53
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências Humanas Curso de Bacharelado em Antropologia Trabalho de Conclusão de Curso O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Lidiane da Silva Hirdes Pelotas, 2016

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS

Instituto de Ciências Humanas

Curso de Bacharelado em Antropologia

Trabalho de Conclusão de Curso

O caderninho de receitas está nas nuvens:

um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas

Lidiane da Silva Hirdes

Pelotas, 2016

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

Lidiane da Silva Hirdes

O caderninho de receitas está nas nuvens:

um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado

ao Instituto de Ciências Humanas da

Universidade Federal de Pelotas, como

requisito parcial à obtenção do título de

Bacharel em Antropologia.

Orientadora: Drª Renata Menasche

Pelotas, 2016.

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

Lidiane da Silva Hirdes

O caderninho de receitas está nas nuvens:

um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado

ao Instituto de Ciências Humanas da

Universidade Federal de Pelotas, como

requisito parcial à obtenção do título de

Bacharel em Antropologia.

BANCA EXAMINADORA:

_____________________________

Profª Drª Renata Menasche

_____________________________

Prof. Dr. Mártin César Tempass

_____________________________

Profª Drª Patrícia dos Santos Pinheiro

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

Dedico este trabalho

a meu companheiro João,

e as minhas filhas Cecília e Sofia.

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

Agradecimentos

Ao João, pelo carinho, compreensão e amizade.

Cecília e Sofia, pelos sorrisos, carinhos e afetos que fizeram este caminho ficar mais

leve.

A Guida, mãe tu sempre tens uma palavra de incentivo, um gesto de amor e carinho.

A Dona Sandra, minha sogra que tenho como uma amiga, um anjo protetor que está

sempre por perto.

Ao Lucas, pela paciência durante conversas online e off-line. Nossas discussões,

trocas e interesses em comum fizeram com que esses momentos se

transformassem em apreço e amizade.

A Luiza, por sua calma e luz que transmitiu em cada momento que convivemos.

Grande mulher, empreendedora vegana que admiro muito.

Aos Los Compadres, que despertaram interesse pelo tema deste trabalho.

A Jöana Vegana, pelas conversas, amizade, carinho, indicações de leituras, vídeos,

pratos e afins.

Aos administradores do grupo “Vegano Pelotas” por manterem o ambiente online

que propiciou a pesquisa de campo que compõe este trabalho.

Aos colegas do Grupo de Estudos e Pesquisas em Alimentação e Cultura (GEPAC)

que leram e discutiram meu trabalho. Esse processo foi fundamental para o

desenvolvimento desta escrita.

E, especialmente, à Professora Renata, pela competência, sabedoria, incentivo e

amizade. Obrigada pelo aprendizado ao longo desta trajetória.

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

Resumo

HIRDES, Lidiane da Silva. O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo

on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão de Curso –

Curso de Bacharelado em Antropologia, Instituto de Ciências Humanas,

Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2016.

A alimentação foi tema de interesse da Antropologia nas diferentes fases de formação do saber antropológico, a relevância do tema está associada ao fato de ser prática essencial a todo grupo humano. É assim que identidades e valores de distintos grupos podem ser observadas a partir de suas concepções sobre o que, quando e de que forma comer. Sob essa perspectiva, este trabalho diz respeito à constituição de valores e práticas alimentares associados ao veganismo, ativismo de libertação que se caracteriza pelo consumo de produtos e serviços que não dependam, em sua base de produção e consumo, do sacrifício e exploração animal. Assim, buscando entender os saberes culinários veganos, em um contexto em que as práticas de alimentação vegana têm se expandido, coloca-se como questão: Como são (res)significados e transmitidos os saberes culinários veganos? Para o desenvolvimento da pesquisa, a delimitação do universo empírico abarcou o grupo vegano localizado na cidade de Pelotas, que se utiliza do meio virtual como articulador de valores políticos e ideológicos, bem como para a transmissão de conhecimentos em torno de direitos animais e outras informações de interesse do grupo. Para apreender o contexto cultural do grupo, optou-se pelo método etnográfico e pela técnica de pesquisa observação participante em duas modalidades: off-line e online, tomadas como complementares. Com a análise das receitas veganas nos ambientes off-line e online, pode-se evidenciar características de um consumo politizado, aspecto que reverbera em receitas adaptadas e construídas com embasamento nos valores do grupo. A cooperação, o compartilhamento e a socialização de hábitos alimentares e de consumo é pautada pelo respeito aos animais, estimulando a re(construção) de determinadas receitas familiares, delas eliminando os ingredientes originários de animais. Nota-se que há um esforço na adaptação de receitas oriundas das famílias de origem dos membros do grupo. A memória coletiva e a dimensão comunicativa da comida servem como subsídios para reconstrução das receitas veganas. As transformações e inovações das receitas, com a inserção ou o (des)uso de elementos, afetam e (re)definem as características da cozinha vegana. Essas adaptações circulam especialmente nos espaços online, onde as trocas de receitas acontecem. É desse modo que o caderninho de receitas veganas está nas nuvens.

