celebraccedilatildeo da unidade com o todo ldquoSob a magia do dionisiacuteaco torna a

selar-se natildeo apenas o laccedilo de pessoa a pessoa mas tambeacutem a natureza alheada

inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliaccedilatildeo com seu filho

perdido o homemrdquo(NT 31) Se Apolo eacute representado como deus da forma da clareza

da individuaccedilatildeo e as artes patrocinadas por ele satildeo expressotildees destas caracteriacutesticas

Dioniacutesio por sua vez eacute o patrocinador da muacutesica expressatildeo fenomecircnica direta da

vontade Vemos em Nietzsche uma biparticcedilatildeo das artes que tambeacutem pode ser extraiacuteda

da metafiacutesica schopenhaueriana (artes natildeo-musicais e arte musical)

Para Schopenhauer as formas artiacutesticas natildeo-musicais ao provocarem uma visatildeo

puramente objetiva do objeto apreciado tecircm como caracteriacutestica fundamental a

libertaccedilatildeo da subjetividade e com ela dos anseios da vontade Durante esta forma de

apreciaccedilatildeo esteacutetica ldquosomos alforriados do desgraccedilado iacutempeto volitivo festejamos o

Sabbath dos trabalhos forccedilados do querer a roda de Iacutexion cessa de girarrdquo (MVR

267) A definiccedilatildeo nietzscheana para a funccedilatildeo da arte apoliacutenea se daacute da mesma maneira

qual seja ela deve ldquo [] livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito

graccedilas ao baacutelsamo da aparecircncia do espasmo dos movimentos do querer []rdquo (NT

117) A muacutesica por sua vez recebe um tratamento especial de Schopenhauer devido ao

seu efeito esteacutetico Se as demais artes satildeo um quietivo para a vontade a muacutesica ldquonatildeo faz

mais do que agradar a vontade de viver jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo

seus ecircxitos e ao final expressa sua satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509) Ela encontra-se

num niacutevel de valor superior ao das demais artes por tratar-se de representar a essecircncia

do mundo a vontade mesma Assim tambeacutem ela eacute tratada por Nietzsche como a arte

que representa a sabedoria dionisiacuteaca e faz o apreciador vivenciar a vontade mesma

Em seus escritos sobre a poesia e a oacutepera Schopenhauer alude agrave necessidade de

subordinar os conceitos e o texto agrave muacutesica para que estas artes tenham um efeito mais

89

arrebatador no apreciador esteacutetico Esta subordinaccedilatildeo eacute assumida por Nietzsche em sua

teoria da trageacutedia Nietzsche encontra na liacuterica a primeira manifestaccedilatildeo desta junccedilatildeo da

arte dionisiacuteaca com a arte apoliacutenea e aponta aiacute o geacutermen que daraacute origem agrave trageacutedia

Podemos perceber aqui uma subordinaccedilatildeo das artes natildeo-musicais agrave muacutesica que por sua

vez se espelha na subordinaccedilatildeo do mundo fenomecircnico ao mundo da coisa-em-si As

artes figurativas representam as ideacuteias objetivaccedilotildees imediatas da vontade e a muacutesica

representa a vontade mesma Na teoria da trageacutedia de Nietzsche esta subordinaccedilatildeo seraacute

mantida e assim reflete a configuraccedilatildeo da metafiacutesica schopenhaueriana A muacutesica ldquoeacute

uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente sobre o mais iacutentimo do

homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele como se fora uma

linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo (MVR

336) Desta forma uma arte que se pretenda formar a partir da integraccedilatildeo de elementos

de diversas formas artiacutesticas deve tomar a muacutesica como inspiraccedilatildeo tanto na teoria de

Schopenhauer como na de Nietzsche

Desta dicotomia das formas artiacutesticas que podemos perceber nos dois filoacutesofos

podemos depreender duas formas do gecircnio o apoliacuteneo ou contemplativo e o

compositor dionisiacuteaco Para Schopenhauer ldquoo compositor manifesta a essecircncia mais

iacutentima do mundo expressa a sabedoria mais profunda numa linguagem natildeo

compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo magneacutetico fornece informaccedilotildees

sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito algumrdquo (MVR 342) Podemos

vislumbrar ainda nesta descriccedilatildeo de Schopenhauer uma caracteriacutestica do que Nietzsche

mais tarde iraacute chamar de criaccedilatildeo inconsciente Em uma segunda passagem desta vez ao

final do capiacutetulo 39 do segundo volume de MVR vemos tambeacutem uma caracteriacutestica que

posteriormente tambeacutem seraacute ressaltada por Nietzsche como demarcaccedilatildeo do caraacuteter

dionisiacuteaco Schopenhauer se utiliza de uma passagem dos Vedas para descrever o prazer

90

provocado pela muacutesica como um prazer de participaccedilatildeo no todo33

Este ecircxtase da

comunhatildeo eacute um aspecto reiteradamente apontado por Nietzsche O gecircnio dionisiacuteaco eacute

para o jovem filoacutesofo aquele que tambeacutem absorvido pelo impulso dionisiacuteaco traduz

sua essecircncia em linguagem musical O tipo de gecircnio musical descrito eacute encontrado em

Schopenhauer nas encarnaccedilotildees de Rossini e Beethoven cujas obras operiacutesticas satildeo

norteadas pela produccedilatildeo musical e o livreto ocupa um lugar secundaacuterio Nietzsche

aponta um renascimento progressivo do gecircnio musical em seu tempo que se inicia com

Bach e tem continuidade em Beethoven mas que encontra sua forma mais bem acabada

em Richard Wagner

Apesar da tomarem caminhos diferentes no que tange ao objetivo da obra de arte

traacutegica Nietzsche e Schopenhauer mais uma vez em uniacutessono consideram-na todavia

como uma forma de entendimento superior ao apresentado pelo pensamento cientiacutefico

Como vimos anteriormente as ciecircncias no sistema schopenhaueriano seguem o

princiacutepio de razatildeo seu papel eacute apenas descritivo e consequumlentemente limitado ao

acircmbito daquele princiacutepio Transformam em conceitos abstratos o mundo intuitivo ao

descrevecirc-lo em sua aparecircncia e seguem o fio condutor do principio de razatildeo

apresentando as causas para cada fenocircmeno particular Desta forma as ciecircncias estatildeo

subordinadas ao mundo da aparecircncia e no que importa agrave essecircncia natildeo podem

demonstraacute-la As uacutenicas produccedilotildees humanas com esta capacidade satildeo a arte e a

filosofia e essas o fazem de forma indireta metafoacuterica A consideraccedilatildeo racional do

mundo estaacute enquanto presa ao acircmbito do fenocircmeno subordinada aos ditames da

vontade Esta ldquovontade aacutevida sempre encontra um meio atraveacutes de uma ilusatildeo

distendida sobre as coisas de prender agrave vida as suas criaturas e de obrigaacute-las a

prosseguir vivendordquo (NT 108) Nietzsche descreve trecircs formas pelas quais a vontade

33

ldquoE o delicioso que eacute uma classe de alegria chama-se assim o sumo Atman porque onde haacute uma

alegria esta eacute uma pequena parte de sua alegriardquo (MVR II 510)

91

manteacutem a vida A primeira delas eacute o ldquoveacuteu da beleza da arterdquo sustentado pelo impulso

apoliacuteneo Encontramo-la na epopeacuteia homeacuterica e nas artes figurativas A segunda eacute a

visatildeo traacutegica do mundo que encontra um consolo metafiacutesico na percepccedilatildeo de um

substrato comum aos fenocircmenos e que por consequumlecircncia abdica destes em funccedilatildeo da

vivecircncia daquele substrato A terceira forma de dominaccedilatildeo da vontade eacute a ciecircncia a

loacutegica socraacutetica que procura abarcar o mundo com sua razatildeo de acircnsia justificadora

Estas trecircs formas de coerccedilatildeo conforme sua predominacircncia em determinada cultura

formam o que Nietzsche iraacute denominar respectivamente de culturas artiacutestica traacutegica e

socraacutetica Correspondem historicamente agraves fases predominantemente helecircnica budista

ou alexandrina Fazendo um diagnoacutestico da cultura contemporacircnea Nietzsche a

identifica como uma cultura predominantemente alexandrina Diagnostica o seu ocaso a

partir da identificaccedilatildeo feita por Kant e Schopenhauer dos limites da ciecircncia do

desmascaramento das verdades eternas que amparam a visatildeo socraacutetica de mundo quais

sejam a visatildeo de que o tempo o espaccedilo e a causalidade satildeo leis universais e

incondicionais Esta criacutetica ao racionalismo eacute constante na obra schopenhaueriana

Percebemo-la claramente em suas investidas contra a filosofia de seu tempo e a

presunccedilatildeo nela presente de racionalmente abarcar o real

- - - - - - - - - -

Compostas por conceitos da metafiacutesica schopenhaueriana a teoria da trageacutedia de

Schopenhauer e a de Nietzsche apontam para caminhos diversos Em Schopenhauer a

trageacutedia eacute a arte cujo fim uacuteltimo eacute ao expor seu lado terriacutevel inspirar o apreciador agrave sua

renuacutencia Este lado terriacutevel espelho do mundo presentificador da vida humana e de

suas relaccedilotildees ocasiona atraveacutes do medo e da compaixatildeo a vontade de renuacutencia a essa

92

mesma vida Nietzsche introduz na trageacutedia o elemento da muacutesica schopenhaueriana34

A consequumlecircncia desta introduccedilatildeo eacute um plano mais profundo de entendimento que

apresenta a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com sua essecircncia Neste estado de consciecircncia

apartado de sua individualidade o sujeito jaacute se vecirc como um criador de mundos e vecirc no

mundo uma obra de arte sua Ao derivar o impulso apoliacuteneo do dionisiacuteaco35

Nietzsche

jaacute executou a renuacutencia do indiviacuteduo que agora passa a se ver como essecircncia e ao mundo

como fenocircmeno artiacutestico

34

Machado (2006 200) considera na esteira de Clemeacutent Rosset e de Jean-Marie Schaeffer a utilizaccedilatildeo

da teoria da apreciaccedilatildeo musical de Schopenhauer por Nietzsche como o elemento que sugeriraacute a

caracteriacutestica de afirmaccedilatildeo da vontade de sua filosofia da trageacutedia 35

ldquoNo efeito conjunto da trageacutedia o dionisiacuteaco recupera a preponderacircncia ela se encerra com um tom

que jamais poderia soar a partir do reino da arte apoliacutenea E com isso o engano apoliacuteneo se mostra como o

que ele eacute como o veacuteu que enquanto dura a trageacutedia envolve o autecircntico efeito dionisiacuteaco o qual

todavia eacute tatildeo poderoso que ao final impele o proacuteprio drama apoliacuteneo a uma esfera onde ele comeccedila a

falar com sabedoria dionisiacuteaca e onde nega a si mesmo e agrave sua visibilidade apoliacuteneardquo (NT 129)

93

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2

Raul Moraes de Euclides

A filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia uma

anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzsche

Dissertaccedilatildeo apresentada ao programa de

Poacutes-graduaccedilatildeo em Esteacutetica e Filosofia da

Arte do Instituto de Filosofia Artes e

Cultura da Universidade Federal de Ouro

Preto como requisito parcial para obtenccedilatildeo

do tiacutetulo de Mestre em Filosofia

Aacuterea de concentraccedilatildeo Esteacutetica e Filosofia

da Arte

Orientador Prof Dr Heacutelio Lopes da Silva

Co-orientador Prof Dr Eduardo Soares

Neves Silva

OURO PRETO

2010

3

Catalogaccedilatildeo sisbinsisbinufopbr

E86f Euclides Raul Moraes de

A filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia [manuscrito]

uma anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzsche Raul

Moraes de Euclides - 2010

99f

Orientador Prof Dr Heacutelio Lopes da Silva

Co-orientador Prof Dr Eduardo Soares Neves Silva

Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto

Instituto de Filosofia Artes e Cultura

Aacuterea de concentraccedilatildeo Esteacutetica e Filosofia da Arte

1 Schopenhauer Arthur 1788-1860 - Teses 2 Nietzsche Friedrich

Wilhelm 1844-1900 - Teses 3 Trageacutedia - Teses I Universidade Federal

de Ouro Preto II Tiacutetulo

CDU 179221

4

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

INSTITUTO DE FILOSOFIA ARTES E CULTURA

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA

MESTRADO EM ESTEacuteTICA E FILOSOFIA DA ARTE

Dissertaccedilatildeo intitulada ldquoA filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia

uma anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzscherdquo de autoria do

mestrando Raul Moraes de Euclides apresentada agrave banca examinadora constituiacuteda pelos

seguintes professores

____________________________________________________

ProfDr Heacutelio Lopes da Silva - Orientador- UFOP

___________________________________________________

ProfDr Eduardo Soares Neves Silva ndash Co-orientador - UFMG

____________________________________________________

Prof Dr Douglas Garcia Alves Juacutenior - UFOP

____________________________________________________

Prof Dr Rogeacuterio Antocircnio Lopes - UFMG

Ouro Preto 24 de Marccedilo de 2010

5

Agrave minha famiacutelia

6

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente ajudaram na elaboraccedilatildeo deste

trabalho

Agrave minha esposa pelo amor paciecircncia e apoio

Ao corpo docente do curso de mestrado e em especial ao meu co-orientador

cujo incentivo foi essencial agrave continuaccedilatildeo da pesquisa

Ao meu orientador pelas observaccedilotildees valiosas

Aos colegas de mestrado companheiros indispensaacuteveis nas diaacuterias procissotildees de

embriaguez dionisiacuteaca pelas labiriacutenticas ladeiras de Ouro Preto

7

A existecircncia eacute um episoacutedio do nada

Arthur Schopenhauer

8

RESUMO

O projeto que aqui se apresenta tem como objetivo principal percorrer as

teorias do traacutegico schopenhaueriana e nietzscheana no intuito de apresentar as

principais caracteriacutesticas de cada uma destas teorias Este percurso teraacute como ponto de

partida o fundamento metafiacutesico comum a elas qual seja a filosofia schopenhaueriana

da vontade Atraveacutes desta exposiccedilatildeo pretendemos demonstrar natildeo somente a real

amplitude da influecircncia de Schopenhauer nos primeiros escritos de Nietzsche mas

tambeacutem algumas das peculiaridades existentes em cada uma das citadas teorias

Palavras-chave Schopenhauer - Nietzsche - Trageacutedia - Traacutegico - Filosofia da

vontade

ABSTRACT

The research presented herein has as its ultimate goal to discuss the

theories of the tragedy developed by Schopenhauer and Nietzsche highlighting the

main characteristics ndash points of convergence and divergence ndash of both Our trajectory

shall start from the metaphysical foundations apparently displayed in both theories

which is ndash the schopenhauerian philosophy of the will Throughout our exposition we

intend to show not only that Schopenhauers philosophy had a huge impact in

Nietzsches first writings but also reveal the peculiarities beneath the development of

their aforementioned theories

Keywords Schopenhauer - Nietzsche - Tragedy - Tragic ndash Philosophy of the will

9

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO11

1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES NA

FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA 17

2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU

SUBSTRATO METAFIacuteSICO42

21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo43

22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo45

23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana49

24 A finalidade moral da trageacutedia56

25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera62

3 A TEORIA DA TRAGEacuteDIA DO JOVEM NIETZSCHE65

31 A influecircncia de Schopenhauer na obra do primeiro Nietzsche66

32 O projeto subjacente ao nascimento da trageacutedia72

33 A teoria da trageacutedia publicada75

4 CONCLUSAtildeO pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo da

vida85

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS93

10

ABREVIATURAS

Obras de Schopenhauer

MVR = Mundo como vontade e como representaccedilatildeo (2005)

MVR II ndash Mundo como vontade e como representaccedilatildeo volume II (2005)

MB = Metafiacutesica do belo (2003)

SOE = Sobre o ofiacutecio de Escritor (2005)

QRPRS = De la cuadruple raiz del principio de razon suficiente (1981)

PP = Parerga e paralipomena (1974)

SFM = Sobre o fundamento da moral (2001)

SFU = Sobre a filosofia universitaacuteria (2001)

Obras de Nietzsche

NT = O nascimento da trageacutedia (1992)

VD = Visatildeo dionisiacuteaca do mundo (2005)

CORRESPONDEcircNCIA = Correspondecircncias de Nietzsche (2007)

OC = Obras completas de Nietzsche (1963)

11

INTRODUCcedilAtildeO

ldquoDias sem nuacutemero nunca reservam a

ningueacutem nada mais que dissabores mais

proacuteximos da dor que da alegria Quanto aos

prazeres natildeo os discernimos e nossa vista os

buscaraacute em vatildeo logo que para nossa

desventura chegamos ao limite prefixado E

desde entatildeo o nosso aliacutevio uacutenico seraacute aquele

que daraacute a todos o mesmo fim na hora de

chegar de suacutebito o destino procedente do

tenebroso reino onde natildeo haacute cantos nem

liras onde natildeo haacute danccedilas ndash ou seja a morte

epiacutelogo de tudo Melhor seria natildeo haver

nascido como segunda escolha bom seria

voltar logo depois de ver a luz agrave mesma

regiatildeo de onde se veiordquo

(Soacutefocles)

As teorias sobre a trageacutedia de Schopenhauer e Nietzsche satildeo parte

indispensaacutevel no estudo da histoacuteria da filosofia da trageacutedia Dentre os diversos

pensadores contemporacircneos que tratam sobre o problema da trageacutedia e do traacutegico e que

deram visiacutevel destaque agraves teorias dos nossos filoacutesofos podemos destacar Walter

Benjamin1 e Peter Szondi

2 Entretanto nos trabalhos destes autores o problema do

1 BENJAMIN Walter Origem do drama barroco alematildeo Traduccedilatildeo Sergio Paulo Rouanet Satildeo Paulo

Brasiliense 2004

12

relacionamento e da interdependecircncia entre as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche

natildeo eacute detalhado a contento Diante disto mesmo para um olhar historicamente

caracterizador torna-se vaacutelido um estudo comparado destas teorias que leve em

consideraccedilatildeo o quecirc ou o quanto haacute de comum em suas metafiacutesicas e a partir desta

perspectiva trace os aspectos coincidentes e dissidentes das mesmas mostrando seus

pontos de interdependecircncia e discrepacircncia muacutetua

Apesar de estar entre as teorias da trageacutedia mais estudadas do periacuteodo do

idealismo alematildeo a teoria Schopenhaueriana que eacute sempre analisada em relaccedilatildeo a seus

pressupostos metafiacutesicos ao ser vista sob outra perspectiva ganharia contornos

intensamente enriquecidos Esta perspectiva atraveacutes da qual nos propomos a examinar a

teoria do traacutegico do filoacutesofo eacute aquela que levaraacute em consideraccedilatildeo as influecircncias

histoacutericas culturais e filosoacuteficas que agiram diretamente sobre a esteacutetica do traacutegico

schopenhaueriana Ao lanccedilarmos um olhar sobre estas referidas influecircncias estaremos

abrindo caminho para uma melhor compreensatildeo sobre a teoria esteacutetica

schopenhaueriana o que conseguintemente refletiraacute em um juiacutezo mais adequado da

teoria nietzscheana

Para um entendimento mais eficiente das teorias propostas nas obras do

jovem Nietzsche parece-nos essencial o conhecimento de uma de suas mais decisivas

influecircncias a filosofia de Schopenhauer A analogia almejada erige-se na verdade

como meacutetodo de anaacutelise ou seja o que pretendemos eacute alcanccedilar uma maior compreensatildeo

dos problemas com os quais Nietzsche se deparou quando da elaboraccedilatildeo de sua primeira

obra e procurar identificar a existecircncia de alguma apropriaccedilatildeo eou adaptaccedilatildeo de alguns

conceitos da filosofia de Schopenhauer na resoluccedilatildeo destes problemas A necessidade

deste estudo comparativo torna-se ainda mais evidente quando e este eacute o caso

2 SZONDI Peter Ensaio sobre o Traacutegico Traduccedilatildeo Pedro Suumlssekind Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

13

defrontamo-nos com uma influecircncia que se apresenta tatildeo clara e assumidamente

admitida pelo autor Todavia natildeo se pretende aqui apenas a justaposiccedilatildeo de um

pensamento ao outro Apesar de ser identificaacutevel em toda a obra posterior de Nietzsche

encontra-se nos seus primeiros escritos sobretudo na obra O nascimento da trageacutedia

aquele momento discursivo no qual podemos apontar uma influecircncia mais direta da

filosofia de Schopenhauer

Dos trabalhos que fazem um estudo comparativo entre estes filoacutesofos a

maioria se ateacutem em identificar as diferenccedilas conceituais entre eles mais

especificamente no campo eacutetico e metafiacutesico Grosso modo tratam principalmente dos

problemas relativos agrave diferenciaccedilatildeo entre os conceitos de vontade nestes autores

vontade de viver e vontade de poder Estes estudos tecircm como foco a filosofia tardia de

Nietzsche onde este apesar da assumida influecircncia torna-se um criacutetico de

Schopenhauer A real extensatildeo da influecircncia deste filoacutesofo na primeira obra de

Nietzsche bem como o relacionamento entre suas teorias da trageacutedia permanecem

assim como territoacuterios ainda pouco explorados Ao lanccedilarmos olhar sobre esse

afastamento que Nietzsche mais tarde realizaraacute em relaccedilatildeo agrave filosofia

Schopenhaueriana verificamos mais uma vez a importacircncia do estudo de sua primeira

fase na qual poderemos detectar o referido afastamento

Podemos observar entretanto o crescimento do interesse no estudo da

obra O nascimento da trageacutedia de Nietzsche Nos uacuteltimos anos assistimos tambeacutem no

Brasil agrave publicaccedilatildeo de vaacuterios trabalhos que tecircm sob perspectiva a complexidade desse

seu primeiro livro Na bibliografia sugerida neste projeto constam publicaccedilotildees dos

seguintes autores Roberto Machado (2006) Rosa Maria Dias (2005 e 2009) Iracema

Macedo (2006) Marcio Joseacute Silveira Lima (2006) Estas publicaccedilotildees tratam temas

diversos da esteacutetica nietzscheana tais como a muacutesica a trageacutedia o traacutegico ou a

14

repercussatildeo do livro de Nietzsche e sua influecircncia wagneriana Podemos ver entretanto

naqueles e em outros trabalhos a constante chave de leitura que atribui a Schopenhauer

a influecircncia decisiva natildeo apenas sobre o jovem Nietzsche como usualmente se aponta

mas tambeacutem sobre um peculiar imbricamento entre metafiacutesica e esteacutetica o qual se

sustentaria sobre os ldquoimpulsos artiacutesticos da naturezardquo o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco Nos

termos de Dias (2005 27)

A oposiccedilatildeo apoliacutenea e dionisiacuteaca considerada no plano

metafiacutesico se daacute a partir da noccedilatildeo de vontade ou querer

estendida (sic) no sentido que a ela deu Schopenhauer de

ldquocentro e nuacutecleo do mundordquo ou ldquoforccedila que eternamente quer

deseja e aspirardquo () O mundo fenomecircnico como resultado

desse movimento do querer () faz um segundo movimento

dessa vez esteacutetico reproduzindo o movimento inicial que a

vontade realizou em direccedilatildeo agrave aparecircncia

Tendo em vista o fato de que as teorias sobre o traacutegico dos dois filoacutesofos tecircm como

ponto de partida o sistema metafiacutesico schopenhaueriano fica clara a necessidade de

analisar em cotejo estas teorias tendo como fio condutor o meacutetodo de investigaccedilatildeo ora

proposto

Aleacutem de um aprofundamento no problema da influecircncia de

Schopenhauer na obra esteacutetica de Nietzsche o estudo de suas teorias sobre o traacutegico nos

daraacute a oportunidade de identificar as peculiaridades de cada uma destas teorias bem

como de estabelecer a sua importacircncia histoacuterica para uma filosofia do traacutegico

Em um primeiro momento traccedilaremos um panorama histoacuterico que

objetiva entender o status quo da filosofia do traacutegico no periacuteodo anterior ao

desenvolvimento da teoria schopenhaueriana da trageacutedia Esta investigaccedilatildeo seraacute

norteada pelas referecircncias constantes na proacutepria obra de Schopenhauer bem como por

um levantamento biograacutefico do filoacutesofo ou seja trabalharemos somente os momentos

que satildeo fundamentais para uma melhor compreensatildeo da obra schopenhaueriana Dentre

15

estes momentos daremos ecircnfase aos seguintes pontos o estudo sobre o helenismo de

Winckelmann e sua repercussatildeo a criacutetica teatral de Lessing Schiller e Goethe seu

projeto de criaccedilatildeo de um teatro alematildeo e suas produccedilotildees dramaacuteticas

Traccedilado o panorama histoacuterico no qual se insere a teoria da trageacutedia

schopenhaueriana passaremos para o toacutepico seguinte a apresentaccedilatildeo do sistema

metafiacutesico de Schopenhauer no qual estaacute embasada a sua teoria da trageacutedia bem como

a teoria nietzscheana A apresentaccedilatildeo seraacute feita de forma a expor os aspectos gerais da

filosofia da vontade atendo-se aos pontos deste sistema que estatildeo intrinsecamente

relacionados agraves teorias da trageacutedia dos nossos autores

Apoacutes os passos descritos reuniremos em um esboccedilo geral as

caracteriacutesticas do relacionamento existente entre o jovem Nietzsche e a filosofia de

Schopenhauer Para tanto utilizaremo-nos das referecircncias que Nietzsche faz a

Schopenhauer em suas cartas e escritos de juventude Com esta pesquisa pretendemos

identificar a opiniatildeo que o jovem Nietzsche tinha sobre a filosofia de Schopenhauer e a

profundidade da influecircncia desta em sua primeira obra Percorreremos ainda o ambiente

circundante agrave primeira obra de Nietzsche no intuito de realccedilar alguns dos conceitos

formativos de O nascimento da trageacutedia

Estabelecida a ligaccedilatildeo entre os autores passaremos ao estudo do apoliacuteneo

e do dionisiacuteaco par conceitual que nos forneceraacute a chave para se fazer um estudo

comparativo entre os filoacutesofos Para cumprir esta etapa analisaremos O nascimento da

trageacutedia bem como escritos contemporacircneos a este livro atraveacutes dos quais poderemos

delinear melhor a significaccedilatildeo desta duplicidade de impulsos e visotildees de mundo

Delinearemos assim os contornos das definiccedilotildees fundamentais da esteacutetica nietzscheana

e procuraremos construir um paralelo entre o mundo dionisiacuteaco e o mundo metafiacutesico

da vontade schopenhaueriano Temos a intenccedilatildeo de demonstrar a origem desta

16

metafiacutesica da vontade ou seja o criticismo kantiano e sua importacircncia para o conceito

de dionisiacuteaco Demonstraremos tambeacutem as caracteriacutesticas do mundo fenomecircnico

schopenhaueriano em sua identidade com o apoliacuteneo nietzscheano retomando a

epistemologia de Schopenhauer

Realizada a aproximaccedilatildeo e expostas tanto as semelhanccedilas como as

particularidades dos conceitos principais dos dois autores percorreremos sempre

focando um estudo paralelo entre os filoacutesofos outros conceitos que encontram

similaridade em suas esteacuteticas Com esse intuito procuraremos identificar nos dois

filoacutesofos o destaque dado agrave muacutesica dentro de suas teorias e o lugar dado agraves outras artes

em suas obras Discorreremos sobre a criacutetica que eles em uniacutessono fazem ao que

nomeiam racionalismo dogmatismo e o otimismo Finalizadas as aproximaccedilotildees

voltaremos nossa atenccedilatildeo ao aspecto de dissensatildeo que propicia o afastamento

fundamental entre as teorias dos dois filoacutesofos o efeito da trageacutedia Com isto

demonstraremos que a base metafiacutesica comum quando alinhada a pressupostos

esteacuteticos distintos geraraacute a referida dissensatildeo

17

1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES

NA FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA

Por que minha filosofia natildeo encontrou

simpatia e interesse Porque a verdade natildeo

estaacute de acordo com a tagarelice dos tempos

(Schopenhauer)

Neste primeiro capiacutetulo objetivamos apresentar as fontes filosoacuteficas

incutidas no sistema schopenhaueriano no intuito de situar historicamente o surgimento

da filosofia da vontade e trazer agrave baila o seu ambiente circundante bem como as teorias

filosoacuteficas com as quais Schopenhauer se propotildee a dialogar Apontaremos inicialmente

as influecircncias filosoacuteficas assumidamente presentes no sistema schopenhaueriano bem

como aquelas que fundamentam sua metafiacutesica e consequumlentemente sua teoria esteacutetica

Em um segundo momento procuraremos fazer um breve esboccedilo do ambiente artiacutestico-

cultural que dominava o pensamento alematildeo de entatildeo com o qual direta ou

indiretamente Schopenhauer e o jovem Nietzsche se depararam Com isto esperamos

posteriormente demarcar as singularidades que caracterizam as teorias destes filoacutesofos

Ressaltamos todavia que natildeo se trata de um mapeamento completo das fontes que

influenciaram esses autores ndash tarefa que exigiria um esforccedilo bem maior do que aquele

18

proposto por esta pesquisa ndash e sim de um breve panorama que se pautaraacute nas influecircncias

marcantemente presentes em suas obras

No contato com a obra de Schopenhauer a primeira impressatildeo que natildeo

passa despercebida aos seus leitores eacute a qualidade de sua prosa3 Tal qualidade

revelada na diversidade de recursos literaacuterios utilizados pelo autor eacute produto da visiacutevel

erudiccedilatildeo cultivada pelo filoacutesofo Conhecedor do grego do latim e suas respectivas

literaturas Schopenhauer transitava ainda pela obras literaacuterias cientiacuteficas e filosoacuteficas

contemporacircneas em suas liacutenguas originais conhecia o inglecircs o italiano o francecircs e o

espanhol Em sua juventude conviveu com vaacuterias personalidades do meio cultural

germacircnico que frequumlentavam o salatildeo de sua matildee em Weimar dentre eles Goethe a

maior figura das letras germacircnicas com quem teve um relacionamento mais proacuteximo

Sua obra eacute repleta de citaccedilotildees de poetas dramaturgos e seu conhecimento das artes

plaacutesticas e da muacutesica natildeo satildeo superficiais Em suas viagens pela Europa pocircde admirar

diversas esculturas e pinturas e como ele proacuteprio dizia pocircde ler diretamente no ldquolivro

do mundordquo Essa erudiccedilatildeo pode ser notada mesmo diante do desconhecimento de sua

biografia pela observaccedilatildeo da enorme quantidade de citaccedilotildees e menccedilotildees que estatildeo

espalhadas no interior de suas obras traduzidas ou como em sua maior parte citadas

em suas respectivas liacutenguas Frequumlentava as mais diversas aacutereas de conhecimento de sua

eacutepoca como sustenta Aramayo

3 O cuidado com a qualidade da produccedilatildeo literaacuteria tanto no que se refere agrave clareza quanto agrave riqueza de

recursos linguumliacutesticos eacute uma das caracteriacutesticas que Schopenhauer e Nietzsche tecircm em comum Esta

qualidade torna-se mais evidente ainda quando seus trabalhos satildeo natildeo raramente comparados com os

escritos filosoacuteficos alematildees daquele periacuteodo principalmente aos de Fichte Schelling e Hegel O elogio agrave

prosa schopenhaueriana feito por literatos e filoacutesofos contemporacircneos influenciados por sua obra pode

ser ilustrado agrave exaustatildeo entre eles encontram-se Thomas Mann Goethe Wittgenstein e o proacuteprio

Nietzsche ldquoMas a imensa forccedila de penetraccedilatildeo deste pensamento explica-se antes de tudo pelo fato de o

autor ser ao lado de Nietzsche o maior entre os escritores filosoacuteficos alematildeesrdquo (Rosenfeld 1996 177)

Jorge Luis Borges em uma entrevista publicada por Die Welt em 25 de marccedilo de 1975 realizava esta

confissatildeo ltPara mim existe um escritor alematildeo ao qual prefiro Schopenhauer Sei que deveria dizer

Goethe poreacutem Schopenhauer me interessa muitiacutessimo mais Tanto que estudei alematildeo ndash que aprendi

sobre os versos de Heine ndash fundamental e especificamente para poder ler a Schopenhauer em sua proacutepria

liacutenguagt (Aramayo 2001 18)

19

ldquoEm sua busca pela verdade Schopenhauer natildeo desdenha

nenhum aliado Os dramaturgos novelistas e poetas estatildeo quando

menos em peacute de igualdade com os mais egreacutegios filoacutesofos A perspicaacutecia

de Shakespeare ou a genialidade de Voltaire e a sutileza de Goethe nada

devem para a eloquumlecircncia Platocircnica a precisatildeo de um Spinoza e o rigor

conceitual do admirado Kant Sua curiosidade natildeo conhece limites nem

prejuiacutezo algum e por esta razatildeo tampouco menospreza quando o

considera oportuno prestar suficiente atenccedilatildeo aos fenocircmenos

paranormais agrave hipnose ou ao caacutelculo cabaliacutestico se entende que em

algo isto pode servir-lhe para demonstrar sua tese ou avaliar algumas de

suas intuiccedilotildees E na mesma direccedilatildeo aponta seu grande empenho por

incorporar o pensamento das religiotildees orientais a nosso acervo cultural

na possibilidade de um enriquecimento muacutetuordquo (Aramayo 2001 14-15)

A comparaccedilatildeo feita atraveacutes de metaacuteforas4 paraacutebolas ou alegorias em

sua maioria retiradas de obras literaacuterias ou cientiacuteficas torna-se recurso literaacuterio

constantemente presente na obra do filoacutesofo e ao mesmo tempo termocircmetro de suas

influecircncias e de seu relacionamento com o pensamento de seus contemporacircneos Tais

recursos satildeo utilizados contudo com o objetivo consciente de construir conhecimento

de ilustrar a mateacuteria do seu pensamento Nas palavras do filoacutesofo ldquoAs comparaccedilotildees satildeo

de grande valor na medida em que reduzem uma relaccedilatildeo desconhecida a uma

conhecida Inclusive as comparaccedilotildees mais detalhadas transformadas em paraacutebola ou

alegoria satildeo somente a reduccedilatildeo de uma relaccedilatildeo qualquer agrave sua exposiccedilatildeo mais

simples ilustrativa e palpaacutevelrdquo (Schopenhauer SOE 86) Se o nosso objetivo eacute mostrar

as raiacutezes da filosofia de Schopenhauer ou seja as influecircncias que formaram a mateacuteria

de seu pensamento eacute sobre esta mateacuteria que devemos nos debruccedilar Natildeo podemos

contudo nos furtar a apontar a riqueza das fontes formalmente presentes em seus

escritos5 A percepccedilatildeo da presenccedila desta numerosa miscelacircnea de referecircncias dentro da

4 ldquoSua profusa e brilhante utilizaccedilatildeo das metaacuteforas eacute o que o converte sem duacutevida alguma em um grande

escritor cujo estilo se nos afigura tatildeo ameno quanto sugestivordquo (Aramayo 2001 54) 5 Mateacuteria e forma satildeo na concepccedilatildeo do filoacutesofo planos ou instacircncias da produccedilatildeo escrita que servem

como referecircncia para o julgamento de valor do pensamento de um autor ldquo Um livro nunca pode ser mais

do que a impressatildeo dos pensamentos do autor O valor desses pensamentos reside na mateacuteria ou seja

naquilo sobre o que ele pensou ou na forma isto eacute na elaboraccedilatildeo da mateacuteria naquilo que pensou a

respeitordquo (Schopenhauer SOE 11) A importacircncia dada agrave forma por Schopenhauer seraacute melhor

esclarecida quando posteriormente apresentarmos a caracteriacutestica fundamentalmente epistemoloacutegica de

toda produccedilatildeo artiacutestica dentro de sua metafiacutesica do belo

20

obra schopenhaueriana diz-nos algo sobre seu estilo e seu arcabouccedilo cultural

entretanto quando voltamo-nos para a busca das influecircncias diretamente presentes em

seu sistema ie agraves raiacutezes da mateacuteria de seu pensamento percebemos que elas natildeo satildeo

tatildeo numerosas

Uma leitura das fontes filosoacuteficas do sistema schopenhaueriano torna-se

diferentemente do que ocorre em outros sistemas de seu tempo menos trabalhosa por

dois motivos Primeiramente o autor natildeo esconde suas influecircncias mas ao contraacuterio

faz questatildeo de apontaacute-las citaacute-las e quando lhe parece necessaacuterio as critica ou exalta

Em segundo lugar o que facilita o mapeamento destas fontes eacute a caracteriacutestica de

unidade do sistema schopenhaueriano como um todo Apesar da longevidade do

filoacutesofo e da distacircncia temporal entre suas obras suas intuiccedilotildees fundamentais

continuaram sendo as mesmas ao longo de sua vida Nas palavras de Rosset

ldquoSchopenhauer eacute homem de um soacute livro o MVR e de um soacute pensamento (qualificado

por ele mesmo de ltpensamento uacutenicogt nas primeiras linhas de sua obra)rdquo (2005 35)6

Natildeo satildeo poreacutem coetacircneas as influecircncias que marcaram a obra do filoacutesofo

como talvez a constante menccedilatildeo a seus contemporacircneos possa sugerir Nas palavras do

filoacutesofo como citado por Lefranc (2005 17) ldquoPude amar prosseguir aperfeiccediloar a

minha obra soacute por ela mesma em tranquumlilidade completa ao abrigo de toda influecircncia

externa e meus contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes

permaneci estranhosrdquo Conhecia a filosofia de seu tempo todavia natildeo a tinha como

interlocutora na verdade a desdenhava satildeo famosas as criacuteticas de Schopenhauer contra

as filosofias de seus contemporacircneos principalmente as de Fichte Schelling e Hegel

6 Sobre a unidade da produccedilatildeo schopenhaueriana destacamos aleacutem de Rosset os apontamentos de outros

dois de seus maiores comentadores Arthur Huumlbscher e Alexis Philonenko Na introduccedilatildeo aos manuscritos

schopenhauerianos Huumlbscher aponta a importacircncia dos manuscritos na percepccedilatildeo desta unidade uma vez

que podemos notar em diversas fases da vida do filoacutesofo o desenvolvimento dos temas pontuais que

marcaram sua obra principal Vide Hubscher Introduction Manuscript Remains 1985 Alexis

Philonenko trata desta unidade no proacutelogo de sua obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia

(Philonenko 1989 41-45)

21

(chamados de ldquoos trecircs sofistasrdquo) Quando faz referecircncias a eles comumente estaacute

imbuiacutedo de trecircs propoacutesitos criticar a qualidade formal de suas produccedilotildees

principalmente no que tange ao uso da liacutengua germacircnica apontar uma motivaccedilatildeo

individualista (subsistecircncia pessoal e status social) que existiria por traacutes de suas

elucubraccedilotildees filosoacuteficas e ressaltar a falta de atenccedilatildeo por parte daqueles filoacutesofos no

que se refere ao conteuacutedo da primeira criacutetica kantiana

Schopenhauer diagnosticava em seu tempo um periacuteodo de

empobrecimento da expressatildeo literaacuteria e do uso da liacutengua germacircnica e apontava como

os principais responsaacuteveis por estes acontecimentos os ldquoprofessores de filosofiardquo e seus

disciacutepulos As investidas schopenhauerianas contra a filosofia de seus contemporacircneos

podem ser encontrada em praticamente todas as suas obras mas estatildeo concentradas de

forma mais persistente em sua produccedilatildeo mais tardia na segunda ediccedilatildeo da QRPRS de

MVR em seus ensaios sobre a liberdade e o fundamento da moral e nos PP 7

Nesta

uacuteltima obra temos dedicados a estas criacuteticas alguns textos que podemos destacar Sobre

o ofiacutecio de escritor Da leitura e dos livros Da liacutengua e das palavras e Sobre a filosofia

universitaacuteria A liacutengua alematilde no que se refere agrave sua capacidade expressiva era tida em

mais alta consideraccedilatildeo por nosso filoacutesofo Afirmava que dentre as liacutenguas modernas

era ldquoa uacutenica na qual se pode escrever quase tatildeo bem quanto em grego ou em latimrdquo

(Schopenhauer SOE 72) Esta capacidade de expressatildeo de uma liacutengua eacute segundo o

filoacutesofo resultado de sua aptidatildeo em representar conceitos Desta forma na medida em

que surgem novos conceitos a elaboraccedilatildeo de novas palavras que os representem eacute um

sinal de evoluccedilatildeo adequaccedilatildeo e riqueza da liacutengua Entretanto para o filoacutesofo os

neologismos e adaptaccedilotildees criados por seus contemporacircneos natildeo eram resultados da

7 Muitos historiadores da filosofia bioacutegrafos e comentadores apontam que esta criacutetica adveacutem do

ressentimento pelo fracasso de Schopenhauer como docente na universidade de Berlim onde Hegel

reinava absoluto bem como da falta de reconhecimento de sua filosofia diante do sucesso dos professores

da mesma universidade

22

tentativa de representaccedilatildeo de novos conceitos mas ao contraacuterio eram comprovaccedilatildeo de

sua ldquopobreza de espiacuterito que a todo custo quer colocar algo no mercado e por natildeo ter

novos pensamentos chega com palavras novasrdquo (Schopenhauer SOE 129)

Schopenhauer condenava a atitude de seus contemporacircneos de utilizarem-se de

artifiacutecios como a natildeo designaccedilatildeo do caso a expressatildeo dos preteacuteritos por meio do

imperfeito a supressatildeo dos prefixos e outros subterfuacutegios para com isso disfarccedilar a sua

imprecisatildeo conceitual De acordo com Schopenhauer tratavam displicentemente a

liacutengua alematilde por dois motivos por natildeo possuiacuterem uma mateacuteria conceitualmente

relevante a ser expressa ou entatildeo para conscientemente causar a impressatildeo de que a

possuem e neste caso a responsabilidade pela natildeo compreensatildeo do texto seria atribuiacuteda

agrave incompetecircncia intelectual do leitor

Os que compotildeem discursos difiacuteceis obscuros enleados e

ambiacuteguos natildeo sabem ao certo o que querem dizer tecircm somente uma

consciecircncia vaga a esse respeito que luta primeiro por uma ideacuteia poreacutem

amiuacutede querem tambeacutem ocultar de si mesmos e dos outros que na

realidade eles natildeo tecircm nada a dizer Como Fichte Schelling e Hegel

querem parecer saber o que natildeo sabem pensar o que natildeo pensam e dizer

o que natildeo dizem Algueacutem que tenha algo correto a dizer se esforccedilaraacute por

exprimi-lo de maneira indistinta ou distinta (Schopenhauer SOE 39)

Podemos perceber entatildeo que ao criticar o estilo ldquoobscurordquo e ldquopomposordquo de seus

contemporacircneos Schopenhauer aponta como causa deste estilo natildeo somente a sua falta

de mateacuteria mas tambeacutem uma atitude consciente e arquitetadamente maldosa e com

toda a sua forccedila retoacuterica condena esta atitude

Nobre bdquoatualidade‟ magniacuteficos epiacutegonos geraccedilatildeo crescida no

leite materno da filosofia hegeliana Pela gloacuteria eterna quereis apertar

vossas garras em nossa antiga liacutengua para que a marca com um icnoacutelito

conserve para sempre o vestiacutegio de vossa existecircncia insiacutepida e sombria

Mas Dicirc Meliora Fora paquidermes fora Esta eacute a liacutengua alematilde Nela se

expressaram homens ou melhor nela cantaram grandes poetas e grandes

pensadores escreveram Arredai as patas Ou natildeo tereis o que comer (Soacute

isso os assusta) (Schopenhauer SOE 72-73)

23

A uacuteltima frase desta citaccedilatildeo nos eacute aclarada pelo texto Sobre a filosofia universitaacuteria

onde o filoacutesofo expotildee os argumentos de sua criacutetica agrave filosofia produzida em seu tempo

Para Schopenhauer os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo podem devido agrave sua funccedilatildeo

estatal se imiscuir do compromisso poliacutetico-religioso que seu cargo exige e

conseguintemente sustentados pelo Estado tratam de fazer sua apoteose Nas palavras

de Cacciola constantes na introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo brasileira do referido texto

ldquoSchopenhauer eacute um continuador da criacutetica romacircntica ao filisteiacutesmo que se origina em

Tieck A ironia que visa os homens de vida tatildeo regular como o reloacutegio lhe eacute bem

familiar O filisteu eacute o erudito pedante que soacute pensa na proacutepria vantagem O professor

de filosofia que pauta seus ensinamentos de acordo com os ditames do Estado e da

religiatildeo eacute o tipo acabado do filisteu A idolatria do Estado eacute a apoteose do filisteiacutesmo

(Schopenhauer SFU XXX) Por traacutes das ideacuteias dos ldquofiloacutesofos de profissatildeordquo estaria

incutido o retorno disfarccedilado da ldquoteologia judaicardquo de uma ldquopsicologia racionalrdquo da

ldquoliberdade da vontaderdquo e outros dogmas que de acordo com Schopenhauer refletem a

sua vocaccedilatildeo de trabalharem ldquoin maiorem Dei gloriamrdquo como exigido pela ideologia

estatal daquele periacuteodo Natildeo podem sob a pena de perderem o sustento financeiro

pessoal e familiar bem como sob o custo de perderem o status que o cargo lhes confere

contrariar os dogmas patronais

ldquo[] o intelecto dessa gente permanece fiel agrave sua destinaccedilatildeo

natural de trabalhar a serviccedilo da vontade como normalmente acontece

Mas por isso mesmo existe sempre uma intenccedilatildeo como fundamento do

seu agir e pensar eles tecircm fins o tempo todo e soacute tomam conhecimento

do que diz respeito a esses fins e portanto soacute do que corresponde a

esses fins A atividade do intelecto liberto da vontade condiccedilatildeo da pura

objetividade e por isso de todas as grandes realizaccedilotildees permanece-lhes

eternamente estranha ndash eacute uma faacutebula para seu coraccedilatildeordquo (Schopenhauer

SFU 63)

Desta forma os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo estariam voltados para a investigaccedilatildeo

objetiva da ldquoverdaderdquo a qual exigiria o distanciamento de todo e qualquer interesse

24

pessoal De acordo com o sistema schopenhaueriano tal distanciamento eacute um dom raro

com o qual a natureza a poucos contempla Na metafiacutesica schopenhaueriana a natureza

eacute aristocraacutetica O gecircnio eacute fenocircmeno raro seja ele filoacutesofo ou artista A percepccedilatildeo

objetiva do mundo alheia aos interesses pessoais da vontade individual eacute uma exceccedilatildeo

que soacute se manifesta raramente e as pessoas atadas aos interesses pessoais de sua

vontade natildeo podem reconhececirc-lo imediatamente Estes gecircnios produzidos pela natureza

seriam os verdadeiros educadores do mundo e os ldquoprofessores de filosofiardquo ao tentar

representar este papel que soacute agrave natureza cabe eleger causam-lhe repulsa

Tantas mentes comuns que se acham por cargo e profissatildeo no

dever de representar papeacuteis que a natureza nem ao menos lhes atribuiacutera e

de transportar cargas que exigem ombros de gigantes espirituais

oferecem na realidade um espetaacuteculo deveras lamentaacutevel Pois escutar

cantar os roucos e ver danccedilar os coxos eacute penoso mas ouvir filosofar a

mente limitada eacute insuportaacutevel (Schopenhauer SFU 34)

Prova do embotamento da capacidade de reconhecimento de uma produccedilatildeo genial era

para o filoacutesofo o fato de seus contemporacircneos ignorarem ou mesmo passarem agrave

margem do que seria a mais importante produccedilatildeo filosoacutefica do periacuteodo a cisatildeo entre o

real e o ideal perpetrada pela primeira criacutetica kantiana Esta era para o filoacutesofo a maior

prova do demeacuterito filosoacutefico de seus contemporacircneos preocupados com seus interesse

pessoais alheios a uma observaccedilatildeo objetiva do mundo natildeo levaram em consideraccedilatildeo os

limites impostos pela primeira criacutetica kantiana a toda investigaccedilatildeo racional

Depois de Kant ter cortado o nervo de todas as provas possiacuteveis

da teologia ndash tatildeo incisivamente que desde entatildeo ningueacutem mais pocircde

meter-se com elas ndash o esforccedilo filosoacutefico em quase cinquumlenta anos tem

consistido nas diversas tentativas de insinuar sutil e astuciosamente a

teologia e os escritos filosoacuteficos nada mais satildeo na sua maioria do que

tentativas infrutiacuteferas de reanimar um cadaacutever sem vida (Schopenhauer

SFU 81)

Natildeo nos interessa aqui adentrarmo-nos aos reais motivos existentes por

traacutes dos vitupeacuterios schopenhauerianos contra os pensadores de seu tempo nem

25

tampouco fazer juiacutezo valorativo sobre a importacircncia da filosofia da vontade em

comparaccedilatildeo ao idealismo absoluto Dentro do objetivo proposto qual seja situar

historicamente a filosofia da vontade e apontar suas influecircncias o importante eacute ressaltar

que a filosofia contemporacircnea a Schopenhauer natildeo fez efeito sobre a sua proacutepria a ponto

de modificaacute-la em seu conteuacutedo conforme esclarece o proacuteprio filoacutesofo ldquo [] meus

contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes permaneci

estranhosrdquo (apud Lefranc 2005 17) Eacute fundamental verificarmos que apesar do

sistema schopenhaueriano ter se desenvolvido agrave margem do idealismo de entatildeo seu

autor natildeo o desconhecia e muitas das ilustraccedilotildees e argumentaccedilotildees utilizadas por ele na

explicaccedilatildeo de suas teorias apoiavam-se nesta sua contenda com o seu tempo

Entretanto como a filosofia de seu tempo pretende-se herdeira do kantismo assim

tambeacutem procede Schopenhauer e a suas criacuteticas ao idealismo absoluto estatildeo

fundamentadas em sua pretensatildeo a uma heranccedila direta da filosofia kantiana Sobre a

heranccedila de Kant Schopenhauer esclarece ldquoEm todo caso natildeo reconheccedilo que tenha

acontecido algo na filosofia entre ele e mim por conseguinte ligo-me imediatamente a

elerdquo (Schopenhauer MVR 525)

Natildeo obstante as diversas criacuteticas ao retorno kantiano ao dogmatismo8

das quais a obra de Schopenhauer estaacute recheada sua admiraccedilatildeo por ele foi tambeacutem

abundantemente expressa Considerava-o ldquoa inteligecircncia mais original jaacute criada pela

naturezardquo (Schopenhauer SFU52) e afirmava que seus escritos capitais eram o ldquo[]

fenocircmeno mais importante que ocorreu ao longo dos uacuteltimos dois mil anos na filosofia

[]rdquo (Schopenhauer MVR 22) O maior reflexo desta admiraccedilatildeo pode ser observada

8 Nas palavras de Cacciola ldquoO criticismo de Kant teria segundo Schopenhauer perdido sua forccedila inicial

na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura Ou seja Schopenhauer acusa Kant de uma ldquorecaiacuteda no

dogmatismordquo por ter amenizado seu confronto com a teologia A ameaccedila dogmaacutetica jaacute configurada na

filosofia teoacuterica concretiza-se na Eacutetica de Kant quando esta acolhe como postulados Deus

imortalidade da alma e liberdade No poacutes-kantismo a importacircncia crescente atribuiacuteda agrave filosofia praacutetica

de Kant a expensas de sua criacutetica do conhecimento teria levado a uma espeacutecie de contaminaccedilatildeo da

razatildeo teoacuterica pela razatildeo praacutetica fazendo com que a primeira se transformasse num oacutergatildeo apto para

captar o Absolutordquo (Cacciola 1994 20)

26

no fato de que eacute da filosofia kantiana que Schopenhauer retira o leitmotiv para o

desenvolvimento da ideacuteia central9 de sua filosofia Esta ideacuteia central eacute aquela contida

concisamente no tiacutetulo de sua obra principal O mundo como vontade e como

representaccedilatildeo10

A dualidade formada entre representaccedilatildeo e vontade atraveacutes da qual

Schopenhauer acredita ter desvendado o ldquomisteacuteriordquo cosmoloacutegico eacute uma apropriaccedilatildeo

assumida dos conceitos kantianos de fenocircmeno e coisa-em-si respectivamente

Dizemos apropriaccedilatildeo pois aqueles conceitos satildeo acrescidos na filosofia

schopenhaueriana de caracteriacutesticas singulares Eacute com base nesta dualidade de

perspectivas de conhecimento do mundo inspirada na primeira criacutetica kantiana que o

filoacutesofo desenvolve as demais teorias que compotildeem seu sistema sejam elas a esteacutetica a

eacutetica a poliacutetica etc

Para Schopenhauer ldquoo maior meacuterito de Kant eacute a distinccedilatildeo entre

fenocircmeno e coisa-em-sirdquo (Schopenhauer MVR 526) Esta distinccedilatildeo foi o que

possibilitou a ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo realizada sobre o dogmatismo anterior A partir

daquele momento ldquoo mundo objetivo como o conhecemos natildeo pertence agrave essecircncia das

coisas em si mesmas mas eacute seu mero FENOcircMENO condicionado exatamente por

aquelas mesmas formas que se encontram a priori no intelecto

humanordquo(Schopenhauer MVR 530) Na teoria kantiana temos o espaccedilo e o tempo

como formas da sensibilidade que na filosofia de Schopenhauer satildeo associadas agrave

faculdade do entendimento juntamente com a causalidade uacutenica das doze categorias

kantianas do entendimento mantidas por Schopenhauer em seu sistema Desta forma o

mundo enquanto representaccedilatildeo eacute aquele que se apresenta para o sujeito enquanto objeto

9 Quando dizemos ideacuteia central havemos de lembrar que no sistema schopenhaueriano esta categorizaccedilatildeo

eacute singular (o tema seraacute tratado no iniacutecio do proacuteximo capiacutetulo) 10

A importacircncia que o filoacutesofo daacute ao tiacutetulo de uma obra eacute esclarecedora para a compreensatildeo da

importacircncia de sua ideacuteia central ldquoo que o sobrescrito deve ser para uma carta eacute o que um tiacutetulo deve ser

para um livro ou seja antes de tudo deve ter o objetivo de destinaacute-lo agrave parte do puacuteblico que pode se

interessar por seu conteuacutedo Sendo assim o tiacutetulo precisa ser caracteriacutestico e por ser naturalmente

breve deve ser conciso lacocircnico pregnante e se possiacutevel um monograma do conteuacutedordquo

(Schopenhauer SOE 09-10)

27

condicionado por estas trecircs formas presentes a priori no intelecto humano tempo

espaccedilo e causalidade Quanto ao mundo noumecircnico que dentro da teoria kantiana eacute um

ldquox desconhecidordquo Schopenhauer o explica atraveacutes da Vontade sua traduccedilatildeo da coisa-

em-si Essa dualidade que traz agrave tona a ldquocompleta diversidade entre o ideal e o realrdquo

(Schopenhauer MVR 527) doutrina que de acordo com Schopenhauer (MVR 528) foi

expressa por Kant de forma soacutebria calma demonstrada e incontestaacutevel jaacute havia sido

expressa tambeacutem em linguagem mais miacutetica e poeacutetica por outras duas doutrinas que

tambeacutem estatildeo profundamente presentes na obra Schopenhaueriana Platatildeo e os escritos

indianos dos Vedas e Puranas

Os estudos das obras de Platatildeo e Kant foram recomendaccedilatildeo de Schultze

um dos professores de Schopenhauer em Gottingen (Weissmann 1980 54) e formam os

pilares filosoacuteficos do sistema schopenhaueriano A separaccedilatildeo entre o real e o ideal

executada por Kant eacute vista tambeacutem na obra platocircnica Sua teoria das ideacuteias bem como

sua alegoria da caverna satildeo expressotildees de uma intuiccedilatildeo da existecircncia daquela separaccedilatildeo

O que Kant teria sistematizado a seu modo eacute a mesma verdade que ldquojaacute Platatildeo

incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte

modo este mundo que aparece aos sentidos natildeo possui nenhum verdadeiro ser mas

apenas um incessante devir ele eacute e tambeacutem natildeo eacute sua apreensatildeo natildeo eacute tanto um

conhecimento mas uma ilusatildeordquo (Schopenhauer MVR 528)

Aleacutem de Platatildeo os livros sagrados dos indianos afirmavam esta ldquoilusatildeordquo

ldquofantasmagoriardquo do mundo e constituem tambeacutem uma fonte frequumlentemente utilizada

por Schopenhauer O contato do nosso filoacutesofo com o pensamento oriental se deu

quando do seu encontro com o orientalista Friedrich Majer no salatildeo de sua matildee em

28

Weimar A partir de entatildeo o interesse do filoacutesofo pelo pensamento oriental foi se

intensificando ao longo de sua vida 11

A mesma verdade representada de modo completamente outro eacute

tambeacutem uma doutrina capital dos vedas e puranas a saber a doutrina de

Maia pela qual natildeo se entende outra coisa senatildeo aquilo que Kant nomeia

o fenocircmeno em oposiccedilatildeo agrave coisa-em-si pois a obra de maia eacute

apresentada justamente como este mundo visiacutevel no qual estamos um

efeito maacutegico que aparece na existecircncia uma aparecircncia inconstante e

inessencial em si destituiacuteda de ser comparaacutevel agrave ilusatildeo de oacutetica e ao

sonho um veacuteu que envolve a consciecircncia humana um algo do qual eacute

igualmente falso e igualmente verdadeiro dizer que eacute ou natildeo eacute

(Schopenhauer MVR 528)

Estas trecircs doutrinas estavam admitidamente presentes quando da

elaboraccedilatildeo do nuacutecleo conceitual fundamental da posteriormente nominada Filosofia da

Vontade Entretanto aleacutem de formarem seu nuacutecleo conceitual podemos encontraacute-las

ainda posteriormente em outros instantes desta filosofia O pensamento oriental seraacute

figura fortemente presente na eacutetica schopenhaueriana desenvolvida no quarto livro do

Mundo onde o filoacutesofo adotaraacute como fundamento de sua eacutetica o sentimento da

compaixatildeo jaacute presente na doutrina budista Platatildeo e Kant satildeo ainda influecircncias

fundamentais como veremos no proacuteximo capiacutetulo da esteacutetica schopenhaueriana O

primeiro novamente atraveacutes de sua teoria das ideacuteias seraacute utilizado por Schopenhauer na

definiccedilatildeo do objeto artiacutestico Do segundo poderemos notar sua influecircncia nas teorias

schopenhauerianas do sublime da imaginaccedilatildeo e da contemplaccedilatildeo desinteressada todas

elas fundamentais agrave compreensatildeo da teoria da arte poeacutetica

- - - - - - - - - -

11

Suas fontes principais eram o Oupnekacutehat uma traduccedilatildeo latina dos vedas e o Asiatic Journals jornal

publicado pela sociedade asiaacutetica fundada em 1784 Para uma referecircncia completa das citaccedilotildees orientais

na obra de Schopenhauer veja o apecircndice do artigo de Moira Nicholls The influences of Eastern Thought

on Schopenhaueracutes Doctrine of the Thing-in-itself (in Janaway 1999 197-204)

29

Apresentadas as principais influecircncias teoacutericas do sistema

schopenhaueriano passemos a uma breve descriccedilatildeo do ambiente cultural que naquele

momento tinha como foco um projeto de fundaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para o teatro e a

literatura germacircnicas Tal projeto envolveu os mais importantes dramaturgos criacuteticos

escritores e pensadores do periacuteodo imediatamente anterior a Schopenhauer12

e eacute

tambeacutem posteriormente retomado por Nietzsche em seu Nascimento da Trageacutedia Sua

importacircncia para a filosofia da vontade pode ser medida pela recorrente referecircncia feita

a estes pensadores nas obras dos filoacutesofos Seu iniacutecio em meados do seacuteculo XVIII deu-

se pela influecircncia exercida pelo historiador da arte Johann J Winckelmann junto aos

escritores poetas e dramaturgos posteriores dentre eles Lessing Goethe e Schiller

A influecircncia winckelmanniana que de acordo com Butler (1958 11)

criou ondas cujo violento distuacuterbio ldquoainda varrem as praias do seacuteculo XXrdquo se pautou

em duas noccedilotildees fundamentais13

a imitaccedilatildeo dos antigos e o belo ideal Winckelmann

propunha um novo modelo no qual a arte germacircnica deveria se basear para atingir uma

grandiosidade rara e ldquoinimitaacutevelrdquo a imitaccedilatildeo dos gregos Por esta imitaccedilatildeo o

historiador natildeo propunha uma mera coacutepia das obras de arte gregas poreacutem uma imitaccedilatildeo

do modo de produccedilatildeo artiacutestica dos gregos qual seja sintetizar a beleza ideal descoberta

na observaccedilatildeo da diversidade objetiva da natureza Esta proposta de um retorno ao

modelo antigo coloca Winckelmann na esteira da conhecida querela entre antigos e

modernos e eacute a igniccedilatildeo para o periacuteodo literaacuterio conhecido como classicismo germacircnico

Esta disputa quanto agrave valorizaccedilatildeo das obras poeacuteticas antigas ou modernas estaraacute de um

modo ou de outro presente nas teorias schopenhaueriana e nietzscheana da trageacutedia

12

De acordo com Schopenhauer as obras de tais poetas e escritores assim como a filosofia de Kant satildeo

exemplos para os quais a literatura e a filosofia pobres de seu tempo deveriam se voltar No que se refere

ao uso da liacutengua ele aconselha ldquoLede vede qual liacutengua Winckelmann Lessing Klopstock Wieland

Goethe Buumlrger Schiller falaram e emulai-a mas natildeo fazei o mesmo com o jargatildeo estupidamente

excogitado pelos miseraacuteveis literatos atuais e entre eles pelos professores que vatildeo agrave escola de liacutenguardquo

(Schopenhauer SOE 57-58) 13

Esta duas noccedilotildees fundamentais satildeo ressaltadas por Suumlssekind e Machado em seus trabalhos sobre o

tema Veja Suumlssekind 2008 67-77 e Machado 2006 9-14

30

Como veremos posteriormente Schopenhauer privilegiaraacute a trageacutedia moderna em

detrimento da antiga argumentando que aquela cumpre com maior competecircncia o seu

objetivo enquanto forma de arte qual seja provocar repulsa agrave vontade de viver e

estimular sua negaccedilatildeo Apesar deste privileacutegio pelas obras traacutegicas modernas o filoacutesofo

natildeo deixa como seus contemporacircneos de ter os gregos como modelo e natildeo satildeo raros

seus elogios agraves produccedilotildees helecircnicas Para Schopenhauer Winckelmann foi para a

histoacuteria da arte assim como ele o eacute para a da filosofia um exemplo do modo epiciacuteclico

atraveacutes do qual a natureza de tempo em tempo faz avanccedilar o conhecimento do gecircnero

humano Para o filoacutesofo a retomada do projeto kantiano realizada pelo seu sistema eacute a

demonstraccedilatildeo de que entre ele e Kant nenhum conhecimento foi produzido Como

exemplo deste esquema epiciacuteclico na histoacuteria da arte Schopenhauer utiliza-se do

retorno de Winckelmann agrave beleza claacutessica o que nos mostra a importacircncia dada pelo

filoacutesofo agrave forma de arte grega bem como ao projeto inaugurado pelo historiador da arte

Apoacutes explicar o esquema epiciacuteclico da evoluccedilatildeo dos progressos humanos

Schopenhauer diz

Para quem deseja poreacutem ter uma prova do esquema geral dos

epiciclos aqui exposto com base na histoacuteria da arte basta observar a

escola de escultura de Bernini que florescia ainda no seacuteculo passado

particularmente em seu desenvolvimento francecircs sucessivo e que

representava a natureza comum em vez da beleza claacutessica e o decoro do

minueto francecircs em vez da simplicidade e da graccedila antigas Tal escola

faliu quando apoacutes a repreensatildeo de Winckelmann voltou-se agrave escola dos

antigos (Schopenhauer SOE 110)

Nietzsche por sua vez seguiraacute o caminho winckelmanniano de exaltaccedilatildeo da forma de

arte antiga apresentando a trageacutedia grega como modelo para a arte moderna e elogiando

a iniciativa de seus predecessores em valorizar e recuperar a arte helecircnica

31

Conviria que alguma vez se pesasse diante dos olhos de um juiz

insubornaacutevel em que tempo e em que homens o espiacuterito alematildeo se

esforccedilou mais vigorosamente por aprender dos gregos e se admitirmos

com confianccedila que esse louvor uacutenico deveria ser atribuiacutedo agrave nobiliacutessima

luta de Goethe Schiller e Winckelmann pela cultura haveria em todo

caso que acrescentar que desde aquele tempo e depois das influecircncias

imediatas daquela luta tornou-se cada vez mais fraca de maneira

incompreensiacutevel a aspiraccedilatildeo de se chegar por uma mesma via agrave cultura e

aos gregos (Nietzsche NT 120)

Podemos perceber entatildeo a importacircncia do helenismo proposto por Winckelmann no

pensamento germacircnico ao observarmos a sua duraccedilatildeo tendo em vista que mais de um

seacuteculo separa o historiador da arte e o filoacutesofo da vontade de poder o que confirma a

forccedila de suas propostas para uma cultura em formaccedilatildeo e justifica o epiacuteteto com o qual

Butler caracterizou este periacuteodo dizendo que nele vemos ldquoa tirania da Greacutecia sobre a

Alemanhardquo14

O segundo ponto fundamental da teoria da arte winckelmanniana o belo

ideal natildeo provocou menor interesse em seu tempo Este belo ideal era alcanccedilado a

partir da reuniatildeo em uma uacutenica obra harmocircnica daquilo que o artista observa de mais

belo na natureza

A natureza tem seus defeitos o corpo mais belo natildeo deixa de tecirc-los e

nele encontramos frequumlentemente partes que em outros satildeo mais belas ou

podem supor-se mais perfeitas [] Os gregos trataram de reunir as formas

elegantes de vaacuterios corpos belos como sabemos pelo diaacutelogo de Soacutecrates com o

ceacutelebre pintor Parrasio [] Esta seleccedilatildeo das partes belas e sua harmocircnica

associaccedilatildeo em uma soacute figura produziu a beleza ideal (Winckelmann 2002

130)

Tal beleza encontrou sua manifestaccedilatildeo primeira na Greacutecia do periacuteodo helecircnico devido

ao favorecimento das condiccedilotildees geograacutefico-climaacuteticas15

e poliacuteticas16

Aleacutem da beleza

14

Tiacutetulo de sua obra Butler 1958 15

Sobre a influecircncia climaacutetica Winckelmann deduz ldquoA natureza depois de haver se manifestado em

gradaccedilotildees extremas de frio e de calor se estabeleceu na Greacutecia como em seu centro e por isso reina

naquele paiacutes uma temperatura intermediaacuteria entre o inverno e o veratildeo E quanto mais se aproxima deste

centro mais claridade e serenidade oferece e suas obras se manifestam em formas mais graciosas e

amaacuteveis e com detalhes mais caracteriacutesticos e decididosrdquo (Winckelmann 2002106) 16

Sobre as condiccedilotildees poliacuteticas sejam elas patriarcais democraacuteticas ou tiracircnicas Winckelmann conclui o

seguinte ldquoCom relaccedilatildeo ao regime poliacutetico e o governo da Greacutecia a liberdade eacute uma das causas da

preeminecircncia dos gregos na arte Tambeacutem a liberdade parece ter estabelecido na Greacutecia a sua sede existia

32

formal retirada da diversidade das formas naturais eleitas as mais belas as obras gregas

eram exemplares devido agrave importacircncia dada pelos artistas agrave sua expressatildeo A obra de

arte deve sua forccedila tanto agrave beleza das formas quanto agrave expressatildeo da alma nela contida

De acordo com Winckelmann ldquoa expressatildeo de uma alma grande vai muito aleacutem da

plasmaccedilatildeo de uma bela naturezardquo isto ocorre devido ao fato de que para o historiador

da arte ldquona Greacutecia a sabedoria estendia a matildeo agrave arte e insuflava nas figuras almas

mais que comunsrdquo (Winckelmann 1958 19) As caracteriacutesticas que esta expressatildeo deve

possuir satildeo aquelas contidas na passagem mais famosa da obra de Winckelmann na

qual ele descreve ainda como exemplo daquela expressatildeo artiacutestica o grupo estatuaacuterio

do Laocoonte que por sua vez seraacute alvo de uma grande controveacutersia posterior da qual

participaratildeo dentre outros Lessing Herder Goethe Schelling e Schopenhauer

Reproduzimos a passagem de Winckelmann em sua integridade

A caracteriacutestica geral e principal das obras mestras gregas eacute uma

nobre simplicidade e uma serena grandeza tanto na atitude como na

expressatildeo Assim como nas profundidades o mar estaacute sempre calmo por

muito que se agite a superfiacutecie do mesmo modo a expressatildeo nas figuras

dos gregos mostra em meio a todas as paixotildees uma alma grande e

comedida Isso transmite o rosto do Laocoonte ndash e natildeo soacute o dele ndash em

meio agrave mais violenta dor O sofrimento que aparece em todos os

muacutesculos e fibras do corpo e que no baixo ventre contraiacutedo se

experimenta tatildeo intensamente que parecemos senti-lo natildeo se exterioriza

contudo mediante qualquer ira no rosto e em toda a atitude Natildeo lanccedila

um grito terriacutevel tal como Virgiacutelio cantou em seu Laocoonte A abertura

da boca natildeo o permitiria Mais parece um suspiro angustiado como o

descreve Sadolet A dor do corpo e a grandeza da alma estatildeo distribuiacutedos

com igual forccedila atraveacutes de toda a composiccedilatildeo da figura e em certa

medida estatildeo equilibrados Laocoonte sofre mas sofre como o

Filoctetes de Soacutefocles sua dor nos toca a alma mas desejariacuteamos poder

suportar essa dor com a grandeza desse homem (Winckelmann 1958

18-19 grifo nosso)

inclusive junto ao tronos de seus reis que governavam paternalmente a seus suacuteditos antes que mais

ilustrados gozassem do destino de uma completa liberdade Homero chama a Agamemnoacuten de pastor de

seus povos com o que queria designar sua ternura com seus subordinados e sua preocupaccedilatildeo constante

pela felicidade dos mesmos Eacute bem verdade que depois surgiram tiranos mas natildeo o foram mais para uma

determinada cidade e a naccedilatildeo inteira jamais reconheceu um soberano uacutenicordquo (Winckelmann 2002 109)

33

Desta famosa passagem retiramos dois momentos que especialmente nos interessam O

primeiro dele eacute a enunciaccedilatildeo que caracterizaraacute o ideal de beleza das obras gregas nobre

simplicidade e uma serena grandeza Este ideal winckelmanniano de beleza eacute o que

torna a arte grega nas palavras de Suumlssekind ldquoinimitaacutevel e ao mesmo tempo faz dela o

modelo a ser imitadordquo (Suumlssekind 2008 69) Interessa-nos especialmente devido agrave

influecircncia desta definiccedilatildeo para a teoria do jovem professor de filologia da Basileacuteia

Podemos ver ateacute mesmo pelo vocabulaacuterio utilizado para descrever a arte grega a

proximidade e a influecircncia exercida por estes conceitos nas teorias esteacuteticas do primeiro

Nietzsche Luminosidade serenidade harmonia satildeo alguns dos conceitos que

posteriormente seratildeo utilizados por Nietzsche ao definir o seu impulso artiacutestico

apoliacuteneo17

O segundo momento - quando Winckelmann defende o espiacuterito grego na

escultura do Laocoonte em contraposiccedilatildeo ao personagem de Virgiacutelio comparando esta

representaccedilatildeo escultural com o Filoctetes de Soacutefocles - seraacute o precursor do posterior

debate sobre as fronteiras que separam as formas de arte Para Winckelmann ldquoa nobre

simplicidade e a serena grandeza das estatuas gregas eacute tambeacutem a verdadeira

caracteriacutestica dos escritos gregos da melhor eacutepoca dos escritos da escola

socraacuteticardquo(Winckelmann 1958 31) O debate sugerido pela passagem do qual

participaraacute posteriormente o proacuteprio Schopenhauer seraacute iniciado por outro pensador

de grande importacircncia para o projeto cultural alematildeo Gotthold Ephraim Lessing

Lessing em sua obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da

poesia apresentaraacute a contenda que chegaraacute ateacute Schopenhauer Para Lessing o ponto de

discordacircncia com Winckelmann estaacute no motivo pelo qual na escultura o Laocoonte natildeo

17

Segundo Rodriges (2007 93-126) tambeacutem o conceito do impulso dionisiacuteaco estaria mesmo que em

germe presente nos estudos de Winckelmann Segundo seu artigo o mapeamento da origem e

desenvolvimento da discussatildeo sobre os citados impulsos artiacutesticos da natureza ou seja sobre a

importacircncia dos deuses Apolo e Dioniacutesio na cultura grega abrangeria necessariamente diversas aacutereas do

pensamento alematildeo desde Winckelmann dentre elas os estudos filoloacutegicos o movimento romacircntico e as

filosofias idealistas

34

apresenta as caracteriacutesticas de quem grita e lamenta Como vimos para Winckelmann o

conjunto estatuaacuterio em questatildeo eacute exemplar pelo fato de transmitir atraveacutes da atitude

estoacuteica diante da dor a grandeza de alma que seria a regra universal da verdadeira arte

grega Esta grandeza enquanto regra universal estaria ainda de acordo com o

historiador da arte presente tanto nas formas pictoacutericas como nas obras poeacuteticas

Contrapondo-se a Winckelman Lessing afirma - exemplificando atraveacutes de passagens

de poetas queridos ao proacuteprio Winckelmann como Homero e Soacutefocles - que em vaacuterios

momentos da poesia antiga diversos personagens dentre eles deuses e heroacuteis proferem

exaltados lamentos e gritos e isto natildeo lhes subtrai a grandeza da alma Sendo assim se

na poesialdquoo gritar na sensaccedilatildeo de dor corporal pode coexistir muito bem com uma

grande alma portanto a expressatildeo de uma tal alma natildeo pode ser a causa pela qual

apesar disso o artista natildeo quer imitar esse grito no seu maacutermore antes deve haver um

outro motivo por que aqui ele separa-se do seu rival o poeta que expressa esse grito

com o melhor propoacutesitordquo(Lessing 1998 86) O motivo pelo qual em sua representaccedilatildeo

estatuaacuteria o Laocoonte natildeo grita eacute para Lessing uma questatildeo de limitaccedilatildeo da forma de

expressatildeo escultoacuterica que ao se submeter agrave ldquolei da belezardquo natildeo pode representar o grito

desfigurador Em suas palavras

O mestre visava a suprema beleza sob as condiccedilotildees aceitas da dor

corporal Esta em toda a sua violecircncia desfiguradora era incompatiacutevel

com aquela Ele foi obrigado a reduzi-la ele foi obrigado a suavizar o

grito em suspiro natildeo porque o grito denuncia uma alma indigna mas

antes porque ele dispotildee a face de um modo asqueroso (Lessing 1998

92)

Devemos ressaltar que segundo a teoria artiacutestica de Lessing para quem as leis a que

devem obedecer a arte estatildeo ligadas agrave sua interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica a arte eacute

julgada atraveacutes do seu efeito Neste contexto ao conceder a seus personagens

caracteriacutesticas de humanidade como por exemplo a manifestaccedilatildeo da dor atraveacutes de

35

lamentos e gritos o poeta estaria aproximando o heroacutei traacutegico do puacuteblico a ser atingido

e consequumlentemente maximizando a identificaccedilatildeo entre eles e com isto o efeito

esperado qual seja a catarse atraveacutes do temor e da compaixatildeo Esta identificaccedilatildeo

alcanccedilada por via da demonstraccedilatildeo dos lamentos dos heroacuteis dramaacuteticos natildeo pode ser

obtida da mesma forma pelas artes pictoacutericas Nestas que satildeo expressotildees de um

momento uacutenico a beleza natildeo pode deixar de estar presente pois ela eacute um dos

ingredientes mais fundamentais do efeito buscado Na poesia o heroacutei natildeo seraacute

caracterizado em uma uacutenica accedilatildeo como ocorre na escultura Sendo assim o grito

narrado eacute apenas um momento do conjunto que iraacute definir o personagem

O Laocoonte de Virgiacutelio grita mas esse Laocoonte que grita eacute

justamente aquele que noacutes jaacute conhecemos e amamos como o patriota

mais cordato e o pai mais afetuoso Noacutes vinculamos o seu grito natildeo ao

seu caraacuteter mas antes apenas ao seu sofrimento insuportaacutevel Apenas

esse uacuteltimo noacutes ouvimos no seu grito e o poeta pode tornaacute-lo sensiacutevel

apenas graccedilas a esse grito (Lessing 1998 106)

Com isto tanto o escultor que suprime o grito quanto o poeta que o descreve ao

fazerem o fazem de acordo com as leis que regem suas respectivas formas de arte

Da contenda sobre o grito do Laocoonte e sua representaccedilatildeo escultoacuterica e

poeacutetica iratildeo participar ainda diversos pensadores Dentre os mais ilustres podemos

destacar Goethe cuja explicaccedilatildeo sobre a escultura proacutexima em muitos pontos da de

Lessing encontra-se nos Propileus Para o poeta o grupo estatuaacuterio ldquoesgota o seu objeto

e preenche com sucesso todas as condiccedilotildees da arterdquo (Goethe 2005126) Segundo

Goethe a escultura eacute limitada a um uacutenico momento da accedilatildeo e sua comparaccedilatildeo com a

poesia de Virgiacutelio eacute injusta O poeta a avalia assim como Lessing atraveacutes de seu efeito

ainda dentro das categorias poeacuteticas de Aristoacuteteles e destaca

O ser humano possui apenas trecircs sentimentos no sofrimento

proacuteprio e alheio o medo o terror e a compaixatildeo a previsatildeo temerosa de

um mal que se aproxima a percepccedilatildeo inesperada do sofrimento presente

36

e a participaccedilatildeo no sofrimento duradouro ou que passou todos os trecircs

sentimentos satildeo representados e suscitados por esta obra de arte e na

verdade na gradaccedilatildeo a mais conveniente (Goethe 2005 126)

Em sua obra principal Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 46 a seus comentaacuterios do

Laocoonte que seratildeo acrescidos de exemplos no posterior volume de suplementos

Reconhece o avanccedilo feito por Lessing ao colocar no lugar de um fundamento

psicoloacutegico um fundamento puramente esteacutetico e critica ainda as teorias psicoloacutegicas e

fisioloacutegicas de seu tempo como as de Hirt e Fernow18

Para Schopenhauer apesar de

sua aproximaccedilatildeo do que seria uma ldquoexplicaccedilatildeo corretardquo da obra Lessing natildeo encontrou

o seu ponto exato qual seja a explicaccedilatildeo de que o grito natildeo pertence ao domiacutenio de

uma representaccedilatildeo escultoacuterica

Antes de qualquer investigaccedilatildeo psicoloacutegica e fisioloacutegica sobre se

Laocoonte em sua situaccedilatildeo poderia gritar ou natildeo deve-se decidir em

relaccedilatildeo ao grupo de esculturas o seguinte que nele o grito natildeo pode ser

exposto pelo motivo de que a exposiccedilatildeo do grito reside por inteiro fora

do domiacutenio da escultura (Schopenhauer MVR 2005 303)

Para Schopenhauer a simples exposiccedilatildeo que representaria o grito ou seja ldquoo

escancarar violento da bocardquo natildeo pode ocasionar o efeito que o grito mesmo enquanto

forma de expressatildeo ocasionaria O efeito que o grito pode causar em uma arte

descritiva atraveacutes do uso da imaginaccedilatildeo do leitor ou mesmo na arte representativa no

teatro tornar-se-ia motivo de riso caso seja representado por uma boca escancarada na

arte plaacutestica Schopenhauer utiliza-se do exemplo do Laocoonte para demonstrar a

necessidade do estabelecimento de fronteiras entre as artes que devido agrave suas formas

devem obedecer agraves competecircncias determinadas pelo objeto representado (no caso da

teoria schopenhaueriana as competecircncias seratildeo determinadas pelas ideacuteias a serem

representadas como veremos posteriormente) Esta preocupaccedilatildeo com os limites entre as

18

Segundo Schopenhauer Hirt (Horen 1797 parte 10) apresenta a explicaccedilatildeo de que Laocoonte natildeo grita

pois estaacute impossibilitado pela sufocaccedilatildeo que o leva agrave morte Fernow por sua vez faz uma amalgama das

opiniotildees de Winckelmann Lessing e Hirt

37

formas artiacutesticas presente na esteacutetica schopenhaueriana e no Laocoonte de Lessing foi

contudo como nos lembra Suzuki (Rosenfield 2001 36-56) ignorada por Goethe

(como podemos ver pelos elementos da poeacutetica aristoteacutelica utilizados pelo poeta para

explicar a escultura na citaccedilatildeo presente na paacutegina anterior) e seraacute posteriormente

tambeacutem desconsiderada por Nietzsche em seu projeto de uma obra de arte total

Diante do acima exposto ainda tratando de Lessing podemos perceber

que toda a discussatildeo acerca do Laocoonte foi desencadeada pela motivaccedilatildeo de defesa da

arte poeacutetica agrave qual Lessing dedicou sua vida como escritor diretor e criacutetico teatral

Desta forma a importacircncia de Lessing para o tema em questatildeo nesta dissertaccedilatildeo estaacute

mais ligado ao seu papel junto a um projeto de formaccedilatildeo de um teatro alematildeo e sua

interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica Enquanto teoacuterico e criacutetico do teatro o autor da

Dramaturgia de Hamburgo exerceu grande influecircncia na cultura posterior ao oferecer a

seu tempo uma nova interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica que vai de encontro agraves

interpretaccedilotildees francesas e de Gottsched que eram por sua vez inflexiacuteveis em relaccedilatildeo agraves

regras (das unidades de espaccedilo tempo e lugar do estatuto social dos personagens da

linguagem e do nuacutemero de atos) Lessing atento agraves necessidades de uma burguesia em

ascensatildeo que natildeo se identificava mais com as concepccedilotildees aristocraacuteticas do modelo de

teatro francecircs e imbuiacutedo na construccedilatildeo do projeto de formaccedilatildeo cultural de uma naccedilatildeo

fragmentada oferece atraveacutes de suas interpretaccedilotildees uma seacuterie de elementos que estaratildeo

presentes nas consideraccedilotildees de pensadores posteriores Dentre estes elementos podemos

destacar as seguintes uma discussatildeo acerca dos conceitos de mimese temor

compaixatildeo catarse a defesa da utilizaccedilatildeo de caracteres mistos a liberdade do gecircnio

ante as regras o enaltecimento dos teatros espanhol e inglecircs principalmente de

Shakespeare

38

Ao tratarmos do referido projeto de um teatro alematildeo e tambeacutem do

classicismo germacircnico dois nomes ainda satildeo fundamentais para sua formaccedilatildeo bem

como eacute incontestaacutevel sua influecircncia sobre Schopenhauer e o jovem Nietzsche19

satildeo

eles Goethe e Schiller O primeiro deles maior dos poetas do classicismo germacircnico

foi um ampliador do projeto Winckelmanniano ldquoPois Goethe pensa o ideal de beleza

natildeo soacute em relaccedilatildeo agrave pintura e agrave escultura mas tambeacutem e principalmente em relaccedilatildeo agrave

poesia ou agrave arte dramaacutetica ampliando as ideacuteias de Winckelmann nesse domiacutenio como

teoacuterico e como criador de obras teatraisrdquo (Machado 2006 14) Seu classicismo

impresso em seus textos teoacutericos e na forma e conteuacutedo de diversas de suas produccedilotildees

literaacuterias eacute o auge do projeto Winckelmanniano Podemos ver na esteira de Machado

(2006 14-22) que o ideal de beleza proposto por Winckelmann eacute ainda o que domina a

noccedilatildeo Goetheana dos gregos e eacute apoiado neste ideal que o poeta interpreta a arte do

mundo helecircnico e a apresenta como um exemplo para a arte de seu tempo Ressaltamos

poreacutem que dada a sua extrema heterogeneidade como nos adverte Butler (1958 85)

encontrar um senso de harmonia interna no todo da obra goetheana eacute tarefa tatildeo incerta

como determinar o grau de sua influecircncia no pensamento de nossos filoacutesofos No que se

refere a Schopenhauer entretanto natildeo podemos deixar de ressaltar que sua convivecircncia

com o poeta foi norteada pelas discussotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas que ocupavam o palco

de seus estudos agrave eacutepoca Goethe dedicou vinte anos de sua vida ao estudo das cores e

sua obra Doutrina das cores eacute o resultado desta investigaccedilatildeo Ela atraiu o interesse do

jovem Schopenhauer que apoacutes alguns encontros com Goethe dedicou-se a escrever a

sua proacutepria teoria que divergia em diversos pontos da teoria do poeta fato que marcou o

fim da relaccedilatildeo amistosa dos mesmos Sobre este periacuteodo de convivecircncia

19

De acordo com Martin (1996) a obra desenvolvida por Nietzsche enquanto escritor e pensador eacute

demasiado complexa para ser reduzida ou atribuiacuteda a determinada influecircncia Entretanto em uma

estatiacutestica crua podemos ter o vislumbre desta influecircncia como se segue ldquoSchopenhauer eacute referenciado

394 vezes na obra de Nietzsche Wagner 327 vezes a Goethe existem 311 menccedilotildees Schiller encontra-se

em nono lugar com 126 menccedilotildeesrdquo (Martin 1996 5)

39

especificamente sobre o episodio citado Goethe vai escrever mais tarde conforme

citaccedilatildeo de Safranski

O Dr Schopenhauer foi para mim um amigo benevolente

Estivemos de acordo em muitas coisas mas foi impossiacutevel evitar ao final

um certo distanciamento como dois amigos que ateacute certo momento

caminharam juntos se datildeo a matildeo para despedir pois querem dirigir-se um

ao norte outro ao sul perdendo-se rapidamente de vista um ao outro

(apud Safranski 1991 265)

Ainda na esteira do movimento de estabelecimento de um projeto

artiacutestico nacional encontramos Schiller que ao lado de Goethe foi o responsaacutevel pelas

maiores obras do classicismo literaacuterio de Weimar Para o estudo em questatildeo o que mais

nos interessa em sua obra eacute o periacuteodo no qual antes do contato com Goethe Schiller

produz seus escritos teoacutericos sobre a trageacutedia Estes estudos podem ser considerados

em uma perspectiva histoacuterica como uma ponte entre a interpretaccedilatildeo da trageacutedia nos

moldes puramente aristoteacutelicos e a trageacutedia vista enquanto forma de arte que para

atingir o efeito dela esperado deve refletir a condiccedilatildeo traacutegica do homem pensada com

base em elementos retirados da filosofia moral e da esteacutetica kantiana Em seus textos

teoacutericos sobre a poesia traacutegica pertencentes ao periacuteodo que Schiller assume ter estado

sob influecircncia da filosofia kantiana ele descreve a trageacutedia como expressatildeo do sublime

ndash conceito extraiacutedo da criacutetica kantiana do juiacutezo ndash como a representaccedilatildeo sensiacutevel da

dicotomia entre a liberdade moral a vontade individual (vontade tomada enquanto

faculdade de pensar e agir livremente) por um lado e a necessidade natural e instintiva

por outro Vemos pela primeira vez em Schiller a utilizaccedilatildeo de categorias filosoacuteficas

kantianas na elaboraccedilatildeo de uma teoria da trageacutedia o que teraacute continuidade com as

teorias do idealismo absoluto e a do proacuteprio Schopenhauer Este eacute um momento

extremamente importante devido ao fato de marcar toda a reflexatildeo futura sobre o tema

ao fundar o deslocamento de uma interpretaccedilatildeo poeacutetica da trageacutedia baseada em

40

comentaacuterios da obra aristoteacutelica para uma interpretaccedilatildeo do traacutegico enquanto fenocircmeno

que descreve a situaccedilatildeo do homem no mundo De acordo com Machado ldquoEacute do

encontro de um grande dramaturgo como Schiller com a filosofia de Kant -

principalmente a sua eacutetica considerada como uma filosofia da liberdade e sua

esteacutetica no que diz respeito agrave teoria do juiacutezo sobre o sublime ndash que nasce a primeira

filosofia do traacutegico uma reflexatildeo filosoacutefica original que criou um tipo novo de

pensamento sobre a trageacutediardquo (Machado 2006 54) Na teoria schopenhaueriana da

trageacutedia podemos ver caracteriacutesticas da teoria schilleriana Primeiramente a presenccedila

marcante da influecircncia kantiana no que se refere ao sublime Em segundo lugar a

leitura da trageacutedia enquanto instrumento para a percepccedilatildeo de uma ordem moral do

mundo Tais caracteriacutesticas seratildeo aprofundadas no capiacutetulo posterior Vale antecipar que

na obra do jovem Nietzsche poderemos ver a exaltaccedilatildeo de Schiller em sua tentativa de

compreensatildeo do mundo helecircnico aleacutem do elogio agrave teoria schilleriana do coro Veremos

entretanto uma criacutetica acirrada no que se refere ao projeto de um teatro enquanto

instituiccedilatildeo moral

Neste capiacutetulo foram delineadas as principais influecircncias filosoacuteficas que

alicerccedilaram o sistema schopenhaueriano bem como esboccedilaram-se as diversas teorias

artiacutesticas que surgiram no periacuteodo em questatildeo teorias estas que propuseram mateacuteria

para a formaccedilatildeo do pensamento de nossos filoacutesofos A partir da cisatildeo entre fenocircmeno e

noumeno proposta por Kant e sua primeira criacutetica Schopenhauer elabora as matrizes de

seu sistema e para ilustraacute-lo encontra apoio na cosmologia platocircnica e no pensamento

oriental Vimos ainda que sua teoria esteacutetica eacute alimentada pela frequumlentaccedilatildeo agraves

categorias apresentadas por artistas teoacutericos e criacuteticos de arte de seu periacuteodo Por seu

turno vimos com Winckelmann a origem do estudo sobre os gregos e sua arte aleacutem do

estabelecimento destes como um modelo para a arte alematilde projeto este que foi

41

retomado por Lessing que por sua vez intensificou o estudo e propocircs um modelo de um

teatro nacional independente projeto que seraacute mais tarde revisitado e aprofundado por

Goethe e Schiller Esta apresentaccedilatildeo de influecircncias eacute imprescindiacutevel para identificarmos

a origem de certos elementos que satildeo fundamentais ao entendimento da proacutepria doutrina

schopenhaueriana tais como o caraacuteter moral de sua teoria esteacutetica sua preocupaccedilatildeo

com o estabelecimento de limite entre as artes sua interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo da poeacutetica

sua utilizaccedilatildeo de conceitos esteacuteticos kantianos (sublime belo e desinteresse) sua

apreciaccedilatildeo das obras modernas seu reconhecimento da produccedilatildeo claacutessica seu desprezo

agrave filosofia de seu tempo Eacute tambeacutem atraveacutes do mapeamento aqui feito de algumas de

suas influecircncias mesmo que brevemente apontado que poderemos mais tarde

identificar alguns dos aspectos originais e singulares de sua teoria

Quanto agraves influecircncias presentes na teoria da trageacutedia do jovem Nietzsche

apontaremos complementos no capiacutetulo correspondente Eacute imprescindiacutevel dar destaque

no que se refere agrave obra nietzscheana agrave sua formaccedilatildeo filoloacutegica ao seu conviacutevio com

Richard Wagner e agrave sua leitura do proacuteprio Schopenhauer - e isto seraacute feito

posteriormente Esperamos ter deixado claro ateacute aqui que diferentemente de Zaratustra

Nietzsche natildeo desceu simplesmente de uma montanha mas faz parte de uma tradiccedilatildeo

histoacuterica assim como Schopenhauer e que a contextualizaccedilatildeo de suas teorias eacute

fundamental para a identificaccedilatildeo dos elementos ali presentes que singularmente se

originaram do sistema metafiacutesico da Vontade

42

2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU

SUBSTRATO METAFIacuteSICO

ldquoOra se todo mundo como representaccedilatildeo eacute

a visibilidade da Vontade a arte eacute o

clareamento dessa visibilidade a cacircmera

obscura que mostra os objetos mais

puramente permitindo-nos melhor abarcaacute-

los e compreendecirc-los eacute o teatro dentro do

teatro a peccedila dentro da peccedila em Hamletrdquo

(Schopenhauer)

Utilizando-se de uma metaacutefora retirada do Eacutedipo de Soacutefocles Schopenhauer nos

oferece um exemplo da caracteriacutestica de conexatildeo interna dos temas abordados em sua

obra20

ldquo minha filosofia eacute como a Tebas de cem portas desde todos os lados se pode

entrar e atraveacutes de todos se pode chegar por um caminho direto ateacute o centrordquo

(Schopenhauer 2002 4) Tendo em vista que nosso objetivo neste capiacutetulo eacute apresentar

a teoria schopenhaueriana da trageacutedia e seus fundamentos filosoacuteficos utilizaremo-nos

desta porta para termos acesso ao sistema schopenhaueriano Procuraremos percorrer o

20

Barboza define bem esta caracteriacutestica marcante da filosofia schopenhaueriana ldquoSchopenhauer eacute o

filoacutesofo da organicidade Procura-a porque com ela onde quer que se esteja no seu sistema estar-se-aacute

em toda parte O todo conteria as partes e seria contido por elas De uma metafiacutesica da efetividade se vai

para uma do belo desta para a da eacutetica que por sua vez pode remeter agrave muacutesica por seu turno a nos

enviar para a efetividade numa por assim dizer circularidade virtuosa A unidade natildeo se perde do

horizonte de observaccedilatildeordquo (Barboza 2001 137)

43

substrato metafiacutesico sustentador da teoria do traacutegico schopenhaueriana e perceber assim

a conectividade interna existente entre sua cosmologia sua teoria esteacutetica e sua eacutetica

De posse deste meacutetodo procuraremos destacar os conceitos fundamentais da teoria

traacutegica e de sua visatildeo de mundo que viratildeo posteriormente se fazer presentes tambeacutem

na obra do jovem Nietzsche

21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo

Agrave descriccedilatildeo das artes poeacuteticas Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 51 do primeiro

volume e o capiacutetulo 37 do segundo volume de sua obra principal Tais descriccedilotildees

encontram-se por sua vez ao final dos trechos dedicados agrave teoria esteacutetica (livro III de

MVR e sus complementos) e finalizam seus apontamentos do que podemos chamar na

esteira de Young (2005) das artes natildeo-musicais21

Em ambos os casos a teoria da

trageacutedia estaacute localizada ao final da apresentaccedilatildeo Esta localizaccedilatildeo juntamente com as

diversas citaccedilotildees e exemplos retirados de peccedilas traacutegicas das quais o filoacutesofo se utiliza ao

longo de seu trabalho nos permite ver a importacircncia da arte traacutegica para Schopenhauer

Em sua teoria artiacutestica existe uma hierarquizaccedilatildeo das artes que leva em consideraccedilatildeo a

capacidade de cada uma em apresentar um grau especiacutefico de objetivaccedilatildeo da vontade

Na cosmologia schopenhaueriana a vontade essecircncia do mundo identificada como

sendo a coisa-em-si kantiana manifesta-se (torna-se objeto de conhecimento) atraveacutes de

diversos graus ndash que exprimem a nitidez com que a vontade se manifesta para o

observador - representados pelos reinos da natureza e finalmente pelo homem Desta

forma ela se objetivaria no mundo inorgacircnico atraveacutes das forccedilas magneacuteticas e da

gravidade no mundo vegetal atraveacutes das funccedilotildees orgacircnicas no mundo animal atraveacutes

21

Como veremos mais adiante a muacutesica eacute uma exceccedilatildeo no sistema das artes schopenhaueriano pois natildeo

se relaciona a uma objetivaccedilatildeo da vontade mas expressa a proacutepria vontade e desta forma natildeo figura na

sistematizaccedilatildeo hieraacuterquica

44

dos instintos e dos motivos assim como o faz no homem A classificaccedilatildeo das artes

corresponde portanto a esta hierarquizaccedilatildeo cosmoloacutegica de objetivaccedilatildeo da vontade22

Sendo assim a arquitetura e a hidraacuteulica mostram a objetivaccedilatildeo da vontade no seu grau

mais baixo ao expor o jogo das forccedilas que caracterizam a mateacuteria tais como a gravidade

rigidez dureza resistecircncia luz A jardinagem e a pintura da natureza satildeo as formas

artiacutesticas cujo fim eacute a exposiccedilatildeo da objetivaccedilatildeo da vontade que se manifesta no reino

vegetal A pintura de animais encontra-se em um niacutevel superior pois o reino animal

objeto de sua representaccedilatildeo expotildee de forma mais evidente a vontade objetivada Temos

ainda as pinturas de retratos a pintura histoacuterica e a escultura que das artes plaacutesticas

formam a categoria superior cujo objeto eacute a exposiccedilatildeo da vontade no grau mais elevado

de sua cognoscibilidade o homem Esta mesma exposiccedilatildeo a do homem eacute tambeacutem o

objeto da arte poeacutetica que agrave diferenccedila das artes que fazem sua exposiccedilatildeo de modo

puramente intuitivo eacute auxiliada pela imaginaccedilatildeo No aacutepice das artes poeacuteticas

encontramos a trageacutedia a uacuteltima arte natildeo-musical a ser descrita A arte traacutegica eacute aquela

que possui a caracteriacutestica de por sua natureza representar de forma mais ilustrativa a

objetivaccedilatildeo mais desenvolvida da vontade a vida humana e suas relaccedilotildees Veremos

mais tarde que aleacutem de corresponder agrave hierarquia de objetivaccedilatildeo da vontade mais

desenvolvida a arte traacutegica ocupa um lugar especial na filosofia schopenhaueriana

devido agrave ldquograndeza de seu efeitordquo (Schopenhauer 2005 333) Diante do exposto

podemos depreender que a arte possui na filosofia schopenhaueriana um papel

cognitivo e a trageacutedia por sua vez eacute a forma artiacutestica que por sua competecircncia cognitiva

ocupa o primeiro lugar entre as artes natildeo musicais

22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo

22

Vemos aqui um exemplo da citada inter-conectividade existente no sistema schopenhaueriano tendo

em vista que a elaboraccedilatildeo de sua classificaccedilatildeo artiacutestica obedece ao construto metafiacutesico do livro II de

MVR e sua consequumlente cosmologia

45

A tarefa a que se propotildee o sistema schopenhaueriano eacute a decifraccedilatildeo do ldquoenigma

do mundordquo ie encontrar uma resposta agrave pergunta o que eacute o mundo Esta tarefa tem

origem no idealismo subjacente na primeira criacutetica kantiana e de certa forma era uma

tarefa da qual estava imbuiacutedo todo o pensamento filosoacutefico daquele periacuteodo ie por

decifraccedilatildeo do enigma do mundo podemos entender a decifraccedilatildeo da coisa-em-si

kantiana Temos daiacute o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer o idealismo

transcendental do mundo fenomecircnico Sob o ponto de vista da representaccedilatildeo o mundo eacute

objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito agraves condiccedilotildees a priori do

entendimento que para o filoacutesofo satildeo as categorias do espaccedilo do tempo e da

causalidade

Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das formas a priori do entendimento eacute

interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos advindos da filosofia Platocircnica e oriental

como um mundo ilusoacuterio Conforme a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana Platatildeo jaacute

identificava esta caracteriacutestica ilusoacuteria do mundo em sua contraposiccedilatildeo teoacuterica entre o

mundo fiacutesico onde o devir impossibilitava a apreensatildeo do ser e o mundo das ideacuteias

onde haveria o verdadeiro encontro com o ser das coisas Ainda de acordo com a

interpretaccedilatildeo de Schopenhauer os livros sagrados indianos Vedas e Puranas faziam

esta distinccedilatildeo atraveacutes da noccedilatildeo do veacuteu de maia a consciecircncia humana seria envolvida

por um veacuteu o que resultaria em uma visatildeo oniacuterica do mundo e impediria assim a

percepccedilatildeo da realidade

Entretanto o mundo pode ainda ser conhecido atraveacutes de um segundo ponto de

vista como vontade Este eacute o ponto de vista que Schopenhauer utiliza-se para decifrar a

incognosciacutevel coisa-em-si kantiana Percorrendo uma ldquovia subterracircneardquo de modo

imanente Schopenhauer identifica nas accedilotildees do corpo bioloacutegico os atos da vontade

46

enquanto coisa-em-si e de forma analoacutegica a estabelece como essecircncia governante do

mundo Faz-se necessaacuterio aqui ressaltar como o fazem Brum (1998 23) e Rosset23

que

natildeo devemos interpretar esta analogia como uma visatildeo antropomoacuterfica do mundo Essa

essecircncia do mundo encontrada empiricamente natildeo eacute todavia um ente racional uma

ldquoalma do mundordquo Se por um lado o mundo fenomecircnico eacute aquele onde o princiacutepio de

razatildeo24

estabelece as normas de funcionamento um mundo natildeo-fenomecircnico mundo em

si enquanto vontade se expressa por sua alogicidade irracionalidade Grundlosigkeit

(falta de fundamento) Essa essecircncia irracional que manifesta-se nos diversos reinos e

indiviacuteduos do mundo eacute a raiz da visatildeo pessimista da existecircncia que de acordo com o

filoacutesofo pode ser a todo momento constatada empiricamente

As diversas manifestaccedilotildees da vontade suas objetidades carregam inerentemente

a sua iacutendole puro impulso cego vontade de vida insaciabilidade Notadamente o

mundo fenomecircnico objetivaccedilatildeo da vontade expressa a essecircncia desta vontade atraveacutes

de um conflito permanente Desenha-se um cenaacuterio de batalha onde cada objetidade da

vontade cada ser do mundo eacute orientado por sua essecircncia irracional desguarnecida de

qualquer telos ldquoAssim a vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria

carne e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimentordquo (Schopenhauer MVR 211) Este

fundamento ontoloacutegico a vontade determina assim o caraacuteter absurdo que a vida

humana toma na filosofia schopenhaueriana eterno esforccedilo carente de ordem ou

finalidade O ldquomecanismo internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens

marionetes guiados pela carecircncia

[]nenhuma satisfaccedilatildeo todavia eacute duradoura mas antes sempre eacute um

ponto de partida de um novo esforccedilo o qual por sua vez vemos travado em

toda parte de diferentes maneiras em toda parte lutando e assim portanto

23

[] natildeo haacute que transpor a experiecircncia da motivaccedilatildeo humana ao conjunto das forccedilas naturais para

compreender o segredo da natureza senatildeo o contraacuterio transpor o misteacuterio das forccedilas naturais ao conjunto

das motivaccedilotildees psicoloacutegicas para desvendar-se o segredo da vontade humana (Rosset 2005 31) 24

Princiacutepio tratado na tese de doutoramento de Schopenhauer SRQPRS bem como no livro I de MVR

O princiacutepio estabelece que todo acontecimento possui uma causa uma razatildeo de ser

47

sempre como sofrimento natildeo haacute nenhum fim uacuteltimo do esforccedilo portanto natildeo

haacute nenhuma medida e fim do sofrimento (Schopenhauer 2005 399)

Se carecircncia vontade e desejo satildeo a tocircnica da vida humana na maior parte do tempo e

satildeo experimentados como dor e infelicidade a felicidade por sua vez eacute definida

negativamente como um momento de ausecircncia daquela dor

Sentimos a dor e natildeo a ausecircncia da dor a inquietude e natildeo a

tranquumlilidade o medo e natildeo a seguranccedila Sentimos desejo como quando

temos fome e sede entretanto ao alimentarmo-nos estas sensaccedilotildees

deixam de existir para noacutes (MVR II 630)

Toda satisfaccedilatildeo momentacircnea de um querer eacute imediatamente suprimida por outro querer

ou se perdurar por algum tempo por menor que seja este transforma-se em teacutedio Um

ldquopecircndulo entre a dor e teacutediordquo eacute a definiccedilatildeo que Schopenhauer propotildee para a vida

humana Assim se daacute tambeacutem com a sauacutede a juventude e a liberdade Todos satildeo

conceitos definidos negativamente soacute os conhecemos atraveacutes de sua ausecircncia Este afatilde

por prolongar e conservar a vida essecircncia iacutentima de cada indiviacuteduo natildeo eacute contudo

resultado de uma observaccedilatildeo objetiva da mesma de um conhecimento que eleja a vida

como algo de valor a ser mantido e preservado e portanto os ldquo[] seres natildeo satildeo

atraiacutedos por algo que se lhes apresenta mas satildeo empurrados a elerdquo (MVR II 398) A

luta eterna observada nos diversos reinos da natureza a busca por alimento o esforccedilo da

procriaccedilatildeo se comparados aos momentos fugazes de satisfaccedilatildeo fazem da vida ldquoum

negoacutecio cujos investimentos natildeo cobrem nem de longe os custosrdquo (MVR II 399)

Em todas estas consideraccedilotildees se faz claro que a vontade de viver

natildeo eacute a consequecircncia do conhecimento da vida natildeo se trata de uma

bdquoconclusio ex praemissis‟ nem em geral eacute algo secundaacuterio antes

contudo eacute o primeiro e incondicionado a premissa de todas as premissas

e precisamente por isso aquilo do que haacute de partir a filosofia pois a

vontade de viver natildeo se apresenta como a consequumlecircncia do mundo senatildeo

o mundo como consequumlecircncia da vontade de viver (MVR II 405)

Um dos pontos essenciais a ser verificado nesta visatildeo de mundo eacute o

destronamento da razatildeo O ceacuterebro oacutergatildeo da razatildeo eacute o resultado de um esforccedilo da

48

vontade em seu percurso de objetivaccedilatildeo A racionalidade humana estaacute a serviccedilo da

vontade que eacute em sua essecircncia grundlos A razatildeo eacute ferramenta para que o homem

enquanto objetidade da vontade consiga satisfazer a seus anseios Em oposiccedilatildeo agrave

filosofia racionalista de entatildeo onde o ldquoreal eacute o racionalrdquo assistimos ao surgimento de

uma filosofia irracionalista das forccedilas inconscientes onde a razatildeo na medida em que eacute

mecanismo da vontade estaacute sempre a serviccedilo desta O comportamento humano eacute

naturalmente egoiacutesta voltado para os proacuteprios interesses e estes por sua vez satildeo

expressatildeo desta vontade aloacutegica desprovida de telos Schopenhauer se mostrava

consciente da singularidade desta sua biparticcedilatildeo do ego e da consequumlente visatildeo de

mundo que ela trouxe agrave luz e enfatizou isto em seus manuscritos berlinenses ldquo[] a

divisatildeo da mente o eu em duas partes diferentes - em vontade como parte essencial e

primaacuteria e em intelecto como secundaacuteria - eacute o grande princiacutepio e meacuterito de minha

filosofia e tambeacutem a principal diferenccedila dos demais sistemasrdquo (MR III 328)

Temos entatildeo os dois pontos de vista do mundo que fundamentam a visatildeo de

Schopenhauer e que posteriormente seratildeo transformados pela teoria nietzscheana da

trageacutedia nos dois impulsos da natureza o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco O primeiro deles eacute o

mundo da individualidade da pluralidade regido pelo que Schopenhauer vai chamar

utilizando-se de um termo retirado da escolaacutestica de principium individuationis

Nesse sentido servindo-me da antiga escolaacutestica denomino

tempo e espaccedilo pela expressatildeo principium individuationis que peccedilo para

o leitor guardar para sempre Tempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais

aquilo que eacute uno e igual conforme a essecircncia e o conceito aparece como

pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem (MVR 171)

No segundo toto genere diferente do primeiro existe a vontade una indivisiacutevel natildeo

submetida ao princiacutepio de razatildeo e por isso sem fundamento

Em apoio a sua tese Schopenhauer invoca ao final do capiacutetulo 46 (Sobre a

nulidade e o sofrimento da vida) dos complementos de MVR a opiniatildeo de diversos

49

pensadores dentre eles Heroacutedoto Platatildeo Teoacutegnis Homero os tragedioacutegrafos gregos

Shakespeare Byron Voltaire Rousseau Faz-se importante neste momento ressaltar que

o filoacutesofo aponta a invenccedilatildeo da trageacutedia pelos gregos como uma expressatildeo desta visatildeo

de mundo ponto de vista que como veremos tambeacutem seraacute adotado pelo primeiro

Nietzsche

Ante tudo mencionarei que os gregos por mais distantes que

estivessem da visatildeo de mundo cristatilde e da alta Aacutesia e por muito que se

mantiveram sob o ponto de vista da afirmaccedilatildeo da vontade se fizeram

profundamente impressionados pela miseacuteria da existecircncia Isso eacute

demonstrado pela invenccedilatildeo da trageacutedia obra deles (MVR II 640)

23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana

Existe poreacutem uma forma de conhecimento que eacute ndash agrave diferenccedila daquela

subordinada ao princiacutepio de razatildeo que percebe os objetos em sua relaccedilatildeo com os outros

objetos do espaccedilo-tempo ndash uma forma mais universal pois mostra o objeto em sua

caracteriacutestica mais geral qual seja a de ser objeto para o sujeito A esta forma de

conhecimento Schopenhauer associa a apreciaccedilatildeo esteacutetica O seu objeto eacute a ideacuteia

platocircnica25

um grau determinado de objetivaccedilatildeo da coisa-em-si

Os diferentes graus de objetivaccedilatildeo da Vontade expressos em

inumeraacuteveis indiviacuteduos e que existem como seus protoacutetipos

inalcanccedilaacuteveis ou formas eternas das coisas que nunca aparecem no

tempo e no espaccedilo meacutedium do indiviacuteduo mas existem fixamente natildeo

submetidos a mudanccedila alguma satildeo e nunca vindo-a-ser enquanto as

coisas nascem e perecem sempre vecircm-a-ser e nunca satildeo os GRAUS DE

OBJETIVACcedilAtildeO DA VONTADE ia dizer natildeo satildeo outra coisa senatildeo as

IDEacuteIAS DE PLATAtildeO (MVR 191)

Esta instacircncia do conhecimento eacute alcanccedilada intuitivamente pela contemplaccedilatildeo

esteacutetica da natureza ou pela facilitaccedilatildeo de uma obra de arte Desta forma as obras de

25

Conforme o filoacutesofo ldquo A expressatildeo mais breve e sucinta daquele famoso dogma platocircnico foi dada por

Dioacutegenes Laeacutercio (II 12) Platatildeo ensina que as ideacuteias da natureza existem como protoacutetipos jaacute as demais

coisas apenas se assemelham a elas e satildeo suas coacutepiasrdquo (MVR 191)

50

arte na teoria schopenhaueriana satildeo uma exposiccedilatildeo destes graus de objetivaccedilatildeo da

vontade as ideacuteias Ao contraacuterio da criacutetica agrave arte presente na repuacuteblica platocircnica - onde a

arte seria uma coacutepia mais imperfeita da ideacuteia por retratar o mundo fenomecircnico sua

coacutepia direta - Schopenhauer aproxima as obras artiacutesticas das ideacuteias eternas as define

como suas expressotildees diretas Contudo a intuiccedilatildeo das ideacuteias exige um estado de

consciecircncia diferente do estado comum Neste uacuteltimo o aparelho cognitivo sob a eacutegide

da vontade estaacute voltado para a realizaccedilatildeo dos interesses individuais e entatildeo se

movimenta no mundo guiado por estes interesses ldquoCaso entretanto a Ideacuteia deva de

alguma maneira tornar-se conhecimento e ser conhecida pelo sujeito entatildeo isso soacute

pode ocorrer graccedilas agrave supressatildeo da individualidade no sujeito que conhecerdquo (MB 30)

A forma artiacutestica de conhecimento cujo possuidor eacute o denominado gecircnio estaacute

associada a um desprendimento das reacutedeas da vontade O gecircnio eacute entatildeo aquele que livre

dos interesses da vontade percebe as ideacuteias por traacutes dos objetos alheio aos princiacutepios

de razatildeo e de individuaccedilatildeo e traduz este objeto na obra de arte O observador esteacutetico eacute

portanto um partiacutecipe da genialidade na medida em que intui a ideacuteia por traz do objeto

observado conforme tambeacutem ao seu grau de desinteresse26

Durante a apreciaccedilatildeo

esteacutetica o homem se vecirc livre momentaneamente daquela parte de si que eacute a causadora

de todo o sofrimento individual e coletivo a vontade para transformar-se em um ldquopuro

sujeito de conhecimentordquo Este estado de satisfaccedilatildeo decorrente da suspensatildeo da vontade

individualizada eacute o sentimento do belo

Aquilo que se poderia nomear o lado mais belo e a pura alegria

da vida precisamente porque nos arranca da existecircncia real e nos

transforma em espectadores desinteressados diante dela eacute o puro

conhecimento que permanece alheio a todo querer eacute a fruiccedilatildeo do belo a

alegria autecircntica na arte Mas mesmo isso requer dispositivos raros e

cabe apenas a pouquiacutessimos e mesmo para estes eacute um sonho

passageiro (MVR 404)

26

Vemos nesta forma de associaccedilatildeo entre conhecimento e interesse mais uma heranccedila kantiana no caso

provinda da definiccedilatildeo de belo da criacutetica da faculdade de juiacutezo

51

- - - - - - - - - -

Ao descrever a apreciaccedilatildeo artiacutestica como um ato cognitivo Schopenhauer

preocupa-se em diferenciaacute-la do conhecimento cientiacutefico De fato boa parte das

consideraccedilotildees sobre a arte eacute dedicada ao esclarecimento desta diferenccedila

Podemos por conseguinte definir a arte como o modo de

consideraccedilatildeo das coisas independente do princiacutepio de razatildeo em oposiccedilatildeo

justamente agrave consideraccedilatildeo que o segue que eacute o caminho da experiecircncia e

da ciecircncia O modo de consideraccedilatildeo que seque o princiacutepio de razatildeo eacute o

racional o uacutenico que vale e que auxilia na vida praacutetica e na ciecircncia o

modo apartado do conteuacutedo do princiacutepio de razatildeo eacute o genial o uacutenico que

vale e que auxilia na arte (MB 59)

No caso da trageacutedia cujo objetivo eacute o conhecimento do homem e de suas relaccedilotildees a

ciecircncia que mais se assemelha a esta forma artiacutestica seria a histoacuteria Esta natildeo tem como

objetivo a demonstraccedilatildeo da essecircncia do homem em sua forma atemporal ou seja a

demonstraccedilatildeo daquilo que fundamenta toda accedilatildeo humana independente dos

acontecimentos empiacutericos

[ ]toda ciecircncia no sentido proacuteprio do termo compreendida como

conhecimento sistemaacutetico guiado pelo fio condutor do princiacutepio de

razatildeo parte sempre de dois dados baacutesicos um deles sem exceccedilatildeo eacute o

princiacutepio de razatildeo em uma de suas figuras como oacuterganon outro eacute o

objeto especiacutefico de cada uma delas enquanto problema (Schopenhauer

MVR 73)

Desta forma a histoacuteria teria a lei de motivaccedilatildeo e o os fatos humanos como oacuterganon e

problemas respectivamente Entretanto interessa a Schopenhauer um conhecimento

mais universal que soacute pode ser apresentado pela arte e que aponta por sua proximidade

agrave essecircncia daquilo que eacute a uma ldquoiacutendole imutaacutevelrdquo das manifestaccedilotildees

Podemos ver entatildeo que sendo consideradas como meios para o

conhecimento da essecircncia da humanidade arte poeacutetica e histoacuteria possuem todavia

objetos de conhecimento diferentes A primeira quando produzida pelo verdadeiro

gecircnio tenciona manifestar a ideacuteia por traacutes destes conceitos a ideacuteia de homem de

humanidade intuitivamente independentemente do princiacutepio de razatildeo do devir como

52

objeto puro de conhecimento alheio agrave corrente dos motivos em suas caracteriacutesticas

essenciais atemporais A histoacuteria por sua vez segue o rastro do princiacutepio de razatildeo

procurando apresentar o fenocircmeno humano em suas relaccedilotildees descrever-lhe em suas

situaccedilotildees particulares individuais empiacutericas Nas palavras de Schopenhauer

Arte e ciecircncia tecircm em uacuteltima instacircncia o mesmo estofo a saber

justamente o mundo tal como ele se posta diante de noacutes ou antes uma

parte destacada dele quanto ao todo do mundo soacute a filosofia o

considera Contudo a grande diferenccedila entre ciecircncia e arte reside na

maneira como elas consideram o mundo e trabalham seu estofo Tal

oposiccedilatildeo pode ser indicada com uma palavra a ciecircncia considera os

fenocircmenos do mundo seguindo o fio condutor do princiacutepio de razatildeo ao

passo que a arte coloca totalmente de lado o princiacutepio de razatildeo

independente dele para que assim a ideacuteia entre em cena

(SCHOPENHAUER MB 57)

Podemos notar que a valorizaccedilatildeo do que eacute imutaacutevel alheio agrave idealidade do tempo eacute a

raiz da valorizaccedilatildeo do conhecimento artiacutestico frente ao histoacuterico Este uacuteltimo natildeo visa o

acesso aos modelos eternos pois seu objeto satildeo os acontecimentos individuais do

mundo fenomecircnico que satildeo eventos meramente aparentes se considerarmos a

idealidade do tempo O que se manifesta no fluxo temporal do mundo fenomecircnico satildeo

sempre as mesmas formas eternas as ideacuteias entretanto com roupagens diferentes o

mesmo homem enquanto objetivaccedilatildeo da vontade a mesma humanidade Onde quer que

seja e em qualquer momento especiacutefico sua essecircncia eacute a mesma e esta essecircncia eacute o que

deve ser alvo de uma compreensatildeo privilegiada de entendimento e natildeo as suas diversas

manifestaccedilotildees Por este motivo Schopenhauer deixando explicito o seu chamado anti-

historicismo afirma que ldquose algueacutem jaacute lera Heroacutedoto jaacute estudara bastante histoacuteria e

efeitos filosoacuteficos Pois laacute jaacute estaacute tudo o que compotildee a posterior histoacuteria mundial a

atividade o obrar o sofrimento e o destino do gecircnero humano (Schopenhauer MVR

II 496) Podemos notar claramente a oposiccedilatildeo entre a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana

da histoacuteria e as tendecircncias de seu tempo principalmente presentes na filosofia de

Hegel Este de acordo com a criacutetica de Schopenhauer ignorando a filosofia critica de

53

Kant toma o fenocircmeno histoacuterico como coisa em si ao atribuir-lhe uma unidade de

consciecircncia Entretanto unidade de consciecircncia eacute um atributo dos indiviacuteduos e natildeo do

gecircnero humano Estas filosofias de acordo com o Schopenhauer satildeo frutos do realismo

otimista queldquo tomam o mundo como perfeitamente real e potildeem como fim do mesmo

uma miseraacutevel felicidade terrena (Schopenhauer MVR II 495)

- - - - - - - - - -

Colocando de lado o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e mirando-se no

conhecimento da ideacuteia imutaacutevel atemporal encontramos a trageacutedia como fenocircmeno que

apresenta agrave intuiccedilatildeo o homem e sua condiccedilatildeo Eacute a forma de arte que tem como objeto o

grau mais elevado de objetivaccedilatildeo da vontade A intenccedilatildeo do artista traacutegico eacute de acordo

com Schopenhauer transmitir a ideacuteia intuiacuteda tarefa que seraacute bem sucedida de acordo

com a habilidade de utilizaccedilatildeo da teacutecnica artiacutestica por um lado e com a capacidade de

percepccedilatildeo esteacutetica do apreciador por outro O tragedioacutegrafo diferentemente do

historiador que relata os fatos empiacutericos explicitando seus motivos e consequumlecircncias

deve para obter o efeito esperado em sua obra expor uma situaccedilatildeo tal em que o homem

possa manifestar todas as suas potencialidades e dessa forma transmitir ao apreciador

esteacutetico a ideacuteia representada ldquoO poeta expotildee com escolha e intenccedilatildeo caracteres

significativos em situaccedilotildees significativas jaacute o historiador toma aos dois como eles

aparecemrdquo (Schopenhauer MVR 323) A qualidade da obra traacutegica seraacute julgada entatildeo

pela sua capacidade de representaccedilatildeo da ideacuteia de humanidade e Schopenhauer qualifica

as trageacutedias de acordo com esta capacidade Natildeo existe em seu sistema uma

consideraccedilatildeo histoacuterica da produccedilatildeo traacutegica Ele natildeo leva em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees

histoacutericas no que se refere agrave origem ou mesmo quanto ao desenvolvimento desta forma

artiacutestica e a avalia unicamente conforme o seu efeito E neste ponto a trageacutedia apresenta

uma peculiaridade frente agraves demais artes ela eacute a forma de arte que provocaraacute o

54

sentimento do sublime Como vimos o correlato subjetivo de toda apreciaccedilatildeo esteacutetica eacute

o sentimento causado pela anulaccedilatildeo da vontade individual mediante a elevaccedilatildeo ao

estado de puro sujeito de conhecimento O sublime assim como o belo satildeo expressotildees

deste sentimento que se diferenciam unicamente por sua forma

Se tal estado surgiu por si mesmo na medida em que o objeto foi

solicitado e se apresentou ndash e fomos postos sem resistecircncia pelo mero

desaparecer da vontade da consciecircncia no estado do conhecer puro ndash ou

se primeiro foi despertado por elevaccedilatildeo livre consciente sobre a vontade

na medida em que o objeto contemplado tem com esta uma relaccedilatildeo

desfavoraacutevel hostil cuja prossecuccedilatildeo suprimiria a contemplaccedilatildeo ndash aiacute

reside a diferenccedila entre o belo e o sublime (MB 119)

A impressatildeo do sublime eacute portanto uma forma de colocar-se no estado do puro conhecer

ao nos depararmos com o objeto que por sua apresentaccedilatildeo sugere uma ldquorelaccedilatildeo hostilrdquo

com o indiviacuteduo27

Jaacute vimos que a visatildeo de mundo de Schopenhauer identifica a vida humana como

sofrimento infindaacutevel no entanto ao elaborar sua definiccedilatildeo da trageacutedia Schopenhauer

aponta para o desfecho moral de sua obra (livro IV de MVR) e afirma que a trageacutedia

melhor eacute aquela que expotildee a renuacutencia agrave vida O filoacutesofo compara obras contemporacircneas

agraves antigas e afirma sua preferecircncia por estas em decorrecircncia da capacidade que elas tecircm

de provocar esta a renuacutencia agrave vida Vejamos a descriccedilatildeo que Schopenhauer faz da

trageacutedia

No aacutepice da arte poeacutetica tanto no que se refere agrave grandeza do seu

efeito quanto agrave dificuldade da sua realizaccedilatildeo deve-se ver a trageacutedia e de

fato ela assim foi reconhecida Observe-se aqui algo de suma significaccedilatildeo

para toda a nossa visatildeo geral de mundo o objetivo dessa suprema

realizaccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute outro senatildeo a exposiccedilatildeo do lado terriacutevel da vida

27

Vemos na teoria do sublime Schopenhaueriana mais uma vez a influecircncia de Kant Schopenhauer iraacute

identificar duas formas de sublime e utilizar-se-aacute dos termos kantianos ldquosublime dinacircmicordquo e ldquosublime

matemaacuteticordquo para diferenciaacute-los No primeiro o objeto de apreciaccedilatildeo se mostra a princiacutepio uma ameaccedila

ao observador ldquoum poder que suprimiria qualquer resistecircnciardquo(MB 104) No sublime matemaacutetico o

segundo o objeto eacute visto em sua incomensuraacutevel grandiosidade diante da qual o observador infere a sua

infimidade A afinidade entre Schopenhauer e a teoria criacutetica do juiacutezo eacute expressa em sua obra principal

ldquoDe longe o que haacute de mais excelente na criacutetica da faculdade de juiacutezo eacute a teoria do sublime Ela eacute

incomparavelmente mais bem sucedida que a teoria do belo e daacute natildeo apenas como esta o meacutetodo geral

da investigaccedilatildeo mas tambeacutem um trecho do correto caminho de maneira que embora natildeo forneccedila a

soluccedilatildeo propriamente dita do problema chega bem perto delardquo(MVR 660)

55

a saber o inominado sofrimento a miseacuteria humana o triunfo da maldade

o impeacuterio ciacutenico do acaso a queda inevitaacutevel do justo e do inocente E

em tudo isso se encontra uma indicaccedilatildeo significativa da iacutendole do mundo

e da existecircncia Eacute o conflito da Vontade consigo mesma que aqui

desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade entra em

cena de maneira aterrorizante Ele se torna visiacutevel no sofrimento da

humanidade em parte produzido por acaso e erro que se apresentam

como os senhores do mundo e personificados como destino e perfiacutedia os

quais aparecem enquanto intencionalidade em parte advindo da

humanidade mesma por meio dos entrecruzados esforccedilos voluntaacuterios dos

indiviacuteduos e da maldade e perversatildeo da maioria Trata-se de uma uacutenica e

mesma Vontade que em todos vive e aparece cujos fenocircmenos

entretanto combatem entre si e se entredevoram [] Por fim esse

conhecimento no indiviacuteduo purificado e enobrecido pelo sofrimento

mesmo atinge o ponto no qual o fenocircmeno o veacuteu de maia natildeo mais o

ilude Ele vecirc atraveacutes da forma do fenocircmeno do principium

individuationis com o que tambeacutem expira o egoiacutesmo nele baseado Com

isso os ateacute entatildeo poderosos MOTIVOS perdem o seu poder e em vez

deles o conhecimento perfeito da essecircncia do mundo atuando como

quietivo da vontade produz a resignaccedilatildeo a renuacutencia natildeo apenas da vida

mas de toda a vontade de vida mesma (Schopenhauer MVR 333)

Percebemos nesta descriccedilatildeo que a trageacutedia aleacutem de expor a visatildeo de mundo construiacuteda

pelo filoacutesofo tem como fim uacuteltimo provocar um efeito moral no apreciador esteacutetico

qual seja a renuacutencia ao mundo Vejamos entatildeo a relaccedilatildeo entre a visatildeo de mundo

schopenhaueriana o efeito esteacutetico provocado pela trageacutedia e o projeto moral existente

por traacutes de suas teorias

24 A finalidade moral da trageacutedia

Para que possamos perceber a relaccedilatildeo intriacutenseca entre cosmologia metafiacutesica

arte e a eacutetica faz-se necessaacuterio uma pequena excursatildeo sobre esta uacuteltima Que todo o

sistema schopenhaueriano possui um viacutenculo inseparaacutevel com o seu projeto eacutetico eacute fato

que natildeo passa despercebido a seus comentadores Um projeto de juventude eacute descrito

por Safranski (1991 188-198) Young (2006 07 200) Aramayo (2001 56-59) e

Cartwright (Janaway 1999 252) como uma premissa no desenvolvimento da filosofia

56

schopenhaueriana trata-se do projeto de uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Young a descreve

como uma transcendecircncia do mundo ordinaacuterio para o ldquomundo verdadeirordquo Esta

consciecircncia melhor poderia ser experimentada atraveacutes da apreciaccedilatildeo artiacutestica e da

consciecircncia eacutetica ambas originadas do desvelamento de maia Assim Schopenhauer a

descreve conforme citaccedilatildeo de Young (2006 9) ldquopersonalidade e causalidade existem

neste mundo compreensiacutevel temporal sensorial Mas a consciecircncia melhor me leva a

um mundo onde nem personalidade nem sujeito ou objeto existem maisrdquo Safransky

descreve a consciecircncia melhor como um estado semelhante ao ecircxtase miacutestico

Este arrebatamento estaacute livre das coordenadas espaccedilo-temporais

cujo ponto de interseccedilatildeo eacute o eu corporal apartado do espaccedilo do tempo

do eu Os miacutesticos chamam a esta experiecircncia ldquonunc stansrdquo agora

permanente A intensidade deste presente natildeo conhece princiacutepio nem fim

e soacute pode desaparecer porque noacutes desaparecemos dele (Safransky1991

190)

Conforme Aramayo tanto a figura do gecircnio como a do santo satildeo expressotildees do

reconhecimento desta consciecircncia melhor e a filosofia de Schopenhauer pretende-se

uma terceira via que tambeacutem apontaria para este estado de consciecircncia A caracteriacutestica

primordial deste estado eacute o desprendimento dos desejos individuais e o comportamento

virtuoso que adveacutem deste desprendimento Eacute na esteira do entendimento desta

consciecircncia melhor que as bases eacutetico-metafiacutesicas do filoacutesofo foram elaboradas Em

apoio a esta afirmaccedilatildeo Aramayo apresenta duas citaccedilotildees a partir das quais em

momentos distintos de sua vida Schopenhauer apresenta seu projeto de identificaccedilatildeo

entre eacutetica e metafiacutesica Nos escritos de Juventude em 1813 vemos o projeto

Em meu espiacuterito encontra-se em gestaccedilatildeo uma filosofia onde

metafiacutesica e eacutetica devem constituir uma soacute coisa cuja dissociaccedilatildeo eacute tatildeo

errocircnea como agrave da alma e do corpo (Aramayo 2001 41)

Jaacute nos escritos tardios especificamente em seu ensaio de 1836 Sobre a vontade na

natureza veremos Schopenhauer identificar esta uniatildeo

57

Tatildeo soacute esta metafiacutesica que jaacute eacute eacutetica por si soacute ao estar construiacuteda

com esse material primordialmente eacutetico que se supotildee a vontade

constitui real e imediatamente um sustentaacuteculo para a eacutetica em vista de

que poderia haver colocado em minha metafiacutesica o nome de eacutetica (apud

Aramayo 2001 43)

Cartwright aponta ainda na uacuteltima obra schopenhaueriana de 1851 Parerga e

paralipomena a afirmaccedilatildeo de que a ldquosua real filosofia culminou em um ponto de vista

altamente eacutetico-metafiacutesicordquo (Janaway 1999 252)

Na filosofia schopenhaueriana como vimos o indiviacuteduo humano eacute uma

expressatildeo da objetidade da vontade e seu ponto de partida por natureza eacute a satisfaccedilatildeo

manutenccedilatildeo e o prolongamento desta vontade de vida Este estado de consciecircncia onde

todos os esforccedilos estatildeo voltados para a satisfaccedilatildeo da vontade individual eacute a causa de

todo o sofrimento do mundo Aprisionado agrave perspectiva fenomecircnica do mundo o

homem natildeo percebe a unidade da vontade e age de acordo com os motivos estabelecidos

pela sua proacutepria individualidade Para este homem existe uma separaccedilatildeo profunda entre

o proacuteprio eu e os objetos do mundo

Por meio da intuiccedilatildeo que o ceacuterebro efetua a partir dos dados do sentido

e portanto mediatamente conhecemos o proacuteprio corpo como um objeto no

espaccedilo e por meio do sentido interno conhecemos a seacuterie sucessiva de nossos

desejos e atos de vontade que surgem por ocasiatildeo dos motivos externos e

finalmente conhecemos os muacuteltiplos movimentos fortes ou fracos da proacutepria

vontade aos quais todos os sentimentos internos deixam-se reconduzir Isto eacute

tudo pois o conhecer natildeo eacute ele proacuteprio de novo conhecido (Schopenhauer

2001 213)

Eacute deste estado que surge todo o comportamento humano considerado pelo filoacutesofo

como comportamento antimoral Egoiacutesmo eacute o nome dado ao resultado da influecircncia do

princiacutepio de individuaccedilatildeo sobre o comportamento dos homens Este egoiacutesmo chega ao

extremo de o homem considerar-se o centro do mundo e transformar o seu querer em

mandamento para os objetos exteriores ldquoalguns homens seriam capazes de assassinar

um outro soacute para engraxar suas botas com a gordura delerdquo (SFM 124) Nestas

58

condiccedilotildees ldquose fosse dado pois a um indiviacuteduo escolher entre a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo

e a do mundo nem preciso dizer para onde a maioria se inclinariardquo (SFM 121) Da

forma como ocorre com o egoiacutesmo a ilusatildeo fenomecircnica daacute origem a outro sentimento

o oacutedio Estes dois egoiacutesmo e oacutedio satildeo os princiacutepios originadores de todos os viacutecios do

homem Desta leitura pessimista da natureza humana Schopenhauer retira seu conceito

perspectivista das ideacuteias de bem e mal satildeo consideradas boas ou maacutes as coisas que

agradam ou desagradam agrave vontade do indiviacuteduo ldquoPortanto tudo o que eacute favoraacutevel agrave

vontade em alguma de suas exteriorizaccedilotildees e satisfaz seus fins eacute pensado pelo conceito

bom por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectosrdquo (MVR 459)

Este estado eacute definido por Schopenhauer como ldquoafirmaccedilatildeo da vontaderdquo nele o amor-

proacuteprio Eros dita as regras de comportamento Definido o Eros enquanto

fundamentador das accedilotildees antimorais humanas sendo este surgido de uma percepccedilatildeo

subordinada ao principium individuationis entendemos o motivo pelo qual o filoacutesofo

rejeita a validade de qualquer moral baseada em argumentos abstratos

Uma moral sem fundaccedilatildeo portanto um simples moralizar natildeo pode

fazer efeito pois natildeo motiva Uma moral entretanto que motiva soacute pode fazecirc-

lo atuando sobre o amor proacuteprio O que entretanto nasce daiacute natildeo tem valor

moral algum Segue-se assim que mediante moral e conhecimento abstrato em

geral nenhuma virtude autecircntica pode fazer efeito mas esta tem de brotar do

conhecimento intuitivo o qual reconhece no outro indiviacuteduo a mesma essecircncia

que a proacutepria (MVR 468)

Desta forma em contraposiccedilatildeo ao comportamento antimoral produzido

pela ilusatildeo causada pelo principium individuationis o filoacutesofo apresenta o outro lado da

moeda a accedilatildeo moral Esta seria a accedilatildeo praticada em funccedilatildeo do bem-estar de um outro

indiviacuteduo tendo em vista que as accedilotildees praticadas em funccedilatildeo do mal-estar do outro ou

do bem e mal estar de si mesmo satildeo justamente as accedilotildees antimorais baseadas no

egoiacutesmo ou no oacutedio ldquoTodo amor que natildeo eacute compaixatildeo eacute amor-proacuteprio Amor-proacuteprio eacute

59

Eros compaixatildeo eacute Aacutegaperdquo (MVR 478) Todo ato moral eacute por consequumlecircncia um ato de

compaixatildeo ou seja um ato que eacute praticado a partir da percepccedilatildeo do sofrimento do

outro Entretanto a percepccedilatildeo do sofrimento alheio natildeo eacute dada atraveacutes do conhecimento

abstrato E somente por uma percepccedilatildeo intuitiva direta do sofrimento do outro como o

meu proacuteprio sofrimento que surge a compaixatildeo Tal percepccedilatildeo assim como a

apreciaccedilatildeo esteacutetica tem origem em uma visatildeo que vai aleacutem do principium

individuationis Desfaz-se a ilusatildeo causada por este princiacutepio de que existe em realidade

um eu e um natildeo-eu ilusatildeo essa que eacute originada pelos condicionantes do conhecimento

tempo espaccedilo e causalidade Livre do principium individuationis natildeo haacute mais

diversidade natildeo existe mais indiviacuteduo passado futuro motivaccedilotildees existe apenas o

instante presente do ser a vontade Natildeo nos vemos mais como uma vontade separada de

outras ao contraacuterio vemos nos outros a mesma vontade pela qual somos Necessaacuterio

faz-se ressaltar que este conhecimento intuitivo que demonstra a unidade da vontade

em todo indiviacuteduo eacute entendimento de verdade tatildeo profundo que supera qualquer

especulaccedilatildeo abstrata do conhecimento e por isso seu efeito eacute marcante

Para o conhecimento que vecirc atraveacutes do principium individuationis uma

vida feliz no tempo presenteada pelo acaso ou conquistada deste pela

sabedoria em meio ao sofrimento de inumeraacuteveis outros eacute apenas um sonho de

mendigo no qual eacute um rei poreacutem tem de acordar e reconhecer que era tatildeo-soacute

uma ilusatildeo fugidia aquilo que o separava do sofrimento da sua vida (MVR

452)

A experimentaccedilatildeo deste estado de consciecircncia faz-nos perceber a vida como engano

luta infinita e provoca em noacutes a renuacutencia a esta mesma vida agrave vontade de viver O

homem natildeo mais afirma a sua essecircncia mas a repudia

Agrave semelhanccedila do estado de negaccedilatildeo da vontade o proacuteprio estado de

contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee um desinteresse pelos mandamentos da vontade

60

individual um desligamento do caraacuteter egoiacutestico do sujeito empiacuterico28

Para que possa

perceber a Ideacuteia por traacutes do objeto contemplado o observador deve estar em um estado

de consciecircncia que se vecirc livre dos grilhotildees da vontade Neste estado ele eacute alccedilado para

aleacutem da individualidade torna-se puro sujeito de conhecimento Para que este estado se

manifeste eacute imprescindiacutevel natildeo estar interessado nas relaccedilotildees do objeto apreciado seja

com outros objetos seja consigo mesmo O apreciador esteacutetico natildeo se preocupa com o

ldquoonderdquo o ldquocomordquo o ldquoporquecircrdquo dos objetos Estas formas de interjeiccedilatildeo sinalizam para a

relaccedilatildeo dos objetos com o mundo O apreciador esteacutetico no momento da apreciaccedilatildeo

tem em vista somente o ldquoquerdquo do objeto transforma-se em um ldquoolho que vecircrdquo livre do

princiacutepio de individuaccedilatildeo eacute o puro sujeito de conhecimento Vemos nestes dois estados

(o esteacutetico e o compassivo) exemplos de estados de consciecircncia que por suas

caracteriacutesticas de alccedilarem o indiviacuteduo a uma anulaccedilatildeo do sofrimento fazem parte do

projeto de juventude de estabelecer uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Percebemos entatildeo que a

consideraccedilatildeo esteacutetica e a consideraccedilatildeo eacutetica possuem em comum esta caracteriacutestica da

consciecircncia de se apartar do princiacutepio de individuaccedilatildeo

No caso da trageacutedia como descreve Schopenhauer seu fim uacuteltimo eacute despertar a

compaixatildeo no apreciador Desta forma o filoacutesofo associa agrave trageacutedia um efeito singular e

adverso das demais artes ou pelo menos reconhece na trageacutedia a arte capaz de

demonstrar a semelhanccedila entre os modos de consideraccedilatildeo artiacutestico e eacutetico Ao ilustrar o

conflito das vontades no mundo atraveacutes da exposiccedilatildeo do sofrimento humano a trageacutedia

cumpre seu papel artiacutestico ao expor a ideacuteia de humanidade Aleacutem deste atributo

podemos dizer que a trageacutedia tem que cumprir ainda seu papel moral ao causar no

28

Neste ponto de semelhanccedila eacute fundamental apontar mais uma vez a heranccedila kantiana Nas palavras de

Barboza (2001 82) ldquoA negaccedilatildeo da Vontade diante da beleza realmente obedece a uma leitura do

conceito criacutetico de desinteresse Quando Kant diz que o belo eacute aquilo que satisfaz bdquosem nenhum

interesse‟ o autor de O mundo leu essa expressatildeo como equivalente da negaccedilatildeo do querer visto que

interesse e motivo satildeo conceitos intercambiaacuteveis [] e a vontade neutraliza-se desinteressa-se ou seja eacute

indeterminaacutevel por motivos na contemplaccedilatildeo da Ideacuteia do belordquo

61

espectador a renuacutencia a toda vontade O modelo exemplar da trageacutedia eacute para

Schopenhauer a trageacutedia cristatilde onde o heroacutei conscientemente abandona o querer e

conseguintemente a vida Na trageacutedia antiga havia somente a identificaccedilatildeo do

sofrimento humano e sua exposiccedilatildeo A renuacutencia agrave vontade de vida eacute caracteriacutestica das

trageacutedias posteriores ao advento cristatildeo Schopenhauer exemplifica O priacutencipe de

Calderoacuten Gretchen em Fausto A Donzela de Orleans a Noiva de Messina etc Assim

ldquotoda a exposiccedilatildeo traacutegica eacute para o espectador um chamado agrave resignaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo livre

da Vontade de vida Somente a eacutetica pode tornar tudo isso mais compreensiacutevelrdquo (MB

223) Vemos entatildeo de forma clara na teoria da trageacutedia de Schopenhauer um momento

onde ocorre a coalizatildeo dos fundamentos metafiacutesicos de sua filosofia do pessimismo

originado nestes fundamentos e da atitude eacutetica existente por traacutes de seu pensamento

25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera

Faz-se necessaacuterio aqui uma incursatildeo sobre a teoria da muacutesica de Schopenhauer

tendo em vista de que ela ocuparaacute um papel decisivo na teoria nietzscheana da trageacutedia

As relaccedilotildees que Nietzsche estabelece entre a muacutesica a vontade as palavras e

finalmente a trageacutedia satildeo delineadas como veremos pela metafiacutesica schopenhaueriana

da muacutesica No intuito de perceber estas relaccedilotildees propomos aqui um breve esboccedilo da

teoria da muacutesica na filosofia de Schopenhauer

A filosofia da muacutesica encontra seu lugar ao final do terceiro livro de MVR bem

como no capiacutetulo 39 dos complementos fechando assim as consideraccedilotildees de

Schopenhauer sobre a metafiacutesica do belo e as artes29

29

Na esteira de Lydia Goehr (Jacquette 1996 200) ressaltamos que tendo em vista a influecircncia que sua

filosofia da muacutesica exerceu sobre o pensamento artiacutestico e filosoacutefico posterior e comparada agrave dimensatildeo

de sua obra as consideraccedilotildees sobre a muacutesica ocupam um espaccedilo diminuto em sua obra

62

Para o filoacutesofo da vontade a muacutesica eacute a arte que pela natureza de seu objeto de

expressatildeo natildeo encontra lugar apropriado dentro do sistema das demais artes Estas

conforme sua competecircncia em traduzir uma determinada objetidade da vontade uma

ideacuteia satildeo classificadas hierarquicamente A muacutesica entretanto figura aleacutem desta

hierarquizaccedilatildeo pois representa o conceitualmente irrepresentaacutevel ldquoa coacutepia de um

modelo que ele mesmo nunca pode ser representado imediatamenterdquo(MVR 338) a

Vontade mesma Esta arte eacute especialmente considerada devido agrave peculiaridade uacutenica de

seu efeito esteacutetico ldquoeacute uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente

sobre o mais iacutentimo do homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele

como se fora uma linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do

mundo intuitivordquo (MVR 336) A muacutesica estaacute aleacutem da intuiccedilatildeo pois representa aquilo

que estaacute aleacutem desta forma agrave semelhanccedila das ideacuteias que satildeo objetivaccedilotildees imediatas da

vontade a muacutesica eacute tambeacutem uma destas objetivaccedilotildees representaccedilatildeo imediata da coisa

em si O que o compositor apresenta atraveacutes da muacutesica eacute a essecircncia mais iacutentima do

mundo em uma ldquolinguagem natildeo compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo

magneacutetico fornece informaccedilotildees sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito

algumrdquo (MVR 342) Por estar em um acircmbito inalcanccedilaacutevel pelo conceito a muacutesica

atraveacutes de sua linguagem arrebata o homem de forma mais marcante e direta e ateacute

mesmo a explanaccedilatildeo sobre a muacutesica estaacute condenada agrave pobreza e agrave insuficiecircncia Desta

forma o filoacutesofo se utilizaraacute de uma analogia para explanar sobre a muacutesica ie

procederaacute a uma explicaccedilatildeo da muacutesica atraveacutes de um paralelismo entre ela as ideacuteias e o

mundo enquanto objetivaccedilotildees da vontade

Esta analogia expressa atraveacutes de diversos exemplos leva em consideraccedilatildeo que

em suas duas formas de objetivaccedilatildeo (o mundo e a muacutesica) a Vontade deixa transparecer

semelhanccedilas Na muacutesica os tons mais graves aproximam-se ao que satildeo no mundo os

63

graus mais baixos de objetivaccedilatildeo da vontade quais sejam a natureza inorgacircnica A lei

da harmonia estabelece que os tons agudos satildeo originados daquele tom mais grave

fundamental Da mesma forma no mundo os corpos tecircm como fonte e sustentaacuteculo a

natureza inorgacircnica ldquoagrave partir da qual tudo se eleva e desenvolverdquo(MB 230) As vozes

intermediaacuterias da melodia que estatildeo entre o baixo fundamental e a voz condutora

correspondem no mundo aos demais graus de objetivaccedilatildeo da vontade na natureza ldquoAs

vozes mais proacuteximas do baixo correspondem aos graus mais baixos ou seja os corpos

ainda inorgacircnicos poreacutem jaacute se exteriorizando de diversas maneiras As vozes mais

elevadas por sua vez representam os reinos vegetal e animalrdquo(MB 231)

O objeto de representaccedilatildeo da muacutesica eacute a Vontade e esta por sua vez eacute

intraduziacutevel atraveacutes das palavras da configuraccedilatildeo racional pois a razatildeo natildeo pode

alcanccedilar sua profundidade Trata-se de ldquouma linguagem universal cuja

compreensibilidade eacute inata e cuja clareza ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo

(MB 228) Diante desta caracteriacutestica cognitiva a muacutesica natildeo deve se inspirar no texto

nas palavras a natildeo ser para ilustraacute-las e conceder-lhes assim significaccedilatildeo mais

profunda A muacutesica natildeo deve ser composta com base em conceitos ou em objetos e

ocorrecircncias do mundo pois trata-se de uma expressatildeo da ordem do essencial do

universal ldquoela eacute a alma mais interior dessas ocorrecircncias sem o corpordquo (MB 235) Os

objetos e situaccedilotildees do mundo satildeo manifestaccedilotildees e portanto sua representaccedilatildeo

conceitual satildeo reproduccedilotildees circunstanciais da essecircncia do mundo expressa pela muacutesica

Daiacute se compreende o fato de a muacutesica realccedilar em cada

pintura sim em cada cena da vida efetiva e do mundo o

aparecimento de uma significaccedilatildeo mais elevada e tanto mais

quanto mais anaacuteloga eacute sua melodia ao espiacuterito iacutentimo do

fenocircmeno dado A muacutesica combina com tudo em todas as

exposiccedilotildees Nada lhe pode ser estranho pois exprime a essecircncia

de todas as coisas Caso se soe uma muacutesica que combine com

alguma cena da vida humana ou da natureza destituiacuteda de

conhecimento ou com alguma accedilatildeo acontecimento ambiente ou

64

alguma imagem ndash entatildeo ela revela o sentido secreto dessa cena e eacute

seu comentaacuterio mais correto e claro (MB 235)

Esta caracteriacutestica que daacute agrave muacutesica um privileacutegio cognitivo sobre as demais formas

artiacutesticas eacute o que delineia as consideraccedilotildees do filoacutesofo sobre a oacutepera30

A oacutepera ideal eacute

portanto aquela onde o livreto estaacute para a muacutesica como um exemplo para um conceito

geral A muacutesica tem a funccedilatildeo de expor ldquoo profundo e misterioso sobre a essecircncia

iacutentimardquo daquilo que a palavra exemplifica O compositor que maior ecircxito conseguiu

neste sentido conforme o filoacutesofo foi Rossini cuja ldquomuacutesica fala tatildeo distinta e

puramente a sua linguagem PROacutePRIA visto que quase natildeo precisa de palavras e por

conseguinte provoca todo o seu efeito mesmo se executada soacute com instrumentosrdquo

(MVR 344)

Vemos entatildeo a muacutesica como a mais profunda das artes cujo efeito eacute o mais

avassalador e que portanto quando conjugada com outras formas de expressatildeo como a

oacutepera deve formar a base e orientar a sua elaboraccedilatildeo Entretanto ao contraacuterio da

trageacutedia cujo fim eacute o estiacutemulo agrave renuacutencia da vontade de viver a muacutesica segundo a

metafiacutesica exposta por Schopenhauer ldquonatildeo faz mais do que agradar a vontade de viver

jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo seus ecircxitos e ao final expressa sua

satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509)

30

ldquoAo adotar esta atitude Schopenhauer transtorna toda a tradiccedilatildeo jaacute secular que havia afirmado natildeo

poucas vezes desde os tempos do nascimento da oacutepera o predomiacutenio da palavra sobre a muacutesica e em

consequumlecircncia a subordinaccedilatildeo desta uacuteltima agrave primeirardquo (Fubini 1988 289)

65

3 A teoria da trageacutedia do Jovem Nietzsche

Debalde espreitamos por uma raiz

vigorosamente ramificada por um pedaccedilo

de terra sadia e feacutertil por toda parte poacute

areia rigidez consunccedilatildeo Aqui um

solitaacuterio desconsolado natildeo poderia escolher

melhor siacutembolo do que o Cavaleiro com a

Morte e o Diabo como Duumlrer o desenhou o

cavaleiro arnesado com o olhar duro

brocircnzeo que sabe tomar o seu caminho

assustador imperturbado por seus

hediondos companheiros e natildeo obstante

desesperanccedilado sozinho com o seu corcel e

o seu catildeo Um tal cavaleiro duumlreriano foi

nosso Schopenhauer faltava-lhe qualquer

esperanccedila mas queria a verdade Natildeo haacute

quem se lhe iguale

(Nietzsche)

Neste capiacutetulo procuraremos apontar primeiramente o modo pelo qual se deu o

encontro entre Nietzsche e a filosofia de Schopenhauer Em um segundo momento

percorreremos o desenvolvimento histoacuterico das produccedilotildees nietzscheanas que

culminaram com a publicaccedilatildeo da obra que caracteriza o primeiro periacuteodo do filoacutesofo

qual seja O nascimento da trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica Concluiremos entatildeo

apresentando um esboccedilo desta obra dando ecircnfase em todos os momentos aos

66

elementos que caracterizam sua teoria da trageacutedia especialmente agravequeles relacionados agrave

metafiacutesica schopenhaueriana da vontade

31 Schopenhauer e o jovem Nietzsche uma breve contextualizaccedilatildeo histoacuterica

Foram nos anos de universidade em Leipzig que Nietzsche se deparou com a

filosofia de Schopenhauer Este periacuteodo entre os anos de 1865 e 1869 eacute especialmente

importante devido ao fato de que nele podemos assistir ao surgimento de alguns

aspectos fundamentais ao projeto filosoacutefico de Nietzsche Janz descreve este periacuteodo

como aquele em que o filoacutesofo estabeleceu ldquoseus encontros espirituais determinantes a

partir dos quais se defrontou consigo mesmo e com sua tarefardquo(1987 151)

O primeiro contato do jovem Nietzsche com o mundo schopenhaueriano deu-se

em meados de outubro de 1865 pouco tempo apoacutes sua chegada a Leipzig O

arrebatamento causado no jovem estudante de filologia pelo encontro com a filosofia

schopenhaueriana eacute descrito por ele apoacutes dois anos da seguinte maneira

Sentia-me naquela eacutepoca desorientado solitaacuterio sem

princiacutepios sem esperanccedilas inconsolado e com algumas

experiecircncias dolorosas e decepccedilotildees Construir uma vida proacutepria e

adequada era para mim uma aspiraccedilatildeo que me ocupava da manhatilde

ateacute a noite No feliz apartamento em que vivia procurava

concentrar-me a mergulhar em mim mesmo e quando me

encontrava com amigos estes eram sempre Mushacke e Von

Gersdorff os quais por sua parte alentavam objetivos muito

semelhantes aos meus Creio que natildeo seraacute difiacutecil imaginar a

impressatildeo que nesta situaccedilatildeo me causou a leitura da obra

principal de Schopenhauer Encontrei um dia este livro no sebo do

velho Rohm Ignorando tudo sobre ele o tomei em minhas matildeos e

me pus a folheaacute-lo Natildeo sei que democircnio me sussurrou bdquoleve este

livro para a casa‟ Aconteceu de compraacute-lo apesar do meu usual

costume de natildeo me precipitar na compra de livros Uma vez em

casa num canto do sofaacute me lancei sobre o tesouro receacutem

adquirido e comecei a deixar que aquele gecircnio eneacutergico e sombrio

influiacutesse sobre mim Em cada linha sua gritava a renuacutencia

negaccedilatildeo resignaccedilatildeo tinha diante de mim um espelho no qual

podia contemplar o mundo a vida e meu proacuteprio acircnimo com uma

67

grandeza deprimente Um espelho desde o qual o olho solar da

arte me mirava desde sua absoluta falta de interesse Vi

enfermidade e cura desterro e refuacutegio inferno e paraiacuteso A

necessidade de autoconhecimento inclusive de auto-

experimentaccedilatildeo apoderou-se de mim com forccedila indomaacutevel

provas daquela mutaccedilatildeo profunda satildeo hoje todavia para mim as

paacuteginas desassossegadas e melancoacutelicas do diaacuterio que agravequela

eacutepoca escrevi com suas auto-acusaccedilotildees inuacuteteis e sua desesperada

busca de salvaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do inteiro nuacutecleo humano Na

medida em que propus a submeter todas as minhas caracteriacutesticas

e aspiraccedilotildees ao tribunal de uma sombria auto-depreciaccedilatildeo minha

atitude estava cheia de amargura possuiacuteda de um oacutedio injusto e

desenfreado contra mim mesmo Nem sequer renunciei agraves

mortificaccedilotildees corporais Obriguei-me com efeito durante

quatorze dias seguidos a deitar-me agraves duas da noite e acordar agraves

seis da manhatilde Uma excitaccedilatildeo nervosa muito singular se apoderou

assim de mim e quem sabe ateacute que grau de loucura haveria

chegado se natildeo tivesse modificado frente agravequele estado de

acircnimo os atrativos da vida da vaidade e o imperativo de retornar

a meus estudos regulares (conforme citaccedilatildeo de Janz 1987 158)

Da citaccedilatildeo podemos inferir a mudanccedila de acircnimo que o encontro com

Schopenhauer provocou A partir daquele momento diversas correspondecircncias datildeo-nos

ainda informaccedilotildees do impacto que a filosofia de Schopenhauer provocou na concepccedilatildeo

de mundo do jovem estudante Em algumas destas correspondecircncias vemos transparecer

a influecircncia atraveacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio schopenhaueriano bem

como das ideacuteias nelas expressas Assim acontece em carta enviada agrave sua matildee e irmatilde

datada de 5 de novembro de 1865 onde ao discorrer acerca da frivolidade da vida

humana o jovem Nietzsche conclui utilizando-se dos argumentos propostos pela eacutetica

schopenhaueriana

Existem dois caminhos ou se esforccedila e se acostuma a ser

o mais limitado que se possa e uma vez que se reduz o maacuteximo

possiacutevel a luz do espiacuterito se busque bens de fortuna e se viva com

os prazeres do mundo ou por outro lado se sabe que a vida eacute

miseraacutevel se sabe que somos seus escravos tanto mais quanto

mais procuramos dela gozar e por tanto se desprende dos bens da

vida exercita a sobriedade e se eacute austero consigo mesmo e cordial

com os demais ndash e isto porque sente compaixatildeo pelos

companheiros de miseacuteria ndash em uma palavra se vive de acordo

68

com as rigorosas exigecircncias do cristianismo primitivo (OC

470)

Vemos ainda em carta a Mushacke em 12 de julho de 1866 o impacto que a

interpretaccedilatildeo schopenhaueriana pessimista de mundo causou em Nietzsche ldquoDesde que

Schopenhauer nos retirou dos olhos a venda do otimismo as coisas satildeo percebidas

mais agudamente A vida eacute mais interessante ainda que mais feiardquo (conforme citaccedilatildeo

de Janz 1987 172) Percebemos tambeacutem a linguagem schopenhaueriana na descriccedilatildeo

dos momentos de contemplaccedilatildeo Eacute o caso da carta datada de 07 de abril de 1866 a

Gersdorf onde Nietzsche descreve seu estado que nos remeteraacute agrave contemplaccedilatildeo

artiacutestica na filosofia de Schopenhauer ao discorrer sobre os dias de veratildeo ldquo[] a

natureza se faz perfeita e noacutes tambeacutem entatildeo nos sentimos livres do poderio da vontade

sempre alerta e somos olho puro intuitivo desinteressadordquo (OC 472)

Estas influecircncias nortearam de forma definitiva as produccedilotildees acadecircmicas de

Nietzsche mesmos suas pesquisas filoloacutegicas A concepccedilatildeo traacutegica do mundo tornou-se

um feixe condutor para as reflexotildees do jovem filoacutelogo Seus companheiros no estudo da

obra de Schopenhauer eram Gersdorff e Mushacke Em carta agrave sua matildee de 01 de

fevereiro de 1866 Nietzsche deixa saber sobre a frequumlecircncia dos estudos ldquoCom

Gersdorff me encontro uma noite por semana para ler grego a cada duas semanas me

reuacuteno com ele e com Mushacke e nos entregamos a Schopenhauer Este filoacutesofo ocupa

uma posiccedilatildeo importante em meus pensamentos e estudos e meu respeito por ele cresce

incomparavelmenterdquo (OC 471) Se o conteuacutedo da filosofia schopenhaueriana foi

absorvido intensamente pelo jovem Nietzsche como podemos ver a partir dos trechos

transcritos acima a forma estiliacutestica tambeacutem se configura como preocupaccedilatildeo Em um

periacuteodo onde as pesquisas acadecircmicas exigiam o esforccedilo da escrita ali tambeacutem a

autoridade das regras schopenhauerianas exibia sua feiccedilatildeo Eacute tambeacutem em uma carta a

69

Gersdorff datada de 06 de abril de 1867 onde Nietzsche expotildee sua preocupaccedilatildeo com o

estilo

Nestas divagaccedilotildees quero redigir meu trabalho sobre as

fontes de Dioacutegenes Laeacutercio e estou todavia no iniacutecio Para seu

regozijo confessarei que o que mais me daacute trabalho eacute meu estilo

em alematildeo Agora me caem os veacuteus dos olhos e vejo que

durante muito tempo vivi em estado de inocecircncia estiliacutestica O

imperativo categoacuterico bdquodeves escrever‟ me foi despertado[] nos

ouvidos me soavam todos os preceitos estiliacutesticos de Lessing de

Lichtenberg e de Schopenhauer Meu uacutenico consolo eacute que estas

trecircs autoridades afirmavam unanimemente que eacute difiacutecil escrever

bem que por natureza ningueacutem tem um bom estilo e que haacute que

trabalhar e trabalhar para consegui-lo (OC 476)

Entretanto apesar do profundo arrebatamento causado pela filosofia de

Schopenhauer que fez com que o universo das preocupaccedilotildees do entatildeo jovem Nietzsche

se fundamentasse nos pressupostos da metafiacutesica schopenhaueriana outros elementos

tambeacutem fundamentais para o pensamento futuro do filoacutesofo foram tambeacutem neste

periacuteodo despertados Como apontam Dias (2009 42) Janaway (2007 16) e Lopes

(2008 27) jaacute neste periacuteodo que podemos tratar como um periacuteodo de despertar para o

pensamento filosoacutefico encontraacutevamos os elementos que a partir de Humano demasiado

humano conformaratildeo a criacutetica nietzscheana agrave filosofia de Schopenhauer Os

comentadores citados chamam a atenccedilatildeo para o fato de que embora nas obras

publicadas de Nietzsche possamos assistir a criacuteticas diretas a Schopenhauer somente

apoacutes Humano demasiado humano tais criacuteticas agrave filosofia schopenhaueriana surgiram

em um momento imediatamente posterior agrave descoberta da metafiacutesica da vontade Rosa

Maria Dias chama a atenccedilatildeo para os fragmentos poacutestumos e para a correspondecircncia que

agrave partir de 1867 trazem algumas criacuteticas agrave metafiacutesica da vontade Rogeacuterio Lopes e

Cristopher Janaway apontam que algumas destas criacuteticas estatildeo embasadas nas leituras

que o jovem Nietzsche fez de Friedrich A Lange Rudolf Haym Kuno Fischer dentre

outros Tais criacuteticas contudo natildeo afastaram o jovem Nietzsche do discipulado

70

schopenhaueriano mas transformaram sua aceitaccedilatildeo do sistema da vontade No lugar de

uma defesa da consistecircncia loacutegica do sistema Nietzsche passou a adotar uma postura de

defesa da bdquonatureza edificante‟ e preponderantemente artiacutestica deste sistema Exemplos

desta postura podem ser encontrados tambeacutem na correspondecircncia daquele periacuteodo

Para escrever uma apologia a Schopenhauer eu tenho

unicamente que considerar o fato de que olho esta vida livre e

bravamente diante do fato de que encontrei um suporte para me

apoiar obviamente que isto natildeo eacute mais que uma apologia

totalmente individual Mas eacute como as coisas satildeo Se algueacutem

deseja refutar Schopenhauer para mim atraveacutes de argumentos

racionais murmuro em seu ouvido bdquoporeacutem meu amigo visotildees de

mundo natildeo satildeo criadas nem destruiacutedas pela loacutegica‟ (carta a

Deussen Outubro-Novembro de 1867 citada por Janaway

(200718))

Ou ainda em carta a Gersdorff onde apoacutes apresentar a criacutetica de Lange agrave metafiacutesica da

vontade Nietzsche conclui contra Haym ainda com os argumentos de Lange

Natildeo apenas a verdadeira essecircncia das coisas a coisa em si

eacute desconhecida para noacutes tambeacutem seu conceito eacute nada mais nada

menos que o uacuteltimo rebento de um contraste condicionado por

nossa organizaccedilatildeo do qual natildeo sabemos se conserva algum

significado fora de nossa experiecircncia Disso resulta pensa Lange

que os filoacutesofos natildeo devem ser importunados na medida em que

nos edificam A arte eacute livre tambeacutem na regiatildeo dos conceitos

Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro

uma Madonna de Rafael Como vocecirc pode perceber o nosso

Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista

criacutetico ele se torna quase ainda mais valioso para noacutes Se filosofia

eacute arte entatildeo que Haym se anule diante de Schopenhauer se a

filosofia deve edificar entatildeo eu pelo menos natildeo conheccedilo nenhum

filoacutesofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer (apud

Lopes 2008 86-87)

Vimos ateacute entatildeo que a descoberta de Schopenhauer provocou no jovem

estudante de filologia transformou sua forma de perceber o mundo e o influenciou de

forma definitiva a ponto de fazer com que Nietzsche se definisse como um seguidor e

divulgador da obra schopenhaueriana Contudo eacute no fim de seus anos de estudo em

Leipzig que o disciacutepulo de Schopenhauer iraacute se defrontar com a personalidade que lhe

71

reforccedilaraacute de forma ainda mais contundente o selo da rotunda schopenhaueriana

Richard Wagner

Foi atraveacutes de seu amigo Brockhaus cuja esposa era irmatilde do muacutesico que em

novembro de 1868 Nietzsche encontrou-se pela primeira vez com Wagner A partir

daquele encontro se estabeleceria um relacionamento que de uma forma ou de outra

marcaraacute Nietzsche pelo resto de sua vida Em uma carta a seu amigo Erwin Rohde

Nietzsche descreve o primeiro encontro e sua perplexidade ao encontrar em Wagner um

admirador de Schopenhauer ldquo[]mantive com ele uma longa conversa sobre

Schopenhauer Ah Compreenderaacutes minha felicidade em ouvir-lhe falar com um

entusiasmo completamente indescritiacutevel ao qual ele agradecia como Schopenhauer

era o uacutenico filoacutesofo que havia compreendido a essecircncia da muacutesicardquo (Correspondecircncia

2007 21) A impressatildeo deste encontro eacute tambeacutem claramente visiacutevel atraveacutes de

correspondecircncia endereccedilada ao proacuteprio Wagner em maio de 1869 ldquoVeneradiacutessimo

senhor quanto tempo tive a intenccedilatildeo de lhe manifestar sem nenhuma timidez o grau de

gratidatildeo que sinto em relaccedilatildeo ao senhor pois realmente os melhores e mais elevados

momentos de minha vida se ligam ao seu nome e eu soacute conheccedilo mais um homem aleacutem

disso seu grande irmatildeo em espiacuterito Arthur Schopenhauer em quem penso com a

mesma veneraccedilatildeo ateacute senso religiosordquo (Correspondecircncia 2007 56) Como podemos

ver a pessoa de Wagner eacute associada agrave de Schopenhauer Esta associaccedilatildeo tornar-se-aacute

uma constante e poderaacute ser identificada ainda na fase tardia onde as criacuteticas a estes

pensadores e ao que eles entatildeo representavam se daraacute de forma inter-relacionada Este

primeiro encontro com Wagner conforme Janz (1987 22) foi um dos principais

motivos que levaram Nietzsche a aceitar em detrimento de outros planos que

formulava assumir a caacutetedra de filologia em Basel A proximidade de Tribschen

residecircncia dos Wagner e a possibilidade de uma convivecircncia com o muacutesico o

72

inspiraram E assim aconteceu Ao mudar-se para Basel pocircde desfrutar de uma

convivecircncia constante com o casal Wagner Desde a chegada de Nietzsche ateacute a

mudanccedila de Wagner em 1872 encontravam-se com muita frequumlecircncia e os assuntos que

pautavam tais encontros eram amiuacutede arte muacutesica a literatura claacutessica e a filosofia de

Schopenhauer Wagner tornar-se-ia para Nietzsche a personificaccedilatildeo do gecircnio

schopenhaueriano aquele capaz de atraveacutes da muacutesica expor a essecircncia do mundo No

projeto wagneriano de ldquoarte totalrdquo Nietzsche pocircde vislumbrar a uniatildeo entre muacutesica e

filosofia e satisfazer assim em certa medida as expectativas oriundas da metafiacutesica da

vontade

32 O projeto subjacente ao Nascimento da Trageacutedia

Eacute famosa a passagem onde Nietzsche em carta a Deussen datada de janeiro de

1870 informa sobre seu estado de espiacuterito ldquo Ciecircncia arte e filosofia crescem agora

juntas em mim e de tal modo que um dia haverei de parir centaurosrdquo (Janz 1981 66)

Esta afirmaccedilatildeo eacute ilustrativa no que se refere ao ambiente onde o Nascimento da trageacutedia

foi gerado Podemos identificar claramente as figuras por detraacutes dos termos filosofia

arte e ciecircncia satildeo elas Schopenhauer Wagner e a filologia claacutessica Neste periacuteodo

Nietzsche entatildeo jovem professor de filologia estava imbuiacutedo pela pretensatildeo de poder

unir os estudos filoloacutegicos aos filosoacuteficos Sua preleccedilatildeo inicial Homero e a filologia

claacutessica em Basel nos daacute uma amostra desta pretensatildeo Ali podemos assistir a uma

aproximaccedilatildeo entre filologia e filosofia atraveacutes da proposta de uma leitura filosoacutefica do

mundo antigo ldquoCom isto quero expressar que toda atividade filoloacutegica deve estar

impregnada de uma concepccedilatildeo filosoacutefica do mundo na qual todo o particular e singular

seja visto como algo sem proveito e soacute permaneccedila de peacute a unidade do todordquo (OC 26)

73

Sua escolha por trilhar caminhos mais proacuteximos agrave filosofia pode tambeacutem ser observada

pela tentativa frustrada de ocupar uma cadeira desta disciplina que se mostrou livre em

janeiro de 1871 Se por um lado podemos diagnosticar certa decepccedilatildeo e ateacute um

determinado desacircnimo na atividade acadecircmica por outro lado os laccedilos com os Wagner

se estreitavam cada vez mais No refuacutegio de Tribschen sob a aura de Richard Wagner

Nietzsche discorria sobre o mundo grego enquanto modelo de cultura e ouvia os planos

wagnerianos sobre seu projeto de uma obra de arte total Como pano de fundo destas

discussotildees a metafiacutesica da muacutesica schopenhaueriana e sua concepccedilatildeo traacutegica do mundo

Eacute em torno destes eixos formadores que vemos se materializar a primeira publicaccedilatildeo de

Nietzsche

O desenvolvimento das ideacuteias que formaratildeo a obra contudo se deu de forma

gradual Ao longo do periacuteodo compreendido entre a chegada de Nietzsche a Basel e a

publicaccedilatildeo de seu livro determinados trabalhos deixam transparecer o delineamento de

algumas das ideacuteias centrais da obra Satildeo eles O drama musical grego Soacutecrates e a

trageacutedia A visatildeo dionisiacuteaca do mundo e Introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles31

Em o drama musical grego conferecircncia puacuteblica datada de janeiro de 1870

Nietzsche efetua uma comparaccedilatildeo entre a arte traacutegica da antiguidade e as oacuteperas

modernas Estas de acordo com o filoacutesofo satildeo uma imperfeita ldquocaricatura do drama

musical antigordquo (VD 48) Muacutesica pintura escultura e poesia formavam um todo na

arte traacutegica da antiguidade Nas artes modernas por sua vez as formas artiacutesticas satildeo

fragmentadas fato que dificulta o entendimento da trageacutedia grega e que causaria

espanto ao apreciador de arte moderno A muacutesica teria para a trageacutedia antiga uma

31

Como ressaltam M S Silk e J P Stern em sua obra Nietzsche on tragedy (1981 59) o nascimento da

trageacutedia eacute composto de forma estrutural pelos conceitos encontrados nestes trabalhos O iniacutecio do livro

(sectsect1-10) eacute substancialmente baseado no ensaio a visatildeo dionisiacuteaca do mundo enquanto a sequumlecircncia

composta pelos paraacutegrafos 5 e 6 estaacute mais proacutexima da introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles O trecho

composto pelos paraacutegrafos 11 a 14 pode ser derivado diretamente da leitura Soacutecrates e a trageacutedia O resto

do livro eacute formado por uma amaacutelgama destes escritos Partes dispersas ainda satildeo formadas pelo ensaio do

drama musical grego

74

importacircncia capital como elemento intensificador de seu efeito Podemos ver a intenccedilatildeo

por traacutes da anaacutelise nietzscheana da trageacutedia antiga em comparaccedilatildeo agrave opera Ao final da

conferecircncia no elogio que confere a Wagner o tiacutetulo de ldquoatual reformador da arterdquo bem

como na descriccedilatildeo de seu projeto de arte total retratado como um acontecimento que jaacute

teve lugar na trageacutedia da antiguidade claacutessica Nietzsche deixa claro seu engajamento ao

projeto wagneriano

No mecircs seguinte ao da citada conferecircncia uma segunda intitulada Soacutecrates e a

trageacutedia foi proferida por Nietzsche O assunto em pauta era a morte repentina da

trageacutedia grega Esta morte teria ocorrido pelas matildeos de Euriacutepides apoacutes uma decadecircncia

iniciada nos uacuteltimos periacuteodos das produccedilotildees de Eacutesquilo passando por Soacutefocles e

culminando com o advento da comeacutedia Tal decadecircncia teria sido provocada pela saiacuteda

de cena da muacutesica que de forma progressiva foi substituiacuteda pelo diaacutelogo racionalista

Soacutecrates ocupa aqui um lugar importante Eacute sua influecircncia sobre Euriacutepides que

transforma de uma forma definitiva a arte instintivamente musical da trageacutedia em uma

manifestaccedilatildeo do discurso eacutetico racionalista Esta ldquoesteacutetica racionalista e conscienterdquo

pode ser identificada no proacutelogo euripidiano e na inserccedilatildeo do deus ex machina

enquanto agentes de racionalizaccedilatildeo da obra artiacutestica A trageacutedia de Euriacutepides teria

assumido assim os pressupostos do racionalismo socraacuteticos ldquoVirtude eacute saber peca-se

somente por ignoracircncia O virtuoso eacute felizrdquo (VD 90) Esta assunccedilatildeo que liga a virtude

ao saber impotildee agrave trageacutedia um caraacuteter eacutetico alheio agrave sua caracteriacutestica puramente

esteacutetica O elemento culpa na dialeacutetica socraacutetica toma o lugar que era ocupado pela

compaixatildeo Jaacute podemos perceber nesta conferecircncia o esboccedilo da dicotomia que mais

tarde seraacute ilustrada atraveacutes dos deuses Apolo e Dioniso Os pares formadores da

dicotomia satildeo aqui expressos pela separaccedilatildeo entre instinto e razatildeo muacutesica e discurso

pessimismo e otimismo arte e ciecircncia

75

Temos a primeira referecircncia agrave arte dionisiacuteaca como impulso formador da

trageacutedia e sua contraposiccedilatildeo agrave arte apoliacutenea nas aulas proferidas por Nietzsche no veratildeo

daquele mesmo ano Neste curso sobre a trageacutedia de Soacutefocles do qual temos a

introduccedilatildeo podemos ver o esforccedilo de Nietzsche em caracterizar e apontar as

peculiaridades da trageacutedia da antiguidade que a tornam um fenocircmeno uacutenico em

comparaccedilatildeo agraves trageacutedias modernas Tal discussatildeo demonstraraacute pelos aspectos ali

expostos a aproximaccedilatildeo de Nietzsche com autores do periacuteodo claacutessico alematildeo e

sobretudo da chamada querela entre antigos e modernos Vemos claramente a influecircncia

de Schiller e F A Schlegel em algumas das definiccedilotildees adotadas por Nietzsche

No texto denominado A visatildeo dionisiacuteaca do mundo jaacute podemos assistir a um

desenvolvimento das duas pulsotildees artiacutesticas que satildeo o nuacutecleo da interpretaccedilatildeo

nietzscheana da trageacutedia O apoliacuteneo e o dionisiacuteaco satildeo ali explicados no acircmbito de seu

surgimento no mundo helecircnico e simbolizam a uniatildeo entre verdade e beleza na forma de

arte traacutegica Sua descriccedilatildeo como veremos abaixo estaacute permeada de conceitos retirados

da filosofia schopenhaueriana que vatildeo desde a biparticcedilatildeo do mundo entre verdade e

aparecircncia perpassam as noccedilotildees de belo e sublime e apontam a trageacutedia e a muacutesica como

forma de arte superiores

Em janeiro de 1872 Nietzsche daacute luz a seu ldquoCentaurordquo sob o nome O nascimento

da trageacutedia atraveacutes do espiacuterito da muacutesica Em carta a Rohde datada de 23 de novembro

de 1871 podemos notar atraveacutes da ansiosa expectativa nietzscheana a amaacutelgama

formadora da obra ldquo Temo sempre que os filoacutelogos natildeo o queiram ler por causa da

muacutesica os muacutesicos por causa da filologia e os filoacutesofos por causa da muacutesica e da

filologia e sinto logo medo e compaixatildeo de mim mesmordquo (Correspondecircncia 2007 237)

33 A teoria da trageacutedia publicada

Como escopo geral da primeira obra de Nietzsche podemos dizer na esteira de

Silk e de Stern (1981 52) que ela se propunha a esclarecer o problema do nascimento e

76

da morte da trageacutedia helecircnica Trageacutedia que por sua vez era a expressatildeo artiacutestica que

simbolizava um problema vital o de que sob uma superfiacutecie bela podiacuteamos ter acesso agrave

terriacutevel profundidade do ser Tal forma de arte poderia novamente vir agrave luz por uma

geraccedilatildeo criativa que ao combater a superficialidade moderna que reinava no mundo

germacircnico poderia produzir o renascimento moderno do mundo Helecircnico

Em sua essecircncia o nascimento da trageacutedia aponta para as divindades Apolo e

Dioniacutesio como ldquorepresentantes vivosrdquo de princiacutepios diacutespares que irrompem da proacutepria

natureza e que ao serem conciliados de certa forma tornaram possiacutevel que atraveacutes dos

atritos de tal uniatildeo a trageacutedia grega despontasse como manifestaccedilatildeo artiacutestica exemplar

do sublime Em linhas gerais a arte do ldquofigurador plaacutesticordquo estaria entatildeo associada ao

deus Apolo enquanto a arte ldquonatildeo figuradardquo a da muacutesica estaria associada ao deus

Dioniacutesio O apoliacuteneo eacute um impulso da vontade grega que ao almejar a vida a apresenta

transfiguradamente como um belo sonho plasmado no mundo dos deuses oliacutempicos O

princiacutepio apoliacuteneo seria aquele que estabeleceria a ordem a beleza estaacutetica e a clareza

dos limites O dionisiacuteaco eacute oriundo das festas do oriente e seu efeito eacute comparado ao da

embriaguecircs A ele cabe a sabedoria profunda da essecircncia da vida lugar do acaso do

impermanente do horriacutevel e do sofrimento A Apolo eacute facultado tecer o veacuteu que

encobre a sabedoria dionisiacuteaca e torna a vida suportaacutevel atraveacutes da ilusatildeo do sonho

Assim segundo Nietzsche o desenvolvimento contiacutenuo da arte estaacute vinculado agrave

duplicidade dos princiacutepios apoliacuteneo e dionisiacuteaco Perfazendo um caminho histoacuterico da

cultura grega podemos notar uma sobreposiccedilatildeo intermitente entre os impulsos divinos

Temos momentos onde o impulso apoliacuteneo se mostrou dominante e outros onde

Dioniacutesio recupera seu predomiacutenio O mundo oliacutempico homeacuterico com sua arte eacutepica e

sua escultura do periacuteodo doacuterico nascem a partir de uma necessidade de redenccedilatildeo para a

realidade de horror e sofrimento que o povo helecircnico presenciava Em substituiccedilatildeo ao

77

mundo titacircnico temos o mundo dos deuses oliacutempicos exemplificadores de uma

existecircncia divinizada que exalta a vida Nas palavras de Nietzsche ldquoo grego conheceu

e sentiu os temores e os horrores do existir para que lhe fosse possiacutevel de algum modo

viver teve de colocar ali entre ele e a vida a resplendente criaccedilatildeo oniacuterica dos deuses

oliacutempicosrdquo (NT 36) Entretanto a sabedoria dionisiacuteaca portadora da visatildeo abismal do

ser natildeo pocircde ser contida por muito tempo e a muacutesica veiacuteculo da uniatildeo orgiaacutestica aos

poucos foi se infiltrando no mundo construiacutedo pelo divino Apolo Os gregos foram se

tornando conscientes de seu estado sonambuacutelico que sob a graccedila do deus Apolo enleva

e transporta pela extraordinaacuteria beleza natural ou esteacutetica Em um estado semelhante ao

do indiviacuteduo que restabelecido em suas forccedilas pelo efeito renovador do sono ao findar

de uma noite comeccedila a ouvir os sons a sua volta e aos poucos vai se despertando da

mesma forma os gregos comeccedilaram novamente a ouvir o sussurro do Sileno

companheiro de Dioniacutesio ldquoo melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter

nascido e natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo

(NT 36) O artista que representa este retorno do dionisiacuteaco com a mesma envergadura

com que Homero representa as forccedilas apoliacuteneas eacute Arquiacuteloco Tomando-o como modelo

do gecircnio liacuterico Nietzsche faz uma descriccedilatildeo de seu processo de criaccedilatildeo Conforme a

metafiacutesica esteacutetica adotada por Nietzsche - que mais agrave frente veremos ser retirada da

esteacutetica schopenhaueriana - toda arte tem que ser objetiva livre dos interesses

individuais Nesta situaccedilatildeo a liacuterica que tem como objeto o eu do poeta seus desejos e

emoccedilotildees natildeo seria uma forma de arte Entretanto atraveacutes de uma descriccedilatildeo que Schiller

faz da inspiraccedilatildeo poeacutetica Nietzsche aponta o caminho para percebermos a liacuterica como

obra de arte e portanto objetivamente Conforme a passagem de Schiller citada por

Nietzsche (NT 44) ldquoo sentimento se me apresenta no comeccedilo sem um objeto claro e

determinado este soacute se forma mais tarde Uma certa disposiccedilatildeo musical de espiacuterito

78

vem primeiro e somente depois eacute que se segue em mim a ideacuteia poeacuteticardquo Desta forma

Arquiacuteloco em seu processo criativo a princiacutepio entraria em um estado de consciecircncia

ou de criaccedilatildeo onde renunciaria agrave sua individualidade e dionisiacamente participaria do

uno-primordial ldquoabismo do serrdquo estado que por sua vez materializa-se atraveacutes da

representaccedilatildeo musical A muacutesica assim produzida seraacute condiccedilatildeo para o surgimento da

inspiraccedilatildeo que a posteriori daraacute nascimento atraveacutes da aplicaccedilatildeo das formas

apoliacuteneas agrave poesia liacuterica geacutermen da trageacutedia e dos ditirambos dramaacuteticos Esta uniatildeo da

poesia liacuterica com a muacutesica eacute uma expressatildeo sinteacutetica da relaccedilatildeo dos deuses Apolo e

Dioniacutesio Eacute no quinto capiacutetulo de sua obra que Nietzsche iraacute tratar da poesia liacuterica

Neste capiacutetulo o filoacutesofo se distancia de Schopenhauer em sua interpretaccedilatildeo do

fenocircmeno liacuterico Para Schopenhauer na citaccedilatildeo reproduzida por Nietzsche (NT 46) a

liacuterica eacute produzida atraveacutes de uma percepccedilatildeo da consciecircncia onde os estados da vontade

individualizada se alternam com o conhecimento objetivo Como vimos o poeta liacuterico

assistiria ao jogo do eu em sua afetaccedilatildeo emocional e descreveria este estado atraveacutes de

sua poesia Nietzsche ao descrever a liacuterica utiliza-se da teoria da muacutesica

schopenhaueriana qual seja o poeta liacuterico produz primeiramente a muacutesica como forma

geral de expressatildeo da vontade mesma e desta produccedilatildeo gera posteriormente o texto que

se torna um exemplificador do evento musical sua forma plaacutestica objetiva A muacutesica eacute

a aparecircncia da vontade e as imagens apoliacuteneas que dela se originaram satildeo conforme seu

espiacuterito A imagem e o conceito satildeo desta forma na liacuterica originados a partir da

muacutesica

Tem-se portanto na trageacutedia grega uma relaccedilatildeo de interdependecircncia que evoca

um aparente paradoxo ndash ou seja ao lado da necessidade esteacutetica da beleza Apolo exige

dos seus a medida (limites fronteiras do indiviacuteduo presentes no ldquonada em demasiardquo) e

o auto-conhecimento necessaacuterio para determinaacute-la (ldquoconhece-te a ti mesmordquo) o

79

desmedido os excessos o dionisiacuteaco seriam identificados pelo apoliacuteneo como

democircnios de uma era preacute-apoliacutenea era dos Titatildes reminiscecircncias de barbarismo O

paradoxo estaacute em que para que o comedimento apoliacuteneo possa existir o desmedido

dionisiacuteaco faz-se necessaacuterio (na linguagem de Nietzsche como ldquosubstratordquo) assim

como para que o desmedido dionisiacuteaco possa existir faz-se necessaacuterio a existecircncia do

comedido do apoliacuteneo Natildeo obstante a trageacutedia grega depende da conjugaccedilatildeo destes

dois princiacutepios para existir ndash indo aleacutem poder-se-ia dizer que a proacutepria muacutesica compotildee

o princiacutepio primeiro que possibilita o surgimento da trageacutedia no jogo das formas

apoliacuteneo A trageacutedia eacute entatildeo definida como ldquoo coro dionisiacuteaco a descarregar-se sempre

de novo em um mundo de imagens apoliacuteneordquo (NT 60)

Em seu iniacutecio a trageacutedia grega era representada pelo coro traacutegico Este coro natildeo

era uma ldquorepresentaccedilatildeo constitucional do povordquo muito menos um espectador ideal

como o queria August Schlegel Nietzsche acompanha Schiller na definiccedilatildeo de que o

coro cria um terreno ideal para a manifestaccedilatildeo da arte O efeito da trageacutedia eacute a

manifestaccedilatildeo de um estado de unidade que transporta ao abismo do ser O coro eacute a

manifestaccedilatildeo deste sentimento da consciecircncia de que por traacutes da vida cotidiana haacute uma

realidade ldquoindestrutivelmente poderosa e cheia de alegriardquo (NT 55) Este eacute o consolo

metafiacutesico propiciado pela arte traacutegica Ao retornarmos deste estado o cotidiano nos

causa asco nojo Natildeo eacute possiacutevel interpretar mais o papel da vida comum A vida soacute

passa a se justificar atraveacutes da arte Perceba-se aiacute que o coro possui um papel

fundamental no processo O coro atua como impulso artiacutestico dionisiacuteaco em

contraposiccedilatildeo agrave forma apoliacutenea ou seja agraves imagens e agrave beleza plaacutestica Assim o

indiviacuteduo atraveacutes do coro tem para si revelado aquele substrato dionisiacuteaco encoberto

pela beleza e comedimento apoliacuteneos isto eacute ao indiviacuteduo era possiacutevel submergir na

80

torrente dionisiacuteaca do auto-esquecimento permitindo-se pocircr de lado os preceitos

apoliacuteneos

E foi assim que em toda parte onde o dionisiacuteaco penetrou o apoliacuteneo

foi suspenso e aniquilado Mas eacute igualmente certo que laacute onde o primeiro

assalto foi suportado o prestiacutegio e a majestade do deus deacutelfico se externaram de

maneira mais riacutegida e ameaccediladora do que nunca(NT 41-42)

De acordo com Nietzsche as trageacutedias eram em seu iniacutecio representaccedilotildees do

sofrimento de Dioniacutesio Mesmo as trageacutedias do periacuteodo aacutetico traziam Dioniacutesio como

heroacutei traacutegico O sofrimento representado era o do despedaccedilamento de Dioniacutesio o deus

que sofreu o padecimento da individuaccedilatildeo causa de todo o sofrer O mito de Dioniacutesio eacute

interpretado aqui sob a luz da filosofia de Schopenhauer que apresenta a individuaccedilatildeo

como fonte do sofrimento ldquoNos pontos de vista aduzidos temos jaacute todas as partes

componentes de uma profunda e pessimista consideraccedilatildeo do mundo e ao mesmo tempo

a doutrina misteriosoacutefica da trageacutedia o conhecimento baacutesico da unidade de tudo o que

existe a consideraccedilatildeo da individuaccedilatildeo como a causa primeira do mal a arte como a

esperanccedila jubilosa de que possa ser rompido o feiticcedilo da individuaccedilatildeo como

pressentimento de uma unidade restabelecidardquo (NT 70)

Contudo ressalta Nietzsche a trageacutedia grega que como vimos desenvolve-se a

partir do embate contiacutenuo entre as representaccedilotildees dos deuses antiacutepodas ndash envolvidos em

um enfrentamento aparentemente sem fim ndash eacute reestruturada por Euriacutepides de forma a

diminuir o impacto do coro ou seja um golpe quase mortal para Dioniacutesio que

agonizante lanccedila matildeo de seus uacuteltimos esforccedilos O que em Euriacutepedes suscitou esta

reestruturaccedilatildeo que conforme Nietzsche eacute responsaacutevel pelo afastamento progressivo do

dionisiacuteaco tem suas origens no que o filoacutesofo chamou de uma ldquotendecircncia socraacuteticardquo O

socratismo euripidiano e a sua nova concepccedilatildeo esteacutetica satildeo as causadoras do

afastamento dos impulsos esteacuteticos primevos o dionisiacuteaco e o apoliacuteneo Em seu lugar o

discurso consciente passa a imperar O deus ex machina e os proacutelogos satildeo exemplos das

81

interferecircncias racionais que datildeo novo tom agrave trageacutedia aacutetica Soacutecrates e seu racionalismo

expulsam da trageacutedia o conhecimento primevo dionisiacuteaco e estabelecem novas regras

esteacuteticas regras racionais que fazem com que o bom sinocircnimo do belo seja aquilo

alcanccedilado conscientemente

Se a trageacutedia grega foi para Nietzsche a manifestaccedilatildeo mais sublime de uma

forma artiacutestica isto se daacute em decorrecircncia do efeito por ela provocado qual seja o de

justificar o mundo enquanto fenocircmeno esteacutetico Foi exatamente o decliacutenio deste efeito

constatado pela produccedilatildeo racionalizada de Euriacutepides o responsaacutevel pela morte da

trageacutedia Ao fortalecer em demasia os princiacutepios racionais da forma Euriacutepides suprimiu

o dionisiacuteaco por meio da flacircmula que nas palavras de Nietzsche o tragedioacutegrafo

ldquolevava agrave testardquo ndash a saber uma espeacutecie de socratismo esteacutetico cujos princiacutepios se davam

a partir da remissatildeo do belo ao inteligiacutevel e deste ao virtuoso Identifica-se portanto a

racionalidade otimista socraacutetica como grande responsaacutevel pela supressatildeo do impulso

dionisiacuteaco Nietzsche alude agrave proximidade de convivecircncia entre Soacutecrates e Euriacutepides

para justificar a presenccedila do racionalismo nas obras Euripidianas Soacutecrates frequumlentava

o teatro somente para assistir agraves apresentaccedilotildees de Euriacutepides De todos os atenienses

Soacutecrates era apontado como o mais saacutebio e Euriacutepides como o segundo em sabedoria

Entretanto na contraposiccedilatildeo proposta por Nietzsche entre conhecimento instintivo e

racional Soacutecrates era descomunalmente racional ao contraacuterio do intuitivismo criativo

que reinava ateacute entatildeo Era questionando aos atenienses sobre seus atos que Soacutecrates

percebia que eles natildeo agiam conscientemente mas por intuiccedilatildeo A crenccedila socraacutetica de

que toda accedilatildeo boa deve ser consciente dominou o teatro atraveacutes de Euriacutepides Uma

chave para o entendimento da racionalidade socraacutetica segundo Nietzsche nos eacute

revelada pela ldquomonstruosa inversatildeordquo representada pela consciecircncia criacutetica de Soacutecrates ndash

ou seja a nota destoante em Soacutecrates revela-se pelo instinto criacutetico em contraposiccedilatildeo agrave

82

consciecircncia criacutetica a consciecircncia criadora em contraposiccedilatildeo ao instinto como forccedila

criadora Intui-se assim o motivo pelo qual Soacutecrates natildeo compreendia a trageacutedia grega

- o dionisiacuteaco a tornava ininteligiacutevel para as exigecircncias racionalistas e criacuteticas da

ldquodialeacutetica otimistardquo socraacutetica ldquoA Soacutecrates [] parecia que a arte traacutegica nunca bdquodiz a

verdade‟ sem considerar o fato de que se dirigia agravequele que bdquonatildeo tem muito

entendimento‟ portanto natildeo aos filoacutesofos daiacute um duplo motivo para manter-se dela

afastadordquo(NT 87) Nietzsche compara Soacutecrates ao heroacutei euripidiano que

diferentemente (ateacute mesmo antagonicamente) agrave trageacutedia de Eacutesquilo e Soacutefocles ldquoprecisa

defender suas accedilotildees por meio da razatildeo e contra a razatildeordquo O que estaacute em jogo no

socratismo eacute a substituiccedilatildeo das verdades expressas miticamente religiosamente pelas

verdades loacutegicas A razatildeo tenta abarcar o todo e para isso desconsidera a arte e seus

impulsos A excelecircncia estaacute no saber e atraveacutes deste alcanccedila-se a felicidade erro do

otimismo racionalista Ilusatildeo da razatildeo que se acha soberana e independente A loacutegica

torna-se essecircncia da trageacutedia procura-se por relaccedilotildees causais e pelo bom telos O

diaacutelogo formata sua estrutura e expulsa seu fundamento musical O ldquoheroacutei dialeacuteticordquo eacute

portanto impulsionado pelo elemento otimista da dialeacutetica A justiccedila transcendental

presente nas obras Esquilianas ldquoeacute rebaixada ao niacutevel do raso e insolente princiacutepio da

bdquojusticcedila poeacutetica‟ com seu habitual deus ex machinardquo (NT 89) A racionalidade de

Soacutecrates atraveacutes de sua investigaccedilatildeo cientiacutefica da natureza de seu processo de

construccedilatildeo loacutegica da realidade daraacute origem ao que Nietzsche denominaraacute de ldquohomem

teoacutericordquo ou ldquohomem cientiacuteficordquo a quem a razatildeo ergue-se acima da proacutepria realidade ao

ponto mesmo de ndash e aiacute reside o proacuteprio otimismo ndash propor-se a tarefa de corrigir as

falhas da proacutepria realidade Mais ainda a razatildeo socraacutetica acena ao homem com a

promessa de conferir sentido agrave existecircncia pelo conhecimento e desta forma busca

justificar tal existecircncia

83

Em face ao pessimismo praacutetico eacute Soacutecrates o protoacutetipo do

otimista teoacuterico que na jaacute assinalada feacute na escrutabilidade da

natureza das coisas atribui ao saber e ao conhecimento a forccedila de

uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo

(NT 94)

Natildeo obstante o otimismo no conhecimento na racionalidade socraacutetica encontra seu

maior dragatildeo em sua proacutepria loacutegica interna Assim nas palavras de Nietzsche

[] a periferia do ciacuterculo da ciecircncia possui infinitos pontos

e enquanto natildeo for possiacutevel prever de maneira nenhuma como se

poderaacute alguma vez medir completamente o ciacuterculo o homem

nobre e dotado ainda antes de chegar ao meio de sua existecircncia

tropeccedila e de modo inevitaacutevel em tais pontos fronteiriccedilos da

periferia onde fixa o olhar no inesclareciacutevel Quando divisa aiacute

para seu susto como nesses limites a loacutegica passa a girar em

redor de si mesma e acaba por morder a proacutepria cauda ndash entatildeo

irrompe a nova forma de conhecimento o conhecimento traacutegico

que mesmo para ser apenas suportado precisa da arte como meio

de proteccedilatildeo e remeacutedio (NT 95)

Afigura-se-nos aqui o problema apontado por Nietzsche como o ldquoproblema da

ciecircncia mesmardquo a saber um problema que nos envolve a todos por abarcar (ou

contaminar) toda a cultura ocidental - isto eacute ainda mantemos o dionisiacuteaco agrave baila

ocupando diminuta posiccedilatildeo em detrimento ao culto acerbado ao racionalismo socraacutetico

A cultura socraacutetica impotildee-se pelo homem-teoacuterico e qualquer outra existecircncia que fuja

aos olhos perscrutadores de Soacutecrates deve ldquolutar penosamente para pocircr-se agrave sua altura

como existecircncia permitida e natildeo como existecircncia propostardquo

Nietzsche nos atenta para o fato de reconhecermos comumente no homem culto

erudito o homem douto saacutebio ndash consecutivamente o dionisiacuteaco a arte eacute colocada de

forma perifeacuterica de modo a nunca poder encontrar espaccedilo para superar sua condiccedilatildeo de

ldquoremeacutedio-arterdquo A vontade aacutevida faz seu caminho mesmo atraveacutes da completa falta de

respostas de fundamentos de sentido assim eacute preferiacutevel ao ser humano querer o nada

no sentido de ainda sim querer alguma coisa do que nada querer do que reconhecer a

84

falta de fundamentos da qual consistem em todos os tempos as ilusotildees que

costumeiramente adota-se como engodo ao absoluto sem-sentido da vida

Por fim Nietzsche atenta-nos para o fato de como o homem de seu tempo vem

perdendo a crenccedila na ciecircncia otimista socraacutetica isto eacute pressentindo que a cultura

racionalista socraacutetica torna-se iloacutegica ao vislumbraacute-la em seus horizontes afastando-se

de suas consequumlecircncias Nietzsche diagnostica na oacutepera de seu periacuteodo a subordinaccedilatildeo da

muacutesica agrave arte figurada agrave palavra e expotildee a expectativa de que possa haver no cansaccedilo e

na percepccedilatildeo do insucesso dos esforccedilos racionalistas um renascimento da trageacutedia

85

4 Conclusatildeo pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo

da vida

Retribui-se mal a um mestre continuando-

se sempre apenas aluno

(Nietzsche)

Natildeo podemos ver na filosofia schopenhaueriana qualquer instacircncia que

justifique a vida Ao conhecermos a sua essecircncia - a vontade cega e irracional que se

deixa ver atraveacutes das manifestaccedilotildees do seu querer incessante - percebemos o absurdo de

sua existecircncia e somos por essa percepccedilatildeo levados agrave sua negaccedilatildeo Nietzsche por sua

vez utilizando-se dos conceitos da filosofia de Schopenhauer procura em sua obra

justificar a vida e encontra esta justificaccedilatildeo na arte Nesta conclusatildeo da pesquisa

pretendemos entatildeo apresentar um esboccedilo do modo pelo qual alguns elementos da

filosofia schopenhaueriana foram utilizados no projeto do primeiro livro de Nietzsche e

explicitar o modo como estes elementos foram configurados no interior de seu projeto

Dentre estes elementos percorreremos o paralelo entre os pares dionisiacuteacoapoliacuteneo e

vontaderepresentaccedilatildeo os conceitos de arte e apreciaccedilatildeo esteacutetica e sua cisatildeo entre as

86

artes figurativas e a musical a especificidade da muacutesica o conceito de gecircnio e sua

divisatildeo e os limites da racionalidade e da ciecircncia

Jaacute no primeiro paraacutegrafo de NT a associaccedilatildeo entre os pares nietzscheanos do

dionisiacuteaco e apoliacuteneo e as visotildees de mundo schopenhauerianas satildeo expliacutecitas Nietzsche

define o impulso apoliacuteneo atraveacutes do sonho do princiacutepio de individuaccedilatildeo e o dionisiacuteaco

atraveacutes da embriaguez da consciecircncia de unidade da vontade do livrar-se do veacuteu de

maia Os deuses gregos tornam-se representativos destes estados schopenhauerianos de

consciecircncia Como vimos no capiacutetulo segundo desta dissertaccedilatildeo sob o ponto de vista da

representaccedilatildeo o mundo eacute objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito

agraves condiccedilotildees a priori do entendimento Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das

formas a priori do entendimento eacute interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos

advindos da filosofia Platocircnica e oriental como um mundo aparente ilusoacuterio artificial

O sonho efeito do encantamento apoliacuteneo eacute utilizado como metaacutefora da realidade

fenomecircnica no mundo Schopenhaueriano Os Vedas e Puranas tantas vezes citados por

Schopenhauer tratam o mundo como um sonho imposto pelo deus Maia o deus da

ilusatildeo que cobre a visatildeo do homem com seu veacuteu A mitologia oriental aludida por

Schopenhauer toma conta do mundo helecircnico em Nietzsche que transforma Apolo no

deus Maia o configurador de sonhos O sonho eacute utilizado como ilustraccedilatildeo da realidade

pelo fato de que durante o sonho natildeo sabemos estar sonhando O mundo dos sonhos nos

eacute naquele momento real Vemo-nos como indiviacuteduos e vemos o mundo da

individuaccedilatildeo e suas leis causais espaccedilo-temporais Somente o momento empiacuterico do

despertar informa-nos do sonho Haacute portanto uma identificaccedilatildeo do ldquoparentesco iacutentimo

entre vida e sonhordquo(MVR 60) Como ilustraccedilatildeo desta metaacutefora Schopenhauer elogia

ainda a obra do ldquovaterdquo Calderoacuten de La Barca A vida eacute sonho agrave qual denominaraacute como

um ldquodrama metafiacutesicordquo por expor esta faceta de seu sistema A consciecircncia de que a

87

vida eacute sonho eacute para Schopenhauer um despertar metafiacutesico cujo propiciador foi Kant

ao demonstrar o caraacuteter fenomecircnico do mundo Este despertar contudo natildeo causa

prazer O filoacutesofo e o gecircnio personagens que na metafiacutesica schopenhaueriana alcanccedilam

este despertar satildeo atormentados pela realidade com a qual se deparam qual seja a de

que a vida eacute puro sofrimento Eacute no intuito de deixar velada esta faceta da vida que

Apolo ofusca a visatildeo dos homens com seu mundo luminoso de sonho seu objetivo eacute

encobrir esta verdade aterrorizadora As artes natildeo musicais tanto na teoria de

Schopenhauer como na nietzscheana manteacutem o homem em um juacutebilo prazeroso

ocasionado pela contemplaccedilatildeo puramente objetiva Neste momento natildeo se percebe o

jogo da vontade individualizada somos afastados da realidade do querer insuflados

pela caracteriacutestica quietiva da apreciaccedilatildeo esteacutetica nas palavras de Nietzsche

encontramos na arte um ldquoremeacutedio-arterdquo32

Esta visatildeo do lado terriacutevel da vida ocasionada pelo despertar do dogmatismo

metafiacutesico na teoria schopenhaueriana eacute associada em NT agrave sabedoria dionisiacuteaca

Verificamos na descriccedilatildeo do impulso dionisiacuteaco os elementos que caracterizam a

vontade schopenhaueriana A visatildeo dionisiacuteaca do mundo carrega consigo o despertar

para o caraacuteter absurdo da vida Ao olhar para a proacutepria essecircncia o homem descobre-se

enquanto manifestaccedilatildeo de uma vontade aacutevida desprovida de telos O ldquomecanismo

internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens marionetes guiados pela

carecircncia Esta realidade eacute assustadora pois subtrai do horizonte todos os propoacutesitos da

vida individual Dioniacutesio trava aqui sua batalha contra Apolo ao apontar a ilusatildeo da

individuaccedilatildeo como mecanismo para uma fuga daquilo que em essecircncia somos Apesar

de seu caraacuteter aterrorizador a sabedoria dionisiacuteaca eacute acompanhada do deleite

32

Podemos ver aqui o nuacutecleo da dissenssatildeo entre as teorias dos dois filoacutesofos Para Schopenhauer este

remeacutedio eacute temporaacuterio e tatildeo logo o efeito da apreciaccedilatildeo esteacutetica se esvaia os interesses da vontade voltam

a agir sobre o indiviacuteduo e a vida de sofrimento continua seu percurso restando apenas o caminho da

negaccedilatildeo daquela vontade da vida mesma em direccedilatildeo ao nada Nietzsche ao contraacuterio aponta para uma

forma de cura atraveacutes do remeacutedio-arte ver a vida enquanto forma de arte afirmaacute-la