Palavras-chave: antropologia da alimentação; veganismo; receitas

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

Abstract

HIRDES, Lidiane da Silva. The book of vegan recipes is in the clouds? Work Completion of course - B.Sc. in Anthropology, Institute of Human Sciences, Federal University of Pelotas, Pelotas, 2016. The food was the theme of Anthropology’s interest in many different stages of

formation of anthropological knowledge, the relevance of the topic is associated with

the fact that it is essential to practice every human group. This is how identities and

values the distinct groups can be observed from his views on what, when and how to

eat. From this perspective, this work concerns the formation of food values and

practices associated with veganism, liberation activism that is characterized by the

consumption of goods and services that do not depend on the base of production

and consumption, sacrifice and animal exploitation. Thus, seeking to understand the

constitution of vegan culinary knowledge in a context where the vegan feeding

practices have expanded, is placed as a question: How are (re) meanings and

transmitted the vegan culinary knowledge? For the development of the research, the

delimitation of the empirical universe encompassed the vegan group located in the

city of Pelotas, which uses the virtual environment as articulator of political and

ideological values, and for the transmission of knowledge surrounding animal rights

and other information of interest to the group. To grasp the cultural context of the

group, it was decided by the ethnographic method and the participant observation

research technique in two modes: offline and online, taken as complementary. With

the analysis of vegan recipes in offline and online environments, it can show

characteristics of a politicized consumption aspect that reverberates adapted recipes

and built with foundation in the values of the group. Cooperation, sharing and

socialization of eating habits and consumption is guided by respect for animals by

stimulating re (construction) of certain family recipes, eliminating them the ingredients

originating from animals. Note that there is an effort in adapting derived revenues

from families of origin of the group members. The collective memory and

communicative dimension of food serve as subsidies for reconstruction of vegan

recipes. The changes and innovations of revenues, with the insertion or the (mis) use

of elements, and affect (re) define the vegan kitchen features. These adaptations

circulate especially in the online spaces where the exchange of recipes happen. This

is how the book of vegan recipes is in the clouds.

Key-words: anthropology of food; veganism; recipes

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

SUMÁRIO

1 Uma receita vegana: introdução.............................................................. 09

2 Ingredientes: o alimento no despertar de sensibilidades...................... 11

2.1 Olhar a natureza: a emergência de uma nova concepção.............. 14

2.2 Por que não como carne? porque não cabe no meu prato............. 16

3 Modo de preparo: metodologia................................................................ 20

3.1 A carniceira da espécie humana...................................................... 20

3.2 Etnografia com etnografia virtual..................................................... 23

3.3 Inserção em campo.......................................................................... 26

3.4 Campos off-line e online……………………………………………….. 28

4 Cozimento: a memória das escolhas alimentares.................................. 31

4.1 Os significados de um açougue vegano.......................................... 36

4.2 Um olhar antropológico acerca das receitas veganas..................... 39

4.3Análises das receitas veganas.......................................................... 39

5 A cereja do bolo: considerações finais................................................... 47

Referências..................................................................................................... 49

Anexos............................................................................................................ 52

Anexo A.......................................................................................................... 53

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

1 UMA RECEITA VEGANA: INTRODUÇÃO

A ceia de Natal do ano de 2010 aconteceria de maneira atípica. Naquele ano,

era recente meu namoro com João, o companheiro que hoje é parte de minha

história.

Apesar de o romance ser novo e, por isso, tomado por expectativas, contava

que a ceia teria a mesma sequência de fatos e pratos, em ritual semelhante aos que

conhecera ao longo dos 25 anos de minha vida. Mas não seria de forma tão

previsível que as coisas aconteceriam.

Naquele ano, um ente querido em nossa família havia sido acometido por

uma doença grave, que levaria a seu óbito na véspera da ceia de Natal. Por

consequência, minha família passaria a noite realizando os trâmites do funeral.

Devido à situação, João convidou-me para passar a noite de Natal com um

casal de amigos dele. Contíguo ao convite avisou-me que não saberia o que seria

servido, tendo em vista que os dois serem veganos. Aceitei o convite e lá chegamos

para a ceia.