88

indescritiacutevel da celebraccedilatildeo da unidade com o todo ldquoSob a magia do dionisiacuteaco torna a

selar-se natildeo apenas o laccedilo de pessoa a pessoa mas tambeacutem a natureza alheada

inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliaccedilatildeo com seu filho

perdido o homemrdquo(NT 31) Se Apolo eacute representado como deus da forma da clareza

da individuaccedilatildeo e as artes patrocinadas por ele satildeo expressotildees destas caracteriacutesticas

Dioniacutesio por sua vez eacute o patrocinador da muacutesica expressatildeo fenomecircnica direta da

vontade Vemos em Nietzsche uma biparticcedilatildeo das artes que tambeacutem pode ser extraiacuteda

da metafiacutesica schopenhaueriana (artes natildeo-musicais e arte musical)

Para Schopenhauer as formas artiacutesticas natildeo-musicais ao provocarem uma visatildeo

puramente objetiva do objeto apreciado tecircm como caracteriacutestica fundamental a

libertaccedilatildeo da subjetividade e com ela dos anseios da vontade Durante esta forma de

apreciaccedilatildeo esteacutetica ldquosomos alforriados do desgraccedilado iacutempeto volitivo festejamos o

Sabbath dos trabalhos forccedilados do querer a roda de Iacutexion cessa de girarrdquo (MVR

267) A definiccedilatildeo nietzscheana para a funccedilatildeo da arte apoliacutenea se daacute da mesma maneira

qual seja ela deve ldquo [] livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito

graccedilas ao baacutelsamo da aparecircncia do espasmo dos movimentos do querer []rdquo (NT

117) A muacutesica por sua vez recebe um tratamento especial de Schopenhauer devido ao

seu efeito esteacutetico Se as demais artes satildeo um quietivo para a vontade a muacutesica ldquonatildeo faz

mais do que agradar a vontade de viver jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo

seus ecircxitos e ao final expressa sua satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509) Ela encontra-se

num niacutevel de valor superior ao das demais artes por tratar-se de representar a essecircncia

do mundo a vontade mesma Assim tambeacutem ela eacute tratada por Nietzsche como a arte

que representa a sabedoria dionisiacuteaca e faz o apreciador vivenciar a vontade mesma

Em seus escritos sobre a poesia e a oacutepera Schopenhauer alude agrave necessidade de

subordinar os conceitos e o texto agrave muacutesica para que estas artes tenham um efeito mais

89

arrebatador no apreciador esteacutetico Esta subordinaccedilatildeo eacute assumida por Nietzsche em sua

teoria da trageacutedia Nietzsche encontra na liacuterica a primeira manifestaccedilatildeo desta junccedilatildeo da

arte dionisiacuteaca com a arte apoliacutenea e aponta aiacute o geacutermen que daraacute origem agrave trageacutedia

Podemos perceber aqui uma subordinaccedilatildeo das artes natildeo-musicais agrave muacutesica que por sua

vez se espelha na subordinaccedilatildeo do mundo fenomecircnico ao mundo da coisa-em-si As

artes figurativas representam as ideacuteias objetivaccedilotildees imediatas da vontade e a muacutesica

representa a vontade mesma Na teoria da trageacutedia de Nietzsche esta subordinaccedilatildeo seraacute

mantida e assim reflete a configuraccedilatildeo da metafiacutesica schopenhaueriana A muacutesica ldquoeacute

uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente sobre o mais iacutentimo do

homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele como se fora uma

linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo (MVR

336) Desta forma uma arte que se pretenda formar a partir da integraccedilatildeo de elementos

de diversas formas artiacutesticas deve tomar a muacutesica como inspiraccedilatildeo tanto na teoria de

Schopenhauer como na de Nietzsche

Desta dicotomia das formas artiacutesticas que podemos perceber nos dois filoacutesofos

podemos depreender duas formas do gecircnio o apoliacuteneo ou contemplativo e o

compositor dionisiacuteaco Para Schopenhauer ldquoo compositor manifesta a essecircncia mais

iacutentima do mundo expressa a sabedoria mais profunda numa linguagem natildeo

compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo magneacutetico fornece informaccedilotildees

sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito algumrdquo (MVR 342) Podemos

vislumbrar ainda nesta descriccedilatildeo de Schopenhauer uma caracteriacutestica do que Nietzsche

mais tarde iraacute chamar de criaccedilatildeo inconsciente Em uma segunda passagem desta vez ao

final do capiacutetulo 39 do segundo volume de MVR vemos tambeacutem uma caracteriacutestica que

posteriormente tambeacutem seraacute ressaltada por Nietzsche como demarcaccedilatildeo do caraacuteter

dionisiacuteaco Schopenhauer se utiliza de uma passagem dos Vedas para descrever o prazer

90

provocado pela muacutesica como um prazer de participaccedilatildeo no todo33

Este ecircxtase da

comunhatildeo eacute um aspecto reiteradamente apontado por Nietzsche O gecircnio dionisiacuteaco eacute

para o jovem filoacutesofo aquele que tambeacutem absorvido pelo impulso dionisiacuteaco traduz

sua essecircncia em linguagem musical O tipo de gecircnio musical descrito eacute encontrado em

Schopenhauer nas encarnaccedilotildees de Rossini e Beethoven cujas obras operiacutesticas satildeo

norteadas pela produccedilatildeo musical e o livreto ocupa um lugar secundaacuterio Nietzsche

aponta um renascimento progressivo do gecircnio musical em seu tempo que se inicia com

Bach e tem continuidade em Beethoven mas que encontra sua forma mais bem acabada

em Richard Wagner

Apesar da tomarem caminhos diferentes no que tange ao objetivo da obra de arte

traacutegica Nietzsche e Schopenhauer mais uma vez em uniacutessono consideram-na todavia

como uma forma de entendimento superior ao apresentado pelo pensamento cientiacutefico

Como vimos anteriormente as ciecircncias no sistema schopenhaueriano seguem o

princiacutepio de razatildeo seu papel eacute apenas descritivo e consequumlentemente limitado ao

acircmbito daquele princiacutepio Transformam em conceitos abstratos o mundo intuitivo ao

descrevecirc-lo em sua aparecircncia e seguem o fio condutor do principio de razatildeo

apresentando as causas para cada fenocircmeno particular Desta forma as ciecircncias estatildeo

subordinadas ao mundo da aparecircncia e no que importa agrave essecircncia natildeo podem

demonstraacute-la As uacutenicas produccedilotildees humanas com esta capacidade satildeo a arte e a

filosofia e essas o fazem de forma indireta metafoacuterica A consideraccedilatildeo racional do

mundo estaacute enquanto presa ao acircmbito do fenocircmeno subordinada aos ditames da

vontade Esta ldquovontade aacutevida sempre encontra um meio atraveacutes de uma ilusatildeo

distendida sobre as coisas de prender agrave vida as suas criaturas e de obrigaacute-las a

prosseguir vivendordquo (NT 108) Nietzsche descreve trecircs formas pelas quais a vontade

33

ldquoE o delicioso que eacute uma classe de alegria chama-se assim o sumo Atman porque onde haacute uma

alegria esta eacute uma pequena parte de sua alegriardquo (MVR II 510)

91

manteacutem a vida A primeira delas eacute o ldquoveacuteu da beleza da arterdquo sustentado pelo impulso

apoliacuteneo Encontramo-la na epopeacuteia homeacuterica e nas artes figurativas A segunda eacute a

visatildeo traacutegica do mundo que encontra um consolo metafiacutesico na percepccedilatildeo de um

substrato comum aos fenocircmenos e que por consequumlecircncia abdica destes em funccedilatildeo da

vivecircncia daquele substrato A terceira forma de dominaccedilatildeo da vontade eacute a ciecircncia a

loacutegica socraacutetica que procura abarcar o mundo com sua razatildeo de acircnsia justificadora

Estas trecircs formas de coerccedilatildeo conforme sua predominacircncia em determinada cultura

formam o que Nietzsche iraacute denominar respectivamente de culturas artiacutestica traacutegica e

socraacutetica Correspondem historicamente agraves fases predominantemente helecircnica budista

ou alexandrina Fazendo um diagnoacutestico da cultura contemporacircnea Nietzsche a

identifica como uma cultura predominantemente alexandrina Diagnostica o seu ocaso a

partir da identificaccedilatildeo feita por Kant e Schopenhauer dos limites da ciecircncia do

desmascaramento das verdades eternas que amparam a visatildeo socraacutetica de mundo quais

sejam a visatildeo de que o tempo o espaccedilo e a causalidade satildeo leis universais e

incondicionais Esta criacutetica ao racionalismo eacute constante na obra schopenhaueriana

Percebemo-la claramente em suas investidas contra a filosofia de seu tempo e a

presunccedilatildeo nela presente de racionalmente abarcar o real

- - - - - - - - - -

Compostas por conceitos da metafiacutesica schopenhaueriana a teoria da trageacutedia de

Schopenhauer e a de Nietzsche apontam para caminhos diversos Em Schopenhauer a

trageacutedia eacute a arte cujo fim uacuteltimo eacute ao expor seu lado terriacutevel inspirar o apreciador agrave sua

renuacutencia Este lado terriacutevel espelho do mundo presentificador da vida humana e de

suas relaccedilotildees ocasiona atraveacutes do medo e da compaixatildeo a vontade de renuacutencia a essa

92

mesma vida Nietzsche introduz na trageacutedia o elemento da muacutesica schopenhaueriana34

A consequumlecircncia desta introduccedilatildeo eacute um plano mais profundo de entendimento que

apresenta a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com sua essecircncia Neste estado de consciecircncia

apartado de sua individualidade o sujeito jaacute se vecirc como um criador de mundos e vecirc no

mundo uma obra de arte sua Ao derivar o impulso apoliacuteneo do dionisiacuteaco35

Nietzsche

jaacute executou a renuacutencia do indiviacuteduo que agora passa a se ver como essecircncia e ao mundo

como fenocircmeno artiacutestico

34

Machado (2006 200) considera na esteira de Clemeacutent Rosset e de Jean-Marie Schaeffer a utilizaccedilatildeo

da teoria da apreciaccedilatildeo musical de Schopenhauer por Nietzsche como o elemento que sugeriraacute a

caracteriacutestica de afirmaccedilatildeo da vontade de sua filosofia da trageacutedia 35

ldquoNo efeito conjunto da trageacutedia o dionisiacuteaco recupera a preponderacircncia ela se encerra com um tom

que jamais poderia soar a partir do reino da arte apoliacutenea E com isso o engano apoliacuteneo se mostra como o

que ele eacute como o veacuteu que enquanto dura a trageacutedia envolve o autecircntico efeito dionisiacuteaco o qual

todavia eacute tatildeo poderoso que ao final impele o proacuteprio drama apoliacuteneo a uma esfera onde ele comeccedila a

falar com sabedoria dionisiacuteaca e onde nega a si mesmo e agrave sua visibilidade apoliacuteneardquo (NT 129)

93

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3

Catalogaccedilatildeo sisbinsisbinufopbr

E86f Euclides Raul Moraes de

A filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia [manuscrito]

uma anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzsche Raul

Moraes de Euclides - 2010

99f

Orientador Prof Dr Heacutelio Lopes da Silva

Co-orientador Prof Dr Eduardo Soares Neves Silva

Dissertaccedilatildeo (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto

Instituto de Filosofia Artes e Cultura

Aacuterea de concentraccedilatildeo Esteacutetica e Filosofia da Arte

1 Schopenhauer Arthur 1788-1860 - Teses 2 Nietzsche Friedrich

Wilhelm 1844-1900 - Teses 3 Trageacutedia - Teses I Universidade Federal

de Ouro Preto II Tiacutetulo

CDU 179221

4

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

INSTITUTO DE FILOSOFIA ARTES E CULTURA

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA

MESTRADO EM ESTEacuteTICA E FILOSOFIA DA ARTE

Dissertaccedilatildeo intitulada ldquoA filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia

uma anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzscherdquo de autoria do

mestrando Raul Moraes de Euclides apresentada agrave banca examinadora constituiacuteda pelos

seguintes professores

____________________________________________________

ProfDr Heacutelio Lopes da Silva - Orientador- UFOP

___________________________________________________

ProfDr Eduardo Soares Neves Silva ndash Co-orientador - UFMG

____________________________________________________

Prof Dr Douglas Garcia Alves Juacutenior - UFOP

____________________________________________________

Prof Dr Rogeacuterio Antocircnio Lopes - UFMG

Ouro Preto 24 de Marccedilo de 2010

5

Agrave minha famiacutelia

6

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente ajudaram na elaboraccedilatildeo deste

trabalho

Agrave minha esposa pelo amor paciecircncia e apoio

Ao corpo docente do curso de mestrado e em especial ao meu co-orientador

cujo incentivo foi essencial agrave continuaccedilatildeo da pesquisa

Ao meu orientador pelas observaccedilotildees valiosas

Aos colegas de mestrado companheiros indispensaacuteveis nas diaacuterias procissotildees de

embriaguez dionisiacuteaca pelas labiriacutenticas ladeiras de Ouro Preto

7

A existecircncia eacute um episoacutedio do nada

Arthur Schopenhauer

8

RESUMO

O projeto que aqui se apresenta tem como objetivo principal percorrer as

teorias do traacutegico schopenhaueriana e nietzscheana no intuito de apresentar as

principais caracteriacutesticas de cada uma destas teorias Este percurso teraacute como ponto de

partida o fundamento metafiacutesico comum a elas qual seja a filosofia schopenhaueriana

da vontade Atraveacutes desta exposiccedilatildeo pretendemos demonstrar natildeo somente a real

amplitude da influecircncia de Schopenhauer nos primeiros escritos de Nietzsche mas

tambeacutem algumas das peculiaridades existentes em cada uma das citadas teorias

Palavras-chave Schopenhauer - Nietzsche - Trageacutedia - Traacutegico - Filosofia da

vontade

ABSTRACT

The research presented herein has as its ultimate goal to discuss the

theories of the tragedy developed by Schopenhauer and Nietzsche highlighting the

main characteristics ndash points of convergence and divergence ndash of both Our trajectory

shall start from the metaphysical foundations apparently displayed in both theories

which is ndash the schopenhauerian philosophy of the will Throughout our exposition we

intend to show not only that Schopenhauers philosophy had a huge impact in

Nietzsches first writings but also reveal the peculiarities beneath the development of

their aforementioned theories

Keywords Schopenhauer - Nietzsche - Tragedy - Tragic ndash Philosophy of the will

9

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO11

1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES NA

FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA 17

2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU

SUBSTRATO METAFIacuteSICO42

21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo43

22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo45

23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana49

24 A finalidade moral da trageacutedia56

25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera62

3 A TEORIA DA TRAGEacuteDIA DO JOVEM NIETZSCHE65

31 A influecircncia de Schopenhauer na obra do primeiro Nietzsche66

32 O projeto subjacente ao nascimento da trageacutedia72

33 A teoria da trageacutedia publicada75

4 CONCLUSAtildeO pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo da

vida85

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS93

10

ABREVIATURAS

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CORRESPONDEcircNCIA = Correspondecircncias de Nietzsche (2007)

OC = Obras completas de Nietzsche (1963)

11

INTRODUCcedilAtildeO

ldquoDias sem nuacutemero nunca reservam a

ningueacutem nada mais que dissabores mais

proacuteximos da dor que da alegria Quanto aos

prazeres natildeo os discernimos e nossa vista os

buscaraacute em vatildeo logo que para nossa

desventura chegamos ao limite prefixado E

desde entatildeo o nosso aliacutevio uacutenico seraacute aquele

que daraacute a todos o mesmo fim na hora de

chegar de suacutebito o destino procedente do

tenebroso reino onde natildeo haacute cantos nem

liras onde natildeo haacute danccedilas ndash ou seja a morte

epiacutelogo de tudo Melhor seria natildeo haver

nascido como segunda escolha bom seria

voltar logo depois de ver a luz agrave mesma

regiatildeo de onde se veiordquo

(Soacutefocles)

As teorias sobre a trageacutedia de Schopenhauer e Nietzsche satildeo parte

indispensaacutevel no estudo da histoacuteria da filosofia da trageacutedia Dentre os diversos

pensadores contemporacircneos que tratam sobre o problema da trageacutedia e do traacutegico e que

deram visiacutevel destaque agraves teorias dos nossos filoacutesofos podemos destacar Walter

Benjamin1 e Peter Szondi

2 Entretanto nos trabalhos destes autores o problema do

1 BENJAMIN Walter Origem do drama barroco alematildeo Traduccedilatildeo Sergio Paulo Rouanet Satildeo Paulo

Brasiliense 2004

12

relacionamento e da interdependecircncia entre as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche

natildeo eacute detalhado a contento Diante disto mesmo para um olhar historicamente

caracterizador torna-se vaacutelido um estudo comparado destas teorias que leve em

consideraccedilatildeo o quecirc ou o quanto haacute de comum em suas metafiacutesicas e a partir desta

perspectiva trace os aspectos coincidentes e dissidentes das mesmas mostrando seus

pontos de interdependecircncia e discrepacircncia muacutetua

Apesar de estar entre as teorias da trageacutedia mais estudadas do periacuteodo do

idealismo alematildeo a teoria Schopenhaueriana que eacute sempre analisada em relaccedilatildeo a seus

pressupostos metafiacutesicos ao ser vista sob outra perspectiva ganharia contornos

intensamente enriquecidos Esta perspectiva atraveacutes da qual nos propomos a examinar a

teoria do traacutegico do filoacutesofo eacute aquela que levaraacute em consideraccedilatildeo as influecircncias

histoacutericas culturais e filosoacuteficas que agiram diretamente sobre a esteacutetica do traacutegico

schopenhaueriana Ao lanccedilarmos um olhar sobre estas referidas influecircncias estaremos

abrindo caminho para uma melhor compreensatildeo sobre a teoria esteacutetica

schopenhaueriana o que conseguintemente refletiraacute em um juiacutezo mais adequado da

teoria nietzscheana

Para um entendimento mais eficiente das teorias propostas nas obras do

jovem Nietzsche parece-nos essencial o conhecimento de uma de suas mais decisivas

influecircncias a filosofia de Schopenhauer A analogia almejada erige-se na verdade

como meacutetodo de anaacutelise ou seja o que pretendemos eacute alcanccedilar uma maior compreensatildeo

dos problemas com os quais Nietzsche se deparou quando da elaboraccedilatildeo de sua primeira

obra e procurar identificar a existecircncia de alguma apropriaccedilatildeo eou adaptaccedilatildeo de alguns

conceitos da filosofia de Schopenhauer na resoluccedilatildeo destes problemas A necessidade

deste estudo comparativo torna-se ainda mais evidente quando e este eacute o caso

2 SZONDI Peter Ensaio sobre o Traacutegico Traduccedilatildeo Pedro Suumlssekind Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

13

defrontamo-nos com uma influecircncia que se apresenta tatildeo clara e assumidamente

admitida pelo autor Todavia natildeo se pretende aqui apenas a justaposiccedilatildeo de um

pensamento ao outro Apesar de ser identificaacutevel em toda a obra posterior de Nietzsche

encontra-se nos seus primeiros escritos sobretudo na obra O nascimento da trageacutedia

aquele momento discursivo no qual podemos apontar uma influecircncia mais direta da

filosofia de Schopenhauer

Dos trabalhos que fazem um estudo comparativo entre estes filoacutesofos a

maioria se ateacutem em identificar as diferenccedilas conceituais entre eles mais

especificamente no campo eacutetico e metafiacutesico Grosso modo tratam principalmente dos

problemas relativos agrave diferenciaccedilatildeo entre os conceitos de vontade nestes autores

vontade de viver e vontade de poder Estes estudos tecircm como foco a filosofia tardia de

Nietzsche onde este apesar da assumida influecircncia torna-se um criacutetico de

Schopenhauer A real extensatildeo da influecircncia deste filoacutesofo na primeira obra de

Nietzsche bem como o relacionamento entre suas teorias da trageacutedia permanecem

assim como territoacuterios ainda pouco explorados Ao lanccedilarmos olhar sobre esse

afastamento que Nietzsche mais tarde realizaraacute em relaccedilatildeo agrave filosofia

Schopenhaueriana verificamos mais uma vez a importacircncia do estudo de sua primeira

fase na qual poderemos detectar o referido afastamento

Podemos observar entretanto o crescimento do interesse no estudo da

obra O nascimento da trageacutedia de Nietzsche Nos uacuteltimos anos assistimos tambeacutem no

Brasil agrave publicaccedilatildeo de vaacuterios trabalhos que tecircm sob perspectiva a complexidade desse

seu primeiro livro Na bibliografia sugerida neste projeto constam publicaccedilotildees dos

seguintes autores Roberto Machado (2006) Rosa Maria Dias (2005 e 2009) Iracema

Macedo (2006) Marcio Joseacute Silveira Lima (2006) Estas publicaccedilotildees tratam temas

diversos da esteacutetica nietzscheana tais como a muacutesica a trageacutedia o traacutegico ou a

14

repercussatildeo do livro de Nietzsche e sua influecircncia wagneriana Podemos ver entretanto

naqueles e em outros trabalhos a constante chave de leitura que atribui a Schopenhauer

a influecircncia decisiva natildeo apenas sobre o jovem Nietzsche como usualmente se aponta

mas tambeacutem sobre um peculiar imbricamento entre metafiacutesica e esteacutetica o qual se

sustentaria sobre os ldquoimpulsos artiacutesticos da naturezardquo o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco Nos

termos de Dias (2005 27)

A oposiccedilatildeo apoliacutenea e dionisiacuteaca considerada no plano

metafiacutesico se daacute a partir da noccedilatildeo de vontade ou querer

estendida (sic) no sentido que a ela deu Schopenhauer de

ldquocentro e nuacutecleo do mundordquo ou ldquoforccedila que eternamente quer

deseja e aspirardquo () O mundo fenomecircnico como resultado

desse movimento do querer () faz um segundo movimento

dessa vez esteacutetico reproduzindo o movimento inicial que a

vontade realizou em direccedilatildeo agrave aparecircncia

Tendo em vista o fato de que as teorias sobre o traacutegico dos dois filoacutesofos tecircm como

ponto de partida o sistema metafiacutesico schopenhaueriano fica clara a necessidade de

analisar em cotejo estas teorias tendo como fio condutor o meacutetodo de investigaccedilatildeo ora

proposto

Aleacutem de um aprofundamento no problema da influecircncia de

Schopenhauer na obra esteacutetica de Nietzsche o estudo de suas teorias sobre o traacutegico nos

daraacute a oportunidade de identificar as peculiaridades de cada uma destas teorias bem

como de estabelecer a sua importacircncia histoacuterica para uma filosofia do traacutegico

Em um primeiro momento traccedilaremos um panorama histoacuterico que

objetiva entender o status quo da filosofia do traacutegico no periacuteodo anterior ao

desenvolvimento da teoria schopenhaueriana da trageacutedia Esta investigaccedilatildeo seraacute

norteada pelas referecircncias constantes na proacutepria obra de Schopenhauer bem como por

um levantamento biograacutefico do filoacutesofo ou seja trabalharemos somente os momentos

que satildeo fundamentais para uma melhor compreensatildeo da obra schopenhaueriana Dentre

15

estes momentos daremos ecircnfase aos seguintes pontos o estudo sobre o helenismo de

Winckelmann e sua repercussatildeo a criacutetica teatral de Lessing Schiller e Goethe seu

projeto de criaccedilatildeo de um teatro alematildeo e suas produccedilotildees dramaacuteticas

Traccedilado o panorama histoacuterico no qual se insere a teoria da trageacutedia

schopenhaueriana passaremos para o toacutepico seguinte a apresentaccedilatildeo do sistema

metafiacutesico de Schopenhauer no qual estaacute embasada a sua teoria da trageacutedia bem como

a teoria nietzscheana A apresentaccedilatildeo seraacute feita de forma a expor os aspectos gerais da

filosofia da vontade atendo-se aos pontos deste sistema que estatildeo intrinsecamente

relacionados agraves teorias da trageacutedia dos nossos autores

Apoacutes os passos descritos reuniremos em um esboccedilo geral as

caracteriacutesticas do relacionamento existente entre o jovem Nietzsche e a filosofia de

Schopenhauer Para tanto utilizaremo-nos das referecircncias que Nietzsche faz a

Schopenhauer em suas cartas e escritos de juventude Com esta pesquisa pretendemos

identificar a opiniatildeo que o jovem Nietzsche tinha sobre a filosofia de Schopenhauer e a

profundidade da influecircncia desta em sua primeira obra Percorreremos ainda o ambiente

circundante agrave primeira obra de Nietzsche no intuito de realccedilar alguns dos conceitos

formativos de O nascimento da trageacutedia

Estabelecida a ligaccedilatildeo entre os autores passaremos ao estudo do apoliacuteneo

e do dionisiacuteaco par conceitual que nos forneceraacute a chave para se fazer um estudo

comparativo entre os filoacutesofos Para cumprir esta etapa analisaremos O nascimento da

trageacutedia bem como escritos contemporacircneos a este livro atraveacutes dos quais poderemos

delinear melhor a significaccedilatildeo desta duplicidade de impulsos e visotildees de mundo

Delinearemos assim os contornos das definiccedilotildees fundamentais da esteacutetica nietzscheana

e procuraremos construir um paralelo entre o mundo dionisiacuteaco e o mundo metafiacutesico

da vontade schopenhaueriano Temos a intenccedilatildeo de demonstrar a origem desta

16

metafiacutesica da vontade ou seja o criticismo kantiano e sua importacircncia para o conceito

de dionisiacuteaco Demonstraremos tambeacutem as caracteriacutesticas do mundo fenomecircnico

schopenhaueriano em sua identidade com o apoliacuteneo nietzscheano retomando a

epistemologia de Schopenhauer

Realizada a aproximaccedilatildeo e expostas tanto as semelhanccedilas como as

particularidades dos conceitos principais dos dois autores percorreremos sempre

focando um estudo paralelo entre os filoacutesofos outros conceitos que encontram

similaridade em suas esteacuteticas Com esse intuito procuraremos identificar nos dois

filoacutesofos o destaque dado agrave muacutesica dentro de suas teorias e o lugar dado agraves outras artes

em suas obras Discorreremos sobre a criacutetica que eles em uniacutessono fazem ao que

nomeiam racionalismo dogmatismo e o otimismo Finalizadas as aproximaccedilotildees

voltaremos nossa atenccedilatildeo ao aspecto de dissensatildeo que propicia o afastamento

fundamental entre as teorias dos dois filoacutesofos o efeito da trageacutedia Com isto

demonstraremos que a base metafiacutesica comum quando alinhada a pressupostos

esteacuteticos distintos geraraacute a referida dissensatildeo

17

1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES

NA FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA

Por que minha filosofia natildeo encontrou

simpatia e interesse Porque a verdade natildeo

estaacute de acordo com a tagarelice dos tempos

(Schopenhauer)

Neste primeiro capiacutetulo objetivamos apresentar as fontes filosoacuteficas

incutidas no sistema schopenhaueriano no intuito de situar historicamente o surgimento

da filosofia da vontade e trazer agrave baila o seu ambiente circundante bem como as teorias

filosoacuteficas com as quais Schopenhauer se propotildee a dialogar Apontaremos inicialmente

as influecircncias filosoacuteficas assumidamente presentes no sistema schopenhaueriano bem

como aquelas que fundamentam sua metafiacutesica e consequumlentemente sua teoria esteacutetica

Em um segundo momento procuraremos fazer um breve esboccedilo do ambiente artiacutestico-

cultural que dominava o pensamento alematildeo de entatildeo com o qual direta ou

indiretamente Schopenhauer e o jovem Nietzsche se depararam Com isto esperamos

posteriormente demarcar as singularidades que caracterizam as teorias destes filoacutesofos

Ressaltamos todavia que natildeo se trata de um mapeamento completo das fontes que

influenciaram esses autores ndash tarefa que exigiria um esforccedilo bem maior do que aquele

18

proposto por esta pesquisa ndash e sim de um breve panorama que se pautaraacute nas influecircncias

marcantemente presentes em suas obras

No contato com a obra de Schopenhauer a primeira impressatildeo que natildeo

passa despercebida aos seus leitores eacute a qualidade de sua prosa3 Tal qualidade

revelada na diversidade de recursos literaacuterios utilizados pelo autor eacute produto da visiacutevel

erudiccedilatildeo cultivada pelo filoacutesofo Conhecedor do grego do latim e suas respectivas

literaturas Schopenhauer transitava ainda pela obras literaacuterias cientiacuteficas e filosoacuteficas

contemporacircneas em suas liacutenguas originais conhecia o inglecircs o italiano o francecircs e o

espanhol Em sua juventude conviveu com vaacuterias personalidades do meio cultural

germacircnico que frequumlentavam o salatildeo de sua matildee em Weimar dentre eles Goethe a

maior figura das letras germacircnicas com quem teve um relacionamento mais proacuteximo

Sua obra eacute repleta de citaccedilotildees de poetas dramaturgos e seu conhecimento das artes

plaacutesticas e da muacutesica natildeo satildeo superficiais Em suas viagens pela Europa pocircde admirar

diversas esculturas e pinturas e como ele proacuteprio dizia pocircde ler diretamente no ldquolivro

do mundordquo Essa erudiccedilatildeo pode ser notada mesmo diante do desconhecimento de sua

biografia pela observaccedilatildeo da enorme quantidade de citaccedilotildees e menccedilotildees que estatildeo

espalhadas no interior de suas obras traduzidas ou como em sua maior parte citadas

em suas respectivas liacutenguas Frequumlentava as mais diversas aacutereas de conhecimento de sua

eacutepoca como sustenta Aramayo

3 O cuidado com a qualidade da produccedilatildeo literaacuteria tanto no que se refere agrave clareza quanto agrave riqueza de

recursos linguumliacutesticos eacute uma das caracteriacutesticas que Schopenhauer e Nietzsche tecircm em comum Esta

qualidade torna-se mais evidente ainda quando seus trabalhos satildeo natildeo raramente comparados com os

escritos filosoacuteficos alematildees daquele periacuteodo principalmente aos de Fichte Schelling e Hegel O elogio agrave

prosa schopenhaueriana feito por literatos e filoacutesofos contemporacircneos influenciados por sua obra pode

ser ilustrado agrave exaustatildeo entre eles encontram-se Thomas Mann Goethe Wittgenstein e o proacuteprio

Nietzsche ldquoMas a imensa forccedila de penetraccedilatildeo deste pensamento explica-se antes de tudo pelo fato de o

autor ser ao lado de Nietzsche o maior entre os escritores filosoacuteficos alematildeesrdquo (Rosenfeld 1996 177)

Jorge Luis Borges em uma entrevista publicada por Die Welt em 25 de marccedilo de 1975 realizava esta

confissatildeo ltPara mim existe um escritor alematildeo ao qual prefiro Schopenhauer Sei que deveria dizer

Goethe poreacutem Schopenhauer me interessa muitiacutessimo mais Tanto que estudei alematildeo ndash que aprendi

sobre os versos de Heine ndash fundamental e especificamente para poder ler a Schopenhauer em sua proacutepria

liacutenguagt (Aramayo 2001 18)

19

ldquoEm sua busca pela verdade Schopenhauer natildeo desdenha

nenhum aliado Os dramaturgos novelistas e poetas estatildeo quando

menos em peacute de igualdade com os mais egreacutegios filoacutesofos A perspicaacutecia

de Shakespeare ou a genialidade de Voltaire e a sutileza de Goethe nada

devem para a eloquumlecircncia Platocircnica a precisatildeo de um Spinoza e o rigor

conceitual do admirado Kant Sua curiosidade natildeo conhece limites nem

prejuiacutezo algum e por esta razatildeo tampouco menospreza quando o

considera oportuno prestar suficiente atenccedilatildeo aos fenocircmenos

paranormais agrave hipnose ou ao caacutelculo cabaliacutestico se entende que em

algo isto pode servir-lhe para demonstrar sua tese ou avaliar algumas de

suas intuiccedilotildees E na mesma direccedilatildeo aponta seu grande empenho por

incorporar o pensamento das religiotildees orientais a nosso acervo cultural

na possibilidade de um enriquecimento muacutetuordquo (Aramayo 2001 14-15)

A comparaccedilatildeo feita atraveacutes de metaacuteforas4 paraacutebolas ou alegorias em

sua maioria retiradas de obras literaacuterias ou cientiacuteficas torna-se recurso literaacuterio

constantemente presente na obra do filoacutesofo e ao mesmo tempo termocircmetro de suas

influecircncias e de seu relacionamento com o pensamento de seus contemporacircneos Tais

recursos satildeo utilizados contudo com o objetivo consciente de construir conhecimento

de ilustrar a mateacuteria do seu pensamento Nas palavras do filoacutesofo ldquoAs comparaccedilotildees satildeo

de grande valor na medida em que reduzem uma relaccedilatildeo desconhecida a uma

conhecida Inclusive as comparaccedilotildees mais detalhadas transformadas em paraacutebola ou

alegoria satildeo somente a reduccedilatildeo de uma relaccedilatildeo qualquer agrave sua exposiccedilatildeo mais

simples ilustrativa e palpaacutevelrdquo (Schopenhauer SOE 86) Se o nosso objetivo eacute mostrar

as raiacutezes da filosofia de Schopenhauer ou seja as influecircncias que formaram a mateacuteria

de seu pensamento eacute sobre esta mateacuteria que devemos nos debruccedilar Natildeo podemos

contudo nos furtar a apontar a riqueza das fontes formalmente presentes em seus

escritos5 A percepccedilatildeo da presenccedila desta numerosa miscelacircnea de referecircncias dentro da

4 ldquoSua profusa e brilhante utilizaccedilatildeo das metaacuteforas eacute o que o converte sem duacutevida alguma em um grande

escritor cujo estilo se nos afigura tatildeo ameno quanto sugestivordquo (Aramayo 2001 54) 5 Mateacuteria e forma satildeo na concepccedilatildeo do filoacutesofo planos ou instacircncias da produccedilatildeo escrita que servem

como referecircncia para o julgamento de valor do pensamento de um autor ldquo Um livro nunca pode ser mais

do que a impressatildeo dos pensamentos do autor O valor desses pensamentos reside na mateacuteria ou seja

naquilo sobre o que ele pensou ou na forma isto eacute na elaboraccedilatildeo da mateacuteria naquilo que pensou a

respeitordquo (Schopenhauer SOE 11) A importacircncia dada agrave forma por Schopenhauer seraacute melhor

esclarecida quando posteriormente apresentarmos a caracteriacutestica fundamentalmente epistemoloacutegica de

toda produccedilatildeo artiacutestica dentro de sua metafiacutesica do belo

20

obra schopenhaueriana diz-nos algo sobre seu estilo e seu arcabouccedilo cultural

entretanto quando voltamo-nos para a busca das influecircncias diretamente presentes em

seu sistema ie agraves raiacutezes da mateacuteria de seu pensamento percebemos que elas natildeo satildeo

tatildeo numerosas

Uma leitura das fontes filosoacuteficas do sistema schopenhaueriano torna-se

diferentemente do que ocorre em outros sistemas de seu tempo menos trabalhosa por

dois motivos Primeiramente o autor natildeo esconde suas influecircncias mas ao contraacuterio

faz questatildeo de apontaacute-las citaacute-las e quando lhe parece necessaacuterio as critica ou exalta

Em segundo lugar o que facilita o mapeamento destas fontes eacute a caracteriacutestica de

unidade do sistema schopenhaueriano como um todo Apesar da longevidade do

filoacutesofo e da distacircncia temporal entre suas obras suas intuiccedilotildees fundamentais

continuaram sendo as mesmas ao longo de sua vida Nas palavras de Rosset

ldquoSchopenhauer eacute homem de um soacute livro o MVR e de um soacute pensamento (qualificado

por ele mesmo de ltpensamento uacutenicogt nas primeiras linhas de sua obra)rdquo (2005 35)6

Natildeo satildeo poreacutem coetacircneas as influecircncias que marcaram a obra do filoacutesofo

como talvez a constante menccedilatildeo a seus contemporacircneos possa sugerir Nas palavras do

filoacutesofo como citado por Lefranc (2005 17) ldquoPude amar prosseguir aperfeiccediloar a

minha obra soacute por ela mesma em tranquumlilidade completa ao abrigo de toda influecircncia

externa e meus contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes

permaneci estranhosrdquo Conhecia a filosofia de seu tempo todavia natildeo a tinha como

interlocutora na verdade a desdenhava satildeo famosas as criacuteticas de Schopenhauer contra

as filosofias de seus contemporacircneos principalmente as de Fichte Schelling e Hegel

6 Sobre a unidade da produccedilatildeo schopenhaueriana destacamos aleacutem de Rosset os apontamentos de outros

dois de seus maiores comentadores Arthur Huumlbscher e Alexis Philonenko Na introduccedilatildeo aos manuscritos

schopenhauerianos Huumlbscher aponta a importacircncia dos manuscritos na percepccedilatildeo desta unidade uma vez

que podemos notar em diversas fases da vida do filoacutesofo o desenvolvimento dos temas pontuais que

marcaram sua obra principal Vide Hubscher Introduction Manuscript Remains 1985 Alexis

Philonenko trata desta unidade no proacutelogo de sua obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia

(Philonenko 1989 41-45)

21

(chamados de ldquoos trecircs sofistasrdquo) Quando faz referecircncias a eles comumente estaacute

imbuiacutedo de trecircs propoacutesitos criticar a qualidade formal de suas produccedilotildees

principalmente no que tange ao uso da liacutengua germacircnica apontar uma motivaccedilatildeo

individualista (subsistecircncia pessoal e status social) que existiria por traacutes de suas

elucubraccedilotildees filosoacuteficas e ressaltar a falta de atenccedilatildeo por parte daqueles filoacutesofos no

que se refere ao conteuacutedo da primeira criacutetica kantiana

Schopenhauer diagnosticava em seu tempo um periacuteodo de

empobrecimento da expressatildeo literaacuteria e do uso da liacutengua germacircnica e apontava como

os principais responsaacuteveis por estes acontecimentos os ldquoprofessores de filosofiardquo e seus

disciacutepulos As investidas schopenhauerianas contra a filosofia de seus contemporacircneos

podem ser encontrada em praticamente todas as suas obras mas estatildeo concentradas de

forma mais persistente em sua produccedilatildeo mais tardia na segunda ediccedilatildeo da QRPRS de

MVR em seus ensaios sobre a liberdade e o fundamento da moral e nos PP 7

Nesta

uacuteltima obra temos dedicados a estas criacuteticas alguns textos que podemos destacar Sobre

o ofiacutecio de escritor Da leitura e dos livros Da liacutengua e das palavras e Sobre a filosofia

universitaacuteria A liacutengua alematilde no que se refere agrave sua capacidade expressiva era tida em

mais alta consideraccedilatildeo por nosso filoacutesofo Afirmava que dentre as liacutenguas modernas

era ldquoa uacutenica na qual se pode escrever quase tatildeo bem quanto em grego ou em latimrdquo

(Schopenhauer SOE 72) Esta capacidade de expressatildeo de uma liacutengua eacute segundo o

filoacutesofo resultado de sua aptidatildeo em representar conceitos Desta forma na medida em

que surgem novos conceitos a elaboraccedilatildeo de novas palavras que os representem eacute um

sinal de evoluccedilatildeo adequaccedilatildeo e riqueza da liacutengua Entretanto para o filoacutesofo os

neologismos e adaptaccedilotildees criados por seus contemporacircneos natildeo eram resultados da

7 Muitos historiadores da filosofia bioacutegrafos e comentadores apontam que esta criacutetica adveacutem do

ressentimento pelo fracasso de Schopenhauer como docente na universidade de Berlim onde Hegel

reinava absoluto bem como da falta de reconhecimento de sua filosofia diante do sucesso dos professores

da mesma universidade

22

tentativa de representaccedilatildeo de novos conceitos mas ao contraacuterio eram comprovaccedilatildeo de

sua ldquopobreza de espiacuterito que a todo custo quer colocar algo no mercado e por natildeo ter

novos pensamentos chega com palavras novasrdquo (Schopenhauer SOE 129)

Schopenhauer condenava a atitude de seus contemporacircneos de utilizarem-se de

artifiacutecios como a natildeo designaccedilatildeo do caso a expressatildeo dos preteacuteritos por meio do

imperfeito a supressatildeo dos prefixos e outros subterfuacutegios para com isso disfarccedilar a sua

imprecisatildeo conceitual De acordo com Schopenhauer tratavam displicentemente a

liacutengua alematilde por dois motivos por natildeo possuiacuterem uma mateacuteria conceitualmente

relevante a ser expressa ou entatildeo para conscientemente causar a impressatildeo de que a

possuem e neste caso a responsabilidade pela natildeo compreensatildeo do texto seria atribuiacuteda

agrave incompetecircncia intelectual do leitor

Os que compotildeem discursos difiacuteceis obscuros enleados e

ambiacuteguos natildeo sabem ao certo o que querem dizer tecircm somente uma

consciecircncia vaga a esse respeito que luta primeiro por uma ideacuteia poreacutem

amiuacutede querem tambeacutem ocultar de si mesmos e dos outros que na

realidade eles natildeo tecircm nada a dizer Como Fichte Schelling e Hegel

querem parecer saber o que natildeo sabem pensar o que natildeo pensam e dizer

o que natildeo dizem Algueacutem que tenha algo correto a dizer se esforccedilaraacute por

exprimi-lo de maneira indistinta ou distinta (Schopenhauer SOE 39)

Podemos perceber entatildeo que ao criticar o estilo ldquoobscurordquo e ldquopomposordquo de seus

contemporacircneos Schopenhauer aponta como causa deste estilo natildeo somente a sua falta

de mateacuteria mas tambeacutem uma atitude consciente e arquitetadamente maldosa e com

toda a sua forccedila retoacuterica condena esta atitude

Nobre bdquoatualidade‟ magniacuteficos epiacutegonos geraccedilatildeo crescida no

leite materno da filosofia hegeliana Pela gloacuteria eterna quereis apertar

vossas garras em nossa antiga liacutengua para que a marca com um icnoacutelito

conserve para sempre o vestiacutegio de vossa existecircncia insiacutepida e sombria

Mas Dicirc Meliora Fora paquidermes fora Esta eacute a liacutengua alematilde Nela se

expressaram homens ou melhor nela cantaram grandes poetas e grandes

pensadores escreveram Arredai as patas Ou natildeo tereis o que comer (Soacute

isso os assusta) (Schopenhauer SOE 72-73)

23

A uacuteltima frase desta citaccedilatildeo nos eacute aclarada pelo texto Sobre a filosofia universitaacuteria

onde o filoacutesofo expotildee os argumentos de sua criacutetica agrave filosofia produzida em seu tempo

Para Schopenhauer os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo podem devido agrave sua funccedilatildeo

estatal se imiscuir do compromisso poliacutetico-religioso que seu cargo exige e

conseguintemente sustentados pelo Estado tratam de fazer sua apoteose Nas palavras

de Cacciola constantes na introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo brasileira do referido texto

ldquoSchopenhauer eacute um continuador da criacutetica romacircntica ao filisteiacutesmo que se origina em

Tieck A ironia que visa os homens de vida tatildeo regular como o reloacutegio lhe eacute bem

familiar O filisteu eacute o erudito pedante que soacute pensa na proacutepria vantagem O professor

de filosofia que pauta seus ensinamentos de acordo com os ditames do Estado e da

religiatildeo eacute o tipo acabado do filisteu A idolatria do Estado eacute a apoteose do filisteiacutesmo

(Schopenhauer SFU XXX) Por traacutes das ideacuteias dos ldquofiloacutesofos de profissatildeordquo estaria

incutido o retorno disfarccedilado da ldquoteologia judaicardquo de uma ldquopsicologia racionalrdquo da

ldquoliberdade da vontaderdquo e outros dogmas que de acordo com Schopenhauer refletem a

sua vocaccedilatildeo de trabalharem ldquoin maiorem Dei gloriamrdquo como exigido pela ideologia

estatal daquele periacuteodo Natildeo podem sob a pena de perderem o sustento financeiro

pessoal e familiar bem como sob o custo de perderem o status que o cargo lhes confere

contrariar os dogmas patronais

ldquo[] o intelecto dessa gente permanece fiel agrave sua destinaccedilatildeo

natural de trabalhar a serviccedilo da vontade como normalmente acontece

Mas por isso mesmo existe sempre uma intenccedilatildeo como fundamento do

seu agir e pensar eles tecircm fins o tempo todo e soacute tomam conhecimento

do que diz respeito a esses fins e portanto soacute do que corresponde a

esses fins A atividade do intelecto liberto da vontade condiccedilatildeo da pura

objetividade e por isso de todas as grandes realizaccedilotildees permanece-lhes

eternamente estranha ndash eacute uma faacutebula para seu coraccedilatildeordquo (Schopenhauer

SFU 63)

Desta forma os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo estariam voltados para a investigaccedilatildeo

objetiva da ldquoverdaderdquo a qual exigiria o distanciamento de todo e qualquer interesse

24

pessoal De acordo com o sistema schopenhaueriano tal distanciamento eacute um dom raro

com o qual a natureza a poucos contempla Na metafiacutesica schopenhaueriana a natureza

eacute aristocraacutetica O gecircnio eacute fenocircmeno raro seja ele filoacutesofo ou artista A percepccedilatildeo

objetiva do mundo alheia aos interesses pessoais da vontade individual eacute uma exceccedilatildeo

que soacute se manifesta raramente e as pessoas atadas aos interesses pessoais de sua

vontade natildeo podem reconhececirc-lo imediatamente Estes gecircnios produzidos pela natureza

seriam os verdadeiros educadores do mundo e os ldquoprofessores de filosofiardquo ao tentar

representar este papel que soacute agrave natureza cabe eleger causam-lhe repulsa

Tantas mentes comuns que se acham por cargo e profissatildeo no

dever de representar papeacuteis que a natureza nem ao menos lhes atribuiacutera e

de transportar cargas que exigem ombros de gigantes espirituais

oferecem na realidade um espetaacuteculo deveras lamentaacutevel Pois escutar

cantar os roucos e ver danccedilar os coxos eacute penoso mas ouvir filosofar a

mente limitada eacute insuportaacutevel (Schopenhauer SFU 34)

Prova do embotamento da capacidade de reconhecimento de uma produccedilatildeo genial era

para o filoacutesofo o fato de seus contemporacircneos ignorarem ou mesmo passarem agrave

margem do que seria a mais importante produccedilatildeo filosoacutefica do periacuteodo a cisatildeo entre o

real e o ideal perpetrada pela primeira criacutetica kantiana Esta era para o filoacutesofo a maior

prova do demeacuterito filosoacutefico de seus contemporacircneos preocupados com seus interesse

pessoais alheios a uma observaccedilatildeo objetiva do mundo natildeo levaram em consideraccedilatildeo os

limites impostos pela primeira criacutetica kantiana a toda investigaccedilatildeo racional

Depois de Kant ter cortado o nervo de todas as provas possiacuteveis

da teologia ndash tatildeo incisivamente que desde entatildeo ningueacutem mais pocircde

meter-se com elas ndash o esforccedilo filosoacutefico em quase cinquumlenta anos tem

consistido nas diversas tentativas de insinuar sutil e astuciosamente a

teologia e os escritos filosoacuteficos nada mais satildeo na sua maioria do que

tentativas infrutiacuteferas de reanimar um cadaacutever sem vida (Schopenhauer

SFU 81)

Natildeo nos interessa aqui adentrarmo-nos aos reais motivos existentes por

traacutes dos vitupeacuterios schopenhauerianos contra os pensadores de seu tempo nem

25

tampouco fazer juiacutezo valorativo sobre a importacircncia da filosofia da vontade em

comparaccedilatildeo ao idealismo absoluto Dentro do objetivo proposto qual seja situar

historicamente a filosofia da vontade e apontar suas influecircncias o importante eacute ressaltar

que a filosofia contemporacircnea a Schopenhauer natildeo fez efeito sobre a sua proacutepria a ponto

de modificaacute-la em seu conteuacutedo conforme esclarece o proacuteprio filoacutesofo ldquo [] meus

contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes permaneci

estranhosrdquo (apud Lefranc 2005 17) Eacute fundamental verificarmos que apesar do

sistema schopenhaueriano ter se desenvolvido agrave margem do idealismo de entatildeo seu

autor natildeo o desconhecia e muitas das ilustraccedilotildees e argumentaccedilotildees utilizadas por ele na

explicaccedilatildeo de suas teorias apoiavam-se nesta sua contenda com o seu tempo

Entretanto como a filosofia de seu tempo pretende-se herdeira do kantismo assim

tambeacutem procede Schopenhauer e a suas criacuteticas ao idealismo absoluto estatildeo

fundamentadas em sua pretensatildeo a uma heranccedila direta da filosofia kantiana Sobre a

heranccedila de Kant Schopenhauer esclarece ldquoEm todo caso natildeo reconheccedilo que tenha

acontecido algo na filosofia entre ele e mim por conseguinte ligo-me imediatamente a

elerdquo (Schopenhauer MVR 525)

Natildeo obstante as diversas criacuteticas ao retorno kantiano ao dogmatismo8

das quais a obra de Schopenhauer estaacute recheada sua admiraccedilatildeo por ele foi tambeacutem

abundantemente expressa Considerava-o ldquoa inteligecircncia mais original jaacute criada pela

naturezardquo (Schopenhauer SFU52) e afirmava que seus escritos capitais eram o ldquo[]

fenocircmeno mais importante que ocorreu ao longo dos uacuteltimos dois mil anos na filosofia

[]rdquo (Schopenhauer MVR 22) O maior reflexo desta admiraccedilatildeo pode ser observada

8 Nas palavras de Cacciola ldquoO criticismo de Kant teria segundo Schopenhauer perdido sua forccedila inicial

na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura Ou seja Schopenhauer acusa Kant de uma ldquorecaiacuteda no

dogmatismordquo por ter amenizado seu confronto com a teologia A ameaccedila dogmaacutetica jaacute configurada na

filosofia teoacuterica concretiza-se na Eacutetica de Kant quando esta acolhe como postulados Deus

imortalidade da alma e liberdade No poacutes-kantismo a importacircncia crescente atribuiacuteda agrave filosofia praacutetica

de Kant a expensas de sua criacutetica do conhecimento teria levado a uma espeacutecie de contaminaccedilatildeo da

razatildeo teoacuterica pela razatildeo praacutetica fazendo com que a primeira se transformasse num oacutergatildeo apto para

captar o Absolutordquo (Cacciola 1994 20)

26

no fato de que eacute da filosofia kantiana que Schopenhauer retira o leitmotiv para o

desenvolvimento da ideacuteia central9 de sua filosofia Esta ideacuteia central eacute aquela contida

concisamente no tiacutetulo de sua obra principal O mundo como vontade e como

representaccedilatildeo10

A dualidade formada entre representaccedilatildeo e vontade atraveacutes da qual

Schopenhauer acredita ter desvendado o ldquomisteacuteriordquo cosmoloacutegico eacute uma apropriaccedilatildeo

assumida dos conceitos kantianos de fenocircmeno e coisa-em-si respectivamente

Dizemos apropriaccedilatildeo pois aqueles conceitos satildeo acrescidos na filosofia

schopenhaueriana de caracteriacutesticas singulares Eacute com base nesta dualidade de

perspectivas de conhecimento do mundo inspirada na primeira criacutetica kantiana que o

filoacutesofo desenvolve as demais teorias que compotildeem seu sistema sejam elas a esteacutetica a

eacutetica a poliacutetica etc

Para Schopenhauer ldquoo maior meacuterito de Kant eacute a distinccedilatildeo entre

fenocircmeno e coisa-em-sirdquo (Schopenhauer MVR 526) Esta distinccedilatildeo foi o que

possibilitou a ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo realizada sobre o dogmatismo anterior A partir

daquele momento ldquoo mundo objetivo como o conhecemos natildeo pertence agrave essecircncia das

coisas em si mesmas mas eacute seu mero FENOcircMENO condicionado exatamente por

aquelas mesmas formas que se encontram a priori no intelecto

humanordquo(Schopenhauer MVR 530) Na teoria kantiana temos o espaccedilo e o tempo

como formas da sensibilidade que na filosofia de Schopenhauer satildeo associadas agrave

faculdade do entendimento juntamente com a causalidade uacutenica das doze categorias

kantianas do entendimento mantidas por Schopenhauer em seu sistema Desta forma o

mundo enquanto representaccedilatildeo eacute aquele que se apresenta para o sujeito enquanto objeto

9 Quando dizemos ideacuteia central havemos de lembrar que no sistema schopenhaueriano esta categorizaccedilatildeo

eacute singular (o tema seraacute tratado no iniacutecio do proacuteximo capiacutetulo) 10

A importacircncia que o filoacutesofo daacute ao tiacutetulo de uma obra eacute esclarecedora para a compreensatildeo da

importacircncia de sua ideacuteia central ldquoo que o sobrescrito deve ser para uma carta eacute o que um tiacutetulo deve ser

para um livro ou seja antes de tudo deve ter o objetivo de destinaacute-lo agrave parte do puacuteblico que pode se

interessar por seu conteuacutedo Sendo assim o tiacutetulo precisa ser caracteriacutestico e por ser naturalmente

breve deve ser conciso lacocircnico pregnante e se possiacutevel um monograma do conteuacutedordquo

(Schopenhauer SOE 09-10)

27

condicionado por estas trecircs formas presentes a priori no intelecto humano tempo

espaccedilo e causalidade Quanto ao mundo noumecircnico que dentro da teoria kantiana eacute um

ldquox desconhecidordquo Schopenhauer o explica atraveacutes da Vontade sua traduccedilatildeo da coisa-

em-si Essa dualidade que traz agrave tona a ldquocompleta diversidade entre o ideal e o realrdquo

(Schopenhauer MVR 527) doutrina que de acordo com Schopenhauer (MVR 528) foi

expressa por Kant de forma soacutebria calma demonstrada e incontestaacutevel jaacute havia sido

expressa tambeacutem em linguagem mais miacutetica e poeacutetica por outras duas doutrinas que

tambeacutem estatildeo profundamente presentes na obra Schopenhaueriana Platatildeo e os escritos

indianos dos Vedas e Puranas

Os estudos das obras de Platatildeo e Kant foram recomendaccedilatildeo de Schultze

um dos professores de Schopenhauer em Gottingen (Weissmann 1980 54) e formam os

pilares filosoacuteficos do sistema schopenhaueriano A separaccedilatildeo entre o real e o ideal

executada por Kant eacute vista tambeacutem na obra platocircnica Sua teoria das ideacuteias bem como

sua alegoria da caverna satildeo expressotildees de uma intuiccedilatildeo da existecircncia daquela separaccedilatildeo

O que Kant teria sistematizado a seu modo eacute a mesma verdade que ldquojaacute Platatildeo

incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte

modo este mundo que aparece aos sentidos natildeo possui nenhum verdadeiro ser mas

apenas um incessante devir ele eacute e tambeacutem natildeo eacute sua apreensatildeo natildeo eacute tanto um

conhecimento mas uma ilusatildeordquo (Schopenhauer MVR 528)

Aleacutem de Platatildeo os livros sagrados dos indianos afirmavam esta ldquoilusatildeordquo

ldquofantasmagoriardquo do mundo e constituem tambeacutem uma fonte frequumlentemente utilizada

por Schopenhauer O contato do nosso filoacutesofo com o pensamento oriental se deu

quando do seu encontro com o orientalista Friedrich Majer no salatildeo de sua matildee em

28

Weimar A partir de entatildeo o interesse do filoacutesofo pelo pensamento oriental foi se

intensificando ao longo de sua vida 11

A mesma verdade representada de modo completamente outro eacute

tambeacutem uma doutrina capital dos vedas e puranas a saber a doutrina de

Maia pela qual natildeo se entende outra coisa senatildeo aquilo que Kant nomeia

o fenocircmeno em oposiccedilatildeo agrave coisa-em-si pois a obra de maia eacute

apresentada justamente como este mundo visiacutevel no qual estamos um

efeito maacutegico que aparece na existecircncia uma aparecircncia inconstante e

inessencial em si destituiacuteda de ser comparaacutevel agrave ilusatildeo de oacutetica e ao

sonho um veacuteu que envolve a consciecircncia humana um algo do qual eacute

igualmente falso e igualmente verdadeiro dizer que eacute ou natildeo eacute

(Schopenhauer MVR 528)

Estas trecircs doutrinas estavam admitidamente presentes quando da

elaboraccedilatildeo do nuacutecleo conceitual fundamental da posteriormente nominada Filosofia da

Vontade Entretanto aleacutem de formarem seu nuacutecleo conceitual podemos encontraacute-las

ainda posteriormente em outros instantes desta filosofia O pensamento oriental seraacute

figura fortemente presente na eacutetica schopenhaueriana desenvolvida no quarto livro do

Mundo onde o filoacutesofo adotaraacute como fundamento de sua eacutetica o sentimento da

compaixatildeo jaacute presente na doutrina budista Platatildeo e Kant satildeo ainda influecircncias

fundamentais como veremos no proacuteximo capiacutetulo da esteacutetica schopenhaueriana O

primeiro novamente atraveacutes de sua teoria das ideacuteias seraacute utilizado por Schopenhauer na

definiccedilatildeo do objeto artiacutestico Do segundo poderemos notar sua influecircncia nas teorias

schopenhauerianas do sublime da imaginaccedilatildeo e da contemplaccedilatildeo desinteressada todas

elas fundamentais agrave compreensatildeo da teoria da arte poeacutetica

- - - - - - - - - -

11

Suas fontes principais eram o Oupnekacutehat uma traduccedilatildeo latina dos vedas e o Asiatic Journals jornal

publicado pela sociedade asiaacutetica fundada em 1784 Para uma referecircncia completa das citaccedilotildees orientais

na obra de Schopenhauer veja o apecircndice do artigo de Moira Nicholls The influences of Eastern Thought

on Schopenhaueracutes Doctrine of the Thing-in-itself (in Janaway 1999 197-204)

29

Apresentadas as principais influecircncias teoacutericas do sistema

schopenhaueriano passemos a uma breve descriccedilatildeo do ambiente cultural que naquele

momento tinha como foco um projeto de fundaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para o teatro e a

literatura germacircnicas Tal projeto envolveu os mais importantes dramaturgos criacuteticos

escritores e pensadores do periacuteodo imediatamente anterior a Schopenhauer12

e eacute

tambeacutem posteriormente retomado por Nietzsche em seu Nascimento da Trageacutedia Sua

importacircncia para a filosofia da vontade pode ser medida pela recorrente referecircncia feita

a estes pensadores nas obras dos filoacutesofos Seu iniacutecio em meados do seacuteculo XVIII deu-

se pela influecircncia exercida pelo historiador da arte Johann J Winckelmann junto aos

escritores poetas e dramaturgos posteriores dentre eles Lessing Goethe e Schiller

A influecircncia winckelmanniana que de acordo com Butler (1958 11)

criou ondas cujo violento distuacuterbio ldquoainda varrem as praias do seacuteculo XXrdquo se pautou

em duas noccedilotildees fundamentais13

a imitaccedilatildeo dos antigos e o belo ideal Winckelmann

propunha um novo modelo no qual a arte germacircnica deveria se basear para atingir uma

grandiosidade rara e ldquoinimitaacutevelrdquo a imitaccedilatildeo dos gregos Por esta imitaccedilatildeo o

historiador natildeo propunha uma mera coacutepia das obras de arte gregas poreacutem uma imitaccedilatildeo

do modo de produccedilatildeo artiacutestica dos gregos qual seja sintetizar a beleza ideal descoberta

na observaccedilatildeo da diversidade objetiva da natureza Esta proposta de um retorno ao

modelo antigo coloca Winckelmann na esteira da conhecida querela entre antigos e

modernos e eacute a igniccedilatildeo para o periacuteodo literaacuterio conhecido como classicismo germacircnico

Esta disputa quanto agrave valorizaccedilatildeo das obras poeacuteticas antigas ou modernas estaraacute de um

modo ou de outro presente nas teorias schopenhaueriana e nietzscheana da trageacutedia

12

De acordo com Schopenhauer as obras de tais poetas e escritores assim como a filosofia de Kant satildeo

exemplos para os quais a literatura e a filosofia pobres de seu tempo deveriam se voltar No que se refere

ao uso da liacutengua ele aconselha ldquoLede vede qual liacutengua Winckelmann Lessing Klopstock Wieland

Goethe Buumlrger Schiller falaram e emulai-a mas natildeo fazei o mesmo com o jargatildeo estupidamente

excogitado pelos miseraacuteveis literatos atuais e entre eles pelos professores que vatildeo agrave escola de liacutenguardquo

(Schopenhauer SOE 57-58) 13

Esta duas noccedilotildees fundamentais satildeo ressaltadas por Suumlssekind e Machado em seus trabalhos sobre o

tema Veja Suumlssekind 2008 67-77 e Machado 2006 9-14

30

Como veremos posteriormente Schopenhauer privilegiaraacute a trageacutedia moderna em

detrimento da antiga argumentando que aquela cumpre com maior competecircncia o seu

objetivo enquanto forma de arte qual seja provocar repulsa agrave vontade de viver e

estimular sua negaccedilatildeo Apesar deste privileacutegio pelas obras traacutegicas modernas o filoacutesofo

natildeo deixa como seus contemporacircneos de ter os gregos como modelo e natildeo satildeo raros

seus elogios agraves produccedilotildees helecircnicas Para Schopenhauer Winckelmann foi para a

histoacuteria da arte assim como ele o eacute para a da filosofia um exemplo do modo epiciacuteclico

atraveacutes do qual a natureza de tempo em tempo faz avanccedilar o conhecimento do gecircnero

humano Para o filoacutesofo a retomada do projeto kantiano realizada pelo seu sistema eacute a

demonstraccedilatildeo de que entre ele e Kant nenhum conhecimento foi produzido Como

exemplo deste esquema epiciacuteclico na histoacuteria da arte Schopenhauer utiliza-se do

retorno de Winckelmann agrave beleza claacutessica o que nos mostra a importacircncia dada pelo

filoacutesofo agrave forma de arte grega bem como ao projeto inaugurado pelo historiador da arte

Apoacutes explicar o esquema epiciacuteclico da evoluccedilatildeo dos progressos humanos

Schopenhauer diz

Para quem deseja poreacutem ter uma prova do esquema geral dos

epiciclos aqui exposto com base na histoacuteria da arte basta observar a

escola de escultura de Bernini que florescia ainda no seacuteculo passado

particularmente em seu desenvolvimento francecircs sucessivo e que

representava a natureza comum em vez da beleza claacutessica e o decoro do

minueto francecircs em vez da simplicidade e da graccedila antigas Tal escola

faliu quando apoacutes a repreensatildeo de Winckelmann voltou-se agrave escola dos

antigos (Schopenhauer SOE 110)

Nietzsche por sua vez seguiraacute o caminho winckelmanniano de exaltaccedilatildeo da forma de

arte antiga apresentando a trageacutedia grega como modelo para a arte moderna e elogiando

a iniciativa de seus predecessores em valorizar e recuperar a arte helecircnica

31

Conviria que alguma vez se pesasse diante dos olhos de um juiz

insubornaacutevel em que tempo e em que homens o espiacuterito alematildeo se

esforccedilou mais vigorosamente por aprender dos gregos e se admitirmos

com confianccedila que esse louvor uacutenico deveria ser atribuiacutedo agrave nobiliacutessima

luta de Goethe Schiller e Winckelmann pela cultura haveria em todo

caso que acrescentar que desde aquele tempo e depois das influecircncias

imediatas daquela luta tornou-se cada vez mais fraca de maneira

incompreensiacutevel a aspiraccedilatildeo de se chegar por uma mesma via agrave cultura e

aos gregos (Nietzsche NT 120)

Podemos perceber entatildeo a importacircncia do helenismo proposto por Winckelmann no

pensamento germacircnico ao observarmos a sua duraccedilatildeo tendo em vista que mais de um

seacuteculo separa o historiador da arte e o filoacutesofo da vontade de poder o que confirma a

forccedila de suas propostas para uma cultura em formaccedilatildeo e justifica o epiacuteteto com o qual

Butler caracterizou este periacuteodo dizendo que nele vemos ldquoa tirania da Greacutecia sobre a

Alemanhardquo14

O segundo ponto fundamental da teoria da arte winckelmanniana o belo

ideal natildeo provocou menor interesse em seu tempo Este belo ideal era alcanccedilado a

partir da reuniatildeo em uma uacutenica obra harmocircnica daquilo que o artista observa de mais

belo na natureza

A natureza tem seus defeitos o corpo mais belo natildeo deixa de tecirc-los e

nele encontramos frequumlentemente partes que em outros satildeo mais belas ou

podem supor-se mais perfeitas [] Os gregos trataram de reunir as formas

elegantes de vaacuterios corpos belos como sabemos pelo diaacutelogo de Soacutecrates com o

ceacutelebre pintor Parrasio [] Esta seleccedilatildeo das partes belas e sua harmocircnica

associaccedilatildeo em uma soacute figura produziu a beleza ideal (Winckelmann 2002

130)

Tal beleza encontrou sua manifestaccedilatildeo primeira na Greacutecia do periacuteodo helecircnico devido

ao favorecimento das condiccedilotildees geograacutefico-climaacuteticas15

e poliacuteticas16

Aleacutem da beleza

14

Tiacutetulo de sua obra Butler 1958 15

Sobre a influecircncia climaacutetica Winckelmann deduz ldquoA natureza depois de haver se manifestado em

gradaccedilotildees extremas de frio e de calor se estabeleceu na Greacutecia como em seu centro e por isso reina

naquele paiacutes uma temperatura intermediaacuteria entre o inverno e o veratildeo E quanto mais se aproxima deste

centro mais claridade e serenidade oferece e suas obras se manifestam em formas mais graciosas e

amaacuteveis e com detalhes mais caracteriacutesticos e decididosrdquo (Winckelmann 2002106) 16

Sobre as condiccedilotildees poliacuteticas sejam elas patriarcais democraacuteticas ou tiracircnicas Winckelmann conclui o

seguinte ldquoCom relaccedilatildeo ao regime poliacutetico e o governo da Greacutecia a liberdade eacute uma das causas da

preeminecircncia dos gregos na arte Tambeacutem a liberdade parece ter estabelecido na Greacutecia a sua sede existia

32

formal retirada da diversidade das formas naturais eleitas as mais belas as obras gregas

eram exemplares devido agrave importacircncia dada pelos artistas agrave sua expressatildeo A obra de

arte deve sua forccedila tanto agrave beleza das formas quanto agrave expressatildeo da alma nela contida

De acordo com Winckelmann ldquoa expressatildeo de uma alma grande vai muito aleacutem da

plasmaccedilatildeo de uma bela naturezardquo isto ocorre devido ao fato de que para o historiador

da arte ldquona Greacutecia a sabedoria estendia a matildeo agrave arte e insuflava nas figuras almas

mais que comunsrdquo (Winckelmann 1958 19) As caracteriacutesticas que esta expressatildeo deve

possuir satildeo aquelas contidas na passagem mais famosa da obra de Winckelmann na

qual ele descreve ainda como exemplo daquela expressatildeo artiacutestica o grupo estatuaacuterio

do Laocoonte que por sua vez seraacute alvo de uma grande controveacutersia posterior da qual

participaratildeo dentre outros Lessing Herder Goethe Schelling e Schopenhauer

Reproduzimos a passagem de Winckelmann em sua integridade

A caracteriacutestica geral e principal das obras mestras gregas eacute uma

nobre simplicidade e uma serena grandeza tanto na atitude como na

expressatildeo Assim como nas profundidades o mar estaacute sempre calmo por

muito que se agite a superfiacutecie do mesmo modo a expressatildeo nas figuras

dos gregos mostra em meio a todas as paixotildees uma alma grande e

comedida Isso transmite o rosto do Laocoonte ndash e natildeo soacute o dele ndash em

meio agrave mais violenta dor O sofrimento que aparece em todos os

muacutesculos e fibras do corpo e que no baixo ventre contraiacutedo se

experimenta tatildeo intensamente que parecemos senti-lo natildeo se exterioriza

contudo mediante qualquer ira no rosto e em toda a atitude Natildeo lanccedila

um grito terriacutevel tal como Virgiacutelio cantou em seu Laocoonte A abertura

da boca natildeo o permitiria Mais parece um suspiro angustiado como o

descreve Sadolet A dor do corpo e a grandeza da alma estatildeo distribuiacutedos

com igual forccedila atraveacutes de toda a composiccedilatildeo da figura e em certa

medida estatildeo equilibrados Laocoonte sofre mas sofre como o

Filoctetes de Soacutefocles sua dor nos toca a alma mas desejariacuteamos poder

suportar essa dor com a grandeza desse homem (Winckelmann 1958

18-19 grifo nosso)

inclusive junto ao tronos de seus reis que governavam paternalmente a seus suacuteditos antes que mais

ilustrados gozassem do destino de uma completa liberdade Homero chama a Agamemnoacuten de pastor de

seus povos com o que queria designar sua ternura com seus subordinados e sua preocupaccedilatildeo constante

pela felicidade dos mesmos Eacute bem verdade que depois surgiram tiranos mas natildeo o foram mais para uma

determinada cidade e a naccedilatildeo inteira jamais reconheceu um soberano uacutenicordquo (Winckelmann 2002 109)

33

Desta famosa passagem retiramos dois momentos que especialmente nos interessam O

primeiro dele eacute a enunciaccedilatildeo que caracterizaraacute o ideal de beleza das obras gregas nobre

simplicidade e uma serena grandeza Este ideal winckelmanniano de beleza eacute o que

torna a arte grega nas palavras de Suumlssekind ldquoinimitaacutevel e ao mesmo tempo faz dela o

modelo a ser imitadordquo (Suumlssekind 2008 69) Interessa-nos especialmente devido agrave

influecircncia desta definiccedilatildeo para a teoria do jovem professor de filologia da Basileacuteia

Podemos ver ateacute mesmo pelo vocabulaacuterio utilizado para descrever a arte grega a

proximidade e a influecircncia exercida por estes conceitos nas teorias esteacuteticas do primeiro

Nietzsche Luminosidade serenidade harmonia satildeo alguns dos conceitos que

posteriormente seratildeo utilizados por Nietzsche ao definir o seu impulso artiacutestico

apoliacuteneo17

O segundo momento - quando Winckelmann defende o espiacuterito grego na

escultura do Laocoonte em contraposiccedilatildeo ao personagem de Virgiacutelio comparando esta

representaccedilatildeo escultural com o Filoctetes de Soacutefocles - seraacute o precursor do posterior

debate sobre as fronteiras que separam as formas de arte Para Winckelmann ldquoa nobre

simplicidade e a serena grandeza das estatuas gregas eacute tambeacutem a verdadeira

caracteriacutestica dos escritos gregos da melhor eacutepoca dos escritos da escola

socraacuteticardquo(Winckelmann 1958 31) O debate sugerido pela passagem do qual

participaraacute posteriormente o proacuteprio Schopenhauer seraacute iniciado por outro pensador

de grande importacircncia para o projeto cultural alematildeo Gotthold Ephraim Lessing

Lessing em sua obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da

poesia apresentaraacute a contenda que chegaraacute ateacute Schopenhauer Para Lessing o ponto de

discordacircncia com Winckelmann estaacute no motivo pelo qual na escultura o Laocoonte natildeo

17

Segundo Rodriges (2007 93-126) tambeacutem o conceito do impulso dionisiacuteaco estaria mesmo que em

germe presente nos estudos de Winckelmann Segundo seu artigo o mapeamento da origem e

desenvolvimento da discussatildeo sobre os citados impulsos artiacutesticos da natureza ou seja sobre a

importacircncia dos deuses Apolo e Dioniacutesio na cultura grega abrangeria necessariamente diversas aacutereas do

pensamento alematildeo desde Winckelmann dentre elas os estudos filoloacutegicos o movimento romacircntico e as

filosofias idealistas

34

apresenta as caracteriacutesticas de quem grita e lamenta Como vimos para Winckelmann o

conjunto estatuaacuterio em questatildeo eacute exemplar pelo fato de transmitir atraveacutes da atitude

estoacuteica diante da dor a grandeza de alma que seria a regra universal da verdadeira arte

grega Esta grandeza enquanto regra universal estaria ainda de acordo com o

historiador da arte presente tanto nas formas pictoacutericas como nas obras poeacuteticas

Contrapondo-se a Winckelman Lessing afirma - exemplificando atraveacutes de passagens

de poetas queridos ao proacuteprio Winckelmann como Homero e Soacutefocles - que em vaacuterios

momentos da poesia antiga diversos personagens dentre eles deuses e heroacuteis proferem

exaltados lamentos e gritos e isto natildeo lhes subtrai a grandeza da alma Sendo assim se

na poesialdquoo gritar na sensaccedilatildeo de dor corporal pode coexistir muito bem com uma

grande alma portanto a expressatildeo de uma tal alma natildeo pode ser a causa pela qual

apesar disso o artista natildeo quer imitar esse grito no seu maacutermore antes deve haver um

outro motivo por que aqui ele separa-se do seu rival o poeta que expressa esse grito

com o melhor propoacutesitordquo(Lessing 1998 86) O motivo pelo qual em sua representaccedilatildeo

estatuaacuteria o Laocoonte natildeo grita eacute para Lessing uma questatildeo de limitaccedilatildeo da forma de

expressatildeo escultoacuterica que ao se submeter agrave ldquolei da belezardquo natildeo pode representar o grito

desfigurador Em suas palavras

O mestre visava a suprema beleza sob as condiccedilotildees aceitas da dor

corporal Esta em toda a sua violecircncia desfiguradora era incompatiacutevel

com aquela Ele foi obrigado a reduzi-la ele foi obrigado a suavizar o

grito em suspiro natildeo porque o grito denuncia uma alma indigna mas

antes porque ele dispotildee a face de um modo asqueroso (Lessing 1998

92)

Devemos ressaltar que segundo a teoria artiacutestica de Lessing para quem as leis a que

devem obedecer a arte estatildeo ligadas agrave sua interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica a arte eacute

julgada atraveacutes do seu efeito Neste contexto ao conceder a seus personagens

caracteriacutesticas de humanidade como por exemplo a manifestaccedilatildeo da dor atraveacutes de

35

lamentos e gritos o poeta estaria aproximando o heroacutei traacutegico do puacuteblico a ser atingido

e consequumlentemente maximizando a identificaccedilatildeo entre eles e com isto o efeito

esperado qual seja a catarse atraveacutes do temor e da compaixatildeo Esta identificaccedilatildeo

alcanccedilada por via da demonstraccedilatildeo dos lamentos dos heroacuteis dramaacuteticos natildeo pode ser

obtida da mesma forma pelas artes pictoacutericas Nestas que satildeo expressotildees de um

momento uacutenico a beleza natildeo pode deixar de estar presente pois ela eacute um dos

ingredientes mais fundamentais do efeito buscado Na poesia o heroacutei natildeo seraacute

caracterizado em uma uacutenica accedilatildeo como ocorre na escultura Sendo assim o grito

narrado eacute apenas um momento do conjunto que iraacute definir o personagem

O Laocoonte de Virgiacutelio grita mas esse Laocoonte que grita eacute

justamente aquele que noacutes jaacute conhecemos e amamos como o patriota

mais cordato e o pai mais afetuoso Noacutes vinculamos o seu grito natildeo ao

seu caraacuteter mas antes apenas ao seu sofrimento insuportaacutevel Apenas

esse uacuteltimo noacutes ouvimos no seu grito e o poeta pode tornaacute-lo sensiacutevel

apenas graccedilas a esse grito (Lessing 1998 106)

Com isto tanto o escultor que suprime o grito quanto o poeta que o descreve ao

fazerem o fazem de acordo com as leis que regem suas respectivas formas de arte

Da contenda sobre o grito do Laocoonte e sua representaccedilatildeo escultoacuterica e

poeacutetica iratildeo participar ainda diversos pensadores Dentre os mais ilustres podemos

destacar Goethe cuja explicaccedilatildeo sobre a escultura proacutexima em muitos pontos da de

Lessing encontra-se nos Propileus Para o poeta o grupo estatuaacuterio ldquoesgota o seu objeto

e preenche com sucesso todas as condiccedilotildees da arterdquo (Goethe 2005126) Segundo

Goethe a escultura eacute limitada a um uacutenico momento da accedilatildeo e sua comparaccedilatildeo com a

poesia de Virgiacutelio eacute injusta O poeta a avalia assim como Lessing atraveacutes de seu efeito

ainda dentro das categorias poeacuteticas de Aristoacuteteles e destaca

O ser humano possui apenas trecircs sentimentos no sofrimento

proacuteprio e alheio o medo o terror e a compaixatildeo a previsatildeo temerosa de

um mal que se aproxima a percepccedilatildeo inesperada do sofrimento presente

36

e a participaccedilatildeo no sofrimento duradouro ou que passou todos os trecircs

sentimentos satildeo representados e suscitados por esta obra de arte e na

verdade na gradaccedilatildeo a mais conveniente (Goethe 2005 126)

Em sua obra principal Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 46 a seus comentaacuterios do

Laocoonte que seratildeo acrescidos de exemplos no posterior volume de suplementos

Reconhece o avanccedilo feito por Lessing ao colocar no lugar de um fundamento

psicoloacutegico um fundamento puramente esteacutetico e critica ainda as teorias psicoloacutegicas e

fisioloacutegicas de seu tempo como as de Hirt e Fernow18

Para Schopenhauer apesar de

sua aproximaccedilatildeo do que seria uma ldquoexplicaccedilatildeo corretardquo da obra Lessing natildeo encontrou

o seu ponto exato qual seja a explicaccedilatildeo de que o grito natildeo pertence ao domiacutenio de

uma representaccedilatildeo escultoacuterica

Antes de qualquer investigaccedilatildeo psicoloacutegica e fisioloacutegica sobre se

Laocoonte em sua situaccedilatildeo poderia gritar ou natildeo deve-se decidir em

relaccedilatildeo ao grupo de esculturas o seguinte que nele o grito natildeo pode ser

exposto pelo motivo de que a exposiccedilatildeo do grito reside por inteiro fora

do domiacutenio da escultura (Schopenhauer MVR 2005 303)

Para Schopenhauer a simples exposiccedilatildeo que representaria o grito ou seja ldquoo

escancarar violento da bocardquo natildeo pode ocasionar o efeito que o grito mesmo enquanto

forma de expressatildeo ocasionaria O efeito que o grito pode causar em uma arte

descritiva atraveacutes do uso da imaginaccedilatildeo do leitor ou mesmo na arte representativa no

teatro tornar-se-ia motivo de riso caso seja representado por uma boca escancarada na

arte plaacutestica Schopenhauer utiliza-se do exemplo do Laocoonte para demonstrar a

necessidade do estabelecimento de fronteiras entre as artes que devido agrave suas formas

devem obedecer agraves competecircncias determinadas pelo objeto representado (no caso da

teoria schopenhaueriana as competecircncias seratildeo determinadas pelas ideacuteias a serem

representadas como veremos posteriormente) Esta preocupaccedilatildeo com os limites entre as

18

Segundo Schopenhauer Hirt (Horen 1797 parte 10) apresenta a explicaccedilatildeo de que Laocoonte natildeo grita

pois estaacute impossibilitado pela sufocaccedilatildeo que o leva agrave morte Fernow por sua vez faz uma amalgama das

opiniotildees de Winckelmann Lessing e Hirt

37

formas artiacutesticas presente na esteacutetica schopenhaueriana e no Laocoonte de Lessing foi

contudo como nos lembra Suzuki (Rosenfield 2001 36-56) ignorada por Goethe

(como podemos ver pelos elementos da poeacutetica aristoteacutelica utilizados pelo poeta para

explicar a escultura na citaccedilatildeo presente na paacutegina anterior) e seraacute posteriormente

tambeacutem desconsiderada por Nietzsche em seu projeto de uma obra de arte total

Diante do acima exposto ainda tratando de Lessing podemos perceber

que toda a discussatildeo acerca do Laocoonte foi desencadeada pela motivaccedilatildeo de defesa da

arte poeacutetica agrave qual Lessing dedicou sua vida como escritor diretor e criacutetico teatral

Desta forma a importacircncia de Lessing para o tema em questatildeo nesta dissertaccedilatildeo estaacute

mais ligado ao seu papel junto a um projeto de formaccedilatildeo de um teatro alematildeo e sua

interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica Enquanto teoacuterico e criacutetico do teatro o autor da

Dramaturgia de Hamburgo exerceu grande influecircncia na cultura posterior ao oferecer a

seu tempo uma nova interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica que vai de encontro agraves

interpretaccedilotildees francesas e de Gottsched que eram por sua vez inflexiacuteveis em relaccedilatildeo agraves

regras (das unidades de espaccedilo tempo e lugar do estatuto social dos personagens da

linguagem e do nuacutemero de atos) Lessing atento agraves necessidades de uma burguesia em

ascensatildeo que natildeo se identificava mais com as concepccedilotildees aristocraacuteticas do modelo de

teatro francecircs e imbuiacutedo na construccedilatildeo do projeto de formaccedilatildeo cultural de uma naccedilatildeo

fragmentada oferece atraveacutes de suas interpretaccedilotildees uma seacuterie de elementos que estaratildeo

presentes nas consideraccedilotildees de pensadores posteriores Dentre estes elementos podemos

destacar as seguintes uma discussatildeo acerca dos conceitos de mimese temor

compaixatildeo catarse a defesa da utilizaccedilatildeo de caracteres mistos a liberdade do gecircnio

ante as regras o enaltecimento dos teatros espanhol e inglecircs principalmente de

Shakespeare

38

Ao tratarmos do referido projeto de um teatro alematildeo e tambeacutem do

classicismo germacircnico dois nomes ainda satildeo fundamentais para sua formaccedilatildeo bem

como eacute incontestaacutevel sua influecircncia sobre Schopenhauer e o jovem Nietzsche19

satildeo

eles Goethe e Schiller O primeiro deles maior dos poetas do classicismo germacircnico

foi um ampliador do projeto Winckelmanniano ldquoPois Goethe pensa o ideal de beleza

natildeo soacute em relaccedilatildeo agrave pintura e agrave escultura mas tambeacutem e principalmente em relaccedilatildeo agrave

poesia ou agrave arte dramaacutetica ampliando as ideacuteias de Winckelmann nesse domiacutenio como

teoacuterico e como criador de obras teatraisrdquo (Machado 2006 14) Seu classicismo

impresso em seus textos teoacutericos e na forma e conteuacutedo de diversas de suas produccedilotildees

literaacuterias eacute o auge do projeto Winckelmanniano Podemos ver na esteira de Machado

(2006 14-22) que o ideal de beleza proposto por Winckelmann eacute ainda o que domina a

noccedilatildeo Goetheana dos gregos e eacute apoiado neste ideal que o poeta interpreta a arte do

mundo helecircnico e a apresenta como um exemplo para a arte de seu tempo Ressaltamos

poreacutem que dada a sua extrema heterogeneidade como nos adverte Butler (1958 85)

encontrar um senso de harmonia interna no todo da obra goetheana eacute tarefa tatildeo incerta

como determinar o grau de sua influecircncia no pensamento de nossos filoacutesofos No que se

refere a Schopenhauer entretanto natildeo podemos deixar de ressaltar que sua convivecircncia

com o poeta foi norteada pelas discussotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas que ocupavam o palco

de seus estudos agrave eacutepoca Goethe dedicou vinte anos de sua vida ao estudo das cores e

sua obra Doutrina das cores eacute o resultado desta investigaccedilatildeo Ela atraiu o interesse do

jovem Schopenhauer que apoacutes alguns encontros com Goethe dedicou-se a escrever a

sua proacutepria teoria que divergia em diversos pontos da teoria do poeta fato que marcou o

fim da relaccedilatildeo amistosa dos mesmos Sobre este periacuteodo de convivecircncia

19

De acordo com Martin (1996) a obra desenvolvida por Nietzsche enquanto escritor e pensador eacute

demasiado complexa para ser reduzida ou atribuiacuteda a determinada influecircncia Entretanto em uma

estatiacutestica crua podemos ter o vislumbre desta influecircncia como se segue ldquoSchopenhauer eacute referenciado

394 vezes na obra de Nietzsche Wagner 327 vezes a Goethe existem 311 menccedilotildees Schiller encontra-se

em nono lugar com 126 menccedilotildeesrdquo (Martin 1996 5)

39

especificamente sobre o episodio citado Goethe vai escrever mais tarde conforme

citaccedilatildeo de Safranski

O Dr Schopenhauer foi para mim um amigo benevolente

Estivemos de acordo em muitas coisas mas foi impossiacutevel evitar ao final

um certo distanciamento como dois amigos que ateacute certo momento

caminharam juntos se datildeo a matildeo para despedir pois querem dirigir-se um

ao norte outro ao sul perdendo-se rapidamente de vista um ao outro

(apud Safranski 1991 265)

Ainda na esteira do movimento de estabelecimento de um projeto

artiacutestico nacional encontramos Schiller que ao lado de Goethe foi o responsaacutevel pelas

maiores obras do classicismo literaacuterio de Weimar Para o estudo em questatildeo o que mais

nos interessa em sua obra eacute o periacuteodo no qual antes do contato com Goethe Schiller

produz seus escritos teoacutericos sobre a trageacutedia Estes estudos podem ser considerados

em uma perspectiva histoacuterica como uma ponte entre a interpretaccedilatildeo da trageacutedia nos

moldes puramente aristoteacutelicos e a trageacutedia vista enquanto forma de arte que para

atingir o efeito dela esperado deve refletir a condiccedilatildeo traacutegica do homem pensada com

base em elementos retirados da filosofia moral e da esteacutetica kantiana Em seus textos

teoacutericos sobre a poesia traacutegica pertencentes ao periacuteodo que Schiller assume ter estado

sob influecircncia da filosofia kantiana ele descreve a trageacutedia como expressatildeo do sublime

ndash conceito extraiacutedo da criacutetica kantiana do juiacutezo ndash como a representaccedilatildeo sensiacutevel da

dicotomia entre a liberdade moral a vontade individual (vontade tomada enquanto

faculdade de pensar e agir livremente) por um lado e a necessidade natural e instintiva

por outro Vemos pela primeira vez em Schiller a utilizaccedilatildeo de categorias filosoacuteficas

kantianas na elaboraccedilatildeo de uma teoria da trageacutedia o que teraacute continuidade com as

teorias do idealismo absoluto e a do proacuteprio Schopenhauer Este eacute um momento

extremamente importante devido ao fato de marcar toda a reflexatildeo futura sobre o tema

ao fundar o deslocamento de uma interpretaccedilatildeo poeacutetica da trageacutedia baseada em

40

comentaacuterios da obra aristoteacutelica para uma interpretaccedilatildeo do traacutegico enquanto fenocircmeno

que descreve a situaccedilatildeo do homem no mundo De acordo com Machado ldquoEacute do

encontro de um grande dramaturgo como Schiller com a filosofia de Kant -

principalmente a sua eacutetica considerada como uma filosofia da liberdade e sua

esteacutetica no que diz respeito agrave teoria do juiacutezo sobre o sublime ndash que nasce a primeira

filosofia do traacutegico uma reflexatildeo filosoacutefica original que criou um tipo novo de

pensamento sobre a trageacutediardquo (Machado 2006 54) Na teoria schopenhaueriana da

trageacutedia podemos ver caracteriacutesticas da teoria schilleriana Primeiramente a presenccedila

marcante da influecircncia kantiana no que se refere ao sublime Em segundo lugar a

leitura da trageacutedia enquanto instrumento para a percepccedilatildeo de uma ordem moral do

mundo Tais caracteriacutesticas seratildeo aprofundadas no capiacutetulo posterior Vale antecipar que

na obra do jovem Nietzsche poderemos ver a exaltaccedilatildeo de Schiller em sua tentativa de

compreensatildeo do mundo helecircnico aleacutem do elogio agrave teoria schilleriana do coro Veremos

entretanto uma criacutetica acirrada no que se refere ao projeto de um teatro enquanto

instituiccedilatildeo moral

Neste capiacutetulo foram delineadas as principais influecircncias filosoacuteficas que

alicerccedilaram o sistema schopenhaueriano bem como esboccedilaram-se as diversas teorias

artiacutesticas que surgiram no periacuteodo em questatildeo teorias estas que propuseram mateacuteria

para a formaccedilatildeo do pensamento de nossos filoacutesofos A partir da cisatildeo entre fenocircmeno e

noumeno proposta por Kant e sua primeira criacutetica Schopenhauer elabora as matrizes de

seu sistema e para ilustraacute-lo encontra apoio na cosmologia platocircnica e no pensamento

oriental Vimos ainda que sua teoria esteacutetica eacute alimentada pela frequumlentaccedilatildeo agraves

categorias apresentadas por artistas teoacutericos e criacuteticos de arte de seu periacuteodo Por seu

turno vimos com Winckelmann a origem do estudo sobre os gregos e sua arte aleacutem do

estabelecimento destes como um modelo para a arte alematilde projeto este que foi

41

retomado por Lessing que por sua vez intensificou o estudo e propocircs um modelo de um

teatro nacional independente projeto que seraacute mais tarde revisitado e aprofundado por

Goethe e Schiller Esta apresentaccedilatildeo de influecircncias eacute imprescindiacutevel para identificarmos

a origem de certos elementos que satildeo fundamentais ao entendimento da proacutepria doutrina

schopenhaueriana tais como o caraacuteter moral de sua teoria esteacutetica sua preocupaccedilatildeo

com o estabelecimento de limite entre as artes sua interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo da poeacutetica

sua utilizaccedilatildeo de conceitos esteacuteticos kantianos (sublime belo e desinteresse) sua

apreciaccedilatildeo das obras modernas seu reconhecimento da produccedilatildeo claacutessica seu desprezo

agrave filosofia de seu tempo Eacute tambeacutem atraveacutes do mapeamento aqui feito de algumas de

suas influecircncias mesmo que brevemente apontado que poderemos mais tarde

identificar alguns dos aspectos originais e singulares de sua teoria

Quanto agraves influecircncias presentes na teoria da trageacutedia do jovem Nietzsche

apontaremos complementos no capiacutetulo correspondente Eacute imprescindiacutevel dar destaque

no que se refere agrave obra nietzscheana agrave sua formaccedilatildeo filoloacutegica ao seu conviacutevio com

Richard Wagner e agrave sua leitura do proacuteprio Schopenhauer - e isto seraacute feito

posteriormente Esperamos ter deixado claro ateacute aqui que diferentemente de Zaratustra

Nietzsche natildeo desceu simplesmente de uma montanha mas faz parte de uma tradiccedilatildeo

histoacuterica assim como Schopenhauer e que a contextualizaccedilatildeo de suas teorias eacute

fundamental para a identificaccedilatildeo dos elementos ali presentes que singularmente se

originaram do sistema metafiacutesico da Vontade

42

2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU

SUBSTRATO METAFIacuteSICO

ldquoOra se todo mundo como representaccedilatildeo eacute

a visibilidade da Vontade a arte eacute o

clareamento dessa visibilidade a cacircmera

obscura que mostra os objetos mais

puramente permitindo-nos melhor abarcaacute-

los e compreendecirc-los eacute o teatro dentro do

teatro a peccedila dentro da peccedila em Hamletrdquo

(Schopenhauer)

Utilizando-se de uma metaacutefora retirada do Eacutedipo de Soacutefocles Schopenhauer nos

oferece um exemplo da caracteriacutestica de conexatildeo interna dos temas abordados em sua

obra20

ldquo minha filosofia eacute como a Tebas de cem portas desde todos os lados se pode

entrar e atraveacutes de todos se pode chegar por um caminho direto ateacute o centrordquo

(Schopenhauer 2002 4) Tendo em vista que nosso objetivo neste capiacutetulo eacute apresentar

a teoria schopenhaueriana da trageacutedia e seus fundamentos filosoacuteficos utilizaremo-nos

desta porta para termos acesso ao sistema schopenhaueriano Procuraremos percorrer o

20

Barboza define bem esta caracteriacutestica marcante da filosofia schopenhaueriana ldquoSchopenhauer eacute o

filoacutesofo da organicidade Procura-a porque com ela onde quer que se esteja no seu sistema estar-se-aacute

em toda parte O todo conteria as partes e seria contido por elas De uma metafiacutesica da efetividade se vai

para uma do belo desta para a da eacutetica que por sua vez pode remeter agrave muacutesica por seu turno a nos

enviar para a efetividade numa por assim dizer circularidade virtuosa A unidade natildeo se perde do

horizonte de observaccedilatildeordquo (Barboza 2001 137)

43

substrato metafiacutesico sustentador da teoria do traacutegico schopenhaueriana e perceber assim

a conectividade interna existente entre sua cosmologia sua teoria esteacutetica e sua eacutetica

De posse deste meacutetodo procuraremos destacar os conceitos fundamentais da teoria

traacutegica e de sua visatildeo de mundo que viratildeo posteriormente se fazer presentes tambeacutem

na obra do jovem Nietzsche

21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo

Agrave descriccedilatildeo das artes poeacuteticas Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 51 do primeiro

volume e o capiacutetulo 37 do segundo volume de sua obra principal Tais descriccedilotildees

encontram-se por sua vez ao final dos trechos dedicados agrave teoria esteacutetica (livro III de

MVR e sus complementos) e finalizam seus apontamentos do que podemos chamar na

esteira de Young (2005) das artes natildeo-musicais21

Em ambos os casos a teoria da

trageacutedia estaacute localizada ao final da apresentaccedilatildeo Esta localizaccedilatildeo juntamente com as

diversas citaccedilotildees e exemplos retirados de peccedilas traacutegicas das quais o filoacutesofo se utiliza ao

longo de seu trabalho nos permite ver a importacircncia da arte traacutegica para Schopenhauer

Em sua teoria artiacutestica existe uma hierarquizaccedilatildeo das artes que leva em consideraccedilatildeo a

capacidade de cada uma em apresentar um grau especiacutefico de objetivaccedilatildeo da vontade

Na cosmologia schopenhaueriana a vontade essecircncia do mundo identificada como

sendo a coisa-em-si kantiana manifesta-se (torna-se objeto de conhecimento) atraveacutes de

diversos graus ndash que exprimem a nitidez com que a vontade se manifesta para o

observador - representados pelos reinos da natureza e finalmente pelo homem Desta

forma ela se objetivaria no mundo inorgacircnico atraveacutes das forccedilas magneacuteticas e da

gravidade no mundo vegetal atraveacutes das funccedilotildees orgacircnicas no mundo animal atraveacutes

21

Como veremos mais adiante a muacutesica eacute uma exceccedilatildeo no sistema das artes schopenhaueriano pois natildeo

se relaciona a uma objetivaccedilatildeo da vontade mas expressa a proacutepria vontade e desta forma natildeo figura na

sistematizaccedilatildeo hieraacuterquica

44

dos instintos e dos motivos assim como o faz no homem A classificaccedilatildeo das artes

corresponde portanto a esta hierarquizaccedilatildeo cosmoloacutegica de objetivaccedilatildeo da vontade22

Sendo assim a arquitetura e a hidraacuteulica mostram a objetivaccedilatildeo da vontade no seu grau

mais baixo ao expor o jogo das forccedilas que caracterizam a mateacuteria tais como a gravidade

rigidez dureza resistecircncia luz A jardinagem e a pintura da natureza satildeo as formas

artiacutesticas cujo fim eacute a exposiccedilatildeo da objetivaccedilatildeo da vontade que se manifesta no reino

vegetal A pintura de animais encontra-se em um niacutevel superior pois o reino animal

objeto de sua representaccedilatildeo expotildee de forma mais evidente a vontade objetivada Temos

ainda as pinturas de retratos a pintura histoacuterica e a escultura que das artes plaacutesticas

formam a categoria superior cujo objeto eacute a exposiccedilatildeo da vontade no grau mais elevado

de sua cognoscibilidade o homem Esta mesma exposiccedilatildeo a do homem eacute tambeacutem o

objeto da arte poeacutetica que agrave diferenccedila das artes que fazem sua exposiccedilatildeo de modo

puramente intuitivo eacute auxiliada pela imaginaccedilatildeo No aacutepice das artes poeacuteticas

encontramos a trageacutedia a uacuteltima arte natildeo-musical a ser descrita A arte traacutegica eacute aquela

que possui a caracteriacutestica de por sua natureza representar de forma mais ilustrativa a

objetivaccedilatildeo mais desenvolvida da vontade a vida humana e suas relaccedilotildees Veremos

mais tarde que aleacutem de corresponder agrave hierarquia de objetivaccedilatildeo da vontade mais

desenvolvida a arte traacutegica ocupa um lugar especial na filosofia schopenhaueriana

devido agrave ldquograndeza de seu efeitordquo (Schopenhauer 2005 333) Diante do exposto

podemos depreender que a arte possui na filosofia schopenhaueriana um papel

cognitivo e a trageacutedia por sua vez eacute a forma artiacutestica que por sua competecircncia cognitiva

ocupa o primeiro lugar entre as artes natildeo musicais

22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo

22

Vemos aqui um exemplo da citada inter-conectividade existente no sistema schopenhaueriano tendo

em vista que a elaboraccedilatildeo de sua classificaccedilatildeo artiacutestica obedece ao construto metafiacutesico do livro II de

MVR e sua consequumlente cosmologia

45

A tarefa a que se propotildee o sistema schopenhaueriano eacute a decifraccedilatildeo do ldquoenigma

do mundordquo ie encontrar uma resposta agrave pergunta o que eacute o mundo Esta tarefa tem

origem no idealismo subjacente na primeira criacutetica kantiana e de certa forma era uma

tarefa da qual estava imbuiacutedo todo o pensamento filosoacutefico daquele periacuteodo ie por

decifraccedilatildeo do enigma do mundo podemos entender a decifraccedilatildeo da coisa-em-si

kantiana Temos daiacute o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer o idealismo

transcendental do mundo fenomecircnico Sob o ponto de vista da representaccedilatildeo o mundo eacute

objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito agraves condiccedilotildees a priori do

entendimento que para o filoacutesofo satildeo as categorias do espaccedilo do tempo e da

causalidade

Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das formas a priori do entendimento eacute

interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos advindos da filosofia Platocircnica e oriental

como um mundo ilusoacuterio Conforme a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana Platatildeo jaacute

identificava esta caracteriacutestica ilusoacuteria do mundo em sua contraposiccedilatildeo teoacuterica entre o

mundo fiacutesico onde o devir impossibilitava a apreensatildeo do ser e o mundo das ideacuteias

onde haveria o verdadeiro encontro com o ser das coisas Ainda de acordo com a

interpretaccedilatildeo de Schopenhauer os livros sagrados indianos Vedas e Puranas faziam

esta distinccedilatildeo atraveacutes da noccedilatildeo do veacuteu de maia a consciecircncia humana seria envolvida

por um veacuteu o que resultaria em uma visatildeo oniacuterica do mundo e impediria assim a

percepccedilatildeo da realidade

Entretanto o mundo pode ainda ser conhecido atraveacutes de um segundo ponto de

vista como vontade Este eacute o ponto de vista que Schopenhauer utiliza-se para decifrar a

incognosciacutevel coisa-em-si kantiana Percorrendo uma ldquovia subterracircneardquo de modo

imanente Schopenhauer identifica nas accedilotildees do corpo bioloacutegico os atos da vontade

46

enquanto coisa-em-si e de forma analoacutegica a estabelece como essecircncia governante do

mundo Faz-se necessaacuterio aqui ressaltar como o fazem Brum (1998 23) e Rosset23

que

natildeo devemos interpretar esta analogia como uma visatildeo antropomoacuterfica do mundo Essa

essecircncia do mundo encontrada empiricamente natildeo eacute todavia um ente racional uma

ldquoalma do mundordquo Se por um lado o mundo fenomecircnico eacute aquele onde o princiacutepio de

razatildeo24

estabelece as normas de funcionamento um mundo natildeo-fenomecircnico mundo em

si enquanto vontade se expressa por sua alogicidade irracionalidade Grundlosigkeit

(falta de fundamento) Essa essecircncia irracional que manifesta-se nos diversos reinos e

indiviacuteduos do mundo eacute a raiz da visatildeo pessimista da existecircncia que de acordo com o

filoacutesofo pode ser a todo momento constatada empiricamente

As diversas manifestaccedilotildees da vontade suas objetidades carregam inerentemente

a sua iacutendole puro impulso cego vontade de vida insaciabilidade Notadamente o

mundo fenomecircnico objetivaccedilatildeo da vontade expressa a essecircncia desta vontade atraveacutes

de um conflito permanente Desenha-se um cenaacuterio de batalha onde cada objetidade da

vontade cada ser do mundo eacute orientado por sua essecircncia irracional desguarnecida de

qualquer telos ldquoAssim a vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria

carne e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimentordquo (Schopenhauer MVR 211) Este

fundamento ontoloacutegico a vontade determina assim o caraacuteter absurdo que a vida

humana toma na filosofia schopenhaueriana eterno esforccedilo carente de ordem ou

finalidade O ldquomecanismo internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens

marionetes guiados pela carecircncia

[]nenhuma satisfaccedilatildeo todavia eacute duradoura mas antes sempre eacute um

ponto de partida de um novo esforccedilo o qual por sua vez vemos travado em

toda parte de diferentes maneiras em toda parte lutando e assim portanto

23

[] natildeo haacute que transpor a experiecircncia da motivaccedilatildeo humana ao conjunto das forccedilas naturais para

compreender o segredo da natureza senatildeo o contraacuterio transpor o misteacuterio das forccedilas naturais ao conjunto

das motivaccedilotildees psicoloacutegicas para desvendar-se o segredo da vontade humana (Rosset 2005 31) 24

Princiacutepio tratado na tese de doutoramento de Schopenhauer SRQPRS bem como no livro I de MVR

O princiacutepio estabelece que todo acontecimento possui uma causa uma razatildeo de ser

47

sempre como sofrimento natildeo haacute nenhum fim uacuteltimo do esforccedilo portanto natildeo

haacute nenhuma medida e fim do sofrimento (Schopenhauer 2005 399)

Se carecircncia vontade e desejo satildeo a tocircnica da vida humana na maior parte do tempo e

satildeo experimentados como dor e infelicidade a felicidade por sua vez eacute definida

negativamente como um momento de ausecircncia daquela dor

Sentimos a dor e natildeo a ausecircncia da dor a inquietude e natildeo a

tranquumlilidade o medo e natildeo a seguranccedila Sentimos desejo como quando

temos fome e sede entretanto ao alimentarmo-nos estas sensaccedilotildees

deixam de existir para noacutes (MVR II 630)

Toda satisfaccedilatildeo momentacircnea de um querer eacute imediatamente suprimida por outro querer

ou se perdurar por algum tempo por menor que seja este transforma-se em teacutedio Um

ldquopecircndulo entre a dor e teacutediordquo eacute a definiccedilatildeo que Schopenhauer propotildee para a vida

humana Assim se daacute tambeacutem com a sauacutede a juventude e a liberdade Todos satildeo

conceitos definidos negativamente soacute os conhecemos atraveacutes de sua ausecircncia Este afatilde

por prolongar e conservar a vida essecircncia iacutentima de cada indiviacuteduo natildeo eacute contudo

resultado de uma observaccedilatildeo objetiva da mesma de um conhecimento que eleja a vida

como algo de valor a ser mantido e preservado e portanto os ldquo[] seres natildeo satildeo

atraiacutedos por algo que se lhes apresenta mas satildeo empurrados a elerdquo (MVR II 398) A

luta eterna observada nos diversos reinos da natureza a busca por alimento o esforccedilo da

procriaccedilatildeo se comparados aos momentos fugazes de satisfaccedilatildeo fazem da vida ldquoum

negoacutecio cujos investimentos natildeo cobrem nem de longe os custosrdquo (MVR II 399)

Em todas estas consideraccedilotildees se faz claro que a vontade de viver

natildeo eacute a consequecircncia do conhecimento da vida natildeo se trata de uma

bdquoconclusio ex praemissis‟ nem em geral eacute algo secundaacuterio antes

contudo eacute o primeiro e incondicionado a premissa de todas as premissas

e precisamente por isso aquilo do que haacute de partir a filosofia pois a

vontade de viver natildeo se apresenta como a consequumlecircncia do mundo senatildeo

o mundo como consequumlecircncia da vontade de viver (MVR II 405)

Um dos pontos essenciais a ser verificado nesta visatildeo de mundo eacute o

destronamento da razatildeo O ceacuterebro oacutergatildeo da razatildeo eacute o resultado de um esforccedilo da

48

vontade em seu percurso de objetivaccedilatildeo A racionalidade humana estaacute a serviccedilo da

vontade que eacute em sua essecircncia grundlos A razatildeo eacute ferramenta para que o homem

enquanto objetidade da vontade consiga satisfazer a seus anseios Em oposiccedilatildeo agrave

filosofia racionalista de entatildeo onde o ldquoreal eacute o racionalrdquo assistimos ao surgimento de

uma filosofia irracionalista das forccedilas inconscientes onde a razatildeo na medida em que eacute

mecanismo da vontade estaacute sempre a serviccedilo desta O comportamento humano eacute

naturalmente egoiacutesta voltado para os proacuteprios interesses e estes por sua vez satildeo

expressatildeo desta vontade aloacutegica desprovida de telos Schopenhauer se mostrava

consciente da singularidade desta sua biparticcedilatildeo do ego e da consequumlente visatildeo de

mundo que ela trouxe agrave luz e enfatizou isto em seus manuscritos berlinenses ldquo[] a

divisatildeo da mente o eu em duas partes diferentes - em vontade como parte essencial e

primaacuteria e em intelecto como secundaacuteria - eacute o grande princiacutepio e meacuterito de minha

filosofia e tambeacutem a principal diferenccedila dos demais sistemasrdquo (MR III 328)

Temos entatildeo os dois pontos de vista do mundo que fundamentam a visatildeo de

Schopenhauer e que posteriormente seratildeo transformados pela teoria nietzscheana da

trageacutedia nos dois impulsos da natureza o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco O primeiro deles eacute o

mundo da individualidade da pluralidade regido pelo que Schopenhauer vai chamar

utilizando-se de um termo retirado da escolaacutestica de principium individuationis

Nesse sentido servindo-me da antiga escolaacutestica denomino

tempo e espaccedilo pela expressatildeo principium individuationis que peccedilo para

o leitor guardar para sempre Tempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais

aquilo que eacute uno e igual conforme a essecircncia e o conceito aparece como

pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem (MVR 171)

No segundo toto genere diferente do primeiro existe a vontade una indivisiacutevel natildeo

submetida ao princiacutepio de razatildeo e por isso sem fundamento

Em apoio a sua tese Schopenhauer invoca ao final do capiacutetulo 46 (Sobre a

nulidade e o sofrimento da vida) dos complementos de MVR a opiniatildeo de diversos

49

pensadores dentre eles Heroacutedoto Platatildeo Teoacutegnis Homero os tragedioacutegrafos gregos

Shakespeare Byron Voltaire Rousseau Faz-se importante neste momento ressaltar que

o filoacutesofo aponta a invenccedilatildeo da trageacutedia pelos gregos como uma expressatildeo desta visatildeo

de mundo ponto de vista que como veremos tambeacutem seraacute adotado pelo primeiro

Nietzsche

Ante tudo mencionarei que os gregos por mais distantes que

estivessem da visatildeo de mundo cristatilde e da alta Aacutesia e por muito que se

mantiveram sob o ponto de vista da afirmaccedilatildeo da vontade se fizeram

profundamente impressionados pela miseacuteria da existecircncia Isso eacute

demonstrado pela invenccedilatildeo da trageacutedia obra deles (MVR II 640)

23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana

Existe poreacutem uma forma de conhecimento que eacute ndash agrave diferenccedila daquela

subordinada ao princiacutepio de razatildeo que percebe os objetos em sua relaccedilatildeo com os outros

objetos do espaccedilo-tempo ndash uma forma mais universal pois mostra o objeto em sua

caracteriacutestica mais geral qual seja a de ser objeto para o sujeito A esta forma de

conhecimento Schopenhauer associa a apreciaccedilatildeo esteacutetica O seu objeto eacute a ideacuteia

platocircnica25

um grau determinado de objetivaccedilatildeo da coisa-em-si

Os diferentes graus de objetivaccedilatildeo da Vontade expressos em

inumeraacuteveis indiviacuteduos e que existem como seus protoacutetipos

inalcanccedilaacuteveis ou formas eternas das coisas que nunca aparecem no

tempo e no espaccedilo meacutedium do indiviacuteduo mas existem fixamente natildeo

submetidos a mudanccedila alguma satildeo e nunca vindo-a-ser enquanto as

coisas nascem e perecem sempre vecircm-a-ser e nunca satildeo os GRAUS DE

OBJETIVACcedilAtildeO DA VONTADE ia dizer natildeo satildeo outra coisa senatildeo as

IDEacuteIAS DE PLATAtildeO (MVR 191)

Esta instacircncia do conhecimento eacute alcanccedilada intuitivamente pela contemplaccedilatildeo

esteacutetica da natureza ou pela facilitaccedilatildeo de uma obra de arte Desta forma as obras de

25

Conforme o filoacutesofo ldquo A expressatildeo mais breve e sucinta daquele famoso dogma platocircnico foi dada por

Dioacutegenes Laeacutercio (II 12) Platatildeo ensina que as ideacuteias da natureza existem como protoacutetipos jaacute as demais

coisas apenas se assemelham a elas e satildeo suas coacutepiasrdquo (MVR 191)

50

arte na teoria schopenhaueriana satildeo uma exposiccedilatildeo destes graus de objetivaccedilatildeo da

vontade as ideacuteias Ao contraacuterio da criacutetica agrave arte presente na repuacuteblica platocircnica - onde a

arte seria uma coacutepia mais imperfeita da ideacuteia por retratar o mundo fenomecircnico sua

coacutepia direta - Schopenhauer aproxima as obras artiacutesticas das ideacuteias eternas as define

como suas expressotildees diretas Contudo a intuiccedilatildeo das ideacuteias exige um estado de

consciecircncia diferente do estado comum Neste uacuteltimo o aparelho cognitivo sob a eacutegide

da vontade estaacute voltado para a realizaccedilatildeo dos interesses individuais e entatildeo se

movimenta no mundo guiado por estes interesses ldquoCaso entretanto a Ideacuteia deva de

alguma maneira tornar-se conhecimento e ser conhecida pelo sujeito entatildeo isso soacute

pode ocorrer graccedilas agrave supressatildeo da individualidade no sujeito que conhecerdquo (MB 30)

A forma artiacutestica de conhecimento cujo possuidor eacute o denominado gecircnio estaacute

associada a um desprendimento das reacutedeas da vontade O gecircnio eacute entatildeo aquele que livre

dos interesses da vontade percebe as ideacuteias por traacutes dos objetos alheio aos princiacutepios

de razatildeo e de individuaccedilatildeo e traduz este objeto na obra de arte O observador esteacutetico eacute

portanto um partiacutecipe da genialidade na medida em que intui a ideacuteia por traz do objeto

observado conforme tambeacutem ao seu grau de desinteresse26

Durante a apreciaccedilatildeo

esteacutetica o homem se vecirc livre momentaneamente daquela parte de si que eacute a causadora

de todo o sofrimento individual e coletivo a vontade para transformar-se em um ldquopuro

sujeito de conhecimentordquo Este estado de satisfaccedilatildeo decorrente da suspensatildeo da vontade

individualizada eacute o sentimento do belo

Aquilo que se poderia nomear o lado mais belo e a pura alegria

da vida precisamente porque nos arranca da existecircncia real e nos

transforma em espectadores desinteressados diante dela eacute o puro

conhecimento que permanece alheio a todo querer eacute a fruiccedilatildeo do belo a

alegria autecircntica na arte Mas mesmo isso requer dispositivos raros e

cabe apenas a pouquiacutessimos e mesmo para estes eacute um sonho

passageiro (MVR 404)

26

Vemos nesta forma de associaccedilatildeo entre conhecimento e interesse mais uma heranccedila kantiana no caso

provinda da definiccedilatildeo de belo da criacutetica da faculdade de juiacutezo

51

- - - - - - - - - -

Ao descrever a apreciaccedilatildeo artiacutestica como um ato cognitivo Schopenhauer

preocupa-se em diferenciaacute-la do conhecimento cientiacutefico De fato boa parte das

consideraccedilotildees sobre a arte eacute dedicada ao esclarecimento desta diferenccedila

Podemos por conseguinte definir a arte como o modo de

consideraccedilatildeo das coisas independente do princiacutepio de razatildeo em oposiccedilatildeo

justamente agrave consideraccedilatildeo que o segue que eacute o caminho da experiecircncia e

da ciecircncia O modo de consideraccedilatildeo que seque o princiacutepio de razatildeo eacute o

racional o uacutenico que vale e que auxilia na vida praacutetica e na ciecircncia o

modo apartado do conteuacutedo do princiacutepio de razatildeo eacute o genial o uacutenico que

vale e que auxilia na arte (MB 59)

No caso da trageacutedia cujo objetivo eacute o conhecimento do homem e de suas relaccedilotildees a

ciecircncia que mais se assemelha a esta forma artiacutestica seria a histoacuteria Esta natildeo tem como

objetivo a demonstraccedilatildeo da essecircncia do homem em sua forma atemporal ou seja a

demonstraccedilatildeo daquilo que fundamenta toda accedilatildeo humana independente dos

acontecimentos empiacutericos

[ ]toda ciecircncia no sentido proacuteprio do termo compreendida como

conhecimento sistemaacutetico guiado pelo fio condutor do princiacutepio de

razatildeo parte sempre de dois dados baacutesicos um deles sem exceccedilatildeo eacute o

princiacutepio de razatildeo em uma de suas figuras como oacuterganon outro eacute o

objeto especiacutefico de cada uma delas enquanto problema (Schopenhauer

MVR 73)

Desta forma a histoacuteria teria a lei de motivaccedilatildeo e o os fatos humanos como oacuterganon e

problemas respectivamente Entretanto interessa a Schopenhauer um conhecimento

mais universal que soacute pode ser apresentado pela arte e que aponta por sua proximidade

agrave essecircncia daquilo que eacute a uma ldquoiacutendole imutaacutevelrdquo das manifestaccedilotildees

Podemos ver entatildeo que sendo consideradas como meios para o

conhecimento da essecircncia da humanidade arte poeacutetica e histoacuteria possuem todavia

objetos de conhecimento diferentes A primeira quando produzida pelo verdadeiro

gecircnio tenciona manifestar a ideacuteia por traacutes destes conceitos a ideacuteia de homem de

humanidade intuitivamente independentemente do princiacutepio de razatildeo do devir como

52

objeto puro de conhecimento alheio agrave corrente dos motivos em suas caracteriacutesticas

essenciais atemporais A histoacuteria por sua vez segue o rastro do princiacutepio de razatildeo

procurando apresentar o fenocircmeno humano em suas relaccedilotildees descrever-lhe em suas

situaccedilotildees particulares individuais empiacutericas Nas palavras de Schopenhauer

Arte e ciecircncia tecircm em uacuteltima instacircncia o mesmo estofo a saber

justamente o mundo tal como ele se posta diante de noacutes ou antes uma

parte destacada dele quanto ao todo do mundo soacute a filosofia o

considera Contudo a grande diferenccedila entre ciecircncia e arte reside na

maneira como elas consideram o mundo e trabalham seu estofo Tal

oposiccedilatildeo pode ser indicada com uma palavra a ciecircncia considera os

fenocircmenos do mundo seguindo o fio condutor do princiacutepio de razatildeo ao

passo que a arte coloca totalmente de lado o princiacutepio de razatildeo

independente dele para que assim a ideacuteia entre em cena

(SCHOPENHAUER MB 57)

Podemos notar que a valorizaccedilatildeo do que eacute imutaacutevel alheio agrave idealidade do tempo eacute a

raiz da valorizaccedilatildeo do conhecimento artiacutestico frente ao histoacuterico Este uacuteltimo natildeo visa o

acesso aos modelos eternos pois seu objeto satildeo os acontecimentos individuais do

mundo fenomecircnico que satildeo eventos meramente aparentes se considerarmos a

idealidade do tempo O que se manifesta no fluxo temporal do mundo fenomecircnico satildeo

sempre as mesmas formas eternas as ideacuteias entretanto com roupagens diferentes o

mesmo homem enquanto objetivaccedilatildeo da vontade a mesma humanidade Onde quer que

seja e em qualquer momento especiacutefico sua essecircncia eacute a mesma e esta essecircncia eacute o que

deve ser alvo de uma compreensatildeo privilegiada de entendimento e natildeo as suas diversas

manifestaccedilotildees Por este motivo Schopenhauer deixando explicito o seu chamado anti-

historicismo afirma que ldquose algueacutem jaacute lera Heroacutedoto jaacute estudara bastante histoacuteria e

efeitos filosoacuteficos Pois laacute jaacute estaacute tudo o que compotildee a posterior histoacuteria mundial a

atividade o obrar o sofrimento e o destino do gecircnero humano (Schopenhauer MVR

II 496) Podemos notar claramente a oposiccedilatildeo entre a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana

da histoacuteria e as tendecircncias de seu tempo principalmente presentes na filosofia de

Hegel Este de acordo com a criacutetica de Schopenhauer ignorando a filosofia critica de

53

Kant toma o fenocircmeno histoacuterico como coisa em si ao atribuir-lhe uma unidade de

consciecircncia Entretanto unidade de consciecircncia eacute um atributo dos indiviacuteduos e natildeo do

gecircnero humano Estas filosofias de acordo com o Schopenhauer satildeo frutos do realismo

otimista queldquo tomam o mundo como perfeitamente real e potildeem como fim do mesmo

uma miseraacutevel felicidade terrena (Schopenhauer MVR II 495)

- - - - - - - - - -

Colocando de lado o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e mirando-se no

conhecimento da ideacuteia imutaacutevel atemporal encontramos a trageacutedia como fenocircmeno que

apresenta agrave intuiccedilatildeo o homem e sua condiccedilatildeo Eacute a forma de arte que tem como objeto o

grau mais elevado de objetivaccedilatildeo da vontade A intenccedilatildeo do artista traacutegico eacute de acordo

com Schopenhauer transmitir a ideacuteia intuiacuteda tarefa que seraacute bem sucedida de acordo

com a habilidade de utilizaccedilatildeo da teacutecnica artiacutestica por um lado e com a capacidade de

percepccedilatildeo esteacutetica do apreciador por outro O tragedioacutegrafo diferentemente do

historiador que relata os fatos empiacutericos explicitando seus motivos e consequumlecircncias

deve para obter o efeito esperado em sua obra expor uma situaccedilatildeo tal em que o homem

possa manifestar todas as suas potencialidades e dessa forma transmitir ao apreciador

esteacutetico a ideacuteia representada ldquoO poeta expotildee com escolha e intenccedilatildeo caracteres

significativos em situaccedilotildees significativas jaacute o historiador toma aos dois como eles

aparecemrdquo (Schopenhauer MVR 323) A qualidade da obra traacutegica seraacute julgada entatildeo

pela sua capacidade de representaccedilatildeo da ideacuteia de humanidade e Schopenhauer qualifica

as trageacutedias de acordo com esta capacidade Natildeo existe em seu sistema uma

consideraccedilatildeo histoacuterica da produccedilatildeo traacutegica Ele natildeo leva em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees

histoacutericas no que se refere agrave origem ou mesmo quanto ao desenvolvimento desta forma

artiacutestica e a avalia unicamente conforme o seu efeito E neste ponto a trageacutedia apresenta

uma peculiaridade frente agraves demais artes ela eacute a forma de arte que provocaraacute o

54

sentimento do sublime Como vimos o correlato subjetivo de toda apreciaccedilatildeo esteacutetica eacute

o sentimento causado pela anulaccedilatildeo da vontade individual mediante a elevaccedilatildeo ao

estado de puro sujeito de conhecimento O sublime assim como o belo satildeo expressotildees

deste sentimento que se diferenciam unicamente por sua forma

Se tal estado surgiu por si mesmo na medida em que o objeto foi

solicitado e se apresentou ndash e fomos postos sem resistecircncia pelo mero

desaparecer da vontade da consciecircncia no estado do conhecer puro ndash ou

se primeiro foi despertado por elevaccedilatildeo livre consciente sobre a vontade

na medida em que o objeto contemplado tem com esta uma relaccedilatildeo

desfavoraacutevel hostil cuja prossecuccedilatildeo suprimiria a contemplaccedilatildeo ndash aiacute

reside a diferenccedila entre o belo e o sublime (MB 119)

A impressatildeo do sublime eacute portanto uma forma de colocar-se no estado do puro conhecer

ao nos depararmos com o objeto que por sua apresentaccedilatildeo sugere uma ldquorelaccedilatildeo hostilrdquo

com o indiviacuteduo27

Jaacute vimos que a visatildeo de mundo de Schopenhauer identifica a vida humana como

sofrimento infindaacutevel no entanto ao elaborar sua definiccedilatildeo da trageacutedia Schopenhauer

aponta para o desfecho moral de sua obra (livro IV de MVR) e afirma que a trageacutedia

melhor eacute aquela que expotildee a renuacutencia agrave vida O filoacutesofo compara obras contemporacircneas

agraves antigas e afirma sua preferecircncia por estas em decorrecircncia da capacidade que elas tecircm

de provocar esta a renuacutencia agrave vida Vejamos a descriccedilatildeo que Schopenhauer faz da

trageacutedia

No aacutepice da arte poeacutetica tanto no que se refere agrave grandeza do seu

efeito quanto agrave dificuldade da sua realizaccedilatildeo deve-se ver a trageacutedia e de

fato ela assim foi reconhecida Observe-se aqui algo de suma significaccedilatildeo

para toda a nossa visatildeo geral de mundo o objetivo dessa suprema

realizaccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute outro senatildeo a exposiccedilatildeo do lado terriacutevel da vida

27

Vemos na teoria do sublime Schopenhaueriana mais uma vez a influecircncia de Kant Schopenhauer iraacute

identificar duas formas de sublime e utilizar-se-aacute dos termos kantianos ldquosublime dinacircmicordquo e ldquosublime

matemaacuteticordquo para diferenciaacute-los No primeiro o objeto de apreciaccedilatildeo se mostra a princiacutepio uma ameaccedila

ao observador ldquoum poder que suprimiria qualquer resistecircnciardquo(MB 104) No sublime matemaacutetico o

segundo o objeto eacute visto em sua incomensuraacutevel grandiosidade diante da qual o observador infere a sua

infimidade A afinidade entre Schopenhauer e a teoria criacutetica do juiacutezo eacute expressa em sua obra principal

ldquoDe longe o que haacute de mais excelente na criacutetica da faculdade de juiacutezo eacute a teoria do sublime Ela eacute

incomparavelmente mais bem sucedida que a teoria do belo e daacute natildeo apenas como esta o meacutetodo geral

da investigaccedilatildeo mas tambeacutem um trecho do correto caminho de maneira que embora natildeo forneccedila a

soluccedilatildeo propriamente dita do problema chega bem perto delardquo(MVR 660)

55

a saber o inominado sofrimento a miseacuteria humana o triunfo da maldade

o impeacuterio ciacutenico do acaso a queda inevitaacutevel do justo e do inocente E

em tudo isso se encontra uma indicaccedilatildeo significativa da iacutendole do mundo

e da existecircncia Eacute o conflito da Vontade consigo mesma que aqui

desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade entra em

cena de maneira aterrorizante Ele se torna visiacutevel no sofrimento da

humanidade em parte produzido por acaso e erro que se apresentam

como os senhores do mundo e personificados como destino e perfiacutedia os

quais aparecem enquanto intencionalidade em parte advindo da

humanidade mesma por meio dos entrecruzados esforccedilos voluntaacuterios dos

indiviacuteduos e da maldade e perversatildeo da maioria Trata-se de uma uacutenica e

mesma Vontade que em todos vive e aparece cujos fenocircmenos

entretanto combatem entre si e se entredevoram [] Por fim esse

conhecimento no indiviacuteduo purificado e enobrecido pelo sofrimento

mesmo atinge o ponto no qual o fenocircmeno o veacuteu de maia natildeo mais o

ilude Ele vecirc atraveacutes da forma do fenocircmeno do principium

individuationis com o que tambeacutem expira o egoiacutesmo nele baseado Com

isso os ateacute entatildeo poderosos MOTIVOS perdem o seu poder e em vez

deles o conhecimento perfeito da essecircncia do mundo atuando como

quietivo da vontade produz a resignaccedilatildeo a renuacutencia natildeo apenas da vida

mas de toda a vontade de vida mesma (Schopenhauer MVR 333)

Percebemos nesta descriccedilatildeo que a trageacutedia aleacutem de expor a visatildeo de mundo construiacuteda

pelo filoacutesofo tem como fim uacuteltimo provocar um efeito moral no apreciador esteacutetico

qual seja a renuacutencia ao mundo Vejamos entatildeo a relaccedilatildeo entre a visatildeo de mundo

schopenhaueriana o efeito esteacutetico provocado pela trageacutedia e o projeto moral existente

por traacutes de suas teorias

24 A finalidade moral da trageacutedia

Para que possamos perceber a relaccedilatildeo intriacutenseca entre cosmologia metafiacutesica

arte e a eacutetica faz-se necessaacuterio uma pequena excursatildeo sobre esta uacuteltima Que todo o

sistema schopenhaueriano possui um viacutenculo inseparaacutevel com o seu projeto eacutetico eacute fato

que natildeo passa despercebido a seus comentadores Um projeto de juventude eacute descrito

por Safranski (1991 188-198) Young (2006 07 200) Aramayo (2001 56-59) e

Cartwright (Janaway 1999 252) como uma premissa no desenvolvimento da filosofia

56

schopenhaueriana trata-se do projeto de uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Young a descreve

como uma transcendecircncia do mundo ordinaacuterio para o ldquomundo verdadeirordquo Esta

consciecircncia melhor poderia ser experimentada atraveacutes da apreciaccedilatildeo artiacutestica e da

consciecircncia eacutetica ambas originadas do desvelamento de maia Assim Schopenhauer a

descreve conforme citaccedilatildeo de Young (2006 9) ldquopersonalidade e causalidade existem

neste mundo compreensiacutevel temporal sensorial Mas a consciecircncia melhor me leva a

um mundo onde nem personalidade nem sujeito ou objeto existem maisrdquo Safransky

descreve a consciecircncia melhor como um estado semelhante ao ecircxtase miacutestico

Este arrebatamento estaacute livre das coordenadas espaccedilo-temporais

cujo ponto de interseccedilatildeo eacute o eu corporal apartado do espaccedilo do tempo

do eu Os miacutesticos chamam a esta experiecircncia ldquonunc stansrdquo agora

permanente A intensidade deste presente natildeo conhece princiacutepio nem fim

e soacute pode desaparecer porque noacutes desaparecemos dele (Safransky1991

190)

Conforme Aramayo tanto a figura do gecircnio como a do santo satildeo expressotildees do

reconhecimento desta consciecircncia melhor e a filosofia de Schopenhauer pretende-se

uma terceira via que tambeacutem apontaria para este estado de consciecircncia A caracteriacutestica

primordial deste estado eacute o desprendimento dos desejos individuais e o comportamento

virtuoso que adveacutem deste desprendimento Eacute na esteira do entendimento desta

consciecircncia melhor que as bases eacutetico-metafiacutesicas do filoacutesofo foram elaboradas Em

apoio a esta afirmaccedilatildeo Aramayo apresenta duas citaccedilotildees a partir das quais em

momentos distintos de sua vida Schopenhauer apresenta seu projeto de identificaccedilatildeo

entre eacutetica e metafiacutesica Nos escritos de Juventude em 1813 vemos o projeto

Em meu espiacuterito encontra-se em gestaccedilatildeo uma filosofia onde

metafiacutesica e eacutetica devem constituir uma soacute coisa cuja dissociaccedilatildeo eacute tatildeo

errocircnea como agrave da alma e do corpo (Aramayo 2001 41)

Jaacute nos escritos tardios especificamente em seu ensaio de 1836 Sobre a vontade na

natureza veremos Schopenhauer identificar esta uniatildeo

57

Tatildeo soacute esta metafiacutesica que jaacute eacute eacutetica por si soacute ao estar construiacuteda

com esse material primordialmente eacutetico que se supotildee a vontade

constitui real e imediatamente um sustentaacuteculo para a eacutetica em vista de

que poderia haver colocado em minha metafiacutesica o nome de eacutetica (apud

Aramayo 2001 43)

Cartwright aponta ainda na uacuteltima obra schopenhaueriana de 1851 Parerga e

paralipomena a afirmaccedilatildeo de que a ldquosua real filosofia culminou em um ponto de vista

altamente eacutetico-metafiacutesicordquo (Janaway 1999 252)

Na filosofia schopenhaueriana como vimos o indiviacuteduo humano eacute uma

expressatildeo da objetidade da vontade e seu ponto de partida por natureza eacute a satisfaccedilatildeo

manutenccedilatildeo e o prolongamento desta vontade de vida Este estado de consciecircncia onde

todos os esforccedilos estatildeo voltados para a satisfaccedilatildeo da vontade individual eacute a causa de

todo o sofrimento do mundo Aprisionado agrave perspectiva fenomecircnica do mundo o

homem natildeo percebe a unidade da vontade e age de acordo com os motivos estabelecidos

pela sua proacutepria individualidade Para este homem existe uma separaccedilatildeo profunda entre

o proacuteprio eu e os objetos do mundo

Por meio da intuiccedilatildeo que o ceacuterebro efetua a partir dos dados do sentido

e portanto mediatamente conhecemos o proacuteprio corpo como um objeto no

espaccedilo e por meio do sentido interno conhecemos a seacuterie sucessiva de nossos

desejos e atos de vontade que surgem por ocasiatildeo dos motivos externos e

finalmente conhecemos os muacuteltiplos movimentos fortes ou fracos da proacutepria

vontade aos quais todos os sentimentos internos deixam-se reconduzir Isto eacute

tudo pois o conhecer natildeo eacute ele proacuteprio de novo conhecido (Schopenhauer

2001 213)

Eacute deste estado que surge todo o comportamento humano considerado pelo filoacutesofo

como comportamento antimoral Egoiacutesmo eacute o nome dado ao resultado da influecircncia do

princiacutepio de individuaccedilatildeo sobre o comportamento dos homens Este egoiacutesmo chega ao

extremo de o homem considerar-se o centro do mundo e transformar o seu querer em

mandamento para os objetos exteriores ldquoalguns homens seriam capazes de assassinar

um outro soacute para engraxar suas botas com a gordura delerdquo (SFM 124) Nestas

58

condiccedilotildees ldquose fosse dado pois a um indiviacuteduo escolher entre a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo

e a do mundo nem preciso dizer para onde a maioria se inclinariardquo (SFM 121) Da

forma como ocorre com o egoiacutesmo a ilusatildeo fenomecircnica daacute origem a outro sentimento

o oacutedio Estes dois egoiacutesmo e oacutedio satildeo os princiacutepios originadores de todos os viacutecios do

homem Desta leitura pessimista da natureza humana Schopenhauer retira seu conceito

perspectivista das ideacuteias de bem e mal satildeo consideradas boas ou maacutes as coisas que

agradam ou desagradam agrave vontade do indiviacuteduo ldquoPortanto tudo o que eacute favoraacutevel agrave

vontade em alguma de suas exteriorizaccedilotildees e satisfaz seus fins eacute pensado pelo conceito

bom por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectosrdquo (MVR 459)

Este estado eacute definido por Schopenhauer como ldquoafirmaccedilatildeo da vontaderdquo nele o amor-

proacuteprio Eros dita as regras de comportamento Definido o Eros enquanto

fundamentador das accedilotildees antimorais humanas sendo este surgido de uma percepccedilatildeo

subordinada ao principium individuationis entendemos o motivo pelo qual o filoacutesofo

rejeita a validade de qualquer moral baseada em argumentos abstratos

Uma moral sem fundaccedilatildeo portanto um simples moralizar natildeo pode

fazer efeito pois natildeo motiva Uma moral entretanto que motiva soacute pode fazecirc-

lo atuando sobre o amor proacuteprio O que entretanto nasce daiacute natildeo tem valor

moral algum Segue-se assim que mediante moral e conhecimento abstrato em

geral nenhuma virtude autecircntica pode fazer efeito mas esta tem de brotar do

conhecimento intuitivo o qual reconhece no outro indiviacuteduo a mesma essecircncia

que a proacutepria (MVR 468)

Desta forma em contraposiccedilatildeo ao comportamento antimoral produzido

pela ilusatildeo causada pelo principium individuationis o filoacutesofo apresenta o outro lado da

moeda a accedilatildeo moral Esta seria a accedilatildeo praticada em funccedilatildeo do bem-estar de um outro

indiviacuteduo tendo em vista que as accedilotildees praticadas em funccedilatildeo do mal-estar do outro ou

do bem e mal estar de si mesmo satildeo justamente as accedilotildees antimorais baseadas no

egoiacutesmo ou no oacutedio ldquoTodo amor que natildeo eacute compaixatildeo eacute amor-proacuteprio Amor-proacuteprio eacute

59

Eros compaixatildeo eacute Aacutegaperdquo (MVR 478) Todo ato moral eacute por consequumlecircncia um ato de

compaixatildeo ou seja um ato que eacute praticado a partir da percepccedilatildeo do sofrimento do

outro Entretanto a percepccedilatildeo do sofrimento alheio natildeo eacute dada atraveacutes do conhecimento

abstrato E somente por uma percepccedilatildeo intuitiva direta do sofrimento do outro como o

meu proacuteprio sofrimento que surge a compaixatildeo Tal percepccedilatildeo assim como a

apreciaccedilatildeo esteacutetica tem origem em uma visatildeo que vai aleacutem do principium

individuationis Desfaz-se a ilusatildeo causada por este princiacutepio de que existe em realidade

um eu e um natildeo-eu ilusatildeo essa que eacute originada pelos condicionantes do conhecimento

tempo espaccedilo e causalidade Livre do principium individuationis natildeo haacute mais

diversidade natildeo existe mais indiviacuteduo passado futuro motivaccedilotildees existe apenas o

instante presente do ser a vontade Natildeo nos vemos mais como uma vontade separada de

outras ao contraacuterio vemos nos outros a mesma vontade pela qual somos Necessaacuterio

faz-se ressaltar que este conhecimento intuitivo que demonstra a unidade da vontade

em todo indiviacuteduo eacute entendimento de verdade tatildeo profundo que supera qualquer

especulaccedilatildeo abstrata do conhecimento e por isso seu efeito eacute marcante

Para o conhecimento que vecirc atraveacutes do principium individuationis uma

vida feliz no tempo presenteada pelo acaso ou conquistada deste pela

sabedoria em meio ao sofrimento de inumeraacuteveis outros eacute apenas um sonho de

mendigo no qual eacute um rei poreacutem tem de acordar e reconhecer que era tatildeo-soacute

uma ilusatildeo fugidia aquilo que o separava do sofrimento da sua vida (MVR

452)

A experimentaccedilatildeo deste estado de consciecircncia faz-nos perceber a vida como engano

luta infinita e provoca em noacutes a renuacutencia a esta mesma vida agrave vontade de viver O

homem natildeo mais afirma a sua essecircncia mas a repudia

Agrave semelhanccedila do estado de negaccedilatildeo da vontade o proacuteprio estado de

contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee um desinteresse pelos mandamentos da vontade

60

individual um desligamento do caraacuteter egoiacutestico do sujeito empiacuterico28

Para que possa

perceber a Ideacuteia por traacutes do objeto contemplado o observador deve estar em um estado

de consciecircncia que se vecirc livre dos grilhotildees da vontade Neste estado ele eacute alccedilado para

aleacutem da individualidade torna-se puro sujeito de conhecimento Para que este estado se

manifeste eacute imprescindiacutevel natildeo estar interessado nas relaccedilotildees do objeto apreciado seja

com outros objetos seja consigo mesmo O apreciador esteacutetico natildeo se preocupa com o

ldquoonderdquo o ldquocomordquo o ldquoporquecircrdquo dos objetos Estas formas de interjeiccedilatildeo sinalizam para a

relaccedilatildeo dos objetos com o mundo O apreciador esteacutetico no momento da apreciaccedilatildeo

tem em vista somente o ldquoquerdquo do objeto transforma-se em um ldquoolho que vecircrdquo livre do

princiacutepio de individuaccedilatildeo eacute o puro sujeito de conhecimento Vemos nestes dois estados

(o esteacutetico e o compassivo) exemplos de estados de consciecircncia que por suas

caracteriacutesticas de alccedilarem o indiviacuteduo a uma anulaccedilatildeo do sofrimento fazem parte do

projeto de juventude de estabelecer uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Percebemos entatildeo que a

consideraccedilatildeo esteacutetica e a consideraccedilatildeo eacutetica possuem em comum esta caracteriacutestica da

consciecircncia de se apartar do princiacutepio de individuaccedilatildeo

No caso da trageacutedia como descreve Schopenhauer seu fim uacuteltimo eacute despertar a

compaixatildeo no apreciador Desta forma o filoacutesofo associa agrave trageacutedia um efeito singular e

adverso das demais artes ou pelo menos reconhece na trageacutedia a arte capaz de

demonstrar a semelhanccedila entre os modos de consideraccedilatildeo artiacutestico e eacutetico Ao ilustrar o

conflito das vontades no mundo atraveacutes da exposiccedilatildeo do sofrimento humano a trageacutedia

cumpre seu papel artiacutestico ao expor a ideacuteia de humanidade Aleacutem deste atributo

podemos dizer que a trageacutedia tem que cumprir ainda seu papel moral ao causar no

28

Neste ponto de semelhanccedila eacute fundamental apontar mais uma vez a heranccedila kantiana Nas palavras de

Barboza (2001 82) ldquoA negaccedilatildeo da Vontade diante da beleza realmente obedece a uma leitura do

conceito criacutetico de desinteresse Quando Kant diz que o belo eacute aquilo que satisfaz bdquosem nenhum

interesse‟ o autor de O mundo leu essa expressatildeo como equivalente da negaccedilatildeo do querer visto que

interesse e motivo satildeo conceitos intercambiaacuteveis [] e a vontade neutraliza-se desinteressa-se ou seja eacute

indeterminaacutevel por motivos na contemplaccedilatildeo da Ideacuteia do belordquo

61

espectador a renuacutencia a toda vontade O modelo exemplar da trageacutedia eacute para

Schopenhauer a trageacutedia cristatilde onde o heroacutei conscientemente abandona o querer e

conseguintemente a vida Na trageacutedia antiga havia somente a identificaccedilatildeo do

sofrimento humano e sua exposiccedilatildeo A renuacutencia agrave vontade de vida eacute caracteriacutestica das

trageacutedias posteriores ao advento cristatildeo Schopenhauer exemplifica O priacutencipe de

Calderoacuten Gretchen em Fausto A Donzela de Orleans a Noiva de Messina etc Assim

ldquotoda a exposiccedilatildeo traacutegica eacute para o espectador um chamado agrave resignaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo livre

da Vontade de vida Somente a eacutetica pode tornar tudo isso mais compreensiacutevelrdquo (MB

223) Vemos entatildeo de forma clara na teoria da trageacutedia de Schopenhauer um momento

onde ocorre a coalizatildeo dos fundamentos metafiacutesicos de sua filosofia do pessimismo

originado nestes fundamentos e da atitude eacutetica existente por traacutes de seu pensamento

25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera

Faz-se necessaacuterio aqui uma incursatildeo sobre a teoria da muacutesica de Schopenhauer

tendo em vista de que ela ocuparaacute um papel decisivo na teoria nietzscheana da trageacutedia

As relaccedilotildees que Nietzsche estabelece entre a muacutesica a vontade as palavras e

finalmente a trageacutedia satildeo delineadas como veremos pela metafiacutesica schopenhaueriana

da muacutesica No intuito de perceber estas relaccedilotildees propomos aqui um breve esboccedilo da

teoria da muacutesica na filosofia de Schopenhauer

A filosofia da muacutesica encontra seu lugar ao final do terceiro livro de MVR bem

como no capiacutetulo 39 dos complementos fechando assim as consideraccedilotildees de

Schopenhauer sobre a metafiacutesica do belo e as artes29

29

Na esteira de Lydia Goehr (Jacquette 1996 200) ressaltamos que tendo em vista a influecircncia que sua

filosofia da muacutesica exerceu sobre o pensamento artiacutestico e filosoacutefico posterior e comparada agrave dimensatildeo

de sua obra as consideraccedilotildees sobre a muacutesica ocupam um espaccedilo diminuto em sua obra

62

Para o filoacutesofo da vontade a muacutesica eacute a arte que pela natureza de seu objeto de

expressatildeo natildeo encontra lugar apropriado dentro do sistema das demais artes Estas

conforme sua competecircncia em traduzir uma determinada objetidade da vontade uma

ideacuteia satildeo classificadas hierarquicamente A muacutesica entretanto figura aleacutem desta

hierarquizaccedilatildeo pois representa o conceitualmente irrepresentaacutevel ldquoa coacutepia de um

modelo que ele mesmo nunca pode ser representado imediatamenterdquo(MVR 338) a

Vontade mesma Esta arte eacute especialmente considerada devido agrave peculiaridade uacutenica de

seu efeito esteacutetico ldquoeacute uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente

sobre o mais iacutentimo do homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele

como se fora uma linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do

mundo intuitivordquo (MVR 336) A muacutesica estaacute aleacutem da intuiccedilatildeo pois representa aquilo

que estaacute aleacutem desta forma agrave semelhanccedila das ideacuteias que satildeo objetivaccedilotildees imediatas da

vontade a muacutesica eacute tambeacutem uma destas objetivaccedilotildees representaccedilatildeo imediata da coisa

em si O que o compositor apresenta atraveacutes da muacutesica eacute a essecircncia mais iacutentima do

mundo em uma ldquolinguagem natildeo compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo

magneacutetico fornece informaccedilotildees sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito

algumrdquo (MVR 342) Por estar em um acircmbito inalcanccedilaacutevel pelo conceito a muacutesica

atraveacutes de sua linguagem arrebata o homem de forma mais marcante e direta e ateacute

mesmo a explanaccedilatildeo sobre a muacutesica estaacute condenada agrave pobreza e agrave insuficiecircncia Desta

forma o filoacutesofo se utilizaraacute de uma analogia para explanar sobre a muacutesica ie

procederaacute a uma explicaccedilatildeo da muacutesica atraveacutes de um paralelismo entre ela as ideacuteias e o

mundo enquanto objetivaccedilotildees da vontade

Esta analogia expressa atraveacutes de diversos exemplos leva em consideraccedilatildeo que

em suas duas formas de objetivaccedilatildeo (o mundo e a muacutesica) a Vontade deixa transparecer

semelhanccedilas Na muacutesica os tons mais graves aproximam-se ao que satildeo no mundo os

63

graus mais baixos de objetivaccedilatildeo da vontade quais sejam a natureza inorgacircnica A lei

da harmonia estabelece que os tons agudos satildeo originados daquele tom mais grave

fundamental Da mesma forma no mundo os corpos tecircm como fonte e sustentaacuteculo a

natureza inorgacircnica ldquoagrave partir da qual tudo se eleva e desenvolverdquo(MB 230) As vozes

intermediaacuterias da melodia que estatildeo entre o baixo fundamental e a voz condutora

correspondem no mundo aos demais graus de objetivaccedilatildeo da vontade na natureza ldquoAs

vozes mais proacuteximas do baixo correspondem aos graus mais baixos ou seja os corpos

ainda inorgacircnicos poreacutem jaacute se exteriorizando de diversas maneiras As vozes mais

elevadas por sua vez representam os reinos vegetal e animalrdquo(MB 231)

O objeto de representaccedilatildeo da muacutesica eacute a Vontade e esta por sua vez eacute

intraduziacutevel atraveacutes das palavras da configuraccedilatildeo racional pois a razatildeo natildeo pode

alcanccedilar sua profundidade Trata-se de ldquouma linguagem universal cuja

compreensibilidade eacute inata e cuja clareza ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo

(MB 228) Diante desta caracteriacutestica cognitiva a muacutesica natildeo deve se inspirar no texto

nas palavras a natildeo ser para ilustraacute-las e conceder-lhes assim significaccedilatildeo mais

profunda A muacutesica natildeo deve ser composta com base em conceitos ou em objetos e

ocorrecircncias do mundo pois trata-se de uma expressatildeo da ordem do essencial do

universal ldquoela eacute a alma mais interior dessas ocorrecircncias sem o corpordquo (MB 235) Os

objetos e situaccedilotildees do mundo satildeo manifestaccedilotildees e portanto sua representaccedilatildeo

conceitual satildeo reproduccedilotildees circunstanciais da essecircncia do mundo expressa pela muacutesica

Daiacute se compreende o fato de a muacutesica realccedilar em cada

pintura sim em cada cena da vida efetiva e do mundo o

aparecimento de uma significaccedilatildeo mais elevada e tanto mais

quanto mais anaacuteloga eacute sua melodia ao espiacuterito iacutentimo do

fenocircmeno dado A muacutesica combina com tudo em todas as

exposiccedilotildees Nada lhe pode ser estranho pois exprime a essecircncia

de todas as coisas Caso se soe uma muacutesica que combine com

alguma cena da vida humana ou da natureza destituiacuteda de

conhecimento ou com alguma accedilatildeo acontecimento ambiente ou

64

alguma imagem ndash entatildeo ela revela o sentido secreto dessa cena e eacute

seu comentaacuterio mais correto e claro (MB 235)

Esta caracteriacutestica que daacute agrave muacutesica um privileacutegio cognitivo sobre as demais formas

artiacutesticas eacute o que delineia as consideraccedilotildees do filoacutesofo sobre a oacutepera30

A oacutepera ideal eacute

portanto aquela onde o livreto estaacute para a muacutesica como um exemplo para um conceito

geral A muacutesica tem a funccedilatildeo de expor ldquoo profundo e misterioso sobre a essecircncia

iacutentimardquo daquilo que a palavra exemplifica O compositor que maior ecircxito conseguiu

neste sentido conforme o filoacutesofo foi Rossini cuja ldquomuacutesica fala tatildeo distinta e

puramente a sua linguagem PROacutePRIA visto que quase natildeo precisa de palavras e por

conseguinte provoca todo o seu efeito mesmo se executada soacute com instrumentosrdquo

(MVR 344)

Vemos entatildeo a muacutesica como a mais profunda das artes cujo efeito eacute o mais

avassalador e que portanto quando conjugada com outras formas de expressatildeo como a

oacutepera deve formar a base e orientar a sua elaboraccedilatildeo Entretanto ao contraacuterio da

trageacutedia cujo fim eacute o estiacutemulo agrave renuacutencia da vontade de viver a muacutesica segundo a

metafiacutesica exposta por Schopenhauer ldquonatildeo faz mais do que agradar a vontade de viver

jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo seus ecircxitos e ao final expressa sua

satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509)

30

ldquoAo adotar esta atitude Schopenhauer transtorna toda a tradiccedilatildeo jaacute secular que havia afirmado natildeo

poucas vezes desde os tempos do nascimento da oacutepera o predomiacutenio da palavra sobre a muacutesica e em

consequumlecircncia a subordinaccedilatildeo desta uacuteltima agrave primeirardquo (Fubini 1988 289)

65

3 A teoria da trageacutedia do Jovem Nietzsche

Debalde espreitamos por uma raiz

vigorosamente ramificada por um pedaccedilo

de terra sadia e feacutertil por toda parte poacute

areia rigidez consunccedilatildeo Aqui um

solitaacuterio desconsolado natildeo poderia escolher

melhor siacutembolo do que o Cavaleiro com a

Morte e o Diabo como Duumlrer o desenhou o

cavaleiro arnesado com o olhar duro

brocircnzeo que sabe tomar o seu caminho

assustador imperturbado por seus

hediondos companheiros e natildeo obstante

desesperanccedilado sozinho com o seu corcel e

o seu catildeo Um tal cavaleiro duumlreriano foi

nosso Schopenhauer faltava-lhe qualquer

esperanccedila mas queria a verdade Natildeo haacute

quem se lhe iguale

(Nietzsche)

Neste capiacutetulo procuraremos apontar primeiramente o modo pelo qual se deu o

encontro entre Nietzsche e a filosofia de Schopenhauer Em um segundo momento

percorreremos o desenvolvimento histoacuterico das produccedilotildees nietzscheanas que

culminaram com a publicaccedilatildeo da obra que caracteriza o primeiro periacuteodo do filoacutesofo

qual seja O nascimento da trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica Concluiremos entatildeo

apresentando um esboccedilo desta obra dando ecircnfase em todos os momentos aos

66

elementos que caracterizam sua teoria da trageacutedia especialmente agravequeles relacionados agrave

metafiacutesica schopenhaueriana da vontade

31 Schopenhauer e o jovem Nietzsche uma breve contextualizaccedilatildeo histoacuterica

Foram nos anos de universidade em Leipzig que Nietzsche se deparou com a

filosofia de Schopenhauer Este periacuteodo entre os anos de 1865 e 1869 eacute especialmente

importante devido ao fato de que nele podemos assistir ao surgimento de alguns

aspectos fundamentais ao projeto filosoacutefico de Nietzsche Janz descreve este periacuteodo

como aquele em que o filoacutesofo estabeleceu ldquoseus encontros espirituais determinantes a

partir dos quais se defrontou consigo mesmo e com sua tarefardquo(1987 151)

O primeiro contato do jovem Nietzsche com o mundo schopenhaueriano deu-se

em meados de outubro de 1865 pouco tempo apoacutes sua chegada a Leipzig O

arrebatamento causado no jovem estudante de filologia pelo encontro com a filosofia

schopenhaueriana eacute descrito por ele apoacutes dois anos da seguinte maneira

Sentia-me naquela eacutepoca desorientado solitaacuterio sem

princiacutepios sem esperanccedilas inconsolado e com algumas

experiecircncias dolorosas e decepccedilotildees Construir uma vida proacutepria e

adequada era para mim uma aspiraccedilatildeo que me ocupava da manhatilde

ateacute a noite No feliz apartamento em que vivia procurava

concentrar-me a mergulhar em mim mesmo e quando me

encontrava com amigos estes eram sempre Mushacke e Von

Gersdorff os quais por sua parte alentavam objetivos muito

semelhantes aos meus Creio que natildeo seraacute difiacutecil imaginar a

impressatildeo que nesta situaccedilatildeo me causou a leitura da obra

principal de Schopenhauer Encontrei um dia este livro no sebo do

velho Rohm Ignorando tudo sobre ele o tomei em minhas matildeos e

me pus a folheaacute-lo Natildeo sei que democircnio me sussurrou bdquoleve este

livro para a casa‟ Aconteceu de compraacute-lo apesar do meu usual

costume de natildeo me precipitar na compra de livros Uma vez em

casa num canto do sofaacute me lancei sobre o tesouro receacutem

adquirido e comecei a deixar que aquele gecircnio eneacutergico e sombrio

influiacutesse sobre mim Em cada linha sua gritava a renuacutencia

negaccedilatildeo resignaccedilatildeo tinha diante de mim um espelho no qual

podia contemplar o mundo a vida e meu proacuteprio acircnimo com uma

67

grandeza deprimente Um espelho desde o qual o olho solar da

arte me mirava desde sua absoluta falta de interesse Vi

enfermidade e cura desterro e refuacutegio inferno e paraiacuteso A

necessidade de autoconhecimento inclusive de auto-

experimentaccedilatildeo apoderou-se de mim com forccedila indomaacutevel

provas daquela mutaccedilatildeo profunda satildeo hoje todavia para mim as

paacuteginas desassossegadas e melancoacutelicas do diaacuterio que agravequela

eacutepoca escrevi com suas auto-acusaccedilotildees inuacuteteis e sua desesperada

busca de salvaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do inteiro nuacutecleo humano Na

medida em que propus a submeter todas as minhas caracteriacutesticas

e aspiraccedilotildees ao tribunal de uma sombria auto-depreciaccedilatildeo minha

atitude estava cheia de amargura possuiacuteda de um oacutedio injusto e

desenfreado contra mim mesmo Nem sequer renunciei agraves

mortificaccedilotildees corporais Obriguei-me com efeito durante

quatorze dias seguidos a deitar-me agraves duas da noite e acordar agraves

seis da manhatilde Uma excitaccedilatildeo nervosa muito singular se apoderou

assim de mim e quem sabe ateacute que grau de loucura haveria

chegado se natildeo tivesse modificado frente agravequele estado de

acircnimo os atrativos da vida da vaidade e o imperativo de retornar

a meus estudos regulares (conforme citaccedilatildeo de Janz 1987 158)

Da citaccedilatildeo podemos inferir a mudanccedila de acircnimo que o encontro com

Schopenhauer provocou A partir daquele momento diversas correspondecircncias datildeo-nos

ainda informaccedilotildees do impacto que a filosofia de Schopenhauer provocou na concepccedilatildeo

de mundo do jovem estudante Em algumas destas correspondecircncias vemos transparecer

a influecircncia atraveacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio schopenhaueriano bem

como das ideacuteias nelas expressas Assim acontece em carta enviada agrave sua matildee e irmatilde

datada de 5 de novembro de 1865 onde ao discorrer acerca da frivolidade da vida

humana o jovem Nietzsche conclui utilizando-se dos argumentos propostos pela eacutetica

schopenhaueriana

Existem dois caminhos ou se esforccedila e se acostuma a ser

o mais limitado que se possa e uma vez que se reduz o maacuteximo

possiacutevel a luz do espiacuterito se busque bens de fortuna e se viva com

os prazeres do mundo ou por outro lado se sabe que a vida eacute

miseraacutevel se sabe que somos seus escravos tanto mais quanto

mais procuramos dela gozar e por tanto se desprende dos bens da

vida exercita a sobriedade e se eacute austero consigo mesmo e cordial

com os demais ndash e isto porque sente compaixatildeo pelos

companheiros de miseacuteria ndash em uma palavra se vive de acordo

68

com as rigorosas exigecircncias do cristianismo primitivo (OC

470)

Vemos ainda em carta a Mushacke em 12 de julho de 1866 o impacto que a

interpretaccedilatildeo schopenhaueriana pessimista de mundo causou em Nietzsche ldquoDesde que

Schopenhauer nos retirou dos olhos a venda do otimismo as coisas satildeo percebidas

mais agudamente A vida eacute mais interessante ainda que mais feiardquo (conforme citaccedilatildeo

de Janz 1987 172) Percebemos tambeacutem a linguagem schopenhaueriana na descriccedilatildeo

dos momentos de contemplaccedilatildeo Eacute o caso da carta datada de 07 de abril de 1866 a

Gersdorf onde Nietzsche descreve seu estado que nos remeteraacute agrave contemplaccedilatildeo

artiacutestica na filosofia de Schopenhauer ao discorrer sobre os dias de veratildeo ldquo[] a

natureza se faz perfeita e noacutes tambeacutem entatildeo nos sentimos livres do poderio da vontade

sempre alerta e somos olho puro intuitivo desinteressadordquo (OC 472)

Estas influecircncias nortearam de forma definitiva as produccedilotildees acadecircmicas de

Nietzsche mesmos suas pesquisas filoloacutegicas A concepccedilatildeo traacutegica do mundo tornou-se

um feixe condutor para as reflexotildees do jovem filoacutelogo Seus companheiros no estudo da

obra de Schopenhauer eram Gersdorff e Mushacke Em carta agrave sua matildee de 01 de

fevereiro de 1866 Nietzsche deixa saber sobre a frequumlecircncia dos estudos ldquoCom

Gersdorff me encontro uma noite por semana para ler grego a cada duas semanas me

reuacuteno com ele e com Mushacke e nos entregamos a Schopenhauer Este filoacutesofo ocupa

uma posiccedilatildeo importante em meus pensamentos e estudos e meu respeito por ele cresce

incomparavelmenterdquo (OC 471) Se o conteuacutedo da filosofia schopenhaueriana foi

absorvido intensamente pelo jovem Nietzsche como podemos ver a partir dos trechos

transcritos acima a forma estiliacutestica tambeacutem se configura como preocupaccedilatildeo Em um

periacuteodo onde as pesquisas acadecircmicas exigiam o esforccedilo da escrita ali tambeacutem a

autoridade das regras schopenhauerianas exibia sua feiccedilatildeo Eacute tambeacutem em uma carta a

69

Gersdorff datada de 06 de abril de 1867 onde Nietzsche expotildee sua preocupaccedilatildeo com o

estilo

Nestas divagaccedilotildees quero redigir meu trabalho sobre as

fontes de Dioacutegenes Laeacutercio e estou todavia no iniacutecio Para seu

regozijo confessarei que o que mais me daacute trabalho eacute meu estilo

em alematildeo Agora me caem os veacuteus dos olhos e vejo que

durante muito tempo vivi em estado de inocecircncia estiliacutestica O

imperativo categoacuterico bdquodeves escrever‟ me foi despertado[] nos

ouvidos me soavam todos os preceitos estiliacutesticos de Lessing de

Lichtenberg e de Schopenhauer Meu uacutenico consolo eacute que estas

trecircs autoridades afirmavam unanimemente que eacute difiacutecil escrever

bem que por natureza ningueacutem tem um bom estilo e que haacute que

trabalhar e trabalhar para consegui-lo (OC 476)

Entretanto apesar do profundo arrebatamento causado pela filosofia de

Schopenhauer que fez com que o universo das preocupaccedilotildees do entatildeo jovem Nietzsche

se fundamentasse nos pressupostos da metafiacutesica schopenhaueriana outros elementos

tambeacutem fundamentais para o pensamento futuro do filoacutesofo foram tambeacutem neste

periacuteodo despertados Como apontam Dias (2009 42) Janaway (2007 16) e Lopes

(2008 27) jaacute neste periacuteodo que podemos tratar como um periacuteodo de despertar para o

pensamento filosoacutefico encontraacutevamos os elementos que a partir de Humano demasiado

humano conformaratildeo a criacutetica nietzscheana agrave filosofia de Schopenhauer Os

comentadores citados chamam a atenccedilatildeo para o fato de que embora nas obras

publicadas de Nietzsche possamos assistir a criacuteticas diretas a Schopenhauer somente

apoacutes Humano demasiado humano tais criacuteticas agrave filosofia schopenhaueriana surgiram

em um momento imediatamente posterior agrave descoberta da metafiacutesica da vontade Rosa

Maria Dias chama a atenccedilatildeo para os fragmentos poacutestumos e para a correspondecircncia que

agrave partir de 1867 trazem algumas criacuteticas agrave metafiacutesica da vontade Rogeacuterio Lopes e

Cristopher Janaway apontam que algumas destas criacuteticas estatildeo embasadas nas leituras

que o jovem Nietzsche fez de Friedrich A Lange Rudolf Haym Kuno Fischer dentre

outros Tais criacuteticas contudo natildeo afastaram o jovem Nietzsche do discipulado

70

schopenhaueriano mas transformaram sua aceitaccedilatildeo do sistema da vontade No lugar de

uma defesa da consistecircncia loacutegica do sistema Nietzsche passou a adotar uma postura de

defesa da bdquonatureza edificante‟ e preponderantemente artiacutestica deste sistema Exemplos

desta postura podem ser encontrados tambeacutem na correspondecircncia daquele periacuteodo

Para escrever uma apologia a Schopenhauer eu tenho

unicamente que considerar o fato de que olho esta vida livre e

bravamente diante do fato de que encontrei um suporte para me

apoiar obviamente que isto natildeo eacute mais que uma apologia

totalmente individual Mas eacute como as coisas satildeo Se algueacutem

deseja refutar Schopenhauer para mim atraveacutes de argumentos

racionais murmuro em seu ouvido bdquoporeacutem meu amigo visotildees de

mundo natildeo satildeo criadas nem destruiacutedas pela loacutegica‟ (carta a

Deussen Outubro-Novembro de 1867 citada por Janaway

(200718))

Ou ainda em carta a Gersdorff onde apoacutes apresentar a criacutetica de Lange agrave metafiacutesica da

vontade Nietzsche conclui contra Haym ainda com os argumentos de Lange

Natildeo apenas a verdadeira essecircncia das coisas a coisa em si

eacute desconhecida para noacutes tambeacutem seu conceito eacute nada mais nada

menos que o uacuteltimo rebento de um contraste condicionado por

nossa organizaccedilatildeo do qual natildeo sabemos se conserva algum

significado fora de nossa experiecircncia Disso resulta pensa Lange

que os filoacutesofos natildeo devem ser importunados na medida em que

nos edificam A arte eacute livre tambeacutem na regiatildeo dos conceitos

Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro

uma Madonna de Rafael Como vocecirc pode perceber o nosso

Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista

criacutetico ele se torna quase ainda mais valioso para noacutes Se filosofia

eacute arte entatildeo que Haym se anule diante de Schopenhauer se a

filosofia deve edificar entatildeo eu pelo menos natildeo conheccedilo nenhum

filoacutesofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer (apud

Lopes 2008 86-87)

Vimos ateacute entatildeo que a descoberta de Schopenhauer provocou no jovem

estudante de filologia transformou sua forma de perceber o mundo e o influenciou de

forma definitiva a ponto de fazer com que Nietzsche se definisse como um seguidor e

divulgador da obra schopenhaueriana Contudo eacute no fim de seus anos de estudo em

Leipzig que o disciacutepulo de Schopenhauer iraacute se defrontar com a personalidade que lhe

71

reforccedilaraacute de forma ainda mais contundente o selo da rotunda schopenhaueriana

Richard Wagner

Foi atraveacutes de seu amigo Brockhaus cuja esposa era irmatilde do muacutesico que em

novembro de 1868 Nietzsche encontrou-se pela primeira vez com Wagner A partir

daquele encontro se estabeleceria um relacionamento que de uma forma ou de outra

marcaraacute Nietzsche pelo resto de sua vida Em uma carta a seu amigo Erwin Rohde

Nietzsche descreve o primeiro encontro e sua perplexidade ao encontrar em Wagner um

admirador de Schopenhauer ldquo[]mantive com ele uma longa conversa sobre

Schopenhauer Ah Compreenderaacutes minha felicidade em ouvir-lhe falar com um

entusiasmo completamente indescritiacutevel ao qual ele agradecia como Schopenhauer

era o uacutenico filoacutesofo que havia compreendido a essecircncia da muacutesicardquo (Correspondecircncia

2007 21) A impressatildeo deste encontro eacute tambeacutem claramente visiacutevel atraveacutes de

correspondecircncia endereccedilada ao proacuteprio Wagner em maio de 1869 ldquoVeneradiacutessimo

senhor quanto tempo tive a intenccedilatildeo de lhe manifestar sem nenhuma timidez o grau de

gratidatildeo que sinto em relaccedilatildeo ao senhor pois realmente os melhores e mais elevados

momentos de minha vida se ligam ao seu nome e eu soacute conheccedilo mais um homem aleacutem

disso seu grande irmatildeo em espiacuterito Arthur Schopenhauer em quem penso com a

mesma veneraccedilatildeo ateacute senso religiosordquo (Correspondecircncia 2007 56) Como podemos

ver a pessoa de Wagner eacute associada agrave de Schopenhauer Esta associaccedilatildeo tornar-se-aacute

uma constante e poderaacute ser identificada ainda na fase tardia onde as criacuteticas a estes

pensadores e ao que eles entatildeo representavam se daraacute de forma inter-relacionada Este

primeiro encontro com Wagner conforme Janz (1987 22) foi um dos principais

motivos que levaram Nietzsche a aceitar em detrimento de outros planos que

formulava assumir a caacutetedra de filologia em Basel A proximidade de Tribschen

residecircncia dos Wagner e a possibilidade de uma convivecircncia com o muacutesico o

72

inspiraram E assim aconteceu Ao mudar-se para Basel pocircde desfrutar de uma

convivecircncia constante com o casal Wagner Desde a chegada de Nietzsche ateacute a

mudanccedila de Wagner em 1872 encontravam-se com muita frequumlecircncia e os assuntos que

pautavam tais encontros eram amiuacutede arte muacutesica a literatura claacutessica e a filosofia de

Schopenhauer Wagner tornar-se-ia para Nietzsche a personificaccedilatildeo do gecircnio

schopenhaueriano aquele capaz de atraveacutes da muacutesica expor a essecircncia do mundo No

projeto wagneriano de ldquoarte totalrdquo Nietzsche pocircde vislumbrar a uniatildeo entre muacutesica e

filosofia e satisfazer assim em certa medida as expectativas oriundas da metafiacutesica da

vontade

32 O projeto subjacente ao Nascimento da Trageacutedia

Eacute famosa a passagem onde Nietzsche em carta a Deussen datada de janeiro de

1870 informa sobre seu estado de espiacuterito ldquo Ciecircncia arte e filosofia crescem agora

juntas em mim e de tal modo que um dia haverei de parir centaurosrdquo (Janz 1981 66)

Esta afirmaccedilatildeo eacute ilustrativa no que se refere ao ambiente onde o Nascimento da trageacutedia

foi gerado Podemos identificar claramente as figuras por detraacutes dos termos filosofia

arte e ciecircncia satildeo elas Schopenhauer Wagner e a filologia claacutessica Neste periacuteodo

Nietzsche entatildeo jovem professor de filologia estava imbuiacutedo pela pretensatildeo de poder

unir os estudos filoloacutegicos aos filosoacuteficos Sua preleccedilatildeo inicial Homero e a filologia

claacutessica em Basel nos daacute uma amostra desta pretensatildeo Ali podemos assistir a uma

aproximaccedilatildeo entre filologia e filosofia atraveacutes da proposta de uma leitura filosoacutefica do

mundo antigo ldquoCom isto quero expressar que toda atividade filoloacutegica deve estar

impregnada de uma concepccedilatildeo filosoacutefica do mundo na qual todo o particular e singular

seja visto como algo sem proveito e soacute permaneccedila de peacute a unidade do todordquo (OC 26)

73

Sua escolha por trilhar caminhos mais proacuteximos agrave filosofia pode tambeacutem ser observada

pela tentativa frustrada de ocupar uma cadeira desta disciplina que se mostrou livre em

janeiro de 1871 Se por um lado podemos diagnosticar certa decepccedilatildeo e ateacute um

determinado desacircnimo na atividade acadecircmica por outro lado os laccedilos com os Wagner

se estreitavam cada vez mais No refuacutegio de Tribschen sob a aura de Richard Wagner

Nietzsche discorria sobre o mundo grego enquanto modelo de cultura e ouvia os planos

wagnerianos sobre seu projeto de uma obra de arte total Como pano de fundo destas

discussotildees a metafiacutesica da muacutesica schopenhaueriana e sua concepccedilatildeo traacutegica do mundo

Eacute em torno destes eixos formadores que vemos se materializar a primeira publicaccedilatildeo de

Nietzsche

O desenvolvimento das ideacuteias que formaratildeo a obra contudo se deu de forma

gradual Ao longo do periacuteodo compreendido entre a chegada de Nietzsche a Basel e a

publicaccedilatildeo de seu livro determinados trabalhos deixam transparecer o delineamento de

algumas das ideacuteias centrais da obra Satildeo eles O drama musical grego Soacutecrates e a

trageacutedia A visatildeo dionisiacuteaca do mundo e Introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles31

Em o drama musical grego conferecircncia puacuteblica datada de janeiro de 1870

Nietzsche efetua uma comparaccedilatildeo entre a arte traacutegica da antiguidade e as oacuteperas

modernas Estas de acordo com o filoacutesofo satildeo uma imperfeita ldquocaricatura do drama

musical antigordquo (VD 48) Muacutesica pintura escultura e poesia formavam um todo na

arte traacutegica da antiguidade Nas artes modernas por sua vez as formas artiacutesticas satildeo

fragmentadas fato que dificulta o entendimento da trageacutedia grega e que causaria

espanto ao apreciador de arte moderno A muacutesica teria para a trageacutedia antiga uma

31

Como ressaltam M S Silk e J P Stern em sua obra Nietzsche on tragedy (1981 59) o nascimento da

trageacutedia eacute composto de forma estrutural pelos conceitos encontrados nestes trabalhos O iniacutecio do livro

(sectsect1-10) eacute substancialmente baseado no ensaio a visatildeo dionisiacuteaca do mundo enquanto a sequumlecircncia

composta pelos paraacutegrafos 5 e 6 estaacute mais proacutexima da introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles O trecho

composto pelos paraacutegrafos 11 a 14 pode ser derivado diretamente da leitura Soacutecrates e a trageacutedia O resto

do livro eacute formado por uma amaacutelgama destes escritos Partes dispersas ainda satildeo formadas pelo ensaio do

drama musical grego

74

importacircncia capital como elemento intensificador de seu efeito Podemos ver a intenccedilatildeo

por traacutes da anaacutelise nietzscheana da trageacutedia antiga em comparaccedilatildeo agrave opera Ao final da

conferecircncia no elogio que confere a Wagner o tiacutetulo de ldquoatual reformador da arterdquo bem

como na descriccedilatildeo de seu projeto de arte total retratado como um acontecimento que jaacute

teve lugar na trageacutedia da antiguidade claacutessica Nietzsche deixa claro seu engajamento ao

projeto wagneriano

No mecircs seguinte ao da citada conferecircncia uma segunda intitulada Soacutecrates e a

trageacutedia foi proferida por Nietzsche O assunto em pauta era a morte repentina da

trageacutedia grega Esta morte teria ocorrido pelas matildeos de Euriacutepides apoacutes uma decadecircncia

iniciada nos uacuteltimos periacuteodos das produccedilotildees de Eacutesquilo passando por Soacutefocles e

culminando com o advento da comeacutedia Tal decadecircncia teria sido provocada pela saiacuteda

de cena da muacutesica que de forma progressiva foi substituiacuteda pelo diaacutelogo racionalista

Soacutecrates ocupa aqui um lugar importante Eacute sua influecircncia sobre Euriacutepides que

transforma de uma forma definitiva a arte instintivamente musical da trageacutedia em uma

manifestaccedilatildeo do discurso eacutetico racionalista Esta ldquoesteacutetica racionalista e conscienterdquo

pode ser identificada no proacutelogo euripidiano e na inserccedilatildeo do deus ex machina

enquanto agentes de racionalizaccedilatildeo da obra artiacutestica A trageacutedia de Euriacutepides teria

assumido assim os pressupostos do racionalismo socraacuteticos ldquoVirtude eacute saber peca-se

somente por ignoracircncia O virtuoso eacute felizrdquo (VD 90) Esta assunccedilatildeo que liga a virtude

ao saber impotildee agrave trageacutedia um caraacuteter eacutetico alheio agrave sua caracteriacutestica puramente

esteacutetica O elemento culpa na dialeacutetica socraacutetica toma o lugar que era ocupado pela

compaixatildeo Jaacute podemos perceber nesta conferecircncia o esboccedilo da dicotomia que mais

tarde seraacute ilustrada atraveacutes dos deuses Apolo e Dioniso Os pares formadores da

dicotomia satildeo aqui expressos pela separaccedilatildeo entre instinto e razatildeo muacutesica e discurso

pessimismo e otimismo arte e ciecircncia

75

Temos a primeira referecircncia agrave arte dionisiacuteaca como impulso formador da

trageacutedia e sua contraposiccedilatildeo agrave arte apoliacutenea nas aulas proferidas por Nietzsche no veratildeo

daquele mesmo ano Neste curso sobre a trageacutedia de Soacutefocles do qual temos a

introduccedilatildeo podemos ver o esforccedilo de Nietzsche em caracterizar e apontar as

peculiaridades da trageacutedia da antiguidade que a tornam um fenocircmeno uacutenico em

comparaccedilatildeo agraves trageacutedias modernas Tal discussatildeo demonstraraacute pelos aspectos ali

expostos a aproximaccedilatildeo de Nietzsche com autores do periacuteodo claacutessico alematildeo e

sobretudo da chamada querela entre antigos e modernos Vemos claramente a influecircncia

de Schiller e F A Schlegel em algumas das definiccedilotildees adotadas por Nietzsche

No texto denominado A visatildeo dionisiacuteaca do mundo jaacute podemos assistir a um

desenvolvimento das duas pulsotildees artiacutesticas que satildeo o nuacutecleo da interpretaccedilatildeo

nietzscheana da trageacutedia O apoliacuteneo e o dionisiacuteaco satildeo ali explicados no acircmbito de seu

surgimento no mundo helecircnico e simbolizam a uniatildeo entre verdade e beleza na forma de

arte traacutegica Sua descriccedilatildeo como veremos abaixo estaacute permeada de conceitos retirados

da filosofia schopenhaueriana que vatildeo desde a biparticcedilatildeo do mundo entre verdade e

aparecircncia perpassam as noccedilotildees de belo e sublime e apontam a trageacutedia e a muacutesica como

forma de arte superiores

Em janeiro de 1872 Nietzsche daacute luz a seu ldquoCentaurordquo sob o nome O nascimento

da trageacutedia atraveacutes do espiacuterito da muacutesica Em carta a Rohde datada de 23 de novembro

de 1871 podemos notar atraveacutes da ansiosa expectativa nietzscheana a amaacutelgama

formadora da obra ldquo Temo sempre que os filoacutelogos natildeo o queiram ler por causa da

muacutesica os muacutesicos por causa da filologia e os filoacutesofos por causa da muacutesica e da

filologia e sinto logo medo e compaixatildeo de mim mesmordquo (Correspondecircncia 2007 237)

33 A teoria da trageacutedia publicada

Como escopo geral da primeira obra de Nietzsche podemos dizer na esteira de

Silk e de Stern (1981 52) que ela se propunha a esclarecer o problema do nascimento e

76

da morte da trageacutedia helecircnica Trageacutedia que por sua vez era a expressatildeo artiacutestica que

simbolizava um problema vital o de que sob uma superfiacutecie bela podiacuteamos ter acesso agrave

terriacutevel profundidade do ser Tal forma de arte poderia novamente vir agrave luz por uma

geraccedilatildeo criativa que ao combater a superficialidade moderna que reinava no mundo

germacircnico poderia produzir o renascimento moderno do mundo Helecircnico

Em sua essecircncia o nascimento da trageacutedia aponta para as divindades Apolo e

Dioniacutesio como ldquorepresentantes vivosrdquo de princiacutepios diacutespares que irrompem da proacutepria

natureza e que ao serem conciliados de certa forma tornaram possiacutevel que atraveacutes dos

atritos de tal uniatildeo a trageacutedia grega despontasse como manifestaccedilatildeo artiacutestica exemplar

do sublime Em linhas gerais a arte do ldquofigurador plaacutesticordquo estaria entatildeo associada ao

deus Apolo enquanto a arte ldquonatildeo figuradardquo a da muacutesica estaria associada ao deus

Dioniacutesio O apoliacuteneo eacute um impulso da vontade grega que ao almejar a vida a apresenta

transfiguradamente como um belo sonho plasmado no mundo dos deuses oliacutempicos O

princiacutepio apoliacuteneo seria aquele que estabeleceria a ordem a beleza estaacutetica e a clareza

dos limites O dionisiacuteaco eacute oriundo das festas do oriente e seu efeito eacute comparado ao da

embriaguecircs A ele cabe a sabedoria profunda da essecircncia da vida lugar do acaso do

impermanente do horriacutevel e do sofrimento A Apolo eacute facultado tecer o veacuteu que

encobre a sabedoria dionisiacuteaca e torna a vida suportaacutevel atraveacutes da ilusatildeo do sonho

Assim segundo Nietzsche o desenvolvimento contiacutenuo da arte estaacute vinculado agrave

duplicidade dos princiacutepios apoliacuteneo e dionisiacuteaco Perfazendo um caminho histoacuterico da

cultura grega podemos notar uma sobreposiccedilatildeo intermitente entre os impulsos divinos

Temos momentos onde o impulso apoliacuteneo se mostrou dominante e outros onde

Dioniacutesio recupera seu predomiacutenio O mundo oliacutempico homeacuterico com sua arte eacutepica e

sua escultura do periacuteodo doacuterico nascem a partir de uma necessidade de redenccedilatildeo para a

realidade de horror e sofrimento que o povo helecircnico presenciava Em substituiccedilatildeo ao

77

mundo titacircnico temos o mundo dos deuses oliacutempicos exemplificadores de uma

existecircncia divinizada que exalta a vida Nas palavras de Nietzsche ldquoo grego conheceu

e sentiu os temores e os horrores do existir para que lhe fosse possiacutevel de algum modo

viver teve de colocar ali entre ele e a vida a resplendente criaccedilatildeo oniacuterica dos deuses

oliacutempicosrdquo (NT 36) Entretanto a sabedoria dionisiacuteaca portadora da visatildeo abismal do

ser natildeo pocircde ser contida por muito tempo e a muacutesica veiacuteculo da uniatildeo orgiaacutestica aos

poucos foi se infiltrando no mundo construiacutedo pelo divino Apolo Os gregos foram se

tornando conscientes de seu estado sonambuacutelico que sob a graccedila do deus Apolo enleva

e transporta pela extraordinaacuteria beleza natural ou esteacutetica Em um estado semelhante ao

do indiviacuteduo que restabelecido em suas forccedilas pelo efeito renovador do sono ao findar

de uma noite comeccedila a ouvir os sons a sua volta e aos poucos vai se despertando da

mesma forma os gregos comeccedilaram novamente a ouvir o sussurro do Sileno

companheiro de Dioniacutesio ldquoo melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter

nascido e natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo

(NT 36) O artista que representa este retorno do dionisiacuteaco com a mesma envergadura

com que Homero representa as forccedilas apoliacuteneas eacute Arquiacuteloco Tomando-o como modelo

do gecircnio liacuterico Nietzsche faz uma descriccedilatildeo de seu processo de criaccedilatildeo Conforme a

metafiacutesica esteacutetica adotada por Nietzsche - que mais agrave frente veremos ser retirada da

esteacutetica schopenhaueriana - toda arte tem que ser objetiva livre dos interesses

individuais Nesta situaccedilatildeo a liacuterica que tem como objeto o eu do poeta seus desejos e

emoccedilotildees natildeo seria uma forma de arte Entretanto atraveacutes de uma descriccedilatildeo que Schiller

faz da inspiraccedilatildeo poeacutetica Nietzsche aponta o caminho para percebermos a liacuterica como

obra de arte e portanto objetivamente Conforme a passagem de Schiller citada por

Nietzsche (NT 44) ldquoo sentimento se me apresenta no comeccedilo sem um objeto claro e

determinado este soacute se forma mais tarde Uma certa disposiccedilatildeo musical de espiacuterito

78

vem primeiro e somente depois eacute que se segue em mim a ideacuteia poeacuteticardquo Desta forma

Arquiacuteloco em seu processo criativo a princiacutepio entraria em um estado de consciecircncia

ou de criaccedilatildeo onde renunciaria agrave sua individualidade e dionisiacamente participaria do

uno-primordial ldquoabismo do serrdquo estado que por sua vez materializa-se atraveacutes da

representaccedilatildeo musical A muacutesica assim produzida seraacute condiccedilatildeo para o surgimento da

inspiraccedilatildeo que a posteriori daraacute nascimento atraveacutes da aplicaccedilatildeo das formas

apoliacuteneas agrave poesia liacuterica geacutermen da trageacutedia e dos ditirambos dramaacuteticos Esta uniatildeo da

poesia liacuterica com a muacutesica eacute uma expressatildeo sinteacutetica da relaccedilatildeo dos deuses Apolo e

Dioniacutesio Eacute no quinto capiacutetulo de sua obra que Nietzsche iraacute tratar da poesia liacuterica

Neste capiacutetulo o filoacutesofo se distancia de Schopenhauer em sua interpretaccedilatildeo do

fenocircmeno liacuterico Para Schopenhauer na citaccedilatildeo reproduzida por Nietzsche (NT 46) a

liacuterica eacute produzida atraveacutes de uma percepccedilatildeo da consciecircncia onde os estados da vontade

individualizada se alternam com o conhecimento objetivo Como vimos o poeta liacuterico

assistiria ao jogo do eu em sua afetaccedilatildeo emocional e descreveria este estado atraveacutes de

sua poesia Nietzsche ao descrever a liacuterica utiliza-se da teoria da muacutesica

schopenhaueriana qual seja o poeta liacuterico produz primeiramente a muacutesica como forma

geral de expressatildeo da vontade mesma e desta produccedilatildeo gera posteriormente o texto que

se torna um exemplificador do evento musical sua forma plaacutestica objetiva A muacutesica eacute

a aparecircncia da vontade e as imagens apoliacuteneas que dela se originaram satildeo conforme seu

espiacuterito A imagem e o conceito satildeo desta forma na liacuterica originados a partir da

muacutesica

Tem-se portanto na trageacutedia grega uma relaccedilatildeo de interdependecircncia que evoca

um aparente paradoxo ndash ou seja ao lado da necessidade esteacutetica da beleza Apolo exige

dos seus a medida (limites fronteiras do indiviacuteduo presentes no ldquonada em demasiardquo) e

o auto-conhecimento necessaacuterio para determinaacute-la (ldquoconhece-te a ti mesmordquo) o

79

desmedido os excessos o dionisiacuteaco seriam identificados pelo apoliacuteneo como

democircnios de uma era preacute-apoliacutenea era dos Titatildes reminiscecircncias de barbarismo O

paradoxo estaacute em que para que o comedimento apoliacuteneo possa existir o desmedido

dionisiacuteaco faz-se necessaacuterio (na linguagem de Nietzsche como ldquosubstratordquo) assim

como para que o desmedido dionisiacuteaco possa existir faz-se necessaacuterio a existecircncia do

comedido do apoliacuteneo Natildeo obstante a trageacutedia grega depende da conjugaccedilatildeo destes

dois princiacutepios para existir ndash indo aleacutem poder-se-ia dizer que a proacutepria muacutesica compotildee

o princiacutepio primeiro que possibilita o surgimento da trageacutedia no jogo das formas

apoliacuteneo A trageacutedia eacute entatildeo definida como ldquoo coro dionisiacuteaco a descarregar-se sempre

de novo em um mundo de imagens apoliacuteneordquo (NT 60)

Em seu iniacutecio a trageacutedia grega era representada pelo coro traacutegico Este coro natildeo

era uma ldquorepresentaccedilatildeo constitucional do povordquo muito menos um espectador ideal

como o queria August Schlegel Nietzsche acompanha Schiller na definiccedilatildeo de que o

coro cria um terreno ideal para a manifestaccedilatildeo da arte O efeito da trageacutedia eacute a

manifestaccedilatildeo de um estado de unidade que transporta ao abismo do ser O coro eacute a

manifestaccedilatildeo deste sentimento da consciecircncia de que por traacutes da vida cotidiana haacute uma

realidade ldquoindestrutivelmente poderosa e cheia de alegriardquo (NT 55) Este eacute o consolo

metafiacutesico propiciado pela arte traacutegica Ao retornarmos deste estado o cotidiano nos

causa asco nojo Natildeo eacute possiacutevel interpretar mais o papel da vida comum A vida soacute

passa a se justificar atraveacutes da arte Perceba-se aiacute que o coro possui um papel

fundamental no processo O coro atua como impulso artiacutestico dionisiacuteaco em

contraposiccedilatildeo agrave forma apoliacutenea ou seja agraves imagens e agrave beleza plaacutestica Assim o

indiviacuteduo atraveacutes do coro tem para si revelado aquele substrato dionisiacuteaco encoberto

pela beleza e comedimento apoliacuteneos isto eacute ao indiviacuteduo era possiacutevel submergir na

80

torrente dionisiacuteaca do auto-esquecimento permitindo-se pocircr de lado os preceitos

apoliacuteneos

E foi assim que em toda parte onde o dionisiacuteaco penetrou o apoliacuteneo

foi suspenso e aniquilado Mas eacute igualmente certo que laacute onde o primeiro

assalto foi suportado o prestiacutegio e a majestade do deus deacutelfico se externaram de

maneira mais riacutegida e ameaccediladora do que nunca(NT 41-42)

De acordo com Nietzsche as trageacutedias eram em seu iniacutecio representaccedilotildees do

sofrimento de Dioniacutesio Mesmo as trageacutedias do periacuteodo aacutetico traziam Dioniacutesio como

heroacutei traacutegico O sofrimento representado era o do despedaccedilamento de Dioniacutesio o deus

que sofreu o padecimento da individuaccedilatildeo causa de todo o sofrer O mito de Dioniacutesio eacute

interpretado aqui sob a luz da filosofia de Schopenhauer que apresenta a individuaccedilatildeo

como fonte do sofrimento ldquoNos pontos de vista aduzidos temos jaacute todas as partes

componentes de uma profunda e pessimista consideraccedilatildeo do mundo e ao mesmo tempo

a doutrina misteriosoacutefica da trageacutedia o conhecimento baacutesico da unidade de tudo o que

existe a consideraccedilatildeo da individuaccedilatildeo como a causa primeira do mal a arte como a

esperanccedila jubilosa de que possa ser rompido o feiticcedilo da individuaccedilatildeo como

pressentimento de uma unidade restabelecidardquo (NT 70)

Contudo ressalta Nietzsche a trageacutedia grega que como vimos desenvolve-se a

partir do embate contiacutenuo entre as representaccedilotildees dos deuses antiacutepodas ndash envolvidos em

um enfrentamento aparentemente sem fim ndash eacute reestruturada por Euriacutepides de forma a

diminuir o impacto do coro ou seja um golpe quase mortal para Dioniacutesio que

agonizante lanccedila matildeo de seus uacuteltimos esforccedilos O que em Euriacutepedes suscitou esta

reestruturaccedilatildeo que conforme Nietzsche eacute responsaacutevel pelo afastamento progressivo do

dionisiacuteaco tem suas origens no que o filoacutesofo chamou de uma ldquotendecircncia socraacuteticardquo O

socratismo euripidiano e a sua nova concepccedilatildeo esteacutetica satildeo as causadoras do

afastamento dos impulsos esteacuteticos primevos o dionisiacuteaco e o apoliacuteneo Em seu lugar o

discurso consciente passa a imperar O deus ex machina e os proacutelogos satildeo exemplos das

81

interferecircncias racionais que datildeo novo tom agrave trageacutedia aacutetica Soacutecrates e seu racionalismo

expulsam da trageacutedia o conhecimento primevo dionisiacuteaco e estabelecem novas regras

esteacuteticas regras racionais que fazem com que o bom sinocircnimo do belo seja aquilo

alcanccedilado conscientemente

Se a trageacutedia grega foi para Nietzsche a manifestaccedilatildeo mais sublime de uma

forma artiacutestica isto se daacute em decorrecircncia do efeito por ela provocado qual seja o de

justificar o mundo enquanto fenocircmeno esteacutetico Foi exatamente o decliacutenio deste efeito

constatado pela produccedilatildeo racionalizada de Euriacutepides o responsaacutevel pela morte da

trageacutedia Ao fortalecer em demasia os princiacutepios racionais da forma Euriacutepides suprimiu

o dionisiacuteaco por meio da flacircmula que nas palavras de Nietzsche o tragedioacutegrafo

ldquolevava agrave testardquo ndash a saber uma espeacutecie de socratismo esteacutetico cujos princiacutepios se davam

a partir da remissatildeo do belo ao inteligiacutevel e deste ao virtuoso Identifica-se portanto a

racionalidade otimista socraacutetica como grande responsaacutevel pela supressatildeo do impulso

dionisiacuteaco Nietzsche alude agrave proximidade de convivecircncia entre Soacutecrates e Euriacutepides

para justificar a presenccedila do racionalismo nas obras Euripidianas Soacutecrates frequumlentava

o teatro somente para assistir agraves apresentaccedilotildees de Euriacutepides De todos os atenienses

Soacutecrates era apontado como o mais saacutebio e Euriacutepides como o segundo em sabedoria

Entretanto na contraposiccedilatildeo proposta por Nietzsche entre conhecimento instintivo e

racional Soacutecrates era descomunalmente racional ao contraacuterio do intuitivismo criativo

que reinava ateacute entatildeo Era questionando aos atenienses sobre seus atos que Soacutecrates

percebia que eles natildeo agiam conscientemente mas por intuiccedilatildeo A crenccedila socraacutetica de

que toda accedilatildeo boa deve ser consciente dominou o teatro atraveacutes de Euriacutepides Uma

chave para o entendimento da racionalidade socraacutetica segundo Nietzsche nos eacute

revelada pela ldquomonstruosa inversatildeordquo representada pela consciecircncia criacutetica de Soacutecrates ndash

ou seja a nota destoante em Soacutecrates revela-se pelo instinto criacutetico em contraposiccedilatildeo agrave

82

consciecircncia criacutetica a consciecircncia criadora em contraposiccedilatildeo ao instinto como forccedila

criadora Intui-se assim o motivo pelo qual Soacutecrates natildeo compreendia a trageacutedia grega

- o dionisiacuteaco a tornava ininteligiacutevel para as exigecircncias racionalistas e criacuteticas da

ldquodialeacutetica otimistardquo socraacutetica ldquoA Soacutecrates [] parecia que a arte traacutegica nunca bdquodiz a

verdade‟ sem considerar o fato de que se dirigia agravequele que bdquonatildeo tem muito

entendimento‟ portanto natildeo aos filoacutesofos daiacute um duplo motivo para manter-se dela

afastadordquo(NT 87) Nietzsche compara Soacutecrates ao heroacutei euripidiano que

diferentemente (ateacute mesmo antagonicamente) agrave trageacutedia de Eacutesquilo e Soacutefocles ldquoprecisa

defender suas accedilotildees por meio da razatildeo e contra a razatildeordquo O que estaacute em jogo no

socratismo eacute a substituiccedilatildeo das verdades expressas miticamente religiosamente pelas

verdades loacutegicas A razatildeo tenta abarcar o todo e para isso desconsidera a arte e seus

impulsos A excelecircncia estaacute no saber e atraveacutes deste alcanccedila-se a felicidade erro do

otimismo racionalista Ilusatildeo da razatildeo que se acha soberana e independente A loacutegica

torna-se essecircncia da trageacutedia procura-se por relaccedilotildees causais e pelo bom telos O

diaacutelogo formata sua estrutura e expulsa seu fundamento musical O ldquoheroacutei dialeacuteticordquo eacute

portanto impulsionado pelo elemento otimista da dialeacutetica A justiccedila transcendental

presente nas obras Esquilianas ldquoeacute rebaixada ao niacutevel do raso e insolente princiacutepio da

bdquojusticcedila poeacutetica‟ com seu habitual deus ex machinardquo (NT 89) A racionalidade de

Soacutecrates atraveacutes de sua investigaccedilatildeo cientiacutefica da natureza de seu processo de

construccedilatildeo loacutegica da realidade daraacute origem ao que Nietzsche denominaraacute de ldquohomem

teoacutericordquo ou ldquohomem cientiacuteficordquo a quem a razatildeo ergue-se acima da proacutepria realidade ao

ponto mesmo de ndash e aiacute reside o proacuteprio otimismo ndash propor-se a tarefa de corrigir as

falhas da proacutepria realidade Mais ainda a razatildeo socraacutetica acena ao homem com a

promessa de conferir sentido agrave existecircncia pelo conhecimento e desta forma busca

justificar tal existecircncia

83

Em face ao pessimismo praacutetico eacute Soacutecrates o protoacutetipo do

otimista teoacuterico que na jaacute assinalada feacute na escrutabilidade da

natureza das coisas atribui ao saber e ao conhecimento a forccedila de

uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo

(NT 94)

Natildeo obstante o otimismo no conhecimento na racionalidade socraacutetica encontra seu

maior dragatildeo em sua proacutepria loacutegica interna Assim nas palavras de Nietzsche

[] a periferia do ciacuterculo da ciecircncia possui infinitos pontos

e enquanto natildeo for possiacutevel prever de maneira nenhuma como se

poderaacute alguma vez medir completamente o ciacuterculo o homem

nobre e dotado ainda antes de chegar ao meio de sua existecircncia

tropeccedila e de modo inevitaacutevel em tais pontos fronteiriccedilos da

periferia onde fixa o olhar no inesclareciacutevel Quando divisa aiacute

para seu susto como nesses limites a loacutegica passa a girar em

redor de si mesma e acaba por morder a proacutepria cauda ndash entatildeo

irrompe a nova forma de conhecimento o conhecimento traacutegico

que mesmo para ser apenas suportado precisa da arte como meio

de proteccedilatildeo e remeacutedio (NT 95)

Afigura-se-nos aqui o problema apontado por Nietzsche como o ldquoproblema da

ciecircncia mesmardquo a saber um problema que nos envolve a todos por abarcar (ou

contaminar) toda a cultura ocidental - isto eacute ainda mantemos o dionisiacuteaco agrave baila

ocupando diminuta posiccedilatildeo em detrimento ao culto acerbado ao racionalismo socraacutetico

A cultura socraacutetica impotildee-se pelo homem-teoacuterico e qualquer outra existecircncia que fuja

aos olhos perscrutadores de Soacutecrates deve ldquolutar penosamente para pocircr-se agrave sua altura

como existecircncia permitida e natildeo como existecircncia propostardquo

Nietzsche nos atenta para o fato de reconhecermos comumente no homem culto

erudito o homem douto saacutebio ndash consecutivamente o dionisiacuteaco a arte eacute colocada de

forma perifeacuterica de modo a nunca poder encontrar espaccedilo para superar sua condiccedilatildeo de

ldquoremeacutedio-arterdquo A vontade aacutevida faz seu caminho mesmo atraveacutes da completa falta de

respostas de fundamentos de sentido assim eacute preferiacutevel ao ser humano querer o nada

no sentido de ainda sim querer alguma coisa do que nada querer do que reconhecer a

84

falta de fundamentos da qual consistem em todos os tempos as ilusotildees que

costumeiramente adota-se como engodo ao absoluto sem-sentido da vida

Por fim Nietzsche atenta-nos para o fato de como o homem de seu tempo vem

perdendo a crenccedila na ciecircncia otimista socraacutetica isto eacute pressentindo que a cultura

racionalista socraacutetica torna-se iloacutegica ao vislumbraacute-la em seus horizontes afastando-se

de suas consequumlecircncias Nietzsche diagnostica na oacutepera de seu periacuteodo a subordinaccedilatildeo da

muacutesica agrave arte figurada agrave palavra e expotildee a expectativa de que possa haver no cansaccedilo e

na percepccedilatildeo do insucesso dos esforccedilos racionalistas um renascimento da trageacutedia

85

4 Conclusatildeo pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo

da vida

Retribui-se mal a um mestre continuando-

se sempre apenas aluno

(Nietzsche)

Natildeo podemos ver na filosofia schopenhaueriana qualquer instacircncia que

justifique a vida Ao conhecermos a sua essecircncia - a vontade cega e irracional que se

deixa ver atraveacutes das manifestaccedilotildees do seu querer incessante - percebemos o absurdo de

sua existecircncia e somos por essa percepccedilatildeo levados agrave sua negaccedilatildeo Nietzsche por sua

vez utilizando-se dos conceitos da filosofia de Schopenhauer procura em sua obra

justificar a vida e encontra esta justificaccedilatildeo na arte Nesta conclusatildeo da pesquisa

pretendemos entatildeo apresentar um esboccedilo do modo pelo qual alguns elementos da

filosofia schopenhaueriana foram utilizados no projeto do primeiro livro de Nietzsche e

explicitar o modo como estes elementos foram configurados no interior de seu projeto

Dentre estes elementos percorreremos o paralelo entre os pares dionisiacuteacoapoliacuteneo e

vontaderepresentaccedilatildeo os conceitos de arte e apreciaccedilatildeo esteacutetica e sua cisatildeo entre as

86

artes figurativas e a musical a especificidade da muacutesica o conceito de gecircnio e sua

divisatildeo e os limites da racionalidade e da ciecircncia

Jaacute no primeiro paraacutegrafo de NT a associaccedilatildeo entre os pares nietzscheanos do

dionisiacuteaco e apoliacuteneo e as visotildees de mundo schopenhauerianas satildeo expliacutecitas Nietzsche

define o impulso apoliacuteneo atraveacutes do sonho do princiacutepio de individuaccedilatildeo e o dionisiacuteaco

atraveacutes da embriaguez da consciecircncia de unidade da vontade do livrar-se do veacuteu de

maia Os deuses gregos tornam-se representativos destes estados schopenhauerianos de

consciecircncia Como vimos no capiacutetulo segundo desta dissertaccedilatildeo sob o ponto de vista da

representaccedilatildeo o mundo eacute objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito

agraves condiccedilotildees a priori do entendimento Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das

formas a priori do entendimento eacute interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos

advindos da filosofia Platocircnica e oriental como um mundo aparente ilusoacuterio artificial

O sonho efeito do encantamento apoliacuteneo eacute utilizado como metaacutefora da realidade

fenomecircnica no mundo Schopenhaueriano Os Vedas e Puranas tantas vezes citados por

Schopenhauer tratam o mundo como um sonho imposto pelo deus Maia o deus da

ilusatildeo que cobre a visatildeo do homem com seu veacuteu A mitologia oriental aludida por

Schopenhauer toma conta do mundo helecircnico em Nietzsche que transforma Apolo no

deus Maia o configurador de sonhos O sonho eacute utilizado como ilustraccedilatildeo da realidade

pelo fato de que durante o sonho natildeo sabemos estar sonhando O mundo dos sonhos nos

eacute naquele momento real Vemo-nos como indiviacuteduos e vemos o mundo da

individuaccedilatildeo e suas leis causais espaccedilo-temporais Somente o momento empiacuterico do

despertar informa-nos do sonho Haacute portanto uma identificaccedilatildeo do ldquoparentesco iacutentimo

entre vida e sonhordquo(MVR 60) Como ilustraccedilatildeo desta metaacutefora Schopenhauer elogia

ainda a obra do ldquovaterdquo Calderoacuten de La Barca A vida eacute sonho agrave qual denominaraacute como

um ldquodrama metafiacutesicordquo por expor esta faceta de seu sistema A consciecircncia de que a

87

vida eacute sonho eacute para Schopenhauer um despertar metafiacutesico cujo propiciador foi Kant

ao demonstrar o caraacuteter fenomecircnico do mundo Este despertar contudo natildeo causa

prazer O filoacutesofo e o gecircnio personagens que na metafiacutesica schopenhaueriana alcanccedilam

este despertar satildeo atormentados pela realidade com a qual se deparam qual seja a de

que a vida eacute puro sofrimento Eacute no intuito de deixar velada esta faceta da vida que

Apolo ofusca a visatildeo dos homens com seu mundo luminoso de sonho seu objetivo eacute

encobrir esta verdade aterrorizadora As artes natildeo musicais tanto na teoria de

Schopenhauer como na nietzscheana manteacutem o homem em um juacutebilo prazeroso

ocasionado pela contemplaccedilatildeo puramente objetiva Neste momento natildeo se percebe o

jogo da vontade individualizada somos afastados da realidade do querer insuflados

pela caracteriacutestica quietiva da apreciaccedilatildeo esteacutetica nas palavras de Nietzsche

encontramos na arte um ldquoremeacutedio-arterdquo32

Esta visatildeo do lado terriacutevel da vida ocasionada pelo despertar do dogmatismo

metafiacutesico na teoria schopenhaueriana eacute associada em NT agrave sabedoria dionisiacuteaca

Verificamos na descriccedilatildeo do impulso dionisiacuteaco os elementos que caracterizam a

vontade schopenhaueriana A visatildeo dionisiacuteaca do mundo carrega consigo o despertar

para o caraacuteter absurdo da vida Ao olhar para a proacutepria essecircncia o homem descobre-se

enquanto manifestaccedilatildeo de uma vontade aacutevida desprovida de telos O ldquomecanismo

internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens marionetes guiados pela

carecircncia Esta realidade eacute assustadora pois subtrai do horizonte todos os propoacutesitos da

vida individual Dioniacutesio trava aqui sua batalha contra Apolo ao apontar a ilusatildeo da

individuaccedilatildeo como mecanismo para uma fuga daquilo que em essecircncia somos Apesar

de seu caraacuteter aterrorizador a sabedoria dionisiacuteaca eacute acompanhada do deleite

32

Podemos ver aqui o nuacutecleo da dissenssatildeo entre as teorias dos dois filoacutesofos Para Schopenhauer este

remeacutedio eacute temporaacuterio e tatildeo logo o efeito da apreciaccedilatildeo esteacutetica se esvaia os interesses da vontade voltam

a agir sobre o indiviacuteduo e a vida de sofrimento continua seu percurso restando apenas o caminho da

negaccedilatildeo daquela vontade da vida mesma em direccedilatildeo ao nada Nietzsche ao contraacuterio aponta para uma

forma de cura atraveacutes do remeacutedio-arte ver a vida enquanto forma de arte afirmaacute-la

88

indescritiacutevel da celebraccedilatildeo da unidade com o todo ldquoSob a magia do dionisiacuteaco torna a

selar-se natildeo apenas o laccedilo de pessoa a pessoa mas tambeacutem a natureza alheada

inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliaccedilatildeo com seu filho

perdido o homemrdquo(NT 31) Se Apolo eacute representado como deus da forma da clareza

da individuaccedilatildeo e as artes patrocinadas por ele satildeo expressotildees destas caracteriacutesticas

Dioniacutesio por sua vez eacute o patrocinador da muacutesica expressatildeo fenomecircnica direta da

vontade Vemos em Nietzsche uma biparticcedilatildeo das artes que tambeacutem pode ser extraiacuteda

da metafiacutesica schopenhaueriana (artes natildeo-musicais e arte musical)

Para Schopenhauer as formas artiacutesticas natildeo-musicais ao provocarem uma visatildeo

puramente objetiva do objeto apreciado tecircm como caracteriacutestica fundamental a

libertaccedilatildeo da subjetividade e com ela dos anseios da vontade Durante esta forma de

apreciaccedilatildeo esteacutetica ldquosomos alforriados do desgraccedilado iacutempeto volitivo festejamos o

Sabbath dos trabalhos forccedilados do querer a roda de Iacutexion cessa de girarrdquo (MVR

267) A definiccedilatildeo nietzscheana para a funccedilatildeo da arte apoliacutenea se daacute da mesma maneira

qual seja ela deve ldquo [] livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito

graccedilas ao baacutelsamo da aparecircncia do espasmo dos movimentos do querer []rdquo (NT

117) A muacutesica por sua vez recebe um tratamento especial de Schopenhauer devido ao

seu efeito esteacutetico Se as demais artes satildeo um quietivo para a vontade a muacutesica ldquonatildeo faz

mais do que agradar a vontade de viver jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo

seus ecircxitos e ao final expressa sua satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509) Ela encontra-se

num niacutevel de valor superior ao das demais artes por tratar-se de representar a essecircncia

do mundo a vontade mesma Assim tambeacutem ela eacute tratada por Nietzsche como a arte

que representa a sabedoria dionisiacuteaca e faz o apreciador vivenciar a vontade mesma

Em seus escritos sobre a poesia e a oacutepera Schopenhauer alude agrave necessidade de

subordinar os conceitos e o texto agrave muacutesica para que estas artes tenham um efeito mais

89

arrebatador no apreciador esteacutetico Esta subordinaccedilatildeo eacute assumida por Nietzsche em sua

teoria da trageacutedia Nietzsche encontra na liacuterica a primeira manifestaccedilatildeo desta junccedilatildeo da

arte dionisiacuteaca com a arte apoliacutenea e aponta aiacute o geacutermen que daraacute origem agrave trageacutedia

Podemos perceber aqui uma subordinaccedilatildeo das artes natildeo-musicais agrave muacutesica que por sua

vez se espelha na subordinaccedilatildeo do mundo fenomecircnico ao mundo da coisa-em-si As

artes figurativas representam as ideacuteias objetivaccedilotildees imediatas da vontade e a muacutesica

representa a vontade mesma Na teoria da trageacutedia de Nietzsche esta subordinaccedilatildeo seraacute

mantida e assim reflete a configuraccedilatildeo da metafiacutesica schopenhaueriana A muacutesica ldquoeacute

uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente sobre o mais iacutentimo do

homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele como se fora uma

linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo (MVR

336) Desta forma uma arte que se pretenda formar a partir da integraccedilatildeo de elementos

de diversas formas artiacutesticas deve tomar a muacutesica como inspiraccedilatildeo tanto na teoria de

Schopenhauer como na de Nietzsche

Desta dicotomia das formas artiacutesticas que podemos perceber nos dois filoacutesofos

podemos depreender duas formas do gecircnio o apoliacuteneo ou contemplativo e o

compositor dionisiacuteaco Para Schopenhauer ldquoo compositor manifesta a essecircncia mais

iacutentima do mundo expressa a sabedoria mais profunda numa linguagem natildeo

compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo magneacutetico fornece informaccedilotildees

sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito algumrdquo (MVR 342) Podemos

vislumbrar ainda nesta descriccedilatildeo de Schopenhauer uma caracteriacutestica do que Nietzsche

mais tarde iraacute chamar de criaccedilatildeo inconsciente Em uma segunda passagem desta vez ao

final do capiacutetulo 39 do segundo volume de MVR vemos tambeacutem uma caracteriacutestica que

posteriormente tambeacutem seraacute ressaltada por Nietzsche como demarcaccedilatildeo do caraacuteter

dionisiacuteaco Schopenhauer se utiliza de uma passagem dos Vedas para descrever o prazer

90

provocado pela muacutesica como um prazer de participaccedilatildeo no todo33

Este ecircxtase da

comunhatildeo eacute um aspecto reiteradamente apontado por Nietzsche O gecircnio dionisiacuteaco eacute

para o jovem filoacutesofo aquele que tambeacutem absorvido pelo impulso dionisiacuteaco traduz

sua essecircncia em linguagem musical O tipo de gecircnio musical descrito eacute encontrado em

Schopenhauer nas encarnaccedilotildees de Rossini e Beethoven cujas obras operiacutesticas satildeo

norteadas pela produccedilatildeo musical e o livreto ocupa um lugar secundaacuterio Nietzsche

aponta um renascimento progressivo do gecircnio musical em seu tempo que se inicia com

Bach e tem continuidade em Beethoven mas que encontra sua forma mais bem acabada

em Richard Wagner

Apesar da tomarem caminhos diferentes no que tange ao objetivo da obra de arte

traacutegica Nietzsche e Schopenhauer mais uma vez em uniacutessono consideram-na todavia

como uma forma de entendimento superior ao apresentado pelo pensamento cientiacutefico

Como vimos anteriormente as ciecircncias no sistema schopenhaueriano seguem o

princiacutepio de razatildeo seu papel eacute apenas descritivo e consequumlentemente limitado ao

acircmbito daquele princiacutepio Transformam em conceitos abstratos o mundo intuitivo ao

descrevecirc-lo em sua aparecircncia e seguem o fio condutor do principio de razatildeo

apresentando as causas para cada fenocircmeno particular Desta forma as ciecircncias estatildeo

subordinadas ao mundo da aparecircncia e no que importa agrave essecircncia natildeo podem

demonstraacute-la As uacutenicas produccedilotildees humanas com esta capacidade satildeo a arte e a

filosofia e essas o fazem de forma indireta metafoacuterica A consideraccedilatildeo racional do

mundo estaacute enquanto presa ao acircmbito do fenocircmeno subordinada aos ditames da

vontade Esta ldquovontade aacutevida sempre encontra um meio atraveacutes de uma ilusatildeo

distendida sobre as coisas de prender agrave vida as suas criaturas e de obrigaacute-las a

prosseguir vivendordquo (NT 108) Nietzsche descreve trecircs formas pelas quais a vontade

33

ldquoE o delicioso que eacute uma classe de alegria chama-se assim o sumo Atman porque onde haacute uma

alegria esta eacute uma pequena parte de sua alegriardquo (MVR II 510)

91

manteacutem a vida A primeira delas eacute o ldquoveacuteu da beleza da arterdquo sustentado pelo impulso

apoliacuteneo Encontramo-la na epopeacuteia homeacuterica e nas artes figurativas A segunda eacute a

visatildeo traacutegica do mundo que encontra um consolo metafiacutesico na percepccedilatildeo de um

substrato comum aos fenocircmenos e que por consequumlecircncia abdica destes em funccedilatildeo da

vivecircncia daquele substrato A terceira forma de dominaccedilatildeo da vontade eacute a ciecircncia a

loacutegica socraacutetica que procura abarcar o mundo com sua razatildeo de acircnsia justificadora

Estas trecircs formas de coerccedilatildeo conforme sua predominacircncia em determinada cultura

formam o que Nietzsche iraacute denominar respectivamente de culturas artiacutestica traacutegica e

socraacutetica Correspondem historicamente agraves fases predominantemente helecircnica budista

ou alexandrina Fazendo um diagnoacutestico da cultura contemporacircnea Nietzsche a

identifica como uma cultura predominantemente alexandrina Diagnostica o seu ocaso a

partir da identificaccedilatildeo feita por Kant e Schopenhauer dos limites da ciecircncia do

desmascaramento das verdades eternas que amparam a visatildeo socraacutetica de mundo quais

sejam a visatildeo de que o tempo o espaccedilo e a causalidade satildeo leis universais e

incondicionais Esta criacutetica ao racionalismo eacute constante na obra schopenhaueriana

Percebemo-la claramente em suas investidas contra a filosofia de seu tempo e a

presunccedilatildeo nela presente de racionalmente abarcar o real

- - - - - - - - - -

Compostas por conceitos da metafiacutesica schopenhaueriana a teoria da trageacutedia de

Schopenhauer e a de Nietzsche apontam para caminhos diversos Em Schopenhauer a

trageacutedia eacute a arte cujo fim uacuteltimo eacute ao expor seu lado terriacutevel inspirar o apreciador agrave sua

renuacutencia Este lado terriacutevel espelho do mundo presentificador da vida humana e de

suas relaccedilotildees ocasiona atraveacutes do medo e da compaixatildeo a vontade de renuacutencia a essa

92

mesma vida Nietzsche introduz na trageacutedia o elemento da muacutesica schopenhaueriana34

A consequumlecircncia desta introduccedilatildeo eacute um plano mais profundo de entendimento que

apresenta a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com sua essecircncia Neste estado de consciecircncia

apartado de sua individualidade o sujeito jaacute se vecirc como um criador de mundos e vecirc no

mundo uma obra de arte sua Ao derivar o impulso apoliacuteneo do dionisiacuteaco35

Nietzsche

jaacute executou a renuacutencia do indiviacuteduo que agora passa a se ver como essecircncia e ao mundo

como fenocircmeno artiacutestico

34

Machado (2006 200) considera na esteira de Clemeacutent Rosset e de Jean-Marie Schaeffer a utilizaccedilatildeo

da teoria da apreciaccedilatildeo musical de Schopenhauer por Nietzsche como o elemento que sugeriraacute a

caracteriacutestica de afirmaccedilatildeo da vontade de sua filosofia da trageacutedia 35

ldquoNo efeito conjunto da trageacutedia o dionisiacuteaco recupera a preponderacircncia ela se encerra com um tom

que jamais poderia soar a partir do reino da arte apoliacutenea E com isso o engano apoliacuteneo se mostra como o

que ele eacute como o veacuteu que enquanto dura a trageacutedia envolve o autecircntico efeito dionisiacuteaco o qual

todavia eacute tatildeo poderoso que ao final impele o proacuteprio drama apoliacuteneo a uma esfera onde ele comeccedila a

falar com sabedoria dionisiacuteaca e onde nega a si mesmo e agrave sua visibilidade apoliacuteneardquo (NT 129)

93

BIBLIOGRAFIA

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Traduccedilatildeo Mario da Gama Kury 5ordf Ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2004

EacuteSQUILO Os sete contra Tebas Traduccedilatildeo Donaldo Schuumlller Porto Alegre LampPM

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EacuteSQUILO Oreacutestia Agamecircnon Coeacuteforas Eumecircnides Traduccedilatildeo Mario da Gama Kury

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Schoumlfeld e Sara Sosa Miatello Buenos Aires Nueva visioacuten 1958

4

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

INSTITUTO DE FILOSOFIA ARTES E CULTURA

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA

MESTRADO EM ESTEacuteTICA E FILOSOFIA DA ARTE

Dissertaccedilatildeo intitulada ldquoA filosofia da vontade e as interpretaccedilotildees da trageacutedia

uma anaacutelise das teorias de Schopenhauer e do jovem Nietzscherdquo de autoria do

mestrando Raul Moraes de Euclides apresentada agrave banca examinadora constituiacuteda pelos

seguintes professores

____________________________________________________

ProfDr Heacutelio Lopes da Silva - Orientador- UFOP

___________________________________________________

ProfDr Eduardo Soares Neves Silva ndash Co-orientador - UFMG

____________________________________________________

Prof Dr Douglas Garcia Alves Juacutenior - UFOP

____________________________________________________

Prof Dr Rogeacuterio Antocircnio Lopes - UFMG

Ouro Preto 24 de Marccedilo de 2010

5

Agrave minha famiacutelia

6

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente ajudaram na elaboraccedilatildeo deste

trabalho

Agrave minha esposa pelo amor paciecircncia e apoio

Ao corpo docente do curso de mestrado e em especial ao meu co-orientador

cujo incentivo foi essencial agrave continuaccedilatildeo da pesquisa

Ao meu orientador pelas observaccedilotildees valiosas

Aos colegas de mestrado companheiros indispensaacuteveis nas diaacuterias procissotildees de

embriaguez dionisiacuteaca pelas labiriacutenticas ladeiras de Ouro Preto

7

A existecircncia eacute um episoacutedio do nada

Arthur Schopenhauer

8

RESUMO

O projeto que aqui se apresenta tem como objetivo principal percorrer as

teorias do traacutegico schopenhaueriana e nietzscheana no intuito de apresentar as

principais caracteriacutesticas de cada uma destas teorias Este percurso teraacute como ponto de

partida o fundamento metafiacutesico comum a elas qual seja a filosofia schopenhaueriana

da vontade Atraveacutes desta exposiccedilatildeo pretendemos demonstrar natildeo somente a real

amplitude da influecircncia de Schopenhauer nos primeiros escritos de Nietzsche mas

tambeacutem algumas das peculiaridades existentes em cada uma das citadas teorias

Palavras-chave Schopenhauer - Nietzsche - Trageacutedia - Traacutegico - Filosofia da

vontade

ABSTRACT

The research presented herein has as its ultimate goal to discuss the

theories of the tragedy developed by Schopenhauer and Nietzsche highlighting the

main characteristics ndash points of convergence and divergence ndash of both Our trajectory

shall start from the metaphysical foundations apparently displayed in both theories

which is ndash the schopenhauerian philosophy of the will Throughout our exposition we

intend to show not only that Schopenhauers philosophy had a huge impact in

Nietzsches first writings but also reveal the peculiarities beneath the development of

their aforementioned theories

Keywords Schopenhauer - Nietzsche - Tragedy - Tragic ndash Philosophy of the will

9

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO11

1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES NA

FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA 17

2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU

SUBSTRATO METAFIacuteSICO42

21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo43

22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo45

23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana49

24 A finalidade moral da trageacutedia56

25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera62

3 A TEORIA DA TRAGEacuteDIA DO JOVEM NIETZSCHE65

31 A influecircncia de Schopenhauer na obra do primeiro Nietzsche66

32 O projeto subjacente ao nascimento da trageacutedia72

33 A teoria da trageacutedia publicada75

4 CONCLUSAtildeO pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo da

vida85

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS93

10

ABREVIATURAS

Obras de Schopenhauer

MVR = Mundo como vontade e como representaccedilatildeo (2005)

MVR II ndash Mundo como vontade e como representaccedilatildeo volume II (2005)

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SOE = Sobre o ofiacutecio de Escritor (2005)

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PP = Parerga e paralipomena (1974)

SFM = Sobre o fundamento da moral (2001)

SFU = Sobre a filosofia universitaacuteria (2001)

Obras de Nietzsche

NT = O nascimento da trageacutedia (1992)

VD = Visatildeo dionisiacuteaca do mundo (2005)

CORRESPONDEcircNCIA = Correspondecircncias de Nietzsche (2007)

OC = Obras completas de Nietzsche (1963)

11

INTRODUCcedilAtildeO

ldquoDias sem nuacutemero nunca reservam a

ningueacutem nada mais que dissabores mais

proacuteximos da dor que da alegria Quanto aos

prazeres natildeo os discernimos e nossa vista os

buscaraacute em vatildeo logo que para nossa

desventura chegamos ao limite prefixado E

desde entatildeo o nosso aliacutevio uacutenico seraacute aquele

que daraacute a todos o mesmo fim na hora de

chegar de suacutebito o destino procedente do

tenebroso reino onde natildeo haacute cantos nem

liras onde natildeo haacute danccedilas ndash ou seja a morte

epiacutelogo de tudo Melhor seria natildeo haver

nascido como segunda escolha bom seria

voltar logo depois de ver a luz agrave mesma

regiatildeo de onde se veiordquo

(Soacutefocles)

As teorias sobre a trageacutedia de Schopenhauer e Nietzsche satildeo parte

indispensaacutevel no estudo da histoacuteria da filosofia da trageacutedia Dentre os diversos

pensadores contemporacircneos que tratam sobre o problema da trageacutedia e do traacutegico e que

deram visiacutevel destaque agraves teorias dos nossos filoacutesofos podemos destacar Walter

Benjamin1 e Peter Szondi

2 Entretanto nos trabalhos destes autores o problema do

1 BENJAMIN Walter Origem do drama barroco alematildeo Traduccedilatildeo Sergio Paulo Rouanet Satildeo Paulo

Brasiliense 2004

12

relacionamento e da interdependecircncia entre as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche

natildeo eacute detalhado a contento Diante disto mesmo para um olhar historicamente

caracterizador torna-se vaacutelido um estudo comparado destas teorias que leve em

consideraccedilatildeo o quecirc ou o quanto haacute de comum em suas metafiacutesicas e a partir desta

perspectiva trace os aspectos coincidentes e dissidentes das mesmas mostrando seus

pontos de interdependecircncia e discrepacircncia muacutetua

Apesar de estar entre as teorias da trageacutedia mais estudadas do periacuteodo do

idealismo alematildeo a teoria Schopenhaueriana que eacute sempre analisada em relaccedilatildeo a seus

pressupostos metafiacutesicos ao ser vista sob outra perspectiva ganharia contornos

intensamente enriquecidos Esta perspectiva atraveacutes da qual nos propomos a examinar a

teoria do traacutegico do filoacutesofo eacute aquela que levaraacute em consideraccedilatildeo as influecircncias

histoacutericas culturais e filosoacuteficas que agiram diretamente sobre a esteacutetica do traacutegico

schopenhaueriana Ao lanccedilarmos um olhar sobre estas referidas influecircncias estaremos

abrindo caminho para uma melhor compreensatildeo sobre a teoria esteacutetica

schopenhaueriana o que conseguintemente refletiraacute em um juiacutezo mais adequado da

teoria nietzscheana

Para um entendimento mais eficiente das teorias propostas nas obras do

jovem Nietzsche parece-nos essencial o conhecimento de uma de suas mais decisivas

influecircncias a filosofia de Schopenhauer A analogia almejada erige-se na verdade

como meacutetodo de anaacutelise ou seja o que pretendemos eacute alcanccedilar uma maior compreensatildeo

dos problemas com os quais Nietzsche se deparou quando da elaboraccedilatildeo de sua primeira

obra e procurar identificar a existecircncia de alguma apropriaccedilatildeo eou adaptaccedilatildeo de alguns

conceitos da filosofia de Schopenhauer na resoluccedilatildeo destes problemas A necessidade

deste estudo comparativo torna-se ainda mais evidente quando e este eacute o caso

2 SZONDI Peter Ensaio sobre o Traacutegico Traduccedilatildeo Pedro Suumlssekind Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

13

defrontamo-nos com uma influecircncia que se apresenta tatildeo clara e assumidamente

admitida pelo autor Todavia natildeo se pretende aqui apenas a justaposiccedilatildeo de um

pensamento ao outro Apesar de ser identificaacutevel em toda a obra posterior de Nietzsche

encontra-se nos seus primeiros escritos sobretudo na obra O nascimento da trageacutedia

aquele momento discursivo no qual podemos apontar uma influecircncia mais direta da

filosofia de Schopenhauer

Dos trabalhos que fazem um estudo comparativo entre estes filoacutesofos a

maioria se ateacutem em identificar as diferenccedilas conceituais entre eles mais

especificamente no campo eacutetico e metafiacutesico Grosso modo tratam principalmente dos

problemas relativos agrave diferenciaccedilatildeo entre os conceitos de vontade nestes autores

vontade de viver e vontade de poder Estes estudos tecircm como foco a filosofia tardia de

Nietzsche onde este apesar da assumida influecircncia torna-se um criacutetico de

Schopenhauer A real extensatildeo da influecircncia deste filoacutesofo na primeira obra de

Nietzsche bem como o relacionamento entre suas teorias da trageacutedia permanecem

assim como territoacuterios ainda pouco explorados Ao lanccedilarmos olhar sobre esse

afastamento que Nietzsche mais tarde realizaraacute em relaccedilatildeo agrave filosofia

Schopenhaueriana verificamos mais uma vez a importacircncia do estudo de sua primeira

fase na qual poderemos detectar o referido afastamento

Podemos observar entretanto o crescimento do interesse no estudo da

obra O nascimento da trageacutedia de Nietzsche Nos uacuteltimos anos assistimos tambeacutem no

Brasil agrave publicaccedilatildeo de vaacuterios trabalhos que tecircm sob perspectiva a complexidade desse

seu primeiro livro Na bibliografia sugerida neste projeto constam publicaccedilotildees dos

seguintes autores Roberto Machado (2006) Rosa Maria Dias (2005 e 2009) Iracema

Macedo (2006) Marcio Joseacute Silveira Lima (2006) Estas publicaccedilotildees tratam temas

diversos da esteacutetica nietzscheana tais como a muacutesica a trageacutedia o traacutegico ou a

14

repercussatildeo do livro de Nietzsche e sua influecircncia wagneriana Podemos ver entretanto

naqueles e em outros trabalhos a constante chave de leitura que atribui a Schopenhauer

a influecircncia decisiva natildeo apenas sobre o jovem Nietzsche como usualmente se aponta

mas tambeacutem sobre um peculiar imbricamento entre metafiacutesica e esteacutetica o qual se

sustentaria sobre os ldquoimpulsos artiacutesticos da naturezardquo o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco Nos

termos de Dias (2005 27)

A oposiccedilatildeo apoliacutenea e dionisiacuteaca considerada no plano

metafiacutesico se daacute a partir da noccedilatildeo de vontade ou querer

estendida (sic) no sentido que a ela deu Schopenhauer de

ldquocentro e nuacutecleo do mundordquo ou ldquoforccedila que eternamente quer

deseja e aspirardquo () O mundo fenomecircnico como resultado

desse movimento do querer () faz um segundo movimento

dessa vez esteacutetico reproduzindo o movimento inicial que a

vontade realizou em direccedilatildeo agrave aparecircncia

Tendo em vista o fato de que as teorias sobre o traacutegico dos dois filoacutesofos tecircm como

ponto de partida o sistema metafiacutesico schopenhaueriano fica clara a necessidade de

analisar em cotejo estas teorias tendo como fio condutor o meacutetodo de investigaccedilatildeo ora

proposto

Aleacutem de um aprofundamento no problema da influecircncia de

Schopenhauer na obra esteacutetica de Nietzsche o estudo de suas teorias sobre o traacutegico nos

daraacute a oportunidade de identificar as peculiaridades de cada uma destas teorias bem

como de estabelecer a sua importacircncia histoacuterica para uma filosofia do traacutegico

Em um primeiro momento traccedilaremos um panorama histoacuterico que

objetiva entender o status quo da filosofia do traacutegico no periacuteodo anterior ao

desenvolvimento da teoria schopenhaueriana da trageacutedia Esta investigaccedilatildeo seraacute

norteada pelas referecircncias constantes na proacutepria obra de Schopenhauer bem como por

um levantamento biograacutefico do filoacutesofo ou seja trabalharemos somente os momentos

que satildeo fundamentais para uma melhor compreensatildeo da obra schopenhaueriana Dentre

15

estes momentos daremos ecircnfase aos seguintes pontos o estudo sobre o helenismo de

Winckelmann e sua repercussatildeo a criacutetica teatral de Lessing Schiller e Goethe seu

projeto de criaccedilatildeo de um teatro alematildeo e suas produccedilotildees dramaacuteticas

Traccedilado o panorama histoacuterico no qual se insere a teoria da trageacutedia

schopenhaueriana passaremos para o toacutepico seguinte a apresentaccedilatildeo do sistema

metafiacutesico de Schopenhauer no qual estaacute embasada a sua teoria da trageacutedia bem como

a teoria nietzscheana A apresentaccedilatildeo seraacute feita de forma a expor os aspectos gerais da

filosofia da vontade atendo-se aos pontos deste sistema que estatildeo intrinsecamente

relacionados agraves teorias da trageacutedia dos nossos autores

Apoacutes os passos descritos reuniremos em um esboccedilo geral as

caracteriacutesticas do relacionamento existente entre o jovem Nietzsche e a filosofia de

Schopenhauer Para tanto utilizaremo-nos das referecircncias que Nietzsche faz a

Schopenhauer em suas cartas e escritos de juventude Com esta pesquisa pretendemos

identificar a opiniatildeo que o jovem Nietzsche tinha sobre a filosofia de Schopenhauer e a

profundidade da influecircncia desta em sua primeira obra Percorreremos ainda o ambiente

circundante agrave primeira obra de Nietzsche no intuito de realccedilar alguns dos conceitos

formativos de O nascimento da trageacutedia

Estabelecida a ligaccedilatildeo entre os autores passaremos ao estudo do apoliacuteneo

e do dionisiacuteaco par conceitual que nos forneceraacute a chave para se fazer um estudo

comparativo entre os filoacutesofos Para cumprir esta etapa analisaremos O nascimento da

trageacutedia bem como escritos contemporacircneos a este livro atraveacutes dos quais poderemos

delinear melhor a significaccedilatildeo desta duplicidade de impulsos e visotildees de mundo

Delinearemos assim os contornos das definiccedilotildees fundamentais da esteacutetica nietzscheana

e procuraremos construir um paralelo entre o mundo dionisiacuteaco e o mundo metafiacutesico

da vontade schopenhaueriano Temos a intenccedilatildeo de demonstrar a origem desta

16

metafiacutesica da vontade ou seja o criticismo kantiano e sua importacircncia para o conceito

de dionisiacuteaco Demonstraremos tambeacutem as caracteriacutesticas do mundo fenomecircnico

schopenhaueriano em sua identidade com o apoliacuteneo nietzscheano retomando a

epistemologia de Schopenhauer

Realizada a aproximaccedilatildeo e expostas tanto as semelhanccedilas como as

particularidades dos conceitos principais dos dois autores percorreremos sempre

focando um estudo paralelo entre os filoacutesofos outros conceitos que encontram

similaridade em suas esteacuteticas Com esse intuito procuraremos identificar nos dois

filoacutesofos o destaque dado agrave muacutesica dentro de suas teorias e o lugar dado agraves outras artes

em suas obras Discorreremos sobre a criacutetica que eles em uniacutessono fazem ao que

nomeiam racionalismo dogmatismo e o otimismo Finalizadas as aproximaccedilotildees

voltaremos nossa atenccedilatildeo ao aspecto de dissensatildeo que propicia o afastamento

fundamental entre as teorias dos dois filoacutesofos o efeito da trageacutedia Com isto

demonstraremos que a base metafiacutesica comum quando alinhada a pressupostos

esteacuteticos distintos geraraacute a referida dissensatildeo

17

1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES

NA FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA

Por que minha filosofia natildeo encontrou

simpatia e interesse Porque a verdade natildeo

estaacute de acordo com a tagarelice dos tempos

(Schopenhauer)

Neste primeiro capiacutetulo objetivamos apresentar as fontes filosoacuteficas

incutidas no sistema schopenhaueriano no intuito de situar historicamente o surgimento

da filosofia da vontade e trazer agrave baila o seu ambiente circundante bem como as teorias

filosoacuteficas com as quais Schopenhauer se propotildee a dialogar Apontaremos inicialmente

as influecircncias filosoacuteficas assumidamente presentes no sistema schopenhaueriano bem

como aquelas que fundamentam sua metafiacutesica e consequumlentemente sua teoria esteacutetica

Em um segundo momento procuraremos fazer um breve esboccedilo do ambiente artiacutestico-

cultural que dominava o pensamento alematildeo de entatildeo com o qual direta ou

indiretamente Schopenhauer e o jovem Nietzsche se depararam Com isto esperamos

posteriormente demarcar as singularidades que caracterizam as teorias destes filoacutesofos

Ressaltamos todavia que natildeo se trata de um mapeamento completo das fontes que

influenciaram esses autores ndash tarefa que exigiria um esforccedilo bem maior do que aquele

18

proposto por esta pesquisa ndash e sim de um breve panorama que se pautaraacute nas influecircncias

marcantemente presentes em suas obras

No contato com a obra de Schopenhauer a primeira impressatildeo que natildeo

passa despercebida aos seus leitores eacute a qualidade de sua prosa3 Tal qualidade

revelada na diversidade de recursos literaacuterios utilizados pelo autor eacute produto da visiacutevel

erudiccedilatildeo cultivada pelo filoacutesofo Conhecedor do grego do latim e suas respectivas

literaturas Schopenhauer transitava ainda pela obras literaacuterias cientiacuteficas e filosoacuteficas

contemporacircneas em suas liacutenguas originais conhecia o inglecircs o italiano o francecircs e o

espanhol Em sua juventude conviveu com vaacuterias personalidades do meio cultural

germacircnico que frequumlentavam o salatildeo de sua matildee em Weimar dentre eles Goethe a

maior figura das letras germacircnicas com quem teve um relacionamento mais proacuteximo

Sua obra eacute repleta de citaccedilotildees de poetas dramaturgos e seu conhecimento das artes

plaacutesticas e da muacutesica natildeo satildeo superficiais Em suas viagens pela Europa pocircde admirar

diversas esculturas e pinturas e como ele proacuteprio dizia pocircde ler diretamente no ldquolivro

do mundordquo Essa erudiccedilatildeo pode ser notada mesmo diante do desconhecimento de sua

biografia pela observaccedilatildeo da enorme quantidade de citaccedilotildees e menccedilotildees que estatildeo

espalhadas no interior de suas obras traduzidas ou como em sua maior parte citadas

em suas respectivas liacutenguas Frequumlentava as mais diversas aacutereas de conhecimento de sua

eacutepoca como sustenta Aramayo

3 O cuidado com a qualidade da produccedilatildeo literaacuteria tanto no que se refere agrave clareza quanto agrave riqueza de

recursos linguumliacutesticos eacute uma das caracteriacutesticas que Schopenhauer e Nietzsche tecircm em comum Esta

qualidade torna-se mais evidente ainda quando seus trabalhos satildeo natildeo raramente comparados com os

escritos filosoacuteficos alematildees daquele periacuteodo principalmente aos de Fichte Schelling e Hegel O elogio agrave

prosa schopenhaueriana feito por literatos e filoacutesofos contemporacircneos influenciados por sua obra pode

ser ilustrado agrave exaustatildeo entre eles encontram-se Thomas Mann Goethe Wittgenstein e o proacuteprio

Nietzsche ldquoMas a imensa forccedila de penetraccedilatildeo deste pensamento explica-se antes de tudo pelo fato de o

autor ser ao lado de Nietzsche o maior entre os escritores filosoacuteficos alematildeesrdquo (Rosenfeld 1996 177)

Jorge Luis Borges em uma entrevista publicada por Die Welt em 25 de marccedilo de 1975 realizava esta

confissatildeo ltPara mim existe um escritor alematildeo ao qual prefiro Schopenhauer Sei que deveria dizer

Goethe poreacutem Schopenhauer me interessa muitiacutessimo mais Tanto que estudei alematildeo ndash que aprendi

sobre os versos de Heine ndash fundamental e especificamente para poder ler a Schopenhauer em sua proacutepria

liacutenguagt (Aramayo 2001 18)

19

ldquoEm sua busca pela verdade Schopenhauer natildeo desdenha

nenhum aliado Os dramaturgos novelistas e poetas estatildeo quando

menos em peacute de igualdade com os mais egreacutegios filoacutesofos A perspicaacutecia

de Shakespeare ou a genialidade de Voltaire e a sutileza de Goethe nada

devem para a eloquumlecircncia Platocircnica a precisatildeo de um Spinoza e o rigor

conceitual do admirado Kant Sua curiosidade natildeo conhece limites nem

prejuiacutezo algum e por esta razatildeo tampouco menospreza quando o

considera oportuno prestar suficiente atenccedilatildeo aos fenocircmenos

paranormais agrave hipnose ou ao caacutelculo cabaliacutestico se entende que em

algo isto pode servir-lhe para demonstrar sua tese ou avaliar algumas de

suas intuiccedilotildees E na mesma direccedilatildeo aponta seu grande empenho por

incorporar o pensamento das religiotildees orientais a nosso acervo cultural

na possibilidade de um enriquecimento muacutetuordquo (Aramayo 2001 14-15)

A comparaccedilatildeo feita atraveacutes de metaacuteforas4 paraacutebolas ou alegorias em

sua maioria retiradas de obras literaacuterias ou cientiacuteficas torna-se recurso literaacuterio

constantemente presente na obra do filoacutesofo e ao mesmo tempo termocircmetro de suas

influecircncias e de seu relacionamento com o pensamento de seus contemporacircneos Tais

recursos satildeo utilizados contudo com o objetivo consciente de construir conhecimento

de ilustrar a mateacuteria do seu pensamento Nas palavras do filoacutesofo ldquoAs comparaccedilotildees satildeo

de grande valor na medida em que reduzem uma relaccedilatildeo desconhecida a uma

conhecida Inclusive as comparaccedilotildees mais detalhadas transformadas em paraacutebola ou

alegoria satildeo somente a reduccedilatildeo de uma relaccedilatildeo qualquer agrave sua exposiccedilatildeo mais

simples ilustrativa e palpaacutevelrdquo (Schopenhauer SOE 86) Se o nosso objetivo eacute mostrar

as raiacutezes da filosofia de Schopenhauer ou seja as influecircncias que formaram a mateacuteria

de seu pensamento eacute sobre esta mateacuteria que devemos nos debruccedilar Natildeo podemos

contudo nos furtar a apontar a riqueza das fontes formalmente presentes em seus

escritos5 A percepccedilatildeo da presenccedila desta numerosa miscelacircnea de referecircncias dentro da

4 ldquoSua profusa e brilhante utilizaccedilatildeo das metaacuteforas eacute o que o converte sem duacutevida alguma em um grande

escritor cujo estilo se nos afigura tatildeo ameno quanto sugestivordquo (Aramayo 2001 54) 5 Mateacuteria e forma satildeo na concepccedilatildeo do filoacutesofo planos ou instacircncias da produccedilatildeo escrita que servem

como referecircncia para o julgamento de valor do pensamento de um autor ldquo Um livro nunca pode ser mais

do que a impressatildeo dos pensamentos do autor O valor desses pensamentos reside na mateacuteria ou seja

naquilo sobre o que ele pensou ou na forma isto eacute na elaboraccedilatildeo da mateacuteria naquilo que pensou a

respeitordquo (Schopenhauer SOE 11) A importacircncia dada agrave forma por Schopenhauer seraacute melhor

esclarecida quando posteriormente apresentarmos a caracteriacutestica fundamentalmente epistemoloacutegica de

toda produccedilatildeo artiacutestica dentro de sua metafiacutesica do belo

20

obra schopenhaueriana diz-nos algo sobre seu estilo e seu arcabouccedilo cultural

entretanto quando voltamo-nos para a busca das influecircncias diretamente presentes em

seu sistema ie agraves raiacutezes da mateacuteria de seu pensamento percebemos que elas natildeo satildeo

tatildeo numerosas

Uma leitura das fontes filosoacuteficas do sistema schopenhaueriano torna-se

diferentemente do que ocorre em outros sistemas de seu tempo menos trabalhosa por

dois motivos Primeiramente o autor natildeo esconde suas influecircncias mas ao contraacuterio

faz questatildeo de apontaacute-las citaacute-las e quando lhe parece necessaacuterio as critica ou exalta

Em segundo lugar o que facilita o mapeamento destas fontes eacute a caracteriacutestica de

unidade do sistema schopenhaueriano como um todo Apesar da longevidade do

filoacutesofo e da distacircncia temporal entre suas obras suas intuiccedilotildees fundamentais

continuaram sendo as mesmas ao longo de sua vida Nas palavras de Rosset

ldquoSchopenhauer eacute homem de um soacute livro o MVR e de um soacute pensamento (qualificado

por ele mesmo de ltpensamento uacutenicogt nas primeiras linhas de sua obra)rdquo (2005 35)6

Natildeo satildeo poreacutem coetacircneas as influecircncias que marcaram a obra do filoacutesofo

como talvez a constante menccedilatildeo a seus contemporacircneos possa sugerir Nas palavras do

filoacutesofo como citado por Lefranc (2005 17) ldquoPude amar prosseguir aperfeiccediloar a

minha obra soacute por ela mesma em tranquumlilidade completa ao abrigo de toda influecircncia

externa e meus contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes

permaneci estranhosrdquo Conhecia a filosofia de seu tempo todavia natildeo a tinha como

interlocutora na verdade a desdenhava satildeo famosas as criacuteticas de Schopenhauer contra

as filosofias de seus contemporacircneos principalmente as de Fichte Schelling e Hegel

6 Sobre a unidade da produccedilatildeo schopenhaueriana destacamos aleacutem de Rosset os apontamentos de outros

dois de seus maiores comentadores Arthur Huumlbscher e Alexis Philonenko Na introduccedilatildeo aos manuscritos

schopenhauerianos Huumlbscher aponta a importacircncia dos manuscritos na percepccedilatildeo desta unidade uma vez

que podemos notar em diversas fases da vida do filoacutesofo o desenvolvimento dos temas pontuais que

marcaram sua obra principal Vide Hubscher Introduction Manuscript Remains 1985 Alexis

Philonenko trata desta unidade no proacutelogo de sua obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia

(Philonenko 1989 41-45)

21

(chamados de ldquoos trecircs sofistasrdquo) Quando faz referecircncias a eles comumente estaacute

imbuiacutedo de trecircs propoacutesitos criticar a qualidade formal de suas produccedilotildees

principalmente no que tange ao uso da liacutengua germacircnica apontar uma motivaccedilatildeo

individualista (subsistecircncia pessoal e status social) que existiria por traacutes de suas

elucubraccedilotildees filosoacuteficas e ressaltar a falta de atenccedilatildeo por parte daqueles filoacutesofos no

que se refere ao conteuacutedo da primeira criacutetica kantiana

Schopenhauer diagnosticava em seu tempo um periacuteodo de

empobrecimento da expressatildeo literaacuteria e do uso da liacutengua germacircnica e apontava como

os principais responsaacuteveis por estes acontecimentos os ldquoprofessores de filosofiardquo e seus

disciacutepulos As investidas schopenhauerianas contra a filosofia de seus contemporacircneos

podem ser encontrada em praticamente todas as suas obras mas estatildeo concentradas de

forma mais persistente em sua produccedilatildeo mais tardia na segunda ediccedilatildeo da QRPRS de

MVR em seus ensaios sobre a liberdade e o fundamento da moral e nos PP 7

Nesta

uacuteltima obra temos dedicados a estas criacuteticas alguns textos que podemos destacar Sobre

o ofiacutecio de escritor Da leitura e dos livros Da liacutengua e das palavras e Sobre a filosofia

universitaacuteria A liacutengua alematilde no que se refere agrave sua capacidade expressiva era tida em

mais alta consideraccedilatildeo por nosso filoacutesofo Afirmava que dentre as liacutenguas modernas

era ldquoa uacutenica na qual se pode escrever quase tatildeo bem quanto em grego ou em latimrdquo

(Schopenhauer SOE 72) Esta capacidade de expressatildeo de uma liacutengua eacute segundo o

filoacutesofo resultado de sua aptidatildeo em representar conceitos Desta forma na medida em

que surgem novos conceitos a elaboraccedilatildeo de novas palavras que os representem eacute um

sinal de evoluccedilatildeo adequaccedilatildeo e riqueza da liacutengua Entretanto para o filoacutesofo os

neologismos e adaptaccedilotildees criados por seus contemporacircneos natildeo eram resultados da

7 Muitos historiadores da filosofia bioacutegrafos e comentadores apontam que esta criacutetica adveacutem do

ressentimento pelo fracasso de Schopenhauer como docente na universidade de Berlim onde Hegel

reinava absoluto bem como da falta de reconhecimento de sua filosofia diante do sucesso dos professores

da mesma universidade

22

tentativa de representaccedilatildeo de novos conceitos mas ao contraacuterio eram comprovaccedilatildeo de

sua ldquopobreza de espiacuterito que a todo custo quer colocar algo no mercado e por natildeo ter

novos pensamentos chega com palavras novasrdquo (Schopenhauer SOE 129)

Schopenhauer condenava a atitude de seus contemporacircneos de utilizarem-se de

artifiacutecios como a natildeo designaccedilatildeo do caso a expressatildeo dos preteacuteritos por meio do

imperfeito a supressatildeo dos prefixos e outros subterfuacutegios para com isso disfarccedilar a sua

imprecisatildeo conceitual De acordo com Schopenhauer tratavam displicentemente a

liacutengua alematilde por dois motivos por natildeo possuiacuterem uma mateacuteria conceitualmente

relevante a ser expressa ou entatildeo para conscientemente causar a impressatildeo de que a

possuem e neste caso a responsabilidade pela natildeo compreensatildeo do texto seria atribuiacuteda

agrave incompetecircncia intelectual do leitor

Os que compotildeem discursos difiacuteceis obscuros enleados e

ambiacuteguos natildeo sabem ao certo o que querem dizer tecircm somente uma

consciecircncia vaga a esse respeito que luta primeiro por uma ideacuteia poreacutem

amiuacutede querem tambeacutem ocultar de si mesmos e dos outros que na

realidade eles natildeo tecircm nada a dizer Como Fichte Schelling e Hegel

querem parecer saber o que natildeo sabem pensar o que natildeo pensam e dizer

o que natildeo dizem Algueacutem que tenha algo correto a dizer se esforccedilaraacute por

exprimi-lo de maneira indistinta ou distinta (Schopenhauer SOE 39)

Podemos perceber entatildeo que ao criticar o estilo ldquoobscurordquo e ldquopomposordquo de seus

contemporacircneos Schopenhauer aponta como causa deste estilo natildeo somente a sua falta

de mateacuteria mas tambeacutem uma atitude consciente e arquitetadamente maldosa e com

toda a sua forccedila retoacuterica condena esta atitude

Nobre bdquoatualidade‟ magniacuteficos epiacutegonos geraccedilatildeo crescida no

leite materno da filosofia hegeliana Pela gloacuteria eterna quereis apertar

vossas garras em nossa antiga liacutengua para que a marca com um icnoacutelito

conserve para sempre o vestiacutegio de vossa existecircncia insiacutepida e sombria

Mas Dicirc Meliora Fora paquidermes fora Esta eacute a liacutengua alematilde Nela se

expressaram homens ou melhor nela cantaram grandes poetas e grandes

pensadores escreveram Arredai as patas Ou natildeo tereis o que comer (Soacute

isso os assusta) (Schopenhauer SOE 72-73)

23

A uacuteltima frase desta citaccedilatildeo nos eacute aclarada pelo texto Sobre a filosofia universitaacuteria

onde o filoacutesofo expotildee os argumentos de sua criacutetica agrave filosofia produzida em seu tempo

Para Schopenhauer os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo podem devido agrave sua funccedilatildeo

estatal se imiscuir do compromisso poliacutetico-religioso que seu cargo exige e

conseguintemente sustentados pelo Estado tratam de fazer sua apoteose Nas palavras

de Cacciola constantes na introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo brasileira do referido texto

ldquoSchopenhauer eacute um continuador da criacutetica romacircntica ao filisteiacutesmo que se origina em

Tieck A ironia que visa os homens de vida tatildeo regular como o reloacutegio lhe eacute bem

familiar O filisteu eacute o erudito pedante que soacute pensa na proacutepria vantagem O professor

de filosofia que pauta seus ensinamentos de acordo com os ditames do Estado e da

religiatildeo eacute o tipo acabado do filisteu A idolatria do Estado eacute a apoteose do filisteiacutesmo

(Schopenhauer SFU XXX) Por traacutes das ideacuteias dos ldquofiloacutesofos de profissatildeordquo estaria

incutido o retorno disfarccedilado da ldquoteologia judaicardquo de uma ldquopsicologia racionalrdquo da

ldquoliberdade da vontaderdquo e outros dogmas que de acordo com Schopenhauer refletem a

sua vocaccedilatildeo de trabalharem ldquoin maiorem Dei gloriamrdquo como exigido pela ideologia

estatal daquele periacuteodo Natildeo podem sob a pena de perderem o sustento financeiro

pessoal e familiar bem como sob o custo de perderem o status que o cargo lhes confere

contrariar os dogmas patronais

ldquo[] o intelecto dessa gente permanece fiel agrave sua destinaccedilatildeo

natural de trabalhar a serviccedilo da vontade como normalmente acontece

Mas por isso mesmo existe sempre uma intenccedilatildeo como fundamento do

seu agir e pensar eles tecircm fins o tempo todo e soacute tomam conhecimento

do que diz respeito a esses fins e portanto soacute do que corresponde a

esses fins A atividade do intelecto liberto da vontade condiccedilatildeo da pura

objetividade e por isso de todas as grandes realizaccedilotildees permanece-lhes

eternamente estranha ndash eacute uma faacutebula para seu coraccedilatildeordquo (Schopenhauer

SFU 63)

Desta forma os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo estariam voltados para a investigaccedilatildeo

objetiva da ldquoverdaderdquo a qual exigiria o distanciamento de todo e qualquer interesse

24

pessoal De acordo com o sistema schopenhaueriano tal distanciamento eacute um dom raro

com o qual a natureza a poucos contempla Na metafiacutesica schopenhaueriana a natureza

eacute aristocraacutetica O gecircnio eacute fenocircmeno raro seja ele filoacutesofo ou artista A percepccedilatildeo

objetiva do mundo alheia aos interesses pessoais da vontade individual eacute uma exceccedilatildeo

que soacute se manifesta raramente e as pessoas atadas aos interesses pessoais de sua

vontade natildeo podem reconhececirc-lo imediatamente Estes gecircnios produzidos pela natureza

seriam os verdadeiros educadores do mundo e os ldquoprofessores de filosofiardquo ao tentar

representar este papel que soacute agrave natureza cabe eleger causam-lhe repulsa

Tantas mentes comuns que se acham por cargo e profissatildeo no

dever de representar papeacuteis que a natureza nem ao menos lhes atribuiacutera e

de transportar cargas que exigem ombros de gigantes espirituais

oferecem na realidade um espetaacuteculo deveras lamentaacutevel Pois escutar

cantar os roucos e ver danccedilar os coxos eacute penoso mas ouvir filosofar a

mente limitada eacute insuportaacutevel (Schopenhauer SFU 34)

Prova do embotamento da capacidade de reconhecimento de uma produccedilatildeo genial era

para o filoacutesofo o fato de seus contemporacircneos ignorarem ou mesmo passarem agrave

margem do que seria a mais importante produccedilatildeo filosoacutefica do periacuteodo a cisatildeo entre o

real e o ideal perpetrada pela primeira criacutetica kantiana Esta era para o filoacutesofo a maior

prova do demeacuterito filosoacutefico de seus contemporacircneos preocupados com seus interesse

pessoais alheios a uma observaccedilatildeo objetiva do mundo natildeo levaram em consideraccedilatildeo os

limites impostos pela primeira criacutetica kantiana a toda investigaccedilatildeo racional

Depois de Kant ter cortado o nervo de todas as provas possiacuteveis

da teologia ndash tatildeo incisivamente que desde entatildeo ningueacutem mais pocircde

meter-se com elas ndash o esforccedilo filosoacutefico em quase cinquumlenta anos tem

consistido nas diversas tentativas de insinuar sutil e astuciosamente a

teologia e os escritos filosoacuteficos nada mais satildeo na sua maioria do que

tentativas infrutiacuteferas de reanimar um cadaacutever sem vida (Schopenhauer

SFU 81)

Natildeo nos interessa aqui adentrarmo-nos aos reais motivos existentes por

traacutes dos vitupeacuterios schopenhauerianos contra os pensadores de seu tempo nem

25

tampouco fazer juiacutezo valorativo sobre a importacircncia da filosofia da vontade em

comparaccedilatildeo ao idealismo absoluto Dentro do objetivo proposto qual seja situar

historicamente a filosofia da vontade e apontar suas influecircncias o importante eacute ressaltar

que a filosofia contemporacircnea a Schopenhauer natildeo fez efeito sobre a sua proacutepria a ponto

de modificaacute-la em seu conteuacutedo conforme esclarece o proacuteprio filoacutesofo ldquo [] meus

contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes permaneci

estranhosrdquo (apud Lefranc 2005 17) Eacute fundamental verificarmos que apesar do

sistema schopenhaueriano ter se desenvolvido agrave margem do idealismo de entatildeo seu

autor natildeo o desconhecia e muitas das ilustraccedilotildees e argumentaccedilotildees utilizadas por ele na

explicaccedilatildeo de suas teorias apoiavam-se nesta sua contenda com o seu tempo

Entretanto como a filosofia de seu tempo pretende-se herdeira do kantismo assim

tambeacutem procede Schopenhauer e a suas criacuteticas ao idealismo absoluto estatildeo

fundamentadas em sua pretensatildeo a uma heranccedila direta da filosofia kantiana Sobre a

heranccedila de Kant Schopenhauer esclarece ldquoEm todo caso natildeo reconheccedilo que tenha

acontecido algo na filosofia entre ele e mim por conseguinte ligo-me imediatamente a

elerdquo (Schopenhauer MVR 525)

Natildeo obstante as diversas criacuteticas ao retorno kantiano ao dogmatismo8

das quais a obra de Schopenhauer estaacute recheada sua admiraccedilatildeo por ele foi tambeacutem

abundantemente expressa Considerava-o ldquoa inteligecircncia mais original jaacute criada pela

naturezardquo (Schopenhauer SFU52) e afirmava que seus escritos capitais eram o ldquo[]

fenocircmeno mais importante que ocorreu ao longo dos uacuteltimos dois mil anos na filosofia

[]rdquo (Schopenhauer MVR 22) O maior reflexo desta admiraccedilatildeo pode ser observada

8 Nas palavras de Cacciola ldquoO criticismo de Kant teria segundo Schopenhauer perdido sua forccedila inicial

na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura Ou seja Schopenhauer acusa Kant de uma ldquorecaiacuteda no

dogmatismordquo por ter amenizado seu confronto com a teologia A ameaccedila dogmaacutetica jaacute configurada na

filosofia teoacuterica concretiza-se na Eacutetica de Kant quando esta acolhe como postulados Deus

imortalidade da alma e liberdade No poacutes-kantismo a importacircncia crescente atribuiacuteda agrave filosofia praacutetica

de Kant a expensas de sua criacutetica do conhecimento teria levado a uma espeacutecie de contaminaccedilatildeo da

razatildeo teoacuterica pela razatildeo praacutetica fazendo com que a primeira se transformasse num oacutergatildeo apto para

captar o Absolutordquo (Cacciola 1994 20)

26

no fato de que eacute da filosofia kantiana que Schopenhauer retira o leitmotiv para o

desenvolvimento da ideacuteia central9 de sua filosofia Esta ideacuteia central eacute aquela contida

concisamente no tiacutetulo de sua obra principal O mundo como vontade e como

representaccedilatildeo10

A dualidade formada entre representaccedilatildeo e vontade atraveacutes da qual

Schopenhauer acredita ter desvendado o ldquomisteacuteriordquo cosmoloacutegico eacute uma apropriaccedilatildeo

assumida dos conceitos kantianos de fenocircmeno e coisa-em-si respectivamente

Dizemos apropriaccedilatildeo pois aqueles conceitos satildeo acrescidos na filosofia

schopenhaueriana de caracteriacutesticas singulares Eacute com base nesta dualidade de

perspectivas de conhecimento do mundo inspirada na primeira criacutetica kantiana que o

filoacutesofo desenvolve as demais teorias que compotildeem seu sistema sejam elas a esteacutetica a

eacutetica a poliacutetica etc

Para Schopenhauer ldquoo maior meacuterito de Kant eacute a distinccedilatildeo entre

fenocircmeno e coisa-em-sirdquo (Schopenhauer MVR 526) Esta distinccedilatildeo foi o que

possibilitou a ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo realizada sobre o dogmatismo anterior A partir

daquele momento ldquoo mundo objetivo como o conhecemos natildeo pertence agrave essecircncia das

coisas em si mesmas mas eacute seu mero FENOcircMENO condicionado exatamente por

aquelas mesmas formas que se encontram a priori no intelecto

humanordquo(Schopenhauer MVR 530) Na teoria kantiana temos o espaccedilo e o tempo

como formas da sensibilidade que na filosofia de Schopenhauer satildeo associadas agrave

faculdade do entendimento juntamente com a causalidade uacutenica das doze categorias

kantianas do entendimento mantidas por Schopenhauer em seu sistema Desta forma o

mundo enquanto representaccedilatildeo eacute aquele que se apresenta para o sujeito enquanto objeto

9 Quando dizemos ideacuteia central havemos de lembrar que no sistema schopenhaueriano esta categorizaccedilatildeo

eacute singular (o tema seraacute tratado no iniacutecio do proacuteximo capiacutetulo) 10

A importacircncia que o filoacutesofo daacute ao tiacutetulo de uma obra eacute esclarecedora para a compreensatildeo da

importacircncia de sua ideacuteia central ldquoo que o sobrescrito deve ser para uma carta eacute o que um tiacutetulo deve ser

para um livro ou seja antes de tudo deve ter o objetivo de destinaacute-lo agrave parte do puacuteblico que pode se

interessar por seu conteuacutedo Sendo assim o tiacutetulo precisa ser caracteriacutestico e por ser naturalmente

breve deve ser conciso lacocircnico pregnante e se possiacutevel um monograma do conteuacutedordquo

(Schopenhauer SOE 09-10)

27

condicionado por estas trecircs formas presentes a priori no intelecto humano tempo

espaccedilo e causalidade Quanto ao mundo noumecircnico que dentro da teoria kantiana eacute um

ldquox desconhecidordquo Schopenhauer o explica atraveacutes da Vontade sua traduccedilatildeo da coisa-

em-si Essa dualidade que traz agrave tona a ldquocompleta diversidade entre o ideal e o realrdquo

(Schopenhauer MVR 527) doutrina que de acordo com Schopenhauer (MVR 528) foi

expressa por Kant de forma soacutebria calma demonstrada e incontestaacutevel jaacute havia sido

expressa tambeacutem em linguagem mais miacutetica e poeacutetica por outras duas doutrinas que

tambeacutem estatildeo profundamente presentes na obra Schopenhaueriana Platatildeo e os escritos

indianos dos Vedas e Puranas

Os estudos das obras de Platatildeo e Kant foram recomendaccedilatildeo de Schultze

um dos professores de Schopenhauer em Gottingen (Weissmann 1980 54) e formam os

pilares filosoacuteficos do sistema schopenhaueriano A separaccedilatildeo entre o real e o ideal

executada por Kant eacute vista tambeacutem na obra platocircnica Sua teoria das ideacuteias bem como

sua alegoria da caverna satildeo expressotildees de uma intuiccedilatildeo da existecircncia daquela separaccedilatildeo

O que Kant teria sistematizado a seu modo eacute a mesma verdade que ldquojaacute Platatildeo

incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte

modo este mundo que aparece aos sentidos natildeo possui nenhum verdadeiro ser mas

apenas um incessante devir ele eacute e tambeacutem natildeo eacute sua apreensatildeo natildeo eacute tanto um

conhecimento mas uma ilusatildeordquo (Schopenhauer MVR 528)

Aleacutem de Platatildeo os livros sagrados dos indianos afirmavam esta ldquoilusatildeordquo

ldquofantasmagoriardquo do mundo e constituem tambeacutem uma fonte frequumlentemente utilizada

por Schopenhauer O contato do nosso filoacutesofo com o pensamento oriental se deu

quando do seu encontro com o orientalista Friedrich Majer no salatildeo de sua matildee em

28

Weimar A partir de entatildeo o interesse do filoacutesofo pelo pensamento oriental foi se

intensificando ao longo de sua vida 11

A mesma verdade representada de modo completamente outro eacute

tambeacutem uma doutrina capital dos vedas e puranas a saber a doutrina de

Maia pela qual natildeo se entende outra coisa senatildeo aquilo que Kant nomeia

o fenocircmeno em oposiccedilatildeo agrave coisa-em-si pois a obra de maia eacute

apresentada justamente como este mundo visiacutevel no qual estamos um

efeito maacutegico que aparece na existecircncia uma aparecircncia inconstante e

inessencial em si destituiacuteda de ser comparaacutevel agrave ilusatildeo de oacutetica e ao

sonho um veacuteu que envolve a consciecircncia humana um algo do qual eacute

igualmente falso e igualmente verdadeiro dizer que eacute ou natildeo eacute

(Schopenhauer MVR 528)

Estas trecircs doutrinas estavam admitidamente presentes quando da

elaboraccedilatildeo do nuacutecleo conceitual fundamental da posteriormente nominada Filosofia da

Vontade Entretanto aleacutem de formarem seu nuacutecleo conceitual podemos encontraacute-las

ainda posteriormente em outros instantes desta filosofia O pensamento oriental seraacute

figura fortemente presente na eacutetica schopenhaueriana desenvolvida no quarto livro do

Mundo onde o filoacutesofo adotaraacute como fundamento de sua eacutetica o sentimento da

compaixatildeo jaacute presente na doutrina budista Platatildeo e Kant satildeo ainda influecircncias

fundamentais como veremos no proacuteximo capiacutetulo da esteacutetica schopenhaueriana O

primeiro novamente atraveacutes de sua teoria das ideacuteias seraacute utilizado por Schopenhauer na

definiccedilatildeo do objeto artiacutestico Do segundo poderemos notar sua influecircncia nas teorias

schopenhauerianas do sublime da imaginaccedilatildeo e da contemplaccedilatildeo desinteressada todas

elas fundamentais agrave compreensatildeo da teoria da arte poeacutetica

- - - - - - - - - -

11

Suas fontes principais eram o Oupnekacutehat uma traduccedilatildeo latina dos vedas e o Asiatic Journals jornal

publicado pela sociedade asiaacutetica fundada em 1784 Para uma referecircncia completa das citaccedilotildees orientais

na obra de Schopenhauer veja o apecircndice do artigo de Moira Nicholls The influences of Eastern Thought

on Schopenhaueracutes Doctrine of the Thing-in-itself (in Janaway 1999 197-204)

29

Apresentadas as principais influecircncias teoacutericas do sistema

schopenhaueriano passemos a uma breve descriccedilatildeo do ambiente cultural que naquele

momento tinha como foco um projeto de fundaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para o teatro e a

literatura germacircnicas Tal projeto envolveu os mais importantes dramaturgos criacuteticos

escritores e pensadores do periacuteodo imediatamente anterior a Schopenhauer12

e eacute

tambeacutem posteriormente retomado por Nietzsche em seu Nascimento da Trageacutedia Sua

importacircncia para a filosofia da vontade pode ser medida pela recorrente referecircncia feita

a estes pensadores nas obras dos filoacutesofos Seu iniacutecio em meados do seacuteculo XVIII deu-

se pela influecircncia exercida pelo historiador da arte Johann J Winckelmann junto aos

escritores poetas e dramaturgos posteriores dentre eles Lessing Goethe e Schiller

A influecircncia winckelmanniana que de acordo com Butler (1958 11)

criou ondas cujo violento distuacuterbio ldquoainda varrem as praias do seacuteculo XXrdquo se pautou

em duas noccedilotildees fundamentais13

a imitaccedilatildeo dos antigos e o belo ideal Winckelmann

propunha um novo modelo no qual a arte germacircnica deveria se basear para atingir uma

grandiosidade rara e ldquoinimitaacutevelrdquo a imitaccedilatildeo dos gregos Por esta imitaccedilatildeo o

historiador natildeo propunha uma mera coacutepia das obras de arte gregas poreacutem uma imitaccedilatildeo

do modo de produccedilatildeo artiacutestica dos gregos qual seja sintetizar a beleza ideal descoberta

na observaccedilatildeo da diversidade objetiva da natureza Esta proposta de um retorno ao

modelo antigo coloca Winckelmann na esteira da conhecida querela entre antigos e

modernos e eacute a igniccedilatildeo para o periacuteodo literaacuterio conhecido como classicismo germacircnico

Esta disputa quanto agrave valorizaccedilatildeo das obras poeacuteticas antigas ou modernas estaraacute de um

modo ou de outro presente nas teorias schopenhaueriana e nietzscheana da trageacutedia

12

De acordo com Schopenhauer as obras de tais poetas e escritores assim como a filosofia de Kant satildeo

exemplos para os quais a literatura e a filosofia pobres de seu tempo deveriam se voltar No que se refere

ao uso da liacutengua ele aconselha ldquoLede vede qual liacutengua Winckelmann Lessing Klopstock Wieland

Goethe Buumlrger Schiller falaram e emulai-a mas natildeo fazei o mesmo com o jargatildeo estupidamente

excogitado pelos miseraacuteveis literatos atuais e entre eles pelos professores que vatildeo agrave escola de liacutenguardquo

(Schopenhauer SOE 57-58) 13

Esta duas noccedilotildees fundamentais satildeo ressaltadas por Suumlssekind e Machado em seus trabalhos sobre o

tema Veja Suumlssekind 2008 67-77 e Machado 2006 9-14

30

Como veremos posteriormente Schopenhauer privilegiaraacute a trageacutedia moderna em

detrimento da antiga argumentando que aquela cumpre com maior competecircncia o seu

objetivo enquanto forma de arte qual seja provocar repulsa agrave vontade de viver e

estimular sua negaccedilatildeo Apesar deste privileacutegio pelas obras traacutegicas modernas o filoacutesofo

natildeo deixa como seus contemporacircneos de ter os gregos como modelo e natildeo satildeo raros

seus elogios agraves produccedilotildees helecircnicas Para Schopenhauer Winckelmann foi para a

histoacuteria da arte assim como ele o eacute para a da filosofia um exemplo do modo epiciacuteclico

atraveacutes do qual a natureza de tempo em tempo faz avanccedilar o conhecimento do gecircnero

humano Para o filoacutesofo a retomada do projeto kantiano realizada pelo seu sistema eacute a

demonstraccedilatildeo de que entre ele e Kant nenhum conhecimento foi produzido Como

exemplo deste esquema epiciacuteclico na histoacuteria da arte Schopenhauer utiliza-se do

retorno de Winckelmann agrave beleza claacutessica o que nos mostra a importacircncia dada pelo

filoacutesofo agrave forma de arte grega bem como ao projeto inaugurado pelo historiador da arte

Apoacutes explicar o esquema epiciacuteclico da evoluccedilatildeo dos progressos humanos

Schopenhauer diz

Para quem deseja poreacutem ter uma prova do esquema geral dos

epiciclos aqui exposto com base na histoacuteria da arte basta observar a

escola de escultura de Bernini que florescia ainda no seacuteculo passado

particularmente em seu desenvolvimento francecircs sucessivo e que

representava a natureza comum em vez da beleza claacutessica e o decoro do

minueto francecircs em vez da simplicidade e da graccedila antigas Tal escola

faliu quando apoacutes a repreensatildeo de Winckelmann voltou-se agrave escola dos

antigos (Schopenhauer SOE 110)

Nietzsche por sua vez seguiraacute o caminho winckelmanniano de exaltaccedilatildeo da forma de

arte antiga apresentando a trageacutedia grega como modelo para a arte moderna e elogiando

a iniciativa de seus predecessores em valorizar e recuperar a arte helecircnica

31

Conviria que alguma vez se pesasse diante dos olhos de um juiz

insubornaacutevel em que tempo e em que homens o espiacuterito alematildeo se

esforccedilou mais vigorosamente por aprender dos gregos e se admitirmos

com confianccedila que esse louvor uacutenico deveria ser atribuiacutedo agrave nobiliacutessima

luta de Goethe Schiller e Winckelmann pela cultura haveria em todo

caso que acrescentar que desde aquele tempo e depois das influecircncias

imediatas daquela luta tornou-se cada vez mais fraca de maneira

incompreensiacutevel a aspiraccedilatildeo de se chegar por uma mesma via agrave cultura e

aos gregos (Nietzsche NT 120)

Podemos perceber entatildeo a importacircncia do helenismo proposto por Winckelmann no

pensamento germacircnico ao observarmos a sua duraccedilatildeo tendo em vista que mais de um

seacuteculo separa o historiador da arte e o filoacutesofo da vontade de poder o que confirma a

forccedila de suas propostas para uma cultura em formaccedilatildeo e justifica o epiacuteteto com o qual

Butler caracterizou este periacuteodo dizendo que nele vemos ldquoa tirania da Greacutecia sobre a

Alemanhardquo14

O segundo ponto fundamental da teoria da arte winckelmanniana o belo

ideal natildeo provocou menor interesse em seu tempo Este belo ideal era alcanccedilado a

partir da reuniatildeo em uma uacutenica obra harmocircnica daquilo que o artista observa de mais

belo na natureza

A natureza tem seus defeitos o corpo mais belo natildeo deixa de tecirc-los e

nele encontramos frequumlentemente partes que em outros satildeo mais belas ou

podem supor-se mais perfeitas [] Os gregos trataram de reunir as formas

elegantes de vaacuterios corpos belos como sabemos pelo diaacutelogo de Soacutecrates com o

ceacutelebre pintor Parrasio [] Esta seleccedilatildeo das partes belas e sua harmocircnica

associaccedilatildeo em uma soacute figura produziu a beleza ideal (Winckelmann 2002

130)

Tal beleza encontrou sua manifestaccedilatildeo primeira na Greacutecia do periacuteodo helecircnico devido

ao favorecimento das condiccedilotildees geograacutefico-climaacuteticas15

e poliacuteticas16

Aleacutem da beleza

14

Tiacutetulo de sua obra Butler 1958 15

Sobre a influecircncia climaacutetica Winckelmann deduz ldquoA natureza depois de haver se manifestado em

gradaccedilotildees extremas de frio e de calor se estabeleceu na Greacutecia como em seu centro e por isso reina

naquele paiacutes uma temperatura intermediaacuteria entre o inverno e o veratildeo E quanto mais se aproxima deste

centro mais claridade e serenidade oferece e suas obras se manifestam em formas mais graciosas e

amaacuteveis e com detalhes mais caracteriacutesticos e decididosrdquo (Winckelmann 2002106) 16

Sobre as condiccedilotildees poliacuteticas sejam elas patriarcais democraacuteticas ou tiracircnicas Winckelmann conclui o

seguinte ldquoCom relaccedilatildeo ao regime poliacutetico e o governo da Greacutecia a liberdade eacute uma das causas da

preeminecircncia dos gregos na arte Tambeacutem a liberdade parece ter estabelecido na Greacutecia a sua sede existia

32

formal retirada da diversidade das formas naturais eleitas as mais belas as obras gregas

eram exemplares devido agrave importacircncia dada pelos artistas agrave sua expressatildeo A obra de

arte deve sua forccedila tanto agrave beleza das formas quanto agrave expressatildeo da alma nela contida

De acordo com Winckelmann ldquoa expressatildeo de uma alma grande vai muito aleacutem da

plasmaccedilatildeo de uma bela naturezardquo isto ocorre devido ao fato de que para o historiador

da arte ldquona Greacutecia a sabedoria estendia a matildeo agrave arte e insuflava nas figuras almas

mais que comunsrdquo (Winckelmann 1958 19) As caracteriacutesticas que esta expressatildeo deve

possuir satildeo aquelas contidas na passagem mais famosa da obra de Winckelmann na

qual ele descreve ainda como exemplo daquela expressatildeo artiacutestica o grupo estatuaacuterio

do Laocoonte que por sua vez seraacute alvo de uma grande controveacutersia posterior da qual

participaratildeo dentre outros Lessing Herder Goethe Schelling e Schopenhauer

Reproduzimos a passagem de Winckelmann em sua integridade

A caracteriacutestica geral e principal das obras mestras gregas eacute uma

nobre simplicidade e uma serena grandeza tanto na atitude como na

expressatildeo Assim como nas profundidades o mar estaacute sempre calmo por

muito que se agite a superfiacutecie do mesmo modo a expressatildeo nas figuras

dos gregos mostra em meio a todas as paixotildees uma alma grande e

comedida Isso transmite o rosto do Laocoonte ndash e natildeo soacute o dele ndash em

meio agrave mais violenta dor O sofrimento que aparece em todos os

muacutesculos e fibras do corpo e que no baixo ventre contraiacutedo se

experimenta tatildeo intensamente que parecemos senti-lo natildeo se exterioriza

contudo mediante qualquer ira no rosto e em toda a atitude Natildeo lanccedila

um grito terriacutevel tal como Virgiacutelio cantou em seu Laocoonte A abertura

da boca natildeo o permitiria Mais parece um suspiro angustiado como o

descreve Sadolet A dor do corpo e a grandeza da alma estatildeo distribuiacutedos

com igual forccedila atraveacutes de toda a composiccedilatildeo da figura e em certa

medida estatildeo equilibrados Laocoonte sofre mas sofre como o

Filoctetes de Soacutefocles sua dor nos toca a alma mas desejariacuteamos poder

suportar essa dor com a grandeza desse homem (Winckelmann 1958

18-19 grifo nosso)

inclusive junto ao tronos de seus reis que governavam paternalmente a seus suacuteditos antes que mais

ilustrados gozassem do destino de uma completa liberdade Homero chama a Agamemnoacuten de pastor de

seus povos com o que queria designar sua ternura com seus subordinados e sua preocupaccedilatildeo constante

pela felicidade dos mesmos Eacute bem verdade que depois surgiram tiranos mas natildeo o foram mais para uma

determinada cidade e a naccedilatildeo inteira jamais reconheceu um soberano uacutenicordquo (Winckelmann 2002 109)

33

Desta famosa passagem retiramos dois momentos que especialmente nos interessam O

primeiro dele eacute a enunciaccedilatildeo que caracterizaraacute o ideal de beleza das obras gregas nobre

simplicidade e uma serena grandeza Este ideal winckelmanniano de beleza eacute o que

torna a arte grega nas palavras de Suumlssekind ldquoinimitaacutevel e ao mesmo tempo faz dela o

modelo a ser imitadordquo (Suumlssekind 2008 69) Interessa-nos especialmente devido agrave

influecircncia desta definiccedilatildeo para a teoria do jovem professor de filologia da Basileacuteia

Podemos ver ateacute mesmo pelo vocabulaacuterio utilizado para descrever a arte grega a

proximidade e a influecircncia exercida por estes conceitos nas teorias esteacuteticas do primeiro

Nietzsche Luminosidade serenidade harmonia satildeo alguns dos conceitos que

posteriormente seratildeo utilizados por Nietzsche ao definir o seu impulso artiacutestico

apoliacuteneo17

O segundo momento - quando Winckelmann defende o espiacuterito grego na

escultura do Laocoonte em contraposiccedilatildeo ao personagem de Virgiacutelio comparando esta

representaccedilatildeo escultural com o Filoctetes de Soacutefocles - seraacute o precursor do posterior

debate sobre as fronteiras que separam as formas de arte Para Winckelmann ldquoa nobre

simplicidade e a serena grandeza das estatuas gregas eacute tambeacutem a verdadeira

caracteriacutestica dos escritos gregos da melhor eacutepoca dos escritos da escola

socraacuteticardquo(Winckelmann 1958 31) O debate sugerido pela passagem do qual

participaraacute posteriormente o proacuteprio Schopenhauer seraacute iniciado por outro pensador

de grande importacircncia para o projeto cultural alematildeo Gotthold Ephraim Lessing

Lessing em sua obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da

poesia apresentaraacute a contenda que chegaraacute ateacute Schopenhauer Para Lessing o ponto de

discordacircncia com Winckelmann estaacute no motivo pelo qual na escultura o Laocoonte natildeo

17

Segundo Rodriges (2007 93-126) tambeacutem o conceito do impulso dionisiacuteaco estaria mesmo que em

germe presente nos estudos de Winckelmann Segundo seu artigo o mapeamento da origem e

desenvolvimento da discussatildeo sobre os citados impulsos artiacutesticos da natureza ou seja sobre a

importacircncia dos deuses Apolo e Dioniacutesio na cultura grega abrangeria necessariamente diversas aacutereas do

pensamento alematildeo desde Winckelmann dentre elas os estudos filoloacutegicos o movimento romacircntico e as

filosofias idealistas

34

apresenta as caracteriacutesticas de quem grita e lamenta Como vimos para Winckelmann o

conjunto estatuaacuterio em questatildeo eacute exemplar pelo fato de transmitir atraveacutes da atitude

estoacuteica diante da dor a grandeza de alma que seria a regra universal da verdadeira arte

grega Esta grandeza enquanto regra universal estaria ainda de acordo com o

historiador da arte presente tanto nas formas pictoacutericas como nas obras poeacuteticas

Contrapondo-se a Winckelman Lessing afirma - exemplificando atraveacutes de passagens

de poetas queridos ao proacuteprio Winckelmann como Homero e Soacutefocles - que em vaacuterios

momentos da poesia antiga diversos personagens dentre eles deuses e heroacuteis proferem

exaltados lamentos e gritos e isto natildeo lhes subtrai a grandeza da alma Sendo assim se

na poesialdquoo gritar na sensaccedilatildeo de dor corporal pode coexistir muito bem com uma

grande alma portanto a expressatildeo de uma tal alma natildeo pode ser a causa pela qual

apesar disso o artista natildeo quer imitar esse grito no seu maacutermore antes deve haver um

outro motivo por que aqui ele separa-se do seu rival o poeta que expressa esse grito

com o melhor propoacutesitordquo(Lessing 1998 86) O motivo pelo qual em sua representaccedilatildeo

estatuaacuteria o Laocoonte natildeo grita eacute para Lessing uma questatildeo de limitaccedilatildeo da forma de

expressatildeo escultoacuterica que ao se submeter agrave ldquolei da belezardquo natildeo pode representar o grito

desfigurador Em suas palavras

O mestre visava a suprema beleza sob as condiccedilotildees aceitas da dor

corporal Esta em toda a sua violecircncia desfiguradora era incompatiacutevel

com aquela Ele foi obrigado a reduzi-la ele foi obrigado a suavizar o

grito em suspiro natildeo porque o grito denuncia uma alma indigna mas

antes porque ele dispotildee a face de um modo asqueroso (Lessing 1998

92)

Devemos ressaltar que segundo a teoria artiacutestica de Lessing para quem as leis a que

devem obedecer a arte estatildeo ligadas agrave sua interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica a arte eacute

julgada atraveacutes do seu efeito Neste contexto ao conceder a seus personagens

caracteriacutesticas de humanidade como por exemplo a manifestaccedilatildeo da dor atraveacutes de

35

lamentos e gritos o poeta estaria aproximando o heroacutei traacutegico do puacuteblico a ser atingido

e consequumlentemente maximizando a identificaccedilatildeo entre eles e com isto o efeito

esperado qual seja a catarse atraveacutes do temor e da compaixatildeo Esta identificaccedilatildeo

alcanccedilada por via da demonstraccedilatildeo dos lamentos dos heroacuteis dramaacuteticos natildeo pode ser

obtida da mesma forma pelas artes pictoacutericas Nestas que satildeo expressotildees de um

momento uacutenico a beleza natildeo pode deixar de estar presente pois ela eacute um dos

ingredientes mais fundamentais do efeito buscado Na poesia o heroacutei natildeo seraacute

caracterizado em uma uacutenica accedilatildeo como ocorre na escultura Sendo assim o grito

narrado eacute apenas um momento do conjunto que iraacute definir o personagem

O Laocoonte de Virgiacutelio grita mas esse Laocoonte que grita eacute

justamente aquele que noacutes jaacute conhecemos e amamos como o patriota

mais cordato e o pai mais afetuoso Noacutes vinculamos o seu grito natildeo ao

seu caraacuteter mas antes apenas ao seu sofrimento insuportaacutevel Apenas

esse uacuteltimo noacutes ouvimos no seu grito e o poeta pode tornaacute-lo sensiacutevel

apenas graccedilas a esse grito (Lessing 1998 106)

Com isto tanto o escultor que suprime o grito quanto o poeta que o descreve ao

fazerem o fazem de acordo com as leis que regem suas respectivas formas de arte

Da contenda sobre o grito do Laocoonte e sua representaccedilatildeo escultoacuterica e

poeacutetica iratildeo participar ainda diversos pensadores Dentre os mais ilustres podemos

destacar Goethe cuja explicaccedilatildeo sobre a escultura proacutexima em muitos pontos da de

Lessing encontra-se nos Propileus Para o poeta o grupo estatuaacuterio ldquoesgota o seu objeto

e preenche com sucesso todas as condiccedilotildees da arterdquo (Goethe 2005126) Segundo

Goethe a escultura eacute limitada a um uacutenico momento da accedilatildeo e sua comparaccedilatildeo com a

poesia de Virgiacutelio eacute injusta O poeta a avalia assim como Lessing atraveacutes de seu efeito

ainda dentro das categorias poeacuteticas de Aristoacuteteles e destaca

O ser humano possui apenas trecircs sentimentos no sofrimento

proacuteprio e alheio o medo o terror e a compaixatildeo a previsatildeo temerosa de

um mal que se aproxima a percepccedilatildeo inesperada do sofrimento presente

36

e a participaccedilatildeo no sofrimento duradouro ou que passou todos os trecircs

sentimentos satildeo representados e suscitados por esta obra de arte e na

verdade na gradaccedilatildeo a mais conveniente (Goethe 2005 126)

Em sua obra principal Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 46 a seus comentaacuterios do

Laocoonte que seratildeo acrescidos de exemplos no posterior volume de suplementos

Reconhece o avanccedilo feito por Lessing ao colocar no lugar de um fundamento

psicoloacutegico um fundamento puramente esteacutetico e critica ainda as teorias psicoloacutegicas e

fisioloacutegicas de seu tempo como as de Hirt e Fernow18

Para Schopenhauer apesar de

sua aproximaccedilatildeo do que seria uma ldquoexplicaccedilatildeo corretardquo da obra Lessing natildeo encontrou

o seu ponto exato qual seja a explicaccedilatildeo de que o grito natildeo pertence ao domiacutenio de

uma representaccedilatildeo escultoacuterica

Antes de qualquer investigaccedilatildeo psicoloacutegica e fisioloacutegica sobre se

Laocoonte em sua situaccedilatildeo poderia gritar ou natildeo deve-se decidir em

relaccedilatildeo ao grupo de esculturas o seguinte que nele o grito natildeo pode ser

exposto pelo motivo de que a exposiccedilatildeo do grito reside por inteiro fora

do domiacutenio da escultura (Schopenhauer MVR 2005 303)

Para Schopenhauer a simples exposiccedilatildeo que representaria o grito ou seja ldquoo

escancarar violento da bocardquo natildeo pode ocasionar o efeito que o grito mesmo enquanto

forma de expressatildeo ocasionaria O efeito que o grito pode causar em uma arte

descritiva atraveacutes do uso da imaginaccedilatildeo do leitor ou mesmo na arte representativa no

teatro tornar-se-ia motivo de riso caso seja representado por uma boca escancarada na

arte plaacutestica Schopenhauer utiliza-se do exemplo do Laocoonte para demonstrar a

necessidade do estabelecimento de fronteiras entre as artes que devido agrave suas formas

devem obedecer agraves competecircncias determinadas pelo objeto representado (no caso da

teoria schopenhaueriana as competecircncias seratildeo determinadas pelas ideacuteias a serem

representadas como veremos posteriormente) Esta preocupaccedilatildeo com os limites entre as

18

Segundo Schopenhauer Hirt (Horen 1797 parte 10) apresenta a explicaccedilatildeo de que Laocoonte natildeo grita

pois estaacute impossibilitado pela sufocaccedilatildeo que o leva agrave morte Fernow por sua vez faz uma amalgama das

opiniotildees de Winckelmann Lessing e Hirt

37

formas artiacutesticas presente na esteacutetica schopenhaueriana e no Laocoonte de Lessing foi

contudo como nos lembra Suzuki (Rosenfield 2001 36-56) ignorada por Goethe

(como podemos ver pelos elementos da poeacutetica aristoteacutelica utilizados pelo poeta para

explicar a escultura na citaccedilatildeo presente na paacutegina anterior) e seraacute posteriormente

tambeacutem desconsiderada por Nietzsche em seu projeto de uma obra de arte total

Diante do acima exposto ainda tratando de Lessing podemos perceber

que toda a discussatildeo acerca do Laocoonte foi desencadeada pela motivaccedilatildeo de defesa da

arte poeacutetica agrave qual Lessing dedicou sua vida como escritor diretor e criacutetico teatral

Desta forma a importacircncia de Lessing para o tema em questatildeo nesta dissertaccedilatildeo estaacute

mais ligado ao seu papel junto a um projeto de formaccedilatildeo de um teatro alematildeo e sua

interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica Enquanto teoacuterico e criacutetico do teatro o autor da

Dramaturgia de Hamburgo exerceu grande influecircncia na cultura posterior ao oferecer a

seu tempo uma nova interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica que vai de encontro agraves

interpretaccedilotildees francesas e de Gottsched que eram por sua vez inflexiacuteveis em relaccedilatildeo agraves

regras (das unidades de espaccedilo tempo e lugar do estatuto social dos personagens da

linguagem e do nuacutemero de atos) Lessing atento agraves necessidades de uma burguesia em

ascensatildeo que natildeo se identificava mais com as concepccedilotildees aristocraacuteticas do modelo de

teatro francecircs e imbuiacutedo na construccedilatildeo do projeto de formaccedilatildeo cultural de uma naccedilatildeo

fragmentada oferece atraveacutes de suas interpretaccedilotildees uma seacuterie de elementos que estaratildeo

presentes nas consideraccedilotildees de pensadores posteriores Dentre estes elementos podemos

destacar as seguintes uma discussatildeo acerca dos conceitos de mimese temor

compaixatildeo catarse a defesa da utilizaccedilatildeo de caracteres mistos a liberdade do gecircnio

ante as regras o enaltecimento dos teatros espanhol e inglecircs principalmente de

Shakespeare

38

Ao tratarmos do referido projeto de um teatro alematildeo e tambeacutem do

classicismo germacircnico dois nomes ainda satildeo fundamentais para sua formaccedilatildeo bem

como eacute incontestaacutevel sua influecircncia sobre Schopenhauer e o jovem Nietzsche19

satildeo

eles Goethe e Schiller O primeiro deles maior dos poetas do classicismo germacircnico

foi um ampliador do projeto Winckelmanniano ldquoPois Goethe pensa o ideal de beleza

natildeo soacute em relaccedilatildeo agrave pintura e agrave escultura mas tambeacutem e principalmente em relaccedilatildeo agrave

poesia ou agrave arte dramaacutetica ampliando as ideacuteias de Winckelmann nesse domiacutenio como

teoacuterico e como criador de obras teatraisrdquo (Machado 2006 14) Seu classicismo

impresso em seus textos teoacutericos e na forma e conteuacutedo de diversas de suas produccedilotildees

literaacuterias eacute o auge do projeto Winckelmanniano Podemos ver na esteira de Machado

(2006 14-22) que o ideal de beleza proposto por Winckelmann eacute ainda o que domina a

noccedilatildeo Goetheana dos gregos e eacute apoiado neste ideal que o poeta interpreta a arte do

mundo helecircnico e a apresenta como um exemplo para a arte de seu tempo Ressaltamos

poreacutem que dada a sua extrema heterogeneidade como nos adverte Butler (1958 85)

encontrar um senso de harmonia interna no todo da obra goetheana eacute tarefa tatildeo incerta

como determinar o grau de sua influecircncia no pensamento de nossos filoacutesofos No que se

refere a Schopenhauer entretanto natildeo podemos deixar de ressaltar que sua convivecircncia

com o poeta foi norteada pelas discussotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas que ocupavam o palco

de seus estudos agrave eacutepoca Goethe dedicou vinte anos de sua vida ao estudo das cores e

sua obra Doutrina das cores eacute o resultado desta investigaccedilatildeo Ela atraiu o interesse do

jovem Schopenhauer que apoacutes alguns encontros com Goethe dedicou-se a escrever a

sua proacutepria teoria que divergia em diversos pontos da teoria do poeta fato que marcou o

fim da relaccedilatildeo amistosa dos mesmos Sobre este periacuteodo de convivecircncia

19

De acordo com Martin (1996) a obra desenvolvida por Nietzsche enquanto escritor e pensador eacute

demasiado complexa para ser reduzida ou atribuiacuteda a determinada influecircncia Entretanto em uma

estatiacutestica crua podemos ter o vislumbre desta influecircncia como se segue ldquoSchopenhauer eacute referenciado

394 vezes na obra de Nietzsche Wagner 327 vezes a Goethe existem 311 menccedilotildees Schiller encontra-se

em nono lugar com 126 menccedilotildeesrdquo (Martin 1996 5)

39

especificamente sobre o episodio citado Goethe vai escrever mais tarde conforme

citaccedilatildeo de Safranski

O Dr Schopenhauer foi para mim um amigo benevolente

Estivemos de acordo em muitas coisas mas foi impossiacutevel evitar ao final

um certo distanciamento como dois amigos que ateacute certo momento

caminharam juntos se datildeo a matildeo para despedir pois querem dirigir-se um

ao norte outro ao sul perdendo-se rapidamente de vista um ao outro

(apud Safranski 1991 265)

Ainda na esteira do movimento de estabelecimento de um projeto

artiacutestico nacional encontramos Schiller que ao lado de Goethe foi o responsaacutevel pelas

maiores obras do classicismo literaacuterio de Weimar Para o estudo em questatildeo o que mais

nos interessa em sua obra eacute o periacuteodo no qual antes do contato com Goethe Schiller

produz seus escritos teoacutericos sobre a trageacutedia Estes estudos podem ser considerados

em uma perspectiva histoacuterica como uma ponte entre a interpretaccedilatildeo da trageacutedia nos

moldes puramente aristoteacutelicos e a trageacutedia vista enquanto forma de arte que para

atingir o efeito dela esperado deve refletir a condiccedilatildeo traacutegica do homem pensada com

base em elementos retirados da filosofia moral e da esteacutetica kantiana Em seus textos

teoacutericos sobre a poesia traacutegica pertencentes ao periacuteodo que Schiller assume ter estado

sob influecircncia da filosofia kantiana ele descreve a trageacutedia como expressatildeo do sublime

ndash conceito extraiacutedo da criacutetica kantiana do juiacutezo ndash como a representaccedilatildeo sensiacutevel da

dicotomia entre a liberdade moral a vontade individual (vontade tomada enquanto

faculdade de pensar e agir livremente) por um lado e a necessidade natural e instintiva

por outro Vemos pela primeira vez em Schiller a utilizaccedilatildeo de categorias filosoacuteficas

kantianas na elaboraccedilatildeo de uma teoria da trageacutedia o que teraacute continuidade com as

teorias do idealismo absoluto e a do proacuteprio Schopenhauer Este eacute um momento

extremamente importante devido ao fato de marcar toda a reflexatildeo futura sobre o tema

ao fundar o deslocamento de uma interpretaccedilatildeo poeacutetica da trageacutedia baseada em

40

comentaacuterios da obra aristoteacutelica para uma interpretaccedilatildeo do traacutegico enquanto fenocircmeno

que descreve a situaccedilatildeo do homem no mundo De acordo com Machado ldquoEacute do

encontro de um grande dramaturgo como Schiller com a filosofia de Kant -

principalmente a sua eacutetica considerada como uma filosofia da liberdade e sua

esteacutetica no que diz respeito agrave teoria do juiacutezo sobre o sublime ndash que nasce a primeira

filosofia do traacutegico uma reflexatildeo filosoacutefica original que criou um tipo novo de

pensamento sobre a trageacutediardquo (Machado 2006 54) Na teoria schopenhaueriana da

trageacutedia podemos ver caracteriacutesticas da teoria schilleriana Primeiramente a presenccedila

marcante da influecircncia kantiana no que se refere ao sublime Em segundo lugar a

leitura da trageacutedia enquanto instrumento para a percepccedilatildeo de uma ordem moral do

mundo Tais caracteriacutesticas seratildeo aprofundadas no capiacutetulo posterior Vale antecipar que

na obra do jovem Nietzsche poderemos ver a exaltaccedilatildeo de Schiller em sua tentativa de

compreensatildeo do mundo helecircnico aleacutem do elogio agrave teoria schilleriana do coro Veremos

entretanto uma criacutetica acirrada no que se refere ao projeto de um teatro enquanto

instituiccedilatildeo moral

Neste capiacutetulo foram delineadas as principais influecircncias filosoacuteficas que

alicerccedilaram o sistema schopenhaueriano bem como esboccedilaram-se as diversas teorias

artiacutesticas que surgiram no periacuteodo em questatildeo teorias estas que propuseram mateacuteria

para a formaccedilatildeo do pensamento de nossos filoacutesofos A partir da cisatildeo entre fenocircmeno e

noumeno proposta por Kant e sua primeira criacutetica Schopenhauer elabora as matrizes de

seu sistema e para ilustraacute-lo encontra apoio na cosmologia platocircnica e no pensamento

oriental Vimos ainda que sua teoria esteacutetica eacute alimentada pela frequumlentaccedilatildeo agraves

categorias apresentadas por artistas teoacutericos e criacuteticos de arte de seu periacuteodo Por seu

turno vimos com Winckelmann a origem do estudo sobre os gregos e sua arte aleacutem do

estabelecimento destes como um modelo para a arte alematilde projeto este que foi

41

retomado por Lessing que por sua vez intensificou o estudo e propocircs um modelo de um

teatro nacional independente projeto que seraacute mais tarde revisitado e aprofundado por

Goethe e Schiller Esta apresentaccedilatildeo de influecircncias eacute imprescindiacutevel para identificarmos

a origem de certos elementos que satildeo fundamentais ao entendimento da proacutepria doutrina

schopenhaueriana tais como o caraacuteter moral de sua teoria esteacutetica sua preocupaccedilatildeo

com o estabelecimento de limite entre as artes sua interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo da poeacutetica

sua utilizaccedilatildeo de conceitos esteacuteticos kantianos (sublime belo e desinteresse) sua

apreciaccedilatildeo das obras modernas seu reconhecimento da produccedilatildeo claacutessica seu desprezo

agrave filosofia de seu tempo Eacute tambeacutem atraveacutes do mapeamento aqui feito de algumas de

suas influecircncias mesmo que brevemente apontado que poderemos mais tarde

identificar alguns dos aspectos originais e singulares de sua teoria

Quanto agraves influecircncias presentes na teoria da trageacutedia do jovem Nietzsche

apontaremos complementos no capiacutetulo correspondente Eacute imprescindiacutevel dar destaque

no que se refere agrave obra nietzscheana agrave sua formaccedilatildeo filoloacutegica ao seu conviacutevio com

Richard Wagner e agrave sua leitura do proacuteprio Schopenhauer - e isto seraacute feito

posteriormente Esperamos ter deixado claro ateacute aqui que diferentemente de Zaratustra

Nietzsche natildeo desceu simplesmente de uma montanha mas faz parte de uma tradiccedilatildeo

histoacuterica assim como Schopenhauer e que a contextualizaccedilatildeo de suas teorias eacute

fundamental para a identificaccedilatildeo dos elementos ali presentes que singularmente se

originaram do sistema metafiacutesico da Vontade

42

2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU

SUBSTRATO METAFIacuteSICO

ldquoOra se todo mundo como representaccedilatildeo eacute

a visibilidade da Vontade a arte eacute o

clareamento dessa visibilidade a cacircmera

obscura que mostra os objetos mais

puramente permitindo-nos melhor abarcaacute-

los e compreendecirc-los eacute o teatro dentro do

teatro a peccedila dentro da peccedila em Hamletrdquo

(Schopenhauer)

Utilizando-se de uma metaacutefora retirada do Eacutedipo de Soacutefocles Schopenhauer nos

oferece um exemplo da caracteriacutestica de conexatildeo interna dos temas abordados em sua

obra20

ldquo minha filosofia eacute como a Tebas de cem portas desde todos os lados se pode

entrar e atraveacutes de todos se pode chegar por um caminho direto ateacute o centrordquo

(Schopenhauer 2002 4) Tendo em vista que nosso objetivo neste capiacutetulo eacute apresentar

a teoria schopenhaueriana da trageacutedia e seus fundamentos filosoacuteficos utilizaremo-nos

desta porta para termos acesso ao sistema schopenhaueriano Procuraremos percorrer o

20

Barboza define bem esta caracteriacutestica marcante da filosofia schopenhaueriana ldquoSchopenhauer eacute o

filoacutesofo da organicidade Procura-a porque com ela onde quer que se esteja no seu sistema estar-se-aacute

em toda parte O todo conteria as partes e seria contido por elas De uma metafiacutesica da efetividade se vai

para uma do belo desta para a da eacutetica que por sua vez pode remeter agrave muacutesica por seu turno a nos

enviar para a efetividade numa por assim dizer circularidade virtuosa A unidade natildeo se perde do

horizonte de observaccedilatildeordquo (Barboza 2001 137)

43

substrato metafiacutesico sustentador da teoria do traacutegico schopenhaueriana e perceber assim

a conectividade interna existente entre sua cosmologia sua teoria esteacutetica e sua eacutetica

De posse deste meacutetodo procuraremos destacar os conceitos fundamentais da teoria

traacutegica e de sua visatildeo de mundo que viratildeo posteriormente se fazer presentes tambeacutem

na obra do jovem Nietzsche

21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo

Agrave descriccedilatildeo das artes poeacuteticas Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 51 do primeiro

volume e o capiacutetulo 37 do segundo volume de sua obra principal Tais descriccedilotildees

encontram-se por sua vez ao final dos trechos dedicados agrave teoria esteacutetica (livro III de

MVR e sus complementos) e finalizam seus apontamentos do que podemos chamar na

esteira de Young (2005) das artes natildeo-musicais21

Em ambos os casos a teoria da

trageacutedia estaacute localizada ao final da apresentaccedilatildeo Esta localizaccedilatildeo juntamente com as

diversas citaccedilotildees e exemplos retirados de peccedilas traacutegicas das quais o filoacutesofo se utiliza ao

longo de seu trabalho nos permite ver a importacircncia da arte traacutegica para Schopenhauer

Em sua teoria artiacutestica existe uma hierarquizaccedilatildeo das artes que leva em consideraccedilatildeo a

capacidade de cada uma em apresentar um grau especiacutefico de objetivaccedilatildeo da vontade

Na cosmologia schopenhaueriana a vontade essecircncia do mundo identificada como

sendo a coisa-em-si kantiana manifesta-se (torna-se objeto de conhecimento) atraveacutes de

diversos graus ndash que exprimem a nitidez com que a vontade se manifesta para o

observador - representados pelos reinos da natureza e finalmente pelo homem Desta

forma ela se objetivaria no mundo inorgacircnico atraveacutes das forccedilas magneacuteticas e da

gravidade no mundo vegetal atraveacutes das funccedilotildees orgacircnicas no mundo animal atraveacutes

21

Como veremos mais adiante a muacutesica eacute uma exceccedilatildeo no sistema das artes schopenhaueriano pois natildeo

se relaciona a uma objetivaccedilatildeo da vontade mas expressa a proacutepria vontade e desta forma natildeo figura na

sistematizaccedilatildeo hieraacuterquica

44

dos instintos e dos motivos assim como o faz no homem A classificaccedilatildeo das artes

corresponde portanto a esta hierarquizaccedilatildeo cosmoloacutegica de objetivaccedilatildeo da vontade22

Sendo assim a arquitetura e a hidraacuteulica mostram a objetivaccedilatildeo da vontade no seu grau

mais baixo ao expor o jogo das forccedilas que caracterizam a mateacuteria tais como a gravidade

rigidez dureza resistecircncia luz A jardinagem e a pintura da natureza satildeo as formas

artiacutesticas cujo fim eacute a exposiccedilatildeo da objetivaccedilatildeo da vontade que se manifesta no reino

vegetal A pintura de animais encontra-se em um niacutevel superior pois o reino animal

objeto de sua representaccedilatildeo expotildee de forma mais evidente a vontade objetivada Temos

ainda as pinturas de retratos a pintura histoacuterica e a escultura que das artes plaacutesticas

formam a categoria superior cujo objeto eacute a exposiccedilatildeo da vontade no grau mais elevado

de sua cognoscibilidade o homem Esta mesma exposiccedilatildeo a do homem eacute tambeacutem o

objeto da arte poeacutetica que agrave diferenccedila das artes que fazem sua exposiccedilatildeo de modo

puramente intuitivo eacute auxiliada pela imaginaccedilatildeo No aacutepice das artes poeacuteticas

encontramos a trageacutedia a uacuteltima arte natildeo-musical a ser descrita A arte traacutegica eacute aquela

que possui a caracteriacutestica de por sua natureza representar de forma mais ilustrativa a

objetivaccedilatildeo mais desenvolvida da vontade a vida humana e suas relaccedilotildees Veremos

mais tarde que aleacutem de corresponder agrave hierarquia de objetivaccedilatildeo da vontade mais

desenvolvida a arte traacutegica ocupa um lugar especial na filosofia schopenhaueriana

devido agrave ldquograndeza de seu efeitordquo (Schopenhauer 2005 333) Diante do exposto

podemos depreender que a arte possui na filosofia schopenhaueriana um papel

cognitivo e a trageacutedia por sua vez eacute a forma artiacutestica que por sua competecircncia cognitiva

ocupa o primeiro lugar entre as artes natildeo musicais

22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo

22

Vemos aqui um exemplo da citada inter-conectividade existente no sistema schopenhaueriano tendo

em vista que a elaboraccedilatildeo de sua classificaccedilatildeo artiacutestica obedece ao construto metafiacutesico do livro II de

MVR e sua consequumlente cosmologia

45

A tarefa a que se propotildee o sistema schopenhaueriano eacute a decifraccedilatildeo do ldquoenigma

do mundordquo ie encontrar uma resposta agrave pergunta o que eacute o mundo Esta tarefa tem

origem no idealismo subjacente na primeira criacutetica kantiana e de certa forma era uma

tarefa da qual estava imbuiacutedo todo o pensamento filosoacutefico daquele periacuteodo ie por

decifraccedilatildeo do enigma do mundo podemos entender a decifraccedilatildeo da coisa-em-si

kantiana Temos daiacute o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer o idealismo

transcendental do mundo fenomecircnico Sob o ponto de vista da representaccedilatildeo o mundo eacute

objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito agraves condiccedilotildees a priori do

entendimento que para o filoacutesofo satildeo as categorias do espaccedilo do tempo e da

causalidade

Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das formas a priori do entendimento eacute

interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos advindos da filosofia Platocircnica e oriental

como um mundo ilusoacuterio Conforme a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana Platatildeo jaacute

identificava esta caracteriacutestica ilusoacuteria do mundo em sua contraposiccedilatildeo teoacuterica entre o

mundo fiacutesico onde o devir impossibilitava a apreensatildeo do ser e o mundo das ideacuteias

onde haveria o verdadeiro encontro com o ser das coisas Ainda de acordo com a

interpretaccedilatildeo de Schopenhauer os livros sagrados indianos Vedas e Puranas faziam

esta distinccedilatildeo atraveacutes da noccedilatildeo do veacuteu de maia a consciecircncia humana seria envolvida

por um veacuteu o que resultaria em uma visatildeo oniacuterica do mundo e impediria assim a

percepccedilatildeo da realidade

Entretanto o mundo pode ainda ser conhecido atraveacutes de um segundo ponto de

vista como vontade Este eacute o ponto de vista que Schopenhauer utiliza-se para decifrar a

incognosciacutevel coisa-em-si kantiana Percorrendo uma ldquovia subterracircneardquo de modo

imanente Schopenhauer identifica nas accedilotildees do corpo bioloacutegico os atos da vontade

46

enquanto coisa-em-si e de forma analoacutegica a estabelece como essecircncia governante do

mundo Faz-se necessaacuterio aqui ressaltar como o fazem Brum (1998 23) e Rosset23

que

natildeo devemos interpretar esta analogia como uma visatildeo antropomoacuterfica do mundo Essa

essecircncia do mundo encontrada empiricamente natildeo eacute todavia um ente racional uma

ldquoalma do mundordquo Se por um lado o mundo fenomecircnico eacute aquele onde o princiacutepio de

razatildeo24

estabelece as normas de funcionamento um mundo natildeo-fenomecircnico mundo em

si enquanto vontade se expressa por sua alogicidade irracionalidade Grundlosigkeit

(falta de fundamento) Essa essecircncia irracional que manifesta-se nos diversos reinos e

indiviacuteduos do mundo eacute a raiz da visatildeo pessimista da existecircncia que de acordo com o

filoacutesofo pode ser a todo momento constatada empiricamente

As diversas manifestaccedilotildees da vontade suas objetidades carregam inerentemente

a sua iacutendole puro impulso cego vontade de vida insaciabilidade Notadamente o

mundo fenomecircnico objetivaccedilatildeo da vontade expressa a essecircncia desta vontade atraveacutes

de um conflito permanente Desenha-se um cenaacuterio de batalha onde cada objetidade da

vontade cada ser do mundo eacute orientado por sua essecircncia irracional desguarnecida de

qualquer telos ldquoAssim a vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria

carne e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimentordquo (Schopenhauer MVR 211) Este

fundamento ontoloacutegico a vontade determina assim o caraacuteter absurdo que a vida

humana toma na filosofia schopenhaueriana eterno esforccedilo carente de ordem ou

finalidade O ldquomecanismo internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens

marionetes guiados pela carecircncia

[]nenhuma satisfaccedilatildeo todavia eacute duradoura mas antes sempre eacute um

ponto de partida de um novo esforccedilo o qual por sua vez vemos travado em

toda parte de diferentes maneiras em toda parte lutando e assim portanto

23

[] natildeo haacute que transpor a experiecircncia da motivaccedilatildeo humana ao conjunto das forccedilas naturais para

compreender o segredo da natureza senatildeo o contraacuterio transpor o misteacuterio das forccedilas naturais ao conjunto

das motivaccedilotildees psicoloacutegicas para desvendar-se o segredo da vontade humana (Rosset 2005 31) 24

Princiacutepio tratado na tese de doutoramento de Schopenhauer SRQPRS bem como no livro I de MVR

O princiacutepio estabelece que todo acontecimento possui uma causa uma razatildeo de ser

47

sempre como sofrimento natildeo haacute nenhum fim uacuteltimo do esforccedilo portanto natildeo

haacute nenhuma medida e fim do sofrimento (Schopenhauer 2005 399)

Se carecircncia vontade e desejo satildeo a tocircnica da vida humana na maior parte do tempo e

satildeo experimentados como dor e infelicidade a felicidade por sua vez eacute definida

negativamente como um momento de ausecircncia daquela dor

Sentimos a dor e natildeo a ausecircncia da dor a inquietude e natildeo a

tranquumlilidade o medo e natildeo a seguranccedila Sentimos desejo como quando

temos fome e sede entretanto ao alimentarmo-nos estas sensaccedilotildees

deixam de existir para noacutes (MVR II 630)

Toda satisfaccedilatildeo momentacircnea de um querer eacute imediatamente suprimida por outro querer

ou se perdurar por algum tempo por menor que seja este transforma-se em teacutedio Um

ldquopecircndulo entre a dor e teacutediordquo eacute a definiccedilatildeo que Schopenhauer propotildee para a vida

humana Assim se daacute tambeacutem com a sauacutede a juventude e a liberdade Todos satildeo

conceitos definidos negativamente soacute os conhecemos atraveacutes de sua ausecircncia Este afatilde

por prolongar e conservar a vida essecircncia iacutentima de cada indiviacuteduo natildeo eacute contudo

resultado de uma observaccedilatildeo objetiva da mesma de um conhecimento que eleja a vida

como algo de valor a ser mantido e preservado e portanto os ldquo[] seres natildeo satildeo

atraiacutedos por algo que se lhes apresenta mas satildeo empurrados a elerdquo (MVR II 398) A

luta eterna observada nos diversos reinos da natureza a busca por alimento o esforccedilo da

procriaccedilatildeo se comparados aos momentos fugazes de satisfaccedilatildeo fazem da vida ldquoum

negoacutecio cujos investimentos natildeo cobrem nem de longe os custosrdquo (MVR II 399)

Em todas estas consideraccedilotildees se faz claro que a vontade de viver

natildeo eacute a consequecircncia do conhecimento da vida natildeo se trata de uma

bdquoconclusio ex praemissis‟ nem em geral eacute algo secundaacuterio antes

contudo eacute o primeiro e incondicionado a premissa de todas as premissas

e precisamente por isso aquilo do que haacute de partir a filosofia pois a

vontade de viver natildeo se apresenta como a consequumlecircncia do mundo senatildeo

o mundo como consequumlecircncia da vontade de viver (MVR II 405)

Um dos pontos essenciais a ser verificado nesta visatildeo de mundo eacute o

destronamento da razatildeo O ceacuterebro oacutergatildeo da razatildeo eacute o resultado de um esforccedilo da

48

vontade em seu percurso de objetivaccedilatildeo A racionalidade humana estaacute a serviccedilo da

vontade que eacute em sua essecircncia grundlos A razatildeo eacute ferramenta para que o homem

enquanto objetidade da vontade consiga satisfazer a seus anseios Em oposiccedilatildeo agrave

filosofia racionalista de entatildeo onde o ldquoreal eacute o racionalrdquo assistimos ao surgimento de

uma filosofia irracionalista das forccedilas inconscientes onde a razatildeo na medida em que eacute

mecanismo da vontade estaacute sempre a serviccedilo desta O comportamento humano eacute

naturalmente egoiacutesta voltado para os proacuteprios interesses e estes por sua vez satildeo

expressatildeo desta vontade aloacutegica desprovida de telos Schopenhauer se mostrava

consciente da singularidade desta sua biparticcedilatildeo do ego e da consequumlente visatildeo de

mundo que ela trouxe agrave luz e enfatizou isto em seus manuscritos berlinenses ldquo[] a

divisatildeo da mente o eu em duas partes diferentes - em vontade como parte essencial e

primaacuteria e em intelecto como secundaacuteria - eacute o grande princiacutepio e meacuterito de minha

filosofia e tambeacutem a principal diferenccedila dos demais sistemasrdquo (MR III 328)

Temos entatildeo os dois pontos de vista do mundo que fundamentam a visatildeo de

Schopenhauer e que posteriormente seratildeo transformados pela teoria nietzscheana da

trageacutedia nos dois impulsos da natureza o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco O primeiro deles eacute o

mundo da individualidade da pluralidade regido pelo que Schopenhauer vai chamar

utilizando-se de um termo retirado da escolaacutestica de principium individuationis

Nesse sentido servindo-me da antiga escolaacutestica denomino

tempo e espaccedilo pela expressatildeo principium individuationis que peccedilo para

o leitor guardar para sempre Tempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais

aquilo que eacute uno e igual conforme a essecircncia e o conceito aparece como

pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem (MVR 171)

No segundo toto genere diferente do primeiro existe a vontade una indivisiacutevel natildeo

submetida ao princiacutepio de razatildeo e por isso sem fundamento

Em apoio a sua tese Schopenhauer invoca ao final do capiacutetulo 46 (Sobre a

nulidade e o sofrimento da vida) dos complementos de MVR a opiniatildeo de diversos

49

pensadores dentre eles Heroacutedoto Platatildeo Teoacutegnis Homero os tragedioacutegrafos gregos

Shakespeare Byron Voltaire Rousseau Faz-se importante neste momento ressaltar que

o filoacutesofo aponta a invenccedilatildeo da trageacutedia pelos gregos como uma expressatildeo desta visatildeo

de mundo ponto de vista que como veremos tambeacutem seraacute adotado pelo primeiro

Nietzsche

Ante tudo mencionarei que os gregos por mais distantes que

estivessem da visatildeo de mundo cristatilde e da alta Aacutesia e por muito que se

mantiveram sob o ponto de vista da afirmaccedilatildeo da vontade se fizeram

profundamente impressionados pela miseacuteria da existecircncia Isso eacute

demonstrado pela invenccedilatildeo da trageacutedia obra deles (MVR II 640)

23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana

Existe poreacutem uma forma de conhecimento que eacute ndash agrave diferenccedila daquela

subordinada ao princiacutepio de razatildeo que percebe os objetos em sua relaccedilatildeo com os outros

objetos do espaccedilo-tempo ndash uma forma mais universal pois mostra o objeto em sua

caracteriacutestica mais geral qual seja a de ser objeto para o sujeito A esta forma de

conhecimento Schopenhauer associa a apreciaccedilatildeo esteacutetica O seu objeto eacute a ideacuteia

platocircnica25

um grau determinado de objetivaccedilatildeo da coisa-em-si

Os diferentes graus de objetivaccedilatildeo da Vontade expressos em

inumeraacuteveis indiviacuteduos e que existem como seus protoacutetipos

inalcanccedilaacuteveis ou formas eternas das coisas que nunca aparecem no

tempo e no espaccedilo meacutedium do indiviacuteduo mas existem fixamente natildeo

submetidos a mudanccedila alguma satildeo e nunca vindo-a-ser enquanto as

coisas nascem e perecem sempre vecircm-a-ser e nunca satildeo os GRAUS DE

OBJETIVACcedilAtildeO DA VONTADE ia dizer natildeo satildeo outra coisa senatildeo as

IDEacuteIAS DE PLATAtildeO (MVR 191)

Esta instacircncia do conhecimento eacute alcanccedilada intuitivamente pela contemplaccedilatildeo

esteacutetica da natureza ou pela facilitaccedilatildeo de uma obra de arte Desta forma as obras de

25

Conforme o filoacutesofo ldquo A expressatildeo mais breve e sucinta daquele famoso dogma platocircnico foi dada por

Dioacutegenes Laeacutercio (II 12) Platatildeo ensina que as ideacuteias da natureza existem como protoacutetipos jaacute as demais

coisas apenas se assemelham a elas e satildeo suas coacutepiasrdquo (MVR 191)

50

arte na teoria schopenhaueriana satildeo uma exposiccedilatildeo destes graus de objetivaccedilatildeo da

vontade as ideacuteias Ao contraacuterio da criacutetica agrave arte presente na repuacuteblica platocircnica - onde a

arte seria uma coacutepia mais imperfeita da ideacuteia por retratar o mundo fenomecircnico sua

coacutepia direta - Schopenhauer aproxima as obras artiacutesticas das ideacuteias eternas as define

como suas expressotildees diretas Contudo a intuiccedilatildeo das ideacuteias exige um estado de

consciecircncia diferente do estado comum Neste uacuteltimo o aparelho cognitivo sob a eacutegide

da vontade estaacute voltado para a realizaccedilatildeo dos interesses individuais e entatildeo se

movimenta no mundo guiado por estes interesses ldquoCaso entretanto a Ideacuteia deva de

alguma maneira tornar-se conhecimento e ser conhecida pelo sujeito entatildeo isso soacute

pode ocorrer graccedilas agrave supressatildeo da individualidade no sujeito que conhecerdquo (MB 30)

A forma artiacutestica de conhecimento cujo possuidor eacute o denominado gecircnio estaacute

associada a um desprendimento das reacutedeas da vontade O gecircnio eacute entatildeo aquele que livre

dos interesses da vontade percebe as ideacuteias por traacutes dos objetos alheio aos princiacutepios

de razatildeo e de individuaccedilatildeo e traduz este objeto na obra de arte O observador esteacutetico eacute

portanto um partiacutecipe da genialidade na medida em que intui a ideacuteia por traz do objeto

observado conforme tambeacutem ao seu grau de desinteresse26

Durante a apreciaccedilatildeo

esteacutetica o homem se vecirc livre momentaneamente daquela parte de si que eacute a causadora

de todo o sofrimento individual e coletivo a vontade para transformar-se em um ldquopuro

sujeito de conhecimentordquo Este estado de satisfaccedilatildeo decorrente da suspensatildeo da vontade

individualizada eacute o sentimento do belo

Aquilo que se poderia nomear o lado mais belo e a pura alegria

da vida precisamente porque nos arranca da existecircncia real e nos

transforma em espectadores desinteressados diante dela eacute o puro

conhecimento que permanece alheio a todo querer eacute a fruiccedilatildeo do belo a

alegria autecircntica na arte Mas mesmo isso requer dispositivos raros e

cabe apenas a pouquiacutessimos e mesmo para estes eacute um sonho

passageiro (MVR 404)

26

Vemos nesta forma de associaccedilatildeo entre conhecimento e interesse mais uma heranccedila kantiana no caso

provinda da definiccedilatildeo de belo da criacutetica da faculdade de juiacutezo

51

- - - - - - - - - -

Ao descrever a apreciaccedilatildeo artiacutestica como um ato cognitivo Schopenhauer

preocupa-se em diferenciaacute-la do conhecimento cientiacutefico De fato boa parte das

consideraccedilotildees sobre a arte eacute dedicada ao esclarecimento desta diferenccedila

Podemos por conseguinte definir a arte como o modo de

consideraccedilatildeo das coisas independente do princiacutepio de razatildeo em oposiccedilatildeo

justamente agrave consideraccedilatildeo que o segue que eacute o caminho da experiecircncia e

da ciecircncia O modo de consideraccedilatildeo que seque o princiacutepio de razatildeo eacute o

racional o uacutenico que vale e que auxilia na vida praacutetica e na ciecircncia o

modo apartado do conteuacutedo do princiacutepio de razatildeo eacute o genial o uacutenico que

vale e que auxilia na arte (MB 59)

No caso da trageacutedia cujo objetivo eacute o conhecimento do homem e de suas relaccedilotildees a

ciecircncia que mais se assemelha a esta forma artiacutestica seria a histoacuteria Esta natildeo tem como

objetivo a demonstraccedilatildeo da essecircncia do homem em sua forma atemporal ou seja a

demonstraccedilatildeo daquilo que fundamenta toda accedilatildeo humana independente dos

acontecimentos empiacutericos

[ ]toda ciecircncia no sentido proacuteprio do termo compreendida como

conhecimento sistemaacutetico guiado pelo fio condutor do princiacutepio de

razatildeo parte sempre de dois dados baacutesicos um deles sem exceccedilatildeo eacute o

princiacutepio de razatildeo em uma de suas figuras como oacuterganon outro eacute o

objeto especiacutefico de cada uma delas enquanto problema (Schopenhauer

MVR 73)

Desta forma a histoacuteria teria a lei de motivaccedilatildeo e o os fatos humanos como oacuterganon e

problemas respectivamente Entretanto interessa a Schopenhauer um conhecimento

mais universal que soacute pode ser apresentado pela arte e que aponta por sua proximidade

agrave essecircncia daquilo que eacute a uma ldquoiacutendole imutaacutevelrdquo das manifestaccedilotildees

Podemos ver entatildeo que sendo consideradas como meios para o

conhecimento da essecircncia da humanidade arte poeacutetica e histoacuteria possuem todavia

objetos de conhecimento diferentes A primeira quando produzida pelo verdadeiro

gecircnio tenciona manifestar a ideacuteia por traacutes destes conceitos a ideacuteia de homem de

humanidade intuitivamente independentemente do princiacutepio de razatildeo do devir como

52

objeto puro de conhecimento alheio agrave corrente dos motivos em suas caracteriacutesticas

essenciais atemporais A histoacuteria por sua vez segue o rastro do princiacutepio de razatildeo

procurando apresentar o fenocircmeno humano em suas relaccedilotildees descrever-lhe em suas

situaccedilotildees particulares individuais empiacutericas Nas palavras de Schopenhauer

Arte e ciecircncia tecircm em uacuteltima instacircncia o mesmo estofo a saber

justamente o mundo tal como ele se posta diante de noacutes ou antes uma

parte destacada dele quanto ao todo do mundo soacute a filosofia o

considera Contudo a grande diferenccedila entre ciecircncia e arte reside na

maneira como elas consideram o mundo e trabalham seu estofo Tal

oposiccedilatildeo pode ser indicada com uma palavra a ciecircncia considera os

fenocircmenos do mundo seguindo o fio condutor do princiacutepio de razatildeo ao

passo que a arte coloca totalmente de lado o princiacutepio de razatildeo

independente dele para que assim a ideacuteia entre em cena

(SCHOPENHAUER MB 57)

Podemos notar que a valorizaccedilatildeo do que eacute imutaacutevel alheio agrave idealidade do tempo eacute a

raiz da valorizaccedilatildeo do conhecimento artiacutestico frente ao histoacuterico Este uacuteltimo natildeo visa o

acesso aos modelos eternos pois seu objeto satildeo os acontecimentos individuais do

mundo fenomecircnico que satildeo eventos meramente aparentes se considerarmos a

idealidade do tempo O que se manifesta no fluxo temporal do mundo fenomecircnico satildeo

sempre as mesmas formas eternas as ideacuteias entretanto com roupagens diferentes o

mesmo homem enquanto objetivaccedilatildeo da vontade a mesma humanidade Onde quer que

seja e em qualquer momento especiacutefico sua essecircncia eacute a mesma e esta essecircncia eacute o que

deve ser alvo de uma compreensatildeo privilegiada de entendimento e natildeo as suas diversas

manifestaccedilotildees Por este motivo Schopenhauer deixando explicito o seu chamado anti-

historicismo afirma que ldquose algueacutem jaacute lera Heroacutedoto jaacute estudara bastante histoacuteria e

efeitos filosoacuteficos Pois laacute jaacute estaacute tudo o que compotildee a posterior histoacuteria mundial a

atividade o obrar o sofrimento e o destino do gecircnero humano (Schopenhauer MVR

II 496) Podemos notar claramente a oposiccedilatildeo entre a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana

da histoacuteria e as tendecircncias de seu tempo principalmente presentes na filosofia de

Hegel Este de acordo com a criacutetica de Schopenhauer ignorando a filosofia critica de

53

Kant toma o fenocircmeno histoacuterico como coisa em si ao atribuir-lhe uma unidade de

consciecircncia Entretanto unidade de consciecircncia eacute um atributo dos indiviacuteduos e natildeo do

gecircnero humano Estas filosofias de acordo com o Schopenhauer satildeo frutos do realismo

otimista queldquo tomam o mundo como perfeitamente real e potildeem como fim do mesmo

uma miseraacutevel felicidade terrena (Schopenhauer MVR II 495)

- - - - - - - - - -

Colocando de lado o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e mirando-se no

conhecimento da ideacuteia imutaacutevel atemporal encontramos a trageacutedia como fenocircmeno que

apresenta agrave intuiccedilatildeo o homem e sua condiccedilatildeo Eacute a forma de arte que tem como objeto o

grau mais elevado de objetivaccedilatildeo da vontade A intenccedilatildeo do artista traacutegico eacute de acordo

com Schopenhauer transmitir a ideacuteia intuiacuteda tarefa que seraacute bem sucedida de acordo

com a habilidade de utilizaccedilatildeo da teacutecnica artiacutestica por um lado e com a capacidade de

percepccedilatildeo esteacutetica do apreciador por outro O tragedioacutegrafo diferentemente do

historiador que relata os fatos empiacutericos explicitando seus motivos e consequumlecircncias

deve para obter o efeito esperado em sua obra expor uma situaccedilatildeo tal em que o homem

possa manifestar todas as suas potencialidades e dessa forma transmitir ao apreciador

esteacutetico a ideacuteia representada ldquoO poeta expotildee com escolha e intenccedilatildeo caracteres

significativos em situaccedilotildees significativas jaacute o historiador toma aos dois como eles

aparecemrdquo (Schopenhauer MVR 323) A qualidade da obra traacutegica seraacute julgada entatildeo

pela sua capacidade de representaccedilatildeo da ideacuteia de humanidade e Schopenhauer qualifica

as trageacutedias de acordo com esta capacidade Natildeo existe em seu sistema uma

consideraccedilatildeo histoacuterica da produccedilatildeo traacutegica Ele natildeo leva em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees

histoacutericas no que se refere agrave origem ou mesmo quanto ao desenvolvimento desta forma

artiacutestica e a avalia unicamente conforme o seu efeito E neste ponto a trageacutedia apresenta

uma peculiaridade frente agraves demais artes ela eacute a forma de arte que provocaraacute o

54

sentimento do sublime Como vimos o correlato subjetivo de toda apreciaccedilatildeo esteacutetica eacute

o sentimento causado pela anulaccedilatildeo da vontade individual mediante a elevaccedilatildeo ao

estado de puro sujeito de conhecimento O sublime assim como o belo satildeo expressotildees

deste sentimento que se diferenciam unicamente por sua forma

Se tal estado surgiu por si mesmo na medida em que o objeto foi

solicitado e se apresentou ndash e fomos postos sem resistecircncia pelo mero

desaparecer da vontade da consciecircncia no estado do conhecer puro ndash ou

se primeiro foi despertado por elevaccedilatildeo livre consciente sobre a vontade

na medida em que o objeto contemplado tem com esta uma relaccedilatildeo

desfavoraacutevel hostil cuja prossecuccedilatildeo suprimiria a contemplaccedilatildeo ndash aiacute

reside a diferenccedila entre o belo e o sublime (MB 119)

A impressatildeo do sublime eacute portanto uma forma de colocar-se no estado do puro conhecer

ao nos depararmos com o objeto que por sua apresentaccedilatildeo sugere uma ldquorelaccedilatildeo hostilrdquo

com o indiviacuteduo27

Jaacute vimos que a visatildeo de mundo de Schopenhauer identifica a vida humana como

sofrimento infindaacutevel no entanto ao elaborar sua definiccedilatildeo da trageacutedia Schopenhauer

aponta para o desfecho moral de sua obra (livro IV de MVR) e afirma que a trageacutedia

melhor eacute aquela que expotildee a renuacutencia agrave vida O filoacutesofo compara obras contemporacircneas

agraves antigas e afirma sua preferecircncia por estas em decorrecircncia da capacidade que elas tecircm

de provocar esta a renuacutencia agrave vida Vejamos a descriccedilatildeo que Schopenhauer faz da

trageacutedia

No aacutepice da arte poeacutetica tanto no que se refere agrave grandeza do seu

efeito quanto agrave dificuldade da sua realizaccedilatildeo deve-se ver a trageacutedia e de

fato ela assim foi reconhecida Observe-se aqui algo de suma significaccedilatildeo

para toda a nossa visatildeo geral de mundo o objetivo dessa suprema

realizaccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute outro senatildeo a exposiccedilatildeo do lado terriacutevel da vida

27

Vemos na teoria do sublime Schopenhaueriana mais uma vez a influecircncia de Kant Schopenhauer iraacute

identificar duas formas de sublime e utilizar-se-aacute dos termos kantianos ldquosublime dinacircmicordquo e ldquosublime

matemaacuteticordquo para diferenciaacute-los No primeiro o objeto de apreciaccedilatildeo se mostra a princiacutepio uma ameaccedila

ao observador ldquoum poder que suprimiria qualquer resistecircnciardquo(MB 104) No sublime matemaacutetico o

segundo o objeto eacute visto em sua incomensuraacutevel grandiosidade diante da qual o observador infere a sua

infimidade A afinidade entre Schopenhauer e a teoria criacutetica do juiacutezo eacute expressa em sua obra principal

ldquoDe longe o que haacute de mais excelente na criacutetica da faculdade de juiacutezo eacute a teoria do sublime Ela eacute

incomparavelmente mais bem sucedida que a teoria do belo e daacute natildeo apenas como esta o meacutetodo geral

da investigaccedilatildeo mas tambeacutem um trecho do correto caminho de maneira que embora natildeo forneccedila a

soluccedilatildeo propriamente dita do problema chega bem perto delardquo(MVR 660)

55

a saber o inominado sofrimento a miseacuteria humana o triunfo da maldade

o impeacuterio ciacutenico do acaso a queda inevitaacutevel do justo e do inocente E

em tudo isso se encontra uma indicaccedilatildeo significativa da iacutendole do mundo

e da existecircncia Eacute o conflito da Vontade consigo mesma que aqui

desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade entra em

cena de maneira aterrorizante Ele se torna visiacutevel no sofrimento da

humanidade em parte produzido por acaso e erro que se apresentam

como os senhores do mundo e personificados como destino e perfiacutedia os

quais aparecem enquanto intencionalidade em parte advindo da

humanidade mesma por meio dos entrecruzados esforccedilos voluntaacuterios dos

indiviacuteduos e da maldade e perversatildeo da maioria Trata-se de uma uacutenica e

mesma Vontade que em todos vive e aparece cujos fenocircmenos

entretanto combatem entre si e se entredevoram [] Por fim esse

conhecimento no indiviacuteduo purificado e enobrecido pelo sofrimento

mesmo atinge o ponto no qual o fenocircmeno o veacuteu de maia natildeo mais o

ilude Ele vecirc atraveacutes da forma do fenocircmeno do principium

individuationis com o que tambeacutem expira o egoiacutesmo nele baseado Com

isso os ateacute entatildeo poderosos MOTIVOS perdem o seu poder e em vez

deles o conhecimento perfeito da essecircncia do mundo atuando como

quietivo da vontade produz a resignaccedilatildeo a renuacutencia natildeo apenas da vida

mas de toda a vontade de vida mesma (Schopenhauer MVR 333)

Percebemos nesta descriccedilatildeo que a trageacutedia aleacutem de expor a visatildeo de mundo construiacuteda

pelo filoacutesofo tem como fim uacuteltimo provocar um efeito moral no apreciador esteacutetico

qual seja a renuacutencia ao mundo Vejamos entatildeo a relaccedilatildeo entre a visatildeo de mundo

schopenhaueriana o efeito esteacutetico provocado pela trageacutedia e o projeto moral existente

por traacutes de suas teorias

24 A finalidade moral da trageacutedia

Para que possamos perceber a relaccedilatildeo intriacutenseca entre cosmologia metafiacutesica

arte e a eacutetica faz-se necessaacuterio uma pequena excursatildeo sobre esta uacuteltima Que todo o

sistema schopenhaueriano possui um viacutenculo inseparaacutevel com o seu projeto eacutetico eacute fato

que natildeo passa despercebido a seus comentadores Um projeto de juventude eacute descrito

por Safranski (1991 188-198) Young (2006 07 200) Aramayo (2001 56-59) e

Cartwright (Janaway 1999 252) como uma premissa no desenvolvimento da filosofia

56

schopenhaueriana trata-se do projeto de uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Young a descreve

como uma transcendecircncia do mundo ordinaacuterio para o ldquomundo verdadeirordquo Esta

consciecircncia melhor poderia ser experimentada atraveacutes da apreciaccedilatildeo artiacutestica e da

consciecircncia eacutetica ambas originadas do desvelamento de maia Assim Schopenhauer a

descreve conforme citaccedilatildeo de Young (2006 9) ldquopersonalidade e causalidade existem

neste mundo compreensiacutevel temporal sensorial Mas a consciecircncia melhor me leva a

um mundo onde nem personalidade nem sujeito ou objeto existem maisrdquo Safransky

descreve a consciecircncia melhor como um estado semelhante ao ecircxtase miacutestico

Este arrebatamento estaacute livre das coordenadas espaccedilo-temporais

cujo ponto de interseccedilatildeo eacute o eu corporal apartado do espaccedilo do tempo

do eu Os miacutesticos chamam a esta experiecircncia ldquonunc stansrdquo agora

permanente A intensidade deste presente natildeo conhece princiacutepio nem fim

e soacute pode desaparecer porque noacutes desaparecemos dele (Safransky1991

190)

Conforme Aramayo tanto a figura do gecircnio como a do santo satildeo expressotildees do

reconhecimento desta consciecircncia melhor e a filosofia de Schopenhauer pretende-se

uma terceira via que tambeacutem apontaria para este estado de consciecircncia A caracteriacutestica

primordial deste estado eacute o desprendimento dos desejos individuais e o comportamento

virtuoso que adveacutem deste desprendimento Eacute na esteira do entendimento desta

consciecircncia melhor que as bases eacutetico-metafiacutesicas do filoacutesofo foram elaboradas Em

apoio a esta afirmaccedilatildeo Aramayo apresenta duas citaccedilotildees a partir das quais em

momentos distintos de sua vida Schopenhauer apresenta seu projeto de identificaccedilatildeo

entre eacutetica e metafiacutesica Nos escritos de Juventude em 1813 vemos o projeto

Em meu espiacuterito encontra-se em gestaccedilatildeo uma filosofia onde

metafiacutesica e eacutetica devem constituir uma soacute coisa cuja dissociaccedilatildeo eacute tatildeo

errocircnea como agrave da alma e do corpo (Aramayo 2001 41)

Jaacute nos escritos tardios especificamente em seu ensaio de 1836 Sobre a vontade na

natureza veremos Schopenhauer identificar esta uniatildeo

57

Tatildeo soacute esta metafiacutesica que jaacute eacute eacutetica por si soacute ao estar construiacuteda

com esse material primordialmente eacutetico que se supotildee a vontade

constitui real e imediatamente um sustentaacuteculo para a eacutetica em vista de

que poderia haver colocado em minha metafiacutesica o nome de eacutetica (apud

Aramayo 2001 43)

Cartwright aponta ainda na uacuteltima obra schopenhaueriana de 1851 Parerga e

paralipomena a afirmaccedilatildeo de que a ldquosua real filosofia culminou em um ponto de vista

altamente eacutetico-metafiacutesicordquo (Janaway 1999 252)

Na filosofia schopenhaueriana como vimos o indiviacuteduo humano eacute uma

expressatildeo da objetidade da vontade e seu ponto de partida por natureza eacute a satisfaccedilatildeo

manutenccedilatildeo e o prolongamento desta vontade de vida Este estado de consciecircncia onde

todos os esforccedilos estatildeo voltados para a satisfaccedilatildeo da vontade individual eacute a causa de

todo o sofrimento do mundo Aprisionado agrave perspectiva fenomecircnica do mundo o

homem natildeo percebe a unidade da vontade e age de acordo com os motivos estabelecidos

pela sua proacutepria individualidade Para este homem existe uma separaccedilatildeo profunda entre

o proacuteprio eu e os objetos do mundo

Por meio da intuiccedilatildeo que o ceacuterebro efetua a partir dos dados do sentido

e portanto mediatamente conhecemos o proacuteprio corpo como um objeto no

espaccedilo e por meio do sentido interno conhecemos a seacuterie sucessiva de nossos

desejos e atos de vontade que surgem por ocasiatildeo dos motivos externos e

finalmente conhecemos os muacuteltiplos movimentos fortes ou fracos da proacutepria

vontade aos quais todos os sentimentos internos deixam-se reconduzir Isto eacute

tudo pois o conhecer natildeo eacute ele proacuteprio de novo conhecido (Schopenhauer

2001 213)

Eacute deste estado que surge todo o comportamento humano considerado pelo filoacutesofo

como comportamento antimoral Egoiacutesmo eacute o nome dado ao resultado da influecircncia do

princiacutepio de individuaccedilatildeo sobre o comportamento dos homens Este egoiacutesmo chega ao

extremo de o homem considerar-se o centro do mundo e transformar o seu querer em

mandamento para os objetos exteriores ldquoalguns homens seriam capazes de assassinar

um outro soacute para engraxar suas botas com a gordura delerdquo (SFM 124) Nestas

58

condiccedilotildees ldquose fosse dado pois a um indiviacuteduo escolher entre a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo

e a do mundo nem preciso dizer para onde a maioria se inclinariardquo (SFM 121) Da

forma como ocorre com o egoiacutesmo a ilusatildeo fenomecircnica daacute origem a outro sentimento

o oacutedio Estes dois egoiacutesmo e oacutedio satildeo os princiacutepios originadores de todos os viacutecios do

homem Desta leitura pessimista da natureza humana Schopenhauer retira seu conceito

perspectivista das ideacuteias de bem e mal satildeo consideradas boas ou maacutes as coisas que

agradam ou desagradam agrave vontade do indiviacuteduo ldquoPortanto tudo o que eacute favoraacutevel agrave

vontade em alguma de suas exteriorizaccedilotildees e satisfaz seus fins eacute pensado pelo conceito

bom por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectosrdquo (MVR 459)

Este estado eacute definido por Schopenhauer como ldquoafirmaccedilatildeo da vontaderdquo nele o amor-

proacuteprio Eros dita as regras de comportamento Definido o Eros enquanto

fundamentador das accedilotildees antimorais humanas sendo este surgido de uma percepccedilatildeo

subordinada ao principium individuationis entendemos o motivo pelo qual o filoacutesofo

rejeita a validade de qualquer moral baseada em argumentos abstratos

Uma moral sem fundaccedilatildeo portanto um simples moralizar natildeo pode

fazer efeito pois natildeo motiva Uma moral entretanto que motiva soacute pode fazecirc-

lo atuando sobre o amor proacuteprio O que entretanto nasce daiacute natildeo tem valor

moral algum Segue-se assim que mediante moral e conhecimento abstrato em

geral nenhuma virtude autecircntica pode fazer efeito mas esta tem de brotar do

conhecimento intuitivo o qual reconhece no outro indiviacuteduo a mesma essecircncia

que a proacutepria (MVR 468)

Desta forma em contraposiccedilatildeo ao comportamento antimoral produzido

pela ilusatildeo causada pelo principium individuationis o filoacutesofo apresenta o outro lado da

moeda a accedilatildeo moral Esta seria a accedilatildeo praticada em funccedilatildeo do bem-estar de um outro

indiviacuteduo tendo em vista que as accedilotildees praticadas em funccedilatildeo do mal-estar do outro ou

do bem e mal estar de si mesmo satildeo justamente as accedilotildees antimorais baseadas no

egoiacutesmo ou no oacutedio ldquoTodo amor que natildeo eacute compaixatildeo eacute amor-proacuteprio Amor-proacuteprio eacute

59

Eros compaixatildeo eacute Aacutegaperdquo (MVR 478) Todo ato moral eacute por consequumlecircncia um ato de

compaixatildeo ou seja um ato que eacute praticado a partir da percepccedilatildeo do sofrimento do

outro Entretanto a percepccedilatildeo do sofrimento alheio natildeo eacute dada atraveacutes do conhecimento

abstrato E somente por uma percepccedilatildeo intuitiva direta do sofrimento do outro como o

meu proacuteprio sofrimento que surge a compaixatildeo Tal percepccedilatildeo assim como a

apreciaccedilatildeo esteacutetica tem origem em uma visatildeo que vai aleacutem do principium

individuationis Desfaz-se a ilusatildeo causada por este princiacutepio de que existe em realidade

um eu e um natildeo-eu ilusatildeo essa que eacute originada pelos condicionantes do conhecimento

tempo espaccedilo e causalidade Livre do principium individuationis natildeo haacute mais

diversidade natildeo existe mais indiviacuteduo passado futuro motivaccedilotildees existe apenas o

instante presente do ser a vontade Natildeo nos vemos mais como uma vontade separada de

outras ao contraacuterio vemos nos outros a mesma vontade pela qual somos Necessaacuterio

faz-se ressaltar que este conhecimento intuitivo que demonstra a unidade da vontade

em todo indiviacuteduo eacute entendimento de verdade tatildeo profundo que supera qualquer

especulaccedilatildeo abstrata do conhecimento e por isso seu efeito eacute marcante

Para o conhecimento que vecirc atraveacutes do principium individuationis uma

vida feliz no tempo presenteada pelo acaso ou conquistada deste pela

sabedoria em meio ao sofrimento de inumeraacuteveis outros eacute apenas um sonho de

mendigo no qual eacute um rei poreacutem tem de acordar e reconhecer que era tatildeo-soacute

uma ilusatildeo fugidia aquilo que o separava do sofrimento da sua vida (MVR

452)

A experimentaccedilatildeo deste estado de consciecircncia faz-nos perceber a vida como engano

luta infinita e provoca em noacutes a renuacutencia a esta mesma vida agrave vontade de viver O

homem natildeo mais afirma a sua essecircncia mas a repudia

Agrave semelhanccedila do estado de negaccedilatildeo da vontade o proacuteprio estado de

contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee um desinteresse pelos mandamentos da vontade

60

individual um desligamento do caraacuteter egoiacutestico do sujeito empiacuterico28

Para que possa

perceber a Ideacuteia por traacutes do objeto contemplado o observador deve estar em um estado

de consciecircncia que se vecirc livre dos grilhotildees da vontade Neste estado ele eacute alccedilado para

aleacutem da individualidade torna-se puro sujeito de conhecimento Para que este estado se

manifeste eacute imprescindiacutevel natildeo estar interessado nas relaccedilotildees do objeto apreciado seja

com outros objetos seja consigo mesmo O apreciador esteacutetico natildeo se preocupa com o

ldquoonderdquo o ldquocomordquo o ldquoporquecircrdquo dos objetos Estas formas de interjeiccedilatildeo sinalizam para a

relaccedilatildeo dos objetos com o mundo O apreciador esteacutetico no momento da apreciaccedilatildeo

tem em vista somente o ldquoquerdquo do objeto transforma-se em um ldquoolho que vecircrdquo livre do

princiacutepio de individuaccedilatildeo eacute o puro sujeito de conhecimento Vemos nestes dois estados

(o esteacutetico e o compassivo) exemplos de estados de consciecircncia que por suas

caracteriacutesticas de alccedilarem o indiviacuteduo a uma anulaccedilatildeo do sofrimento fazem parte do

projeto de juventude de estabelecer uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Percebemos entatildeo que a

consideraccedilatildeo esteacutetica e a consideraccedilatildeo eacutetica possuem em comum esta caracteriacutestica da

consciecircncia de se apartar do princiacutepio de individuaccedilatildeo

No caso da trageacutedia como descreve Schopenhauer seu fim uacuteltimo eacute despertar a

compaixatildeo no apreciador Desta forma o filoacutesofo associa agrave trageacutedia um efeito singular e

adverso das demais artes ou pelo menos reconhece na trageacutedia a arte capaz de

demonstrar a semelhanccedila entre os modos de consideraccedilatildeo artiacutestico e eacutetico Ao ilustrar o

conflito das vontades no mundo atraveacutes da exposiccedilatildeo do sofrimento humano a trageacutedia

cumpre seu papel artiacutestico ao expor a ideacuteia de humanidade Aleacutem deste atributo

podemos dizer que a trageacutedia tem que cumprir ainda seu papel moral ao causar no

28

Neste ponto de semelhanccedila eacute fundamental apontar mais uma vez a heranccedila kantiana Nas palavras de

Barboza (2001 82) ldquoA negaccedilatildeo da Vontade diante da beleza realmente obedece a uma leitura do

conceito criacutetico de desinteresse Quando Kant diz que o belo eacute aquilo que satisfaz bdquosem nenhum

interesse‟ o autor de O mundo leu essa expressatildeo como equivalente da negaccedilatildeo do querer visto que

interesse e motivo satildeo conceitos intercambiaacuteveis [] e a vontade neutraliza-se desinteressa-se ou seja eacute

indeterminaacutevel por motivos na contemplaccedilatildeo da Ideacuteia do belordquo

61

espectador a renuacutencia a toda vontade O modelo exemplar da trageacutedia eacute para

Schopenhauer a trageacutedia cristatilde onde o heroacutei conscientemente abandona o querer e

conseguintemente a vida Na trageacutedia antiga havia somente a identificaccedilatildeo do

sofrimento humano e sua exposiccedilatildeo A renuacutencia agrave vontade de vida eacute caracteriacutestica das

trageacutedias posteriores ao advento cristatildeo Schopenhauer exemplifica O priacutencipe de

Calderoacuten Gretchen em Fausto A Donzela de Orleans a Noiva de Messina etc Assim

ldquotoda a exposiccedilatildeo traacutegica eacute para o espectador um chamado agrave resignaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo livre

da Vontade de vida Somente a eacutetica pode tornar tudo isso mais compreensiacutevelrdquo (MB

223) Vemos entatildeo de forma clara na teoria da trageacutedia de Schopenhauer um momento

onde ocorre a coalizatildeo dos fundamentos metafiacutesicos de sua filosofia do pessimismo

originado nestes fundamentos e da atitude eacutetica existente por traacutes de seu pensamento

25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera

Faz-se necessaacuterio aqui uma incursatildeo sobre a teoria da muacutesica de Schopenhauer

tendo em vista de que ela ocuparaacute um papel decisivo na teoria nietzscheana da trageacutedia

As relaccedilotildees que Nietzsche estabelece entre a muacutesica a vontade as palavras e

finalmente a trageacutedia satildeo delineadas como veremos pela metafiacutesica schopenhaueriana

da muacutesica No intuito de perceber estas relaccedilotildees propomos aqui um breve esboccedilo da

teoria da muacutesica na filosofia de Schopenhauer

A filosofia da muacutesica encontra seu lugar ao final do terceiro livro de MVR bem

como no capiacutetulo 39 dos complementos fechando assim as consideraccedilotildees de

Schopenhauer sobre a metafiacutesica do belo e as artes29

29

Na esteira de Lydia Goehr (Jacquette 1996 200) ressaltamos que tendo em vista a influecircncia que sua

filosofia da muacutesica exerceu sobre o pensamento artiacutestico e filosoacutefico posterior e comparada agrave dimensatildeo

de sua obra as consideraccedilotildees sobre a muacutesica ocupam um espaccedilo diminuto em sua obra

62

Para o filoacutesofo da vontade a muacutesica eacute a arte que pela natureza de seu objeto de

expressatildeo natildeo encontra lugar apropriado dentro do sistema das demais artes Estas

conforme sua competecircncia em traduzir uma determinada objetidade da vontade uma

ideacuteia satildeo classificadas hierarquicamente A muacutesica entretanto figura aleacutem desta

hierarquizaccedilatildeo pois representa o conceitualmente irrepresentaacutevel ldquoa coacutepia de um

modelo que ele mesmo nunca pode ser representado imediatamenterdquo(MVR 338) a

Vontade mesma Esta arte eacute especialmente considerada devido agrave peculiaridade uacutenica de

seu efeito esteacutetico ldquoeacute uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente

sobre o mais iacutentimo do homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele

como se fora uma linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do

mundo intuitivordquo (MVR 336) A muacutesica estaacute aleacutem da intuiccedilatildeo pois representa aquilo

que estaacute aleacutem desta forma agrave semelhanccedila das ideacuteias que satildeo objetivaccedilotildees imediatas da

vontade a muacutesica eacute tambeacutem uma destas objetivaccedilotildees representaccedilatildeo imediata da coisa

em si O que o compositor apresenta atraveacutes da muacutesica eacute a essecircncia mais iacutentima do

mundo em uma ldquolinguagem natildeo compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo

magneacutetico fornece informaccedilotildees sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito

algumrdquo (MVR 342) Por estar em um acircmbito inalcanccedilaacutevel pelo conceito a muacutesica

atraveacutes de sua linguagem arrebata o homem de forma mais marcante e direta e ateacute

mesmo a explanaccedilatildeo sobre a muacutesica estaacute condenada agrave pobreza e agrave insuficiecircncia Desta

forma o filoacutesofo se utilizaraacute de uma analogia para explanar sobre a muacutesica ie

procederaacute a uma explicaccedilatildeo da muacutesica atraveacutes de um paralelismo entre ela as ideacuteias e o

mundo enquanto objetivaccedilotildees da vontade

Esta analogia expressa atraveacutes de diversos exemplos leva em consideraccedilatildeo que

em suas duas formas de objetivaccedilatildeo (o mundo e a muacutesica) a Vontade deixa transparecer

semelhanccedilas Na muacutesica os tons mais graves aproximam-se ao que satildeo no mundo os

63

graus mais baixos de objetivaccedilatildeo da vontade quais sejam a natureza inorgacircnica A lei

da harmonia estabelece que os tons agudos satildeo originados daquele tom mais grave

fundamental Da mesma forma no mundo os corpos tecircm como fonte e sustentaacuteculo a

natureza inorgacircnica ldquoagrave partir da qual tudo se eleva e desenvolverdquo(MB 230) As vozes

intermediaacuterias da melodia que estatildeo entre o baixo fundamental e a voz condutora

correspondem no mundo aos demais graus de objetivaccedilatildeo da vontade na natureza ldquoAs

vozes mais proacuteximas do baixo correspondem aos graus mais baixos ou seja os corpos

ainda inorgacircnicos poreacutem jaacute se exteriorizando de diversas maneiras As vozes mais

elevadas por sua vez representam os reinos vegetal e animalrdquo(MB 231)

O objeto de representaccedilatildeo da muacutesica eacute a Vontade e esta por sua vez eacute

intraduziacutevel atraveacutes das palavras da configuraccedilatildeo racional pois a razatildeo natildeo pode

alcanccedilar sua profundidade Trata-se de ldquouma linguagem universal cuja

compreensibilidade eacute inata e cuja clareza ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo

(MB 228) Diante desta caracteriacutestica cognitiva a muacutesica natildeo deve se inspirar no texto

nas palavras a natildeo ser para ilustraacute-las e conceder-lhes assim significaccedilatildeo mais

profunda A muacutesica natildeo deve ser composta com base em conceitos ou em objetos e

ocorrecircncias do mundo pois trata-se de uma expressatildeo da ordem do essencial do

universal ldquoela eacute a alma mais interior dessas ocorrecircncias sem o corpordquo (MB 235) Os

objetos e situaccedilotildees do mundo satildeo manifestaccedilotildees e portanto sua representaccedilatildeo

conceitual satildeo reproduccedilotildees circunstanciais da essecircncia do mundo expressa pela muacutesica

Daiacute se compreende o fato de a muacutesica realccedilar em cada

pintura sim em cada cena da vida efetiva e do mundo o

aparecimento de uma significaccedilatildeo mais elevada e tanto mais

quanto mais anaacuteloga eacute sua melodia ao espiacuterito iacutentimo do

fenocircmeno dado A muacutesica combina com tudo em todas as

exposiccedilotildees Nada lhe pode ser estranho pois exprime a essecircncia

de todas as coisas Caso se soe uma muacutesica que combine com

alguma cena da vida humana ou da natureza destituiacuteda de

conhecimento ou com alguma accedilatildeo acontecimento ambiente ou

64

alguma imagem ndash entatildeo ela revela o sentido secreto dessa cena e eacute

seu comentaacuterio mais correto e claro (MB 235)

Esta caracteriacutestica que daacute agrave muacutesica um privileacutegio cognitivo sobre as demais formas

artiacutesticas eacute o que delineia as consideraccedilotildees do filoacutesofo sobre a oacutepera30

A oacutepera ideal eacute

portanto aquela onde o livreto estaacute para a muacutesica como um exemplo para um conceito

geral A muacutesica tem a funccedilatildeo de expor ldquoo profundo e misterioso sobre a essecircncia

iacutentimardquo daquilo que a palavra exemplifica O compositor que maior ecircxito conseguiu

neste sentido conforme o filoacutesofo foi Rossini cuja ldquomuacutesica fala tatildeo distinta e

puramente a sua linguagem PROacutePRIA visto que quase natildeo precisa de palavras e por

conseguinte provoca todo o seu efeito mesmo se executada soacute com instrumentosrdquo

(MVR 344)

Vemos entatildeo a muacutesica como a mais profunda das artes cujo efeito eacute o mais

avassalador e que portanto quando conjugada com outras formas de expressatildeo como a

oacutepera deve formar a base e orientar a sua elaboraccedilatildeo Entretanto ao contraacuterio da

trageacutedia cujo fim eacute o estiacutemulo agrave renuacutencia da vontade de viver a muacutesica segundo a

metafiacutesica exposta por Schopenhauer ldquonatildeo faz mais do que agradar a vontade de viver

jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo seus ecircxitos e ao final expressa sua

satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509)

30

ldquoAo adotar esta atitude Schopenhauer transtorna toda a tradiccedilatildeo jaacute secular que havia afirmado natildeo

poucas vezes desde os tempos do nascimento da oacutepera o predomiacutenio da palavra sobre a muacutesica e em

consequumlecircncia a subordinaccedilatildeo desta uacuteltima agrave primeirardquo (Fubini 1988 289)

65

3 A teoria da trageacutedia do Jovem Nietzsche

Debalde espreitamos por uma raiz

vigorosamente ramificada por um pedaccedilo

de terra sadia e feacutertil por toda parte poacute

areia rigidez consunccedilatildeo Aqui um

solitaacuterio desconsolado natildeo poderia escolher

melhor siacutembolo do que o Cavaleiro com a

Morte e o Diabo como Duumlrer o desenhou o

cavaleiro arnesado com o olhar duro

brocircnzeo que sabe tomar o seu caminho

assustador imperturbado por seus

hediondos companheiros e natildeo obstante

desesperanccedilado sozinho com o seu corcel e

o seu catildeo Um tal cavaleiro duumlreriano foi

nosso Schopenhauer faltava-lhe qualquer

esperanccedila mas queria a verdade Natildeo haacute

quem se lhe iguale

(Nietzsche)

Neste capiacutetulo procuraremos apontar primeiramente o modo pelo qual se deu o

encontro entre Nietzsche e a filosofia de Schopenhauer Em um segundo momento

percorreremos o desenvolvimento histoacuterico das produccedilotildees nietzscheanas que

culminaram com a publicaccedilatildeo da obra que caracteriza o primeiro periacuteodo do filoacutesofo

qual seja O nascimento da trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica Concluiremos entatildeo

apresentando um esboccedilo desta obra dando ecircnfase em todos os momentos aos

66

elementos que caracterizam sua teoria da trageacutedia especialmente agravequeles relacionados agrave

metafiacutesica schopenhaueriana da vontade

31 Schopenhauer e o jovem Nietzsche uma breve contextualizaccedilatildeo histoacuterica

Foram nos anos de universidade em Leipzig que Nietzsche se deparou com a

filosofia de Schopenhauer Este periacuteodo entre os anos de 1865 e 1869 eacute especialmente

importante devido ao fato de que nele podemos assistir ao surgimento de alguns

aspectos fundamentais ao projeto filosoacutefico de Nietzsche Janz descreve este periacuteodo

como aquele em que o filoacutesofo estabeleceu ldquoseus encontros espirituais determinantes a

partir dos quais se defrontou consigo mesmo e com sua tarefardquo(1987 151)

O primeiro contato do jovem Nietzsche com o mundo schopenhaueriano deu-se

em meados de outubro de 1865 pouco tempo apoacutes sua chegada a Leipzig O

arrebatamento causado no jovem estudante de filologia pelo encontro com a filosofia

schopenhaueriana eacute descrito por ele apoacutes dois anos da seguinte maneira

Sentia-me naquela eacutepoca desorientado solitaacuterio sem

princiacutepios sem esperanccedilas inconsolado e com algumas

experiecircncias dolorosas e decepccedilotildees Construir uma vida proacutepria e

adequada era para mim uma aspiraccedilatildeo que me ocupava da manhatilde

ateacute a noite No feliz apartamento em que vivia procurava

concentrar-me a mergulhar em mim mesmo e quando me

encontrava com amigos estes eram sempre Mushacke e Von

Gersdorff os quais por sua parte alentavam objetivos muito

semelhantes aos meus Creio que natildeo seraacute difiacutecil imaginar a

impressatildeo que nesta situaccedilatildeo me causou a leitura da obra

principal de Schopenhauer Encontrei um dia este livro no sebo do

velho Rohm Ignorando tudo sobre ele o tomei em minhas matildeos e

me pus a folheaacute-lo Natildeo sei que democircnio me sussurrou bdquoleve este

livro para a casa‟ Aconteceu de compraacute-lo apesar do meu usual

costume de natildeo me precipitar na compra de livros Uma vez em

casa num canto do sofaacute me lancei sobre o tesouro receacutem

adquirido e comecei a deixar que aquele gecircnio eneacutergico e sombrio

influiacutesse sobre mim Em cada linha sua gritava a renuacutencia

negaccedilatildeo resignaccedilatildeo tinha diante de mim um espelho no qual

podia contemplar o mundo a vida e meu proacuteprio acircnimo com uma

67

grandeza deprimente Um espelho desde o qual o olho solar da

arte me mirava desde sua absoluta falta de interesse Vi

enfermidade e cura desterro e refuacutegio inferno e paraiacuteso A

necessidade de autoconhecimento inclusive de auto-

experimentaccedilatildeo apoderou-se de mim com forccedila indomaacutevel

provas daquela mutaccedilatildeo profunda satildeo hoje todavia para mim as

paacuteginas desassossegadas e melancoacutelicas do diaacuterio que agravequela

eacutepoca escrevi com suas auto-acusaccedilotildees inuacuteteis e sua desesperada

busca de salvaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do inteiro nuacutecleo humano Na

medida em que propus a submeter todas as minhas caracteriacutesticas

e aspiraccedilotildees ao tribunal de uma sombria auto-depreciaccedilatildeo minha

atitude estava cheia de amargura possuiacuteda de um oacutedio injusto e

desenfreado contra mim mesmo Nem sequer renunciei agraves

mortificaccedilotildees corporais Obriguei-me com efeito durante

quatorze dias seguidos a deitar-me agraves duas da noite e acordar agraves

seis da manhatilde Uma excitaccedilatildeo nervosa muito singular se apoderou

assim de mim e quem sabe ateacute que grau de loucura haveria

chegado se natildeo tivesse modificado frente agravequele estado de

acircnimo os atrativos da vida da vaidade e o imperativo de retornar

a meus estudos regulares (conforme citaccedilatildeo de Janz 1987 158)

Da citaccedilatildeo podemos inferir a mudanccedila de acircnimo que o encontro com

Schopenhauer provocou A partir daquele momento diversas correspondecircncias datildeo-nos

ainda informaccedilotildees do impacto que a filosofia de Schopenhauer provocou na concepccedilatildeo

de mundo do jovem estudante Em algumas destas correspondecircncias vemos transparecer

a influecircncia atraveacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio schopenhaueriano bem

como das ideacuteias nelas expressas Assim acontece em carta enviada agrave sua matildee e irmatilde

datada de 5 de novembro de 1865 onde ao discorrer acerca da frivolidade da vida

humana o jovem Nietzsche conclui utilizando-se dos argumentos propostos pela eacutetica

schopenhaueriana

Existem dois caminhos ou se esforccedila e se acostuma a ser

o mais limitado que se possa e uma vez que se reduz o maacuteximo

possiacutevel a luz do espiacuterito se busque bens de fortuna e se viva com

os prazeres do mundo ou por outro lado se sabe que a vida eacute

miseraacutevel se sabe que somos seus escravos tanto mais quanto

mais procuramos dela gozar e por tanto se desprende dos bens da

vida exercita a sobriedade e se eacute austero consigo mesmo e cordial

com os demais ndash e isto porque sente compaixatildeo pelos

companheiros de miseacuteria ndash em uma palavra se vive de acordo

68

com as rigorosas exigecircncias do cristianismo primitivo (OC

470)

Vemos ainda em carta a Mushacke em 12 de julho de 1866 o impacto que a

interpretaccedilatildeo schopenhaueriana pessimista de mundo causou em Nietzsche ldquoDesde que

Schopenhauer nos retirou dos olhos a venda do otimismo as coisas satildeo percebidas

mais agudamente A vida eacute mais interessante ainda que mais feiardquo (conforme citaccedilatildeo

de Janz 1987 172) Percebemos tambeacutem a linguagem schopenhaueriana na descriccedilatildeo

dos momentos de contemplaccedilatildeo Eacute o caso da carta datada de 07 de abril de 1866 a

Gersdorf onde Nietzsche descreve seu estado que nos remeteraacute agrave contemplaccedilatildeo

artiacutestica na filosofia de Schopenhauer ao discorrer sobre os dias de veratildeo ldquo[] a

natureza se faz perfeita e noacutes tambeacutem entatildeo nos sentimos livres do poderio da vontade

sempre alerta e somos olho puro intuitivo desinteressadordquo (OC 472)

Estas influecircncias nortearam de forma definitiva as produccedilotildees acadecircmicas de

Nietzsche mesmos suas pesquisas filoloacutegicas A concepccedilatildeo traacutegica do mundo tornou-se

um feixe condutor para as reflexotildees do jovem filoacutelogo Seus companheiros no estudo da

obra de Schopenhauer eram Gersdorff e Mushacke Em carta agrave sua matildee de 01 de

fevereiro de 1866 Nietzsche deixa saber sobre a frequumlecircncia dos estudos ldquoCom

Gersdorff me encontro uma noite por semana para ler grego a cada duas semanas me

reuacuteno com ele e com Mushacke e nos entregamos a Schopenhauer Este filoacutesofo ocupa

uma posiccedilatildeo importante em meus pensamentos e estudos e meu respeito por ele cresce

incomparavelmenterdquo (OC 471) Se o conteuacutedo da filosofia schopenhaueriana foi

absorvido intensamente pelo jovem Nietzsche como podemos ver a partir dos trechos

transcritos acima a forma estiliacutestica tambeacutem se configura como preocupaccedilatildeo Em um

periacuteodo onde as pesquisas acadecircmicas exigiam o esforccedilo da escrita ali tambeacutem a

autoridade das regras schopenhauerianas exibia sua feiccedilatildeo Eacute tambeacutem em uma carta a

69

Gersdorff datada de 06 de abril de 1867 onde Nietzsche expotildee sua preocupaccedilatildeo com o

estilo

Nestas divagaccedilotildees quero redigir meu trabalho sobre as

fontes de Dioacutegenes Laeacutercio e estou todavia no iniacutecio Para seu

regozijo confessarei que o que mais me daacute trabalho eacute meu estilo

em alematildeo Agora me caem os veacuteus dos olhos e vejo que

durante muito tempo vivi em estado de inocecircncia estiliacutestica O

imperativo categoacuterico bdquodeves escrever‟ me foi despertado[] nos

ouvidos me soavam todos os preceitos estiliacutesticos de Lessing de

Lichtenberg e de Schopenhauer Meu uacutenico consolo eacute que estas

trecircs autoridades afirmavam unanimemente que eacute difiacutecil escrever

bem que por natureza ningueacutem tem um bom estilo e que haacute que

trabalhar e trabalhar para consegui-lo (OC 476)

Entretanto apesar do profundo arrebatamento causado pela filosofia de

Schopenhauer que fez com que o universo das preocupaccedilotildees do entatildeo jovem Nietzsche

se fundamentasse nos pressupostos da metafiacutesica schopenhaueriana outros elementos

tambeacutem fundamentais para o pensamento futuro do filoacutesofo foram tambeacutem neste

periacuteodo despertados Como apontam Dias (2009 42) Janaway (2007 16) e Lopes

(2008 27) jaacute neste periacuteodo que podemos tratar como um periacuteodo de despertar para o

pensamento filosoacutefico encontraacutevamos os elementos que a partir de Humano demasiado

humano conformaratildeo a criacutetica nietzscheana agrave filosofia de Schopenhauer Os

comentadores citados chamam a atenccedilatildeo para o fato de que embora nas obras

publicadas de Nietzsche possamos assistir a criacuteticas diretas a Schopenhauer somente

apoacutes Humano demasiado humano tais criacuteticas agrave filosofia schopenhaueriana surgiram

em um momento imediatamente posterior agrave descoberta da metafiacutesica da vontade Rosa

Maria Dias chama a atenccedilatildeo para os fragmentos poacutestumos e para a correspondecircncia que

agrave partir de 1867 trazem algumas criacuteticas agrave metafiacutesica da vontade Rogeacuterio Lopes e

Cristopher Janaway apontam que algumas destas criacuteticas estatildeo embasadas nas leituras

que o jovem Nietzsche fez de Friedrich A Lange Rudolf Haym Kuno Fischer dentre

outros Tais criacuteticas contudo natildeo afastaram o jovem Nietzsche do discipulado

70

schopenhaueriano mas transformaram sua aceitaccedilatildeo do sistema da vontade No lugar de

uma defesa da consistecircncia loacutegica do sistema Nietzsche passou a adotar uma postura de

defesa da bdquonatureza edificante‟ e preponderantemente artiacutestica deste sistema Exemplos

desta postura podem ser encontrados tambeacutem na correspondecircncia daquele periacuteodo

Para escrever uma apologia a Schopenhauer eu tenho

unicamente que considerar o fato de que olho esta vida livre e

bravamente diante do fato de que encontrei um suporte para me

apoiar obviamente que isto natildeo eacute mais que uma apologia

totalmente individual Mas eacute como as coisas satildeo Se algueacutem

deseja refutar Schopenhauer para mim atraveacutes de argumentos

racionais murmuro em seu ouvido bdquoporeacutem meu amigo visotildees de

mundo natildeo satildeo criadas nem destruiacutedas pela loacutegica‟ (carta a

Deussen Outubro-Novembro de 1867 citada por Janaway

(200718))

Ou ainda em carta a Gersdorff onde apoacutes apresentar a criacutetica de Lange agrave metafiacutesica da

vontade Nietzsche conclui contra Haym ainda com os argumentos de Lange

Natildeo apenas a verdadeira essecircncia das coisas a coisa em si

eacute desconhecida para noacutes tambeacutem seu conceito eacute nada mais nada

menos que o uacuteltimo rebento de um contraste condicionado por

nossa organizaccedilatildeo do qual natildeo sabemos se conserva algum

significado fora de nossa experiecircncia Disso resulta pensa Lange

que os filoacutesofos natildeo devem ser importunados na medida em que

nos edificam A arte eacute livre tambeacutem na regiatildeo dos conceitos

Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro

uma Madonna de Rafael Como vocecirc pode perceber o nosso

Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista

criacutetico ele se torna quase ainda mais valioso para noacutes Se filosofia

eacute arte entatildeo que Haym se anule diante de Schopenhauer se a

filosofia deve edificar entatildeo eu pelo menos natildeo conheccedilo nenhum

filoacutesofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer (apud

Lopes 2008 86-87)

Vimos ateacute entatildeo que a descoberta de Schopenhauer provocou no jovem

estudante de filologia transformou sua forma de perceber o mundo e o influenciou de

forma definitiva a ponto de fazer com que Nietzsche se definisse como um seguidor e

divulgador da obra schopenhaueriana Contudo eacute no fim de seus anos de estudo em

Leipzig que o disciacutepulo de Schopenhauer iraacute se defrontar com a personalidade que lhe

71

reforccedilaraacute de forma ainda mais contundente o selo da rotunda schopenhaueriana

Richard Wagner

Foi atraveacutes de seu amigo Brockhaus cuja esposa era irmatilde do muacutesico que em

novembro de 1868 Nietzsche encontrou-se pela primeira vez com Wagner A partir

daquele encontro se estabeleceria um relacionamento que de uma forma ou de outra

marcaraacute Nietzsche pelo resto de sua vida Em uma carta a seu amigo Erwin Rohde

Nietzsche descreve o primeiro encontro e sua perplexidade ao encontrar em Wagner um

admirador de Schopenhauer ldquo[]mantive com ele uma longa conversa sobre

Schopenhauer Ah Compreenderaacutes minha felicidade em ouvir-lhe falar com um

entusiasmo completamente indescritiacutevel ao qual ele agradecia como Schopenhauer

era o uacutenico filoacutesofo que havia compreendido a essecircncia da muacutesicardquo (Correspondecircncia

2007 21) A impressatildeo deste encontro eacute tambeacutem claramente visiacutevel atraveacutes de

correspondecircncia endereccedilada ao proacuteprio Wagner em maio de 1869 ldquoVeneradiacutessimo

senhor quanto tempo tive a intenccedilatildeo de lhe manifestar sem nenhuma timidez o grau de

gratidatildeo que sinto em relaccedilatildeo ao senhor pois realmente os melhores e mais elevados

momentos de minha vida se ligam ao seu nome e eu soacute conheccedilo mais um homem aleacutem

disso seu grande irmatildeo em espiacuterito Arthur Schopenhauer em quem penso com a

mesma veneraccedilatildeo ateacute senso religiosordquo (Correspondecircncia 2007 56) Como podemos

ver a pessoa de Wagner eacute associada agrave de Schopenhauer Esta associaccedilatildeo tornar-se-aacute

uma constante e poderaacute ser identificada ainda na fase tardia onde as criacuteticas a estes

pensadores e ao que eles entatildeo representavam se daraacute de forma inter-relacionada Este

primeiro encontro com Wagner conforme Janz (1987 22) foi um dos principais

motivos que levaram Nietzsche a aceitar em detrimento de outros planos que

formulava assumir a caacutetedra de filologia em Basel A proximidade de Tribschen

residecircncia dos Wagner e a possibilidade de uma convivecircncia com o muacutesico o

72

inspiraram E assim aconteceu Ao mudar-se para Basel pocircde desfrutar de uma

convivecircncia constante com o casal Wagner Desde a chegada de Nietzsche ateacute a

mudanccedila de Wagner em 1872 encontravam-se com muita frequumlecircncia e os assuntos que

pautavam tais encontros eram amiuacutede arte muacutesica a literatura claacutessica e a filosofia de

Schopenhauer Wagner tornar-se-ia para Nietzsche a personificaccedilatildeo do gecircnio

schopenhaueriano aquele capaz de atraveacutes da muacutesica expor a essecircncia do mundo No

projeto wagneriano de ldquoarte totalrdquo Nietzsche pocircde vislumbrar a uniatildeo entre muacutesica e

filosofia e satisfazer assim em certa medida as expectativas oriundas da metafiacutesica da

vontade

32 O projeto subjacente ao Nascimento da Trageacutedia

Eacute famosa a passagem onde Nietzsche em carta a Deussen datada de janeiro de

1870 informa sobre seu estado de espiacuterito ldquo Ciecircncia arte e filosofia crescem agora

juntas em mim e de tal modo que um dia haverei de parir centaurosrdquo (Janz 1981 66)

Esta afirmaccedilatildeo eacute ilustrativa no que se refere ao ambiente onde o Nascimento da trageacutedia

foi gerado Podemos identificar claramente as figuras por detraacutes dos termos filosofia

arte e ciecircncia satildeo elas Schopenhauer Wagner e a filologia claacutessica Neste periacuteodo

Nietzsche entatildeo jovem professor de filologia estava imbuiacutedo pela pretensatildeo de poder

unir os estudos filoloacutegicos aos filosoacuteficos Sua preleccedilatildeo inicial Homero e a filologia

claacutessica em Basel nos daacute uma amostra desta pretensatildeo Ali podemos assistir a uma

aproximaccedilatildeo entre filologia e filosofia atraveacutes da proposta de uma leitura filosoacutefica do

mundo antigo ldquoCom isto quero expressar que toda atividade filoloacutegica deve estar

impregnada de uma concepccedilatildeo filosoacutefica do mundo na qual todo o particular e singular

seja visto como algo sem proveito e soacute permaneccedila de peacute a unidade do todordquo (OC 26)

73

Sua escolha por trilhar caminhos mais proacuteximos agrave filosofia pode tambeacutem ser observada

pela tentativa frustrada de ocupar uma cadeira desta disciplina que se mostrou livre em

janeiro de 1871 Se por um lado podemos diagnosticar certa decepccedilatildeo e ateacute um

determinado desacircnimo na atividade acadecircmica por outro lado os laccedilos com os Wagner

se estreitavam cada vez mais No refuacutegio de Tribschen sob a aura de Richard Wagner

Nietzsche discorria sobre o mundo grego enquanto modelo de cultura e ouvia os planos

wagnerianos sobre seu projeto de uma obra de arte total Como pano de fundo destas

discussotildees a metafiacutesica da muacutesica schopenhaueriana e sua concepccedilatildeo traacutegica do mundo

Eacute em torno destes eixos formadores que vemos se materializar a primeira publicaccedilatildeo de

Nietzsche

O desenvolvimento das ideacuteias que formaratildeo a obra contudo se deu de forma

gradual Ao longo do periacuteodo compreendido entre a chegada de Nietzsche a Basel e a

publicaccedilatildeo de seu livro determinados trabalhos deixam transparecer o delineamento de

algumas das ideacuteias centrais da obra Satildeo eles O drama musical grego Soacutecrates e a

trageacutedia A visatildeo dionisiacuteaca do mundo e Introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles31

Em o drama musical grego conferecircncia puacuteblica datada de janeiro de 1870

Nietzsche efetua uma comparaccedilatildeo entre a arte traacutegica da antiguidade e as oacuteperas

modernas Estas de acordo com o filoacutesofo satildeo uma imperfeita ldquocaricatura do drama

musical antigordquo (VD 48) Muacutesica pintura escultura e poesia formavam um todo na

arte traacutegica da antiguidade Nas artes modernas por sua vez as formas artiacutesticas satildeo

fragmentadas fato que dificulta o entendimento da trageacutedia grega e que causaria

espanto ao apreciador de arte moderno A muacutesica teria para a trageacutedia antiga uma

31

Como ressaltam M S Silk e J P Stern em sua obra Nietzsche on tragedy (1981 59) o nascimento da

trageacutedia eacute composto de forma estrutural pelos conceitos encontrados nestes trabalhos O iniacutecio do livro

(sectsect1-10) eacute substancialmente baseado no ensaio a visatildeo dionisiacuteaca do mundo enquanto a sequumlecircncia

composta pelos paraacutegrafos 5 e 6 estaacute mais proacutexima da introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles O trecho

composto pelos paraacutegrafos 11 a 14 pode ser derivado diretamente da leitura Soacutecrates e a trageacutedia O resto

do livro eacute formado por uma amaacutelgama destes escritos Partes dispersas ainda satildeo formadas pelo ensaio do

drama musical grego

74

importacircncia capital como elemento intensificador de seu efeito Podemos ver a intenccedilatildeo

por traacutes da anaacutelise nietzscheana da trageacutedia antiga em comparaccedilatildeo agrave opera Ao final da

conferecircncia no elogio que confere a Wagner o tiacutetulo de ldquoatual reformador da arterdquo bem

como na descriccedilatildeo de seu projeto de arte total retratado como um acontecimento que jaacute

teve lugar na trageacutedia da antiguidade claacutessica Nietzsche deixa claro seu engajamento ao

projeto wagneriano

No mecircs seguinte ao da citada conferecircncia uma segunda intitulada Soacutecrates e a

trageacutedia foi proferida por Nietzsche O assunto em pauta era a morte repentina da

trageacutedia grega Esta morte teria ocorrido pelas matildeos de Euriacutepides apoacutes uma decadecircncia

iniciada nos uacuteltimos periacuteodos das produccedilotildees de Eacutesquilo passando por Soacutefocles e

culminando com o advento da comeacutedia Tal decadecircncia teria sido provocada pela saiacuteda

de cena da muacutesica que de forma progressiva foi substituiacuteda pelo diaacutelogo racionalista

Soacutecrates ocupa aqui um lugar importante Eacute sua influecircncia sobre Euriacutepides que

transforma de uma forma definitiva a arte instintivamente musical da trageacutedia em uma

manifestaccedilatildeo do discurso eacutetico racionalista Esta ldquoesteacutetica racionalista e conscienterdquo

pode ser identificada no proacutelogo euripidiano e na inserccedilatildeo do deus ex machina

enquanto agentes de racionalizaccedilatildeo da obra artiacutestica A trageacutedia de Euriacutepides teria

assumido assim os pressupostos do racionalismo socraacuteticos ldquoVirtude eacute saber peca-se

somente por ignoracircncia O virtuoso eacute felizrdquo (VD 90) Esta assunccedilatildeo que liga a virtude

ao saber impotildee agrave trageacutedia um caraacuteter eacutetico alheio agrave sua caracteriacutestica puramente

esteacutetica O elemento culpa na dialeacutetica socraacutetica toma o lugar que era ocupado pela

compaixatildeo Jaacute podemos perceber nesta conferecircncia o esboccedilo da dicotomia que mais

tarde seraacute ilustrada atraveacutes dos deuses Apolo e Dioniso Os pares formadores da

dicotomia satildeo aqui expressos pela separaccedilatildeo entre instinto e razatildeo muacutesica e discurso

pessimismo e otimismo arte e ciecircncia

75

Temos a primeira referecircncia agrave arte dionisiacuteaca como impulso formador da

trageacutedia e sua contraposiccedilatildeo agrave arte apoliacutenea nas aulas proferidas por Nietzsche no veratildeo

daquele mesmo ano Neste curso sobre a trageacutedia de Soacutefocles do qual temos a

introduccedilatildeo podemos ver o esforccedilo de Nietzsche em caracterizar e apontar as

peculiaridades da trageacutedia da antiguidade que a tornam um fenocircmeno uacutenico em

comparaccedilatildeo agraves trageacutedias modernas Tal discussatildeo demonstraraacute pelos aspectos ali

expostos a aproximaccedilatildeo de Nietzsche com autores do periacuteodo claacutessico alematildeo e

sobretudo da chamada querela entre antigos e modernos Vemos claramente a influecircncia

de Schiller e F A Schlegel em algumas das definiccedilotildees adotadas por Nietzsche

No texto denominado A visatildeo dionisiacuteaca do mundo jaacute podemos assistir a um

desenvolvimento das duas pulsotildees artiacutesticas que satildeo o nuacutecleo da interpretaccedilatildeo

nietzscheana da trageacutedia O apoliacuteneo e o dionisiacuteaco satildeo ali explicados no acircmbito de seu

surgimento no mundo helecircnico e simbolizam a uniatildeo entre verdade e beleza na forma de

arte traacutegica Sua descriccedilatildeo como veremos abaixo estaacute permeada de conceitos retirados

da filosofia schopenhaueriana que vatildeo desde a biparticcedilatildeo do mundo entre verdade e

aparecircncia perpassam as noccedilotildees de belo e sublime e apontam a trageacutedia e a muacutesica como

forma de arte superiores

Em janeiro de 1872 Nietzsche daacute luz a seu ldquoCentaurordquo sob o nome O nascimento

da trageacutedia atraveacutes do espiacuterito da muacutesica Em carta a Rohde datada de 23 de novembro

de 1871 podemos notar atraveacutes da ansiosa expectativa nietzscheana a amaacutelgama

formadora da obra ldquo Temo sempre que os filoacutelogos natildeo o queiram ler por causa da

muacutesica os muacutesicos por causa da filologia e os filoacutesofos por causa da muacutesica e da

filologia e sinto logo medo e compaixatildeo de mim mesmordquo (Correspondecircncia 2007 237)

33 A teoria da trageacutedia publicada

Como escopo geral da primeira obra de Nietzsche podemos dizer na esteira de

Silk e de Stern (1981 52) que ela se propunha a esclarecer o problema do nascimento e

76

da morte da trageacutedia helecircnica Trageacutedia que por sua vez era a expressatildeo artiacutestica que

simbolizava um problema vital o de que sob uma superfiacutecie bela podiacuteamos ter acesso agrave

terriacutevel profundidade do ser Tal forma de arte poderia novamente vir agrave luz por uma

geraccedilatildeo criativa que ao combater a superficialidade moderna que reinava no mundo

germacircnico poderia produzir o renascimento moderno do mundo Helecircnico

Em sua essecircncia o nascimento da trageacutedia aponta para as divindades Apolo e

Dioniacutesio como ldquorepresentantes vivosrdquo de princiacutepios diacutespares que irrompem da proacutepria

natureza e que ao serem conciliados de certa forma tornaram possiacutevel que atraveacutes dos

atritos de tal uniatildeo a trageacutedia grega despontasse como manifestaccedilatildeo artiacutestica exemplar

do sublime Em linhas gerais a arte do ldquofigurador plaacutesticordquo estaria entatildeo associada ao

deus Apolo enquanto a arte ldquonatildeo figuradardquo a da muacutesica estaria associada ao deus

Dioniacutesio O apoliacuteneo eacute um impulso da vontade grega que ao almejar a vida a apresenta

transfiguradamente como um belo sonho plasmado no mundo dos deuses oliacutempicos O

princiacutepio apoliacuteneo seria aquele que estabeleceria a ordem a beleza estaacutetica e a clareza

dos limites O dionisiacuteaco eacute oriundo das festas do oriente e seu efeito eacute comparado ao da

embriaguecircs A ele cabe a sabedoria profunda da essecircncia da vida lugar do acaso do

impermanente do horriacutevel e do sofrimento A Apolo eacute facultado tecer o veacuteu que

encobre a sabedoria dionisiacuteaca e torna a vida suportaacutevel atraveacutes da ilusatildeo do sonho

Assim segundo Nietzsche o desenvolvimento contiacutenuo da arte estaacute vinculado agrave

duplicidade dos princiacutepios apoliacuteneo e dionisiacuteaco Perfazendo um caminho histoacuterico da

cultura grega podemos notar uma sobreposiccedilatildeo intermitente entre os impulsos divinos

Temos momentos onde o impulso apoliacuteneo se mostrou dominante e outros onde

Dioniacutesio recupera seu predomiacutenio O mundo oliacutempico homeacuterico com sua arte eacutepica e

sua escultura do periacuteodo doacuterico nascem a partir de uma necessidade de redenccedilatildeo para a

realidade de horror e sofrimento que o povo helecircnico presenciava Em substituiccedilatildeo ao

77

mundo titacircnico temos o mundo dos deuses oliacutempicos exemplificadores de uma

existecircncia divinizada que exalta a vida Nas palavras de Nietzsche ldquoo grego conheceu

e sentiu os temores e os horrores do existir para que lhe fosse possiacutevel de algum modo

viver teve de colocar ali entre ele e a vida a resplendente criaccedilatildeo oniacuterica dos deuses

oliacutempicosrdquo (NT 36) Entretanto a sabedoria dionisiacuteaca portadora da visatildeo abismal do

ser natildeo pocircde ser contida por muito tempo e a muacutesica veiacuteculo da uniatildeo orgiaacutestica aos

poucos foi se infiltrando no mundo construiacutedo pelo divino Apolo Os gregos foram se

tornando conscientes de seu estado sonambuacutelico que sob a graccedila do deus Apolo enleva

e transporta pela extraordinaacuteria beleza natural ou esteacutetica Em um estado semelhante ao

do indiviacuteduo que restabelecido em suas forccedilas pelo efeito renovador do sono ao findar

de uma noite comeccedila a ouvir os sons a sua volta e aos poucos vai se despertando da

mesma forma os gregos comeccedilaram novamente a ouvir o sussurro do Sileno

companheiro de Dioniacutesio ldquoo melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter

nascido e natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo

(NT 36) O artista que representa este retorno do dionisiacuteaco com a mesma envergadura

com que Homero representa as forccedilas apoliacuteneas eacute Arquiacuteloco Tomando-o como modelo

do gecircnio liacuterico Nietzsche faz uma descriccedilatildeo de seu processo de criaccedilatildeo Conforme a

metafiacutesica esteacutetica adotada por Nietzsche - que mais agrave frente veremos ser retirada da

esteacutetica schopenhaueriana - toda arte tem que ser objetiva livre dos interesses

individuais Nesta situaccedilatildeo a liacuterica que tem como objeto o eu do poeta seus desejos e

emoccedilotildees natildeo seria uma forma de arte Entretanto atraveacutes de uma descriccedilatildeo que Schiller

faz da inspiraccedilatildeo poeacutetica Nietzsche aponta o caminho para percebermos a liacuterica como

obra de arte e portanto objetivamente Conforme a passagem de Schiller citada por

Nietzsche (NT 44) ldquoo sentimento se me apresenta no comeccedilo sem um objeto claro e

determinado este soacute se forma mais tarde Uma certa disposiccedilatildeo musical de espiacuterito

78

vem primeiro e somente depois eacute que se segue em mim a ideacuteia poeacuteticardquo Desta forma

Arquiacuteloco em seu processo criativo a princiacutepio entraria em um estado de consciecircncia

ou de criaccedilatildeo onde renunciaria agrave sua individualidade e dionisiacamente participaria do

uno-primordial ldquoabismo do serrdquo estado que por sua vez materializa-se atraveacutes da

representaccedilatildeo musical A muacutesica assim produzida seraacute condiccedilatildeo para o surgimento da

inspiraccedilatildeo que a posteriori daraacute nascimento atraveacutes da aplicaccedilatildeo das formas

apoliacuteneas agrave poesia liacuterica geacutermen da trageacutedia e dos ditirambos dramaacuteticos Esta uniatildeo da

poesia liacuterica com a muacutesica eacute uma expressatildeo sinteacutetica da relaccedilatildeo dos deuses Apolo e

Dioniacutesio Eacute no quinto capiacutetulo de sua obra que Nietzsche iraacute tratar da poesia liacuterica

Neste capiacutetulo o filoacutesofo se distancia de Schopenhauer em sua interpretaccedilatildeo do

fenocircmeno liacuterico Para Schopenhauer na citaccedilatildeo reproduzida por Nietzsche (NT 46) a

liacuterica eacute produzida atraveacutes de uma percepccedilatildeo da consciecircncia onde os estados da vontade

individualizada se alternam com o conhecimento objetivo Como vimos o poeta liacuterico

assistiria ao jogo do eu em sua afetaccedilatildeo emocional e descreveria este estado atraveacutes de

sua poesia Nietzsche ao descrever a liacuterica utiliza-se da teoria da muacutesica

schopenhaueriana qual seja o poeta liacuterico produz primeiramente a muacutesica como forma

geral de expressatildeo da vontade mesma e desta produccedilatildeo gera posteriormente o texto que

se torna um exemplificador do evento musical sua forma plaacutestica objetiva A muacutesica eacute

a aparecircncia da vontade e as imagens apoliacuteneas que dela se originaram satildeo conforme seu

espiacuterito A imagem e o conceito satildeo desta forma na liacuterica originados a partir da

muacutesica

Tem-se portanto na trageacutedia grega uma relaccedilatildeo de interdependecircncia que evoca

um aparente paradoxo ndash ou seja ao lado da necessidade esteacutetica da beleza Apolo exige

dos seus a medida (limites fronteiras do indiviacuteduo presentes no ldquonada em demasiardquo) e

o auto-conhecimento necessaacuterio para determinaacute-la (ldquoconhece-te a ti mesmordquo) o

79

desmedido os excessos o dionisiacuteaco seriam identificados pelo apoliacuteneo como

democircnios de uma era preacute-apoliacutenea era dos Titatildes reminiscecircncias de barbarismo O

paradoxo estaacute em que para que o comedimento apoliacuteneo possa existir o desmedido

dionisiacuteaco faz-se necessaacuterio (na linguagem de Nietzsche como ldquosubstratordquo) assim

como para que o desmedido dionisiacuteaco possa existir faz-se necessaacuterio a existecircncia do

comedido do apoliacuteneo Natildeo obstante a trageacutedia grega depende da conjugaccedilatildeo destes

dois princiacutepios para existir ndash indo aleacutem poder-se-ia dizer que a proacutepria muacutesica compotildee

o princiacutepio primeiro que possibilita o surgimento da trageacutedia no jogo das formas

apoliacuteneo A trageacutedia eacute entatildeo definida como ldquoo coro dionisiacuteaco a descarregar-se sempre

de novo em um mundo de imagens apoliacuteneordquo (NT 60)

Em seu iniacutecio a trageacutedia grega era representada pelo coro traacutegico Este coro natildeo

era uma ldquorepresentaccedilatildeo constitucional do povordquo muito menos um espectador ideal

como o queria August Schlegel Nietzsche acompanha Schiller na definiccedilatildeo de que o

coro cria um terreno ideal para a manifestaccedilatildeo da arte O efeito da trageacutedia eacute a

manifestaccedilatildeo de um estado de unidade que transporta ao abismo do ser O coro eacute a

manifestaccedilatildeo deste sentimento da consciecircncia de que por traacutes da vida cotidiana haacute uma

realidade ldquoindestrutivelmente poderosa e cheia de alegriardquo (NT 55) Este eacute o consolo

metafiacutesico propiciado pela arte traacutegica Ao retornarmos deste estado o cotidiano nos

causa asco nojo Natildeo eacute possiacutevel interpretar mais o papel da vida comum A vida soacute

passa a se justificar atraveacutes da arte Perceba-se aiacute que o coro possui um papel

fundamental no processo O coro atua como impulso artiacutestico dionisiacuteaco em

contraposiccedilatildeo agrave forma apoliacutenea ou seja agraves imagens e agrave beleza plaacutestica Assim o

indiviacuteduo atraveacutes do coro tem para si revelado aquele substrato dionisiacuteaco encoberto

pela beleza e comedimento apoliacuteneos isto eacute ao indiviacuteduo era possiacutevel submergir na

80

torrente dionisiacuteaca do auto-esquecimento permitindo-se pocircr de lado os preceitos

apoliacuteneos

E foi assim que em toda parte onde o dionisiacuteaco penetrou o apoliacuteneo

foi suspenso e aniquilado Mas eacute igualmente certo que laacute onde o primeiro

assalto foi suportado o prestiacutegio e a majestade do deus deacutelfico se externaram de

maneira mais riacutegida e ameaccediladora do que nunca(NT 41-42)

De acordo com Nietzsche as trageacutedias eram em seu iniacutecio representaccedilotildees do

sofrimento de Dioniacutesio Mesmo as trageacutedias do periacuteodo aacutetico traziam Dioniacutesio como

heroacutei traacutegico O sofrimento representado era o do despedaccedilamento de Dioniacutesio o deus

que sofreu o padecimento da individuaccedilatildeo causa de todo o sofrer O mito de Dioniacutesio eacute

interpretado aqui sob a luz da filosofia de Schopenhauer que apresenta a individuaccedilatildeo

como fonte do sofrimento ldquoNos pontos de vista aduzidos temos jaacute todas as partes

componentes de uma profunda e pessimista consideraccedilatildeo do mundo e ao mesmo tempo

a doutrina misteriosoacutefica da trageacutedia o conhecimento baacutesico da unidade de tudo o que

existe a consideraccedilatildeo da individuaccedilatildeo como a causa primeira do mal a arte como a

esperanccedila jubilosa de que possa ser rompido o feiticcedilo da individuaccedilatildeo como

pressentimento de uma unidade restabelecidardquo (NT 70)

Contudo ressalta Nietzsche a trageacutedia grega que como vimos desenvolve-se a

partir do embate contiacutenuo entre as representaccedilotildees dos deuses antiacutepodas ndash envolvidos em

um enfrentamento aparentemente sem fim ndash eacute reestruturada por Euriacutepides de forma a

diminuir o impacto do coro ou seja um golpe quase mortal para Dioniacutesio que

agonizante lanccedila matildeo de seus uacuteltimos esforccedilos O que em Euriacutepedes suscitou esta

reestruturaccedilatildeo que conforme Nietzsche eacute responsaacutevel pelo afastamento progressivo do

dionisiacuteaco tem suas origens no que o filoacutesofo chamou de uma ldquotendecircncia socraacuteticardquo O

socratismo euripidiano e a sua nova concepccedilatildeo esteacutetica satildeo as causadoras do

afastamento dos impulsos esteacuteticos primevos o dionisiacuteaco e o apoliacuteneo Em seu lugar o

discurso consciente passa a imperar O deus ex machina e os proacutelogos satildeo exemplos das

81

interferecircncias racionais que datildeo novo tom agrave trageacutedia aacutetica Soacutecrates e seu racionalismo

expulsam da trageacutedia o conhecimento primevo dionisiacuteaco e estabelecem novas regras

esteacuteticas regras racionais que fazem com que o bom sinocircnimo do belo seja aquilo

alcanccedilado conscientemente

Se a trageacutedia grega foi para Nietzsche a manifestaccedilatildeo mais sublime de uma

forma artiacutestica isto se daacute em decorrecircncia do efeito por ela provocado qual seja o de

justificar o mundo enquanto fenocircmeno esteacutetico Foi exatamente o decliacutenio deste efeito

constatado pela produccedilatildeo racionalizada de Euriacutepides o responsaacutevel pela morte da

trageacutedia Ao fortalecer em demasia os princiacutepios racionais da forma Euriacutepides suprimiu

o dionisiacuteaco por meio da flacircmula que nas palavras de Nietzsche o tragedioacutegrafo

ldquolevava agrave testardquo ndash a saber uma espeacutecie de socratismo esteacutetico cujos princiacutepios se davam

a partir da remissatildeo do belo ao inteligiacutevel e deste ao virtuoso Identifica-se portanto a

racionalidade otimista socraacutetica como grande responsaacutevel pela supressatildeo do impulso

dionisiacuteaco Nietzsche alude agrave proximidade de convivecircncia entre Soacutecrates e Euriacutepides

para justificar a presenccedila do racionalismo nas obras Euripidianas Soacutecrates frequumlentava

o teatro somente para assistir agraves apresentaccedilotildees de Euriacutepides De todos os atenienses

Soacutecrates era apontado como o mais saacutebio e Euriacutepides como o segundo em sabedoria

Entretanto na contraposiccedilatildeo proposta por Nietzsche entre conhecimento instintivo e

racional Soacutecrates era descomunalmente racional ao contraacuterio do intuitivismo criativo

que reinava ateacute entatildeo Era questionando aos atenienses sobre seus atos que Soacutecrates

percebia que eles natildeo agiam conscientemente mas por intuiccedilatildeo A crenccedila socraacutetica de

que toda accedilatildeo boa deve ser consciente dominou o teatro atraveacutes de Euriacutepides Uma

chave para o entendimento da racionalidade socraacutetica segundo Nietzsche nos eacute

revelada pela ldquomonstruosa inversatildeordquo representada pela consciecircncia criacutetica de Soacutecrates ndash

ou seja a nota destoante em Soacutecrates revela-se pelo instinto criacutetico em contraposiccedilatildeo agrave

82

consciecircncia criacutetica a consciecircncia criadora em contraposiccedilatildeo ao instinto como forccedila

criadora Intui-se assim o motivo pelo qual Soacutecrates natildeo compreendia a trageacutedia grega

- o dionisiacuteaco a tornava ininteligiacutevel para as exigecircncias racionalistas e criacuteticas da

ldquodialeacutetica otimistardquo socraacutetica ldquoA Soacutecrates [] parecia que a arte traacutegica nunca bdquodiz a

verdade‟ sem considerar o fato de que se dirigia agravequele que bdquonatildeo tem muito

entendimento‟ portanto natildeo aos filoacutesofos daiacute um duplo motivo para manter-se dela

afastadordquo(NT 87) Nietzsche compara Soacutecrates ao heroacutei euripidiano que

diferentemente (ateacute mesmo antagonicamente) agrave trageacutedia de Eacutesquilo e Soacutefocles ldquoprecisa

defender suas accedilotildees por meio da razatildeo e contra a razatildeordquo O que estaacute em jogo no

socratismo eacute a substituiccedilatildeo das verdades expressas miticamente religiosamente pelas

verdades loacutegicas A razatildeo tenta abarcar o todo e para isso desconsidera a arte e seus

impulsos A excelecircncia estaacute no saber e atraveacutes deste alcanccedila-se a felicidade erro do

otimismo racionalista Ilusatildeo da razatildeo que se acha soberana e independente A loacutegica

torna-se essecircncia da trageacutedia procura-se por relaccedilotildees causais e pelo bom telos O

diaacutelogo formata sua estrutura e expulsa seu fundamento musical O ldquoheroacutei dialeacuteticordquo eacute

portanto impulsionado pelo elemento otimista da dialeacutetica A justiccedila transcendental

presente nas obras Esquilianas ldquoeacute rebaixada ao niacutevel do raso e insolente princiacutepio da

bdquojusticcedila poeacutetica‟ com seu habitual deus ex machinardquo (NT 89) A racionalidade de

Soacutecrates atraveacutes de sua investigaccedilatildeo cientiacutefica da natureza de seu processo de

construccedilatildeo loacutegica da realidade daraacute origem ao que Nietzsche denominaraacute de ldquohomem

teoacutericordquo ou ldquohomem cientiacuteficordquo a quem a razatildeo ergue-se acima da proacutepria realidade ao

ponto mesmo de ndash e aiacute reside o proacuteprio otimismo ndash propor-se a tarefa de corrigir as

falhas da proacutepria realidade Mais ainda a razatildeo socraacutetica acena ao homem com a

promessa de conferir sentido agrave existecircncia pelo conhecimento e desta forma busca

justificar tal existecircncia

83

Em face ao pessimismo praacutetico eacute Soacutecrates o protoacutetipo do

otimista teoacuterico que na jaacute assinalada feacute na escrutabilidade da

natureza das coisas atribui ao saber e ao conhecimento a forccedila de

uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo

(NT 94)

Natildeo obstante o otimismo no conhecimento na racionalidade socraacutetica encontra seu

maior dragatildeo em sua proacutepria loacutegica interna Assim nas palavras de Nietzsche

[] a periferia do ciacuterculo da ciecircncia possui infinitos pontos

e enquanto natildeo for possiacutevel prever de maneira nenhuma como se

poderaacute alguma vez medir completamente o ciacuterculo o homem

nobre e dotado ainda antes de chegar ao meio de sua existecircncia

tropeccedila e de modo inevitaacutevel em tais pontos fronteiriccedilos da

periferia onde fixa o olhar no inesclareciacutevel Quando divisa aiacute

para seu susto como nesses limites a loacutegica passa a girar em

redor de si mesma e acaba por morder a proacutepria cauda ndash entatildeo

irrompe a nova forma de conhecimento o conhecimento traacutegico

que mesmo para ser apenas suportado precisa da arte como meio

de proteccedilatildeo e remeacutedio (NT 95)

Afigura-se-nos aqui o problema apontado por Nietzsche como o ldquoproblema da

ciecircncia mesmardquo a saber um problema que nos envolve a todos por abarcar (ou

contaminar) toda a cultura ocidental - isto eacute ainda mantemos o dionisiacuteaco agrave baila

ocupando diminuta posiccedilatildeo em detrimento ao culto acerbado ao racionalismo socraacutetico

A cultura socraacutetica impotildee-se pelo homem-teoacuterico e qualquer outra existecircncia que fuja

aos olhos perscrutadores de Soacutecrates deve ldquolutar penosamente para pocircr-se agrave sua altura

como existecircncia permitida e natildeo como existecircncia propostardquo

Nietzsche nos atenta para o fato de reconhecermos comumente no homem culto

erudito o homem douto saacutebio ndash consecutivamente o dionisiacuteaco a arte eacute colocada de

forma perifeacuterica de modo a nunca poder encontrar espaccedilo para superar sua condiccedilatildeo de

ldquoremeacutedio-arterdquo A vontade aacutevida faz seu caminho mesmo atraveacutes da completa falta de

respostas de fundamentos de sentido assim eacute preferiacutevel ao ser humano querer o nada

no sentido de ainda sim querer alguma coisa do que nada querer do que reconhecer a

84

falta de fundamentos da qual consistem em todos os tempos as ilusotildees que

costumeiramente adota-se como engodo ao absoluto sem-sentido da vida

Por fim Nietzsche atenta-nos para o fato de como o homem de seu tempo vem

perdendo a crenccedila na ciecircncia otimista socraacutetica isto eacute pressentindo que a cultura

racionalista socraacutetica torna-se iloacutegica ao vislumbraacute-la em seus horizontes afastando-se

de suas consequumlecircncias Nietzsche diagnostica na oacutepera de seu periacuteodo a subordinaccedilatildeo da

muacutesica agrave arte figurada agrave palavra e expotildee a expectativa de que possa haver no cansaccedilo e

na percepccedilatildeo do insucesso dos esforccedilos racionalistas um renascimento da trageacutedia

85

4 Conclusatildeo pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo

da vida

Retribui-se mal a um mestre continuando-

se sempre apenas aluno

(Nietzsche)

Natildeo podemos ver na filosofia schopenhaueriana qualquer instacircncia que

justifique a vida Ao conhecermos a sua essecircncia - a vontade cega e irracional que se

deixa ver atraveacutes das manifestaccedilotildees do seu querer incessante - percebemos o absurdo de

sua existecircncia e somos por essa percepccedilatildeo levados agrave sua negaccedilatildeo Nietzsche por sua

vez utilizando-se dos conceitos da filosofia de Schopenhauer procura em sua obra

justificar a vida e encontra esta justificaccedilatildeo na arte Nesta conclusatildeo da pesquisa

pretendemos entatildeo apresentar um esboccedilo do modo pelo qual alguns elementos da

filosofia schopenhaueriana foram utilizados no projeto do primeiro livro de Nietzsche e

explicitar o modo como estes elementos foram configurados no interior de seu projeto

Dentre estes elementos percorreremos o paralelo entre os pares dionisiacuteacoapoliacuteneo e

vontaderepresentaccedilatildeo os conceitos de arte e apreciaccedilatildeo esteacutetica e sua cisatildeo entre as

86

artes figurativas e a musical a especificidade da muacutesica o conceito de gecircnio e sua

divisatildeo e os limites da racionalidade e da ciecircncia

Jaacute no primeiro paraacutegrafo de NT a associaccedilatildeo entre os pares nietzscheanos do

dionisiacuteaco e apoliacuteneo e as visotildees de mundo schopenhauerianas satildeo expliacutecitas Nietzsche

define o impulso apoliacuteneo atraveacutes do sonho do princiacutepio de individuaccedilatildeo e o dionisiacuteaco

atraveacutes da embriaguez da consciecircncia de unidade da vontade do livrar-se do veacuteu de

maia Os deuses gregos tornam-se representativos destes estados schopenhauerianos de

consciecircncia Como vimos no capiacutetulo segundo desta dissertaccedilatildeo sob o ponto de vista da

representaccedilatildeo o mundo eacute objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito

agraves condiccedilotildees a priori do entendimento Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das

formas a priori do entendimento eacute interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos

advindos da filosofia Platocircnica e oriental como um mundo aparente ilusoacuterio artificial

O sonho efeito do encantamento apoliacuteneo eacute utilizado como metaacutefora da realidade

fenomecircnica no mundo Schopenhaueriano Os Vedas e Puranas tantas vezes citados por

Schopenhauer tratam o mundo como um sonho imposto pelo deus Maia o deus da

ilusatildeo que cobre a visatildeo do homem com seu veacuteu A mitologia oriental aludida por

Schopenhauer toma conta do mundo helecircnico em Nietzsche que transforma Apolo no

deus Maia o configurador de sonhos O sonho eacute utilizado como ilustraccedilatildeo da realidade

pelo fato de que durante o sonho natildeo sabemos estar sonhando O mundo dos sonhos nos

eacute naquele momento real Vemo-nos como indiviacuteduos e vemos o mundo da

individuaccedilatildeo e suas leis causais espaccedilo-temporais Somente o momento empiacuterico do

despertar informa-nos do sonho Haacute portanto uma identificaccedilatildeo do ldquoparentesco iacutentimo

entre vida e sonhordquo(MVR 60) Como ilustraccedilatildeo desta metaacutefora Schopenhauer elogia

ainda a obra do ldquovaterdquo Calderoacuten de La Barca A vida eacute sonho agrave qual denominaraacute como

um ldquodrama metafiacutesicordquo por expor esta faceta de seu sistema A consciecircncia de que a

87

vida eacute sonho eacute para Schopenhauer um despertar metafiacutesico cujo propiciador foi Kant

ao demonstrar o caraacuteter fenomecircnico do mundo Este despertar contudo natildeo causa

prazer O filoacutesofo e o gecircnio personagens que na metafiacutesica schopenhaueriana alcanccedilam

este despertar satildeo atormentados pela realidade com a qual se deparam qual seja a de

que a vida eacute puro sofrimento Eacute no intuito de deixar velada esta faceta da vida que

Apolo ofusca a visatildeo dos homens com seu mundo luminoso de sonho seu objetivo eacute

encobrir esta verdade aterrorizadora As artes natildeo musicais tanto na teoria de

Schopenhauer como na nietzscheana manteacutem o homem em um juacutebilo prazeroso

ocasionado pela contemplaccedilatildeo puramente objetiva Neste momento natildeo se percebe o

jogo da vontade individualizada somos afastados da realidade do querer insuflados

pela caracteriacutestica quietiva da apreciaccedilatildeo esteacutetica nas palavras de Nietzsche

encontramos na arte um ldquoremeacutedio-arterdquo32

Esta visatildeo do lado terriacutevel da vida ocasionada pelo despertar do dogmatismo

metafiacutesico na teoria schopenhaueriana eacute associada em NT agrave sabedoria dionisiacuteaca

Verificamos na descriccedilatildeo do impulso dionisiacuteaco os elementos que caracterizam a

vontade schopenhaueriana A visatildeo dionisiacuteaca do mundo carrega consigo o despertar

para o caraacuteter absurdo da vida Ao olhar para a proacutepria essecircncia o homem descobre-se

enquanto manifestaccedilatildeo de uma vontade aacutevida desprovida de telos O ldquomecanismo

internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens marionetes guiados pela

carecircncia Esta realidade eacute assustadora pois subtrai do horizonte todos os propoacutesitos da

vida individual Dioniacutesio trava aqui sua batalha contra Apolo ao apontar a ilusatildeo da

individuaccedilatildeo como mecanismo para uma fuga daquilo que em essecircncia somos Apesar

de seu caraacuteter aterrorizador a sabedoria dionisiacuteaca eacute acompanhada do deleite

32

Podemos ver aqui o nuacutecleo da dissenssatildeo entre as teorias dos dois filoacutesofos Para Schopenhauer este

remeacutedio eacute temporaacuterio e tatildeo logo o efeito da apreciaccedilatildeo esteacutetica se esvaia os interesses da vontade voltam

a agir sobre o indiviacuteduo e a vida de sofrimento continua seu percurso restando apenas o caminho da

negaccedilatildeo daquela vontade da vida mesma em direccedilatildeo ao nada Nietzsche ao contraacuterio aponta para uma

forma de cura atraveacutes do remeacutedio-arte ver a vida enquanto forma de arte afirmaacute-la

88

indescritiacutevel da celebraccedilatildeo da unidade com o todo ldquoSob a magia do dionisiacuteaco torna a

selar-se natildeo apenas o laccedilo de pessoa a pessoa mas tambeacutem a natureza alheada

inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliaccedilatildeo com seu filho

perdido o homemrdquo(NT 31) Se Apolo eacute representado como deus da forma da clareza

da individuaccedilatildeo e as artes patrocinadas por ele satildeo expressotildees destas caracteriacutesticas

Dioniacutesio por sua vez eacute o patrocinador da muacutesica expressatildeo fenomecircnica direta da

vontade Vemos em Nietzsche uma biparticcedilatildeo das artes que tambeacutem pode ser extraiacuteda

da metafiacutesica schopenhaueriana (artes natildeo-musicais e arte musical)

Para Schopenhauer as formas artiacutesticas natildeo-musicais ao provocarem uma visatildeo

puramente objetiva do objeto apreciado tecircm como caracteriacutestica fundamental a

libertaccedilatildeo da subjetividade e com ela dos anseios da vontade Durante esta forma de

apreciaccedilatildeo esteacutetica ldquosomos alforriados do desgraccedilado iacutempeto volitivo festejamos o

Sabbath dos trabalhos forccedilados do querer a roda de Iacutexion cessa de girarrdquo (MVR

267) A definiccedilatildeo nietzscheana para a funccedilatildeo da arte apoliacutenea se daacute da mesma maneira

qual seja ela deve ldquo [] livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito

graccedilas ao baacutelsamo da aparecircncia do espasmo dos movimentos do querer []rdquo (NT

117) A muacutesica por sua vez recebe um tratamento especial de Schopenhauer devido ao

seu efeito esteacutetico Se as demais artes satildeo um quietivo para a vontade a muacutesica ldquonatildeo faz

mais do que agradar a vontade de viver jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo

seus ecircxitos e ao final expressa sua satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509) Ela encontra-se

num niacutevel de valor superior ao das demais artes por tratar-se de representar a essecircncia

do mundo a vontade mesma Assim tambeacutem ela eacute tratada por Nietzsche como a arte

que representa a sabedoria dionisiacuteaca e faz o apreciador vivenciar a vontade mesma