Antes da ceia foram servidas algumas sementes acompanhadas de cerveja. E

conforme a conversa se desenrolava, surgiam comentários como: “Nesta hora, em

nome de Jesus, vários animais estão sendo sacrificados nas mesas de milhares de

cristãos”. Colocações como essas eram seguidas de dados estatísticos sobre o

aumento do número de perus e chesters mortos nesta época do ano.

Até então, eu não conhecia veganos, não sabia de seu ativismo, não

conhecia seus hábitos alimentares1 e tampouco tinha contato com as leituras que

abordam a importância do processo de estranhamento em campo, pois ainda não

havia ingressado no curso de Antropologia – o que se daria apenas no segundo

semestre de 2011 – e não tinha, portanto, noção do que seria um campo de

pesquisa etnográfica.

Mas sei que, naquela ocasião, o desconhecido tomou conta de meus

pensamentos. Mesmo distante da Antropologia, aquela experiência proporcionou-me

vivenciar ao menos um de seus ensinamentos: o estranhamento.

1 Entende-se como hábitos a concepção abordada por Barbosa (2007, p,89) onde: “O conceito de

hábitos implica a pressuposição da existência de um padrão repetitivo de práticas e representações, que se reproduziriam no interior da sociedade.”

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

10

E a ceia? O que comeríamos? Pois não pode frango, peru, carne, leite... o

que seria servido? Meu pensamento estava em torno destas questões e ainda: O

que comem eles durante os dias comuns?

Nossa ceia naquele ano foi macarrão penne ao molho branco à base de

amêndoas. Após cearmos, minha saciedade traria o pensamento e a sensação de

que a típica carne branca consumida na ceia não havia feito falta em nosso

cardápio.

O fato é que essa experiência despertou muitas curiosidades. Mais tarde, a

convivência com estas pessoas – que hoje são padrinhos de uma de nossas filhas –

acarretaria no desafio de (re)pensar cardápios e saborear novos pratos.

Nesse percurso, a Antropologia, mais especificamente a Antropologia voltada

à Alimentação permite-me pensar sobre essas e outras vivências “extracampo”

correlacionadas com meu campo de pesquisa. Assim, para este estudo coloca-se

como questão: Como são (res)significados e transmitidos os saberes culinários

veganos? Essa reflexão tem por objetivo principal entender a constituição dos

saberes culinários veganos, em contexto em que as práticas de alimentação desse

tipo têm se expandido. Além disso, buscam-se elementos que permitam aclarar

aspectos relacionados aos objetivos específicos desta pesquisa: conhecer o modo

de compartilhamento dos saberes culinários veganos; analisar, a partir da

cibercultura, a sociabilidade entre veganos; e, identificar formas de transmissão

simbólica contidas nas receitas veganas.

Para tanto e com o intuito de compreender o contexto cultural do grupo,

optou-se pelo método etnográfico e pela técnica de pesquisa observação

participante em duas modalidades: off-line e online.

Importa comentar que não se pretende julgar os alimentos selecionados e

consumidos. E tampouco apresentar generalizações a respeito de hábitos

alimentares veganos, uma vez que há várias possibilidades alimentares que

caracterizam as distintas formas de ser vegano(a).

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

2 INGREDIENTES: O ALIMENTO NO DESPERTAR DE SENSIBILIDADES

Apesar do atendimento das necessidades alimentares ser indispensável à

subsistência dos seres vivos, segundo Garine (1987, p.4), o homem “deve sua

fisiologia de onívoro e seu caráter de animal social dotado de cultura, de função

simbólica e de capacidade de recriar um microambiente que seja favorável à

possibilidade de subsistir tão bem nas regiões polares quanto nas florestas

equatoriais”.

As ocupações em territórios distintos e os deslocamentos habituais dos

hominídeos primitivos (LEAKEY, 1995) desencadearam uma dieta alimentar pautada

pelas variações ambientais. Ainda assim, de acordo com as ideias do autor, a dieta

alimentar à base de vegetais e restos mortais de animais era característica comum

entre os bandos deste período. Para o arqueólogo Leakey (1995), o hominídeo

primitivo estava um pouco além do grau de competência cognitiva e social do

chimpanzé. Conforme esse autor, nesse estágio evolutivo as características de

caçador e coletor da espécie humana começaram a ser estabelecidas. Com esse

tipo de comportamento e abstração, o homem desse período pré-histórico esboçava

determinadas evidências alimentares baseadas em uma dieta vegetal e animal.