Em seus escritos sobre a poesia e a oacutepera Schopenhauer alude agrave necessidade de

subordinar os conceitos e o texto agrave muacutesica para que estas artes tenham um efeito mais

89

arrebatador no apreciador esteacutetico Esta subordinaccedilatildeo eacute assumida por Nietzsche em sua

teoria da trageacutedia Nietzsche encontra na liacuterica a primeira manifestaccedilatildeo desta junccedilatildeo da

arte dionisiacuteaca com a arte apoliacutenea e aponta aiacute o geacutermen que daraacute origem agrave trageacutedia

Podemos perceber aqui uma subordinaccedilatildeo das artes natildeo-musicais agrave muacutesica que por sua

vez se espelha na subordinaccedilatildeo do mundo fenomecircnico ao mundo da coisa-em-si As

artes figurativas representam as ideacuteias objetivaccedilotildees imediatas da vontade e a muacutesica

representa a vontade mesma Na teoria da trageacutedia de Nietzsche esta subordinaccedilatildeo seraacute

mantida e assim reflete a configuraccedilatildeo da metafiacutesica schopenhaueriana A muacutesica ldquoeacute

uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente sobre o mais iacutentimo do

homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele como se fora uma

linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo (MVR

336) Desta forma uma arte que se pretenda formar a partir da integraccedilatildeo de elementos

de diversas formas artiacutesticas deve tomar a muacutesica como inspiraccedilatildeo tanto na teoria de

Schopenhauer como na de Nietzsche

Desta dicotomia das formas artiacutesticas que podemos perceber nos dois filoacutesofos

podemos depreender duas formas do gecircnio o apoliacuteneo ou contemplativo e o

compositor dionisiacuteaco Para Schopenhauer ldquoo compositor manifesta a essecircncia mais

iacutentima do mundo expressa a sabedoria mais profunda numa linguagem natildeo

compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo magneacutetico fornece informaccedilotildees

sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito algumrdquo (MVR 342) Podemos

vislumbrar ainda nesta descriccedilatildeo de Schopenhauer uma caracteriacutestica do que Nietzsche

mais tarde iraacute chamar de criaccedilatildeo inconsciente Em uma segunda passagem desta vez ao

final do capiacutetulo 39 do segundo volume de MVR vemos tambeacutem uma caracteriacutestica que

posteriormente tambeacutem seraacute ressaltada por Nietzsche como demarcaccedilatildeo do caraacuteter

dionisiacuteaco Schopenhauer se utiliza de uma passagem dos Vedas para descrever o prazer

90

provocado pela muacutesica como um prazer de participaccedilatildeo no todo33

Este ecircxtase da

comunhatildeo eacute um aspecto reiteradamente apontado por Nietzsche O gecircnio dionisiacuteaco eacute

para o jovem filoacutesofo aquele que tambeacutem absorvido pelo impulso dionisiacuteaco traduz

sua essecircncia em linguagem musical O tipo de gecircnio musical descrito eacute encontrado em

Schopenhauer nas encarnaccedilotildees de Rossini e Beethoven cujas obras operiacutesticas satildeo

norteadas pela produccedilatildeo musical e o livreto ocupa um lugar secundaacuterio Nietzsche

aponta um renascimento progressivo do gecircnio musical em seu tempo que se inicia com

Bach e tem continuidade em Beethoven mas que encontra sua forma mais bem acabada

em Richard Wagner

Apesar da tomarem caminhos diferentes no que tange ao objetivo da obra de arte

traacutegica Nietzsche e Schopenhauer mais uma vez em uniacutessono consideram-na todavia

como uma forma de entendimento superior ao apresentado pelo pensamento cientiacutefico

Como vimos anteriormente as ciecircncias no sistema schopenhaueriano seguem o

princiacutepio de razatildeo seu papel eacute apenas descritivo e consequumlentemente limitado ao

acircmbito daquele princiacutepio Transformam em conceitos abstratos o mundo intuitivo ao

descrevecirc-lo em sua aparecircncia e seguem o fio condutor do principio de razatildeo

apresentando as causas para cada fenocircmeno particular Desta forma as ciecircncias estatildeo

subordinadas ao mundo da aparecircncia e no que importa agrave essecircncia natildeo podem

demonstraacute-la As uacutenicas produccedilotildees humanas com esta capacidade satildeo a arte e a

filosofia e essas o fazem de forma indireta metafoacuterica A consideraccedilatildeo racional do

mundo estaacute enquanto presa ao acircmbito do fenocircmeno subordinada aos ditames da

vontade Esta ldquovontade aacutevida sempre encontra um meio atraveacutes de uma ilusatildeo

distendida sobre as coisas de prender agrave vida as suas criaturas e de obrigaacute-las a

prosseguir vivendordquo (NT 108) Nietzsche descreve trecircs formas pelas quais a vontade

33

ldquoE o delicioso que eacute uma classe de alegria chama-se assim o sumo Atman porque onde haacute uma

alegria esta eacute uma pequena parte de sua alegriardquo (MVR II 510)

91

manteacutem a vida A primeira delas eacute o ldquoveacuteu da beleza da arterdquo sustentado pelo impulso

apoliacuteneo Encontramo-la na epopeacuteia homeacuterica e nas artes figurativas A segunda eacute a

visatildeo traacutegica do mundo que encontra um consolo metafiacutesico na percepccedilatildeo de um

substrato comum aos fenocircmenos e que por consequumlecircncia abdica destes em funccedilatildeo da

vivecircncia daquele substrato A terceira forma de dominaccedilatildeo da vontade eacute a ciecircncia a

loacutegica socraacutetica que procura abarcar o mundo com sua razatildeo de acircnsia justificadora

Estas trecircs formas de coerccedilatildeo conforme sua predominacircncia em determinada cultura

formam o que Nietzsche iraacute denominar respectivamente de culturas artiacutestica traacutegica e

socraacutetica Correspondem historicamente agraves fases predominantemente helecircnica budista

ou alexandrina Fazendo um diagnoacutestico da cultura contemporacircnea Nietzsche a

identifica como uma cultura predominantemente alexandrina Diagnostica o seu ocaso a

partir da identificaccedilatildeo feita por Kant e Schopenhauer dos limites da ciecircncia do

desmascaramento das verdades eternas que amparam a visatildeo socraacutetica de mundo quais

sejam a visatildeo de que o tempo o espaccedilo e a causalidade satildeo leis universais e

incondicionais Esta criacutetica ao racionalismo eacute constante na obra schopenhaueriana

Percebemo-la claramente em suas investidas contra a filosofia de seu tempo e a

presunccedilatildeo nela presente de racionalmente abarcar o real

- - - - - - - - - -

Compostas por conceitos da metafiacutesica schopenhaueriana a teoria da trageacutedia de

Schopenhauer e a de Nietzsche apontam para caminhos diversos Em Schopenhauer a

trageacutedia eacute a arte cujo fim uacuteltimo eacute ao expor seu lado terriacutevel inspirar o apreciador agrave sua

renuacutencia Este lado terriacutevel espelho do mundo presentificador da vida humana e de

suas relaccedilotildees ocasiona atraveacutes do medo e da compaixatildeo a vontade de renuacutencia a essa

92

mesma vida Nietzsche introduz na trageacutedia o elemento da muacutesica schopenhaueriana34

A consequumlecircncia desta introduccedilatildeo eacute um plano mais profundo de entendimento que

apresenta a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com sua essecircncia Neste estado de consciecircncia

apartado de sua individualidade o sujeito jaacute se vecirc como um criador de mundos e vecirc no

mundo uma obra de arte sua Ao derivar o impulso apoliacuteneo do dionisiacuteaco35

Nietzsche

jaacute executou a renuacutencia do indiviacuteduo que agora passa a se ver como essecircncia e ao mundo

como fenocircmeno artiacutestico

34

Machado (2006 200) considera na esteira de Clemeacutent Rosset e de Jean-Marie Schaeffer a utilizaccedilatildeo

da teoria da apreciaccedilatildeo musical de Schopenhauer por Nietzsche como o elemento que sugeriraacute a

caracteriacutestica de afirmaccedilatildeo da vontade de sua filosofia da trageacutedia 35

ldquoNo efeito conjunto da trageacutedia o dionisiacuteaco recupera a preponderacircncia ela se encerra com um tom

que jamais poderia soar a partir do reino da arte apoliacutenea E com isso o engano apoliacuteneo se mostra como o

que ele eacute como o veacuteu que enquanto dura a trageacutedia envolve o autecircntico efeito dionisiacuteaco o qual

todavia eacute tatildeo poderoso que ao final impele o proacuteprio drama apoliacuteneo a uma esfera onde ele comeccedila a

falar com sabedoria dionisiacuteaca e onde nega a si mesmo e agrave sua visibilidade apoliacuteneardquo (NT 129)

93

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da Gama Kury 5ordf Ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2004

EacuteSQUILO Prometeu acorrentado ndash SOacuteFOCLES Aacutejax ndash EURIacutePIDES Alceste

Traduccedilatildeo Mario da Gama Kury 5ordf Ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2004

EacuteSQUILO Os sete contra Tebas Traduccedilatildeo Donaldo Schuumlller Porto Alegre LampPM

2007

EacuteSQUILO Oreacutestia Agamecircnon Coeacuteforas Eumecircnides Traduccedilatildeo Mario da Gama Kury

6ordf Ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003

EURIacutePIDES Medeacuteia Hipoacutelito As troianas Traduccedilatildeo Mario da Gama Kury 6ordf Ed

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EURIacutePIDES Ifigecircnia em Aacuteulis As Feniacutecias As bacantes Traduccedilatildeo Mario da Gama

Kury 4ordf Ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2002

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em espanhol Jacobo Muntildeoz e Isidoro Reguera Madrid Alianza 1981

JANZ Curt Paul Friedrich Nietzsche 3 Los diez antildeos del filoacutesofo errante (Primavera

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Reguera Madrid Alianza 1985

JANZ Curt Paul Friedrich Nietzsche 4 Los antildeos de hundimiento (Enero de 1889

hasta la muerte el 25 de agosto de 1900) Versatildeo em espanhol Jacobo Muntildeoz e

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Schoumlfeld e Sara Sosa Miatello Buenos Aires Nueva visioacuten 1958

5

Agrave minha famiacutelia

6

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente ajudaram na elaboraccedilatildeo deste

trabalho

Agrave minha esposa pelo amor paciecircncia e apoio

Ao corpo docente do curso de mestrado e em especial ao meu co-orientador

cujo incentivo foi essencial agrave continuaccedilatildeo da pesquisa

Ao meu orientador pelas observaccedilotildees valiosas

Aos colegas de mestrado companheiros indispensaacuteveis nas diaacuterias procissotildees de

embriaguez dionisiacuteaca pelas labiriacutenticas ladeiras de Ouro Preto

7

A existecircncia eacute um episoacutedio do nada

Arthur Schopenhauer

8

RESUMO

O projeto que aqui se apresenta tem como objetivo principal percorrer as

teorias do traacutegico schopenhaueriana e nietzscheana no intuito de apresentar as

principais caracteriacutesticas de cada uma destas teorias Este percurso teraacute como ponto de

partida o fundamento metafiacutesico comum a elas qual seja a filosofia schopenhaueriana

da vontade Atraveacutes desta exposiccedilatildeo pretendemos demonstrar natildeo somente a real

amplitude da influecircncia de Schopenhauer nos primeiros escritos de Nietzsche mas

tambeacutem algumas das peculiaridades existentes em cada uma das citadas teorias

Palavras-chave Schopenhauer - Nietzsche - Trageacutedia - Traacutegico - Filosofia da

vontade

ABSTRACT

The research presented herein has as its ultimate goal to discuss the

theories of the tragedy developed by Schopenhauer and Nietzsche highlighting the

main characteristics ndash points of convergence and divergence ndash of both Our trajectory

shall start from the metaphysical foundations apparently displayed in both theories

which is ndash the schopenhauerian philosophy of the will Throughout our exposition we

intend to show not only that Schopenhauers philosophy had a huge impact in

Nietzsches first writings but also reveal the peculiarities beneath the development of

their aforementioned theories

Keywords Schopenhauer - Nietzsche - Tragedy - Tragic ndash Philosophy of the will

9

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO11

1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES NA

FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA 17

2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU

SUBSTRATO METAFIacuteSICO42

21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo43

22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo45

23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana49

24 A finalidade moral da trageacutedia56

25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera62

3 A TEORIA DA TRAGEacuteDIA DO JOVEM NIETZSCHE65

31 A influecircncia de Schopenhauer na obra do primeiro Nietzsche66

32 O projeto subjacente ao nascimento da trageacutedia72

33 A teoria da trageacutedia publicada75

4 CONCLUSAtildeO pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo da

vida85

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS93

10

ABREVIATURAS

Obras de Schopenhauer

MVR = Mundo como vontade e como representaccedilatildeo (2005)

MVR II ndash Mundo como vontade e como representaccedilatildeo volume II (2005)

MB = Metafiacutesica do belo (2003)

SOE = Sobre o ofiacutecio de Escritor (2005)

QRPRS = De la cuadruple raiz del principio de razon suficiente (1981)

PP = Parerga e paralipomena (1974)

SFM = Sobre o fundamento da moral (2001)

SFU = Sobre a filosofia universitaacuteria (2001)

Obras de Nietzsche

NT = O nascimento da trageacutedia (1992)

VD = Visatildeo dionisiacuteaca do mundo (2005)

CORRESPONDEcircNCIA = Correspondecircncias de Nietzsche (2007)

OC = Obras completas de Nietzsche (1963)

11

INTRODUCcedilAtildeO

ldquoDias sem nuacutemero nunca reservam a

ningueacutem nada mais que dissabores mais

proacuteximos da dor que da alegria Quanto aos

prazeres natildeo os discernimos e nossa vista os

buscaraacute em vatildeo logo que para nossa

desventura chegamos ao limite prefixado E

desde entatildeo o nosso aliacutevio uacutenico seraacute aquele

que daraacute a todos o mesmo fim na hora de

chegar de suacutebito o destino procedente do

tenebroso reino onde natildeo haacute cantos nem

liras onde natildeo haacute danccedilas ndash ou seja a morte

epiacutelogo de tudo Melhor seria natildeo haver

nascido como segunda escolha bom seria

voltar logo depois de ver a luz agrave mesma

regiatildeo de onde se veiordquo

(Soacutefocles)

As teorias sobre a trageacutedia de Schopenhauer e Nietzsche satildeo parte

indispensaacutevel no estudo da histoacuteria da filosofia da trageacutedia Dentre os diversos

pensadores contemporacircneos que tratam sobre o problema da trageacutedia e do traacutegico e que

deram visiacutevel destaque agraves teorias dos nossos filoacutesofos podemos destacar Walter

Benjamin1 e Peter Szondi

2 Entretanto nos trabalhos destes autores o problema do

1 BENJAMIN Walter Origem do drama barroco alematildeo Traduccedilatildeo Sergio Paulo Rouanet Satildeo Paulo

Brasiliense 2004

12

relacionamento e da interdependecircncia entre as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche

natildeo eacute detalhado a contento Diante disto mesmo para um olhar historicamente

caracterizador torna-se vaacutelido um estudo comparado destas teorias que leve em

consideraccedilatildeo o quecirc ou o quanto haacute de comum em suas metafiacutesicas e a partir desta

perspectiva trace os aspectos coincidentes e dissidentes das mesmas mostrando seus

pontos de interdependecircncia e discrepacircncia muacutetua

Apesar de estar entre as teorias da trageacutedia mais estudadas do periacuteodo do

idealismo alematildeo a teoria Schopenhaueriana que eacute sempre analisada em relaccedilatildeo a seus

pressupostos metafiacutesicos ao ser vista sob outra perspectiva ganharia contornos

intensamente enriquecidos Esta perspectiva atraveacutes da qual nos propomos a examinar a

teoria do traacutegico do filoacutesofo eacute aquela que levaraacute em consideraccedilatildeo as influecircncias

histoacutericas culturais e filosoacuteficas que agiram diretamente sobre a esteacutetica do traacutegico

schopenhaueriana Ao lanccedilarmos um olhar sobre estas referidas influecircncias estaremos

abrindo caminho para uma melhor compreensatildeo sobre a teoria esteacutetica

schopenhaueriana o que conseguintemente refletiraacute em um juiacutezo mais adequado da

teoria nietzscheana

Para um entendimento mais eficiente das teorias propostas nas obras do

jovem Nietzsche parece-nos essencial o conhecimento de uma de suas mais decisivas

influecircncias a filosofia de Schopenhauer A analogia almejada erige-se na verdade

como meacutetodo de anaacutelise ou seja o que pretendemos eacute alcanccedilar uma maior compreensatildeo

dos problemas com os quais Nietzsche se deparou quando da elaboraccedilatildeo de sua primeira

obra e procurar identificar a existecircncia de alguma apropriaccedilatildeo eou adaptaccedilatildeo de alguns

conceitos da filosofia de Schopenhauer na resoluccedilatildeo destes problemas A necessidade

deste estudo comparativo torna-se ainda mais evidente quando e este eacute o caso

2 SZONDI Peter Ensaio sobre o Traacutegico Traduccedilatildeo Pedro Suumlssekind Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

13

defrontamo-nos com uma influecircncia que se apresenta tatildeo clara e assumidamente

admitida pelo autor Todavia natildeo se pretende aqui apenas a justaposiccedilatildeo de um

pensamento ao outro Apesar de ser identificaacutevel em toda a obra posterior de Nietzsche

encontra-se nos seus primeiros escritos sobretudo na obra O nascimento da trageacutedia

aquele momento discursivo no qual podemos apontar uma influecircncia mais direta da

filosofia de Schopenhauer

Dos trabalhos que fazem um estudo comparativo entre estes filoacutesofos a

maioria se ateacutem em identificar as diferenccedilas conceituais entre eles mais

especificamente no campo eacutetico e metafiacutesico Grosso modo tratam principalmente dos

problemas relativos agrave diferenciaccedilatildeo entre os conceitos de vontade nestes autores

vontade de viver e vontade de poder Estes estudos tecircm como foco a filosofia tardia de

Nietzsche onde este apesar da assumida influecircncia torna-se um criacutetico de

Schopenhauer A real extensatildeo da influecircncia deste filoacutesofo na primeira obra de

Nietzsche bem como o relacionamento entre suas teorias da trageacutedia permanecem

assim como territoacuterios ainda pouco explorados Ao lanccedilarmos olhar sobre esse

afastamento que Nietzsche mais tarde realizaraacute em relaccedilatildeo agrave filosofia

Schopenhaueriana verificamos mais uma vez a importacircncia do estudo de sua primeira

fase na qual poderemos detectar o referido afastamento

Podemos observar entretanto o crescimento do interesse no estudo da

obra O nascimento da trageacutedia de Nietzsche Nos uacuteltimos anos assistimos tambeacutem no

Brasil agrave publicaccedilatildeo de vaacuterios trabalhos que tecircm sob perspectiva a complexidade desse

seu primeiro livro Na bibliografia sugerida neste projeto constam publicaccedilotildees dos

seguintes autores Roberto Machado (2006) Rosa Maria Dias (2005 e 2009) Iracema

Macedo (2006) Marcio Joseacute Silveira Lima (2006) Estas publicaccedilotildees tratam temas

diversos da esteacutetica nietzscheana tais como a muacutesica a trageacutedia o traacutegico ou a

14

repercussatildeo do livro de Nietzsche e sua influecircncia wagneriana Podemos ver entretanto

naqueles e em outros trabalhos a constante chave de leitura que atribui a Schopenhauer

a influecircncia decisiva natildeo apenas sobre o jovem Nietzsche como usualmente se aponta

mas tambeacutem sobre um peculiar imbricamento entre metafiacutesica e esteacutetica o qual se

sustentaria sobre os ldquoimpulsos artiacutesticos da naturezardquo o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco Nos

termos de Dias (2005 27)

A oposiccedilatildeo apoliacutenea e dionisiacuteaca considerada no plano

metafiacutesico se daacute a partir da noccedilatildeo de vontade ou querer

estendida (sic) no sentido que a ela deu Schopenhauer de

ldquocentro e nuacutecleo do mundordquo ou ldquoforccedila que eternamente quer

deseja e aspirardquo () O mundo fenomecircnico como resultado

desse movimento do querer () faz um segundo movimento

dessa vez esteacutetico reproduzindo o movimento inicial que a

vontade realizou em direccedilatildeo agrave aparecircncia

Tendo em vista o fato de que as teorias sobre o traacutegico dos dois filoacutesofos tecircm como

ponto de partida o sistema metafiacutesico schopenhaueriano fica clara a necessidade de

analisar em cotejo estas teorias tendo como fio condutor o meacutetodo de investigaccedilatildeo ora

proposto

Aleacutem de um aprofundamento no problema da influecircncia de

Schopenhauer na obra esteacutetica de Nietzsche o estudo de suas teorias sobre o traacutegico nos

daraacute a oportunidade de identificar as peculiaridades de cada uma destas teorias bem

como de estabelecer a sua importacircncia histoacuterica para uma filosofia do traacutegico

Em um primeiro momento traccedilaremos um panorama histoacuterico que

objetiva entender o status quo da filosofia do traacutegico no periacuteodo anterior ao

desenvolvimento da teoria schopenhaueriana da trageacutedia Esta investigaccedilatildeo seraacute

norteada pelas referecircncias constantes na proacutepria obra de Schopenhauer bem como por

um levantamento biograacutefico do filoacutesofo ou seja trabalharemos somente os momentos

que satildeo fundamentais para uma melhor compreensatildeo da obra schopenhaueriana Dentre

15

estes momentos daremos ecircnfase aos seguintes pontos o estudo sobre o helenismo de

Winckelmann e sua repercussatildeo a criacutetica teatral de Lessing Schiller e Goethe seu

projeto de criaccedilatildeo de um teatro alematildeo e suas produccedilotildees dramaacuteticas

Traccedilado o panorama histoacuterico no qual se insere a teoria da trageacutedia

schopenhaueriana passaremos para o toacutepico seguinte a apresentaccedilatildeo do sistema

metafiacutesico de Schopenhauer no qual estaacute embasada a sua teoria da trageacutedia bem como

a teoria nietzscheana A apresentaccedilatildeo seraacute feita de forma a expor os aspectos gerais da

filosofia da vontade atendo-se aos pontos deste sistema que estatildeo intrinsecamente

relacionados agraves teorias da trageacutedia dos nossos autores

Apoacutes os passos descritos reuniremos em um esboccedilo geral as

caracteriacutesticas do relacionamento existente entre o jovem Nietzsche e a filosofia de

Schopenhauer Para tanto utilizaremo-nos das referecircncias que Nietzsche faz a

Schopenhauer em suas cartas e escritos de juventude Com esta pesquisa pretendemos

identificar a opiniatildeo que o jovem Nietzsche tinha sobre a filosofia de Schopenhauer e a

profundidade da influecircncia desta em sua primeira obra Percorreremos ainda o ambiente

circundante agrave primeira obra de Nietzsche no intuito de realccedilar alguns dos conceitos

formativos de O nascimento da trageacutedia

Estabelecida a ligaccedilatildeo entre os autores passaremos ao estudo do apoliacuteneo

e do dionisiacuteaco par conceitual que nos forneceraacute a chave para se fazer um estudo

comparativo entre os filoacutesofos Para cumprir esta etapa analisaremos O nascimento da

trageacutedia bem como escritos contemporacircneos a este livro atraveacutes dos quais poderemos

delinear melhor a significaccedilatildeo desta duplicidade de impulsos e visotildees de mundo

Delinearemos assim os contornos das definiccedilotildees fundamentais da esteacutetica nietzscheana

e procuraremos construir um paralelo entre o mundo dionisiacuteaco e o mundo metafiacutesico

da vontade schopenhaueriano Temos a intenccedilatildeo de demonstrar a origem desta

16

metafiacutesica da vontade ou seja o criticismo kantiano e sua importacircncia para o conceito

de dionisiacuteaco Demonstraremos tambeacutem as caracteriacutesticas do mundo fenomecircnico

schopenhaueriano em sua identidade com o apoliacuteneo nietzscheano retomando a

epistemologia de Schopenhauer

Realizada a aproximaccedilatildeo e expostas tanto as semelhanccedilas como as

particularidades dos conceitos principais dos dois autores percorreremos sempre

focando um estudo paralelo entre os filoacutesofos outros conceitos que encontram

similaridade em suas esteacuteticas Com esse intuito procuraremos identificar nos dois

filoacutesofos o destaque dado agrave muacutesica dentro de suas teorias e o lugar dado agraves outras artes

em suas obras Discorreremos sobre a criacutetica que eles em uniacutessono fazem ao que

nomeiam racionalismo dogmatismo e o otimismo Finalizadas as aproximaccedilotildees

voltaremos nossa atenccedilatildeo ao aspecto de dissensatildeo que propicia o afastamento

fundamental entre as teorias dos dois filoacutesofos o efeito da trageacutedia Com isto

demonstraremos que a base metafiacutesica comum quando alinhada a pressupostos

esteacuteticos distintos geraraacute a referida dissensatildeo

17

1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES

NA FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA

Por que minha filosofia natildeo encontrou

simpatia e interesse Porque a verdade natildeo

estaacute de acordo com a tagarelice dos tempos

(Schopenhauer)

Neste primeiro capiacutetulo objetivamos apresentar as fontes filosoacuteficas

incutidas no sistema schopenhaueriano no intuito de situar historicamente o surgimento

da filosofia da vontade e trazer agrave baila o seu ambiente circundante bem como as teorias

filosoacuteficas com as quais Schopenhauer se propotildee a dialogar Apontaremos inicialmente

as influecircncias filosoacuteficas assumidamente presentes no sistema schopenhaueriano bem

como aquelas que fundamentam sua metafiacutesica e consequumlentemente sua teoria esteacutetica

Em um segundo momento procuraremos fazer um breve esboccedilo do ambiente artiacutestico-

cultural que dominava o pensamento alematildeo de entatildeo com o qual direta ou

indiretamente Schopenhauer e o jovem Nietzsche se depararam Com isto esperamos

posteriormente demarcar as singularidades que caracterizam as teorias destes filoacutesofos

Ressaltamos todavia que natildeo se trata de um mapeamento completo das fontes que

influenciaram esses autores ndash tarefa que exigiria um esforccedilo bem maior do que aquele

18

proposto por esta pesquisa ndash e sim de um breve panorama que se pautaraacute nas influecircncias

marcantemente presentes em suas obras

No contato com a obra de Schopenhauer a primeira impressatildeo que natildeo

passa despercebida aos seus leitores eacute a qualidade de sua prosa3 Tal qualidade

revelada na diversidade de recursos literaacuterios utilizados pelo autor eacute produto da visiacutevel

erudiccedilatildeo cultivada pelo filoacutesofo Conhecedor do grego do latim e suas respectivas

literaturas Schopenhauer transitava ainda pela obras literaacuterias cientiacuteficas e filosoacuteficas

contemporacircneas em suas liacutenguas originais conhecia o inglecircs o italiano o francecircs e o

espanhol Em sua juventude conviveu com vaacuterias personalidades do meio cultural

germacircnico que frequumlentavam o salatildeo de sua matildee em Weimar dentre eles Goethe a

maior figura das letras germacircnicas com quem teve um relacionamento mais proacuteximo

Sua obra eacute repleta de citaccedilotildees de poetas dramaturgos e seu conhecimento das artes

plaacutesticas e da muacutesica natildeo satildeo superficiais Em suas viagens pela Europa pocircde admirar

diversas esculturas e pinturas e como ele proacuteprio dizia pocircde ler diretamente no ldquolivro

do mundordquo Essa erudiccedilatildeo pode ser notada mesmo diante do desconhecimento de sua

biografia pela observaccedilatildeo da enorme quantidade de citaccedilotildees e menccedilotildees que estatildeo

espalhadas no interior de suas obras traduzidas ou como em sua maior parte citadas

em suas respectivas liacutenguas Frequumlentava as mais diversas aacutereas de conhecimento de sua

eacutepoca como sustenta Aramayo

3 O cuidado com a qualidade da produccedilatildeo literaacuteria tanto no que se refere agrave clareza quanto agrave riqueza de

recursos linguumliacutesticos eacute uma das caracteriacutesticas que Schopenhauer e Nietzsche tecircm em comum Esta

qualidade torna-se mais evidente ainda quando seus trabalhos satildeo natildeo raramente comparados com os

escritos filosoacuteficos alematildees daquele periacuteodo principalmente aos de Fichte Schelling e Hegel O elogio agrave

prosa schopenhaueriana feito por literatos e filoacutesofos contemporacircneos influenciados por sua obra pode

ser ilustrado agrave exaustatildeo entre eles encontram-se Thomas Mann Goethe Wittgenstein e o proacuteprio

Nietzsche ldquoMas a imensa forccedila de penetraccedilatildeo deste pensamento explica-se antes de tudo pelo fato de o

autor ser ao lado de Nietzsche o maior entre os escritores filosoacuteficos alematildeesrdquo (Rosenfeld 1996 177)

Jorge Luis Borges em uma entrevista publicada por Die Welt em 25 de marccedilo de 1975 realizava esta

confissatildeo ltPara mim existe um escritor alematildeo ao qual prefiro Schopenhauer Sei que deveria dizer

Goethe poreacutem Schopenhauer me interessa muitiacutessimo mais Tanto que estudei alematildeo ndash que aprendi

sobre os versos de Heine ndash fundamental e especificamente para poder ler a Schopenhauer em sua proacutepria

liacutenguagt (Aramayo 2001 18)

19

ldquoEm sua busca pela verdade Schopenhauer natildeo desdenha

nenhum aliado Os dramaturgos novelistas e poetas estatildeo quando

menos em peacute de igualdade com os mais egreacutegios filoacutesofos A perspicaacutecia

de Shakespeare ou a genialidade de Voltaire e a sutileza de Goethe nada

devem para a eloquumlecircncia Platocircnica a precisatildeo de um Spinoza e o rigor

conceitual do admirado Kant Sua curiosidade natildeo conhece limites nem

prejuiacutezo algum e por esta razatildeo tampouco menospreza quando o

considera oportuno prestar suficiente atenccedilatildeo aos fenocircmenos

paranormais agrave hipnose ou ao caacutelculo cabaliacutestico se entende que em

algo isto pode servir-lhe para demonstrar sua tese ou avaliar algumas de

suas intuiccedilotildees E na mesma direccedilatildeo aponta seu grande empenho por

incorporar o pensamento das religiotildees orientais a nosso acervo cultural

na possibilidade de um enriquecimento muacutetuordquo (Aramayo 2001 14-15)

A comparaccedilatildeo feita atraveacutes de metaacuteforas4 paraacutebolas ou alegorias em

sua maioria retiradas de obras literaacuterias ou cientiacuteficas torna-se recurso literaacuterio

constantemente presente na obra do filoacutesofo e ao mesmo tempo termocircmetro de suas

influecircncias e de seu relacionamento com o pensamento de seus contemporacircneos Tais

recursos satildeo utilizados contudo com o objetivo consciente de construir conhecimento

de ilustrar a mateacuteria do seu pensamento Nas palavras do filoacutesofo ldquoAs comparaccedilotildees satildeo

de grande valor na medida em que reduzem uma relaccedilatildeo desconhecida a uma

conhecida Inclusive as comparaccedilotildees mais detalhadas transformadas em paraacutebola ou

alegoria satildeo somente a reduccedilatildeo de uma relaccedilatildeo qualquer agrave sua exposiccedilatildeo mais

simples ilustrativa e palpaacutevelrdquo (Schopenhauer SOE 86) Se o nosso objetivo eacute mostrar

as raiacutezes da filosofia de Schopenhauer ou seja as influecircncias que formaram a mateacuteria

de seu pensamento eacute sobre esta mateacuteria que devemos nos debruccedilar Natildeo podemos

contudo nos furtar a apontar a riqueza das fontes formalmente presentes em seus

escritos5 A percepccedilatildeo da presenccedila desta numerosa miscelacircnea de referecircncias dentro da

4 ldquoSua profusa e brilhante utilizaccedilatildeo das metaacuteforas eacute o que o converte sem duacutevida alguma em um grande

escritor cujo estilo se nos afigura tatildeo ameno quanto sugestivordquo (Aramayo 2001 54) 5 Mateacuteria e forma satildeo na concepccedilatildeo do filoacutesofo planos ou instacircncias da produccedilatildeo escrita que servem

como referecircncia para o julgamento de valor do pensamento de um autor ldquo Um livro nunca pode ser mais

do que a impressatildeo dos pensamentos do autor O valor desses pensamentos reside na mateacuteria ou seja

naquilo sobre o que ele pensou ou na forma isto eacute na elaboraccedilatildeo da mateacuteria naquilo que pensou a

respeitordquo (Schopenhauer SOE 11) A importacircncia dada agrave forma por Schopenhauer seraacute melhor

esclarecida quando posteriormente apresentarmos a caracteriacutestica fundamentalmente epistemoloacutegica de

toda produccedilatildeo artiacutestica dentro de sua metafiacutesica do belo

20

obra schopenhaueriana diz-nos algo sobre seu estilo e seu arcabouccedilo cultural

entretanto quando voltamo-nos para a busca das influecircncias diretamente presentes em

seu sistema ie agraves raiacutezes da mateacuteria de seu pensamento percebemos que elas natildeo satildeo

tatildeo numerosas

Uma leitura das fontes filosoacuteficas do sistema schopenhaueriano torna-se

diferentemente do que ocorre em outros sistemas de seu tempo menos trabalhosa por

dois motivos Primeiramente o autor natildeo esconde suas influecircncias mas ao contraacuterio

faz questatildeo de apontaacute-las citaacute-las e quando lhe parece necessaacuterio as critica ou exalta

Em segundo lugar o que facilita o mapeamento destas fontes eacute a caracteriacutestica de

unidade do sistema schopenhaueriano como um todo Apesar da longevidade do

filoacutesofo e da distacircncia temporal entre suas obras suas intuiccedilotildees fundamentais

continuaram sendo as mesmas ao longo de sua vida Nas palavras de Rosset

ldquoSchopenhauer eacute homem de um soacute livro o MVR e de um soacute pensamento (qualificado

por ele mesmo de ltpensamento uacutenicogt nas primeiras linhas de sua obra)rdquo (2005 35)6

Natildeo satildeo poreacutem coetacircneas as influecircncias que marcaram a obra do filoacutesofo

como talvez a constante menccedilatildeo a seus contemporacircneos possa sugerir Nas palavras do

filoacutesofo como citado por Lefranc (2005 17) ldquoPude amar prosseguir aperfeiccediloar a

minha obra soacute por ela mesma em tranquumlilidade completa ao abrigo de toda influecircncia

externa e meus contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes

permaneci estranhosrdquo Conhecia a filosofia de seu tempo todavia natildeo a tinha como

interlocutora na verdade a desdenhava satildeo famosas as criacuteticas de Schopenhauer contra

as filosofias de seus contemporacircneos principalmente as de Fichte Schelling e Hegel

6 Sobre a unidade da produccedilatildeo schopenhaueriana destacamos aleacutem de Rosset os apontamentos de outros

dois de seus maiores comentadores Arthur Huumlbscher e Alexis Philonenko Na introduccedilatildeo aos manuscritos

schopenhauerianos Huumlbscher aponta a importacircncia dos manuscritos na percepccedilatildeo desta unidade uma vez

que podemos notar em diversas fases da vida do filoacutesofo o desenvolvimento dos temas pontuais que

marcaram sua obra principal Vide Hubscher Introduction Manuscript Remains 1985 Alexis

Philonenko trata desta unidade no proacutelogo de sua obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia

(Philonenko 1989 41-45)

21

(chamados de ldquoos trecircs sofistasrdquo) Quando faz referecircncias a eles comumente estaacute

imbuiacutedo de trecircs propoacutesitos criticar a qualidade formal de suas produccedilotildees

principalmente no que tange ao uso da liacutengua germacircnica apontar uma motivaccedilatildeo

individualista (subsistecircncia pessoal e status social) que existiria por traacutes de suas

elucubraccedilotildees filosoacuteficas e ressaltar a falta de atenccedilatildeo por parte daqueles filoacutesofos no

que se refere ao conteuacutedo da primeira criacutetica kantiana

Schopenhauer diagnosticava em seu tempo um periacuteodo de

empobrecimento da expressatildeo literaacuteria e do uso da liacutengua germacircnica e apontava como

os principais responsaacuteveis por estes acontecimentos os ldquoprofessores de filosofiardquo e seus

disciacutepulos As investidas schopenhauerianas contra a filosofia de seus contemporacircneos

podem ser encontrada em praticamente todas as suas obras mas estatildeo concentradas de

forma mais persistente em sua produccedilatildeo mais tardia na segunda ediccedilatildeo da QRPRS de

MVR em seus ensaios sobre a liberdade e o fundamento da moral e nos PP 7

Nesta

uacuteltima obra temos dedicados a estas criacuteticas alguns textos que podemos destacar Sobre

o ofiacutecio de escritor Da leitura e dos livros Da liacutengua e das palavras e Sobre a filosofia

universitaacuteria A liacutengua alematilde no que se refere agrave sua capacidade expressiva era tida em

mais alta consideraccedilatildeo por nosso filoacutesofo Afirmava que dentre as liacutenguas modernas

era ldquoa uacutenica na qual se pode escrever quase tatildeo bem quanto em grego ou em latimrdquo

(Schopenhauer SOE 72) Esta capacidade de expressatildeo de uma liacutengua eacute segundo o

filoacutesofo resultado de sua aptidatildeo em representar conceitos Desta forma na medida em

que surgem novos conceitos a elaboraccedilatildeo de novas palavras que os representem eacute um

sinal de evoluccedilatildeo adequaccedilatildeo e riqueza da liacutengua Entretanto para o filoacutesofo os

neologismos e adaptaccedilotildees criados por seus contemporacircneos natildeo eram resultados da

7 Muitos historiadores da filosofia bioacutegrafos e comentadores apontam que esta criacutetica adveacutem do

ressentimento pelo fracasso de Schopenhauer como docente na universidade de Berlim onde Hegel

reinava absoluto bem como da falta de reconhecimento de sua filosofia diante do sucesso dos professores

da mesma universidade

22

tentativa de representaccedilatildeo de novos conceitos mas ao contraacuterio eram comprovaccedilatildeo de

sua ldquopobreza de espiacuterito que a todo custo quer colocar algo no mercado e por natildeo ter

novos pensamentos chega com palavras novasrdquo (Schopenhauer SOE 129)

Schopenhauer condenava a atitude de seus contemporacircneos de utilizarem-se de

artifiacutecios como a natildeo designaccedilatildeo do caso a expressatildeo dos preteacuteritos por meio do

imperfeito a supressatildeo dos prefixos e outros subterfuacutegios para com isso disfarccedilar a sua

imprecisatildeo conceitual De acordo com Schopenhauer tratavam displicentemente a

liacutengua alematilde por dois motivos por natildeo possuiacuterem uma mateacuteria conceitualmente

relevante a ser expressa ou entatildeo para conscientemente causar a impressatildeo de que a

possuem e neste caso a responsabilidade pela natildeo compreensatildeo do texto seria atribuiacuteda

agrave incompetecircncia intelectual do leitor

Os que compotildeem discursos difiacuteceis obscuros enleados e

ambiacuteguos natildeo sabem ao certo o que querem dizer tecircm somente uma

consciecircncia vaga a esse respeito que luta primeiro por uma ideacuteia poreacutem

amiuacutede querem tambeacutem ocultar de si mesmos e dos outros que na

realidade eles natildeo tecircm nada a dizer Como Fichte Schelling e Hegel

querem parecer saber o que natildeo sabem pensar o que natildeo pensam e dizer

o que natildeo dizem Algueacutem que tenha algo correto a dizer se esforccedilaraacute por

exprimi-lo de maneira indistinta ou distinta (Schopenhauer SOE 39)

Podemos perceber entatildeo que ao criticar o estilo ldquoobscurordquo e ldquopomposordquo de seus

contemporacircneos Schopenhauer aponta como causa deste estilo natildeo somente a sua falta

de mateacuteria mas tambeacutem uma atitude consciente e arquitetadamente maldosa e com

toda a sua forccedila retoacuterica condena esta atitude

Nobre bdquoatualidade‟ magniacuteficos epiacutegonos geraccedilatildeo crescida no

leite materno da filosofia hegeliana Pela gloacuteria eterna quereis apertar

vossas garras em nossa antiga liacutengua para que a marca com um icnoacutelito

conserve para sempre o vestiacutegio de vossa existecircncia insiacutepida e sombria

Mas Dicirc Meliora Fora paquidermes fora Esta eacute a liacutengua alematilde Nela se

expressaram homens ou melhor nela cantaram grandes poetas e grandes

pensadores escreveram Arredai as patas Ou natildeo tereis o que comer (Soacute

isso os assusta) (Schopenhauer SOE 72-73)

23

A uacuteltima frase desta citaccedilatildeo nos eacute aclarada pelo texto Sobre a filosofia universitaacuteria

onde o filoacutesofo expotildee os argumentos de sua criacutetica agrave filosofia produzida em seu tempo

Para Schopenhauer os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo podem devido agrave sua funccedilatildeo

estatal se imiscuir do compromisso poliacutetico-religioso que seu cargo exige e

conseguintemente sustentados pelo Estado tratam de fazer sua apoteose Nas palavras

de Cacciola constantes na introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo brasileira do referido texto

ldquoSchopenhauer eacute um continuador da criacutetica romacircntica ao filisteiacutesmo que se origina em

Tieck A ironia que visa os homens de vida tatildeo regular como o reloacutegio lhe eacute bem

familiar O filisteu eacute o erudito pedante que soacute pensa na proacutepria vantagem O professor

de filosofia que pauta seus ensinamentos de acordo com os ditames do Estado e da

religiatildeo eacute o tipo acabado do filisteu A idolatria do Estado eacute a apoteose do filisteiacutesmo

(Schopenhauer SFU XXX) Por traacutes das ideacuteias dos ldquofiloacutesofos de profissatildeordquo estaria

incutido o retorno disfarccedilado da ldquoteologia judaicardquo de uma ldquopsicologia racionalrdquo da

ldquoliberdade da vontaderdquo e outros dogmas que de acordo com Schopenhauer refletem a

sua vocaccedilatildeo de trabalharem ldquoin maiorem Dei gloriamrdquo como exigido pela ideologia

estatal daquele periacuteodo Natildeo podem sob a pena de perderem o sustento financeiro

pessoal e familiar bem como sob o custo de perderem o status que o cargo lhes confere

contrariar os dogmas patronais

ldquo[] o intelecto dessa gente permanece fiel agrave sua destinaccedilatildeo

natural de trabalhar a serviccedilo da vontade como normalmente acontece

Mas por isso mesmo existe sempre uma intenccedilatildeo como fundamento do

seu agir e pensar eles tecircm fins o tempo todo e soacute tomam conhecimento

do que diz respeito a esses fins e portanto soacute do que corresponde a

esses fins A atividade do intelecto liberto da vontade condiccedilatildeo da pura

objetividade e por isso de todas as grandes realizaccedilotildees permanece-lhes

eternamente estranha ndash eacute uma faacutebula para seu coraccedilatildeordquo (Schopenhauer

SFU 63)

Desta forma os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo estariam voltados para a investigaccedilatildeo

objetiva da ldquoverdaderdquo a qual exigiria o distanciamento de todo e qualquer interesse

24

pessoal De acordo com o sistema schopenhaueriano tal distanciamento eacute um dom raro

com o qual a natureza a poucos contempla Na metafiacutesica schopenhaueriana a natureza

eacute aristocraacutetica O gecircnio eacute fenocircmeno raro seja ele filoacutesofo ou artista A percepccedilatildeo

objetiva do mundo alheia aos interesses pessoais da vontade individual eacute uma exceccedilatildeo

que soacute se manifesta raramente e as pessoas atadas aos interesses pessoais de sua

vontade natildeo podem reconhececirc-lo imediatamente Estes gecircnios produzidos pela natureza

seriam os verdadeiros educadores do mundo e os ldquoprofessores de filosofiardquo ao tentar

representar este papel que soacute agrave natureza cabe eleger causam-lhe repulsa

Tantas mentes comuns que se acham por cargo e profissatildeo no

dever de representar papeacuteis que a natureza nem ao menos lhes atribuiacutera e

de transportar cargas que exigem ombros de gigantes espirituais

oferecem na realidade um espetaacuteculo deveras lamentaacutevel Pois escutar

cantar os roucos e ver danccedilar os coxos eacute penoso mas ouvir filosofar a

mente limitada eacute insuportaacutevel (Schopenhauer SFU 34)

Prova do embotamento da capacidade de reconhecimento de uma produccedilatildeo genial era

para o filoacutesofo o fato de seus contemporacircneos ignorarem ou mesmo passarem agrave

margem do que seria a mais importante produccedilatildeo filosoacutefica do periacuteodo a cisatildeo entre o

real e o ideal perpetrada pela primeira criacutetica kantiana Esta era para o filoacutesofo a maior

prova do demeacuterito filosoacutefico de seus contemporacircneos preocupados com seus interesse

pessoais alheios a uma observaccedilatildeo objetiva do mundo natildeo levaram em consideraccedilatildeo os

limites impostos pela primeira criacutetica kantiana a toda investigaccedilatildeo racional

Depois de Kant ter cortado o nervo de todas as provas possiacuteveis

da teologia ndash tatildeo incisivamente que desde entatildeo ningueacutem mais pocircde

meter-se com elas ndash o esforccedilo filosoacutefico em quase cinquumlenta anos tem

consistido nas diversas tentativas de insinuar sutil e astuciosamente a

teologia e os escritos filosoacuteficos nada mais satildeo na sua maioria do que

tentativas infrutiacuteferas de reanimar um cadaacutever sem vida (Schopenhauer

SFU 81)

Natildeo nos interessa aqui adentrarmo-nos aos reais motivos existentes por

traacutes dos vitupeacuterios schopenhauerianos contra os pensadores de seu tempo nem

25

tampouco fazer juiacutezo valorativo sobre a importacircncia da filosofia da vontade em

comparaccedilatildeo ao idealismo absoluto Dentro do objetivo proposto qual seja situar

historicamente a filosofia da vontade e apontar suas influecircncias o importante eacute ressaltar

que a filosofia contemporacircnea a Schopenhauer natildeo fez efeito sobre a sua proacutepria a ponto

de modificaacute-la em seu conteuacutedo conforme esclarece o proacuteprio filoacutesofo ldquo [] meus

contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes permaneci

estranhosrdquo (apud Lefranc 2005 17) Eacute fundamental verificarmos que apesar do

sistema schopenhaueriano ter se desenvolvido agrave margem do idealismo de entatildeo seu

autor natildeo o desconhecia e muitas das ilustraccedilotildees e argumentaccedilotildees utilizadas por ele na

explicaccedilatildeo de suas teorias apoiavam-se nesta sua contenda com o seu tempo

Entretanto como a filosofia de seu tempo pretende-se herdeira do kantismo assim

tambeacutem procede Schopenhauer e a suas criacuteticas ao idealismo absoluto estatildeo

fundamentadas em sua pretensatildeo a uma heranccedila direta da filosofia kantiana Sobre a

heranccedila de Kant Schopenhauer esclarece ldquoEm todo caso natildeo reconheccedilo que tenha

acontecido algo na filosofia entre ele e mim por conseguinte ligo-me imediatamente a

elerdquo (Schopenhauer MVR 525)

Natildeo obstante as diversas criacuteticas ao retorno kantiano ao dogmatismo8

das quais a obra de Schopenhauer estaacute recheada sua admiraccedilatildeo por ele foi tambeacutem

abundantemente expressa Considerava-o ldquoa inteligecircncia mais original jaacute criada pela

naturezardquo (Schopenhauer SFU52) e afirmava que seus escritos capitais eram o ldquo[]

fenocircmeno mais importante que ocorreu ao longo dos uacuteltimos dois mil anos na filosofia

[]rdquo (Schopenhauer MVR 22) O maior reflexo desta admiraccedilatildeo pode ser observada

8 Nas palavras de Cacciola ldquoO criticismo de Kant teria segundo Schopenhauer perdido sua forccedila inicial

na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura Ou seja Schopenhauer acusa Kant de uma ldquorecaiacuteda no

dogmatismordquo por ter amenizado seu confronto com a teologia A ameaccedila dogmaacutetica jaacute configurada na

filosofia teoacuterica concretiza-se na Eacutetica de Kant quando esta acolhe como postulados Deus

imortalidade da alma e liberdade No poacutes-kantismo a importacircncia crescente atribuiacuteda agrave filosofia praacutetica

de Kant a expensas de sua criacutetica do conhecimento teria levado a uma espeacutecie de contaminaccedilatildeo da

razatildeo teoacuterica pela razatildeo praacutetica fazendo com que a primeira se transformasse num oacutergatildeo apto para

captar o Absolutordquo (Cacciola 1994 20)

26

no fato de que eacute da filosofia kantiana que Schopenhauer retira o leitmotiv para o

desenvolvimento da ideacuteia central9 de sua filosofia Esta ideacuteia central eacute aquela contida

concisamente no tiacutetulo de sua obra principal O mundo como vontade e como

representaccedilatildeo10

A dualidade formada entre representaccedilatildeo e vontade atraveacutes da qual

Schopenhauer acredita ter desvendado o ldquomisteacuteriordquo cosmoloacutegico eacute uma apropriaccedilatildeo

assumida dos conceitos kantianos de fenocircmeno e coisa-em-si respectivamente

Dizemos apropriaccedilatildeo pois aqueles conceitos satildeo acrescidos na filosofia

schopenhaueriana de caracteriacutesticas singulares Eacute com base nesta dualidade de

perspectivas de conhecimento do mundo inspirada na primeira criacutetica kantiana que o

filoacutesofo desenvolve as demais teorias que compotildeem seu sistema sejam elas a esteacutetica a

eacutetica a poliacutetica etc

Para Schopenhauer ldquoo maior meacuterito de Kant eacute a distinccedilatildeo entre

fenocircmeno e coisa-em-sirdquo (Schopenhauer MVR 526) Esta distinccedilatildeo foi o que

possibilitou a ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo realizada sobre o dogmatismo anterior A partir

daquele momento ldquoo mundo objetivo como o conhecemos natildeo pertence agrave essecircncia das

coisas em si mesmas mas eacute seu mero FENOcircMENO condicionado exatamente por

aquelas mesmas formas que se encontram a priori no intelecto

humanordquo(Schopenhauer MVR 530) Na teoria kantiana temos o espaccedilo e o tempo

como formas da sensibilidade que na filosofia de Schopenhauer satildeo associadas agrave

faculdade do entendimento juntamente com a causalidade uacutenica das doze categorias

kantianas do entendimento mantidas por Schopenhauer em seu sistema Desta forma o

mundo enquanto representaccedilatildeo eacute aquele que se apresenta para o sujeito enquanto objeto

9 Quando dizemos ideacuteia central havemos de lembrar que no sistema schopenhaueriano esta categorizaccedilatildeo

eacute singular (o tema seraacute tratado no iniacutecio do proacuteximo capiacutetulo) 10

A importacircncia que o filoacutesofo daacute ao tiacutetulo de uma obra eacute esclarecedora para a compreensatildeo da

importacircncia de sua ideacuteia central ldquoo que o sobrescrito deve ser para uma carta eacute o que um tiacutetulo deve ser

para um livro ou seja antes de tudo deve ter o objetivo de destinaacute-lo agrave parte do puacuteblico que pode se

interessar por seu conteuacutedo Sendo assim o tiacutetulo precisa ser caracteriacutestico e por ser naturalmente

breve deve ser conciso lacocircnico pregnante e se possiacutevel um monograma do conteuacutedordquo

(Schopenhauer SOE 09-10)

27

condicionado por estas trecircs formas presentes a priori no intelecto humano tempo

espaccedilo e causalidade Quanto ao mundo noumecircnico que dentro da teoria kantiana eacute um

ldquox desconhecidordquo Schopenhauer o explica atraveacutes da Vontade sua traduccedilatildeo da coisa-

em-si Essa dualidade que traz agrave tona a ldquocompleta diversidade entre o ideal e o realrdquo

(Schopenhauer MVR 527) doutrina que de acordo com Schopenhauer (MVR 528) foi

expressa por Kant de forma soacutebria calma demonstrada e incontestaacutevel jaacute havia sido

expressa tambeacutem em linguagem mais miacutetica e poeacutetica por outras duas doutrinas que

tambeacutem estatildeo profundamente presentes na obra Schopenhaueriana Platatildeo e os escritos

indianos dos Vedas e Puranas

Os estudos das obras de Platatildeo e Kant foram recomendaccedilatildeo de Schultze

um dos professores de Schopenhauer em Gottingen (Weissmann 1980 54) e formam os

pilares filosoacuteficos do sistema schopenhaueriano A separaccedilatildeo entre o real e o ideal

executada por Kant eacute vista tambeacutem na obra platocircnica Sua teoria das ideacuteias bem como

sua alegoria da caverna satildeo expressotildees de uma intuiccedilatildeo da existecircncia daquela separaccedilatildeo

O que Kant teria sistematizado a seu modo eacute a mesma verdade que ldquojaacute Platatildeo

incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte

modo este mundo que aparece aos sentidos natildeo possui nenhum verdadeiro ser mas

apenas um incessante devir ele eacute e tambeacutem natildeo eacute sua apreensatildeo natildeo eacute tanto um

conhecimento mas uma ilusatildeordquo (Schopenhauer MVR 528)

Aleacutem de Platatildeo os livros sagrados dos indianos afirmavam esta ldquoilusatildeordquo

ldquofantasmagoriardquo do mundo e constituem tambeacutem uma fonte frequumlentemente utilizada

por Schopenhauer O contato do nosso filoacutesofo com o pensamento oriental se deu

quando do seu encontro com o orientalista Friedrich Majer no salatildeo de sua matildee em

28

Weimar A partir de entatildeo o interesse do filoacutesofo pelo pensamento oriental foi se

intensificando ao longo de sua vida 11

A mesma verdade representada de modo completamente outro eacute

tambeacutem uma doutrina capital dos vedas e puranas a saber a doutrina de

Maia pela qual natildeo se entende outra coisa senatildeo aquilo que Kant nomeia

o fenocircmeno em oposiccedilatildeo agrave coisa-em-si pois a obra de maia eacute

apresentada justamente como este mundo visiacutevel no qual estamos um

efeito maacutegico que aparece na existecircncia uma aparecircncia inconstante e

inessencial em si destituiacuteda de ser comparaacutevel agrave ilusatildeo de oacutetica e ao

sonho um veacuteu que envolve a consciecircncia humana um algo do qual eacute

igualmente falso e igualmente verdadeiro dizer que eacute ou natildeo eacute

(Schopenhauer MVR 528)

Estas trecircs doutrinas estavam admitidamente presentes quando da

elaboraccedilatildeo do nuacutecleo conceitual fundamental da posteriormente nominada Filosofia da

Vontade Entretanto aleacutem de formarem seu nuacutecleo conceitual podemos encontraacute-las

ainda posteriormente em outros instantes desta filosofia O pensamento oriental seraacute

figura fortemente presente na eacutetica schopenhaueriana desenvolvida no quarto livro do

Mundo onde o filoacutesofo adotaraacute como fundamento de sua eacutetica o sentimento da

compaixatildeo jaacute presente na doutrina budista Platatildeo e Kant satildeo ainda influecircncias

fundamentais como veremos no proacuteximo capiacutetulo da esteacutetica schopenhaueriana O

primeiro novamente atraveacutes de sua teoria das ideacuteias seraacute utilizado por Schopenhauer na

definiccedilatildeo do objeto artiacutestico Do segundo poderemos notar sua influecircncia nas teorias

schopenhauerianas do sublime da imaginaccedilatildeo e da contemplaccedilatildeo desinteressada todas

elas fundamentais agrave compreensatildeo da teoria da arte poeacutetica

- - - - - - - - - -

11

Suas fontes principais eram o Oupnekacutehat uma traduccedilatildeo latina dos vedas e o Asiatic Journals jornal

publicado pela sociedade asiaacutetica fundada em 1784 Para uma referecircncia completa das citaccedilotildees orientais

na obra de Schopenhauer veja o apecircndice do artigo de Moira Nicholls The influences of Eastern Thought

on Schopenhaueracutes Doctrine of the Thing-in-itself (in Janaway 1999 197-204)

29

Apresentadas as principais influecircncias teoacutericas do sistema

schopenhaueriano passemos a uma breve descriccedilatildeo do ambiente cultural que naquele

momento tinha como foco um projeto de fundaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para o teatro e a

literatura germacircnicas Tal projeto envolveu os mais importantes dramaturgos criacuteticos

escritores e pensadores do periacuteodo imediatamente anterior a Schopenhauer12

e eacute

tambeacutem posteriormente retomado por Nietzsche em seu Nascimento da Trageacutedia Sua

importacircncia para a filosofia da vontade pode ser medida pela recorrente referecircncia feita

a estes pensadores nas obras dos filoacutesofos Seu iniacutecio em meados do seacuteculo XVIII deu-

se pela influecircncia exercida pelo historiador da arte Johann J Winckelmann junto aos

escritores poetas e dramaturgos posteriores dentre eles Lessing Goethe e Schiller

A influecircncia winckelmanniana que de acordo com Butler (1958 11)

criou ondas cujo violento distuacuterbio ldquoainda varrem as praias do seacuteculo XXrdquo se pautou

em duas noccedilotildees fundamentais13

a imitaccedilatildeo dos antigos e o belo ideal Winckelmann

propunha um novo modelo no qual a arte germacircnica deveria se basear para atingir uma

grandiosidade rara e ldquoinimitaacutevelrdquo a imitaccedilatildeo dos gregos Por esta imitaccedilatildeo o

historiador natildeo propunha uma mera coacutepia das obras de arte gregas poreacutem uma imitaccedilatildeo

do modo de produccedilatildeo artiacutestica dos gregos qual seja sintetizar a beleza ideal descoberta

na observaccedilatildeo da diversidade objetiva da natureza Esta proposta de um retorno ao

modelo antigo coloca Winckelmann na esteira da conhecida querela entre antigos e

modernos e eacute a igniccedilatildeo para o periacuteodo literaacuterio conhecido como classicismo germacircnico

Esta disputa quanto agrave valorizaccedilatildeo das obras poeacuteticas antigas ou modernas estaraacute de um

modo ou de outro presente nas teorias schopenhaueriana e nietzscheana da trageacutedia

12

De acordo com Schopenhauer as obras de tais poetas e escritores assim como a filosofia de Kant satildeo

exemplos para os quais a literatura e a filosofia pobres de seu tempo deveriam se voltar No que se refere

ao uso da liacutengua ele aconselha ldquoLede vede qual liacutengua Winckelmann Lessing Klopstock Wieland

Goethe Buumlrger Schiller falaram e emulai-a mas natildeo fazei o mesmo com o jargatildeo estupidamente

excogitado pelos miseraacuteveis literatos atuais e entre eles pelos professores que vatildeo agrave escola de liacutenguardquo

(Schopenhauer SOE 57-58) 13

Esta duas noccedilotildees fundamentais satildeo ressaltadas por Suumlssekind e Machado em seus trabalhos sobre o

tema Veja Suumlssekind 2008 67-77 e Machado 2006 9-14

30

Como veremos posteriormente Schopenhauer privilegiaraacute a trageacutedia moderna em

detrimento da antiga argumentando que aquela cumpre com maior competecircncia o seu

objetivo enquanto forma de arte qual seja provocar repulsa agrave vontade de viver e

estimular sua negaccedilatildeo Apesar deste privileacutegio pelas obras traacutegicas modernas o filoacutesofo

natildeo deixa como seus contemporacircneos de ter os gregos como modelo e natildeo satildeo raros

seus elogios agraves produccedilotildees helecircnicas Para Schopenhauer Winckelmann foi para a

histoacuteria da arte assim como ele o eacute para a da filosofia um exemplo do modo epiciacuteclico

atraveacutes do qual a natureza de tempo em tempo faz avanccedilar o conhecimento do gecircnero

humano Para o filoacutesofo a retomada do projeto kantiano realizada pelo seu sistema eacute a

demonstraccedilatildeo de que entre ele e Kant nenhum conhecimento foi produzido Como

exemplo deste esquema epiciacuteclico na histoacuteria da arte Schopenhauer utiliza-se do

retorno de Winckelmann agrave beleza claacutessica o que nos mostra a importacircncia dada pelo

filoacutesofo agrave forma de arte grega bem como ao projeto inaugurado pelo historiador da arte

Apoacutes explicar o esquema epiciacuteclico da evoluccedilatildeo dos progressos humanos

Schopenhauer diz

Para quem deseja poreacutem ter uma prova do esquema geral dos

epiciclos aqui exposto com base na histoacuteria da arte basta observar a

escola de escultura de Bernini que florescia ainda no seacuteculo passado

particularmente em seu desenvolvimento francecircs sucessivo e que

representava a natureza comum em vez da beleza claacutessica e o decoro do

minueto francecircs em vez da simplicidade e da graccedila antigas Tal escola

faliu quando apoacutes a repreensatildeo de Winckelmann voltou-se agrave escola dos

antigos (Schopenhauer SOE 110)

Nietzsche por sua vez seguiraacute o caminho winckelmanniano de exaltaccedilatildeo da forma de

arte antiga apresentando a trageacutedia grega como modelo para a arte moderna e elogiando

a iniciativa de seus predecessores em valorizar e recuperar a arte helecircnica

31

Conviria que alguma vez se pesasse diante dos olhos de um juiz

insubornaacutevel em que tempo e em que homens o espiacuterito alematildeo se

esforccedilou mais vigorosamente por aprender dos gregos e se admitirmos

com confianccedila que esse louvor uacutenico deveria ser atribuiacutedo agrave nobiliacutessima

luta de Goethe Schiller e Winckelmann pela cultura haveria em todo

caso que acrescentar que desde aquele tempo e depois das influecircncias

imediatas daquela luta tornou-se cada vez mais fraca de maneira

incompreensiacutevel a aspiraccedilatildeo de se chegar por uma mesma via agrave cultura e

aos gregos (Nietzsche NT 120)

Podemos perceber entatildeo a importacircncia do helenismo proposto por Winckelmann no

pensamento germacircnico ao observarmos a sua duraccedilatildeo tendo em vista que mais de um

seacuteculo separa o historiador da arte e o filoacutesofo da vontade de poder o que confirma a

forccedila de suas propostas para uma cultura em formaccedilatildeo e justifica o epiacuteteto com o qual

Butler caracterizou este periacuteodo dizendo que nele vemos ldquoa tirania da Greacutecia sobre a

Alemanhardquo14

O segundo ponto fundamental da teoria da arte winckelmanniana o belo

ideal natildeo provocou menor interesse em seu tempo Este belo ideal era alcanccedilado a

partir da reuniatildeo em uma uacutenica obra harmocircnica daquilo que o artista observa de mais

belo na natureza

A natureza tem seus defeitos o corpo mais belo natildeo deixa de tecirc-los e

nele encontramos frequumlentemente partes que em outros satildeo mais belas ou

podem supor-se mais perfeitas [] Os gregos trataram de reunir as formas

elegantes de vaacuterios corpos belos como sabemos pelo diaacutelogo de Soacutecrates com o

ceacutelebre pintor Parrasio [] Esta seleccedilatildeo das partes belas e sua harmocircnica

associaccedilatildeo em uma soacute figura produziu a beleza ideal (Winckelmann 2002

130)

Tal beleza encontrou sua manifestaccedilatildeo primeira na Greacutecia do periacuteodo helecircnico devido

ao favorecimento das condiccedilotildees geograacutefico-climaacuteticas15

e poliacuteticas16

Aleacutem da beleza

14

Tiacutetulo de sua obra Butler 1958 15

Sobre a influecircncia climaacutetica Winckelmann deduz ldquoA natureza depois de haver se manifestado em

gradaccedilotildees extremas de frio e de calor se estabeleceu na Greacutecia como em seu centro e por isso reina

naquele paiacutes uma temperatura intermediaacuteria entre o inverno e o veratildeo E quanto mais se aproxima deste

centro mais claridade e serenidade oferece e suas obras se manifestam em formas mais graciosas e

amaacuteveis e com detalhes mais caracteriacutesticos e decididosrdquo (Winckelmann 2002106) 16

Sobre as condiccedilotildees poliacuteticas sejam elas patriarcais democraacuteticas ou tiracircnicas Winckelmann conclui o

seguinte ldquoCom relaccedilatildeo ao regime poliacutetico e o governo da Greacutecia a liberdade eacute uma das causas da

preeminecircncia dos gregos na arte Tambeacutem a liberdade parece ter estabelecido na Greacutecia a sua sede existia

32

formal retirada da diversidade das formas naturais eleitas as mais belas as obras gregas

eram exemplares devido agrave importacircncia dada pelos artistas agrave sua expressatildeo A obra de

arte deve sua forccedila tanto agrave beleza das formas quanto agrave expressatildeo da alma nela contida

De acordo com Winckelmann ldquoa expressatildeo de uma alma grande vai muito aleacutem da

plasmaccedilatildeo de uma bela naturezardquo isto ocorre devido ao fato de que para o historiador

da arte ldquona Greacutecia a sabedoria estendia a matildeo agrave arte e insuflava nas figuras almas

mais que comunsrdquo (Winckelmann 1958 19) As caracteriacutesticas que esta expressatildeo deve

possuir satildeo aquelas contidas na passagem mais famosa da obra de Winckelmann na

qual ele descreve ainda como exemplo daquela expressatildeo artiacutestica o grupo estatuaacuterio

do Laocoonte que por sua vez seraacute alvo de uma grande controveacutersia posterior da qual

participaratildeo dentre outros Lessing Herder Goethe Schelling e Schopenhauer

Reproduzimos a passagem de Winckelmann em sua integridade

A caracteriacutestica geral e principal das obras mestras gregas eacute uma

nobre simplicidade e uma serena grandeza tanto na atitude como na

expressatildeo Assim como nas profundidades o mar estaacute sempre calmo por

muito que se agite a superfiacutecie do mesmo modo a expressatildeo nas figuras

dos gregos mostra em meio a todas as paixotildees uma alma grande e

comedida Isso transmite o rosto do Laocoonte ndash e natildeo soacute o dele ndash em

meio agrave mais violenta dor O sofrimento que aparece em todos os

muacutesculos e fibras do corpo e que no baixo ventre contraiacutedo se

experimenta tatildeo intensamente que parecemos senti-lo natildeo se exterioriza

contudo mediante qualquer ira no rosto e em toda a atitude Natildeo lanccedila

um grito terriacutevel tal como Virgiacutelio cantou em seu Laocoonte A abertura

da boca natildeo o permitiria Mais parece um suspiro angustiado como o

descreve Sadolet A dor do corpo e a grandeza da alma estatildeo distribuiacutedos

com igual forccedila atraveacutes de toda a composiccedilatildeo da figura e em certa

medida estatildeo equilibrados Laocoonte sofre mas sofre como o

Filoctetes de Soacutefocles sua dor nos toca a alma mas desejariacuteamos poder

suportar essa dor com a grandeza desse homem (Winckelmann 1958

18-19 grifo nosso)

inclusive junto ao tronos de seus reis que governavam paternalmente a seus suacuteditos antes que mais

ilustrados gozassem do destino de uma completa liberdade Homero chama a Agamemnoacuten de pastor de

seus povos com o que queria designar sua ternura com seus subordinados e sua preocupaccedilatildeo constante

pela felicidade dos mesmos Eacute bem verdade que depois surgiram tiranos mas natildeo o foram mais para uma

determinada cidade e a naccedilatildeo inteira jamais reconheceu um soberano uacutenicordquo (Winckelmann 2002 109)

33

Desta famosa passagem retiramos dois momentos que especialmente nos interessam O

primeiro dele eacute a enunciaccedilatildeo que caracterizaraacute o ideal de beleza das obras gregas nobre

simplicidade e uma serena grandeza Este ideal winckelmanniano de beleza eacute o que

torna a arte grega nas palavras de Suumlssekind ldquoinimitaacutevel e ao mesmo tempo faz dela o

modelo a ser imitadordquo (Suumlssekind 2008 69) Interessa-nos especialmente devido agrave

influecircncia desta definiccedilatildeo para a teoria do jovem professor de filologia da Basileacuteia

Podemos ver ateacute mesmo pelo vocabulaacuterio utilizado para descrever a arte grega a

proximidade e a influecircncia exercida por estes conceitos nas teorias esteacuteticas do primeiro

Nietzsche Luminosidade serenidade harmonia satildeo alguns dos conceitos que

posteriormente seratildeo utilizados por Nietzsche ao definir o seu impulso artiacutestico

apoliacuteneo17

O segundo momento - quando Winckelmann defende o espiacuterito grego na

escultura do Laocoonte em contraposiccedilatildeo ao personagem de Virgiacutelio comparando esta

representaccedilatildeo escultural com o Filoctetes de Soacutefocles - seraacute o precursor do posterior

debate sobre as fronteiras que separam as formas de arte Para Winckelmann ldquoa nobre

simplicidade e a serena grandeza das estatuas gregas eacute tambeacutem a verdadeira

caracteriacutestica dos escritos gregos da melhor eacutepoca dos escritos da escola

socraacuteticardquo(Winckelmann 1958 31) O debate sugerido pela passagem do qual

participaraacute posteriormente o proacuteprio Schopenhauer seraacute iniciado por outro pensador

de grande importacircncia para o projeto cultural alematildeo Gotthold Ephraim Lessing

Lessing em sua obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da

poesia apresentaraacute a contenda que chegaraacute ateacute Schopenhauer Para Lessing o ponto de

discordacircncia com Winckelmann estaacute no motivo pelo qual na escultura o Laocoonte natildeo

17

Segundo Rodriges (2007 93-126) tambeacutem o conceito do impulso dionisiacuteaco estaria mesmo que em

germe presente nos estudos de Winckelmann Segundo seu artigo o mapeamento da origem e

desenvolvimento da discussatildeo sobre os citados impulsos artiacutesticos da natureza ou seja sobre a

importacircncia dos deuses Apolo e Dioniacutesio na cultura grega abrangeria necessariamente diversas aacutereas do

pensamento alematildeo desde Winckelmann dentre elas os estudos filoloacutegicos o movimento romacircntico e as

filosofias idealistas

34

apresenta as caracteriacutesticas de quem grita e lamenta Como vimos para Winckelmann o

conjunto estatuaacuterio em questatildeo eacute exemplar pelo fato de transmitir atraveacutes da atitude

estoacuteica diante da dor a grandeza de alma que seria a regra universal da verdadeira arte

grega Esta grandeza enquanto regra universal estaria ainda de acordo com o

historiador da arte presente tanto nas formas pictoacutericas como nas obras poeacuteticas

Contrapondo-se a Winckelman Lessing afirma - exemplificando atraveacutes de passagens

de poetas queridos ao proacuteprio Winckelmann como Homero e Soacutefocles - que em vaacuterios

momentos da poesia antiga diversos personagens dentre eles deuses e heroacuteis proferem

exaltados lamentos e gritos e isto natildeo lhes subtrai a grandeza da alma Sendo assim se

na poesialdquoo gritar na sensaccedilatildeo de dor corporal pode coexistir muito bem com uma

grande alma portanto a expressatildeo de uma tal alma natildeo pode ser a causa pela qual

apesar disso o artista natildeo quer imitar esse grito no seu maacutermore antes deve haver um

outro motivo por que aqui ele separa-se do seu rival o poeta que expressa esse grito

com o melhor propoacutesitordquo(Lessing 1998 86) O motivo pelo qual em sua representaccedilatildeo

estatuaacuteria o Laocoonte natildeo grita eacute para Lessing uma questatildeo de limitaccedilatildeo da forma de

expressatildeo escultoacuterica que ao se submeter agrave ldquolei da belezardquo natildeo pode representar o grito

desfigurador Em suas palavras

O mestre visava a suprema beleza sob as condiccedilotildees aceitas da dor

corporal Esta em toda a sua violecircncia desfiguradora era incompatiacutevel

com aquela Ele foi obrigado a reduzi-la ele foi obrigado a suavizar o

grito em suspiro natildeo porque o grito denuncia uma alma indigna mas

antes porque ele dispotildee a face de um modo asqueroso (Lessing 1998

92)

Devemos ressaltar que segundo a teoria artiacutestica de Lessing para quem as leis a que

devem obedecer a arte estatildeo ligadas agrave sua interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica a arte eacute

julgada atraveacutes do seu efeito Neste contexto ao conceder a seus personagens

caracteriacutesticas de humanidade como por exemplo a manifestaccedilatildeo da dor atraveacutes de

35

lamentos e gritos o poeta estaria aproximando o heroacutei traacutegico do puacuteblico a ser atingido

e consequumlentemente maximizando a identificaccedilatildeo entre eles e com isto o efeito

esperado qual seja a catarse atraveacutes do temor e da compaixatildeo Esta identificaccedilatildeo

alcanccedilada por via da demonstraccedilatildeo dos lamentos dos heroacuteis dramaacuteticos natildeo pode ser

obtida da mesma forma pelas artes pictoacutericas Nestas que satildeo expressotildees de um

momento uacutenico a beleza natildeo pode deixar de estar presente pois ela eacute um dos

ingredientes mais fundamentais do efeito buscado Na poesia o heroacutei natildeo seraacute

caracterizado em uma uacutenica accedilatildeo como ocorre na escultura Sendo assim o grito

narrado eacute apenas um momento do conjunto que iraacute definir o personagem

O Laocoonte de Virgiacutelio grita mas esse Laocoonte que grita eacute

justamente aquele que noacutes jaacute conhecemos e amamos como o patriota

mais cordato e o pai mais afetuoso Noacutes vinculamos o seu grito natildeo ao

seu caraacuteter mas antes apenas ao seu sofrimento insuportaacutevel Apenas

esse uacuteltimo noacutes ouvimos no seu grito e o poeta pode tornaacute-lo sensiacutevel

apenas graccedilas a esse grito (Lessing 1998 106)

Com isto tanto o escultor que suprime o grito quanto o poeta que o descreve ao

fazerem o fazem de acordo com as leis que regem suas respectivas formas de arte

Da contenda sobre o grito do Laocoonte e sua representaccedilatildeo escultoacuterica e

poeacutetica iratildeo participar ainda diversos pensadores Dentre os mais ilustres podemos

destacar Goethe cuja explicaccedilatildeo sobre a escultura proacutexima em muitos pontos da de

Lessing encontra-se nos Propileus Para o poeta o grupo estatuaacuterio ldquoesgota o seu objeto

e preenche com sucesso todas as condiccedilotildees da arterdquo (Goethe 2005126) Segundo

Goethe a escultura eacute limitada a um uacutenico momento da accedilatildeo e sua comparaccedilatildeo com a

poesia de Virgiacutelio eacute injusta O poeta a avalia assim como Lessing atraveacutes de seu efeito

ainda dentro das categorias poeacuteticas de Aristoacuteteles e destaca

O ser humano possui apenas trecircs sentimentos no sofrimento

proacuteprio e alheio o medo o terror e a compaixatildeo a previsatildeo temerosa de

um mal que se aproxima a percepccedilatildeo inesperada do sofrimento presente

36

e a participaccedilatildeo no sofrimento duradouro ou que passou todos os trecircs

sentimentos satildeo representados e suscitados por esta obra de arte e na

verdade na gradaccedilatildeo a mais conveniente (Goethe 2005 126)

Em sua obra principal Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 46 a seus comentaacuterios do

Laocoonte que seratildeo acrescidos de exemplos no posterior volume de suplementos

Reconhece o avanccedilo feito por Lessing ao colocar no lugar de um fundamento

psicoloacutegico um fundamento puramente esteacutetico e critica ainda as teorias psicoloacutegicas e

fisioloacutegicas de seu tempo como as de Hirt e Fernow18

Para Schopenhauer apesar de

sua aproximaccedilatildeo do que seria uma ldquoexplicaccedilatildeo corretardquo da obra Lessing natildeo encontrou

o seu ponto exato qual seja a explicaccedilatildeo de que o grito natildeo pertence ao domiacutenio de

uma representaccedilatildeo escultoacuterica

Antes de qualquer investigaccedilatildeo psicoloacutegica e fisioloacutegica sobre se

Laocoonte em sua situaccedilatildeo poderia gritar ou natildeo deve-se decidir em

relaccedilatildeo ao grupo de esculturas o seguinte que nele o grito natildeo pode ser

exposto pelo motivo de que a exposiccedilatildeo do grito reside por inteiro fora

do domiacutenio da escultura (Schopenhauer MVR 2005 303)

Para Schopenhauer a simples exposiccedilatildeo que representaria o grito ou seja ldquoo

escancarar violento da bocardquo natildeo pode ocasionar o efeito que o grito mesmo enquanto

forma de expressatildeo ocasionaria O efeito que o grito pode causar em uma arte

descritiva atraveacutes do uso da imaginaccedilatildeo do leitor ou mesmo na arte representativa no

teatro tornar-se-ia motivo de riso caso seja representado por uma boca escancarada na

arte plaacutestica Schopenhauer utiliza-se do exemplo do Laocoonte para demonstrar a

necessidade do estabelecimento de fronteiras entre as artes que devido agrave suas formas

devem obedecer agraves competecircncias determinadas pelo objeto representado (no caso da

teoria schopenhaueriana as competecircncias seratildeo determinadas pelas ideacuteias a serem

representadas como veremos posteriormente) Esta preocupaccedilatildeo com os limites entre as

18

Segundo Schopenhauer Hirt (Horen 1797 parte 10) apresenta a explicaccedilatildeo de que Laocoonte natildeo grita

pois estaacute impossibilitado pela sufocaccedilatildeo que o leva agrave morte Fernow por sua vez faz uma amalgama das

opiniotildees de Winckelmann Lessing e Hirt

37

formas artiacutesticas presente na esteacutetica schopenhaueriana e no Laocoonte de Lessing foi

contudo como nos lembra Suzuki (Rosenfield 2001 36-56) ignorada por Goethe

(como podemos ver pelos elementos da poeacutetica aristoteacutelica utilizados pelo poeta para

explicar a escultura na citaccedilatildeo presente na paacutegina anterior) e seraacute posteriormente

tambeacutem desconsiderada por Nietzsche em seu projeto de uma obra de arte total

Diante do acima exposto ainda tratando de Lessing podemos perceber

que toda a discussatildeo acerca do Laocoonte foi desencadeada pela motivaccedilatildeo de defesa da

arte poeacutetica agrave qual Lessing dedicou sua vida como escritor diretor e criacutetico teatral

Desta forma a importacircncia de Lessing para o tema em questatildeo nesta dissertaccedilatildeo estaacute

mais ligado ao seu papel junto a um projeto de formaccedilatildeo de um teatro alematildeo e sua

interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica Enquanto teoacuterico e criacutetico do teatro o autor da

Dramaturgia de Hamburgo exerceu grande influecircncia na cultura posterior ao oferecer a

seu tempo uma nova interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica que vai de encontro agraves

interpretaccedilotildees francesas e de Gottsched que eram por sua vez inflexiacuteveis em relaccedilatildeo agraves

regras (das unidades de espaccedilo tempo e lugar do estatuto social dos personagens da

linguagem e do nuacutemero de atos) Lessing atento agraves necessidades de uma burguesia em

ascensatildeo que natildeo se identificava mais com as concepccedilotildees aristocraacuteticas do modelo de

teatro francecircs e imbuiacutedo na construccedilatildeo do projeto de formaccedilatildeo cultural de uma naccedilatildeo

fragmentada oferece atraveacutes de suas interpretaccedilotildees uma seacuterie de elementos que estaratildeo

presentes nas consideraccedilotildees de pensadores posteriores Dentre estes elementos podemos

destacar as seguintes uma discussatildeo acerca dos conceitos de mimese temor

compaixatildeo catarse a defesa da utilizaccedilatildeo de caracteres mistos a liberdade do gecircnio

ante as regras o enaltecimento dos teatros espanhol e inglecircs principalmente de

Shakespeare

38

Ao tratarmos do referido projeto de um teatro alematildeo e tambeacutem do

classicismo germacircnico dois nomes ainda satildeo fundamentais para sua formaccedilatildeo bem

como eacute incontestaacutevel sua influecircncia sobre Schopenhauer e o jovem Nietzsche19

satildeo

eles Goethe e Schiller O primeiro deles maior dos poetas do classicismo germacircnico

foi um ampliador do projeto Winckelmanniano ldquoPois Goethe pensa o ideal de beleza

natildeo soacute em relaccedilatildeo agrave pintura e agrave escultura mas tambeacutem e principalmente em relaccedilatildeo agrave

poesia ou agrave arte dramaacutetica ampliando as ideacuteias de Winckelmann nesse domiacutenio como

teoacuterico e como criador de obras teatraisrdquo (Machado 2006 14) Seu classicismo

impresso em seus textos teoacutericos e na forma e conteuacutedo de diversas de suas produccedilotildees

literaacuterias eacute o auge do projeto Winckelmanniano Podemos ver na esteira de Machado

(2006 14-22) que o ideal de beleza proposto por Winckelmann eacute ainda o que domina a

noccedilatildeo Goetheana dos gregos e eacute apoiado neste ideal que o poeta interpreta a arte do

mundo helecircnico e a apresenta como um exemplo para a arte de seu tempo Ressaltamos

poreacutem que dada a sua extrema heterogeneidade como nos adverte Butler (1958 85)

encontrar um senso de harmonia interna no todo da obra goetheana eacute tarefa tatildeo incerta

como determinar o grau de sua influecircncia no pensamento de nossos filoacutesofos No que se

refere a Schopenhauer entretanto natildeo podemos deixar de ressaltar que sua convivecircncia

com o poeta foi norteada pelas discussotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas que ocupavam o palco

de seus estudos agrave eacutepoca Goethe dedicou vinte anos de sua vida ao estudo das cores e

sua obra Doutrina das cores eacute o resultado desta investigaccedilatildeo Ela atraiu o interesse do

jovem Schopenhauer que apoacutes alguns encontros com Goethe dedicou-se a escrever a

sua proacutepria teoria que divergia em diversos pontos da teoria do poeta fato que marcou o

fim da relaccedilatildeo amistosa dos mesmos Sobre este periacuteodo de convivecircncia

19

De acordo com Martin (1996) a obra desenvolvida por Nietzsche enquanto escritor e pensador eacute

demasiado complexa para ser reduzida ou atribuiacuteda a determinada influecircncia Entretanto em uma

estatiacutestica crua podemos ter o vislumbre desta influecircncia como se segue ldquoSchopenhauer eacute referenciado

394 vezes na obra de Nietzsche Wagner 327 vezes a Goethe existem 311 menccedilotildees Schiller encontra-se

em nono lugar com 126 menccedilotildeesrdquo (Martin 1996 5)

39

especificamente sobre o episodio citado Goethe vai escrever mais tarde conforme

citaccedilatildeo de Safranski

O Dr Schopenhauer foi para mim um amigo benevolente

Estivemos de acordo em muitas coisas mas foi impossiacutevel evitar ao final

um certo distanciamento como dois amigos que ateacute certo momento

caminharam juntos se datildeo a matildeo para despedir pois querem dirigir-se um

ao norte outro ao sul perdendo-se rapidamente de vista um ao outro

(apud Safranski 1991 265)

Ainda na esteira do movimento de estabelecimento de um projeto

artiacutestico nacional encontramos Schiller que ao lado de Goethe foi o responsaacutevel pelas

maiores obras do classicismo literaacuterio de Weimar Para o estudo em questatildeo o que mais

nos interessa em sua obra eacute o periacuteodo no qual antes do contato com Goethe Schiller

produz seus escritos teoacutericos sobre a trageacutedia Estes estudos podem ser considerados

em uma perspectiva histoacuterica como uma ponte entre a interpretaccedilatildeo da trageacutedia nos

moldes puramente aristoteacutelicos e a trageacutedia vista enquanto forma de arte que para

atingir o efeito dela esperado deve refletir a condiccedilatildeo traacutegica do homem pensada com

base em elementos retirados da filosofia moral e da esteacutetica kantiana Em seus textos

teoacutericos sobre a poesia traacutegica pertencentes ao periacuteodo que Schiller assume ter estado

sob influecircncia da filosofia kantiana ele descreve a trageacutedia como expressatildeo do sublime

ndash conceito extraiacutedo da criacutetica kantiana do juiacutezo ndash como a representaccedilatildeo sensiacutevel da

dicotomia entre a liberdade moral a vontade individual (vontade tomada enquanto

faculdade de pensar e agir livremente) por um lado e a necessidade natural e instintiva

por outro Vemos pela primeira vez em Schiller a utilizaccedilatildeo de categorias filosoacuteficas

kantianas na elaboraccedilatildeo de uma teoria da trageacutedia o que teraacute continuidade com as

teorias do idealismo absoluto e a do proacuteprio Schopenhauer Este eacute um momento

extremamente importante devido ao fato de marcar toda a reflexatildeo futura sobre o tema

ao fundar o deslocamento de uma interpretaccedilatildeo poeacutetica da trageacutedia baseada em

40

comentaacuterios da obra aristoteacutelica para uma interpretaccedilatildeo do traacutegico enquanto fenocircmeno

que descreve a situaccedilatildeo do homem no mundo De acordo com Machado ldquoEacute do

encontro de um grande dramaturgo como Schiller com a filosofia de Kant -

principalmente a sua eacutetica considerada como uma filosofia da liberdade e sua

esteacutetica no que diz respeito agrave teoria do juiacutezo sobre o sublime ndash que nasce a primeira

filosofia do traacutegico uma reflexatildeo filosoacutefica original que criou um tipo novo de

pensamento sobre a trageacutediardquo (Machado 2006 54) Na teoria schopenhaueriana da

trageacutedia podemos ver caracteriacutesticas da teoria schilleriana Primeiramente a presenccedila

marcante da influecircncia kantiana no que se refere ao sublime Em segundo lugar a

leitura da trageacutedia enquanto instrumento para a percepccedilatildeo de uma ordem moral do

mundo Tais caracteriacutesticas seratildeo aprofundadas no capiacutetulo posterior Vale antecipar que

na obra do jovem Nietzsche poderemos ver a exaltaccedilatildeo de Schiller em sua tentativa de

compreensatildeo do mundo helecircnico aleacutem do elogio agrave teoria schilleriana do coro Veremos

entretanto uma criacutetica acirrada no que se refere ao projeto de um teatro enquanto

instituiccedilatildeo moral

Neste capiacutetulo foram delineadas as principais influecircncias filosoacuteficas que

alicerccedilaram o sistema schopenhaueriano bem como esboccedilaram-se as diversas teorias

artiacutesticas que surgiram no periacuteodo em questatildeo teorias estas que propuseram mateacuteria

para a formaccedilatildeo do pensamento de nossos filoacutesofos A partir da cisatildeo entre fenocircmeno e

noumeno proposta por Kant e sua primeira criacutetica Schopenhauer elabora as matrizes de

seu sistema e para ilustraacute-lo encontra apoio na cosmologia platocircnica e no pensamento

oriental Vimos ainda que sua teoria esteacutetica eacute alimentada pela frequumlentaccedilatildeo agraves

categorias apresentadas por artistas teoacutericos e criacuteticos de arte de seu periacuteodo Por seu

turno vimos com Winckelmann a origem do estudo sobre os gregos e sua arte aleacutem do

estabelecimento destes como um modelo para a arte alematilde projeto este que foi

41

retomado por Lessing que por sua vez intensificou o estudo e propocircs um modelo de um

teatro nacional independente projeto que seraacute mais tarde revisitado e aprofundado por

Goethe e Schiller Esta apresentaccedilatildeo de influecircncias eacute imprescindiacutevel para identificarmos

a origem de certos elementos que satildeo fundamentais ao entendimento da proacutepria doutrina

schopenhaueriana tais como o caraacuteter moral de sua teoria esteacutetica sua preocupaccedilatildeo

com o estabelecimento de limite entre as artes sua interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo da poeacutetica

sua utilizaccedilatildeo de conceitos esteacuteticos kantianos (sublime belo e desinteresse) sua

apreciaccedilatildeo das obras modernas seu reconhecimento da produccedilatildeo claacutessica seu desprezo

agrave filosofia de seu tempo Eacute tambeacutem atraveacutes do mapeamento aqui feito de algumas de

suas influecircncias mesmo que brevemente apontado que poderemos mais tarde

identificar alguns dos aspectos originais e singulares de sua teoria

Quanto agraves influecircncias presentes na teoria da trageacutedia do jovem Nietzsche

apontaremos complementos no capiacutetulo correspondente Eacute imprescindiacutevel dar destaque

no que se refere agrave obra nietzscheana agrave sua formaccedilatildeo filoloacutegica ao seu conviacutevio com

Richard Wagner e agrave sua leitura do proacuteprio Schopenhauer - e isto seraacute feito

posteriormente Esperamos ter deixado claro ateacute aqui que diferentemente de Zaratustra

Nietzsche natildeo desceu simplesmente de uma montanha mas faz parte de uma tradiccedilatildeo

histoacuterica assim como Schopenhauer e que a contextualizaccedilatildeo de suas teorias eacute

fundamental para a identificaccedilatildeo dos elementos ali presentes que singularmente se

originaram do sistema metafiacutesico da Vontade

42

2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU

SUBSTRATO METAFIacuteSICO

ldquoOra se todo mundo como representaccedilatildeo eacute

a visibilidade da Vontade a arte eacute o

clareamento dessa visibilidade a cacircmera

obscura que mostra os objetos mais

puramente permitindo-nos melhor abarcaacute-

los e compreendecirc-los eacute o teatro dentro do

teatro a peccedila dentro da peccedila em Hamletrdquo

(Schopenhauer)

Utilizando-se de uma metaacutefora retirada do Eacutedipo de Soacutefocles Schopenhauer nos

oferece um exemplo da caracteriacutestica de conexatildeo interna dos temas abordados em sua

obra20

ldquo minha filosofia eacute como a Tebas de cem portas desde todos os lados se pode

entrar e atraveacutes de todos se pode chegar por um caminho direto ateacute o centrordquo

(Schopenhauer 2002 4) Tendo em vista que nosso objetivo neste capiacutetulo eacute apresentar

a teoria schopenhaueriana da trageacutedia e seus fundamentos filosoacuteficos utilizaremo-nos

desta porta para termos acesso ao sistema schopenhaueriano Procuraremos percorrer o

20

Barboza define bem esta caracteriacutestica marcante da filosofia schopenhaueriana ldquoSchopenhauer eacute o

filoacutesofo da organicidade Procura-a porque com ela onde quer que se esteja no seu sistema estar-se-aacute

em toda parte O todo conteria as partes e seria contido por elas De uma metafiacutesica da efetividade se vai

para uma do belo desta para a da eacutetica que por sua vez pode remeter agrave muacutesica por seu turno a nos

enviar para a efetividade numa por assim dizer circularidade virtuosa A unidade natildeo se perde do

horizonte de observaccedilatildeordquo (Barboza 2001 137)

43

substrato metafiacutesico sustentador da teoria do traacutegico schopenhaueriana e perceber assim

a conectividade interna existente entre sua cosmologia sua teoria esteacutetica e sua eacutetica

De posse deste meacutetodo procuraremos destacar os conceitos fundamentais da teoria

traacutegica e de sua visatildeo de mundo que viratildeo posteriormente se fazer presentes tambeacutem

na obra do jovem Nietzsche

21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo

Agrave descriccedilatildeo das artes poeacuteticas Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 51 do primeiro

volume e o capiacutetulo 37 do segundo volume de sua obra principal Tais descriccedilotildees

encontram-se por sua vez ao final dos trechos dedicados agrave teoria esteacutetica (livro III de

MVR e sus complementos) e finalizam seus apontamentos do que podemos chamar na

esteira de Young (2005) das artes natildeo-musicais21

Em ambos os casos a teoria da

trageacutedia estaacute localizada ao final da apresentaccedilatildeo Esta localizaccedilatildeo juntamente com as

diversas citaccedilotildees e exemplos retirados de peccedilas traacutegicas das quais o filoacutesofo se utiliza ao

longo de seu trabalho nos permite ver a importacircncia da arte traacutegica para Schopenhauer

Em sua teoria artiacutestica existe uma hierarquizaccedilatildeo das artes que leva em consideraccedilatildeo a

capacidade de cada uma em apresentar um grau especiacutefico de objetivaccedilatildeo da vontade

Na cosmologia schopenhaueriana a vontade essecircncia do mundo identificada como

sendo a coisa-em-si kantiana manifesta-se (torna-se objeto de conhecimento) atraveacutes de

diversos graus ndash que exprimem a nitidez com que a vontade se manifesta para o

observador - representados pelos reinos da natureza e finalmente pelo homem Desta

forma ela se objetivaria no mundo inorgacircnico atraveacutes das forccedilas magneacuteticas e da

gravidade no mundo vegetal atraveacutes das funccedilotildees orgacircnicas no mundo animal atraveacutes

21

Como veremos mais adiante a muacutesica eacute uma exceccedilatildeo no sistema das artes schopenhaueriano pois natildeo

se relaciona a uma objetivaccedilatildeo da vontade mas expressa a proacutepria vontade e desta forma natildeo figura na

sistematizaccedilatildeo hieraacuterquica

44

dos instintos e dos motivos assim como o faz no homem A classificaccedilatildeo das artes

corresponde portanto a esta hierarquizaccedilatildeo cosmoloacutegica de objetivaccedilatildeo da vontade22

Sendo assim a arquitetura e a hidraacuteulica mostram a objetivaccedilatildeo da vontade no seu grau

mais baixo ao expor o jogo das forccedilas que caracterizam a mateacuteria tais como a gravidade

rigidez dureza resistecircncia luz A jardinagem e a pintura da natureza satildeo as formas

artiacutesticas cujo fim eacute a exposiccedilatildeo da objetivaccedilatildeo da vontade que se manifesta no reino

vegetal A pintura de animais encontra-se em um niacutevel superior pois o reino animal

objeto de sua representaccedilatildeo expotildee de forma mais evidente a vontade objetivada Temos

ainda as pinturas de retratos a pintura histoacuterica e a escultura que das artes plaacutesticas

formam a categoria superior cujo objeto eacute a exposiccedilatildeo da vontade no grau mais elevado

de sua cognoscibilidade o homem Esta mesma exposiccedilatildeo a do homem eacute tambeacutem o

objeto da arte poeacutetica que agrave diferenccedila das artes que fazem sua exposiccedilatildeo de modo

puramente intuitivo eacute auxiliada pela imaginaccedilatildeo No aacutepice das artes poeacuteticas

encontramos a trageacutedia a uacuteltima arte natildeo-musical a ser descrita A arte traacutegica eacute aquela

que possui a caracteriacutestica de por sua natureza representar de forma mais ilustrativa a

objetivaccedilatildeo mais desenvolvida da vontade a vida humana e suas relaccedilotildees Veremos

mais tarde que aleacutem de corresponder agrave hierarquia de objetivaccedilatildeo da vontade mais

desenvolvida a arte traacutegica ocupa um lugar especial na filosofia schopenhaueriana

devido agrave ldquograndeza de seu efeitordquo (Schopenhauer 2005 333) Diante do exposto

podemos depreender que a arte possui na filosofia schopenhaueriana um papel

cognitivo e a trageacutedia por sua vez eacute a forma artiacutestica que por sua competecircncia cognitiva

ocupa o primeiro lugar entre as artes natildeo musicais

22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo

22

Vemos aqui um exemplo da citada inter-conectividade existente no sistema schopenhaueriano tendo

em vista que a elaboraccedilatildeo de sua classificaccedilatildeo artiacutestica obedece ao construto metafiacutesico do livro II de

MVR e sua consequumlente cosmologia

45

A tarefa a que se propotildee o sistema schopenhaueriano eacute a decifraccedilatildeo do ldquoenigma

do mundordquo ie encontrar uma resposta agrave pergunta o que eacute o mundo Esta tarefa tem

origem no idealismo subjacente na primeira criacutetica kantiana e de certa forma era uma

tarefa da qual estava imbuiacutedo todo o pensamento filosoacutefico daquele periacuteodo ie por

decifraccedilatildeo do enigma do mundo podemos entender a decifraccedilatildeo da coisa-em-si

kantiana Temos daiacute o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer o idealismo

transcendental do mundo fenomecircnico Sob o ponto de vista da representaccedilatildeo o mundo eacute

objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito agraves condiccedilotildees a priori do

entendimento que para o filoacutesofo satildeo as categorias do espaccedilo do tempo e da

causalidade

Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das formas a priori do entendimento eacute

interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos advindos da filosofia Platocircnica e oriental

como um mundo ilusoacuterio Conforme a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana Platatildeo jaacute

identificava esta caracteriacutestica ilusoacuteria do mundo em sua contraposiccedilatildeo teoacuterica entre o

mundo fiacutesico onde o devir impossibilitava a apreensatildeo do ser e o mundo das ideacuteias

onde haveria o verdadeiro encontro com o ser das coisas Ainda de acordo com a

interpretaccedilatildeo de Schopenhauer os livros sagrados indianos Vedas e Puranas faziam

esta distinccedilatildeo atraveacutes da noccedilatildeo do veacuteu de maia a consciecircncia humana seria envolvida

por um veacuteu o que resultaria em uma visatildeo oniacuterica do mundo e impediria assim a

percepccedilatildeo da realidade

Entretanto o mundo pode ainda ser conhecido atraveacutes de um segundo ponto de

vista como vontade Este eacute o ponto de vista que Schopenhauer utiliza-se para decifrar a

incognosciacutevel coisa-em-si kantiana Percorrendo uma ldquovia subterracircneardquo de modo

imanente Schopenhauer identifica nas accedilotildees do corpo bioloacutegico os atos da vontade

46

enquanto coisa-em-si e de forma analoacutegica a estabelece como essecircncia governante do

mundo Faz-se necessaacuterio aqui ressaltar como o fazem Brum (1998 23) e Rosset23

que

natildeo devemos interpretar esta analogia como uma visatildeo antropomoacuterfica do mundo Essa

essecircncia do mundo encontrada empiricamente natildeo eacute todavia um ente racional uma

ldquoalma do mundordquo Se por um lado o mundo fenomecircnico eacute aquele onde o princiacutepio de

razatildeo24

estabelece as normas de funcionamento um mundo natildeo-fenomecircnico mundo em

si enquanto vontade se expressa por sua alogicidade irracionalidade Grundlosigkeit

(falta de fundamento) Essa essecircncia irracional que manifesta-se nos diversos reinos e

indiviacuteduos do mundo eacute a raiz da visatildeo pessimista da existecircncia que de acordo com o

filoacutesofo pode ser a todo momento constatada empiricamente

As diversas manifestaccedilotildees da vontade suas objetidades carregam inerentemente

a sua iacutendole puro impulso cego vontade de vida insaciabilidade Notadamente o

mundo fenomecircnico objetivaccedilatildeo da vontade expressa a essecircncia desta vontade atraveacutes

de um conflito permanente Desenha-se um cenaacuterio de batalha onde cada objetidade da

vontade cada ser do mundo eacute orientado por sua essecircncia irracional desguarnecida de

qualquer telos ldquoAssim a vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria

carne e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimentordquo (Schopenhauer MVR 211) Este

fundamento ontoloacutegico a vontade determina assim o caraacuteter absurdo que a vida

humana toma na filosofia schopenhaueriana eterno esforccedilo carente de ordem ou

finalidade O ldquomecanismo internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens

marionetes guiados pela carecircncia

[]nenhuma satisfaccedilatildeo todavia eacute duradoura mas antes sempre eacute um

ponto de partida de um novo esforccedilo o qual por sua vez vemos travado em

toda parte de diferentes maneiras em toda parte lutando e assim portanto

23

[] natildeo haacute que transpor a experiecircncia da motivaccedilatildeo humana ao conjunto das forccedilas naturais para

compreender o segredo da natureza senatildeo o contraacuterio transpor o misteacuterio das forccedilas naturais ao conjunto

das motivaccedilotildees psicoloacutegicas para desvendar-se o segredo da vontade humana (Rosset 2005 31) 24

Princiacutepio tratado na tese de doutoramento de Schopenhauer SRQPRS bem como no livro I de MVR

O princiacutepio estabelece que todo acontecimento possui uma causa uma razatildeo de ser

47

sempre como sofrimento natildeo haacute nenhum fim uacuteltimo do esforccedilo portanto natildeo

haacute nenhuma medida e fim do sofrimento (Schopenhauer 2005 399)

Se carecircncia vontade e desejo satildeo a tocircnica da vida humana na maior parte do tempo e

satildeo experimentados como dor e infelicidade a felicidade por sua vez eacute definida

negativamente como um momento de ausecircncia daquela dor

Sentimos a dor e natildeo a ausecircncia da dor a inquietude e natildeo a

tranquumlilidade o medo e natildeo a seguranccedila Sentimos desejo como quando

temos fome e sede entretanto ao alimentarmo-nos estas sensaccedilotildees

deixam de existir para noacutes (MVR II 630)

Toda satisfaccedilatildeo momentacircnea de um querer eacute imediatamente suprimida por outro querer

ou se perdurar por algum tempo por menor que seja este transforma-se em teacutedio Um

ldquopecircndulo entre a dor e teacutediordquo eacute a definiccedilatildeo que Schopenhauer propotildee para a vida

humana Assim se daacute tambeacutem com a sauacutede a juventude e a liberdade Todos satildeo

conceitos definidos negativamente soacute os conhecemos atraveacutes de sua ausecircncia Este afatilde

por prolongar e conservar a vida essecircncia iacutentima de cada indiviacuteduo natildeo eacute contudo

resultado de uma observaccedilatildeo objetiva da mesma de um conhecimento que eleja a vida

como algo de valor a ser mantido e preservado e portanto os ldquo[] seres natildeo satildeo

atraiacutedos por algo que se lhes apresenta mas satildeo empurrados a elerdquo (MVR II 398) A

luta eterna observada nos diversos reinos da natureza a busca por alimento o esforccedilo da

procriaccedilatildeo se comparados aos momentos fugazes de satisfaccedilatildeo fazem da vida ldquoum

negoacutecio cujos investimentos natildeo cobrem nem de longe os custosrdquo (MVR II 399)

Em todas estas consideraccedilotildees se faz claro que a vontade de viver

natildeo eacute a consequecircncia do conhecimento da vida natildeo se trata de uma

bdquoconclusio ex praemissis‟ nem em geral eacute algo secundaacuterio antes

contudo eacute o primeiro e incondicionado a premissa de todas as premissas

e precisamente por isso aquilo do que haacute de partir a filosofia pois a

vontade de viver natildeo se apresenta como a consequumlecircncia do mundo senatildeo

o mundo como consequumlecircncia da vontade de viver (MVR II 405)

Um dos pontos essenciais a ser verificado nesta visatildeo de mundo eacute o

destronamento da razatildeo O ceacuterebro oacutergatildeo da razatildeo eacute o resultado de um esforccedilo da

48

vontade em seu percurso de objetivaccedilatildeo A racionalidade humana estaacute a serviccedilo da

vontade que eacute em sua essecircncia grundlos A razatildeo eacute ferramenta para que o homem

enquanto objetidade da vontade consiga satisfazer a seus anseios Em oposiccedilatildeo agrave

filosofia racionalista de entatildeo onde o ldquoreal eacute o racionalrdquo assistimos ao surgimento de

uma filosofia irracionalista das forccedilas inconscientes onde a razatildeo na medida em que eacute

mecanismo da vontade estaacute sempre a serviccedilo desta O comportamento humano eacute

naturalmente egoiacutesta voltado para os proacuteprios interesses e estes por sua vez satildeo

expressatildeo desta vontade aloacutegica desprovida de telos Schopenhauer se mostrava

consciente da singularidade desta sua biparticcedilatildeo do ego e da consequumlente visatildeo de

mundo que ela trouxe agrave luz e enfatizou isto em seus manuscritos berlinenses ldquo[] a

divisatildeo da mente o eu em duas partes diferentes - em vontade como parte essencial e

primaacuteria e em intelecto como secundaacuteria - eacute o grande princiacutepio e meacuterito de minha

filosofia e tambeacutem a principal diferenccedila dos demais sistemasrdquo (MR III 328)

Temos entatildeo os dois pontos de vista do mundo que fundamentam a visatildeo de

Schopenhauer e que posteriormente seratildeo transformados pela teoria nietzscheana da

trageacutedia nos dois impulsos da natureza o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco O primeiro deles eacute o

mundo da individualidade da pluralidade regido pelo que Schopenhauer vai chamar

utilizando-se de um termo retirado da escolaacutestica de principium individuationis

Nesse sentido servindo-me da antiga escolaacutestica denomino

tempo e espaccedilo pela expressatildeo principium individuationis que peccedilo para

o leitor guardar para sempre Tempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais

aquilo que eacute uno e igual conforme a essecircncia e o conceito aparece como

pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem (MVR 171)

No segundo toto genere diferente do primeiro existe a vontade una indivisiacutevel natildeo

submetida ao princiacutepio de razatildeo e por isso sem fundamento

Em apoio a sua tese Schopenhauer invoca ao final do capiacutetulo 46 (Sobre a

nulidade e o sofrimento da vida) dos complementos de MVR a opiniatildeo de diversos

49

pensadores dentre eles Heroacutedoto Platatildeo Teoacutegnis Homero os tragedioacutegrafos gregos

Shakespeare Byron Voltaire Rousseau Faz-se importante neste momento ressaltar que

o filoacutesofo aponta a invenccedilatildeo da trageacutedia pelos gregos como uma expressatildeo desta visatildeo

de mundo ponto de vista que como veremos tambeacutem seraacute adotado pelo primeiro

Nietzsche

Ante tudo mencionarei que os gregos por mais distantes que

estivessem da visatildeo de mundo cristatilde e da alta Aacutesia e por muito que se

mantiveram sob o ponto de vista da afirmaccedilatildeo da vontade se fizeram

profundamente impressionados pela miseacuteria da existecircncia Isso eacute

demonstrado pela invenccedilatildeo da trageacutedia obra deles (MVR II 640)

23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana

Existe poreacutem uma forma de conhecimento que eacute ndash agrave diferenccedila daquela

subordinada ao princiacutepio de razatildeo que percebe os objetos em sua relaccedilatildeo com os outros

objetos do espaccedilo-tempo ndash uma forma mais universal pois mostra o objeto em sua

caracteriacutestica mais geral qual seja a de ser objeto para o sujeito A esta forma de

conhecimento Schopenhauer associa a apreciaccedilatildeo esteacutetica O seu objeto eacute a ideacuteia

platocircnica25

um grau determinado de objetivaccedilatildeo da coisa-em-si

Os diferentes graus de objetivaccedilatildeo da Vontade expressos em

inumeraacuteveis indiviacuteduos e que existem como seus protoacutetipos

inalcanccedilaacuteveis ou formas eternas das coisas que nunca aparecem no

tempo e no espaccedilo meacutedium do indiviacuteduo mas existem fixamente natildeo

submetidos a mudanccedila alguma satildeo e nunca vindo-a-ser enquanto as

coisas nascem e perecem sempre vecircm-a-ser e nunca satildeo os GRAUS DE

OBJETIVACcedilAtildeO DA VONTADE ia dizer natildeo satildeo outra coisa senatildeo as

IDEacuteIAS DE PLATAtildeO (MVR 191)

Esta instacircncia do conhecimento eacute alcanccedilada intuitivamente pela contemplaccedilatildeo

esteacutetica da natureza ou pela facilitaccedilatildeo de uma obra de arte Desta forma as obras de

25

Conforme o filoacutesofo ldquo A expressatildeo mais breve e sucinta daquele famoso dogma platocircnico foi dada por

Dioacutegenes Laeacutercio (II 12) Platatildeo ensina que as ideacuteias da natureza existem como protoacutetipos jaacute as demais

coisas apenas se assemelham a elas e satildeo suas coacutepiasrdquo (MVR 191)

50

arte na teoria schopenhaueriana satildeo uma exposiccedilatildeo destes graus de objetivaccedilatildeo da

vontade as ideacuteias Ao contraacuterio da criacutetica agrave arte presente na repuacuteblica platocircnica - onde a

arte seria uma coacutepia mais imperfeita da ideacuteia por retratar o mundo fenomecircnico sua

coacutepia direta - Schopenhauer aproxima as obras artiacutesticas das ideacuteias eternas as define

como suas expressotildees diretas Contudo a intuiccedilatildeo das ideacuteias exige um estado de

consciecircncia diferente do estado comum Neste uacuteltimo o aparelho cognitivo sob a eacutegide

da vontade estaacute voltado para a realizaccedilatildeo dos interesses individuais e entatildeo se

movimenta no mundo guiado por estes interesses ldquoCaso entretanto a Ideacuteia deva de

alguma maneira tornar-se conhecimento e ser conhecida pelo sujeito entatildeo isso soacute

pode ocorrer graccedilas agrave supressatildeo da individualidade no sujeito que conhecerdquo (MB 30)

A forma artiacutestica de conhecimento cujo possuidor eacute o denominado gecircnio estaacute

associada a um desprendimento das reacutedeas da vontade O gecircnio eacute entatildeo aquele que livre

dos interesses da vontade percebe as ideacuteias por traacutes dos objetos alheio aos princiacutepios

de razatildeo e de individuaccedilatildeo e traduz este objeto na obra de arte O observador esteacutetico eacute

portanto um partiacutecipe da genialidade na medida em que intui a ideacuteia por traz do objeto

observado conforme tambeacutem ao seu grau de desinteresse26

Durante a apreciaccedilatildeo

esteacutetica o homem se vecirc livre momentaneamente daquela parte de si que eacute a causadora

de todo o sofrimento individual e coletivo a vontade para transformar-se em um ldquopuro

sujeito de conhecimentordquo Este estado de satisfaccedilatildeo decorrente da suspensatildeo da vontade

individualizada eacute o sentimento do belo

Aquilo que se poderia nomear o lado mais belo e a pura alegria

da vida precisamente porque nos arranca da existecircncia real e nos

transforma em espectadores desinteressados diante dela eacute o puro

conhecimento que permanece alheio a todo querer eacute a fruiccedilatildeo do belo a

alegria autecircntica na arte Mas mesmo isso requer dispositivos raros e

cabe apenas a pouquiacutessimos e mesmo para estes eacute um sonho

passageiro (MVR 404)

26

Vemos nesta forma de associaccedilatildeo entre conhecimento e interesse mais uma heranccedila kantiana no caso

provinda da definiccedilatildeo de belo da criacutetica da faculdade de juiacutezo

51

- - - - - - - - - -

Ao descrever a apreciaccedilatildeo artiacutestica como um ato cognitivo Schopenhauer

preocupa-se em diferenciaacute-la do conhecimento cientiacutefico De fato boa parte das

consideraccedilotildees sobre a arte eacute dedicada ao esclarecimento desta diferenccedila

Podemos por conseguinte definir a arte como o modo de

consideraccedilatildeo das coisas independente do princiacutepio de razatildeo em oposiccedilatildeo

justamente agrave consideraccedilatildeo que o segue que eacute o caminho da experiecircncia e

da ciecircncia O modo de consideraccedilatildeo que seque o princiacutepio de razatildeo eacute o

racional o uacutenico que vale e que auxilia na vida praacutetica e na ciecircncia o

modo apartado do conteuacutedo do princiacutepio de razatildeo eacute o genial o uacutenico que

vale e que auxilia na arte (MB 59)

No caso da trageacutedia cujo objetivo eacute o conhecimento do homem e de suas relaccedilotildees a

ciecircncia que mais se assemelha a esta forma artiacutestica seria a histoacuteria Esta natildeo tem como

objetivo a demonstraccedilatildeo da essecircncia do homem em sua forma atemporal ou seja a

demonstraccedilatildeo daquilo que fundamenta toda accedilatildeo humana independente dos

acontecimentos empiacutericos

[ ]toda ciecircncia no sentido proacuteprio do termo compreendida como

conhecimento sistemaacutetico guiado pelo fio condutor do princiacutepio de

razatildeo parte sempre de dois dados baacutesicos um deles sem exceccedilatildeo eacute o

princiacutepio de razatildeo em uma de suas figuras como oacuterganon outro eacute o

objeto especiacutefico de cada uma delas enquanto problema (Schopenhauer

MVR 73)

Desta forma a histoacuteria teria a lei de motivaccedilatildeo e o os fatos humanos como oacuterganon e

problemas respectivamente Entretanto interessa a Schopenhauer um conhecimento

mais universal que soacute pode ser apresentado pela arte e que aponta por sua proximidade

agrave essecircncia daquilo que eacute a uma ldquoiacutendole imutaacutevelrdquo das manifestaccedilotildees

Podemos ver entatildeo que sendo consideradas como meios para o

conhecimento da essecircncia da humanidade arte poeacutetica e histoacuteria possuem todavia

objetos de conhecimento diferentes A primeira quando produzida pelo verdadeiro

gecircnio tenciona manifestar a ideacuteia por traacutes destes conceitos a ideacuteia de homem de

humanidade intuitivamente independentemente do princiacutepio de razatildeo do devir como

52

objeto puro de conhecimento alheio agrave corrente dos motivos em suas caracteriacutesticas

essenciais atemporais A histoacuteria por sua vez segue o rastro do princiacutepio de razatildeo

procurando apresentar o fenocircmeno humano em suas relaccedilotildees descrever-lhe em suas

situaccedilotildees particulares individuais empiacutericas Nas palavras de Schopenhauer

Arte e ciecircncia tecircm em uacuteltima instacircncia o mesmo estofo a saber

justamente o mundo tal como ele se posta diante de noacutes ou antes uma

parte destacada dele quanto ao todo do mundo soacute a filosofia o

considera Contudo a grande diferenccedila entre ciecircncia e arte reside na

maneira como elas consideram o mundo e trabalham seu estofo Tal

oposiccedilatildeo pode ser indicada com uma palavra a ciecircncia considera os

fenocircmenos do mundo seguindo o fio condutor do princiacutepio de razatildeo ao

passo que a arte coloca totalmente de lado o princiacutepio de razatildeo

independente dele para que assim a ideacuteia entre em cena

(SCHOPENHAUER MB 57)

Podemos notar que a valorizaccedilatildeo do que eacute imutaacutevel alheio agrave idealidade do tempo eacute a

raiz da valorizaccedilatildeo do conhecimento artiacutestico frente ao histoacuterico Este uacuteltimo natildeo visa o

acesso aos modelos eternos pois seu objeto satildeo os acontecimentos individuais do

mundo fenomecircnico que satildeo eventos meramente aparentes se considerarmos a

idealidade do tempo O que se manifesta no fluxo temporal do mundo fenomecircnico satildeo

sempre as mesmas formas eternas as ideacuteias entretanto com roupagens diferentes o

mesmo homem enquanto objetivaccedilatildeo da vontade a mesma humanidade Onde quer que

seja e em qualquer momento especiacutefico sua essecircncia eacute a mesma e esta essecircncia eacute o que

deve ser alvo de uma compreensatildeo privilegiada de entendimento e natildeo as suas diversas

manifestaccedilotildees Por este motivo Schopenhauer deixando explicito o seu chamado anti-

historicismo afirma que ldquose algueacutem jaacute lera Heroacutedoto jaacute estudara bastante histoacuteria e

efeitos filosoacuteficos Pois laacute jaacute estaacute tudo o que compotildee a posterior histoacuteria mundial a

atividade o obrar o sofrimento e o destino do gecircnero humano (Schopenhauer MVR

II 496) Podemos notar claramente a oposiccedilatildeo entre a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana

da histoacuteria e as tendecircncias de seu tempo principalmente presentes na filosofia de

Hegel Este de acordo com a criacutetica de Schopenhauer ignorando a filosofia critica de

53

Kant toma o fenocircmeno histoacuterico como coisa em si ao atribuir-lhe uma unidade de

consciecircncia Entretanto unidade de consciecircncia eacute um atributo dos indiviacuteduos e natildeo do

gecircnero humano Estas filosofias de acordo com o Schopenhauer satildeo frutos do realismo

otimista queldquo tomam o mundo como perfeitamente real e potildeem como fim do mesmo

uma miseraacutevel felicidade terrena (Schopenhauer MVR II 495)

- - - - - - - - - -

Colocando de lado o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e mirando-se no

conhecimento da ideacuteia imutaacutevel atemporal encontramos a trageacutedia como fenocircmeno que

apresenta agrave intuiccedilatildeo o homem e sua condiccedilatildeo Eacute a forma de arte que tem como objeto o

grau mais elevado de objetivaccedilatildeo da vontade A intenccedilatildeo do artista traacutegico eacute de acordo

com Schopenhauer transmitir a ideacuteia intuiacuteda tarefa que seraacute bem sucedida de acordo

com a habilidade de utilizaccedilatildeo da teacutecnica artiacutestica por um lado e com a capacidade de

percepccedilatildeo esteacutetica do apreciador por outro O tragedioacutegrafo diferentemente do

historiador que relata os fatos empiacutericos explicitando seus motivos e consequumlecircncias

deve para obter o efeito esperado em sua obra expor uma situaccedilatildeo tal em que o homem

possa manifestar todas as suas potencialidades e dessa forma transmitir ao apreciador

esteacutetico a ideacuteia representada ldquoO poeta expotildee com escolha e intenccedilatildeo caracteres

significativos em situaccedilotildees significativas jaacute o historiador toma aos dois como eles

aparecemrdquo (Schopenhauer MVR 323) A qualidade da obra traacutegica seraacute julgada entatildeo

pela sua capacidade de representaccedilatildeo da ideacuteia de humanidade e Schopenhauer qualifica

as trageacutedias de acordo com esta capacidade Natildeo existe em seu sistema uma

consideraccedilatildeo histoacuterica da produccedilatildeo traacutegica Ele natildeo leva em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees

histoacutericas no que se refere agrave origem ou mesmo quanto ao desenvolvimento desta forma

artiacutestica e a avalia unicamente conforme o seu efeito E neste ponto a trageacutedia apresenta

uma peculiaridade frente agraves demais artes ela eacute a forma de arte que provocaraacute o

54

sentimento do sublime Como vimos o correlato subjetivo de toda apreciaccedilatildeo esteacutetica eacute

o sentimento causado pela anulaccedilatildeo da vontade individual mediante a elevaccedilatildeo ao

estado de puro sujeito de conhecimento O sublime assim como o belo satildeo expressotildees

deste sentimento que se diferenciam unicamente por sua forma

Se tal estado surgiu por si mesmo na medida em que o objeto foi

solicitado e se apresentou ndash e fomos postos sem resistecircncia pelo mero

desaparecer da vontade da consciecircncia no estado do conhecer puro ndash ou

se primeiro foi despertado por elevaccedilatildeo livre consciente sobre a vontade

na medida em que o objeto contemplado tem com esta uma relaccedilatildeo

desfavoraacutevel hostil cuja prossecuccedilatildeo suprimiria a contemplaccedilatildeo ndash aiacute

reside a diferenccedila entre o belo e o sublime (MB 119)

A impressatildeo do sublime eacute portanto uma forma de colocar-se no estado do puro conhecer

ao nos depararmos com o objeto que por sua apresentaccedilatildeo sugere uma ldquorelaccedilatildeo hostilrdquo

com o indiviacuteduo27

Jaacute vimos que a visatildeo de mundo de Schopenhauer identifica a vida humana como

sofrimento infindaacutevel no entanto ao elaborar sua definiccedilatildeo da trageacutedia Schopenhauer

aponta para o desfecho moral de sua obra (livro IV de MVR) e afirma que a trageacutedia

melhor eacute aquela que expotildee a renuacutencia agrave vida O filoacutesofo compara obras contemporacircneas

agraves antigas e afirma sua preferecircncia por estas em decorrecircncia da capacidade que elas tecircm

de provocar esta a renuacutencia agrave vida Vejamos a descriccedilatildeo que Schopenhauer faz da

trageacutedia

No aacutepice da arte poeacutetica tanto no que se refere agrave grandeza do seu

efeito quanto agrave dificuldade da sua realizaccedilatildeo deve-se ver a trageacutedia e de

fato ela assim foi reconhecida Observe-se aqui algo de suma significaccedilatildeo

para toda a nossa visatildeo geral de mundo o objetivo dessa suprema

realizaccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute outro senatildeo a exposiccedilatildeo do lado terriacutevel da vida

27

Vemos na teoria do sublime Schopenhaueriana mais uma vez a influecircncia de Kant Schopenhauer iraacute

identificar duas formas de sublime e utilizar-se-aacute dos termos kantianos ldquosublime dinacircmicordquo e ldquosublime

matemaacuteticordquo para diferenciaacute-los No primeiro o objeto de apreciaccedilatildeo se mostra a princiacutepio uma ameaccedila

ao observador ldquoum poder que suprimiria qualquer resistecircnciardquo(MB 104) No sublime matemaacutetico o

segundo o objeto eacute visto em sua incomensuraacutevel grandiosidade diante da qual o observador infere a sua

infimidade A afinidade entre Schopenhauer e a teoria criacutetica do juiacutezo eacute expressa em sua obra principal

ldquoDe longe o que haacute de mais excelente na criacutetica da faculdade de juiacutezo eacute a teoria do sublime Ela eacute

incomparavelmente mais bem sucedida que a teoria do belo e daacute natildeo apenas como esta o meacutetodo geral

da investigaccedilatildeo mas tambeacutem um trecho do correto caminho de maneira que embora natildeo forneccedila a

soluccedilatildeo propriamente dita do problema chega bem perto delardquo(MVR 660)

55

a saber o inominado sofrimento a miseacuteria humana o triunfo da maldade

o impeacuterio ciacutenico do acaso a queda inevitaacutevel do justo e do inocente E

em tudo isso se encontra uma indicaccedilatildeo significativa da iacutendole do mundo

e da existecircncia Eacute o conflito da Vontade consigo mesma que aqui

desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade entra em

cena de maneira aterrorizante Ele se torna visiacutevel no sofrimento da

humanidade em parte produzido por acaso e erro que se apresentam

como os senhores do mundo e personificados como destino e perfiacutedia os

quais aparecem enquanto intencionalidade em parte advindo da

humanidade mesma por meio dos entrecruzados esforccedilos voluntaacuterios dos

indiviacuteduos e da maldade e perversatildeo da maioria Trata-se de uma uacutenica e

mesma Vontade que em todos vive e aparece cujos fenocircmenos

entretanto combatem entre si e se entredevoram [] Por fim esse

conhecimento no indiviacuteduo purificado e enobrecido pelo sofrimento

mesmo atinge o ponto no qual o fenocircmeno o veacuteu de maia natildeo mais o

ilude Ele vecirc atraveacutes da forma do fenocircmeno do principium

individuationis com o que tambeacutem expira o egoiacutesmo nele baseado Com

isso os ateacute entatildeo poderosos MOTIVOS perdem o seu poder e em vez

deles o conhecimento perfeito da essecircncia do mundo atuando como

quietivo da vontade produz a resignaccedilatildeo a renuacutencia natildeo apenas da vida

mas de toda a vontade de vida mesma (Schopenhauer MVR 333)

Percebemos nesta descriccedilatildeo que a trageacutedia aleacutem de expor a visatildeo de mundo construiacuteda

pelo filoacutesofo tem como fim uacuteltimo provocar um efeito moral no apreciador esteacutetico

qual seja a renuacutencia ao mundo Vejamos entatildeo a relaccedilatildeo entre a visatildeo de mundo

schopenhaueriana o efeito esteacutetico provocado pela trageacutedia e o projeto moral existente

por traacutes de suas teorias

24 A finalidade moral da trageacutedia

Para que possamos perceber a relaccedilatildeo intriacutenseca entre cosmologia metafiacutesica

arte e a eacutetica faz-se necessaacuterio uma pequena excursatildeo sobre esta uacuteltima Que todo o

sistema schopenhaueriano possui um viacutenculo inseparaacutevel com o seu projeto eacutetico eacute fato

que natildeo passa despercebido a seus comentadores Um projeto de juventude eacute descrito

por Safranski (1991 188-198) Young (2006 07 200) Aramayo (2001 56-59) e

Cartwright (Janaway 1999 252) como uma premissa no desenvolvimento da filosofia

56

schopenhaueriana trata-se do projeto de uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Young a descreve

como uma transcendecircncia do mundo ordinaacuterio para o ldquomundo verdadeirordquo Esta

consciecircncia melhor poderia ser experimentada atraveacutes da apreciaccedilatildeo artiacutestica e da

consciecircncia eacutetica ambas originadas do desvelamento de maia Assim Schopenhauer a

descreve conforme citaccedilatildeo de Young (2006 9) ldquopersonalidade e causalidade existem

neste mundo compreensiacutevel temporal sensorial Mas a consciecircncia melhor me leva a

um mundo onde nem personalidade nem sujeito ou objeto existem maisrdquo Safransky

descreve a consciecircncia melhor como um estado semelhante ao ecircxtase miacutestico

Este arrebatamento estaacute livre das coordenadas espaccedilo-temporais

cujo ponto de interseccedilatildeo eacute o eu corporal apartado do espaccedilo do tempo

do eu Os miacutesticos chamam a esta experiecircncia ldquonunc stansrdquo agora

permanente A intensidade deste presente natildeo conhece princiacutepio nem fim

e soacute pode desaparecer porque noacutes desaparecemos dele (Safransky1991

190)

Conforme Aramayo tanto a figura do gecircnio como a do santo satildeo expressotildees do

reconhecimento desta consciecircncia melhor e a filosofia de Schopenhauer pretende-se

uma terceira via que tambeacutem apontaria para este estado de consciecircncia A caracteriacutestica

primordial deste estado eacute o desprendimento dos desejos individuais e o comportamento

virtuoso que adveacutem deste desprendimento Eacute na esteira do entendimento desta

consciecircncia melhor que as bases eacutetico-metafiacutesicas do filoacutesofo foram elaboradas Em

apoio a esta afirmaccedilatildeo Aramayo apresenta duas citaccedilotildees a partir das quais em

momentos distintos de sua vida Schopenhauer apresenta seu projeto de identificaccedilatildeo

entre eacutetica e metafiacutesica Nos escritos de Juventude em 1813 vemos o projeto

Em meu espiacuterito encontra-se em gestaccedilatildeo uma filosofia onde

metafiacutesica e eacutetica devem constituir uma soacute coisa cuja dissociaccedilatildeo eacute tatildeo

errocircnea como agrave da alma e do corpo (Aramayo 2001 41)

Jaacute nos escritos tardios especificamente em seu ensaio de 1836 Sobre a vontade na

natureza veremos Schopenhauer identificar esta uniatildeo

57

Tatildeo soacute esta metafiacutesica que jaacute eacute eacutetica por si soacute ao estar construiacuteda

com esse material primordialmente eacutetico que se supotildee a vontade

constitui real e imediatamente um sustentaacuteculo para a eacutetica em vista de

que poderia haver colocado em minha metafiacutesica o nome de eacutetica (apud

Aramayo 2001 43)

Cartwright aponta ainda na uacuteltima obra schopenhaueriana de 1851 Parerga e

paralipomena a afirmaccedilatildeo de que a ldquosua real filosofia culminou em um ponto de vista

altamente eacutetico-metafiacutesicordquo (Janaway 1999 252)

Na filosofia schopenhaueriana como vimos o indiviacuteduo humano eacute uma

expressatildeo da objetidade da vontade e seu ponto de partida por natureza eacute a satisfaccedilatildeo

manutenccedilatildeo e o prolongamento desta vontade de vida Este estado de consciecircncia onde

todos os esforccedilos estatildeo voltados para a satisfaccedilatildeo da vontade individual eacute a causa de

todo o sofrimento do mundo Aprisionado agrave perspectiva fenomecircnica do mundo o

homem natildeo percebe a unidade da vontade e age de acordo com os motivos estabelecidos

pela sua proacutepria individualidade Para este homem existe uma separaccedilatildeo profunda entre

o proacuteprio eu e os objetos do mundo

Por meio da intuiccedilatildeo que o ceacuterebro efetua a partir dos dados do sentido

e portanto mediatamente conhecemos o proacuteprio corpo como um objeto no

espaccedilo e por meio do sentido interno conhecemos a seacuterie sucessiva de nossos

desejos e atos de vontade que surgem por ocasiatildeo dos motivos externos e

finalmente conhecemos os muacuteltiplos movimentos fortes ou fracos da proacutepria

vontade aos quais todos os sentimentos internos deixam-se reconduzir Isto eacute

tudo pois o conhecer natildeo eacute ele proacuteprio de novo conhecido (Schopenhauer

2001 213)

Eacute deste estado que surge todo o comportamento humano considerado pelo filoacutesofo

como comportamento antimoral Egoiacutesmo eacute o nome dado ao resultado da influecircncia do

princiacutepio de individuaccedilatildeo sobre o comportamento dos homens Este egoiacutesmo chega ao

extremo de o homem considerar-se o centro do mundo e transformar o seu querer em

mandamento para os objetos exteriores ldquoalguns homens seriam capazes de assassinar

um outro soacute para engraxar suas botas com a gordura delerdquo (SFM 124) Nestas

58

condiccedilotildees ldquose fosse dado pois a um indiviacuteduo escolher entre a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo

e a do mundo nem preciso dizer para onde a maioria se inclinariardquo (SFM 121) Da

forma como ocorre com o egoiacutesmo a ilusatildeo fenomecircnica daacute origem a outro sentimento

o oacutedio Estes dois egoiacutesmo e oacutedio satildeo os princiacutepios originadores de todos os viacutecios do

homem Desta leitura pessimista da natureza humana Schopenhauer retira seu conceito

perspectivista das ideacuteias de bem e mal satildeo consideradas boas ou maacutes as coisas que

agradam ou desagradam agrave vontade do indiviacuteduo ldquoPortanto tudo o que eacute favoraacutevel agrave

vontade em alguma de suas exteriorizaccedilotildees e satisfaz seus fins eacute pensado pelo conceito

bom por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectosrdquo (MVR 459)

Este estado eacute definido por Schopenhauer como ldquoafirmaccedilatildeo da vontaderdquo nele o amor-

proacuteprio Eros dita as regras de comportamento Definido o Eros enquanto

fundamentador das accedilotildees antimorais humanas sendo este surgido de uma percepccedilatildeo

subordinada ao principium individuationis entendemos o motivo pelo qual o filoacutesofo

rejeita a validade de qualquer moral baseada em argumentos abstratos

Uma moral sem fundaccedilatildeo portanto um simples moralizar natildeo pode

fazer efeito pois natildeo motiva Uma moral entretanto que motiva soacute pode fazecirc-

lo atuando sobre o amor proacuteprio O que entretanto nasce daiacute natildeo tem valor

moral algum Segue-se assim que mediante moral e conhecimento abstrato em

geral nenhuma virtude autecircntica pode fazer efeito mas esta tem de brotar do

conhecimento intuitivo o qual reconhece no outro indiviacuteduo a mesma essecircncia

que a proacutepria (MVR 468)

Desta forma em contraposiccedilatildeo ao comportamento antimoral produzido

pela ilusatildeo causada pelo principium individuationis o filoacutesofo apresenta o outro lado da

moeda a accedilatildeo moral Esta seria a accedilatildeo praticada em funccedilatildeo do bem-estar de um outro

indiviacuteduo tendo em vista que as accedilotildees praticadas em funccedilatildeo do mal-estar do outro ou

do bem e mal estar de si mesmo satildeo justamente as accedilotildees antimorais baseadas no

egoiacutesmo ou no oacutedio ldquoTodo amor que natildeo eacute compaixatildeo eacute amor-proacuteprio Amor-proacuteprio eacute

59

Eros compaixatildeo eacute Aacutegaperdquo (MVR 478) Todo ato moral eacute por consequumlecircncia um ato de

compaixatildeo ou seja um ato que eacute praticado a partir da percepccedilatildeo do sofrimento do

outro Entretanto a percepccedilatildeo do sofrimento alheio natildeo eacute dada atraveacutes do conhecimento

abstrato E somente por uma percepccedilatildeo intuitiva direta do sofrimento do outro como o

meu proacuteprio sofrimento que surge a compaixatildeo Tal percepccedilatildeo assim como a

apreciaccedilatildeo esteacutetica tem origem em uma visatildeo que vai aleacutem do principium

individuationis Desfaz-se a ilusatildeo causada por este princiacutepio de que existe em realidade

um eu e um natildeo-eu ilusatildeo essa que eacute originada pelos condicionantes do conhecimento

tempo espaccedilo e causalidade Livre do principium individuationis natildeo haacute mais

diversidade natildeo existe mais indiviacuteduo passado futuro motivaccedilotildees existe apenas o

instante presente do ser a vontade Natildeo nos vemos mais como uma vontade separada de

outras ao contraacuterio vemos nos outros a mesma vontade pela qual somos Necessaacuterio

faz-se ressaltar que este conhecimento intuitivo que demonstra a unidade da vontade

em todo indiviacuteduo eacute entendimento de verdade tatildeo profundo que supera qualquer

especulaccedilatildeo abstrata do conhecimento e por isso seu efeito eacute marcante

Para o conhecimento que vecirc atraveacutes do principium individuationis uma

vida feliz no tempo presenteada pelo acaso ou conquistada deste pela

sabedoria em meio ao sofrimento de inumeraacuteveis outros eacute apenas um sonho de

mendigo no qual eacute um rei poreacutem tem de acordar e reconhecer que era tatildeo-soacute

uma ilusatildeo fugidia aquilo que o separava do sofrimento da sua vida (MVR

452)

A experimentaccedilatildeo deste estado de consciecircncia faz-nos perceber a vida como engano

luta infinita e provoca em noacutes a renuacutencia a esta mesma vida agrave vontade de viver O

homem natildeo mais afirma a sua essecircncia mas a repudia

Agrave semelhanccedila do estado de negaccedilatildeo da vontade o proacuteprio estado de

contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee um desinteresse pelos mandamentos da vontade

60

individual um desligamento do caraacuteter egoiacutestico do sujeito empiacuterico28

Para que possa

perceber a Ideacuteia por traacutes do objeto contemplado o observador deve estar em um estado

de consciecircncia que se vecirc livre dos grilhotildees da vontade Neste estado ele eacute alccedilado para

aleacutem da individualidade torna-se puro sujeito de conhecimento Para que este estado se

manifeste eacute imprescindiacutevel natildeo estar interessado nas relaccedilotildees do objeto apreciado seja

com outros objetos seja consigo mesmo O apreciador esteacutetico natildeo se preocupa com o

ldquoonderdquo o ldquocomordquo o ldquoporquecircrdquo dos objetos Estas formas de interjeiccedilatildeo sinalizam para a

relaccedilatildeo dos objetos com o mundo O apreciador esteacutetico no momento da apreciaccedilatildeo

tem em vista somente o ldquoquerdquo do objeto transforma-se em um ldquoolho que vecircrdquo livre do

princiacutepio de individuaccedilatildeo eacute o puro sujeito de conhecimento Vemos nestes dois estados

(o esteacutetico e o compassivo) exemplos de estados de consciecircncia que por suas

caracteriacutesticas de alccedilarem o indiviacuteduo a uma anulaccedilatildeo do sofrimento fazem parte do

projeto de juventude de estabelecer uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Percebemos entatildeo que a

consideraccedilatildeo esteacutetica e a consideraccedilatildeo eacutetica possuem em comum esta caracteriacutestica da

consciecircncia de se apartar do princiacutepio de individuaccedilatildeo

No caso da trageacutedia como descreve Schopenhauer seu fim uacuteltimo eacute despertar a

compaixatildeo no apreciador Desta forma o filoacutesofo associa agrave trageacutedia um efeito singular e

adverso das demais artes ou pelo menos reconhece na trageacutedia a arte capaz de

demonstrar a semelhanccedila entre os modos de consideraccedilatildeo artiacutestico e eacutetico Ao ilustrar o

conflito das vontades no mundo atraveacutes da exposiccedilatildeo do sofrimento humano a trageacutedia

cumpre seu papel artiacutestico ao expor a ideacuteia de humanidade Aleacutem deste atributo

podemos dizer que a trageacutedia tem que cumprir ainda seu papel moral ao causar no

28

Neste ponto de semelhanccedila eacute fundamental apontar mais uma vez a heranccedila kantiana Nas palavras de

Barboza (2001 82) ldquoA negaccedilatildeo da Vontade diante da beleza realmente obedece a uma leitura do

conceito criacutetico de desinteresse Quando Kant diz que o belo eacute aquilo que satisfaz bdquosem nenhum

interesse‟ o autor de O mundo leu essa expressatildeo como equivalente da negaccedilatildeo do querer visto que

interesse e motivo satildeo conceitos intercambiaacuteveis [] e a vontade neutraliza-se desinteressa-se ou seja eacute

indeterminaacutevel por motivos na contemplaccedilatildeo da Ideacuteia do belordquo

61

espectador a renuacutencia a toda vontade O modelo exemplar da trageacutedia eacute para

Schopenhauer a trageacutedia cristatilde onde o heroacutei conscientemente abandona o querer e

conseguintemente a vida Na trageacutedia antiga havia somente a identificaccedilatildeo do

sofrimento humano e sua exposiccedilatildeo A renuacutencia agrave vontade de vida eacute caracteriacutestica das

trageacutedias posteriores ao advento cristatildeo Schopenhauer exemplifica O priacutencipe de

Calderoacuten Gretchen em Fausto A Donzela de Orleans a Noiva de Messina etc Assim

ldquotoda a exposiccedilatildeo traacutegica eacute para o espectador um chamado agrave resignaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo livre

da Vontade de vida Somente a eacutetica pode tornar tudo isso mais compreensiacutevelrdquo (MB

223) Vemos entatildeo de forma clara na teoria da trageacutedia de Schopenhauer um momento

onde ocorre a coalizatildeo dos fundamentos metafiacutesicos de sua filosofia do pessimismo

originado nestes fundamentos e da atitude eacutetica existente por traacutes de seu pensamento

25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera

Faz-se necessaacuterio aqui uma incursatildeo sobre a teoria da muacutesica de Schopenhauer

tendo em vista de que ela ocuparaacute um papel decisivo na teoria nietzscheana da trageacutedia

As relaccedilotildees que Nietzsche estabelece entre a muacutesica a vontade as palavras e

finalmente a trageacutedia satildeo delineadas como veremos pela metafiacutesica schopenhaueriana

da muacutesica No intuito de perceber estas relaccedilotildees propomos aqui um breve esboccedilo da

teoria da muacutesica na filosofia de Schopenhauer

A filosofia da muacutesica encontra seu lugar ao final do terceiro livro de MVR bem

como no capiacutetulo 39 dos complementos fechando assim as consideraccedilotildees de

Schopenhauer sobre a metafiacutesica do belo e as artes29

29

Na esteira de Lydia Goehr (Jacquette 1996 200) ressaltamos que tendo em vista a influecircncia que sua

filosofia da muacutesica exerceu sobre o pensamento artiacutestico e filosoacutefico posterior e comparada agrave dimensatildeo

de sua obra as consideraccedilotildees sobre a muacutesica ocupam um espaccedilo diminuto em sua obra

62

Para o filoacutesofo da vontade a muacutesica eacute a arte que pela natureza de seu objeto de

expressatildeo natildeo encontra lugar apropriado dentro do sistema das demais artes Estas

conforme sua competecircncia em traduzir uma determinada objetidade da vontade uma

ideacuteia satildeo classificadas hierarquicamente A muacutesica entretanto figura aleacutem desta

hierarquizaccedilatildeo pois representa o conceitualmente irrepresentaacutevel ldquoa coacutepia de um

modelo que ele mesmo nunca pode ser representado imediatamenterdquo(MVR 338) a

Vontade mesma Esta arte eacute especialmente considerada devido agrave peculiaridade uacutenica de

seu efeito esteacutetico ldquoeacute uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente

sobre o mais iacutentimo do homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele

como se fora uma linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do

mundo intuitivordquo (MVR 336) A muacutesica estaacute aleacutem da intuiccedilatildeo pois representa aquilo

que estaacute aleacutem desta forma agrave semelhanccedila das ideacuteias que satildeo objetivaccedilotildees imediatas da

vontade a muacutesica eacute tambeacutem uma destas objetivaccedilotildees representaccedilatildeo imediata da coisa

em si O que o compositor apresenta atraveacutes da muacutesica eacute a essecircncia mais iacutentima do

mundo em uma ldquolinguagem natildeo compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo

magneacutetico fornece informaccedilotildees sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito

algumrdquo (MVR 342) Por estar em um acircmbito inalcanccedilaacutevel pelo conceito a muacutesica

atraveacutes de sua linguagem arrebata o homem de forma mais marcante e direta e ateacute

mesmo a explanaccedilatildeo sobre a muacutesica estaacute condenada agrave pobreza e agrave insuficiecircncia Desta

forma o filoacutesofo se utilizaraacute de uma analogia para explanar sobre a muacutesica ie

procederaacute a uma explicaccedilatildeo da muacutesica atraveacutes de um paralelismo entre ela as ideacuteias e o

mundo enquanto objetivaccedilotildees da vontade

Esta analogia expressa atraveacutes de diversos exemplos leva em consideraccedilatildeo que

em suas duas formas de objetivaccedilatildeo (o mundo e a muacutesica) a Vontade deixa transparecer

semelhanccedilas Na muacutesica os tons mais graves aproximam-se ao que satildeo no mundo os

63

graus mais baixos de objetivaccedilatildeo da vontade quais sejam a natureza inorgacircnica A lei

da harmonia estabelece que os tons agudos satildeo originados daquele tom mais grave

fundamental Da mesma forma no mundo os corpos tecircm como fonte e sustentaacuteculo a

natureza inorgacircnica ldquoagrave partir da qual tudo se eleva e desenvolverdquo(MB 230) As vozes

intermediaacuterias da melodia que estatildeo entre o baixo fundamental e a voz condutora

correspondem no mundo aos demais graus de objetivaccedilatildeo da vontade na natureza ldquoAs

vozes mais proacuteximas do baixo correspondem aos graus mais baixos ou seja os corpos

ainda inorgacircnicos poreacutem jaacute se exteriorizando de diversas maneiras As vozes mais

elevadas por sua vez representam os reinos vegetal e animalrdquo(MB 231)

O objeto de representaccedilatildeo da muacutesica eacute a Vontade e esta por sua vez eacute

intraduziacutevel atraveacutes das palavras da configuraccedilatildeo racional pois a razatildeo natildeo pode

alcanccedilar sua profundidade Trata-se de ldquouma linguagem universal cuja

compreensibilidade eacute inata e cuja clareza ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo

(MB 228) Diante desta caracteriacutestica cognitiva a muacutesica natildeo deve se inspirar no texto

nas palavras a natildeo ser para ilustraacute-las e conceder-lhes assim significaccedilatildeo mais

profunda A muacutesica natildeo deve ser composta com base em conceitos ou em objetos e

ocorrecircncias do mundo pois trata-se de uma expressatildeo da ordem do essencial do

universal ldquoela eacute a alma mais interior dessas ocorrecircncias sem o corpordquo (MB 235) Os

objetos e situaccedilotildees do mundo satildeo manifestaccedilotildees e portanto sua representaccedilatildeo

conceitual satildeo reproduccedilotildees circunstanciais da essecircncia do mundo expressa pela muacutesica

Daiacute se compreende o fato de a muacutesica realccedilar em cada

pintura sim em cada cena da vida efetiva e do mundo o

aparecimento de uma significaccedilatildeo mais elevada e tanto mais

quanto mais anaacuteloga eacute sua melodia ao espiacuterito iacutentimo do

fenocircmeno dado A muacutesica combina com tudo em todas as

exposiccedilotildees Nada lhe pode ser estranho pois exprime a essecircncia

de todas as coisas Caso se soe uma muacutesica que combine com

alguma cena da vida humana ou da natureza destituiacuteda de

conhecimento ou com alguma accedilatildeo acontecimento ambiente ou

64

alguma imagem ndash entatildeo ela revela o sentido secreto dessa cena e eacute

seu comentaacuterio mais correto e claro (MB 235)

Esta caracteriacutestica que daacute agrave muacutesica um privileacutegio cognitivo sobre as demais formas

artiacutesticas eacute o que delineia as consideraccedilotildees do filoacutesofo sobre a oacutepera30

A oacutepera ideal eacute

portanto aquela onde o livreto estaacute para a muacutesica como um exemplo para um conceito

geral A muacutesica tem a funccedilatildeo de expor ldquoo profundo e misterioso sobre a essecircncia

iacutentimardquo daquilo que a palavra exemplifica O compositor que maior ecircxito conseguiu

neste sentido conforme o filoacutesofo foi Rossini cuja ldquomuacutesica fala tatildeo distinta e

puramente a sua linguagem PROacutePRIA visto que quase natildeo precisa de palavras e por

conseguinte provoca todo o seu efeito mesmo se executada soacute com instrumentosrdquo

(MVR 344)

Vemos entatildeo a muacutesica como a mais profunda das artes cujo efeito eacute o mais

avassalador e que portanto quando conjugada com outras formas de expressatildeo como a

oacutepera deve formar a base e orientar a sua elaboraccedilatildeo Entretanto ao contraacuterio da

trageacutedia cujo fim eacute o estiacutemulo agrave renuacutencia da vontade de viver a muacutesica segundo a

metafiacutesica exposta por Schopenhauer ldquonatildeo faz mais do que agradar a vontade de viver

jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo seus ecircxitos e ao final expressa sua

satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509)

30

ldquoAo adotar esta atitude Schopenhauer transtorna toda a tradiccedilatildeo jaacute secular que havia afirmado natildeo

poucas vezes desde os tempos do nascimento da oacutepera o predomiacutenio da palavra sobre a muacutesica e em

consequumlecircncia a subordinaccedilatildeo desta uacuteltima agrave primeirardquo (Fubini 1988 289)

65

3 A teoria da trageacutedia do Jovem Nietzsche

Debalde espreitamos por uma raiz

vigorosamente ramificada por um pedaccedilo

de terra sadia e feacutertil por toda parte poacute

areia rigidez consunccedilatildeo Aqui um

solitaacuterio desconsolado natildeo poderia escolher

melhor siacutembolo do que o Cavaleiro com a

Morte e o Diabo como Duumlrer o desenhou o

cavaleiro arnesado com o olhar duro

brocircnzeo que sabe tomar o seu caminho

assustador imperturbado por seus

hediondos companheiros e natildeo obstante

desesperanccedilado sozinho com o seu corcel e

o seu catildeo Um tal cavaleiro duumlreriano foi

nosso Schopenhauer faltava-lhe qualquer

esperanccedila mas queria a verdade Natildeo haacute

quem se lhe iguale

(Nietzsche)

Neste capiacutetulo procuraremos apontar primeiramente o modo pelo qual se deu o

encontro entre Nietzsche e a filosofia de Schopenhauer Em um segundo momento

percorreremos o desenvolvimento histoacuterico das produccedilotildees nietzscheanas que

culminaram com a publicaccedilatildeo da obra que caracteriza o primeiro periacuteodo do filoacutesofo

qual seja O nascimento da trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica Concluiremos entatildeo

apresentando um esboccedilo desta obra dando ecircnfase em todos os momentos aos

66

elementos que caracterizam sua teoria da trageacutedia especialmente agravequeles relacionados agrave

metafiacutesica schopenhaueriana da vontade

31 Schopenhauer e o jovem Nietzsche uma breve contextualizaccedilatildeo histoacuterica

Foram nos anos de universidade em Leipzig que Nietzsche se deparou com a

filosofia de Schopenhauer Este periacuteodo entre os anos de 1865 e 1869 eacute especialmente

importante devido ao fato de que nele podemos assistir ao surgimento de alguns

aspectos fundamentais ao projeto filosoacutefico de Nietzsche Janz descreve este periacuteodo

como aquele em que o filoacutesofo estabeleceu ldquoseus encontros espirituais determinantes a

partir dos quais se defrontou consigo mesmo e com sua tarefardquo(1987 151)

O primeiro contato do jovem Nietzsche com o mundo schopenhaueriano deu-se

em meados de outubro de 1865 pouco tempo apoacutes sua chegada a Leipzig O

arrebatamento causado no jovem estudante de filologia pelo encontro com a filosofia

schopenhaueriana eacute descrito por ele apoacutes dois anos da seguinte maneira

Sentia-me naquela eacutepoca desorientado solitaacuterio sem

princiacutepios sem esperanccedilas inconsolado e com algumas

experiecircncias dolorosas e decepccedilotildees Construir uma vida proacutepria e

adequada era para mim uma aspiraccedilatildeo que me ocupava da manhatilde

ateacute a noite No feliz apartamento em que vivia procurava

concentrar-me a mergulhar em mim mesmo e quando me

encontrava com amigos estes eram sempre Mushacke e Von

Gersdorff os quais por sua parte alentavam objetivos muito

semelhantes aos meus Creio que natildeo seraacute difiacutecil imaginar a

impressatildeo que nesta situaccedilatildeo me causou a leitura da obra

principal de Schopenhauer Encontrei um dia este livro no sebo do

velho Rohm Ignorando tudo sobre ele o tomei em minhas matildeos e

me pus a folheaacute-lo Natildeo sei que democircnio me sussurrou bdquoleve este

livro para a casa‟ Aconteceu de compraacute-lo apesar do meu usual

costume de natildeo me precipitar na compra de livros Uma vez em

casa num canto do sofaacute me lancei sobre o tesouro receacutem

adquirido e comecei a deixar que aquele gecircnio eneacutergico e sombrio

influiacutesse sobre mim Em cada linha sua gritava a renuacutencia

negaccedilatildeo resignaccedilatildeo tinha diante de mim um espelho no qual

podia contemplar o mundo a vida e meu proacuteprio acircnimo com uma

67

grandeza deprimente Um espelho desde o qual o olho solar da

arte me mirava desde sua absoluta falta de interesse Vi

enfermidade e cura desterro e refuacutegio inferno e paraiacuteso A

necessidade de autoconhecimento inclusive de auto-

experimentaccedilatildeo apoderou-se de mim com forccedila indomaacutevel

provas daquela mutaccedilatildeo profunda satildeo hoje todavia para mim as

paacuteginas desassossegadas e melancoacutelicas do diaacuterio que agravequela

eacutepoca escrevi com suas auto-acusaccedilotildees inuacuteteis e sua desesperada

busca de salvaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do inteiro nuacutecleo humano Na

medida em que propus a submeter todas as minhas caracteriacutesticas

e aspiraccedilotildees ao tribunal de uma sombria auto-depreciaccedilatildeo minha

atitude estava cheia de amargura possuiacuteda de um oacutedio injusto e

desenfreado contra mim mesmo Nem sequer renunciei agraves

mortificaccedilotildees corporais Obriguei-me com efeito durante

quatorze dias seguidos a deitar-me agraves duas da noite e acordar agraves

seis da manhatilde Uma excitaccedilatildeo nervosa muito singular se apoderou

assim de mim e quem sabe ateacute que grau de loucura haveria

chegado se natildeo tivesse modificado frente agravequele estado de

acircnimo os atrativos da vida da vaidade e o imperativo de retornar

a meus estudos regulares (conforme citaccedilatildeo de Janz 1987 158)

Da citaccedilatildeo podemos inferir a mudanccedila de acircnimo que o encontro com

Schopenhauer provocou A partir daquele momento diversas correspondecircncias datildeo-nos

ainda informaccedilotildees do impacto que a filosofia de Schopenhauer provocou na concepccedilatildeo

de mundo do jovem estudante Em algumas destas correspondecircncias vemos transparecer

a influecircncia atraveacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio schopenhaueriano bem

como das ideacuteias nelas expressas Assim acontece em carta enviada agrave sua matildee e irmatilde

datada de 5 de novembro de 1865 onde ao discorrer acerca da frivolidade da vida

humana o jovem Nietzsche conclui utilizando-se dos argumentos propostos pela eacutetica

schopenhaueriana

Existem dois caminhos ou se esforccedila e se acostuma a ser

o mais limitado que se possa e uma vez que se reduz o maacuteximo

possiacutevel a luz do espiacuterito se busque bens de fortuna e se viva com

os prazeres do mundo ou por outro lado se sabe que a vida eacute

miseraacutevel se sabe que somos seus escravos tanto mais quanto

mais procuramos dela gozar e por tanto se desprende dos bens da

vida exercita a sobriedade e se eacute austero consigo mesmo e cordial

com os demais ndash e isto porque sente compaixatildeo pelos

companheiros de miseacuteria ndash em uma palavra se vive de acordo

68

com as rigorosas exigecircncias do cristianismo primitivo (OC

470)

Vemos ainda em carta a Mushacke em 12 de julho de 1866 o impacto que a

interpretaccedilatildeo schopenhaueriana pessimista de mundo causou em Nietzsche ldquoDesde que

Schopenhauer nos retirou dos olhos a venda do otimismo as coisas satildeo percebidas

mais agudamente A vida eacute mais interessante ainda que mais feiardquo (conforme citaccedilatildeo

de Janz 1987 172) Percebemos tambeacutem a linguagem schopenhaueriana na descriccedilatildeo

dos momentos de contemplaccedilatildeo Eacute o caso da carta datada de 07 de abril de 1866 a

Gersdorf onde Nietzsche descreve seu estado que nos remeteraacute agrave contemplaccedilatildeo

artiacutestica na filosofia de Schopenhauer ao discorrer sobre os dias de veratildeo ldquo[] a

natureza se faz perfeita e noacutes tambeacutem entatildeo nos sentimos livres do poderio da vontade

sempre alerta e somos olho puro intuitivo desinteressadordquo (OC 472)

Estas influecircncias nortearam de forma definitiva as produccedilotildees acadecircmicas de

Nietzsche mesmos suas pesquisas filoloacutegicas A concepccedilatildeo traacutegica do mundo tornou-se

um feixe condutor para as reflexotildees do jovem filoacutelogo Seus companheiros no estudo da

obra de Schopenhauer eram Gersdorff e Mushacke Em carta agrave sua matildee de 01 de

fevereiro de 1866 Nietzsche deixa saber sobre a frequumlecircncia dos estudos ldquoCom

Gersdorff me encontro uma noite por semana para ler grego a cada duas semanas me

reuacuteno com ele e com Mushacke e nos entregamos a Schopenhauer Este filoacutesofo ocupa

uma posiccedilatildeo importante em meus pensamentos e estudos e meu respeito por ele cresce

incomparavelmenterdquo (OC 471) Se o conteuacutedo da filosofia schopenhaueriana foi

absorvido intensamente pelo jovem Nietzsche como podemos ver a partir dos trechos

transcritos acima a forma estiliacutestica tambeacutem se configura como preocupaccedilatildeo Em um

periacuteodo onde as pesquisas acadecircmicas exigiam o esforccedilo da escrita ali tambeacutem a

autoridade das regras schopenhauerianas exibia sua feiccedilatildeo Eacute tambeacutem em uma carta a

69

Gersdorff datada de 06 de abril de 1867 onde Nietzsche expotildee sua preocupaccedilatildeo com o

estilo

Nestas divagaccedilotildees quero redigir meu trabalho sobre as

fontes de Dioacutegenes Laeacutercio e estou todavia no iniacutecio Para seu

regozijo confessarei que o que mais me daacute trabalho eacute meu estilo

em alematildeo Agora me caem os veacuteus dos olhos e vejo que

durante muito tempo vivi em estado de inocecircncia estiliacutestica O

imperativo categoacuterico bdquodeves escrever‟ me foi despertado[] nos

ouvidos me soavam todos os preceitos estiliacutesticos de Lessing de

Lichtenberg e de Schopenhauer Meu uacutenico consolo eacute que estas

trecircs autoridades afirmavam unanimemente que eacute difiacutecil escrever

bem que por natureza ningueacutem tem um bom estilo e que haacute que

trabalhar e trabalhar para consegui-lo (OC 476)

Entretanto apesar do profundo arrebatamento causado pela filosofia de

Schopenhauer que fez com que o universo das preocupaccedilotildees do entatildeo jovem Nietzsche

se fundamentasse nos pressupostos da metafiacutesica schopenhaueriana outros elementos

tambeacutem fundamentais para o pensamento futuro do filoacutesofo foram tambeacutem neste

periacuteodo despertados Como apontam Dias (2009 42) Janaway (2007 16) e Lopes

(2008 27) jaacute neste periacuteodo que podemos tratar como um periacuteodo de despertar para o

pensamento filosoacutefico encontraacutevamos os elementos que a partir de Humano demasiado

humano conformaratildeo a criacutetica nietzscheana agrave filosofia de Schopenhauer Os

comentadores citados chamam a atenccedilatildeo para o fato de que embora nas obras

publicadas de Nietzsche possamos assistir a criacuteticas diretas a Schopenhauer somente

apoacutes Humano demasiado humano tais criacuteticas agrave filosofia schopenhaueriana surgiram

em um momento imediatamente posterior agrave descoberta da metafiacutesica da vontade Rosa

Maria Dias chama a atenccedilatildeo para os fragmentos poacutestumos e para a correspondecircncia que

agrave partir de 1867 trazem algumas criacuteticas agrave metafiacutesica da vontade Rogeacuterio Lopes e

Cristopher Janaway apontam que algumas destas criacuteticas estatildeo embasadas nas leituras

que o jovem Nietzsche fez de Friedrich A Lange Rudolf Haym Kuno Fischer dentre

outros Tais criacuteticas contudo natildeo afastaram o jovem Nietzsche do discipulado

70

schopenhaueriano mas transformaram sua aceitaccedilatildeo do sistema da vontade No lugar de

uma defesa da consistecircncia loacutegica do sistema Nietzsche passou a adotar uma postura de

defesa da bdquonatureza edificante‟ e preponderantemente artiacutestica deste sistema Exemplos

desta postura podem ser encontrados tambeacutem na correspondecircncia daquele periacuteodo

Para escrever uma apologia a Schopenhauer eu tenho

unicamente que considerar o fato de que olho esta vida livre e

bravamente diante do fato de que encontrei um suporte para me

apoiar obviamente que isto natildeo eacute mais que uma apologia

totalmente individual Mas eacute como as coisas satildeo Se algueacutem

deseja refutar Schopenhauer para mim atraveacutes de argumentos

racionais murmuro em seu ouvido bdquoporeacutem meu amigo visotildees de

mundo natildeo satildeo criadas nem destruiacutedas pela loacutegica‟ (carta a

Deussen Outubro-Novembro de 1867 citada por Janaway

(200718))

Ou ainda em carta a Gersdorff onde apoacutes apresentar a criacutetica de Lange agrave metafiacutesica da

vontade Nietzsche conclui contra Haym ainda com os argumentos de Lange

Natildeo apenas a verdadeira essecircncia das coisas a coisa em si

eacute desconhecida para noacutes tambeacutem seu conceito eacute nada mais nada

menos que o uacuteltimo rebento de um contraste condicionado por

nossa organizaccedilatildeo do qual natildeo sabemos se conserva algum

significado fora de nossa experiecircncia Disso resulta pensa Lange

que os filoacutesofos natildeo devem ser importunados na medida em que

nos edificam A arte eacute livre tambeacutem na regiatildeo dos conceitos

Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro

uma Madonna de Rafael Como vocecirc pode perceber o nosso

Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista

criacutetico ele se torna quase ainda mais valioso para noacutes Se filosofia

eacute arte entatildeo que Haym se anule diante de Schopenhauer se a

filosofia deve edificar entatildeo eu pelo menos natildeo conheccedilo nenhum

filoacutesofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer (apud

Lopes 2008 86-87)

Vimos ateacute entatildeo que a descoberta de Schopenhauer provocou no jovem

estudante de filologia transformou sua forma de perceber o mundo e o influenciou de

forma definitiva a ponto de fazer com que Nietzsche se definisse como um seguidor e

divulgador da obra schopenhaueriana Contudo eacute no fim de seus anos de estudo em

Leipzig que o disciacutepulo de Schopenhauer iraacute se defrontar com a personalidade que lhe

71

reforccedilaraacute de forma ainda mais contundente o selo da rotunda schopenhaueriana

Richard Wagner

Foi atraveacutes de seu amigo Brockhaus cuja esposa era irmatilde do muacutesico que em

novembro de 1868 Nietzsche encontrou-se pela primeira vez com Wagner A partir

daquele encontro se estabeleceria um relacionamento que de uma forma ou de outra

marcaraacute Nietzsche pelo resto de sua vida Em uma carta a seu amigo Erwin Rohde

Nietzsche descreve o primeiro encontro e sua perplexidade ao encontrar em Wagner um

admirador de Schopenhauer ldquo[]mantive com ele uma longa conversa sobre

Schopenhauer Ah Compreenderaacutes minha felicidade em ouvir-lhe falar com um

entusiasmo completamente indescritiacutevel ao qual ele agradecia como Schopenhauer

era o uacutenico filoacutesofo que havia compreendido a essecircncia da muacutesicardquo (Correspondecircncia

2007 21) A impressatildeo deste encontro eacute tambeacutem claramente visiacutevel atraveacutes de

correspondecircncia endereccedilada ao proacuteprio Wagner em maio de 1869 ldquoVeneradiacutessimo

senhor quanto tempo tive a intenccedilatildeo de lhe manifestar sem nenhuma timidez o grau de

gratidatildeo que sinto em relaccedilatildeo ao senhor pois realmente os melhores e mais elevados

momentos de minha vida se ligam ao seu nome e eu soacute conheccedilo mais um homem aleacutem

disso seu grande irmatildeo em espiacuterito Arthur Schopenhauer em quem penso com a

mesma veneraccedilatildeo ateacute senso religiosordquo (Correspondecircncia 2007 56) Como podemos

ver a pessoa de Wagner eacute associada agrave de Schopenhauer Esta associaccedilatildeo tornar-se-aacute

uma constante e poderaacute ser identificada ainda na fase tardia onde as criacuteticas a estes

pensadores e ao que eles entatildeo representavam se daraacute de forma inter-relacionada Este

primeiro encontro com Wagner conforme Janz (1987 22) foi um dos principais

motivos que levaram Nietzsche a aceitar em detrimento de outros planos que

formulava assumir a caacutetedra de filologia em Basel A proximidade de Tribschen

residecircncia dos Wagner e a possibilidade de uma convivecircncia com o muacutesico o

72

inspiraram E assim aconteceu Ao mudar-se para Basel pocircde desfrutar de uma

convivecircncia constante com o casal Wagner Desde a chegada de Nietzsche ateacute a

mudanccedila de Wagner em 1872 encontravam-se com muita frequumlecircncia e os assuntos que

pautavam tais encontros eram amiuacutede arte muacutesica a literatura claacutessica e a filosofia de

Schopenhauer Wagner tornar-se-ia para Nietzsche a personificaccedilatildeo do gecircnio

schopenhaueriano aquele capaz de atraveacutes da muacutesica expor a essecircncia do mundo No

projeto wagneriano de ldquoarte totalrdquo Nietzsche pocircde vislumbrar a uniatildeo entre muacutesica e

filosofia e satisfazer assim em certa medida as expectativas oriundas da metafiacutesica da

vontade

32 O projeto subjacente ao Nascimento da Trageacutedia

Eacute famosa a passagem onde Nietzsche em carta a Deussen datada de janeiro de

1870 informa sobre seu estado de espiacuterito ldquo Ciecircncia arte e filosofia crescem agora

juntas em mim e de tal modo que um dia haverei de parir centaurosrdquo (Janz 1981 66)

Esta afirmaccedilatildeo eacute ilustrativa no que se refere ao ambiente onde o Nascimento da trageacutedia

foi gerado Podemos identificar claramente as figuras por detraacutes dos termos filosofia

arte e ciecircncia satildeo elas Schopenhauer Wagner e a filologia claacutessica Neste periacuteodo

Nietzsche entatildeo jovem professor de filologia estava imbuiacutedo pela pretensatildeo de poder

unir os estudos filoloacutegicos aos filosoacuteficos Sua preleccedilatildeo inicial Homero e a filologia

claacutessica em Basel nos daacute uma amostra desta pretensatildeo Ali podemos assistir a uma

aproximaccedilatildeo entre filologia e filosofia atraveacutes da proposta de uma leitura filosoacutefica do

mundo antigo ldquoCom isto quero expressar que toda atividade filoloacutegica deve estar

impregnada de uma concepccedilatildeo filosoacutefica do mundo na qual todo o particular e singular

seja visto como algo sem proveito e soacute permaneccedila de peacute a unidade do todordquo (OC 26)

73

Sua escolha por trilhar caminhos mais proacuteximos agrave filosofia pode tambeacutem ser observada

pela tentativa frustrada de ocupar uma cadeira desta disciplina que se mostrou livre em

janeiro de 1871 Se por um lado podemos diagnosticar certa decepccedilatildeo e ateacute um

determinado desacircnimo na atividade acadecircmica por outro lado os laccedilos com os Wagner

se estreitavam cada vez mais No refuacutegio de Tribschen sob a aura de Richard Wagner

Nietzsche discorria sobre o mundo grego enquanto modelo de cultura e ouvia os planos

wagnerianos sobre seu projeto de uma obra de arte total Como pano de fundo destas

discussotildees a metafiacutesica da muacutesica schopenhaueriana e sua concepccedilatildeo traacutegica do mundo

Eacute em torno destes eixos formadores que vemos se materializar a primeira publicaccedilatildeo de

Nietzsche

O desenvolvimento das ideacuteias que formaratildeo a obra contudo se deu de forma

gradual Ao longo do periacuteodo compreendido entre a chegada de Nietzsche a Basel e a

publicaccedilatildeo de seu livro determinados trabalhos deixam transparecer o delineamento de

algumas das ideacuteias centrais da obra Satildeo eles O drama musical grego Soacutecrates e a

trageacutedia A visatildeo dionisiacuteaca do mundo e Introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles31

Em o drama musical grego conferecircncia puacuteblica datada de janeiro de 1870

Nietzsche efetua uma comparaccedilatildeo entre a arte traacutegica da antiguidade e as oacuteperas

modernas Estas de acordo com o filoacutesofo satildeo uma imperfeita ldquocaricatura do drama

musical antigordquo (VD 48) Muacutesica pintura escultura e poesia formavam um todo na

arte traacutegica da antiguidade Nas artes modernas por sua vez as formas artiacutesticas satildeo

fragmentadas fato que dificulta o entendimento da trageacutedia grega e que causaria

espanto ao apreciador de arte moderno A muacutesica teria para a trageacutedia antiga uma

31

Como ressaltam M S Silk e J P Stern em sua obra Nietzsche on tragedy (1981 59) o nascimento da

trageacutedia eacute composto de forma estrutural pelos conceitos encontrados nestes trabalhos O iniacutecio do livro

(sectsect1-10) eacute substancialmente baseado no ensaio a visatildeo dionisiacuteaca do mundo enquanto a sequumlecircncia

composta pelos paraacutegrafos 5 e 6 estaacute mais proacutexima da introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles O trecho

composto pelos paraacutegrafos 11 a 14 pode ser derivado diretamente da leitura Soacutecrates e a trageacutedia O resto

do livro eacute formado por uma amaacutelgama destes escritos Partes dispersas ainda satildeo formadas pelo ensaio do

drama musical grego

74

importacircncia capital como elemento intensificador de seu efeito Podemos ver a intenccedilatildeo

por traacutes da anaacutelise nietzscheana da trageacutedia antiga em comparaccedilatildeo agrave opera Ao final da

conferecircncia no elogio que confere a Wagner o tiacutetulo de ldquoatual reformador da arterdquo bem

como na descriccedilatildeo de seu projeto de arte total retratado como um acontecimento que jaacute

teve lugar na trageacutedia da antiguidade claacutessica Nietzsche deixa claro seu engajamento ao

projeto wagneriano

No mecircs seguinte ao da citada conferecircncia uma segunda intitulada Soacutecrates e a

trageacutedia foi proferida por Nietzsche O assunto em pauta era a morte repentina da

trageacutedia grega Esta morte teria ocorrido pelas matildeos de Euriacutepides apoacutes uma decadecircncia

iniciada nos uacuteltimos periacuteodos das produccedilotildees de Eacutesquilo passando por Soacutefocles e

culminando com o advento da comeacutedia Tal decadecircncia teria sido provocada pela saiacuteda

de cena da muacutesica que de forma progressiva foi substituiacuteda pelo diaacutelogo racionalista

Soacutecrates ocupa aqui um lugar importante Eacute sua influecircncia sobre Euriacutepides que

transforma de uma forma definitiva a arte instintivamente musical da trageacutedia em uma

manifestaccedilatildeo do discurso eacutetico racionalista Esta ldquoesteacutetica racionalista e conscienterdquo

pode ser identificada no proacutelogo euripidiano e na inserccedilatildeo do deus ex machina

enquanto agentes de racionalizaccedilatildeo da obra artiacutestica A trageacutedia de Euriacutepides teria

assumido assim os pressupostos do racionalismo socraacuteticos ldquoVirtude eacute saber peca-se

somente por ignoracircncia O virtuoso eacute felizrdquo (VD 90) Esta assunccedilatildeo que liga a virtude

ao saber impotildee agrave trageacutedia um caraacuteter eacutetico alheio agrave sua caracteriacutestica puramente

esteacutetica O elemento culpa na dialeacutetica socraacutetica toma o lugar que era ocupado pela

compaixatildeo Jaacute podemos perceber nesta conferecircncia o esboccedilo da dicotomia que mais

tarde seraacute ilustrada atraveacutes dos deuses Apolo e Dioniso Os pares formadores da

dicotomia satildeo aqui expressos pela separaccedilatildeo entre instinto e razatildeo muacutesica e discurso

pessimismo e otimismo arte e ciecircncia

75

Temos a primeira referecircncia agrave arte dionisiacuteaca como impulso formador da

trageacutedia e sua contraposiccedilatildeo agrave arte apoliacutenea nas aulas proferidas por Nietzsche no veratildeo

daquele mesmo ano Neste curso sobre a trageacutedia de Soacutefocles do qual temos a

introduccedilatildeo podemos ver o esforccedilo de Nietzsche em caracterizar e apontar as

peculiaridades da trageacutedia da antiguidade que a tornam um fenocircmeno uacutenico em

comparaccedilatildeo agraves trageacutedias modernas Tal discussatildeo demonstraraacute pelos aspectos ali

expostos a aproximaccedilatildeo de Nietzsche com autores do periacuteodo claacutessico alematildeo e

sobretudo da chamada querela entre antigos e modernos Vemos claramente a influecircncia

de Schiller e F A Schlegel em algumas das definiccedilotildees adotadas por Nietzsche

No texto denominado A visatildeo dionisiacuteaca do mundo jaacute podemos assistir a um

desenvolvimento das duas pulsotildees artiacutesticas que satildeo o nuacutecleo da interpretaccedilatildeo

nietzscheana da trageacutedia O apoliacuteneo e o dionisiacuteaco satildeo ali explicados no acircmbito de seu

surgimento no mundo helecircnico e simbolizam a uniatildeo entre verdade e beleza na forma de

arte traacutegica Sua descriccedilatildeo como veremos abaixo estaacute permeada de conceitos retirados

da filosofia schopenhaueriana que vatildeo desde a biparticcedilatildeo do mundo entre verdade e

aparecircncia perpassam as noccedilotildees de belo e sublime e apontam a trageacutedia e a muacutesica como

forma de arte superiores

Em janeiro de 1872 Nietzsche daacute luz a seu ldquoCentaurordquo sob o nome O nascimento

da trageacutedia atraveacutes do espiacuterito da muacutesica Em carta a Rohde datada de 23 de novembro

de 1871 podemos notar atraveacutes da ansiosa expectativa nietzscheana a amaacutelgama

formadora da obra ldquo Temo sempre que os filoacutelogos natildeo o queiram ler por causa da

muacutesica os muacutesicos por causa da filologia e os filoacutesofos por causa da muacutesica e da

filologia e sinto logo medo e compaixatildeo de mim mesmordquo (Correspondecircncia 2007 237)

33 A teoria da trageacutedia publicada

Como escopo geral da primeira obra de Nietzsche podemos dizer na esteira de

Silk e de Stern (1981 52) que ela se propunha a esclarecer o problema do nascimento e

76

da morte da trageacutedia helecircnica Trageacutedia que por sua vez era a expressatildeo artiacutestica que

simbolizava um problema vital o de que sob uma superfiacutecie bela podiacuteamos ter acesso agrave

terriacutevel profundidade do ser Tal forma de arte poderia novamente vir agrave luz por uma

geraccedilatildeo criativa que ao combater a superficialidade moderna que reinava no mundo

germacircnico poderia produzir o renascimento moderno do mundo Helecircnico

Em sua essecircncia o nascimento da trageacutedia aponta para as divindades Apolo e

Dioniacutesio como ldquorepresentantes vivosrdquo de princiacutepios diacutespares que irrompem da proacutepria

natureza e que ao serem conciliados de certa forma tornaram possiacutevel que atraveacutes dos

atritos de tal uniatildeo a trageacutedia grega despontasse como manifestaccedilatildeo artiacutestica exemplar

do sublime Em linhas gerais a arte do ldquofigurador plaacutesticordquo estaria entatildeo associada ao

deus Apolo enquanto a arte ldquonatildeo figuradardquo a da muacutesica estaria associada ao deus

Dioniacutesio O apoliacuteneo eacute um impulso da vontade grega que ao almejar a vida a apresenta

transfiguradamente como um belo sonho plasmado no mundo dos deuses oliacutempicos O

princiacutepio apoliacuteneo seria aquele que estabeleceria a ordem a beleza estaacutetica e a clareza

dos limites O dionisiacuteaco eacute oriundo das festas do oriente e seu efeito eacute comparado ao da

embriaguecircs A ele cabe a sabedoria profunda da essecircncia da vida lugar do acaso do

impermanente do horriacutevel e do sofrimento A Apolo eacute facultado tecer o veacuteu que

encobre a sabedoria dionisiacuteaca e torna a vida suportaacutevel atraveacutes da ilusatildeo do sonho

Assim segundo Nietzsche o desenvolvimento contiacutenuo da arte estaacute vinculado agrave

duplicidade dos princiacutepios apoliacuteneo e dionisiacuteaco Perfazendo um caminho histoacuterico da

cultura grega podemos notar uma sobreposiccedilatildeo intermitente entre os impulsos divinos

Temos momentos onde o impulso apoliacuteneo se mostrou dominante e outros onde

Dioniacutesio recupera seu predomiacutenio O mundo oliacutempico homeacuterico com sua arte eacutepica e

sua escultura do periacuteodo doacuterico nascem a partir de uma necessidade de redenccedilatildeo para a

realidade de horror e sofrimento que o povo helecircnico presenciava Em substituiccedilatildeo ao

77

mundo titacircnico temos o mundo dos deuses oliacutempicos exemplificadores de uma

existecircncia divinizada que exalta a vida Nas palavras de Nietzsche ldquoo grego conheceu

e sentiu os temores e os horrores do existir para que lhe fosse possiacutevel de algum modo

viver teve de colocar ali entre ele e a vida a resplendente criaccedilatildeo oniacuterica dos deuses

oliacutempicosrdquo (NT 36) Entretanto a sabedoria dionisiacuteaca portadora da visatildeo abismal do

ser natildeo pocircde ser contida por muito tempo e a muacutesica veiacuteculo da uniatildeo orgiaacutestica aos

poucos foi se infiltrando no mundo construiacutedo pelo divino Apolo Os gregos foram se

tornando conscientes de seu estado sonambuacutelico que sob a graccedila do deus Apolo enleva

e transporta pela extraordinaacuteria beleza natural ou esteacutetica Em um estado semelhante ao

do indiviacuteduo que restabelecido em suas forccedilas pelo efeito renovador do sono ao findar

de uma noite comeccedila a ouvir os sons a sua volta e aos poucos vai se despertando da

mesma forma os gregos comeccedilaram novamente a ouvir o sussurro do Sileno

companheiro de Dioniacutesio ldquoo melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter

nascido e natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo

(NT 36) O artista que representa este retorno do dionisiacuteaco com a mesma envergadura

com que Homero representa as forccedilas apoliacuteneas eacute Arquiacuteloco Tomando-o como modelo

do gecircnio liacuterico Nietzsche faz uma descriccedilatildeo de seu processo de criaccedilatildeo Conforme a

metafiacutesica esteacutetica adotada por Nietzsche - que mais agrave frente veremos ser retirada da

esteacutetica schopenhaueriana - toda arte tem que ser objetiva livre dos interesses

individuais Nesta situaccedilatildeo a liacuterica que tem como objeto o eu do poeta seus desejos e

emoccedilotildees natildeo seria uma forma de arte Entretanto atraveacutes de uma descriccedilatildeo que Schiller

faz da inspiraccedilatildeo poeacutetica Nietzsche aponta o caminho para percebermos a liacuterica como

obra de arte e portanto objetivamente Conforme a passagem de Schiller citada por

Nietzsche (NT 44) ldquoo sentimento se me apresenta no comeccedilo sem um objeto claro e

determinado este soacute se forma mais tarde Uma certa disposiccedilatildeo musical de espiacuterito

78

vem primeiro e somente depois eacute que se segue em mim a ideacuteia poeacuteticardquo Desta forma

Arquiacuteloco em seu processo criativo a princiacutepio entraria em um estado de consciecircncia

ou de criaccedilatildeo onde renunciaria agrave sua individualidade e dionisiacamente participaria do

uno-primordial ldquoabismo do serrdquo estado que por sua vez materializa-se atraveacutes da

representaccedilatildeo musical A muacutesica assim produzida seraacute condiccedilatildeo para o surgimento da

inspiraccedilatildeo que a posteriori daraacute nascimento atraveacutes da aplicaccedilatildeo das formas

apoliacuteneas agrave poesia liacuterica geacutermen da trageacutedia e dos ditirambos dramaacuteticos Esta uniatildeo da

poesia liacuterica com a muacutesica eacute uma expressatildeo sinteacutetica da relaccedilatildeo dos deuses Apolo e

Dioniacutesio Eacute no quinto capiacutetulo de sua obra que Nietzsche iraacute tratar da poesia liacuterica

Neste capiacutetulo o filoacutesofo se distancia de Schopenhauer em sua interpretaccedilatildeo do

fenocircmeno liacuterico Para Schopenhauer na citaccedilatildeo reproduzida por Nietzsche (NT 46) a

liacuterica eacute produzida atraveacutes de uma percepccedilatildeo da consciecircncia onde os estados da vontade

individualizada se alternam com o conhecimento objetivo Como vimos o poeta liacuterico

assistiria ao jogo do eu em sua afetaccedilatildeo emocional e descreveria este estado atraveacutes de

sua poesia Nietzsche ao descrever a liacuterica utiliza-se da teoria da muacutesica

schopenhaueriana qual seja o poeta liacuterico produz primeiramente a muacutesica como forma

geral de expressatildeo da vontade mesma e desta produccedilatildeo gera posteriormente o texto que

se torna um exemplificador do evento musical sua forma plaacutestica objetiva A muacutesica eacute

a aparecircncia da vontade e as imagens apoliacuteneas que dela se originaram satildeo conforme seu

espiacuterito A imagem e o conceito satildeo desta forma na liacuterica originados a partir da

muacutesica

Tem-se portanto na trageacutedia grega uma relaccedilatildeo de interdependecircncia que evoca

um aparente paradoxo ndash ou seja ao lado da necessidade esteacutetica da beleza Apolo exige

dos seus a medida (limites fronteiras do indiviacuteduo presentes no ldquonada em demasiardquo) e

o auto-conhecimento necessaacuterio para determinaacute-la (ldquoconhece-te a ti mesmordquo) o

79

desmedido os excessos o dionisiacuteaco seriam identificados pelo apoliacuteneo como

democircnios de uma era preacute-apoliacutenea era dos Titatildes reminiscecircncias de barbarismo O

paradoxo estaacute em que para que o comedimento apoliacuteneo possa existir o desmedido

dionisiacuteaco faz-se necessaacuterio (na linguagem de Nietzsche como ldquosubstratordquo) assim

como para que o desmedido dionisiacuteaco possa existir faz-se necessaacuterio a existecircncia do

comedido do apoliacuteneo Natildeo obstante a trageacutedia grega depende da conjugaccedilatildeo destes

dois princiacutepios para existir ndash indo aleacutem poder-se-ia dizer que a proacutepria muacutesica compotildee

o princiacutepio primeiro que possibilita o surgimento da trageacutedia no jogo das formas

apoliacuteneo A trageacutedia eacute entatildeo definida como ldquoo coro dionisiacuteaco a descarregar-se sempre

de novo em um mundo de imagens apoliacuteneordquo (NT 60)

Em seu iniacutecio a trageacutedia grega era representada pelo coro traacutegico Este coro natildeo

era uma ldquorepresentaccedilatildeo constitucional do povordquo muito menos um espectador ideal

como o queria August Schlegel Nietzsche acompanha Schiller na definiccedilatildeo de que o

coro cria um terreno ideal para a manifestaccedilatildeo da arte O efeito da trageacutedia eacute a

manifestaccedilatildeo de um estado de unidade que transporta ao abismo do ser O coro eacute a

manifestaccedilatildeo deste sentimento da consciecircncia de que por traacutes da vida cotidiana haacute uma

realidade ldquoindestrutivelmente poderosa e cheia de alegriardquo (NT 55) Este eacute o consolo

metafiacutesico propiciado pela arte traacutegica Ao retornarmos deste estado o cotidiano nos

causa asco nojo Natildeo eacute possiacutevel interpretar mais o papel da vida comum A vida soacute

passa a se justificar atraveacutes da arte Perceba-se aiacute que o coro possui um papel

fundamental no processo O coro atua como impulso artiacutestico dionisiacuteaco em

contraposiccedilatildeo agrave forma apoliacutenea ou seja agraves imagens e agrave beleza plaacutestica Assim o

indiviacuteduo atraveacutes do coro tem para si revelado aquele substrato dionisiacuteaco encoberto

pela beleza e comedimento apoliacuteneos isto eacute ao indiviacuteduo era possiacutevel submergir na

80

torrente dionisiacuteaca do auto-esquecimento permitindo-se pocircr de lado os preceitos

apoliacuteneos

E foi assim que em toda parte onde o dionisiacuteaco penetrou o apoliacuteneo

foi suspenso e aniquilado Mas eacute igualmente certo que laacute onde o primeiro

assalto foi suportado o prestiacutegio e a majestade do deus deacutelfico se externaram de

maneira mais riacutegida e ameaccediladora do que nunca(NT 41-42)

De acordo com Nietzsche as trageacutedias eram em seu iniacutecio representaccedilotildees do

sofrimento de Dioniacutesio Mesmo as trageacutedias do periacuteodo aacutetico traziam Dioniacutesio como

heroacutei traacutegico O sofrimento representado era o do despedaccedilamento de Dioniacutesio o deus

que sofreu o padecimento da individuaccedilatildeo causa de todo o sofrer O mito de Dioniacutesio eacute

interpretado aqui sob a luz da filosofia de Schopenhauer que apresenta a individuaccedilatildeo

como fonte do sofrimento ldquoNos pontos de vista aduzidos temos jaacute todas as partes

componentes de uma profunda e pessimista consideraccedilatildeo do mundo e ao mesmo tempo

a doutrina misteriosoacutefica da trageacutedia o conhecimento baacutesico da unidade de tudo o que

existe a consideraccedilatildeo da individuaccedilatildeo como a causa primeira do mal a arte como a

esperanccedila jubilosa de que possa ser rompido o feiticcedilo da individuaccedilatildeo como

pressentimento de uma unidade restabelecidardquo (NT 70)

Contudo ressalta Nietzsche a trageacutedia grega que como vimos desenvolve-se a

partir do embate contiacutenuo entre as representaccedilotildees dos deuses antiacutepodas ndash envolvidos em

um enfrentamento aparentemente sem fim ndash eacute reestruturada por Euriacutepides de forma a

diminuir o impacto do coro ou seja um golpe quase mortal para Dioniacutesio que

agonizante lanccedila matildeo de seus uacuteltimos esforccedilos O que em Euriacutepedes suscitou esta

reestruturaccedilatildeo que conforme Nietzsche eacute responsaacutevel pelo afastamento progressivo do

dionisiacuteaco tem suas origens no que o filoacutesofo chamou de uma ldquotendecircncia socraacuteticardquo O

socratismo euripidiano e a sua nova concepccedilatildeo esteacutetica satildeo as causadoras do

afastamento dos impulsos esteacuteticos primevos o dionisiacuteaco e o apoliacuteneo Em seu lugar o

discurso consciente passa a imperar O deus ex machina e os proacutelogos satildeo exemplos das

81

interferecircncias racionais que datildeo novo tom agrave trageacutedia aacutetica Soacutecrates e seu racionalismo

expulsam da trageacutedia o conhecimento primevo dionisiacuteaco e estabelecem novas regras

esteacuteticas regras racionais que fazem com que o bom sinocircnimo do belo seja aquilo

alcanccedilado conscientemente

Se a trageacutedia grega foi para Nietzsche a manifestaccedilatildeo mais sublime de uma

forma artiacutestica isto se daacute em decorrecircncia do efeito por ela provocado qual seja o de

justificar o mundo enquanto fenocircmeno esteacutetico Foi exatamente o decliacutenio deste efeito

constatado pela produccedilatildeo racionalizada de Euriacutepides o responsaacutevel pela morte da

trageacutedia Ao fortalecer em demasia os princiacutepios racionais da forma Euriacutepides suprimiu

o dionisiacuteaco por meio da flacircmula que nas palavras de Nietzsche o tragedioacutegrafo

ldquolevava agrave testardquo ndash a saber uma espeacutecie de socratismo esteacutetico cujos princiacutepios se davam

a partir da remissatildeo do belo ao inteligiacutevel e deste ao virtuoso Identifica-se portanto a

racionalidade otimista socraacutetica como grande responsaacutevel pela supressatildeo do impulso

dionisiacuteaco Nietzsche alude agrave proximidade de convivecircncia entre Soacutecrates e Euriacutepides

para justificar a presenccedila do racionalismo nas obras Euripidianas Soacutecrates frequumlentava

o teatro somente para assistir agraves apresentaccedilotildees de Euriacutepides De todos os atenienses

Soacutecrates era apontado como o mais saacutebio e Euriacutepides como o segundo em sabedoria

Entretanto na contraposiccedilatildeo proposta por Nietzsche entre conhecimento instintivo e

racional Soacutecrates era descomunalmente racional ao contraacuterio do intuitivismo criativo

que reinava ateacute entatildeo Era questionando aos atenienses sobre seus atos que Soacutecrates

percebia que eles natildeo agiam conscientemente mas por intuiccedilatildeo A crenccedila socraacutetica de

que toda accedilatildeo boa deve ser consciente dominou o teatro atraveacutes de Euriacutepides Uma

chave para o entendimento da racionalidade socraacutetica segundo Nietzsche nos eacute

revelada pela ldquomonstruosa inversatildeordquo representada pela consciecircncia criacutetica de Soacutecrates ndash

ou seja a nota destoante em Soacutecrates revela-se pelo instinto criacutetico em contraposiccedilatildeo agrave

82

consciecircncia criacutetica a consciecircncia criadora em contraposiccedilatildeo ao instinto como forccedila

criadora Intui-se assim o motivo pelo qual Soacutecrates natildeo compreendia a trageacutedia grega

- o dionisiacuteaco a tornava ininteligiacutevel para as exigecircncias racionalistas e criacuteticas da

ldquodialeacutetica otimistardquo socraacutetica ldquoA Soacutecrates [] parecia que a arte traacutegica nunca bdquodiz a

verdade‟ sem considerar o fato de que se dirigia agravequele que bdquonatildeo tem muito

entendimento‟ portanto natildeo aos filoacutesofos daiacute um duplo motivo para manter-se dela

afastadordquo(NT 87) Nietzsche compara Soacutecrates ao heroacutei euripidiano que

diferentemente (ateacute mesmo antagonicamente) agrave trageacutedia de Eacutesquilo e Soacutefocles ldquoprecisa

defender suas accedilotildees por meio da razatildeo e contra a razatildeordquo O que estaacute em jogo no

socratismo eacute a substituiccedilatildeo das verdades expressas miticamente religiosamente pelas

verdades loacutegicas A razatildeo tenta abarcar o todo e para isso desconsidera a arte e seus

impulsos A excelecircncia estaacute no saber e atraveacutes deste alcanccedila-se a felicidade erro do

otimismo racionalista Ilusatildeo da razatildeo que se acha soberana e independente A loacutegica

torna-se essecircncia da trageacutedia procura-se por relaccedilotildees causais e pelo bom telos O

diaacutelogo formata sua estrutura e expulsa seu fundamento musical O ldquoheroacutei dialeacuteticordquo eacute

portanto impulsionado pelo elemento otimista da dialeacutetica A justiccedila transcendental

presente nas obras Esquilianas ldquoeacute rebaixada ao niacutevel do raso e insolente princiacutepio da

bdquojusticcedila poeacutetica‟ com seu habitual deus ex machinardquo (NT 89) A racionalidade de

Soacutecrates atraveacutes de sua investigaccedilatildeo cientiacutefica da natureza de seu processo de

construccedilatildeo loacutegica da realidade daraacute origem ao que Nietzsche denominaraacute de ldquohomem

teoacutericordquo ou ldquohomem cientiacuteficordquo a quem a razatildeo ergue-se acima da proacutepria realidade ao

ponto mesmo de ndash e aiacute reside o proacuteprio otimismo ndash propor-se a tarefa de corrigir as

falhas da proacutepria realidade Mais ainda a razatildeo socraacutetica acena ao homem com a

promessa de conferir sentido agrave existecircncia pelo conhecimento e desta forma busca

justificar tal existecircncia

83

Em face ao pessimismo praacutetico eacute Soacutecrates o protoacutetipo do

otimista teoacuterico que na jaacute assinalada feacute na escrutabilidade da

natureza das coisas atribui ao saber e ao conhecimento a forccedila de

uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo

(NT 94)

Natildeo obstante o otimismo no conhecimento na racionalidade socraacutetica encontra seu

maior dragatildeo em sua proacutepria loacutegica interna Assim nas palavras de Nietzsche

[] a periferia do ciacuterculo da ciecircncia possui infinitos pontos

e enquanto natildeo for possiacutevel prever de maneira nenhuma como se

poderaacute alguma vez medir completamente o ciacuterculo o homem

nobre e dotado ainda antes de chegar ao meio de sua existecircncia

tropeccedila e de modo inevitaacutevel em tais pontos fronteiriccedilos da

periferia onde fixa o olhar no inesclareciacutevel Quando divisa aiacute

para seu susto como nesses limites a loacutegica passa a girar em

redor de si mesma e acaba por morder a proacutepria cauda ndash entatildeo

irrompe a nova forma de conhecimento o conhecimento traacutegico

que mesmo para ser apenas suportado precisa da arte como meio

de proteccedilatildeo e remeacutedio (NT 95)

Afigura-se-nos aqui o problema apontado por Nietzsche como o ldquoproblema da

ciecircncia mesmardquo a saber um problema que nos envolve a todos por abarcar (ou

contaminar) toda a cultura ocidental - isto eacute ainda mantemos o dionisiacuteaco agrave baila

ocupando diminuta posiccedilatildeo em detrimento ao culto acerbado ao racionalismo socraacutetico

A cultura socraacutetica impotildee-se pelo homem-teoacuterico e qualquer outra existecircncia que fuja

aos olhos perscrutadores de Soacutecrates deve ldquolutar penosamente para pocircr-se agrave sua altura

como existecircncia permitida e natildeo como existecircncia propostardquo

Nietzsche nos atenta para o fato de reconhecermos comumente no homem culto

erudito o homem douto saacutebio ndash consecutivamente o dionisiacuteaco a arte eacute colocada de

forma perifeacuterica de modo a nunca poder encontrar espaccedilo para superar sua condiccedilatildeo de

ldquoremeacutedio-arterdquo A vontade aacutevida faz seu caminho mesmo atraveacutes da completa falta de

respostas de fundamentos de sentido assim eacute preferiacutevel ao ser humano querer o nada

no sentido de ainda sim querer alguma coisa do que nada querer do que reconhecer a

84

falta de fundamentos da qual consistem em todos os tempos as ilusotildees que

costumeiramente adota-se como engodo ao absoluto sem-sentido da vida

Por fim Nietzsche atenta-nos para o fato de como o homem de seu tempo vem

perdendo a crenccedila na ciecircncia otimista socraacutetica isto eacute pressentindo que a cultura

racionalista socraacutetica torna-se iloacutegica ao vislumbraacute-la em seus horizontes afastando-se

de suas consequumlecircncias Nietzsche diagnostica na oacutepera de seu periacuteodo a subordinaccedilatildeo da

muacutesica agrave arte figurada agrave palavra e expotildee a expectativa de que possa haver no cansaccedilo e

na percepccedilatildeo do insucesso dos esforccedilos racionalistas um renascimento da trageacutedia

85

4 Conclusatildeo pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo

da vida

Retribui-se mal a um mestre continuando-

se sempre apenas aluno

(Nietzsche)

Natildeo podemos ver na filosofia schopenhaueriana qualquer instacircncia que

justifique a vida Ao conhecermos a sua essecircncia - a vontade cega e irracional que se

deixa ver atraveacutes das manifestaccedilotildees do seu querer incessante - percebemos o absurdo de

sua existecircncia e somos por essa percepccedilatildeo levados agrave sua negaccedilatildeo Nietzsche por sua

vez utilizando-se dos conceitos da filosofia de Schopenhauer procura em sua obra

justificar a vida e encontra esta justificaccedilatildeo na arte Nesta conclusatildeo da pesquisa

pretendemos entatildeo apresentar um esboccedilo do modo pelo qual alguns elementos da

filosofia schopenhaueriana foram utilizados no projeto do primeiro livro de Nietzsche e

explicitar o modo como estes elementos foram configurados no interior de seu projeto

Dentre estes elementos percorreremos o paralelo entre os pares dionisiacuteacoapoliacuteneo e

vontaderepresentaccedilatildeo os conceitos de arte e apreciaccedilatildeo esteacutetica e sua cisatildeo entre as

86

artes figurativas e a musical a especificidade da muacutesica o conceito de gecircnio e sua

divisatildeo e os limites da racionalidade e da ciecircncia

Jaacute no primeiro paraacutegrafo de NT a associaccedilatildeo entre os pares nietzscheanos do

dionisiacuteaco e apoliacuteneo e as visotildees de mundo schopenhauerianas satildeo expliacutecitas Nietzsche

define o impulso apoliacuteneo atraveacutes do sonho do princiacutepio de individuaccedilatildeo e o dionisiacuteaco

atraveacutes da embriaguez da consciecircncia de unidade da vontade do livrar-se do veacuteu de

maia Os deuses gregos tornam-se representativos destes estados schopenhauerianos de

consciecircncia Como vimos no capiacutetulo segundo desta dissertaccedilatildeo sob o ponto de vista da

representaccedilatildeo o mundo eacute objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito

agraves condiccedilotildees a priori do entendimento Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das

formas a priori do entendimento eacute interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos

advindos da filosofia Platocircnica e oriental como um mundo aparente ilusoacuterio artificial

O sonho efeito do encantamento apoliacuteneo eacute utilizado como metaacutefora da realidade

fenomecircnica no mundo Schopenhaueriano Os Vedas e Puranas tantas vezes citados por

Schopenhauer tratam o mundo como um sonho imposto pelo deus Maia o deus da

ilusatildeo que cobre a visatildeo do homem com seu veacuteu A mitologia oriental aludida por

Schopenhauer toma conta do mundo helecircnico em Nietzsche que transforma Apolo no

deus Maia o configurador de sonhos O sonho eacute utilizado como ilustraccedilatildeo da realidade

pelo fato de que durante o sonho natildeo sabemos estar sonhando O mundo dos sonhos nos

eacute naquele momento real Vemo-nos como indiviacuteduos e vemos o mundo da

individuaccedilatildeo e suas leis causais espaccedilo-temporais Somente o momento empiacuterico do

despertar informa-nos do sonho Haacute portanto uma identificaccedilatildeo do ldquoparentesco iacutentimo

entre vida e sonhordquo(MVR 60) Como ilustraccedilatildeo desta metaacutefora Schopenhauer elogia

ainda a obra do ldquovaterdquo Calderoacuten de La Barca A vida eacute sonho agrave qual denominaraacute como

um ldquodrama metafiacutesicordquo por expor esta faceta de seu sistema A consciecircncia de que a

87

vida eacute sonho eacute para Schopenhauer um despertar metafiacutesico cujo propiciador foi Kant

ao demonstrar o caraacuteter fenomecircnico do mundo Este despertar contudo natildeo causa

prazer O filoacutesofo e o gecircnio personagens que na metafiacutesica schopenhaueriana alcanccedilam

este despertar satildeo atormentados pela realidade com a qual se deparam qual seja a de

que a vida eacute puro sofrimento Eacute no intuito de deixar velada esta faceta da vida que

Apolo ofusca a visatildeo dos homens com seu mundo luminoso de sonho seu objetivo eacute

encobrir esta verdade aterrorizadora As artes natildeo musicais tanto na teoria de

Schopenhauer como na nietzscheana manteacutem o homem em um juacutebilo prazeroso

ocasionado pela contemplaccedilatildeo puramente objetiva Neste momento natildeo se percebe o

jogo da vontade individualizada somos afastados da realidade do querer insuflados

pela caracteriacutestica quietiva da apreciaccedilatildeo esteacutetica nas palavras de Nietzsche

encontramos na arte um ldquoremeacutedio-arterdquo32

Esta visatildeo do lado terriacutevel da vida ocasionada pelo despertar do dogmatismo

metafiacutesico na teoria schopenhaueriana eacute associada em NT agrave sabedoria dionisiacuteaca

Verificamos na descriccedilatildeo do impulso dionisiacuteaco os elementos que caracterizam a

vontade schopenhaueriana A visatildeo dionisiacuteaca do mundo carrega consigo o despertar

para o caraacuteter absurdo da vida Ao olhar para a proacutepria essecircncia o homem descobre-se

enquanto manifestaccedilatildeo de uma vontade aacutevida desprovida de telos O ldquomecanismo

internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens marionetes guiados pela

carecircncia Esta realidade eacute assustadora pois subtrai do horizonte todos os propoacutesitos da

vida individual Dioniacutesio trava aqui sua batalha contra Apolo ao apontar a ilusatildeo da

individuaccedilatildeo como mecanismo para uma fuga daquilo que em essecircncia somos Apesar

de seu caraacuteter aterrorizador a sabedoria dionisiacuteaca eacute acompanhada do deleite

32

Podemos ver aqui o nuacutecleo da dissenssatildeo entre as teorias dos dois filoacutesofos Para Schopenhauer este

remeacutedio eacute temporaacuterio e tatildeo logo o efeito da apreciaccedilatildeo esteacutetica se esvaia os interesses da vontade voltam

a agir sobre o indiviacuteduo e a vida de sofrimento continua seu percurso restando apenas o caminho da

negaccedilatildeo daquela vontade da vida mesma em direccedilatildeo ao nada Nietzsche ao contraacuterio aponta para uma

forma de cura atraveacutes do remeacutedio-arte ver a vida enquanto forma de arte afirmaacute-la

88

indescritiacutevel da celebraccedilatildeo da unidade com o todo ldquoSob a magia do dionisiacuteaco torna a

selar-se natildeo apenas o laccedilo de pessoa a pessoa mas tambeacutem a natureza alheada

inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliaccedilatildeo com seu filho

perdido o homemrdquo(NT 31) Se Apolo eacute representado como deus da forma da clareza

da individuaccedilatildeo e as artes patrocinadas por ele satildeo expressotildees destas caracteriacutesticas

Dioniacutesio por sua vez eacute o patrocinador da muacutesica expressatildeo fenomecircnica direta da

vontade Vemos em Nietzsche uma biparticcedilatildeo das artes que tambeacutem pode ser extraiacuteda

da metafiacutesica schopenhaueriana (artes natildeo-musicais e arte musical)

Para Schopenhauer as formas artiacutesticas natildeo-musicais ao provocarem uma visatildeo

puramente objetiva do objeto apreciado tecircm como caracteriacutestica fundamental a

libertaccedilatildeo da subjetividade e com ela dos anseios da vontade Durante esta forma de

apreciaccedilatildeo esteacutetica ldquosomos alforriados do desgraccedilado iacutempeto volitivo festejamos o

Sabbath dos trabalhos forccedilados do querer a roda de Iacutexion cessa de girarrdquo (MVR

267) A definiccedilatildeo nietzscheana para a funccedilatildeo da arte apoliacutenea se daacute da mesma maneira

qual seja ela deve ldquo [] livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito

graccedilas ao baacutelsamo da aparecircncia do espasmo dos movimentos do querer []rdquo (NT

117) A muacutesica por sua vez recebe um tratamento especial de Schopenhauer devido ao

seu efeito esteacutetico Se as demais artes satildeo um quietivo para a vontade a muacutesica ldquonatildeo faz

mais do que agradar a vontade de viver jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo

seus ecircxitos e ao final expressa sua satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509) Ela encontra-se

num niacutevel de valor superior ao das demais artes por tratar-se de representar a essecircncia

do mundo a vontade mesma Assim tambeacutem ela eacute tratada por Nietzsche como a arte

que representa a sabedoria dionisiacuteaca e faz o apreciador vivenciar a vontade mesma

Em seus escritos sobre a poesia e a oacutepera Schopenhauer alude agrave necessidade de

subordinar os conceitos e o texto agrave muacutesica para que estas artes tenham um efeito mais

89

arrebatador no apreciador esteacutetico Esta subordinaccedilatildeo eacute assumida por Nietzsche em sua

teoria da trageacutedia Nietzsche encontra na liacuterica a primeira manifestaccedilatildeo desta junccedilatildeo da

arte dionisiacuteaca com a arte apoliacutenea e aponta aiacute o geacutermen que daraacute origem agrave trageacutedia

Podemos perceber aqui uma subordinaccedilatildeo das artes natildeo-musicais agrave muacutesica que por sua

vez se espelha na subordinaccedilatildeo do mundo fenomecircnico ao mundo da coisa-em-si As

artes figurativas representam as ideacuteias objetivaccedilotildees imediatas da vontade e a muacutesica

representa a vontade mesma Na teoria da trageacutedia de Nietzsche esta subordinaccedilatildeo seraacute

mantida e assim reflete a configuraccedilatildeo da metafiacutesica schopenhaueriana A muacutesica ldquoeacute

uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente sobre o mais iacutentimo do

homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele como se fora uma

linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo (MVR

336) Desta forma uma arte que se pretenda formar a partir da integraccedilatildeo de elementos

de diversas formas artiacutesticas deve tomar a muacutesica como inspiraccedilatildeo tanto na teoria de

Schopenhauer como na de Nietzsche

Desta dicotomia das formas artiacutesticas que podemos perceber nos dois filoacutesofos

podemos depreender duas formas do gecircnio o apoliacuteneo ou contemplativo e o

compositor dionisiacuteaco Para Schopenhauer ldquoo compositor manifesta a essecircncia mais

iacutentima do mundo expressa a sabedoria mais profunda numa linguagem natildeo

compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo magneacutetico fornece informaccedilotildees

sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito algumrdquo (MVR 342) Podemos

vislumbrar ainda nesta descriccedilatildeo de Schopenhauer uma caracteriacutestica do que Nietzsche

mais tarde iraacute chamar de criaccedilatildeo inconsciente Em uma segunda passagem desta vez ao

final do capiacutetulo 39 do segundo volume de MVR vemos tambeacutem uma caracteriacutestica que

posteriormente tambeacutem seraacute ressaltada por Nietzsche como demarcaccedilatildeo do caraacuteter

dionisiacuteaco Schopenhauer se utiliza de uma passagem dos Vedas para descrever o prazer

90

provocado pela muacutesica como um prazer de participaccedilatildeo no todo33

Este ecircxtase da

comunhatildeo eacute um aspecto reiteradamente apontado por Nietzsche O gecircnio dionisiacuteaco eacute

para o jovem filoacutesofo aquele que tambeacutem absorvido pelo impulso dionisiacuteaco traduz

sua essecircncia em linguagem musical O tipo de gecircnio musical descrito eacute encontrado em

Schopenhauer nas encarnaccedilotildees de Rossini e Beethoven cujas obras operiacutesticas satildeo

norteadas pela produccedilatildeo musical e o livreto ocupa um lugar secundaacuterio Nietzsche

aponta um renascimento progressivo do gecircnio musical em seu tempo que se inicia com

Bach e tem continuidade em Beethoven mas que encontra sua forma mais bem acabada

em Richard Wagner

Apesar da tomarem caminhos diferentes no que tange ao objetivo da obra de arte

traacutegica Nietzsche e Schopenhauer mais uma vez em uniacutessono consideram-na todavia

como uma forma de entendimento superior ao apresentado pelo pensamento cientiacutefico

Como vimos anteriormente as ciecircncias no sistema schopenhaueriano seguem o

princiacutepio de razatildeo seu papel eacute apenas descritivo e consequumlentemente limitado ao

acircmbito daquele princiacutepio Transformam em conceitos abstratos o mundo intuitivo ao

descrevecirc-lo em sua aparecircncia e seguem o fio condutor do principio de razatildeo

apresentando as causas para cada fenocircmeno particular Desta forma as ciecircncias estatildeo

subordinadas ao mundo da aparecircncia e no que importa agrave essecircncia natildeo podem

demonstraacute-la As uacutenicas produccedilotildees humanas com esta capacidade satildeo a arte e a

filosofia e essas o fazem de forma indireta metafoacuterica A consideraccedilatildeo racional do

mundo estaacute enquanto presa ao acircmbito do fenocircmeno subordinada aos ditames da

vontade Esta ldquovontade aacutevida sempre encontra um meio atraveacutes de uma ilusatildeo

distendida sobre as coisas de prender agrave vida as suas criaturas e de obrigaacute-las a

prosseguir vivendordquo (NT 108) Nietzsche descreve trecircs formas pelas quais a vontade

33

ldquoE o delicioso que eacute uma classe de alegria chama-se assim o sumo Atman porque onde haacute uma

alegria esta eacute uma pequena parte de sua alegriardquo (MVR II 510)

91

manteacutem a vida A primeira delas eacute o ldquoveacuteu da beleza da arterdquo sustentado pelo impulso

apoliacuteneo Encontramo-la na epopeacuteia homeacuterica e nas artes figurativas A segunda eacute a

visatildeo traacutegica do mundo que encontra um consolo metafiacutesico na percepccedilatildeo de um

substrato comum aos fenocircmenos e que por consequumlecircncia abdica destes em funccedilatildeo da

vivecircncia daquele substrato A terceira forma de dominaccedilatildeo da vontade eacute a ciecircncia a

loacutegica socraacutetica que procura abarcar o mundo com sua razatildeo de acircnsia justificadora

Estas trecircs formas de coerccedilatildeo conforme sua predominacircncia em determinada cultura

formam o que Nietzsche iraacute denominar respectivamente de culturas artiacutestica traacutegica e

socraacutetica Correspondem historicamente agraves fases predominantemente helecircnica budista

ou alexandrina Fazendo um diagnoacutestico da cultura contemporacircnea Nietzsche a

identifica como uma cultura predominantemente alexandrina Diagnostica o seu ocaso a

partir da identificaccedilatildeo feita por Kant e Schopenhauer dos limites da ciecircncia do

desmascaramento das verdades eternas que amparam a visatildeo socraacutetica de mundo quais

sejam a visatildeo de que o tempo o espaccedilo e a causalidade satildeo leis universais e

incondicionais Esta criacutetica ao racionalismo eacute constante na obra schopenhaueriana

Percebemo-la claramente em suas investidas contra a filosofia de seu tempo e a

presunccedilatildeo nela presente de racionalmente abarcar o real

- - - - - - - - - -

Compostas por conceitos da metafiacutesica schopenhaueriana a teoria da trageacutedia de

Schopenhauer e a de Nietzsche apontam para caminhos diversos Em Schopenhauer a

trageacutedia eacute a arte cujo fim uacuteltimo eacute ao expor seu lado terriacutevel inspirar o apreciador agrave sua

renuacutencia Este lado terriacutevel espelho do mundo presentificador da vida humana e de

suas relaccedilotildees ocasiona atraveacutes do medo e da compaixatildeo a vontade de renuacutencia a essa

92

mesma vida Nietzsche introduz na trageacutedia o elemento da muacutesica schopenhaueriana34

A consequumlecircncia desta introduccedilatildeo eacute um plano mais profundo de entendimento que

apresenta a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com sua essecircncia Neste estado de consciecircncia

apartado de sua individualidade o sujeito jaacute se vecirc como um criador de mundos e vecirc no

mundo uma obra de arte sua Ao derivar o impulso apoliacuteneo do dionisiacuteaco35

Nietzsche

jaacute executou a renuacutencia do indiviacuteduo que agora passa a se ver como essecircncia e ao mundo

como fenocircmeno artiacutestico

34

Machado (2006 200) considera na esteira de Clemeacutent Rosset e de Jean-Marie Schaeffer a utilizaccedilatildeo

da teoria da apreciaccedilatildeo musical de Schopenhauer por Nietzsche como o elemento que sugeriraacute a

caracteriacutestica de afirmaccedilatildeo da vontade de sua filosofia da trageacutedia 35

ldquoNo efeito conjunto da trageacutedia o dionisiacuteaco recupera a preponderacircncia ela se encerra com um tom

que jamais poderia soar a partir do reino da arte apoliacutenea E com isso o engano apoliacuteneo se mostra como o

que ele eacute como o veacuteu que enquanto dura a trageacutedia envolve o autecircntico efeito dionisiacuteaco o qual

todavia eacute tatildeo poderoso que ao final impele o proacuteprio drama apoliacuteneo a uma esfera onde ele comeccedila a

falar com sabedoria dionisiacuteaca e onde nega a si mesmo e agrave sua visibilidade apoliacuteneardquo (NT 129)

93

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Barbosa Belo Horizonte UFMG 2004

SCHILLER Friedrich Teoria da trageacutedia Traduccedilatildeo Anatol Rosenfeld Satildeo Paulo

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WINCKELMANN Johann J Lo bello em el arte Versatildeo em espanhol Manfred

Schoumlfeld e Sara Sosa Miatello Buenos Aires Nueva visioacuten 1958

6

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo agraves pessoas que direta ou indiretamente ajudaram na elaboraccedilatildeo deste

trabalho

Agrave minha esposa pelo amor paciecircncia e apoio

Ao corpo docente do curso de mestrado e em especial ao meu co-orientador

cujo incentivo foi essencial agrave continuaccedilatildeo da pesquisa

Ao meu orientador pelas observaccedilotildees valiosas

Aos colegas de mestrado companheiros indispensaacuteveis nas diaacuterias procissotildees de

embriaguez dionisiacuteaca pelas labiriacutenticas ladeiras de Ouro Preto

7

A existecircncia eacute um episoacutedio do nada

Arthur Schopenhauer

8

RESUMO

O projeto que aqui se apresenta tem como objetivo principal percorrer as

teorias do traacutegico schopenhaueriana e nietzscheana no intuito de apresentar as

principais caracteriacutesticas de cada uma destas teorias Este percurso teraacute como ponto de

partida o fundamento metafiacutesico comum a elas qual seja a filosofia schopenhaueriana

da vontade Atraveacutes desta exposiccedilatildeo pretendemos demonstrar natildeo somente a real

amplitude da influecircncia de Schopenhauer nos primeiros escritos de Nietzsche mas

tambeacutem algumas das peculiaridades existentes em cada uma das citadas teorias

Palavras-chave Schopenhauer - Nietzsche - Trageacutedia - Traacutegico - Filosofia da

vontade

ABSTRACT

The research presented herein has as its ultimate goal to discuss the

theories of the tragedy developed by Schopenhauer and Nietzsche highlighting the

main characteristics ndash points of convergence and divergence ndash of both Our trajectory

shall start from the metaphysical foundations apparently displayed in both theories

which is ndash the schopenhauerian philosophy of the will Throughout our exposition we

intend to show not only that Schopenhauers philosophy had a huge impact in

Nietzsches first writings but also reveal the peculiarities beneath the development of

their aforementioned theories

Keywords Schopenhauer - Nietzsche - Tragedy - Tragic ndash Philosophy of the will

9

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO11

1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES NA

FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA 17

2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU

SUBSTRATO METAFIacuteSICO42

21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo43

22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo45

23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana49

24 A finalidade moral da trageacutedia56

25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera62

3 A TEORIA DA TRAGEacuteDIA DO JOVEM NIETZSCHE65

31 A influecircncia de Schopenhauer na obra do primeiro Nietzsche66

32 O projeto subjacente ao nascimento da trageacutedia72

33 A teoria da trageacutedia publicada75

4 CONCLUSAtildeO pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo da

vida85

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS93

10

ABREVIATURAS

Obras de Schopenhauer

MVR = Mundo como vontade e como representaccedilatildeo (2005)

MVR II ndash Mundo como vontade e como representaccedilatildeo volume II (2005)

MB = Metafiacutesica do belo (2003)

SOE = Sobre o ofiacutecio de Escritor (2005)

QRPRS = De la cuadruple raiz del principio de razon suficiente (1981)

PP = Parerga e paralipomena (1974)

SFM = Sobre o fundamento da moral (2001)

SFU = Sobre a filosofia universitaacuteria (2001)

Obras de Nietzsche

NT = O nascimento da trageacutedia (1992)

VD = Visatildeo dionisiacuteaca do mundo (2005)

CORRESPONDEcircNCIA = Correspondecircncias de Nietzsche (2007)

OC = Obras completas de Nietzsche (1963)

11

INTRODUCcedilAtildeO

ldquoDias sem nuacutemero nunca reservam a

ningueacutem nada mais que dissabores mais

proacuteximos da dor que da alegria Quanto aos

prazeres natildeo os discernimos e nossa vista os

buscaraacute em vatildeo logo que para nossa

desventura chegamos ao limite prefixado E

desde entatildeo o nosso aliacutevio uacutenico seraacute aquele

que daraacute a todos o mesmo fim na hora de

chegar de suacutebito o destino procedente do

tenebroso reino onde natildeo haacute cantos nem

liras onde natildeo haacute danccedilas ndash ou seja a morte

epiacutelogo de tudo Melhor seria natildeo haver

nascido como segunda escolha bom seria

voltar logo depois de ver a luz agrave mesma

regiatildeo de onde se veiordquo

(Soacutefocles)

As teorias sobre a trageacutedia de Schopenhauer e Nietzsche satildeo parte

indispensaacutevel no estudo da histoacuteria da filosofia da trageacutedia Dentre os diversos

pensadores contemporacircneos que tratam sobre o problema da trageacutedia e do traacutegico e que

deram visiacutevel destaque agraves teorias dos nossos filoacutesofos podemos destacar Walter

Benjamin1 e Peter Szondi

2 Entretanto nos trabalhos destes autores o problema do

1 BENJAMIN Walter Origem do drama barroco alematildeo Traduccedilatildeo Sergio Paulo Rouanet Satildeo Paulo

Brasiliense 2004

12

relacionamento e da interdependecircncia entre as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche

natildeo eacute detalhado a contento Diante disto mesmo para um olhar historicamente

caracterizador torna-se vaacutelido um estudo comparado destas teorias que leve em

consideraccedilatildeo o quecirc ou o quanto haacute de comum em suas metafiacutesicas e a partir desta

perspectiva trace os aspectos coincidentes e dissidentes das mesmas mostrando seus

pontos de interdependecircncia e discrepacircncia muacutetua

Apesar de estar entre as teorias da trageacutedia mais estudadas do periacuteodo do

idealismo alematildeo a teoria Schopenhaueriana que eacute sempre analisada em relaccedilatildeo a seus

pressupostos metafiacutesicos ao ser vista sob outra perspectiva ganharia contornos

intensamente enriquecidos Esta perspectiva atraveacutes da qual nos propomos a examinar a

teoria do traacutegico do filoacutesofo eacute aquela que levaraacute em consideraccedilatildeo as influecircncias

histoacutericas culturais e filosoacuteficas que agiram diretamente sobre a esteacutetica do traacutegico

schopenhaueriana Ao lanccedilarmos um olhar sobre estas referidas influecircncias estaremos

abrindo caminho para uma melhor compreensatildeo sobre a teoria esteacutetica

schopenhaueriana o que conseguintemente refletiraacute em um juiacutezo mais adequado da

teoria nietzscheana

Para um entendimento mais eficiente das teorias propostas nas obras do

jovem Nietzsche parece-nos essencial o conhecimento de uma de suas mais decisivas

influecircncias a filosofia de Schopenhauer A analogia almejada erige-se na verdade

como meacutetodo de anaacutelise ou seja o que pretendemos eacute alcanccedilar uma maior compreensatildeo

dos problemas com os quais Nietzsche se deparou quando da elaboraccedilatildeo de sua primeira

obra e procurar identificar a existecircncia de alguma apropriaccedilatildeo eou adaptaccedilatildeo de alguns

conceitos da filosofia de Schopenhauer na resoluccedilatildeo destes problemas A necessidade

deste estudo comparativo torna-se ainda mais evidente quando e este eacute o caso

2 SZONDI Peter Ensaio sobre o Traacutegico Traduccedilatildeo Pedro Suumlssekind Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

13

defrontamo-nos com uma influecircncia que se apresenta tatildeo clara e assumidamente

admitida pelo autor Todavia natildeo se pretende aqui apenas a justaposiccedilatildeo de um

pensamento ao outro Apesar de ser identificaacutevel em toda a obra posterior de Nietzsche

encontra-se nos seus primeiros escritos sobretudo na obra O nascimento da trageacutedia

aquele momento discursivo no qual podemos apontar uma influecircncia mais direta da

filosofia de Schopenhauer

Dos trabalhos que fazem um estudo comparativo entre estes filoacutesofos a

maioria se ateacutem em identificar as diferenccedilas conceituais entre eles mais

especificamente no campo eacutetico e metafiacutesico Grosso modo tratam principalmente dos

problemas relativos agrave diferenciaccedilatildeo entre os conceitos de vontade nestes autores

vontade de viver e vontade de poder Estes estudos tecircm como foco a filosofia tardia de

Nietzsche onde este apesar da assumida influecircncia torna-se um criacutetico de

Schopenhauer A real extensatildeo da influecircncia deste filoacutesofo na primeira obra de

Nietzsche bem como o relacionamento entre suas teorias da trageacutedia permanecem

assim como territoacuterios ainda pouco explorados Ao lanccedilarmos olhar sobre esse

afastamento que Nietzsche mais tarde realizaraacute em relaccedilatildeo agrave filosofia

Schopenhaueriana verificamos mais uma vez a importacircncia do estudo de sua primeira

fase na qual poderemos detectar o referido afastamento

Podemos observar entretanto o crescimento do interesse no estudo da

obra O nascimento da trageacutedia de Nietzsche Nos uacuteltimos anos assistimos tambeacutem no

Brasil agrave publicaccedilatildeo de vaacuterios trabalhos que tecircm sob perspectiva a complexidade desse

seu primeiro livro Na bibliografia sugerida neste projeto constam publicaccedilotildees dos

seguintes autores Roberto Machado (2006) Rosa Maria Dias (2005 e 2009) Iracema

Macedo (2006) Marcio Joseacute Silveira Lima (2006) Estas publicaccedilotildees tratam temas

diversos da esteacutetica nietzscheana tais como a muacutesica a trageacutedia o traacutegico ou a

14

repercussatildeo do livro de Nietzsche e sua influecircncia wagneriana Podemos ver entretanto

naqueles e em outros trabalhos a constante chave de leitura que atribui a Schopenhauer

a influecircncia decisiva natildeo apenas sobre o jovem Nietzsche como usualmente se aponta

mas tambeacutem sobre um peculiar imbricamento entre metafiacutesica e esteacutetica o qual se

sustentaria sobre os ldquoimpulsos artiacutesticos da naturezardquo o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco Nos

termos de Dias (2005 27)

A oposiccedilatildeo apoliacutenea e dionisiacuteaca considerada no plano

metafiacutesico se daacute a partir da noccedilatildeo de vontade ou querer

estendida (sic) no sentido que a ela deu Schopenhauer de

ldquocentro e nuacutecleo do mundordquo ou ldquoforccedila que eternamente quer

deseja e aspirardquo () O mundo fenomecircnico como resultado

desse movimento do querer () faz um segundo movimento

dessa vez esteacutetico reproduzindo o movimento inicial que a

vontade realizou em direccedilatildeo agrave aparecircncia

Tendo em vista o fato de que as teorias sobre o traacutegico dos dois filoacutesofos tecircm como

ponto de partida o sistema metafiacutesico schopenhaueriano fica clara a necessidade de

analisar em cotejo estas teorias tendo como fio condutor o meacutetodo de investigaccedilatildeo ora

proposto

Aleacutem de um aprofundamento no problema da influecircncia de

Schopenhauer na obra esteacutetica de Nietzsche o estudo de suas teorias sobre o traacutegico nos

daraacute a oportunidade de identificar as peculiaridades de cada uma destas teorias bem

como de estabelecer a sua importacircncia histoacuterica para uma filosofia do traacutegico

Em um primeiro momento traccedilaremos um panorama histoacuterico que

objetiva entender o status quo da filosofia do traacutegico no periacuteodo anterior ao

desenvolvimento da teoria schopenhaueriana da trageacutedia Esta investigaccedilatildeo seraacute

norteada pelas referecircncias constantes na proacutepria obra de Schopenhauer bem como por

um levantamento biograacutefico do filoacutesofo ou seja trabalharemos somente os momentos

que satildeo fundamentais para uma melhor compreensatildeo da obra schopenhaueriana Dentre

15

estes momentos daremos ecircnfase aos seguintes pontos o estudo sobre o helenismo de

Winckelmann e sua repercussatildeo a criacutetica teatral de Lessing Schiller e Goethe seu

projeto de criaccedilatildeo de um teatro alematildeo e suas produccedilotildees dramaacuteticas

Traccedilado o panorama histoacuterico no qual se insere a teoria da trageacutedia

schopenhaueriana passaremos para o toacutepico seguinte a apresentaccedilatildeo do sistema

metafiacutesico de Schopenhauer no qual estaacute embasada a sua teoria da trageacutedia bem como

a teoria nietzscheana A apresentaccedilatildeo seraacute feita de forma a expor os aspectos gerais da

filosofia da vontade atendo-se aos pontos deste sistema que estatildeo intrinsecamente

relacionados agraves teorias da trageacutedia dos nossos autores

Apoacutes os passos descritos reuniremos em um esboccedilo geral as

caracteriacutesticas do relacionamento existente entre o jovem Nietzsche e a filosofia de

Schopenhauer Para tanto utilizaremo-nos das referecircncias que Nietzsche faz a

Schopenhauer em suas cartas e escritos de juventude Com esta pesquisa pretendemos

identificar a opiniatildeo que o jovem Nietzsche tinha sobre a filosofia de Schopenhauer e a

profundidade da influecircncia desta em sua primeira obra Percorreremos ainda o ambiente

circundante agrave primeira obra de Nietzsche no intuito de realccedilar alguns dos conceitos

formativos de O nascimento da trageacutedia

Estabelecida a ligaccedilatildeo entre os autores passaremos ao estudo do apoliacuteneo

e do dionisiacuteaco par conceitual que nos forneceraacute a chave para se fazer um estudo

comparativo entre os filoacutesofos Para cumprir esta etapa analisaremos O nascimento da

trageacutedia bem como escritos contemporacircneos a este livro atraveacutes dos quais poderemos

delinear melhor a significaccedilatildeo desta duplicidade de impulsos e visotildees de mundo

Delinearemos assim os contornos das definiccedilotildees fundamentais da esteacutetica nietzscheana

e procuraremos construir um paralelo entre o mundo dionisiacuteaco e o mundo metafiacutesico

da vontade schopenhaueriano Temos a intenccedilatildeo de demonstrar a origem desta

16

metafiacutesica da vontade ou seja o criticismo kantiano e sua importacircncia para o conceito

de dionisiacuteaco Demonstraremos tambeacutem as caracteriacutesticas do mundo fenomecircnico

schopenhaueriano em sua identidade com o apoliacuteneo nietzscheano retomando a

epistemologia de Schopenhauer

Realizada a aproximaccedilatildeo e expostas tanto as semelhanccedilas como as

particularidades dos conceitos principais dos dois autores percorreremos sempre

focando um estudo paralelo entre os filoacutesofos outros conceitos que encontram

similaridade em suas esteacuteticas Com esse intuito procuraremos identificar nos dois

filoacutesofos o destaque dado agrave muacutesica dentro de suas teorias e o lugar dado agraves outras artes

em suas obras Discorreremos sobre a criacutetica que eles em uniacutessono fazem ao que

nomeiam racionalismo dogmatismo e o otimismo Finalizadas as aproximaccedilotildees

voltaremos nossa atenccedilatildeo ao aspecto de dissensatildeo que propicia o afastamento

fundamental entre as teorias dos dois filoacutesofos o efeito da trageacutedia Com isto

demonstraremos que a base metafiacutesica comum quando alinhada a pressupostos

esteacuteticos distintos geraraacute a referida dissensatildeo

17

1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES

NA FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA

Por que minha filosofia natildeo encontrou

simpatia e interesse Porque a verdade natildeo

estaacute de acordo com a tagarelice dos tempos

(Schopenhauer)

Neste primeiro capiacutetulo objetivamos apresentar as fontes filosoacuteficas

incutidas no sistema schopenhaueriano no intuito de situar historicamente o surgimento

da filosofia da vontade e trazer agrave baila o seu ambiente circundante bem como as teorias

filosoacuteficas com as quais Schopenhauer se propotildee a dialogar Apontaremos inicialmente

as influecircncias filosoacuteficas assumidamente presentes no sistema schopenhaueriano bem

como aquelas que fundamentam sua metafiacutesica e consequumlentemente sua teoria esteacutetica

Em um segundo momento procuraremos fazer um breve esboccedilo do ambiente artiacutestico-

cultural que dominava o pensamento alematildeo de entatildeo com o qual direta ou

indiretamente Schopenhauer e o jovem Nietzsche se depararam Com isto esperamos

posteriormente demarcar as singularidades que caracterizam as teorias destes filoacutesofos

Ressaltamos todavia que natildeo se trata de um mapeamento completo das fontes que

influenciaram esses autores ndash tarefa que exigiria um esforccedilo bem maior do que aquele

18

proposto por esta pesquisa ndash e sim de um breve panorama que se pautaraacute nas influecircncias

marcantemente presentes em suas obras

No contato com a obra de Schopenhauer a primeira impressatildeo que natildeo

passa despercebida aos seus leitores eacute a qualidade de sua prosa3 Tal qualidade

revelada na diversidade de recursos literaacuterios utilizados pelo autor eacute produto da visiacutevel

erudiccedilatildeo cultivada pelo filoacutesofo Conhecedor do grego do latim e suas respectivas

literaturas Schopenhauer transitava ainda pela obras literaacuterias cientiacuteficas e filosoacuteficas

contemporacircneas em suas liacutenguas originais conhecia o inglecircs o italiano o francecircs e o

espanhol Em sua juventude conviveu com vaacuterias personalidades do meio cultural

germacircnico que frequumlentavam o salatildeo de sua matildee em Weimar dentre eles Goethe a

maior figura das letras germacircnicas com quem teve um relacionamento mais proacuteximo

Sua obra eacute repleta de citaccedilotildees de poetas dramaturgos e seu conhecimento das artes

plaacutesticas e da muacutesica natildeo satildeo superficiais Em suas viagens pela Europa pocircde admirar

diversas esculturas e pinturas e como ele proacuteprio dizia pocircde ler diretamente no ldquolivro

do mundordquo Essa erudiccedilatildeo pode ser notada mesmo diante do desconhecimento de sua

biografia pela observaccedilatildeo da enorme quantidade de citaccedilotildees e menccedilotildees que estatildeo

espalhadas no interior de suas obras traduzidas ou como em sua maior parte citadas

em suas respectivas liacutenguas Frequumlentava as mais diversas aacutereas de conhecimento de sua

eacutepoca como sustenta Aramayo

3 O cuidado com a qualidade da produccedilatildeo literaacuteria tanto no que se refere agrave clareza quanto agrave riqueza de

recursos linguumliacutesticos eacute uma das caracteriacutesticas que Schopenhauer e Nietzsche tecircm em comum Esta

qualidade torna-se mais evidente ainda quando seus trabalhos satildeo natildeo raramente comparados com os

escritos filosoacuteficos alematildees daquele periacuteodo principalmente aos de Fichte Schelling e Hegel O elogio agrave

prosa schopenhaueriana feito por literatos e filoacutesofos contemporacircneos influenciados por sua obra pode

ser ilustrado agrave exaustatildeo entre eles encontram-se Thomas Mann Goethe Wittgenstein e o proacuteprio

Nietzsche ldquoMas a imensa forccedila de penetraccedilatildeo deste pensamento explica-se antes de tudo pelo fato de o

autor ser ao lado de Nietzsche o maior entre os escritores filosoacuteficos alematildeesrdquo (Rosenfeld 1996 177)

Jorge Luis Borges em uma entrevista publicada por Die Welt em 25 de marccedilo de 1975 realizava esta

confissatildeo ltPara mim existe um escritor alematildeo ao qual prefiro Schopenhauer Sei que deveria dizer

Goethe poreacutem Schopenhauer me interessa muitiacutessimo mais Tanto que estudei alematildeo ndash que aprendi

sobre os versos de Heine ndash fundamental e especificamente para poder ler a Schopenhauer em sua proacutepria

liacutenguagt (Aramayo 2001 18)

19

ldquoEm sua busca pela verdade Schopenhauer natildeo desdenha

nenhum aliado Os dramaturgos novelistas e poetas estatildeo quando

menos em peacute de igualdade com os mais egreacutegios filoacutesofos A perspicaacutecia

de Shakespeare ou a genialidade de Voltaire e a sutileza de Goethe nada

devem para a eloquumlecircncia Platocircnica a precisatildeo de um Spinoza e o rigor

conceitual do admirado Kant Sua curiosidade natildeo conhece limites nem

prejuiacutezo algum e por esta razatildeo tampouco menospreza quando o

considera oportuno prestar suficiente atenccedilatildeo aos fenocircmenos

paranormais agrave hipnose ou ao caacutelculo cabaliacutestico se entende que em

algo isto pode servir-lhe para demonstrar sua tese ou avaliar algumas de

suas intuiccedilotildees E na mesma direccedilatildeo aponta seu grande empenho por

incorporar o pensamento das religiotildees orientais a nosso acervo cultural

na possibilidade de um enriquecimento muacutetuordquo (Aramayo 2001 14-15)

A comparaccedilatildeo feita atraveacutes de metaacuteforas4 paraacutebolas ou alegorias em

sua maioria retiradas de obras literaacuterias ou cientiacuteficas torna-se recurso literaacuterio

constantemente presente na obra do filoacutesofo e ao mesmo tempo termocircmetro de suas

influecircncias e de seu relacionamento com o pensamento de seus contemporacircneos Tais

recursos satildeo utilizados contudo com o objetivo consciente de construir conhecimento

de ilustrar a mateacuteria do seu pensamento Nas palavras do filoacutesofo ldquoAs comparaccedilotildees satildeo

de grande valor na medida em que reduzem uma relaccedilatildeo desconhecida a uma

conhecida Inclusive as comparaccedilotildees mais detalhadas transformadas em paraacutebola ou

alegoria satildeo somente a reduccedilatildeo de uma relaccedilatildeo qualquer agrave sua exposiccedilatildeo mais

simples ilustrativa e palpaacutevelrdquo (Schopenhauer SOE 86) Se o nosso objetivo eacute mostrar

as raiacutezes da filosofia de Schopenhauer ou seja as influecircncias que formaram a mateacuteria

de seu pensamento eacute sobre esta mateacuteria que devemos nos debruccedilar Natildeo podemos

contudo nos furtar a apontar a riqueza das fontes formalmente presentes em seus

escritos5 A percepccedilatildeo da presenccedila desta numerosa miscelacircnea de referecircncias dentro da

4 ldquoSua profusa e brilhante utilizaccedilatildeo das metaacuteforas eacute o que o converte sem duacutevida alguma em um grande

escritor cujo estilo se nos afigura tatildeo ameno quanto sugestivordquo (Aramayo 2001 54) 5 Mateacuteria e forma satildeo na concepccedilatildeo do filoacutesofo planos ou instacircncias da produccedilatildeo escrita que servem

como referecircncia para o julgamento de valor do pensamento de um autor ldquo Um livro nunca pode ser mais

do que a impressatildeo dos pensamentos do autor O valor desses pensamentos reside na mateacuteria ou seja

naquilo sobre o que ele pensou ou na forma isto eacute na elaboraccedilatildeo da mateacuteria naquilo que pensou a

respeitordquo (Schopenhauer SOE 11) A importacircncia dada agrave forma por Schopenhauer seraacute melhor

esclarecida quando posteriormente apresentarmos a caracteriacutestica fundamentalmente epistemoloacutegica de

toda produccedilatildeo artiacutestica dentro de sua metafiacutesica do belo

20

obra schopenhaueriana diz-nos algo sobre seu estilo e seu arcabouccedilo cultural

entretanto quando voltamo-nos para a busca das influecircncias diretamente presentes em

seu sistema ie agraves raiacutezes da mateacuteria de seu pensamento percebemos que elas natildeo satildeo

tatildeo numerosas

Uma leitura das fontes filosoacuteficas do sistema schopenhaueriano torna-se

diferentemente do que ocorre em outros sistemas de seu tempo menos trabalhosa por

dois motivos Primeiramente o autor natildeo esconde suas influecircncias mas ao contraacuterio

faz questatildeo de apontaacute-las citaacute-las e quando lhe parece necessaacuterio as critica ou exalta

Em segundo lugar o que facilita o mapeamento destas fontes eacute a caracteriacutestica de

unidade do sistema schopenhaueriano como um todo Apesar da longevidade do

filoacutesofo e da distacircncia temporal entre suas obras suas intuiccedilotildees fundamentais

continuaram sendo as mesmas ao longo de sua vida Nas palavras de Rosset

ldquoSchopenhauer eacute homem de um soacute livro o MVR e de um soacute pensamento (qualificado

por ele mesmo de ltpensamento uacutenicogt nas primeiras linhas de sua obra)rdquo (2005 35)6

Natildeo satildeo poreacutem coetacircneas as influecircncias que marcaram a obra do filoacutesofo

como talvez a constante menccedilatildeo a seus contemporacircneos possa sugerir Nas palavras do

filoacutesofo como citado por Lefranc (2005 17) ldquoPude amar prosseguir aperfeiccediloar a

minha obra soacute por ela mesma em tranquumlilidade completa ao abrigo de toda influecircncia

externa e meus contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes

permaneci estranhosrdquo Conhecia a filosofia de seu tempo todavia natildeo a tinha como

interlocutora na verdade a desdenhava satildeo famosas as criacuteticas de Schopenhauer contra

as filosofias de seus contemporacircneos principalmente as de Fichte Schelling e Hegel

6 Sobre a unidade da produccedilatildeo schopenhaueriana destacamos aleacutem de Rosset os apontamentos de outros

dois de seus maiores comentadores Arthur Huumlbscher e Alexis Philonenko Na introduccedilatildeo aos manuscritos

schopenhauerianos Huumlbscher aponta a importacircncia dos manuscritos na percepccedilatildeo desta unidade uma vez

que podemos notar em diversas fases da vida do filoacutesofo o desenvolvimento dos temas pontuais que

marcaram sua obra principal Vide Hubscher Introduction Manuscript Remains 1985 Alexis

Philonenko trata desta unidade no proacutelogo de sua obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia

(Philonenko 1989 41-45)

21

(chamados de ldquoos trecircs sofistasrdquo) Quando faz referecircncias a eles comumente estaacute

imbuiacutedo de trecircs propoacutesitos criticar a qualidade formal de suas produccedilotildees

principalmente no que tange ao uso da liacutengua germacircnica apontar uma motivaccedilatildeo

individualista (subsistecircncia pessoal e status social) que existiria por traacutes de suas

elucubraccedilotildees filosoacuteficas e ressaltar a falta de atenccedilatildeo por parte daqueles filoacutesofos no

que se refere ao conteuacutedo da primeira criacutetica kantiana

Schopenhauer diagnosticava em seu tempo um periacuteodo de

empobrecimento da expressatildeo literaacuteria e do uso da liacutengua germacircnica e apontava como

os principais responsaacuteveis por estes acontecimentos os ldquoprofessores de filosofiardquo e seus

disciacutepulos As investidas schopenhauerianas contra a filosofia de seus contemporacircneos

podem ser encontrada em praticamente todas as suas obras mas estatildeo concentradas de

forma mais persistente em sua produccedilatildeo mais tardia na segunda ediccedilatildeo da QRPRS de

MVR em seus ensaios sobre a liberdade e o fundamento da moral e nos PP 7

Nesta

uacuteltima obra temos dedicados a estas criacuteticas alguns textos que podemos destacar Sobre

o ofiacutecio de escritor Da leitura e dos livros Da liacutengua e das palavras e Sobre a filosofia

universitaacuteria A liacutengua alematilde no que se refere agrave sua capacidade expressiva era tida em

mais alta consideraccedilatildeo por nosso filoacutesofo Afirmava que dentre as liacutenguas modernas

era ldquoa uacutenica na qual se pode escrever quase tatildeo bem quanto em grego ou em latimrdquo

(Schopenhauer SOE 72) Esta capacidade de expressatildeo de uma liacutengua eacute segundo o

filoacutesofo resultado de sua aptidatildeo em representar conceitos Desta forma na medida em

que surgem novos conceitos a elaboraccedilatildeo de novas palavras que os representem eacute um

sinal de evoluccedilatildeo adequaccedilatildeo e riqueza da liacutengua Entretanto para o filoacutesofo os

neologismos e adaptaccedilotildees criados por seus contemporacircneos natildeo eram resultados da

7 Muitos historiadores da filosofia bioacutegrafos e comentadores apontam que esta criacutetica adveacutem do

ressentimento pelo fracasso de Schopenhauer como docente na universidade de Berlim onde Hegel

reinava absoluto bem como da falta de reconhecimento de sua filosofia diante do sucesso dos professores

da mesma universidade

22

tentativa de representaccedilatildeo de novos conceitos mas ao contraacuterio eram comprovaccedilatildeo de

sua ldquopobreza de espiacuterito que a todo custo quer colocar algo no mercado e por natildeo ter

novos pensamentos chega com palavras novasrdquo (Schopenhauer SOE 129)

Schopenhauer condenava a atitude de seus contemporacircneos de utilizarem-se de

artifiacutecios como a natildeo designaccedilatildeo do caso a expressatildeo dos preteacuteritos por meio do

imperfeito a supressatildeo dos prefixos e outros subterfuacutegios para com isso disfarccedilar a sua

imprecisatildeo conceitual De acordo com Schopenhauer tratavam displicentemente a

liacutengua alematilde por dois motivos por natildeo possuiacuterem uma mateacuteria conceitualmente

relevante a ser expressa ou entatildeo para conscientemente causar a impressatildeo de que a

possuem e neste caso a responsabilidade pela natildeo compreensatildeo do texto seria atribuiacuteda

agrave incompetecircncia intelectual do leitor

Os que compotildeem discursos difiacuteceis obscuros enleados e

ambiacuteguos natildeo sabem ao certo o que querem dizer tecircm somente uma

consciecircncia vaga a esse respeito que luta primeiro por uma ideacuteia poreacutem

amiuacutede querem tambeacutem ocultar de si mesmos e dos outros que na

realidade eles natildeo tecircm nada a dizer Como Fichte Schelling e Hegel

querem parecer saber o que natildeo sabem pensar o que natildeo pensam e dizer

o que natildeo dizem Algueacutem que tenha algo correto a dizer se esforccedilaraacute por

exprimi-lo de maneira indistinta ou distinta (Schopenhauer SOE 39)

Podemos perceber entatildeo que ao criticar o estilo ldquoobscurordquo e ldquopomposordquo de seus

contemporacircneos Schopenhauer aponta como causa deste estilo natildeo somente a sua falta

de mateacuteria mas tambeacutem uma atitude consciente e arquitetadamente maldosa e com

toda a sua forccedila retoacuterica condena esta atitude

Nobre bdquoatualidade‟ magniacuteficos epiacutegonos geraccedilatildeo crescida no

leite materno da filosofia hegeliana Pela gloacuteria eterna quereis apertar

vossas garras em nossa antiga liacutengua para que a marca com um icnoacutelito

conserve para sempre o vestiacutegio de vossa existecircncia insiacutepida e sombria

Mas Dicirc Meliora Fora paquidermes fora Esta eacute a liacutengua alematilde Nela se

expressaram homens ou melhor nela cantaram grandes poetas e grandes

pensadores escreveram Arredai as patas Ou natildeo tereis o que comer (Soacute

isso os assusta) (Schopenhauer SOE 72-73)

23

A uacuteltima frase desta citaccedilatildeo nos eacute aclarada pelo texto Sobre a filosofia universitaacuteria

onde o filoacutesofo expotildee os argumentos de sua criacutetica agrave filosofia produzida em seu tempo

Para Schopenhauer os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo podem devido agrave sua funccedilatildeo

estatal se imiscuir do compromisso poliacutetico-religioso que seu cargo exige e

conseguintemente sustentados pelo Estado tratam de fazer sua apoteose Nas palavras

de Cacciola constantes na introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo brasileira do referido texto

ldquoSchopenhauer eacute um continuador da criacutetica romacircntica ao filisteiacutesmo que se origina em

Tieck A ironia que visa os homens de vida tatildeo regular como o reloacutegio lhe eacute bem

familiar O filisteu eacute o erudito pedante que soacute pensa na proacutepria vantagem O professor

de filosofia que pauta seus ensinamentos de acordo com os ditames do Estado e da

religiatildeo eacute o tipo acabado do filisteu A idolatria do Estado eacute a apoteose do filisteiacutesmo

(Schopenhauer SFU XXX) Por traacutes das ideacuteias dos ldquofiloacutesofos de profissatildeordquo estaria

incutido o retorno disfarccedilado da ldquoteologia judaicardquo de uma ldquopsicologia racionalrdquo da

ldquoliberdade da vontaderdquo e outros dogmas que de acordo com Schopenhauer refletem a

sua vocaccedilatildeo de trabalharem ldquoin maiorem Dei gloriamrdquo como exigido pela ideologia

estatal daquele periacuteodo Natildeo podem sob a pena de perderem o sustento financeiro

pessoal e familiar bem como sob o custo de perderem o status que o cargo lhes confere

contrariar os dogmas patronais

ldquo[] o intelecto dessa gente permanece fiel agrave sua destinaccedilatildeo

natural de trabalhar a serviccedilo da vontade como normalmente acontece

Mas por isso mesmo existe sempre uma intenccedilatildeo como fundamento do

seu agir e pensar eles tecircm fins o tempo todo e soacute tomam conhecimento

do que diz respeito a esses fins e portanto soacute do que corresponde a

esses fins A atividade do intelecto liberto da vontade condiccedilatildeo da pura

objetividade e por isso de todas as grandes realizaccedilotildees permanece-lhes

eternamente estranha ndash eacute uma faacutebula para seu coraccedilatildeordquo (Schopenhauer

SFU 63)

Desta forma os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo estariam voltados para a investigaccedilatildeo

objetiva da ldquoverdaderdquo a qual exigiria o distanciamento de todo e qualquer interesse

24

pessoal De acordo com o sistema schopenhaueriano tal distanciamento eacute um dom raro

com o qual a natureza a poucos contempla Na metafiacutesica schopenhaueriana a natureza

eacute aristocraacutetica O gecircnio eacute fenocircmeno raro seja ele filoacutesofo ou artista A percepccedilatildeo

objetiva do mundo alheia aos interesses pessoais da vontade individual eacute uma exceccedilatildeo

que soacute se manifesta raramente e as pessoas atadas aos interesses pessoais de sua

vontade natildeo podem reconhececirc-lo imediatamente Estes gecircnios produzidos pela natureza

seriam os verdadeiros educadores do mundo e os ldquoprofessores de filosofiardquo ao tentar

representar este papel que soacute agrave natureza cabe eleger causam-lhe repulsa

Tantas mentes comuns que se acham por cargo e profissatildeo no

dever de representar papeacuteis que a natureza nem ao menos lhes atribuiacutera e

de transportar cargas que exigem ombros de gigantes espirituais

oferecem na realidade um espetaacuteculo deveras lamentaacutevel Pois escutar

cantar os roucos e ver danccedilar os coxos eacute penoso mas ouvir filosofar a

mente limitada eacute insuportaacutevel (Schopenhauer SFU 34)

Prova do embotamento da capacidade de reconhecimento de uma produccedilatildeo genial era

para o filoacutesofo o fato de seus contemporacircneos ignorarem ou mesmo passarem agrave

margem do que seria a mais importante produccedilatildeo filosoacutefica do periacuteodo a cisatildeo entre o

real e o ideal perpetrada pela primeira criacutetica kantiana Esta era para o filoacutesofo a maior

prova do demeacuterito filosoacutefico de seus contemporacircneos preocupados com seus interesse

pessoais alheios a uma observaccedilatildeo objetiva do mundo natildeo levaram em consideraccedilatildeo os

limites impostos pela primeira criacutetica kantiana a toda investigaccedilatildeo racional

Depois de Kant ter cortado o nervo de todas as provas possiacuteveis

da teologia ndash tatildeo incisivamente que desde entatildeo ningueacutem mais pocircde

meter-se com elas ndash o esforccedilo filosoacutefico em quase cinquumlenta anos tem

consistido nas diversas tentativas de insinuar sutil e astuciosamente a

teologia e os escritos filosoacuteficos nada mais satildeo na sua maioria do que

tentativas infrutiacuteferas de reanimar um cadaacutever sem vida (Schopenhauer

SFU 81)

Natildeo nos interessa aqui adentrarmo-nos aos reais motivos existentes por

traacutes dos vitupeacuterios schopenhauerianos contra os pensadores de seu tempo nem

25

tampouco fazer juiacutezo valorativo sobre a importacircncia da filosofia da vontade em

comparaccedilatildeo ao idealismo absoluto Dentro do objetivo proposto qual seja situar

historicamente a filosofia da vontade e apontar suas influecircncias o importante eacute ressaltar

que a filosofia contemporacircnea a Schopenhauer natildeo fez efeito sobre a sua proacutepria a ponto

de modificaacute-la em seu conteuacutedo conforme esclarece o proacuteprio filoacutesofo ldquo [] meus

contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes permaneci

estranhosrdquo (apud Lefranc 2005 17) Eacute fundamental verificarmos que apesar do

sistema schopenhaueriano ter se desenvolvido agrave margem do idealismo de entatildeo seu

autor natildeo o desconhecia e muitas das ilustraccedilotildees e argumentaccedilotildees utilizadas por ele na

explicaccedilatildeo de suas teorias apoiavam-se nesta sua contenda com o seu tempo

Entretanto como a filosofia de seu tempo pretende-se herdeira do kantismo assim

tambeacutem procede Schopenhauer e a suas criacuteticas ao idealismo absoluto estatildeo

fundamentadas em sua pretensatildeo a uma heranccedila direta da filosofia kantiana Sobre a

heranccedila de Kant Schopenhauer esclarece ldquoEm todo caso natildeo reconheccedilo que tenha

acontecido algo na filosofia entre ele e mim por conseguinte ligo-me imediatamente a

elerdquo (Schopenhauer MVR 525)

Natildeo obstante as diversas criacuteticas ao retorno kantiano ao dogmatismo8

das quais a obra de Schopenhauer estaacute recheada sua admiraccedilatildeo por ele foi tambeacutem

abundantemente expressa Considerava-o ldquoa inteligecircncia mais original jaacute criada pela

naturezardquo (Schopenhauer SFU52) e afirmava que seus escritos capitais eram o ldquo[]

fenocircmeno mais importante que ocorreu ao longo dos uacuteltimos dois mil anos na filosofia

[]rdquo (Schopenhauer MVR 22) O maior reflexo desta admiraccedilatildeo pode ser observada

8 Nas palavras de Cacciola ldquoO criticismo de Kant teria segundo Schopenhauer perdido sua forccedila inicial

na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura Ou seja Schopenhauer acusa Kant de uma ldquorecaiacuteda no

dogmatismordquo por ter amenizado seu confronto com a teologia A ameaccedila dogmaacutetica jaacute configurada na

filosofia teoacuterica concretiza-se na Eacutetica de Kant quando esta acolhe como postulados Deus

imortalidade da alma e liberdade No poacutes-kantismo a importacircncia crescente atribuiacuteda agrave filosofia praacutetica

de Kant a expensas de sua criacutetica do conhecimento teria levado a uma espeacutecie de contaminaccedilatildeo da

razatildeo teoacuterica pela razatildeo praacutetica fazendo com que a primeira se transformasse num oacutergatildeo apto para

captar o Absolutordquo (Cacciola 1994 20)

26

no fato de que eacute da filosofia kantiana que Schopenhauer retira o leitmotiv para o

desenvolvimento da ideacuteia central9 de sua filosofia Esta ideacuteia central eacute aquela contida

concisamente no tiacutetulo de sua obra principal O mundo como vontade e como

representaccedilatildeo10

A dualidade formada entre representaccedilatildeo e vontade atraveacutes da qual

Schopenhauer acredita ter desvendado o ldquomisteacuteriordquo cosmoloacutegico eacute uma apropriaccedilatildeo

assumida dos conceitos kantianos de fenocircmeno e coisa-em-si respectivamente

Dizemos apropriaccedilatildeo pois aqueles conceitos satildeo acrescidos na filosofia

schopenhaueriana de caracteriacutesticas singulares Eacute com base nesta dualidade de

perspectivas de conhecimento do mundo inspirada na primeira criacutetica kantiana que o

filoacutesofo desenvolve as demais teorias que compotildeem seu sistema sejam elas a esteacutetica a

eacutetica a poliacutetica etc

Para Schopenhauer ldquoo maior meacuterito de Kant eacute a distinccedilatildeo entre

fenocircmeno e coisa-em-sirdquo (Schopenhauer MVR 526) Esta distinccedilatildeo foi o que

possibilitou a ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo realizada sobre o dogmatismo anterior A partir

daquele momento ldquoo mundo objetivo como o conhecemos natildeo pertence agrave essecircncia das

coisas em si mesmas mas eacute seu mero FENOcircMENO condicionado exatamente por

aquelas mesmas formas que se encontram a priori no intelecto

humanordquo(Schopenhauer MVR 530) Na teoria kantiana temos o espaccedilo e o tempo

como formas da sensibilidade que na filosofia de Schopenhauer satildeo associadas agrave

faculdade do entendimento juntamente com a causalidade uacutenica das doze categorias

kantianas do entendimento mantidas por Schopenhauer em seu sistema Desta forma o

mundo enquanto representaccedilatildeo eacute aquele que se apresenta para o sujeito enquanto objeto

9 Quando dizemos ideacuteia central havemos de lembrar que no sistema schopenhaueriano esta categorizaccedilatildeo

eacute singular (o tema seraacute tratado no iniacutecio do proacuteximo capiacutetulo) 10

A importacircncia que o filoacutesofo daacute ao tiacutetulo de uma obra eacute esclarecedora para a compreensatildeo da

importacircncia de sua ideacuteia central ldquoo que o sobrescrito deve ser para uma carta eacute o que um tiacutetulo deve ser

para um livro ou seja antes de tudo deve ter o objetivo de destinaacute-lo agrave parte do puacuteblico que pode se

interessar por seu conteuacutedo Sendo assim o tiacutetulo precisa ser caracteriacutestico e por ser naturalmente

breve deve ser conciso lacocircnico pregnante e se possiacutevel um monograma do conteuacutedordquo

(Schopenhauer SOE 09-10)

27

condicionado por estas trecircs formas presentes a priori no intelecto humano tempo

espaccedilo e causalidade Quanto ao mundo noumecircnico que dentro da teoria kantiana eacute um

ldquox desconhecidordquo Schopenhauer o explica atraveacutes da Vontade sua traduccedilatildeo da coisa-

em-si Essa dualidade que traz agrave tona a ldquocompleta diversidade entre o ideal e o realrdquo

(Schopenhauer MVR 527) doutrina que de acordo com Schopenhauer (MVR 528) foi

expressa por Kant de forma soacutebria calma demonstrada e incontestaacutevel jaacute havia sido

expressa tambeacutem em linguagem mais miacutetica e poeacutetica por outras duas doutrinas que

tambeacutem estatildeo profundamente presentes na obra Schopenhaueriana Platatildeo e os escritos

indianos dos Vedas e Puranas

Os estudos das obras de Platatildeo e Kant foram recomendaccedilatildeo de Schultze

um dos professores de Schopenhauer em Gottingen (Weissmann 1980 54) e formam os

pilares filosoacuteficos do sistema schopenhaueriano A separaccedilatildeo entre o real e o ideal

executada por Kant eacute vista tambeacutem na obra platocircnica Sua teoria das ideacuteias bem como

sua alegoria da caverna satildeo expressotildees de uma intuiccedilatildeo da existecircncia daquela separaccedilatildeo

O que Kant teria sistematizado a seu modo eacute a mesma verdade que ldquojaacute Platatildeo

incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte

modo este mundo que aparece aos sentidos natildeo possui nenhum verdadeiro ser mas

apenas um incessante devir ele eacute e tambeacutem natildeo eacute sua apreensatildeo natildeo eacute tanto um

conhecimento mas uma ilusatildeordquo (Schopenhauer MVR 528)

Aleacutem de Platatildeo os livros sagrados dos indianos afirmavam esta ldquoilusatildeordquo

ldquofantasmagoriardquo do mundo e constituem tambeacutem uma fonte frequumlentemente utilizada

por Schopenhauer O contato do nosso filoacutesofo com o pensamento oriental se deu

quando do seu encontro com o orientalista Friedrich Majer no salatildeo de sua matildee em

28

Weimar A partir de entatildeo o interesse do filoacutesofo pelo pensamento oriental foi se

intensificando ao longo de sua vida 11

A mesma verdade representada de modo completamente outro eacute

tambeacutem uma doutrina capital dos vedas e puranas a saber a doutrina de

Maia pela qual natildeo se entende outra coisa senatildeo aquilo que Kant nomeia

o fenocircmeno em oposiccedilatildeo agrave coisa-em-si pois a obra de maia eacute

apresentada justamente como este mundo visiacutevel no qual estamos um

efeito maacutegico que aparece na existecircncia uma aparecircncia inconstante e

inessencial em si destituiacuteda de ser comparaacutevel agrave ilusatildeo de oacutetica e ao

sonho um veacuteu que envolve a consciecircncia humana um algo do qual eacute

igualmente falso e igualmente verdadeiro dizer que eacute ou natildeo eacute

(Schopenhauer MVR 528)

Estas trecircs doutrinas estavam admitidamente presentes quando da

elaboraccedilatildeo do nuacutecleo conceitual fundamental da posteriormente nominada Filosofia da

Vontade Entretanto aleacutem de formarem seu nuacutecleo conceitual podemos encontraacute-las

ainda posteriormente em outros instantes desta filosofia O pensamento oriental seraacute

figura fortemente presente na eacutetica schopenhaueriana desenvolvida no quarto livro do

Mundo onde o filoacutesofo adotaraacute como fundamento de sua eacutetica o sentimento da

compaixatildeo jaacute presente na doutrina budista Platatildeo e Kant satildeo ainda influecircncias

fundamentais como veremos no proacuteximo capiacutetulo da esteacutetica schopenhaueriana O

primeiro novamente atraveacutes de sua teoria das ideacuteias seraacute utilizado por Schopenhauer na

definiccedilatildeo do objeto artiacutestico Do segundo poderemos notar sua influecircncia nas teorias

schopenhauerianas do sublime da imaginaccedilatildeo e da contemplaccedilatildeo desinteressada todas

elas fundamentais agrave compreensatildeo da teoria da arte poeacutetica

- - - - - - - - - -

11

Suas fontes principais eram o Oupnekacutehat uma traduccedilatildeo latina dos vedas e o Asiatic Journals jornal

publicado pela sociedade asiaacutetica fundada em 1784 Para uma referecircncia completa das citaccedilotildees orientais

na obra de Schopenhauer veja o apecircndice do artigo de Moira Nicholls The influences of Eastern Thought

on Schopenhaueracutes Doctrine of the Thing-in-itself (in Janaway 1999 197-204)

29

Apresentadas as principais influecircncias teoacutericas do sistema

schopenhaueriano passemos a uma breve descriccedilatildeo do ambiente cultural que naquele

momento tinha como foco um projeto de fundaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para o teatro e a

literatura germacircnicas Tal projeto envolveu os mais importantes dramaturgos criacuteticos

escritores e pensadores do periacuteodo imediatamente anterior a Schopenhauer12

e eacute

tambeacutem posteriormente retomado por Nietzsche em seu Nascimento da Trageacutedia Sua

importacircncia para a filosofia da vontade pode ser medida pela recorrente referecircncia feita

a estes pensadores nas obras dos filoacutesofos Seu iniacutecio em meados do seacuteculo XVIII deu-

se pela influecircncia exercida pelo historiador da arte Johann J Winckelmann junto aos

escritores poetas e dramaturgos posteriores dentre eles Lessing Goethe e Schiller

A influecircncia winckelmanniana que de acordo com Butler (1958 11)

criou ondas cujo violento distuacuterbio ldquoainda varrem as praias do seacuteculo XXrdquo se pautou

em duas noccedilotildees fundamentais13

a imitaccedilatildeo dos antigos e o belo ideal Winckelmann

propunha um novo modelo no qual a arte germacircnica deveria se basear para atingir uma

grandiosidade rara e ldquoinimitaacutevelrdquo a imitaccedilatildeo dos gregos Por esta imitaccedilatildeo o

historiador natildeo propunha uma mera coacutepia das obras de arte gregas poreacutem uma imitaccedilatildeo

do modo de produccedilatildeo artiacutestica dos gregos qual seja sintetizar a beleza ideal descoberta

na observaccedilatildeo da diversidade objetiva da natureza Esta proposta de um retorno ao

modelo antigo coloca Winckelmann na esteira da conhecida querela entre antigos e

modernos e eacute a igniccedilatildeo para o periacuteodo literaacuterio conhecido como classicismo germacircnico

Esta disputa quanto agrave valorizaccedilatildeo das obras poeacuteticas antigas ou modernas estaraacute de um

modo ou de outro presente nas teorias schopenhaueriana e nietzscheana da trageacutedia

12

De acordo com Schopenhauer as obras de tais poetas e escritores assim como a filosofia de Kant satildeo

exemplos para os quais a literatura e a filosofia pobres de seu tempo deveriam se voltar No que se refere

ao uso da liacutengua ele aconselha ldquoLede vede qual liacutengua Winckelmann Lessing Klopstock Wieland

Goethe Buumlrger Schiller falaram e emulai-a mas natildeo fazei o mesmo com o jargatildeo estupidamente

excogitado pelos miseraacuteveis literatos atuais e entre eles pelos professores que vatildeo agrave escola de liacutenguardquo

(Schopenhauer SOE 57-58) 13

Esta duas noccedilotildees fundamentais satildeo ressaltadas por Suumlssekind e Machado em seus trabalhos sobre o

tema Veja Suumlssekind 2008 67-77 e Machado 2006 9-14

30

Como veremos posteriormente Schopenhauer privilegiaraacute a trageacutedia moderna em

detrimento da antiga argumentando que aquela cumpre com maior competecircncia o seu

objetivo enquanto forma de arte qual seja provocar repulsa agrave vontade de viver e

estimular sua negaccedilatildeo Apesar deste privileacutegio pelas obras traacutegicas modernas o filoacutesofo

natildeo deixa como seus contemporacircneos de ter os gregos como modelo e natildeo satildeo raros

seus elogios agraves produccedilotildees helecircnicas Para Schopenhauer Winckelmann foi para a

histoacuteria da arte assim como ele o eacute para a da filosofia um exemplo do modo epiciacuteclico

atraveacutes do qual a natureza de tempo em tempo faz avanccedilar o conhecimento do gecircnero

humano Para o filoacutesofo a retomada do projeto kantiano realizada pelo seu sistema eacute a

demonstraccedilatildeo de que entre ele e Kant nenhum conhecimento foi produzido Como

exemplo deste esquema epiciacuteclico na histoacuteria da arte Schopenhauer utiliza-se do

retorno de Winckelmann agrave beleza claacutessica o que nos mostra a importacircncia dada pelo

filoacutesofo agrave forma de arte grega bem como ao projeto inaugurado pelo historiador da arte

Apoacutes explicar o esquema epiciacuteclico da evoluccedilatildeo dos progressos humanos

Schopenhauer diz

Para quem deseja poreacutem ter uma prova do esquema geral dos

epiciclos aqui exposto com base na histoacuteria da arte basta observar a

escola de escultura de Bernini que florescia ainda no seacuteculo passado

particularmente em seu desenvolvimento francecircs sucessivo e que

representava a natureza comum em vez da beleza claacutessica e o decoro do

minueto francecircs em vez da simplicidade e da graccedila antigas Tal escola

faliu quando apoacutes a repreensatildeo de Winckelmann voltou-se agrave escola dos

antigos (Schopenhauer SOE 110)

Nietzsche por sua vez seguiraacute o caminho winckelmanniano de exaltaccedilatildeo da forma de

arte antiga apresentando a trageacutedia grega como modelo para a arte moderna e elogiando

a iniciativa de seus predecessores em valorizar e recuperar a arte helecircnica

31

Conviria que alguma vez se pesasse diante dos olhos de um juiz

insubornaacutevel em que tempo e em que homens o espiacuterito alematildeo se

esforccedilou mais vigorosamente por aprender dos gregos e se admitirmos

com confianccedila que esse louvor uacutenico deveria ser atribuiacutedo agrave nobiliacutessima

luta de Goethe Schiller e Winckelmann pela cultura haveria em todo

caso que acrescentar que desde aquele tempo e depois das influecircncias

imediatas daquela luta tornou-se cada vez mais fraca de maneira

incompreensiacutevel a aspiraccedilatildeo de se chegar por uma mesma via agrave cultura e

aos gregos (Nietzsche NT 120)

Podemos perceber entatildeo a importacircncia do helenismo proposto por Winckelmann no

pensamento germacircnico ao observarmos a sua duraccedilatildeo tendo em vista que mais de um

seacuteculo separa o historiador da arte e o filoacutesofo da vontade de poder o que confirma a

forccedila de suas propostas para uma cultura em formaccedilatildeo e justifica o epiacuteteto com o qual

Butler caracterizou este periacuteodo dizendo que nele vemos ldquoa tirania da Greacutecia sobre a

Alemanhardquo14

O segundo ponto fundamental da teoria da arte winckelmanniana o belo

ideal natildeo provocou menor interesse em seu tempo Este belo ideal era alcanccedilado a

partir da reuniatildeo em uma uacutenica obra harmocircnica daquilo que o artista observa de mais

belo na natureza

A natureza tem seus defeitos o corpo mais belo natildeo deixa de tecirc-los e

nele encontramos frequumlentemente partes que em outros satildeo mais belas ou

podem supor-se mais perfeitas [] Os gregos trataram de reunir as formas

elegantes de vaacuterios corpos belos como sabemos pelo diaacutelogo de Soacutecrates com o

ceacutelebre pintor Parrasio [] Esta seleccedilatildeo das partes belas e sua harmocircnica

associaccedilatildeo em uma soacute figura produziu a beleza ideal (Winckelmann 2002

130)

Tal beleza encontrou sua manifestaccedilatildeo primeira na Greacutecia do periacuteodo helecircnico devido

ao favorecimento das condiccedilotildees geograacutefico-climaacuteticas15

e poliacuteticas16

Aleacutem da beleza

14

Tiacutetulo de sua obra Butler 1958 15

Sobre a influecircncia climaacutetica Winckelmann deduz ldquoA natureza depois de haver se manifestado em

gradaccedilotildees extremas de frio e de calor se estabeleceu na Greacutecia como em seu centro e por isso reina

naquele paiacutes uma temperatura intermediaacuteria entre o inverno e o veratildeo E quanto mais se aproxima deste

centro mais claridade e serenidade oferece e suas obras se manifestam em formas mais graciosas e

amaacuteveis e com detalhes mais caracteriacutesticos e decididosrdquo (Winckelmann 2002106) 16

Sobre as condiccedilotildees poliacuteticas sejam elas patriarcais democraacuteticas ou tiracircnicas Winckelmann conclui o

seguinte ldquoCom relaccedilatildeo ao regime poliacutetico e o governo da Greacutecia a liberdade eacute uma das causas da

preeminecircncia dos gregos na arte Tambeacutem a liberdade parece ter estabelecido na Greacutecia a sua sede existia

32

formal retirada da diversidade das formas naturais eleitas as mais belas as obras gregas

eram exemplares devido agrave importacircncia dada pelos artistas agrave sua expressatildeo A obra de

arte deve sua forccedila tanto agrave beleza das formas quanto agrave expressatildeo da alma nela contida

De acordo com Winckelmann ldquoa expressatildeo de uma alma grande vai muito aleacutem da

plasmaccedilatildeo de uma bela naturezardquo isto ocorre devido ao fato de que para o historiador

da arte ldquona Greacutecia a sabedoria estendia a matildeo agrave arte e insuflava nas figuras almas

mais que comunsrdquo (Winckelmann 1958 19) As caracteriacutesticas que esta expressatildeo deve

possuir satildeo aquelas contidas na passagem mais famosa da obra de Winckelmann na

qual ele descreve ainda como exemplo daquela expressatildeo artiacutestica o grupo estatuaacuterio

do Laocoonte que por sua vez seraacute alvo de uma grande controveacutersia posterior da qual

participaratildeo dentre outros Lessing Herder Goethe Schelling e Schopenhauer

Reproduzimos a passagem de Winckelmann em sua integridade

A caracteriacutestica geral e principal das obras mestras gregas eacute uma

nobre simplicidade e uma serena grandeza tanto na atitude como na

expressatildeo Assim como nas profundidades o mar estaacute sempre calmo por

muito que se agite a superfiacutecie do mesmo modo a expressatildeo nas figuras

dos gregos mostra em meio a todas as paixotildees uma alma grande e

comedida Isso transmite o rosto do Laocoonte ndash e natildeo soacute o dele ndash em

meio agrave mais violenta dor O sofrimento que aparece em todos os

muacutesculos e fibras do corpo e que no baixo ventre contraiacutedo se

experimenta tatildeo intensamente que parecemos senti-lo natildeo se exterioriza

contudo mediante qualquer ira no rosto e em toda a atitude Natildeo lanccedila

um grito terriacutevel tal como Virgiacutelio cantou em seu Laocoonte A abertura

da boca natildeo o permitiria Mais parece um suspiro angustiado como o

descreve Sadolet A dor do corpo e a grandeza da alma estatildeo distribuiacutedos

com igual forccedila atraveacutes de toda a composiccedilatildeo da figura e em certa

medida estatildeo equilibrados Laocoonte sofre mas sofre como o

Filoctetes de Soacutefocles sua dor nos toca a alma mas desejariacuteamos poder

suportar essa dor com a grandeza desse homem (Winckelmann 1958

18-19 grifo nosso)

inclusive junto ao tronos de seus reis que governavam paternalmente a seus suacuteditos antes que mais

ilustrados gozassem do destino de uma completa liberdade Homero chama a Agamemnoacuten de pastor de

seus povos com o que queria designar sua ternura com seus subordinados e sua preocupaccedilatildeo constante

pela felicidade dos mesmos Eacute bem verdade que depois surgiram tiranos mas natildeo o foram mais para uma

determinada cidade e a naccedilatildeo inteira jamais reconheceu um soberano uacutenicordquo (Winckelmann 2002 109)

33

Desta famosa passagem retiramos dois momentos que especialmente nos interessam O

primeiro dele eacute a enunciaccedilatildeo que caracterizaraacute o ideal de beleza das obras gregas nobre

simplicidade e uma serena grandeza Este ideal winckelmanniano de beleza eacute o que

torna a arte grega nas palavras de Suumlssekind ldquoinimitaacutevel e ao mesmo tempo faz dela o

modelo a ser imitadordquo (Suumlssekind 2008 69) Interessa-nos especialmente devido agrave

influecircncia desta definiccedilatildeo para a teoria do jovem professor de filologia da Basileacuteia

Podemos ver ateacute mesmo pelo vocabulaacuterio utilizado para descrever a arte grega a

proximidade e a influecircncia exercida por estes conceitos nas teorias esteacuteticas do primeiro

Nietzsche Luminosidade serenidade harmonia satildeo alguns dos conceitos que

posteriormente seratildeo utilizados por Nietzsche ao definir o seu impulso artiacutestico

apoliacuteneo17

O segundo momento - quando Winckelmann defende o espiacuterito grego na

escultura do Laocoonte em contraposiccedilatildeo ao personagem de Virgiacutelio comparando esta

representaccedilatildeo escultural com o Filoctetes de Soacutefocles - seraacute o precursor do posterior

debate sobre as fronteiras que separam as formas de arte Para Winckelmann ldquoa nobre

simplicidade e a serena grandeza das estatuas gregas eacute tambeacutem a verdadeira

caracteriacutestica dos escritos gregos da melhor eacutepoca dos escritos da escola

socraacuteticardquo(Winckelmann 1958 31) O debate sugerido pela passagem do qual

participaraacute posteriormente o proacuteprio Schopenhauer seraacute iniciado por outro pensador

de grande importacircncia para o projeto cultural alematildeo Gotthold Ephraim Lessing

Lessing em sua obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da

poesia apresentaraacute a contenda que chegaraacute ateacute Schopenhauer Para Lessing o ponto de

discordacircncia com Winckelmann estaacute no motivo pelo qual na escultura o Laocoonte natildeo

17

Segundo Rodriges (2007 93-126) tambeacutem o conceito do impulso dionisiacuteaco estaria mesmo que em

germe presente nos estudos de Winckelmann Segundo seu artigo o mapeamento da origem e

desenvolvimento da discussatildeo sobre os citados impulsos artiacutesticos da natureza ou seja sobre a

importacircncia dos deuses Apolo e Dioniacutesio na cultura grega abrangeria necessariamente diversas aacutereas do

pensamento alematildeo desde Winckelmann dentre elas os estudos filoloacutegicos o movimento romacircntico e as

filosofias idealistas

34

apresenta as caracteriacutesticas de quem grita e lamenta Como vimos para Winckelmann o

conjunto estatuaacuterio em questatildeo eacute exemplar pelo fato de transmitir atraveacutes da atitude

estoacuteica diante da dor a grandeza de alma que seria a regra universal da verdadeira arte

grega Esta grandeza enquanto regra universal estaria ainda de acordo com o

historiador da arte presente tanto nas formas pictoacutericas como nas obras poeacuteticas

Contrapondo-se a Winckelman Lessing afirma - exemplificando atraveacutes de passagens

de poetas queridos ao proacuteprio Winckelmann como Homero e Soacutefocles - que em vaacuterios

momentos da poesia antiga diversos personagens dentre eles deuses e heroacuteis proferem

exaltados lamentos e gritos e isto natildeo lhes subtrai a grandeza da alma Sendo assim se

na poesialdquoo gritar na sensaccedilatildeo de dor corporal pode coexistir muito bem com uma

grande alma portanto a expressatildeo de uma tal alma natildeo pode ser a causa pela qual

apesar disso o artista natildeo quer imitar esse grito no seu maacutermore antes deve haver um

outro motivo por que aqui ele separa-se do seu rival o poeta que expressa esse grito

com o melhor propoacutesitordquo(Lessing 1998 86) O motivo pelo qual em sua representaccedilatildeo

estatuaacuteria o Laocoonte natildeo grita eacute para Lessing uma questatildeo de limitaccedilatildeo da forma de

expressatildeo escultoacuterica que ao se submeter agrave ldquolei da belezardquo natildeo pode representar o grito

desfigurador Em suas palavras

O mestre visava a suprema beleza sob as condiccedilotildees aceitas da dor

corporal Esta em toda a sua violecircncia desfiguradora era incompatiacutevel

com aquela Ele foi obrigado a reduzi-la ele foi obrigado a suavizar o

grito em suspiro natildeo porque o grito denuncia uma alma indigna mas

antes porque ele dispotildee a face de um modo asqueroso (Lessing 1998

92)

Devemos ressaltar que segundo a teoria artiacutestica de Lessing para quem as leis a que

devem obedecer a arte estatildeo ligadas agrave sua interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica a arte eacute

julgada atraveacutes do seu efeito Neste contexto ao conceder a seus personagens

caracteriacutesticas de humanidade como por exemplo a manifestaccedilatildeo da dor atraveacutes de

35

lamentos e gritos o poeta estaria aproximando o heroacutei traacutegico do puacuteblico a ser atingido

e consequumlentemente maximizando a identificaccedilatildeo entre eles e com isto o efeito

esperado qual seja a catarse atraveacutes do temor e da compaixatildeo Esta identificaccedilatildeo

alcanccedilada por via da demonstraccedilatildeo dos lamentos dos heroacuteis dramaacuteticos natildeo pode ser

obtida da mesma forma pelas artes pictoacutericas Nestas que satildeo expressotildees de um

momento uacutenico a beleza natildeo pode deixar de estar presente pois ela eacute um dos

ingredientes mais fundamentais do efeito buscado Na poesia o heroacutei natildeo seraacute

caracterizado em uma uacutenica accedilatildeo como ocorre na escultura Sendo assim o grito

narrado eacute apenas um momento do conjunto que iraacute definir o personagem

O Laocoonte de Virgiacutelio grita mas esse Laocoonte que grita eacute

justamente aquele que noacutes jaacute conhecemos e amamos como o patriota

mais cordato e o pai mais afetuoso Noacutes vinculamos o seu grito natildeo ao

seu caraacuteter mas antes apenas ao seu sofrimento insuportaacutevel Apenas

esse uacuteltimo noacutes ouvimos no seu grito e o poeta pode tornaacute-lo sensiacutevel

apenas graccedilas a esse grito (Lessing 1998 106)

Com isto tanto o escultor que suprime o grito quanto o poeta que o descreve ao

fazerem o fazem de acordo com as leis que regem suas respectivas formas de arte

Da contenda sobre o grito do Laocoonte e sua representaccedilatildeo escultoacuterica e

poeacutetica iratildeo participar ainda diversos pensadores Dentre os mais ilustres podemos

destacar Goethe cuja explicaccedilatildeo sobre a escultura proacutexima em muitos pontos da de

Lessing encontra-se nos Propileus Para o poeta o grupo estatuaacuterio ldquoesgota o seu objeto

e preenche com sucesso todas as condiccedilotildees da arterdquo (Goethe 2005126) Segundo

Goethe a escultura eacute limitada a um uacutenico momento da accedilatildeo e sua comparaccedilatildeo com a

poesia de Virgiacutelio eacute injusta O poeta a avalia assim como Lessing atraveacutes de seu efeito

ainda dentro das categorias poeacuteticas de Aristoacuteteles e destaca

O ser humano possui apenas trecircs sentimentos no sofrimento

proacuteprio e alheio o medo o terror e a compaixatildeo a previsatildeo temerosa de

um mal que se aproxima a percepccedilatildeo inesperada do sofrimento presente

36

e a participaccedilatildeo no sofrimento duradouro ou que passou todos os trecircs

sentimentos satildeo representados e suscitados por esta obra de arte e na

verdade na gradaccedilatildeo a mais conveniente (Goethe 2005 126)

Em sua obra principal Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 46 a seus comentaacuterios do

Laocoonte que seratildeo acrescidos de exemplos no posterior volume de suplementos

Reconhece o avanccedilo feito por Lessing ao colocar no lugar de um fundamento

psicoloacutegico um fundamento puramente esteacutetico e critica ainda as teorias psicoloacutegicas e

fisioloacutegicas de seu tempo como as de Hirt e Fernow18

Para Schopenhauer apesar de

sua aproximaccedilatildeo do que seria uma ldquoexplicaccedilatildeo corretardquo da obra Lessing natildeo encontrou

o seu ponto exato qual seja a explicaccedilatildeo de que o grito natildeo pertence ao domiacutenio de

uma representaccedilatildeo escultoacuterica

Antes de qualquer investigaccedilatildeo psicoloacutegica e fisioloacutegica sobre se

Laocoonte em sua situaccedilatildeo poderia gritar ou natildeo deve-se decidir em

relaccedilatildeo ao grupo de esculturas o seguinte que nele o grito natildeo pode ser

exposto pelo motivo de que a exposiccedilatildeo do grito reside por inteiro fora

do domiacutenio da escultura (Schopenhauer MVR 2005 303)

Para Schopenhauer a simples exposiccedilatildeo que representaria o grito ou seja ldquoo

escancarar violento da bocardquo natildeo pode ocasionar o efeito que o grito mesmo enquanto

forma de expressatildeo ocasionaria O efeito que o grito pode causar em uma arte

descritiva atraveacutes do uso da imaginaccedilatildeo do leitor ou mesmo na arte representativa no

teatro tornar-se-ia motivo de riso caso seja representado por uma boca escancarada na

arte plaacutestica Schopenhauer utiliza-se do exemplo do Laocoonte para demonstrar a

necessidade do estabelecimento de fronteiras entre as artes que devido agrave suas formas

devem obedecer agraves competecircncias determinadas pelo objeto representado (no caso da

teoria schopenhaueriana as competecircncias seratildeo determinadas pelas ideacuteias a serem

representadas como veremos posteriormente) Esta preocupaccedilatildeo com os limites entre as

18

Segundo Schopenhauer Hirt (Horen 1797 parte 10) apresenta a explicaccedilatildeo de que Laocoonte natildeo grita

pois estaacute impossibilitado pela sufocaccedilatildeo que o leva agrave morte Fernow por sua vez faz uma amalgama das

opiniotildees de Winckelmann Lessing e Hirt

37

formas artiacutesticas presente na esteacutetica schopenhaueriana e no Laocoonte de Lessing foi

contudo como nos lembra Suzuki (Rosenfield 2001 36-56) ignorada por Goethe

(como podemos ver pelos elementos da poeacutetica aristoteacutelica utilizados pelo poeta para

explicar a escultura na citaccedilatildeo presente na paacutegina anterior) e seraacute posteriormente

tambeacutem desconsiderada por Nietzsche em seu projeto de uma obra de arte total

Diante do acima exposto ainda tratando de Lessing podemos perceber

que toda a discussatildeo acerca do Laocoonte foi desencadeada pela motivaccedilatildeo de defesa da

arte poeacutetica agrave qual Lessing dedicou sua vida como escritor diretor e criacutetico teatral

Desta forma a importacircncia de Lessing para o tema em questatildeo nesta dissertaccedilatildeo estaacute

mais ligado ao seu papel junto a um projeto de formaccedilatildeo de um teatro alematildeo e sua

interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica Enquanto teoacuterico e criacutetico do teatro o autor da

Dramaturgia de Hamburgo exerceu grande influecircncia na cultura posterior ao oferecer a

seu tempo uma nova interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica que vai de encontro agraves

interpretaccedilotildees francesas e de Gottsched que eram por sua vez inflexiacuteveis em relaccedilatildeo agraves

regras (das unidades de espaccedilo tempo e lugar do estatuto social dos personagens da

linguagem e do nuacutemero de atos) Lessing atento agraves necessidades de uma burguesia em

ascensatildeo que natildeo se identificava mais com as concepccedilotildees aristocraacuteticas do modelo de

teatro francecircs e imbuiacutedo na construccedilatildeo do projeto de formaccedilatildeo cultural de uma naccedilatildeo

fragmentada oferece atraveacutes de suas interpretaccedilotildees uma seacuterie de elementos que estaratildeo

presentes nas consideraccedilotildees de pensadores posteriores Dentre estes elementos podemos

destacar as seguintes uma discussatildeo acerca dos conceitos de mimese temor

compaixatildeo catarse a defesa da utilizaccedilatildeo de caracteres mistos a liberdade do gecircnio

ante as regras o enaltecimento dos teatros espanhol e inglecircs principalmente de

Shakespeare

38

Ao tratarmos do referido projeto de um teatro alematildeo e tambeacutem do

classicismo germacircnico dois nomes ainda satildeo fundamentais para sua formaccedilatildeo bem

como eacute incontestaacutevel sua influecircncia sobre Schopenhauer e o jovem Nietzsche19

satildeo

eles Goethe e Schiller O primeiro deles maior dos poetas do classicismo germacircnico

foi um ampliador do projeto Winckelmanniano ldquoPois Goethe pensa o ideal de beleza

natildeo soacute em relaccedilatildeo agrave pintura e agrave escultura mas tambeacutem e principalmente em relaccedilatildeo agrave

poesia ou agrave arte dramaacutetica ampliando as ideacuteias de Winckelmann nesse domiacutenio como

teoacuterico e como criador de obras teatraisrdquo (Machado 2006 14) Seu classicismo

impresso em seus textos teoacutericos e na forma e conteuacutedo de diversas de suas produccedilotildees

literaacuterias eacute o auge do projeto Winckelmanniano Podemos ver na esteira de Machado

(2006 14-22) que o ideal de beleza proposto por Winckelmann eacute ainda o que domina a

noccedilatildeo Goetheana dos gregos e eacute apoiado neste ideal que o poeta interpreta a arte do

mundo helecircnico e a apresenta como um exemplo para a arte de seu tempo Ressaltamos

poreacutem que dada a sua extrema heterogeneidade como nos adverte Butler (1958 85)

encontrar um senso de harmonia interna no todo da obra goetheana eacute tarefa tatildeo incerta

como determinar o grau de sua influecircncia no pensamento de nossos filoacutesofos No que se

refere a Schopenhauer entretanto natildeo podemos deixar de ressaltar que sua convivecircncia

com o poeta foi norteada pelas discussotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas que ocupavam o palco

de seus estudos agrave eacutepoca Goethe dedicou vinte anos de sua vida ao estudo das cores e

sua obra Doutrina das cores eacute o resultado desta investigaccedilatildeo Ela atraiu o interesse do

jovem Schopenhauer que apoacutes alguns encontros com Goethe dedicou-se a escrever a

sua proacutepria teoria que divergia em diversos pontos da teoria do poeta fato que marcou o

fim da relaccedilatildeo amistosa dos mesmos Sobre este periacuteodo de convivecircncia

19

De acordo com Martin (1996) a obra desenvolvida por Nietzsche enquanto escritor e pensador eacute

demasiado complexa para ser reduzida ou atribuiacuteda a determinada influecircncia Entretanto em uma

estatiacutestica crua podemos ter o vislumbre desta influecircncia como se segue ldquoSchopenhauer eacute referenciado

394 vezes na obra de Nietzsche Wagner 327 vezes a Goethe existem 311 menccedilotildees Schiller encontra-se

em nono lugar com 126 menccedilotildeesrdquo (Martin 1996 5)

39

especificamente sobre o episodio citado Goethe vai escrever mais tarde conforme

citaccedilatildeo de Safranski

O Dr Schopenhauer foi para mim um amigo benevolente

Estivemos de acordo em muitas coisas mas foi impossiacutevel evitar ao final

um certo distanciamento como dois amigos que ateacute certo momento

caminharam juntos se datildeo a matildeo para despedir pois querem dirigir-se um

ao norte outro ao sul perdendo-se rapidamente de vista um ao outro

(apud Safranski 1991 265)

Ainda na esteira do movimento de estabelecimento de um projeto

artiacutestico nacional encontramos Schiller que ao lado de Goethe foi o responsaacutevel pelas

maiores obras do classicismo literaacuterio de Weimar Para o estudo em questatildeo o que mais

nos interessa em sua obra eacute o periacuteodo no qual antes do contato com Goethe Schiller

produz seus escritos teoacutericos sobre a trageacutedia Estes estudos podem ser considerados

em uma perspectiva histoacuterica como uma ponte entre a interpretaccedilatildeo da trageacutedia nos

moldes puramente aristoteacutelicos e a trageacutedia vista enquanto forma de arte que para

atingir o efeito dela esperado deve refletir a condiccedilatildeo traacutegica do homem pensada com

base em elementos retirados da filosofia moral e da esteacutetica kantiana Em seus textos

teoacutericos sobre a poesia traacutegica pertencentes ao periacuteodo que Schiller assume ter estado

sob influecircncia da filosofia kantiana ele descreve a trageacutedia como expressatildeo do sublime

ndash conceito extraiacutedo da criacutetica kantiana do juiacutezo ndash como a representaccedilatildeo sensiacutevel da

dicotomia entre a liberdade moral a vontade individual (vontade tomada enquanto

faculdade de pensar e agir livremente) por um lado e a necessidade natural e instintiva

por outro Vemos pela primeira vez em Schiller a utilizaccedilatildeo de categorias filosoacuteficas

kantianas na elaboraccedilatildeo de uma teoria da trageacutedia o que teraacute continuidade com as

teorias do idealismo absoluto e a do proacuteprio Schopenhauer Este eacute um momento

extremamente importante devido ao fato de marcar toda a reflexatildeo futura sobre o tema

ao fundar o deslocamento de uma interpretaccedilatildeo poeacutetica da trageacutedia baseada em

40

comentaacuterios da obra aristoteacutelica para uma interpretaccedilatildeo do traacutegico enquanto fenocircmeno

que descreve a situaccedilatildeo do homem no mundo De acordo com Machado ldquoEacute do

encontro de um grande dramaturgo como Schiller com a filosofia de Kant -

principalmente a sua eacutetica considerada como uma filosofia da liberdade e sua

esteacutetica no que diz respeito agrave teoria do juiacutezo sobre o sublime ndash que nasce a primeira

filosofia do traacutegico uma reflexatildeo filosoacutefica original que criou um tipo novo de

pensamento sobre a trageacutediardquo (Machado 2006 54) Na teoria schopenhaueriana da

trageacutedia podemos ver caracteriacutesticas da teoria schilleriana Primeiramente a presenccedila

marcante da influecircncia kantiana no que se refere ao sublime Em segundo lugar a

leitura da trageacutedia enquanto instrumento para a percepccedilatildeo de uma ordem moral do

mundo Tais caracteriacutesticas seratildeo aprofundadas no capiacutetulo posterior Vale antecipar que

na obra do jovem Nietzsche poderemos ver a exaltaccedilatildeo de Schiller em sua tentativa de

compreensatildeo do mundo helecircnico aleacutem do elogio agrave teoria schilleriana do coro Veremos

entretanto uma criacutetica acirrada no que se refere ao projeto de um teatro enquanto

instituiccedilatildeo moral

Neste capiacutetulo foram delineadas as principais influecircncias filosoacuteficas que

alicerccedilaram o sistema schopenhaueriano bem como esboccedilaram-se as diversas teorias

artiacutesticas que surgiram no periacuteodo em questatildeo teorias estas que propuseram mateacuteria

para a formaccedilatildeo do pensamento de nossos filoacutesofos A partir da cisatildeo entre fenocircmeno e

noumeno proposta por Kant e sua primeira criacutetica Schopenhauer elabora as matrizes de

seu sistema e para ilustraacute-lo encontra apoio na cosmologia platocircnica e no pensamento

oriental Vimos ainda que sua teoria esteacutetica eacute alimentada pela frequumlentaccedilatildeo agraves

categorias apresentadas por artistas teoacutericos e criacuteticos de arte de seu periacuteodo Por seu

turno vimos com Winckelmann a origem do estudo sobre os gregos e sua arte aleacutem do

estabelecimento destes como um modelo para a arte alematilde projeto este que foi

41

retomado por Lessing que por sua vez intensificou o estudo e propocircs um modelo de um

teatro nacional independente projeto que seraacute mais tarde revisitado e aprofundado por

Goethe e Schiller Esta apresentaccedilatildeo de influecircncias eacute imprescindiacutevel para identificarmos

a origem de certos elementos que satildeo fundamentais ao entendimento da proacutepria doutrina

schopenhaueriana tais como o caraacuteter moral de sua teoria esteacutetica sua preocupaccedilatildeo

com o estabelecimento de limite entre as artes sua interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo da poeacutetica

sua utilizaccedilatildeo de conceitos esteacuteticos kantianos (sublime belo e desinteresse) sua

apreciaccedilatildeo das obras modernas seu reconhecimento da produccedilatildeo claacutessica seu desprezo

agrave filosofia de seu tempo Eacute tambeacutem atraveacutes do mapeamento aqui feito de algumas de

suas influecircncias mesmo que brevemente apontado que poderemos mais tarde

identificar alguns dos aspectos originais e singulares de sua teoria

Quanto agraves influecircncias presentes na teoria da trageacutedia do jovem Nietzsche

apontaremos complementos no capiacutetulo correspondente Eacute imprescindiacutevel dar destaque

no que se refere agrave obra nietzscheana agrave sua formaccedilatildeo filoloacutegica ao seu conviacutevio com

Richard Wagner e agrave sua leitura do proacuteprio Schopenhauer - e isto seraacute feito

posteriormente Esperamos ter deixado claro ateacute aqui que diferentemente de Zaratustra

Nietzsche natildeo desceu simplesmente de uma montanha mas faz parte de uma tradiccedilatildeo

histoacuterica assim como Schopenhauer e que a contextualizaccedilatildeo de suas teorias eacute

fundamental para a identificaccedilatildeo dos elementos ali presentes que singularmente se

originaram do sistema metafiacutesico da Vontade

42

2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU

SUBSTRATO METAFIacuteSICO

ldquoOra se todo mundo como representaccedilatildeo eacute

a visibilidade da Vontade a arte eacute o

clareamento dessa visibilidade a cacircmera

obscura que mostra os objetos mais

puramente permitindo-nos melhor abarcaacute-

los e compreendecirc-los eacute o teatro dentro do

teatro a peccedila dentro da peccedila em Hamletrdquo

(Schopenhauer)

Utilizando-se de uma metaacutefora retirada do Eacutedipo de Soacutefocles Schopenhauer nos

oferece um exemplo da caracteriacutestica de conexatildeo interna dos temas abordados em sua

obra20

ldquo minha filosofia eacute como a Tebas de cem portas desde todos os lados se pode

entrar e atraveacutes de todos se pode chegar por um caminho direto ateacute o centrordquo

(Schopenhauer 2002 4) Tendo em vista que nosso objetivo neste capiacutetulo eacute apresentar

a teoria schopenhaueriana da trageacutedia e seus fundamentos filosoacuteficos utilizaremo-nos

desta porta para termos acesso ao sistema schopenhaueriano Procuraremos percorrer o

20

Barboza define bem esta caracteriacutestica marcante da filosofia schopenhaueriana ldquoSchopenhauer eacute o

filoacutesofo da organicidade Procura-a porque com ela onde quer que se esteja no seu sistema estar-se-aacute

em toda parte O todo conteria as partes e seria contido por elas De uma metafiacutesica da efetividade se vai

para uma do belo desta para a da eacutetica que por sua vez pode remeter agrave muacutesica por seu turno a nos

enviar para a efetividade numa por assim dizer circularidade virtuosa A unidade natildeo se perde do

horizonte de observaccedilatildeordquo (Barboza 2001 137)

43

substrato metafiacutesico sustentador da teoria do traacutegico schopenhaueriana e perceber assim

a conectividade interna existente entre sua cosmologia sua teoria esteacutetica e sua eacutetica

De posse deste meacutetodo procuraremos destacar os conceitos fundamentais da teoria

traacutegica e de sua visatildeo de mundo que viratildeo posteriormente se fazer presentes tambeacutem

na obra do jovem Nietzsche

21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo

Agrave descriccedilatildeo das artes poeacuteticas Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 51 do primeiro

volume e o capiacutetulo 37 do segundo volume de sua obra principal Tais descriccedilotildees

encontram-se por sua vez ao final dos trechos dedicados agrave teoria esteacutetica (livro III de

MVR e sus complementos) e finalizam seus apontamentos do que podemos chamar na

esteira de Young (2005) das artes natildeo-musicais21

Em ambos os casos a teoria da

trageacutedia estaacute localizada ao final da apresentaccedilatildeo Esta localizaccedilatildeo juntamente com as

diversas citaccedilotildees e exemplos retirados de peccedilas traacutegicas das quais o filoacutesofo se utiliza ao

longo de seu trabalho nos permite ver a importacircncia da arte traacutegica para Schopenhauer

Em sua teoria artiacutestica existe uma hierarquizaccedilatildeo das artes que leva em consideraccedilatildeo a

capacidade de cada uma em apresentar um grau especiacutefico de objetivaccedilatildeo da vontade

Na cosmologia schopenhaueriana a vontade essecircncia do mundo identificada como

sendo a coisa-em-si kantiana manifesta-se (torna-se objeto de conhecimento) atraveacutes de

diversos graus ndash que exprimem a nitidez com que a vontade se manifesta para o

observador - representados pelos reinos da natureza e finalmente pelo homem Desta

forma ela se objetivaria no mundo inorgacircnico atraveacutes das forccedilas magneacuteticas e da

gravidade no mundo vegetal atraveacutes das funccedilotildees orgacircnicas no mundo animal atraveacutes

21

Como veremos mais adiante a muacutesica eacute uma exceccedilatildeo no sistema das artes schopenhaueriano pois natildeo

se relaciona a uma objetivaccedilatildeo da vontade mas expressa a proacutepria vontade e desta forma natildeo figura na

sistematizaccedilatildeo hieraacuterquica

44

dos instintos e dos motivos assim como o faz no homem A classificaccedilatildeo das artes

corresponde portanto a esta hierarquizaccedilatildeo cosmoloacutegica de objetivaccedilatildeo da vontade22

Sendo assim a arquitetura e a hidraacuteulica mostram a objetivaccedilatildeo da vontade no seu grau

mais baixo ao expor o jogo das forccedilas que caracterizam a mateacuteria tais como a gravidade

rigidez dureza resistecircncia luz A jardinagem e a pintura da natureza satildeo as formas

artiacutesticas cujo fim eacute a exposiccedilatildeo da objetivaccedilatildeo da vontade que se manifesta no reino

vegetal A pintura de animais encontra-se em um niacutevel superior pois o reino animal

objeto de sua representaccedilatildeo expotildee de forma mais evidente a vontade objetivada Temos

ainda as pinturas de retratos a pintura histoacuterica e a escultura que das artes plaacutesticas

formam a categoria superior cujo objeto eacute a exposiccedilatildeo da vontade no grau mais elevado

de sua cognoscibilidade o homem Esta mesma exposiccedilatildeo a do homem eacute tambeacutem o

objeto da arte poeacutetica que agrave diferenccedila das artes que fazem sua exposiccedilatildeo de modo

puramente intuitivo eacute auxiliada pela imaginaccedilatildeo No aacutepice das artes poeacuteticas

encontramos a trageacutedia a uacuteltima arte natildeo-musical a ser descrita A arte traacutegica eacute aquela

que possui a caracteriacutestica de por sua natureza representar de forma mais ilustrativa a

objetivaccedilatildeo mais desenvolvida da vontade a vida humana e suas relaccedilotildees Veremos

mais tarde que aleacutem de corresponder agrave hierarquia de objetivaccedilatildeo da vontade mais

desenvolvida a arte traacutegica ocupa um lugar especial na filosofia schopenhaueriana

devido agrave ldquograndeza de seu efeitordquo (Schopenhauer 2005 333) Diante do exposto

podemos depreender que a arte possui na filosofia schopenhaueriana um papel

cognitivo e a trageacutedia por sua vez eacute a forma artiacutestica que por sua competecircncia cognitiva

ocupa o primeiro lugar entre as artes natildeo musicais

22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo

22

Vemos aqui um exemplo da citada inter-conectividade existente no sistema schopenhaueriano tendo

em vista que a elaboraccedilatildeo de sua classificaccedilatildeo artiacutestica obedece ao construto metafiacutesico do livro II de

MVR e sua consequumlente cosmologia

45

A tarefa a que se propotildee o sistema schopenhaueriano eacute a decifraccedilatildeo do ldquoenigma

do mundordquo ie encontrar uma resposta agrave pergunta o que eacute o mundo Esta tarefa tem

origem no idealismo subjacente na primeira criacutetica kantiana e de certa forma era uma

tarefa da qual estava imbuiacutedo todo o pensamento filosoacutefico daquele periacuteodo ie por

decifraccedilatildeo do enigma do mundo podemos entender a decifraccedilatildeo da coisa-em-si

kantiana Temos daiacute o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer o idealismo

transcendental do mundo fenomecircnico Sob o ponto de vista da representaccedilatildeo o mundo eacute

objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito agraves condiccedilotildees a priori do

entendimento que para o filoacutesofo satildeo as categorias do espaccedilo do tempo e da

causalidade

Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das formas a priori do entendimento eacute

interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos advindos da filosofia Platocircnica e oriental

como um mundo ilusoacuterio Conforme a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana Platatildeo jaacute

identificava esta caracteriacutestica ilusoacuteria do mundo em sua contraposiccedilatildeo teoacuterica entre o

mundo fiacutesico onde o devir impossibilitava a apreensatildeo do ser e o mundo das ideacuteias

onde haveria o verdadeiro encontro com o ser das coisas Ainda de acordo com a

interpretaccedilatildeo de Schopenhauer os livros sagrados indianos Vedas e Puranas faziam

esta distinccedilatildeo atraveacutes da noccedilatildeo do veacuteu de maia a consciecircncia humana seria envolvida

por um veacuteu o que resultaria em uma visatildeo oniacuterica do mundo e impediria assim a

percepccedilatildeo da realidade

Entretanto o mundo pode ainda ser conhecido atraveacutes de um segundo ponto de

vista como vontade Este eacute o ponto de vista que Schopenhauer utiliza-se para decifrar a

incognosciacutevel coisa-em-si kantiana Percorrendo uma ldquovia subterracircneardquo de modo

imanente Schopenhauer identifica nas accedilotildees do corpo bioloacutegico os atos da vontade

46

enquanto coisa-em-si e de forma analoacutegica a estabelece como essecircncia governante do

mundo Faz-se necessaacuterio aqui ressaltar como o fazem Brum (1998 23) e Rosset23

que

natildeo devemos interpretar esta analogia como uma visatildeo antropomoacuterfica do mundo Essa

essecircncia do mundo encontrada empiricamente natildeo eacute todavia um ente racional uma

ldquoalma do mundordquo Se por um lado o mundo fenomecircnico eacute aquele onde o princiacutepio de

razatildeo24

estabelece as normas de funcionamento um mundo natildeo-fenomecircnico mundo em

si enquanto vontade se expressa por sua alogicidade irracionalidade Grundlosigkeit

(falta de fundamento) Essa essecircncia irracional que manifesta-se nos diversos reinos e

indiviacuteduos do mundo eacute a raiz da visatildeo pessimista da existecircncia que de acordo com o

filoacutesofo pode ser a todo momento constatada empiricamente

As diversas manifestaccedilotildees da vontade suas objetidades carregam inerentemente

a sua iacutendole puro impulso cego vontade de vida insaciabilidade Notadamente o

mundo fenomecircnico objetivaccedilatildeo da vontade expressa a essecircncia desta vontade atraveacutes

de um conflito permanente Desenha-se um cenaacuterio de batalha onde cada objetidade da

vontade cada ser do mundo eacute orientado por sua essecircncia irracional desguarnecida de

qualquer telos ldquoAssim a vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria

carne e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimentordquo (Schopenhauer MVR 211) Este

fundamento ontoloacutegico a vontade determina assim o caraacuteter absurdo que a vida

humana toma na filosofia schopenhaueriana eterno esforccedilo carente de ordem ou

finalidade O ldquomecanismo internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens

marionetes guiados pela carecircncia

[]nenhuma satisfaccedilatildeo todavia eacute duradoura mas antes sempre eacute um

ponto de partida de um novo esforccedilo o qual por sua vez vemos travado em

toda parte de diferentes maneiras em toda parte lutando e assim portanto

23

[] natildeo haacute que transpor a experiecircncia da motivaccedilatildeo humana ao conjunto das forccedilas naturais para

compreender o segredo da natureza senatildeo o contraacuterio transpor o misteacuterio das forccedilas naturais ao conjunto

das motivaccedilotildees psicoloacutegicas para desvendar-se o segredo da vontade humana (Rosset 2005 31) 24

Princiacutepio tratado na tese de doutoramento de Schopenhauer SRQPRS bem como no livro I de MVR

O princiacutepio estabelece que todo acontecimento possui uma causa uma razatildeo de ser

47

sempre como sofrimento natildeo haacute nenhum fim uacuteltimo do esforccedilo portanto natildeo

haacute nenhuma medida e fim do sofrimento (Schopenhauer 2005 399)

Se carecircncia vontade e desejo satildeo a tocircnica da vida humana na maior parte do tempo e

satildeo experimentados como dor e infelicidade a felicidade por sua vez eacute definida

negativamente como um momento de ausecircncia daquela dor

Sentimos a dor e natildeo a ausecircncia da dor a inquietude e natildeo a

tranquumlilidade o medo e natildeo a seguranccedila Sentimos desejo como quando

temos fome e sede entretanto ao alimentarmo-nos estas sensaccedilotildees

deixam de existir para noacutes (MVR II 630)

Toda satisfaccedilatildeo momentacircnea de um querer eacute imediatamente suprimida por outro querer

ou se perdurar por algum tempo por menor que seja este transforma-se em teacutedio Um

ldquopecircndulo entre a dor e teacutediordquo eacute a definiccedilatildeo que Schopenhauer propotildee para a vida

humana Assim se daacute tambeacutem com a sauacutede a juventude e a liberdade Todos satildeo

conceitos definidos negativamente soacute os conhecemos atraveacutes de sua ausecircncia Este afatilde

por prolongar e conservar a vida essecircncia iacutentima de cada indiviacuteduo natildeo eacute contudo

resultado de uma observaccedilatildeo objetiva da mesma de um conhecimento que eleja a vida

como algo de valor a ser mantido e preservado e portanto os ldquo[] seres natildeo satildeo

atraiacutedos por algo que se lhes apresenta mas satildeo empurrados a elerdquo (MVR II 398) A

luta eterna observada nos diversos reinos da natureza a busca por alimento o esforccedilo da

procriaccedilatildeo se comparados aos momentos fugazes de satisfaccedilatildeo fazem da vida ldquoum

negoacutecio cujos investimentos natildeo cobrem nem de longe os custosrdquo (MVR II 399)

Em todas estas consideraccedilotildees se faz claro que a vontade de viver

natildeo eacute a consequecircncia do conhecimento da vida natildeo se trata de uma

bdquoconclusio ex praemissis‟ nem em geral eacute algo secundaacuterio antes

contudo eacute o primeiro e incondicionado a premissa de todas as premissas

e precisamente por isso aquilo do que haacute de partir a filosofia pois a

vontade de viver natildeo se apresenta como a consequumlecircncia do mundo senatildeo

o mundo como consequumlecircncia da vontade de viver (MVR II 405)

Um dos pontos essenciais a ser verificado nesta visatildeo de mundo eacute o

destronamento da razatildeo O ceacuterebro oacutergatildeo da razatildeo eacute o resultado de um esforccedilo da

48

vontade em seu percurso de objetivaccedilatildeo A racionalidade humana estaacute a serviccedilo da

vontade que eacute em sua essecircncia grundlos A razatildeo eacute ferramenta para que o homem

enquanto objetidade da vontade consiga satisfazer a seus anseios Em oposiccedilatildeo agrave

filosofia racionalista de entatildeo onde o ldquoreal eacute o racionalrdquo assistimos ao surgimento de

uma filosofia irracionalista das forccedilas inconscientes onde a razatildeo na medida em que eacute

mecanismo da vontade estaacute sempre a serviccedilo desta O comportamento humano eacute

naturalmente egoiacutesta voltado para os proacuteprios interesses e estes por sua vez satildeo

expressatildeo desta vontade aloacutegica desprovida de telos Schopenhauer se mostrava

consciente da singularidade desta sua biparticcedilatildeo do ego e da consequumlente visatildeo de

mundo que ela trouxe agrave luz e enfatizou isto em seus manuscritos berlinenses ldquo[] a

divisatildeo da mente o eu em duas partes diferentes - em vontade como parte essencial e

primaacuteria e em intelecto como secundaacuteria - eacute o grande princiacutepio e meacuterito de minha

filosofia e tambeacutem a principal diferenccedila dos demais sistemasrdquo (MR III 328)

Temos entatildeo os dois pontos de vista do mundo que fundamentam a visatildeo de

Schopenhauer e que posteriormente seratildeo transformados pela teoria nietzscheana da

trageacutedia nos dois impulsos da natureza o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco O primeiro deles eacute o

mundo da individualidade da pluralidade regido pelo que Schopenhauer vai chamar

utilizando-se de um termo retirado da escolaacutestica de principium individuationis

Nesse sentido servindo-me da antiga escolaacutestica denomino

tempo e espaccedilo pela expressatildeo principium individuationis que peccedilo para

o leitor guardar para sempre Tempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais

aquilo que eacute uno e igual conforme a essecircncia e o conceito aparece como

pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem (MVR 171)

No segundo toto genere diferente do primeiro existe a vontade una indivisiacutevel natildeo

submetida ao princiacutepio de razatildeo e por isso sem fundamento

Em apoio a sua tese Schopenhauer invoca ao final do capiacutetulo 46 (Sobre a

nulidade e o sofrimento da vida) dos complementos de MVR a opiniatildeo de diversos

49

pensadores dentre eles Heroacutedoto Platatildeo Teoacutegnis Homero os tragedioacutegrafos gregos

Shakespeare Byron Voltaire Rousseau Faz-se importante neste momento ressaltar que

o filoacutesofo aponta a invenccedilatildeo da trageacutedia pelos gregos como uma expressatildeo desta visatildeo

de mundo ponto de vista que como veremos tambeacutem seraacute adotado pelo primeiro

Nietzsche

Ante tudo mencionarei que os gregos por mais distantes que

estivessem da visatildeo de mundo cristatilde e da alta Aacutesia e por muito que se

mantiveram sob o ponto de vista da afirmaccedilatildeo da vontade se fizeram

profundamente impressionados pela miseacuteria da existecircncia Isso eacute

demonstrado pela invenccedilatildeo da trageacutedia obra deles (MVR II 640)

23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana

Existe poreacutem uma forma de conhecimento que eacute ndash agrave diferenccedila daquela

subordinada ao princiacutepio de razatildeo que percebe os objetos em sua relaccedilatildeo com os outros

objetos do espaccedilo-tempo ndash uma forma mais universal pois mostra o objeto em sua

caracteriacutestica mais geral qual seja a de ser objeto para o sujeito A esta forma de

conhecimento Schopenhauer associa a apreciaccedilatildeo esteacutetica O seu objeto eacute a ideacuteia

platocircnica25

um grau determinado de objetivaccedilatildeo da coisa-em-si

Os diferentes graus de objetivaccedilatildeo da Vontade expressos em

inumeraacuteveis indiviacuteduos e que existem como seus protoacutetipos

inalcanccedilaacuteveis ou formas eternas das coisas que nunca aparecem no

tempo e no espaccedilo meacutedium do indiviacuteduo mas existem fixamente natildeo

submetidos a mudanccedila alguma satildeo e nunca vindo-a-ser enquanto as

coisas nascem e perecem sempre vecircm-a-ser e nunca satildeo os GRAUS DE

OBJETIVACcedilAtildeO DA VONTADE ia dizer natildeo satildeo outra coisa senatildeo as

IDEacuteIAS DE PLATAtildeO (MVR 191)

Esta instacircncia do conhecimento eacute alcanccedilada intuitivamente pela contemplaccedilatildeo

esteacutetica da natureza ou pela facilitaccedilatildeo de uma obra de arte Desta forma as obras de

25

Conforme o filoacutesofo ldquo A expressatildeo mais breve e sucinta daquele famoso dogma platocircnico foi dada por

Dioacutegenes Laeacutercio (II 12) Platatildeo ensina que as ideacuteias da natureza existem como protoacutetipos jaacute as demais

coisas apenas se assemelham a elas e satildeo suas coacutepiasrdquo (MVR 191)

50

arte na teoria schopenhaueriana satildeo uma exposiccedilatildeo destes graus de objetivaccedilatildeo da

vontade as ideacuteias Ao contraacuterio da criacutetica agrave arte presente na repuacuteblica platocircnica - onde a

arte seria uma coacutepia mais imperfeita da ideacuteia por retratar o mundo fenomecircnico sua

coacutepia direta - Schopenhauer aproxima as obras artiacutesticas das ideacuteias eternas as define

como suas expressotildees diretas Contudo a intuiccedilatildeo das ideacuteias exige um estado de

consciecircncia diferente do estado comum Neste uacuteltimo o aparelho cognitivo sob a eacutegide

da vontade estaacute voltado para a realizaccedilatildeo dos interesses individuais e entatildeo se

movimenta no mundo guiado por estes interesses ldquoCaso entretanto a Ideacuteia deva de

alguma maneira tornar-se conhecimento e ser conhecida pelo sujeito entatildeo isso soacute

pode ocorrer graccedilas agrave supressatildeo da individualidade no sujeito que conhecerdquo (MB 30)

A forma artiacutestica de conhecimento cujo possuidor eacute o denominado gecircnio estaacute

associada a um desprendimento das reacutedeas da vontade O gecircnio eacute entatildeo aquele que livre

dos interesses da vontade percebe as ideacuteias por traacutes dos objetos alheio aos princiacutepios

de razatildeo e de individuaccedilatildeo e traduz este objeto na obra de arte O observador esteacutetico eacute

portanto um partiacutecipe da genialidade na medida em que intui a ideacuteia por traz do objeto

observado conforme tambeacutem ao seu grau de desinteresse26

Durante a apreciaccedilatildeo

esteacutetica o homem se vecirc livre momentaneamente daquela parte de si que eacute a causadora

de todo o sofrimento individual e coletivo a vontade para transformar-se em um ldquopuro

sujeito de conhecimentordquo Este estado de satisfaccedilatildeo decorrente da suspensatildeo da vontade

individualizada eacute o sentimento do belo

Aquilo que se poderia nomear o lado mais belo e a pura alegria

da vida precisamente porque nos arranca da existecircncia real e nos

transforma em espectadores desinteressados diante dela eacute o puro

conhecimento que permanece alheio a todo querer eacute a fruiccedilatildeo do belo a

alegria autecircntica na arte Mas mesmo isso requer dispositivos raros e

cabe apenas a pouquiacutessimos e mesmo para estes eacute um sonho

passageiro (MVR 404)

26

Vemos nesta forma de associaccedilatildeo entre conhecimento e interesse mais uma heranccedila kantiana no caso

provinda da definiccedilatildeo de belo da criacutetica da faculdade de juiacutezo

51

- - - - - - - - - -

Ao descrever a apreciaccedilatildeo artiacutestica como um ato cognitivo Schopenhauer

preocupa-se em diferenciaacute-la do conhecimento cientiacutefico De fato boa parte das

consideraccedilotildees sobre a arte eacute dedicada ao esclarecimento desta diferenccedila

Podemos por conseguinte definir a arte como o modo de

consideraccedilatildeo das coisas independente do princiacutepio de razatildeo em oposiccedilatildeo

justamente agrave consideraccedilatildeo que o segue que eacute o caminho da experiecircncia e

da ciecircncia O modo de consideraccedilatildeo que seque o princiacutepio de razatildeo eacute o

racional o uacutenico que vale e que auxilia na vida praacutetica e na ciecircncia o

modo apartado do conteuacutedo do princiacutepio de razatildeo eacute o genial o uacutenico que

vale e que auxilia na arte (MB 59)

No caso da trageacutedia cujo objetivo eacute o conhecimento do homem e de suas relaccedilotildees a

ciecircncia que mais se assemelha a esta forma artiacutestica seria a histoacuteria Esta natildeo tem como

objetivo a demonstraccedilatildeo da essecircncia do homem em sua forma atemporal ou seja a

demonstraccedilatildeo daquilo que fundamenta toda accedilatildeo humana independente dos

acontecimentos empiacutericos

[ ]toda ciecircncia no sentido proacuteprio do termo compreendida como

conhecimento sistemaacutetico guiado pelo fio condutor do princiacutepio de

razatildeo parte sempre de dois dados baacutesicos um deles sem exceccedilatildeo eacute o

princiacutepio de razatildeo em uma de suas figuras como oacuterganon outro eacute o

objeto especiacutefico de cada uma delas enquanto problema (Schopenhauer

MVR 73)

Desta forma a histoacuteria teria a lei de motivaccedilatildeo e o os fatos humanos como oacuterganon e

problemas respectivamente Entretanto interessa a Schopenhauer um conhecimento

mais universal que soacute pode ser apresentado pela arte e que aponta por sua proximidade

agrave essecircncia daquilo que eacute a uma ldquoiacutendole imutaacutevelrdquo das manifestaccedilotildees

Podemos ver entatildeo que sendo consideradas como meios para o

conhecimento da essecircncia da humanidade arte poeacutetica e histoacuteria possuem todavia

objetos de conhecimento diferentes A primeira quando produzida pelo verdadeiro

gecircnio tenciona manifestar a ideacuteia por traacutes destes conceitos a ideacuteia de homem de

humanidade intuitivamente independentemente do princiacutepio de razatildeo do devir como

52

objeto puro de conhecimento alheio agrave corrente dos motivos em suas caracteriacutesticas

essenciais atemporais A histoacuteria por sua vez segue o rastro do princiacutepio de razatildeo

procurando apresentar o fenocircmeno humano em suas relaccedilotildees descrever-lhe em suas

situaccedilotildees particulares individuais empiacutericas Nas palavras de Schopenhauer

Arte e ciecircncia tecircm em uacuteltima instacircncia o mesmo estofo a saber

justamente o mundo tal como ele se posta diante de noacutes ou antes uma

parte destacada dele quanto ao todo do mundo soacute a filosofia o

considera Contudo a grande diferenccedila entre ciecircncia e arte reside na

maneira como elas consideram o mundo e trabalham seu estofo Tal

oposiccedilatildeo pode ser indicada com uma palavra a ciecircncia considera os

fenocircmenos do mundo seguindo o fio condutor do princiacutepio de razatildeo ao

passo que a arte coloca totalmente de lado o princiacutepio de razatildeo

independente dele para que assim a ideacuteia entre em cena

(SCHOPENHAUER MB 57)

Podemos notar que a valorizaccedilatildeo do que eacute imutaacutevel alheio agrave idealidade do tempo eacute a

raiz da valorizaccedilatildeo do conhecimento artiacutestico frente ao histoacuterico Este uacuteltimo natildeo visa o

acesso aos modelos eternos pois seu objeto satildeo os acontecimentos individuais do

mundo fenomecircnico que satildeo eventos meramente aparentes se considerarmos a

idealidade do tempo O que se manifesta no fluxo temporal do mundo fenomecircnico satildeo

sempre as mesmas formas eternas as ideacuteias entretanto com roupagens diferentes o

mesmo homem enquanto objetivaccedilatildeo da vontade a mesma humanidade Onde quer que

seja e em qualquer momento especiacutefico sua essecircncia eacute a mesma e esta essecircncia eacute o que

deve ser alvo de uma compreensatildeo privilegiada de entendimento e natildeo as suas diversas

manifestaccedilotildees Por este motivo Schopenhauer deixando explicito o seu chamado anti-

historicismo afirma que ldquose algueacutem jaacute lera Heroacutedoto jaacute estudara bastante histoacuteria e

efeitos filosoacuteficos Pois laacute jaacute estaacute tudo o que compotildee a posterior histoacuteria mundial a

atividade o obrar o sofrimento e o destino do gecircnero humano (Schopenhauer MVR

II 496) Podemos notar claramente a oposiccedilatildeo entre a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana

da histoacuteria e as tendecircncias de seu tempo principalmente presentes na filosofia de

Hegel Este de acordo com a criacutetica de Schopenhauer ignorando a filosofia critica de

53

Kant toma o fenocircmeno histoacuterico como coisa em si ao atribuir-lhe uma unidade de

consciecircncia Entretanto unidade de consciecircncia eacute um atributo dos indiviacuteduos e natildeo do

gecircnero humano Estas filosofias de acordo com o Schopenhauer satildeo frutos do realismo

otimista queldquo tomam o mundo como perfeitamente real e potildeem como fim do mesmo

uma miseraacutevel felicidade terrena (Schopenhauer MVR II 495)

- - - - - - - - - -

Colocando de lado o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e mirando-se no

conhecimento da ideacuteia imutaacutevel atemporal encontramos a trageacutedia como fenocircmeno que

apresenta agrave intuiccedilatildeo o homem e sua condiccedilatildeo Eacute a forma de arte que tem como objeto o

grau mais elevado de objetivaccedilatildeo da vontade A intenccedilatildeo do artista traacutegico eacute de acordo

com Schopenhauer transmitir a ideacuteia intuiacuteda tarefa que seraacute bem sucedida de acordo

com a habilidade de utilizaccedilatildeo da teacutecnica artiacutestica por um lado e com a capacidade de

percepccedilatildeo esteacutetica do apreciador por outro O tragedioacutegrafo diferentemente do

historiador que relata os fatos empiacutericos explicitando seus motivos e consequumlecircncias

deve para obter o efeito esperado em sua obra expor uma situaccedilatildeo tal em que o homem

possa manifestar todas as suas potencialidades e dessa forma transmitir ao apreciador

esteacutetico a ideacuteia representada ldquoO poeta expotildee com escolha e intenccedilatildeo caracteres

significativos em situaccedilotildees significativas jaacute o historiador toma aos dois como eles

aparecemrdquo (Schopenhauer MVR 323) A qualidade da obra traacutegica seraacute julgada entatildeo

pela sua capacidade de representaccedilatildeo da ideacuteia de humanidade e Schopenhauer qualifica

as trageacutedias de acordo com esta capacidade Natildeo existe em seu sistema uma

consideraccedilatildeo histoacuterica da produccedilatildeo traacutegica Ele natildeo leva em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees

histoacutericas no que se refere agrave origem ou mesmo quanto ao desenvolvimento desta forma

artiacutestica e a avalia unicamente conforme o seu efeito E neste ponto a trageacutedia apresenta

uma peculiaridade frente agraves demais artes ela eacute a forma de arte que provocaraacute o

54

sentimento do sublime Como vimos o correlato subjetivo de toda apreciaccedilatildeo esteacutetica eacute

o sentimento causado pela anulaccedilatildeo da vontade individual mediante a elevaccedilatildeo ao

estado de puro sujeito de conhecimento O sublime assim como o belo satildeo expressotildees

deste sentimento que se diferenciam unicamente por sua forma

Se tal estado surgiu por si mesmo na medida em que o objeto foi

solicitado e se apresentou ndash e fomos postos sem resistecircncia pelo mero

desaparecer da vontade da consciecircncia no estado do conhecer puro ndash ou

se primeiro foi despertado por elevaccedilatildeo livre consciente sobre a vontade

na medida em que o objeto contemplado tem com esta uma relaccedilatildeo

desfavoraacutevel hostil cuja prossecuccedilatildeo suprimiria a contemplaccedilatildeo ndash aiacute

reside a diferenccedila entre o belo e o sublime (MB 119)

A impressatildeo do sublime eacute portanto uma forma de colocar-se no estado do puro conhecer

ao nos depararmos com o objeto que por sua apresentaccedilatildeo sugere uma ldquorelaccedilatildeo hostilrdquo

com o indiviacuteduo27

Jaacute vimos que a visatildeo de mundo de Schopenhauer identifica a vida humana como

sofrimento infindaacutevel no entanto ao elaborar sua definiccedilatildeo da trageacutedia Schopenhauer

aponta para o desfecho moral de sua obra (livro IV de MVR) e afirma que a trageacutedia

melhor eacute aquela que expotildee a renuacutencia agrave vida O filoacutesofo compara obras contemporacircneas

agraves antigas e afirma sua preferecircncia por estas em decorrecircncia da capacidade que elas tecircm

de provocar esta a renuacutencia agrave vida Vejamos a descriccedilatildeo que Schopenhauer faz da

trageacutedia

No aacutepice da arte poeacutetica tanto no que se refere agrave grandeza do seu

efeito quanto agrave dificuldade da sua realizaccedilatildeo deve-se ver a trageacutedia e de

fato ela assim foi reconhecida Observe-se aqui algo de suma significaccedilatildeo

para toda a nossa visatildeo geral de mundo o objetivo dessa suprema

realizaccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute outro senatildeo a exposiccedilatildeo do lado terriacutevel da vida

27

Vemos na teoria do sublime Schopenhaueriana mais uma vez a influecircncia de Kant Schopenhauer iraacute

identificar duas formas de sublime e utilizar-se-aacute dos termos kantianos ldquosublime dinacircmicordquo e ldquosublime

matemaacuteticordquo para diferenciaacute-los No primeiro o objeto de apreciaccedilatildeo se mostra a princiacutepio uma ameaccedila

ao observador ldquoum poder que suprimiria qualquer resistecircnciardquo(MB 104) No sublime matemaacutetico o

segundo o objeto eacute visto em sua incomensuraacutevel grandiosidade diante da qual o observador infere a sua

infimidade A afinidade entre Schopenhauer e a teoria criacutetica do juiacutezo eacute expressa em sua obra principal

ldquoDe longe o que haacute de mais excelente na criacutetica da faculdade de juiacutezo eacute a teoria do sublime Ela eacute

incomparavelmente mais bem sucedida que a teoria do belo e daacute natildeo apenas como esta o meacutetodo geral

da investigaccedilatildeo mas tambeacutem um trecho do correto caminho de maneira que embora natildeo forneccedila a

soluccedilatildeo propriamente dita do problema chega bem perto delardquo(MVR 660)

55

a saber o inominado sofrimento a miseacuteria humana o triunfo da maldade

o impeacuterio ciacutenico do acaso a queda inevitaacutevel do justo e do inocente E

em tudo isso se encontra uma indicaccedilatildeo significativa da iacutendole do mundo

e da existecircncia Eacute o conflito da Vontade consigo mesma que aqui

desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade entra em

cena de maneira aterrorizante Ele se torna visiacutevel no sofrimento da

humanidade em parte produzido por acaso e erro que se apresentam

como os senhores do mundo e personificados como destino e perfiacutedia os

quais aparecem enquanto intencionalidade em parte advindo da

humanidade mesma por meio dos entrecruzados esforccedilos voluntaacuterios dos

indiviacuteduos e da maldade e perversatildeo da maioria Trata-se de uma uacutenica e

mesma Vontade que em todos vive e aparece cujos fenocircmenos

entretanto combatem entre si e se entredevoram [] Por fim esse

conhecimento no indiviacuteduo purificado e enobrecido pelo sofrimento

mesmo atinge o ponto no qual o fenocircmeno o veacuteu de maia natildeo mais o

ilude Ele vecirc atraveacutes da forma do fenocircmeno do principium

individuationis com o que tambeacutem expira o egoiacutesmo nele baseado Com

isso os ateacute entatildeo poderosos MOTIVOS perdem o seu poder e em vez

deles o conhecimento perfeito da essecircncia do mundo atuando como

quietivo da vontade produz a resignaccedilatildeo a renuacutencia natildeo apenas da vida

mas de toda a vontade de vida mesma (Schopenhauer MVR 333)

Percebemos nesta descriccedilatildeo que a trageacutedia aleacutem de expor a visatildeo de mundo construiacuteda

pelo filoacutesofo tem como fim uacuteltimo provocar um efeito moral no apreciador esteacutetico

qual seja a renuacutencia ao mundo Vejamos entatildeo a relaccedilatildeo entre a visatildeo de mundo

schopenhaueriana o efeito esteacutetico provocado pela trageacutedia e o projeto moral existente

por traacutes de suas teorias

24 A finalidade moral da trageacutedia

Para que possamos perceber a relaccedilatildeo intriacutenseca entre cosmologia metafiacutesica

arte e a eacutetica faz-se necessaacuterio uma pequena excursatildeo sobre esta uacuteltima Que todo o

sistema schopenhaueriano possui um viacutenculo inseparaacutevel com o seu projeto eacutetico eacute fato

que natildeo passa despercebido a seus comentadores Um projeto de juventude eacute descrito

por Safranski (1991 188-198) Young (2006 07 200) Aramayo (2001 56-59) e

Cartwright (Janaway 1999 252) como uma premissa no desenvolvimento da filosofia

56

schopenhaueriana trata-se do projeto de uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Young a descreve

como uma transcendecircncia do mundo ordinaacuterio para o ldquomundo verdadeirordquo Esta

consciecircncia melhor poderia ser experimentada atraveacutes da apreciaccedilatildeo artiacutestica e da

consciecircncia eacutetica ambas originadas do desvelamento de maia Assim Schopenhauer a

descreve conforme citaccedilatildeo de Young (2006 9) ldquopersonalidade e causalidade existem

neste mundo compreensiacutevel temporal sensorial Mas a consciecircncia melhor me leva a

um mundo onde nem personalidade nem sujeito ou objeto existem maisrdquo Safransky

descreve a consciecircncia melhor como um estado semelhante ao ecircxtase miacutestico

Este arrebatamento estaacute livre das coordenadas espaccedilo-temporais

cujo ponto de interseccedilatildeo eacute o eu corporal apartado do espaccedilo do tempo

do eu Os miacutesticos chamam a esta experiecircncia ldquonunc stansrdquo agora

permanente A intensidade deste presente natildeo conhece princiacutepio nem fim

e soacute pode desaparecer porque noacutes desaparecemos dele (Safransky1991

190)

Conforme Aramayo tanto a figura do gecircnio como a do santo satildeo expressotildees do

reconhecimento desta consciecircncia melhor e a filosofia de Schopenhauer pretende-se

uma terceira via que tambeacutem apontaria para este estado de consciecircncia A caracteriacutestica

primordial deste estado eacute o desprendimento dos desejos individuais e o comportamento

virtuoso que adveacutem deste desprendimento Eacute na esteira do entendimento desta

consciecircncia melhor que as bases eacutetico-metafiacutesicas do filoacutesofo foram elaboradas Em

apoio a esta afirmaccedilatildeo Aramayo apresenta duas citaccedilotildees a partir das quais em

momentos distintos de sua vida Schopenhauer apresenta seu projeto de identificaccedilatildeo

entre eacutetica e metafiacutesica Nos escritos de Juventude em 1813 vemos o projeto

Em meu espiacuterito encontra-se em gestaccedilatildeo uma filosofia onde

metafiacutesica e eacutetica devem constituir uma soacute coisa cuja dissociaccedilatildeo eacute tatildeo

errocircnea como agrave da alma e do corpo (Aramayo 2001 41)

Jaacute nos escritos tardios especificamente em seu ensaio de 1836 Sobre a vontade na

natureza veremos Schopenhauer identificar esta uniatildeo

57

Tatildeo soacute esta metafiacutesica que jaacute eacute eacutetica por si soacute ao estar construiacuteda

com esse material primordialmente eacutetico que se supotildee a vontade

constitui real e imediatamente um sustentaacuteculo para a eacutetica em vista de

que poderia haver colocado em minha metafiacutesica o nome de eacutetica (apud

Aramayo 2001 43)

Cartwright aponta ainda na uacuteltima obra schopenhaueriana de 1851 Parerga e

paralipomena a afirmaccedilatildeo de que a ldquosua real filosofia culminou em um ponto de vista

altamente eacutetico-metafiacutesicordquo (Janaway 1999 252)

Na filosofia schopenhaueriana como vimos o indiviacuteduo humano eacute uma

expressatildeo da objetidade da vontade e seu ponto de partida por natureza eacute a satisfaccedilatildeo

manutenccedilatildeo e o prolongamento desta vontade de vida Este estado de consciecircncia onde

todos os esforccedilos estatildeo voltados para a satisfaccedilatildeo da vontade individual eacute a causa de

todo o sofrimento do mundo Aprisionado agrave perspectiva fenomecircnica do mundo o

homem natildeo percebe a unidade da vontade e age de acordo com os motivos estabelecidos

pela sua proacutepria individualidade Para este homem existe uma separaccedilatildeo profunda entre

o proacuteprio eu e os objetos do mundo

Por meio da intuiccedilatildeo que o ceacuterebro efetua a partir dos dados do sentido

e portanto mediatamente conhecemos o proacuteprio corpo como um objeto no

espaccedilo e por meio do sentido interno conhecemos a seacuterie sucessiva de nossos

desejos e atos de vontade que surgem por ocasiatildeo dos motivos externos e

finalmente conhecemos os muacuteltiplos movimentos fortes ou fracos da proacutepria

vontade aos quais todos os sentimentos internos deixam-se reconduzir Isto eacute

tudo pois o conhecer natildeo eacute ele proacuteprio de novo conhecido (Schopenhauer

2001 213)

Eacute deste estado que surge todo o comportamento humano considerado pelo filoacutesofo

como comportamento antimoral Egoiacutesmo eacute o nome dado ao resultado da influecircncia do

princiacutepio de individuaccedilatildeo sobre o comportamento dos homens Este egoiacutesmo chega ao

extremo de o homem considerar-se o centro do mundo e transformar o seu querer em

mandamento para os objetos exteriores ldquoalguns homens seriam capazes de assassinar

um outro soacute para engraxar suas botas com a gordura delerdquo (SFM 124) Nestas

58

condiccedilotildees ldquose fosse dado pois a um indiviacuteduo escolher entre a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo

e a do mundo nem preciso dizer para onde a maioria se inclinariardquo (SFM 121) Da

forma como ocorre com o egoiacutesmo a ilusatildeo fenomecircnica daacute origem a outro sentimento

o oacutedio Estes dois egoiacutesmo e oacutedio satildeo os princiacutepios originadores de todos os viacutecios do

homem Desta leitura pessimista da natureza humana Schopenhauer retira seu conceito

perspectivista das ideacuteias de bem e mal satildeo consideradas boas ou maacutes as coisas que

agradam ou desagradam agrave vontade do indiviacuteduo ldquoPortanto tudo o que eacute favoraacutevel agrave

vontade em alguma de suas exteriorizaccedilotildees e satisfaz seus fins eacute pensado pelo conceito

bom por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectosrdquo (MVR 459)

Este estado eacute definido por Schopenhauer como ldquoafirmaccedilatildeo da vontaderdquo nele o amor-

proacuteprio Eros dita as regras de comportamento Definido o Eros enquanto

fundamentador das accedilotildees antimorais humanas sendo este surgido de uma percepccedilatildeo

subordinada ao principium individuationis entendemos o motivo pelo qual o filoacutesofo

rejeita a validade de qualquer moral baseada em argumentos abstratos

Uma moral sem fundaccedilatildeo portanto um simples moralizar natildeo pode

fazer efeito pois natildeo motiva Uma moral entretanto que motiva soacute pode fazecirc-

lo atuando sobre o amor proacuteprio O que entretanto nasce daiacute natildeo tem valor

moral algum Segue-se assim que mediante moral e conhecimento abstrato em

geral nenhuma virtude autecircntica pode fazer efeito mas esta tem de brotar do

conhecimento intuitivo o qual reconhece no outro indiviacuteduo a mesma essecircncia

que a proacutepria (MVR 468)

Desta forma em contraposiccedilatildeo ao comportamento antimoral produzido

pela ilusatildeo causada pelo principium individuationis o filoacutesofo apresenta o outro lado da

moeda a accedilatildeo moral Esta seria a accedilatildeo praticada em funccedilatildeo do bem-estar de um outro

indiviacuteduo tendo em vista que as accedilotildees praticadas em funccedilatildeo do mal-estar do outro ou

do bem e mal estar de si mesmo satildeo justamente as accedilotildees antimorais baseadas no

egoiacutesmo ou no oacutedio ldquoTodo amor que natildeo eacute compaixatildeo eacute amor-proacuteprio Amor-proacuteprio eacute

59

Eros compaixatildeo eacute Aacutegaperdquo (MVR 478) Todo ato moral eacute por consequumlecircncia um ato de

compaixatildeo ou seja um ato que eacute praticado a partir da percepccedilatildeo do sofrimento do

outro Entretanto a percepccedilatildeo do sofrimento alheio natildeo eacute dada atraveacutes do conhecimento

abstrato E somente por uma percepccedilatildeo intuitiva direta do sofrimento do outro como o

meu proacuteprio sofrimento que surge a compaixatildeo Tal percepccedilatildeo assim como a

apreciaccedilatildeo esteacutetica tem origem em uma visatildeo que vai aleacutem do principium

individuationis Desfaz-se a ilusatildeo causada por este princiacutepio de que existe em realidade

um eu e um natildeo-eu ilusatildeo essa que eacute originada pelos condicionantes do conhecimento

tempo espaccedilo e causalidade Livre do principium individuationis natildeo haacute mais

diversidade natildeo existe mais indiviacuteduo passado futuro motivaccedilotildees existe apenas o

instante presente do ser a vontade Natildeo nos vemos mais como uma vontade separada de

outras ao contraacuterio vemos nos outros a mesma vontade pela qual somos Necessaacuterio

faz-se ressaltar que este conhecimento intuitivo que demonstra a unidade da vontade

em todo indiviacuteduo eacute entendimento de verdade tatildeo profundo que supera qualquer

especulaccedilatildeo abstrata do conhecimento e por isso seu efeito eacute marcante

Para o conhecimento que vecirc atraveacutes do principium individuationis uma

vida feliz no tempo presenteada pelo acaso ou conquistada deste pela

sabedoria em meio ao sofrimento de inumeraacuteveis outros eacute apenas um sonho de

mendigo no qual eacute um rei poreacutem tem de acordar e reconhecer que era tatildeo-soacute

uma ilusatildeo fugidia aquilo que o separava do sofrimento da sua vida (MVR

452)

A experimentaccedilatildeo deste estado de consciecircncia faz-nos perceber a vida como engano

luta infinita e provoca em noacutes a renuacutencia a esta mesma vida agrave vontade de viver O

homem natildeo mais afirma a sua essecircncia mas a repudia

Agrave semelhanccedila do estado de negaccedilatildeo da vontade o proacuteprio estado de

contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee um desinteresse pelos mandamentos da vontade

60

individual um desligamento do caraacuteter egoiacutestico do sujeito empiacuterico28

Para que possa

perceber a Ideacuteia por traacutes do objeto contemplado o observador deve estar em um estado

de consciecircncia que se vecirc livre dos grilhotildees da vontade Neste estado ele eacute alccedilado para

aleacutem da individualidade torna-se puro sujeito de conhecimento Para que este estado se

manifeste eacute imprescindiacutevel natildeo estar interessado nas relaccedilotildees do objeto apreciado seja

com outros objetos seja consigo mesmo O apreciador esteacutetico natildeo se preocupa com o

ldquoonderdquo o ldquocomordquo o ldquoporquecircrdquo dos objetos Estas formas de interjeiccedilatildeo sinalizam para a

relaccedilatildeo dos objetos com o mundo O apreciador esteacutetico no momento da apreciaccedilatildeo

tem em vista somente o ldquoquerdquo do objeto transforma-se em um ldquoolho que vecircrdquo livre do

princiacutepio de individuaccedilatildeo eacute o puro sujeito de conhecimento Vemos nestes dois estados

(o esteacutetico e o compassivo) exemplos de estados de consciecircncia que por suas

caracteriacutesticas de alccedilarem o indiviacuteduo a uma anulaccedilatildeo do sofrimento fazem parte do

projeto de juventude de estabelecer uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Percebemos entatildeo que a

consideraccedilatildeo esteacutetica e a consideraccedilatildeo eacutetica possuem em comum esta caracteriacutestica da

consciecircncia de se apartar do princiacutepio de individuaccedilatildeo

No caso da trageacutedia como descreve Schopenhauer seu fim uacuteltimo eacute despertar a

compaixatildeo no apreciador Desta forma o filoacutesofo associa agrave trageacutedia um efeito singular e

adverso das demais artes ou pelo menos reconhece na trageacutedia a arte capaz de

demonstrar a semelhanccedila entre os modos de consideraccedilatildeo artiacutestico e eacutetico Ao ilustrar o

conflito das vontades no mundo atraveacutes da exposiccedilatildeo do sofrimento humano a trageacutedia

cumpre seu papel artiacutestico ao expor a ideacuteia de humanidade Aleacutem deste atributo

podemos dizer que a trageacutedia tem que cumprir ainda seu papel moral ao causar no

28

Neste ponto de semelhanccedila eacute fundamental apontar mais uma vez a heranccedila kantiana Nas palavras de

Barboza (2001 82) ldquoA negaccedilatildeo da Vontade diante da beleza realmente obedece a uma leitura do

conceito criacutetico de desinteresse Quando Kant diz que o belo eacute aquilo que satisfaz bdquosem nenhum

interesse‟ o autor de O mundo leu essa expressatildeo como equivalente da negaccedilatildeo do querer visto que

interesse e motivo satildeo conceitos intercambiaacuteveis [] e a vontade neutraliza-se desinteressa-se ou seja eacute

indeterminaacutevel por motivos na contemplaccedilatildeo da Ideacuteia do belordquo

61

espectador a renuacutencia a toda vontade O modelo exemplar da trageacutedia eacute para

Schopenhauer a trageacutedia cristatilde onde o heroacutei conscientemente abandona o querer e

conseguintemente a vida Na trageacutedia antiga havia somente a identificaccedilatildeo do

sofrimento humano e sua exposiccedilatildeo A renuacutencia agrave vontade de vida eacute caracteriacutestica das

trageacutedias posteriores ao advento cristatildeo Schopenhauer exemplifica O priacutencipe de

Calderoacuten Gretchen em Fausto A Donzela de Orleans a Noiva de Messina etc Assim

ldquotoda a exposiccedilatildeo traacutegica eacute para o espectador um chamado agrave resignaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo livre

da Vontade de vida Somente a eacutetica pode tornar tudo isso mais compreensiacutevelrdquo (MB

223) Vemos entatildeo de forma clara na teoria da trageacutedia de Schopenhauer um momento

onde ocorre a coalizatildeo dos fundamentos metafiacutesicos de sua filosofia do pessimismo

originado nestes fundamentos e da atitude eacutetica existente por traacutes de seu pensamento

25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera

Faz-se necessaacuterio aqui uma incursatildeo sobre a teoria da muacutesica de Schopenhauer

tendo em vista de que ela ocuparaacute um papel decisivo na teoria nietzscheana da trageacutedia

As relaccedilotildees que Nietzsche estabelece entre a muacutesica a vontade as palavras e

finalmente a trageacutedia satildeo delineadas como veremos pela metafiacutesica schopenhaueriana

da muacutesica No intuito de perceber estas relaccedilotildees propomos aqui um breve esboccedilo da

teoria da muacutesica na filosofia de Schopenhauer

A filosofia da muacutesica encontra seu lugar ao final do terceiro livro de MVR bem

como no capiacutetulo 39 dos complementos fechando assim as consideraccedilotildees de

Schopenhauer sobre a metafiacutesica do belo e as artes29

29

Na esteira de Lydia Goehr (Jacquette 1996 200) ressaltamos que tendo em vista a influecircncia que sua

filosofia da muacutesica exerceu sobre o pensamento artiacutestico e filosoacutefico posterior e comparada agrave dimensatildeo

de sua obra as consideraccedilotildees sobre a muacutesica ocupam um espaccedilo diminuto em sua obra

62

Para o filoacutesofo da vontade a muacutesica eacute a arte que pela natureza de seu objeto de

expressatildeo natildeo encontra lugar apropriado dentro do sistema das demais artes Estas

conforme sua competecircncia em traduzir uma determinada objetidade da vontade uma

ideacuteia satildeo classificadas hierarquicamente A muacutesica entretanto figura aleacutem desta

hierarquizaccedilatildeo pois representa o conceitualmente irrepresentaacutevel ldquoa coacutepia de um

modelo que ele mesmo nunca pode ser representado imediatamenterdquo(MVR 338) a

Vontade mesma Esta arte eacute especialmente considerada devido agrave peculiaridade uacutenica de

seu efeito esteacutetico ldquoeacute uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente

sobre o mais iacutentimo do homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele

como se fora uma linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do

mundo intuitivordquo (MVR 336) A muacutesica estaacute aleacutem da intuiccedilatildeo pois representa aquilo

que estaacute aleacutem desta forma agrave semelhanccedila das ideacuteias que satildeo objetivaccedilotildees imediatas da

vontade a muacutesica eacute tambeacutem uma destas objetivaccedilotildees representaccedilatildeo imediata da coisa

em si O que o compositor apresenta atraveacutes da muacutesica eacute a essecircncia mais iacutentima do

mundo em uma ldquolinguagem natildeo compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo

magneacutetico fornece informaccedilotildees sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito

algumrdquo (MVR 342) Por estar em um acircmbito inalcanccedilaacutevel pelo conceito a muacutesica

atraveacutes de sua linguagem arrebata o homem de forma mais marcante e direta e ateacute

mesmo a explanaccedilatildeo sobre a muacutesica estaacute condenada agrave pobreza e agrave insuficiecircncia Desta

forma o filoacutesofo se utilizaraacute de uma analogia para explanar sobre a muacutesica ie

procederaacute a uma explicaccedilatildeo da muacutesica atraveacutes de um paralelismo entre ela as ideacuteias e o

mundo enquanto objetivaccedilotildees da vontade

Esta analogia expressa atraveacutes de diversos exemplos leva em consideraccedilatildeo que

em suas duas formas de objetivaccedilatildeo (o mundo e a muacutesica) a Vontade deixa transparecer

semelhanccedilas Na muacutesica os tons mais graves aproximam-se ao que satildeo no mundo os

63

graus mais baixos de objetivaccedilatildeo da vontade quais sejam a natureza inorgacircnica A lei

da harmonia estabelece que os tons agudos satildeo originados daquele tom mais grave

fundamental Da mesma forma no mundo os corpos tecircm como fonte e sustentaacuteculo a

natureza inorgacircnica ldquoagrave partir da qual tudo se eleva e desenvolverdquo(MB 230) As vozes

intermediaacuterias da melodia que estatildeo entre o baixo fundamental e a voz condutora

correspondem no mundo aos demais graus de objetivaccedilatildeo da vontade na natureza ldquoAs

vozes mais proacuteximas do baixo correspondem aos graus mais baixos ou seja os corpos

ainda inorgacircnicos poreacutem jaacute se exteriorizando de diversas maneiras As vozes mais

elevadas por sua vez representam os reinos vegetal e animalrdquo(MB 231)

O objeto de representaccedilatildeo da muacutesica eacute a Vontade e esta por sua vez eacute

intraduziacutevel atraveacutes das palavras da configuraccedilatildeo racional pois a razatildeo natildeo pode

alcanccedilar sua profundidade Trata-se de ldquouma linguagem universal cuja

compreensibilidade eacute inata e cuja clareza ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo

(MB 228) Diante desta caracteriacutestica cognitiva a muacutesica natildeo deve se inspirar no texto

nas palavras a natildeo ser para ilustraacute-las e conceder-lhes assim significaccedilatildeo mais

profunda A muacutesica natildeo deve ser composta com base em conceitos ou em objetos e

ocorrecircncias do mundo pois trata-se de uma expressatildeo da ordem do essencial do

universal ldquoela eacute a alma mais interior dessas ocorrecircncias sem o corpordquo (MB 235) Os

objetos e situaccedilotildees do mundo satildeo manifestaccedilotildees e portanto sua representaccedilatildeo

conceitual satildeo reproduccedilotildees circunstanciais da essecircncia do mundo expressa pela muacutesica

Daiacute se compreende o fato de a muacutesica realccedilar em cada

pintura sim em cada cena da vida efetiva e do mundo o

aparecimento de uma significaccedilatildeo mais elevada e tanto mais

quanto mais anaacuteloga eacute sua melodia ao espiacuterito iacutentimo do

fenocircmeno dado A muacutesica combina com tudo em todas as

exposiccedilotildees Nada lhe pode ser estranho pois exprime a essecircncia

de todas as coisas Caso se soe uma muacutesica que combine com

alguma cena da vida humana ou da natureza destituiacuteda de

conhecimento ou com alguma accedilatildeo acontecimento ambiente ou

64

alguma imagem ndash entatildeo ela revela o sentido secreto dessa cena e eacute

seu comentaacuterio mais correto e claro (MB 235)

Esta caracteriacutestica que daacute agrave muacutesica um privileacutegio cognitivo sobre as demais formas

artiacutesticas eacute o que delineia as consideraccedilotildees do filoacutesofo sobre a oacutepera30

A oacutepera ideal eacute

portanto aquela onde o livreto estaacute para a muacutesica como um exemplo para um conceito

geral A muacutesica tem a funccedilatildeo de expor ldquoo profundo e misterioso sobre a essecircncia

iacutentimardquo daquilo que a palavra exemplifica O compositor que maior ecircxito conseguiu

neste sentido conforme o filoacutesofo foi Rossini cuja ldquomuacutesica fala tatildeo distinta e

puramente a sua linguagem PROacutePRIA visto que quase natildeo precisa de palavras e por

conseguinte provoca todo o seu efeito mesmo se executada soacute com instrumentosrdquo

(MVR 344)

Vemos entatildeo a muacutesica como a mais profunda das artes cujo efeito eacute o mais

avassalador e que portanto quando conjugada com outras formas de expressatildeo como a

oacutepera deve formar a base e orientar a sua elaboraccedilatildeo Entretanto ao contraacuterio da

trageacutedia cujo fim eacute o estiacutemulo agrave renuacutencia da vontade de viver a muacutesica segundo a

metafiacutesica exposta por Schopenhauer ldquonatildeo faz mais do que agradar a vontade de viver

jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo seus ecircxitos e ao final expressa sua

satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509)

30

ldquoAo adotar esta atitude Schopenhauer transtorna toda a tradiccedilatildeo jaacute secular que havia afirmado natildeo

poucas vezes desde os tempos do nascimento da oacutepera o predomiacutenio da palavra sobre a muacutesica e em

consequumlecircncia a subordinaccedilatildeo desta uacuteltima agrave primeirardquo (Fubini 1988 289)

65

3 A teoria da trageacutedia do Jovem Nietzsche

Debalde espreitamos por uma raiz

vigorosamente ramificada por um pedaccedilo

de terra sadia e feacutertil por toda parte poacute

areia rigidez consunccedilatildeo Aqui um

solitaacuterio desconsolado natildeo poderia escolher

melhor siacutembolo do que o Cavaleiro com a

Morte e o Diabo como Duumlrer o desenhou o

cavaleiro arnesado com o olhar duro

brocircnzeo que sabe tomar o seu caminho

assustador imperturbado por seus

hediondos companheiros e natildeo obstante

desesperanccedilado sozinho com o seu corcel e

o seu catildeo Um tal cavaleiro duumlreriano foi

nosso Schopenhauer faltava-lhe qualquer

esperanccedila mas queria a verdade Natildeo haacute

quem se lhe iguale

(Nietzsche)

Neste capiacutetulo procuraremos apontar primeiramente o modo pelo qual se deu o

encontro entre Nietzsche e a filosofia de Schopenhauer Em um segundo momento

percorreremos o desenvolvimento histoacuterico das produccedilotildees nietzscheanas que

culminaram com a publicaccedilatildeo da obra que caracteriza o primeiro periacuteodo do filoacutesofo

qual seja O nascimento da trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica Concluiremos entatildeo

apresentando um esboccedilo desta obra dando ecircnfase em todos os momentos aos

66

elementos que caracterizam sua teoria da trageacutedia especialmente agravequeles relacionados agrave

metafiacutesica schopenhaueriana da vontade

31 Schopenhauer e o jovem Nietzsche uma breve contextualizaccedilatildeo histoacuterica

Foram nos anos de universidade em Leipzig que Nietzsche se deparou com a

filosofia de Schopenhauer Este periacuteodo entre os anos de 1865 e 1869 eacute especialmente

importante devido ao fato de que nele podemos assistir ao surgimento de alguns

aspectos fundamentais ao projeto filosoacutefico de Nietzsche Janz descreve este periacuteodo

como aquele em que o filoacutesofo estabeleceu ldquoseus encontros espirituais determinantes a

partir dos quais se defrontou consigo mesmo e com sua tarefardquo(1987 151)

O primeiro contato do jovem Nietzsche com o mundo schopenhaueriano deu-se

em meados de outubro de 1865 pouco tempo apoacutes sua chegada a Leipzig O

arrebatamento causado no jovem estudante de filologia pelo encontro com a filosofia

schopenhaueriana eacute descrito por ele apoacutes dois anos da seguinte maneira

Sentia-me naquela eacutepoca desorientado solitaacuterio sem

princiacutepios sem esperanccedilas inconsolado e com algumas

experiecircncias dolorosas e decepccedilotildees Construir uma vida proacutepria e

adequada era para mim uma aspiraccedilatildeo que me ocupava da manhatilde

ateacute a noite No feliz apartamento em que vivia procurava

concentrar-me a mergulhar em mim mesmo e quando me

encontrava com amigos estes eram sempre Mushacke e Von

Gersdorff os quais por sua parte alentavam objetivos muito

semelhantes aos meus Creio que natildeo seraacute difiacutecil imaginar a

impressatildeo que nesta situaccedilatildeo me causou a leitura da obra

principal de Schopenhauer Encontrei um dia este livro no sebo do

velho Rohm Ignorando tudo sobre ele o tomei em minhas matildeos e

me pus a folheaacute-lo Natildeo sei que democircnio me sussurrou bdquoleve este

livro para a casa‟ Aconteceu de compraacute-lo apesar do meu usual

costume de natildeo me precipitar na compra de livros Uma vez em

casa num canto do sofaacute me lancei sobre o tesouro receacutem

adquirido e comecei a deixar que aquele gecircnio eneacutergico e sombrio

influiacutesse sobre mim Em cada linha sua gritava a renuacutencia

negaccedilatildeo resignaccedilatildeo tinha diante de mim um espelho no qual

podia contemplar o mundo a vida e meu proacuteprio acircnimo com uma

67

grandeza deprimente Um espelho desde o qual o olho solar da

arte me mirava desde sua absoluta falta de interesse Vi

enfermidade e cura desterro e refuacutegio inferno e paraiacuteso A

necessidade de autoconhecimento inclusive de auto-

experimentaccedilatildeo apoderou-se de mim com forccedila indomaacutevel

provas daquela mutaccedilatildeo profunda satildeo hoje todavia para mim as

paacuteginas desassossegadas e melancoacutelicas do diaacuterio que agravequela

eacutepoca escrevi com suas auto-acusaccedilotildees inuacuteteis e sua desesperada

busca de salvaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do inteiro nuacutecleo humano Na

medida em que propus a submeter todas as minhas caracteriacutesticas

e aspiraccedilotildees ao tribunal de uma sombria auto-depreciaccedilatildeo minha

atitude estava cheia de amargura possuiacuteda de um oacutedio injusto e

desenfreado contra mim mesmo Nem sequer renunciei agraves

mortificaccedilotildees corporais Obriguei-me com efeito durante

quatorze dias seguidos a deitar-me agraves duas da noite e acordar agraves

seis da manhatilde Uma excitaccedilatildeo nervosa muito singular se apoderou

assim de mim e quem sabe ateacute que grau de loucura haveria

chegado se natildeo tivesse modificado frente agravequele estado de

acircnimo os atrativos da vida da vaidade e o imperativo de retornar

a meus estudos regulares (conforme citaccedilatildeo de Janz 1987 158)

Da citaccedilatildeo podemos inferir a mudanccedila de acircnimo que o encontro com

Schopenhauer provocou A partir daquele momento diversas correspondecircncias datildeo-nos

ainda informaccedilotildees do impacto que a filosofia de Schopenhauer provocou na concepccedilatildeo

de mundo do jovem estudante Em algumas destas correspondecircncias vemos transparecer

a influecircncia atraveacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio schopenhaueriano bem

como das ideacuteias nelas expressas Assim acontece em carta enviada agrave sua matildee e irmatilde

datada de 5 de novembro de 1865 onde ao discorrer acerca da frivolidade da vida

humana o jovem Nietzsche conclui utilizando-se dos argumentos propostos pela eacutetica

schopenhaueriana

Existem dois caminhos ou se esforccedila e se acostuma a ser

o mais limitado que se possa e uma vez que se reduz o maacuteximo

possiacutevel a luz do espiacuterito se busque bens de fortuna e se viva com

os prazeres do mundo ou por outro lado se sabe que a vida eacute

miseraacutevel se sabe que somos seus escravos tanto mais quanto

mais procuramos dela gozar e por tanto se desprende dos bens da

vida exercita a sobriedade e se eacute austero consigo mesmo e cordial

com os demais ndash e isto porque sente compaixatildeo pelos

companheiros de miseacuteria ndash em uma palavra se vive de acordo

68

com as rigorosas exigecircncias do cristianismo primitivo (OC

470)

Vemos ainda em carta a Mushacke em 12 de julho de 1866 o impacto que a

interpretaccedilatildeo schopenhaueriana pessimista de mundo causou em Nietzsche ldquoDesde que

Schopenhauer nos retirou dos olhos a venda do otimismo as coisas satildeo percebidas

mais agudamente A vida eacute mais interessante ainda que mais feiardquo (conforme citaccedilatildeo

de Janz 1987 172) Percebemos tambeacutem a linguagem schopenhaueriana na descriccedilatildeo

dos momentos de contemplaccedilatildeo Eacute o caso da carta datada de 07 de abril de 1866 a

Gersdorf onde Nietzsche descreve seu estado que nos remeteraacute agrave contemplaccedilatildeo

artiacutestica na filosofia de Schopenhauer ao discorrer sobre os dias de veratildeo ldquo[] a

natureza se faz perfeita e noacutes tambeacutem entatildeo nos sentimos livres do poderio da vontade

sempre alerta e somos olho puro intuitivo desinteressadordquo (OC 472)

Estas influecircncias nortearam de forma definitiva as produccedilotildees acadecircmicas de

Nietzsche mesmos suas pesquisas filoloacutegicas A concepccedilatildeo traacutegica do mundo tornou-se

um feixe condutor para as reflexotildees do jovem filoacutelogo Seus companheiros no estudo da

obra de Schopenhauer eram Gersdorff e Mushacke Em carta agrave sua matildee de 01 de

fevereiro de 1866 Nietzsche deixa saber sobre a frequumlecircncia dos estudos ldquoCom

Gersdorff me encontro uma noite por semana para ler grego a cada duas semanas me

reuacuteno com ele e com Mushacke e nos entregamos a Schopenhauer Este filoacutesofo ocupa

uma posiccedilatildeo importante em meus pensamentos e estudos e meu respeito por ele cresce

incomparavelmenterdquo (OC 471) Se o conteuacutedo da filosofia schopenhaueriana foi

absorvido intensamente pelo jovem Nietzsche como podemos ver a partir dos trechos

transcritos acima a forma estiliacutestica tambeacutem se configura como preocupaccedilatildeo Em um

periacuteodo onde as pesquisas acadecircmicas exigiam o esforccedilo da escrita ali tambeacutem a

autoridade das regras schopenhauerianas exibia sua feiccedilatildeo Eacute tambeacutem em uma carta a

69

Gersdorff datada de 06 de abril de 1867 onde Nietzsche expotildee sua preocupaccedilatildeo com o

estilo

Nestas divagaccedilotildees quero redigir meu trabalho sobre as

fontes de Dioacutegenes Laeacutercio e estou todavia no iniacutecio Para seu

regozijo confessarei que o que mais me daacute trabalho eacute meu estilo

em alematildeo Agora me caem os veacuteus dos olhos e vejo que

durante muito tempo vivi em estado de inocecircncia estiliacutestica O

imperativo categoacuterico bdquodeves escrever‟ me foi despertado[] nos

ouvidos me soavam todos os preceitos estiliacutesticos de Lessing de

Lichtenberg e de Schopenhauer Meu uacutenico consolo eacute que estas

trecircs autoridades afirmavam unanimemente que eacute difiacutecil escrever

bem que por natureza ningueacutem tem um bom estilo e que haacute que

trabalhar e trabalhar para consegui-lo (OC 476)

Entretanto apesar do profundo arrebatamento causado pela filosofia de

Schopenhauer que fez com que o universo das preocupaccedilotildees do entatildeo jovem Nietzsche

se fundamentasse nos pressupostos da metafiacutesica schopenhaueriana outros elementos

tambeacutem fundamentais para o pensamento futuro do filoacutesofo foram tambeacutem neste

periacuteodo despertados Como apontam Dias (2009 42) Janaway (2007 16) e Lopes

(2008 27) jaacute neste periacuteodo que podemos tratar como um periacuteodo de despertar para o

pensamento filosoacutefico encontraacutevamos os elementos que a partir de Humano demasiado

humano conformaratildeo a criacutetica nietzscheana agrave filosofia de Schopenhauer Os

comentadores citados chamam a atenccedilatildeo para o fato de que embora nas obras

publicadas de Nietzsche possamos assistir a criacuteticas diretas a Schopenhauer somente

apoacutes Humano demasiado humano tais criacuteticas agrave filosofia schopenhaueriana surgiram

em um momento imediatamente posterior agrave descoberta da metafiacutesica da vontade Rosa

Maria Dias chama a atenccedilatildeo para os fragmentos poacutestumos e para a correspondecircncia que

agrave partir de 1867 trazem algumas criacuteticas agrave metafiacutesica da vontade Rogeacuterio Lopes e

Cristopher Janaway apontam que algumas destas criacuteticas estatildeo embasadas nas leituras

que o jovem Nietzsche fez de Friedrich A Lange Rudolf Haym Kuno Fischer dentre

outros Tais criacuteticas contudo natildeo afastaram o jovem Nietzsche do discipulado

70

schopenhaueriano mas transformaram sua aceitaccedilatildeo do sistema da vontade No lugar de

uma defesa da consistecircncia loacutegica do sistema Nietzsche passou a adotar uma postura de

defesa da bdquonatureza edificante‟ e preponderantemente artiacutestica deste sistema Exemplos

desta postura podem ser encontrados tambeacutem na correspondecircncia daquele periacuteodo

Para escrever uma apologia a Schopenhauer eu tenho

unicamente que considerar o fato de que olho esta vida livre e

bravamente diante do fato de que encontrei um suporte para me

apoiar obviamente que isto natildeo eacute mais que uma apologia

totalmente individual Mas eacute como as coisas satildeo Se algueacutem

deseja refutar Schopenhauer para mim atraveacutes de argumentos

racionais murmuro em seu ouvido bdquoporeacutem meu amigo visotildees de

mundo natildeo satildeo criadas nem destruiacutedas pela loacutegica‟ (carta a

Deussen Outubro-Novembro de 1867 citada por Janaway

(200718))

Ou ainda em carta a Gersdorff onde apoacutes apresentar a criacutetica de Lange agrave metafiacutesica da

vontade Nietzsche conclui contra Haym ainda com os argumentos de Lange

Natildeo apenas a verdadeira essecircncia das coisas a coisa em si

eacute desconhecida para noacutes tambeacutem seu conceito eacute nada mais nada

menos que o uacuteltimo rebento de um contraste condicionado por

nossa organizaccedilatildeo do qual natildeo sabemos se conserva algum

significado fora de nossa experiecircncia Disso resulta pensa Lange

que os filoacutesofos natildeo devem ser importunados na medida em que

nos edificam A arte eacute livre tambeacutem na regiatildeo dos conceitos

Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro

uma Madonna de Rafael Como vocecirc pode perceber o nosso

Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista

criacutetico ele se torna quase ainda mais valioso para noacutes Se filosofia

eacute arte entatildeo que Haym se anule diante de Schopenhauer se a

filosofia deve edificar entatildeo eu pelo menos natildeo conheccedilo nenhum

filoacutesofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer (apud

Lopes 2008 86-87)

Vimos ateacute entatildeo que a descoberta de Schopenhauer provocou no jovem

estudante de filologia transformou sua forma de perceber o mundo e o influenciou de

forma definitiva a ponto de fazer com que Nietzsche se definisse como um seguidor e

divulgador da obra schopenhaueriana Contudo eacute no fim de seus anos de estudo em

Leipzig que o disciacutepulo de Schopenhauer iraacute se defrontar com a personalidade que lhe

71

reforccedilaraacute de forma ainda mais contundente o selo da rotunda schopenhaueriana

Richard Wagner

Foi atraveacutes de seu amigo Brockhaus cuja esposa era irmatilde do muacutesico que em

novembro de 1868 Nietzsche encontrou-se pela primeira vez com Wagner A partir

daquele encontro se estabeleceria um relacionamento que de uma forma ou de outra

marcaraacute Nietzsche pelo resto de sua vida Em uma carta a seu amigo Erwin Rohde

Nietzsche descreve o primeiro encontro e sua perplexidade ao encontrar em Wagner um

admirador de Schopenhauer ldquo[]mantive com ele uma longa conversa sobre

Schopenhauer Ah Compreenderaacutes minha felicidade em ouvir-lhe falar com um

entusiasmo completamente indescritiacutevel ao qual ele agradecia como Schopenhauer

era o uacutenico filoacutesofo que havia compreendido a essecircncia da muacutesicardquo (Correspondecircncia

2007 21) A impressatildeo deste encontro eacute tambeacutem claramente visiacutevel atraveacutes de

correspondecircncia endereccedilada ao proacuteprio Wagner em maio de 1869 ldquoVeneradiacutessimo

senhor quanto tempo tive a intenccedilatildeo de lhe manifestar sem nenhuma timidez o grau de

gratidatildeo que sinto em relaccedilatildeo ao senhor pois realmente os melhores e mais elevados

momentos de minha vida se ligam ao seu nome e eu soacute conheccedilo mais um homem aleacutem

disso seu grande irmatildeo em espiacuterito Arthur Schopenhauer em quem penso com a

mesma veneraccedilatildeo ateacute senso religiosordquo (Correspondecircncia 2007 56) Como podemos

ver a pessoa de Wagner eacute associada agrave de Schopenhauer Esta associaccedilatildeo tornar-se-aacute

uma constante e poderaacute ser identificada ainda na fase tardia onde as criacuteticas a estes

pensadores e ao que eles entatildeo representavam se daraacute de forma inter-relacionada Este

primeiro encontro com Wagner conforme Janz (1987 22) foi um dos principais

motivos que levaram Nietzsche a aceitar em detrimento de outros planos que

formulava assumir a caacutetedra de filologia em Basel A proximidade de Tribschen

residecircncia dos Wagner e a possibilidade de uma convivecircncia com o muacutesico o

72

inspiraram E assim aconteceu Ao mudar-se para Basel pocircde desfrutar de uma

convivecircncia constante com o casal Wagner Desde a chegada de Nietzsche ateacute a

mudanccedila de Wagner em 1872 encontravam-se com muita frequumlecircncia e os assuntos que

pautavam tais encontros eram amiuacutede arte muacutesica a literatura claacutessica e a filosofia de

Schopenhauer Wagner tornar-se-ia para Nietzsche a personificaccedilatildeo do gecircnio

schopenhaueriano aquele capaz de atraveacutes da muacutesica expor a essecircncia do mundo No

projeto wagneriano de ldquoarte totalrdquo Nietzsche pocircde vislumbrar a uniatildeo entre muacutesica e

filosofia e satisfazer assim em certa medida as expectativas oriundas da metafiacutesica da

vontade

32 O projeto subjacente ao Nascimento da Trageacutedia

Eacute famosa a passagem onde Nietzsche em carta a Deussen datada de janeiro de

1870 informa sobre seu estado de espiacuterito ldquo Ciecircncia arte e filosofia crescem agora

juntas em mim e de tal modo que um dia haverei de parir centaurosrdquo (Janz 1981 66)

Esta afirmaccedilatildeo eacute ilustrativa no que se refere ao ambiente onde o Nascimento da trageacutedia

foi gerado Podemos identificar claramente as figuras por detraacutes dos termos filosofia

arte e ciecircncia satildeo elas Schopenhauer Wagner e a filologia claacutessica Neste periacuteodo

Nietzsche entatildeo jovem professor de filologia estava imbuiacutedo pela pretensatildeo de poder

unir os estudos filoloacutegicos aos filosoacuteficos Sua preleccedilatildeo inicial Homero e a filologia

claacutessica em Basel nos daacute uma amostra desta pretensatildeo Ali podemos assistir a uma

aproximaccedilatildeo entre filologia e filosofia atraveacutes da proposta de uma leitura filosoacutefica do

mundo antigo ldquoCom isto quero expressar que toda atividade filoloacutegica deve estar

impregnada de uma concepccedilatildeo filosoacutefica do mundo na qual todo o particular e singular

seja visto como algo sem proveito e soacute permaneccedila de peacute a unidade do todordquo (OC 26)

73

Sua escolha por trilhar caminhos mais proacuteximos agrave filosofia pode tambeacutem ser observada

pela tentativa frustrada de ocupar uma cadeira desta disciplina que se mostrou livre em

janeiro de 1871 Se por um lado podemos diagnosticar certa decepccedilatildeo e ateacute um

determinado desacircnimo na atividade acadecircmica por outro lado os laccedilos com os Wagner

se estreitavam cada vez mais No refuacutegio de Tribschen sob a aura de Richard Wagner

Nietzsche discorria sobre o mundo grego enquanto modelo de cultura e ouvia os planos

wagnerianos sobre seu projeto de uma obra de arte total Como pano de fundo destas

discussotildees a metafiacutesica da muacutesica schopenhaueriana e sua concepccedilatildeo traacutegica do mundo

Eacute em torno destes eixos formadores que vemos se materializar a primeira publicaccedilatildeo de

Nietzsche

O desenvolvimento das ideacuteias que formaratildeo a obra contudo se deu de forma

gradual Ao longo do periacuteodo compreendido entre a chegada de Nietzsche a Basel e a

publicaccedilatildeo de seu livro determinados trabalhos deixam transparecer o delineamento de

algumas das ideacuteias centrais da obra Satildeo eles O drama musical grego Soacutecrates e a

trageacutedia A visatildeo dionisiacuteaca do mundo e Introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles31

Em o drama musical grego conferecircncia puacuteblica datada de janeiro de 1870

Nietzsche efetua uma comparaccedilatildeo entre a arte traacutegica da antiguidade e as oacuteperas

modernas Estas de acordo com o filoacutesofo satildeo uma imperfeita ldquocaricatura do drama

musical antigordquo (VD 48) Muacutesica pintura escultura e poesia formavam um todo na

arte traacutegica da antiguidade Nas artes modernas por sua vez as formas artiacutesticas satildeo

fragmentadas fato que dificulta o entendimento da trageacutedia grega e que causaria

espanto ao apreciador de arte moderno A muacutesica teria para a trageacutedia antiga uma

31

Como ressaltam M S Silk e J P Stern em sua obra Nietzsche on tragedy (1981 59) o nascimento da

trageacutedia eacute composto de forma estrutural pelos conceitos encontrados nestes trabalhos O iniacutecio do livro

(sectsect1-10) eacute substancialmente baseado no ensaio a visatildeo dionisiacuteaca do mundo enquanto a sequumlecircncia

composta pelos paraacutegrafos 5 e 6 estaacute mais proacutexima da introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles O trecho

composto pelos paraacutegrafos 11 a 14 pode ser derivado diretamente da leitura Soacutecrates e a trageacutedia O resto

do livro eacute formado por uma amaacutelgama destes escritos Partes dispersas ainda satildeo formadas pelo ensaio do

drama musical grego

74

importacircncia capital como elemento intensificador de seu efeito Podemos ver a intenccedilatildeo

por traacutes da anaacutelise nietzscheana da trageacutedia antiga em comparaccedilatildeo agrave opera Ao final da

conferecircncia no elogio que confere a Wagner o tiacutetulo de ldquoatual reformador da arterdquo bem

como na descriccedilatildeo de seu projeto de arte total retratado como um acontecimento que jaacute

teve lugar na trageacutedia da antiguidade claacutessica Nietzsche deixa claro seu engajamento ao

projeto wagneriano

No mecircs seguinte ao da citada conferecircncia uma segunda intitulada Soacutecrates e a

trageacutedia foi proferida por Nietzsche O assunto em pauta era a morte repentina da

trageacutedia grega Esta morte teria ocorrido pelas matildeos de Euriacutepides apoacutes uma decadecircncia

iniciada nos uacuteltimos periacuteodos das produccedilotildees de Eacutesquilo passando por Soacutefocles e

culminando com o advento da comeacutedia Tal decadecircncia teria sido provocada pela saiacuteda

de cena da muacutesica que de forma progressiva foi substituiacuteda pelo diaacutelogo racionalista

Soacutecrates ocupa aqui um lugar importante Eacute sua influecircncia sobre Euriacutepides que

transforma de uma forma definitiva a arte instintivamente musical da trageacutedia em uma

manifestaccedilatildeo do discurso eacutetico racionalista Esta ldquoesteacutetica racionalista e conscienterdquo

pode ser identificada no proacutelogo euripidiano e na inserccedilatildeo do deus ex machina

enquanto agentes de racionalizaccedilatildeo da obra artiacutestica A trageacutedia de Euriacutepides teria

assumido assim os pressupostos do racionalismo socraacuteticos ldquoVirtude eacute saber peca-se

somente por ignoracircncia O virtuoso eacute felizrdquo (VD 90) Esta assunccedilatildeo que liga a virtude

ao saber impotildee agrave trageacutedia um caraacuteter eacutetico alheio agrave sua caracteriacutestica puramente

esteacutetica O elemento culpa na dialeacutetica socraacutetica toma o lugar que era ocupado pela

compaixatildeo Jaacute podemos perceber nesta conferecircncia o esboccedilo da dicotomia que mais

tarde seraacute ilustrada atraveacutes dos deuses Apolo e Dioniso Os pares formadores da

dicotomia satildeo aqui expressos pela separaccedilatildeo entre instinto e razatildeo muacutesica e discurso

pessimismo e otimismo arte e ciecircncia

75

Temos a primeira referecircncia agrave arte dionisiacuteaca como impulso formador da

trageacutedia e sua contraposiccedilatildeo agrave arte apoliacutenea nas aulas proferidas por Nietzsche no veratildeo

daquele mesmo ano Neste curso sobre a trageacutedia de Soacutefocles do qual temos a

introduccedilatildeo podemos ver o esforccedilo de Nietzsche em caracterizar e apontar as

peculiaridades da trageacutedia da antiguidade que a tornam um fenocircmeno uacutenico em

comparaccedilatildeo agraves trageacutedias modernas Tal discussatildeo demonstraraacute pelos aspectos ali

expostos a aproximaccedilatildeo de Nietzsche com autores do periacuteodo claacutessico alematildeo e

sobretudo da chamada querela entre antigos e modernos Vemos claramente a influecircncia

de Schiller e F A Schlegel em algumas das definiccedilotildees adotadas por Nietzsche

No texto denominado A visatildeo dionisiacuteaca do mundo jaacute podemos assistir a um

desenvolvimento das duas pulsotildees artiacutesticas que satildeo o nuacutecleo da interpretaccedilatildeo

nietzscheana da trageacutedia O apoliacuteneo e o dionisiacuteaco satildeo ali explicados no acircmbito de seu

surgimento no mundo helecircnico e simbolizam a uniatildeo entre verdade e beleza na forma de

arte traacutegica Sua descriccedilatildeo como veremos abaixo estaacute permeada de conceitos retirados

da filosofia schopenhaueriana que vatildeo desde a biparticcedilatildeo do mundo entre verdade e

aparecircncia perpassam as noccedilotildees de belo e sublime e apontam a trageacutedia e a muacutesica como

forma de arte superiores

Em janeiro de 1872 Nietzsche daacute luz a seu ldquoCentaurordquo sob o nome O nascimento

da trageacutedia atraveacutes do espiacuterito da muacutesica Em carta a Rohde datada de 23 de novembro

de 1871 podemos notar atraveacutes da ansiosa expectativa nietzscheana a amaacutelgama

formadora da obra ldquo Temo sempre que os filoacutelogos natildeo o queiram ler por causa da

muacutesica os muacutesicos por causa da filologia e os filoacutesofos por causa da muacutesica e da

filologia e sinto logo medo e compaixatildeo de mim mesmordquo (Correspondecircncia 2007 237)

33 A teoria da trageacutedia publicada

Como escopo geral da primeira obra de Nietzsche podemos dizer na esteira de

Silk e de Stern (1981 52) que ela se propunha a esclarecer o problema do nascimento e

76

da morte da trageacutedia helecircnica Trageacutedia que por sua vez era a expressatildeo artiacutestica que

simbolizava um problema vital o de que sob uma superfiacutecie bela podiacuteamos ter acesso agrave

terriacutevel profundidade do ser Tal forma de arte poderia novamente vir agrave luz por uma

geraccedilatildeo criativa que ao combater a superficialidade moderna que reinava no mundo

germacircnico poderia produzir o renascimento moderno do mundo Helecircnico

Em sua essecircncia o nascimento da trageacutedia aponta para as divindades Apolo e

Dioniacutesio como ldquorepresentantes vivosrdquo de princiacutepios diacutespares que irrompem da proacutepria

natureza e que ao serem conciliados de certa forma tornaram possiacutevel que atraveacutes dos

atritos de tal uniatildeo a trageacutedia grega despontasse como manifestaccedilatildeo artiacutestica exemplar

do sublime Em linhas gerais a arte do ldquofigurador plaacutesticordquo estaria entatildeo associada ao

deus Apolo enquanto a arte ldquonatildeo figuradardquo a da muacutesica estaria associada ao deus

Dioniacutesio O apoliacuteneo eacute um impulso da vontade grega que ao almejar a vida a apresenta

transfiguradamente como um belo sonho plasmado no mundo dos deuses oliacutempicos O

princiacutepio apoliacuteneo seria aquele que estabeleceria a ordem a beleza estaacutetica e a clareza

dos limites O dionisiacuteaco eacute oriundo das festas do oriente e seu efeito eacute comparado ao da

embriaguecircs A ele cabe a sabedoria profunda da essecircncia da vida lugar do acaso do

impermanente do horriacutevel e do sofrimento A Apolo eacute facultado tecer o veacuteu que

encobre a sabedoria dionisiacuteaca e torna a vida suportaacutevel atraveacutes da ilusatildeo do sonho

Assim segundo Nietzsche o desenvolvimento contiacutenuo da arte estaacute vinculado agrave

duplicidade dos princiacutepios apoliacuteneo e dionisiacuteaco Perfazendo um caminho histoacuterico da

cultura grega podemos notar uma sobreposiccedilatildeo intermitente entre os impulsos divinos

Temos momentos onde o impulso apoliacuteneo se mostrou dominante e outros onde

Dioniacutesio recupera seu predomiacutenio O mundo oliacutempico homeacuterico com sua arte eacutepica e

sua escultura do periacuteodo doacuterico nascem a partir de uma necessidade de redenccedilatildeo para a

realidade de horror e sofrimento que o povo helecircnico presenciava Em substituiccedilatildeo ao

77

mundo titacircnico temos o mundo dos deuses oliacutempicos exemplificadores de uma

existecircncia divinizada que exalta a vida Nas palavras de Nietzsche ldquoo grego conheceu

e sentiu os temores e os horrores do existir para que lhe fosse possiacutevel de algum modo

viver teve de colocar ali entre ele e a vida a resplendente criaccedilatildeo oniacuterica dos deuses

oliacutempicosrdquo (NT 36) Entretanto a sabedoria dionisiacuteaca portadora da visatildeo abismal do

ser natildeo pocircde ser contida por muito tempo e a muacutesica veiacuteculo da uniatildeo orgiaacutestica aos

poucos foi se infiltrando no mundo construiacutedo pelo divino Apolo Os gregos foram se

tornando conscientes de seu estado sonambuacutelico que sob a graccedila do deus Apolo enleva

e transporta pela extraordinaacuteria beleza natural ou esteacutetica Em um estado semelhante ao

do indiviacuteduo que restabelecido em suas forccedilas pelo efeito renovador do sono ao findar

de uma noite comeccedila a ouvir os sons a sua volta e aos poucos vai se despertando da

mesma forma os gregos comeccedilaram novamente a ouvir o sussurro do Sileno

companheiro de Dioniacutesio ldquoo melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter

nascido e natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo

(NT 36) O artista que representa este retorno do dionisiacuteaco com a mesma envergadura

com que Homero representa as forccedilas apoliacuteneas eacute Arquiacuteloco Tomando-o como modelo

do gecircnio liacuterico Nietzsche faz uma descriccedilatildeo de seu processo de criaccedilatildeo Conforme a

metafiacutesica esteacutetica adotada por Nietzsche - que mais agrave frente veremos ser retirada da

esteacutetica schopenhaueriana - toda arte tem que ser objetiva livre dos interesses

individuais Nesta situaccedilatildeo a liacuterica que tem como objeto o eu do poeta seus desejos e

emoccedilotildees natildeo seria uma forma de arte Entretanto atraveacutes de uma descriccedilatildeo que Schiller

faz da inspiraccedilatildeo poeacutetica Nietzsche aponta o caminho para percebermos a liacuterica como

obra de arte e portanto objetivamente Conforme a passagem de Schiller citada por

Nietzsche (NT 44) ldquoo sentimento se me apresenta no comeccedilo sem um objeto claro e

determinado este soacute se forma mais tarde Uma certa disposiccedilatildeo musical de espiacuterito

78

vem primeiro e somente depois eacute que se segue em mim a ideacuteia poeacuteticardquo Desta forma

Arquiacuteloco em seu processo criativo a princiacutepio entraria em um estado de consciecircncia

ou de criaccedilatildeo onde renunciaria agrave sua individualidade e dionisiacamente participaria do

uno-primordial ldquoabismo do serrdquo estado que por sua vez materializa-se atraveacutes da

representaccedilatildeo musical A muacutesica assim produzida seraacute condiccedilatildeo para o surgimento da

inspiraccedilatildeo que a posteriori daraacute nascimento atraveacutes da aplicaccedilatildeo das formas

apoliacuteneas agrave poesia liacuterica geacutermen da trageacutedia e dos ditirambos dramaacuteticos Esta uniatildeo da

poesia liacuterica com a muacutesica eacute uma expressatildeo sinteacutetica da relaccedilatildeo dos deuses Apolo e

Dioniacutesio Eacute no quinto capiacutetulo de sua obra que Nietzsche iraacute tratar da poesia liacuterica

Neste capiacutetulo o filoacutesofo se distancia de Schopenhauer em sua interpretaccedilatildeo do

fenocircmeno liacuterico Para Schopenhauer na citaccedilatildeo reproduzida por Nietzsche (NT 46) a

liacuterica eacute produzida atraveacutes de uma percepccedilatildeo da consciecircncia onde os estados da vontade

individualizada se alternam com o conhecimento objetivo Como vimos o poeta liacuterico

assistiria ao jogo do eu em sua afetaccedilatildeo emocional e descreveria este estado atraveacutes de

sua poesia Nietzsche ao descrever a liacuterica utiliza-se da teoria da muacutesica

schopenhaueriana qual seja o poeta liacuterico produz primeiramente a muacutesica como forma

geral de expressatildeo da vontade mesma e desta produccedilatildeo gera posteriormente o texto que

se torna um exemplificador do evento musical sua forma plaacutestica objetiva A muacutesica eacute

a aparecircncia da vontade e as imagens apoliacuteneas que dela se originaram satildeo conforme seu

espiacuterito A imagem e o conceito satildeo desta forma na liacuterica originados a partir da

muacutesica

Tem-se portanto na trageacutedia grega uma relaccedilatildeo de interdependecircncia que evoca

um aparente paradoxo ndash ou seja ao lado da necessidade esteacutetica da beleza Apolo exige

dos seus a medida (limites fronteiras do indiviacuteduo presentes no ldquonada em demasiardquo) e

o auto-conhecimento necessaacuterio para determinaacute-la (ldquoconhece-te a ti mesmordquo) o

79

desmedido os excessos o dionisiacuteaco seriam identificados pelo apoliacuteneo como

democircnios de uma era preacute-apoliacutenea era dos Titatildes reminiscecircncias de barbarismo O

paradoxo estaacute em que para que o comedimento apoliacuteneo possa existir o desmedido

dionisiacuteaco faz-se necessaacuterio (na linguagem de Nietzsche como ldquosubstratordquo) assim

como para que o desmedido dionisiacuteaco possa existir faz-se necessaacuterio a existecircncia do

comedido do apoliacuteneo Natildeo obstante a trageacutedia grega depende da conjugaccedilatildeo destes

dois princiacutepios para existir ndash indo aleacutem poder-se-ia dizer que a proacutepria muacutesica compotildee

o princiacutepio primeiro que possibilita o surgimento da trageacutedia no jogo das formas

apoliacuteneo A trageacutedia eacute entatildeo definida como ldquoo coro dionisiacuteaco a descarregar-se sempre

de novo em um mundo de imagens apoliacuteneordquo (NT 60)

Em seu iniacutecio a trageacutedia grega era representada pelo coro traacutegico Este coro natildeo

era uma ldquorepresentaccedilatildeo constitucional do povordquo muito menos um espectador ideal

como o queria August Schlegel Nietzsche acompanha Schiller na definiccedilatildeo de que o

coro cria um terreno ideal para a manifestaccedilatildeo da arte O efeito da trageacutedia eacute a

manifestaccedilatildeo de um estado de unidade que transporta ao abismo do ser O coro eacute a

manifestaccedilatildeo deste sentimento da consciecircncia de que por traacutes da vida cotidiana haacute uma

realidade ldquoindestrutivelmente poderosa e cheia de alegriardquo (NT 55) Este eacute o consolo

metafiacutesico propiciado pela arte traacutegica Ao retornarmos deste estado o cotidiano nos

causa asco nojo Natildeo eacute possiacutevel interpretar mais o papel da vida comum A vida soacute

passa a se justificar atraveacutes da arte Perceba-se aiacute que o coro possui um papel

fundamental no processo O coro atua como impulso artiacutestico dionisiacuteaco em

contraposiccedilatildeo agrave forma apoliacutenea ou seja agraves imagens e agrave beleza plaacutestica Assim o

indiviacuteduo atraveacutes do coro tem para si revelado aquele substrato dionisiacuteaco encoberto

pela beleza e comedimento apoliacuteneos isto eacute ao indiviacuteduo era possiacutevel submergir na

80

torrente dionisiacuteaca do auto-esquecimento permitindo-se pocircr de lado os preceitos

apoliacuteneos

E foi assim que em toda parte onde o dionisiacuteaco penetrou o apoliacuteneo

foi suspenso e aniquilado Mas eacute igualmente certo que laacute onde o primeiro

assalto foi suportado o prestiacutegio e a majestade do deus deacutelfico se externaram de

maneira mais riacutegida e ameaccediladora do que nunca(NT 41-42)

De acordo com Nietzsche as trageacutedias eram em seu iniacutecio representaccedilotildees do

sofrimento de Dioniacutesio Mesmo as trageacutedias do periacuteodo aacutetico traziam Dioniacutesio como

heroacutei traacutegico O sofrimento representado era o do despedaccedilamento de Dioniacutesio o deus

que sofreu o padecimento da individuaccedilatildeo causa de todo o sofrer O mito de Dioniacutesio eacute

interpretado aqui sob a luz da filosofia de Schopenhauer que apresenta a individuaccedilatildeo

como fonte do sofrimento ldquoNos pontos de vista aduzidos temos jaacute todas as partes

componentes de uma profunda e pessimista consideraccedilatildeo do mundo e ao mesmo tempo

a doutrina misteriosoacutefica da trageacutedia o conhecimento baacutesico da unidade de tudo o que

existe a consideraccedilatildeo da individuaccedilatildeo como a causa primeira do mal a arte como a

esperanccedila jubilosa de que possa ser rompido o feiticcedilo da individuaccedilatildeo como

pressentimento de uma unidade restabelecidardquo (NT 70)

Contudo ressalta Nietzsche a trageacutedia grega que como vimos desenvolve-se a

partir do embate contiacutenuo entre as representaccedilotildees dos deuses antiacutepodas ndash envolvidos em

um enfrentamento aparentemente sem fim ndash eacute reestruturada por Euriacutepides de forma a

diminuir o impacto do coro ou seja um golpe quase mortal para Dioniacutesio que

agonizante lanccedila matildeo de seus uacuteltimos esforccedilos O que em Euriacutepedes suscitou esta

reestruturaccedilatildeo que conforme Nietzsche eacute responsaacutevel pelo afastamento progressivo do

dionisiacuteaco tem suas origens no que o filoacutesofo chamou de uma ldquotendecircncia socraacuteticardquo O

socratismo euripidiano e a sua nova concepccedilatildeo esteacutetica satildeo as causadoras do

afastamento dos impulsos esteacuteticos primevos o dionisiacuteaco e o apoliacuteneo Em seu lugar o

discurso consciente passa a imperar O deus ex machina e os proacutelogos satildeo exemplos das

81

interferecircncias racionais que datildeo novo tom agrave trageacutedia aacutetica Soacutecrates e seu racionalismo

expulsam da trageacutedia o conhecimento primevo dionisiacuteaco e estabelecem novas regras

esteacuteticas regras racionais que fazem com que o bom sinocircnimo do belo seja aquilo

alcanccedilado conscientemente

Se a trageacutedia grega foi para Nietzsche a manifestaccedilatildeo mais sublime de uma

forma artiacutestica isto se daacute em decorrecircncia do efeito por ela provocado qual seja o de

justificar o mundo enquanto fenocircmeno esteacutetico Foi exatamente o decliacutenio deste efeito

constatado pela produccedilatildeo racionalizada de Euriacutepides o responsaacutevel pela morte da

trageacutedia Ao fortalecer em demasia os princiacutepios racionais da forma Euriacutepides suprimiu

o dionisiacuteaco por meio da flacircmula que nas palavras de Nietzsche o tragedioacutegrafo

ldquolevava agrave testardquo ndash a saber uma espeacutecie de socratismo esteacutetico cujos princiacutepios se davam

a partir da remissatildeo do belo ao inteligiacutevel e deste ao virtuoso Identifica-se portanto a

racionalidade otimista socraacutetica como grande responsaacutevel pela supressatildeo do impulso

dionisiacuteaco Nietzsche alude agrave proximidade de convivecircncia entre Soacutecrates e Euriacutepides

para justificar a presenccedila do racionalismo nas obras Euripidianas Soacutecrates frequumlentava

o teatro somente para assistir agraves apresentaccedilotildees de Euriacutepides De todos os atenienses

Soacutecrates era apontado como o mais saacutebio e Euriacutepides como o segundo em sabedoria

Entretanto na contraposiccedilatildeo proposta por Nietzsche entre conhecimento instintivo e

racional Soacutecrates era descomunalmente racional ao contraacuterio do intuitivismo criativo

que reinava ateacute entatildeo Era questionando aos atenienses sobre seus atos que Soacutecrates

percebia que eles natildeo agiam conscientemente mas por intuiccedilatildeo A crenccedila socraacutetica de

que toda accedilatildeo boa deve ser consciente dominou o teatro atraveacutes de Euriacutepides Uma

chave para o entendimento da racionalidade socraacutetica segundo Nietzsche nos eacute

revelada pela ldquomonstruosa inversatildeordquo representada pela consciecircncia criacutetica de Soacutecrates ndash

ou seja a nota destoante em Soacutecrates revela-se pelo instinto criacutetico em contraposiccedilatildeo agrave

82

consciecircncia criacutetica a consciecircncia criadora em contraposiccedilatildeo ao instinto como forccedila

criadora Intui-se assim o motivo pelo qual Soacutecrates natildeo compreendia a trageacutedia grega

- o dionisiacuteaco a tornava ininteligiacutevel para as exigecircncias racionalistas e criacuteticas da

ldquodialeacutetica otimistardquo socraacutetica ldquoA Soacutecrates [] parecia que a arte traacutegica nunca bdquodiz a

verdade‟ sem considerar o fato de que se dirigia agravequele que bdquonatildeo tem muito

entendimento‟ portanto natildeo aos filoacutesofos daiacute um duplo motivo para manter-se dela

afastadordquo(NT 87) Nietzsche compara Soacutecrates ao heroacutei euripidiano que

diferentemente (ateacute mesmo antagonicamente) agrave trageacutedia de Eacutesquilo e Soacutefocles ldquoprecisa

defender suas accedilotildees por meio da razatildeo e contra a razatildeordquo O que estaacute em jogo no

socratismo eacute a substituiccedilatildeo das verdades expressas miticamente religiosamente pelas

verdades loacutegicas A razatildeo tenta abarcar o todo e para isso desconsidera a arte e seus

impulsos A excelecircncia estaacute no saber e atraveacutes deste alcanccedila-se a felicidade erro do

otimismo racionalista Ilusatildeo da razatildeo que se acha soberana e independente A loacutegica

torna-se essecircncia da trageacutedia procura-se por relaccedilotildees causais e pelo bom telos O

diaacutelogo formata sua estrutura e expulsa seu fundamento musical O ldquoheroacutei dialeacuteticordquo eacute

portanto impulsionado pelo elemento otimista da dialeacutetica A justiccedila transcendental

presente nas obras Esquilianas ldquoeacute rebaixada ao niacutevel do raso e insolente princiacutepio da

bdquojusticcedila poeacutetica‟ com seu habitual deus ex machinardquo (NT 89) A racionalidade de

Soacutecrates atraveacutes de sua investigaccedilatildeo cientiacutefica da natureza de seu processo de

construccedilatildeo loacutegica da realidade daraacute origem ao que Nietzsche denominaraacute de ldquohomem

teoacutericordquo ou ldquohomem cientiacuteficordquo a quem a razatildeo ergue-se acima da proacutepria realidade ao

ponto mesmo de ndash e aiacute reside o proacuteprio otimismo ndash propor-se a tarefa de corrigir as

falhas da proacutepria realidade Mais ainda a razatildeo socraacutetica acena ao homem com a

promessa de conferir sentido agrave existecircncia pelo conhecimento e desta forma busca

justificar tal existecircncia

83

Em face ao pessimismo praacutetico eacute Soacutecrates o protoacutetipo do

otimista teoacuterico que na jaacute assinalada feacute na escrutabilidade da

natureza das coisas atribui ao saber e ao conhecimento a forccedila de

uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo

(NT 94)

Natildeo obstante o otimismo no conhecimento na racionalidade socraacutetica encontra seu

maior dragatildeo em sua proacutepria loacutegica interna Assim nas palavras de Nietzsche

[] a periferia do ciacuterculo da ciecircncia possui infinitos pontos

e enquanto natildeo for possiacutevel prever de maneira nenhuma como se

poderaacute alguma vez medir completamente o ciacuterculo o homem

nobre e dotado ainda antes de chegar ao meio de sua existecircncia

tropeccedila e de modo inevitaacutevel em tais pontos fronteiriccedilos da

periferia onde fixa o olhar no inesclareciacutevel Quando divisa aiacute

para seu susto como nesses limites a loacutegica passa a girar em

redor de si mesma e acaba por morder a proacutepria cauda ndash entatildeo

irrompe a nova forma de conhecimento o conhecimento traacutegico

que mesmo para ser apenas suportado precisa da arte como meio

de proteccedilatildeo e remeacutedio (NT 95)

Afigura-se-nos aqui o problema apontado por Nietzsche como o ldquoproblema da

ciecircncia mesmardquo a saber um problema que nos envolve a todos por abarcar (ou

contaminar) toda a cultura ocidental - isto eacute ainda mantemos o dionisiacuteaco agrave baila

ocupando diminuta posiccedilatildeo em detrimento ao culto acerbado ao racionalismo socraacutetico

A cultura socraacutetica impotildee-se pelo homem-teoacuterico e qualquer outra existecircncia que fuja

aos olhos perscrutadores de Soacutecrates deve ldquolutar penosamente para pocircr-se agrave sua altura

como existecircncia permitida e natildeo como existecircncia propostardquo

Nietzsche nos atenta para o fato de reconhecermos comumente no homem culto

erudito o homem douto saacutebio ndash consecutivamente o dionisiacuteaco a arte eacute colocada de

forma perifeacuterica de modo a nunca poder encontrar espaccedilo para superar sua condiccedilatildeo de

ldquoremeacutedio-arterdquo A vontade aacutevida faz seu caminho mesmo atraveacutes da completa falta de

respostas de fundamentos de sentido assim eacute preferiacutevel ao ser humano querer o nada

no sentido de ainda sim querer alguma coisa do que nada querer do que reconhecer a

84

falta de fundamentos da qual consistem em todos os tempos as ilusotildees que

costumeiramente adota-se como engodo ao absoluto sem-sentido da vida

Por fim Nietzsche atenta-nos para o fato de como o homem de seu tempo vem

perdendo a crenccedila na ciecircncia otimista socraacutetica isto eacute pressentindo que a cultura

racionalista socraacutetica torna-se iloacutegica ao vislumbraacute-la em seus horizontes afastando-se

de suas consequumlecircncias Nietzsche diagnostica na oacutepera de seu periacuteodo a subordinaccedilatildeo da

muacutesica agrave arte figurada agrave palavra e expotildee a expectativa de que possa haver no cansaccedilo e

na percepccedilatildeo do insucesso dos esforccedilos racionalistas um renascimento da trageacutedia

85

4 Conclusatildeo pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo

da vida

Retribui-se mal a um mestre continuando-

se sempre apenas aluno

(Nietzsche)

Natildeo podemos ver na filosofia schopenhaueriana qualquer instacircncia que

justifique a vida Ao conhecermos a sua essecircncia - a vontade cega e irracional que se

deixa ver atraveacutes das manifestaccedilotildees do seu querer incessante - percebemos o absurdo de

sua existecircncia e somos por essa percepccedilatildeo levados agrave sua negaccedilatildeo Nietzsche por sua

vez utilizando-se dos conceitos da filosofia de Schopenhauer procura em sua obra

justificar a vida e encontra esta justificaccedilatildeo na arte Nesta conclusatildeo da pesquisa

pretendemos entatildeo apresentar um esboccedilo do modo pelo qual alguns elementos da

filosofia schopenhaueriana foram utilizados no projeto do primeiro livro de Nietzsche e

explicitar o modo como estes elementos foram configurados no interior de seu projeto

Dentre estes elementos percorreremos o paralelo entre os pares dionisiacuteacoapoliacuteneo e

vontaderepresentaccedilatildeo os conceitos de arte e apreciaccedilatildeo esteacutetica e sua cisatildeo entre as

86

artes figurativas e a musical a especificidade da muacutesica o conceito de gecircnio e sua

divisatildeo e os limites da racionalidade e da ciecircncia

Jaacute no primeiro paraacutegrafo de NT a associaccedilatildeo entre os pares nietzscheanos do

dionisiacuteaco e apoliacuteneo e as visotildees de mundo schopenhauerianas satildeo expliacutecitas Nietzsche

define o impulso apoliacuteneo atraveacutes do sonho do princiacutepio de individuaccedilatildeo e o dionisiacuteaco

atraveacutes da embriaguez da consciecircncia de unidade da vontade do livrar-se do veacuteu de

maia Os deuses gregos tornam-se representativos destes estados schopenhauerianos de

consciecircncia Como vimos no capiacutetulo segundo desta dissertaccedilatildeo sob o ponto de vista da

representaccedilatildeo o mundo eacute objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito

agraves condiccedilotildees a priori do entendimento Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das

formas a priori do entendimento eacute interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos

advindos da filosofia Platocircnica e oriental como um mundo aparente ilusoacuterio artificial

O sonho efeito do encantamento apoliacuteneo eacute utilizado como metaacutefora da realidade

fenomecircnica no mundo Schopenhaueriano Os Vedas e Puranas tantas vezes citados por

Schopenhauer tratam o mundo como um sonho imposto pelo deus Maia o deus da

ilusatildeo que cobre a visatildeo do homem com seu veacuteu A mitologia oriental aludida por

Schopenhauer toma conta do mundo helecircnico em Nietzsche que transforma Apolo no

deus Maia o configurador de sonhos O sonho eacute utilizado como ilustraccedilatildeo da realidade

pelo fato de que durante o sonho natildeo sabemos estar sonhando O mundo dos sonhos nos

eacute naquele momento real Vemo-nos como indiviacuteduos e vemos o mundo da

individuaccedilatildeo e suas leis causais espaccedilo-temporais Somente o momento empiacuterico do

despertar informa-nos do sonho Haacute portanto uma identificaccedilatildeo do ldquoparentesco iacutentimo

entre vida e sonhordquo(MVR 60) Como ilustraccedilatildeo desta metaacutefora Schopenhauer elogia

ainda a obra do ldquovaterdquo Calderoacuten de La Barca A vida eacute sonho agrave qual denominaraacute como

um ldquodrama metafiacutesicordquo por expor esta faceta de seu sistema A consciecircncia de que a

87

vida eacute sonho eacute para Schopenhauer um despertar metafiacutesico cujo propiciador foi Kant

ao demonstrar o caraacuteter fenomecircnico do mundo Este despertar contudo natildeo causa

prazer O filoacutesofo e o gecircnio personagens que na metafiacutesica schopenhaueriana alcanccedilam

este despertar satildeo atormentados pela realidade com a qual se deparam qual seja a de

que a vida eacute puro sofrimento Eacute no intuito de deixar velada esta faceta da vida que

Apolo ofusca a visatildeo dos homens com seu mundo luminoso de sonho seu objetivo eacute

encobrir esta verdade aterrorizadora As artes natildeo musicais tanto na teoria de

Schopenhauer como na nietzscheana manteacutem o homem em um juacutebilo prazeroso

ocasionado pela contemplaccedilatildeo puramente objetiva Neste momento natildeo se percebe o

jogo da vontade individualizada somos afastados da realidade do querer insuflados

pela caracteriacutestica quietiva da apreciaccedilatildeo esteacutetica nas palavras de Nietzsche

encontramos na arte um ldquoremeacutedio-arterdquo32

Esta visatildeo do lado terriacutevel da vida ocasionada pelo despertar do dogmatismo

metafiacutesico na teoria schopenhaueriana eacute associada em NT agrave sabedoria dionisiacuteaca

Verificamos na descriccedilatildeo do impulso dionisiacuteaco os elementos que caracterizam a

vontade schopenhaueriana A visatildeo dionisiacuteaca do mundo carrega consigo o despertar

para o caraacuteter absurdo da vida Ao olhar para a proacutepria essecircncia o homem descobre-se

enquanto manifestaccedilatildeo de uma vontade aacutevida desprovida de telos O ldquomecanismo

internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens marionetes guiados pela

carecircncia Esta realidade eacute assustadora pois subtrai do horizonte todos os propoacutesitos da

vida individual Dioniacutesio trava aqui sua batalha contra Apolo ao apontar a ilusatildeo da

individuaccedilatildeo como mecanismo para uma fuga daquilo que em essecircncia somos Apesar

de seu caraacuteter aterrorizador a sabedoria dionisiacuteaca eacute acompanhada do deleite

32

Podemos ver aqui o nuacutecleo da dissenssatildeo entre as teorias dos dois filoacutesofos Para Schopenhauer este

remeacutedio eacute temporaacuterio e tatildeo logo o efeito da apreciaccedilatildeo esteacutetica se esvaia os interesses da vontade voltam

a agir sobre o indiviacuteduo e a vida de sofrimento continua seu percurso restando apenas o caminho da

negaccedilatildeo daquela vontade da vida mesma em direccedilatildeo ao nada Nietzsche ao contraacuterio aponta para uma

forma de cura atraveacutes do remeacutedio-arte ver a vida enquanto forma de arte afirmaacute-la

88

indescritiacutevel da celebraccedilatildeo da unidade com o todo ldquoSob a magia do dionisiacuteaco torna a

selar-se natildeo apenas o laccedilo de pessoa a pessoa mas tambeacutem a natureza alheada

inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliaccedilatildeo com seu filho

perdido o homemrdquo(NT 31) Se Apolo eacute representado como deus da forma da clareza

da individuaccedilatildeo e as artes patrocinadas por ele satildeo expressotildees destas caracteriacutesticas

Dioniacutesio por sua vez eacute o patrocinador da muacutesica expressatildeo fenomecircnica direta da

vontade Vemos em Nietzsche uma biparticcedilatildeo das artes que tambeacutem pode ser extraiacuteda

da metafiacutesica schopenhaueriana (artes natildeo-musicais e arte musical)

Para Schopenhauer as formas artiacutesticas natildeo-musicais ao provocarem uma visatildeo

puramente objetiva do objeto apreciado tecircm como caracteriacutestica fundamental a

libertaccedilatildeo da subjetividade e com ela dos anseios da vontade Durante esta forma de

apreciaccedilatildeo esteacutetica ldquosomos alforriados do desgraccedilado iacutempeto volitivo festejamos o

Sabbath dos trabalhos forccedilados do querer a roda de Iacutexion cessa de girarrdquo (MVR

267) A definiccedilatildeo nietzscheana para a funccedilatildeo da arte apoliacutenea se daacute da mesma maneira

qual seja ela deve ldquo [] livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito

graccedilas ao baacutelsamo da aparecircncia do espasmo dos movimentos do querer []rdquo (NT

117) A muacutesica por sua vez recebe um tratamento especial de Schopenhauer devido ao

seu efeito esteacutetico Se as demais artes satildeo um quietivo para a vontade a muacutesica ldquonatildeo faz

mais do que agradar a vontade de viver jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo

seus ecircxitos e ao final expressa sua satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509) Ela encontra-se

num niacutevel de valor superior ao das demais artes por tratar-se de representar a essecircncia

do mundo a vontade mesma Assim tambeacutem ela eacute tratada por Nietzsche como a arte

que representa a sabedoria dionisiacuteaca e faz o apreciador vivenciar a vontade mesma

Em seus escritos sobre a poesia e a oacutepera Schopenhauer alude agrave necessidade de

subordinar os conceitos e o texto agrave muacutesica para que estas artes tenham um efeito mais

89

arrebatador no apreciador esteacutetico Esta subordinaccedilatildeo eacute assumida por Nietzsche em sua

teoria da trageacutedia Nietzsche encontra na liacuterica a primeira manifestaccedilatildeo desta junccedilatildeo da

arte dionisiacuteaca com a arte apoliacutenea e aponta aiacute o geacutermen que daraacute origem agrave trageacutedia

Podemos perceber aqui uma subordinaccedilatildeo das artes natildeo-musicais agrave muacutesica que por sua

vez se espelha na subordinaccedilatildeo do mundo fenomecircnico ao mundo da coisa-em-si As

artes figurativas representam as ideacuteias objetivaccedilotildees imediatas da vontade e a muacutesica

representa a vontade mesma Na teoria da trageacutedia de Nietzsche esta subordinaccedilatildeo seraacute

mantida e assim reflete a configuraccedilatildeo da metafiacutesica schopenhaueriana A muacutesica ldquoeacute

uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente sobre o mais iacutentimo do

homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele como se fora uma

linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo (MVR

336) Desta forma uma arte que se pretenda formar a partir da integraccedilatildeo de elementos

de diversas formas artiacutesticas deve tomar a muacutesica como inspiraccedilatildeo tanto na teoria de

Schopenhauer como na de Nietzsche

Desta dicotomia das formas artiacutesticas que podemos perceber nos dois filoacutesofos

podemos depreender duas formas do gecircnio o apoliacuteneo ou contemplativo e o

compositor dionisiacuteaco Para Schopenhauer ldquoo compositor manifesta a essecircncia mais

iacutentima do mundo expressa a sabedoria mais profunda numa linguagem natildeo

compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo magneacutetico fornece informaccedilotildees

sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito algumrdquo (MVR 342) Podemos

vislumbrar ainda nesta descriccedilatildeo de Schopenhauer uma caracteriacutestica do que Nietzsche

mais tarde iraacute chamar de criaccedilatildeo inconsciente Em uma segunda passagem desta vez ao

final do capiacutetulo 39 do segundo volume de MVR vemos tambeacutem uma caracteriacutestica que

posteriormente tambeacutem seraacute ressaltada por Nietzsche como demarcaccedilatildeo do caraacuteter

dionisiacuteaco Schopenhauer se utiliza de uma passagem dos Vedas para descrever o prazer

90

provocado pela muacutesica como um prazer de participaccedilatildeo no todo33

Este ecircxtase da

comunhatildeo eacute um aspecto reiteradamente apontado por Nietzsche O gecircnio dionisiacuteaco eacute

para o jovem filoacutesofo aquele que tambeacutem absorvido pelo impulso dionisiacuteaco traduz

sua essecircncia em linguagem musical O tipo de gecircnio musical descrito eacute encontrado em

Schopenhauer nas encarnaccedilotildees de Rossini e Beethoven cujas obras operiacutesticas satildeo

norteadas pela produccedilatildeo musical e o livreto ocupa um lugar secundaacuterio Nietzsche

aponta um renascimento progressivo do gecircnio musical em seu tempo que se inicia com

Bach e tem continuidade em Beethoven mas que encontra sua forma mais bem acabada

em Richard Wagner

Apesar da tomarem caminhos diferentes no que tange ao objetivo da obra de arte

traacutegica Nietzsche e Schopenhauer mais uma vez em uniacutessono consideram-na todavia

como uma forma de entendimento superior ao apresentado pelo pensamento cientiacutefico

Como vimos anteriormente as ciecircncias no sistema schopenhaueriano seguem o

princiacutepio de razatildeo seu papel eacute apenas descritivo e consequumlentemente limitado ao

acircmbito daquele princiacutepio Transformam em conceitos abstratos o mundo intuitivo ao

descrevecirc-lo em sua aparecircncia e seguem o fio condutor do principio de razatildeo

apresentando as causas para cada fenocircmeno particular Desta forma as ciecircncias estatildeo

subordinadas ao mundo da aparecircncia e no que importa agrave essecircncia natildeo podem

demonstraacute-la As uacutenicas produccedilotildees humanas com esta capacidade satildeo a arte e a

filosofia e essas o fazem de forma indireta metafoacuterica A consideraccedilatildeo racional do

mundo estaacute enquanto presa ao acircmbito do fenocircmeno subordinada aos ditames da

vontade Esta ldquovontade aacutevida sempre encontra um meio atraveacutes de uma ilusatildeo

distendida sobre as coisas de prender agrave vida as suas criaturas e de obrigaacute-las a

prosseguir vivendordquo (NT 108) Nietzsche descreve trecircs formas pelas quais a vontade

33

ldquoE o delicioso que eacute uma classe de alegria chama-se assim o sumo Atman porque onde haacute uma

alegria esta eacute uma pequena parte de sua alegriardquo (MVR II 510)

91

manteacutem a vida A primeira delas eacute o ldquoveacuteu da beleza da arterdquo sustentado pelo impulso

apoliacuteneo Encontramo-la na epopeacuteia homeacuterica e nas artes figurativas A segunda eacute a

visatildeo traacutegica do mundo que encontra um consolo metafiacutesico na percepccedilatildeo de um

substrato comum aos fenocircmenos e que por consequumlecircncia abdica destes em funccedilatildeo da

vivecircncia daquele substrato A terceira forma de dominaccedilatildeo da vontade eacute a ciecircncia a

loacutegica socraacutetica que procura abarcar o mundo com sua razatildeo de acircnsia justificadora

Estas trecircs formas de coerccedilatildeo conforme sua predominacircncia em determinada cultura

formam o que Nietzsche iraacute denominar respectivamente de culturas artiacutestica traacutegica e

socraacutetica Correspondem historicamente agraves fases predominantemente helecircnica budista

ou alexandrina Fazendo um diagnoacutestico da cultura contemporacircnea Nietzsche a

identifica como uma cultura predominantemente alexandrina Diagnostica o seu ocaso a

partir da identificaccedilatildeo feita por Kant e Schopenhauer dos limites da ciecircncia do

desmascaramento das verdades eternas que amparam a visatildeo socraacutetica de mundo quais

sejam a visatildeo de que o tempo o espaccedilo e a causalidade satildeo leis universais e

incondicionais Esta criacutetica ao racionalismo eacute constante na obra schopenhaueriana

Percebemo-la claramente em suas investidas contra a filosofia de seu tempo e a

presunccedilatildeo nela presente de racionalmente abarcar o real

- - - - - - - - - -

Compostas por conceitos da metafiacutesica schopenhaueriana a teoria da trageacutedia de

Schopenhauer e a de Nietzsche apontam para caminhos diversos Em Schopenhauer a

trageacutedia eacute a arte cujo fim uacuteltimo eacute ao expor seu lado terriacutevel inspirar o apreciador agrave sua

renuacutencia Este lado terriacutevel espelho do mundo presentificador da vida humana e de

suas relaccedilotildees ocasiona atraveacutes do medo e da compaixatildeo a vontade de renuacutencia a essa

92

mesma vida Nietzsche introduz na trageacutedia o elemento da muacutesica schopenhaueriana34

A consequumlecircncia desta introduccedilatildeo eacute um plano mais profundo de entendimento que

apresenta a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com sua essecircncia Neste estado de consciecircncia

apartado de sua individualidade o sujeito jaacute se vecirc como um criador de mundos e vecirc no

mundo uma obra de arte sua Ao derivar o impulso apoliacuteneo do dionisiacuteaco35

Nietzsche

jaacute executou a renuacutencia do indiviacuteduo que agora passa a se ver como essecircncia e ao mundo

como fenocircmeno artiacutestico

34

Machado (2006 200) considera na esteira de Clemeacutent Rosset e de Jean-Marie Schaeffer a utilizaccedilatildeo

da teoria da apreciaccedilatildeo musical de Schopenhauer por Nietzsche como o elemento que sugeriraacute a

caracteriacutestica de afirmaccedilatildeo da vontade de sua filosofia da trageacutedia 35

ldquoNo efeito conjunto da trageacutedia o dionisiacuteaco recupera a preponderacircncia ela se encerra com um tom

que jamais poderia soar a partir do reino da arte apoliacutenea E com isso o engano apoliacuteneo se mostra como o

que ele eacute como o veacuteu que enquanto dura a trageacutedia envolve o autecircntico efeito dionisiacuteaco o qual

todavia eacute tatildeo poderoso que ao final impele o proacuteprio drama apoliacuteneo a uma esfera onde ele comeccedila a

falar com sabedoria dionisiacuteaca e onde nega a si mesmo e agrave sua visibilidade apoliacuteneardquo (NT 129)

93

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7

A existecircncia eacute um episoacutedio do nada

Arthur Schopenhauer

8

RESUMO

O projeto que aqui se apresenta tem como objetivo principal percorrer as

teorias do traacutegico schopenhaueriana e nietzscheana no intuito de apresentar as

principais caracteriacutesticas de cada uma destas teorias Este percurso teraacute como ponto de

partida o fundamento metafiacutesico comum a elas qual seja a filosofia schopenhaueriana

da vontade Atraveacutes desta exposiccedilatildeo pretendemos demonstrar natildeo somente a real

amplitude da influecircncia de Schopenhauer nos primeiros escritos de Nietzsche mas

tambeacutem algumas das peculiaridades existentes em cada uma das citadas teorias

Palavras-chave Schopenhauer - Nietzsche - Trageacutedia - Traacutegico - Filosofia da

vontade

ABSTRACT

The research presented herein has as its ultimate goal to discuss the

theories of the tragedy developed by Schopenhauer and Nietzsche highlighting the

main characteristics ndash points of convergence and divergence ndash of both Our trajectory

shall start from the metaphysical foundations apparently displayed in both theories

which is ndash the schopenhauerian philosophy of the will Throughout our exposition we

intend to show not only that Schopenhauers philosophy had a huge impact in

Nietzsches first writings but also reveal the peculiarities beneath the development of

their aforementioned theories

Keywords Schopenhauer - Nietzsche - Tragedy - Tragic ndash Philosophy of the will

9

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO11

1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES NA

FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA 17

2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU

SUBSTRATO METAFIacuteSICO42

21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo43

22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo45

23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana49

24 A finalidade moral da trageacutedia56

25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera62

3 A TEORIA DA TRAGEacuteDIA DO JOVEM NIETZSCHE65

31 A influecircncia de Schopenhauer na obra do primeiro Nietzsche66

32 O projeto subjacente ao nascimento da trageacutedia72

33 A teoria da trageacutedia publicada75

4 CONCLUSAtildeO pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo da

vida85

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS93

10

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Obras de Nietzsche

NT = O nascimento da trageacutedia (1992)

VD = Visatildeo dionisiacuteaca do mundo (2005)

CORRESPONDEcircNCIA = Correspondecircncias de Nietzsche (2007)

OC = Obras completas de Nietzsche (1963)

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INTRODUCcedilAtildeO

ldquoDias sem nuacutemero nunca reservam a

ningueacutem nada mais que dissabores mais

proacuteximos da dor que da alegria Quanto aos

prazeres natildeo os discernimos e nossa vista os

buscaraacute em vatildeo logo que para nossa

desventura chegamos ao limite prefixado E

desde entatildeo o nosso aliacutevio uacutenico seraacute aquele

que daraacute a todos o mesmo fim na hora de

chegar de suacutebito o destino procedente do

tenebroso reino onde natildeo haacute cantos nem

liras onde natildeo haacute danccedilas ndash ou seja a morte

epiacutelogo de tudo Melhor seria natildeo haver

nascido como segunda escolha bom seria

voltar logo depois de ver a luz agrave mesma

regiatildeo de onde se veiordquo

(Soacutefocles)

As teorias sobre a trageacutedia de Schopenhauer e Nietzsche satildeo parte

indispensaacutevel no estudo da histoacuteria da filosofia da trageacutedia Dentre os diversos

pensadores contemporacircneos que tratam sobre o problema da trageacutedia e do traacutegico e que

deram visiacutevel destaque agraves teorias dos nossos filoacutesofos podemos destacar Walter

Benjamin1 e Peter Szondi

2 Entretanto nos trabalhos destes autores o problema do

1 BENJAMIN Walter Origem do drama barroco alematildeo Traduccedilatildeo Sergio Paulo Rouanet Satildeo Paulo

Brasiliense 2004

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relacionamento e da interdependecircncia entre as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche

natildeo eacute detalhado a contento Diante disto mesmo para um olhar historicamente

caracterizador torna-se vaacutelido um estudo comparado destas teorias que leve em

consideraccedilatildeo o quecirc ou o quanto haacute de comum em suas metafiacutesicas e a partir desta

perspectiva trace os aspectos coincidentes e dissidentes das mesmas mostrando seus

pontos de interdependecircncia e discrepacircncia muacutetua

Apesar de estar entre as teorias da trageacutedia mais estudadas do periacuteodo do

idealismo alematildeo a teoria Schopenhaueriana que eacute sempre analisada em relaccedilatildeo a seus

pressupostos metafiacutesicos ao ser vista sob outra perspectiva ganharia contornos

intensamente enriquecidos Esta perspectiva atraveacutes da qual nos propomos a examinar a

teoria do traacutegico do filoacutesofo eacute aquela que levaraacute em consideraccedilatildeo as influecircncias

histoacutericas culturais e filosoacuteficas que agiram diretamente sobre a esteacutetica do traacutegico

schopenhaueriana Ao lanccedilarmos um olhar sobre estas referidas influecircncias estaremos

abrindo caminho para uma melhor compreensatildeo sobre a teoria esteacutetica

schopenhaueriana o que conseguintemente refletiraacute em um juiacutezo mais adequado da

teoria nietzscheana

Para um entendimento mais eficiente das teorias propostas nas obras do

jovem Nietzsche parece-nos essencial o conhecimento de uma de suas mais decisivas

influecircncias a filosofia de Schopenhauer A analogia almejada erige-se na verdade

como meacutetodo de anaacutelise ou seja o que pretendemos eacute alcanccedilar uma maior compreensatildeo

dos problemas com os quais Nietzsche se deparou quando da elaboraccedilatildeo de sua primeira

obra e procurar identificar a existecircncia de alguma apropriaccedilatildeo eou adaptaccedilatildeo de alguns

conceitos da filosofia de Schopenhauer na resoluccedilatildeo destes problemas A necessidade

deste estudo comparativo torna-se ainda mais evidente quando e este eacute o caso

2 SZONDI Peter Ensaio sobre o Traacutegico Traduccedilatildeo Pedro Suumlssekind Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

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defrontamo-nos com uma influecircncia que se apresenta tatildeo clara e assumidamente

admitida pelo autor Todavia natildeo se pretende aqui apenas a justaposiccedilatildeo de um

pensamento ao outro Apesar de ser identificaacutevel em toda a obra posterior de Nietzsche

encontra-se nos seus primeiros escritos sobretudo na obra O nascimento da trageacutedia

aquele momento discursivo no qual podemos apontar uma influecircncia mais direta da

filosofia de Schopenhauer

Dos trabalhos que fazem um estudo comparativo entre estes filoacutesofos a

maioria se ateacutem em identificar as diferenccedilas conceituais entre eles mais

especificamente no campo eacutetico e metafiacutesico Grosso modo tratam principalmente dos

problemas relativos agrave diferenciaccedilatildeo entre os conceitos de vontade nestes autores

vontade de viver e vontade de poder Estes estudos tecircm como foco a filosofia tardia de

Nietzsche onde este apesar da assumida influecircncia torna-se um criacutetico de

Schopenhauer A real extensatildeo da influecircncia deste filoacutesofo na primeira obra de

Nietzsche bem como o relacionamento entre suas teorias da trageacutedia permanecem

assim como territoacuterios ainda pouco explorados Ao lanccedilarmos olhar sobre esse

afastamento que Nietzsche mais tarde realizaraacute em relaccedilatildeo agrave filosofia

Schopenhaueriana verificamos mais uma vez a importacircncia do estudo de sua primeira

fase na qual poderemos detectar o referido afastamento

Podemos observar entretanto o crescimento do interesse no estudo da

obra O nascimento da trageacutedia de Nietzsche Nos uacuteltimos anos assistimos tambeacutem no

Brasil agrave publicaccedilatildeo de vaacuterios trabalhos que tecircm sob perspectiva a complexidade desse

seu primeiro livro Na bibliografia sugerida neste projeto constam publicaccedilotildees dos

seguintes autores Roberto Machado (2006) Rosa Maria Dias (2005 e 2009) Iracema

Macedo (2006) Marcio Joseacute Silveira Lima (2006) Estas publicaccedilotildees tratam temas

diversos da esteacutetica nietzscheana tais como a muacutesica a trageacutedia o traacutegico ou a

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repercussatildeo do livro de Nietzsche e sua influecircncia wagneriana Podemos ver entretanto

naqueles e em outros trabalhos a constante chave de leitura que atribui a Schopenhauer

a influecircncia decisiva natildeo apenas sobre o jovem Nietzsche como usualmente se aponta

mas tambeacutem sobre um peculiar imbricamento entre metafiacutesica e esteacutetica o qual se

sustentaria sobre os ldquoimpulsos artiacutesticos da naturezardquo o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco Nos

termos de Dias (2005 27)

A oposiccedilatildeo apoliacutenea e dionisiacuteaca considerada no plano

metafiacutesico se daacute a partir da noccedilatildeo de vontade ou querer

estendida (sic) no sentido que a ela deu Schopenhauer de

ldquocentro e nuacutecleo do mundordquo ou ldquoforccedila que eternamente quer

deseja e aspirardquo () O mundo fenomecircnico como resultado

desse movimento do querer () faz um segundo movimento

dessa vez esteacutetico reproduzindo o movimento inicial que a

vontade realizou em direccedilatildeo agrave aparecircncia

Tendo em vista o fato de que as teorias sobre o traacutegico dos dois filoacutesofos tecircm como

ponto de partida o sistema metafiacutesico schopenhaueriano fica clara a necessidade de

analisar em cotejo estas teorias tendo como fio condutor o meacutetodo de investigaccedilatildeo ora

proposto

Aleacutem de um aprofundamento no problema da influecircncia de

Schopenhauer na obra esteacutetica de Nietzsche o estudo de suas teorias sobre o traacutegico nos

daraacute a oportunidade de identificar as peculiaridades de cada uma destas teorias bem

como de estabelecer a sua importacircncia histoacuterica para uma filosofia do traacutegico

Em um primeiro momento traccedilaremos um panorama histoacuterico que

objetiva entender o status quo da filosofia do traacutegico no periacuteodo anterior ao

desenvolvimento da teoria schopenhaueriana da trageacutedia Esta investigaccedilatildeo seraacute

norteada pelas referecircncias constantes na proacutepria obra de Schopenhauer bem como por

um levantamento biograacutefico do filoacutesofo ou seja trabalharemos somente os momentos

que satildeo fundamentais para uma melhor compreensatildeo da obra schopenhaueriana Dentre

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estes momentos daremos ecircnfase aos seguintes pontos o estudo sobre o helenismo de

Winckelmann e sua repercussatildeo a criacutetica teatral de Lessing Schiller e Goethe seu

projeto de criaccedilatildeo de um teatro alematildeo e suas produccedilotildees dramaacuteticas

Traccedilado o panorama histoacuterico no qual se insere a teoria da trageacutedia

schopenhaueriana passaremos para o toacutepico seguinte a apresentaccedilatildeo do sistema

metafiacutesico de Schopenhauer no qual estaacute embasada a sua teoria da trageacutedia bem como

a teoria nietzscheana A apresentaccedilatildeo seraacute feita de forma a expor os aspectos gerais da

filosofia da vontade atendo-se aos pontos deste sistema que estatildeo intrinsecamente

relacionados agraves teorias da trageacutedia dos nossos autores

Apoacutes os passos descritos reuniremos em um esboccedilo geral as

caracteriacutesticas do relacionamento existente entre o jovem Nietzsche e a filosofia de

Schopenhauer Para tanto utilizaremo-nos das referecircncias que Nietzsche faz a

Schopenhauer em suas cartas e escritos de juventude Com esta pesquisa pretendemos

identificar a opiniatildeo que o jovem Nietzsche tinha sobre a filosofia de Schopenhauer e a

profundidade da influecircncia desta em sua primeira obra Percorreremos ainda o ambiente

circundante agrave primeira obra de Nietzsche no intuito de realccedilar alguns dos conceitos

formativos de O nascimento da trageacutedia

Estabelecida a ligaccedilatildeo entre os autores passaremos ao estudo do apoliacuteneo

e do dionisiacuteaco par conceitual que nos forneceraacute a chave para se fazer um estudo

comparativo entre os filoacutesofos Para cumprir esta etapa analisaremos O nascimento da

trageacutedia bem como escritos contemporacircneos a este livro atraveacutes dos quais poderemos

delinear melhor a significaccedilatildeo desta duplicidade de impulsos e visotildees de mundo

Delinearemos assim os contornos das definiccedilotildees fundamentais da esteacutetica nietzscheana

e procuraremos construir um paralelo entre o mundo dionisiacuteaco e o mundo metafiacutesico

da vontade schopenhaueriano Temos a intenccedilatildeo de demonstrar a origem desta

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metafiacutesica da vontade ou seja o criticismo kantiano e sua importacircncia para o conceito

de dionisiacuteaco Demonstraremos tambeacutem as caracteriacutesticas do mundo fenomecircnico

schopenhaueriano em sua identidade com o apoliacuteneo nietzscheano retomando a

epistemologia de Schopenhauer

Realizada a aproximaccedilatildeo e expostas tanto as semelhanccedilas como as

particularidades dos conceitos principais dos dois autores percorreremos sempre

focando um estudo paralelo entre os filoacutesofos outros conceitos que encontram

similaridade em suas esteacuteticas Com esse intuito procuraremos identificar nos dois

filoacutesofos o destaque dado agrave muacutesica dentro de suas teorias e o lugar dado agraves outras artes

em suas obras Discorreremos sobre a criacutetica que eles em uniacutessono fazem ao que

nomeiam racionalismo dogmatismo e o otimismo Finalizadas as aproximaccedilotildees

voltaremos nossa atenccedilatildeo ao aspecto de dissensatildeo que propicia o afastamento

fundamental entre as teorias dos dois filoacutesofos o efeito da trageacutedia Com isto

demonstraremos que a base metafiacutesica comum quando alinhada a pressupostos

esteacuteticos distintos geraraacute a referida dissensatildeo

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1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES

NA FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA

Por que minha filosofia natildeo encontrou

simpatia e interesse Porque a verdade natildeo

estaacute de acordo com a tagarelice dos tempos

(Schopenhauer)

Neste primeiro capiacutetulo objetivamos apresentar as fontes filosoacuteficas

incutidas no sistema schopenhaueriano no intuito de situar historicamente o surgimento

da filosofia da vontade e trazer agrave baila o seu ambiente circundante bem como as teorias

filosoacuteficas com as quais Schopenhauer se propotildee a dialogar Apontaremos inicialmente

as influecircncias filosoacuteficas assumidamente presentes no sistema schopenhaueriano bem

como aquelas que fundamentam sua metafiacutesica e consequumlentemente sua teoria esteacutetica

Em um segundo momento procuraremos fazer um breve esboccedilo do ambiente artiacutestico-

cultural que dominava o pensamento alematildeo de entatildeo com o qual direta ou

indiretamente Schopenhauer e o jovem Nietzsche se depararam Com isto esperamos

posteriormente demarcar as singularidades que caracterizam as teorias destes filoacutesofos

Ressaltamos todavia que natildeo se trata de um mapeamento completo das fontes que

influenciaram esses autores ndash tarefa que exigiria um esforccedilo bem maior do que aquele

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proposto por esta pesquisa ndash e sim de um breve panorama que se pautaraacute nas influecircncias

marcantemente presentes em suas obras

No contato com a obra de Schopenhauer a primeira impressatildeo que natildeo

passa despercebida aos seus leitores eacute a qualidade de sua prosa3 Tal qualidade

revelada na diversidade de recursos literaacuterios utilizados pelo autor eacute produto da visiacutevel

erudiccedilatildeo cultivada pelo filoacutesofo Conhecedor do grego do latim e suas respectivas

literaturas Schopenhauer transitava ainda pela obras literaacuterias cientiacuteficas e filosoacuteficas

contemporacircneas em suas liacutenguas originais conhecia o inglecircs o italiano o francecircs e o

espanhol Em sua juventude conviveu com vaacuterias personalidades do meio cultural

germacircnico que frequumlentavam o salatildeo de sua matildee em Weimar dentre eles Goethe a

maior figura das letras germacircnicas com quem teve um relacionamento mais proacuteximo

Sua obra eacute repleta de citaccedilotildees de poetas dramaturgos e seu conhecimento das artes

plaacutesticas e da muacutesica natildeo satildeo superficiais Em suas viagens pela Europa pocircde admirar

diversas esculturas e pinturas e como ele proacuteprio dizia pocircde ler diretamente no ldquolivro

do mundordquo Essa erudiccedilatildeo pode ser notada mesmo diante do desconhecimento de sua

biografia pela observaccedilatildeo da enorme quantidade de citaccedilotildees e menccedilotildees que estatildeo

espalhadas no interior de suas obras traduzidas ou como em sua maior parte citadas

em suas respectivas liacutenguas Frequumlentava as mais diversas aacutereas de conhecimento de sua

eacutepoca como sustenta Aramayo

3 O cuidado com a qualidade da produccedilatildeo literaacuteria tanto no que se refere agrave clareza quanto agrave riqueza de

recursos linguumliacutesticos eacute uma das caracteriacutesticas que Schopenhauer e Nietzsche tecircm em comum Esta

qualidade torna-se mais evidente ainda quando seus trabalhos satildeo natildeo raramente comparados com os

escritos filosoacuteficos alematildees daquele periacuteodo principalmente aos de Fichte Schelling e Hegel O elogio agrave

prosa schopenhaueriana feito por literatos e filoacutesofos contemporacircneos influenciados por sua obra pode

ser ilustrado agrave exaustatildeo entre eles encontram-se Thomas Mann Goethe Wittgenstein e o proacuteprio

Nietzsche ldquoMas a imensa forccedila de penetraccedilatildeo deste pensamento explica-se antes de tudo pelo fato de o

autor ser ao lado de Nietzsche o maior entre os escritores filosoacuteficos alematildeesrdquo (Rosenfeld 1996 177)

Jorge Luis Borges em uma entrevista publicada por Die Welt em 25 de marccedilo de 1975 realizava esta

confissatildeo ltPara mim existe um escritor alematildeo ao qual prefiro Schopenhauer Sei que deveria dizer

Goethe poreacutem Schopenhauer me interessa muitiacutessimo mais Tanto que estudei alematildeo ndash que aprendi

sobre os versos de Heine ndash fundamental e especificamente para poder ler a Schopenhauer em sua proacutepria

liacutenguagt (Aramayo 2001 18)

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ldquoEm sua busca pela verdade Schopenhauer natildeo desdenha

nenhum aliado Os dramaturgos novelistas e poetas estatildeo quando

menos em peacute de igualdade com os mais egreacutegios filoacutesofos A perspicaacutecia

de Shakespeare ou a genialidade de Voltaire e a sutileza de Goethe nada

devem para a eloquumlecircncia Platocircnica a precisatildeo de um Spinoza e o rigor

conceitual do admirado Kant Sua curiosidade natildeo conhece limites nem

prejuiacutezo algum e por esta razatildeo tampouco menospreza quando o

considera oportuno prestar suficiente atenccedilatildeo aos fenocircmenos

paranormais agrave hipnose ou ao caacutelculo cabaliacutestico se entende que em

algo isto pode servir-lhe para demonstrar sua tese ou avaliar algumas de

suas intuiccedilotildees E na mesma direccedilatildeo aponta seu grande empenho por

incorporar o pensamento das religiotildees orientais a nosso acervo cultural

na possibilidade de um enriquecimento muacutetuordquo (Aramayo 2001 14-15)

A comparaccedilatildeo feita atraveacutes de metaacuteforas4 paraacutebolas ou alegorias em

sua maioria retiradas de obras literaacuterias ou cientiacuteficas torna-se recurso literaacuterio

constantemente presente na obra do filoacutesofo e ao mesmo tempo termocircmetro de suas

influecircncias e de seu relacionamento com o pensamento de seus contemporacircneos Tais

recursos satildeo utilizados contudo com o objetivo consciente de construir conhecimento

de ilustrar a mateacuteria do seu pensamento Nas palavras do filoacutesofo ldquoAs comparaccedilotildees satildeo

de grande valor na medida em que reduzem uma relaccedilatildeo desconhecida a uma

conhecida Inclusive as comparaccedilotildees mais detalhadas transformadas em paraacutebola ou

alegoria satildeo somente a reduccedilatildeo de uma relaccedilatildeo qualquer agrave sua exposiccedilatildeo mais

simples ilustrativa e palpaacutevelrdquo (Schopenhauer SOE 86) Se o nosso objetivo eacute mostrar

as raiacutezes da filosofia de Schopenhauer ou seja as influecircncias que formaram a mateacuteria

de seu pensamento eacute sobre esta mateacuteria que devemos nos debruccedilar Natildeo podemos

contudo nos furtar a apontar a riqueza das fontes formalmente presentes em seus

escritos5 A percepccedilatildeo da presenccedila desta numerosa miscelacircnea de referecircncias dentro da

4 ldquoSua profusa e brilhante utilizaccedilatildeo das metaacuteforas eacute o que o converte sem duacutevida alguma em um grande

escritor cujo estilo se nos afigura tatildeo ameno quanto sugestivordquo (Aramayo 2001 54) 5 Mateacuteria e forma satildeo na concepccedilatildeo do filoacutesofo planos ou instacircncias da produccedilatildeo escrita que servem

como referecircncia para o julgamento de valor do pensamento de um autor ldquo Um livro nunca pode ser mais

do que a impressatildeo dos pensamentos do autor O valor desses pensamentos reside na mateacuteria ou seja

naquilo sobre o que ele pensou ou na forma isto eacute na elaboraccedilatildeo da mateacuteria naquilo que pensou a

respeitordquo (Schopenhauer SOE 11) A importacircncia dada agrave forma por Schopenhauer seraacute melhor

esclarecida quando posteriormente apresentarmos a caracteriacutestica fundamentalmente epistemoloacutegica de

toda produccedilatildeo artiacutestica dentro de sua metafiacutesica do belo

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obra schopenhaueriana diz-nos algo sobre seu estilo e seu arcabouccedilo cultural

entretanto quando voltamo-nos para a busca das influecircncias diretamente presentes em

seu sistema ie agraves raiacutezes da mateacuteria de seu pensamento percebemos que elas natildeo satildeo

tatildeo numerosas

Uma leitura das fontes filosoacuteficas do sistema schopenhaueriano torna-se

diferentemente do que ocorre em outros sistemas de seu tempo menos trabalhosa por

dois motivos Primeiramente o autor natildeo esconde suas influecircncias mas ao contraacuterio

faz questatildeo de apontaacute-las citaacute-las e quando lhe parece necessaacuterio as critica ou exalta

Em segundo lugar o que facilita o mapeamento destas fontes eacute a caracteriacutestica de

unidade do sistema schopenhaueriano como um todo Apesar da longevidade do

filoacutesofo e da distacircncia temporal entre suas obras suas intuiccedilotildees fundamentais

continuaram sendo as mesmas ao longo de sua vida Nas palavras de Rosset

ldquoSchopenhauer eacute homem de um soacute livro o MVR e de um soacute pensamento (qualificado

por ele mesmo de ltpensamento uacutenicogt nas primeiras linhas de sua obra)rdquo (2005 35)6

Natildeo satildeo poreacutem coetacircneas as influecircncias que marcaram a obra do filoacutesofo

como talvez a constante menccedilatildeo a seus contemporacircneos possa sugerir Nas palavras do

filoacutesofo como citado por Lefranc (2005 17) ldquoPude amar prosseguir aperfeiccediloar a

minha obra soacute por ela mesma em tranquumlilidade completa ao abrigo de toda influecircncia

externa e meus contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes

permaneci estranhosrdquo Conhecia a filosofia de seu tempo todavia natildeo a tinha como

interlocutora na verdade a desdenhava satildeo famosas as criacuteticas de Schopenhauer contra

as filosofias de seus contemporacircneos principalmente as de Fichte Schelling e Hegel

6 Sobre a unidade da produccedilatildeo schopenhaueriana destacamos aleacutem de Rosset os apontamentos de outros

dois de seus maiores comentadores Arthur Huumlbscher e Alexis Philonenko Na introduccedilatildeo aos manuscritos

schopenhauerianos Huumlbscher aponta a importacircncia dos manuscritos na percepccedilatildeo desta unidade uma vez

que podemos notar em diversas fases da vida do filoacutesofo o desenvolvimento dos temas pontuais que

marcaram sua obra principal Vide Hubscher Introduction Manuscript Remains 1985 Alexis

Philonenko trata desta unidade no proacutelogo de sua obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia

(Philonenko 1989 41-45)

21

(chamados de ldquoos trecircs sofistasrdquo) Quando faz referecircncias a eles comumente estaacute

imbuiacutedo de trecircs propoacutesitos criticar a qualidade formal de suas produccedilotildees

principalmente no que tange ao uso da liacutengua germacircnica apontar uma motivaccedilatildeo

individualista (subsistecircncia pessoal e status social) que existiria por traacutes de suas

elucubraccedilotildees filosoacuteficas e ressaltar a falta de atenccedilatildeo por parte daqueles filoacutesofos no

que se refere ao conteuacutedo da primeira criacutetica kantiana

Schopenhauer diagnosticava em seu tempo um periacuteodo de

empobrecimento da expressatildeo literaacuteria e do uso da liacutengua germacircnica e apontava como

os principais responsaacuteveis por estes acontecimentos os ldquoprofessores de filosofiardquo e seus

disciacutepulos As investidas schopenhauerianas contra a filosofia de seus contemporacircneos

podem ser encontrada em praticamente todas as suas obras mas estatildeo concentradas de

forma mais persistente em sua produccedilatildeo mais tardia na segunda ediccedilatildeo da QRPRS de

MVR em seus ensaios sobre a liberdade e o fundamento da moral e nos PP 7

Nesta

uacuteltima obra temos dedicados a estas criacuteticas alguns textos que podemos destacar Sobre

o ofiacutecio de escritor Da leitura e dos livros Da liacutengua e das palavras e Sobre a filosofia

universitaacuteria A liacutengua alematilde no que se refere agrave sua capacidade expressiva era tida em

mais alta consideraccedilatildeo por nosso filoacutesofo Afirmava que dentre as liacutenguas modernas

era ldquoa uacutenica na qual se pode escrever quase tatildeo bem quanto em grego ou em latimrdquo

(Schopenhauer SOE 72) Esta capacidade de expressatildeo de uma liacutengua eacute segundo o

filoacutesofo resultado de sua aptidatildeo em representar conceitos Desta forma na medida em

que surgem novos conceitos a elaboraccedilatildeo de novas palavras que os representem eacute um

sinal de evoluccedilatildeo adequaccedilatildeo e riqueza da liacutengua Entretanto para o filoacutesofo os

neologismos e adaptaccedilotildees criados por seus contemporacircneos natildeo eram resultados da

7 Muitos historiadores da filosofia bioacutegrafos e comentadores apontam que esta criacutetica adveacutem do

ressentimento pelo fracasso de Schopenhauer como docente na universidade de Berlim onde Hegel

reinava absoluto bem como da falta de reconhecimento de sua filosofia diante do sucesso dos professores

da mesma universidade

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tentativa de representaccedilatildeo de novos conceitos mas ao contraacuterio eram comprovaccedilatildeo de

sua ldquopobreza de espiacuterito que a todo custo quer colocar algo no mercado e por natildeo ter

novos pensamentos chega com palavras novasrdquo (Schopenhauer SOE 129)

Schopenhauer condenava a atitude de seus contemporacircneos de utilizarem-se de

artifiacutecios como a natildeo designaccedilatildeo do caso a expressatildeo dos preteacuteritos por meio do

imperfeito a supressatildeo dos prefixos e outros subterfuacutegios para com isso disfarccedilar a sua

imprecisatildeo conceitual De acordo com Schopenhauer tratavam displicentemente a

liacutengua alematilde por dois motivos por natildeo possuiacuterem uma mateacuteria conceitualmente

relevante a ser expressa ou entatildeo para conscientemente causar a impressatildeo de que a

possuem e neste caso a responsabilidade pela natildeo compreensatildeo do texto seria atribuiacuteda

agrave incompetecircncia intelectual do leitor

Os que compotildeem discursos difiacuteceis obscuros enleados e

ambiacuteguos natildeo sabem ao certo o que querem dizer tecircm somente uma

consciecircncia vaga a esse respeito que luta primeiro por uma ideacuteia poreacutem

amiuacutede querem tambeacutem ocultar de si mesmos e dos outros que na

realidade eles natildeo tecircm nada a dizer Como Fichte Schelling e Hegel

querem parecer saber o que natildeo sabem pensar o que natildeo pensam e dizer

o que natildeo dizem Algueacutem que tenha algo correto a dizer se esforccedilaraacute por

exprimi-lo de maneira indistinta ou distinta (Schopenhauer SOE 39)

Podemos perceber entatildeo que ao criticar o estilo ldquoobscurordquo e ldquopomposordquo de seus

contemporacircneos Schopenhauer aponta como causa deste estilo natildeo somente a sua falta

de mateacuteria mas tambeacutem uma atitude consciente e arquitetadamente maldosa e com

toda a sua forccedila retoacuterica condena esta atitude

Nobre bdquoatualidade‟ magniacuteficos epiacutegonos geraccedilatildeo crescida no

leite materno da filosofia hegeliana Pela gloacuteria eterna quereis apertar

vossas garras em nossa antiga liacutengua para que a marca com um icnoacutelito

conserve para sempre o vestiacutegio de vossa existecircncia insiacutepida e sombria

Mas Dicirc Meliora Fora paquidermes fora Esta eacute a liacutengua alematilde Nela se

expressaram homens ou melhor nela cantaram grandes poetas e grandes

pensadores escreveram Arredai as patas Ou natildeo tereis o que comer (Soacute

isso os assusta) (Schopenhauer SOE 72-73)

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A uacuteltima frase desta citaccedilatildeo nos eacute aclarada pelo texto Sobre a filosofia universitaacuteria

onde o filoacutesofo expotildee os argumentos de sua criacutetica agrave filosofia produzida em seu tempo

Para Schopenhauer os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo podem devido agrave sua funccedilatildeo

estatal se imiscuir do compromisso poliacutetico-religioso que seu cargo exige e

conseguintemente sustentados pelo Estado tratam de fazer sua apoteose Nas palavras

de Cacciola constantes na introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo brasileira do referido texto

ldquoSchopenhauer eacute um continuador da criacutetica romacircntica ao filisteiacutesmo que se origina em

Tieck A ironia que visa os homens de vida tatildeo regular como o reloacutegio lhe eacute bem

familiar O filisteu eacute o erudito pedante que soacute pensa na proacutepria vantagem O professor

de filosofia que pauta seus ensinamentos de acordo com os ditames do Estado e da

religiatildeo eacute o tipo acabado do filisteu A idolatria do Estado eacute a apoteose do filisteiacutesmo

(Schopenhauer SFU XXX) Por traacutes das ideacuteias dos ldquofiloacutesofos de profissatildeordquo estaria

incutido o retorno disfarccedilado da ldquoteologia judaicardquo de uma ldquopsicologia racionalrdquo da

ldquoliberdade da vontaderdquo e outros dogmas que de acordo com Schopenhauer refletem a

sua vocaccedilatildeo de trabalharem ldquoin maiorem Dei gloriamrdquo como exigido pela ideologia

estatal daquele periacuteodo Natildeo podem sob a pena de perderem o sustento financeiro

pessoal e familiar bem como sob o custo de perderem o status que o cargo lhes confere

contrariar os dogmas patronais

ldquo[] o intelecto dessa gente permanece fiel agrave sua destinaccedilatildeo

natural de trabalhar a serviccedilo da vontade como normalmente acontece

Mas por isso mesmo existe sempre uma intenccedilatildeo como fundamento do

seu agir e pensar eles tecircm fins o tempo todo e soacute tomam conhecimento

do que diz respeito a esses fins e portanto soacute do que corresponde a

esses fins A atividade do intelecto liberto da vontade condiccedilatildeo da pura

objetividade e por isso de todas as grandes realizaccedilotildees permanece-lhes

eternamente estranha ndash eacute uma faacutebula para seu coraccedilatildeordquo (Schopenhauer

SFU 63)

Desta forma os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo estariam voltados para a investigaccedilatildeo

objetiva da ldquoverdaderdquo a qual exigiria o distanciamento de todo e qualquer interesse

24

pessoal De acordo com o sistema schopenhaueriano tal distanciamento eacute um dom raro

com o qual a natureza a poucos contempla Na metafiacutesica schopenhaueriana a natureza

eacute aristocraacutetica O gecircnio eacute fenocircmeno raro seja ele filoacutesofo ou artista A percepccedilatildeo

objetiva do mundo alheia aos interesses pessoais da vontade individual eacute uma exceccedilatildeo

que soacute se manifesta raramente e as pessoas atadas aos interesses pessoais de sua

vontade natildeo podem reconhececirc-lo imediatamente Estes gecircnios produzidos pela natureza

seriam os verdadeiros educadores do mundo e os ldquoprofessores de filosofiardquo ao tentar

representar este papel que soacute agrave natureza cabe eleger causam-lhe repulsa

Tantas mentes comuns que se acham por cargo e profissatildeo no

dever de representar papeacuteis que a natureza nem ao menos lhes atribuiacutera e

de transportar cargas que exigem ombros de gigantes espirituais

oferecem na realidade um espetaacuteculo deveras lamentaacutevel Pois escutar

cantar os roucos e ver danccedilar os coxos eacute penoso mas ouvir filosofar a

mente limitada eacute insuportaacutevel (Schopenhauer SFU 34)

Prova do embotamento da capacidade de reconhecimento de uma produccedilatildeo genial era

para o filoacutesofo o fato de seus contemporacircneos ignorarem ou mesmo passarem agrave

margem do que seria a mais importante produccedilatildeo filosoacutefica do periacuteodo a cisatildeo entre o

real e o ideal perpetrada pela primeira criacutetica kantiana Esta era para o filoacutesofo a maior

prova do demeacuterito filosoacutefico de seus contemporacircneos preocupados com seus interesse

pessoais alheios a uma observaccedilatildeo objetiva do mundo natildeo levaram em consideraccedilatildeo os

limites impostos pela primeira criacutetica kantiana a toda investigaccedilatildeo racional

Depois de Kant ter cortado o nervo de todas as provas possiacuteveis

da teologia ndash tatildeo incisivamente que desde entatildeo ningueacutem mais pocircde

meter-se com elas ndash o esforccedilo filosoacutefico em quase cinquumlenta anos tem

consistido nas diversas tentativas de insinuar sutil e astuciosamente a

teologia e os escritos filosoacuteficos nada mais satildeo na sua maioria do que

tentativas infrutiacuteferas de reanimar um cadaacutever sem vida (Schopenhauer

SFU 81)

Natildeo nos interessa aqui adentrarmo-nos aos reais motivos existentes por

traacutes dos vitupeacuterios schopenhauerianos contra os pensadores de seu tempo nem

25

tampouco fazer juiacutezo valorativo sobre a importacircncia da filosofia da vontade em

comparaccedilatildeo ao idealismo absoluto Dentro do objetivo proposto qual seja situar

historicamente a filosofia da vontade e apontar suas influecircncias o importante eacute ressaltar

que a filosofia contemporacircnea a Schopenhauer natildeo fez efeito sobre a sua proacutepria a ponto

de modificaacute-la em seu conteuacutedo conforme esclarece o proacuteprio filoacutesofo ldquo [] meus

contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes permaneci

estranhosrdquo (apud Lefranc 2005 17) Eacute fundamental verificarmos que apesar do

sistema schopenhaueriano ter se desenvolvido agrave margem do idealismo de entatildeo seu

autor natildeo o desconhecia e muitas das ilustraccedilotildees e argumentaccedilotildees utilizadas por ele na

explicaccedilatildeo de suas teorias apoiavam-se nesta sua contenda com o seu tempo

Entretanto como a filosofia de seu tempo pretende-se herdeira do kantismo assim

tambeacutem procede Schopenhauer e a suas criacuteticas ao idealismo absoluto estatildeo

fundamentadas em sua pretensatildeo a uma heranccedila direta da filosofia kantiana Sobre a

heranccedila de Kant Schopenhauer esclarece ldquoEm todo caso natildeo reconheccedilo que tenha

acontecido algo na filosofia entre ele e mim por conseguinte ligo-me imediatamente a

elerdquo (Schopenhauer MVR 525)

Natildeo obstante as diversas criacuteticas ao retorno kantiano ao dogmatismo8

das quais a obra de Schopenhauer estaacute recheada sua admiraccedilatildeo por ele foi tambeacutem

abundantemente expressa Considerava-o ldquoa inteligecircncia mais original jaacute criada pela

naturezardquo (Schopenhauer SFU52) e afirmava que seus escritos capitais eram o ldquo[]

fenocircmeno mais importante que ocorreu ao longo dos uacuteltimos dois mil anos na filosofia

[]rdquo (Schopenhauer MVR 22) O maior reflexo desta admiraccedilatildeo pode ser observada

8 Nas palavras de Cacciola ldquoO criticismo de Kant teria segundo Schopenhauer perdido sua forccedila inicial

na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura Ou seja Schopenhauer acusa Kant de uma ldquorecaiacuteda no

dogmatismordquo por ter amenizado seu confronto com a teologia A ameaccedila dogmaacutetica jaacute configurada na

filosofia teoacuterica concretiza-se na Eacutetica de Kant quando esta acolhe como postulados Deus

imortalidade da alma e liberdade No poacutes-kantismo a importacircncia crescente atribuiacuteda agrave filosofia praacutetica

de Kant a expensas de sua criacutetica do conhecimento teria levado a uma espeacutecie de contaminaccedilatildeo da

razatildeo teoacuterica pela razatildeo praacutetica fazendo com que a primeira se transformasse num oacutergatildeo apto para

captar o Absolutordquo (Cacciola 1994 20)

26

no fato de que eacute da filosofia kantiana que Schopenhauer retira o leitmotiv para o

desenvolvimento da ideacuteia central9 de sua filosofia Esta ideacuteia central eacute aquela contida

concisamente no tiacutetulo de sua obra principal O mundo como vontade e como

representaccedilatildeo10

A dualidade formada entre representaccedilatildeo e vontade atraveacutes da qual

Schopenhauer acredita ter desvendado o ldquomisteacuteriordquo cosmoloacutegico eacute uma apropriaccedilatildeo

assumida dos conceitos kantianos de fenocircmeno e coisa-em-si respectivamente

Dizemos apropriaccedilatildeo pois aqueles conceitos satildeo acrescidos na filosofia

schopenhaueriana de caracteriacutesticas singulares Eacute com base nesta dualidade de

perspectivas de conhecimento do mundo inspirada na primeira criacutetica kantiana que o

filoacutesofo desenvolve as demais teorias que compotildeem seu sistema sejam elas a esteacutetica a

eacutetica a poliacutetica etc

Para Schopenhauer ldquoo maior meacuterito de Kant eacute a distinccedilatildeo entre

fenocircmeno e coisa-em-sirdquo (Schopenhauer MVR 526) Esta distinccedilatildeo foi o que

possibilitou a ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo realizada sobre o dogmatismo anterior A partir

daquele momento ldquoo mundo objetivo como o conhecemos natildeo pertence agrave essecircncia das

coisas em si mesmas mas eacute seu mero FENOcircMENO condicionado exatamente por

aquelas mesmas formas que se encontram a priori no intelecto

humanordquo(Schopenhauer MVR 530) Na teoria kantiana temos o espaccedilo e o tempo

como formas da sensibilidade que na filosofia de Schopenhauer satildeo associadas agrave

faculdade do entendimento juntamente com a causalidade uacutenica das doze categorias

kantianas do entendimento mantidas por Schopenhauer em seu sistema Desta forma o

mundo enquanto representaccedilatildeo eacute aquele que se apresenta para o sujeito enquanto objeto

9 Quando dizemos ideacuteia central havemos de lembrar que no sistema schopenhaueriano esta categorizaccedilatildeo

eacute singular (o tema seraacute tratado no iniacutecio do proacuteximo capiacutetulo) 10

A importacircncia que o filoacutesofo daacute ao tiacutetulo de uma obra eacute esclarecedora para a compreensatildeo da

importacircncia de sua ideacuteia central ldquoo que o sobrescrito deve ser para uma carta eacute o que um tiacutetulo deve ser

para um livro ou seja antes de tudo deve ter o objetivo de destinaacute-lo agrave parte do puacuteblico que pode se

interessar por seu conteuacutedo Sendo assim o tiacutetulo precisa ser caracteriacutestico e por ser naturalmente

breve deve ser conciso lacocircnico pregnante e se possiacutevel um monograma do conteuacutedordquo

(Schopenhauer SOE 09-10)

27

condicionado por estas trecircs formas presentes a priori no intelecto humano tempo

espaccedilo e causalidade Quanto ao mundo noumecircnico que dentro da teoria kantiana eacute um

ldquox desconhecidordquo Schopenhauer o explica atraveacutes da Vontade sua traduccedilatildeo da coisa-

em-si Essa dualidade que traz agrave tona a ldquocompleta diversidade entre o ideal e o realrdquo

(Schopenhauer MVR 527) doutrina que de acordo com Schopenhauer (MVR 528) foi

expressa por Kant de forma soacutebria calma demonstrada e incontestaacutevel jaacute havia sido

expressa tambeacutem em linguagem mais miacutetica e poeacutetica por outras duas doutrinas que

tambeacutem estatildeo profundamente presentes na obra Schopenhaueriana Platatildeo e os escritos

indianos dos Vedas e Puranas

Os estudos das obras de Platatildeo e Kant foram recomendaccedilatildeo de Schultze

um dos professores de Schopenhauer em Gottingen (Weissmann 1980 54) e formam os

pilares filosoacuteficos do sistema schopenhaueriano A separaccedilatildeo entre o real e o ideal

executada por Kant eacute vista tambeacutem na obra platocircnica Sua teoria das ideacuteias bem como

sua alegoria da caverna satildeo expressotildees de uma intuiccedilatildeo da existecircncia daquela separaccedilatildeo

O que Kant teria sistematizado a seu modo eacute a mesma verdade que ldquojaacute Platatildeo

incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte

modo este mundo que aparece aos sentidos natildeo possui nenhum verdadeiro ser mas

apenas um incessante devir ele eacute e tambeacutem natildeo eacute sua apreensatildeo natildeo eacute tanto um

conhecimento mas uma ilusatildeordquo (Schopenhauer MVR 528)

Aleacutem de Platatildeo os livros sagrados dos indianos afirmavam esta ldquoilusatildeordquo

ldquofantasmagoriardquo do mundo e constituem tambeacutem uma fonte frequumlentemente utilizada

por Schopenhauer O contato do nosso filoacutesofo com o pensamento oriental se deu

quando do seu encontro com o orientalista Friedrich Majer no salatildeo de sua matildee em

28

Weimar A partir de entatildeo o interesse do filoacutesofo pelo pensamento oriental foi se

intensificando ao longo de sua vida 11

A mesma verdade representada de modo completamente outro eacute

tambeacutem uma doutrina capital dos vedas e puranas a saber a doutrina de

Maia pela qual natildeo se entende outra coisa senatildeo aquilo que Kant nomeia

o fenocircmeno em oposiccedilatildeo agrave coisa-em-si pois a obra de maia eacute

apresentada justamente como este mundo visiacutevel no qual estamos um

efeito maacutegico que aparece na existecircncia uma aparecircncia inconstante e

inessencial em si destituiacuteda de ser comparaacutevel agrave ilusatildeo de oacutetica e ao

sonho um veacuteu que envolve a consciecircncia humana um algo do qual eacute

igualmente falso e igualmente verdadeiro dizer que eacute ou natildeo eacute

(Schopenhauer MVR 528)

Estas trecircs doutrinas estavam admitidamente presentes quando da

elaboraccedilatildeo do nuacutecleo conceitual fundamental da posteriormente nominada Filosofia da

Vontade Entretanto aleacutem de formarem seu nuacutecleo conceitual podemos encontraacute-las

ainda posteriormente em outros instantes desta filosofia O pensamento oriental seraacute

figura fortemente presente na eacutetica schopenhaueriana desenvolvida no quarto livro do

Mundo onde o filoacutesofo adotaraacute como fundamento de sua eacutetica o sentimento da

compaixatildeo jaacute presente na doutrina budista Platatildeo e Kant satildeo ainda influecircncias

fundamentais como veremos no proacuteximo capiacutetulo da esteacutetica schopenhaueriana O

primeiro novamente atraveacutes de sua teoria das ideacuteias seraacute utilizado por Schopenhauer na

definiccedilatildeo do objeto artiacutestico Do segundo poderemos notar sua influecircncia nas teorias

schopenhauerianas do sublime da imaginaccedilatildeo e da contemplaccedilatildeo desinteressada todas

elas fundamentais agrave compreensatildeo da teoria da arte poeacutetica

- - - - - - - - - -

11

Suas fontes principais eram o Oupnekacutehat uma traduccedilatildeo latina dos vedas e o Asiatic Journals jornal

publicado pela sociedade asiaacutetica fundada em 1784 Para uma referecircncia completa das citaccedilotildees orientais

na obra de Schopenhauer veja o apecircndice do artigo de Moira Nicholls The influences of Eastern Thought

on Schopenhaueracutes Doctrine of the Thing-in-itself (in Janaway 1999 197-204)

29

Apresentadas as principais influecircncias teoacutericas do sistema

schopenhaueriano passemos a uma breve descriccedilatildeo do ambiente cultural que naquele

momento tinha como foco um projeto de fundaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para o teatro e a

literatura germacircnicas Tal projeto envolveu os mais importantes dramaturgos criacuteticos

escritores e pensadores do periacuteodo imediatamente anterior a Schopenhauer12

e eacute

tambeacutem posteriormente retomado por Nietzsche em seu Nascimento da Trageacutedia Sua

importacircncia para a filosofia da vontade pode ser medida pela recorrente referecircncia feita

a estes pensadores nas obras dos filoacutesofos Seu iniacutecio em meados do seacuteculo XVIII deu-

se pela influecircncia exercida pelo historiador da arte Johann J Winckelmann junto aos

escritores poetas e dramaturgos posteriores dentre eles Lessing Goethe e Schiller

A influecircncia winckelmanniana que de acordo com Butler (1958 11)

criou ondas cujo violento distuacuterbio ldquoainda varrem as praias do seacuteculo XXrdquo se pautou

em duas noccedilotildees fundamentais13

a imitaccedilatildeo dos antigos e o belo ideal Winckelmann

propunha um novo modelo no qual a arte germacircnica deveria se basear para atingir uma

grandiosidade rara e ldquoinimitaacutevelrdquo a imitaccedilatildeo dos gregos Por esta imitaccedilatildeo o

historiador natildeo propunha uma mera coacutepia das obras de arte gregas poreacutem uma imitaccedilatildeo

do modo de produccedilatildeo artiacutestica dos gregos qual seja sintetizar a beleza ideal descoberta

na observaccedilatildeo da diversidade objetiva da natureza Esta proposta de um retorno ao

modelo antigo coloca Winckelmann na esteira da conhecida querela entre antigos e

modernos e eacute a igniccedilatildeo para o periacuteodo literaacuterio conhecido como classicismo germacircnico

Esta disputa quanto agrave valorizaccedilatildeo das obras poeacuteticas antigas ou modernas estaraacute de um

modo ou de outro presente nas teorias schopenhaueriana e nietzscheana da trageacutedia

12

De acordo com Schopenhauer as obras de tais poetas e escritores assim como a filosofia de Kant satildeo

exemplos para os quais a literatura e a filosofia pobres de seu tempo deveriam se voltar No que se refere

ao uso da liacutengua ele aconselha ldquoLede vede qual liacutengua Winckelmann Lessing Klopstock Wieland

Goethe Buumlrger Schiller falaram e emulai-a mas natildeo fazei o mesmo com o jargatildeo estupidamente

excogitado pelos miseraacuteveis literatos atuais e entre eles pelos professores que vatildeo agrave escola de liacutenguardquo

(Schopenhauer SOE 57-58) 13

Esta duas noccedilotildees fundamentais satildeo ressaltadas por Suumlssekind e Machado em seus trabalhos sobre o

tema Veja Suumlssekind 2008 67-77 e Machado 2006 9-14

30

Como veremos posteriormente Schopenhauer privilegiaraacute a trageacutedia moderna em

detrimento da antiga argumentando que aquela cumpre com maior competecircncia o seu

objetivo enquanto forma de arte qual seja provocar repulsa agrave vontade de viver e

estimular sua negaccedilatildeo Apesar deste privileacutegio pelas obras traacutegicas modernas o filoacutesofo

natildeo deixa como seus contemporacircneos de ter os gregos como modelo e natildeo satildeo raros

seus elogios agraves produccedilotildees helecircnicas Para Schopenhauer Winckelmann foi para a

histoacuteria da arte assim como ele o eacute para a da filosofia um exemplo do modo epiciacuteclico

atraveacutes do qual a natureza de tempo em tempo faz avanccedilar o conhecimento do gecircnero

humano Para o filoacutesofo a retomada do projeto kantiano realizada pelo seu sistema eacute a

demonstraccedilatildeo de que entre ele e Kant nenhum conhecimento foi produzido Como

exemplo deste esquema epiciacuteclico na histoacuteria da arte Schopenhauer utiliza-se do

retorno de Winckelmann agrave beleza claacutessica o que nos mostra a importacircncia dada pelo

filoacutesofo agrave forma de arte grega bem como ao projeto inaugurado pelo historiador da arte

Apoacutes explicar o esquema epiciacuteclico da evoluccedilatildeo dos progressos humanos

Schopenhauer diz

Para quem deseja poreacutem ter uma prova do esquema geral dos

epiciclos aqui exposto com base na histoacuteria da arte basta observar a

escola de escultura de Bernini que florescia ainda no seacuteculo passado

particularmente em seu desenvolvimento francecircs sucessivo e que

representava a natureza comum em vez da beleza claacutessica e o decoro do

minueto francecircs em vez da simplicidade e da graccedila antigas Tal escola

faliu quando apoacutes a repreensatildeo de Winckelmann voltou-se agrave escola dos

antigos (Schopenhauer SOE 110)

Nietzsche por sua vez seguiraacute o caminho winckelmanniano de exaltaccedilatildeo da forma de

arte antiga apresentando a trageacutedia grega como modelo para a arte moderna e elogiando

a iniciativa de seus predecessores em valorizar e recuperar a arte helecircnica

31

Conviria que alguma vez se pesasse diante dos olhos de um juiz

insubornaacutevel em que tempo e em que homens o espiacuterito alematildeo se

esforccedilou mais vigorosamente por aprender dos gregos e se admitirmos

com confianccedila que esse louvor uacutenico deveria ser atribuiacutedo agrave nobiliacutessima

luta de Goethe Schiller e Winckelmann pela cultura haveria em todo

caso que acrescentar que desde aquele tempo e depois das influecircncias

imediatas daquela luta tornou-se cada vez mais fraca de maneira

incompreensiacutevel a aspiraccedilatildeo de se chegar por uma mesma via agrave cultura e

aos gregos (Nietzsche NT 120)

Podemos perceber entatildeo a importacircncia do helenismo proposto por Winckelmann no

pensamento germacircnico ao observarmos a sua duraccedilatildeo tendo em vista que mais de um

seacuteculo separa o historiador da arte e o filoacutesofo da vontade de poder o que confirma a

forccedila de suas propostas para uma cultura em formaccedilatildeo e justifica o epiacuteteto com o qual

Butler caracterizou este periacuteodo dizendo que nele vemos ldquoa tirania da Greacutecia sobre a

Alemanhardquo14

O segundo ponto fundamental da teoria da arte winckelmanniana o belo

ideal natildeo provocou menor interesse em seu tempo Este belo ideal era alcanccedilado a

partir da reuniatildeo em uma uacutenica obra harmocircnica daquilo que o artista observa de mais

belo na natureza

A natureza tem seus defeitos o corpo mais belo natildeo deixa de tecirc-los e

nele encontramos frequumlentemente partes que em outros satildeo mais belas ou

podem supor-se mais perfeitas [] Os gregos trataram de reunir as formas

elegantes de vaacuterios corpos belos como sabemos pelo diaacutelogo de Soacutecrates com o

ceacutelebre pintor Parrasio [] Esta seleccedilatildeo das partes belas e sua harmocircnica

associaccedilatildeo em uma soacute figura produziu a beleza ideal (Winckelmann 2002

130)

Tal beleza encontrou sua manifestaccedilatildeo primeira na Greacutecia do periacuteodo helecircnico devido

ao favorecimento das condiccedilotildees geograacutefico-climaacuteticas15

e poliacuteticas16

Aleacutem da beleza

14

Tiacutetulo de sua obra Butler 1958 15

Sobre a influecircncia climaacutetica Winckelmann deduz ldquoA natureza depois de haver se manifestado em

gradaccedilotildees extremas de frio e de calor se estabeleceu na Greacutecia como em seu centro e por isso reina

naquele paiacutes uma temperatura intermediaacuteria entre o inverno e o veratildeo E quanto mais se aproxima deste

centro mais claridade e serenidade oferece e suas obras se manifestam em formas mais graciosas e

amaacuteveis e com detalhes mais caracteriacutesticos e decididosrdquo (Winckelmann 2002106) 16

Sobre as condiccedilotildees poliacuteticas sejam elas patriarcais democraacuteticas ou tiracircnicas Winckelmann conclui o

seguinte ldquoCom relaccedilatildeo ao regime poliacutetico e o governo da Greacutecia a liberdade eacute uma das causas da

preeminecircncia dos gregos na arte Tambeacutem a liberdade parece ter estabelecido na Greacutecia a sua sede existia

32

formal retirada da diversidade das formas naturais eleitas as mais belas as obras gregas

eram exemplares devido agrave importacircncia dada pelos artistas agrave sua expressatildeo A obra de

arte deve sua forccedila tanto agrave beleza das formas quanto agrave expressatildeo da alma nela contida

De acordo com Winckelmann ldquoa expressatildeo de uma alma grande vai muito aleacutem da

plasmaccedilatildeo de uma bela naturezardquo isto ocorre devido ao fato de que para o historiador

da arte ldquona Greacutecia a sabedoria estendia a matildeo agrave arte e insuflava nas figuras almas

mais que comunsrdquo (Winckelmann 1958 19) As caracteriacutesticas que esta expressatildeo deve

possuir satildeo aquelas contidas na passagem mais famosa da obra de Winckelmann na

qual ele descreve ainda como exemplo daquela expressatildeo artiacutestica o grupo estatuaacuterio

do Laocoonte que por sua vez seraacute alvo de uma grande controveacutersia posterior da qual

participaratildeo dentre outros Lessing Herder Goethe Schelling e Schopenhauer

Reproduzimos a passagem de Winckelmann em sua integridade

A caracteriacutestica geral e principal das obras mestras gregas eacute uma

nobre simplicidade e uma serena grandeza tanto na atitude como na

expressatildeo Assim como nas profundidades o mar estaacute sempre calmo por

muito que se agite a superfiacutecie do mesmo modo a expressatildeo nas figuras

dos gregos mostra em meio a todas as paixotildees uma alma grande e

comedida Isso transmite o rosto do Laocoonte ndash e natildeo soacute o dele ndash em

meio agrave mais violenta dor O sofrimento que aparece em todos os

muacutesculos e fibras do corpo e que no baixo ventre contraiacutedo se

experimenta tatildeo intensamente que parecemos senti-lo natildeo se exterioriza

contudo mediante qualquer ira no rosto e em toda a atitude Natildeo lanccedila

um grito terriacutevel tal como Virgiacutelio cantou em seu Laocoonte A abertura

da boca natildeo o permitiria Mais parece um suspiro angustiado como o

descreve Sadolet A dor do corpo e a grandeza da alma estatildeo distribuiacutedos

com igual forccedila atraveacutes de toda a composiccedilatildeo da figura e em certa

medida estatildeo equilibrados Laocoonte sofre mas sofre como o

Filoctetes de Soacutefocles sua dor nos toca a alma mas desejariacuteamos poder

suportar essa dor com a grandeza desse homem (Winckelmann 1958

18-19 grifo nosso)

inclusive junto ao tronos de seus reis que governavam paternalmente a seus suacuteditos antes que mais

ilustrados gozassem do destino de uma completa liberdade Homero chama a Agamemnoacuten de pastor de

seus povos com o que queria designar sua ternura com seus subordinados e sua preocupaccedilatildeo constante

pela felicidade dos mesmos Eacute bem verdade que depois surgiram tiranos mas natildeo o foram mais para uma

determinada cidade e a naccedilatildeo inteira jamais reconheceu um soberano uacutenicordquo (Winckelmann 2002 109)

33

Desta famosa passagem retiramos dois momentos que especialmente nos interessam O

primeiro dele eacute a enunciaccedilatildeo que caracterizaraacute o ideal de beleza das obras gregas nobre

simplicidade e uma serena grandeza Este ideal winckelmanniano de beleza eacute o que

torna a arte grega nas palavras de Suumlssekind ldquoinimitaacutevel e ao mesmo tempo faz dela o

modelo a ser imitadordquo (Suumlssekind 2008 69) Interessa-nos especialmente devido agrave

influecircncia desta definiccedilatildeo para a teoria do jovem professor de filologia da Basileacuteia

Podemos ver ateacute mesmo pelo vocabulaacuterio utilizado para descrever a arte grega a

proximidade e a influecircncia exercida por estes conceitos nas teorias esteacuteticas do primeiro

Nietzsche Luminosidade serenidade harmonia satildeo alguns dos conceitos que

posteriormente seratildeo utilizados por Nietzsche ao definir o seu impulso artiacutestico

apoliacuteneo17

O segundo momento - quando Winckelmann defende o espiacuterito grego na

escultura do Laocoonte em contraposiccedilatildeo ao personagem de Virgiacutelio comparando esta

representaccedilatildeo escultural com o Filoctetes de Soacutefocles - seraacute o precursor do posterior

debate sobre as fronteiras que separam as formas de arte Para Winckelmann ldquoa nobre

simplicidade e a serena grandeza das estatuas gregas eacute tambeacutem a verdadeira

caracteriacutestica dos escritos gregos da melhor eacutepoca dos escritos da escola

socraacuteticardquo(Winckelmann 1958 31) O debate sugerido pela passagem do qual

participaraacute posteriormente o proacuteprio Schopenhauer seraacute iniciado por outro pensador

de grande importacircncia para o projeto cultural alematildeo Gotthold Ephraim Lessing

Lessing em sua obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da

poesia apresentaraacute a contenda que chegaraacute ateacute Schopenhauer Para Lessing o ponto de

discordacircncia com Winckelmann estaacute no motivo pelo qual na escultura o Laocoonte natildeo

17

Segundo Rodriges (2007 93-126) tambeacutem o conceito do impulso dionisiacuteaco estaria mesmo que em

germe presente nos estudos de Winckelmann Segundo seu artigo o mapeamento da origem e

desenvolvimento da discussatildeo sobre os citados impulsos artiacutesticos da natureza ou seja sobre a

importacircncia dos deuses Apolo e Dioniacutesio na cultura grega abrangeria necessariamente diversas aacutereas do

pensamento alematildeo desde Winckelmann dentre elas os estudos filoloacutegicos o movimento romacircntico e as

filosofias idealistas

34

apresenta as caracteriacutesticas de quem grita e lamenta Como vimos para Winckelmann o

conjunto estatuaacuterio em questatildeo eacute exemplar pelo fato de transmitir atraveacutes da atitude

estoacuteica diante da dor a grandeza de alma que seria a regra universal da verdadeira arte

grega Esta grandeza enquanto regra universal estaria ainda de acordo com o

historiador da arte presente tanto nas formas pictoacutericas como nas obras poeacuteticas

Contrapondo-se a Winckelman Lessing afirma - exemplificando atraveacutes de passagens

de poetas queridos ao proacuteprio Winckelmann como Homero e Soacutefocles - que em vaacuterios

momentos da poesia antiga diversos personagens dentre eles deuses e heroacuteis proferem

exaltados lamentos e gritos e isto natildeo lhes subtrai a grandeza da alma Sendo assim se

na poesialdquoo gritar na sensaccedilatildeo de dor corporal pode coexistir muito bem com uma

grande alma portanto a expressatildeo de uma tal alma natildeo pode ser a causa pela qual

apesar disso o artista natildeo quer imitar esse grito no seu maacutermore antes deve haver um

outro motivo por que aqui ele separa-se do seu rival o poeta que expressa esse grito

com o melhor propoacutesitordquo(Lessing 1998 86) O motivo pelo qual em sua representaccedilatildeo

estatuaacuteria o Laocoonte natildeo grita eacute para Lessing uma questatildeo de limitaccedilatildeo da forma de

expressatildeo escultoacuterica que ao se submeter agrave ldquolei da belezardquo natildeo pode representar o grito

desfigurador Em suas palavras

O mestre visava a suprema beleza sob as condiccedilotildees aceitas da dor

corporal Esta em toda a sua violecircncia desfiguradora era incompatiacutevel

com aquela Ele foi obrigado a reduzi-la ele foi obrigado a suavizar o

grito em suspiro natildeo porque o grito denuncia uma alma indigna mas

antes porque ele dispotildee a face de um modo asqueroso (Lessing 1998

92)

Devemos ressaltar que segundo a teoria artiacutestica de Lessing para quem as leis a que

devem obedecer a arte estatildeo ligadas agrave sua interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica a arte eacute

julgada atraveacutes do seu efeito Neste contexto ao conceder a seus personagens

caracteriacutesticas de humanidade como por exemplo a manifestaccedilatildeo da dor atraveacutes de

35

lamentos e gritos o poeta estaria aproximando o heroacutei traacutegico do puacuteblico a ser atingido

e consequumlentemente maximizando a identificaccedilatildeo entre eles e com isto o efeito

esperado qual seja a catarse atraveacutes do temor e da compaixatildeo Esta identificaccedilatildeo

alcanccedilada por via da demonstraccedilatildeo dos lamentos dos heroacuteis dramaacuteticos natildeo pode ser

obtida da mesma forma pelas artes pictoacutericas Nestas que satildeo expressotildees de um

momento uacutenico a beleza natildeo pode deixar de estar presente pois ela eacute um dos

ingredientes mais fundamentais do efeito buscado Na poesia o heroacutei natildeo seraacute

caracterizado em uma uacutenica accedilatildeo como ocorre na escultura Sendo assim o grito

narrado eacute apenas um momento do conjunto que iraacute definir o personagem

O Laocoonte de Virgiacutelio grita mas esse Laocoonte que grita eacute

justamente aquele que noacutes jaacute conhecemos e amamos como o patriota

mais cordato e o pai mais afetuoso Noacutes vinculamos o seu grito natildeo ao

seu caraacuteter mas antes apenas ao seu sofrimento insuportaacutevel Apenas

esse uacuteltimo noacutes ouvimos no seu grito e o poeta pode tornaacute-lo sensiacutevel

apenas graccedilas a esse grito (Lessing 1998 106)

Com isto tanto o escultor que suprime o grito quanto o poeta que o descreve ao

fazerem o fazem de acordo com as leis que regem suas respectivas formas de arte

Da contenda sobre o grito do Laocoonte e sua representaccedilatildeo escultoacuterica e

poeacutetica iratildeo participar ainda diversos pensadores Dentre os mais ilustres podemos

destacar Goethe cuja explicaccedilatildeo sobre a escultura proacutexima em muitos pontos da de

Lessing encontra-se nos Propileus Para o poeta o grupo estatuaacuterio ldquoesgota o seu objeto

e preenche com sucesso todas as condiccedilotildees da arterdquo (Goethe 2005126) Segundo

Goethe a escultura eacute limitada a um uacutenico momento da accedilatildeo e sua comparaccedilatildeo com a

poesia de Virgiacutelio eacute injusta O poeta a avalia assim como Lessing atraveacutes de seu efeito

ainda dentro das categorias poeacuteticas de Aristoacuteteles e destaca

O ser humano possui apenas trecircs sentimentos no sofrimento

proacuteprio e alheio o medo o terror e a compaixatildeo a previsatildeo temerosa de

um mal que se aproxima a percepccedilatildeo inesperada do sofrimento presente

36

e a participaccedilatildeo no sofrimento duradouro ou que passou todos os trecircs

sentimentos satildeo representados e suscitados por esta obra de arte e na

verdade na gradaccedilatildeo a mais conveniente (Goethe 2005 126)

Em sua obra principal Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 46 a seus comentaacuterios do

Laocoonte que seratildeo acrescidos de exemplos no posterior volume de suplementos

Reconhece o avanccedilo feito por Lessing ao colocar no lugar de um fundamento

psicoloacutegico um fundamento puramente esteacutetico e critica ainda as teorias psicoloacutegicas e

fisioloacutegicas de seu tempo como as de Hirt e Fernow18

Para Schopenhauer apesar de

sua aproximaccedilatildeo do que seria uma ldquoexplicaccedilatildeo corretardquo da obra Lessing natildeo encontrou

o seu ponto exato qual seja a explicaccedilatildeo de que o grito natildeo pertence ao domiacutenio de

uma representaccedilatildeo escultoacuterica

Antes de qualquer investigaccedilatildeo psicoloacutegica e fisioloacutegica sobre se

Laocoonte em sua situaccedilatildeo poderia gritar ou natildeo deve-se decidir em

relaccedilatildeo ao grupo de esculturas o seguinte que nele o grito natildeo pode ser

exposto pelo motivo de que a exposiccedilatildeo do grito reside por inteiro fora

do domiacutenio da escultura (Schopenhauer MVR 2005 303)

Para Schopenhauer a simples exposiccedilatildeo que representaria o grito ou seja ldquoo

escancarar violento da bocardquo natildeo pode ocasionar o efeito que o grito mesmo enquanto

forma de expressatildeo ocasionaria O efeito que o grito pode causar em uma arte

descritiva atraveacutes do uso da imaginaccedilatildeo do leitor ou mesmo na arte representativa no

teatro tornar-se-ia motivo de riso caso seja representado por uma boca escancarada na

arte plaacutestica Schopenhauer utiliza-se do exemplo do Laocoonte para demonstrar a

necessidade do estabelecimento de fronteiras entre as artes que devido agrave suas formas

devem obedecer agraves competecircncias determinadas pelo objeto representado (no caso da

teoria schopenhaueriana as competecircncias seratildeo determinadas pelas ideacuteias a serem

representadas como veremos posteriormente) Esta preocupaccedilatildeo com os limites entre as

18

Segundo Schopenhauer Hirt (Horen 1797 parte 10) apresenta a explicaccedilatildeo de que Laocoonte natildeo grita

pois estaacute impossibilitado pela sufocaccedilatildeo que o leva agrave morte Fernow por sua vez faz uma amalgama das

opiniotildees de Winckelmann Lessing e Hirt

37

formas artiacutesticas presente na esteacutetica schopenhaueriana e no Laocoonte de Lessing foi

contudo como nos lembra Suzuki (Rosenfield 2001 36-56) ignorada por Goethe

(como podemos ver pelos elementos da poeacutetica aristoteacutelica utilizados pelo poeta para

explicar a escultura na citaccedilatildeo presente na paacutegina anterior) e seraacute posteriormente

tambeacutem desconsiderada por Nietzsche em seu projeto de uma obra de arte total

Diante do acima exposto ainda tratando de Lessing podemos perceber

que toda a discussatildeo acerca do Laocoonte foi desencadeada pela motivaccedilatildeo de defesa da

arte poeacutetica agrave qual Lessing dedicou sua vida como escritor diretor e criacutetico teatral

Desta forma a importacircncia de Lessing para o tema em questatildeo nesta dissertaccedilatildeo estaacute

mais ligado ao seu papel junto a um projeto de formaccedilatildeo de um teatro alematildeo e sua

interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica Enquanto teoacuterico e criacutetico do teatro o autor da

Dramaturgia de Hamburgo exerceu grande influecircncia na cultura posterior ao oferecer a

seu tempo uma nova interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica que vai de encontro agraves

interpretaccedilotildees francesas e de Gottsched que eram por sua vez inflexiacuteveis em relaccedilatildeo agraves

regras (das unidades de espaccedilo tempo e lugar do estatuto social dos personagens da

linguagem e do nuacutemero de atos) Lessing atento agraves necessidades de uma burguesia em

ascensatildeo que natildeo se identificava mais com as concepccedilotildees aristocraacuteticas do modelo de

teatro francecircs e imbuiacutedo na construccedilatildeo do projeto de formaccedilatildeo cultural de uma naccedilatildeo

fragmentada oferece atraveacutes de suas interpretaccedilotildees uma seacuterie de elementos que estaratildeo

presentes nas consideraccedilotildees de pensadores posteriores Dentre estes elementos podemos

destacar as seguintes uma discussatildeo acerca dos conceitos de mimese temor

compaixatildeo catarse a defesa da utilizaccedilatildeo de caracteres mistos a liberdade do gecircnio

ante as regras o enaltecimento dos teatros espanhol e inglecircs principalmente de

Shakespeare

38

Ao tratarmos do referido projeto de um teatro alematildeo e tambeacutem do

classicismo germacircnico dois nomes ainda satildeo fundamentais para sua formaccedilatildeo bem

como eacute incontestaacutevel sua influecircncia sobre Schopenhauer e o jovem Nietzsche19

satildeo

eles Goethe e Schiller O primeiro deles maior dos poetas do classicismo germacircnico

foi um ampliador do projeto Winckelmanniano ldquoPois Goethe pensa o ideal de beleza

natildeo soacute em relaccedilatildeo agrave pintura e agrave escultura mas tambeacutem e principalmente em relaccedilatildeo agrave

poesia ou agrave arte dramaacutetica ampliando as ideacuteias de Winckelmann nesse domiacutenio como

teoacuterico e como criador de obras teatraisrdquo (Machado 2006 14) Seu classicismo

impresso em seus textos teoacutericos e na forma e conteuacutedo de diversas de suas produccedilotildees

literaacuterias eacute o auge do projeto Winckelmanniano Podemos ver na esteira de Machado

(2006 14-22) que o ideal de beleza proposto por Winckelmann eacute ainda o que domina a

noccedilatildeo Goetheana dos gregos e eacute apoiado neste ideal que o poeta interpreta a arte do

mundo helecircnico e a apresenta como um exemplo para a arte de seu tempo Ressaltamos

poreacutem que dada a sua extrema heterogeneidade como nos adverte Butler (1958 85)

encontrar um senso de harmonia interna no todo da obra goetheana eacute tarefa tatildeo incerta

como determinar o grau de sua influecircncia no pensamento de nossos filoacutesofos No que se

refere a Schopenhauer entretanto natildeo podemos deixar de ressaltar que sua convivecircncia

com o poeta foi norteada pelas discussotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas que ocupavam o palco

de seus estudos agrave eacutepoca Goethe dedicou vinte anos de sua vida ao estudo das cores e

sua obra Doutrina das cores eacute o resultado desta investigaccedilatildeo Ela atraiu o interesse do

jovem Schopenhauer que apoacutes alguns encontros com Goethe dedicou-se a escrever a

sua proacutepria teoria que divergia em diversos pontos da teoria do poeta fato que marcou o

fim da relaccedilatildeo amistosa dos mesmos Sobre este periacuteodo de convivecircncia

19

De acordo com Martin (1996) a obra desenvolvida por Nietzsche enquanto escritor e pensador eacute

demasiado complexa para ser reduzida ou atribuiacuteda a determinada influecircncia Entretanto em uma

estatiacutestica crua podemos ter o vislumbre desta influecircncia como se segue ldquoSchopenhauer eacute referenciado

394 vezes na obra de Nietzsche Wagner 327 vezes a Goethe existem 311 menccedilotildees Schiller encontra-se

em nono lugar com 126 menccedilotildeesrdquo (Martin 1996 5)

39

especificamente sobre o episodio citado Goethe vai escrever mais tarde conforme

citaccedilatildeo de Safranski

O Dr Schopenhauer foi para mim um amigo benevolente

Estivemos de acordo em muitas coisas mas foi impossiacutevel evitar ao final

um certo distanciamento como dois amigos que ateacute certo momento

caminharam juntos se datildeo a matildeo para despedir pois querem dirigir-se um

ao norte outro ao sul perdendo-se rapidamente de vista um ao outro

(apud Safranski 1991 265)

Ainda na esteira do movimento de estabelecimento de um projeto

artiacutestico nacional encontramos Schiller que ao lado de Goethe foi o responsaacutevel pelas

maiores obras do classicismo literaacuterio de Weimar Para o estudo em questatildeo o que mais

nos interessa em sua obra eacute o periacuteodo no qual antes do contato com Goethe Schiller

produz seus escritos teoacutericos sobre a trageacutedia Estes estudos podem ser considerados

em uma perspectiva histoacuterica como uma ponte entre a interpretaccedilatildeo da trageacutedia nos

moldes puramente aristoteacutelicos e a trageacutedia vista enquanto forma de arte que para

atingir o efeito dela esperado deve refletir a condiccedilatildeo traacutegica do homem pensada com

base em elementos retirados da filosofia moral e da esteacutetica kantiana Em seus textos

teoacutericos sobre a poesia traacutegica pertencentes ao periacuteodo que Schiller assume ter estado

sob influecircncia da filosofia kantiana ele descreve a trageacutedia como expressatildeo do sublime

ndash conceito extraiacutedo da criacutetica kantiana do juiacutezo ndash como a representaccedilatildeo sensiacutevel da

dicotomia entre a liberdade moral a vontade individual (vontade tomada enquanto

faculdade de pensar e agir livremente) por um lado e a necessidade natural e instintiva

por outro Vemos pela primeira vez em Schiller a utilizaccedilatildeo de categorias filosoacuteficas

kantianas na elaboraccedilatildeo de uma teoria da trageacutedia o que teraacute continuidade com as

teorias do idealismo absoluto e a do proacuteprio Schopenhauer Este eacute um momento

extremamente importante devido ao fato de marcar toda a reflexatildeo futura sobre o tema

ao fundar o deslocamento de uma interpretaccedilatildeo poeacutetica da trageacutedia baseada em

40

comentaacuterios da obra aristoteacutelica para uma interpretaccedilatildeo do traacutegico enquanto fenocircmeno

que descreve a situaccedilatildeo do homem no mundo De acordo com Machado ldquoEacute do

encontro de um grande dramaturgo como Schiller com a filosofia de Kant -

principalmente a sua eacutetica considerada como uma filosofia da liberdade e sua

esteacutetica no que diz respeito agrave teoria do juiacutezo sobre o sublime ndash que nasce a primeira

filosofia do traacutegico uma reflexatildeo filosoacutefica original que criou um tipo novo de

pensamento sobre a trageacutediardquo (Machado 2006 54) Na teoria schopenhaueriana da

trageacutedia podemos ver caracteriacutesticas da teoria schilleriana Primeiramente a presenccedila

marcante da influecircncia kantiana no que se refere ao sublime Em segundo lugar a

leitura da trageacutedia enquanto instrumento para a percepccedilatildeo de uma ordem moral do

mundo Tais caracteriacutesticas seratildeo aprofundadas no capiacutetulo posterior Vale antecipar que

na obra do jovem Nietzsche poderemos ver a exaltaccedilatildeo de Schiller em sua tentativa de

compreensatildeo do mundo helecircnico aleacutem do elogio agrave teoria schilleriana do coro Veremos

entretanto uma criacutetica acirrada no que se refere ao projeto de um teatro enquanto

instituiccedilatildeo moral

Neste capiacutetulo foram delineadas as principais influecircncias filosoacuteficas que

alicerccedilaram o sistema schopenhaueriano bem como esboccedilaram-se as diversas teorias

artiacutesticas que surgiram no periacuteodo em questatildeo teorias estas que propuseram mateacuteria

para a formaccedilatildeo do pensamento de nossos filoacutesofos A partir da cisatildeo entre fenocircmeno e

noumeno proposta por Kant e sua primeira criacutetica Schopenhauer elabora as matrizes de

seu sistema e para ilustraacute-lo encontra apoio na cosmologia platocircnica e no pensamento

oriental Vimos ainda que sua teoria esteacutetica eacute alimentada pela frequumlentaccedilatildeo agraves

categorias apresentadas por artistas teoacutericos e criacuteticos de arte de seu periacuteodo Por seu

turno vimos com Winckelmann a origem do estudo sobre os gregos e sua arte aleacutem do

estabelecimento destes como um modelo para a arte alematilde projeto este que foi

41

retomado por Lessing que por sua vez intensificou o estudo e propocircs um modelo de um

teatro nacional independente projeto que seraacute mais tarde revisitado e aprofundado por

Goethe e Schiller Esta apresentaccedilatildeo de influecircncias eacute imprescindiacutevel para identificarmos

a origem de certos elementos que satildeo fundamentais ao entendimento da proacutepria doutrina

schopenhaueriana tais como o caraacuteter moral de sua teoria esteacutetica sua preocupaccedilatildeo

com o estabelecimento de limite entre as artes sua interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo da poeacutetica

sua utilizaccedilatildeo de conceitos esteacuteticos kantianos (sublime belo e desinteresse) sua

apreciaccedilatildeo das obras modernas seu reconhecimento da produccedilatildeo claacutessica seu desprezo

agrave filosofia de seu tempo Eacute tambeacutem atraveacutes do mapeamento aqui feito de algumas de

suas influecircncias mesmo que brevemente apontado que poderemos mais tarde

identificar alguns dos aspectos originais e singulares de sua teoria

Quanto agraves influecircncias presentes na teoria da trageacutedia do jovem Nietzsche

apontaremos complementos no capiacutetulo correspondente Eacute imprescindiacutevel dar destaque

no que se refere agrave obra nietzscheana agrave sua formaccedilatildeo filoloacutegica ao seu conviacutevio com

Richard Wagner e agrave sua leitura do proacuteprio Schopenhauer - e isto seraacute feito

posteriormente Esperamos ter deixado claro ateacute aqui que diferentemente de Zaratustra

Nietzsche natildeo desceu simplesmente de uma montanha mas faz parte de uma tradiccedilatildeo

histoacuterica assim como Schopenhauer e que a contextualizaccedilatildeo de suas teorias eacute

fundamental para a identificaccedilatildeo dos elementos ali presentes que singularmente se

originaram do sistema metafiacutesico da Vontade

42

2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU

SUBSTRATO METAFIacuteSICO

ldquoOra se todo mundo como representaccedilatildeo eacute

a visibilidade da Vontade a arte eacute o

clareamento dessa visibilidade a cacircmera

obscura que mostra os objetos mais

puramente permitindo-nos melhor abarcaacute-

los e compreendecirc-los eacute o teatro dentro do

teatro a peccedila dentro da peccedila em Hamletrdquo

(Schopenhauer)

Utilizando-se de uma metaacutefora retirada do Eacutedipo de Soacutefocles Schopenhauer nos

oferece um exemplo da caracteriacutestica de conexatildeo interna dos temas abordados em sua

obra20

ldquo minha filosofia eacute como a Tebas de cem portas desde todos os lados se pode

entrar e atraveacutes de todos se pode chegar por um caminho direto ateacute o centrordquo

(Schopenhauer 2002 4) Tendo em vista que nosso objetivo neste capiacutetulo eacute apresentar

a teoria schopenhaueriana da trageacutedia e seus fundamentos filosoacuteficos utilizaremo-nos

desta porta para termos acesso ao sistema schopenhaueriano Procuraremos percorrer o

20

Barboza define bem esta caracteriacutestica marcante da filosofia schopenhaueriana ldquoSchopenhauer eacute o

filoacutesofo da organicidade Procura-a porque com ela onde quer que se esteja no seu sistema estar-se-aacute

em toda parte O todo conteria as partes e seria contido por elas De uma metafiacutesica da efetividade se vai

para uma do belo desta para a da eacutetica que por sua vez pode remeter agrave muacutesica por seu turno a nos

enviar para a efetividade numa por assim dizer circularidade virtuosa A unidade natildeo se perde do

horizonte de observaccedilatildeordquo (Barboza 2001 137)

43

substrato metafiacutesico sustentador da teoria do traacutegico schopenhaueriana e perceber assim

a conectividade interna existente entre sua cosmologia sua teoria esteacutetica e sua eacutetica

De posse deste meacutetodo procuraremos destacar os conceitos fundamentais da teoria

traacutegica e de sua visatildeo de mundo que viratildeo posteriormente se fazer presentes tambeacutem

na obra do jovem Nietzsche

21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo

Agrave descriccedilatildeo das artes poeacuteticas Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 51 do primeiro

volume e o capiacutetulo 37 do segundo volume de sua obra principal Tais descriccedilotildees

encontram-se por sua vez ao final dos trechos dedicados agrave teoria esteacutetica (livro III de

MVR e sus complementos) e finalizam seus apontamentos do que podemos chamar na

esteira de Young (2005) das artes natildeo-musicais21

Em ambos os casos a teoria da

trageacutedia estaacute localizada ao final da apresentaccedilatildeo Esta localizaccedilatildeo juntamente com as

diversas citaccedilotildees e exemplos retirados de peccedilas traacutegicas das quais o filoacutesofo se utiliza ao

longo de seu trabalho nos permite ver a importacircncia da arte traacutegica para Schopenhauer

Em sua teoria artiacutestica existe uma hierarquizaccedilatildeo das artes que leva em consideraccedilatildeo a

capacidade de cada uma em apresentar um grau especiacutefico de objetivaccedilatildeo da vontade

Na cosmologia schopenhaueriana a vontade essecircncia do mundo identificada como

sendo a coisa-em-si kantiana manifesta-se (torna-se objeto de conhecimento) atraveacutes de

diversos graus ndash que exprimem a nitidez com que a vontade se manifesta para o

observador - representados pelos reinos da natureza e finalmente pelo homem Desta

forma ela se objetivaria no mundo inorgacircnico atraveacutes das forccedilas magneacuteticas e da

gravidade no mundo vegetal atraveacutes das funccedilotildees orgacircnicas no mundo animal atraveacutes

21

Como veremos mais adiante a muacutesica eacute uma exceccedilatildeo no sistema das artes schopenhaueriano pois natildeo

se relaciona a uma objetivaccedilatildeo da vontade mas expressa a proacutepria vontade e desta forma natildeo figura na

sistematizaccedilatildeo hieraacuterquica

44

dos instintos e dos motivos assim como o faz no homem A classificaccedilatildeo das artes

corresponde portanto a esta hierarquizaccedilatildeo cosmoloacutegica de objetivaccedilatildeo da vontade22

Sendo assim a arquitetura e a hidraacuteulica mostram a objetivaccedilatildeo da vontade no seu grau

mais baixo ao expor o jogo das forccedilas que caracterizam a mateacuteria tais como a gravidade

rigidez dureza resistecircncia luz A jardinagem e a pintura da natureza satildeo as formas

artiacutesticas cujo fim eacute a exposiccedilatildeo da objetivaccedilatildeo da vontade que se manifesta no reino

vegetal A pintura de animais encontra-se em um niacutevel superior pois o reino animal

objeto de sua representaccedilatildeo expotildee de forma mais evidente a vontade objetivada Temos

ainda as pinturas de retratos a pintura histoacuterica e a escultura que das artes plaacutesticas

formam a categoria superior cujo objeto eacute a exposiccedilatildeo da vontade no grau mais elevado

de sua cognoscibilidade o homem Esta mesma exposiccedilatildeo a do homem eacute tambeacutem o

objeto da arte poeacutetica que agrave diferenccedila das artes que fazem sua exposiccedilatildeo de modo

puramente intuitivo eacute auxiliada pela imaginaccedilatildeo No aacutepice das artes poeacuteticas

encontramos a trageacutedia a uacuteltima arte natildeo-musical a ser descrita A arte traacutegica eacute aquela

que possui a caracteriacutestica de por sua natureza representar de forma mais ilustrativa a

objetivaccedilatildeo mais desenvolvida da vontade a vida humana e suas relaccedilotildees Veremos

mais tarde que aleacutem de corresponder agrave hierarquia de objetivaccedilatildeo da vontade mais

desenvolvida a arte traacutegica ocupa um lugar especial na filosofia schopenhaueriana

devido agrave ldquograndeza de seu efeitordquo (Schopenhauer 2005 333) Diante do exposto

podemos depreender que a arte possui na filosofia schopenhaueriana um papel

cognitivo e a trageacutedia por sua vez eacute a forma artiacutestica que por sua competecircncia cognitiva

ocupa o primeiro lugar entre as artes natildeo musicais

22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo

22

Vemos aqui um exemplo da citada inter-conectividade existente no sistema schopenhaueriano tendo

em vista que a elaboraccedilatildeo de sua classificaccedilatildeo artiacutestica obedece ao construto metafiacutesico do livro II de

MVR e sua consequumlente cosmologia

45

A tarefa a que se propotildee o sistema schopenhaueriano eacute a decifraccedilatildeo do ldquoenigma

do mundordquo ie encontrar uma resposta agrave pergunta o que eacute o mundo Esta tarefa tem

origem no idealismo subjacente na primeira criacutetica kantiana e de certa forma era uma

tarefa da qual estava imbuiacutedo todo o pensamento filosoacutefico daquele periacuteodo ie por

decifraccedilatildeo do enigma do mundo podemos entender a decifraccedilatildeo da coisa-em-si

kantiana Temos daiacute o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer o idealismo

transcendental do mundo fenomecircnico Sob o ponto de vista da representaccedilatildeo o mundo eacute

objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito agraves condiccedilotildees a priori do

entendimento que para o filoacutesofo satildeo as categorias do espaccedilo do tempo e da

causalidade

Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das formas a priori do entendimento eacute

interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos advindos da filosofia Platocircnica e oriental

como um mundo ilusoacuterio Conforme a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana Platatildeo jaacute

identificava esta caracteriacutestica ilusoacuteria do mundo em sua contraposiccedilatildeo teoacuterica entre o

mundo fiacutesico onde o devir impossibilitava a apreensatildeo do ser e o mundo das ideacuteias

onde haveria o verdadeiro encontro com o ser das coisas Ainda de acordo com a

interpretaccedilatildeo de Schopenhauer os livros sagrados indianos Vedas e Puranas faziam

esta distinccedilatildeo atraveacutes da noccedilatildeo do veacuteu de maia a consciecircncia humana seria envolvida

por um veacuteu o que resultaria em uma visatildeo oniacuterica do mundo e impediria assim a

percepccedilatildeo da realidade

Entretanto o mundo pode ainda ser conhecido atraveacutes de um segundo ponto de

vista como vontade Este eacute o ponto de vista que Schopenhauer utiliza-se para decifrar a

incognosciacutevel coisa-em-si kantiana Percorrendo uma ldquovia subterracircneardquo de modo

imanente Schopenhauer identifica nas accedilotildees do corpo bioloacutegico os atos da vontade

46

enquanto coisa-em-si e de forma analoacutegica a estabelece como essecircncia governante do

mundo Faz-se necessaacuterio aqui ressaltar como o fazem Brum (1998 23) e Rosset23

que

natildeo devemos interpretar esta analogia como uma visatildeo antropomoacuterfica do mundo Essa

essecircncia do mundo encontrada empiricamente natildeo eacute todavia um ente racional uma

ldquoalma do mundordquo Se por um lado o mundo fenomecircnico eacute aquele onde o princiacutepio de

razatildeo24

estabelece as normas de funcionamento um mundo natildeo-fenomecircnico mundo em

si enquanto vontade se expressa por sua alogicidade irracionalidade Grundlosigkeit

(falta de fundamento) Essa essecircncia irracional que manifesta-se nos diversos reinos e

indiviacuteduos do mundo eacute a raiz da visatildeo pessimista da existecircncia que de acordo com o

filoacutesofo pode ser a todo momento constatada empiricamente

As diversas manifestaccedilotildees da vontade suas objetidades carregam inerentemente

a sua iacutendole puro impulso cego vontade de vida insaciabilidade Notadamente o

mundo fenomecircnico objetivaccedilatildeo da vontade expressa a essecircncia desta vontade atraveacutes

de um conflito permanente Desenha-se um cenaacuterio de batalha onde cada objetidade da

vontade cada ser do mundo eacute orientado por sua essecircncia irracional desguarnecida de

qualquer telos ldquoAssim a vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria

carne e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimentordquo (Schopenhauer MVR 211) Este

fundamento ontoloacutegico a vontade determina assim o caraacuteter absurdo que a vida

humana toma na filosofia schopenhaueriana eterno esforccedilo carente de ordem ou

finalidade O ldquomecanismo internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens

marionetes guiados pela carecircncia

[]nenhuma satisfaccedilatildeo todavia eacute duradoura mas antes sempre eacute um

ponto de partida de um novo esforccedilo o qual por sua vez vemos travado em

toda parte de diferentes maneiras em toda parte lutando e assim portanto

23

[] natildeo haacute que transpor a experiecircncia da motivaccedilatildeo humana ao conjunto das forccedilas naturais para

compreender o segredo da natureza senatildeo o contraacuterio transpor o misteacuterio das forccedilas naturais ao conjunto

das motivaccedilotildees psicoloacutegicas para desvendar-se o segredo da vontade humana (Rosset 2005 31) 24

Princiacutepio tratado na tese de doutoramento de Schopenhauer SRQPRS bem como no livro I de MVR

O princiacutepio estabelece que todo acontecimento possui uma causa uma razatildeo de ser

47

sempre como sofrimento natildeo haacute nenhum fim uacuteltimo do esforccedilo portanto natildeo

haacute nenhuma medida e fim do sofrimento (Schopenhauer 2005 399)

Se carecircncia vontade e desejo satildeo a tocircnica da vida humana na maior parte do tempo e

satildeo experimentados como dor e infelicidade a felicidade por sua vez eacute definida

negativamente como um momento de ausecircncia daquela dor

Sentimos a dor e natildeo a ausecircncia da dor a inquietude e natildeo a

tranquumlilidade o medo e natildeo a seguranccedila Sentimos desejo como quando

temos fome e sede entretanto ao alimentarmo-nos estas sensaccedilotildees

deixam de existir para noacutes (MVR II 630)

Toda satisfaccedilatildeo momentacircnea de um querer eacute imediatamente suprimida por outro querer

ou se perdurar por algum tempo por menor que seja este transforma-se em teacutedio Um

ldquopecircndulo entre a dor e teacutediordquo eacute a definiccedilatildeo que Schopenhauer propotildee para a vida

humana Assim se daacute tambeacutem com a sauacutede a juventude e a liberdade Todos satildeo

conceitos definidos negativamente soacute os conhecemos atraveacutes de sua ausecircncia Este afatilde

por prolongar e conservar a vida essecircncia iacutentima de cada indiviacuteduo natildeo eacute contudo

resultado de uma observaccedilatildeo objetiva da mesma de um conhecimento que eleja a vida

como algo de valor a ser mantido e preservado e portanto os ldquo[] seres natildeo satildeo

atraiacutedos por algo que se lhes apresenta mas satildeo empurrados a elerdquo (MVR II 398) A

luta eterna observada nos diversos reinos da natureza a busca por alimento o esforccedilo da

procriaccedilatildeo se comparados aos momentos fugazes de satisfaccedilatildeo fazem da vida ldquoum

negoacutecio cujos investimentos natildeo cobrem nem de longe os custosrdquo (MVR II 399)

Em todas estas consideraccedilotildees se faz claro que a vontade de viver

natildeo eacute a consequecircncia do conhecimento da vida natildeo se trata de uma

bdquoconclusio ex praemissis‟ nem em geral eacute algo secundaacuterio antes

contudo eacute o primeiro e incondicionado a premissa de todas as premissas

e precisamente por isso aquilo do que haacute de partir a filosofia pois a

vontade de viver natildeo se apresenta como a consequumlecircncia do mundo senatildeo

o mundo como consequumlecircncia da vontade de viver (MVR II 405)

Um dos pontos essenciais a ser verificado nesta visatildeo de mundo eacute o

destronamento da razatildeo O ceacuterebro oacutergatildeo da razatildeo eacute o resultado de um esforccedilo da

48

vontade em seu percurso de objetivaccedilatildeo A racionalidade humana estaacute a serviccedilo da

vontade que eacute em sua essecircncia grundlos A razatildeo eacute ferramenta para que o homem

enquanto objetidade da vontade consiga satisfazer a seus anseios Em oposiccedilatildeo agrave

filosofia racionalista de entatildeo onde o ldquoreal eacute o racionalrdquo assistimos ao surgimento de

uma filosofia irracionalista das forccedilas inconscientes onde a razatildeo na medida em que eacute

mecanismo da vontade estaacute sempre a serviccedilo desta O comportamento humano eacute

naturalmente egoiacutesta voltado para os proacuteprios interesses e estes por sua vez satildeo

expressatildeo desta vontade aloacutegica desprovida de telos Schopenhauer se mostrava

consciente da singularidade desta sua biparticcedilatildeo do ego e da consequumlente visatildeo de

mundo que ela trouxe agrave luz e enfatizou isto em seus manuscritos berlinenses ldquo[] a

divisatildeo da mente o eu em duas partes diferentes - em vontade como parte essencial e

primaacuteria e em intelecto como secundaacuteria - eacute o grande princiacutepio e meacuterito de minha

filosofia e tambeacutem a principal diferenccedila dos demais sistemasrdquo (MR III 328)

Temos entatildeo os dois pontos de vista do mundo que fundamentam a visatildeo de

Schopenhauer e que posteriormente seratildeo transformados pela teoria nietzscheana da

trageacutedia nos dois impulsos da natureza o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco O primeiro deles eacute o

mundo da individualidade da pluralidade regido pelo que Schopenhauer vai chamar

utilizando-se de um termo retirado da escolaacutestica de principium individuationis

Nesse sentido servindo-me da antiga escolaacutestica denomino

tempo e espaccedilo pela expressatildeo principium individuationis que peccedilo para

o leitor guardar para sempre Tempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais

aquilo que eacute uno e igual conforme a essecircncia e o conceito aparece como

pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem (MVR 171)

No segundo toto genere diferente do primeiro existe a vontade una indivisiacutevel natildeo

submetida ao princiacutepio de razatildeo e por isso sem fundamento

Em apoio a sua tese Schopenhauer invoca ao final do capiacutetulo 46 (Sobre a

nulidade e o sofrimento da vida) dos complementos de MVR a opiniatildeo de diversos

49

pensadores dentre eles Heroacutedoto Platatildeo Teoacutegnis Homero os tragedioacutegrafos gregos

Shakespeare Byron Voltaire Rousseau Faz-se importante neste momento ressaltar que

o filoacutesofo aponta a invenccedilatildeo da trageacutedia pelos gregos como uma expressatildeo desta visatildeo

de mundo ponto de vista que como veremos tambeacutem seraacute adotado pelo primeiro

Nietzsche

Ante tudo mencionarei que os gregos por mais distantes que

estivessem da visatildeo de mundo cristatilde e da alta Aacutesia e por muito que se

mantiveram sob o ponto de vista da afirmaccedilatildeo da vontade se fizeram

profundamente impressionados pela miseacuteria da existecircncia Isso eacute

demonstrado pela invenccedilatildeo da trageacutedia obra deles (MVR II 640)

23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana

Existe poreacutem uma forma de conhecimento que eacute ndash agrave diferenccedila daquela

subordinada ao princiacutepio de razatildeo que percebe os objetos em sua relaccedilatildeo com os outros

objetos do espaccedilo-tempo ndash uma forma mais universal pois mostra o objeto em sua

caracteriacutestica mais geral qual seja a de ser objeto para o sujeito A esta forma de

conhecimento Schopenhauer associa a apreciaccedilatildeo esteacutetica O seu objeto eacute a ideacuteia

platocircnica25

um grau determinado de objetivaccedilatildeo da coisa-em-si

Os diferentes graus de objetivaccedilatildeo da Vontade expressos em

inumeraacuteveis indiviacuteduos e que existem como seus protoacutetipos

inalcanccedilaacuteveis ou formas eternas das coisas que nunca aparecem no

tempo e no espaccedilo meacutedium do indiviacuteduo mas existem fixamente natildeo

submetidos a mudanccedila alguma satildeo e nunca vindo-a-ser enquanto as

coisas nascem e perecem sempre vecircm-a-ser e nunca satildeo os GRAUS DE

OBJETIVACcedilAtildeO DA VONTADE ia dizer natildeo satildeo outra coisa senatildeo as

IDEacuteIAS DE PLATAtildeO (MVR 191)

Esta instacircncia do conhecimento eacute alcanccedilada intuitivamente pela contemplaccedilatildeo

esteacutetica da natureza ou pela facilitaccedilatildeo de uma obra de arte Desta forma as obras de

25

Conforme o filoacutesofo ldquo A expressatildeo mais breve e sucinta daquele famoso dogma platocircnico foi dada por

Dioacutegenes Laeacutercio (II 12) Platatildeo ensina que as ideacuteias da natureza existem como protoacutetipos jaacute as demais

coisas apenas se assemelham a elas e satildeo suas coacutepiasrdquo (MVR 191)

50

arte na teoria schopenhaueriana satildeo uma exposiccedilatildeo destes graus de objetivaccedilatildeo da

vontade as ideacuteias Ao contraacuterio da criacutetica agrave arte presente na repuacuteblica platocircnica - onde a

arte seria uma coacutepia mais imperfeita da ideacuteia por retratar o mundo fenomecircnico sua

coacutepia direta - Schopenhauer aproxima as obras artiacutesticas das ideacuteias eternas as define

como suas expressotildees diretas Contudo a intuiccedilatildeo das ideacuteias exige um estado de

consciecircncia diferente do estado comum Neste uacuteltimo o aparelho cognitivo sob a eacutegide

da vontade estaacute voltado para a realizaccedilatildeo dos interesses individuais e entatildeo se

movimenta no mundo guiado por estes interesses ldquoCaso entretanto a Ideacuteia deva de

alguma maneira tornar-se conhecimento e ser conhecida pelo sujeito entatildeo isso soacute

pode ocorrer graccedilas agrave supressatildeo da individualidade no sujeito que conhecerdquo (MB 30)

A forma artiacutestica de conhecimento cujo possuidor eacute o denominado gecircnio estaacute

associada a um desprendimento das reacutedeas da vontade O gecircnio eacute entatildeo aquele que livre

dos interesses da vontade percebe as ideacuteias por traacutes dos objetos alheio aos princiacutepios

de razatildeo e de individuaccedilatildeo e traduz este objeto na obra de arte O observador esteacutetico eacute

portanto um partiacutecipe da genialidade na medida em que intui a ideacuteia por traz do objeto

observado conforme tambeacutem ao seu grau de desinteresse26

Durante a apreciaccedilatildeo

esteacutetica o homem se vecirc livre momentaneamente daquela parte de si que eacute a causadora

de todo o sofrimento individual e coletivo a vontade para transformar-se em um ldquopuro

sujeito de conhecimentordquo Este estado de satisfaccedilatildeo decorrente da suspensatildeo da vontade

individualizada eacute o sentimento do belo

Aquilo que se poderia nomear o lado mais belo e a pura alegria

da vida precisamente porque nos arranca da existecircncia real e nos

transforma em espectadores desinteressados diante dela eacute o puro

conhecimento que permanece alheio a todo querer eacute a fruiccedilatildeo do belo a

alegria autecircntica na arte Mas mesmo isso requer dispositivos raros e

cabe apenas a pouquiacutessimos e mesmo para estes eacute um sonho

passageiro (MVR 404)

26

Vemos nesta forma de associaccedilatildeo entre conhecimento e interesse mais uma heranccedila kantiana no caso

provinda da definiccedilatildeo de belo da criacutetica da faculdade de juiacutezo

51

- - - - - - - - - -

Ao descrever a apreciaccedilatildeo artiacutestica como um ato cognitivo Schopenhauer

preocupa-se em diferenciaacute-la do conhecimento cientiacutefico De fato boa parte das

consideraccedilotildees sobre a arte eacute dedicada ao esclarecimento desta diferenccedila

Podemos por conseguinte definir a arte como o modo de

consideraccedilatildeo das coisas independente do princiacutepio de razatildeo em oposiccedilatildeo

justamente agrave consideraccedilatildeo que o segue que eacute o caminho da experiecircncia e

da ciecircncia O modo de consideraccedilatildeo que seque o princiacutepio de razatildeo eacute o

racional o uacutenico que vale e que auxilia na vida praacutetica e na ciecircncia o

modo apartado do conteuacutedo do princiacutepio de razatildeo eacute o genial o uacutenico que

vale e que auxilia na arte (MB 59)

No caso da trageacutedia cujo objetivo eacute o conhecimento do homem e de suas relaccedilotildees a

ciecircncia que mais se assemelha a esta forma artiacutestica seria a histoacuteria Esta natildeo tem como

objetivo a demonstraccedilatildeo da essecircncia do homem em sua forma atemporal ou seja a

demonstraccedilatildeo daquilo que fundamenta toda accedilatildeo humana independente dos

acontecimentos empiacutericos

[ ]toda ciecircncia no sentido proacuteprio do termo compreendida como

conhecimento sistemaacutetico guiado pelo fio condutor do princiacutepio de

razatildeo parte sempre de dois dados baacutesicos um deles sem exceccedilatildeo eacute o

princiacutepio de razatildeo em uma de suas figuras como oacuterganon outro eacute o

objeto especiacutefico de cada uma delas enquanto problema (Schopenhauer

MVR 73)

Desta forma a histoacuteria teria a lei de motivaccedilatildeo e o os fatos humanos como oacuterganon e

problemas respectivamente Entretanto interessa a Schopenhauer um conhecimento

mais universal que soacute pode ser apresentado pela arte e que aponta por sua proximidade

agrave essecircncia daquilo que eacute a uma ldquoiacutendole imutaacutevelrdquo das manifestaccedilotildees

Podemos ver entatildeo que sendo consideradas como meios para o

conhecimento da essecircncia da humanidade arte poeacutetica e histoacuteria possuem todavia

objetos de conhecimento diferentes A primeira quando produzida pelo verdadeiro

gecircnio tenciona manifestar a ideacuteia por traacutes destes conceitos a ideacuteia de homem de

humanidade intuitivamente independentemente do princiacutepio de razatildeo do devir como

52

objeto puro de conhecimento alheio agrave corrente dos motivos em suas caracteriacutesticas

essenciais atemporais A histoacuteria por sua vez segue o rastro do princiacutepio de razatildeo

procurando apresentar o fenocircmeno humano em suas relaccedilotildees descrever-lhe em suas

situaccedilotildees particulares individuais empiacutericas Nas palavras de Schopenhauer

Arte e ciecircncia tecircm em uacuteltima instacircncia o mesmo estofo a saber

justamente o mundo tal como ele se posta diante de noacutes ou antes uma

parte destacada dele quanto ao todo do mundo soacute a filosofia o

considera Contudo a grande diferenccedila entre ciecircncia e arte reside na

maneira como elas consideram o mundo e trabalham seu estofo Tal

oposiccedilatildeo pode ser indicada com uma palavra a ciecircncia considera os

fenocircmenos do mundo seguindo o fio condutor do princiacutepio de razatildeo ao

passo que a arte coloca totalmente de lado o princiacutepio de razatildeo

independente dele para que assim a ideacuteia entre em cena

(SCHOPENHAUER MB 57)

Podemos notar que a valorizaccedilatildeo do que eacute imutaacutevel alheio agrave idealidade do tempo eacute a

raiz da valorizaccedilatildeo do conhecimento artiacutestico frente ao histoacuterico Este uacuteltimo natildeo visa o

acesso aos modelos eternos pois seu objeto satildeo os acontecimentos individuais do

mundo fenomecircnico que satildeo eventos meramente aparentes se considerarmos a

idealidade do tempo O que se manifesta no fluxo temporal do mundo fenomecircnico satildeo

sempre as mesmas formas eternas as ideacuteias entretanto com roupagens diferentes o

mesmo homem enquanto objetivaccedilatildeo da vontade a mesma humanidade Onde quer que

seja e em qualquer momento especiacutefico sua essecircncia eacute a mesma e esta essecircncia eacute o que

deve ser alvo de uma compreensatildeo privilegiada de entendimento e natildeo as suas diversas

manifestaccedilotildees Por este motivo Schopenhauer deixando explicito o seu chamado anti-

historicismo afirma que ldquose algueacutem jaacute lera Heroacutedoto jaacute estudara bastante histoacuteria e

efeitos filosoacuteficos Pois laacute jaacute estaacute tudo o que compotildee a posterior histoacuteria mundial a

atividade o obrar o sofrimento e o destino do gecircnero humano (Schopenhauer MVR

II 496) Podemos notar claramente a oposiccedilatildeo entre a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana

da histoacuteria e as tendecircncias de seu tempo principalmente presentes na filosofia de

Hegel Este de acordo com a criacutetica de Schopenhauer ignorando a filosofia critica de

53

Kant toma o fenocircmeno histoacuterico como coisa em si ao atribuir-lhe uma unidade de

consciecircncia Entretanto unidade de consciecircncia eacute um atributo dos indiviacuteduos e natildeo do

gecircnero humano Estas filosofias de acordo com o Schopenhauer satildeo frutos do realismo

otimista queldquo tomam o mundo como perfeitamente real e potildeem como fim do mesmo

uma miseraacutevel felicidade terrena (Schopenhauer MVR II 495)

- - - - - - - - - -

Colocando de lado o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e mirando-se no

conhecimento da ideacuteia imutaacutevel atemporal encontramos a trageacutedia como fenocircmeno que

apresenta agrave intuiccedilatildeo o homem e sua condiccedilatildeo Eacute a forma de arte que tem como objeto o

grau mais elevado de objetivaccedilatildeo da vontade A intenccedilatildeo do artista traacutegico eacute de acordo

com Schopenhauer transmitir a ideacuteia intuiacuteda tarefa que seraacute bem sucedida de acordo

com a habilidade de utilizaccedilatildeo da teacutecnica artiacutestica por um lado e com a capacidade de

percepccedilatildeo esteacutetica do apreciador por outro O tragedioacutegrafo diferentemente do

historiador que relata os fatos empiacutericos explicitando seus motivos e consequumlecircncias

deve para obter o efeito esperado em sua obra expor uma situaccedilatildeo tal em que o homem

possa manifestar todas as suas potencialidades e dessa forma transmitir ao apreciador

esteacutetico a ideacuteia representada ldquoO poeta expotildee com escolha e intenccedilatildeo caracteres

significativos em situaccedilotildees significativas jaacute o historiador toma aos dois como eles

aparecemrdquo (Schopenhauer MVR 323) A qualidade da obra traacutegica seraacute julgada entatildeo

pela sua capacidade de representaccedilatildeo da ideacuteia de humanidade e Schopenhauer qualifica

as trageacutedias de acordo com esta capacidade Natildeo existe em seu sistema uma

consideraccedilatildeo histoacuterica da produccedilatildeo traacutegica Ele natildeo leva em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees

histoacutericas no que se refere agrave origem ou mesmo quanto ao desenvolvimento desta forma

artiacutestica e a avalia unicamente conforme o seu efeito E neste ponto a trageacutedia apresenta

uma peculiaridade frente agraves demais artes ela eacute a forma de arte que provocaraacute o

54

sentimento do sublime Como vimos o correlato subjetivo de toda apreciaccedilatildeo esteacutetica eacute

o sentimento causado pela anulaccedilatildeo da vontade individual mediante a elevaccedilatildeo ao

estado de puro sujeito de conhecimento O sublime assim como o belo satildeo expressotildees

deste sentimento que se diferenciam unicamente por sua forma

Se tal estado surgiu por si mesmo na medida em que o objeto foi

solicitado e se apresentou ndash e fomos postos sem resistecircncia pelo mero

desaparecer da vontade da consciecircncia no estado do conhecer puro ndash ou

se primeiro foi despertado por elevaccedilatildeo livre consciente sobre a vontade

na medida em que o objeto contemplado tem com esta uma relaccedilatildeo

desfavoraacutevel hostil cuja prossecuccedilatildeo suprimiria a contemplaccedilatildeo ndash aiacute

reside a diferenccedila entre o belo e o sublime (MB 119)

A impressatildeo do sublime eacute portanto uma forma de colocar-se no estado do puro conhecer

ao nos depararmos com o objeto que por sua apresentaccedilatildeo sugere uma ldquorelaccedilatildeo hostilrdquo

com o indiviacuteduo27

Jaacute vimos que a visatildeo de mundo de Schopenhauer identifica a vida humana como

sofrimento infindaacutevel no entanto ao elaborar sua definiccedilatildeo da trageacutedia Schopenhauer

aponta para o desfecho moral de sua obra (livro IV de MVR) e afirma que a trageacutedia

melhor eacute aquela que expotildee a renuacutencia agrave vida O filoacutesofo compara obras contemporacircneas

agraves antigas e afirma sua preferecircncia por estas em decorrecircncia da capacidade que elas tecircm

de provocar esta a renuacutencia agrave vida Vejamos a descriccedilatildeo que Schopenhauer faz da

trageacutedia

No aacutepice da arte poeacutetica tanto no que se refere agrave grandeza do seu

efeito quanto agrave dificuldade da sua realizaccedilatildeo deve-se ver a trageacutedia e de

fato ela assim foi reconhecida Observe-se aqui algo de suma significaccedilatildeo

para toda a nossa visatildeo geral de mundo o objetivo dessa suprema

realizaccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute outro senatildeo a exposiccedilatildeo do lado terriacutevel da vida

27

Vemos na teoria do sublime Schopenhaueriana mais uma vez a influecircncia de Kant Schopenhauer iraacute

identificar duas formas de sublime e utilizar-se-aacute dos termos kantianos ldquosublime dinacircmicordquo e ldquosublime

matemaacuteticordquo para diferenciaacute-los No primeiro o objeto de apreciaccedilatildeo se mostra a princiacutepio uma ameaccedila

ao observador ldquoum poder que suprimiria qualquer resistecircnciardquo(MB 104) No sublime matemaacutetico o

segundo o objeto eacute visto em sua incomensuraacutevel grandiosidade diante da qual o observador infere a sua

infimidade A afinidade entre Schopenhauer e a teoria criacutetica do juiacutezo eacute expressa em sua obra principal

ldquoDe longe o que haacute de mais excelente na criacutetica da faculdade de juiacutezo eacute a teoria do sublime Ela eacute

incomparavelmente mais bem sucedida que a teoria do belo e daacute natildeo apenas como esta o meacutetodo geral

da investigaccedilatildeo mas tambeacutem um trecho do correto caminho de maneira que embora natildeo forneccedila a

soluccedilatildeo propriamente dita do problema chega bem perto delardquo(MVR 660)

55

a saber o inominado sofrimento a miseacuteria humana o triunfo da maldade

o impeacuterio ciacutenico do acaso a queda inevitaacutevel do justo e do inocente E

em tudo isso se encontra uma indicaccedilatildeo significativa da iacutendole do mundo

e da existecircncia Eacute o conflito da Vontade consigo mesma que aqui

desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade entra em

cena de maneira aterrorizante Ele se torna visiacutevel no sofrimento da

humanidade em parte produzido por acaso e erro que se apresentam

como os senhores do mundo e personificados como destino e perfiacutedia os

quais aparecem enquanto intencionalidade em parte advindo da

humanidade mesma por meio dos entrecruzados esforccedilos voluntaacuterios dos

indiviacuteduos e da maldade e perversatildeo da maioria Trata-se de uma uacutenica e

mesma Vontade que em todos vive e aparece cujos fenocircmenos

entretanto combatem entre si e se entredevoram [] Por fim esse

conhecimento no indiviacuteduo purificado e enobrecido pelo sofrimento

mesmo atinge o ponto no qual o fenocircmeno o veacuteu de maia natildeo mais o

ilude Ele vecirc atraveacutes da forma do fenocircmeno do principium

individuationis com o que tambeacutem expira o egoiacutesmo nele baseado Com

isso os ateacute entatildeo poderosos MOTIVOS perdem o seu poder e em vez

deles o conhecimento perfeito da essecircncia do mundo atuando como

quietivo da vontade produz a resignaccedilatildeo a renuacutencia natildeo apenas da vida

mas de toda a vontade de vida mesma (Schopenhauer MVR 333)

Percebemos nesta descriccedilatildeo que a trageacutedia aleacutem de expor a visatildeo de mundo construiacuteda

pelo filoacutesofo tem como fim uacuteltimo provocar um efeito moral no apreciador esteacutetico

qual seja a renuacutencia ao mundo Vejamos entatildeo a relaccedilatildeo entre a visatildeo de mundo

schopenhaueriana o efeito esteacutetico provocado pela trageacutedia e o projeto moral existente

por traacutes de suas teorias

24 A finalidade moral da trageacutedia

Para que possamos perceber a relaccedilatildeo intriacutenseca entre cosmologia metafiacutesica

arte e a eacutetica faz-se necessaacuterio uma pequena excursatildeo sobre esta uacuteltima Que todo o

sistema schopenhaueriano possui um viacutenculo inseparaacutevel com o seu projeto eacutetico eacute fato

que natildeo passa despercebido a seus comentadores Um projeto de juventude eacute descrito

por Safranski (1991 188-198) Young (2006 07 200) Aramayo (2001 56-59) e

Cartwright (Janaway 1999 252) como uma premissa no desenvolvimento da filosofia

56

schopenhaueriana trata-se do projeto de uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Young a descreve

como uma transcendecircncia do mundo ordinaacuterio para o ldquomundo verdadeirordquo Esta

consciecircncia melhor poderia ser experimentada atraveacutes da apreciaccedilatildeo artiacutestica e da

consciecircncia eacutetica ambas originadas do desvelamento de maia Assim Schopenhauer a

descreve conforme citaccedilatildeo de Young (2006 9) ldquopersonalidade e causalidade existem

neste mundo compreensiacutevel temporal sensorial Mas a consciecircncia melhor me leva a

um mundo onde nem personalidade nem sujeito ou objeto existem maisrdquo Safransky

descreve a consciecircncia melhor como um estado semelhante ao ecircxtase miacutestico

Este arrebatamento estaacute livre das coordenadas espaccedilo-temporais

cujo ponto de interseccedilatildeo eacute o eu corporal apartado do espaccedilo do tempo

do eu Os miacutesticos chamam a esta experiecircncia ldquonunc stansrdquo agora

permanente A intensidade deste presente natildeo conhece princiacutepio nem fim

e soacute pode desaparecer porque noacutes desaparecemos dele (Safransky1991

190)

Conforme Aramayo tanto a figura do gecircnio como a do santo satildeo expressotildees do

reconhecimento desta consciecircncia melhor e a filosofia de Schopenhauer pretende-se

uma terceira via que tambeacutem apontaria para este estado de consciecircncia A caracteriacutestica

primordial deste estado eacute o desprendimento dos desejos individuais e o comportamento

virtuoso que adveacutem deste desprendimento Eacute na esteira do entendimento desta

consciecircncia melhor que as bases eacutetico-metafiacutesicas do filoacutesofo foram elaboradas Em

apoio a esta afirmaccedilatildeo Aramayo apresenta duas citaccedilotildees a partir das quais em

momentos distintos de sua vida Schopenhauer apresenta seu projeto de identificaccedilatildeo

entre eacutetica e metafiacutesica Nos escritos de Juventude em 1813 vemos o projeto

Em meu espiacuterito encontra-se em gestaccedilatildeo uma filosofia onde

metafiacutesica e eacutetica devem constituir uma soacute coisa cuja dissociaccedilatildeo eacute tatildeo

errocircnea como agrave da alma e do corpo (Aramayo 2001 41)

Jaacute nos escritos tardios especificamente em seu ensaio de 1836 Sobre a vontade na

natureza veremos Schopenhauer identificar esta uniatildeo

57

Tatildeo soacute esta metafiacutesica que jaacute eacute eacutetica por si soacute ao estar construiacuteda

com esse material primordialmente eacutetico que se supotildee a vontade

constitui real e imediatamente um sustentaacuteculo para a eacutetica em vista de

que poderia haver colocado em minha metafiacutesica o nome de eacutetica (apud

Aramayo 2001 43)

Cartwright aponta ainda na uacuteltima obra schopenhaueriana de 1851 Parerga e

paralipomena a afirmaccedilatildeo de que a ldquosua real filosofia culminou em um ponto de vista

altamente eacutetico-metafiacutesicordquo (Janaway 1999 252)

Na filosofia schopenhaueriana como vimos o indiviacuteduo humano eacute uma

expressatildeo da objetidade da vontade e seu ponto de partida por natureza eacute a satisfaccedilatildeo

manutenccedilatildeo e o prolongamento desta vontade de vida Este estado de consciecircncia onde

todos os esforccedilos estatildeo voltados para a satisfaccedilatildeo da vontade individual eacute a causa de

todo o sofrimento do mundo Aprisionado agrave perspectiva fenomecircnica do mundo o

homem natildeo percebe a unidade da vontade e age de acordo com os motivos estabelecidos

pela sua proacutepria individualidade Para este homem existe uma separaccedilatildeo profunda entre

o proacuteprio eu e os objetos do mundo

Por meio da intuiccedilatildeo que o ceacuterebro efetua a partir dos dados do sentido

e portanto mediatamente conhecemos o proacuteprio corpo como um objeto no

espaccedilo e por meio do sentido interno conhecemos a seacuterie sucessiva de nossos

desejos e atos de vontade que surgem por ocasiatildeo dos motivos externos e

finalmente conhecemos os muacuteltiplos movimentos fortes ou fracos da proacutepria

vontade aos quais todos os sentimentos internos deixam-se reconduzir Isto eacute

tudo pois o conhecer natildeo eacute ele proacuteprio de novo conhecido (Schopenhauer

2001 213)

Eacute deste estado que surge todo o comportamento humano considerado pelo filoacutesofo

como comportamento antimoral Egoiacutesmo eacute o nome dado ao resultado da influecircncia do

princiacutepio de individuaccedilatildeo sobre o comportamento dos homens Este egoiacutesmo chega ao

extremo de o homem considerar-se o centro do mundo e transformar o seu querer em

mandamento para os objetos exteriores ldquoalguns homens seriam capazes de assassinar

um outro soacute para engraxar suas botas com a gordura delerdquo (SFM 124) Nestas

58

condiccedilotildees ldquose fosse dado pois a um indiviacuteduo escolher entre a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo

e a do mundo nem preciso dizer para onde a maioria se inclinariardquo (SFM 121) Da

forma como ocorre com o egoiacutesmo a ilusatildeo fenomecircnica daacute origem a outro sentimento

o oacutedio Estes dois egoiacutesmo e oacutedio satildeo os princiacutepios originadores de todos os viacutecios do

homem Desta leitura pessimista da natureza humana Schopenhauer retira seu conceito

perspectivista das ideacuteias de bem e mal satildeo consideradas boas ou maacutes as coisas que

agradam ou desagradam agrave vontade do indiviacuteduo ldquoPortanto tudo o que eacute favoraacutevel agrave

vontade em alguma de suas exteriorizaccedilotildees e satisfaz seus fins eacute pensado pelo conceito

bom por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectosrdquo (MVR 459)

Este estado eacute definido por Schopenhauer como ldquoafirmaccedilatildeo da vontaderdquo nele o amor-

proacuteprio Eros dita as regras de comportamento Definido o Eros enquanto

fundamentador das accedilotildees antimorais humanas sendo este surgido de uma percepccedilatildeo

subordinada ao principium individuationis entendemos o motivo pelo qual o filoacutesofo

rejeita a validade de qualquer moral baseada em argumentos abstratos

Uma moral sem fundaccedilatildeo portanto um simples moralizar natildeo pode

fazer efeito pois natildeo motiva Uma moral entretanto que motiva soacute pode fazecirc-

lo atuando sobre o amor proacuteprio O que entretanto nasce daiacute natildeo tem valor

moral algum Segue-se assim que mediante moral e conhecimento abstrato em

geral nenhuma virtude autecircntica pode fazer efeito mas esta tem de brotar do

conhecimento intuitivo o qual reconhece no outro indiviacuteduo a mesma essecircncia

que a proacutepria (MVR 468)

Desta forma em contraposiccedilatildeo ao comportamento antimoral produzido

pela ilusatildeo causada pelo principium individuationis o filoacutesofo apresenta o outro lado da

moeda a accedilatildeo moral Esta seria a accedilatildeo praticada em funccedilatildeo do bem-estar de um outro

indiviacuteduo tendo em vista que as accedilotildees praticadas em funccedilatildeo do mal-estar do outro ou

do bem e mal estar de si mesmo satildeo justamente as accedilotildees antimorais baseadas no

egoiacutesmo ou no oacutedio ldquoTodo amor que natildeo eacute compaixatildeo eacute amor-proacuteprio Amor-proacuteprio eacute

59

Eros compaixatildeo eacute Aacutegaperdquo (MVR 478) Todo ato moral eacute por consequumlecircncia um ato de

compaixatildeo ou seja um ato que eacute praticado a partir da percepccedilatildeo do sofrimento do

outro Entretanto a percepccedilatildeo do sofrimento alheio natildeo eacute dada atraveacutes do conhecimento

abstrato E somente por uma percepccedilatildeo intuitiva direta do sofrimento do outro como o

meu proacuteprio sofrimento que surge a compaixatildeo Tal percepccedilatildeo assim como a

apreciaccedilatildeo esteacutetica tem origem em uma visatildeo que vai aleacutem do principium

individuationis Desfaz-se a ilusatildeo causada por este princiacutepio de que existe em realidade

um eu e um natildeo-eu ilusatildeo essa que eacute originada pelos condicionantes do conhecimento

tempo espaccedilo e causalidade Livre do principium individuationis natildeo haacute mais

diversidade natildeo existe mais indiviacuteduo passado futuro motivaccedilotildees existe apenas o

instante presente do ser a vontade Natildeo nos vemos mais como uma vontade separada de

outras ao contraacuterio vemos nos outros a mesma vontade pela qual somos Necessaacuterio

faz-se ressaltar que este conhecimento intuitivo que demonstra a unidade da vontade

em todo indiviacuteduo eacute entendimento de verdade tatildeo profundo que supera qualquer

especulaccedilatildeo abstrata do conhecimento e por isso seu efeito eacute marcante

Para o conhecimento que vecirc atraveacutes do principium individuationis uma

vida feliz no tempo presenteada pelo acaso ou conquistada deste pela

sabedoria em meio ao sofrimento de inumeraacuteveis outros eacute apenas um sonho de

mendigo no qual eacute um rei poreacutem tem de acordar e reconhecer que era tatildeo-soacute

uma ilusatildeo fugidia aquilo que o separava do sofrimento da sua vida (MVR

452)

A experimentaccedilatildeo deste estado de consciecircncia faz-nos perceber a vida como engano

luta infinita e provoca em noacutes a renuacutencia a esta mesma vida agrave vontade de viver O

homem natildeo mais afirma a sua essecircncia mas a repudia

Agrave semelhanccedila do estado de negaccedilatildeo da vontade o proacuteprio estado de

contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee um desinteresse pelos mandamentos da vontade

60

individual um desligamento do caraacuteter egoiacutestico do sujeito empiacuterico28

Para que possa

perceber a Ideacuteia por traacutes do objeto contemplado o observador deve estar em um estado

de consciecircncia que se vecirc livre dos grilhotildees da vontade Neste estado ele eacute alccedilado para

aleacutem da individualidade torna-se puro sujeito de conhecimento Para que este estado se

manifeste eacute imprescindiacutevel natildeo estar interessado nas relaccedilotildees do objeto apreciado seja

com outros objetos seja consigo mesmo O apreciador esteacutetico natildeo se preocupa com o

ldquoonderdquo o ldquocomordquo o ldquoporquecircrdquo dos objetos Estas formas de interjeiccedilatildeo sinalizam para a

relaccedilatildeo dos objetos com o mundo O apreciador esteacutetico no momento da apreciaccedilatildeo

tem em vista somente o ldquoquerdquo do objeto transforma-se em um ldquoolho que vecircrdquo livre do

princiacutepio de individuaccedilatildeo eacute o puro sujeito de conhecimento Vemos nestes dois estados

(o esteacutetico e o compassivo) exemplos de estados de consciecircncia que por suas

caracteriacutesticas de alccedilarem o indiviacuteduo a uma anulaccedilatildeo do sofrimento fazem parte do

projeto de juventude de estabelecer uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Percebemos entatildeo que a

consideraccedilatildeo esteacutetica e a consideraccedilatildeo eacutetica possuem em comum esta caracteriacutestica da

consciecircncia de se apartar do princiacutepio de individuaccedilatildeo

No caso da trageacutedia como descreve Schopenhauer seu fim uacuteltimo eacute despertar a

compaixatildeo no apreciador Desta forma o filoacutesofo associa agrave trageacutedia um efeito singular e

adverso das demais artes ou pelo menos reconhece na trageacutedia a arte capaz de

demonstrar a semelhanccedila entre os modos de consideraccedilatildeo artiacutestico e eacutetico Ao ilustrar o

conflito das vontades no mundo atraveacutes da exposiccedilatildeo do sofrimento humano a trageacutedia

cumpre seu papel artiacutestico ao expor a ideacuteia de humanidade Aleacutem deste atributo

podemos dizer que a trageacutedia tem que cumprir ainda seu papel moral ao causar no

28

Neste ponto de semelhanccedila eacute fundamental apontar mais uma vez a heranccedila kantiana Nas palavras de

Barboza (2001 82) ldquoA negaccedilatildeo da Vontade diante da beleza realmente obedece a uma leitura do

conceito criacutetico de desinteresse Quando Kant diz que o belo eacute aquilo que satisfaz bdquosem nenhum

interesse‟ o autor de O mundo leu essa expressatildeo como equivalente da negaccedilatildeo do querer visto que

interesse e motivo satildeo conceitos intercambiaacuteveis [] e a vontade neutraliza-se desinteressa-se ou seja eacute

indeterminaacutevel por motivos na contemplaccedilatildeo da Ideacuteia do belordquo

61

espectador a renuacutencia a toda vontade O modelo exemplar da trageacutedia eacute para

Schopenhauer a trageacutedia cristatilde onde o heroacutei conscientemente abandona o querer e

conseguintemente a vida Na trageacutedia antiga havia somente a identificaccedilatildeo do

sofrimento humano e sua exposiccedilatildeo A renuacutencia agrave vontade de vida eacute caracteriacutestica das

trageacutedias posteriores ao advento cristatildeo Schopenhauer exemplifica O priacutencipe de

Calderoacuten Gretchen em Fausto A Donzela de Orleans a Noiva de Messina etc Assim

ldquotoda a exposiccedilatildeo traacutegica eacute para o espectador um chamado agrave resignaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo livre

da Vontade de vida Somente a eacutetica pode tornar tudo isso mais compreensiacutevelrdquo (MB

223) Vemos entatildeo de forma clara na teoria da trageacutedia de Schopenhauer um momento

onde ocorre a coalizatildeo dos fundamentos metafiacutesicos de sua filosofia do pessimismo

originado nestes fundamentos e da atitude eacutetica existente por traacutes de seu pensamento

25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera

Faz-se necessaacuterio aqui uma incursatildeo sobre a teoria da muacutesica de Schopenhauer

tendo em vista de que ela ocuparaacute um papel decisivo na teoria nietzscheana da trageacutedia

As relaccedilotildees que Nietzsche estabelece entre a muacutesica a vontade as palavras e

finalmente a trageacutedia satildeo delineadas como veremos pela metafiacutesica schopenhaueriana

da muacutesica No intuito de perceber estas relaccedilotildees propomos aqui um breve esboccedilo da

teoria da muacutesica na filosofia de Schopenhauer

A filosofia da muacutesica encontra seu lugar ao final do terceiro livro de MVR bem

como no capiacutetulo 39 dos complementos fechando assim as consideraccedilotildees de

Schopenhauer sobre a metafiacutesica do belo e as artes29

29

Na esteira de Lydia Goehr (Jacquette 1996 200) ressaltamos que tendo em vista a influecircncia que sua

filosofia da muacutesica exerceu sobre o pensamento artiacutestico e filosoacutefico posterior e comparada agrave dimensatildeo

de sua obra as consideraccedilotildees sobre a muacutesica ocupam um espaccedilo diminuto em sua obra

62

Para o filoacutesofo da vontade a muacutesica eacute a arte que pela natureza de seu objeto de

expressatildeo natildeo encontra lugar apropriado dentro do sistema das demais artes Estas

conforme sua competecircncia em traduzir uma determinada objetidade da vontade uma

ideacuteia satildeo classificadas hierarquicamente A muacutesica entretanto figura aleacutem desta

hierarquizaccedilatildeo pois representa o conceitualmente irrepresentaacutevel ldquoa coacutepia de um

modelo que ele mesmo nunca pode ser representado imediatamenterdquo(MVR 338) a

Vontade mesma Esta arte eacute especialmente considerada devido agrave peculiaridade uacutenica de

seu efeito esteacutetico ldquoeacute uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente

sobre o mais iacutentimo do homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele

como se fora uma linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do

mundo intuitivordquo (MVR 336) A muacutesica estaacute aleacutem da intuiccedilatildeo pois representa aquilo

que estaacute aleacutem desta forma agrave semelhanccedila das ideacuteias que satildeo objetivaccedilotildees imediatas da

vontade a muacutesica eacute tambeacutem uma destas objetivaccedilotildees representaccedilatildeo imediata da coisa

em si O que o compositor apresenta atraveacutes da muacutesica eacute a essecircncia mais iacutentima do

mundo em uma ldquolinguagem natildeo compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo

magneacutetico fornece informaccedilotildees sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito

algumrdquo (MVR 342) Por estar em um acircmbito inalcanccedilaacutevel pelo conceito a muacutesica

atraveacutes de sua linguagem arrebata o homem de forma mais marcante e direta e ateacute

mesmo a explanaccedilatildeo sobre a muacutesica estaacute condenada agrave pobreza e agrave insuficiecircncia Desta

forma o filoacutesofo se utilizaraacute de uma analogia para explanar sobre a muacutesica ie

procederaacute a uma explicaccedilatildeo da muacutesica atraveacutes de um paralelismo entre ela as ideacuteias e o

mundo enquanto objetivaccedilotildees da vontade

Esta analogia expressa atraveacutes de diversos exemplos leva em consideraccedilatildeo que

em suas duas formas de objetivaccedilatildeo (o mundo e a muacutesica) a Vontade deixa transparecer

semelhanccedilas Na muacutesica os tons mais graves aproximam-se ao que satildeo no mundo os

63

graus mais baixos de objetivaccedilatildeo da vontade quais sejam a natureza inorgacircnica A lei

da harmonia estabelece que os tons agudos satildeo originados daquele tom mais grave

fundamental Da mesma forma no mundo os corpos tecircm como fonte e sustentaacuteculo a

natureza inorgacircnica ldquoagrave partir da qual tudo se eleva e desenvolverdquo(MB 230) As vozes

intermediaacuterias da melodia que estatildeo entre o baixo fundamental e a voz condutora

correspondem no mundo aos demais graus de objetivaccedilatildeo da vontade na natureza ldquoAs

vozes mais proacuteximas do baixo correspondem aos graus mais baixos ou seja os corpos

ainda inorgacircnicos poreacutem jaacute se exteriorizando de diversas maneiras As vozes mais

elevadas por sua vez representam os reinos vegetal e animalrdquo(MB 231)

O objeto de representaccedilatildeo da muacutesica eacute a Vontade e esta por sua vez eacute

intraduziacutevel atraveacutes das palavras da configuraccedilatildeo racional pois a razatildeo natildeo pode

alcanccedilar sua profundidade Trata-se de ldquouma linguagem universal cuja

compreensibilidade eacute inata e cuja clareza ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo

(MB 228) Diante desta caracteriacutestica cognitiva a muacutesica natildeo deve se inspirar no texto

nas palavras a natildeo ser para ilustraacute-las e conceder-lhes assim significaccedilatildeo mais

profunda A muacutesica natildeo deve ser composta com base em conceitos ou em objetos e

ocorrecircncias do mundo pois trata-se de uma expressatildeo da ordem do essencial do

universal ldquoela eacute a alma mais interior dessas ocorrecircncias sem o corpordquo (MB 235) Os

objetos e situaccedilotildees do mundo satildeo manifestaccedilotildees e portanto sua representaccedilatildeo

conceitual satildeo reproduccedilotildees circunstanciais da essecircncia do mundo expressa pela muacutesica

Daiacute se compreende o fato de a muacutesica realccedilar em cada

pintura sim em cada cena da vida efetiva e do mundo o

aparecimento de uma significaccedilatildeo mais elevada e tanto mais

quanto mais anaacuteloga eacute sua melodia ao espiacuterito iacutentimo do

fenocircmeno dado A muacutesica combina com tudo em todas as

exposiccedilotildees Nada lhe pode ser estranho pois exprime a essecircncia

de todas as coisas Caso se soe uma muacutesica que combine com

alguma cena da vida humana ou da natureza destituiacuteda de

conhecimento ou com alguma accedilatildeo acontecimento ambiente ou

64

alguma imagem ndash entatildeo ela revela o sentido secreto dessa cena e eacute

seu comentaacuterio mais correto e claro (MB 235)

Esta caracteriacutestica que daacute agrave muacutesica um privileacutegio cognitivo sobre as demais formas

artiacutesticas eacute o que delineia as consideraccedilotildees do filoacutesofo sobre a oacutepera30

A oacutepera ideal eacute

portanto aquela onde o livreto estaacute para a muacutesica como um exemplo para um conceito

geral A muacutesica tem a funccedilatildeo de expor ldquoo profundo e misterioso sobre a essecircncia

iacutentimardquo daquilo que a palavra exemplifica O compositor que maior ecircxito conseguiu

neste sentido conforme o filoacutesofo foi Rossini cuja ldquomuacutesica fala tatildeo distinta e

puramente a sua linguagem PROacutePRIA visto que quase natildeo precisa de palavras e por

conseguinte provoca todo o seu efeito mesmo se executada soacute com instrumentosrdquo

(MVR 344)

Vemos entatildeo a muacutesica como a mais profunda das artes cujo efeito eacute o mais

avassalador e que portanto quando conjugada com outras formas de expressatildeo como a

oacutepera deve formar a base e orientar a sua elaboraccedilatildeo Entretanto ao contraacuterio da

trageacutedia cujo fim eacute o estiacutemulo agrave renuacutencia da vontade de viver a muacutesica segundo a

metafiacutesica exposta por Schopenhauer ldquonatildeo faz mais do que agradar a vontade de viver

jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo seus ecircxitos e ao final expressa sua

satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509)

30

ldquoAo adotar esta atitude Schopenhauer transtorna toda a tradiccedilatildeo jaacute secular que havia afirmado natildeo

poucas vezes desde os tempos do nascimento da oacutepera o predomiacutenio da palavra sobre a muacutesica e em

consequumlecircncia a subordinaccedilatildeo desta uacuteltima agrave primeirardquo (Fubini 1988 289)

65

3 A teoria da trageacutedia do Jovem Nietzsche

Debalde espreitamos por uma raiz

vigorosamente ramificada por um pedaccedilo

de terra sadia e feacutertil por toda parte poacute

areia rigidez consunccedilatildeo Aqui um

solitaacuterio desconsolado natildeo poderia escolher

melhor siacutembolo do que o Cavaleiro com a

Morte e o Diabo como Duumlrer o desenhou o

cavaleiro arnesado com o olhar duro

brocircnzeo que sabe tomar o seu caminho

assustador imperturbado por seus

hediondos companheiros e natildeo obstante

desesperanccedilado sozinho com o seu corcel e

o seu catildeo Um tal cavaleiro duumlreriano foi

nosso Schopenhauer faltava-lhe qualquer

esperanccedila mas queria a verdade Natildeo haacute

quem se lhe iguale

(Nietzsche)

Neste capiacutetulo procuraremos apontar primeiramente o modo pelo qual se deu o

encontro entre Nietzsche e a filosofia de Schopenhauer Em um segundo momento

percorreremos o desenvolvimento histoacuterico das produccedilotildees nietzscheanas que

culminaram com a publicaccedilatildeo da obra que caracteriza o primeiro periacuteodo do filoacutesofo

qual seja O nascimento da trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica Concluiremos entatildeo

apresentando um esboccedilo desta obra dando ecircnfase em todos os momentos aos

66

elementos que caracterizam sua teoria da trageacutedia especialmente agravequeles relacionados agrave

metafiacutesica schopenhaueriana da vontade

31 Schopenhauer e o jovem Nietzsche uma breve contextualizaccedilatildeo histoacuterica

Foram nos anos de universidade em Leipzig que Nietzsche se deparou com a

filosofia de Schopenhauer Este periacuteodo entre os anos de 1865 e 1869 eacute especialmente

importante devido ao fato de que nele podemos assistir ao surgimento de alguns

aspectos fundamentais ao projeto filosoacutefico de Nietzsche Janz descreve este periacuteodo

como aquele em que o filoacutesofo estabeleceu ldquoseus encontros espirituais determinantes a

partir dos quais se defrontou consigo mesmo e com sua tarefardquo(1987 151)

O primeiro contato do jovem Nietzsche com o mundo schopenhaueriano deu-se

em meados de outubro de 1865 pouco tempo apoacutes sua chegada a Leipzig O

arrebatamento causado no jovem estudante de filologia pelo encontro com a filosofia

schopenhaueriana eacute descrito por ele apoacutes dois anos da seguinte maneira

Sentia-me naquela eacutepoca desorientado solitaacuterio sem

princiacutepios sem esperanccedilas inconsolado e com algumas

experiecircncias dolorosas e decepccedilotildees Construir uma vida proacutepria e

adequada era para mim uma aspiraccedilatildeo que me ocupava da manhatilde

ateacute a noite No feliz apartamento em que vivia procurava

concentrar-me a mergulhar em mim mesmo e quando me

encontrava com amigos estes eram sempre Mushacke e Von

Gersdorff os quais por sua parte alentavam objetivos muito

semelhantes aos meus Creio que natildeo seraacute difiacutecil imaginar a

impressatildeo que nesta situaccedilatildeo me causou a leitura da obra

principal de Schopenhauer Encontrei um dia este livro no sebo do

velho Rohm Ignorando tudo sobre ele o tomei em minhas matildeos e

me pus a folheaacute-lo Natildeo sei que democircnio me sussurrou bdquoleve este

livro para a casa‟ Aconteceu de compraacute-lo apesar do meu usual

costume de natildeo me precipitar na compra de livros Uma vez em

casa num canto do sofaacute me lancei sobre o tesouro receacutem

adquirido e comecei a deixar que aquele gecircnio eneacutergico e sombrio

influiacutesse sobre mim Em cada linha sua gritava a renuacutencia

negaccedilatildeo resignaccedilatildeo tinha diante de mim um espelho no qual

podia contemplar o mundo a vida e meu proacuteprio acircnimo com uma

67

grandeza deprimente Um espelho desde o qual o olho solar da

arte me mirava desde sua absoluta falta de interesse Vi

enfermidade e cura desterro e refuacutegio inferno e paraiacuteso A

necessidade de autoconhecimento inclusive de auto-

experimentaccedilatildeo apoderou-se de mim com forccedila indomaacutevel

provas daquela mutaccedilatildeo profunda satildeo hoje todavia para mim as

paacuteginas desassossegadas e melancoacutelicas do diaacuterio que agravequela

eacutepoca escrevi com suas auto-acusaccedilotildees inuacuteteis e sua desesperada

busca de salvaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do inteiro nuacutecleo humano Na

medida em que propus a submeter todas as minhas caracteriacutesticas

e aspiraccedilotildees ao tribunal de uma sombria auto-depreciaccedilatildeo minha

atitude estava cheia de amargura possuiacuteda de um oacutedio injusto e

desenfreado contra mim mesmo Nem sequer renunciei agraves

mortificaccedilotildees corporais Obriguei-me com efeito durante

quatorze dias seguidos a deitar-me agraves duas da noite e acordar agraves

seis da manhatilde Uma excitaccedilatildeo nervosa muito singular se apoderou

assim de mim e quem sabe ateacute que grau de loucura haveria

chegado se natildeo tivesse modificado frente agravequele estado de

acircnimo os atrativos da vida da vaidade e o imperativo de retornar

a meus estudos regulares (conforme citaccedilatildeo de Janz 1987 158)

Da citaccedilatildeo podemos inferir a mudanccedila de acircnimo que o encontro com

Schopenhauer provocou A partir daquele momento diversas correspondecircncias datildeo-nos

ainda informaccedilotildees do impacto que a filosofia de Schopenhauer provocou na concepccedilatildeo

de mundo do jovem estudante Em algumas destas correspondecircncias vemos transparecer

a influecircncia atraveacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio schopenhaueriano bem

como das ideacuteias nelas expressas Assim acontece em carta enviada agrave sua matildee e irmatilde

datada de 5 de novembro de 1865 onde ao discorrer acerca da frivolidade da vida

humana o jovem Nietzsche conclui utilizando-se dos argumentos propostos pela eacutetica

schopenhaueriana

Existem dois caminhos ou se esforccedila e se acostuma a ser

o mais limitado que se possa e uma vez que se reduz o maacuteximo

possiacutevel a luz do espiacuterito se busque bens de fortuna e se viva com

os prazeres do mundo ou por outro lado se sabe que a vida eacute

miseraacutevel se sabe que somos seus escravos tanto mais quanto

mais procuramos dela gozar e por tanto se desprende dos bens da

vida exercita a sobriedade e se eacute austero consigo mesmo e cordial

com os demais ndash e isto porque sente compaixatildeo pelos

companheiros de miseacuteria ndash em uma palavra se vive de acordo

68

com as rigorosas exigecircncias do cristianismo primitivo (OC

470)

Vemos ainda em carta a Mushacke em 12 de julho de 1866 o impacto que a

interpretaccedilatildeo schopenhaueriana pessimista de mundo causou em Nietzsche ldquoDesde que

Schopenhauer nos retirou dos olhos a venda do otimismo as coisas satildeo percebidas

mais agudamente A vida eacute mais interessante ainda que mais feiardquo (conforme citaccedilatildeo

de Janz 1987 172) Percebemos tambeacutem a linguagem schopenhaueriana na descriccedilatildeo

dos momentos de contemplaccedilatildeo Eacute o caso da carta datada de 07 de abril de 1866 a

Gersdorf onde Nietzsche descreve seu estado que nos remeteraacute agrave contemplaccedilatildeo

artiacutestica na filosofia de Schopenhauer ao discorrer sobre os dias de veratildeo ldquo[] a

natureza se faz perfeita e noacutes tambeacutem entatildeo nos sentimos livres do poderio da vontade

sempre alerta e somos olho puro intuitivo desinteressadordquo (OC 472)

Estas influecircncias nortearam de forma definitiva as produccedilotildees acadecircmicas de

Nietzsche mesmos suas pesquisas filoloacutegicas A concepccedilatildeo traacutegica do mundo tornou-se

um feixe condutor para as reflexotildees do jovem filoacutelogo Seus companheiros no estudo da

obra de Schopenhauer eram Gersdorff e Mushacke Em carta agrave sua matildee de 01 de

fevereiro de 1866 Nietzsche deixa saber sobre a frequumlecircncia dos estudos ldquoCom

Gersdorff me encontro uma noite por semana para ler grego a cada duas semanas me

reuacuteno com ele e com Mushacke e nos entregamos a Schopenhauer Este filoacutesofo ocupa

uma posiccedilatildeo importante em meus pensamentos e estudos e meu respeito por ele cresce

incomparavelmenterdquo (OC 471) Se o conteuacutedo da filosofia schopenhaueriana foi

absorvido intensamente pelo jovem Nietzsche como podemos ver a partir dos trechos

transcritos acima a forma estiliacutestica tambeacutem se configura como preocupaccedilatildeo Em um

periacuteodo onde as pesquisas acadecircmicas exigiam o esforccedilo da escrita ali tambeacutem a

autoridade das regras schopenhauerianas exibia sua feiccedilatildeo Eacute tambeacutem em uma carta a

69

Gersdorff datada de 06 de abril de 1867 onde Nietzsche expotildee sua preocupaccedilatildeo com o

estilo

Nestas divagaccedilotildees quero redigir meu trabalho sobre as

fontes de Dioacutegenes Laeacutercio e estou todavia no iniacutecio Para seu

regozijo confessarei que o que mais me daacute trabalho eacute meu estilo

em alematildeo Agora me caem os veacuteus dos olhos e vejo que

durante muito tempo vivi em estado de inocecircncia estiliacutestica O

imperativo categoacuterico bdquodeves escrever‟ me foi despertado[] nos

ouvidos me soavam todos os preceitos estiliacutesticos de Lessing de

Lichtenberg e de Schopenhauer Meu uacutenico consolo eacute que estas

trecircs autoridades afirmavam unanimemente que eacute difiacutecil escrever

bem que por natureza ningueacutem tem um bom estilo e que haacute que

trabalhar e trabalhar para consegui-lo (OC 476)

Entretanto apesar do profundo arrebatamento causado pela filosofia de

Schopenhauer que fez com que o universo das preocupaccedilotildees do entatildeo jovem Nietzsche

se fundamentasse nos pressupostos da metafiacutesica schopenhaueriana outros elementos

tambeacutem fundamentais para o pensamento futuro do filoacutesofo foram tambeacutem neste

periacuteodo despertados Como apontam Dias (2009 42) Janaway (2007 16) e Lopes

(2008 27) jaacute neste periacuteodo que podemos tratar como um periacuteodo de despertar para o

pensamento filosoacutefico encontraacutevamos os elementos que a partir de Humano demasiado

humano conformaratildeo a criacutetica nietzscheana agrave filosofia de Schopenhauer Os

comentadores citados chamam a atenccedilatildeo para o fato de que embora nas obras

publicadas de Nietzsche possamos assistir a criacuteticas diretas a Schopenhauer somente

apoacutes Humano demasiado humano tais criacuteticas agrave filosofia schopenhaueriana surgiram

em um momento imediatamente posterior agrave descoberta da metafiacutesica da vontade Rosa

Maria Dias chama a atenccedilatildeo para os fragmentos poacutestumos e para a correspondecircncia que

agrave partir de 1867 trazem algumas criacuteticas agrave metafiacutesica da vontade Rogeacuterio Lopes e

Cristopher Janaway apontam que algumas destas criacuteticas estatildeo embasadas nas leituras

que o jovem Nietzsche fez de Friedrich A Lange Rudolf Haym Kuno Fischer dentre

outros Tais criacuteticas contudo natildeo afastaram o jovem Nietzsche do discipulado

70

schopenhaueriano mas transformaram sua aceitaccedilatildeo do sistema da vontade No lugar de

uma defesa da consistecircncia loacutegica do sistema Nietzsche passou a adotar uma postura de

defesa da bdquonatureza edificante‟ e preponderantemente artiacutestica deste sistema Exemplos

desta postura podem ser encontrados tambeacutem na correspondecircncia daquele periacuteodo

Para escrever uma apologia a Schopenhauer eu tenho

unicamente que considerar o fato de que olho esta vida livre e

bravamente diante do fato de que encontrei um suporte para me

apoiar obviamente que isto natildeo eacute mais que uma apologia

totalmente individual Mas eacute como as coisas satildeo Se algueacutem

deseja refutar Schopenhauer para mim atraveacutes de argumentos

racionais murmuro em seu ouvido bdquoporeacutem meu amigo visotildees de

mundo natildeo satildeo criadas nem destruiacutedas pela loacutegica‟ (carta a

Deussen Outubro-Novembro de 1867 citada por Janaway

(200718))

Ou ainda em carta a Gersdorff onde apoacutes apresentar a criacutetica de Lange agrave metafiacutesica da

vontade Nietzsche conclui contra Haym ainda com os argumentos de Lange

Natildeo apenas a verdadeira essecircncia das coisas a coisa em si

eacute desconhecida para noacutes tambeacutem seu conceito eacute nada mais nada

menos que o uacuteltimo rebento de um contraste condicionado por

nossa organizaccedilatildeo do qual natildeo sabemos se conserva algum

significado fora de nossa experiecircncia Disso resulta pensa Lange

que os filoacutesofos natildeo devem ser importunados na medida em que

nos edificam A arte eacute livre tambeacutem na regiatildeo dos conceitos

Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro

uma Madonna de Rafael Como vocecirc pode perceber o nosso

Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista

criacutetico ele se torna quase ainda mais valioso para noacutes Se filosofia

eacute arte entatildeo que Haym se anule diante de Schopenhauer se a

filosofia deve edificar entatildeo eu pelo menos natildeo conheccedilo nenhum

filoacutesofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer (apud

Lopes 2008 86-87)

Vimos ateacute entatildeo que a descoberta de Schopenhauer provocou no jovem

estudante de filologia transformou sua forma de perceber o mundo e o influenciou de

forma definitiva a ponto de fazer com que Nietzsche se definisse como um seguidor e

divulgador da obra schopenhaueriana Contudo eacute no fim de seus anos de estudo em

Leipzig que o disciacutepulo de Schopenhauer iraacute se defrontar com a personalidade que lhe

71

reforccedilaraacute de forma ainda mais contundente o selo da rotunda schopenhaueriana

Richard Wagner

Foi atraveacutes de seu amigo Brockhaus cuja esposa era irmatilde do muacutesico que em

novembro de 1868 Nietzsche encontrou-se pela primeira vez com Wagner A partir

daquele encontro se estabeleceria um relacionamento que de uma forma ou de outra

marcaraacute Nietzsche pelo resto de sua vida Em uma carta a seu amigo Erwin Rohde

Nietzsche descreve o primeiro encontro e sua perplexidade ao encontrar em Wagner um

admirador de Schopenhauer ldquo[]mantive com ele uma longa conversa sobre

Schopenhauer Ah Compreenderaacutes minha felicidade em ouvir-lhe falar com um

entusiasmo completamente indescritiacutevel ao qual ele agradecia como Schopenhauer

era o uacutenico filoacutesofo que havia compreendido a essecircncia da muacutesicardquo (Correspondecircncia

2007 21) A impressatildeo deste encontro eacute tambeacutem claramente visiacutevel atraveacutes de

correspondecircncia endereccedilada ao proacuteprio Wagner em maio de 1869 ldquoVeneradiacutessimo

senhor quanto tempo tive a intenccedilatildeo de lhe manifestar sem nenhuma timidez o grau de

gratidatildeo que sinto em relaccedilatildeo ao senhor pois realmente os melhores e mais elevados

momentos de minha vida se ligam ao seu nome e eu soacute conheccedilo mais um homem aleacutem

disso seu grande irmatildeo em espiacuterito Arthur Schopenhauer em quem penso com a

mesma veneraccedilatildeo ateacute senso religiosordquo (Correspondecircncia 2007 56) Como podemos

ver a pessoa de Wagner eacute associada agrave de Schopenhauer Esta associaccedilatildeo tornar-se-aacute

uma constante e poderaacute ser identificada ainda na fase tardia onde as criacuteticas a estes

pensadores e ao que eles entatildeo representavam se daraacute de forma inter-relacionada Este

primeiro encontro com Wagner conforme Janz (1987 22) foi um dos principais

motivos que levaram Nietzsche a aceitar em detrimento de outros planos que

formulava assumir a caacutetedra de filologia em Basel A proximidade de Tribschen

residecircncia dos Wagner e a possibilidade de uma convivecircncia com o muacutesico o

72

inspiraram E assim aconteceu Ao mudar-se para Basel pocircde desfrutar de uma

convivecircncia constante com o casal Wagner Desde a chegada de Nietzsche ateacute a

mudanccedila de Wagner em 1872 encontravam-se com muita frequumlecircncia e os assuntos que

pautavam tais encontros eram amiuacutede arte muacutesica a literatura claacutessica e a filosofia de

Schopenhauer Wagner tornar-se-ia para Nietzsche a personificaccedilatildeo do gecircnio

schopenhaueriano aquele capaz de atraveacutes da muacutesica expor a essecircncia do mundo No

projeto wagneriano de ldquoarte totalrdquo Nietzsche pocircde vislumbrar a uniatildeo entre muacutesica e

filosofia e satisfazer assim em certa medida as expectativas oriundas da metafiacutesica da

vontade

32 O projeto subjacente ao Nascimento da Trageacutedia

Eacute famosa a passagem onde Nietzsche em carta a Deussen datada de janeiro de

1870 informa sobre seu estado de espiacuterito ldquo Ciecircncia arte e filosofia crescem agora

juntas em mim e de tal modo que um dia haverei de parir centaurosrdquo (Janz 1981 66)

Esta afirmaccedilatildeo eacute ilustrativa no que se refere ao ambiente onde o Nascimento da trageacutedia

foi gerado Podemos identificar claramente as figuras por detraacutes dos termos filosofia

arte e ciecircncia satildeo elas Schopenhauer Wagner e a filologia claacutessica Neste periacuteodo

Nietzsche entatildeo jovem professor de filologia estava imbuiacutedo pela pretensatildeo de poder

unir os estudos filoloacutegicos aos filosoacuteficos Sua preleccedilatildeo inicial Homero e a filologia

claacutessica em Basel nos daacute uma amostra desta pretensatildeo Ali podemos assistir a uma

aproximaccedilatildeo entre filologia e filosofia atraveacutes da proposta de uma leitura filosoacutefica do

mundo antigo ldquoCom isto quero expressar que toda atividade filoloacutegica deve estar

impregnada de uma concepccedilatildeo filosoacutefica do mundo na qual todo o particular e singular

seja visto como algo sem proveito e soacute permaneccedila de peacute a unidade do todordquo (OC 26)

73

Sua escolha por trilhar caminhos mais proacuteximos agrave filosofia pode tambeacutem ser observada

pela tentativa frustrada de ocupar uma cadeira desta disciplina que se mostrou livre em

janeiro de 1871 Se por um lado podemos diagnosticar certa decepccedilatildeo e ateacute um

determinado desacircnimo na atividade acadecircmica por outro lado os laccedilos com os Wagner

se estreitavam cada vez mais No refuacutegio de Tribschen sob a aura de Richard Wagner

Nietzsche discorria sobre o mundo grego enquanto modelo de cultura e ouvia os planos

wagnerianos sobre seu projeto de uma obra de arte total Como pano de fundo destas

discussotildees a metafiacutesica da muacutesica schopenhaueriana e sua concepccedilatildeo traacutegica do mundo

Eacute em torno destes eixos formadores que vemos se materializar a primeira publicaccedilatildeo de

Nietzsche

O desenvolvimento das ideacuteias que formaratildeo a obra contudo se deu de forma

gradual Ao longo do periacuteodo compreendido entre a chegada de Nietzsche a Basel e a

publicaccedilatildeo de seu livro determinados trabalhos deixam transparecer o delineamento de

algumas das ideacuteias centrais da obra Satildeo eles O drama musical grego Soacutecrates e a

trageacutedia A visatildeo dionisiacuteaca do mundo e Introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles31

Em o drama musical grego conferecircncia puacuteblica datada de janeiro de 1870

Nietzsche efetua uma comparaccedilatildeo entre a arte traacutegica da antiguidade e as oacuteperas

modernas Estas de acordo com o filoacutesofo satildeo uma imperfeita ldquocaricatura do drama

musical antigordquo (VD 48) Muacutesica pintura escultura e poesia formavam um todo na

arte traacutegica da antiguidade Nas artes modernas por sua vez as formas artiacutesticas satildeo

fragmentadas fato que dificulta o entendimento da trageacutedia grega e que causaria

espanto ao apreciador de arte moderno A muacutesica teria para a trageacutedia antiga uma

31

Como ressaltam M S Silk e J P Stern em sua obra Nietzsche on tragedy (1981 59) o nascimento da

trageacutedia eacute composto de forma estrutural pelos conceitos encontrados nestes trabalhos O iniacutecio do livro

(sectsect1-10) eacute substancialmente baseado no ensaio a visatildeo dionisiacuteaca do mundo enquanto a sequumlecircncia

composta pelos paraacutegrafos 5 e 6 estaacute mais proacutexima da introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles O trecho

composto pelos paraacutegrafos 11 a 14 pode ser derivado diretamente da leitura Soacutecrates e a trageacutedia O resto

do livro eacute formado por uma amaacutelgama destes escritos Partes dispersas ainda satildeo formadas pelo ensaio do

drama musical grego

74

importacircncia capital como elemento intensificador de seu efeito Podemos ver a intenccedilatildeo

por traacutes da anaacutelise nietzscheana da trageacutedia antiga em comparaccedilatildeo agrave opera Ao final da

conferecircncia no elogio que confere a Wagner o tiacutetulo de ldquoatual reformador da arterdquo bem

como na descriccedilatildeo de seu projeto de arte total retratado como um acontecimento que jaacute

teve lugar na trageacutedia da antiguidade claacutessica Nietzsche deixa claro seu engajamento ao

projeto wagneriano

No mecircs seguinte ao da citada conferecircncia uma segunda intitulada Soacutecrates e a

trageacutedia foi proferida por Nietzsche O assunto em pauta era a morte repentina da

trageacutedia grega Esta morte teria ocorrido pelas matildeos de Euriacutepides apoacutes uma decadecircncia

iniciada nos uacuteltimos periacuteodos das produccedilotildees de Eacutesquilo passando por Soacutefocles e

culminando com o advento da comeacutedia Tal decadecircncia teria sido provocada pela saiacuteda

de cena da muacutesica que de forma progressiva foi substituiacuteda pelo diaacutelogo racionalista

Soacutecrates ocupa aqui um lugar importante Eacute sua influecircncia sobre Euriacutepides que

transforma de uma forma definitiva a arte instintivamente musical da trageacutedia em uma

manifestaccedilatildeo do discurso eacutetico racionalista Esta ldquoesteacutetica racionalista e conscienterdquo

pode ser identificada no proacutelogo euripidiano e na inserccedilatildeo do deus ex machina

enquanto agentes de racionalizaccedilatildeo da obra artiacutestica A trageacutedia de Euriacutepides teria

assumido assim os pressupostos do racionalismo socraacuteticos ldquoVirtude eacute saber peca-se

somente por ignoracircncia O virtuoso eacute felizrdquo (VD 90) Esta assunccedilatildeo que liga a virtude

ao saber impotildee agrave trageacutedia um caraacuteter eacutetico alheio agrave sua caracteriacutestica puramente

esteacutetica O elemento culpa na dialeacutetica socraacutetica toma o lugar que era ocupado pela

compaixatildeo Jaacute podemos perceber nesta conferecircncia o esboccedilo da dicotomia que mais

tarde seraacute ilustrada atraveacutes dos deuses Apolo e Dioniso Os pares formadores da

dicotomia satildeo aqui expressos pela separaccedilatildeo entre instinto e razatildeo muacutesica e discurso

pessimismo e otimismo arte e ciecircncia

75

Temos a primeira referecircncia agrave arte dionisiacuteaca como impulso formador da

trageacutedia e sua contraposiccedilatildeo agrave arte apoliacutenea nas aulas proferidas por Nietzsche no veratildeo

daquele mesmo ano Neste curso sobre a trageacutedia de Soacutefocles do qual temos a

introduccedilatildeo podemos ver o esforccedilo de Nietzsche em caracterizar e apontar as

peculiaridades da trageacutedia da antiguidade que a tornam um fenocircmeno uacutenico em

comparaccedilatildeo agraves trageacutedias modernas Tal discussatildeo demonstraraacute pelos aspectos ali

expostos a aproximaccedilatildeo de Nietzsche com autores do periacuteodo claacutessico alematildeo e

sobretudo da chamada querela entre antigos e modernos Vemos claramente a influecircncia

de Schiller e F A Schlegel em algumas das definiccedilotildees adotadas por Nietzsche

No texto denominado A visatildeo dionisiacuteaca do mundo jaacute podemos assistir a um

desenvolvimento das duas pulsotildees artiacutesticas que satildeo o nuacutecleo da interpretaccedilatildeo

nietzscheana da trageacutedia O apoliacuteneo e o dionisiacuteaco satildeo ali explicados no acircmbito de seu

surgimento no mundo helecircnico e simbolizam a uniatildeo entre verdade e beleza na forma de

arte traacutegica Sua descriccedilatildeo como veremos abaixo estaacute permeada de conceitos retirados

da filosofia schopenhaueriana que vatildeo desde a biparticcedilatildeo do mundo entre verdade e

aparecircncia perpassam as noccedilotildees de belo e sublime e apontam a trageacutedia e a muacutesica como

forma de arte superiores

Em janeiro de 1872 Nietzsche daacute luz a seu ldquoCentaurordquo sob o nome O nascimento

da trageacutedia atraveacutes do espiacuterito da muacutesica Em carta a Rohde datada de 23 de novembro

de 1871 podemos notar atraveacutes da ansiosa expectativa nietzscheana a amaacutelgama

formadora da obra ldquo Temo sempre que os filoacutelogos natildeo o queiram ler por causa da

muacutesica os muacutesicos por causa da filologia e os filoacutesofos por causa da muacutesica e da

filologia e sinto logo medo e compaixatildeo de mim mesmordquo (Correspondecircncia 2007 237)

33 A teoria da trageacutedia publicada

Como escopo geral da primeira obra de Nietzsche podemos dizer na esteira de

Silk e de Stern (1981 52) que ela se propunha a esclarecer o problema do nascimento e

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da morte da trageacutedia helecircnica Trageacutedia que por sua vez era a expressatildeo artiacutestica que

simbolizava um problema vital o de que sob uma superfiacutecie bela podiacuteamos ter acesso agrave

terriacutevel profundidade do ser Tal forma de arte poderia novamente vir agrave luz por uma

geraccedilatildeo criativa que ao combater a superficialidade moderna que reinava no mundo

germacircnico poderia produzir o renascimento moderno do mundo Helecircnico

Em sua essecircncia o nascimento da trageacutedia aponta para as divindades Apolo e

Dioniacutesio como ldquorepresentantes vivosrdquo de princiacutepios diacutespares que irrompem da proacutepria

natureza e que ao serem conciliados de certa forma tornaram possiacutevel que atraveacutes dos

atritos de tal uniatildeo a trageacutedia grega despontasse como manifestaccedilatildeo artiacutestica exemplar

do sublime Em linhas gerais a arte do ldquofigurador plaacutesticordquo estaria entatildeo associada ao

deus Apolo enquanto a arte ldquonatildeo figuradardquo a da muacutesica estaria associada ao deus

Dioniacutesio O apoliacuteneo eacute um impulso da vontade grega que ao almejar a vida a apresenta

transfiguradamente como um belo sonho plasmado no mundo dos deuses oliacutempicos O

princiacutepio apoliacuteneo seria aquele que estabeleceria a ordem a beleza estaacutetica e a clareza

dos limites O dionisiacuteaco eacute oriundo das festas do oriente e seu efeito eacute comparado ao da

embriaguecircs A ele cabe a sabedoria profunda da essecircncia da vida lugar do acaso do

impermanente do horriacutevel e do sofrimento A Apolo eacute facultado tecer o veacuteu que

encobre a sabedoria dionisiacuteaca e torna a vida suportaacutevel atraveacutes da ilusatildeo do sonho

Assim segundo Nietzsche o desenvolvimento contiacutenuo da arte estaacute vinculado agrave

duplicidade dos princiacutepios apoliacuteneo e dionisiacuteaco Perfazendo um caminho histoacuterico da

cultura grega podemos notar uma sobreposiccedilatildeo intermitente entre os impulsos divinos

Temos momentos onde o impulso apoliacuteneo se mostrou dominante e outros onde

Dioniacutesio recupera seu predomiacutenio O mundo oliacutempico homeacuterico com sua arte eacutepica e

sua escultura do periacuteodo doacuterico nascem a partir de uma necessidade de redenccedilatildeo para a

realidade de horror e sofrimento que o povo helecircnico presenciava Em substituiccedilatildeo ao

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mundo titacircnico temos o mundo dos deuses oliacutempicos exemplificadores de uma

existecircncia divinizada que exalta a vida Nas palavras de Nietzsche ldquoo grego conheceu

e sentiu os temores e os horrores do existir para que lhe fosse possiacutevel de algum modo

viver teve de colocar ali entre ele e a vida a resplendente criaccedilatildeo oniacuterica dos deuses

oliacutempicosrdquo (NT 36) Entretanto a sabedoria dionisiacuteaca portadora da visatildeo abismal do

ser natildeo pocircde ser contida por muito tempo e a muacutesica veiacuteculo da uniatildeo orgiaacutestica aos

poucos foi se infiltrando no mundo construiacutedo pelo divino Apolo Os gregos foram se

tornando conscientes de seu estado sonambuacutelico que sob a graccedila do deus Apolo enleva

e transporta pela extraordinaacuteria beleza natural ou esteacutetica Em um estado semelhante ao

do indiviacuteduo que restabelecido em suas forccedilas pelo efeito renovador do sono ao findar

de uma noite comeccedila a ouvir os sons a sua volta e aos poucos vai se despertando da

mesma forma os gregos comeccedilaram novamente a ouvir o sussurro do Sileno

companheiro de Dioniacutesio ldquoo melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter

nascido e natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo

(NT 36) O artista que representa este retorno do dionisiacuteaco com a mesma envergadura

com que Homero representa as forccedilas apoliacuteneas eacute Arquiacuteloco Tomando-o como modelo

do gecircnio liacuterico Nietzsche faz uma descriccedilatildeo de seu processo de criaccedilatildeo Conforme a

metafiacutesica esteacutetica adotada por Nietzsche - que mais agrave frente veremos ser retirada da

esteacutetica schopenhaueriana - toda arte tem que ser objetiva livre dos interesses

individuais Nesta situaccedilatildeo a liacuterica que tem como objeto o eu do poeta seus desejos e

emoccedilotildees natildeo seria uma forma de arte Entretanto atraveacutes de uma descriccedilatildeo que Schiller

faz da inspiraccedilatildeo poeacutetica Nietzsche aponta o caminho para percebermos a liacuterica como

obra de arte e portanto objetivamente Conforme a passagem de Schiller citada por

Nietzsche (NT 44) ldquoo sentimento se me apresenta no comeccedilo sem um objeto claro e

determinado este soacute se forma mais tarde Uma certa disposiccedilatildeo musical de espiacuterito

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vem primeiro e somente depois eacute que se segue em mim a ideacuteia poeacuteticardquo Desta forma

Arquiacuteloco em seu processo criativo a princiacutepio entraria em um estado de consciecircncia

ou de criaccedilatildeo onde renunciaria agrave sua individualidade e dionisiacamente participaria do

uno-primordial ldquoabismo do serrdquo estado que por sua vez materializa-se atraveacutes da

representaccedilatildeo musical A muacutesica assim produzida seraacute condiccedilatildeo para o surgimento da

inspiraccedilatildeo que a posteriori daraacute nascimento atraveacutes da aplicaccedilatildeo das formas

apoliacuteneas agrave poesia liacuterica geacutermen da trageacutedia e dos ditirambos dramaacuteticos Esta uniatildeo da

poesia liacuterica com a muacutesica eacute uma expressatildeo sinteacutetica da relaccedilatildeo dos deuses Apolo e

Dioniacutesio Eacute no quinto capiacutetulo de sua obra que Nietzsche iraacute tratar da poesia liacuterica

Neste capiacutetulo o filoacutesofo se distancia de Schopenhauer em sua interpretaccedilatildeo do

fenocircmeno liacuterico Para Schopenhauer na citaccedilatildeo reproduzida por Nietzsche (NT 46) a

liacuterica eacute produzida atraveacutes de uma percepccedilatildeo da consciecircncia onde os estados da vontade

individualizada se alternam com o conhecimento objetivo Como vimos o poeta liacuterico

assistiria ao jogo do eu em sua afetaccedilatildeo emocional e descreveria este estado atraveacutes de

sua poesia Nietzsche ao descrever a liacuterica utiliza-se da teoria da muacutesica

schopenhaueriana qual seja o poeta liacuterico produz primeiramente a muacutesica como forma

geral de expressatildeo da vontade mesma e desta produccedilatildeo gera posteriormente o texto que

se torna um exemplificador do evento musical sua forma plaacutestica objetiva A muacutesica eacute

a aparecircncia da vontade e as imagens apoliacuteneas que dela se originaram satildeo conforme seu

espiacuterito A imagem e o conceito satildeo desta forma na liacuterica originados a partir da

muacutesica

Tem-se portanto na trageacutedia grega uma relaccedilatildeo de interdependecircncia que evoca

um aparente paradoxo ndash ou seja ao lado da necessidade esteacutetica da beleza Apolo exige

dos seus a medida (limites fronteiras do indiviacuteduo presentes no ldquonada em demasiardquo) e

o auto-conhecimento necessaacuterio para determinaacute-la (ldquoconhece-te a ti mesmordquo) o

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desmedido os excessos o dionisiacuteaco seriam identificados pelo apoliacuteneo como

democircnios de uma era preacute-apoliacutenea era dos Titatildes reminiscecircncias de barbarismo O

paradoxo estaacute em que para que o comedimento apoliacuteneo possa existir o desmedido

dionisiacuteaco faz-se necessaacuterio (na linguagem de Nietzsche como ldquosubstratordquo) assim

como para que o desmedido dionisiacuteaco possa existir faz-se necessaacuterio a existecircncia do

comedido do apoliacuteneo Natildeo obstante a trageacutedia grega depende da conjugaccedilatildeo destes

dois princiacutepios para existir ndash indo aleacutem poder-se-ia dizer que a proacutepria muacutesica compotildee

o princiacutepio primeiro que possibilita o surgimento da trageacutedia no jogo das formas

apoliacuteneo A trageacutedia eacute entatildeo definida como ldquoo coro dionisiacuteaco a descarregar-se sempre

de novo em um mundo de imagens apoliacuteneordquo (NT 60)

Em seu iniacutecio a trageacutedia grega era representada pelo coro traacutegico Este coro natildeo

era uma ldquorepresentaccedilatildeo constitucional do povordquo muito menos um espectador ideal

como o queria August Schlegel Nietzsche acompanha Schiller na definiccedilatildeo de que o

coro cria um terreno ideal para a manifestaccedilatildeo da arte O efeito da trageacutedia eacute a

manifestaccedilatildeo de um estado de unidade que transporta ao abismo do ser O coro eacute a

manifestaccedilatildeo deste sentimento da consciecircncia de que por traacutes da vida cotidiana haacute uma

realidade ldquoindestrutivelmente poderosa e cheia de alegriardquo (NT 55) Este eacute o consolo

metafiacutesico propiciado pela arte traacutegica Ao retornarmos deste estado o cotidiano nos

causa asco nojo Natildeo eacute possiacutevel interpretar mais o papel da vida comum A vida soacute

passa a se justificar atraveacutes da arte Perceba-se aiacute que o coro possui um papel

fundamental no processo O coro atua como impulso artiacutestico dionisiacuteaco em

contraposiccedilatildeo agrave forma apoliacutenea ou seja agraves imagens e agrave beleza plaacutestica Assim o

indiviacuteduo atraveacutes do coro tem para si revelado aquele substrato dionisiacuteaco encoberto

pela beleza e comedimento apoliacuteneos isto eacute ao indiviacuteduo era possiacutevel submergir na

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torrente dionisiacuteaca do auto-esquecimento permitindo-se pocircr de lado os preceitos

apoliacuteneos

E foi assim que em toda parte onde o dionisiacuteaco penetrou o apoliacuteneo

foi suspenso e aniquilado Mas eacute igualmente certo que laacute onde o primeiro

assalto foi suportado o prestiacutegio e a majestade do deus deacutelfico se externaram de

maneira mais riacutegida e ameaccediladora do que nunca(NT 41-42)

De acordo com Nietzsche as trageacutedias eram em seu iniacutecio representaccedilotildees do

sofrimento de Dioniacutesio Mesmo as trageacutedias do periacuteodo aacutetico traziam Dioniacutesio como

heroacutei traacutegico O sofrimento representado era o do despedaccedilamento de Dioniacutesio o deus

que sofreu o padecimento da individuaccedilatildeo causa de todo o sofrer O mito de Dioniacutesio eacute

interpretado aqui sob a luz da filosofia de Schopenhauer que apresenta a individuaccedilatildeo

como fonte do sofrimento ldquoNos pontos de vista aduzidos temos jaacute todas as partes

componentes de uma profunda e pessimista consideraccedilatildeo do mundo e ao mesmo tempo

a doutrina misteriosoacutefica da trageacutedia o conhecimento baacutesico da unidade de tudo o que

existe a consideraccedilatildeo da individuaccedilatildeo como a causa primeira do mal a arte como a

esperanccedila jubilosa de que possa ser rompido o feiticcedilo da individuaccedilatildeo como

pressentimento de uma unidade restabelecidardquo (NT 70)

Contudo ressalta Nietzsche a trageacutedia grega que como vimos desenvolve-se a

partir do embate contiacutenuo entre as representaccedilotildees dos deuses antiacutepodas ndash envolvidos em

um enfrentamento aparentemente sem fim ndash eacute reestruturada por Euriacutepides de forma a

diminuir o impacto do coro ou seja um golpe quase mortal para Dioniacutesio que

agonizante lanccedila matildeo de seus uacuteltimos esforccedilos O que em Euriacutepedes suscitou esta

reestruturaccedilatildeo que conforme Nietzsche eacute responsaacutevel pelo afastamento progressivo do

dionisiacuteaco tem suas origens no que o filoacutesofo chamou de uma ldquotendecircncia socraacuteticardquo O

socratismo euripidiano e a sua nova concepccedilatildeo esteacutetica satildeo as causadoras do

afastamento dos impulsos esteacuteticos primevos o dionisiacuteaco e o apoliacuteneo Em seu lugar o

discurso consciente passa a imperar O deus ex machina e os proacutelogos satildeo exemplos das

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interferecircncias racionais que datildeo novo tom agrave trageacutedia aacutetica Soacutecrates e seu racionalismo

expulsam da trageacutedia o conhecimento primevo dionisiacuteaco e estabelecem novas regras

esteacuteticas regras racionais que fazem com que o bom sinocircnimo do belo seja aquilo

alcanccedilado conscientemente

Se a trageacutedia grega foi para Nietzsche a manifestaccedilatildeo mais sublime de uma

forma artiacutestica isto se daacute em decorrecircncia do efeito por ela provocado qual seja o de

justificar o mundo enquanto fenocircmeno esteacutetico Foi exatamente o decliacutenio deste efeito

constatado pela produccedilatildeo racionalizada de Euriacutepides o responsaacutevel pela morte da

trageacutedia Ao fortalecer em demasia os princiacutepios racionais da forma Euriacutepides suprimiu

o dionisiacuteaco por meio da flacircmula que nas palavras de Nietzsche o tragedioacutegrafo

ldquolevava agrave testardquo ndash a saber uma espeacutecie de socratismo esteacutetico cujos princiacutepios se davam

a partir da remissatildeo do belo ao inteligiacutevel e deste ao virtuoso Identifica-se portanto a

racionalidade otimista socraacutetica como grande responsaacutevel pela supressatildeo do impulso

dionisiacuteaco Nietzsche alude agrave proximidade de convivecircncia entre Soacutecrates e Euriacutepides

para justificar a presenccedila do racionalismo nas obras Euripidianas Soacutecrates frequumlentava

o teatro somente para assistir agraves apresentaccedilotildees de Euriacutepides De todos os atenienses

Soacutecrates era apontado como o mais saacutebio e Euriacutepides como o segundo em sabedoria

Entretanto na contraposiccedilatildeo proposta por Nietzsche entre conhecimento instintivo e

racional Soacutecrates era descomunalmente racional ao contraacuterio do intuitivismo criativo

que reinava ateacute entatildeo Era questionando aos atenienses sobre seus atos que Soacutecrates

percebia que eles natildeo agiam conscientemente mas por intuiccedilatildeo A crenccedila socraacutetica de

que toda accedilatildeo boa deve ser consciente dominou o teatro atraveacutes de Euriacutepides Uma

chave para o entendimento da racionalidade socraacutetica segundo Nietzsche nos eacute

revelada pela ldquomonstruosa inversatildeordquo representada pela consciecircncia criacutetica de Soacutecrates ndash

ou seja a nota destoante em Soacutecrates revela-se pelo instinto criacutetico em contraposiccedilatildeo agrave

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consciecircncia criacutetica a consciecircncia criadora em contraposiccedilatildeo ao instinto como forccedila

criadora Intui-se assim o motivo pelo qual Soacutecrates natildeo compreendia a trageacutedia grega

- o dionisiacuteaco a tornava ininteligiacutevel para as exigecircncias racionalistas e criacuteticas da

ldquodialeacutetica otimistardquo socraacutetica ldquoA Soacutecrates [] parecia que a arte traacutegica nunca bdquodiz a

verdade‟ sem considerar o fato de que se dirigia agravequele que bdquonatildeo tem muito

entendimento‟ portanto natildeo aos filoacutesofos daiacute um duplo motivo para manter-se dela

afastadordquo(NT 87) Nietzsche compara Soacutecrates ao heroacutei euripidiano que

diferentemente (ateacute mesmo antagonicamente) agrave trageacutedia de Eacutesquilo e Soacutefocles ldquoprecisa

defender suas accedilotildees por meio da razatildeo e contra a razatildeordquo O que estaacute em jogo no

socratismo eacute a substituiccedilatildeo das verdades expressas miticamente religiosamente pelas

verdades loacutegicas A razatildeo tenta abarcar o todo e para isso desconsidera a arte e seus

impulsos A excelecircncia estaacute no saber e atraveacutes deste alcanccedila-se a felicidade erro do

otimismo racionalista Ilusatildeo da razatildeo que se acha soberana e independente A loacutegica

torna-se essecircncia da trageacutedia procura-se por relaccedilotildees causais e pelo bom telos O

diaacutelogo formata sua estrutura e expulsa seu fundamento musical O ldquoheroacutei dialeacuteticordquo eacute

portanto impulsionado pelo elemento otimista da dialeacutetica A justiccedila transcendental

presente nas obras Esquilianas ldquoeacute rebaixada ao niacutevel do raso e insolente princiacutepio da

bdquojusticcedila poeacutetica‟ com seu habitual deus ex machinardquo (NT 89) A racionalidade de

Soacutecrates atraveacutes de sua investigaccedilatildeo cientiacutefica da natureza de seu processo de

construccedilatildeo loacutegica da realidade daraacute origem ao que Nietzsche denominaraacute de ldquohomem

teoacutericordquo ou ldquohomem cientiacuteficordquo a quem a razatildeo ergue-se acima da proacutepria realidade ao

ponto mesmo de ndash e aiacute reside o proacuteprio otimismo ndash propor-se a tarefa de corrigir as

falhas da proacutepria realidade Mais ainda a razatildeo socraacutetica acena ao homem com a

promessa de conferir sentido agrave existecircncia pelo conhecimento e desta forma busca

justificar tal existecircncia

83

Em face ao pessimismo praacutetico eacute Soacutecrates o protoacutetipo do

otimista teoacuterico que na jaacute assinalada feacute na escrutabilidade da

natureza das coisas atribui ao saber e ao conhecimento a forccedila de

uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo

(NT 94)

Natildeo obstante o otimismo no conhecimento na racionalidade socraacutetica encontra seu

maior dragatildeo em sua proacutepria loacutegica interna Assim nas palavras de Nietzsche

[] a periferia do ciacuterculo da ciecircncia possui infinitos pontos

e enquanto natildeo for possiacutevel prever de maneira nenhuma como se

poderaacute alguma vez medir completamente o ciacuterculo o homem

nobre e dotado ainda antes de chegar ao meio de sua existecircncia

tropeccedila e de modo inevitaacutevel em tais pontos fronteiriccedilos da

periferia onde fixa o olhar no inesclareciacutevel Quando divisa aiacute

para seu susto como nesses limites a loacutegica passa a girar em

redor de si mesma e acaba por morder a proacutepria cauda ndash entatildeo

irrompe a nova forma de conhecimento o conhecimento traacutegico

que mesmo para ser apenas suportado precisa da arte como meio

de proteccedilatildeo e remeacutedio (NT 95)

Afigura-se-nos aqui o problema apontado por Nietzsche como o ldquoproblema da

ciecircncia mesmardquo a saber um problema que nos envolve a todos por abarcar (ou

contaminar) toda a cultura ocidental - isto eacute ainda mantemos o dionisiacuteaco agrave baila

ocupando diminuta posiccedilatildeo em detrimento ao culto acerbado ao racionalismo socraacutetico

A cultura socraacutetica impotildee-se pelo homem-teoacuterico e qualquer outra existecircncia que fuja

aos olhos perscrutadores de Soacutecrates deve ldquolutar penosamente para pocircr-se agrave sua altura

como existecircncia permitida e natildeo como existecircncia propostardquo

Nietzsche nos atenta para o fato de reconhecermos comumente no homem culto

erudito o homem douto saacutebio ndash consecutivamente o dionisiacuteaco a arte eacute colocada de

forma perifeacuterica de modo a nunca poder encontrar espaccedilo para superar sua condiccedilatildeo de

ldquoremeacutedio-arterdquo A vontade aacutevida faz seu caminho mesmo atraveacutes da completa falta de

respostas de fundamentos de sentido assim eacute preferiacutevel ao ser humano querer o nada

no sentido de ainda sim querer alguma coisa do que nada querer do que reconhecer a

84

falta de fundamentos da qual consistem em todos os tempos as ilusotildees que

costumeiramente adota-se como engodo ao absoluto sem-sentido da vida

Por fim Nietzsche atenta-nos para o fato de como o homem de seu tempo vem

perdendo a crenccedila na ciecircncia otimista socraacutetica isto eacute pressentindo que a cultura

racionalista socraacutetica torna-se iloacutegica ao vislumbraacute-la em seus horizontes afastando-se

de suas consequumlecircncias Nietzsche diagnostica na oacutepera de seu periacuteodo a subordinaccedilatildeo da

muacutesica agrave arte figurada agrave palavra e expotildee a expectativa de que possa haver no cansaccedilo e

na percepccedilatildeo do insucesso dos esforccedilos racionalistas um renascimento da trageacutedia

85

4 Conclusatildeo pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo

da vida

Retribui-se mal a um mestre continuando-

se sempre apenas aluno

(Nietzsche)

Natildeo podemos ver na filosofia schopenhaueriana qualquer instacircncia que

justifique a vida Ao conhecermos a sua essecircncia - a vontade cega e irracional que se

deixa ver atraveacutes das manifestaccedilotildees do seu querer incessante - percebemos o absurdo de

sua existecircncia e somos por essa percepccedilatildeo levados agrave sua negaccedilatildeo Nietzsche por sua

vez utilizando-se dos conceitos da filosofia de Schopenhauer procura em sua obra

justificar a vida e encontra esta justificaccedilatildeo na arte Nesta conclusatildeo da pesquisa

pretendemos entatildeo apresentar um esboccedilo do modo pelo qual alguns elementos da

filosofia schopenhaueriana foram utilizados no projeto do primeiro livro de Nietzsche e

explicitar o modo como estes elementos foram configurados no interior de seu projeto

Dentre estes elementos percorreremos o paralelo entre os pares dionisiacuteacoapoliacuteneo e

vontaderepresentaccedilatildeo os conceitos de arte e apreciaccedilatildeo esteacutetica e sua cisatildeo entre as

86

artes figurativas e a musical a especificidade da muacutesica o conceito de gecircnio e sua

divisatildeo e os limites da racionalidade e da ciecircncia

Jaacute no primeiro paraacutegrafo de NT a associaccedilatildeo entre os pares nietzscheanos do

dionisiacuteaco e apoliacuteneo e as visotildees de mundo schopenhauerianas satildeo expliacutecitas Nietzsche

define o impulso apoliacuteneo atraveacutes do sonho do princiacutepio de individuaccedilatildeo e o dionisiacuteaco

atraveacutes da embriaguez da consciecircncia de unidade da vontade do livrar-se do veacuteu de

maia Os deuses gregos tornam-se representativos destes estados schopenhauerianos de

consciecircncia Como vimos no capiacutetulo segundo desta dissertaccedilatildeo sob o ponto de vista da

representaccedilatildeo o mundo eacute objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito

agraves condiccedilotildees a priori do entendimento Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das

formas a priori do entendimento eacute interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos

advindos da filosofia Platocircnica e oriental como um mundo aparente ilusoacuterio artificial

O sonho efeito do encantamento apoliacuteneo eacute utilizado como metaacutefora da realidade

fenomecircnica no mundo Schopenhaueriano Os Vedas e Puranas tantas vezes citados por

Schopenhauer tratam o mundo como um sonho imposto pelo deus Maia o deus da

ilusatildeo que cobre a visatildeo do homem com seu veacuteu A mitologia oriental aludida por

Schopenhauer toma conta do mundo helecircnico em Nietzsche que transforma Apolo no

deus Maia o configurador de sonhos O sonho eacute utilizado como ilustraccedilatildeo da realidade

pelo fato de que durante o sonho natildeo sabemos estar sonhando O mundo dos sonhos nos

eacute naquele momento real Vemo-nos como indiviacuteduos e vemos o mundo da

individuaccedilatildeo e suas leis causais espaccedilo-temporais Somente o momento empiacuterico do

despertar informa-nos do sonho Haacute portanto uma identificaccedilatildeo do ldquoparentesco iacutentimo

entre vida e sonhordquo(MVR 60) Como ilustraccedilatildeo desta metaacutefora Schopenhauer elogia

ainda a obra do ldquovaterdquo Calderoacuten de La Barca A vida eacute sonho agrave qual denominaraacute como

um ldquodrama metafiacutesicordquo por expor esta faceta de seu sistema A consciecircncia de que a

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vida eacute sonho eacute para Schopenhauer um despertar metafiacutesico cujo propiciador foi Kant

ao demonstrar o caraacuteter fenomecircnico do mundo Este despertar contudo natildeo causa

prazer O filoacutesofo e o gecircnio personagens que na metafiacutesica schopenhaueriana alcanccedilam

este despertar satildeo atormentados pela realidade com a qual se deparam qual seja a de

que a vida eacute puro sofrimento Eacute no intuito de deixar velada esta faceta da vida que

Apolo ofusca a visatildeo dos homens com seu mundo luminoso de sonho seu objetivo eacute

encobrir esta verdade aterrorizadora As artes natildeo musicais tanto na teoria de

Schopenhauer como na nietzscheana manteacutem o homem em um juacutebilo prazeroso

ocasionado pela contemplaccedilatildeo puramente objetiva Neste momento natildeo se percebe o

jogo da vontade individualizada somos afastados da realidade do querer insuflados

pela caracteriacutestica quietiva da apreciaccedilatildeo esteacutetica nas palavras de Nietzsche

encontramos na arte um ldquoremeacutedio-arterdquo32

Esta visatildeo do lado terriacutevel da vida ocasionada pelo despertar do dogmatismo

metafiacutesico na teoria schopenhaueriana eacute associada em NT agrave sabedoria dionisiacuteaca

Verificamos na descriccedilatildeo do impulso dionisiacuteaco os elementos que caracterizam a

vontade schopenhaueriana A visatildeo dionisiacuteaca do mundo carrega consigo o despertar

para o caraacuteter absurdo da vida Ao olhar para a proacutepria essecircncia o homem descobre-se

enquanto manifestaccedilatildeo de uma vontade aacutevida desprovida de telos O ldquomecanismo

internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens marionetes guiados pela

carecircncia Esta realidade eacute assustadora pois subtrai do horizonte todos os propoacutesitos da

vida individual Dioniacutesio trava aqui sua batalha contra Apolo ao apontar a ilusatildeo da

individuaccedilatildeo como mecanismo para uma fuga daquilo que em essecircncia somos Apesar

de seu caraacuteter aterrorizador a sabedoria dionisiacuteaca eacute acompanhada do deleite

32

Podemos ver aqui o nuacutecleo da dissenssatildeo entre as teorias dos dois filoacutesofos Para Schopenhauer este

remeacutedio eacute temporaacuterio e tatildeo logo o efeito da apreciaccedilatildeo esteacutetica se esvaia os interesses da vontade voltam

a agir sobre o indiviacuteduo e a vida de sofrimento continua seu percurso restando apenas o caminho da

negaccedilatildeo daquela vontade da vida mesma em direccedilatildeo ao nada Nietzsche ao contraacuterio aponta para uma

forma de cura atraveacutes do remeacutedio-arte ver a vida enquanto forma de arte afirmaacute-la

88

indescritiacutevel da celebraccedilatildeo da unidade com o todo ldquoSob a magia do dionisiacuteaco torna a

selar-se natildeo apenas o laccedilo de pessoa a pessoa mas tambeacutem a natureza alheada

inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliaccedilatildeo com seu filho

perdido o homemrdquo(NT 31) Se Apolo eacute representado como deus da forma da clareza

da individuaccedilatildeo e as artes patrocinadas por ele satildeo expressotildees destas caracteriacutesticas

Dioniacutesio por sua vez eacute o patrocinador da muacutesica expressatildeo fenomecircnica direta da

vontade Vemos em Nietzsche uma biparticcedilatildeo das artes que tambeacutem pode ser extraiacuteda

da metafiacutesica schopenhaueriana (artes natildeo-musicais e arte musical)

Para Schopenhauer as formas artiacutesticas natildeo-musicais ao provocarem uma visatildeo

puramente objetiva do objeto apreciado tecircm como caracteriacutestica fundamental a

libertaccedilatildeo da subjetividade e com ela dos anseios da vontade Durante esta forma de

apreciaccedilatildeo esteacutetica ldquosomos alforriados do desgraccedilado iacutempeto volitivo festejamos o

Sabbath dos trabalhos forccedilados do querer a roda de Iacutexion cessa de girarrdquo (MVR

267) A definiccedilatildeo nietzscheana para a funccedilatildeo da arte apoliacutenea se daacute da mesma maneira

qual seja ela deve ldquo [] livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito

graccedilas ao baacutelsamo da aparecircncia do espasmo dos movimentos do querer []rdquo (NT

117) A muacutesica por sua vez recebe um tratamento especial de Schopenhauer devido ao

seu efeito esteacutetico Se as demais artes satildeo um quietivo para a vontade a muacutesica ldquonatildeo faz

mais do que agradar a vontade de viver jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo

seus ecircxitos e ao final expressa sua satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509) Ela encontra-se

num niacutevel de valor superior ao das demais artes por tratar-se de representar a essecircncia

do mundo a vontade mesma Assim tambeacutem ela eacute tratada por Nietzsche como a arte

que representa a sabedoria dionisiacuteaca e faz o apreciador vivenciar a vontade mesma

Em seus escritos sobre a poesia e a oacutepera Schopenhauer alude agrave necessidade de

subordinar os conceitos e o texto agrave muacutesica para que estas artes tenham um efeito mais

89

arrebatador no apreciador esteacutetico Esta subordinaccedilatildeo eacute assumida por Nietzsche em sua

teoria da trageacutedia Nietzsche encontra na liacuterica a primeira manifestaccedilatildeo desta junccedilatildeo da

arte dionisiacuteaca com a arte apoliacutenea e aponta aiacute o geacutermen que daraacute origem agrave trageacutedia

Podemos perceber aqui uma subordinaccedilatildeo das artes natildeo-musicais agrave muacutesica que por sua

vez se espelha na subordinaccedilatildeo do mundo fenomecircnico ao mundo da coisa-em-si As

artes figurativas representam as ideacuteias objetivaccedilotildees imediatas da vontade e a muacutesica

representa a vontade mesma Na teoria da trageacutedia de Nietzsche esta subordinaccedilatildeo seraacute

mantida e assim reflete a configuraccedilatildeo da metafiacutesica schopenhaueriana A muacutesica ldquoeacute

uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente sobre o mais iacutentimo do

homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele como se fora uma

linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo (MVR

336) Desta forma uma arte que se pretenda formar a partir da integraccedilatildeo de elementos

de diversas formas artiacutesticas deve tomar a muacutesica como inspiraccedilatildeo tanto na teoria de

Schopenhauer como na de Nietzsche

Desta dicotomia das formas artiacutesticas que podemos perceber nos dois filoacutesofos

podemos depreender duas formas do gecircnio o apoliacuteneo ou contemplativo e o

compositor dionisiacuteaco Para Schopenhauer ldquoo compositor manifesta a essecircncia mais

iacutentima do mundo expressa a sabedoria mais profunda numa linguagem natildeo

compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo magneacutetico fornece informaccedilotildees

sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito algumrdquo (MVR 342) Podemos

vislumbrar ainda nesta descriccedilatildeo de Schopenhauer uma caracteriacutestica do que Nietzsche

mais tarde iraacute chamar de criaccedilatildeo inconsciente Em uma segunda passagem desta vez ao

final do capiacutetulo 39 do segundo volume de MVR vemos tambeacutem uma caracteriacutestica que

posteriormente tambeacutem seraacute ressaltada por Nietzsche como demarcaccedilatildeo do caraacuteter

dionisiacuteaco Schopenhauer se utiliza de uma passagem dos Vedas para descrever o prazer

90

provocado pela muacutesica como um prazer de participaccedilatildeo no todo33

Este ecircxtase da

comunhatildeo eacute um aspecto reiteradamente apontado por Nietzsche O gecircnio dionisiacuteaco eacute

para o jovem filoacutesofo aquele que tambeacutem absorvido pelo impulso dionisiacuteaco traduz

sua essecircncia em linguagem musical O tipo de gecircnio musical descrito eacute encontrado em

Schopenhauer nas encarnaccedilotildees de Rossini e Beethoven cujas obras operiacutesticas satildeo

norteadas pela produccedilatildeo musical e o livreto ocupa um lugar secundaacuterio Nietzsche

aponta um renascimento progressivo do gecircnio musical em seu tempo que se inicia com

Bach e tem continuidade em Beethoven mas que encontra sua forma mais bem acabada

em Richard Wagner

Apesar da tomarem caminhos diferentes no que tange ao objetivo da obra de arte

traacutegica Nietzsche e Schopenhauer mais uma vez em uniacutessono consideram-na todavia

como uma forma de entendimento superior ao apresentado pelo pensamento cientiacutefico

Como vimos anteriormente as ciecircncias no sistema schopenhaueriano seguem o

princiacutepio de razatildeo seu papel eacute apenas descritivo e consequumlentemente limitado ao

acircmbito daquele princiacutepio Transformam em conceitos abstratos o mundo intuitivo ao

descrevecirc-lo em sua aparecircncia e seguem o fio condutor do principio de razatildeo

apresentando as causas para cada fenocircmeno particular Desta forma as ciecircncias estatildeo

subordinadas ao mundo da aparecircncia e no que importa agrave essecircncia natildeo podem

demonstraacute-la As uacutenicas produccedilotildees humanas com esta capacidade satildeo a arte e a

filosofia e essas o fazem de forma indireta metafoacuterica A consideraccedilatildeo racional do

mundo estaacute enquanto presa ao acircmbito do fenocircmeno subordinada aos ditames da

vontade Esta ldquovontade aacutevida sempre encontra um meio atraveacutes de uma ilusatildeo

distendida sobre as coisas de prender agrave vida as suas criaturas e de obrigaacute-las a

prosseguir vivendordquo (NT 108) Nietzsche descreve trecircs formas pelas quais a vontade

33

ldquoE o delicioso que eacute uma classe de alegria chama-se assim o sumo Atman porque onde haacute uma

alegria esta eacute uma pequena parte de sua alegriardquo (MVR II 510)

91

manteacutem a vida A primeira delas eacute o ldquoveacuteu da beleza da arterdquo sustentado pelo impulso

apoliacuteneo Encontramo-la na epopeacuteia homeacuterica e nas artes figurativas A segunda eacute a

visatildeo traacutegica do mundo que encontra um consolo metafiacutesico na percepccedilatildeo de um

substrato comum aos fenocircmenos e que por consequumlecircncia abdica destes em funccedilatildeo da

vivecircncia daquele substrato A terceira forma de dominaccedilatildeo da vontade eacute a ciecircncia a

loacutegica socraacutetica que procura abarcar o mundo com sua razatildeo de acircnsia justificadora

Estas trecircs formas de coerccedilatildeo conforme sua predominacircncia em determinada cultura

formam o que Nietzsche iraacute denominar respectivamente de culturas artiacutestica traacutegica e

socraacutetica Correspondem historicamente agraves fases predominantemente helecircnica budista

ou alexandrina Fazendo um diagnoacutestico da cultura contemporacircnea Nietzsche a

identifica como uma cultura predominantemente alexandrina Diagnostica o seu ocaso a

partir da identificaccedilatildeo feita por Kant e Schopenhauer dos limites da ciecircncia do

desmascaramento das verdades eternas que amparam a visatildeo socraacutetica de mundo quais

sejam a visatildeo de que o tempo o espaccedilo e a causalidade satildeo leis universais e

incondicionais Esta criacutetica ao racionalismo eacute constante na obra schopenhaueriana

Percebemo-la claramente em suas investidas contra a filosofia de seu tempo e a

presunccedilatildeo nela presente de racionalmente abarcar o real

- - - - - - - - - -

Compostas por conceitos da metafiacutesica schopenhaueriana a teoria da trageacutedia de

Schopenhauer e a de Nietzsche apontam para caminhos diversos Em Schopenhauer a

trageacutedia eacute a arte cujo fim uacuteltimo eacute ao expor seu lado terriacutevel inspirar o apreciador agrave sua

renuacutencia Este lado terriacutevel espelho do mundo presentificador da vida humana e de

suas relaccedilotildees ocasiona atraveacutes do medo e da compaixatildeo a vontade de renuacutencia a essa

92

mesma vida Nietzsche introduz na trageacutedia o elemento da muacutesica schopenhaueriana34

A consequumlecircncia desta introduccedilatildeo eacute um plano mais profundo de entendimento que

apresenta a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com sua essecircncia Neste estado de consciecircncia

apartado de sua individualidade o sujeito jaacute se vecirc como um criador de mundos e vecirc no

mundo uma obra de arte sua Ao derivar o impulso apoliacuteneo do dionisiacuteaco35

Nietzsche

jaacute executou a renuacutencia do indiviacuteduo que agora passa a se ver como essecircncia e ao mundo

como fenocircmeno artiacutestico

34

Machado (2006 200) considera na esteira de Clemeacutent Rosset e de Jean-Marie Schaeffer a utilizaccedilatildeo

da teoria da apreciaccedilatildeo musical de Schopenhauer por Nietzsche como o elemento que sugeriraacute a

caracteriacutestica de afirmaccedilatildeo da vontade de sua filosofia da trageacutedia 35

ldquoNo efeito conjunto da trageacutedia o dionisiacuteaco recupera a preponderacircncia ela se encerra com um tom

que jamais poderia soar a partir do reino da arte apoliacutenea E com isso o engano apoliacuteneo se mostra como o

que ele eacute como o veacuteu que enquanto dura a trageacutedia envolve o autecircntico efeito dionisiacuteaco o qual

todavia eacute tatildeo poderoso que ao final impele o proacuteprio drama apoliacuteneo a uma esfera onde ele comeccedila a

falar com sabedoria dionisiacuteaca e onde nega a si mesmo e agrave sua visibilidade apoliacuteneardquo (NT 129)

93

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8

RESUMO

O projeto que aqui se apresenta tem como objetivo principal percorrer as

teorias do traacutegico schopenhaueriana e nietzscheana no intuito de apresentar as

principais caracteriacutesticas de cada uma destas teorias Este percurso teraacute como ponto de

partida o fundamento metafiacutesico comum a elas qual seja a filosofia schopenhaueriana

da vontade Atraveacutes desta exposiccedilatildeo pretendemos demonstrar natildeo somente a real

amplitude da influecircncia de Schopenhauer nos primeiros escritos de Nietzsche mas

tambeacutem algumas das peculiaridades existentes em cada uma das citadas teorias

Palavras-chave Schopenhauer - Nietzsche - Trageacutedia - Traacutegico - Filosofia da

vontade

ABSTRACT

The research presented herein has as its ultimate goal to discuss the

theories of the tragedy developed by Schopenhauer and Nietzsche highlighting the

main characteristics ndash points of convergence and divergence ndash of both Our trajectory

shall start from the metaphysical foundations apparently displayed in both theories

which is ndash the schopenhauerian philosophy of the will Throughout our exposition we

intend to show not only that Schopenhauers philosophy had a huge impact in

Nietzsches first writings but also reveal the peculiarities beneath the development of

their aforementioned theories

Keywords Schopenhauer - Nietzsche - Tragedy - Tragic ndash Philosophy of the will

9

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO11

1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES NA

FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA 17

2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU

SUBSTRATO METAFIacuteSICO42

21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo43

22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo45

23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana49

24 A finalidade moral da trageacutedia56

25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera62

3 A TEORIA DA TRAGEacuteDIA DO JOVEM NIETZSCHE65

31 A influecircncia de Schopenhauer na obra do primeiro Nietzsche66

32 O projeto subjacente ao nascimento da trageacutedia72

33 A teoria da trageacutedia publicada75

4 CONCLUSAtildeO pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo da

vida85

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS93

10

ABREVIATURAS

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SFM = Sobre o fundamento da moral (2001)

SFU = Sobre a filosofia universitaacuteria (2001)

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NT = O nascimento da trageacutedia (1992)

VD = Visatildeo dionisiacuteaca do mundo (2005)

CORRESPONDEcircNCIA = Correspondecircncias de Nietzsche (2007)

OC = Obras completas de Nietzsche (1963)

11

INTRODUCcedilAtildeO

ldquoDias sem nuacutemero nunca reservam a

ningueacutem nada mais que dissabores mais

proacuteximos da dor que da alegria Quanto aos

prazeres natildeo os discernimos e nossa vista os

buscaraacute em vatildeo logo que para nossa

desventura chegamos ao limite prefixado E

desde entatildeo o nosso aliacutevio uacutenico seraacute aquele

que daraacute a todos o mesmo fim na hora de

chegar de suacutebito o destino procedente do

tenebroso reino onde natildeo haacute cantos nem

liras onde natildeo haacute danccedilas ndash ou seja a morte

epiacutelogo de tudo Melhor seria natildeo haver

nascido como segunda escolha bom seria

voltar logo depois de ver a luz agrave mesma

regiatildeo de onde se veiordquo

(Soacutefocles)

As teorias sobre a trageacutedia de Schopenhauer e Nietzsche satildeo parte

indispensaacutevel no estudo da histoacuteria da filosofia da trageacutedia Dentre os diversos

pensadores contemporacircneos que tratam sobre o problema da trageacutedia e do traacutegico e que

deram visiacutevel destaque agraves teorias dos nossos filoacutesofos podemos destacar Walter

Benjamin1 e Peter Szondi

2 Entretanto nos trabalhos destes autores o problema do

1 BENJAMIN Walter Origem do drama barroco alematildeo Traduccedilatildeo Sergio Paulo Rouanet Satildeo Paulo

Brasiliense 2004

12

relacionamento e da interdependecircncia entre as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche

natildeo eacute detalhado a contento Diante disto mesmo para um olhar historicamente

caracterizador torna-se vaacutelido um estudo comparado destas teorias que leve em

consideraccedilatildeo o quecirc ou o quanto haacute de comum em suas metafiacutesicas e a partir desta

perspectiva trace os aspectos coincidentes e dissidentes das mesmas mostrando seus

pontos de interdependecircncia e discrepacircncia muacutetua

Apesar de estar entre as teorias da trageacutedia mais estudadas do periacuteodo do

idealismo alematildeo a teoria Schopenhaueriana que eacute sempre analisada em relaccedilatildeo a seus

pressupostos metafiacutesicos ao ser vista sob outra perspectiva ganharia contornos

intensamente enriquecidos Esta perspectiva atraveacutes da qual nos propomos a examinar a

teoria do traacutegico do filoacutesofo eacute aquela que levaraacute em consideraccedilatildeo as influecircncias

histoacutericas culturais e filosoacuteficas que agiram diretamente sobre a esteacutetica do traacutegico

schopenhaueriana Ao lanccedilarmos um olhar sobre estas referidas influecircncias estaremos

abrindo caminho para uma melhor compreensatildeo sobre a teoria esteacutetica

schopenhaueriana o que conseguintemente refletiraacute em um juiacutezo mais adequado da

teoria nietzscheana

Para um entendimento mais eficiente das teorias propostas nas obras do

jovem Nietzsche parece-nos essencial o conhecimento de uma de suas mais decisivas

influecircncias a filosofia de Schopenhauer A analogia almejada erige-se na verdade

como meacutetodo de anaacutelise ou seja o que pretendemos eacute alcanccedilar uma maior compreensatildeo

dos problemas com os quais Nietzsche se deparou quando da elaboraccedilatildeo de sua primeira

obra e procurar identificar a existecircncia de alguma apropriaccedilatildeo eou adaptaccedilatildeo de alguns

conceitos da filosofia de Schopenhauer na resoluccedilatildeo destes problemas A necessidade

deste estudo comparativo torna-se ainda mais evidente quando e este eacute o caso

2 SZONDI Peter Ensaio sobre o Traacutegico Traduccedilatildeo Pedro Suumlssekind Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

13

defrontamo-nos com uma influecircncia que se apresenta tatildeo clara e assumidamente

admitida pelo autor Todavia natildeo se pretende aqui apenas a justaposiccedilatildeo de um

pensamento ao outro Apesar de ser identificaacutevel em toda a obra posterior de Nietzsche

encontra-se nos seus primeiros escritos sobretudo na obra O nascimento da trageacutedia

aquele momento discursivo no qual podemos apontar uma influecircncia mais direta da

filosofia de Schopenhauer

Dos trabalhos que fazem um estudo comparativo entre estes filoacutesofos a

maioria se ateacutem em identificar as diferenccedilas conceituais entre eles mais

especificamente no campo eacutetico e metafiacutesico Grosso modo tratam principalmente dos

problemas relativos agrave diferenciaccedilatildeo entre os conceitos de vontade nestes autores

vontade de viver e vontade de poder Estes estudos tecircm como foco a filosofia tardia de

Nietzsche onde este apesar da assumida influecircncia torna-se um criacutetico de

Schopenhauer A real extensatildeo da influecircncia deste filoacutesofo na primeira obra de

Nietzsche bem como o relacionamento entre suas teorias da trageacutedia permanecem

assim como territoacuterios ainda pouco explorados Ao lanccedilarmos olhar sobre esse

afastamento que Nietzsche mais tarde realizaraacute em relaccedilatildeo agrave filosofia

Schopenhaueriana verificamos mais uma vez a importacircncia do estudo de sua primeira

fase na qual poderemos detectar o referido afastamento

Podemos observar entretanto o crescimento do interesse no estudo da

obra O nascimento da trageacutedia de Nietzsche Nos uacuteltimos anos assistimos tambeacutem no

Brasil agrave publicaccedilatildeo de vaacuterios trabalhos que tecircm sob perspectiva a complexidade desse

seu primeiro livro Na bibliografia sugerida neste projeto constam publicaccedilotildees dos

seguintes autores Roberto Machado (2006) Rosa Maria Dias (2005 e 2009) Iracema

Macedo (2006) Marcio Joseacute Silveira Lima (2006) Estas publicaccedilotildees tratam temas

diversos da esteacutetica nietzscheana tais como a muacutesica a trageacutedia o traacutegico ou a

14

repercussatildeo do livro de Nietzsche e sua influecircncia wagneriana Podemos ver entretanto

naqueles e em outros trabalhos a constante chave de leitura que atribui a Schopenhauer

a influecircncia decisiva natildeo apenas sobre o jovem Nietzsche como usualmente se aponta

mas tambeacutem sobre um peculiar imbricamento entre metafiacutesica e esteacutetica o qual se

sustentaria sobre os ldquoimpulsos artiacutesticos da naturezardquo o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco Nos

termos de Dias (2005 27)

A oposiccedilatildeo apoliacutenea e dionisiacuteaca considerada no plano

metafiacutesico se daacute a partir da noccedilatildeo de vontade ou querer

estendida (sic) no sentido que a ela deu Schopenhauer de

ldquocentro e nuacutecleo do mundordquo ou ldquoforccedila que eternamente quer

deseja e aspirardquo () O mundo fenomecircnico como resultado

desse movimento do querer () faz um segundo movimento

dessa vez esteacutetico reproduzindo o movimento inicial que a

vontade realizou em direccedilatildeo agrave aparecircncia

Tendo em vista o fato de que as teorias sobre o traacutegico dos dois filoacutesofos tecircm como

ponto de partida o sistema metafiacutesico schopenhaueriano fica clara a necessidade de

analisar em cotejo estas teorias tendo como fio condutor o meacutetodo de investigaccedilatildeo ora

proposto

Aleacutem de um aprofundamento no problema da influecircncia de

Schopenhauer na obra esteacutetica de Nietzsche o estudo de suas teorias sobre o traacutegico nos

daraacute a oportunidade de identificar as peculiaridades de cada uma destas teorias bem

como de estabelecer a sua importacircncia histoacuterica para uma filosofia do traacutegico

Em um primeiro momento traccedilaremos um panorama histoacuterico que

objetiva entender o status quo da filosofia do traacutegico no periacuteodo anterior ao

desenvolvimento da teoria schopenhaueriana da trageacutedia Esta investigaccedilatildeo seraacute

norteada pelas referecircncias constantes na proacutepria obra de Schopenhauer bem como por

um levantamento biograacutefico do filoacutesofo ou seja trabalharemos somente os momentos

que satildeo fundamentais para uma melhor compreensatildeo da obra schopenhaueriana Dentre

15

estes momentos daremos ecircnfase aos seguintes pontos o estudo sobre o helenismo de

Winckelmann e sua repercussatildeo a criacutetica teatral de Lessing Schiller e Goethe seu

projeto de criaccedilatildeo de um teatro alematildeo e suas produccedilotildees dramaacuteticas

Traccedilado o panorama histoacuterico no qual se insere a teoria da trageacutedia

schopenhaueriana passaremos para o toacutepico seguinte a apresentaccedilatildeo do sistema

metafiacutesico de Schopenhauer no qual estaacute embasada a sua teoria da trageacutedia bem como

a teoria nietzscheana A apresentaccedilatildeo seraacute feita de forma a expor os aspectos gerais da

filosofia da vontade atendo-se aos pontos deste sistema que estatildeo intrinsecamente

relacionados agraves teorias da trageacutedia dos nossos autores

Apoacutes os passos descritos reuniremos em um esboccedilo geral as

caracteriacutesticas do relacionamento existente entre o jovem Nietzsche e a filosofia de

Schopenhauer Para tanto utilizaremo-nos das referecircncias que Nietzsche faz a

Schopenhauer em suas cartas e escritos de juventude Com esta pesquisa pretendemos

identificar a opiniatildeo que o jovem Nietzsche tinha sobre a filosofia de Schopenhauer e a

profundidade da influecircncia desta em sua primeira obra Percorreremos ainda o ambiente

circundante agrave primeira obra de Nietzsche no intuito de realccedilar alguns dos conceitos

formativos de O nascimento da trageacutedia

Estabelecida a ligaccedilatildeo entre os autores passaremos ao estudo do apoliacuteneo

e do dionisiacuteaco par conceitual que nos forneceraacute a chave para se fazer um estudo

comparativo entre os filoacutesofos Para cumprir esta etapa analisaremos O nascimento da

trageacutedia bem como escritos contemporacircneos a este livro atraveacutes dos quais poderemos

delinear melhor a significaccedilatildeo desta duplicidade de impulsos e visotildees de mundo

Delinearemos assim os contornos das definiccedilotildees fundamentais da esteacutetica nietzscheana

e procuraremos construir um paralelo entre o mundo dionisiacuteaco e o mundo metafiacutesico

da vontade schopenhaueriano Temos a intenccedilatildeo de demonstrar a origem desta

16

metafiacutesica da vontade ou seja o criticismo kantiano e sua importacircncia para o conceito

de dionisiacuteaco Demonstraremos tambeacutem as caracteriacutesticas do mundo fenomecircnico

schopenhaueriano em sua identidade com o apoliacuteneo nietzscheano retomando a

epistemologia de Schopenhauer

Realizada a aproximaccedilatildeo e expostas tanto as semelhanccedilas como as

particularidades dos conceitos principais dos dois autores percorreremos sempre

focando um estudo paralelo entre os filoacutesofos outros conceitos que encontram

similaridade em suas esteacuteticas Com esse intuito procuraremos identificar nos dois

filoacutesofos o destaque dado agrave muacutesica dentro de suas teorias e o lugar dado agraves outras artes

em suas obras Discorreremos sobre a criacutetica que eles em uniacutessono fazem ao que

nomeiam racionalismo dogmatismo e o otimismo Finalizadas as aproximaccedilotildees

voltaremos nossa atenccedilatildeo ao aspecto de dissensatildeo que propicia o afastamento

fundamental entre as teorias dos dois filoacutesofos o efeito da trageacutedia Com isto

demonstraremos que a base metafiacutesica comum quando alinhada a pressupostos

esteacuteticos distintos geraraacute a referida dissensatildeo

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1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES

NA FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA

Por que minha filosofia natildeo encontrou

simpatia e interesse Porque a verdade natildeo

estaacute de acordo com a tagarelice dos tempos

(Schopenhauer)

Neste primeiro capiacutetulo objetivamos apresentar as fontes filosoacuteficas

incutidas no sistema schopenhaueriano no intuito de situar historicamente o surgimento

da filosofia da vontade e trazer agrave baila o seu ambiente circundante bem como as teorias

filosoacuteficas com as quais Schopenhauer se propotildee a dialogar Apontaremos inicialmente

as influecircncias filosoacuteficas assumidamente presentes no sistema schopenhaueriano bem

como aquelas que fundamentam sua metafiacutesica e consequumlentemente sua teoria esteacutetica

Em um segundo momento procuraremos fazer um breve esboccedilo do ambiente artiacutestico-

cultural que dominava o pensamento alematildeo de entatildeo com o qual direta ou

indiretamente Schopenhauer e o jovem Nietzsche se depararam Com isto esperamos

posteriormente demarcar as singularidades que caracterizam as teorias destes filoacutesofos

Ressaltamos todavia que natildeo se trata de um mapeamento completo das fontes que

influenciaram esses autores ndash tarefa que exigiria um esforccedilo bem maior do que aquele

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proposto por esta pesquisa ndash e sim de um breve panorama que se pautaraacute nas influecircncias

marcantemente presentes em suas obras

No contato com a obra de Schopenhauer a primeira impressatildeo que natildeo

passa despercebida aos seus leitores eacute a qualidade de sua prosa3 Tal qualidade

revelada na diversidade de recursos literaacuterios utilizados pelo autor eacute produto da visiacutevel

erudiccedilatildeo cultivada pelo filoacutesofo Conhecedor do grego do latim e suas respectivas

literaturas Schopenhauer transitava ainda pela obras literaacuterias cientiacuteficas e filosoacuteficas

contemporacircneas em suas liacutenguas originais conhecia o inglecircs o italiano o francecircs e o

espanhol Em sua juventude conviveu com vaacuterias personalidades do meio cultural

germacircnico que frequumlentavam o salatildeo de sua matildee em Weimar dentre eles Goethe a

maior figura das letras germacircnicas com quem teve um relacionamento mais proacuteximo

Sua obra eacute repleta de citaccedilotildees de poetas dramaturgos e seu conhecimento das artes

plaacutesticas e da muacutesica natildeo satildeo superficiais Em suas viagens pela Europa pocircde admirar

diversas esculturas e pinturas e como ele proacuteprio dizia pocircde ler diretamente no ldquolivro

do mundordquo Essa erudiccedilatildeo pode ser notada mesmo diante do desconhecimento de sua

biografia pela observaccedilatildeo da enorme quantidade de citaccedilotildees e menccedilotildees que estatildeo

espalhadas no interior de suas obras traduzidas ou como em sua maior parte citadas

em suas respectivas liacutenguas Frequumlentava as mais diversas aacutereas de conhecimento de sua

eacutepoca como sustenta Aramayo

3 O cuidado com a qualidade da produccedilatildeo literaacuteria tanto no que se refere agrave clareza quanto agrave riqueza de

recursos linguumliacutesticos eacute uma das caracteriacutesticas que Schopenhauer e Nietzsche tecircm em comum Esta

qualidade torna-se mais evidente ainda quando seus trabalhos satildeo natildeo raramente comparados com os

escritos filosoacuteficos alematildees daquele periacuteodo principalmente aos de Fichte Schelling e Hegel O elogio agrave

prosa schopenhaueriana feito por literatos e filoacutesofos contemporacircneos influenciados por sua obra pode

ser ilustrado agrave exaustatildeo entre eles encontram-se Thomas Mann Goethe Wittgenstein e o proacuteprio

Nietzsche ldquoMas a imensa forccedila de penetraccedilatildeo deste pensamento explica-se antes de tudo pelo fato de o

autor ser ao lado de Nietzsche o maior entre os escritores filosoacuteficos alematildeesrdquo (Rosenfeld 1996 177)

Jorge Luis Borges em uma entrevista publicada por Die Welt em 25 de marccedilo de 1975 realizava esta

confissatildeo ltPara mim existe um escritor alematildeo ao qual prefiro Schopenhauer Sei que deveria dizer

Goethe poreacutem Schopenhauer me interessa muitiacutessimo mais Tanto que estudei alematildeo ndash que aprendi

sobre os versos de Heine ndash fundamental e especificamente para poder ler a Schopenhauer em sua proacutepria

liacutenguagt (Aramayo 2001 18)

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ldquoEm sua busca pela verdade Schopenhauer natildeo desdenha

nenhum aliado Os dramaturgos novelistas e poetas estatildeo quando

menos em peacute de igualdade com os mais egreacutegios filoacutesofos A perspicaacutecia

de Shakespeare ou a genialidade de Voltaire e a sutileza de Goethe nada

devem para a eloquumlecircncia Platocircnica a precisatildeo de um Spinoza e o rigor

conceitual do admirado Kant Sua curiosidade natildeo conhece limites nem

prejuiacutezo algum e por esta razatildeo tampouco menospreza quando o

considera oportuno prestar suficiente atenccedilatildeo aos fenocircmenos

paranormais agrave hipnose ou ao caacutelculo cabaliacutestico se entende que em

algo isto pode servir-lhe para demonstrar sua tese ou avaliar algumas de

suas intuiccedilotildees E na mesma direccedilatildeo aponta seu grande empenho por

incorporar o pensamento das religiotildees orientais a nosso acervo cultural

na possibilidade de um enriquecimento muacutetuordquo (Aramayo 2001 14-15)

A comparaccedilatildeo feita atraveacutes de metaacuteforas4 paraacutebolas ou alegorias em

sua maioria retiradas de obras literaacuterias ou cientiacuteficas torna-se recurso literaacuterio

constantemente presente na obra do filoacutesofo e ao mesmo tempo termocircmetro de suas

influecircncias e de seu relacionamento com o pensamento de seus contemporacircneos Tais

recursos satildeo utilizados contudo com o objetivo consciente de construir conhecimento

de ilustrar a mateacuteria do seu pensamento Nas palavras do filoacutesofo ldquoAs comparaccedilotildees satildeo

de grande valor na medida em que reduzem uma relaccedilatildeo desconhecida a uma

conhecida Inclusive as comparaccedilotildees mais detalhadas transformadas em paraacutebola ou

alegoria satildeo somente a reduccedilatildeo de uma relaccedilatildeo qualquer agrave sua exposiccedilatildeo mais

simples ilustrativa e palpaacutevelrdquo (Schopenhauer SOE 86) Se o nosso objetivo eacute mostrar

as raiacutezes da filosofia de Schopenhauer ou seja as influecircncias que formaram a mateacuteria

de seu pensamento eacute sobre esta mateacuteria que devemos nos debruccedilar Natildeo podemos

contudo nos furtar a apontar a riqueza das fontes formalmente presentes em seus

escritos5 A percepccedilatildeo da presenccedila desta numerosa miscelacircnea de referecircncias dentro da

4 ldquoSua profusa e brilhante utilizaccedilatildeo das metaacuteforas eacute o que o converte sem duacutevida alguma em um grande

escritor cujo estilo se nos afigura tatildeo ameno quanto sugestivordquo (Aramayo 2001 54) 5 Mateacuteria e forma satildeo na concepccedilatildeo do filoacutesofo planos ou instacircncias da produccedilatildeo escrita que servem

como referecircncia para o julgamento de valor do pensamento de um autor ldquo Um livro nunca pode ser mais

do que a impressatildeo dos pensamentos do autor O valor desses pensamentos reside na mateacuteria ou seja

naquilo sobre o que ele pensou ou na forma isto eacute na elaboraccedilatildeo da mateacuteria naquilo que pensou a

respeitordquo (Schopenhauer SOE 11) A importacircncia dada agrave forma por Schopenhauer seraacute melhor

esclarecida quando posteriormente apresentarmos a caracteriacutestica fundamentalmente epistemoloacutegica de

toda produccedilatildeo artiacutestica dentro de sua metafiacutesica do belo

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obra schopenhaueriana diz-nos algo sobre seu estilo e seu arcabouccedilo cultural

entretanto quando voltamo-nos para a busca das influecircncias diretamente presentes em

seu sistema ie agraves raiacutezes da mateacuteria de seu pensamento percebemos que elas natildeo satildeo

tatildeo numerosas

Uma leitura das fontes filosoacuteficas do sistema schopenhaueriano torna-se

diferentemente do que ocorre em outros sistemas de seu tempo menos trabalhosa por

dois motivos Primeiramente o autor natildeo esconde suas influecircncias mas ao contraacuterio

faz questatildeo de apontaacute-las citaacute-las e quando lhe parece necessaacuterio as critica ou exalta

Em segundo lugar o que facilita o mapeamento destas fontes eacute a caracteriacutestica de

unidade do sistema schopenhaueriano como um todo Apesar da longevidade do

filoacutesofo e da distacircncia temporal entre suas obras suas intuiccedilotildees fundamentais

continuaram sendo as mesmas ao longo de sua vida Nas palavras de Rosset

ldquoSchopenhauer eacute homem de um soacute livro o MVR e de um soacute pensamento (qualificado

por ele mesmo de ltpensamento uacutenicogt nas primeiras linhas de sua obra)rdquo (2005 35)6

Natildeo satildeo poreacutem coetacircneas as influecircncias que marcaram a obra do filoacutesofo

como talvez a constante menccedilatildeo a seus contemporacircneos possa sugerir Nas palavras do

filoacutesofo como citado por Lefranc (2005 17) ldquoPude amar prosseguir aperfeiccediloar a

minha obra soacute por ela mesma em tranquumlilidade completa ao abrigo de toda influecircncia

externa e meus contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes

permaneci estranhosrdquo Conhecia a filosofia de seu tempo todavia natildeo a tinha como

interlocutora na verdade a desdenhava satildeo famosas as criacuteticas de Schopenhauer contra

as filosofias de seus contemporacircneos principalmente as de Fichte Schelling e Hegel

6 Sobre a unidade da produccedilatildeo schopenhaueriana destacamos aleacutem de Rosset os apontamentos de outros

dois de seus maiores comentadores Arthur Huumlbscher e Alexis Philonenko Na introduccedilatildeo aos manuscritos

schopenhauerianos Huumlbscher aponta a importacircncia dos manuscritos na percepccedilatildeo desta unidade uma vez

que podemos notar em diversas fases da vida do filoacutesofo o desenvolvimento dos temas pontuais que

marcaram sua obra principal Vide Hubscher Introduction Manuscript Remains 1985 Alexis

Philonenko trata desta unidade no proacutelogo de sua obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia

(Philonenko 1989 41-45)

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(chamados de ldquoos trecircs sofistasrdquo) Quando faz referecircncias a eles comumente estaacute

imbuiacutedo de trecircs propoacutesitos criticar a qualidade formal de suas produccedilotildees

principalmente no que tange ao uso da liacutengua germacircnica apontar uma motivaccedilatildeo

individualista (subsistecircncia pessoal e status social) que existiria por traacutes de suas

elucubraccedilotildees filosoacuteficas e ressaltar a falta de atenccedilatildeo por parte daqueles filoacutesofos no

que se refere ao conteuacutedo da primeira criacutetica kantiana

Schopenhauer diagnosticava em seu tempo um periacuteodo de

empobrecimento da expressatildeo literaacuteria e do uso da liacutengua germacircnica e apontava como

os principais responsaacuteveis por estes acontecimentos os ldquoprofessores de filosofiardquo e seus

disciacutepulos As investidas schopenhauerianas contra a filosofia de seus contemporacircneos

podem ser encontrada em praticamente todas as suas obras mas estatildeo concentradas de

forma mais persistente em sua produccedilatildeo mais tardia na segunda ediccedilatildeo da QRPRS de

MVR em seus ensaios sobre a liberdade e o fundamento da moral e nos PP 7

Nesta

uacuteltima obra temos dedicados a estas criacuteticas alguns textos que podemos destacar Sobre

o ofiacutecio de escritor Da leitura e dos livros Da liacutengua e das palavras e Sobre a filosofia

universitaacuteria A liacutengua alematilde no que se refere agrave sua capacidade expressiva era tida em

mais alta consideraccedilatildeo por nosso filoacutesofo Afirmava que dentre as liacutenguas modernas

era ldquoa uacutenica na qual se pode escrever quase tatildeo bem quanto em grego ou em latimrdquo

(Schopenhauer SOE 72) Esta capacidade de expressatildeo de uma liacutengua eacute segundo o

filoacutesofo resultado de sua aptidatildeo em representar conceitos Desta forma na medida em

que surgem novos conceitos a elaboraccedilatildeo de novas palavras que os representem eacute um

sinal de evoluccedilatildeo adequaccedilatildeo e riqueza da liacutengua Entretanto para o filoacutesofo os

neologismos e adaptaccedilotildees criados por seus contemporacircneos natildeo eram resultados da

7 Muitos historiadores da filosofia bioacutegrafos e comentadores apontam que esta criacutetica adveacutem do

ressentimento pelo fracasso de Schopenhauer como docente na universidade de Berlim onde Hegel

reinava absoluto bem como da falta de reconhecimento de sua filosofia diante do sucesso dos professores

da mesma universidade

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tentativa de representaccedilatildeo de novos conceitos mas ao contraacuterio eram comprovaccedilatildeo de

sua ldquopobreza de espiacuterito que a todo custo quer colocar algo no mercado e por natildeo ter

novos pensamentos chega com palavras novasrdquo (Schopenhauer SOE 129)

Schopenhauer condenava a atitude de seus contemporacircneos de utilizarem-se de

artifiacutecios como a natildeo designaccedilatildeo do caso a expressatildeo dos preteacuteritos por meio do

imperfeito a supressatildeo dos prefixos e outros subterfuacutegios para com isso disfarccedilar a sua

imprecisatildeo conceitual De acordo com Schopenhauer tratavam displicentemente a

liacutengua alematilde por dois motivos por natildeo possuiacuterem uma mateacuteria conceitualmente

relevante a ser expressa ou entatildeo para conscientemente causar a impressatildeo de que a

possuem e neste caso a responsabilidade pela natildeo compreensatildeo do texto seria atribuiacuteda

agrave incompetecircncia intelectual do leitor

Os que compotildeem discursos difiacuteceis obscuros enleados e

ambiacuteguos natildeo sabem ao certo o que querem dizer tecircm somente uma

consciecircncia vaga a esse respeito que luta primeiro por uma ideacuteia poreacutem

amiuacutede querem tambeacutem ocultar de si mesmos e dos outros que na

realidade eles natildeo tecircm nada a dizer Como Fichte Schelling e Hegel

querem parecer saber o que natildeo sabem pensar o que natildeo pensam e dizer

o que natildeo dizem Algueacutem que tenha algo correto a dizer se esforccedilaraacute por

exprimi-lo de maneira indistinta ou distinta (Schopenhauer SOE 39)

Podemos perceber entatildeo que ao criticar o estilo ldquoobscurordquo e ldquopomposordquo de seus

contemporacircneos Schopenhauer aponta como causa deste estilo natildeo somente a sua falta

de mateacuteria mas tambeacutem uma atitude consciente e arquitetadamente maldosa e com

toda a sua forccedila retoacuterica condena esta atitude

Nobre bdquoatualidade‟ magniacuteficos epiacutegonos geraccedilatildeo crescida no

leite materno da filosofia hegeliana Pela gloacuteria eterna quereis apertar

vossas garras em nossa antiga liacutengua para que a marca com um icnoacutelito

conserve para sempre o vestiacutegio de vossa existecircncia insiacutepida e sombria

Mas Dicirc Meliora Fora paquidermes fora Esta eacute a liacutengua alematilde Nela se

expressaram homens ou melhor nela cantaram grandes poetas e grandes

pensadores escreveram Arredai as patas Ou natildeo tereis o que comer (Soacute

isso os assusta) (Schopenhauer SOE 72-73)

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A uacuteltima frase desta citaccedilatildeo nos eacute aclarada pelo texto Sobre a filosofia universitaacuteria

onde o filoacutesofo expotildee os argumentos de sua criacutetica agrave filosofia produzida em seu tempo

Para Schopenhauer os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo podem devido agrave sua funccedilatildeo

estatal se imiscuir do compromisso poliacutetico-religioso que seu cargo exige e

conseguintemente sustentados pelo Estado tratam de fazer sua apoteose Nas palavras

de Cacciola constantes na introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo brasileira do referido texto

ldquoSchopenhauer eacute um continuador da criacutetica romacircntica ao filisteiacutesmo que se origina em

Tieck A ironia que visa os homens de vida tatildeo regular como o reloacutegio lhe eacute bem

familiar O filisteu eacute o erudito pedante que soacute pensa na proacutepria vantagem O professor

de filosofia que pauta seus ensinamentos de acordo com os ditames do Estado e da

religiatildeo eacute o tipo acabado do filisteu A idolatria do Estado eacute a apoteose do filisteiacutesmo

(Schopenhauer SFU XXX) Por traacutes das ideacuteias dos ldquofiloacutesofos de profissatildeordquo estaria

incutido o retorno disfarccedilado da ldquoteologia judaicardquo de uma ldquopsicologia racionalrdquo da

ldquoliberdade da vontaderdquo e outros dogmas que de acordo com Schopenhauer refletem a

sua vocaccedilatildeo de trabalharem ldquoin maiorem Dei gloriamrdquo como exigido pela ideologia

estatal daquele periacuteodo Natildeo podem sob a pena de perderem o sustento financeiro

pessoal e familiar bem como sob o custo de perderem o status que o cargo lhes confere

contrariar os dogmas patronais

ldquo[] o intelecto dessa gente permanece fiel agrave sua destinaccedilatildeo

natural de trabalhar a serviccedilo da vontade como normalmente acontece

Mas por isso mesmo existe sempre uma intenccedilatildeo como fundamento do

seu agir e pensar eles tecircm fins o tempo todo e soacute tomam conhecimento

do que diz respeito a esses fins e portanto soacute do que corresponde a

esses fins A atividade do intelecto liberto da vontade condiccedilatildeo da pura

objetividade e por isso de todas as grandes realizaccedilotildees permanece-lhes

eternamente estranha ndash eacute uma faacutebula para seu coraccedilatildeordquo (Schopenhauer

SFU 63)

Desta forma os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo estariam voltados para a investigaccedilatildeo

objetiva da ldquoverdaderdquo a qual exigiria o distanciamento de todo e qualquer interesse

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pessoal De acordo com o sistema schopenhaueriano tal distanciamento eacute um dom raro

com o qual a natureza a poucos contempla Na metafiacutesica schopenhaueriana a natureza

eacute aristocraacutetica O gecircnio eacute fenocircmeno raro seja ele filoacutesofo ou artista A percepccedilatildeo

objetiva do mundo alheia aos interesses pessoais da vontade individual eacute uma exceccedilatildeo

que soacute se manifesta raramente e as pessoas atadas aos interesses pessoais de sua

vontade natildeo podem reconhececirc-lo imediatamente Estes gecircnios produzidos pela natureza

seriam os verdadeiros educadores do mundo e os ldquoprofessores de filosofiardquo ao tentar

representar este papel que soacute agrave natureza cabe eleger causam-lhe repulsa

Tantas mentes comuns que se acham por cargo e profissatildeo no

dever de representar papeacuteis que a natureza nem ao menos lhes atribuiacutera e

de transportar cargas que exigem ombros de gigantes espirituais

oferecem na realidade um espetaacuteculo deveras lamentaacutevel Pois escutar

cantar os roucos e ver danccedilar os coxos eacute penoso mas ouvir filosofar a

mente limitada eacute insuportaacutevel (Schopenhauer SFU 34)

Prova do embotamento da capacidade de reconhecimento de uma produccedilatildeo genial era

para o filoacutesofo o fato de seus contemporacircneos ignorarem ou mesmo passarem agrave

margem do que seria a mais importante produccedilatildeo filosoacutefica do periacuteodo a cisatildeo entre o

real e o ideal perpetrada pela primeira criacutetica kantiana Esta era para o filoacutesofo a maior

prova do demeacuterito filosoacutefico de seus contemporacircneos preocupados com seus interesse

pessoais alheios a uma observaccedilatildeo objetiva do mundo natildeo levaram em consideraccedilatildeo os

limites impostos pela primeira criacutetica kantiana a toda investigaccedilatildeo racional

Depois de Kant ter cortado o nervo de todas as provas possiacuteveis

da teologia ndash tatildeo incisivamente que desde entatildeo ningueacutem mais pocircde

meter-se com elas ndash o esforccedilo filosoacutefico em quase cinquumlenta anos tem

consistido nas diversas tentativas de insinuar sutil e astuciosamente a

teologia e os escritos filosoacuteficos nada mais satildeo na sua maioria do que

tentativas infrutiacuteferas de reanimar um cadaacutever sem vida (Schopenhauer

SFU 81)

Natildeo nos interessa aqui adentrarmo-nos aos reais motivos existentes por

traacutes dos vitupeacuterios schopenhauerianos contra os pensadores de seu tempo nem

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tampouco fazer juiacutezo valorativo sobre a importacircncia da filosofia da vontade em

comparaccedilatildeo ao idealismo absoluto Dentro do objetivo proposto qual seja situar

historicamente a filosofia da vontade e apontar suas influecircncias o importante eacute ressaltar

que a filosofia contemporacircnea a Schopenhauer natildeo fez efeito sobre a sua proacutepria a ponto

de modificaacute-la em seu conteuacutedo conforme esclarece o proacuteprio filoacutesofo ldquo [] meus

contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes permaneci

estranhosrdquo (apud Lefranc 2005 17) Eacute fundamental verificarmos que apesar do

sistema schopenhaueriano ter se desenvolvido agrave margem do idealismo de entatildeo seu

autor natildeo o desconhecia e muitas das ilustraccedilotildees e argumentaccedilotildees utilizadas por ele na

explicaccedilatildeo de suas teorias apoiavam-se nesta sua contenda com o seu tempo

Entretanto como a filosofia de seu tempo pretende-se herdeira do kantismo assim

tambeacutem procede Schopenhauer e a suas criacuteticas ao idealismo absoluto estatildeo

fundamentadas em sua pretensatildeo a uma heranccedila direta da filosofia kantiana Sobre a

heranccedila de Kant Schopenhauer esclarece ldquoEm todo caso natildeo reconheccedilo que tenha

acontecido algo na filosofia entre ele e mim por conseguinte ligo-me imediatamente a

elerdquo (Schopenhauer MVR 525)

Natildeo obstante as diversas criacuteticas ao retorno kantiano ao dogmatismo8

das quais a obra de Schopenhauer estaacute recheada sua admiraccedilatildeo por ele foi tambeacutem

abundantemente expressa Considerava-o ldquoa inteligecircncia mais original jaacute criada pela

naturezardquo (Schopenhauer SFU52) e afirmava que seus escritos capitais eram o ldquo[]

fenocircmeno mais importante que ocorreu ao longo dos uacuteltimos dois mil anos na filosofia

[]rdquo (Schopenhauer MVR 22) O maior reflexo desta admiraccedilatildeo pode ser observada

8 Nas palavras de Cacciola ldquoO criticismo de Kant teria segundo Schopenhauer perdido sua forccedila inicial

na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura Ou seja Schopenhauer acusa Kant de uma ldquorecaiacuteda no

dogmatismordquo por ter amenizado seu confronto com a teologia A ameaccedila dogmaacutetica jaacute configurada na

filosofia teoacuterica concretiza-se na Eacutetica de Kant quando esta acolhe como postulados Deus

imortalidade da alma e liberdade No poacutes-kantismo a importacircncia crescente atribuiacuteda agrave filosofia praacutetica

de Kant a expensas de sua criacutetica do conhecimento teria levado a uma espeacutecie de contaminaccedilatildeo da

razatildeo teoacuterica pela razatildeo praacutetica fazendo com que a primeira se transformasse num oacutergatildeo apto para

captar o Absolutordquo (Cacciola 1994 20)

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no fato de que eacute da filosofia kantiana que Schopenhauer retira o leitmotiv para o

desenvolvimento da ideacuteia central9 de sua filosofia Esta ideacuteia central eacute aquela contida

concisamente no tiacutetulo de sua obra principal O mundo como vontade e como

representaccedilatildeo10

A dualidade formada entre representaccedilatildeo e vontade atraveacutes da qual

Schopenhauer acredita ter desvendado o ldquomisteacuteriordquo cosmoloacutegico eacute uma apropriaccedilatildeo

assumida dos conceitos kantianos de fenocircmeno e coisa-em-si respectivamente

Dizemos apropriaccedilatildeo pois aqueles conceitos satildeo acrescidos na filosofia

schopenhaueriana de caracteriacutesticas singulares Eacute com base nesta dualidade de

perspectivas de conhecimento do mundo inspirada na primeira criacutetica kantiana que o

filoacutesofo desenvolve as demais teorias que compotildeem seu sistema sejam elas a esteacutetica a

eacutetica a poliacutetica etc

Para Schopenhauer ldquoo maior meacuterito de Kant eacute a distinccedilatildeo entre

fenocircmeno e coisa-em-sirdquo (Schopenhauer MVR 526) Esta distinccedilatildeo foi o que

possibilitou a ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo realizada sobre o dogmatismo anterior A partir

daquele momento ldquoo mundo objetivo como o conhecemos natildeo pertence agrave essecircncia das

coisas em si mesmas mas eacute seu mero FENOcircMENO condicionado exatamente por

aquelas mesmas formas que se encontram a priori no intelecto

humanordquo(Schopenhauer MVR 530) Na teoria kantiana temos o espaccedilo e o tempo

como formas da sensibilidade que na filosofia de Schopenhauer satildeo associadas agrave

faculdade do entendimento juntamente com a causalidade uacutenica das doze categorias

kantianas do entendimento mantidas por Schopenhauer em seu sistema Desta forma o

mundo enquanto representaccedilatildeo eacute aquele que se apresenta para o sujeito enquanto objeto

9 Quando dizemos ideacuteia central havemos de lembrar que no sistema schopenhaueriano esta categorizaccedilatildeo

eacute singular (o tema seraacute tratado no iniacutecio do proacuteximo capiacutetulo) 10

A importacircncia que o filoacutesofo daacute ao tiacutetulo de uma obra eacute esclarecedora para a compreensatildeo da

importacircncia de sua ideacuteia central ldquoo que o sobrescrito deve ser para uma carta eacute o que um tiacutetulo deve ser

para um livro ou seja antes de tudo deve ter o objetivo de destinaacute-lo agrave parte do puacuteblico que pode se

interessar por seu conteuacutedo Sendo assim o tiacutetulo precisa ser caracteriacutestico e por ser naturalmente

breve deve ser conciso lacocircnico pregnante e se possiacutevel um monograma do conteuacutedordquo

(Schopenhauer SOE 09-10)

27

condicionado por estas trecircs formas presentes a priori no intelecto humano tempo

espaccedilo e causalidade Quanto ao mundo noumecircnico que dentro da teoria kantiana eacute um

ldquox desconhecidordquo Schopenhauer o explica atraveacutes da Vontade sua traduccedilatildeo da coisa-

em-si Essa dualidade que traz agrave tona a ldquocompleta diversidade entre o ideal e o realrdquo

(Schopenhauer MVR 527) doutrina que de acordo com Schopenhauer (MVR 528) foi

expressa por Kant de forma soacutebria calma demonstrada e incontestaacutevel jaacute havia sido

expressa tambeacutem em linguagem mais miacutetica e poeacutetica por outras duas doutrinas que

tambeacutem estatildeo profundamente presentes na obra Schopenhaueriana Platatildeo e os escritos

indianos dos Vedas e Puranas

Os estudos das obras de Platatildeo e Kant foram recomendaccedilatildeo de Schultze

um dos professores de Schopenhauer em Gottingen (Weissmann 1980 54) e formam os

pilares filosoacuteficos do sistema schopenhaueriano A separaccedilatildeo entre o real e o ideal

executada por Kant eacute vista tambeacutem na obra platocircnica Sua teoria das ideacuteias bem como

sua alegoria da caverna satildeo expressotildees de uma intuiccedilatildeo da existecircncia daquela separaccedilatildeo

O que Kant teria sistematizado a seu modo eacute a mesma verdade que ldquojaacute Platatildeo

incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte

modo este mundo que aparece aos sentidos natildeo possui nenhum verdadeiro ser mas

apenas um incessante devir ele eacute e tambeacutem natildeo eacute sua apreensatildeo natildeo eacute tanto um

conhecimento mas uma ilusatildeordquo (Schopenhauer MVR 528)

Aleacutem de Platatildeo os livros sagrados dos indianos afirmavam esta ldquoilusatildeordquo

ldquofantasmagoriardquo do mundo e constituem tambeacutem uma fonte frequumlentemente utilizada

por Schopenhauer O contato do nosso filoacutesofo com o pensamento oriental se deu

quando do seu encontro com o orientalista Friedrich Majer no salatildeo de sua matildee em

28

Weimar A partir de entatildeo o interesse do filoacutesofo pelo pensamento oriental foi se

intensificando ao longo de sua vida 11

A mesma verdade representada de modo completamente outro eacute

tambeacutem uma doutrina capital dos vedas e puranas a saber a doutrina de

Maia pela qual natildeo se entende outra coisa senatildeo aquilo que Kant nomeia

o fenocircmeno em oposiccedilatildeo agrave coisa-em-si pois a obra de maia eacute

apresentada justamente como este mundo visiacutevel no qual estamos um

efeito maacutegico que aparece na existecircncia uma aparecircncia inconstante e

inessencial em si destituiacuteda de ser comparaacutevel agrave ilusatildeo de oacutetica e ao

sonho um veacuteu que envolve a consciecircncia humana um algo do qual eacute

igualmente falso e igualmente verdadeiro dizer que eacute ou natildeo eacute

(Schopenhauer MVR 528)

Estas trecircs doutrinas estavam admitidamente presentes quando da

elaboraccedilatildeo do nuacutecleo conceitual fundamental da posteriormente nominada Filosofia da

Vontade Entretanto aleacutem de formarem seu nuacutecleo conceitual podemos encontraacute-las

ainda posteriormente em outros instantes desta filosofia O pensamento oriental seraacute

figura fortemente presente na eacutetica schopenhaueriana desenvolvida no quarto livro do

Mundo onde o filoacutesofo adotaraacute como fundamento de sua eacutetica o sentimento da

compaixatildeo jaacute presente na doutrina budista Platatildeo e Kant satildeo ainda influecircncias

fundamentais como veremos no proacuteximo capiacutetulo da esteacutetica schopenhaueriana O

primeiro novamente atraveacutes de sua teoria das ideacuteias seraacute utilizado por Schopenhauer na

definiccedilatildeo do objeto artiacutestico Do segundo poderemos notar sua influecircncia nas teorias

schopenhauerianas do sublime da imaginaccedilatildeo e da contemplaccedilatildeo desinteressada todas

elas fundamentais agrave compreensatildeo da teoria da arte poeacutetica

- - - - - - - - - -

11

Suas fontes principais eram o Oupnekacutehat uma traduccedilatildeo latina dos vedas e o Asiatic Journals jornal

publicado pela sociedade asiaacutetica fundada em 1784 Para uma referecircncia completa das citaccedilotildees orientais

na obra de Schopenhauer veja o apecircndice do artigo de Moira Nicholls The influences of Eastern Thought

on Schopenhaueracutes Doctrine of the Thing-in-itself (in Janaway 1999 197-204)

29

Apresentadas as principais influecircncias teoacutericas do sistema

schopenhaueriano passemos a uma breve descriccedilatildeo do ambiente cultural que naquele

momento tinha como foco um projeto de fundaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para o teatro e a

literatura germacircnicas Tal projeto envolveu os mais importantes dramaturgos criacuteticos

escritores e pensadores do periacuteodo imediatamente anterior a Schopenhauer12

e eacute

tambeacutem posteriormente retomado por Nietzsche em seu Nascimento da Trageacutedia Sua

importacircncia para a filosofia da vontade pode ser medida pela recorrente referecircncia feita

a estes pensadores nas obras dos filoacutesofos Seu iniacutecio em meados do seacuteculo XVIII deu-

se pela influecircncia exercida pelo historiador da arte Johann J Winckelmann junto aos

escritores poetas e dramaturgos posteriores dentre eles Lessing Goethe e Schiller

A influecircncia winckelmanniana que de acordo com Butler (1958 11)

criou ondas cujo violento distuacuterbio ldquoainda varrem as praias do seacuteculo XXrdquo se pautou

em duas noccedilotildees fundamentais13

a imitaccedilatildeo dos antigos e o belo ideal Winckelmann

propunha um novo modelo no qual a arte germacircnica deveria se basear para atingir uma

grandiosidade rara e ldquoinimitaacutevelrdquo a imitaccedilatildeo dos gregos Por esta imitaccedilatildeo o

historiador natildeo propunha uma mera coacutepia das obras de arte gregas poreacutem uma imitaccedilatildeo

do modo de produccedilatildeo artiacutestica dos gregos qual seja sintetizar a beleza ideal descoberta

na observaccedilatildeo da diversidade objetiva da natureza Esta proposta de um retorno ao

modelo antigo coloca Winckelmann na esteira da conhecida querela entre antigos e

modernos e eacute a igniccedilatildeo para o periacuteodo literaacuterio conhecido como classicismo germacircnico

Esta disputa quanto agrave valorizaccedilatildeo das obras poeacuteticas antigas ou modernas estaraacute de um

modo ou de outro presente nas teorias schopenhaueriana e nietzscheana da trageacutedia

12

De acordo com Schopenhauer as obras de tais poetas e escritores assim como a filosofia de Kant satildeo

exemplos para os quais a literatura e a filosofia pobres de seu tempo deveriam se voltar No que se refere

ao uso da liacutengua ele aconselha ldquoLede vede qual liacutengua Winckelmann Lessing Klopstock Wieland

Goethe Buumlrger Schiller falaram e emulai-a mas natildeo fazei o mesmo com o jargatildeo estupidamente

excogitado pelos miseraacuteveis literatos atuais e entre eles pelos professores que vatildeo agrave escola de liacutenguardquo

(Schopenhauer SOE 57-58) 13

Esta duas noccedilotildees fundamentais satildeo ressaltadas por Suumlssekind e Machado em seus trabalhos sobre o

tema Veja Suumlssekind 2008 67-77 e Machado 2006 9-14

30

Como veremos posteriormente Schopenhauer privilegiaraacute a trageacutedia moderna em

detrimento da antiga argumentando que aquela cumpre com maior competecircncia o seu

objetivo enquanto forma de arte qual seja provocar repulsa agrave vontade de viver e

estimular sua negaccedilatildeo Apesar deste privileacutegio pelas obras traacutegicas modernas o filoacutesofo

natildeo deixa como seus contemporacircneos de ter os gregos como modelo e natildeo satildeo raros

seus elogios agraves produccedilotildees helecircnicas Para Schopenhauer Winckelmann foi para a

histoacuteria da arte assim como ele o eacute para a da filosofia um exemplo do modo epiciacuteclico

atraveacutes do qual a natureza de tempo em tempo faz avanccedilar o conhecimento do gecircnero

humano Para o filoacutesofo a retomada do projeto kantiano realizada pelo seu sistema eacute a

demonstraccedilatildeo de que entre ele e Kant nenhum conhecimento foi produzido Como

exemplo deste esquema epiciacuteclico na histoacuteria da arte Schopenhauer utiliza-se do

retorno de Winckelmann agrave beleza claacutessica o que nos mostra a importacircncia dada pelo

filoacutesofo agrave forma de arte grega bem como ao projeto inaugurado pelo historiador da arte

Apoacutes explicar o esquema epiciacuteclico da evoluccedilatildeo dos progressos humanos

Schopenhauer diz

Para quem deseja poreacutem ter uma prova do esquema geral dos

epiciclos aqui exposto com base na histoacuteria da arte basta observar a

escola de escultura de Bernini que florescia ainda no seacuteculo passado

particularmente em seu desenvolvimento francecircs sucessivo e que

representava a natureza comum em vez da beleza claacutessica e o decoro do

minueto francecircs em vez da simplicidade e da graccedila antigas Tal escola

faliu quando apoacutes a repreensatildeo de Winckelmann voltou-se agrave escola dos

antigos (Schopenhauer SOE 110)

Nietzsche por sua vez seguiraacute o caminho winckelmanniano de exaltaccedilatildeo da forma de

arte antiga apresentando a trageacutedia grega como modelo para a arte moderna e elogiando

a iniciativa de seus predecessores em valorizar e recuperar a arte helecircnica

31

Conviria que alguma vez se pesasse diante dos olhos de um juiz

insubornaacutevel em que tempo e em que homens o espiacuterito alematildeo se

esforccedilou mais vigorosamente por aprender dos gregos e se admitirmos

com confianccedila que esse louvor uacutenico deveria ser atribuiacutedo agrave nobiliacutessima

luta de Goethe Schiller e Winckelmann pela cultura haveria em todo

caso que acrescentar que desde aquele tempo e depois das influecircncias

imediatas daquela luta tornou-se cada vez mais fraca de maneira

incompreensiacutevel a aspiraccedilatildeo de se chegar por uma mesma via agrave cultura e

aos gregos (Nietzsche NT 120)

Podemos perceber entatildeo a importacircncia do helenismo proposto por Winckelmann no

pensamento germacircnico ao observarmos a sua duraccedilatildeo tendo em vista que mais de um

seacuteculo separa o historiador da arte e o filoacutesofo da vontade de poder o que confirma a

forccedila de suas propostas para uma cultura em formaccedilatildeo e justifica o epiacuteteto com o qual

Butler caracterizou este periacuteodo dizendo que nele vemos ldquoa tirania da Greacutecia sobre a

Alemanhardquo14

O segundo ponto fundamental da teoria da arte winckelmanniana o belo

ideal natildeo provocou menor interesse em seu tempo Este belo ideal era alcanccedilado a

partir da reuniatildeo em uma uacutenica obra harmocircnica daquilo que o artista observa de mais

belo na natureza

A natureza tem seus defeitos o corpo mais belo natildeo deixa de tecirc-los e

nele encontramos frequumlentemente partes que em outros satildeo mais belas ou

podem supor-se mais perfeitas [] Os gregos trataram de reunir as formas

elegantes de vaacuterios corpos belos como sabemos pelo diaacutelogo de Soacutecrates com o

ceacutelebre pintor Parrasio [] Esta seleccedilatildeo das partes belas e sua harmocircnica

associaccedilatildeo em uma soacute figura produziu a beleza ideal (Winckelmann 2002

130)

Tal beleza encontrou sua manifestaccedilatildeo primeira na Greacutecia do periacuteodo helecircnico devido

ao favorecimento das condiccedilotildees geograacutefico-climaacuteticas15

e poliacuteticas16

Aleacutem da beleza

14

Tiacutetulo de sua obra Butler 1958 15

Sobre a influecircncia climaacutetica Winckelmann deduz ldquoA natureza depois de haver se manifestado em

gradaccedilotildees extremas de frio e de calor se estabeleceu na Greacutecia como em seu centro e por isso reina

naquele paiacutes uma temperatura intermediaacuteria entre o inverno e o veratildeo E quanto mais se aproxima deste

centro mais claridade e serenidade oferece e suas obras se manifestam em formas mais graciosas e

amaacuteveis e com detalhes mais caracteriacutesticos e decididosrdquo (Winckelmann 2002106) 16

Sobre as condiccedilotildees poliacuteticas sejam elas patriarcais democraacuteticas ou tiracircnicas Winckelmann conclui o

seguinte ldquoCom relaccedilatildeo ao regime poliacutetico e o governo da Greacutecia a liberdade eacute uma das causas da

preeminecircncia dos gregos na arte Tambeacutem a liberdade parece ter estabelecido na Greacutecia a sua sede existia

32

formal retirada da diversidade das formas naturais eleitas as mais belas as obras gregas

eram exemplares devido agrave importacircncia dada pelos artistas agrave sua expressatildeo A obra de

arte deve sua forccedila tanto agrave beleza das formas quanto agrave expressatildeo da alma nela contida

De acordo com Winckelmann ldquoa expressatildeo de uma alma grande vai muito aleacutem da

plasmaccedilatildeo de uma bela naturezardquo isto ocorre devido ao fato de que para o historiador

da arte ldquona Greacutecia a sabedoria estendia a matildeo agrave arte e insuflava nas figuras almas

mais que comunsrdquo (Winckelmann 1958 19) As caracteriacutesticas que esta expressatildeo deve

possuir satildeo aquelas contidas na passagem mais famosa da obra de Winckelmann na

qual ele descreve ainda como exemplo daquela expressatildeo artiacutestica o grupo estatuaacuterio

do Laocoonte que por sua vez seraacute alvo de uma grande controveacutersia posterior da qual

participaratildeo dentre outros Lessing Herder Goethe Schelling e Schopenhauer

Reproduzimos a passagem de Winckelmann em sua integridade

A caracteriacutestica geral e principal das obras mestras gregas eacute uma

nobre simplicidade e uma serena grandeza tanto na atitude como na

expressatildeo Assim como nas profundidades o mar estaacute sempre calmo por

muito que se agite a superfiacutecie do mesmo modo a expressatildeo nas figuras

dos gregos mostra em meio a todas as paixotildees uma alma grande e

comedida Isso transmite o rosto do Laocoonte ndash e natildeo soacute o dele ndash em

meio agrave mais violenta dor O sofrimento que aparece em todos os

muacutesculos e fibras do corpo e que no baixo ventre contraiacutedo se

experimenta tatildeo intensamente que parecemos senti-lo natildeo se exterioriza

contudo mediante qualquer ira no rosto e em toda a atitude Natildeo lanccedila

um grito terriacutevel tal como Virgiacutelio cantou em seu Laocoonte A abertura

da boca natildeo o permitiria Mais parece um suspiro angustiado como o

descreve Sadolet A dor do corpo e a grandeza da alma estatildeo distribuiacutedos

com igual forccedila atraveacutes de toda a composiccedilatildeo da figura e em certa

medida estatildeo equilibrados Laocoonte sofre mas sofre como o

Filoctetes de Soacutefocles sua dor nos toca a alma mas desejariacuteamos poder

suportar essa dor com a grandeza desse homem (Winckelmann 1958

18-19 grifo nosso)

inclusive junto ao tronos de seus reis que governavam paternalmente a seus suacuteditos antes que mais

ilustrados gozassem do destino de uma completa liberdade Homero chama a Agamemnoacuten de pastor de

seus povos com o que queria designar sua ternura com seus subordinados e sua preocupaccedilatildeo constante

pela felicidade dos mesmos Eacute bem verdade que depois surgiram tiranos mas natildeo o foram mais para uma

determinada cidade e a naccedilatildeo inteira jamais reconheceu um soberano uacutenicordquo (Winckelmann 2002 109)

33

Desta famosa passagem retiramos dois momentos que especialmente nos interessam O

primeiro dele eacute a enunciaccedilatildeo que caracterizaraacute o ideal de beleza das obras gregas nobre

simplicidade e uma serena grandeza Este ideal winckelmanniano de beleza eacute o que

torna a arte grega nas palavras de Suumlssekind ldquoinimitaacutevel e ao mesmo tempo faz dela o

modelo a ser imitadordquo (Suumlssekind 2008 69) Interessa-nos especialmente devido agrave

influecircncia desta definiccedilatildeo para a teoria do jovem professor de filologia da Basileacuteia

Podemos ver ateacute mesmo pelo vocabulaacuterio utilizado para descrever a arte grega a

proximidade e a influecircncia exercida por estes conceitos nas teorias esteacuteticas do primeiro

Nietzsche Luminosidade serenidade harmonia satildeo alguns dos conceitos que

posteriormente seratildeo utilizados por Nietzsche ao definir o seu impulso artiacutestico

apoliacuteneo17

O segundo momento - quando Winckelmann defende o espiacuterito grego na

escultura do Laocoonte em contraposiccedilatildeo ao personagem de Virgiacutelio comparando esta

representaccedilatildeo escultural com o Filoctetes de Soacutefocles - seraacute o precursor do posterior

debate sobre as fronteiras que separam as formas de arte Para Winckelmann ldquoa nobre

simplicidade e a serena grandeza das estatuas gregas eacute tambeacutem a verdadeira

caracteriacutestica dos escritos gregos da melhor eacutepoca dos escritos da escola

socraacuteticardquo(Winckelmann 1958 31) O debate sugerido pela passagem do qual

participaraacute posteriormente o proacuteprio Schopenhauer seraacute iniciado por outro pensador

de grande importacircncia para o projeto cultural alematildeo Gotthold Ephraim Lessing

Lessing em sua obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da

poesia apresentaraacute a contenda que chegaraacute ateacute Schopenhauer Para Lessing o ponto de

discordacircncia com Winckelmann estaacute no motivo pelo qual na escultura o Laocoonte natildeo

17

Segundo Rodriges (2007 93-126) tambeacutem o conceito do impulso dionisiacuteaco estaria mesmo que em

germe presente nos estudos de Winckelmann Segundo seu artigo o mapeamento da origem e

desenvolvimento da discussatildeo sobre os citados impulsos artiacutesticos da natureza ou seja sobre a

importacircncia dos deuses Apolo e Dioniacutesio na cultura grega abrangeria necessariamente diversas aacutereas do

pensamento alematildeo desde Winckelmann dentre elas os estudos filoloacutegicos o movimento romacircntico e as

filosofias idealistas

34

apresenta as caracteriacutesticas de quem grita e lamenta Como vimos para Winckelmann o

conjunto estatuaacuterio em questatildeo eacute exemplar pelo fato de transmitir atraveacutes da atitude

estoacuteica diante da dor a grandeza de alma que seria a regra universal da verdadeira arte

grega Esta grandeza enquanto regra universal estaria ainda de acordo com o

historiador da arte presente tanto nas formas pictoacutericas como nas obras poeacuteticas

Contrapondo-se a Winckelman Lessing afirma - exemplificando atraveacutes de passagens

de poetas queridos ao proacuteprio Winckelmann como Homero e Soacutefocles - que em vaacuterios

momentos da poesia antiga diversos personagens dentre eles deuses e heroacuteis proferem

exaltados lamentos e gritos e isto natildeo lhes subtrai a grandeza da alma Sendo assim se

na poesialdquoo gritar na sensaccedilatildeo de dor corporal pode coexistir muito bem com uma

grande alma portanto a expressatildeo de uma tal alma natildeo pode ser a causa pela qual

apesar disso o artista natildeo quer imitar esse grito no seu maacutermore antes deve haver um

outro motivo por que aqui ele separa-se do seu rival o poeta que expressa esse grito

com o melhor propoacutesitordquo(Lessing 1998 86) O motivo pelo qual em sua representaccedilatildeo

estatuaacuteria o Laocoonte natildeo grita eacute para Lessing uma questatildeo de limitaccedilatildeo da forma de

expressatildeo escultoacuterica que ao se submeter agrave ldquolei da belezardquo natildeo pode representar o grito

desfigurador Em suas palavras

O mestre visava a suprema beleza sob as condiccedilotildees aceitas da dor

corporal Esta em toda a sua violecircncia desfiguradora era incompatiacutevel

com aquela Ele foi obrigado a reduzi-la ele foi obrigado a suavizar o

grito em suspiro natildeo porque o grito denuncia uma alma indigna mas

antes porque ele dispotildee a face de um modo asqueroso (Lessing 1998

92)

Devemos ressaltar que segundo a teoria artiacutestica de Lessing para quem as leis a que

devem obedecer a arte estatildeo ligadas agrave sua interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica a arte eacute

julgada atraveacutes do seu efeito Neste contexto ao conceder a seus personagens

caracteriacutesticas de humanidade como por exemplo a manifestaccedilatildeo da dor atraveacutes de

35

lamentos e gritos o poeta estaria aproximando o heroacutei traacutegico do puacuteblico a ser atingido

e consequumlentemente maximizando a identificaccedilatildeo entre eles e com isto o efeito

esperado qual seja a catarse atraveacutes do temor e da compaixatildeo Esta identificaccedilatildeo

alcanccedilada por via da demonstraccedilatildeo dos lamentos dos heroacuteis dramaacuteticos natildeo pode ser

obtida da mesma forma pelas artes pictoacutericas Nestas que satildeo expressotildees de um

momento uacutenico a beleza natildeo pode deixar de estar presente pois ela eacute um dos

ingredientes mais fundamentais do efeito buscado Na poesia o heroacutei natildeo seraacute

caracterizado em uma uacutenica accedilatildeo como ocorre na escultura Sendo assim o grito

narrado eacute apenas um momento do conjunto que iraacute definir o personagem

O Laocoonte de Virgiacutelio grita mas esse Laocoonte que grita eacute

justamente aquele que noacutes jaacute conhecemos e amamos como o patriota

mais cordato e o pai mais afetuoso Noacutes vinculamos o seu grito natildeo ao

seu caraacuteter mas antes apenas ao seu sofrimento insuportaacutevel Apenas

esse uacuteltimo noacutes ouvimos no seu grito e o poeta pode tornaacute-lo sensiacutevel

apenas graccedilas a esse grito (Lessing 1998 106)

Com isto tanto o escultor que suprime o grito quanto o poeta que o descreve ao

fazerem o fazem de acordo com as leis que regem suas respectivas formas de arte

Da contenda sobre o grito do Laocoonte e sua representaccedilatildeo escultoacuterica e

poeacutetica iratildeo participar ainda diversos pensadores Dentre os mais ilustres podemos

destacar Goethe cuja explicaccedilatildeo sobre a escultura proacutexima em muitos pontos da de

Lessing encontra-se nos Propileus Para o poeta o grupo estatuaacuterio ldquoesgota o seu objeto

e preenche com sucesso todas as condiccedilotildees da arterdquo (Goethe 2005126) Segundo

Goethe a escultura eacute limitada a um uacutenico momento da accedilatildeo e sua comparaccedilatildeo com a

poesia de Virgiacutelio eacute injusta O poeta a avalia assim como Lessing atraveacutes de seu efeito

ainda dentro das categorias poeacuteticas de Aristoacuteteles e destaca

O ser humano possui apenas trecircs sentimentos no sofrimento

proacuteprio e alheio o medo o terror e a compaixatildeo a previsatildeo temerosa de

um mal que se aproxima a percepccedilatildeo inesperada do sofrimento presente

36

e a participaccedilatildeo no sofrimento duradouro ou que passou todos os trecircs

sentimentos satildeo representados e suscitados por esta obra de arte e na

verdade na gradaccedilatildeo a mais conveniente (Goethe 2005 126)

Em sua obra principal Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 46 a seus comentaacuterios do

Laocoonte que seratildeo acrescidos de exemplos no posterior volume de suplementos

Reconhece o avanccedilo feito por Lessing ao colocar no lugar de um fundamento

psicoloacutegico um fundamento puramente esteacutetico e critica ainda as teorias psicoloacutegicas e

fisioloacutegicas de seu tempo como as de Hirt e Fernow18

Para Schopenhauer apesar de

sua aproximaccedilatildeo do que seria uma ldquoexplicaccedilatildeo corretardquo da obra Lessing natildeo encontrou

o seu ponto exato qual seja a explicaccedilatildeo de que o grito natildeo pertence ao domiacutenio de

uma representaccedilatildeo escultoacuterica

Antes de qualquer investigaccedilatildeo psicoloacutegica e fisioloacutegica sobre se

Laocoonte em sua situaccedilatildeo poderia gritar ou natildeo deve-se decidir em

relaccedilatildeo ao grupo de esculturas o seguinte que nele o grito natildeo pode ser

exposto pelo motivo de que a exposiccedilatildeo do grito reside por inteiro fora

do domiacutenio da escultura (Schopenhauer MVR 2005 303)

Para Schopenhauer a simples exposiccedilatildeo que representaria o grito ou seja ldquoo

escancarar violento da bocardquo natildeo pode ocasionar o efeito que o grito mesmo enquanto

forma de expressatildeo ocasionaria O efeito que o grito pode causar em uma arte

descritiva atraveacutes do uso da imaginaccedilatildeo do leitor ou mesmo na arte representativa no

teatro tornar-se-ia motivo de riso caso seja representado por uma boca escancarada na

arte plaacutestica Schopenhauer utiliza-se do exemplo do Laocoonte para demonstrar a

necessidade do estabelecimento de fronteiras entre as artes que devido agrave suas formas

devem obedecer agraves competecircncias determinadas pelo objeto representado (no caso da

teoria schopenhaueriana as competecircncias seratildeo determinadas pelas ideacuteias a serem

representadas como veremos posteriormente) Esta preocupaccedilatildeo com os limites entre as

18

Segundo Schopenhauer Hirt (Horen 1797 parte 10) apresenta a explicaccedilatildeo de que Laocoonte natildeo grita

pois estaacute impossibilitado pela sufocaccedilatildeo que o leva agrave morte Fernow por sua vez faz uma amalgama das

opiniotildees de Winckelmann Lessing e Hirt

37

formas artiacutesticas presente na esteacutetica schopenhaueriana e no Laocoonte de Lessing foi

contudo como nos lembra Suzuki (Rosenfield 2001 36-56) ignorada por Goethe

(como podemos ver pelos elementos da poeacutetica aristoteacutelica utilizados pelo poeta para

explicar a escultura na citaccedilatildeo presente na paacutegina anterior) e seraacute posteriormente

tambeacutem desconsiderada por Nietzsche em seu projeto de uma obra de arte total

Diante do acima exposto ainda tratando de Lessing podemos perceber

que toda a discussatildeo acerca do Laocoonte foi desencadeada pela motivaccedilatildeo de defesa da

arte poeacutetica agrave qual Lessing dedicou sua vida como escritor diretor e criacutetico teatral

Desta forma a importacircncia de Lessing para o tema em questatildeo nesta dissertaccedilatildeo estaacute

mais ligado ao seu papel junto a um projeto de formaccedilatildeo de um teatro alematildeo e sua

interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica Enquanto teoacuterico e criacutetico do teatro o autor da

Dramaturgia de Hamburgo exerceu grande influecircncia na cultura posterior ao oferecer a

seu tempo uma nova interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica que vai de encontro agraves

interpretaccedilotildees francesas e de Gottsched que eram por sua vez inflexiacuteveis em relaccedilatildeo agraves

regras (das unidades de espaccedilo tempo e lugar do estatuto social dos personagens da

linguagem e do nuacutemero de atos) Lessing atento agraves necessidades de uma burguesia em

ascensatildeo que natildeo se identificava mais com as concepccedilotildees aristocraacuteticas do modelo de

teatro francecircs e imbuiacutedo na construccedilatildeo do projeto de formaccedilatildeo cultural de uma naccedilatildeo

fragmentada oferece atraveacutes de suas interpretaccedilotildees uma seacuterie de elementos que estaratildeo

presentes nas consideraccedilotildees de pensadores posteriores Dentre estes elementos podemos

destacar as seguintes uma discussatildeo acerca dos conceitos de mimese temor

compaixatildeo catarse a defesa da utilizaccedilatildeo de caracteres mistos a liberdade do gecircnio

ante as regras o enaltecimento dos teatros espanhol e inglecircs principalmente de

Shakespeare

38

Ao tratarmos do referido projeto de um teatro alematildeo e tambeacutem do

classicismo germacircnico dois nomes ainda satildeo fundamentais para sua formaccedilatildeo bem

como eacute incontestaacutevel sua influecircncia sobre Schopenhauer e o jovem Nietzsche19

satildeo

eles Goethe e Schiller O primeiro deles maior dos poetas do classicismo germacircnico

foi um ampliador do projeto Winckelmanniano ldquoPois Goethe pensa o ideal de beleza

natildeo soacute em relaccedilatildeo agrave pintura e agrave escultura mas tambeacutem e principalmente em relaccedilatildeo agrave

poesia ou agrave arte dramaacutetica ampliando as ideacuteias de Winckelmann nesse domiacutenio como

teoacuterico e como criador de obras teatraisrdquo (Machado 2006 14) Seu classicismo

impresso em seus textos teoacutericos e na forma e conteuacutedo de diversas de suas produccedilotildees

literaacuterias eacute o auge do projeto Winckelmanniano Podemos ver na esteira de Machado

(2006 14-22) que o ideal de beleza proposto por Winckelmann eacute ainda o que domina a

noccedilatildeo Goetheana dos gregos e eacute apoiado neste ideal que o poeta interpreta a arte do

mundo helecircnico e a apresenta como um exemplo para a arte de seu tempo Ressaltamos

poreacutem que dada a sua extrema heterogeneidade como nos adverte Butler (1958 85)

encontrar um senso de harmonia interna no todo da obra goetheana eacute tarefa tatildeo incerta

como determinar o grau de sua influecircncia no pensamento de nossos filoacutesofos No que se

refere a Schopenhauer entretanto natildeo podemos deixar de ressaltar que sua convivecircncia

com o poeta foi norteada pelas discussotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas que ocupavam o palco

de seus estudos agrave eacutepoca Goethe dedicou vinte anos de sua vida ao estudo das cores e

sua obra Doutrina das cores eacute o resultado desta investigaccedilatildeo Ela atraiu o interesse do

jovem Schopenhauer que apoacutes alguns encontros com Goethe dedicou-se a escrever a

sua proacutepria teoria que divergia em diversos pontos da teoria do poeta fato que marcou o

fim da relaccedilatildeo amistosa dos mesmos Sobre este periacuteodo de convivecircncia

19

De acordo com Martin (1996) a obra desenvolvida por Nietzsche enquanto escritor e pensador eacute

demasiado complexa para ser reduzida ou atribuiacuteda a determinada influecircncia Entretanto em uma

estatiacutestica crua podemos ter o vislumbre desta influecircncia como se segue ldquoSchopenhauer eacute referenciado

394 vezes na obra de Nietzsche Wagner 327 vezes a Goethe existem 311 menccedilotildees Schiller encontra-se

em nono lugar com 126 menccedilotildeesrdquo (Martin 1996 5)

39

especificamente sobre o episodio citado Goethe vai escrever mais tarde conforme

citaccedilatildeo de Safranski

O Dr Schopenhauer foi para mim um amigo benevolente

Estivemos de acordo em muitas coisas mas foi impossiacutevel evitar ao final

um certo distanciamento como dois amigos que ateacute certo momento

caminharam juntos se datildeo a matildeo para despedir pois querem dirigir-se um

ao norte outro ao sul perdendo-se rapidamente de vista um ao outro

(apud Safranski 1991 265)

Ainda na esteira do movimento de estabelecimento de um projeto

artiacutestico nacional encontramos Schiller que ao lado de Goethe foi o responsaacutevel pelas

maiores obras do classicismo literaacuterio de Weimar Para o estudo em questatildeo o que mais

nos interessa em sua obra eacute o periacuteodo no qual antes do contato com Goethe Schiller

produz seus escritos teoacutericos sobre a trageacutedia Estes estudos podem ser considerados

em uma perspectiva histoacuterica como uma ponte entre a interpretaccedilatildeo da trageacutedia nos

moldes puramente aristoteacutelicos e a trageacutedia vista enquanto forma de arte que para

atingir o efeito dela esperado deve refletir a condiccedilatildeo traacutegica do homem pensada com

base em elementos retirados da filosofia moral e da esteacutetica kantiana Em seus textos

teoacutericos sobre a poesia traacutegica pertencentes ao periacuteodo que Schiller assume ter estado

sob influecircncia da filosofia kantiana ele descreve a trageacutedia como expressatildeo do sublime

ndash conceito extraiacutedo da criacutetica kantiana do juiacutezo ndash como a representaccedilatildeo sensiacutevel da

dicotomia entre a liberdade moral a vontade individual (vontade tomada enquanto

faculdade de pensar e agir livremente) por um lado e a necessidade natural e instintiva

por outro Vemos pela primeira vez em Schiller a utilizaccedilatildeo de categorias filosoacuteficas

kantianas na elaboraccedilatildeo de uma teoria da trageacutedia o que teraacute continuidade com as

teorias do idealismo absoluto e a do proacuteprio Schopenhauer Este eacute um momento

extremamente importante devido ao fato de marcar toda a reflexatildeo futura sobre o tema

ao fundar o deslocamento de uma interpretaccedilatildeo poeacutetica da trageacutedia baseada em

40

comentaacuterios da obra aristoteacutelica para uma interpretaccedilatildeo do traacutegico enquanto fenocircmeno

que descreve a situaccedilatildeo do homem no mundo De acordo com Machado ldquoEacute do

encontro de um grande dramaturgo como Schiller com a filosofia de Kant -

principalmente a sua eacutetica considerada como uma filosofia da liberdade e sua

esteacutetica no que diz respeito agrave teoria do juiacutezo sobre o sublime ndash que nasce a primeira

filosofia do traacutegico uma reflexatildeo filosoacutefica original que criou um tipo novo de

pensamento sobre a trageacutediardquo (Machado 2006 54) Na teoria schopenhaueriana da

trageacutedia podemos ver caracteriacutesticas da teoria schilleriana Primeiramente a presenccedila

marcante da influecircncia kantiana no que se refere ao sublime Em segundo lugar a

leitura da trageacutedia enquanto instrumento para a percepccedilatildeo de uma ordem moral do

mundo Tais caracteriacutesticas seratildeo aprofundadas no capiacutetulo posterior Vale antecipar que

na obra do jovem Nietzsche poderemos ver a exaltaccedilatildeo de Schiller em sua tentativa de

compreensatildeo do mundo helecircnico aleacutem do elogio agrave teoria schilleriana do coro Veremos

entretanto uma criacutetica acirrada no que se refere ao projeto de um teatro enquanto

instituiccedilatildeo moral

Neste capiacutetulo foram delineadas as principais influecircncias filosoacuteficas que

alicerccedilaram o sistema schopenhaueriano bem como esboccedilaram-se as diversas teorias

artiacutesticas que surgiram no periacuteodo em questatildeo teorias estas que propuseram mateacuteria

para a formaccedilatildeo do pensamento de nossos filoacutesofos A partir da cisatildeo entre fenocircmeno e

noumeno proposta por Kant e sua primeira criacutetica Schopenhauer elabora as matrizes de

seu sistema e para ilustraacute-lo encontra apoio na cosmologia platocircnica e no pensamento

oriental Vimos ainda que sua teoria esteacutetica eacute alimentada pela frequumlentaccedilatildeo agraves

categorias apresentadas por artistas teoacutericos e criacuteticos de arte de seu periacuteodo Por seu

turno vimos com Winckelmann a origem do estudo sobre os gregos e sua arte aleacutem do

estabelecimento destes como um modelo para a arte alematilde projeto este que foi

41

retomado por Lessing que por sua vez intensificou o estudo e propocircs um modelo de um

teatro nacional independente projeto que seraacute mais tarde revisitado e aprofundado por

Goethe e Schiller Esta apresentaccedilatildeo de influecircncias eacute imprescindiacutevel para identificarmos

a origem de certos elementos que satildeo fundamentais ao entendimento da proacutepria doutrina

schopenhaueriana tais como o caraacuteter moral de sua teoria esteacutetica sua preocupaccedilatildeo

com o estabelecimento de limite entre as artes sua interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo da poeacutetica

sua utilizaccedilatildeo de conceitos esteacuteticos kantianos (sublime belo e desinteresse) sua

apreciaccedilatildeo das obras modernas seu reconhecimento da produccedilatildeo claacutessica seu desprezo

agrave filosofia de seu tempo Eacute tambeacutem atraveacutes do mapeamento aqui feito de algumas de

suas influecircncias mesmo que brevemente apontado que poderemos mais tarde

identificar alguns dos aspectos originais e singulares de sua teoria

Quanto agraves influecircncias presentes na teoria da trageacutedia do jovem Nietzsche

apontaremos complementos no capiacutetulo correspondente Eacute imprescindiacutevel dar destaque

no que se refere agrave obra nietzscheana agrave sua formaccedilatildeo filoloacutegica ao seu conviacutevio com

Richard Wagner e agrave sua leitura do proacuteprio Schopenhauer - e isto seraacute feito

posteriormente Esperamos ter deixado claro ateacute aqui que diferentemente de Zaratustra

Nietzsche natildeo desceu simplesmente de uma montanha mas faz parte de uma tradiccedilatildeo

histoacuterica assim como Schopenhauer e que a contextualizaccedilatildeo de suas teorias eacute

fundamental para a identificaccedilatildeo dos elementos ali presentes que singularmente se

originaram do sistema metafiacutesico da Vontade

42

2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU

SUBSTRATO METAFIacuteSICO

ldquoOra se todo mundo como representaccedilatildeo eacute

a visibilidade da Vontade a arte eacute o

clareamento dessa visibilidade a cacircmera

obscura que mostra os objetos mais

puramente permitindo-nos melhor abarcaacute-

los e compreendecirc-los eacute o teatro dentro do

teatro a peccedila dentro da peccedila em Hamletrdquo

(Schopenhauer)

Utilizando-se de uma metaacutefora retirada do Eacutedipo de Soacutefocles Schopenhauer nos

oferece um exemplo da caracteriacutestica de conexatildeo interna dos temas abordados em sua

obra20

ldquo minha filosofia eacute como a Tebas de cem portas desde todos os lados se pode

entrar e atraveacutes de todos se pode chegar por um caminho direto ateacute o centrordquo

(Schopenhauer 2002 4) Tendo em vista que nosso objetivo neste capiacutetulo eacute apresentar

a teoria schopenhaueriana da trageacutedia e seus fundamentos filosoacuteficos utilizaremo-nos

desta porta para termos acesso ao sistema schopenhaueriano Procuraremos percorrer o

20

Barboza define bem esta caracteriacutestica marcante da filosofia schopenhaueriana ldquoSchopenhauer eacute o

filoacutesofo da organicidade Procura-a porque com ela onde quer que se esteja no seu sistema estar-se-aacute

em toda parte O todo conteria as partes e seria contido por elas De uma metafiacutesica da efetividade se vai

para uma do belo desta para a da eacutetica que por sua vez pode remeter agrave muacutesica por seu turno a nos

enviar para a efetividade numa por assim dizer circularidade virtuosa A unidade natildeo se perde do

horizonte de observaccedilatildeordquo (Barboza 2001 137)

43

substrato metafiacutesico sustentador da teoria do traacutegico schopenhaueriana e perceber assim

a conectividade interna existente entre sua cosmologia sua teoria esteacutetica e sua eacutetica

De posse deste meacutetodo procuraremos destacar os conceitos fundamentais da teoria

traacutegica e de sua visatildeo de mundo que viratildeo posteriormente se fazer presentes tambeacutem

na obra do jovem Nietzsche

21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo

Agrave descriccedilatildeo das artes poeacuteticas Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 51 do primeiro

volume e o capiacutetulo 37 do segundo volume de sua obra principal Tais descriccedilotildees

encontram-se por sua vez ao final dos trechos dedicados agrave teoria esteacutetica (livro III de

MVR e sus complementos) e finalizam seus apontamentos do que podemos chamar na

esteira de Young (2005) das artes natildeo-musicais21

Em ambos os casos a teoria da

trageacutedia estaacute localizada ao final da apresentaccedilatildeo Esta localizaccedilatildeo juntamente com as

diversas citaccedilotildees e exemplos retirados de peccedilas traacutegicas das quais o filoacutesofo se utiliza ao

longo de seu trabalho nos permite ver a importacircncia da arte traacutegica para Schopenhauer

Em sua teoria artiacutestica existe uma hierarquizaccedilatildeo das artes que leva em consideraccedilatildeo a

capacidade de cada uma em apresentar um grau especiacutefico de objetivaccedilatildeo da vontade

Na cosmologia schopenhaueriana a vontade essecircncia do mundo identificada como

sendo a coisa-em-si kantiana manifesta-se (torna-se objeto de conhecimento) atraveacutes de

diversos graus ndash que exprimem a nitidez com que a vontade se manifesta para o

observador - representados pelos reinos da natureza e finalmente pelo homem Desta

forma ela se objetivaria no mundo inorgacircnico atraveacutes das forccedilas magneacuteticas e da

gravidade no mundo vegetal atraveacutes das funccedilotildees orgacircnicas no mundo animal atraveacutes

21

Como veremos mais adiante a muacutesica eacute uma exceccedilatildeo no sistema das artes schopenhaueriano pois natildeo

se relaciona a uma objetivaccedilatildeo da vontade mas expressa a proacutepria vontade e desta forma natildeo figura na

sistematizaccedilatildeo hieraacuterquica

44

dos instintos e dos motivos assim como o faz no homem A classificaccedilatildeo das artes

corresponde portanto a esta hierarquizaccedilatildeo cosmoloacutegica de objetivaccedilatildeo da vontade22

Sendo assim a arquitetura e a hidraacuteulica mostram a objetivaccedilatildeo da vontade no seu grau

mais baixo ao expor o jogo das forccedilas que caracterizam a mateacuteria tais como a gravidade

rigidez dureza resistecircncia luz A jardinagem e a pintura da natureza satildeo as formas

artiacutesticas cujo fim eacute a exposiccedilatildeo da objetivaccedilatildeo da vontade que se manifesta no reino

vegetal A pintura de animais encontra-se em um niacutevel superior pois o reino animal

objeto de sua representaccedilatildeo expotildee de forma mais evidente a vontade objetivada Temos

ainda as pinturas de retratos a pintura histoacuterica e a escultura que das artes plaacutesticas

formam a categoria superior cujo objeto eacute a exposiccedilatildeo da vontade no grau mais elevado

de sua cognoscibilidade o homem Esta mesma exposiccedilatildeo a do homem eacute tambeacutem o

objeto da arte poeacutetica que agrave diferenccedila das artes que fazem sua exposiccedilatildeo de modo

puramente intuitivo eacute auxiliada pela imaginaccedilatildeo No aacutepice das artes poeacuteticas

encontramos a trageacutedia a uacuteltima arte natildeo-musical a ser descrita A arte traacutegica eacute aquela

que possui a caracteriacutestica de por sua natureza representar de forma mais ilustrativa a

objetivaccedilatildeo mais desenvolvida da vontade a vida humana e suas relaccedilotildees Veremos

mais tarde que aleacutem de corresponder agrave hierarquia de objetivaccedilatildeo da vontade mais

desenvolvida a arte traacutegica ocupa um lugar especial na filosofia schopenhaueriana

devido agrave ldquograndeza de seu efeitordquo (Schopenhauer 2005 333) Diante do exposto

podemos depreender que a arte possui na filosofia schopenhaueriana um papel

cognitivo e a trageacutedia por sua vez eacute a forma artiacutestica que por sua competecircncia cognitiva

ocupa o primeiro lugar entre as artes natildeo musicais

22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo

22

Vemos aqui um exemplo da citada inter-conectividade existente no sistema schopenhaueriano tendo

em vista que a elaboraccedilatildeo de sua classificaccedilatildeo artiacutestica obedece ao construto metafiacutesico do livro II de

MVR e sua consequumlente cosmologia

45

A tarefa a que se propotildee o sistema schopenhaueriano eacute a decifraccedilatildeo do ldquoenigma

do mundordquo ie encontrar uma resposta agrave pergunta o que eacute o mundo Esta tarefa tem

origem no idealismo subjacente na primeira criacutetica kantiana e de certa forma era uma

tarefa da qual estava imbuiacutedo todo o pensamento filosoacutefico daquele periacuteodo ie por

decifraccedilatildeo do enigma do mundo podemos entender a decifraccedilatildeo da coisa-em-si

kantiana Temos daiacute o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer o idealismo

transcendental do mundo fenomecircnico Sob o ponto de vista da representaccedilatildeo o mundo eacute

objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito agraves condiccedilotildees a priori do

entendimento que para o filoacutesofo satildeo as categorias do espaccedilo do tempo e da

causalidade

Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das formas a priori do entendimento eacute

interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos advindos da filosofia Platocircnica e oriental

como um mundo ilusoacuterio Conforme a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana Platatildeo jaacute

identificava esta caracteriacutestica ilusoacuteria do mundo em sua contraposiccedilatildeo teoacuterica entre o

mundo fiacutesico onde o devir impossibilitava a apreensatildeo do ser e o mundo das ideacuteias

onde haveria o verdadeiro encontro com o ser das coisas Ainda de acordo com a

interpretaccedilatildeo de Schopenhauer os livros sagrados indianos Vedas e Puranas faziam

esta distinccedilatildeo atraveacutes da noccedilatildeo do veacuteu de maia a consciecircncia humana seria envolvida

por um veacuteu o que resultaria em uma visatildeo oniacuterica do mundo e impediria assim a

percepccedilatildeo da realidade

Entretanto o mundo pode ainda ser conhecido atraveacutes de um segundo ponto de

vista como vontade Este eacute o ponto de vista que Schopenhauer utiliza-se para decifrar a

incognosciacutevel coisa-em-si kantiana Percorrendo uma ldquovia subterracircneardquo de modo

imanente Schopenhauer identifica nas accedilotildees do corpo bioloacutegico os atos da vontade

46

enquanto coisa-em-si e de forma analoacutegica a estabelece como essecircncia governante do

mundo Faz-se necessaacuterio aqui ressaltar como o fazem Brum (1998 23) e Rosset23

que

natildeo devemos interpretar esta analogia como uma visatildeo antropomoacuterfica do mundo Essa

essecircncia do mundo encontrada empiricamente natildeo eacute todavia um ente racional uma

ldquoalma do mundordquo Se por um lado o mundo fenomecircnico eacute aquele onde o princiacutepio de

razatildeo24

estabelece as normas de funcionamento um mundo natildeo-fenomecircnico mundo em

si enquanto vontade se expressa por sua alogicidade irracionalidade Grundlosigkeit

(falta de fundamento) Essa essecircncia irracional que manifesta-se nos diversos reinos e

indiviacuteduos do mundo eacute a raiz da visatildeo pessimista da existecircncia que de acordo com o

filoacutesofo pode ser a todo momento constatada empiricamente

As diversas manifestaccedilotildees da vontade suas objetidades carregam inerentemente

a sua iacutendole puro impulso cego vontade de vida insaciabilidade Notadamente o

mundo fenomecircnico objetivaccedilatildeo da vontade expressa a essecircncia desta vontade atraveacutes

de um conflito permanente Desenha-se um cenaacuterio de batalha onde cada objetidade da

vontade cada ser do mundo eacute orientado por sua essecircncia irracional desguarnecida de

qualquer telos ldquoAssim a vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria

carne e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimentordquo (Schopenhauer MVR 211) Este

fundamento ontoloacutegico a vontade determina assim o caraacuteter absurdo que a vida

humana toma na filosofia schopenhaueriana eterno esforccedilo carente de ordem ou

finalidade O ldquomecanismo internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens

marionetes guiados pela carecircncia

[]nenhuma satisfaccedilatildeo todavia eacute duradoura mas antes sempre eacute um

ponto de partida de um novo esforccedilo o qual por sua vez vemos travado em

toda parte de diferentes maneiras em toda parte lutando e assim portanto

23

[] natildeo haacute que transpor a experiecircncia da motivaccedilatildeo humana ao conjunto das forccedilas naturais para

compreender o segredo da natureza senatildeo o contraacuterio transpor o misteacuterio das forccedilas naturais ao conjunto

das motivaccedilotildees psicoloacutegicas para desvendar-se o segredo da vontade humana (Rosset 2005 31) 24

Princiacutepio tratado na tese de doutoramento de Schopenhauer SRQPRS bem como no livro I de MVR

O princiacutepio estabelece que todo acontecimento possui uma causa uma razatildeo de ser

47

sempre como sofrimento natildeo haacute nenhum fim uacuteltimo do esforccedilo portanto natildeo

haacute nenhuma medida e fim do sofrimento (Schopenhauer 2005 399)

Se carecircncia vontade e desejo satildeo a tocircnica da vida humana na maior parte do tempo e

satildeo experimentados como dor e infelicidade a felicidade por sua vez eacute definida

negativamente como um momento de ausecircncia daquela dor

Sentimos a dor e natildeo a ausecircncia da dor a inquietude e natildeo a

tranquumlilidade o medo e natildeo a seguranccedila Sentimos desejo como quando

temos fome e sede entretanto ao alimentarmo-nos estas sensaccedilotildees

deixam de existir para noacutes (MVR II 630)

Toda satisfaccedilatildeo momentacircnea de um querer eacute imediatamente suprimida por outro querer

ou se perdurar por algum tempo por menor que seja este transforma-se em teacutedio Um

ldquopecircndulo entre a dor e teacutediordquo eacute a definiccedilatildeo que Schopenhauer propotildee para a vida

humana Assim se daacute tambeacutem com a sauacutede a juventude e a liberdade Todos satildeo

conceitos definidos negativamente soacute os conhecemos atraveacutes de sua ausecircncia Este afatilde

por prolongar e conservar a vida essecircncia iacutentima de cada indiviacuteduo natildeo eacute contudo

resultado de uma observaccedilatildeo objetiva da mesma de um conhecimento que eleja a vida

como algo de valor a ser mantido e preservado e portanto os ldquo[] seres natildeo satildeo

atraiacutedos por algo que se lhes apresenta mas satildeo empurrados a elerdquo (MVR II 398) A

luta eterna observada nos diversos reinos da natureza a busca por alimento o esforccedilo da

procriaccedilatildeo se comparados aos momentos fugazes de satisfaccedilatildeo fazem da vida ldquoum

negoacutecio cujos investimentos natildeo cobrem nem de longe os custosrdquo (MVR II 399)

Em todas estas consideraccedilotildees se faz claro que a vontade de viver

natildeo eacute a consequecircncia do conhecimento da vida natildeo se trata de uma

bdquoconclusio ex praemissis‟ nem em geral eacute algo secundaacuterio antes

contudo eacute o primeiro e incondicionado a premissa de todas as premissas

e precisamente por isso aquilo do que haacute de partir a filosofia pois a

vontade de viver natildeo se apresenta como a consequumlecircncia do mundo senatildeo

o mundo como consequumlecircncia da vontade de viver (MVR II 405)

Um dos pontos essenciais a ser verificado nesta visatildeo de mundo eacute o

destronamento da razatildeo O ceacuterebro oacutergatildeo da razatildeo eacute o resultado de um esforccedilo da

48

vontade em seu percurso de objetivaccedilatildeo A racionalidade humana estaacute a serviccedilo da

vontade que eacute em sua essecircncia grundlos A razatildeo eacute ferramenta para que o homem

enquanto objetidade da vontade consiga satisfazer a seus anseios Em oposiccedilatildeo agrave

filosofia racionalista de entatildeo onde o ldquoreal eacute o racionalrdquo assistimos ao surgimento de

uma filosofia irracionalista das forccedilas inconscientes onde a razatildeo na medida em que eacute

mecanismo da vontade estaacute sempre a serviccedilo desta O comportamento humano eacute

naturalmente egoiacutesta voltado para os proacuteprios interesses e estes por sua vez satildeo

expressatildeo desta vontade aloacutegica desprovida de telos Schopenhauer se mostrava

consciente da singularidade desta sua biparticcedilatildeo do ego e da consequumlente visatildeo de

mundo que ela trouxe agrave luz e enfatizou isto em seus manuscritos berlinenses ldquo[] a

divisatildeo da mente o eu em duas partes diferentes - em vontade como parte essencial e

primaacuteria e em intelecto como secundaacuteria - eacute o grande princiacutepio e meacuterito de minha

filosofia e tambeacutem a principal diferenccedila dos demais sistemasrdquo (MR III 328)

Temos entatildeo os dois pontos de vista do mundo que fundamentam a visatildeo de

Schopenhauer e que posteriormente seratildeo transformados pela teoria nietzscheana da

trageacutedia nos dois impulsos da natureza o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco O primeiro deles eacute o

mundo da individualidade da pluralidade regido pelo que Schopenhauer vai chamar

utilizando-se de um termo retirado da escolaacutestica de principium individuationis

Nesse sentido servindo-me da antiga escolaacutestica denomino

tempo e espaccedilo pela expressatildeo principium individuationis que peccedilo para

o leitor guardar para sempre Tempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais

aquilo que eacute uno e igual conforme a essecircncia e o conceito aparece como

pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem (MVR 171)

No segundo toto genere diferente do primeiro existe a vontade una indivisiacutevel natildeo

submetida ao princiacutepio de razatildeo e por isso sem fundamento

Em apoio a sua tese Schopenhauer invoca ao final do capiacutetulo 46 (Sobre a

nulidade e o sofrimento da vida) dos complementos de MVR a opiniatildeo de diversos

49

pensadores dentre eles Heroacutedoto Platatildeo Teoacutegnis Homero os tragedioacutegrafos gregos

Shakespeare Byron Voltaire Rousseau Faz-se importante neste momento ressaltar que

o filoacutesofo aponta a invenccedilatildeo da trageacutedia pelos gregos como uma expressatildeo desta visatildeo

de mundo ponto de vista que como veremos tambeacutem seraacute adotado pelo primeiro

Nietzsche

Ante tudo mencionarei que os gregos por mais distantes que

estivessem da visatildeo de mundo cristatilde e da alta Aacutesia e por muito que se

mantiveram sob o ponto de vista da afirmaccedilatildeo da vontade se fizeram

profundamente impressionados pela miseacuteria da existecircncia Isso eacute

demonstrado pela invenccedilatildeo da trageacutedia obra deles (MVR II 640)

23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana

Existe poreacutem uma forma de conhecimento que eacute ndash agrave diferenccedila daquela

subordinada ao princiacutepio de razatildeo que percebe os objetos em sua relaccedilatildeo com os outros

objetos do espaccedilo-tempo ndash uma forma mais universal pois mostra o objeto em sua

caracteriacutestica mais geral qual seja a de ser objeto para o sujeito A esta forma de

conhecimento Schopenhauer associa a apreciaccedilatildeo esteacutetica O seu objeto eacute a ideacuteia

platocircnica25

um grau determinado de objetivaccedilatildeo da coisa-em-si

Os diferentes graus de objetivaccedilatildeo da Vontade expressos em

inumeraacuteveis indiviacuteduos e que existem como seus protoacutetipos

inalcanccedilaacuteveis ou formas eternas das coisas que nunca aparecem no

tempo e no espaccedilo meacutedium do indiviacuteduo mas existem fixamente natildeo

submetidos a mudanccedila alguma satildeo e nunca vindo-a-ser enquanto as

coisas nascem e perecem sempre vecircm-a-ser e nunca satildeo os GRAUS DE

OBJETIVACcedilAtildeO DA VONTADE ia dizer natildeo satildeo outra coisa senatildeo as

IDEacuteIAS DE PLATAtildeO (MVR 191)

Esta instacircncia do conhecimento eacute alcanccedilada intuitivamente pela contemplaccedilatildeo

esteacutetica da natureza ou pela facilitaccedilatildeo de uma obra de arte Desta forma as obras de

25

Conforme o filoacutesofo ldquo A expressatildeo mais breve e sucinta daquele famoso dogma platocircnico foi dada por

Dioacutegenes Laeacutercio (II 12) Platatildeo ensina que as ideacuteias da natureza existem como protoacutetipos jaacute as demais

coisas apenas se assemelham a elas e satildeo suas coacutepiasrdquo (MVR 191)

50

arte na teoria schopenhaueriana satildeo uma exposiccedilatildeo destes graus de objetivaccedilatildeo da

vontade as ideacuteias Ao contraacuterio da criacutetica agrave arte presente na repuacuteblica platocircnica - onde a

arte seria uma coacutepia mais imperfeita da ideacuteia por retratar o mundo fenomecircnico sua

coacutepia direta - Schopenhauer aproxima as obras artiacutesticas das ideacuteias eternas as define

como suas expressotildees diretas Contudo a intuiccedilatildeo das ideacuteias exige um estado de

consciecircncia diferente do estado comum Neste uacuteltimo o aparelho cognitivo sob a eacutegide

da vontade estaacute voltado para a realizaccedilatildeo dos interesses individuais e entatildeo se

movimenta no mundo guiado por estes interesses ldquoCaso entretanto a Ideacuteia deva de

alguma maneira tornar-se conhecimento e ser conhecida pelo sujeito entatildeo isso soacute

pode ocorrer graccedilas agrave supressatildeo da individualidade no sujeito que conhecerdquo (MB 30)

A forma artiacutestica de conhecimento cujo possuidor eacute o denominado gecircnio estaacute

associada a um desprendimento das reacutedeas da vontade O gecircnio eacute entatildeo aquele que livre

dos interesses da vontade percebe as ideacuteias por traacutes dos objetos alheio aos princiacutepios

de razatildeo e de individuaccedilatildeo e traduz este objeto na obra de arte O observador esteacutetico eacute

portanto um partiacutecipe da genialidade na medida em que intui a ideacuteia por traz do objeto

observado conforme tambeacutem ao seu grau de desinteresse26

Durante a apreciaccedilatildeo

esteacutetica o homem se vecirc livre momentaneamente daquela parte de si que eacute a causadora

de todo o sofrimento individual e coletivo a vontade para transformar-se em um ldquopuro

sujeito de conhecimentordquo Este estado de satisfaccedilatildeo decorrente da suspensatildeo da vontade

individualizada eacute o sentimento do belo

Aquilo que se poderia nomear o lado mais belo e a pura alegria

da vida precisamente porque nos arranca da existecircncia real e nos

transforma em espectadores desinteressados diante dela eacute o puro

conhecimento que permanece alheio a todo querer eacute a fruiccedilatildeo do belo a

alegria autecircntica na arte Mas mesmo isso requer dispositivos raros e

cabe apenas a pouquiacutessimos e mesmo para estes eacute um sonho

passageiro (MVR 404)

26

Vemos nesta forma de associaccedilatildeo entre conhecimento e interesse mais uma heranccedila kantiana no caso

provinda da definiccedilatildeo de belo da criacutetica da faculdade de juiacutezo

51

- - - - - - - - - -

Ao descrever a apreciaccedilatildeo artiacutestica como um ato cognitivo Schopenhauer

preocupa-se em diferenciaacute-la do conhecimento cientiacutefico De fato boa parte das

consideraccedilotildees sobre a arte eacute dedicada ao esclarecimento desta diferenccedila

Podemos por conseguinte definir a arte como o modo de

consideraccedilatildeo das coisas independente do princiacutepio de razatildeo em oposiccedilatildeo

justamente agrave consideraccedilatildeo que o segue que eacute o caminho da experiecircncia e

da ciecircncia O modo de consideraccedilatildeo que seque o princiacutepio de razatildeo eacute o

racional o uacutenico que vale e que auxilia na vida praacutetica e na ciecircncia o

modo apartado do conteuacutedo do princiacutepio de razatildeo eacute o genial o uacutenico que

vale e que auxilia na arte (MB 59)

No caso da trageacutedia cujo objetivo eacute o conhecimento do homem e de suas relaccedilotildees a

ciecircncia que mais se assemelha a esta forma artiacutestica seria a histoacuteria Esta natildeo tem como

objetivo a demonstraccedilatildeo da essecircncia do homem em sua forma atemporal ou seja a

demonstraccedilatildeo daquilo que fundamenta toda accedilatildeo humana independente dos

acontecimentos empiacutericos

[ ]toda ciecircncia no sentido proacuteprio do termo compreendida como

conhecimento sistemaacutetico guiado pelo fio condutor do princiacutepio de

razatildeo parte sempre de dois dados baacutesicos um deles sem exceccedilatildeo eacute o

princiacutepio de razatildeo em uma de suas figuras como oacuterganon outro eacute o

objeto especiacutefico de cada uma delas enquanto problema (Schopenhauer

MVR 73)

Desta forma a histoacuteria teria a lei de motivaccedilatildeo e o os fatos humanos como oacuterganon e

problemas respectivamente Entretanto interessa a Schopenhauer um conhecimento

mais universal que soacute pode ser apresentado pela arte e que aponta por sua proximidade

agrave essecircncia daquilo que eacute a uma ldquoiacutendole imutaacutevelrdquo das manifestaccedilotildees

Podemos ver entatildeo que sendo consideradas como meios para o

conhecimento da essecircncia da humanidade arte poeacutetica e histoacuteria possuem todavia

objetos de conhecimento diferentes A primeira quando produzida pelo verdadeiro

gecircnio tenciona manifestar a ideacuteia por traacutes destes conceitos a ideacuteia de homem de

humanidade intuitivamente independentemente do princiacutepio de razatildeo do devir como

52

objeto puro de conhecimento alheio agrave corrente dos motivos em suas caracteriacutesticas

essenciais atemporais A histoacuteria por sua vez segue o rastro do princiacutepio de razatildeo

procurando apresentar o fenocircmeno humano em suas relaccedilotildees descrever-lhe em suas

situaccedilotildees particulares individuais empiacutericas Nas palavras de Schopenhauer

Arte e ciecircncia tecircm em uacuteltima instacircncia o mesmo estofo a saber

justamente o mundo tal como ele se posta diante de noacutes ou antes uma

parte destacada dele quanto ao todo do mundo soacute a filosofia o

considera Contudo a grande diferenccedila entre ciecircncia e arte reside na

maneira como elas consideram o mundo e trabalham seu estofo Tal

oposiccedilatildeo pode ser indicada com uma palavra a ciecircncia considera os

fenocircmenos do mundo seguindo o fio condutor do princiacutepio de razatildeo ao

passo que a arte coloca totalmente de lado o princiacutepio de razatildeo

independente dele para que assim a ideacuteia entre em cena

(SCHOPENHAUER MB 57)

Podemos notar que a valorizaccedilatildeo do que eacute imutaacutevel alheio agrave idealidade do tempo eacute a

raiz da valorizaccedilatildeo do conhecimento artiacutestico frente ao histoacuterico Este uacuteltimo natildeo visa o

acesso aos modelos eternos pois seu objeto satildeo os acontecimentos individuais do

mundo fenomecircnico que satildeo eventos meramente aparentes se considerarmos a

idealidade do tempo O que se manifesta no fluxo temporal do mundo fenomecircnico satildeo

sempre as mesmas formas eternas as ideacuteias entretanto com roupagens diferentes o

mesmo homem enquanto objetivaccedilatildeo da vontade a mesma humanidade Onde quer que

seja e em qualquer momento especiacutefico sua essecircncia eacute a mesma e esta essecircncia eacute o que

deve ser alvo de uma compreensatildeo privilegiada de entendimento e natildeo as suas diversas

manifestaccedilotildees Por este motivo Schopenhauer deixando explicito o seu chamado anti-

historicismo afirma que ldquose algueacutem jaacute lera Heroacutedoto jaacute estudara bastante histoacuteria e

efeitos filosoacuteficos Pois laacute jaacute estaacute tudo o que compotildee a posterior histoacuteria mundial a

atividade o obrar o sofrimento e o destino do gecircnero humano (Schopenhauer MVR

II 496) Podemos notar claramente a oposiccedilatildeo entre a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana

da histoacuteria e as tendecircncias de seu tempo principalmente presentes na filosofia de

Hegel Este de acordo com a criacutetica de Schopenhauer ignorando a filosofia critica de

53

Kant toma o fenocircmeno histoacuterico como coisa em si ao atribuir-lhe uma unidade de

consciecircncia Entretanto unidade de consciecircncia eacute um atributo dos indiviacuteduos e natildeo do

gecircnero humano Estas filosofias de acordo com o Schopenhauer satildeo frutos do realismo

otimista queldquo tomam o mundo como perfeitamente real e potildeem como fim do mesmo

uma miseraacutevel felicidade terrena (Schopenhauer MVR II 495)

- - - - - - - - - -

Colocando de lado o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e mirando-se no

conhecimento da ideacuteia imutaacutevel atemporal encontramos a trageacutedia como fenocircmeno que

apresenta agrave intuiccedilatildeo o homem e sua condiccedilatildeo Eacute a forma de arte que tem como objeto o

grau mais elevado de objetivaccedilatildeo da vontade A intenccedilatildeo do artista traacutegico eacute de acordo

com Schopenhauer transmitir a ideacuteia intuiacuteda tarefa que seraacute bem sucedida de acordo

com a habilidade de utilizaccedilatildeo da teacutecnica artiacutestica por um lado e com a capacidade de

percepccedilatildeo esteacutetica do apreciador por outro O tragedioacutegrafo diferentemente do

historiador que relata os fatos empiacutericos explicitando seus motivos e consequumlecircncias

deve para obter o efeito esperado em sua obra expor uma situaccedilatildeo tal em que o homem

possa manifestar todas as suas potencialidades e dessa forma transmitir ao apreciador

esteacutetico a ideacuteia representada ldquoO poeta expotildee com escolha e intenccedilatildeo caracteres

significativos em situaccedilotildees significativas jaacute o historiador toma aos dois como eles

aparecemrdquo (Schopenhauer MVR 323) A qualidade da obra traacutegica seraacute julgada entatildeo

pela sua capacidade de representaccedilatildeo da ideacuteia de humanidade e Schopenhauer qualifica

as trageacutedias de acordo com esta capacidade Natildeo existe em seu sistema uma

consideraccedilatildeo histoacuterica da produccedilatildeo traacutegica Ele natildeo leva em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees

histoacutericas no que se refere agrave origem ou mesmo quanto ao desenvolvimento desta forma

artiacutestica e a avalia unicamente conforme o seu efeito E neste ponto a trageacutedia apresenta

uma peculiaridade frente agraves demais artes ela eacute a forma de arte que provocaraacute o

54

sentimento do sublime Como vimos o correlato subjetivo de toda apreciaccedilatildeo esteacutetica eacute

o sentimento causado pela anulaccedilatildeo da vontade individual mediante a elevaccedilatildeo ao

estado de puro sujeito de conhecimento O sublime assim como o belo satildeo expressotildees

deste sentimento que se diferenciam unicamente por sua forma

Se tal estado surgiu por si mesmo na medida em que o objeto foi

solicitado e se apresentou ndash e fomos postos sem resistecircncia pelo mero

desaparecer da vontade da consciecircncia no estado do conhecer puro ndash ou

se primeiro foi despertado por elevaccedilatildeo livre consciente sobre a vontade

na medida em que o objeto contemplado tem com esta uma relaccedilatildeo

desfavoraacutevel hostil cuja prossecuccedilatildeo suprimiria a contemplaccedilatildeo ndash aiacute

reside a diferenccedila entre o belo e o sublime (MB 119)

A impressatildeo do sublime eacute portanto uma forma de colocar-se no estado do puro conhecer

ao nos depararmos com o objeto que por sua apresentaccedilatildeo sugere uma ldquorelaccedilatildeo hostilrdquo

com o indiviacuteduo27

Jaacute vimos que a visatildeo de mundo de Schopenhauer identifica a vida humana como

sofrimento infindaacutevel no entanto ao elaborar sua definiccedilatildeo da trageacutedia Schopenhauer

aponta para o desfecho moral de sua obra (livro IV de MVR) e afirma que a trageacutedia

melhor eacute aquela que expotildee a renuacutencia agrave vida O filoacutesofo compara obras contemporacircneas

agraves antigas e afirma sua preferecircncia por estas em decorrecircncia da capacidade que elas tecircm

de provocar esta a renuacutencia agrave vida Vejamos a descriccedilatildeo que Schopenhauer faz da

trageacutedia

No aacutepice da arte poeacutetica tanto no que se refere agrave grandeza do seu

efeito quanto agrave dificuldade da sua realizaccedilatildeo deve-se ver a trageacutedia e de

fato ela assim foi reconhecida Observe-se aqui algo de suma significaccedilatildeo

para toda a nossa visatildeo geral de mundo o objetivo dessa suprema

realizaccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute outro senatildeo a exposiccedilatildeo do lado terriacutevel da vida

27

Vemos na teoria do sublime Schopenhaueriana mais uma vez a influecircncia de Kant Schopenhauer iraacute

identificar duas formas de sublime e utilizar-se-aacute dos termos kantianos ldquosublime dinacircmicordquo e ldquosublime

matemaacuteticordquo para diferenciaacute-los No primeiro o objeto de apreciaccedilatildeo se mostra a princiacutepio uma ameaccedila

ao observador ldquoum poder que suprimiria qualquer resistecircnciardquo(MB 104) No sublime matemaacutetico o

segundo o objeto eacute visto em sua incomensuraacutevel grandiosidade diante da qual o observador infere a sua

infimidade A afinidade entre Schopenhauer e a teoria criacutetica do juiacutezo eacute expressa em sua obra principal

ldquoDe longe o que haacute de mais excelente na criacutetica da faculdade de juiacutezo eacute a teoria do sublime Ela eacute

incomparavelmente mais bem sucedida que a teoria do belo e daacute natildeo apenas como esta o meacutetodo geral

da investigaccedilatildeo mas tambeacutem um trecho do correto caminho de maneira que embora natildeo forneccedila a

soluccedilatildeo propriamente dita do problema chega bem perto delardquo(MVR 660)

55

a saber o inominado sofrimento a miseacuteria humana o triunfo da maldade

o impeacuterio ciacutenico do acaso a queda inevitaacutevel do justo e do inocente E

em tudo isso se encontra uma indicaccedilatildeo significativa da iacutendole do mundo

e da existecircncia Eacute o conflito da Vontade consigo mesma que aqui

desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade entra em

cena de maneira aterrorizante Ele se torna visiacutevel no sofrimento da

humanidade em parte produzido por acaso e erro que se apresentam

como os senhores do mundo e personificados como destino e perfiacutedia os

quais aparecem enquanto intencionalidade em parte advindo da

humanidade mesma por meio dos entrecruzados esforccedilos voluntaacuterios dos

indiviacuteduos e da maldade e perversatildeo da maioria Trata-se de uma uacutenica e

mesma Vontade que em todos vive e aparece cujos fenocircmenos

entretanto combatem entre si e se entredevoram [] Por fim esse

conhecimento no indiviacuteduo purificado e enobrecido pelo sofrimento

mesmo atinge o ponto no qual o fenocircmeno o veacuteu de maia natildeo mais o

ilude Ele vecirc atraveacutes da forma do fenocircmeno do principium

individuationis com o que tambeacutem expira o egoiacutesmo nele baseado Com

isso os ateacute entatildeo poderosos MOTIVOS perdem o seu poder e em vez

deles o conhecimento perfeito da essecircncia do mundo atuando como

quietivo da vontade produz a resignaccedilatildeo a renuacutencia natildeo apenas da vida

mas de toda a vontade de vida mesma (Schopenhauer MVR 333)

Percebemos nesta descriccedilatildeo que a trageacutedia aleacutem de expor a visatildeo de mundo construiacuteda

pelo filoacutesofo tem como fim uacuteltimo provocar um efeito moral no apreciador esteacutetico

qual seja a renuacutencia ao mundo Vejamos entatildeo a relaccedilatildeo entre a visatildeo de mundo

schopenhaueriana o efeito esteacutetico provocado pela trageacutedia e o projeto moral existente

por traacutes de suas teorias

24 A finalidade moral da trageacutedia

Para que possamos perceber a relaccedilatildeo intriacutenseca entre cosmologia metafiacutesica

arte e a eacutetica faz-se necessaacuterio uma pequena excursatildeo sobre esta uacuteltima Que todo o

sistema schopenhaueriano possui um viacutenculo inseparaacutevel com o seu projeto eacutetico eacute fato

que natildeo passa despercebido a seus comentadores Um projeto de juventude eacute descrito

por Safranski (1991 188-198) Young (2006 07 200) Aramayo (2001 56-59) e

Cartwright (Janaway 1999 252) como uma premissa no desenvolvimento da filosofia

56

schopenhaueriana trata-se do projeto de uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Young a descreve

como uma transcendecircncia do mundo ordinaacuterio para o ldquomundo verdadeirordquo Esta

consciecircncia melhor poderia ser experimentada atraveacutes da apreciaccedilatildeo artiacutestica e da

consciecircncia eacutetica ambas originadas do desvelamento de maia Assim Schopenhauer a

descreve conforme citaccedilatildeo de Young (2006 9) ldquopersonalidade e causalidade existem

neste mundo compreensiacutevel temporal sensorial Mas a consciecircncia melhor me leva a

um mundo onde nem personalidade nem sujeito ou objeto existem maisrdquo Safransky

descreve a consciecircncia melhor como um estado semelhante ao ecircxtase miacutestico

Este arrebatamento estaacute livre das coordenadas espaccedilo-temporais

cujo ponto de interseccedilatildeo eacute o eu corporal apartado do espaccedilo do tempo

do eu Os miacutesticos chamam a esta experiecircncia ldquonunc stansrdquo agora

permanente A intensidade deste presente natildeo conhece princiacutepio nem fim

e soacute pode desaparecer porque noacutes desaparecemos dele (Safransky1991

190)

Conforme Aramayo tanto a figura do gecircnio como a do santo satildeo expressotildees do

reconhecimento desta consciecircncia melhor e a filosofia de Schopenhauer pretende-se

uma terceira via que tambeacutem apontaria para este estado de consciecircncia A caracteriacutestica

primordial deste estado eacute o desprendimento dos desejos individuais e o comportamento

virtuoso que adveacutem deste desprendimento Eacute na esteira do entendimento desta

consciecircncia melhor que as bases eacutetico-metafiacutesicas do filoacutesofo foram elaboradas Em

apoio a esta afirmaccedilatildeo Aramayo apresenta duas citaccedilotildees a partir das quais em

momentos distintos de sua vida Schopenhauer apresenta seu projeto de identificaccedilatildeo

entre eacutetica e metafiacutesica Nos escritos de Juventude em 1813 vemos o projeto

Em meu espiacuterito encontra-se em gestaccedilatildeo uma filosofia onde

metafiacutesica e eacutetica devem constituir uma soacute coisa cuja dissociaccedilatildeo eacute tatildeo

errocircnea como agrave da alma e do corpo (Aramayo 2001 41)

Jaacute nos escritos tardios especificamente em seu ensaio de 1836 Sobre a vontade na

natureza veremos Schopenhauer identificar esta uniatildeo

57

Tatildeo soacute esta metafiacutesica que jaacute eacute eacutetica por si soacute ao estar construiacuteda

com esse material primordialmente eacutetico que se supotildee a vontade

constitui real e imediatamente um sustentaacuteculo para a eacutetica em vista de

que poderia haver colocado em minha metafiacutesica o nome de eacutetica (apud

Aramayo 2001 43)

Cartwright aponta ainda na uacuteltima obra schopenhaueriana de 1851 Parerga e

paralipomena a afirmaccedilatildeo de que a ldquosua real filosofia culminou em um ponto de vista

altamente eacutetico-metafiacutesicordquo (Janaway 1999 252)

Na filosofia schopenhaueriana como vimos o indiviacuteduo humano eacute uma

expressatildeo da objetidade da vontade e seu ponto de partida por natureza eacute a satisfaccedilatildeo

manutenccedilatildeo e o prolongamento desta vontade de vida Este estado de consciecircncia onde

todos os esforccedilos estatildeo voltados para a satisfaccedilatildeo da vontade individual eacute a causa de

todo o sofrimento do mundo Aprisionado agrave perspectiva fenomecircnica do mundo o

homem natildeo percebe a unidade da vontade e age de acordo com os motivos estabelecidos

pela sua proacutepria individualidade Para este homem existe uma separaccedilatildeo profunda entre

o proacuteprio eu e os objetos do mundo

Por meio da intuiccedilatildeo que o ceacuterebro efetua a partir dos dados do sentido

e portanto mediatamente conhecemos o proacuteprio corpo como um objeto no

espaccedilo e por meio do sentido interno conhecemos a seacuterie sucessiva de nossos

desejos e atos de vontade que surgem por ocasiatildeo dos motivos externos e

finalmente conhecemos os muacuteltiplos movimentos fortes ou fracos da proacutepria

vontade aos quais todos os sentimentos internos deixam-se reconduzir Isto eacute

tudo pois o conhecer natildeo eacute ele proacuteprio de novo conhecido (Schopenhauer

2001 213)

Eacute deste estado que surge todo o comportamento humano considerado pelo filoacutesofo

como comportamento antimoral Egoiacutesmo eacute o nome dado ao resultado da influecircncia do

princiacutepio de individuaccedilatildeo sobre o comportamento dos homens Este egoiacutesmo chega ao

extremo de o homem considerar-se o centro do mundo e transformar o seu querer em

mandamento para os objetos exteriores ldquoalguns homens seriam capazes de assassinar

um outro soacute para engraxar suas botas com a gordura delerdquo (SFM 124) Nestas

58

condiccedilotildees ldquose fosse dado pois a um indiviacuteduo escolher entre a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo

e a do mundo nem preciso dizer para onde a maioria se inclinariardquo (SFM 121) Da

forma como ocorre com o egoiacutesmo a ilusatildeo fenomecircnica daacute origem a outro sentimento

o oacutedio Estes dois egoiacutesmo e oacutedio satildeo os princiacutepios originadores de todos os viacutecios do

homem Desta leitura pessimista da natureza humana Schopenhauer retira seu conceito

perspectivista das ideacuteias de bem e mal satildeo consideradas boas ou maacutes as coisas que

agradam ou desagradam agrave vontade do indiviacuteduo ldquoPortanto tudo o que eacute favoraacutevel agrave

vontade em alguma de suas exteriorizaccedilotildees e satisfaz seus fins eacute pensado pelo conceito

bom por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectosrdquo (MVR 459)

Este estado eacute definido por Schopenhauer como ldquoafirmaccedilatildeo da vontaderdquo nele o amor-

proacuteprio Eros dita as regras de comportamento Definido o Eros enquanto

fundamentador das accedilotildees antimorais humanas sendo este surgido de uma percepccedilatildeo

subordinada ao principium individuationis entendemos o motivo pelo qual o filoacutesofo

rejeita a validade de qualquer moral baseada em argumentos abstratos

Uma moral sem fundaccedilatildeo portanto um simples moralizar natildeo pode

fazer efeito pois natildeo motiva Uma moral entretanto que motiva soacute pode fazecirc-

lo atuando sobre o amor proacuteprio O que entretanto nasce daiacute natildeo tem valor

moral algum Segue-se assim que mediante moral e conhecimento abstrato em

geral nenhuma virtude autecircntica pode fazer efeito mas esta tem de brotar do

conhecimento intuitivo o qual reconhece no outro indiviacuteduo a mesma essecircncia

que a proacutepria (MVR 468)

Desta forma em contraposiccedilatildeo ao comportamento antimoral produzido

pela ilusatildeo causada pelo principium individuationis o filoacutesofo apresenta o outro lado da

moeda a accedilatildeo moral Esta seria a accedilatildeo praticada em funccedilatildeo do bem-estar de um outro

indiviacuteduo tendo em vista que as accedilotildees praticadas em funccedilatildeo do mal-estar do outro ou

do bem e mal estar de si mesmo satildeo justamente as accedilotildees antimorais baseadas no

egoiacutesmo ou no oacutedio ldquoTodo amor que natildeo eacute compaixatildeo eacute amor-proacuteprio Amor-proacuteprio eacute

59

Eros compaixatildeo eacute Aacutegaperdquo (MVR 478) Todo ato moral eacute por consequumlecircncia um ato de

compaixatildeo ou seja um ato que eacute praticado a partir da percepccedilatildeo do sofrimento do

outro Entretanto a percepccedilatildeo do sofrimento alheio natildeo eacute dada atraveacutes do conhecimento

abstrato E somente por uma percepccedilatildeo intuitiva direta do sofrimento do outro como o

meu proacuteprio sofrimento que surge a compaixatildeo Tal percepccedilatildeo assim como a

apreciaccedilatildeo esteacutetica tem origem em uma visatildeo que vai aleacutem do principium

individuationis Desfaz-se a ilusatildeo causada por este princiacutepio de que existe em realidade

um eu e um natildeo-eu ilusatildeo essa que eacute originada pelos condicionantes do conhecimento

tempo espaccedilo e causalidade Livre do principium individuationis natildeo haacute mais

diversidade natildeo existe mais indiviacuteduo passado futuro motivaccedilotildees existe apenas o

instante presente do ser a vontade Natildeo nos vemos mais como uma vontade separada de

outras ao contraacuterio vemos nos outros a mesma vontade pela qual somos Necessaacuterio

faz-se ressaltar que este conhecimento intuitivo que demonstra a unidade da vontade

em todo indiviacuteduo eacute entendimento de verdade tatildeo profundo que supera qualquer

especulaccedilatildeo abstrata do conhecimento e por isso seu efeito eacute marcante

Para o conhecimento que vecirc atraveacutes do principium individuationis uma

vida feliz no tempo presenteada pelo acaso ou conquistada deste pela

sabedoria em meio ao sofrimento de inumeraacuteveis outros eacute apenas um sonho de

mendigo no qual eacute um rei poreacutem tem de acordar e reconhecer que era tatildeo-soacute

uma ilusatildeo fugidia aquilo que o separava do sofrimento da sua vida (MVR

452)

A experimentaccedilatildeo deste estado de consciecircncia faz-nos perceber a vida como engano

luta infinita e provoca em noacutes a renuacutencia a esta mesma vida agrave vontade de viver O

homem natildeo mais afirma a sua essecircncia mas a repudia

Agrave semelhanccedila do estado de negaccedilatildeo da vontade o proacuteprio estado de

contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee um desinteresse pelos mandamentos da vontade

60

individual um desligamento do caraacuteter egoiacutestico do sujeito empiacuterico28

Para que possa

perceber a Ideacuteia por traacutes do objeto contemplado o observador deve estar em um estado

de consciecircncia que se vecirc livre dos grilhotildees da vontade Neste estado ele eacute alccedilado para

aleacutem da individualidade torna-se puro sujeito de conhecimento Para que este estado se

manifeste eacute imprescindiacutevel natildeo estar interessado nas relaccedilotildees do objeto apreciado seja

com outros objetos seja consigo mesmo O apreciador esteacutetico natildeo se preocupa com o

ldquoonderdquo o ldquocomordquo o ldquoporquecircrdquo dos objetos Estas formas de interjeiccedilatildeo sinalizam para a

relaccedilatildeo dos objetos com o mundo O apreciador esteacutetico no momento da apreciaccedilatildeo

tem em vista somente o ldquoquerdquo do objeto transforma-se em um ldquoolho que vecircrdquo livre do

princiacutepio de individuaccedilatildeo eacute o puro sujeito de conhecimento Vemos nestes dois estados

(o esteacutetico e o compassivo) exemplos de estados de consciecircncia que por suas

caracteriacutesticas de alccedilarem o indiviacuteduo a uma anulaccedilatildeo do sofrimento fazem parte do

projeto de juventude de estabelecer uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Percebemos entatildeo que a

consideraccedilatildeo esteacutetica e a consideraccedilatildeo eacutetica possuem em comum esta caracteriacutestica da

consciecircncia de se apartar do princiacutepio de individuaccedilatildeo

No caso da trageacutedia como descreve Schopenhauer seu fim uacuteltimo eacute despertar a

compaixatildeo no apreciador Desta forma o filoacutesofo associa agrave trageacutedia um efeito singular e

adverso das demais artes ou pelo menos reconhece na trageacutedia a arte capaz de

demonstrar a semelhanccedila entre os modos de consideraccedilatildeo artiacutestico e eacutetico Ao ilustrar o

conflito das vontades no mundo atraveacutes da exposiccedilatildeo do sofrimento humano a trageacutedia

cumpre seu papel artiacutestico ao expor a ideacuteia de humanidade Aleacutem deste atributo

podemos dizer que a trageacutedia tem que cumprir ainda seu papel moral ao causar no

28

Neste ponto de semelhanccedila eacute fundamental apontar mais uma vez a heranccedila kantiana Nas palavras de

Barboza (2001 82) ldquoA negaccedilatildeo da Vontade diante da beleza realmente obedece a uma leitura do

conceito criacutetico de desinteresse Quando Kant diz que o belo eacute aquilo que satisfaz bdquosem nenhum

interesse‟ o autor de O mundo leu essa expressatildeo como equivalente da negaccedilatildeo do querer visto que

interesse e motivo satildeo conceitos intercambiaacuteveis [] e a vontade neutraliza-se desinteressa-se ou seja eacute

indeterminaacutevel por motivos na contemplaccedilatildeo da Ideacuteia do belordquo

61

espectador a renuacutencia a toda vontade O modelo exemplar da trageacutedia eacute para

Schopenhauer a trageacutedia cristatilde onde o heroacutei conscientemente abandona o querer e

conseguintemente a vida Na trageacutedia antiga havia somente a identificaccedilatildeo do

sofrimento humano e sua exposiccedilatildeo A renuacutencia agrave vontade de vida eacute caracteriacutestica das

trageacutedias posteriores ao advento cristatildeo Schopenhauer exemplifica O priacutencipe de

Calderoacuten Gretchen em Fausto A Donzela de Orleans a Noiva de Messina etc Assim

ldquotoda a exposiccedilatildeo traacutegica eacute para o espectador um chamado agrave resignaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo livre

da Vontade de vida Somente a eacutetica pode tornar tudo isso mais compreensiacutevelrdquo (MB

223) Vemos entatildeo de forma clara na teoria da trageacutedia de Schopenhauer um momento

onde ocorre a coalizatildeo dos fundamentos metafiacutesicos de sua filosofia do pessimismo

originado nestes fundamentos e da atitude eacutetica existente por traacutes de seu pensamento

25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera

Faz-se necessaacuterio aqui uma incursatildeo sobre a teoria da muacutesica de Schopenhauer

tendo em vista de que ela ocuparaacute um papel decisivo na teoria nietzscheana da trageacutedia

As relaccedilotildees que Nietzsche estabelece entre a muacutesica a vontade as palavras e

finalmente a trageacutedia satildeo delineadas como veremos pela metafiacutesica schopenhaueriana

da muacutesica No intuito de perceber estas relaccedilotildees propomos aqui um breve esboccedilo da

teoria da muacutesica na filosofia de Schopenhauer

A filosofia da muacutesica encontra seu lugar ao final do terceiro livro de MVR bem

como no capiacutetulo 39 dos complementos fechando assim as consideraccedilotildees de

Schopenhauer sobre a metafiacutesica do belo e as artes29

29

Na esteira de Lydia Goehr (Jacquette 1996 200) ressaltamos que tendo em vista a influecircncia que sua

filosofia da muacutesica exerceu sobre o pensamento artiacutestico e filosoacutefico posterior e comparada agrave dimensatildeo

de sua obra as consideraccedilotildees sobre a muacutesica ocupam um espaccedilo diminuto em sua obra

62

Para o filoacutesofo da vontade a muacutesica eacute a arte que pela natureza de seu objeto de

expressatildeo natildeo encontra lugar apropriado dentro do sistema das demais artes Estas

conforme sua competecircncia em traduzir uma determinada objetidade da vontade uma

ideacuteia satildeo classificadas hierarquicamente A muacutesica entretanto figura aleacutem desta

hierarquizaccedilatildeo pois representa o conceitualmente irrepresentaacutevel ldquoa coacutepia de um

modelo que ele mesmo nunca pode ser representado imediatamenterdquo(MVR 338) a

Vontade mesma Esta arte eacute especialmente considerada devido agrave peculiaridade uacutenica de

seu efeito esteacutetico ldquoeacute uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente

sobre o mais iacutentimo do homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele

como se fora uma linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do

mundo intuitivordquo (MVR 336) A muacutesica estaacute aleacutem da intuiccedilatildeo pois representa aquilo

que estaacute aleacutem desta forma agrave semelhanccedila das ideacuteias que satildeo objetivaccedilotildees imediatas da

vontade a muacutesica eacute tambeacutem uma destas objetivaccedilotildees representaccedilatildeo imediata da coisa

em si O que o compositor apresenta atraveacutes da muacutesica eacute a essecircncia mais iacutentima do

mundo em uma ldquolinguagem natildeo compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo

magneacutetico fornece informaccedilotildees sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito

algumrdquo (MVR 342) Por estar em um acircmbito inalcanccedilaacutevel pelo conceito a muacutesica

atraveacutes de sua linguagem arrebata o homem de forma mais marcante e direta e ateacute

mesmo a explanaccedilatildeo sobre a muacutesica estaacute condenada agrave pobreza e agrave insuficiecircncia Desta

forma o filoacutesofo se utilizaraacute de uma analogia para explanar sobre a muacutesica ie

procederaacute a uma explicaccedilatildeo da muacutesica atraveacutes de um paralelismo entre ela as ideacuteias e o

mundo enquanto objetivaccedilotildees da vontade

Esta analogia expressa atraveacutes de diversos exemplos leva em consideraccedilatildeo que

em suas duas formas de objetivaccedilatildeo (o mundo e a muacutesica) a Vontade deixa transparecer

semelhanccedilas Na muacutesica os tons mais graves aproximam-se ao que satildeo no mundo os

63

graus mais baixos de objetivaccedilatildeo da vontade quais sejam a natureza inorgacircnica A lei

da harmonia estabelece que os tons agudos satildeo originados daquele tom mais grave

fundamental Da mesma forma no mundo os corpos tecircm como fonte e sustentaacuteculo a

natureza inorgacircnica ldquoagrave partir da qual tudo se eleva e desenvolverdquo(MB 230) As vozes

intermediaacuterias da melodia que estatildeo entre o baixo fundamental e a voz condutora

correspondem no mundo aos demais graus de objetivaccedilatildeo da vontade na natureza ldquoAs

vozes mais proacuteximas do baixo correspondem aos graus mais baixos ou seja os corpos

ainda inorgacircnicos poreacutem jaacute se exteriorizando de diversas maneiras As vozes mais

elevadas por sua vez representam os reinos vegetal e animalrdquo(MB 231)

O objeto de representaccedilatildeo da muacutesica eacute a Vontade e esta por sua vez eacute

intraduziacutevel atraveacutes das palavras da configuraccedilatildeo racional pois a razatildeo natildeo pode

alcanccedilar sua profundidade Trata-se de ldquouma linguagem universal cuja

compreensibilidade eacute inata e cuja clareza ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo

(MB 228) Diante desta caracteriacutestica cognitiva a muacutesica natildeo deve se inspirar no texto

nas palavras a natildeo ser para ilustraacute-las e conceder-lhes assim significaccedilatildeo mais

profunda A muacutesica natildeo deve ser composta com base em conceitos ou em objetos e

ocorrecircncias do mundo pois trata-se de uma expressatildeo da ordem do essencial do

universal ldquoela eacute a alma mais interior dessas ocorrecircncias sem o corpordquo (MB 235) Os

objetos e situaccedilotildees do mundo satildeo manifestaccedilotildees e portanto sua representaccedilatildeo

conceitual satildeo reproduccedilotildees circunstanciais da essecircncia do mundo expressa pela muacutesica

Daiacute se compreende o fato de a muacutesica realccedilar em cada

pintura sim em cada cena da vida efetiva e do mundo o

aparecimento de uma significaccedilatildeo mais elevada e tanto mais

quanto mais anaacuteloga eacute sua melodia ao espiacuterito iacutentimo do

fenocircmeno dado A muacutesica combina com tudo em todas as

exposiccedilotildees Nada lhe pode ser estranho pois exprime a essecircncia

de todas as coisas Caso se soe uma muacutesica que combine com

alguma cena da vida humana ou da natureza destituiacuteda de

conhecimento ou com alguma accedilatildeo acontecimento ambiente ou

64

alguma imagem ndash entatildeo ela revela o sentido secreto dessa cena e eacute

seu comentaacuterio mais correto e claro (MB 235)

Esta caracteriacutestica que daacute agrave muacutesica um privileacutegio cognitivo sobre as demais formas

artiacutesticas eacute o que delineia as consideraccedilotildees do filoacutesofo sobre a oacutepera30

A oacutepera ideal eacute

portanto aquela onde o livreto estaacute para a muacutesica como um exemplo para um conceito

geral A muacutesica tem a funccedilatildeo de expor ldquoo profundo e misterioso sobre a essecircncia

iacutentimardquo daquilo que a palavra exemplifica O compositor que maior ecircxito conseguiu

neste sentido conforme o filoacutesofo foi Rossini cuja ldquomuacutesica fala tatildeo distinta e

puramente a sua linguagem PROacutePRIA visto que quase natildeo precisa de palavras e por

conseguinte provoca todo o seu efeito mesmo se executada soacute com instrumentosrdquo

(MVR 344)

Vemos entatildeo a muacutesica como a mais profunda das artes cujo efeito eacute o mais

avassalador e que portanto quando conjugada com outras formas de expressatildeo como a

oacutepera deve formar a base e orientar a sua elaboraccedilatildeo Entretanto ao contraacuterio da

trageacutedia cujo fim eacute o estiacutemulo agrave renuacutencia da vontade de viver a muacutesica segundo a

metafiacutesica exposta por Schopenhauer ldquonatildeo faz mais do que agradar a vontade de viver

jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo seus ecircxitos e ao final expressa sua

satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509)

30

ldquoAo adotar esta atitude Schopenhauer transtorna toda a tradiccedilatildeo jaacute secular que havia afirmado natildeo

poucas vezes desde os tempos do nascimento da oacutepera o predomiacutenio da palavra sobre a muacutesica e em

consequumlecircncia a subordinaccedilatildeo desta uacuteltima agrave primeirardquo (Fubini 1988 289)

65

3 A teoria da trageacutedia do Jovem Nietzsche

Debalde espreitamos por uma raiz

vigorosamente ramificada por um pedaccedilo

de terra sadia e feacutertil por toda parte poacute

areia rigidez consunccedilatildeo Aqui um

solitaacuterio desconsolado natildeo poderia escolher

melhor siacutembolo do que o Cavaleiro com a

Morte e o Diabo como Duumlrer o desenhou o

cavaleiro arnesado com o olhar duro

brocircnzeo que sabe tomar o seu caminho

assustador imperturbado por seus

hediondos companheiros e natildeo obstante

desesperanccedilado sozinho com o seu corcel e

o seu catildeo Um tal cavaleiro duumlreriano foi

nosso Schopenhauer faltava-lhe qualquer

esperanccedila mas queria a verdade Natildeo haacute

quem se lhe iguale

(Nietzsche)

Neste capiacutetulo procuraremos apontar primeiramente o modo pelo qual se deu o

encontro entre Nietzsche e a filosofia de Schopenhauer Em um segundo momento

percorreremos o desenvolvimento histoacuterico das produccedilotildees nietzscheanas que

culminaram com a publicaccedilatildeo da obra que caracteriza o primeiro periacuteodo do filoacutesofo

qual seja O nascimento da trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica Concluiremos entatildeo

apresentando um esboccedilo desta obra dando ecircnfase em todos os momentos aos

66

elementos que caracterizam sua teoria da trageacutedia especialmente agravequeles relacionados agrave

metafiacutesica schopenhaueriana da vontade

31 Schopenhauer e o jovem Nietzsche uma breve contextualizaccedilatildeo histoacuterica

Foram nos anos de universidade em Leipzig que Nietzsche se deparou com a

filosofia de Schopenhauer Este periacuteodo entre os anos de 1865 e 1869 eacute especialmente

importante devido ao fato de que nele podemos assistir ao surgimento de alguns

aspectos fundamentais ao projeto filosoacutefico de Nietzsche Janz descreve este periacuteodo

como aquele em que o filoacutesofo estabeleceu ldquoseus encontros espirituais determinantes a

partir dos quais se defrontou consigo mesmo e com sua tarefardquo(1987 151)

O primeiro contato do jovem Nietzsche com o mundo schopenhaueriano deu-se

em meados de outubro de 1865 pouco tempo apoacutes sua chegada a Leipzig O

arrebatamento causado no jovem estudante de filologia pelo encontro com a filosofia

schopenhaueriana eacute descrito por ele apoacutes dois anos da seguinte maneira

Sentia-me naquela eacutepoca desorientado solitaacuterio sem

princiacutepios sem esperanccedilas inconsolado e com algumas

experiecircncias dolorosas e decepccedilotildees Construir uma vida proacutepria e

adequada era para mim uma aspiraccedilatildeo que me ocupava da manhatilde

ateacute a noite No feliz apartamento em que vivia procurava

concentrar-me a mergulhar em mim mesmo e quando me

encontrava com amigos estes eram sempre Mushacke e Von

Gersdorff os quais por sua parte alentavam objetivos muito

semelhantes aos meus Creio que natildeo seraacute difiacutecil imaginar a

impressatildeo que nesta situaccedilatildeo me causou a leitura da obra

principal de Schopenhauer Encontrei um dia este livro no sebo do

velho Rohm Ignorando tudo sobre ele o tomei em minhas matildeos e

me pus a folheaacute-lo Natildeo sei que democircnio me sussurrou bdquoleve este

livro para a casa‟ Aconteceu de compraacute-lo apesar do meu usual

costume de natildeo me precipitar na compra de livros Uma vez em

casa num canto do sofaacute me lancei sobre o tesouro receacutem

adquirido e comecei a deixar que aquele gecircnio eneacutergico e sombrio

influiacutesse sobre mim Em cada linha sua gritava a renuacutencia

negaccedilatildeo resignaccedilatildeo tinha diante de mim um espelho no qual

podia contemplar o mundo a vida e meu proacuteprio acircnimo com uma

67

grandeza deprimente Um espelho desde o qual o olho solar da

arte me mirava desde sua absoluta falta de interesse Vi

enfermidade e cura desterro e refuacutegio inferno e paraiacuteso A

necessidade de autoconhecimento inclusive de auto-

experimentaccedilatildeo apoderou-se de mim com forccedila indomaacutevel

provas daquela mutaccedilatildeo profunda satildeo hoje todavia para mim as

paacuteginas desassossegadas e melancoacutelicas do diaacuterio que agravequela

eacutepoca escrevi com suas auto-acusaccedilotildees inuacuteteis e sua desesperada

busca de salvaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do inteiro nuacutecleo humano Na

medida em que propus a submeter todas as minhas caracteriacutesticas

e aspiraccedilotildees ao tribunal de uma sombria auto-depreciaccedilatildeo minha

atitude estava cheia de amargura possuiacuteda de um oacutedio injusto e

desenfreado contra mim mesmo Nem sequer renunciei agraves

mortificaccedilotildees corporais Obriguei-me com efeito durante

quatorze dias seguidos a deitar-me agraves duas da noite e acordar agraves

seis da manhatilde Uma excitaccedilatildeo nervosa muito singular se apoderou

assim de mim e quem sabe ateacute que grau de loucura haveria

chegado se natildeo tivesse modificado frente agravequele estado de

acircnimo os atrativos da vida da vaidade e o imperativo de retornar

a meus estudos regulares (conforme citaccedilatildeo de Janz 1987 158)

Da citaccedilatildeo podemos inferir a mudanccedila de acircnimo que o encontro com

Schopenhauer provocou A partir daquele momento diversas correspondecircncias datildeo-nos

ainda informaccedilotildees do impacto que a filosofia de Schopenhauer provocou na concepccedilatildeo

de mundo do jovem estudante Em algumas destas correspondecircncias vemos transparecer

a influecircncia atraveacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio schopenhaueriano bem

como das ideacuteias nelas expressas Assim acontece em carta enviada agrave sua matildee e irmatilde

datada de 5 de novembro de 1865 onde ao discorrer acerca da frivolidade da vida

humana o jovem Nietzsche conclui utilizando-se dos argumentos propostos pela eacutetica

schopenhaueriana

Existem dois caminhos ou se esforccedila e se acostuma a ser

o mais limitado que se possa e uma vez que se reduz o maacuteximo

possiacutevel a luz do espiacuterito se busque bens de fortuna e se viva com

os prazeres do mundo ou por outro lado se sabe que a vida eacute

miseraacutevel se sabe que somos seus escravos tanto mais quanto

mais procuramos dela gozar e por tanto se desprende dos bens da

vida exercita a sobriedade e se eacute austero consigo mesmo e cordial

com os demais ndash e isto porque sente compaixatildeo pelos

companheiros de miseacuteria ndash em uma palavra se vive de acordo

68

com as rigorosas exigecircncias do cristianismo primitivo (OC

470)

Vemos ainda em carta a Mushacke em 12 de julho de 1866 o impacto que a

interpretaccedilatildeo schopenhaueriana pessimista de mundo causou em Nietzsche ldquoDesde que

Schopenhauer nos retirou dos olhos a venda do otimismo as coisas satildeo percebidas

mais agudamente A vida eacute mais interessante ainda que mais feiardquo (conforme citaccedilatildeo

de Janz 1987 172) Percebemos tambeacutem a linguagem schopenhaueriana na descriccedilatildeo

dos momentos de contemplaccedilatildeo Eacute o caso da carta datada de 07 de abril de 1866 a

Gersdorf onde Nietzsche descreve seu estado que nos remeteraacute agrave contemplaccedilatildeo

artiacutestica na filosofia de Schopenhauer ao discorrer sobre os dias de veratildeo ldquo[] a

natureza se faz perfeita e noacutes tambeacutem entatildeo nos sentimos livres do poderio da vontade

sempre alerta e somos olho puro intuitivo desinteressadordquo (OC 472)

Estas influecircncias nortearam de forma definitiva as produccedilotildees acadecircmicas de

Nietzsche mesmos suas pesquisas filoloacutegicas A concepccedilatildeo traacutegica do mundo tornou-se

um feixe condutor para as reflexotildees do jovem filoacutelogo Seus companheiros no estudo da

obra de Schopenhauer eram Gersdorff e Mushacke Em carta agrave sua matildee de 01 de

fevereiro de 1866 Nietzsche deixa saber sobre a frequumlecircncia dos estudos ldquoCom

Gersdorff me encontro uma noite por semana para ler grego a cada duas semanas me

reuacuteno com ele e com Mushacke e nos entregamos a Schopenhauer Este filoacutesofo ocupa

uma posiccedilatildeo importante em meus pensamentos e estudos e meu respeito por ele cresce

incomparavelmenterdquo (OC 471) Se o conteuacutedo da filosofia schopenhaueriana foi

absorvido intensamente pelo jovem Nietzsche como podemos ver a partir dos trechos

transcritos acima a forma estiliacutestica tambeacutem se configura como preocupaccedilatildeo Em um

periacuteodo onde as pesquisas acadecircmicas exigiam o esforccedilo da escrita ali tambeacutem a

autoridade das regras schopenhauerianas exibia sua feiccedilatildeo Eacute tambeacutem em uma carta a

69

Gersdorff datada de 06 de abril de 1867 onde Nietzsche expotildee sua preocupaccedilatildeo com o

estilo

Nestas divagaccedilotildees quero redigir meu trabalho sobre as

fontes de Dioacutegenes Laeacutercio e estou todavia no iniacutecio Para seu

regozijo confessarei que o que mais me daacute trabalho eacute meu estilo

em alematildeo Agora me caem os veacuteus dos olhos e vejo que

durante muito tempo vivi em estado de inocecircncia estiliacutestica O

imperativo categoacuterico bdquodeves escrever‟ me foi despertado[] nos

ouvidos me soavam todos os preceitos estiliacutesticos de Lessing de

Lichtenberg e de Schopenhauer Meu uacutenico consolo eacute que estas

trecircs autoridades afirmavam unanimemente que eacute difiacutecil escrever

bem que por natureza ningueacutem tem um bom estilo e que haacute que

trabalhar e trabalhar para consegui-lo (OC 476)

Entretanto apesar do profundo arrebatamento causado pela filosofia de

Schopenhauer que fez com que o universo das preocupaccedilotildees do entatildeo jovem Nietzsche

se fundamentasse nos pressupostos da metafiacutesica schopenhaueriana outros elementos

tambeacutem fundamentais para o pensamento futuro do filoacutesofo foram tambeacutem neste

periacuteodo despertados Como apontam Dias (2009 42) Janaway (2007 16) e Lopes

(2008 27) jaacute neste periacuteodo que podemos tratar como um periacuteodo de despertar para o

pensamento filosoacutefico encontraacutevamos os elementos que a partir de Humano demasiado

humano conformaratildeo a criacutetica nietzscheana agrave filosofia de Schopenhauer Os

comentadores citados chamam a atenccedilatildeo para o fato de que embora nas obras

publicadas de Nietzsche possamos assistir a criacuteticas diretas a Schopenhauer somente

apoacutes Humano demasiado humano tais criacuteticas agrave filosofia schopenhaueriana surgiram

em um momento imediatamente posterior agrave descoberta da metafiacutesica da vontade Rosa

Maria Dias chama a atenccedilatildeo para os fragmentos poacutestumos e para a correspondecircncia que

agrave partir de 1867 trazem algumas criacuteticas agrave metafiacutesica da vontade Rogeacuterio Lopes e

Cristopher Janaway apontam que algumas destas criacuteticas estatildeo embasadas nas leituras

que o jovem Nietzsche fez de Friedrich A Lange Rudolf Haym Kuno Fischer dentre

outros Tais criacuteticas contudo natildeo afastaram o jovem Nietzsche do discipulado

70

schopenhaueriano mas transformaram sua aceitaccedilatildeo do sistema da vontade No lugar de

uma defesa da consistecircncia loacutegica do sistema Nietzsche passou a adotar uma postura de

defesa da bdquonatureza edificante‟ e preponderantemente artiacutestica deste sistema Exemplos

desta postura podem ser encontrados tambeacutem na correspondecircncia daquele periacuteodo

Para escrever uma apologia a Schopenhauer eu tenho

unicamente que considerar o fato de que olho esta vida livre e

bravamente diante do fato de que encontrei um suporte para me

apoiar obviamente que isto natildeo eacute mais que uma apologia

totalmente individual Mas eacute como as coisas satildeo Se algueacutem

deseja refutar Schopenhauer para mim atraveacutes de argumentos

racionais murmuro em seu ouvido bdquoporeacutem meu amigo visotildees de

mundo natildeo satildeo criadas nem destruiacutedas pela loacutegica‟ (carta a

Deussen Outubro-Novembro de 1867 citada por Janaway

(200718))

Ou ainda em carta a Gersdorff onde apoacutes apresentar a criacutetica de Lange agrave metafiacutesica da

vontade Nietzsche conclui contra Haym ainda com os argumentos de Lange

Natildeo apenas a verdadeira essecircncia das coisas a coisa em si

eacute desconhecida para noacutes tambeacutem seu conceito eacute nada mais nada

menos que o uacuteltimo rebento de um contraste condicionado por

nossa organizaccedilatildeo do qual natildeo sabemos se conserva algum

significado fora de nossa experiecircncia Disso resulta pensa Lange

que os filoacutesofos natildeo devem ser importunados na medida em que

nos edificam A arte eacute livre tambeacutem na regiatildeo dos conceitos

Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro

uma Madonna de Rafael Como vocecirc pode perceber o nosso

Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista

criacutetico ele se torna quase ainda mais valioso para noacutes Se filosofia

eacute arte entatildeo que Haym se anule diante de Schopenhauer se a

filosofia deve edificar entatildeo eu pelo menos natildeo conheccedilo nenhum

filoacutesofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer (apud

Lopes 2008 86-87)

Vimos ateacute entatildeo que a descoberta de Schopenhauer provocou no jovem

estudante de filologia transformou sua forma de perceber o mundo e o influenciou de

forma definitiva a ponto de fazer com que Nietzsche se definisse como um seguidor e

divulgador da obra schopenhaueriana Contudo eacute no fim de seus anos de estudo em

Leipzig que o disciacutepulo de Schopenhauer iraacute se defrontar com a personalidade que lhe

71

reforccedilaraacute de forma ainda mais contundente o selo da rotunda schopenhaueriana

Richard Wagner

Foi atraveacutes de seu amigo Brockhaus cuja esposa era irmatilde do muacutesico que em

novembro de 1868 Nietzsche encontrou-se pela primeira vez com Wagner A partir

daquele encontro se estabeleceria um relacionamento que de uma forma ou de outra

marcaraacute Nietzsche pelo resto de sua vida Em uma carta a seu amigo Erwin Rohde

Nietzsche descreve o primeiro encontro e sua perplexidade ao encontrar em Wagner um

admirador de Schopenhauer ldquo[]mantive com ele uma longa conversa sobre

Schopenhauer Ah Compreenderaacutes minha felicidade em ouvir-lhe falar com um

entusiasmo completamente indescritiacutevel ao qual ele agradecia como Schopenhauer

era o uacutenico filoacutesofo que havia compreendido a essecircncia da muacutesicardquo (Correspondecircncia

2007 21) A impressatildeo deste encontro eacute tambeacutem claramente visiacutevel atraveacutes de

correspondecircncia endereccedilada ao proacuteprio Wagner em maio de 1869 ldquoVeneradiacutessimo

senhor quanto tempo tive a intenccedilatildeo de lhe manifestar sem nenhuma timidez o grau de

gratidatildeo que sinto em relaccedilatildeo ao senhor pois realmente os melhores e mais elevados

momentos de minha vida se ligam ao seu nome e eu soacute conheccedilo mais um homem aleacutem

disso seu grande irmatildeo em espiacuterito Arthur Schopenhauer em quem penso com a

mesma veneraccedilatildeo ateacute senso religiosordquo (Correspondecircncia 2007 56) Como podemos

ver a pessoa de Wagner eacute associada agrave de Schopenhauer Esta associaccedilatildeo tornar-se-aacute

uma constante e poderaacute ser identificada ainda na fase tardia onde as criacuteticas a estes

pensadores e ao que eles entatildeo representavam se daraacute de forma inter-relacionada Este

primeiro encontro com Wagner conforme Janz (1987 22) foi um dos principais

motivos que levaram Nietzsche a aceitar em detrimento de outros planos que

formulava assumir a caacutetedra de filologia em Basel A proximidade de Tribschen

residecircncia dos Wagner e a possibilidade de uma convivecircncia com o muacutesico o

72

inspiraram E assim aconteceu Ao mudar-se para Basel pocircde desfrutar de uma

convivecircncia constante com o casal Wagner Desde a chegada de Nietzsche ateacute a

mudanccedila de Wagner em 1872 encontravam-se com muita frequumlecircncia e os assuntos que

pautavam tais encontros eram amiuacutede arte muacutesica a literatura claacutessica e a filosofia de

Schopenhauer Wagner tornar-se-ia para Nietzsche a personificaccedilatildeo do gecircnio

schopenhaueriano aquele capaz de atraveacutes da muacutesica expor a essecircncia do mundo No

projeto wagneriano de ldquoarte totalrdquo Nietzsche pocircde vislumbrar a uniatildeo entre muacutesica e

filosofia e satisfazer assim em certa medida as expectativas oriundas da metafiacutesica da

vontade

32 O projeto subjacente ao Nascimento da Trageacutedia

Eacute famosa a passagem onde Nietzsche em carta a Deussen datada de janeiro de

1870 informa sobre seu estado de espiacuterito ldquo Ciecircncia arte e filosofia crescem agora

juntas em mim e de tal modo que um dia haverei de parir centaurosrdquo (Janz 1981 66)

Esta afirmaccedilatildeo eacute ilustrativa no que se refere ao ambiente onde o Nascimento da trageacutedia

foi gerado Podemos identificar claramente as figuras por detraacutes dos termos filosofia

arte e ciecircncia satildeo elas Schopenhauer Wagner e a filologia claacutessica Neste periacuteodo

Nietzsche entatildeo jovem professor de filologia estava imbuiacutedo pela pretensatildeo de poder

unir os estudos filoloacutegicos aos filosoacuteficos Sua preleccedilatildeo inicial Homero e a filologia

claacutessica em Basel nos daacute uma amostra desta pretensatildeo Ali podemos assistir a uma

aproximaccedilatildeo entre filologia e filosofia atraveacutes da proposta de uma leitura filosoacutefica do

mundo antigo ldquoCom isto quero expressar que toda atividade filoloacutegica deve estar

impregnada de uma concepccedilatildeo filosoacutefica do mundo na qual todo o particular e singular

seja visto como algo sem proveito e soacute permaneccedila de peacute a unidade do todordquo (OC 26)

73

Sua escolha por trilhar caminhos mais proacuteximos agrave filosofia pode tambeacutem ser observada

pela tentativa frustrada de ocupar uma cadeira desta disciplina que se mostrou livre em

janeiro de 1871 Se por um lado podemos diagnosticar certa decepccedilatildeo e ateacute um

determinado desacircnimo na atividade acadecircmica por outro lado os laccedilos com os Wagner

se estreitavam cada vez mais No refuacutegio de Tribschen sob a aura de Richard Wagner

Nietzsche discorria sobre o mundo grego enquanto modelo de cultura e ouvia os planos

wagnerianos sobre seu projeto de uma obra de arte total Como pano de fundo destas

discussotildees a metafiacutesica da muacutesica schopenhaueriana e sua concepccedilatildeo traacutegica do mundo

Eacute em torno destes eixos formadores que vemos se materializar a primeira publicaccedilatildeo de

Nietzsche

O desenvolvimento das ideacuteias que formaratildeo a obra contudo se deu de forma

gradual Ao longo do periacuteodo compreendido entre a chegada de Nietzsche a Basel e a

publicaccedilatildeo de seu livro determinados trabalhos deixam transparecer o delineamento de

algumas das ideacuteias centrais da obra Satildeo eles O drama musical grego Soacutecrates e a

trageacutedia A visatildeo dionisiacuteaca do mundo e Introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles31

Em o drama musical grego conferecircncia puacuteblica datada de janeiro de 1870

Nietzsche efetua uma comparaccedilatildeo entre a arte traacutegica da antiguidade e as oacuteperas

modernas Estas de acordo com o filoacutesofo satildeo uma imperfeita ldquocaricatura do drama

musical antigordquo (VD 48) Muacutesica pintura escultura e poesia formavam um todo na

arte traacutegica da antiguidade Nas artes modernas por sua vez as formas artiacutesticas satildeo

fragmentadas fato que dificulta o entendimento da trageacutedia grega e que causaria

espanto ao apreciador de arte moderno A muacutesica teria para a trageacutedia antiga uma

31

Como ressaltam M S Silk e J P Stern em sua obra Nietzsche on tragedy (1981 59) o nascimento da

trageacutedia eacute composto de forma estrutural pelos conceitos encontrados nestes trabalhos O iniacutecio do livro

(sectsect1-10) eacute substancialmente baseado no ensaio a visatildeo dionisiacuteaca do mundo enquanto a sequumlecircncia

composta pelos paraacutegrafos 5 e 6 estaacute mais proacutexima da introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles O trecho

composto pelos paraacutegrafos 11 a 14 pode ser derivado diretamente da leitura Soacutecrates e a trageacutedia O resto

do livro eacute formado por uma amaacutelgama destes escritos Partes dispersas ainda satildeo formadas pelo ensaio do

drama musical grego

74

importacircncia capital como elemento intensificador de seu efeito Podemos ver a intenccedilatildeo

por traacutes da anaacutelise nietzscheana da trageacutedia antiga em comparaccedilatildeo agrave opera Ao final da

conferecircncia no elogio que confere a Wagner o tiacutetulo de ldquoatual reformador da arterdquo bem

como na descriccedilatildeo de seu projeto de arte total retratado como um acontecimento que jaacute

teve lugar na trageacutedia da antiguidade claacutessica Nietzsche deixa claro seu engajamento ao

projeto wagneriano

No mecircs seguinte ao da citada conferecircncia uma segunda intitulada Soacutecrates e a

trageacutedia foi proferida por Nietzsche O assunto em pauta era a morte repentina da

trageacutedia grega Esta morte teria ocorrido pelas matildeos de Euriacutepides apoacutes uma decadecircncia

iniciada nos uacuteltimos periacuteodos das produccedilotildees de Eacutesquilo passando por Soacutefocles e

culminando com o advento da comeacutedia Tal decadecircncia teria sido provocada pela saiacuteda

de cena da muacutesica que de forma progressiva foi substituiacuteda pelo diaacutelogo racionalista

Soacutecrates ocupa aqui um lugar importante Eacute sua influecircncia sobre Euriacutepides que

transforma de uma forma definitiva a arte instintivamente musical da trageacutedia em uma

manifestaccedilatildeo do discurso eacutetico racionalista Esta ldquoesteacutetica racionalista e conscienterdquo

pode ser identificada no proacutelogo euripidiano e na inserccedilatildeo do deus ex machina

enquanto agentes de racionalizaccedilatildeo da obra artiacutestica A trageacutedia de Euriacutepides teria

assumido assim os pressupostos do racionalismo socraacuteticos ldquoVirtude eacute saber peca-se

somente por ignoracircncia O virtuoso eacute felizrdquo (VD 90) Esta assunccedilatildeo que liga a virtude

ao saber impotildee agrave trageacutedia um caraacuteter eacutetico alheio agrave sua caracteriacutestica puramente

esteacutetica O elemento culpa na dialeacutetica socraacutetica toma o lugar que era ocupado pela

compaixatildeo Jaacute podemos perceber nesta conferecircncia o esboccedilo da dicotomia que mais

tarde seraacute ilustrada atraveacutes dos deuses Apolo e Dioniso Os pares formadores da

dicotomia satildeo aqui expressos pela separaccedilatildeo entre instinto e razatildeo muacutesica e discurso

pessimismo e otimismo arte e ciecircncia

75

Temos a primeira referecircncia agrave arte dionisiacuteaca como impulso formador da

trageacutedia e sua contraposiccedilatildeo agrave arte apoliacutenea nas aulas proferidas por Nietzsche no veratildeo

daquele mesmo ano Neste curso sobre a trageacutedia de Soacutefocles do qual temos a

introduccedilatildeo podemos ver o esforccedilo de Nietzsche em caracterizar e apontar as

peculiaridades da trageacutedia da antiguidade que a tornam um fenocircmeno uacutenico em

comparaccedilatildeo agraves trageacutedias modernas Tal discussatildeo demonstraraacute pelos aspectos ali

expostos a aproximaccedilatildeo de Nietzsche com autores do periacuteodo claacutessico alematildeo e

sobretudo da chamada querela entre antigos e modernos Vemos claramente a influecircncia

de Schiller e F A Schlegel em algumas das definiccedilotildees adotadas por Nietzsche

No texto denominado A visatildeo dionisiacuteaca do mundo jaacute podemos assistir a um

desenvolvimento das duas pulsotildees artiacutesticas que satildeo o nuacutecleo da interpretaccedilatildeo

nietzscheana da trageacutedia O apoliacuteneo e o dionisiacuteaco satildeo ali explicados no acircmbito de seu

surgimento no mundo helecircnico e simbolizam a uniatildeo entre verdade e beleza na forma de

arte traacutegica Sua descriccedilatildeo como veremos abaixo estaacute permeada de conceitos retirados

da filosofia schopenhaueriana que vatildeo desde a biparticcedilatildeo do mundo entre verdade e

aparecircncia perpassam as noccedilotildees de belo e sublime e apontam a trageacutedia e a muacutesica como

forma de arte superiores

Em janeiro de 1872 Nietzsche daacute luz a seu ldquoCentaurordquo sob o nome O nascimento

da trageacutedia atraveacutes do espiacuterito da muacutesica Em carta a Rohde datada de 23 de novembro

de 1871 podemos notar atraveacutes da ansiosa expectativa nietzscheana a amaacutelgama

formadora da obra ldquo Temo sempre que os filoacutelogos natildeo o queiram ler por causa da

muacutesica os muacutesicos por causa da filologia e os filoacutesofos por causa da muacutesica e da

filologia e sinto logo medo e compaixatildeo de mim mesmordquo (Correspondecircncia 2007 237)

33 A teoria da trageacutedia publicada

Como escopo geral da primeira obra de Nietzsche podemos dizer na esteira de

Silk e de Stern (1981 52) que ela se propunha a esclarecer o problema do nascimento e

76

da morte da trageacutedia helecircnica Trageacutedia que por sua vez era a expressatildeo artiacutestica que

simbolizava um problema vital o de que sob uma superfiacutecie bela podiacuteamos ter acesso agrave

terriacutevel profundidade do ser Tal forma de arte poderia novamente vir agrave luz por uma

geraccedilatildeo criativa que ao combater a superficialidade moderna que reinava no mundo

germacircnico poderia produzir o renascimento moderno do mundo Helecircnico

Em sua essecircncia o nascimento da trageacutedia aponta para as divindades Apolo e

Dioniacutesio como ldquorepresentantes vivosrdquo de princiacutepios diacutespares que irrompem da proacutepria

natureza e que ao serem conciliados de certa forma tornaram possiacutevel que atraveacutes dos

atritos de tal uniatildeo a trageacutedia grega despontasse como manifestaccedilatildeo artiacutestica exemplar

do sublime Em linhas gerais a arte do ldquofigurador plaacutesticordquo estaria entatildeo associada ao

deus Apolo enquanto a arte ldquonatildeo figuradardquo a da muacutesica estaria associada ao deus

Dioniacutesio O apoliacuteneo eacute um impulso da vontade grega que ao almejar a vida a apresenta

transfiguradamente como um belo sonho plasmado no mundo dos deuses oliacutempicos O

princiacutepio apoliacuteneo seria aquele que estabeleceria a ordem a beleza estaacutetica e a clareza

dos limites O dionisiacuteaco eacute oriundo das festas do oriente e seu efeito eacute comparado ao da

embriaguecircs A ele cabe a sabedoria profunda da essecircncia da vida lugar do acaso do

impermanente do horriacutevel e do sofrimento A Apolo eacute facultado tecer o veacuteu que

encobre a sabedoria dionisiacuteaca e torna a vida suportaacutevel atraveacutes da ilusatildeo do sonho

Assim segundo Nietzsche o desenvolvimento contiacutenuo da arte estaacute vinculado agrave

duplicidade dos princiacutepios apoliacuteneo e dionisiacuteaco Perfazendo um caminho histoacuterico da

cultura grega podemos notar uma sobreposiccedilatildeo intermitente entre os impulsos divinos

Temos momentos onde o impulso apoliacuteneo se mostrou dominante e outros onde

Dioniacutesio recupera seu predomiacutenio O mundo oliacutempico homeacuterico com sua arte eacutepica e

sua escultura do periacuteodo doacuterico nascem a partir de uma necessidade de redenccedilatildeo para a

realidade de horror e sofrimento que o povo helecircnico presenciava Em substituiccedilatildeo ao

77

mundo titacircnico temos o mundo dos deuses oliacutempicos exemplificadores de uma

existecircncia divinizada que exalta a vida Nas palavras de Nietzsche ldquoo grego conheceu

e sentiu os temores e os horrores do existir para que lhe fosse possiacutevel de algum modo

viver teve de colocar ali entre ele e a vida a resplendente criaccedilatildeo oniacuterica dos deuses

oliacutempicosrdquo (NT 36) Entretanto a sabedoria dionisiacuteaca portadora da visatildeo abismal do

ser natildeo pocircde ser contida por muito tempo e a muacutesica veiacuteculo da uniatildeo orgiaacutestica aos

poucos foi se infiltrando no mundo construiacutedo pelo divino Apolo Os gregos foram se

tornando conscientes de seu estado sonambuacutelico que sob a graccedila do deus Apolo enleva

e transporta pela extraordinaacuteria beleza natural ou esteacutetica Em um estado semelhante ao

do indiviacuteduo que restabelecido em suas forccedilas pelo efeito renovador do sono ao findar

de uma noite comeccedila a ouvir os sons a sua volta e aos poucos vai se despertando da

mesma forma os gregos comeccedilaram novamente a ouvir o sussurro do Sileno

companheiro de Dioniacutesio ldquoo melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter

nascido e natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo

(NT 36) O artista que representa este retorno do dionisiacuteaco com a mesma envergadura

com que Homero representa as forccedilas apoliacuteneas eacute Arquiacuteloco Tomando-o como modelo

do gecircnio liacuterico Nietzsche faz uma descriccedilatildeo de seu processo de criaccedilatildeo Conforme a

metafiacutesica esteacutetica adotada por Nietzsche - que mais agrave frente veremos ser retirada da

esteacutetica schopenhaueriana - toda arte tem que ser objetiva livre dos interesses

individuais Nesta situaccedilatildeo a liacuterica que tem como objeto o eu do poeta seus desejos e

emoccedilotildees natildeo seria uma forma de arte Entretanto atraveacutes de uma descriccedilatildeo que Schiller

faz da inspiraccedilatildeo poeacutetica Nietzsche aponta o caminho para percebermos a liacuterica como

obra de arte e portanto objetivamente Conforme a passagem de Schiller citada por

Nietzsche (NT 44) ldquoo sentimento se me apresenta no comeccedilo sem um objeto claro e

determinado este soacute se forma mais tarde Uma certa disposiccedilatildeo musical de espiacuterito

78

vem primeiro e somente depois eacute que se segue em mim a ideacuteia poeacuteticardquo Desta forma

Arquiacuteloco em seu processo criativo a princiacutepio entraria em um estado de consciecircncia

ou de criaccedilatildeo onde renunciaria agrave sua individualidade e dionisiacamente participaria do

uno-primordial ldquoabismo do serrdquo estado que por sua vez materializa-se atraveacutes da

representaccedilatildeo musical A muacutesica assim produzida seraacute condiccedilatildeo para o surgimento da

inspiraccedilatildeo que a posteriori daraacute nascimento atraveacutes da aplicaccedilatildeo das formas

apoliacuteneas agrave poesia liacuterica geacutermen da trageacutedia e dos ditirambos dramaacuteticos Esta uniatildeo da

poesia liacuterica com a muacutesica eacute uma expressatildeo sinteacutetica da relaccedilatildeo dos deuses Apolo e

Dioniacutesio Eacute no quinto capiacutetulo de sua obra que Nietzsche iraacute tratar da poesia liacuterica

Neste capiacutetulo o filoacutesofo se distancia de Schopenhauer em sua interpretaccedilatildeo do

fenocircmeno liacuterico Para Schopenhauer na citaccedilatildeo reproduzida por Nietzsche (NT 46) a

liacuterica eacute produzida atraveacutes de uma percepccedilatildeo da consciecircncia onde os estados da vontade

individualizada se alternam com o conhecimento objetivo Como vimos o poeta liacuterico

assistiria ao jogo do eu em sua afetaccedilatildeo emocional e descreveria este estado atraveacutes de

sua poesia Nietzsche ao descrever a liacuterica utiliza-se da teoria da muacutesica

schopenhaueriana qual seja o poeta liacuterico produz primeiramente a muacutesica como forma

geral de expressatildeo da vontade mesma e desta produccedilatildeo gera posteriormente o texto que

se torna um exemplificador do evento musical sua forma plaacutestica objetiva A muacutesica eacute

a aparecircncia da vontade e as imagens apoliacuteneas que dela se originaram satildeo conforme seu

espiacuterito A imagem e o conceito satildeo desta forma na liacuterica originados a partir da

muacutesica

Tem-se portanto na trageacutedia grega uma relaccedilatildeo de interdependecircncia que evoca

um aparente paradoxo ndash ou seja ao lado da necessidade esteacutetica da beleza Apolo exige

dos seus a medida (limites fronteiras do indiviacuteduo presentes no ldquonada em demasiardquo) e

o auto-conhecimento necessaacuterio para determinaacute-la (ldquoconhece-te a ti mesmordquo) o

79

desmedido os excessos o dionisiacuteaco seriam identificados pelo apoliacuteneo como

democircnios de uma era preacute-apoliacutenea era dos Titatildes reminiscecircncias de barbarismo O

paradoxo estaacute em que para que o comedimento apoliacuteneo possa existir o desmedido

dionisiacuteaco faz-se necessaacuterio (na linguagem de Nietzsche como ldquosubstratordquo) assim

como para que o desmedido dionisiacuteaco possa existir faz-se necessaacuterio a existecircncia do

comedido do apoliacuteneo Natildeo obstante a trageacutedia grega depende da conjugaccedilatildeo destes

dois princiacutepios para existir ndash indo aleacutem poder-se-ia dizer que a proacutepria muacutesica compotildee

o princiacutepio primeiro que possibilita o surgimento da trageacutedia no jogo das formas

apoliacuteneo A trageacutedia eacute entatildeo definida como ldquoo coro dionisiacuteaco a descarregar-se sempre

de novo em um mundo de imagens apoliacuteneordquo (NT 60)

Em seu iniacutecio a trageacutedia grega era representada pelo coro traacutegico Este coro natildeo

era uma ldquorepresentaccedilatildeo constitucional do povordquo muito menos um espectador ideal

como o queria August Schlegel Nietzsche acompanha Schiller na definiccedilatildeo de que o

coro cria um terreno ideal para a manifestaccedilatildeo da arte O efeito da trageacutedia eacute a

manifestaccedilatildeo de um estado de unidade que transporta ao abismo do ser O coro eacute a

manifestaccedilatildeo deste sentimento da consciecircncia de que por traacutes da vida cotidiana haacute uma

realidade ldquoindestrutivelmente poderosa e cheia de alegriardquo (NT 55) Este eacute o consolo

metafiacutesico propiciado pela arte traacutegica Ao retornarmos deste estado o cotidiano nos

causa asco nojo Natildeo eacute possiacutevel interpretar mais o papel da vida comum A vida soacute

passa a se justificar atraveacutes da arte Perceba-se aiacute que o coro possui um papel

fundamental no processo O coro atua como impulso artiacutestico dionisiacuteaco em

contraposiccedilatildeo agrave forma apoliacutenea ou seja agraves imagens e agrave beleza plaacutestica Assim o

indiviacuteduo atraveacutes do coro tem para si revelado aquele substrato dionisiacuteaco encoberto

pela beleza e comedimento apoliacuteneos isto eacute ao indiviacuteduo era possiacutevel submergir na

80

torrente dionisiacuteaca do auto-esquecimento permitindo-se pocircr de lado os preceitos

apoliacuteneos

E foi assim que em toda parte onde o dionisiacuteaco penetrou o apoliacuteneo

foi suspenso e aniquilado Mas eacute igualmente certo que laacute onde o primeiro

assalto foi suportado o prestiacutegio e a majestade do deus deacutelfico se externaram de

maneira mais riacutegida e ameaccediladora do que nunca(NT 41-42)

De acordo com Nietzsche as trageacutedias eram em seu iniacutecio representaccedilotildees do

sofrimento de Dioniacutesio Mesmo as trageacutedias do periacuteodo aacutetico traziam Dioniacutesio como

heroacutei traacutegico O sofrimento representado era o do despedaccedilamento de Dioniacutesio o deus

que sofreu o padecimento da individuaccedilatildeo causa de todo o sofrer O mito de Dioniacutesio eacute

interpretado aqui sob a luz da filosofia de Schopenhauer que apresenta a individuaccedilatildeo

como fonte do sofrimento ldquoNos pontos de vista aduzidos temos jaacute todas as partes

componentes de uma profunda e pessimista consideraccedilatildeo do mundo e ao mesmo tempo

a doutrina misteriosoacutefica da trageacutedia o conhecimento baacutesico da unidade de tudo o que

existe a consideraccedilatildeo da individuaccedilatildeo como a causa primeira do mal a arte como a

esperanccedila jubilosa de que possa ser rompido o feiticcedilo da individuaccedilatildeo como

pressentimento de uma unidade restabelecidardquo (NT 70)

Contudo ressalta Nietzsche a trageacutedia grega que como vimos desenvolve-se a

partir do embate contiacutenuo entre as representaccedilotildees dos deuses antiacutepodas ndash envolvidos em

um enfrentamento aparentemente sem fim ndash eacute reestruturada por Euriacutepides de forma a

diminuir o impacto do coro ou seja um golpe quase mortal para Dioniacutesio que

agonizante lanccedila matildeo de seus uacuteltimos esforccedilos O que em Euriacutepedes suscitou esta

reestruturaccedilatildeo que conforme Nietzsche eacute responsaacutevel pelo afastamento progressivo do

dionisiacuteaco tem suas origens no que o filoacutesofo chamou de uma ldquotendecircncia socraacuteticardquo O

socratismo euripidiano e a sua nova concepccedilatildeo esteacutetica satildeo as causadoras do

afastamento dos impulsos esteacuteticos primevos o dionisiacuteaco e o apoliacuteneo Em seu lugar o

discurso consciente passa a imperar O deus ex machina e os proacutelogos satildeo exemplos das

81

interferecircncias racionais que datildeo novo tom agrave trageacutedia aacutetica Soacutecrates e seu racionalismo

expulsam da trageacutedia o conhecimento primevo dionisiacuteaco e estabelecem novas regras

esteacuteticas regras racionais que fazem com que o bom sinocircnimo do belo seja aquilo

alcanccedilado conscientemente

Se a trageacutedia grega foi para Nietzsche a manifestaccedilatildeo mais sublime de uma

forma artiacutestica isto se daacute em decorrecircncia do efeito por ela provocado qual seja o de

justificar o mundo enquanto fenocircmeno esteacutetico Foi exatamente o decliacutenio deste efeito

constatado pela produccedilatildeo racionalizada de Euriacutepides o responsaacutevel pela morte da

trageacutedia Ao fortalecer em demasia os princiacutepios racionais da forma Euriacutepides suprimiu

o dionisiacuteaco por meio da flacircmula que nas palavras de Nietzsche o tragedioacutegrafo

ldquolevava agrave testardquo ndash a saber uma espeacutecie de socratismo esteacutetico cujos princiacutepios se davam

a partir da remissatildeo do belo ao inteligiacutevel e deste ao virtuoso Identifica-se portanto a

racionalidade otimista socraacutetica como grande responsaacutevel pela supressatildeo do impulso

dionisiacuteaco Nietzsche alude agrave proximidade de convivecircncia entre Soacutecrates e Euriacutepides

para justificar a presenccedila do racionalismo nas obras Euripidianas Soacutecrates frequumlentava

o teatro somente para assistir agraves apresentaccedilotildees de Euriacutepides De todos os atenienses

Soacutecrates era apontado como o mais saacutebio e Euriacutepides como o segundo em sabedoria

Entretanto na contraposiccedilatildeo proposta por Nietzsche entre conhecimento instintivo e

racional Soacutecrates era descomunalmente racional ao contraacuterio do intuitivismo criativo

que reinava ateacute entatildeo Era questionando aos atenienses sobre seus atos que Soacutecrates

percebia que eles natildeo agiam conscientemente mas por intuiccedilatildeo A crenccedila socraacutetica de

que toda accedilatildeo boa deve ser consciente dominou o teatro atraveacutes de Euriacutepides Uma

chave para o entendimento da racionalidade socraacutetica segundo Nietzsche nos eacute

revelada pela ldquomonstruosa inversatildeordquo representada pela consciecircncia criacutetica de Soacutecrates ndash

ou seja a nota destoante em Soacutecrates revela-se pelo instinto criacutetico em contraposiccedilatildeo agrave

82

consciecircncia criacutetica a consciecircncia criadora em contraposiccedilatildeo ao instinto como forccedila

criadora Intui-se assim o motivo pelo qual Soacutecrates natildeo compreendia a trageacutedia grega

- o dionisiacuteaco a tornava ininteligiacutevel para as exigecircncias racionalistas e criacuteticas da

ldquodialeacutetica otimistardquo socraacutetica ldquoA Soacutecrates [] parecia que a arte traacutegica nunca bdquodiz a

verdade‟ sem considerar o fato de que se dirigia agravequele que bdquonatildeo tem muito

entendimento‟ portanto natildeo aos filoacutesofos daiacute um duplo motivo para manter-se dela

afastadordquo(NT 87) Nietzsche compara Soacutecrates ao heroacutei euripidiano que

diferentemente (ateacute mesmo antagonicamente) agrave trageacutedia de Eacutesquilo e Soacutefocles ldquoprecisa

defender suas accedilotildees por meio da razatildeo e contra a razatildeordquo O que estaacute em jogo no

socratismo eacute a substituiccedilatildeo das verdades expressas miticamente religiosamente pelas

verdades loacutegicas A razatildeo tenta abarcar o todo e para isso desconsidera a arte e seus

impulsos A excelecircncia estaacute no saber e atraveacutes deste alcanccedila-se a felicidade erro do

otimismo racionalista Ilusatildeo da razatildeo que se acha soberana e independente A loacutegica

torna-se essecircncia da trageacutedia procura-se por relaccedilotildees causais e pelo bom telos O

diaacutelogo formata sua estrutura e expulsa seu fundamento musical O ldquoheroacutei dialeacuteticordquo eacute

portanto impulsionado pelo elemento otimista da dialeacutetica A justiccedila transcendental

presente nas obras Esquilianas ldquoeacute rebaixada ao niacutevel do raso e insolente princiacutepio da

bdquojusticcedila poeacutetica‟ com seu habitual deus ex machinardquo (NT 89) A racionalidade de

Soacutecrates atraveacutes de sua investigaccedilatildeo cientiacutefica da natureza de seu processo de

construccedilatildeo loacutegica da realidade daraacute origem ao que Nietzsche denominaraacute de ldquohomem

teoacutericordquo ou ldquohomem cientiacuteficordquo a quem a razatildeo ergue-se acima da proacutepria realidade ao

ponto mesmo de ndash e aiacute reside o proacuteprio otimismo ndash propor-se a tarefa de corrigir as

falhas da proacutepria realidade Mais ainda a razatildeo socraacutetica acena ao homem com a

promessa de conferir sentido agrave existecircncia pelo conhecimento e desta forma busca

justificar tal existecircncia

83

Em face ao pessimismo praacutetico eacute Soacutecrates o protoacutetipo do

otimista teoacuterico que na jaacute assinalada feacute na escrutabilidade da

natureza das coisas atribui ao saber e ao conhecimento a forccedila de

uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo

(NT 94)

Natildeo obstante o otimismo no conhecimento na racionalidade socraacutetica encontra seu

maior dragatildeo em sua proacutepria loacutegica interna Assim nas palavras de Nietzsche

[] a periferia do ciacuterculo da ciecircncia possui infinitos pontos

e enquanto natildeo for possiacutevel prever de maneira nenhuma como se

poderaacute alguma vez medir completamente o ciacuterculo o homem

nobre e dotado ainda antes de chegar ao meio de sua existecircncia

tropeccedila e de modo inevitaacutevel em tais pontos fronteiriccedilos da

periferia onde fixa o olhar no inesclareciacutevel Quando divisa aiacute

para seu susto como nesses limites a loacutegica passa a girar em

redor de si mesma e acaba por morder a proacutepria cauda ndash entatildeo

irrompe a nova forma de conhecimento o conhecimento traacutegico

que mesmo para ser apenas suportado precisa da arte como meio

de proteccedilatildeo e remeacutedio (NT 95)

Afigura-se-nos aqui o problema apontado por Nietzsche como o ldquoproblema da

ciecircncia mesmardquo a saber um problema que nos envolve a todos por abarcar (ou

contaminar) toda a cultura ocidental - isto eacute ainda mantemos o dionisiacuteaco agrave baila

ocupando diminuta posiccedilatildeo em detrimento ao culto acerbado ao racionalismo socraacutetico

A cultura socraacutetica impotildee-se pelo homem-teoacuterico e qualquer outra existecircncia que fuja

aos olhos perscrutadores de Soacutecrates deve ldquolutar penosamente para pocircr-se agrave sua altura

como existecircncia permitida e natildeo como existecircncia propostardquo

Nietzsche nos atenta para o fato de reconhecermos comumente no homem culto

erudito o homem douto saacutebio ndash consecutivamente o dionisiacuteaco a arte eacute colocada de

forma perifeacuterica de modo a nunca poder encontrar espaccedilo para superar sua condiccedilatildeo de

ldquoremeacutedio-arterdquo A vontade aacutevida faz seu caminho mesmo atraveacutes da completa falta de

respostas de fundamentos de sentido assim eacute preferiacutevel ao ser humano querer o nada

no sentido de ainda sim querer alguma coisa do que nada querer do que reconhecer a

84

falta de fundamentos da qual consistem em todos os tempos as ilusotildees que

costumeiramente adota-se como engodo ao absoluto sem-sentido da vida

Por fim Nietzsche atenta-nos para o fato de como o homem de seu tempo vem

perdendo a crenccedila na ciecircncia otimista socraacutetica isto eacute pressentindo que a cultura

racionalista socraacutetica torna-se iloacutegica ao vislumbraacute-la em seus horizontes afastando-se

de suas consequumlecircncias Nietzsche diagnostica na oacutepera de seu periacuteodo a subordinaccedilatildeo da

muacutesica agrave arte figurada agrave palavra e expotildee a expectativa de que possa haver no cansaccedilo e

na percepccedilatildeo do insucesso dos esforccedilos racionalistas um renascimento da trageacutedia

85

4 Conclusatildeo pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo

da vida

Retribui-se mal a um mestre continuando-

se sempre apenas aluno

(Nietzsche)

Natildeo podemos ver na filosofia schopenhaueriana qualquer instacircncia que

justifique a vida Ao conhecermos a sua essecircncia - a vontade cega e irracional que se

deixa ver atraveacutes das manifestaccedilotildees do seu querer incessante - percebemos o absurdo de

sua existecircncia e somos por essa percepccedilatildeo levados agrave sua negaccedilatildeo Nietzsche por sua

vez utilizando-se dos conceitos da filosofia de Schopenhauer procura em sua obra

justificar a vida e encontra esta justificaccedilatildeo na arte Nesta conclusatildeo da pesquisa

pretendemos entatildeo apresentar um esboccedilo do modo pelo qual alguns elementos da

filosofia schopenhaueriana foram utilizados no projeto do primeiro livro de Nietzsche e

explicitar o modo como estes elementos foram configurados no interior de seu projeto

Dentre estes elementos percorreremos o paralelo entre os pares dionisiacuteacoapoliacuteneo e

vontaderepresentaccedilatildeo os conceitos de arte e apreciaccedilatildeo esteacutetica e sua cisatildeo entre as

86

artes figurativas e a musical a especificidade da muacutesica o conceito de gecircnio e sua

divisatildeo e os limites da racionalidade e da ciecircncia

Jaacute no primeiro paraacutegrafo de NT a associaccedilatildeo entre os pares nietzscheanos do

dionisiacuteaco e apoliacuteneo e as visotildees de mundo schopenhauerianas satildeo expliacutecitas Nietzsche

define o impulso apoliacuteneo atraveacutes do sonho do princiacutepio de individuaccedilatildeo e o dionisiacuteaco

atraveacutes da embriaguez da consciecircncia de unidade da vontade do livrar-se do veacuteu de

maia Os deuses gregos tornam-se representativos destes estados schopenhauerianos de

consciecircncia Como vimos no capiacutetulo segundo desta dissertaccedilatildeo sob o ponto de vista da

representaccedilatildeo o mundo eacute objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito

agraves condiccedilotildees a priori do entendimento Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das

formas a priori do entendimento eacute interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos

advindos da filosofia Platocircnica e oriental como um mundo aparente ilusoacuterio artificial

O sonho efeito do encantamento apoliacuteneo eacute utilizado como metaacutefora da realidade

fenomecircnica no mundo Schopenhaueriano Os Vedas e Puranas tantas vezes citados por

Schopenhauer tratam o mundo como um sonho imposto pelo deus Maia o deus da

ilusatildeo que cobre a visatildeo do homem com seu veacuteu A mitologia oriental aludida por

Schopenhauer toma conta do mundo helecircnico em Nietzsche que transforma Apolo no

deus Maia o configurador de sonhos O sonho eacute utilizado como ilustraccedilatildeo da realidade

pelo fato de que durante o sonho natildeo sabemos estar sonhando O mundo dos sonhos nos

eacute naquele momento real Vemo-nos como indiviacuteduos e vemos o mundo da

individuaccedilatildeo e suas leis causais espaccedilo-temporais Somente o momento empiacuterico do

despertar informa-nos do sonho Haacute portanto uma identificaccedilatildeo do ldquoparentesco iacutentimo

entre vida e sonhordquo(MVR 60) Como ilustraccedilatildeo desta metaacutefora Schopenhauer elogia

ainda a obra do ldquovaterdquo Calderoacuten de La Barca A vida eacute sonho agrave qual denominaraacute como

um ldquodrama metafiacutesicordquo por expor esta faceta de seu sistema A consciecircncia de que a

87

vida eacute sonho eacute para Schopenhauer um despertar metafiacutesico cujo propiciador foi Kant

ao demonstrar o caraacuteter fenomecircnico do mundo Este despertar contudo natildeo causa

prazer O filoacutesofo e o gecircnio personagens que na metafiacutesica schopenhaueriana alcanccedilam

este despertar satildeo atormentados pela realidade com a qual se deparam qual seja a de

que a vida eacute puro sofrimento Eacute no intuito de deixar velada esta faceta da vida que

Apolo ofusca a visatildeo dos homens com seu mundo luminoso de sonho seu objetivo eacute

encobrir esta verdade aterrorizadora As artes natildeo musicais tanto na teoria de

Schopenhauer como na nietzscheana manteacutem o homem em um juacutebilo prazeroso

ocasionado pela contemplaccedilatildeo puramente objetiva Neste momento natildeo se percebe o

jogo da vontade individualizada somos afastados da realidade do querer insuflados

pela caracteriacutestica quietiva da apreciaccedilatildeo esteacutetica nas palavras de Nietzsche

encontramos na arte um ldquoremeacutedio-arterdquo32

Esta visatildeo do lado terriacutevel da vida ocasionada pelo despertar do dogmatismo

metafiacutesico na teoria schopenhaueriana eacute associada em NT agrave sabedoria dionisiacuteaca

Verificamos na descriccedilatildeo do impulso dionisiacuteaco os elementos que caracterizam a

vontade schopenhaueriana A visatildeo dionisiacuteaca do mundo carrega consigo o despertar

para o caraacuteter absurdo da vida Ao olhar para a proacutepria essecircncia o homem descobre-se

enquanto manifestaccedilatildeo de uma vontade aacutevida desprovida de telos O ldquomecanismo

internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens marionetes guiados pela

carecircncia Esta realidade eacute assustadora pois subtrai do horizonte todos os propoacutesitos da

vida individual Dioniacutesio trava aqui sua batalha contra Apolo ao apontar a ilusatildeo da

individuaccedilatildeo como mecanismo para uma fuga daquilo que em essecircncia somos Apesar

de seu caraacuteter aterrorizador a sabedoria dionisiacuteaca eacute acompanhada do deleite

32

Podemos ver aqui o nuacutecleo da dissenssatildeo entre as teorias dos dois filoacutesofos Para Schopenhauer este

remeacutedio eacute temporaacuterio e tatildeo logo o efeito da apreciaccedilatildeo esteacutetica se esvaia os interesses da vontade voltam

a agir sobre o indiviacuteduo e a vida de sofrimento continua seu percurso restando apenas o caminho da

negaccedilatildeo daquela vontade da vida mesma em direccedilatildeo ao nada Nietzsche ao contraacuterio aponta para uma

forma de cura atraveacutes do remeacutedio-arte ver a vida enquanto forma de arte afirmaacute-la

88

indescritiacutevel da celebraccedilatildeo da unidade com o todo ldquoSob a magia do dionisiacuteaco torna a

selar-se natildeo apenas o laccedilo de pessoa a pessoa mas tambeacutem a natureza alheada

inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliaccedilatildeo com seu filho

perdido o homemrdquo(NT 31) Se Apolo eacute representado como deus da forma da clareza

da individuaccedilatildeo e as artes patrocinadas por ele satildeo expressotildees destas caracteriacutesticas

Dioniacutesio por sua vez eacute o patrocinador da muacutesica expressatildeo fenomecircnica direta da

vontade Vemos em Nietzsche uma biparticcedilatildeo das artes que tambeacutem pode ser extraiacuteda

da metafiacutesica schopenhaueriana (artes natildeo-musicais e arte musical)

Para Schopenhauer as formas artiacutesticas natildeo-musicais ao provocarem uma visatildeo

puramente objetiva do objeto apreciado tecircm como caracteriacutestica fundamental a

libertaccedilatildeo da subjetividade e com ela dos anseios da vontade Durante esta forma de

apreciaccedilatildeo esteacutetica ldquosomos alforriados do desgraccedilado iacutempeto volitivo festejamos o

Sabbath dos trabalhos forccedilados do querer a roda de Iacutexion cessa de girarrdquo (MVR

267) A definiccedilatildeo nietzscheana para a funccedilatildeo da arte apoliacutenea se daacute da mesma maneira

qual seja ela deve ldquo [] livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito

graccedilas ao baacutelsamo da aparecircncia do espasmo dos movimentos do querer []rdquo (NT

117) A muacutesica por sua vez recebe um tratamento especial de Schopenhauer devido ao

seu efeito esteacutetico Se as demais artes satildeo um quietivo para a vontade a muacutesica ldquonatildeo faz

mais do que agradar a vontade de viver jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo

seus ecircxitos e ao final expressa sua satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509) Ela encontra-se

num niacutevel de valor superior ao das demais artes por tratar-se de representar a essecircncia

do mundo a vontade mesma Assim tambeacutem ela eacute tratada por Nietzsche como a arte

que representa a sabedoria dionisiacuteaca e faz o apreciador vivenciar a vontade mesma

Em seus escritos sobre a poesia e a oacutepera Schopenhauer alude agrave necessidade de

subordinar os conceitos e o texto agrave muacutesica para que estas artes tenham um efeito mais

89

arrebatador no apreciador esteacutetico Esta subordinaccedilatildeo eacute assumida por Nietzsche em sua

teoria da trageacutedia Nietzsche encontra na liacuterica a primeira manifestaccedilatildeo desta junccedilatildeo da

arte dionisiacuteaca com a arte apoliacutenea e aponta aiacute o geacutermen que daraacute origem agrave trageacutedia

Podemos perceber aqui uma subordinaccedilatildeo das artes natildeo-musicais agrave muacutesica que por sua

vez se espelha na subordinaccedilatildeo do mundo fenomecircnico ao mundo da coisa-em-si As

artes figurativas representam as ideacuteias objetivaccedilotildees imediatas da vontade e a muacutesica

representa a vontade mesma Na teoria da trageacutedia de Nietzsche esta subordinaccedilatildeo seraacute

mantida e assim reflete a configuraccedilatildeo da metafiacutesica schopenhaueriana A muacutesica ldquoeacute

uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente sobre o mais iacutentimo do

homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele como se fora uma

linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo (MVR

336) Desta forma uma arte que se pretenda formar a partir da integraccedilatildeo de elementos

de diversas formas artiacutesticas deve tomar a muacutesica como inspiraccedilatildeo tanto na teoria de

Schopenhauer como na de Nietzsche

Desta dicotomia das formas artiacutesticas que podemos perceber nos dois filoacutesofos

podemos depreender duas formas do gecircnio o apoliacuteneo ou contemplativo e o

compositor dionisiacuteaco Para Schopenhauer ldquoo compositor manifesta a essecircncia mais

iacutentima do mundo expressa a sabedoria mais profunda numa linguagem natildeo

compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo magneacutetico fornece informaccedilotildees

sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito algumrdquo (MVR 342) Podemos

vislumbrar ainda nesta descriccedilatildeo de Schopenhauer uma caracteriacutestica do que Nietzsche

mais tarde iraacute chamar de criaccedilatildeo inconsciente Em uma segunda passagem desta vez ao

final do capiacutetulo 39 do segundo volume de MVR vemos tambeacutem uma caracteriacutestica que

posteriormente tambeacutem seraacute ressaltada por Nietzsche como demarcaccedilatildeo do caraacuteter

dionisiacuteaco Schopenhauer se utiliza de uma passagem dos Vedas para descrever o prazer

90

provocado pela muacutesica como um prazer de participaccedilatildeo no todo33

Este ecircxtase da

comunhatildeo eacute um aspecto reiteradamente apontado por Nietzsche O gecircnio dionisiacuteaco eacute

para o jovem filoacutesofo aquele que tambeacutem absorvido pelo impulso dionisiacuteaco traduz

sua essecircncia em linguagem musical O tipo de gecircnio musical descrito eacute encontrado em

Schopenhauer nas encarnaccedilotildees de Rossini e Beethoven cujas obras operiacutesticas satildeo

norteadas pela produccedilatildeo musical e o livreto ocupa um lugar secundaacuterio Nietzsche

aponta um renascimento progressivo do gecircnio musical em seu tempo que se inicia com

Bach e tem continuidade em Beethoven mas que encontra sua forma mais bem acabada

em Richard Wagner

Apesar da tomarem caminhos diferentes no que tange ao objetivo da obra de arte

traacutegica Nietzsche e Schopenhauer mais uma vez em uniacutessono consideram-na todavia

como uma forma de entendimento superior ao apresentado pelo pensamento cientiacutefico

Como vimos anteriormente as ciecircncias no sistema schopenhaueriano seguem o

princiacutepio de razatildeo seu papel eacute apenas descritivo e consequumlentemente limitado ao

acircmbito daquele princiacutepio Transformam em conceitos abstratos o mundo intuitivo ao

descrevecirc-lo em sua aparecircncia e seguem o fio condutor do principio de razatildeo

apresentando as causas para cada fenocircmeno particular Desta forma as ciecircncias estatildeo

subordinadas ao mundo da aparecircncia e no que importa agrave essecircncia natildeo podem

demonstraacute-la As uacutenicas produccedilotildees humanas com esta capacidade satildeo a arte e a

filosofia e essas o fazem de forma indireta metafoacuterica A consideraccedilatildeo racional do

mundo estaacute enquanto presa ao acircmbito do fenocircmeno subordinada aos ditames da

vontade Esta ldquovontade aacutevida sempre encontra um meio atraveacutes de uma ilusatildeo

distendida sobre as coisas de prender agrave vida as suas criaturas e de obrigaacute-las a

prosseguir vivendordquo (NT 108) Nietzsche descreve trecircs formas pelas quais a vontade

33

ldquoE o delicioso que eacute uma classe de alegria chama-se assim o sumo Atman porque onde haacute uma

alegria esta eacute uma pequena parte de sua alegriardquo (MVR II 510)

91

manteacutem a vida A primeira delas eacute o ldquoveacuteu da beleza da arterdquo sustentado pelo impulso

apoliacuteneo Encontramo-la na epopeacuteia homeacuterica e nas artes figurativas A segunda eacute a

visatildeo traacutegica do mundo que encontra um consolo metafiacutesico na percepccedilatildeo de um

substrato comum aos fenocircmenos e que por consequumlecircncia abdica destes em funccedilatildeo da

vivecircncia daquele substrato A terceira forma de dominaccedilatildeo da vontade eacute a ciecircncia a

loacutegica socraacutetica que procura abarcar o mundo com sua razatildeo de acircnsia justificadora

Estas trecircs formas de coerccedilatildeo conforme sua predominacircncia em determinada cultura

formam o que Nietzsche iraacute denominar respectivamente de culturas artiacutestica traacutegica e

socraacutetica Correspondem historicamente agraves fases predominantemente helecircnica budista

ou alexandrina Fazendo um diagnoacutestico da cultura contemporacircnea Nietzsche a

identifica como uma cultura predominantemente alexandrina Diagnostica o seu ocaso a

partir da identificaccedilatildeo feita por Kant e Schopenhauer dos limites da ciecircncia do

desmascaramento das verdades eternas que amparam a visatildeo socraacutetica de mundo quais

sejam a visatildeo de que o tempo o espaccedilo e a causalidade satildeo leis universais e

incondicionais Esta criacutetica ao racionalismo eacute constante na obra schopenhaueriana

Percebemo-la claramente em suas investidas contra a filosofia de seu tempo e a

presunccedilatildeo nela presente de racionalmente abarcar o real

- - - - - - - - - -

Compostas por conceitos da metafiacutesica schopenhaueriana a teoria da trageacutedia de

Schopenhauer e a de Nietzsche apontam para caminhos diversos Em Schopenhauer a

trageacutedia eacute a arte cujo fim uacuteltimo eacute ao expor seu lado terriacutevel inspirar o apreciador agrave sua

renuacutencia Este lado terriacutevel espelho do mundo presentificador da vida humana e de

suas relaccedilotildees ocasiona atraveacutes do medo e da compaixatildeo a vontade de renuacutencia a essa

92

mesma vida Nietzsche introduz na trageacutedia o elemento da muacutesica schopenhaueriana34

A consequumlecircncia desta introduccedilatildeo eacute um plano mais profundo de entendimento que

apresenta a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com sua essecircncia Neste estado de consciecircncia

apartado de sua individualidade o sujeito jaacute se vecirc como um criador de mundos e vecirc no

mundo uma obra de arte sua Ao derivar o impulso apoliacuteneo do dionisiacuteaco35

Nietzsche

jaacute executou a renuacutencia do indiviacuteduo que agora passa a se ver como essecircncia e ao mundo

como fenocircmeno artiacutestico

34

Machado (2006 200) considera na esteira de Clemeacutent Rosset e de Jean-Marie Schaeffer a utilizaccedilatildeo

da teoria da apreciaccedilatildeo musical de Schopenhauer por Nietzsche como o elemento que sugeriraacute a

caracteriacutestica de afirmaccedilatildeo da vontade de sua filosofia da trageacutedia 35

ldquoNo efeito conjunto da trageacutedia o dionisiacuteaco recupera a preponderacircncia ela se encerra com um tom

que jamais poderia soar a partir do reino da arte apoliacutenea E com isso o engano apoliacuteneo se mostra como o

que ele eacute como o veacuteu que enquanto dura a trageacutedia envolve o autecircntico efeito dionisiacuteaco o qual

todavia eacute tatildeo poderoso que ao final impele o proacuteprio drama apoliacuteneo a uma esfera onde ele comeccedila a

falar com sabedoria dionisiacuteaca e onde nega a si mesmo e agrave sua visibilidade apoliacuteneardquo (NT 129)

93

BIBLIOGRAFIA

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Sobre o ofiacutecio de Escritor Traduccedilatildeo Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes

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Sobre o fundamento da moral Maria Luacutecia M O Cacciola Satildeo Paulo Martins fontes

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BARBOSA Jair Schopenhauer a decifraccedilatildeo do enigma do mundo Satildeo Paulo

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DIAS Rosa Maria Amizade Estelar Schopenhauer Wagner e Nietzsche Rio de

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EacuteSQUILO Os persas ndash SOacuteFOCLES Electra ndash EURIacutePIDES Heacutecuba Traduccedilatildeo Mario

da Gama Kury 5ordf Ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2004

EacuteSQUILO Prometeu acorrentado ndash SOacuteFOCLES Aacutejax ndash EURIacutePIDES Alceste

Traduccedilatildeo Mario da Gama Kury 5ordf Ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2004

EacuteSQUILO Os sete contra Tebas Traduccedilatildeo Donaldo Schuumlller Porto Alegre LampPM

2007

EacuteSQUILO Oreacutestia Agamecircnon Coeacuteforas Eumecircnides Traduccedilatildeo Mario da Gama Kury

6ordf Ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003

EURIacutePIDES Medeacuteia Hipoacutelito As troianas Traduccedilatildeo Mario da Gama Kury 6ordf Ed

Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003

EURIacutePIDES Ifigecircnia em Aacuteulis As Feniacutecias As bacantes Traduccedilatildeo Mario da Gama

Kury 4ordf Ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 2002

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GOETHE Wolfgang Johann Escritos sobre arte Traduccedilatildeo Marco Aureacutelio Werle Satildeo

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de Janeiro 7 Letras 1997

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em espanhol Jacobo Muntildeoz e Isidoro Reguera Madrid Alianza 1981

JANZ Curt Paul Friedrich Nietzsche 3 Los diez antildeos del filoacutesofo errante (Primavera

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Reguera Madrid Alianza 1985

JANZ Curt Paul Friedrich Nietzsche 4 Los antildeos de hundimiento (Enero de 1889

hasta la muerte el 25 de agosto de 1900) Versatildeo em espanhol Jacobo Muntildeoz e

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Traduccedilatildeo Manuela Nunes Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2005

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Schoumlfeld e Sara Sosa Miatello Buenos Aires Nueva visioacuten 1958

9

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO11

1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES NA

FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA 17

2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU

SUBSTRATO METAFIacuteSICO42

21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo43

22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo45

23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana49

24 A finalidade moral da trageacutedia56

25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera62

3 A TEORIA DA TRAGEacuteDIA DO JOVEM NIETZSCHE65

31 A influecircncia de Schopenhauer na obra do primeiro Nietzsche66

32 O projeto subjacente ao nascimento da trageacutedia72

33 A teoria da trageacutedia publicada75

4 CONCLUSAtildeO pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo da

vida85

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS93

10

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Obras de Schopenhauer

MVR = Mundo como vontade e como representaccedilatildeo (2005)

MVR II ndash Mundo como vontade e como representaccedilatildeo volume II (2005)

MB = Metafiacutesica do belo (2003)

SOE = Sobre o ofiacutecio de Escritor (2005)

QRPRS = De la cuadruple raiz del principio de razon suficiente (1981)

PP = Parerga e paralipomena (1974)

SFM = Sobre o fundamento da moral (2001)

SFU = Sobre a filosofia universitaacuteria (2001)

Obras de Nietzsche

NT = O nascimento da trageacutedia (1992)

VD = Visatildeo dionisiacuteaca do mundo (2005)

CORRESPONDEcircNCIA = Correspondecircncias de Nietzsche (2007)

OC = Obras completas de Nietzsche (1963)

11

INTRODUCcedilAtildeO

ldquoDias sem nuacutemero nunca reservam a

ningueacutem nada mais que dissabores mais

proacuteximos da dor que da alegria Quanto aos

prazeres natildeo os discernimos e nossa vista os

buscaraacute em vatildeo logo que para nossa

desventura chegamos ao limite prefixado E

desde entatildeo o nosso aliacutevio uacutenico seraacute aquele

que daraacute a todos o mesmo fim na hora de

chegar de suacutebito o destino procedente do

tenebroso reino onde natildeo haacute cantos nem

liras onde natildeo haacute danccedilas ndash ou seja a morte

epiacutelogo de tudo Melhor seria natildeo haver

nascido como segunda escolha bom seria

voltar logo depois de ver a luz agrave mesma

regiatildeo de onde se veiordquo

(Soacutefocles)

As teorias sobre a trageacutedia de Schopenhauer e Nietzsche satildeo parte

indispensaacutevel no estudo da histoacuteria da filosofia da trageacutedia Dentre os diversos

pensadores contemporacircneos que tratam sobre o problema da trageacutedia e do traacutegico e que

deram visiacutevel destaque agraves teorias dos nossos filoacutesofos podemos destacar Walter

Benjamin1 e Peter Szondi

2 Entretanto nos trabalhos destes autores o problema do

1 BENJAMIN Walter Origem do drama barroco alematildeo Traduccedilatildeo Sergio Paulo Rouanet Satildeo Paulo

Brasiliense 2004

12

relacionamento e da interdependecircncia entre as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche

natildeo eacute detalhado a contento Diante disto mesmo para um olhar historicamente

caracterizador torna-se vaacutelido um estudo comparado destas teorias que leve em

consideraccedilatildeo o quecirc ou o quanto haacute de comum em suas metafiacutesicas e a partir desta

perspectiva trace os aspectos coincidentes e dissidentes das mesmas mostrando seus

pontos de interdependecircncia e discrepacircncia muacutetua

Apesar de estar entre as teorias da trageacutedia mais estudadas do periacuteodo do

idealismo alematildeo a teoria Schopenhaueriana que eacute sempre analisada em relaccedilatildeo a seus

pressupostos metafiacutesicos ao ser vista sob outra perspectiva ganharia contornos

intensamente enriquecidos Esta perspectiva atraveacutes da qual nos propomos a examinar a

teoria do traacutegico do filoacutesofo eacute aquela que levaraacute em consideraccedilatildeo as influecircncias

histoacutericas culturais e filosoacuteficas que agiram diretamente sobre a esteacutetica do traacutegico

schopenhaueriana Ao lanccedilarmos um olhar sobre estas referidas influecircncias estaremos

abrindo caminho para uma melhor compreensatildeo sobre a teoria esteacutetica

schopenhaueriana o que conseguintemente refletiraacute em um juiacutezo mais adequado da

teoria nietzscheana

Para um entendimento mais eficiente das teorias propostas nas obras do

jovem Nietzsche parece-nos essencial o conhecimento de uma de suas mais decisivas

influecircncias a filosofia de Schopenhauer A analogia almejada erige-se na verdade

como meacutetodo de anaacutelise ou seja o que pretendemos eacute alcanccedilar uma maior compreensatildeo

dos problemas com os quais Nietzsche se deparou quando da elaboraccedilatildeo de sua primeira

obra e procurar identificar a existecircncia de alguma apropriaccedilatildeo eou adaptaccedilatildeo de alguns

conceitos da filosofia de Schopenhauer na resoluccedilatildeo destes problemas A necessidade

deste estudo comparativo torna-se ainda mais evidente quando e este eacute o caso

2 SZONDI Peter Ensaio sobre o Traacutegico Traduccedilatildeo Pedro Suumlssekind Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

13

defrontamo-nos com uma influecircncia que se apresenta tatildeo clara e assumidamente

admitida pelo autor Todavia natildeo se pretende aqui apenas a justaposiccedilatildeo de um

pensamento ao outro Apesar de ser identificaacutevel em toda a obra posterior de Nietzsche

encontra-se nos seus primeiros escritos sobretudo na obra O nascimento da trageacutedia

aquele momento discursivo no qual podemos apontar uma influecircncia mais direta da

filosofia de Schopenhauer

Dos trabalhos que fazem um estudo comparativo entre estes filoacutesofos a

maioria se ateacutem em identificar as diferenccedilas conceituais entre eles mais

especificamente no campo eacutetico e metafiacutesico Grosso modo tratam principalmente dos

problemas relativos agrave diferenciaccedilatildeo entre os conceitos de vontade nestes autores

vontade de viver e vontade de poder Estes estudos tecircm como foco a filosofia tardia de

Nietzsche onde este apesar da assumida influecircncia torna-se um criacutetico de

Schopenhauer A real extensatildeo da influecircncia deste filoacutesofo na primeira obra de

Nietzsche bem como o relacionamento entre suas teorias da trageacutedia permanecem

assim como territoacuterios ainda pouco explorados Ao lanccedilarmos olhar sobre esse

afastamento que Nietzsche mais tarde realizaraacute em relaccedilatildeo agrave filosofia

Schopenhaueriana verificamos mais uma vez a importacircncia do estudo de sua primeira

fase na qual poderemos detectar o referido afastamento

Podemos observar entretanto o crescimento do interesse no estudo da

obra O nascimento da trageacutedia de Nietzsche Nos uacuteltimos anos assistimos tambeacutem no

Brasil agrave publicaccedilatildeo de vaacuterios trabalhos que tecircm sob perspectiva a complexidade desse

seu primeiro livro Na bibliografia sugerida neste projeto constam publicaccedilotildees dos

seguintes autores Roberto Machado (2006) Rosa Maria Dias (2005 e 2009) Iracema

Macedo (2006) Marcio Joseacute Silveira Lima (2006) Estas publicaccedilotildees tratam temas

diversos da esteacutetica nietzscheana tais como a muacutesica a trageacutedia o traacutegico ou a

14

repercussatildeo do livro de Nietzsche e sua influecircncia wagneriana Podemos ver entretanto

naqueles e em outros trabalhos a constante chave de leitura que atribui a Schopenhauer

a influecircncia decisiva natildeo apenas sobre o jovem Nietzsche como usualmente se aponta

mas tambeacutem sobre um peculiar imbricamento entre metafiacutesica e esteacutetica o qual se

sustentaria sobre os ldquoimpulsos artiacutesticos da naturezardquo o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco Nos

termos de Dias (2005 27)

A oposiccedilatildeo apoliacutenea e dionisiacuteaca considerada no plano

metafiacutesico se daacute a partir da noccedilatildeo de vontade ou querer

estendida (sic) no sentido que a ela deu Schopenhauer de

ldquocentro e nuacutecleo do mundordquo ou ldquoforccedila que eternamente quer

deseja e aspirardquo () O mundo fenomecircnico como resultado

desse movimento do querer () faz um segundo movimento

dessa vez esteacutetico reproduzindo o movimento inicial que a

vontade realizou em direccedilatildeo agrave aparecircncia

Tendo em vista o fato de que as teorias sobre o traacutegico dos dois filoacutesofos tecircm como

ponto de partida o sistema metafiacutesico schopenhaueriano fica clara a necessidade de

analisar em cotejo estas teorias tendo como fio condutor o meacutetodo de investigaccedilatildeo ora

proposto

Aleacutem de um aprofundamento no problema da influecircncia de

Schopenhauer na obra esteacutetica de Nietzsche o estudo de suas teorias sobre o traacutegico nos

daraacute a oportunidade de identificar as peculiaridades de cada uma destas teorias bem

como de estabelecer a sua importacircncia histoacuterica para uma filosofia do traacutegico

Em um primeiro momento traccedilaremos um panorama histoacuterico que

objetiva entender o status quo da filosofia do traacutegico no periacuteodo anterior ao

desenvolvimento da teoria schopenhaueriana da trageacutedia Esta investigaccedilatildeo seraacute

norteada pelas referecircncias constantes na proacutepria obra de Schopenhauer bem como por

um levantamento biograacutefico do filoacutesofo ou seja trabalharemos somente os momentos

que satildeo fundamentais para uma melhor compreensatildeo da obra schopenhaueriana Dentre

15

estes momentos daremos ecircnfase aos seguintes pontos o estudo sobre o helenismo de

Winckelmann e sua repercussatildeo a criacutetica teatral de Lessing Schiller e Goethe seu

projeto de criaccedilatildeo de um teatro alematildeo e suas produccedilotildees dramaacuteticas

Traccedilado o panorama histoacuterico no qual se insere a teoria da trageacutedia

schopenhaueriana passaremos para o toacutepico seguinte a apresentaccedilatildeo do sistema

metafiacutesico de Schopenhauer no qual estaacute embasada a sua teoria da trageacutedia bem como

a teoria nietzscheana A apresentaccedilatildeo seraacute feita de forma a expor os aspectos gerais da

filosofia da vontade atendo-se aos pontos deste sistema que estatildeo intrinsecamente

relacionados agraves teorias da trageacutedia dos nossos autores

Apoacutes os passos descritos reuniremos em um esboccedilo geral as

caracteriacutesticas do relacionamento existente entre o jovem Nietzsche e a filosofia de

Schopenhauer Para tanto utilizaremo-nos das referecircncias que Nietzsche faz a

Schopenhauer em suas cartas e escritos de juventude Com esta pesquisa pretendemos

identificar a opiniatildeo que o jovem Nietzsche tinha sobre a filosofia de Schopenhauer e a

profundidade da influecircncia desta em sua primeira obra Percorreremos ainda o ambiente

circundante agrave primeira obra de Nietzsche no intuito de realccedilar alguns dos conceitos

formativos de O nascimento da trageacutedia

Estabelecida a ligaccedilatildeo entre os autores passaremos ao estudo do apoliacuteneo

e do dionisiacuteaco par conceitual que nos forneceraacute a chave para se fazer um estudo

comparativo entre os filoacutesofos Para cumprir esta etapa analisaremos O nascimento da

trageacutedia bem como escritos contemporacircneos a este livro atraveacutes dos quais poderemos

delinear melhor a significaccedilatildeo desta duplicidade de impulsos e visotildees de mundo

Delinearemos assim os contornos das definiccedilotildees fundamentais da esteacutetica nietzscheana

e procuraremos construir um paralelo entre o mundo dionisiacuteaco e o mundo metafiacutesico

da vontade schopenhaueriano Temos a intenccedilatildeo de demonstrar a origem desta

16

metafiacutesica da vontade ou seja o criticismo kantiano e sua importacircncia para o conceito

de dionisiacuteaco Demonstraremos tambeacutem as caracteriacutesticas do mundo fenomecircnico

schopenhaueriano em sua identidade com o apoliacuteneo nietzscheano retomando a

epistemologia de Schopenhauer

Realizada a aproximaccedilatildeo e expostas tanto as semelhanccedilas como as

particularidades dos conceitos principais dos dois autores percorreremos sempre

focando um estudo paralelo entre os filoacutesofos outros conceitos que encontram

similaridade em suas esteacuteticas Com esse intuito procuraremos identificar nos dois

filoacutesofos o destaque dado agrave muacutesica dentro de suas teorias e o lugar dado agraves outras artes

em suas obras Discorreremos sobre a criacutetica que eles em uniacutessono fazem ao que

nomeiam racionalismo dogmatismo e o otimismo Finalizadas as aproximaccedilotildees

voltaremos nossa atenccedilatildeo ao aspecto de dissensatildeo que propicia o afastamento

fundamental entre as teorias dos dois filoacutesofos o efeito da trageacutedia Com isto

demonstraremos que a base metafiacutesica comum quando alinhada a pressupostos

esteacuteticos distintos geraraacute a referida dissensatildeo

17

1 O CENAacuteRIO HISTOacuteRICO E AS INFLUEcircNCIAS PRESENTES

NA FILOSOFIA DA VONTADE E SUA TEORIA DA TRAGEacuteDIA

Por que minha filosofia natildeo encontrou

simpatia e interesse Porque a verdade natildeo

estaacute de acordo com a tagarelice dos tempos

(Schopenhauer)

Neste primeiro capiacutetulo objetivamos apresentar as fontes filosoacuteficas

incutidas no sistema schopenhaueriano no intuito de situar historicamente o surgimento

da filosofia da vontade e trazer agrave baila o seu ambiente circundante bem como as teorias

filosoacuteficas com as quais Schopenhauer se propotildee a dialogar Apontaremos inicialmente

as influecircncias filosoacuteficas assumidamente presentes no sistema schopenhaueriano bem

como aquelas que fundamentam sua metafiacutesica e consequumlentemente sua teoria esteacutetica

Em um segundo momento procuraremos fazer um breve esboccedilo do ambiente artiacutestico-

cultural que dominava o pensamento alematildeo de entatildeo com o qual direta ou

indiretamente Schopenhauer e o jovem Nietzsche se depararam Com isto esperamos

posteriormente demarcar as singularidades que caracterizam as teorias destes filoacutesofos

Ressaltamos todavia que natildeo se trata de um mapeamento completo das fontes que

influenciaram esses autores ndash tarefa que exigiria um esforccedilo bem maior do que aquele

18

proposto por esta pesquisa ndash e sim de um breve panorama que se pautaraacute nas influecircncias

marcantemente presentes em suas obras

No contato com a obra de Schopenhauer a primeira impressatildeo que natildeo

passa despercebida aos seus leitores eacute a qualidade de sua prosa3 Tal qualidade

revelada na diversidade de recursos literaacuterios utilizados pelo autor eacute produto da visiacutevel

erudiccedilatildeo cultivada pelo filoacutesofo Conhecedor do grego do latim e suas respectivas

literaturas Schopenhauer transitava ainda pela obras literaacuterias cientiacuteficas e filosoacuteficas

contemporacircneas em suas liacutenguas originais conhecia o inglecircs o italiano o francecircs e o

espanhol Em sua juventude conviveu com vaacuterias personalidades do meio cultural

germacircnico que frequumlentavam o salatildeo de sua matildee em Weimar dentre eles Goethe a

maior figura das letras germacircnicas com quem teve um relacionamento mais proacuteximo

Sua obra eacute repleta de citaccedilotildees de poetas dramaturgos e seu conhecimento das artes

plaacutesticas e da muacutesica natildeo satildeo superficiais Em suas viagens pela Europa pocircde admirar

diversas esculturas e pinturas e como ele proacuteprio dizia pocircde ler diretamente no ldquolivro

do mundordquo Essa erudiccedilatildeo pode ser notada mesmo diante do desconhecimento de sua

biografia pela observaccedilatildeo da enorme quantidade de citaccedilotildees e menccedilotildees que estatildeo

espalhadas no interior de suas obras traduzidas ou como em sua maior parte citadas

em suas respectivas liacutenguas Frequumlentava as mais diversas aacutereas de conhecimento de sua

eacutepoca como sustenta Aramayo

3 O cuidado com a qualidade da produccedilatildeo literaacuteria tanto no que se refere agrave clareza quanto agrave riqueza de

recursos linguumliacutesticos eacute uma das caracteriacutesticas que Schopenhauer e Nietzsche tecircm em comum Esta

qualidade torna-se mais evidente ainda quando seus trabalhos satildeo natildeo raramente comparados com os

escritos filosoacuteficos alematildees daquele periacuteodo principalmente aos de Fichte Schelling e Hegel O elogio agrave

prosa schopenhaueriana feito por literatos e filoacutesofos contemporacircneos influenciados por sua obra pode

ser ilustrado agrave exaustatildeo entre eles encontram-se Thomas Mann Goethe Wittgenstein e o proacuteprio

Nietzsche ldquoMas a imensa forccedila de penetraccedilatildeo deste pensamento explica-se antes de tudo pelo fato de o

autor ser ao lado de Nietzsche o maior entre os escritores filosoacuteficos alematildeesrdquo (Rosenfeld 1996 177)

Jorge Luis Borges em uma entrevista publicada por Die Welt em 25 de marccedilo de 1975 realizava esta

confissatildeo ltPara mim existe um escritor alematildeo ao qual prefiro Schopenhauer Sei que deveria dizer

Goethe poreacutem Schopenhauer me interessa muitiacutessimo mais Tanto que estudei alematildeo ndash que aprendi

sobre os versos de Heine ndash fundamental e especificamente para poder ler a Schopenhauer em sua proacutepria

liacutenguagt (Aramayo 2001 18)

19

ldquoEm sua busca pela verdade Schopenhauer natildeo desdenha

nenhum aliado Os dramaturgos novelistas e poetas estatildeo quando

menos em peacute de igualdade com os mais egreacutegios filoacutesofos A perspicaacutecia

de Shakespeare ou a genialidade de Voltaire e a sutileza de Goethe nada

devem para a eloquumlecircncia Platocircnica a precisatildeo de um Spinoza e o rigor

conceitual do admirado Kant Sua curiosidade natildeo conhece limites nem

prejuiacutezo algum e por esta razatildeo tampouco menospreza quando o

considera oportuno prestar suficiente atenccedilatildeo aos fenocircmenos

paranormais agrave hipnose ou ao caacutelculo cabaliacutestico se entende que em

algo isto pode servir-lhe para demonstrar sua tese ou avaliar algumas de

suas intuiccedilotildees E na mesma direccedilatildeo aponta seu grande empenho por

incorporar o pensamento das religiotildees orientais a nosso acervo cultural

na possibilidade de um enriquecimento muacutetuordquo (Aramayo 2001 14-15)

A comparaccedilatildeo feita atraveacutes de metaacuteforas4 paraacutebolas ou alegorias em

sua maioria retiradas de obras literaacuterias ou cientiacuteficas torna-se recurso literaacuterio

constantemente presente na obra do filoacutesofo e ao mesmo tempo termocircmetro de suas

influecircncias e de seu relacionamento com o pensamento de seus contemporacircneos Tais

recursos satildeo utilizados contudo com o objetivo consciente de construir conhecimento

de ilustrar a mateacuteria do seu pensamento Nas palavras do filoacutesofo ldquoAs comparaccedilotildees satildeo

de grande valor na medida em que reduzem uma relaccedilatildeo desconhecida a uma

conhecida Inclusive as comparaccedilotildees mais detalhadas transformadas em paraacutebola ou

alegoria satildeo somente a reduccedilatildeo de uma relaccedilatildeo qualquer agrave sua exposiccedilatildeo mais

simples ilustrativa e palpaacutevelrdquo (Schopenhauer SOE 86) Se o nosso objetivo eacute mostrar

as raiacutezes da filosofia de Schopenhauer ou seja as influecircncias que formaram a mateacuteria

de seu pensamento eacute sobre esta mateacuteria que devemos nos debruccedilar Natildeo podemos

contudo nos furtar a apontar a riqueza das fontes formalmente presentes em seus

escritos5 A percepccedilatildeo da presenccedila desta numerosa miscelacircnea de referecircncias dentro da

4 ldquoSua profusa e brilhante utilizaccedilatildeo das metaacuteforas eacute o que o converte sem duacutevida alguma em um grande

escritor cujo estilo se nos afigura tatildeo ameno quanto sugestivordquo (Aramayo 2001 54) 5 Mateacuteria e forma satildeo na concepccedilatildeo do filoacutesofo planos ou instacircncias da produccedilatildeo escrita que servem

como referecircncia para o julgamento de valor do pensamento de um autor ldquo Um livro nunca pode ser mais

do que a impressatildeo dos pensamentos do autor O valor desses pensamentos reside na mateacuteria ou seja

naquilo sobre o que ele pensou ou na forma isto eacute na elaboraccedilatildeo da mateacuteria naquilo que pensou a

respeitordquo (Schopenhauer SOE 11) A importacircncia dada agrave forma por Schopenhauer seraacute melhor

esclarecida quando posteriormente apresentarmos a caracteriacutestica fundamentalmente epistemoloacutegica de

toda produccedilatildeo artiacutestica dentro de sua metafiacutesica do belo

20

obra schopenhaueriana diz-nos algo sobre seu estilo e seu arcabouccedilo cultural

entretanto quando voltamo-nos para a busca das influecircncias diretamente presentes em

seu sistema ie agraves raiacutezes da mateacuteria de seu pensamento percebemos que elas natildeo satildeo

tatildeo numerosas

Uma leitura das fontes filosoacuteficas do sistema schopenhaueriano torna-se

diferentemente do que ocorre em outros sistemas de seu tempo menos trabalhosa por

dois motivos Primeiramente o autor natildeo esconde suas influecircncias mas ao contraacuterio

faz questatildeo de apontaacute-las citaacute-las e quando lhe parece necessaacuterio as critica ou exalta

Em segundo lugar o que facilita o mapeamento destas fontes eacute a caracteriacutestica de

unidade do sistema schopenhaueriano como um todo Apesar da longevidade do

filoacutesofo e da distacircncia temporal entre suas obras suas intuiccedilotildees fundamentais

continuaram sendo as mesmas ao longo de sua vida Nas palavras de Rosset

ldquoSchopenhauer eacute homem de um soacute livro o MVR e de um soacute pensamento (qualificado

por ele mesmo de ltpensamento uacutenicogt nas primeiras linhas de sua obra)rdquo (2005 35)6

Natildeo satildeo poreacutem coetacircneas as influecircncias que marcaram a obra do filoacutesofo

como talvez a constante menccedilatildeo a seus contemporacircneos possa sugerir Nas palavras do

filoacutesofo como citado por Lefranc (2005 17) ldquoPude amar prosseguir aperfeiccediloar a

minha obra soacute por ela mesma em tranquumlilidade completa ao abrigo de toda influecircncia

externa e meus contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes

permaneci estranhosrdquo Conhecia a filosofia de seu tempo todavia natildeo a tinha como

interlocutora na verdade a desdenhava satildeo famosas as criacuteticas de Schopenhauer contra

as filosofias de seus contemporacircneos principalmente as de Fichte Schelling e Hegel

6 Sobre a unidade da produccedilatildeo schopenhaueriana destacamos aleacutem de Rosset os apontamentos de outros

dois de seus maiores comentadores Arthur Huumlbscher e Alexis Philonenko Na introduccedilatildeo aos manuscritos

schopenhauerianos Huumlbscher aponta a importacircncia dos manuscritos na percepccedilatildeo desta unidade uma vez

que podemos notar em diversas fases da vida do filoacutesofo o desenvolvimento dos temas pontuais que

marcaram sua obra principal Vide Hubscher Introduction Manuscript Remains 1985 Alexis

Philonenko trata desta unidade no proacutelogo de sua obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia

(Philonenko 1989 41-45)

21

(chamados de ldquoos trecircs sofistasrdquo) Quando faz referecircncias a eles comumente estaacute

imbuiacutedo de trecircs propoacutesitos criticar a qualidade formal de suas produccedilotildees

principalmente no que tange ao uso da liacutengua germacircnica apontar uma motivaccedilatildeo

individualista (subsistecircncia pessoal e status social) que existiria por traacutes de suas

elucubraccedilotildees filosoacuteficas e ressaltar a falta de atenccedilatildeo por parte daqueles filoacutesofos no

que se refere ao conteuacutedo da primeira criacutetica kantiana

Schopenhauer diagnosticava em seu tempo um periacuteodo de

empobrecimento da expressatildeo literaacuteria e do uso da liacutengua germacircnica e apontava como

os principais responsaacuteveis por estes acontecimentos os ldquoprofessores de filosofiardquo e seus

disciacutepulos As investidas schopenhauerianas contra a filosofia de seus contemporacircneos

podem ser encontrada em praticamente todas as suas obras mas estatildeo concentradas de

forma mais persistente em sua produccedilatildeo mais tardia na segunda ediccedilatildeo da QRPRS de

MVR em seus ensaios sobre a liberdade e o fundamento da moral e nos PP 7

Nesta

uacuteltima obra temos dedicados a estas criacuteticas alguns textos que podemos destacar Sobre

o ofiacutecio de escritor Da leitura e dos livros Da liacutengua e das palavras e Sobre a filosofia

universitaacuteria A liacutengua alematilde no que se refere agrave sua capacidade expressiva era tida em

mais alta consideraccedilatildeo por nosso filoacutesofo Afirmava que dentre as liacutenguas modernas

era ldquoa uacutenica na qual se pode escrever quase tatildeo bem quanto em grego ou em latimrdquo

(Schopenhauer SOE 72) Esta capacidade de expressatildeo de uma liacutengua eacute segundo o

filoacutesofo resultado de sua aptidatildeo em representar conceitos Desta forma na medida em

que surgem novos conceitos a elaboraccedilatildeo de novas palavras que os representem eacute um

sinal de evoluccedilatildeo adequaccedilatildeo e riqueza da liacutengua Entretanto para o filoacutesofo os

neologismos e adaptaccedilotildees criados por seus contemporacircneos natildeo eram resultados da

7 Muitos historiadores da filosofia bioacutegrafos e comentadores apontam que esta criacutetica adveacutem do

ressentimento pelo fracasso de Schopenhauer como docente na universidade de Berlim onde Hegel

reinava absoluto bem como da falta de reconhecimento de sua filosofia diante do sucesso dos professores

da mesma universidade

22

tentativa de representaccedilatildeo de novos conceitos mas ao contraacuterio eram comprovaccedilatildeo de

sua ldquopobreza de espiacuterito que a todo custo quer colocar algo no mercado e por natildeo ter

novos pensamentos chega com palavras novasrdquo (Schopenhauer SOE 129)

Schopenhauer condenava a atitude de seus contemporacircneos de utilizarem-se de

artifiacutecios como a natildeo designaccedilatildeo do caso a expressatildeo dos preteacuteritos por meio do

imperfeito a supressatildeo dos prefixos e outros subterfuacutegios para com isso disfarccedilar a sua

imprecisatildeo conceitual De acordo com Schopenhauer tratavam displicentemente a

liacutengua alematilde por dois motivos por natildeo possuiacuterem uma mateacuteria conceitualmente

relevante a ser expressa ou entatildeo para conscientemente causar a impressatildeo de que a

possuem e neste caso a responsabilidade pela natildeo compreensatildeo do texto seria atribuiacuteda

agrave incompetecircncia intelectual do leitor

Os que compotildeem discursos difiacuteceis obscuros enleados e

ambiacuteguos natildeo sabem ao certo o que querem dizer tecircm somente uma

consciecircncia vaga a esse respeito que luta primeiro por uma ideacuteia poreacutem

amiuacutede querem tambeacutem ocultar de si mesmos e dos outros que na

realidade eles natildeo tecircm nada a dizer Como Fichte Schelling e Hegel

querem parecer saber o que natildeo sabem pensar o que natildeo pensam e dizer

o que natildeo dizem Algueacutem que tenha algo correto a dizer se esforccedilaraacute por

exprimi-lo de maneira indistinta ou distinta (Schopenhauer SOE 39)

Podemos perceber entatildeo que ao criticar o estilo ldquoobscurordquo e ldquopomposordquo de seus

contemporacircneos Schopenhauer aponta como causa deste estilo natildeo somente a sua falta

de mateacuteria mas tambeacutem uma atitude consciente e arquitetadamente maldosa e com

toda a sua forccedila retoacuterica condena esta atitude

Nobre bdquoatualidade‟ magniacuteficos epiacutegonos geraccedilatildeo crescida no

leite materno da filosofia hegeliana Pela gloacuteria eterna quereis apertar

vossas garras em nossa antiga liacutengua para que a marca com um icnoacutelito

conserve para sempre o vestiacutegio de vossa existecircncia insiacutepida e sombria

Mas Dicirc Meliora Fora paquidermes fora Esta eacute a liacutengua alematilde Nela se

expressaram homens ou melhor nela cantaram grandes poetas e grandes

pensadores escreveram Arredai as patas Ou natildeo tereis o que comer (Soacute

isso os assusta) (Schopenhauer SOE 72-73)

23

A uacuteltima frase desta citaccedilatildeo nos eacute aclarada pelo texto Sobre a filosofia universitaacuteria

onde o filoacutesofo expotildee os argumentos de sua criacutetica agrave filosofia produzida em seu tempo

Para Schopenhauer os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo podem devido agrave sua funccedilatildeo

estatal se imiscuir do compromisso poliacutetico-religioso que seu cargo exige e

conseguintemente sustentados pelo Estado tratam de fazer sua apoteose Nas palavras

de Cacciola constantes na introduccedilatildeo agrave traduccedilatildeo brasileira do referido texto

ldquoSchopenhauer eacute um continuador da criacutetica romacircntica ao filisteiacutesmo que se origina em

Tieck A ironia que visa os homens de vida tatildeo regular como o reloacutegio lhe eacute bem

familiar O filisteu eacute o erudito pedante que soacute pensa na proacutepria vantagem O professor

de filosofia que pauta seus ensinamentos de acordo com os ditames do Estado e da

religiatildeo eacute o tipo acabado do filisteu A idolatria do Estado eacute a apoteose do filisteiacutesmo

(Schopenhauer SFU XXX) Por traacutes das ideacuteias dos ldquofiloacutesofos de profissatildeordquo estaria

incutido o retorno disfarccedilado da ldquoteologia judaicardquo de uma ldquopsicologia racionalrdquo da

ldquoliberdade da vontaderdquo e outros dogmas que de acordo com Schopenhauer refletem a

sua vocaccedilatildeo de trabalharem ldquoin maiorem Dei gloriamrdquo como exigido pela ideologia

estatal daquele periacuteodo Natildeo podem sob a pena de perderem o sustento financeiro

pessoal e familiar bem como sob o custo de perderem o status que o cargo lhes confere

contrariar os dogmas patronais

ldquo[] o intelecto dessa gente permanece fiel agrave sua destinaccedilatildeo

natural de trabalhar a serviccedilo da vontade como normalmente acontece

Mas por isso mesmo existe sempre uma intenccedilatildeo como fundamento do

seu agir e pensar eles tecircm fins o tempo todo e soacute tomam conhecimento

do que diz respeito a esses fins e portanto soacute do que corresponde a

esses fins A atividade do intelecto liberto da vontade condiccedilatildeo da pura

objetividade e por isso de todas as grandes realizaccedilotildees permanece-lhes

eternamente estranha ndash eacute uma faacutebula para seu coraccedilatildeordquo (Schopenhauer

SFU 63)

Desta forma os ldquoprofessores de filosofiardquo natildeo estariam voltados para a investigaccedilatildeo

objetiva da ldquoverdaderdquo a qual exigiria o distanciamento de todo e qualquer interesse

24

pessoal De acordo com o sistema schopenhaueriano tal distanciamento eacute um dom raro

com o qual a natureza a poucos contempla Na metafiacutesica schopenhaueriana a natureza

eacute aristocraacutetica O gecircnio eacute fenocircmeno raro seja ele filoacutesofo ou artista A percepccedilatildeo

objetiva do mundo alheia aos interesses pessoais da vontade individual eacute uma exceccedilatildeo

que soacute se manifesta raramente e as pessoas atadas aos interesses pessoais de sua

vontade natildeo podem reconhececirc-lo imediatamente Estes gecircnios produzidos pela natureza

seriam os verdadeiros educadores do mundo e os ldquoprofessores de filosofiardquo ao tentar

representar este papel que soacute agrave natureza cabe eleger causam-lhe repulsa

Tantas mentes comuns que se acham por cargo e profissatildeo no

dever de representar papeacuteis que a natureza nem ao menos lhes atribuiacutera e

de transportar cargas que exigem ombros de gigantes espirituais

oferecem na realidade um espetaacuteculo deveras lamentaacutevel Pois escutar

cantar os roucos e ver danccedilar os coxos eacute penoso mas ouvir filosofar a

mente limitada eacute insuportaacutevel (Schopenhauer SFU 34)

Prova do embotamento da capacidade de reconhecimento de uma produccedilatildeo genial era

para o filoacutesofo o fato de seus contemporacircneos ignorarem ou mesmo passarem agrave

margem do que seria a mais importante produccedilatildeo filosoacutefica do periacuteodo a cisatildeo entre o

real e o ideal perpetrada pela primeira criacutetica kantiana Esta era para o filoacutesofo a maior

prova do demeacuterito filosoacutefico de seus contemporacircneos preocupados com seus interesse

pessoais alheios a uma observaccedilatildeo objetiva do mundo natildeo levaram em consideraccedilatildeo os

limites impostos pela primeira criacutetica kantiana a toda investigaccedilatildeo racional

Depois de Kant ter cortado o nervo de todas as provas possiacuteveis

da teologia ndash tatildeo incisivamente que desde entatildeo ningueacutem mais pocircde

meter-se com elas ndash o esforccedilo filosoacutefico em quase cinquumlenta anos tem

consistido nas diversas tentativas de insinuar sutil e astuciosamente a

teologia e os escritos filosoacuteficos nada mais satildeo na sua maioria do que

tentativas infrutiacuteferas de reanimar um cadaacutever sem vida (Schopenhauer

SFU 81)

Natildeo nos interessa aqui adentrarmo-nos aos reais motivos existentes por

traacutes dos vitupeacuterios schopenhauerianos contra os pensadores de seu tempo nem

25

tampouco fazer juiacutezo valorativo sobre a importacircncia da filosofia da vontade em

comparaccedilatildeo ao idealismo absoluto Dentro do objetivo proposto qual seja situar

historicamente a filosofia da vontade e apontar suas influecircncias o importante eacute ressaltar

que a filosofia contemporacircnea a Schopenhauer natildeo fez efeito sobre a sua proacutepria a ponto

de modificaacute-la em seu conteuacutedo conforme esclarece o proacuteprio filoacutesofo ldquo [] meus

contemporacircneos me ficaram estranhos tanto como eu mesmo lhes permaneci

estranhosrdquo (apud Lefranc 2005 17) Eacute fundamental verificarmos que apesar do

sistema schopenhaueriano ter se desenvolvido agrave margem do idealismo de entatildeo seu

autor natildeo o desconhecia e muitas das ilustraccedilotildees e argumentaccedilotildees utilizadas por ele na

explicaccedilatildeo de suas teorias apoiavam-se nesta sua contenda com o seu tempo

Entretanto como a filosofia de seu tempo pretende-se herdeira do kantismo assim

tambeacutem procede Schopenhauer e a suas criacuteticas ao idealismo absoluto estatildeo

fundamentadas em sua pretensatildeo a uma heranccedila direta da filosofia kantiana Sobre a

heranccedila de Kant Schopenhauer esclarece ldquoEm todo caso natildeo reconheccedilo que tenha

acontecido algo na filosofia entre ele e mim por conseguinte ligo-me imediatamente a

elerdquo (Schopenhauer MVR 525)

Natildeo obstante as diversas criacuteticas ao retorno kantiano ao dogmatismo8

das quais a obra de Schopenhauer estaacute recheada sua admiraccedilatildeo por ele foi tambeacutem

abundantemente expressa Considerava-o ldquoa inteligecircncia mais original jaacute criada pela

naturezardquo (Schopenhauer SFU52) e afirmava que seus escritos capitais eram o ldquo[]

fenocircmeno mais importante que ocorreu ao longo dos uacuteltimos dois mil anos na filosofia

[]rdquo (Schopenhauer MVR 22) O maior reflexo desta admiraccedilatildeo pode ser observada

8 Nas palavras de Cacciola ldquoO criticismo de Kant teria segundo Schopenhauer perdido sua forccedila inicial

na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura Ou seja Schopenhauer acusa Kant de uma ldquorecaiacuteda no

dogmatismordquo por ter amenizado seu confronto com a teologia A ameaccedila dogmaacutetica jaacute configurada na

filosofia teoacuterica concretiza-se na Eacutetica de Kant quando esta acolhe como postulados Deus

imortalidade da alma e liberdade No poacutes-kantismo a importacircncia crescente atribuiacuteda agrave filosofia praacutetica

de Kant a expensas de sua criacutetica do conhecimento teria levado a uma espeacutecie de contaminaccedilatildeo da

razatildeo teoacuterica pela razatildeo praacutetica fazendo com que a primeira se transformasse num oacutergatildeo apto para

captar o Absolutordquo (Cacciola 1994 20)

26

no fato de que eacute da filosofia kantiana que Schopenhauer retira o leitmotiv para o

desenvolvimento da ideacuteia central9 de sua filosofia Esta ideacuteia central eacute aquela contida

concisamente no tiacutetulo de sua obra principal O mundo como vontade e como

representaccedilatildeo10

A dualidade formada entre representaccedilatildeo e vontade atraveacutes da qual

Schopenhauer acredita ter desvendado o ldquomisteacuteriordquo cosmoloacutegico eacute uma apropriaccedilatildeo

assumida dos conceitos kantianos de fenocircmeno e coisa-em-si respectivamente

Dizemos apropriaccedilatildeo pois aqueles conceitos satildeo acrescidos na filosofia

schopenhaueriana de caracteriacutesticas singulares Eacute com base nesta dualidade de

perspectivas de conhecimento do mundo inspirada na primeira criacutetica kantiana que o

filoacutesofo desenvolve as demais teorias que compotildeem seu sistema sejam elas a esteacutetica a

eacutetica a poliacutetica etc

Para Schopenhauer ldquoo maior meacuterito de Kant eacute a distinccedilatildeo entre

fenocircmeno e coisa-em-sirdquo (Schopenhauer MVR 526) Esta distinccedilatildeo foi o que

possibilitou a ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo realizada sobre o dogmatismo anterior A partir

daquele momento ldquoo mundo objetivo como o conhecemos natildeo pertence agrave essecircncia das

coisas em si mesmas mas eacute seu mero FENOcircMENO condicionado exatamente por

aquelas mesmas formas que se encontram a priori no intelecto

humanordquo(Schopenhauer MVR 530) Na teoria kantiana temos o espaccedilo e o tempo

como formas da sensibilidade que na filosofia de Schopenhauer satildeo associadas agrave

faculdade do entendimento juntamente com a causalidade uacutenica das doze categorias

kantianas do entendimento mantidas por Schopenhauer em seu sistema Desta forma o

mundo enquanto representaccedilatildeo eacute aquele que se apresenta para o sujeito enquanto objeto

9 Quando dizemos ideacuteia central havemos de lembrar que no sistema schopenhaueriano esta categorizaccedilatildeo

eacute singular (o tema seraacute tratado no iniacutecio do proacuteximo capiacutetulo) 10

A importacircncia que o filoacutesofo daacute ao tiacutetulo de uma obra eacute esclarecedora para a compreensatildeo da

importacircncia de sua ideacuteia central ldquoo que o sobrescrito deve ser para uma carta eacute o que um tiacutetulo deve ser

para um livro ou seja antes de tudo deve ter o objetivo de destinaacute-lo agrave parte do puacuteblico que pode se

interessar por seu conteuacutedo Sendo assim o tiacutetulo precisa ser caracteriacutestico e por ser naturalmente

breve deve ser conciso lacocircnico pregnante e se possiacutevel um monograma do conteuacutedordquo

(Schopenhauer SOE 09-10)

27

condicionado por estas trecircs formas presentes a priori no intelecto humano tempo

espaccedilo e causalidade Quanto ao mundo noumecircnico que dentro da teoria kantiana eacute um

ldquox desconhecidordquo Schopenhauer o explica atraveacutes da Vontade sua traduccedilatildeo da coisa-

em-si Essa dualidade que traz agrave tona a ldquocompleta diversidade entre o ideal e o realrdquo

(Schopenhauer MVR 527) doutrina que de acordo com Schopenhauer (MVR 528) foi

expressa por Kant de forma soacutebria calma demonstrada e incontestaacutevel jaacute havia sido

expressa tambeacutem em linguagem mais miacutetica e poeacutetica por outras duas doutrinas que

tambeacutem estatildeo profundamente presentes na obra Schopenhaueriana Platatildeo e os escritos

indianos dos Vedas e Puranas

Os estudos das obras de Platatildeo e Kant foram recomendaccedilatildeo de Schultze

um dos professores de Schopenhauer em Gottingen (Weissmann 1980 54) e formam os

pilares filosoacuteficos do sistema schopenhaueriano A separaccedilatildeo entre o real e o ideal

executada por Kant eacute vista tambeacutem na obra platocircnica Sua teoria das ideacuteias bem como

sua alegoria da caverna satildeo expressotildees de uma intuiccedilatildeo da existecircncia daquela separaccedilatildeo

O que Kant teria sistematizado a seu modo eacute a mesma verdade que ldquojaacute Platatildeo

incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte

modo este mundo que aparece aos sentidos natildeo possui nenhum verdadeiro ser mas

apenas um incessante devir ele eacute e tambeacutem natildeo eacute sua apreensatildeo natildeo eacute tanto um

conhecimento mas uma ilusatildeordquo (Schopenhauer MVR 528)

Aleacutem de Platatildeo os livros sagrados dos indianos afirmavam esta ldquoilusatildeordquo

ldquofantasmagoriardquo do mundo e constituem tambeacutem uma fonte frequumlentemente utilizada

por Schopenhauer O contato do nosso filoacutesofo com o pensamento oriental se deu

quando do seu encontro com o orientalista Friedrich Majer no salatildeo de sua matildee em

28

Weimar A partir de entatildeo o interesse do filoacutesofo pelo pensamento oriental foi se

intensificando ao longo de sua vida 11

A mesma verdade representada de modo completamente outro eacute

tambeacutem uma doutrina capital dos vedas e puranas a saber a doutrina de

Maia pela qual natildeo se entende outra coisa senatildeo aquilo que Kant nomeia

o fenocircmeno em oposiccedilatildeo agrave coisa-em-si pois a obra de maia eacute

apresentada justamente como este mundo visiacutevel no qual estamos um

efeito maacutegico que aparece na existecircncia uma aparecircncia inconstante e

inessencial em si destituiacuteda de ser comparaacutevel agrave ilusatildeo de oacutetica e ao

sonho um veacuteu que envolve a consciecircncia humana um algo do qual eacute

igualmente falso e igualmente verdadeiro dizer que eacute ou natildeo eacute

(Schopenhauer MVR 528)

Estas trecircs doutrinas estavam admitidamente presentes quando da

elaboraccedilatildeo do nuacutecleo conceitual fundamental da posteriormente nominada Filosofia da

Vontade Entretanto aleacutem de formarem seu nuacutecleo conceitual podemos encontraacute-las

ainda posteriormente em outros instantes desta filosofia O pensamento oriental seraacute

figura fortemente presente na eacutetica schopenhaueriana desenvolvida no quarto livro do

Mundo onde o filoacutesofo adotaraacute como fundamento de sua eacutetica o sentimento da

compaixatildeo jaacute presente na doutrina budista Platatildeo e Kant satildeo ainda influecircncias

fundamentais como veremos no proacuteximo capiacutetulo da esteacutetica schopenhaueriana O

primeiro novamente atraveacutes de sua teoria das ideacuteias seraacute utilizado por Schopenhauer na

definiccedilatildeo do objeto artiacutestico Do segundo poderemos notar sua influecircncia nas teorias

schopenhauerianas do sublime da imaginaccedilatildeo e da contemplaccedilatildeo desinteressada todas

elas fundamentais agrave compreensatildeo da teoria da arte poeacutetica

- - - - - - - - - -

11

Suas fontes principais eram o Oupnekacutehat uma traduccedilatildeo latina dos vedas e o Asiatic Journals jornal

publicado pela sociedade asiaacutetica fundada em 1784 Para uma referecircncia completa das citaccedilotildees orientais

na obra de Schopenhauer veja o apecircndice do artigo de Moira Nicholls The influences of Eastern Thought

on Schopenhaueracutes Doctrine of the Thing-in-itself (in Janaway 1999 197-204)

29

Apresentadas as principais influecircncias teoacutericas do sistema

schopenhaueriano passemos a uma breve descriccedilatildeo do ambiente cultural que naquele

momento tinha como foco um projeto de fundaccedilatildeo e fundamentaccedilatildeo para o teatro e a

literatura germacircnicas Tal projeto envolveu os mais importantes dramaturgos criacuteticos

escritores e pensadores do periacuteodo imediatamente anterior a Schopenhauer12

e eacute

tambeacutem posteriormente retomado por Nietzsche em seu Nascimento da Trageacutedia Sua

importacircncia para a filosofia da vontade pode ser medida pela recorrente referecircncia feita

a estes pensadores nas obras dos filoacutesofos Seu iniacutecio em meados do seacuteculo XVIII deu-

se pela influecircncia exercida pelo historiador da arte Johann J Winckelmann junto aos

escritores poetas e dramaturgos posteriores dentre eles Lessing Goethe e Schiller

A influecircncia winckelmanniana que de acordo com Butler (1958 11)

criou ondas cujo violento distuacuterbio ldquoainda varrem as praias do seacuteculo XXrdquo se pautou

em duas noccedilotildees fundamentais13

a imitaccedilatildeo dos antigos e o belo ideal Winckelmann

propunha um novo modelo no qual a arte germacircnica deveria se basear para atingir uma

grandiosidade rara e ldquoinimitaacutevelrdquo a imitaccedilatildeo dos gregos Por esta imitaccedilatildeo o

historiador natildeo propunha uma mera coacutepia das obras de arte gregas poreacutem uma imitaccedilatildeo

do modo de produccedilatildeo artiacutestica dos gregos qual seja sintetizar a beleza ideal descoberta

na observaccedilatildeo da diversidade objetiva da natureza Esta proposta de um retorno ao

modelo antigo coloca Winckelmann na esteira da conhecida querela entre antigos e

modernos e eacute a igniccedilatildeo para o periacuteodo literaacuterio conhecido como classicismo germacircnico

Esta disputa quanto agrave valorizaccedilatildeo das obras poeacuteticas antigas ou modernas estaraacute de um

modo ou de outro presente nas teorias schopenhaueriana e nietzscheana da trageacutedia

12

De acordo com Schopenhauer as obras de tais poetas e escritores assim como a filosofia de Kant satildeo

exemplos para os quais a literatura e a filosofia pobres de seu tempo deveriam se voltar No que se refere

ao uso da liacutengua ele aconselha ldquoLede vede qual liacutengua Winckelmann Lessing Klopstock Wieland

Goethe Buumlrger Schiller falaram e emulai-a mas natildeo fazei o mesmo com o jargatildeo estupidamente

excogitado pelos miseraacuteveis literatos atuais e entre eles pelos professores que vatildeo agrave escola de liacutenguardquo

(Schopenhauer SOE 57-58) 13

Esta duas noccedilotildees fundamentais satildeo ressaltadas por Suumlssekind e Machado em seus trabalhos sobre o

tema Veja Suumlssekind 2008 67-77 e Machado 2006 9-14

30

Como veremos posteriormente Schopenhauer privilegiaraacute a trageacutedia moderna em

detrimento da antiga argumentando que aquela cumpre com maior competecircncia o seu

objetivo enquanto forma de arte qual seja provocar repulsa agrave vontade de viver e

estimular sua negaccedilatildeo Apesar deste privileacutegio pelas obras traacutegicas modernas o filoacutesofo

natildeo deixa como seus contemporacircneos de ter os gregos como modelo e natildeo satildeo raros

seus elogios agraves produccedilotildees helecircnicas Para Schopenhauer Winckelmann foi para a

histoacuteria da arte assim como ele o eacute para a da filosofia um exemplo do modo epiciacuteclico

atraveacutes do qual a natureza de tempo em tempo faz avanccedilar o conhecimento do gecircnero

humano Para o filoacutesofo a retomada do projeto kantiano realizada pelo seu sistema eacute a

demonstraccedilatildeo de que entre ele e Kant nenhum conhecimento foi produzido Como

exemplo deste esquema epiciacuteclico na histoacuteria da arte Schopenhauer utiliza-se do

retorno de Winckelmann agrave beleza claacutessica o que nos mostra a importacircncia dada pelo

filoacutesofo agrave forma de arte grega bem como ao projeto inaugurado pelo historiador da arte

Apoacutes explicar o esquema epiciacuteclico da evoluccedilatildeo dos progressos humanos

Schopenhauer diz

Para quem deseja poreacutem ter uma prova do esquema geral dos

epiciclos aqui exposto com base na histoacuteria da arte basta observar a

escola de escultura de Bernini que florescia ainda no seacuteculo passado

particularmente em seu desenvolvimento francecircs sucessivo e que

representava a natureza comum em vez da beleza claacutessica e o decoro do

minueto francecircs em vez da simplicidade e da graccedila antigas Tal escola

faliu quando apoacutes a repreensatildeo de Winckelmann voltou-se agrave escola dos

antigos (Schopenhauer SOE 110)

Nietzsche por sua vez seguiraacute o caminho winckelmanniano de exaltaccedilatildeo da forma de

arte antiga apresentando a trageacutedia grega como modelo para a arte moderna e elogiando

a iniciativa de seus predecessores em valorizar e recuperar a arte helecircnica

31

Conviria que alguma vez se pesasse diante dos olhos de um juiz

insubornaacutevel em que tempo e em que homens o espiacuterito alematildeo se

esforccedilou mais vigorosamente por aprender dos gregos e se admitirmos

com confianccedila que esse louvor uacutenico deveria ser atribuiacutedo agrave nobiliacutessima

luta de Goethe Schiller e Winckelmann pela cultura haveria em todo

caso que acrescentar que desde aquele tempo e depois das influecircncias

imediatas daquela luta tornou-se cada vez mais fraca de maneira

incompreensiacutevel a aspiraccedilatildeo de se chegar por uma mesma via agrave cultura e

aos gregos (Nietzsche NT 120)

Podemos perceber entatildeo a importacircncia do helenismo proposto por Winckelmann no

pensamento germacircnico ao observarmos a sua duraccedilatildeo tendo em vista que mais de um

seacuteculo separa o historiador da arte e o filoacutesofo da vontade de poder o que confirma a

forccedila de suas propostas para uma cultura em formaccedilatildeo e justifica o epiacuteteto com o qual

Butler caracterizou este periacuteodo dizendo que nele vemos ldquoa tirania da Greacutecia sobre a

Alemanhardquo14

O segundo ponto fundamental da teoria da arte winckelmanniana o belo

ideal natildeo provocou menor interesse em seu tempo Este belo ideal era alcanccedilado a

partir da reuniatildeo em uma uacutenica obra harmocircnica daquilo que o artista observa de mais

belo na natureza

A natureza tem seus defeitos o corpo mais belo natildeo deixa de tecirc-los e

nele encontramos frequumlentemente partes que em outros satildeo mais belas ou

podem supor-se mais perfeitas [] Os gregos trataram de reunir as formas

elegantes de vaacuterios corpos belos como sabemos pelo diaacutelogo de Soacutecrates com o

ceacutelebre pintor Parrasio [] Esta seleccedilatildeo das partes belas e sua harmocircnica

associaccedilatildeo em uma soacute figura produziu a beleza ideal (Winckelmann 2002

130)

Tal beleza encontrou sua manifestaccedilatildeo primeira na Greacutecia do periacuteodo helecircnico devido

ao favorecimento das condiccedilotildees geograacutefico-climaacuteticas15

e poliacuteticas16

Aleacutem da beleza

14

Tiacutetulo de sua obra Butler 1958 15

Sobre a influecircncia climaacutetica Winckelmann deduz ldquoA natureza depois de haver se manifestado em

gradaccedilotildees extremas de frio e de calor se estabeleceu na Greacutecia como em seu centro e por isso reina

naquele paiacutes uma temperatura intermediaacuteria entre o inverno e o veratildeo E quanto mais se aproxima deste

centro mais claridade e serenidade oferece e suas obras se manifestam em formas mais graciosas e

amaacuteveis e com detalhes mais caracteriacutesticos e decididosrdquo (Winckelmann 2002106) 16

Sobre as condiccedilotildees poliacuteticas sejam elas patriarcais democraacuteticas ou tiracircnicas Winckelmann conclui o

seguinte ldquoCom relaccedilatildeo ao regime poliacutetico e o governo da Greacutecia a liberdade eacute uma das causas da

preeminecircncia dos gregos na arte Tambeacutem a liberdade parece ter estabelecido na Greacutecia a sua sede existia

32

formal retirada da diversidade das formas naturais eleitas as mais belas as obras gregas

eram exemplares devido agrave importacircncia dada pelos artistas agrave sua expressatildeo A obra de

arte deve sua forccedila tanto agrave beleza das formas quanto agrave expressatildeo da alma nela contida

De acordo com Winckelmann ldquoa expressatildeo de uma alma grande vai muito aleacutem da

plasmaccedilatildeo de uma bela naturezardquo isto ocorre devido ao fato de que para o historiador

da arte ldquona Greacutecia a sabedoria estendia a matildeo agrave arte e insuflava nas figuras almas

mais que comunsrdquo (Winckelmann 1958 19) As caracteriacutesticas que esta expressatildeo deve

possuir satildeo aquelas contidas na passagem mais famosa da obra de Winckelmann na

qual ele descreve ainda como exemplo daquela expressatildeo artiacutestica o grupo estatuaacuterio

do Laocoonte que por sua vez seraacute alvo de uma grande controveacutersia posterior da qual

participaratildeo dentre outros Lessing Herder Goethe Schelling e Schopenhauer

Reproduzimos a passagem de Winckelmann em sua integridade

A caracteriacutestica geral e principal das obras mestras gregas eacute uma

nobre simplicidade e uma serena grandeza tanto na atitude como na

expressatildeo Assim como nas profundidades o mar estaacute sempre calmo por

muito que se agite a superfiacutecie do mesmo modo a expressatildeo nas figuras

dos gregos mostra em meio a todas as paixotildees uma alma grande e

comedida Isso transmite o rosto do Laocoonte ndash e natildeo soacute o dele ndash em

meio agrave mais violenta dor O sofrimento que aparece em todos os

muacutesculos e fibras do corpo e que no baixo ventre contraiacutedo se

experimenta tatildeo intensamente que parecemos senti-lo natildeo se exterioriza

contudo mediante qualquer ira no rosto e em toda a atitude Natildeo lanccedila

um grito terriacutevel tal como Virgiacutelio cantou em seu Laocoonte A abertura

da boca natildeo o permitiria Mais parece um suspiro angustiado como o

descreve Sadolet A dor do corpo e a grandeza da alma estatildeo distribuiacutedos

com igual forccedila atraveacutes de toda a composiccedilatildeo da figura e em certa

medida estatildeo equilibrados Laocoonte sofre mas sofre como o

Filoctetes de Soacutefocles sua dor nos toca a alma mas desejariacuteamos poder

suportar essa dor com a grandeza desse homem (Winckelmann 1958

18-19 grifo nosso)

inclusive junto ao tronos de seus reis que governavam paternalmente a seus suacuteditos antes que mais

ilustrados gozassem do destino de uma completa liberdade Homero chama a Agamemnoacuten de pastor de

seus povos com o que queria designar sua ternura com seus subordinados e sua preocupaccedilatildeo constante

pela felicidade dos mesmos Eacute bem verdade que depois surgiram tiranos mas natildeo o foram mais para uma

determinada cidade e a naccedilatildeo inteira jamais reconheceu um soberano uacutenicordquo (Winckelmann 2002 109)

33

Desta famosa passagem retiramos dois momentos que especialmente nos interessam O

primeiro dele eacute a enunciaccedilatildeo que caracterizaraacute o ideal de beleza das obras gregas nobre

simplicidade e uma serena grandeza Este ideal winckelmanniano de beleza eacute o que

torna a arte grega nas palavras de Suumlssekind ldquoinimitaacutevel e ao mesmo tempo faz dela o

modelo a ser imitadordquo (Suumlssekind 2008 69) Interessa-nos especialmente devido agrave

influecircncia desta definiccedilatildeo para a teoria do jovem professor de filologia da Basileacuteia

Podemos ver ateacute mesmo pelo vocabulaacuterio utilizado para descrever a arte grega a

proximidade e a influecircncia exercida por estes conceitos nas teorias esteacuteticas do primeiro

Nietzsche Luminosidade serenidade harmonia satildeo alguns dos conceitos que

posteriormente seratildeo utilizados por Nietzsche ao definir o seu impulso artiacutestico

apoliacuteneo17

O segundo momento - quando Winckelmann defende o espiacuterito grego na

escultura do Laocoonte em contraposiccedilatildeo ao personagem de Virgiacutelio comparando esta

representaccedilatildeo escultural com o Filoctetes de Soacutefocles - seraacute o precursor do posterior

debate sobre as fronteiras que separam as formas de arte Para Winckelmann ldquoa nobre

simplicidade e a serena grandeza das estatuas gregas eacute tambeacutem a verdadeira

caracteriacutestica dos escritos gregos da melhor eacutepoca dos escritos da escola

socraacuteticardquo(Winckelmann 1958 31) O debate sugerido pela passagem do qual

participaraacute posteriormente o proacuteprio Schopenhauer seraacute iniciado por outro pensador

de grande importacircncia para o projeto cultural alematildeo Gotthold Ephraim Lessing

Lessing em sua obra Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da

poesia apresentaraacute a contenda que chegaraacute ateacute Schopenhauer Para Lessing o ponto de

discordacircncia com Winckelmann estaacute no motivo pelo qual na escultura o Laocoonte natildeo

17

Segundo Rodriges (2007 93-126) tambeacutem o conceito do impulso dionisiacuteaco estaria mesmo que em

germe presente nos estudos de Winckelmann Segundo seu artigo o mapeamento da origem e

desenvolvimento da discussatildeo sobre os citados impulsos artiacutesticos da natureza ou seja sobre a

importacircncia dos deuses Apolo e Dioniacutesio na cultura grega abrangeria necessariamente diversas aacutereas do

pensamento alematildeo desde Winckelmann dentre elas os estudos filoloacutegicos o movimento romacircntico e as

filosofias idealistas

34

apresenta as caracteriacutesticas de quem grita e lamenta Como vimos para Winckelmann o

conjunto estatuaacuterio em questatildeo eacute exemplar pelo fato de transmitir atraveacutes da atitude

estoacuteica diante da dor a grandeza de alma que seria a regra universal da verdadeira arte

grega Esta grandeza enquanto regra universal estaria ainda de acordo com o

historiador da arte presente tanto nas formas pictoacutericas como nas obras poeacuteticas

Contrapondo-se a Winckelman Lessing afirma - exemplificando atraveacutes de passagens

de poetas queridos ao proacuteprio Winckelmann como Homero e Soacutefocles - que em vaacuterios

momentos da poesia antiga diversos personagens dentre eles deuses e heroacuteis proferem

exaltados lamentos e gritos e isto natildeo lhes subtrai a grandeza da alma Sendo assim se

na poesialdquoo gritar na sensaccedilatildeo de dor corporal pode coexistir muito bem com uma

grande alma portanto a expressatildeo de uma tal alma natildeo pode ser a causa pela qual

apesar disso o artista natildeo quer imitar esse grito no seu maacutermore antes deve haver um

outro motivo por que aqui ele separa-se do seu rival o poeta que expressa esse grito

com o melhor propoacutesitordquo(Lessing 1998 86) O motivo pelo qual em sua representaccedilatildeo

estatuaacuteria o Laocoonte natildeo grita eacute para Lessing uma questatildeo de limitaccedilatildeo da forma de

expressatildeo escultoacuterica que ao se submeter agrave ldquolei da belezardquo natildeo pode representar o grito

desfigurador Em suas palavras

O mestre visava a suprema beleza sob as condiccedilotildees aceitas da dor

corporal Esta em toda a sua violecircncia desfiguradora era incompatiacutevel

com aquela Ele foi obrigado a reduzi-la ele foi obrigado a suavizar o

grito em suspiro natildeo porque o grito denuncia uma alma indigna mas

antes porque ele dispotildee a face de um modo asqueroso (Lessing 1998

92)

Devemos ressaltar que segundo a teoria artiacutestica de Lessing para quem as leis a que

devem obedecer a arte estatildeo ligadas agrave sua interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica a arte eacute

julgada atraveacutes do seu efeito Neste contexto ao conceder a seus personagens

caracteriacutesticas de humanidade como por exemplo a manifestaccedilatildeo da dor atraveacutes de

35

lamentos e gritos o poeta estaria aproximando o heroacutei traacutegico do puacuteblico a ser atingido

e consequumlentemente maximizando a identificaccedilatildeo entre eles e com isto o efeito

esperado qual seja a catarse atraveacutes do temor e da compaixatildeo Esta identificaccedilatildeo

alcanccedilada por via da demonstraccedilatildeo dos lamentos dos heroacuteis dramaacuteticos natildeo pode ser

obtida da mesma forma pelas artes pictoacutericas Nestas que satildeo expressotildees de um

momento uacutenico a beleza natildeo pode deixar de estar presente pois ela eacute um dos

ingredientes mais fundamentais do efeito buscado Na poesia o heroacutei natildeo seraacute

caracterizado em uma uacutenica accedilatildeo como ocorre na escultura Sendo assim o grito

narrado eacute apenas um momento do conjunto que iraacute definir o personagem

O Laocoonte de Virgiacutelio grita mas esse Laocoonte que grita eacute

justamente aquele que noacutes jaacute conhecemos e amamos como o patriota

mais cordato e o pai mais afetuoso Noacutes vinculamos o seu grito natildeo ao

seu caraacuteter mas antes apenas ao seu sofrimento insuportaacutevel Apenas

esse uacuteltimo noacutes ouvimos no seu grito e o poeta pode tornaacute-lo sensiacutevel

apenas graccedilas a esse grito (Lessing 1998 106)

Com isto tanto o escultor que suprime o grito quanto o poeta que o descreve ao

fazerem o fazem de acordo com as leis que regem suas respectivas formas de arte

Da contenda sobre o grito do Laocoonte e sua representaccedilatildeo escultoacuterica e

poeacutetica iratildeo participar ainda diversos pensadores Dentre os mais ilustres podemos

destacar Goethe cuja explicaccedilatildeo sobre a escultura proacutexima em muitos pontos da de

Lessing encontra-se nos Propileus Para o poeta o grupo estatuaacuterio ldquoesgota o seu objeto

e preenche com sucesso todas as condiccedilotildees da arterdquo (Goethe 2005126) Segundo

Goethe a escultura eacute limitada a um uacutenico momento da accedilatildeo e sua comparaccedilatildeo com a

poesia de Virgiacutelio eacute injusta O poeta a avalia assim como Lessing atraveacutes de seu efeito

ainda dentro das categorias poeacuteticas de Aristoacuteteles e destaca

O ser humano possui apenas trecircs sentimentos no sofrimento

proacuteprio e alheio o medo o terror e a compaixatildeo a previsatildeo temerosa de

um mal que se aproxima a percepccedilatildeo inesperada do sofrimento presente

36

e a participaccedilatildeo no sofrimento duradouro ou que passou todos os trecircs

sentimentos satildeo representados e suscitados por esta obra de arte e na

verdade na gradaccedilatildeo a mais conveniente (Goethe 2005 126)

Em sua obra principal Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 46 a seus comentaacuterios do

Laocoonte que seratildeo acrescidos de exemplos no posterior volume de suplementos

Reconhece o avanccedilo feito por Lessing ao colocar no lugar de um fundamento

psicoloacutegico um fundamento puramente esteacutetico e critica ainda as teorias psicoloacutegicas e

fisioloacutegicas de seu tempo como as de Hirt e Fernow18

Para Schopenhauer apesar de

sua aproximaccedilatildeo do que seria uma ldquoexplicaccedilatildeo corretardquo da obra Lessing natildeo encontrou

o seu ponto exato qual seja a explicaccedilatildeo de que o grito natildeo pertence ao domiacutenio de

uma representaccedilatildeo escultoacuterica

Antes de qualquer investigaccedilatildeo psicoloacutegica e fisioloacutegica sobre se

Laocoonte em sua situaccedilatildeo poderia gritar ou natildeo deve-se decidir em

relaccedilatildeo ao grupo de esculturas o seguinte que nele o grito natildeo pode ser

exposto pelo motivo de que a exposiccedilatildeo do grito reside por inteiro fora

do domiacutenio da escultura (Schopenhauer MVR 2005 303)

Para Schopenhauer a simples exposiccedilatildeo que representaria o grito ou seja ldquoo

escancarar violento da bocardquo natildeo pode ocasionar o efeito que o grito mesmo enquanto

forma de expressatildeo ocasionaria O efeito que o grito pode causar em uma arte

descritiva atraveacutes do uso da imaginaccedilatildeo do leitor ou mesmo na arte representativa no

teatro tornar-se-ia motivo de riso caso seja representado por uma boca escancarada na

arte plaacutestica Schopenhauer utiliza-se do exemplo do Laocoonte para demonstrar a

necessidade do estabelecimento de fronteiras entre as artes que devido agrave suas formas

devem obedecer agraves competecircncias determinadas pelo objeto representado (no caso da

teoria schopenhaueriana as competecircncias seratildeo determinadas pelas ideacuteias a serem

representadas como veremos posteriormente) Esta preocupaccedilatildeo com os limites entre as

18

Segundo Schopenhauer Hirt (Horen 1797 parte 10) apresenta a explicaccedilatildeo de que Laocoonte natildeo grita

pois estaacute impossibilitado pela sufocaccedilatildeo que o leva agrave morte Fernow por sua vez faz uma amalgama das

opiniotildees de Winckelmann Lessing e Hirt

37

formas artiacutesticas presente na esteacutetica schopenhaueriana e no Laocoonte de Lessing foi

contudo como nos lembra Suzuki (Rosenfield 2001 36-56) ignorada por Goethe

(como podemos ver pelos elementos da poeacutetica aristoteacutelica utilizados pelo poeta para

explicar a escultura na citaccedilatildeo presente na paacutegina anterior) e seraacute posteriormente

tambeacutem desconsiderada por Nietzsche em seu projeto de uma obra de arte total

Diante do acima exposto ainda tratando de Lessing podemos perceber

que toda a discussatildeo acerca do Laocoonte foi desencadeada pela motivaccedilatildeo de defesa da

arte poeacutetica agrave qual Lessing dedicou sua vida como escritor diretor e criacutetico teatral

Desta forma a importacircncia de Lessing para o tema em questatildeo nesta dissertaccedilatildeo estaacute

mais ligado ao seu papel junto a um projeto de formaccedilatildeo de um teatro alematildeo e sua

interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica Enquanto teoacuterico e criacutetico do teatro o autor da

Dramaturgia de Hamburgo exerceu grande influecircncia na cultura posterior ao oferecer a

seu tempo uma nova interpretaccedilatildeo da poeacutetica aristoteacutelica que vai de encontro agraves

interpretaccedilotildees francesas e de Gottsched que eram por sua vez inflexiacuteveis em relaccedilatildeo agraves

regras (das unidades de espaccedilo tempo e lugar do estatuto social dos personagens da

linguagem e do nuacutemero de atos) Lessing atento agraves necessidades de uma burguesia em

ascensatildeo que natildeo se identificava mais com as concepccedilotildees aristocraacuteticas do modelo de

teatro francecircs e imbuiacutedo na construccedilatildeo do projeto de formaccedilatildeo cultural de uma naccedilatildeo

fragmentada oferece atraveacutes de suas interpretaccedilotildees uma seacuterie de elementos que estaratildeo

presentes nas consideraccedilotildees de pensadores posteriores Dentre estes elementos podemos

destacar as seguintes uma discussatildeo acerca dos conceitos de mimese temor

compaixatildeo catarse a defesa da utilizaccedilatildeo de caracteres mistos a liberdade do gecircnio

ante as regras o enaltecimento dos teatros espanhol e inglecircs principalmente de

Shakespeare

38

Ao tratarmos do referido projeto de um teatro alematildeo e tambeacutem do

classicismo germacircnico dois nomes ainda satildeo fundamentais para sua formaccedilatildeo bem

como eacute incontestaacutevel sua influecircncia sobre Schopenhauer e o jovem Nietzsche19

satildeo

eles Goethe e Schiller O primeiro deles maior dos poetas do classicismo germacircnico

foi um ampliador do projeto Winckelmanniano ldquoPois Goethe pensa o ideal de beleza

natildeo soacute em relaccedilatildeo agrave pintura e agrave escultura mas tambeacutem e principalmente em relaccedilatildeo agrave

poesia ou agrave arte dramaacutetica ampliando as ideacuteias de Winckelmann nesse domiacutenio como

teoacuterico e como criador de obras teatraisrdquo (Machado 2006 14) Seu classicismo

impresso em seus textos teoacutericos e na forma e conteuacutedo de diversas de suas produccedilotildees

literaacuterias eacute o auge do projeto Winckelmanniano Podemos ver na esteira de Machado

(2006 14-22) que o ideal de beleza proposto por Winckelmann eacute ainda o que domina a

noccedilatildeo Goetheana dos gregos e eacute apoiado neste ideal que o poeta interpreta a arte do

mundo helecircnico e a apresenta como um exemplo para a arte de seu tempo Ressaltamos

poreacutem que dada a sua extrema heterogeneidade como nos adverte Butler (1958 85)

encontrar um senso de harmonia interna no todo da obra goetheana eacute tarefa tatildeo incerta

como determinar o grau de sua influecircncia no pensamento de nossos filoacutesofos No que se

refere a Schopenhauer entretanto natildeo podemos deixar de ressaltar que sua convivecircncia

com o poeta foi norteada pelas discussotildees cientiacuteficas e filosoacuteficas que ocupavam o palco

de seus estudos agrave eacutepoca Goethe dedicou vinte anos de sua vida ao estudo das cores e

sua obra Doutrina das cores eacute o resultado desta investigaccedilatildeo Ela atraiu o interesse do

jovem Schopenhauer que apoacutes alguns encontros com Goethe dedicou-se a escrever a

sua proacutepria teoria que divergia em diversos pontos da teoria do poeta fato que marcou o

fim da relaccedilatildeo amistosa dos mesmos Sobre este periacuteodo de convivecircncia

19

De acordo com Martin (1996) a obra desenvolvida por Nietzsche enquanto escritor e pensador eacute

demasiado complexa para ser reduzida ou atribuiacuteda a determinada influecircncia Entretanto em uma

estatiacutestica crua podemos ter o vislumbre desta influecircncia como se segue ldquoSchopenhauer eacute referenciado

394 vezes na obra de Nietzsche Wagner 327 vezes a Goethe existem 311 menccedilotildees Schiller encontra-se

em nono lugar com 126 menccedilotildeesrdquo (Martin 1996 5)

39

especificamente sobre o episodio citado Goethe vai escrever mais tarde conforme

citaccedilatildeo de Safranski

O Dr Schopenhauer foi para mim um amigo benevolente

Estivemos de acordo em muitas coisas mas foi impossiacutevel evitar ao final

um certo distanciamento como dois amigos que ateacute certo momento

caminharam juntos se datildeo a matildeo para despedir pois querem dirigir-se um

ao norte outro ao sul perdendo-se rapidamente de vista um ao outro

(apud Safranski 1991 265)

Ainda na esteira do movimento de estabelecimento de um projeto

artiacutestico nacional encontramos Schiller que ao lado de Goethe foi o responsaacutevel pelas

maiores obras do classicismo literaacuterio de Weimar Para o estudo em questatildeo o que mais

nos interessa em sua obra eacute o periacuteodo no qual antes do contato com Goethe Schiller

produz seus escritos teoacutericos sobre a trageacutedia Estes estudos podem ser considerados

em uma perspectiva histoacuterica como uma ponte entre a interpretaccedilatildeo da trageacutedia nos

moldes puramente aristoteacutelicos e a trageacutedia vista enquanto forma de arte que para

atingir o efeito dela esperado deve refletir a condiccedilatildeo traacutegica do homem pensada com

base em elementos retirados da filosofia moral e da esteacutetica kantiana Em seus textos

teoacutericos sobre a poesia traacutegica pertencentes ao periacuteodo que Schiller assume ter estado

sob influecircncia da filosofia kantiana ele descreve a trageacutedia como expressatildeo do sublime

ndash conceito extraiacutedo da criacutetica kantiana do juiacutezo ndash como a representaccedilatildeo sensiacutevel da

dicotomia entre a liberdade moral a vontade individual (vontade tomada enquanto

faculdade de pensar e agir livremente) por um lado e a necessidade natural e instintiva

por outro Vemos pela primeira vez em Schiller a utilizaccedilatildeo de categorias filosoacuteficas

kantianas na elaboraccedilatildeo de uma teoria da trageacutedia o que teraacute continuidade com as

teorias do idealismo absoluto e a do proacuteprio Schopenhauer Este eacute um momento

extremamente importante devido ao fato de marcar toda a reflexatildeo futura sobre o tema

ao fundar o deslocamento de uma interpretaccedilatildeo poeacutetica da trageacutedia baseada em

40

comentaacuterios da obra aristoteacutelica para uma interpretaccedilatildeo do traacutegico enquanto fenocircmeno

que descreve a situaccedilatildeo do homem no mundo De acordo com Machado ldquoEacute do

encontro de um grande dramaturgo como Schiller com a filosofia de Kant -

principalmente a sua eacutetica considerada como uma filosofia da liberdade e sua

esteacutetica no que diz respeito agrave teoria do juiacutezo sobre o sublime ndash que nasce a primeira

filosofia do traacutegico uma reflexatildeo filosoacutefica original que criou um tipo novo de

pensamento sobre a trageacutediardquo (Machado 2006 54) Na teoria schopenhaueriana da

trageacutedia podemos ver caracteriacutesticas da teoria schilleriana Primeiramente a presenccedila

marcante da influecircncia kantiana no que se refere ao sublime Em segundo lugar a

leitura da trageacutedia enquanto instrumento para a percepccedilatildeo de uma ordem moral do

mundo Tais caracteriacutesticas seratildeo aprofundadas no capiacutetulo posterior Vale antecipar que

na obra do jovem Nietzsche poderemos ver a exaltaccedilatildeo de Schiller em sua tentativa de

compreensatildeo do mundo helecircnico aleacutem do elogio agrave teoria schilleriana do coro Veremos

entretanto uma criacutetica acirrada no que se refere ao projeto de um teatro enquanto

instituiccedilatildeo moral

Neste capiacutetulo foram delineadas as principais influecircncias filosoacuteficas que

alicerccedilaram o sistema schopenhaueriano bem como esboccedilaram-se as diversas teorias

artiacutesticas que surgiram no periacuteodo em questatildeo teorias estas que propuseram mateacuteria

para a formaccedilatildeo do pensamento de nossos filoacutesofos A partir da cisatildeo entre fenocircmeno e

noumeno proposta por Kant e sua primeira criacutetica Schopenhauer elabora as matrizes de

seu sistema e para ilustraacute-lo encontra apoio na cosmologia platocircnica e no pensamento

oriental Vimos ainda que sua teoria esteacutetica eacute alimentada pela frequumlentaccedilatildeo agraves

categorias apresentadas por artistas teoacutericos e criacuteticos de arte de seu periacuteodo Por seu

turno vimos com Winckelmann a origem do estudo sobre os gregos e sua arte aleacutem do

estabelecimento destes como um modelo para a arte alematilde projeto este que foi

41

retomado por Lessing que por sua vez intensificou o estudo e propocircs um modelo de um

teatro nacional independente projeto que seraacute mais tarde revisitado e aprofundado por

Goethe e Schiller Esta apresentaccedilatildeo de influecircncias eacute imprescindiacutevel para identificarmos

a origem de certos elementos que satildeo fundamentais ao entendimento da proacutepria doutrina

schopenhaueriana tais como o caraacuteter moral de sua teoria esteacutetica sua preocupaccedilatildeo

com o estabelecimento de limite entre as artes sua interpretaccedilatildeo e adaptaccedilatildeo da poeacutetica

sua utilizaccedilatildeo de conceitos esteacuteticos kantianos (sublime belo e desinteresse) sua

apreciaccedilatildeo das obras modernas seu reconhecimento da produccedilatildeo claacutessica seu desprezo

agrave filosofia de seu tempo Eacute tambeacutem atraveacutes do mapeamento aqui feito de algumas de

suas influecircncias mesmo que brevemente apontado que poderemos mais tarde

identificar alguns dos aspectos originais e singulares de sua teoria

Quanto agraves influecircncias presentes na teoria da trageacutedia do jovem Nietzsche

apontaremos complementos no capiacutetulo correspondente Eacute imprescindiacutevel dar destaque

no que se refere agrave obra nietzscheana agrave sua formaccedilatildeo filoloacutegica ao seu conviacutevio com

Richard Wagner e agrave sua leitura do proacuteprio Schopenhauer - e isto seraacute feito

posteriormente Esperamos ter deixado claro ateacute aqui que diferentemente de Zaratustra

Nietzsche natildeo desceu simplesmente de uma montanha mas faz parte de uma tradiccedilatildeo

histoacuterica assim como Schopenhauer e que a contextualizaccedilatildeo de suas teorias eacute

fundamental para a identificaccedilatildeo dos elementos ali presentes que singularmente se

originaram do sistema metafiacutesico da Vontade

42

2 A TEORIA SCHOPENHAUERIANA DA TRAGEacuteDIA E SEU

SUBSTRATO METAFIacuteSICO

ldquoOra se todo mundo como representaccedilatildeo eacute

a visibilidade da Vontade a arte eacute o

clareamento dessa visibilidade a cacircmera

obscura que mostra os objetos mais

puramente permitindo-nos melhor abarcaacute-

los e compreendecirc-los eacute o teatro dentro do

teatro a peccedila dentro da peccedila em Hamletrdquo

(Schopenhauer)

Utilizando-se de uma metaacutefora retirada do Eacutedipo de Soacutefocles Schopenhauer nos

oferece um exemplo da caracteriacutestica de conexatildeo interna dos temas abordados em sua

obra20

ldquo minha filosofia eacute como a Tebas de cem portas desde todos os lados se pode

entrar e atraveacutes de todos se pode chegar por um caminho direto ateacute o centrordquo

(Schopenhauer 2002 4) Tendo em vista que nosso objetivo neste capiacutetulo eacute apresentar

a teoria schopenhaueriana da trageacutedia e seus fundamentos filosoacuteficos utilizaremo-nos

desta porta para termos acesso ao sistema schopenhaueriano Procuraremos percorrer o

20

Barboza define bem esta caracteriacutestica marcante da filosofia schopenhaueriana ldquoSchopenhauer eacute o

filoacutesofo da organicidade Procura-a porque com ela onde quer que se esteja no seu sistema estar-se-aacute

em toda parte O todo conteria as partes e seria contido por elas De uma metafiacutesica da efetividade se vai

para uma do belo desta para a da eacutetica que por sua vez pode remeter agrave muacutesica por seu turno a nos

enviar para a efetividade numa por assim dizer circularidade virtuosa A unidade natildeo se perde do

horizonte de observaccedilatildeordquo (Barboza 2001 137)

43

substrato metafiacutesico sustentador da teoria do traacutegico schopenhaueriana e perceber assim

a conectividade interna existente entre sua cosmologia sua teoria esteacutetica e sua eacutetica

De posse deste meacutetodo procuraremos destacar os conceitos fundamentais da teoria

traacutegica e de sua visatildeo de mundo que viratildeo posteriormente se fazer presentes tambeacutem

na obra do jovem Nietzsche

21 O lugar da trageacutedia na obra do filoacutesofo

Agrave descriccedilatildeo das artes poeacuteticas Schopenhauer dedica o paraacutegrafo 51 do primeiro

volume e o capiacutetulo 37 do segundo volume de sua obra principal Tais descriccedilotildees

encontram-se por sua vez ao final dos trechos dedicados agrave teoria esteacutetica (livro III de

MVR e sus complementos) e finalizam seus apontamentos do que podemos chamar na

esteira de Young (2005) das artes natildeo-musicais21

Em ambos os casos a teoria da

trageacutedia estaacute localizada ao final da apresentaccedilatildeo Esta localizaccedilatildeo juntamente com as

diversas citaccedilotildees e exemplos retirados de peccedilas traacutegicas das quais o filoacutesofo se utiliza ao

longo de seu trabalho nos permite ver a importacircncia da arte traacutegica para Schopenhauer

Em sua teoria artiacutestica existe uma hierarquizaccedilatildeo das artes que leva em consideraccedilatildeo a

capacidade de cada uma em apresentar um grau especiacutefico de objetivaccedilatildeo da vontade

Na cosmologia schopenhaueriana a vontade essecircncia do mundo identificada como

sendo a coisa-em-si kantiana manifesta-se (torna-se objeto de conhecimento) atraveacutes de

diversos graus ndash que exprimem a nitidez com que a vontade se manifesta para o

observador - representados pelos reinos da natureza e finalmente pelo homem Desta

forma ela se objetivaria no mundo inorgacircnico atraveacutes das forccedilas magneacuteticas e da

gravidade no mundo vegetal atraveacutes das funccedilotildees orgacircnicas no mundo animal atraveacutes

21

Como veremos mais adiante a muacutesica eacute uma exceccedilatildeo no sistema das artes schopenhaueriano pois natildeo

se relaciona a uma objetivaccedilatildeo da vontade mas expressa a proacutepria vontade e desta forma natildeo figura na

sistematizaccedilatildeo hieraacuterquica

44

dos instintos e dos motivos assim como o faz no homem A classificaccedilatildeo das artes

corresponde portanto a esta hierarquizaccedilatildeo cosmoloacutegica de objetivaccedilatildeo da vontade22

Sendo assim a arquitetura e a hidraacuteulica mostram a objetivaccedilatildeo da vontade no seu grau

mais baixo ao expor o jogo das forccedilas que caracterizam a mateacuteria tais como a gravidade

rigidez dureza resistecircncia luz A jardinagem e a pintura da natureza satildeo as formas

artiacutesticas cujo fim eacute a exposiccedilatildeo da objetivaccedilatildeo da vontade que se manifesta no reino

vegetal A pintura de animais encontra-se em um niacutevel superior pois o reino animal

objeto de sua representaccedilatildeo expotildee de forma mais evidente a vontade objetivada Temos

ainda as pinturas de retratos a pintura histoacuterica e a escultura que das artes plaacutesticas

formam a categoria superior cujo objeto eacute a exposiccedilatildeo da vontade no grau mais elevado

de sua cognoscibilidade o homem Esta mesma exposiccedilatildeo a do homem eacute tambeacutem o

objeto da arte poeacutetica que agrave diferenccedila das artes que fazem sua exposiccedilatildeo de modo

puramente intuitivo eacute auxiliada pela imaginaccedilatildeo No aacutepice das artes poeacuteticas

encontramos a trageacutedia a uacuteltima arte natildeo-musical a ser descrita A arte traacutegica eacute aquela

que possui a caracteriacutestica de por sua natureza representar de forma mais ilustrativa a

objetivaccedilatildeo mais desenvolvida da vontade a vida humana e suas relaccedilotildees Veremos

mais tarde que aleacutem de corresponder agrave hierarquia de objetivaccedilatildeo da vontade mais

desenvolvida a arte traacutegica ocupa um lugar especial na filosofia schopenhaueriana

devido agrave ldquograndeza de seu efeitordquo (Schopenhauer 2005 333) Diante do exposto

podemos depreender que a arte possui na filosofia schopenhaueriana um papel

cognitivo e a trageacutedia por sua vez eacute a forma artiacutestica que por sua competecircncia cognitiva

ocupa o primeiro lugar entre as artes natildeo musicais

22 A fundamentaccedilatildeo metafiacutesica representaccedilatildeo vontade pessimismo

22

Vemos aqui um exemplo da citada inter-conectividade existente no sistema schopenhaueriano tendo

em vista que a elaboraccedilatildeo de sua classificaccedilatildeo artiacutestica obedece ao construto metafiacutesico do livro II de

MVR e sua consequumlente cosmologia

45

A tarefa a que se propotildee o sistema schopenhaueriano eacute a decifraccedilatildeo do ldquoenigma

do mundordquo ie encontrar uma resposta agrave pergunta o que eacute o mundo Esta tarefa tem

origem no idealismo subjacente na primeira criacutetica kantiana e de certa forma era uma

tarefa da qual estava imbuiacutedo todo o pensamento filosoacutefico daquele periacuteodo ie por

decifraccedilatildeo do enigma do mundo podemos entender a decifraccedilatildeo da coisa-em-si

kantiana Temos daiacute o ponto de partida da filosofia de Schopenhauer o idealismo

transcendental do mundo fenomecircnico Sob o ponto de vista da representaccedilatildeo o mundo eacute

objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito agraves condiccedilotildees a priori do

entendimento que para o filoacutesofo satildeo as categorias do espaccedilo do tempo e da

causalidade

Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das formas a priori do entendimento eacute

interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos advindos da filosofia Platocircnica e oriental

como um mundo ilusoacuterio Conforme a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana Platatildeo jaacute

identificava esta caracteriacutestica ilusoacuteria do mundo em sua contraposiccedilatildeo teoacuterica entre o

mundo fiacutesico onde o devir impossibilitava a apreensatildeo do ser e o mundo das ideacuteias

onde haveria o verdadeiro encontro com o ser das coisas Ainda de acordo com a

interpretaccedilatildeo de Schopenhauer os livros sagrados indianos Vedas e Puranas faziam

esta distinccedilatildeo atraveacutes da noccedilatildeo do veacuteu de maia a consciecircncia humana seria envolvida

por um veacuteu o que resultaria em uma visatildeo oniacuterica do mundo e impediria assim a

percepccedilatildeo da realidade

Entretanto o mundo pode ainda ser conhecido atraveacutes de um segundo ponto de

vista como vontade Este eacute o ponto de vista que Schopenhauer utiliza-se para decifrar a

incognosciacutevel coisa-em-si kantiana Percorrendo uma ldquovia subterracircneardquo de modo

imanente Schopenhauer identifica nas accedilotildees do corpo bioloacutegico os atos da vontade

46

enquanto coisa-em-si e de forma analoacutegica a estabelece como essecircncia governante do

mundo Faz-se necessaacuterio aqui ressaltar como o fazem Brum (1998 23) e Rosset23

que

natildeo devemos interpretar esta analogia como uma visatildeo antropomoacuterfica do mundo Essa

essecircncia do mundo encontrada empiricamente natildeo eacute todavia um ente racional uma

ldquoalma do mundordquo Se por um lado o mundo fenomecircnico eacute aquele onde o princiacutepio de

razatildeo24

estabelece as normas de funcionamento um mundo natildeo-fenomecircnico mundo em

si enquanto vontade se expressa por sua alogicidade irracionalidade Grundlosigkeit

(falta de fundamento) Essa essecircncia irracional que manifesta-se nos diversos reinos e

indiviacuteduos do mundo eacute a raiz da visatildeo pessimista da existecircncia que de acordo com o

filoacutesofo pode ser a todo momento constatada empiricamente

As diversas manifestaccedilotildees da vontade suas objetidades carregam inerentemente

a sua iacutendole puro impulso cego vontade de vida insaciabilidade Notadamente o

mundo fenomecircnico objetivaccedilatildeo da vontade expressa a essecircncia desta vontade atraveacutes

de um conflito permanente Desenha-se um cenaacuterio de batalha onde cada objetidade da

vontade cada ser do mundo eacute orientado por sua essecircncia irracional desguarnecida de

qualquer telos ldquoAssim a vontade de vida crava continuamente os dentes na proacutepria

carne e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimentordquo (Schopenhauer MVR 211) Este

fundamento ontoloacutegico a vontade determina assim o caraacuteter absurdo que a vida

humana toma na filosofia schopenhaueriana eterno esforccedilo carente de ordem ou

finalidade O ldquomecanismo internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens

marionetes guiados pela carecircncia

[]nenhuma satisfaccedilatildeo todavia eacute duradoura mas antes sempre eacute um

ponto de partida de um novo esforccedilo o qual por sua vez vemos travado em

toda parte de diferentes maneiras em toda parte lutando e assim portanto

23

[] natildeo haacute que transpor a experiecircncia da motivaccedilatildeo humana ao conjunto das forccedilas naturais para

compreender o segredo da natureza senatildeo o contraacuterio transpor o misteacuterio das forccedilas naturais ao conjunto

das motivaccedilotildees psicoloacutegicas para desvendar-se o segredo da vontade humana (Rosset 2005 31) 24

Princiacutepio tratado na tese de doutoramento de Schopenhauer SRQPRS bem como no livro I de MVR

O princiacutepio estabelece que todo acontecimento possui uma causa uma razatildeo de ser

47

sempre como sofrimento natildeo haacute nenhum fim uacuteltimo do esforccedilo portanto natildeo

haacute nenhuma medida e fim do sofrimento (Schopenhauer 2005 399)

Se carecircncia vontade e desejo satildeo a tocircnica da vida humana na maior parte do tempo e

satildeo experimentados como dor e infelicidade a felicidade por sua vez eacute definida

negativamente como um momento de ausecircncia daquela dor

Sentimos a dor e natildeo a ausecircncia da dor a inquietude e natildeo a

tranquumlilidade o medo e natildeo a seguranccedila Sentimos desejo como quando

temos fome e sede entretanto ao alimentarmo-nos estas sensaccedilotildees

deixam de existir para noacutes (MVR II 630)

Toda satisfaccedilatildeo momentacircnea de um querer eacute imediatamente suprimida por outro querer

ou se perdurar por algum tempo por menor que seja este transforma-se em teacutedio Um

ldquopecircndulo entre a dor e teacutediordquo eacute a definiccedilatildeo que Schopenhauer propotildee para a vida

humana Assim se daacute tambeacutem com a sauacutede a juventude e a liberdade Todos satildeo

conceitos definidos negativamente soacute os conhecemos atraveacutes de sua ausecircncia Este afatilde

por prolongar e conservar a vida essecircncia iacutentima de cada indiviacuteduo natildeo eacute contudo

resultado de uma observaccedilatildeo objetiva da mesma de um conhecimento que eleja a vida

como algo de valor a ser mantido e preservado e portanto os ldquo[] seres natildeo satildeo

atraiacutedos por algo que se lhes apresenta mas satildeo empurrados a elerdquo (MVR II 398) A

luta eterna observada nos diversos reinos da natureza a busca por alimento o esforccedilo da

procriaccedilatildeo se comparados aos momentos fugazes de satisfaccedilatildeo fazem da vida ldquoum

negoacutecio cujos investimentos natildeo cobrem nem de longe os custosrdquo (MVR II 399)

Em todas estas consideraccedilotildees se faz claro que a vontade de viver

natildeo eacute a consequecircncia do conhecimento da vida natildeo se trata de uma

bdquoconclusio ex praemissis‟ nem em geral eacute algo secundaacuterio antes

contudo eacute o primeiro e incondicionado a premissa de todas as premissas

e precisamente por isso aquilo do que haacute de partir a filosofia pois a

vontade de viver natildeo se apresenta como a consequumlecircncia do mundo senatildeo

o mundo como consequumlecircncia da vontade de viver (MVR II 405)

Um dos pontos essenciais a ser verificado nesta visatildeo de mundo eacute o

destronamento da razatildeo O ceacuterebro oacutergatildeo da razatildeo eacute o resultado de um esforccedilo da

48

vontade em seu percurso de objetivaccedilatildeo A racionalidade humana estaacute a serviccedilo da

vontade que eacute em sua essecircncia grundlos A razatildeo eacute ferramenta para que o homem

enquanto objetidade da vontade consiga satisfazer a seus anseios Em oposiccedilatildeo agrave

filosofia racionalista de entatildeo onde o ldquoreal eacute o racionalrdquo assistimos ao surgimento de

uma filosofia irracionalista das forccedilas inconscientes onde a razatildeo na medida em que eacute

mecanismo da vontade estaacute sempre a serviccedilo desta O comportamento humano eacute

naturalmente egoiacutesta voltado para os proacuteprios interesses e estes por sua vez satildeo

expressatildeo desta vontade aloacutegica desprovida de telos Schopenhauer se mostrava

consciente da singularidade desta sua biparticcedilatildeo do ego e da consequumlente visatildeo de

mundo que ela trouxe agrave luz e enfatizou isto em seus manuscritos berlinenses ldquo[] a

divisatildeo da mente o eu em duas partes diferentes - em vontade como parte essencial e

primaacuteria e em intelecto como secundaacuteria - eacute o grande princiacutepio e meacuterito de minha

filosofia e tambeacutem a principal diferenccedila dos demais sistemasrdquo (MR III 328)

Temos entatildeo os dois pontos de vista do mundo que fundamentam a visatildeo de

Schopenhauer e que posteriormente seratildeo transformados pela teoria nietzscheana da

trageacutedia nos dois impulsos da natureza o apoliacuteneo e o dionisiacuteaco O primeiro deles eacute o

mundo da individualidade da pluralidade regido pelo que Schopenhauer vai chamar

utilizando-se de um termo retirado da escolaacutestica de principium individuationis

Nesse sentido servindo-me da antiga escolaacutestica denomino

tempo e espaccedilo pela expressatildeo principium individuationis que peccedilo para

o leitor guardar para sempre Tempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais

aquilo que eacute uno e igual conforme a essecircncia e o conceito aparece como

pluralidade de coisas que coexistem e se sucedem (MVR 171)

No segundo toto genere diferente do primeiro existe a vontade una indivisiacutevel natildeo

submetida ao princiacutepio de razatildeo e por isso sem fundamento

Em apoio a sua tese Schopenhauer invoca ao final do capiacutetulo 46 (Sobre a

nulidade e o sofrimento da vida) dos complementos de MVR a opiniatildeo de diversos

49

pensadores dentre eles Heroacutedoto Platatildeo Teoacutegnis Homero os tragedioacutegrafos gregos

Shakespeare Byron Voltaire Rousseau Faz-se importante neste momento ressaltar que

o filoacutesofo aponta a invenccedilatildeo da trageacutedia pelos gregos como uma expressatildeo desta visatildeo

de mundo ponto de vista que como veremos tambeacutem seraacute adotado pelo primeiro

Nietzsche

Ante tudo mencionarei que os gregos por mais distantes que

estivessem da visatildeo de mundo cristatilde e da alta Aacutesia e por muito que se

mantiveram sob o ponto de vista da afirmaccedilatildeo da vontade se fizeram

profundamente impressionados pela miseacuteria da existecircncia Isso eacute

demonstrado pela invenccedilatildeo da trageacutedia obra deles (MVR II 640)

23 A ideacuteia platocircnica trageacutedia como retrato da vida humana

Existe poreacutem uma forma de conhecimento que eacute ndash agrave diferenccedila daquela

subordinada ao princiacutepio de razatildeo que percebe os objetos em sua relaccedilatildeo com os outros

objetos do espaccedilo-tempo ndash uma forma mais universal pois mostra o objeto em sua

caracteriacutestica mais geral qual seja a de ser objeto para o sujeito A esta forma de

conhecimento Schopenhauer associa a apreciaccedilatildeo esteacutetica O seu objeto eacute a ideacuteia

platocircnica25

um grau determinado de objetivaccedilatildeo da coisa-em-si

Os diferentes graus de objetivaccedilatildeo da Vontade expressos em

inumeraacuteveis indiviacuteduos e que existem como seus protoacutetipos

inalcanccedilaacuteveis ou formas eternas das coisas que nunca aparecem no

tempo e no espaccedilo meacutedium do indiviacuteduo mas existem fixamente natildeo

submetidos a mudanccedila alguma satildeo e nunca vindo-a-ser enquanto as

coisas nascem e perecem sempre vecircm-a-ser e nunca satildeo os GRAUS DE

OBJETIVACcedilAtildeO DA VONTADE ia dizer natildeo satildeo outra coisa senatildeo as

IDEacuteIAS DE PLATAtildeO (MVR 191)

Esta instacircncia do conhecimento eacute alcanccedilada intuitivamente pela contemplaccedilatildeo

esteacutetica da natureza ou pela facilitaccedilatildeo de uma obra de arte Desta forma as obras de

25

Conforme o filoacutesofo ldquo A expressatildeo mais breve e sucinta daquele famoso dogma platocircnico foi dada por

Dioacutegenes Laeacutercio (II 12) Platatildeo ensina que as ideacuteias da natureza existem como protoacutetipos jaacute as demais

coisas apenas se assemelham a elas e satildeo suas coacutepiasrdquo (MVR 191)

50

arte na teoria schopenhaueriana satildeo uma exposiccedilatildeo destes graus de objetivaccedilatildeo da

vontade as ideacuteias Ao contraacuterio da criacutetica agrave arte presente na repuacuteblica platocircnica - onde a

arte seria uma coacutepia mais imperfeita da ideacuteia por retratar o mundo fenomecircnico sua

coacutepia direta - Schopenhauer aproxima as obras artiacutesticas das ideacuteias eternas as define

como suas expressotildees diretas Contudo a intuiccedilatildeo das ideacuteias exige um estado de

consciecircncia diferente do estado comum Neste uacuteltimo o aparelho cognitivo sob a eacutegide

da vontade estaacute voltado para a realizaccedilatildeo dos interesses individuais e entatildeo se

movimenta no mundo guiado por estes interesses ldquoCaso entretanto a Ideacuteia deva de

alguma maneira tornar-se conhecimento e ser conhecida pelo sujeito entatildeo isso soacute

pode ocorrer graccedilas agrave supressatildeo da individualidade no sujeito que conhecerdquo (MB 30)

A forma artiacutestica de conhecimento cujo possuidor eacute o denominado gecircnio estaacute

associada a um desprendimento das reacutedeas da vontade O gecircnio eacute entatildeo aquele que livre

dos interesses da vontade percebe as ideacuteias por traacutes dos objetos alheio aos princiacutepios

de razatildeo e de individuaccedilatildeo e traduz este objeto na obra de arte O observador esteacutetico eacute

portanto um partiacutecipe da genialidade na medida em que intui a ideacuteia por traz do objeto

observado conforme tambeacutem ao seu grau de desinteresse26

Durante a apreciaccedilatildeo

esteacutetica o homem se vecirc livre momentaneamente daquela parte de si que eacute a causadora

de todo o sofrimento individual e coletivo a vontade para transformar-se em um ldquopuro

sujeito de conhecimentordquo Este estado de satisfaccedilatildeo decorrente da suspensatildeo da vontade

individualizada eacute o sentimento do belo

Aquilo que se poderia nomear o lado mais belo e a pura alegria

da vida precisamente porque nos arranca da existecircncia real e nos

transforma em espectadores desinteressados diante dela eacute o puro

conhecimento que permanece alheio a todo querer eacute a fruiccedilatildeo do belo a

alegria autecircntica na arte Mas mesmo isso requer dispositivos raros e

cabe apenas a pouquiacutessimos e mesmo para estes eacute um sonho

passageiro (MVR 404)

26

Vemos nesta forma de associaccedilatildeo entre conhecimento e interesse mais uma heranccedila kantiana no caso

provinda da definiccedilatildeo de belo da criacutetica da faculdade de juiacutezo

51

- - - - - - - - - -

Ao descrever a apreciaccedilatildeo artiacutestica como um ato cognitivo Schopenhauer

preocupa-se em diferenciaacute-la do conhecimento cientiacutefico De fato boa parte das

consideraccedilotildees sobre a arte eacute dedicada ao esclarecimento desta diferenccedila

Podemos por conseguinte definir a arte como o modo de

consideraccedilatildeo das coisas independente do princiacutepio de razatildeo em oposiccedilatildeo

justamente agrave consideraccedilatildeo que o segue que eacute o caminho da experiecircncia e

da ciecircncia O modo de consideraccedilatildeo que seque o princiacutepio de razatildeo eacute o

racional o uacutenico que vale e que auxilia na vida praacutetica e na ciecircncia o

modo apartado do conteuacutedo do princiacutepio de razatildeo eacute o genial o uacutenico que

vale e que auxilia na arte (MB 59)

No caso da trageacutedia cujo objetivo eacute o conhecimento do homem e de suas relaccedilotildees a

ciecircncia que mais se assemelha a esta forma artiacutestica seria a histoacuteria Esta natildeo tem como

objetivo a demonstraccedilatildeo da essecircncia do homem em sua forma atemporal ou seja a

demonstraccedilatildeo daquilo que fundamenta toda accedilatildeo humana independente dos

acontecimentos empiacutericos

[ ]toda ciecircncia no sentido proacuteprio do termo compreendida como

conhecimento sistemaacutetico guiado pelo fio condutor do princiacutepio de

razatildeo parte sempre de dois dados baacutesicos um deles sem exceccedilatildeo eacute o

princiacutepio de razatildeo em uma de suas figuras como oacuterganon outro eacute o

objeto especiacutefico de cada uma delas enquanto problema (Schopenhauer

MVR 73)

Desta forma a histoacuteria teria a lei de motivaccedilatildeo e o os fatos humanos como oacuterganon e

problemas respectivamente Entretanto interessa a Schopenhauer um conhecimento

mais universal que soacute pode ser apresentado pela arte e que aponta por sua proximidade

agrave essecircncia daquilo que eacute a uma ldquoiacutendole imutaacutevelrdquo das manifestaccedilotildees

Podemos ver entatildeo que sendo consideradas como meios para o

conhecimento da essecircncia da humanidade arte poeacutetica e histoacuteria possuem todavia

objetos de conhecimento diferentes A primeira quando produzida pelo verdadeiro

gecircnio tenciona manifestar a ideacuteia por traacutes destes conceitos a ideacuteia de homem de

humanidade intuitivamente independentemente do princiacutepio de razatildeo do devir como

52

objeto puro de conhecimento alheio agrave corrente dos motivos em suas caracteriacutesticas

essenciais atemporais A histoacuteria por sua vez segue o rastro do princiacutepio de razatildeo

procurando apresentar o fenocircmeno humano em suas relaccedilotildees descrever-lhe em suas

situaccedilotildees particulares individuais empiacutericas Nas palavras de Schopenhauer

Arte e ciecircncia tecircm em uacuteltima instacircncia o mesmo estofo a saber

justamente o mundo tal como ele se posta diante de noacutes ou antes uma

parte destacada dele quanto ao todo do mundo soacute a filosofia o

considera Contudo a grande diferenccedila entre ciecircncia e arte reside na

maneira como elas consideram o mundo e trabalham seu estofo Tal

oposiccedilatildeo pode ser indicada com uma palavra a ciecircncia considera os

fenocircmenos do mundo seguindo o fio condutor do princiacutepio de razatildeo ao

passo que a arte coloca totalmente de lado o princiacutepio de razatildeo

independente dele para que assim a ideacuteia entre em cena

(SCHOPENHAUER MB 57)

Podemos notar que a valorizaccedilatildeo do que eacute imutaacutevel alheio agrave idealidade do tempo eacute a

raiz da valorizaccedilatildeo do conhecimento artiacutestico frente ao histoacuterico Este uacuteltimo natildeo visa o

acesso aos modelos eternos pois seu objeto satildeo os acontecimentos individuais do

mundo fenomecircnico que satildeo eventos meramente aparentes se considerarmos a

idealidade do tempo O que se manifesta no fluxo temporal do mundo fenomecircnico satildeo

sempre as mesmas formas eternas as ideacuteias entretanto com roupagens diferentes o

mesmo homem enquanto objetivaccedilatildeo da vontade a mesma humanidade Onde quer que

seja e em qualquer momento especiacutefico sua essecircncia eacute a mesma e esta essecircncia eacute o que

deve ser alvo de uma compreensatildeo privilegiada de entendimento e natildeo as suas diversas

manifestaccedilotildees Por este motivo Schopenhauer deixando explicito o seu chamado anti-

historicismo afirma que ldquose algueacutem jaacute lera Heroacutedoto jaacute estudara bastante histoacuteria e

efeitos filosoacuteficos Pois laacute jaacute estaacute tudo o que compotildee a posterior histoacuteria mundial a

atividade o obrar o sofrimento e o destino do gecircnero humano (Schopenhauer MVR

II 496) Podemos notar claramente a oposiccedilatildeo entre a interpretaccedilatildeo schopenhaueriana

da histoacuteria e as tendecircncias de seu tempo principalmente presentes na filosofia de

Hegel Este de acordo com a criacutetica de Schopenhauer ignorando a filosofia critica de

53

Kant toma o fenocircmeno histoacuterico como coisa em si ao atribuir-lhe uma unidade de

consciecircncia Entretanto unidade de consciecircncia eacute um atributo dos indiviacuteduos e natildeo do

gecircnero humano Estas filosofias de acordo com o Schopenhauer satildeo frutos do realismo

otimista queldquo tomam o mundo como perfeitamente real e potildeem como fim do mesmo

uma miseraacutevel felicidade terrena (Schopenhauer MVR II 495)

- - - - - - - - - -

Colocando de lado o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e mirando-se no

conhecimento da ideacuteia imutaacutevel atemporal encontramos a trageacutedia como fenocircmeno que

apresenta agrave intuiccedilatildeo o homem e sua condiccedilatildeo Eacute a forma de arte que tem como objeto o

grau mais elevado de objetivaccedilatildeo da vontade A intenccedilatildeo do artista traacutegico eacute de acordo

com Schopenhauer transmitir a ideacuteia intuiacuteda tarefa que seraacute bem sucedida de acordo

com a habilidade de utilizaccedilatildeo da teacutecnica artiacutestica por um lado e com a capacidade de

percepccedilatildeo esteacutetica do apreciador por outro O tragedioacutegrafo diferentemente do

historiador que relata os fatos empiacutericos explicitando seus motivos e consequumlecircncias

deve para obter o efeito esperado em sua obra expor uma situaccedilatildeo tal em que o homem

possa manifestar todas as suas potencialidades e dessa forma transmitir ao apreciador

esteacutetico a ideacuteia representada ldquoO poeta expotildee com escolha e intenccedilatildeo caracteres

significativos em situaccedilotildees significativas jaacute o historiador toma aos dois como eles

aparecemrdquo (Schopenhauer MVR 323) A qualidade da obra traacutegica seraacute julgada entatildeo

pela sua capacidade de representaccedilatildeo da ideacuteia de humanidade e Schopenhauer qualifica

as trageacutedias de acordo com esta capacidade Natildeo existe em seu sistema uma

consideraccedilatildeo histoacuterica da produccedilatildeo traacutegica Ele natildeo leva em consideraccedilatildeo as condiccedilotildees

histoacutericas no que se refere agrave origem ou mesmo quanto ao desenvolvimento desta forma

artiacutestica e a avalia unicamente conforme o seu efeito E neste ponto a trageacutedia apresenta

uma peculiaridade frente agraves demais artes ela eacute a forma de arte que provocaraacute o

54

sentimento do sublime Como vimos o correlato subjetivo de toda apreciaccedilatildeo esteacutetica eacute

o sentimento causado pela anulaccedilatildeo da vontade individual mediante a elevaccedilatildeo ao

estado de puro sujeito de conhecimento O sublime assim como o belo satildeo expressotildees

deste sentimento que se diferenciam unicamente por sua forma

Se tal estado surgiu por si mesmo na medida em que o objeto foi

solicitado e se apresentou ndash e fomos postos sem resistecircncia pelo mero

desaparecer da vontade da consciecircncia no estado do conhecer puro ndash ou

se primeiro foi despertado por elevaccedilatildeo livre consciente sobre a vontade

na medida em que o objeto contemplado tem com esta uma relaccedilatildeo

desfavoraacutevel hostil cuja prossecuccedilatildeo suprimiria a contemplaccedilatildeo ndash aiacute

reside a diferenccedila entre o belo e o sublime (MB 119)

A impressatildeo do sublime eacute portanto uma forma de colocar-se no estado do puro conhecer

ao nos depararmos com o objeto que por sua apresentaccedilatildeo sugere uma ldquorelaccedilatildeo hostilrdquo

com o indiviacuteduo27

Jaacute vimos que a visatildeo de mundo de Schopenhauer identifica a vida humana como

sofrimento infindaacutevel no entanto ao elaborar sua definiccedilatildeo da trageacutedia Schopenhauer

aponta para o desfecho moral de sua obra (livro IV de MVR) e afirma que a trageacutedia

melhor eacute aquela que expotildee a renuacutencia agrave vida O filoacutesofo compara obras contemporacircneas

agraves antigas e afirma sua preferecircncia por estas em decorrecircncia da capacidade que elas tecircm

de provocar esta a renuacutencia agrave vida Vejamos a descriccedilatildeo que Schopenhauer faz da

trageacutedia

No aacutepice da arte poeacutetica tanto no que se refere agrave grandeza do seu

efeito quanto agrave dificuldade da sua realizaccedilatildeo deve-se ver a trageacutedia e de

fato ela assim foi reconhecida Observe-se aqui algo de suma significaccedilatildeo

para toda a nossa visatildeo geral de mundo o objetivo dessa suprema

realizaccedilatildeo poeacutetica natildeo eacute outro senatildeo a exposiccedilatildeo do lado terriacutevel da vida

27

Vemos na teoria do sublime Schopenhaueriana mais uma vez a influecircncia de Kant Schopenhauer iraacute

identificar duas formas de sublime e utilizar-se-aacute dos termos kantianos ldquosublime dinacircmicordquo e ldquosublime

matemaacuteticordquo para diferenciaacute-los No primeiro o objeto de apreciaccedilatildeo se mostra a princiacutepio uma ameaccedila

ao observador ldquoum poder que suprimiria qualquer resistecircnciardquo(MB 104) No sublime matemaacutetico o

segundo o objeto eacute visto em sua incomensuraacutevel grandiosidade diante da qual o observador infere a sua

infimidade A afinidade entre Schopenhauer e a teoria criacutetica do juiacutezo eacute expressa em sua obra principal

ldquoDe longe o que haacute de mais excelente na criacutetica da faculdade de juiacutezo eacute a teoria do sublime Ela eacute

incomparavelmente mais bem sucedida que a teoria do belo e daacute natildeo apenas como esta o meacutetodo geral

da investigaccedilatildeo mas tambeacutem um trecho do correto caminho de maneira que embora natildeo forneccedila a

soluccedilatildeo propriamente dita do problema chega bem perto delardquo(MVR 660)

55

a saber o inominado sofrimento a miseacuteria humana o triunfo da maldade

o impeacuterio ciacutenico do acaso a queda inevitaacutevel do justo e do inocente E

em tudo isso se encontra uma indicaccedilatildeo significativa da iacutendole do mundo

e da existecircncia Eacute o conflito da Vontade consigo mesma que aqui

desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade entra em

cena de maneira aterrorizante Ele se torna visiacutevel no sofrimento da

humanidade em parte produzido por acaso e erro que se apresentam

como os senhores do mundo e personificados como destino e perfiacutedia os

quais aparecem enquanto intencionalidade em parte advindo da

humanidade mesma por meio dos entrecruzados esforccedilos voluntaacuterios dos

indiviacuteduos e da maldade e perversatildeo da maioria Trata-se de uma uacutenica e

mesma Vontade que em todos vive e aparece cujos fenocircmenos

entretanto combatem entre si e se entredevoram [] Por fim esse

conhecimento no indiviacuteduo purificado e enobrecido pelo sofrimento

mesmo atinge o ponto no qual o fenocircmeno o veacuteu de maia natildeo mais o

ilude Ele vecirc atraveacutes da forma do fenocircmeno do principium

individuationis com o que tambeacutem expira o egoiacutesmo nele baseado Com

isso os ateacute entatildeo poderosos MOTIVOS perdem o seu poder e em vez

deles o conhecimento perfeito da essecircncia do mundo atuando como

quietivo da vontade produz a resignaccedilatildeo a renuacutencia natildeo apenas da vida

mas de toda a vontade de vida mesma (Schopenhauer MVR 333)

Percebemos nesta descriccedilatildeo que a trageacutedia aleacutem de expor a visatildeo de mundo construiacuteda

pelo filoacutesofo tem como fim uacuteltimo provocar um efeito moral no apreciador esteacutetico

qual seja a renuacutencia ao mundo Vejamos entatildeo a relaccedilatildeo entre a visatildeo de mundo

schopenhaueriana o efeito esteacutetico provocado pela trageacutedia e o projeto moral existente

por traacutes de suas teorias

24 A finalidade moral da trageacutedia

Para que possamos perceber a relaccedilatildeo intriacutenseca entre cosmologia metafiacutesica

arte e a eacutetica faz-se necessaacuterio uma pequena excursatildeo sobre esta uacuteltima Que todo o

sistema schopenhaueriano possui um viacutenculo inseparaacutevel com o seu projeto eacutetico eacute fato

que natildeo passa despercebido a seus comentadores Um projeto de juventude eacute descrito

por Safranski (1991 188-198) Young (2006 07 200) Aramayo (2001 56-59) e

Cartwright (Janaway 1999 252) como uma premissa no desenvolvimento da filosofia

56

schopenhaueriana trata-se do projeto de uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Young a descreve

como uma transcendecircncia do mundo ordinaacuterio para o ldquomundo verdadeirordquo Esta

consciecircncia melhor poderia ser experimentada atraveacutes da apreciaccedilatildeo artiacutestica e da

consciecircncia eacutetica ambas originadas do desvelamento de maia Assim Schopenhauer a

descreve conforme citaccedilatildeo de Young (2006 9) ldquopersonalidade e causalidade existem

neste mundo compreensiacutevel temporal sensorial Mas a consciecircncia melhor me leva a

um mundo onde nem personalidade nem sujeito ou objeto existem maisrdquo Safransky

descreve a consciecircncia melhor como um estado semelhante ao ecircxtase miacutestico

Este arrebatamento estaacute livre das coordenadas espaccedilo-temporais

cujo ponto de interseccedilatildeo eacute o eu corporal apartado do espaccedilo do tempo

do eu Os miacutesticos chamam a esta experiecircncia ldquonunc stansrdquo agora

permanente A intensidade deste presente natildeo conhece princiacutepio nem fim

e soacute pode desaparecer porque noacutes desaparecemos dele (Safransky1991

190)

Conforme Aramayo tanto a figura do gecircnio como a do santo satildeo expressotildees do

reconhecimento desta consciecircncia melhor e a filosofia de Schopenhauer pretende-se

uma terceira via que tambeacutem apontaria para este estado de consciecircncia A caracteriacutestica

primordial deste estado eacute o desprendimento dos desejos individuais e o comportamento

virtuoso que adveacutem deste desprendimento Eacute na esteira do entendimento desta

consciecircncia melhor que as bases eacutetico-metafiacutesicas do filoacutesofo foram elaboradas Em

apoio a esta afirmaccedilatildeo Aramayo apresenta duas citaccedilotildees a partir das quais em

momentos distintos de sua vida Schopenhauer apresenta seu projeto de identificaccedilatildeo

entre eacutetica e metafiacutesica Nos escritos de Juventude em 1813 vemos o projeto

Em meu espiacuterito encontra-se em gestaccedilatildeo uma filosofia onde

metafiacutesica e eacutetica devem constituir uma soacute coisa cuja dissociaccedilatildeo eacute tatildeo

errocircnea como agrave da alma e do corpo (Aramayo 2001 41)

Jaacute nos escritos tardios especificamente em seu ensaio de 1836 Sobre a vontade na

natureza veremos Schopenhauer identificar esta uniatildeo

57

Tatildeo soacute esta metafiacutesica que jaacute eacute eacutetica por si soacute ao estar construiacuteda

com esse material primordialmente eacutetico que se supotildee a vontade

constitui real e imediatamente um sustentaacuteculo para a eacutetica em vista de

que poderia haver colocado em minha metafiacutesica o nome de eacutetica (apud

Aramayo 2001 43)

Cartwright aponta ainda na uacuteltima obra schopenhaueriana de 1851 Parerga e

paralipomena a afirmaccedilatildeo de que a ldquosua real filosofia culminou em um ponto de vista

altamente eacutetico-metafiacutesicordquo (Janaway 1999 252)

Na filosofia schopenhaueriana como vimos o indiviacuteduo humano eacute uma

expressatildeo da objetidade da vontade e seu ponto de partida por natureza eacute a satisfaccedilatildeo

manutenccedilatildeo e o prolongamento desta vontade de vida Este estado de consciecircncia onde

todos os esforccedilos estatildeo voltados para a satisfaccedilatildeo da vontade individual eacute a causa de

todo o sofrimento do mundo Aprisionado agrave perspectiva fenomecircnica do mundo o

homem natildeo percebe a unidade da vontade e age de acordo com os motivos estabelecidos

pela sua proacutepria individualidade Para este homem existe uma separaccedilatildeo profunda entre

o proacuteprio eu e os objetos do mundo

Por meio da intuiccedilatildeo que o ceacuterebro efetua a partir dos dados do sentido

e portanto mediatamente conhecemos o proacuteprio corpo como um objeto no

espaccedilo e por meio do sentido interno conhecemos a seacuterie sucessiva de nossos

desejos e atos de vontade que surgem por ocasiatildeo dos motivos externos e

finalmente conhecemos os muacuteltiplos movimentos fortes ou fracos da proacutepria

vontade aos quais todos os sentimentos internos deixam-se reconduzir Isto eacute

tudo pois o conhecer natildeo eacute ele proacuteprio de novo conhecido (Schopenhauer

2001 213)

Eacute deste estado que surge todo o comportamento humano considerado pelo filoacutesofo

como comportamento antimoral Egoiacutesmo eacute o nome dado ao resultado da influecircncia do

princiacutepio de individuaccedilatildeo sobre o comportamento dos homens Este egoiacutesmo chega ao

extremo de o homem considerar-se o centro do mundo e transformar o seu querer em

mandamento para os objetos exteriores ldquoalguns homens seriam capazes de assassinar

um outro soacute para engraxar suas botas com a gordura delerdquo (SFM 124) Nestas

58

condiccedilotildees ldquose fosse dado pois a um indiviacuteduo escolher entre a sua proacutepria aniquilaccedilatildeo

e a do mundo nem preciso dizer para onde a maioria se inclinariardquo (SFM 121) Da

forma como ocorre com o egoiacutesmo a ilusatildeo fenomecircnica daacute origem a outro sentimento

o oacutedio Estes dois egoiacutesmo e oacutedio satildeo os princiacutepios originadores de todos os viacutecios do

homem Desta leitura pessimista da natureza humana Schopenhauer retira seu conceito

perspectivista das ideacuteias de bem e mal satildeo consideradas boas ou maacutes as coisas que

agradam ou desagradam agrave vontade do indiviacuteduo ldquoPortanto tudo o que eacute favoraacutevel agrave

vontade em alguma de suas exteriorizaccedilotildees e satisfaz seus fins eacute pensado pelo conceito

bom por mais diferentes que essas coisas possam ser noutros aspectosrdquo (MVR 459)

Este estado eacute definido por Schopenhauer como ldquoafirmaccedilatildeo da vontaderdquo nele o amor-

proacuteprio Eros dita as regras de comportamento Definido o Eros enquanto

fundamentador das accedilotildees antimorais humanas sendo este surgido de uma percepccedilatildeo

subordinada ao principium individuationis entendemos o motivo pelo qual o filoacutesofo

rejeita a validade de qualquer moral baseada em argumentos abstratos

Uma moral sem fundaccedilatildeo portanto um simples moralizar natildeo pode

fazer efeito pois natildeo motiva Uma moral entretanto que motiva soacute pode fazecirc-

lo atuando sobre o amor proacuteprio O que entretanto nasce daiacute natildeo tem valor

moral algum Segue-se assim que mediante moral e conhecimento abstrato em

geral nenhuma virtude autecircntica pode fazer efeito mas esta tem de brotar do

conhecimento intuitivo o qual reconhece no outro indiviacuteduo a mesma essecircncia

que a proacutepria (MVR 468)

Desta forma em contraposiccedilatildeo ao comportamento antimoral produzido

pela ilusatildeo causada pelo principium individuationis o filoacutesofo apresenta o outro lado da

moeda a accedilatildeo moral Esta seria a accedilatildeo praticada em funccedilatildeo do bem-estar de um outro

indiviacuteduo tendo em vista que as accedilotildees praticadas em funccedilatildeo do mal-estar do outro ou

do bem e mal estar de si mesmo satildeo justamente as accedilotildees antimorais baseadas no

egoiacutesmo ou no oacutedio ldquoTodo amor que natildeo eacute compaixatildeo eacute amor-proacuteprio Amor-proacuteprio eacute

59

Eros compaixatildeo eacute Aacutegaperdquo (MVR 478) Todo ato moral eacute por consequumlecircncia um ato de

compaixatildeo ou seja um ato que eacute praticado a partir da percepccedilatildeo do sofrimento do

outro Entretanto a percepccedilatildeo do sofrimento alheio natildeo eacute dada atraveacutes do conhecimento

abstrato E somente por uma percepccedilatildeo intuitiva direta do sofrimento do outro como o

meu proacuteprio sofrimento que surge a compaixatildeo Tal percepccedilatildeo assim como a

apreciaccedilatildeo esteacutetica tem origem em uma visatildeo que vai aleacutem do principium

individuationis Desfaz-se a ilusatildeo causada por este princiacutepio de que existe em realidade

um eu e um natildeo-eu ilusatildeo essa que eacute originada pelos condicionantes do conhecimento

tempo espaccedilo e causalidade Livre do principium individuationis natildeo haacute mais

diversidade natildeo existe mais indiviacuteduo passado futuro motivaccedilotildees existe apenas o

instante presente do ser a vontade Natildeo nos vemos mais como uma vontade separada de

outras ao contraacuterio vemos nos outros a mesma vontade pela qual somos Necessaacuterio

faz-se ressaltar que este conhecimento intuitivo que demonstra a unidade da vontade

em todo indiviacuteduo eacute entendimento de verdade tatildeo profundo que supera qualquer

especulaccedilatildeo abstrata do conhecimento e por isso seu efeito eacute marcante

Para o conhecimento que vecirc atraveacutes do principium individuationis uma

vida feliz no tempo presenteada pelo acaso ou conquistada deste pela

sabedoria em meio ao sofrimento de inumeraacuteveis outros eacute apenas um sonho de

mendigo no qual eacute um rei poreacutem tem de acordar e reconhecer que era tatildeo-soacute

uma ilusatildeo fugidia aquilo que o separava do sofrimento da sua vida (MVR

452)

A experimentaccedilatildeo deste estado de consciecircncia faz-nos perceber a vida como engano

luta infinita e provoca em noacutes a renuacutencia a esta mesma vida agrave vontade de viver O

homem natildeo mais afirma a sua essecircncia mas a repudia

Agrave semelhanccedila do estado de negaccedilatildeo da vontade o proacuteprio estado de

contemplaccedilatildeo esteacutetica pressupotildee um desinteresse pelos mandamentos da vontade

60

individual um desligamento do caraacuteter egoiacutestico do sujeito empiacuterico28

Para que possa

perceber a Ideacuteia por traacutes do objeto contemplado o observador deve estar em um estado

de consciecircncia que se vecirc livre dos grilhotildees da vontade Neste estado ele eacute alccedilado para

aleacutem da individualidade torna-se puro sujeito de conhecimento Para que este estado se

manifeste eacute imprescindiacutevel natildeo estar interessado nas relaccedilotildees do objeto apreciado seja

com outros objetos seja consigo mesmo O apreciador esteacutetico natildeo se preocupa com o

ldquoonderdquo o ldquocomordquo o ldquoporquecircrdquo dos objetos Estas formas de interjeiccedilatildeo sinalizam para a

relaccedilatildeo dos objetos com o mundo O apreciador esteacutetico no momento da apreciaccedilatildeo

tem em vista somente o ldquoquerdquo do objeto transforma-se em um ldquoolho que vecircrdquo livre do

princiacutepio de individuaccedilatildeo eacute o puro sujeito de conhecimento Vemos nestes dois estados

(o esteacutetico e o compassivo) exemplos de estados de consciecircncia que por suas

caracteriacutesticas de alccedilarem o indiviacuteduo a uma anulaccedilatildeo do sofrimento fazem parte do

projeto de juventude de estabelecer uma ldquoconsciecircncia melhorrdquo Percebemos entatildeo que a

consideraccedilatildeo esteacutetica e a consideraccedilatildeo eacutetica possuem em comum esta caracteriacutestica da

consciecircncia de se apartar do princiacutepio de individuaccedilatildeo

No caso da trageacutedia como descreve Schopenhauer seu fim uacuteltimo eacute despertar a

compaixatildeo no apreciador Desta forma o filoacutesofo associa agrave trageacutedia um efeito singular e

adverso das demais artes ou pelo menos reconhece na trageacutedia a arte capaz de

demonstrar a semelhanccedila entre os modos de consideraccedilatildeo artiacutestico e eacutetico Ao ilustrar o

conflito das vontades no mundo atraveacutes da exposiccedilatildeo do sofrimento humano a trageacutedia

cumpre seu papel artiacutestico ao expor a ideacuteia de humanidade Aleacutem deste atributo

podemos dizer que a trageacutedia tem que cumprir ainda seu papel moral ao causar no

28

Neste ponto de semelhanccedila eacute fundamental apontar mais uma vez a heranccedila kantiana Nas palavras de

Barboza (2001 82) ldquoA negaccedilatildeo da Vontade diante da beleza realmente obedece a uma leitura do

conceito criacutetico de desinteresse Quando Kant diz que o belo eacute aquilo que satisfaz bdquosem nenhum

interesse‟ o autor de O mundo leu essa expressatildeo como equivalente da negaccedilatildeo do querer visto que

interesse e motivo satildeo conceitos intercambiaacuteveis [] e a vontade neutraliza-se desinteressa-se ou seja eacute

indeterminaacutevel por motivos na contemplaccedilatildeo da Ideacuteia do belordquo

61

espectador a renuacutencia a toda vontade O modelo exemplar da trageacutedia eacute para

Schopenhauer a trageacutedia cristatilde onde o heroacutei conscientemente abandona o querer e

conseguintemente a vida Na trageacutedia antiga havia somente a identificaccedilatildeo do

sofrimento humano e sua exposiccedilatildeo A renuacutencia agrave vontade de vida eacute caracteriacutestica das

trageacutedias posteriores ao advento cristatildeo Schopenhauer exemplifica O priacutencipe de

Calderoacuten Gretchen em Fausto A Donzela de Orleans a Noiva de Messina etc Assim

ldquotoda a exposiccedilatildeo traacutegica eacute para o espectador um chamado agrave resignaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo livre

da Vontade de vida Somente a eacutetica pode tornar tudo isso mais compreensiacutevelrdquo (MB

223) Vemos entatildeo de forma clara na teoria da trageacutedia de Schopenhauer um momento

onde ocorre a coalizatildeo dos fundamentos metafiacutesicos de sua filosofia do pessimismo

originado nestes fundamentos e da atitude eacutetica existente por traacutes de seu pensamento

25 Consideraccedilotildees sobre a muacutesica e a oacutepera

Faz-se necessaacuterio aqui uma incursatildeo sobre a teoria da muacutesica de Schopenhauer

tendo em vista de que ela ocuparaacute um papel decisivo na teoria nietzscheana da trageacutedia

As relaccedilotildees que Nietzsche estabelece entre a muacutesica a vontade as palavras e

finalmente a trageacutedia satildeo delineadas como veremos pela metafiacutesica schopenhaueriana

da muacutesica No intuito de perceber estas relaccedilotildees propomos aqui um breve esboccedilo da

teoria da muacutesica na filosofia de Schopenhauer

A filosofia da muacutesica encontra seu lugar ao final do terceiro livro de MVR bem

como no capiacutetulo 39 dos complementos fechando assim as consideraccedilotildees de

Schopenhauer sobre a metafiacutesica do belo e as artes29

29

Na esteira de Lydia Goehr (Jacquette 1996 200) ressaltamos que tendo em vista a influecircncia que sua

filosofia da muacutesica exerceu sobre o pensamento artiacutestico e filosoacutefico posterior e comparada agrave dimensatildeo

de sua obra as consideraccedilotildees sobre a muacutesica ocupam um espaccedilo diminuto em sua obra

62

Para o filoacutesofo da vontade a muacutesica eacute a arte que pela natureza de seu objeto de

expressatildeo natildeo encontra lugar apropriado dentro do sistema das demais artes Estas

conforme sua competecircncia em traduzir uma determinada objetidade da vontade uma

ideacuteia satildeo classificadas hierarquicamente A muacutesica entretanto figura aleacutem desta

hierarquizaccedilatildeo pois representa o conceitualmente irrepresentaacutevel ldquoa coacutepia de um

modelo que ele mesmo nunca pode ser representado imediatamenterdquo(MVR 338) a

Vontade mesma Esta arte eacute especialmente considerada devido agrave peculiaridade uacutenica de

seu efeito esteacutetico ldquoeacute uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente

sobre o mais iacutentimo do homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele

como se fora uma linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do

mundo intuitivordquo (MVR 336) A muacutesica estaacute aleacutem da intuiccedilatildeo pois representa aquilo

que estaacute aleacutem desta forma agrave semelhanccedila das ideacuteias que satildeo objetivaccedilotildees imediatas da

vontade a muacutesica eacute tambeacutem uma destas objetivaccedilotildees representaccedilatildeo imediata da coisa

em si O que o compositor apresenta atraveacutes da muacutesica eacute a essecircncia mais iacutentima do

mundo em uma ldquolinguagem natildeo compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo

magneacutetico fornece informaccedilotildees sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito

algumrdquo (MVR 342) Por estar em um acircmbito inalcanccedilaacutevel pelo conceito a muacutesica

atraveacutes de sua linguagem arrebata o homem de forma mais marcante e direta e ateacute

mesmo a explanaccedilatildeo sobre a muacutesica estaacute condenada agrave pobreza e agrave insuficiecircncia Desta

forma o filoacutesofo se utilizaraacute de uma analogia para explanar sobre a muacutesica ie

procederaacute a uma explicaccedilatildeo da muacutesica atraveacutes de um paralelismo entre ela as ideacuteias e o

mundo enquanto objetivaccedilotildees da vontade

Esta analogia expressa atraveacutes de diversos exemplos leva em consideraccedilatildeo que

em suas duas formas de objetivaccedilatildeo (o mundo e a muacutesica) a Vontade deixa transparecer

semelhanccedilas Na muacutesica os tons mais graves aproximam-se ao que satildeo no mundo os

63

graus mais baixos de objetivaccedilatildeo da vontade quais sejam a natureza inorgacircnica A lei

da harmonia estabelece que os tons agudos satildeo originados daquele tom mais grave

fundamental Da mesma forma no mundo os corpos tecircm como fonte e sustentaacuteculo a

natureza inorgacircnica ldquoagrave partir da qual tudo se eleva e desenvolverdquo(MB 230) As vozes

intermediaacuterias da melodia que estatildeo entre o baixo fundamental e a voz condutora

correspondem no mundo aos demais graus de objetivaccedilatildeo da vontade na natureza ldquoAs

vozes mais proacuteximas do baixo correspondem aos graus mais baixos ou seja os corpos

ainda inorgacircnicos poreacutem jaacute se exteriorizando de diversas maneiras As vozes mais

elevadas por sua vez representam os reinos vegetal e animalrdquo(MB 231)

O objeto de representaccedilatildeo da muacutesica eacute a Vontade e esta por sua vez eacute

intraduziacutevel atraveacutes das palavras da configuraccedilatildeo racional pois a razatildeo natildeo pode

alcanccedilar sua profundidade Trata-se de ldquouma linguagem universal cuja

compreensibilidade eacute inata e cuja clareza ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo

(MB 228) Diante desta caracteriacutestica cognitiva a muacutesica natildeo deve se inspirar no texto

nas palavras a natildeo ser para ilustraacute-las e conceder-lhes assim significaccedilatildeo mais

profunda A muacutesica natildeo deve ser composta com base em conceitos ou em objetos e

ocorrecircncias do mundo pois trata-se de uma expressatildeo da ordem do essencial do

universal ldquoela eacute a alma mais interior dessas ocorrecircncias sem o corpordquo (MB 235) Os

objetos e situaccedilotildees do mundo satildeo manifestaccedilotildees e portanto sua representaccedilatildeo

conceitual satildeo reproduccedilotildees circunstanciais da essecircncia do mundo expressa pela muacutesica

Daiacute se compreende o fato de a muacutesica realccedilar em cada

pintura sim em cada cena da vida efetiva e do mundo o

aparecimento de uma significaccedilatildeo mais elevada e tanto mais

quanto mais anaacuteloga eacute sua melodia ao espiacuterito iacutentimo do

fenocircmeno dado A muacutesica combina com tudo em todas as

exposiccedilotildees Nada lhe pode ser estranho pois exprime a essecircncia

de todas as coisas Caso se soe uma muacutesica que combine com

alguma cena da vida humana ou da natureza destituiacuteda de

conhecimento ou com alguma accedilatildeo acontecimento ambiente ou

64

alguma imagem ndash entatildeo ela revela o sentido secreto dessa cena e eacute

seu comentaacuterio mais correto e claro (MB 235)

Esta caracteriacutestica que daacute agrave muacutesica um privileacutegio cognitivo sobre as demais formas

artiacutesticas eacute o que delineia as consideraccedilotildees do filoacutesofo sobre a oacutepera30

A oacutepera ideal eacute

portanto aquela onde o livreto estaacute para a muacutesica como um exemplo para um conceito

geral A muacutesica tem a funccedilatildeo de expor ldquoo profundo e misterioso sobre a essecircncia

iacutentimardquo daquilo que a palavra exemplifica O compositor que maior ecircxito conseguiu

neste sentido conforme o filoacutesofo foi Rossini cuja ldquomuacutesica fala tatildeo distinta e

puramente a sua linguagem PROacutePRIA visto que quase natildeo precisa de palavras e por

conseguinte provoca todo o seu efeito mesmo se executada soacute com instrumentosrdquo

(MVR 344)

Vemos entatildeo a muacutesica como a mais profunda das artes cujo efeito eacute o mais

avassalador e que portanto quando conjugada com outras formas de expressatildeo como a

oacutepera deve formar a base e orientar a sua elaboraccedilatildeo Entretanto ao contraacuterio da

trageacutedia cujo fim eacute o estiacutemulo agrave renuacutencia da vontade de viver a muacutesica segundo a

metafiacutesica exposta por Schopenhauer ldquonatildeo faz mais do que agradar a vontade de viver

jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo seus ecircxitos e ao final expressa sua

satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509)

30

ldquoAo adotar esta atitude Schopenhauer transtorna toda a tradiccedilatildeo jaacute secular que havia afirmado natildeo

poucas vezes desde os tempos do nascimento da oacutepera o predomiacutenio da palavra sobre a muacutesica e em

consequumlecircncia a subordinaccedilatildeo desta uacuteltima agrave primeirardquo (Fubini 1988 289)

65

3 A teoria da trageacutedia do Jovem Nietzsche

Debalde espreitamos por uma raiz

vigorosamente ramificada por um pedaccedilo

de terra sadia e feacutertil por toda parte poacute

areia rigidez consunccedilatildeo Aqui um

solitaacuterio desconsolado natildeo poderia escolher

melhor siacutembolo do que o Cavaleiro com a

Morte e o Diabo como Duumlrer o desenhou o

cavaleiro arnesado com o olhar duro

brocircnzeo que sabe tomar o seu caminho

assustador imperturbado por seus

hediondos companheiros e natildeo obstante

desesperanccedilado sozinho com o seu corcel e

o seu catildeo Um tal cavaleiro duumlreriano foi

nosso Schopenhauer faltava-lhe qualquer

esperanccedila mas queria a verdade Natildeo haacute

quem se lhe iguale

(Nietzsche)

Neste capiacutetulo procuraremos apontar primeiramente o modo pelo qual se deu o

encontro entre Nietzsche e a filosofia de Schopenhauer Em um segundo momento

percorreremos o desenvolvimento histoacuterico das produccedilotildees nietzscheanas que

culminaram com a publicaccedilatildeo da obra que caracteriza o primeiro periacuteodo do filoacutesofo

qual seja O nascimento da trageacutedia a partir do espiacuterito da muacutesica Concluiremos entatildeo

apresentando um esboccedilo desta obra dando ecircnfase em todos os momentos aos

66

elementos que caracterizam sua teoria da trageacutedia especialmente agravequeles relacionados agrave

metafiacutesica schopenhaueriana da vontade

31 Schopenhauer e o jovem Nietzsche uma breve contextualizaccedilatildeo histoacuterica

Foram nos anos de universidade em Leipzig que Nietzsche se deparou com a

filosofia de Schopenhauer Este periacuteodo entre os anos de 1865 e 1869 eacute especialmente

importante devido ao fato de que nele podemos assistir ao surgimento de alguns

aspectos fundamentais ao projeto filosoacutefico de Nietzsche Janz descreve este periacuteodo

como aquele em que o filoacutesofo estabeleceu ldquoseus encontros espirituais determinantes a

partir dos quais se defrontou consigo mesmo e com sua tarefardquo(1987 151)

O primeiro contato do jovem Nietzsche com o mundo schopenhaueriano deu-se

em meados de outubro de 1865 pouco tempo apoacutes sua chegada a Leipzig O

arrebatamento causado no jovem estudante de filologia pelo encontro com a filosofia

schopenhaueriana eacute descrito por ele apoacutes dois anos da seguinte maneira

Sentia-me naquela eacutepoca desorientado solitaacuterio sem

princiacutepios sem esperanccedilas inconsolado e com algumas

experiecircncias dolorosas e decepccedilotildees Construir uma vida proacutepria e

adequada era para mim uma aspiraccedilatildeo que me ocupava da manhatilde

ateacute a noite No feliz apartamento em que vivia procurava

concentrar-me a mergulhar em mim mesmo e quando me

encontrava com amigos estes eram sempre Mushacke e Von

Gersdorff os quais por sua parte alentavam objetivos muito

semelhantes aos meus Creio que natildeo seraacute difiacutecil imaginar a

impressatildeo que nesta situaccedilatildeo me causou a leitura da obra

principal de Schopenhauer Encontrei um dia este livro no sebo do

velho Rohm Ignorando tudo sobre ele o tomei em minhas matildeos e

me pus a folheaacute-lo Natildeo sei que democircnio me sussurrou bdquoleve este

livro para a casa‟ Aconteceu de compraacute-lo apesar do meu usual

costume de natildeo me precipitar na compra de livros Uma vez em

casa num canto do sofaacute me lancei sobre o tesouro receacutem

adquirido e comecei a deixar que aquele gecircnio eneacutergico e sombrio

influiacutesse sobre mim Em cada linha sua gritava a renuacutencia

negaccedilatildeo resignaccedilatildeo tinha diante de mim um espelho no qual

podia contemplar o mundo a vida e meu proacuteprio acircnimo com uma

67

grandeza deprimente Um espelho desde o qual o olho solar da

arte me mirava desde sua absoluta falta de interesse Vi

enfermidade e cura desterro e refuacutegio inferno e paraiacuteso A

necessidade de autoconhecimento inclusive de auto-

experimentaccedilatildeo apoderou-se de mim com forccedila indomaacutevel

provas daquela mutaccedilatildeo profunda satildeo hoje todavia para mim as

paacuteginas desassossegadas e melancoacutelicas do diaacuterio que agravequela

eacutepoca escrevi com suas auto-acusaccedilotildees inuacuteteis e sua desesperada

busca de salvaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo do inteiro nuacutecleo humano Na

medida em que propus a submeter todas as minhas caracteriacutesticas

e aspiraccedilotildees ao tribunal de uma sombria auto-depreciaccedilatildeo minha

atitude estava cheia de amargura possuiacuteda de um oacutedio injusto e

desenfreado contra mim mesmo Nem sequer renunciei agraves

mortificaccedilotildees corporais Obriguei-me com efeito durante

quatorze dias seguidos a deitar-me agraves duas da noite e acordar agraves

seis da manhatilde Uma excitaccedilatildeo nervosa muito singular se apoderou

assim de mim e quem sabe ateacute que grau de loucura haveria

chegado se natildeo tivesse modificado frente agravequele estado de

acircnimo os atrativos da vida da vaidade e o imperativo de retornar

a meus estudos regulares (conforme citaccedilatildeo de Janz 1987 158)

Da citaccedilatildeo podemos inferir a mudanccedila de acircnimo que o encontro com

Schopenhauer provocou A partir daquele momento diversas correspondecircncias datildeo-nos

ainda informaccedilotildees do impacto que a filosofia de Schopenhauer provocou na concepccedilatildeo

de mundo do jovem estudante Em algumas destas correspondecircncias vemos transparecer

a influecircncia atraveacutes da frequumlente utilizaccedilatildeo de um vocabulaacuterio schopenhaueriano bem

como das ideacuteias nelas expressas Assim acontece em carta enviada agrave sua matildee e irmatilde

datada de 5 de novembro de 1865 onde ao discorrer acerca da frivolidade da vida

humana o jovem Nietzsche conclui utilizando-se dos argumentos propostos pela eacutetica

schopenhaueriana

Existem dois caminhos ou se esforccedila e se acostuma a ser

o mais limitado que se possa e uma vez que se reduz o maacuteximo

possiacutevel a luz do espiacuterito se busque bens de fortuna e se viva com

os prazeres do mundo ou por outro lado se sabe que a vida eacute

miseraacutevel se sabe que somos seus escravos tanto mais quanto

mais procuramos dela gozar e por tanto se desprende dos bens da

vida exercita a sobriedade e se eacute austero consigo mesmo e cordial

com os demais ndash e isto porque sente compaixatildeo pelos

companheiros de miseacuteria ndash em uma palavra se vive de acordo

68

com as rigorosas exigecircncias do cristianismo primitivo (OC

470)

Vemos ainda em carta a Mushacke em 12 de julho de 1866 o impacto que a

interpretaccedilatildeo schopenhaueriana pessimista de mundo causou em Nietzsche ldquoDesde que

Schopenhauer nos retirou dos olhos a venda do otimismo as coisas satildeo percebidas

mais agudamente A vida eacute mais interessante ainda que mais feiardquo (conforme citaccedilatildeo

de Janz 1987 172) Percebemos tambeacutem a linguagem schopenhaueriana na descriccedilatildeo

dos momentos de contemplaccedilatildeo Eacute o caso da carta datada de 07 de abril de 1866 a

Gersdorf onde Nietzsche descreve seu estado que nos remeteraacute agrave contemplaccedilatildeo

artiacutestica na filosofia de Schopenhauer ao discorrer sobre os dias de veratildeo ldquo[] a

natureza se faz perfeita e noacutes tambeacutem entatildeo nos sentimos livres do poderio da vontade

sempre alerta e somos olho puro intuitivo desinteressadordquo (OC 472)

Estas influecircncias nortearam de forma definitiva as produccedilotildees acadecircmicas de

Nietzsche mesmos suas pesquisas filoloacutegicas A concepccedilatildeo traacutegica do mundo tornou-se

um feixe condutor para as reflexotildees do jovem filoacutelogo Seus companheiros no estudo da

obra de Schopenhauer eram Gersdorff e Mushacke Em carta agrave sua matildee de 01 de

fevereiro de 1866 Nietzsche deixa saber sobre a frequumlecircncia dos estudos ldquoCom

Gersdorff me encontro uma noite por semana para ler grego a cada duas semanas me

reuacuteno com ele e com Mushacke e nos entregamos a Schopenhauer Este filoacutesofo ocupa

uma posiccedilatildeo importante em meus pensamentos e estudos e meu respeito por ele cresce

incomparavelmenterdquo (OC 471) Se o conteuacutedo da filosofia schopenhaueriana foi

absorvido intensamente pelo jovem Nietzsche como podemos ver a partir dos trechos

transcritos acima a forma estiliacutestica tambeacutem se configura como preocupaccedilatildeo Em um

periacuteodo onde as pesquisas acadecircmicas exigiam o esforccedilo da escrita ali tambeacutem a

autoridade das regras schopenhauerianas exibia sua feiccedilatildeo Eacute tambeacutem em uma carta a

69

Gersdorff datada de 06 de abril de 1867 onde Nietzsche expotildee sua preocupaccedilatildeo com o

estilo

Nestas divagaccedilotildees quero redigir meu trabalho sobre as

fontes de Dioacutegenes Laeacutercio e estou todavia no iniacutecio Para seu

regozijo confessarei que o que mais me daacute trabalho eacute meu estilo

em alematildeo Agora me caem os veacuteus dos olhos e vejo que

durante muito tempo vivi em estado de inocecircncia estiliacutestica O

imperativo categoacuterico bdquodeves escrever‟ me foi despertado[] nos

ouvidos me soavam todos os preceitos estiliacutesticos de Lessing de

Lichtenberg e de Schopenhauer Meu uacutenico consolo eacute que estas

trecircs autoridades afirmavam unanimemente que eacute difiacutecil escrever

bem que por natureza ningueacutem tem um bom estilo e que haacute que

trabalhar e trabalhar para consegui-lo (OC 476)

Entretanto apesar do profundo arrebatamento causado pela filosofia de

Schopenhauer que fez com que o universo das preocupaccedilotildees do entatildeo jovem Nietzsche

se fundamentasse nos pressupostos da metafiacutesica schopenhaueriana outros elementos

tambeacutem fundamentais para o pensamento futuro do filoacutesofo foram tambeacutem neste

periacuteodo despertados Como apontam Dias (2009 42) Janaway (2007 16) e Lopes

(2008 27) jaacute neste periacuteodo que podemos tratar como um periacuteodo de despertar para o

pensamento filosoacutefico encontraacutevamos os elementos que a partir de Humano demasiado

humano conformaratildeo a criacutetica nietzscheana agrave filosofia de Schopenhauer Os

comentadores citados chamam a atenccedilatildeo para o fato de que embora nas obras

publicadas de Nietzsche possamos assistir a criacuteticas diretas a Schopenhauer somente

apoacutes Humano demasiado humano tais criacuteticas agrave filosofia schopenhaueriana surgiram

em um momento imediatamente posterior agrave descoberta da metafiacutesica da vontade Rosa

Maria Dias chama a atenccedilatildeo para os fragmentos poacutestumos e para a correspondecircncia que

agrave partir de 1867 trazem algumas criacuteticas agrave metafiacutesica da vontade Rogeacuterio Lopes e

Cristopher Janaway apontam que algumas destas criacuteticas estatildeo embasadas nas leituras

que o jovem Nietzsche fez de Friedrich A Lange Rudolf Haym Kuno Fischer dentre

outros Tais criacuteticas contudo natildeo afastaram o jovem Nietzsche do discipulado

70

schopenhaueriano mas transformaram sua aceitaccedilatildeo do sistema da vontade No lugar de

uma defesa da consistecircncia loacutegica do sistema Nietzsche passou a adotar uma postura de

defesa da bdquonatureza edificante‟ e preponderantemente artiacutestica deste sistema Exemplos

desta postura podem ser encontrados tambeacutem na correspondecircncia daquele periacuteodo

Para escrever uma apologia a Schopenhauer eu tenho

unicamente que considerar o fato de que olho esta vida livre e

bravamente diante do fato de que encontrei um suporte para me

apoiar obviamente que isto natildeo eacute mais que uma apologia

totalmente individual Mas eacute como as coisas satildeo Se algueacutem

deseja refutar Schopenhauer para mim atraveacutes de argumentos

racionais murmuro em seu ouvido bdquoporeacutem meu amigo visotildees de

mundo natildeo satildeo criadas nem destruiacutedas pela loacutegica‟ (carta a

Deussen Outubro-Novembro de 1867 citada por Janaway

(200718))

Ou ainda em carta a Gersdorff onde apoacutes apresentar a criacutetica de Lange agrave metafiacutesica da

vontade Nietzsche conclui contra Haym ainda com os argumentos de Lange

Natildeo apenas a verdadeira essecircncia das coisas a coisa em si

eacute desconhecida para noacutes tambeacutem seu conceito eacute nada mais nada

menos que o uacuteltimo rebento de um contraste condicionado por

nossa organizaccedilatildeo do qual natildeo sabemos se conserva algum

significado fora de nossa experiecircncia Disso resulta pensa Lange

que os filoacutesofos natildeo devem ser importunados na medida em que

nos edificam A arte eacute livre tambeacutem na regiatildeo dos conceitos

Quem pretenderia refutar uma frase de Beethoven e acusar de erro

uma Madonna de Rafael Como vocecirc pode perceber o nosso

Schopenhauer resiste mesmo a este mais rigoroso ponto de vista

criacutetico ele se torna quase ainda mais valioso para noacutes Se filosofia

eacute arte entatildeo que Haym se anule diante de Schopenhauer se a

filosofia deve edificar entatildeo eu pelo menos natildeo conheccedilo nenhum

filoacutesofo que edifique mais do que nosso Schopenhauer (apud

Lopes 2008 86-87)

Vimos ateacute entatildeo que a descoberta de Schopenhauer provocou no jovem

estudante de filologia transformou sua forma de perceber o mundo e o influenciou de

forma definitiva a ponto de fazer com que Nietzsche se definisse como um seguidor e

divulgador da obra schopenhaueriana Contudo eacute no fim de seus anos de estudo em

Leipzig que o disciacutepulo de Schopenhauer iraacute se defrontar com a personalidade que lhe

71

reforccedilaraacute de forma ainda mais contundente o selo da rotunda schopenhaueriana

Richard Wagner

Foi atraveacutes de seu amigo Brockhaus cuja esposa era irmatilde do muacutesico que em

novembro de 1868 Nietzsche encontrou-se pela primeira vez com Wagner A partir

daquele encontro se estabeleceria um relacionamento que de uma forma ou de outra

marcaraacute Nietzsche pelo resto de sua vida Em uma carta a seu amigo Erwin Rohde

Nietzsche descreve o primeiro encontro e sua perplexidade ao encontrar em Wagner um

admirador de Schopenhauer ldquo[]mantive com ele uma longa conversa sobre

Schopenhauer Ah Compreenderaacutes minha felicidade em ouvir-lhe falar com um

entusiasmo completamente indescritiacutevel ao qual ele agradecia como Schopenhauer

era o uacutenico filoacutesofo que havia compreendido a essecircncia da muacutesicardquo (Correspondecircncia

2007 21) A impressatildeo deste encontro eacute tambeacutem claramente visiacutevel atraveacutes de

correspondecircncia endereccedilada ao proacuteprio Wagner em maio de 1869 ldquoVeneradiacutessimo

senhor quanto tempo tive a intenccedilatildeo de lhe manifestar sem nenhuma timidez o grau de

gratidatildeo que sinto em relaccedilatildeo ao senhor pois realmente os melhores e mais elevados

momentos de minha vida se ligam ao seu nome e eu soacute conheccedilo mais um homem aleacutem

disso seu grande irmatildeo em espiacuterito Arthur Schopenhauer em quem penso com a

mesma veneraccedilatildeo ateacute senso religiosordquo (Correspondecircncia 2007 56) Como podemos

ver a pessoa de Wagner eacute associada agrave de Schopenhauer Esta associaccedilatildeo tornar-se-aacute

uma constante e poderaacute ser identificada ainda na fase tardia onde as criacuteticas a estes

pensadores e ao que eles entatildeo representavam se daraacute de forma inter-relacionada Este

primeiro encontro com Wagner conforme Janz (1987 22) foi um dos principais

motivos que levaram Nietzsche a aceitar em detrimento de outros planos que

formulava assumir a caacutetedra de filologia em Basel A proximidade de Tribschen

residecircncia dos Wagner e a possibilidade de uma convivecircncia com o muacutesico o

72

inspiraram E assim aconteceu Ao mudar-se para Basel pocircde desfrutar de uma

convivecircncia constante com o casal Wagner Desde a chegada de Nietzsche ateacute a

mudanccedila de Wagner em 1872 encontravam-se com muita frequumlecircncia e os assuntos que

pautavam tais encontros eram amiuacutede arte muacutesica a literatura claacutessica e a filosofia de

Schopenhauer Wagner tornar-se-ia para Nietzsche a personificaccedilatildeo do gecircnio

schopenhaueriano aquele capaz de atraveacutes da muacutesica expor a essecircncia do mundo No

projeto wagneriano de ldquoarte totalrdquo Nietzsche pocircde vislumbrar a uniatildeo entre muacutesica e

filosofia e satisfazer assim em certa medida as expectativas oriundas da metafiacutesica da

vontade

32 O projeto subjacente ao Nascimento da Trageacutedia

Eacute famosa a passagem onde Nietzsche em carta a Deussen datada de janeiro de

1870 informa sobre seu estado de espiacuterito ldquo Ciecircncia arte e filosofia crescem agora

juntas em mim e de tal modo que um dia haverei de parir centaurosrdquo (Janz 1981 66)

Esta afirmaccedilatildeo eacute ilustrativa no que se refere ao ambiente onde o Nascimento da trageacutedia

foi gerado Podemos identificar claramente as figuras por detraacutes dos termos filosofia

arte e ciecircncia satildeo elas Schopenhauer Wagner e a filologia claacutessica Neste periacuteodo

Nietzsche entatildeo jovem professor de filologia estava imbuiacutedo pela pretensatildeo de poder

unir os estudos filoloacutegicos aos filosoacuteficos Sua preleccedilatildeo inicial Homero e a filologia

claacutessica em Basel nos daacute uma amostra desta pretensatildeo Ali podemos assistir a uma

aproximaccedilatildeo entre filologia e filosofia atraveacutes da proposta de uma leitura filosoacutefica do

mundo antigo ldquoCom isto quero expressar que toda atividade filoloacutegica deve estar

impregnada de uma concepccedilatildeo filosoacutefica do mundo na qual todo o particular e singular

seja visto como algo sem proveito e soacute permaneccedila de peacute a unidade do todordquo (OC 26)

73

Sua escolha por trilhar caminhos mais proacuteximos agrave filosofia pode tambeacutem ser observada

pela tentativa frustrada de ocupar uma cadeira desta disciplina que se mostrou livre em

janeiro de 1871 Se por um lado podemos diagnosticar certa decepccedilatildeo e ateacute um

determinado desacircnimo na atividade acadecircmica por outro lado os laccedilos com os Wagner

se estreitavam cada vez mais No refuacutegio de Tribschen sob a aura de Richard Wagner

Nietzsche discorria sobre o mundo grego enquanto modelo de cultura e ouvia os planos

wagnerianos sobre seu projeto de uma obra de arte total Como pano de fundo destas

discussotildees a metafiacutesica da muacutesica schopenhaueriana e sua concepccedilatildeo traacutegica do mundo

Eacute em torno destes eixos formadores que vemos se materializar a primeira publicaccedilatildeo de

Nietzsche

O desenvolvimento das ideacuteias que formaratildeo a obra contudo se deu de forma

gradual Ao longo do periacuteodo compreendido entre a chegada de Nietzsche a Basel e a

publicaccedilatildeo de seu livro determinados trabalhos deixam transparecer o delineamento de

algumas das ideacuteias centrais da obra Satildeo eles O drama musical grego Soacutecrates e a

trageacutedia A visatildeo dionisiacuteaca do mundo e Introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles31

Em o drama musical grego conferecircncia puacuteblica datada de janeiro de 1870

Nietzsche efetua uma comparaccedilatildeo entre a arte traacutegica da antiguidade e as oacuteperas

modernas Estas de acordo com o filoacutesofo satildeo uma imperfeita ldquocaricatura do drama

musical antigordquo (VD 48) Muacutesica pintura escultura e poesia formavam um todo na

arte traacutegica da antiguidade Nas artes modernas por sua vez as formas artiacutesticas satildeo

fragmentadas fato que dificulta o entendimento da trageacutedia grega e que causaria

espanto ao apreciador de arte moderno A muacutesica teria para a trageacutedia antiga uma

31

Como ressaltam M S Silk e J P Stern em sua obra Nietzsche on tragedy (1981 59) o nascimento da

trageacutedia eacute composto de forma estrutural pelos conceitos encontrados nestes trabalhos O iniacutecio do livro

(sectsect1-10) eacute substancialmente baseado no ensaio a visatildeo dionisiacuteaca do mundo enquanto a sequumlecircncia

composta pelos paraacutegrafos 5 e 6 estaacute mais proacutexima da introduccedilatildeo agrave trageacutedia de Soacutefocles O trecho

composto pelos paraacutegrafos 11 a 14 pode ser derivado diretamente da leitura Soacutecrates e a trageacutedia O resto

do livro eacute formado por uma amaacutelgama destes escritos Partes dispersas ainda satildeo formadas pelo ensaio do

drama musical grego

74

importacircncia capital como elemento intensificador de seu efeito Podemos ver a intenccedilatildeo

por traacutes da anaacutelise nietzscheana da trageacutedia antiga em comparaccedilatildeo agrave opera Ao final da

conferecircncia no elogio que confere a Wagner o tiacutetulo de ldquoatual reformador da arterdquo bem

como na descriccedilatildeo de seu projeto de arte total retratado como um acontecimento que jaacute

teve lugar na trageacutedia da antiguidade claacutessica Nietzsche deixa claro seu engajamento ao

projeto wagneriano

No mecircs seguinte ao da citada conferecircncia uma segunda intitulada Soacutecrates e a

trageacutedia foi proferida por Nietzsche O assunto em pauta era a morte repentina da

trageacutedia grega Esta morte teria ocorrido pelas matildeos de Euriacutepides apoacutes uma decadecircncia

iniciada nos uacuteltimos periacuteodos das produccedilotildees de Eacutesquilo passando por Soacutefocles e

culminando com o advento da comeacutedia Tal decadecircncia teria sido provocada pela saiacuteda

de cena da muacutesica que de forma progressiva foi substituiacuteda pelo diaacutelogo racionalista

Soacutecrates ocupa aqui um lugar importante Eacute sua influecircncia sobre Euriacutepides que

transforma de uma forma definitiva a arte instintivamente musical da trageacutedia em uma

manifestaccedilatildeo do discurso eacutetico racionalista Esta ldquoesteacutetica racionalista e conscienterdquo

pode ser identificada no proacutelogo euripidiano e na inserccedilatildeo do deus ex machina

enquanto agentes de racionalizaccedilatildeo da obra artiacutestica A trageacutedia de Euriacutepides teria

assumido assim os pressupostos do racionalismo socraacuteticos ldquoVirtude eacute saber peca-se

somente por ignoracircncia O virtuoso eacute felizrdquo (VD 90) Esta assunccedilatildeo que liga a virtude

ao saber impotildee agrave trageacutedia um caraacuteter eacutetico alheio agrave sua caracteriacutestica puramente

esteacutetica O elemento culpa na dialeacutetica socraacutetica toma o lugar que era ocupado pela

compaixatildeo Jaacute podemos perceber nesta conferecircncia o esboccedilo da dicotomia que mais

tarde seraacute ilustrada atraveacutes dos deuses Apolo e Dioniso Os pares formadores da

dicotomia satildeo aqui expressos pela separaccedilatildeo entre instinto e razatildeo muacutesica e discurso

pessimismo e otimismo arte e ciecircncia

75

Temos a primeira referecircncia agrave arte dionisiacuteaca como impulso formador da

trageacutedia e sua contraposiccedilatildeo agrave arte apoliacutenea nas aulas proferidas por Nietzsche no veratildeo

daquele mesmo ano Neste curso sobre a trageacutedia de Soacutefocles do qual temos a

introduccedilatildeo podemos ver o esforccedilo de Nietzsche em caracterizar e apontar as

peculiaridades da trageacutedia da antiguidade que a tornam um fenocircmeno uacutenico em

comparaccedilatildeo agraves trageacutedias modernas Tal discussatildeo demonstraraacute pelos aspectos ali

expostos a aproximaccedilatildeo de Nietzsche com autores do periacuteodo claacutessico alematildeo e

sobretudo da chamada querela entre antigos e modernos Vemos claramente a influecircncia

de Schiller e F A Schlegel em algumas das definiccedilotildees adotadas por Nietzsche

No texto denominado A visatildeo dionisiacuteaca do mundo jaacute podemos assistir a um

desenvolvimento das duas pulsotildees artiacutesticas que satildeo o nuacutecleo da interpretaccedilatildeo

nietzscheana da trageacutedia O apoliacuteneo e o dionisiacuteaco satildeo ali explicados no acircmbito de seu

surgimento no mundo helecircnico e simbolizam a uniatildeo entre verdade e beleza na forma de

arte traacutegica Sua descriccedilatildeo como veremos abaixo estaacute permeada de conceitos retirados

da filosofia schopenhaueriana que vatildeo desde a biparticcedilatildeo do mundo entre verdade e

aparecircncia perpassam as noccedilotildees de belo e sublime e apontam a trageacutedia e a muacutesica como

forma de arte superiores

Em janeiro de 1872 Nietzsche daacute luz a seu ldquoCentaurordquo sob o nome O nascimento

da trageacutedia atraveacutes do espiacuterito da muacutesica Em carta a Rohde datada de 23 de novembro

de 1871 podemos notar atraveacutes da ansiosa expectativa nietzscheana a amaacutelgama

formadora da obra ldquo Temo sempre que os filoacutelogos natildeo o queiram ler por causa da

muacutesica os muacutesicos por causa da filologia e os filoacutesofos por causa da muacutesica e da

filologia e sinto logo medo e compaixatildeo de mim mesmordquo (Correspondecircncia 2007 237)

33 A teoria da trageacutedia publicada

Como escopo geral da primeira obra de Nietzsche podemos dizer na esteira de

Silk e de Stern (1981 52) que ela se propunha a esclarecer o problema do nascimento e

76

da morte da trageacutedia helecircnica Trageacutedia que por sua vez era a expressatildeo artiacutestica que

simbolizava um problema vital o de que sob uma superfiacutecie bela podiacuteamos ter acesso agrave

terriacutevel profundidade do ser Tal forma de arte poderia novamente vir agrave luz por uma

geraccedilatildeo criativa que ao combater a superficialidade moderna que reinava no mundo

germacircnico poderia produzir o renascimento moderno do mundo Helecircnico

Em sua essecircncia o nascimento da trageacutedia aponta para as divindades Apolo e

Dioniacutesio como ldquorepresentantes vivosrdquo de princiacutepios diacutespares que irrompem da proacutepria

natureza e que ao serem conciliados de certa forma tornaram possiacutevel que atraveacutes dos

atritos de tal uniatildeo a trageacutedia grega despontasse como manifestaccedilatildeo artiacutestica exemplar

do sublime Em linhas gerais a arte do ldquofigurador plaacutesticordquo estaria entatildeo associada ao

deus Apolo enquanto a arte ldquonatildeo figuradardquo a da muacutesica estaria associada ao deus

Dioniacutesio O apoliacuteneo eacute um impulso da vontade grega que ao almejar a vida a apresenta

transfiguradamente como um belo sonho plasmado no mundo dos deuses oliacutempicos O

princiacutepio apoliacuteneo seria aquele que estabeleceria a ordem a beleza estaacutetica e a clareza

dos limites O dionisiacuteaco eacute oriundo das festas do oriente e seu efeito eacute comparado ao da

embriaguecircs A ele cabe a sabedoria profunda da essecircncia da vida lugar do acaso do

impermanente do horriacutevel e do sofrimento A Apolo eacute facultado tecer o veacuteu que

encobre a sabedoria dionisiacuteaca e torna a vida suportaacutevel atraveacutes da ilusatildeo do sonho

Assim segundo Nietzsche o desenvolvimento contiacutenuo da arte estaacute vinculado agrave

duplicidade dos princiacutepios apoliacuteneo e dionisiacuteaco Perfazendo um caminho histoacuterico da

cultura grega podemos notar uma sobreposiccedilatildeo intermitente entre os impulsos divinos

Temos momentos onde o impulso apoliacuteneo se mostrou dominante e outros onde

Dioniacutesio recupera seu predomiacutenio O mundo oliacutempico homeacuterico com sua arte eacutepica e

sua escultura do periacuteodo doacuterico nascem a partir de uma necessidade de redenccedilatildeo para a

realidade de horror e sofrimento que o povo helecircnico presenciava Em substituiccedilatildeo ao

77

mundo titacircnico temos o mundo dos deuses oliacutempicos exemplificadores de uma

existecircncia divinizada que exalta a vida Nas palavras de Nietzsche ldquoo grego conheceu

e sentiu os temores e os horrores do existir para que lhe fosse possiacutevel de algum modo

viver teve de colocar ali entre ele e a vida a resplendente criaccedilatildeo oniacuterica dos deuses

oliacutempicosrdquo (NT 36) Entretanto a sabedoria dionisiacuteaca portadora da visatildeo abismal do

ser natildeo pocircde ser contida por muito tempo e a muacutesica veiacuteculo da uniatildeo orgiaacutestica aos

poucos foi se infiltrando no mundo construiacutedo pelo divino Apolo Os gregos foram se

tornando conscientes de seu estado sonambuacutelico que sob a graccedila do deus Apolo enleva

e transporta pela extraordinaacuteria beleza natural ou esteacutetica Em um estado semelhante ao

do indiviacuteduo que restabelecido em suas forccedilas pelo efeito renovador do sono ao findar

de uma noite comeccedila a ouvir os sons a sua volta e aos poucos vai se despertando da

mesma forma os gregos comeccedilaram novamente a ouvir o sussurro do Sileno

companheiro de Dioniacutesio ldquoo melhor de tudo eacute para ti inteiramente inatingiacutevel natildeo ter

nascido e natildeo ser nada ser Depois disso poreacutem o melhor para ti eacute logo morrerrdquo

(NT 36) O artista que representa este retorno do dionisiacuteaco com a mesma envergadura

com que Homero representa as forccedilas apoliacuteneas eacute Arquiacuteloco Tomando-o como modelo

do gecircnio liacuterico Nietzsche faz uma descriccedilatildeo de seu processo de criaccedilatildeo Conforme a

metafiacutesica esteacutetica adotada por Nietzsche - que mais agrave frente veremos ser retirada da

esteacutetica schopenhaueriana - toda arte tem que ser objetiva livre dos interesses

individuais Nesta situaccedilatildeo a liacuterica que tem como objeto o eu do poeta seus desejos e

emoccedilotildees natildeo seria uma forma de arte Entretanto atraveacutes de uma descriccedilatildeo que Schiller

faz da inspiraccedilatildeo poeacutetica Nietzsche aponta o caminho para percebermos a liacuterica como

obra de arte e portanto objetivamente Conforme a passagem de Schiller citada por

Nietzsche (NT 44) ldquoo sentimento se me apresenta no comeccedilo sem um objeto claro e

determinado este soacute se forma mais tarde Uma certa disposiccedilatildeo musical de espiacuterito

78

vem primeiro e somente depois eacute que se segue em mim a ideacuteia poeacuteticardquo Desta forma

Arquiacuteloco em seu processo criativo a princiacutepio entraria em um estado de consciecircncia

ou de criaccedilatildeo onde renunciaria agrave sua individualidade e dionisiacamente participaria do

uno-primordial ldquoabismo do serrdquo estado que por sua vez materializa-se atraveacutes da

representaccedilatildeo musical A muacutesica assim produzida seraacute condiccedilatildeo para o surgimento da

inspiraccedilatildeo que a posteriori daraacute nascimento atraveacutes da aplicaccedilatildeo das formas

apoliacuteneas agrave poesia liacuterica geacutermen da trageacutedia e dos ditirambos dramaacuteticos Esta uniatildeo da

poesia liacuterica com a muacutesica eacute uma expressatildeo sinteacutetica da relaccedilatildeo dos deuses Apolo e

Dioniacutesio Eacute no quinto capiacutetulo de sua obra que Nietzsche iraacute tratar da poesia liacuterica

Neste capiacutetulo o filoacutesofo se distancia de Schopenhauer em sua interpretaccedilatildeo do

fenocircmeno liacuterico Para Schopenhauer na citaccedilatildeo reproduzida por Nietzsche (NT 46) a

liacuterica eacute produzida atraveacutes de uma percepccedilatildeo da consciecircncia onde os estados da vontade

individualizada se alternam com o conhecimento objetivo Como vimos o poeta liacuterico

assistiria ao jogo do eu em sua afetaccedilatildeo emocional e descreveria este estado atraveacutes de

sua poesia Nietzsche ao descrever a liacuterica utiliza-se da teoria da muacutesica

schopenhaueriana qual seja o poeta liacuterico produz primeiramente a muacutesica como forma

geral de expressatildeo da vontade mesma e desta produccedilatildeo gera posteriormente o texto que

se torna um exemplificador do evento musical sua forma plaacutestica objetiva A muacutesica eacute

a aparecircncia da vontade e as imagens apoliacuteneas que dela se originaram satildeo conforme seu

espiacuterito A imagem e o conceito satildeo desta forma na liacuterica originados a partir da

muacutesica

Tem-se portanto na trageacutedia grega uma relaccedilatildeo de interdependecircncia que evoca

um aparente paradoxo ndash ou seja ao lado da necessidade esteacutetica da beleza Apolo exige

dos seus a medida (limites fronteiras do indiviacuteduo presentes no ldquonada em demasiardquo) e

o auto-conhecimento necessaacuterio para determinaacute-la (ldquoconhece-te a ti mesmordquo) o

79

desmedido os excessos o dionisiacuteaco seriam identificados pelo apoliacuteneo como

democircnios de uma era preacute-apoliacutenea era dos Titatildes reminiscecircncias de barbarismo O

paradoxo estaacute em que para que o comedimento apoliacuteneo possa existir o desmedido

dionisiacuteaco faz-se necessaacuterio (na linguagem de Nietzsche como ldquosubstratordquo) assim

como para que o desmedido dionisiacuteaco possa existir faz-se necessaacuterio a existecircncia do

comedido do apoliacuteneo Natildeo obstante a trageacutedia grega depende da conjugaccedilatildeo destes

dois princiacutepios para existir ndash indo aleacutem poder-se-ia dizer que a proacutepria muacutesica compotildee

o princiacutepio primeiro que possibilita o surgimento da trageacutedia no jogo das formas

apoliacuteneo A trageacutedia eacute entatildeo definida como ldquoo coro dionisiacuteaco a descarregar-se sempre

de novo em um mundo de imagens apoliacuteneordquo (NT 60)

Em seu iniacutecio a trageacutedia grega era representada pelo coro traacutegico Este coro natildeo

era uma ldquorepresentaccedilatildeo constitucional do povordquo muito menos um espectador ideal

como o queria August Schlegel Nietzsche acompanha Schiller na definiccedilatildeo de que o

coro cria um terreno ideal para a manifestaccedilatildeo da arte O efeito da trageacutedia eacute a

manifestaccedilatildeo de um estado de unidade que transporta ao abismo do ser O coro eacute a

manifestaccedilatildeo deste sentimento da consciecircncia de que por traacutes da vida cotidiana haacute uma

realidade ldquoindestrutivelmente poderosa e cheia de alegriardquo (NT 55) Este eacute o consolo

metafiacutesico propiciado pela arte traacutegica Ao retornarmos deste estado o cotidiano nos

causa asco nojo Natildeo eacute possiacutevel interpretar mais o papel da vida comum A vida soacute

passa a se justificar atraveacutes da arte Perceba-se aiacute que o coro possui um papel

fundamental no processo O coro atua como impulso artiacutestico dionisiacuteaco em

contraposiccedilatildeo agrave forma apoliacutenea ou seja agraves imagens e agrave beleza plaacutestica Assim o

indiviacuteduo atraveacutes do coro tem para si revelado aquele substrato dionisiacuteaco encoberto

pela beleza e comedimento apoliacuteneos isto eacute ao indiviacuteduo era possiacutevel submergir na

80

torrente dionisiacuteaca do auto-esquecimento permitindo-se pocircr de lado os preceitos

apoliacuteneos

E foi assim que em toda parte onde o dionisiacuteaco penetrou o apoliacuteneo

foi suspenso e aniquilado Mas eacute igualmente certo que laacute onde o primeiro

assalto foi suportado o prestiacutegio e a majestade do deus deacutelfico se externaram de

maneira mais riacutegida e ameaccediladora do que nunca(NT 41-42)

De acordo com Nietzsche as trageacutedias eram em seu iniacutecio representaccedilotildees do

sofrimento de Dioniacutesio Mesmo as trageacutedias do periacuteodo aacutetico traziam Dioniacutesio como

heroacutei traacutegico O sofrimento representado era o do despedaccedilamento de Dioniacutesio o deus

que sofreu o padecimento da individuaccedilatildeo causa de todo o sofrer O mito de Dioniacutesio eacute

interpretado aqui sob a luz da filosofia de Schopenhauer que apresenta a individuaccedilatildeo

como fonte do sofrimento ldquoNos pontos de vista aduzidos temos jaacute todas as partes

componentes de uma profunda e pessimista consideraccedilatildeo do mundo e ao mesmo tempo

a doutrina misteriosoacutefica da trageacutedia o conhecimento baacutesico da unidade de tudo o que

existe a consideraccedilatildeo da individuaccedilatildeo como a causa primeira do mal a arte como a

esperanccedila jubilosa de que possa ser rompido o feiticcedilo da individuaccedilatildeo como

pressentimento de uma unidade restabelecidardquo (NT 70)

Contudo ressalta Nietzsche a trageacutedia grega que como vimos desenvolve-se a

partir do embate contiacutenuo entre as representaccedilotildees dos deuses antiacutepodas ndash envolvidos em

um enfrentamento aparentemente sem fim ndash eacute reestruturada por Euriacutepides de forma a

diminuir o impacto do coro ou seja um golpe quase mortal para Dioniacutesio que

agonizante lanccedila matildeo de seus uacuteltimos esforccedilos O que em Euriacutepedes suscitou esta

reestruturaccedilatildeo que conforme Nietzsche eacute responsaacutevel pelo afastamento progressivo do

dionisiacuteaco tem suas origens no que o filoacutesofo chamou de uma ldquotendecircncia socraacuteticardquo O

socratismo euripidiano e a sua nova concepccedilatildeo esteacutetica satildeo as causadoras do

afastamento dos impulsos esteacuteticos primevos o dionisiacuteaco e o apoliacuteneo Em seu lugar o

discurso consciente passa a imperar O deus ex machina e os proacutelogos satildeo exemplos das

81

interferecircncias racionais que datildeo novo tom agrave trageacutedia aacutetica Soacutecrates e seu racionalismo

expulsam da trageacutedia o conhecimento primevo dionisiacuteaco e estabelecem novas regras

esteacuteticas regras racionais que fazem com que o bom sinocircnimo do belo seja aquilo

alcanccedilado conscientemente

Se a trageacutedia grega foi para Nietzsche a manifestaccedilatildeo mais sublime de uma

forma artiacutestica isto se daacute em decorrecircncia do efeito por ela provocado qual seja o de

justificar o mundo enquanto fenocircmeno esteacutetico Foi exatamente o decliacutenio deste efeito

constatado pela produccedilatildeo racionalizada de Euriacutepides o responsaacutevel pela morte da

trageacutedia Ao fortalecer em demasia os princiacutepios racionais da forma Euriacutepides suprimiu

o dionisiacuteaco por meio da flacircmula que nas palavras de Nietzsche o tragedioacutegrafo

ldquolevava agrave testardquo ndash a saber uma espeacutecie de socratismo esteacutetico cujos princiacutepios se davam

a partir da remissatildeo do belo ao inteligiacutevel e deste ao virtuoso Identifica-se portanto a

racionalidade otimista socraacutetica como grande responsaacutevel pela supressatildeo do impulso

dionisiacuteaco Nietzsche alude agrave proximidade de convivecircncia entre Soacutecrates e Euriacutepides

para justificar a presenccedila do racionalismo nas obras Euripidianas Soacutecrates frequumlentava

o teatro somente para assistir agraves apresentaccedilotildees de Euriacutepides De todos os atenienses

Soacutecrates era apontado como o mais saacutebio e Euriacutepides como o segundo em sabedoria

Entretanto na contraposiccedilatildeo proposta por Nietzsche entre conhecimento instintivo e

racional Soacutecrates era descomunalmente racional ao contraacuterio do intuitivismo criativo

que reinava ateacute entatildeo Era questionando aos atenienses sobre seus atos que Soacutecrates

percebia que eles natildeo agiam conscientemente mas por intuiccedilatildeo A crenccedila socraacutetica de

que toda accedilatildeo boa deve ser consciente dominou o teatro atraveacutes de Euriacutepides Uma

chave para o entendimento da racionalidade socraacutetica segundo Nietzsche nos eacute

revelada pela ldquomonstruosa inversatildeordquo representada pela consciecircncia criacutetica de Soacutecrates ndash

ou seja a nota destoante em Soacutecrates revela-se pelo instinto criacutetico em contraposiccedilatildeo agrave

82

consciecircncia criacutetica a consciecircncia criadora em contraposiccedilatildeo ao instinto como forccedila

criadora Intui-se assim o motivo pelo qual Soacutecrates natildeo compreendia a trageacutedia grega

- o dionisiacuteaco a tornava ininteligiacutevel para as exigecircncias racionalistas e criacuteticas da

ldquodialeacutetica otimistardquo socraacutetica ldquoA Soacutecrates [] parecia que a arte traacutegica nunca bdquodiz a

verdade‟ sem considerar o fato de que se dirigia agravequele que bdquonatildeo tem muito

entendimento‟ portanto natildeo aos filoacutesofos daiacute um duplo motivo para manter-se dela

afastadordquo(NT 87) Nietzsche compara Soacutecrates ao heroacutei euripidiano que

diferentemente (ateacute mesmo antagonicamente) agrave trageacutedia de Eacutesquilo e Soacutefocles ldquoprecisa

defender suas accedilotildees por meio da razatildeo e contra a razatildeordquo O que estaacute em jogo no

socratismo eacute a substituiccedilatildeo das verdades expressas miticamente religiosamente pelas

verdades loacutegicas A razatildeo tenta abarcar o todo e para isso desconsidera a arte e seus

impulsos A excelecircncia estaacute no saber e atraveacutes deste alcanccedila-se a felicidade erro do

otimismo racionalista Ilusatildeo da razatildeo que se acha soberana e independente A loacutegica

torna-se essecircncia da trageacutedia procura-se por relaccedilotildees causais e pelo bom telos O

diaacutelogo formata sua estrutura e expulsa seu fundamento musical O ldquoheroacutei dialeacuteticordquo eacute

portanto impulsionado pelo elemento otimista da dialeacutetica A justiccedila transcendental

presente nas obras Esquilianas ldquoeacute rebaixada ao niacutevel do raso e insolente princiacutepio da

bdquojusticcedila poeacutetica‟ com seu habitual deus ex machinardquo (NT 89) A racionalidade de

Soacutecrates atraveacutes de sua investigaccedilatildeo cientiacutefica da natureza de seu processo de

construccedilatildeo loacutegica da realidade daraacute origem ao que Nietzsche denominaraacute de ldquohomem

teoacutericordquo ou ldquohomem cientiacuteficordquo a quem a razatildeo ergue-se acima da proacutepria realidade ao

ponto mesmo de ndash e aiacute reside o proacuteprio otimismo ndash propor-se a tarefa de corrigir as

falhas da proacutepria realidade Mais ainda a razatildeo socraacutetica acena ao homem com a

promessa de conferir sentido agrave existecircncia pelo conhecimento e desta forma busca

justificar tal existecircncia

83

Em face ao pessimismo praacutetico eacute Soacutecrates o protoacutetipo do

otimista teoacuterico que na jaacute assinalada feacute na escrutabilidade da

natureza das coisas atribui ao saber e ao conhecimento a forccedila de

uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo

(NT 94)

Natildeo obstante o otimismo no conhecimento na racionalidade socraacutetica encontra seu

maior dragatildeo em sua proacutepria loacutegica interna Assim nas palavras de Nietzsche

[] a periferia do ciacuterculo da ciecircncia possui infinitos pontos

e enquanto natildeo for possiacutevel prever de maneira nenhuma como se

poderaacute alguma vez medir completamente o ciacuterculo o homem

nobre e dotado ainda antes de chegar ao meio de sua existecircncia

tropeccedila e de modo inevitaacutevel em tais pontos fronteiriccedilos da

periferia onde fixa o olhar no inesclareciacutevel Quando divisa aiacute

para seu susto como nesses limites a loacutegica passa a girar em

redor de si mesma e acaba por morder a proacutepria cauda ndash entatildeo

irrompe a nova forma de conhecimento o conhecimento traacutegico

que mesmo para ser apenas suportado precisa da arte como meio

de proteccedilatildeo e remeacutedio (NT 95)

Afigura-se-nos aqui o problema apontado por Nietzsche como o ldquoproblema da

ciecircncia mesmardquo a saber um problema que nos envolve a todos por abarcar (ou

contaminar) toda a cultura ocidental - isto eacute ainda mantemos o dionisiacuteaco agrave baila

ocupando diminuta posiccedilatildeo em detrimento ao culto acerbado ao racionalismo socraacutetico

A cultura socraacutetica impotildee-se pelo homem-teoacuterico e qualquer outra existecircncia que fuja

aos olhos perscrutadores de Soacutecrates deve ldquolutar penosamente para pocircr-se agrave sua altura

como existecircncia permitida e natildeo como existecircncia propostardquo

Nietzsche nos atenta para o fato de reconhecermos comumente no homem culto

erudito o homem douto saacutebio ndash consecutivamente o dionisiacuteaco a arte eacute colocada de

forma perifeacuterica de modo a nunca poder encontrar espaccedilo para superar sua condiccedilatildeo de

ldquoremeacutedio-arterdquo A vontade aacutevida faz seu caminho mesmo atraveacutes da completa falta de

respostas de fundamentos de sentido assim eacute preferiacutevel ao ser humano querer o nada

no sentido de ainda sim querer alguma coisa do que nada querer do que reconhecer a

84

falta de fundamentos da qual consistem em todos os tempos as ilusotildees que

costumeiramente adota-se como engodo ao absoluto sem-sentido da vida

Por fim Nietzsche atenta-nos para o fato de como o homem de seu tempo vem

perdendo a crenccedila na ciecircncia otimista socraacutetica isto eacute pressentindo que a cultura

racionalista socraacutetica torna-se iloacutegica ao vislumbraacute-la em seus horizontes afastando-se

de suas consequumlecircncias Nietzsche diagnostica na oacutepera de seu periacuteodo a subordinaccedilatildeo da

muacutesica agrave arte figurada agrave palavra e expotildee a expectativa de que possa haver no cansaccedilo e

na percepccedilatildeo do insucesso dos esforccedilos racionalistas um renascimento da trageacutedia

85

4 Conclusatildeo pontos convergentes no caminho de uma justificaccedilatildeo

da vida

Retribui-se mal a um mestre continuando-

se sempre apenas aluno

(Nietzsche)

Natildeo podemos ver na filosofia schopenhaueriana qualquer instacircncia que

justifique a vida Ao conhecermos a sua essecircncia - a vontade cega e irracional que se

deixa ver atraveacutes das manifestaccedilotildees do seu querer incessante - percebemos o absurdo de

sua existecircncia e somos por essa percepccedilatildeo levados agrave sua negaccedilatildeo Nietzsche por sua

vez utilizando-se dos conceitos da filosofia de Schopenhauer procura em sua obra

justificar a vida e encontra esta justificaccedilatildeo na arte Nesta conclusatildeo da pesquisa

pretendemos entatildeo apresentar um esboccedilo do modo pelo qual alguns elementos da

filosofia schopenhaueriana foram utilizados no projeto do primeiro livro de Nietzsche e

explicitar o modo como estes elementos foram configurados no interior de seu projeto

Dentre estes elementos percorreremos o paralelo entre os pares dionisiacuteacoapoliacuteneo e

vontaderepresentaccedilatildeo os conceitos de arte e apreciaccedilatildeo esteacutetica e sua cisatildeo entre as

86

artes figurativas e a musical a especificidade da muacutesica o conceito de gecircnio e sua

divisatildeo e os limites da racionalidade e da ciecircncia

Jaacute no primeiro paraacutegrafo de NT a associaccedilatildeo entre os pares nietzscheanos do

dionisiacuteaco e apoliacuteneo e as visotildees de mundo schopenhauerianas satildeo expliacutecitas Nietzsche

define o impulso apoliacuteneo atraveacutes do sonho do princiacutepio de individuaccedilatildeo e o dionisiacuteaco

atraveacutes da embriaguez da consciecircncia de unidade da vontade do livrar-se do veacuteu de

maia Os deuses gregos tornam-se representativos destes estados schopenhauerianos de

consciecircncia Como vimos no capiacutetulo segundo desta dissertaccedilatildeo sob o ponto de vista da

representaccedilatildeo o mundo eacute objeto para o sujeito de conhecimento e desta forma sujeito

agraves condiccedilotildees a priori do entendimento Este mundo objetivo constituiacutedo a partir das

formas a priori do entendimento eacute interpretado a partir da junccedilatildeo de conceitos

advindos da filosofia Platocircnica e oriental como um mundo aparente ilusoacuterio artificial

O sonho efeito do encantamento apoliacuteneo eacute utilizado como metaacutefora da realidade

fenomecircnica no mundo Schopenhaueriano Os Vedas e Puranas tantas vezes citados por

Schopenhauer tratam o mundo como um sonho imposto pelo deus Maia o deus da

ilusatildeo que cobre a visatildeo do homem com seu veacuteu A mitologia oriental aludida por

Schopenhauer toma conta do mundo helecircnico em Nietzsche que transforma Apolo no

deus Maia o configurador de sonhos O sonho eacute utilizado como ilustraccedilatildeo da realidade

pelo fato de que durante o sonho natildeo sabemos estar sonhando O mundo dos sonhos nos

eacute naquele momento real Vemo-nos como indiviacuteduos e vemos o mundo da

individuaccedilatildeo e suas leis causais espaccedilo-temporais Somente o momento empiacuterico do

despertar informa-nos do sonho Haacute portanto uma identificaccedilatildeo do ldquoparentesco iacutentimo

entre vida e sonhordquo(MVR 60) Como ilustraccedilatildeo desta metaacutefora Schopenhauer elogia

ainda a obra do ldquovaterdquo Calderoacuten de La Barca A vida eacute sonho agrave qual denominaraacute como

um ldquodrama metafiacutesicordquo por expor esta faceta de seu sistema A consciecircncia de que a

87

vida eacute sonho eacute para Schopenhauer um despertar metafiacutesico cujo propiciador foi Kant

ao demonstrar o caraacuteter fenomecircnico do mundo Este despertar contudo natildeo causa

prazer O filoacutesofo e o gecircnio personagens que na metafiacutesica schopenhaueriana alcanccedilam

este despertar satildeo atormentados pela realidade com a qual se deparam qual seja a de

que a vida eacute puro sofrimento Eacute no intuito de deixar velada esta faceta da vida que

Apolo ofusca a visatildeo dos homens com seu mundo luminoso de sonho seu objetivo eacute

encobrir esta verdade aterrorizadora As artes natildeo musicais tanto na teoria de

Schopenhauer como na nietzscheana manteacutem o homem em um juacutebilo prazeroso

ocasionado pela contemplaccedilatildeo puramente objetiva Neste momento natildeo se percebe o

jogo da vontade individualizada somos afastados da realidade do querer insuflados

pela caracteriacutestica quietiva da apreciaccedilatildeo esteacutetica nas palavras de Nietzsche

encontramos na arte um ldquoremeacutedio-arterdquo32

Esta visatildeo do lado terriacutevel da vida ocasionada pelo despertar do dogmatismo

metafiacutesico na teoria schopenhaueriana eacute associada em NT agrave sabedoria dionisiacuteaca

Verificamos na descriccedilatildeo do impulso dionisiacuteaco os elementos que caracterizam a

vontade schopenhaueriana A visatildeo dionisiacuteaca do mundo carrega consigo o despertar

para o caraacuteter absurdo da vida Ao olhar para a proacutepria essecircncia o homem descobre-se

enquanto manifestaccedilatildeo de uma vontade aacutevida desprovida de telos O ldquomecanismo

internordquo da vontade incessante de vida faz dos homens marionetes guiados pela

carecircncia Esta realidade eacute assustadora pois subtrai do horizonte todos os propoacutesitos da

vida individual Dioniacutesio trava aqui sua batalha contra Apolo ao apontar a ilusatildeo da

individuaccedilatildeo como mecanismo para uma fuga daquilo que em essecircncia somos Apesar

de seu caraacuteter aterrorizador a sabedoria dionisiacuteaca eacute acompanhada do deleite

32

Podemos ver aqui o nuacutecleo da dissenssatildeo entre as teorias dos dois filoacutesofos Para Schopenhauer este

remeacutedio eacute temporaacuterio e tatildeo logo o efeito da apreciaccedilatildeo esteacutetica se esvaia os interesses da vontade voltam

a agir sobre o indiviacuteduo e a vida de sofrimento continua seu percurso restando apenas o caminho da

negaccedilatildeo daquela vontade da vida mesma em direccedilatildeo ao nada Nietzsche ao contraacuterio aponta para uma

forma de cura atraveacutes do remeacutedio-arte ver a vida enquanto forma de arte afirmaacute-la

88

indescritiacutevel da celebraccedilatildeo da unidade com o todo ldquoSob a magia do dionisiacuteaco torna a

selar-se natildeo apenas o laccedilo de pessoa a pessoa mas tambeacutem a natureza alheada

inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliaccedilatildeo com seu filho

perdido o homemrdquo(NT 31) Se Apolo eacute representado como deus da forma da clareza

da individuaccedilatildeo e as artes patrocinadas por ele satildeo expressotildees destas caracteriacutesticas

Dioniacutesio por sua vez eacute o patrocinador da muacutesica expressatildeo fenomecircnica direta da

vontade Vemos em Nietzsche uma biparticcedilatildeo das artes que tambeacutem pode ser extraiacuteda

da metafiacutesica schopenhaueriana (artes natildeo-musicais e arte musical)

Para Schopenhauer as formas artiacutesticas natildeo-musicais ao provocarem uma visatildeo

puramente objetiva do objeto apreciado tecircm como caracteriacutestica fundamental a

libertaccedilatildeo da subjetividade e com ela dos anseios da vontade Durante esta forma de

apreciaccedilatildeo esteacutetica ldquosomos alforriados do desgraccedilado iacutempeto volitivo festejamos o

Sabbath dos trabalhos forccedilados do querer a roda de Iacutexion cessa de girarrdquo (MVR

267) A definiccedilatildeo nietzscheana para a funccedilatildeo da arte apoliacutenea se daacute da mesma maneira

qual seja ela deve ldquo [] livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito

graccedilas ao baacutelsamo da aparecircncia do espasmo dos movimentos do querer []rdquo (NT

117) A muacutesica por sua vez recebe um tratamento especial de Schopenhauer devido ao

seu efeito esteacutetico Se as demais artes satildeo um quietivo para a vontade a muacutesica ldquonatildeo faz

mais do que agradar a vontade de viver jaacute que expotildee sua essecircncia expotildee de antematildeo

seus ecircxitos e ao final expressa sua satisfaccedilatildeo e prazerrdquo (MVR II 509) Ela encontra-se

num niacutevel de valor superior ao das demais artes por tratar-se de representar a essecircncia

do mundo a vontade mesma Assim tambeacutem ela eacute tratada por Nietzsche como a arte

que representa a sabedoria dionisiacuteaca e faz o apreciador vivenciar a vontade mesma

Em seus escritos sobre a poesia e a oacutepera Schopenhauer alude agrave necessidade de

subordinar os conceitos e o texto agrave muacutesica para que estas artes tenham um efeito mais

89

arrebatador no apreciador esteacutetico Esta subordinaccedilatildeo eacute assumida por Nietzsche em sua

teoria da trageacutedia Nietzsche encontra na liacuterica a primeira manifestaccedilatildeo desta junccedilatildeo da

arte dionisiacuteaca com a arte apoliacutenea e aponta aiacute o geacutermen que daraacute origem agrave trageacutedia

Podemos perceber aqui uma subordinaccedilatildeo das artes natildeo-musicais agrave muacutesica que por sua

vez se espelha na subordinaccedilatildeo do mundo fenomecircnico ao mundo da coisa-em-si As

artes figurativas representam as ideacuteias objetivaccedilotildees imediatas da vontade e a muacutesica

representa a vontade mesma Na teoria da trageacutedia de Nietzsche esta subordinaccedilatildeo seraacute

mantida e assim reflete a configuraccedilatildeo da metafiacutesica schopenhaueriana A muacutesica ldquoeacute

uma arte tatildeo elevada e majestosa faz efeito tatildeo poderosamente sobre o mais iacutentimo do

homem eacute aiacute tatildeo inteira e profundamente compreendida por ele como se fora uma

linguagem universal cuja distinccedilatildeo ultrapassa ateacute mesmo a do mundo intuitivordquo (MVR

336) Desta forma uma arte que se pretenda formar a partir da integraccedilatildeo de elementos

de diversas formas artiacutesticas deve tomar a muacutesica como inspiraccedilatildeo tanto na teoria de

Schopenhauer como na de Nietzsche

Desta dicotomia das formas artiacutesticas que podemos perceber nos dois filoacutesofos

podemos depreender duas formas do gecircnio o apoliacuteneo ou contemplativo e o

compositor dionisiacuteaco Para Schopenhauer ldquoo compositor manifesta a essecircncia mais

iacutentima do mundo expressa a sabedoria mais profunda numa linguagem natildeo

compreensiacutevel por sua razatildeo como um sonacircmbulo magneacutetico fornece informaccedilotildees

sobre coisas das quais desperto natildeo tem conceito algumrdquo (MVR 342) Podemos

vislumbrar ainda nesta descriccedilatildeo de Schopenhauer uma caracteriacutestica do que Nietzsche

mais tarde iraacute chamar de criaccedilatildeo inconsciente Em uma segunda passagem desta vez ao

final do capiacutetulo 39 do segundo volume de MVR vemos tambeacutem uma caracteriacutestica que

posteriormente tambeacutem seraacute ressaltada por Nietzsche como demarcaccedilatildeo do caraacuteter

dionisiacuteaco Schopenhauer se utiliza de uma passagem dos Vedas para descrever o prazer

90

provocado pela muacutesica como um prazer de participaccedilatildeo no todo33

Este ecircxtase da

comunhatildeo eacute um aspecto reiteradamente apontado por Nietzsche O gecircnio dionisiacuteaco eacute

para o jovem filoacutesofo aquele que tambeacutem absorvido pelo impulso dionisiacuteaco traduz

sua essecircncia em linguagem musical O tipo de gecircnio musical descrito eacute encontrado em

Schopenhauer nas encarnaccedilotildees de Rossini e Beethoven cujas obras operiacutesticas satildeo

norteadas pela produccedilatildeo musical e o livreto ocupa um lugar secundaacuterio Nietzsche

aponta um renascimento progressivo do gecircnio musical em seu tempo que se inicia com

Bach e tem continuidade em Beethoven mas que encontra sua forma mais bem acabada

em Richard Wagner

Apesar da tomarem caminhos diferentes no que tange ao objetivo da obra de arte

traacutegica Nietzsche e Schopenhauer mais uma vez em uniacutessono consideram-na todavia

como uma forma de entendimento superior ao apresentado pelo pensamento cientiacutefico

Como vimos anteriormente as ciecircncias no sistema schopenhaueriano seguem o

princiacutepio de razatildeo seu papel eacute apenas descritivo e consequumlentemente limitado ao

acircmbito daquele princiacutepio Transformam em conceitos abstratos o mundo intuitivo ao

descrevecirc-lo em sua aparecircncia e seguem o fio condutor do principio de razatildeo

apresentando as causas para cada fenocircmeno particular Desta forma as ciecircncias estatildeo

subordinadas ao mundo da aparecircncia e no que importa agrave essecircncia natildeo podem

demonstraacute-la As uacutenicas produccedilotildees humanas com esta capacidade satildeo a arte e a

filosofia e essas o fazem de forma indireta metafoacuterica A consideraccedilatildeo racional do

mundo estaacute enquanto presa ao acircmbito do fenocircmeno subordinada aos ditames da

vontade Esta ldquovontade aacutevida sempre encontra um meio atraveacutes de uma ilusatildeo

distendida sobre as coisas de prender agrave vida as suas criaturas e de obrigaacute-las a

prosseguir vivendordquo (NT 108) Nietzsche descreve trecircs formas pelas quais a vontade

33

ldquoE o delicioso que eacute uma classe de alegria chama-se assim o sumo Atman porque onde haacute uma

alegria esta eacute uma pequena parte de sua alegriardquo (MVR II 510)

91

manteacutem a vida A primeira delas eacute o ldquoveacuteu da beleza da arterdquo sustentado pelo impulso

apoliacuteneo Encontramo-la na epopeacuteia homeacuterica e nas artes figurativas A segunda eacute a

visatildeo traacutegica do mundo que encontra um consolo metafiacutesico na percepccedilatildeo de um

substrato comum aos fenocircmenos e que por consequumlecircncia abdica destes em funccedilatildeo da

vivecircncia daquele substrato A terceira forma de dominaccedilatildeo da vontade eacute a ciecircncia a

loacutegica socraacutetica que procura abarcar o mundo com sua razatildeo de acircnsia justificadora

Estas trecircs formas de coerccedilatildeo conforme sua predominacircncia em determinada cultura

formam o que Nietzsche iraacute denominar respectivamente de culturas artiacutestica traacutegica e

socraacutetica Correspondem historicamente agraves fases predominantemente helecircnica budista

ou alexandrina Fazendo um diagnoacutestico da cultura contemporacircnea Nietzsche a

identifica como uma cultura predominantemente alexandrina Diagnostica o seu ocaso a

partir da identificaccedilatildeo feita por Kant e Schopenhauer dos limites da ciecircncia do

desmascaramento das verdades eternas que amparam a visatildeo socraacutetica de mundo quais

sejam a visatildeo de que o tempo o espaccedilo e a causalidade satildeo leis universais e

incondicionais Esta criacutetica ao racionalismo eacute constante na obra schopenhaueriana

Percebemo-la claramente em suas investidas contra a filosofia de seu tempo e a

presunccedilatildeo nela presente de racionalmente abarcar o real

- - - - - - - - - -

Compostas por conceitos da metafiacutesica schopenhaueriana a teoria da trageacutedia de

Schopenhauer e a de Nietzsche apontam para caminhos diversos Em Schopenhauer a

trageacutedia eacute a arte cujo fim uacuteltimo eacute ao expor seu lado terriacutevel inspirar o apreciador agrave sua

renuacutencia Este lado terriacutevel espelho do mundo presentificador da vida humana e de

suas relaccedilotildees ocasiona atraveacutes do medo e da compaixatildeo a vontade de renuacutencia a essa

92

mesma vida Nietzsche introduz na trageacutedia o elemento da muacutesica schopenhaueriana34

A consequumlecircncia desta introduccedilatildeo eacute um plano mais profundo de entendimento que

apresenta a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com sua essecircncia Neste estado de consciecircncia

apartado de sua individualidade o sujeito jaacute se vecirc como um criador de mundos e vecirc no

mundo uma obra de arte sua Ao derivar o impulso apoliacuteneo do dionisiacuteaco35

Nietzsche

jaacute executou a renuacutencia do indiviacuteduo que agora passa a se ver como essecircncia e ao mundo

como fenocircmeno artiacutestico

34

Machado (2006 200) considera na esteira de Clemeacutent Rosset e de Jean-Marie Schaeffer a utilizaccedilatildeo

da teoria da apreciaccedilatildeo musical de Schopenhauer por Nietzsche como o elemento que sugeriraacute a

caracteriacutestica de afirmaccedilatildeo da vontade de sua filosofia da trageacutedia 35

ldquoNo efeito conjunto da trageacutedia o dionisiacuteaco recupera a preponderacircncia ela se encerra com um tom

que jamais poderia soar a partir do reino da arte apoliacutenea E com isso o engano apoliacuteneo se mostra como o

que ele eacute como o veacuteu que enquanto dura a trageacutedia envolve o autecircntico efeito dionisiacuteaco o qual

todavia eacute tatildeo poderoso que ao final impele o proacuteprio drama apoliacuteneo a uma esfera onde ele comeccedila a

falar com sabedoria dionisiacuteaca e onde nega a si mesmo e agrave sua visibilidade apoliacuteneardquo (NT 129)

93

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