No paleolítico inferior, há aproximadamente dois milhões de anos, deu-se

início ao processo gradual de substituição do hábito de comer os animais que são

encontrados mortos, pela prática da caça, ou seja, animais vivos que

subsequentemente são mortos para o consumo. Sobre este aspecto, Flandrin e

Montanari (1998) abordam o aumento significativo da caça e do consumo de carne

em períodos pré-históricos posteriores:

A caça ocasional, diversificada, mas sempre de animal de grande porte – ursos, rinocerontes, elefantes – é a mais frequente no período paleolítico médio (200.000 – 40.000 a.C.). No período Paleolítico Superior (40.000 – 10.000 a.C.), desenvolveu-se uma caça especializada de manada de renas, cavalos, bisões, auroques ou mamutes, dependendo das regiões e dos recursos locais [...] com o resfriamento do clima europeu, o homem do período mesolítico deve ter-se voltado aos animais bem menores característicos da fauna atual – cervos, javalis, pequenos carnívoros peludos, lebres, pássaros e até caracóis. (FLANDRIN; MONTANARI, 1998, p. 27).

Ainda em consonância com as ideias dos autores, após o surgimento das

primeiras civilizações, com a criação dos animais de corte (bovinos, ovinos, caprinos

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

12

e suínos), ocorreu a diminuição do consumo de carne oriunda da caça. Flandrin e

Montanari (1998) atribuem ao Oriente Médio a precursão no desenvolvimento da

agricultura e da criação de animais, que se estendeu gradativamente para outras

regiões mediterrâneas.

Importa salientar que o cultivo agrícola desenvolveu-se de maneira diferente

em cada região, geralmente de acordo com os vegetais que estavam à disposição

na natureza. Porém, a escolha e seleção dos alimentos encontrados em cada região

aconteciam, conforme Flandrin e Montanari (1998), em decorrência da diversidade

cultural dos homens que habitavam essas civilizações.

Hoje, por exemplo, os europeus não comem qualquer inseto, ao contrário dos habitantes da África, da América e até da Ásia. Na própria Europa, os franceses escandalizavam ou deixavam atônitos os habitantes de outros países comendo escargots e rãs, enquanto a sopa de tartaruga tornou-se uma especialidade inglesa, e o bucho de carneiro, uma peculiaridade escocesa. São práticas eminentemente culturais, uma vez que, em todas as regiões da Europa, existem escargots, rãs, tartarugas e carneiros. (FLANDRIN; MONTANARI,1998, p. 29)

O fato é que os hábitos e costumes alimentares possibilitaram a condição de

abstração humana para domínio do fogo. O homem teria, então - aproximadamente

500 mil anos a.C. - se distinguido definitivamente de seus ancestrais primitivos,

marcando o primeiro aspecto que evidenciava a capacidade de distinção e cognição

humana em relação aos demais estágios de animalidade (FLANDRIN; MONTANARI,

1998).

Primordialmente, a utilização do fogo tinha como principal finalidade o

cozimento de alimentos. De acordo com Flandrin e Montanari (1998, p. 31), “como

indicam as ossadas carbonizadas que acompanham os primeiros vestígios de

fogueiras”, sugere-se que os carnívoros da época tinham preferência pela carne

cozida, oriunda de incêndios naturais, em vez da carne crua, obtida por meio da

caça/animais mortos. O fogo acabou acentuando e potencializando a predileção por

alimentos cozidos, em primeira instância a carne cozida, alterando o regime

alimentar humano.

A possibilidade de inserir o preparo de alimentos cozidos nas práticas

culturais reverberou a incorporação deste hábito no aprendizado social humano.

Dessa maneira, o homem passou não só a selecionar, conforme sua predileção, os

vegetais e/ou animais disponíveis em cada região, mas a maneira de consumi-los.

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

13

Nesse sentido, DaMatta (1987) expõe a ideia de que todos os homens

comem, porém, cada sociedade define o que é comida, bem como as permissões,

as restrições e as periodicidades em que se deve comer. O autor esclarece, ainda,

que o não cumprimento dessas convenções sociais pode transformar a pessoa que

se alimenta fora dos padrões preestabelecidos em um “animal ou monstro”.

Com o domínio do fogo, alguns alimentos, em especial a carne, passaram a

ter a concepção social sobre como devem ser consumidos. O cozimento prévio da

carne pode ser entendido como um exemplo de aprendizado social, uma vez que, de

acordo com Mintz (2001, p. 32), “o que aprendemos sobre comida está inserido em

um corpo substantivo de materiais culturais historicamente derivados. A comida e o

comer assumem, assim, uma posição central no aprendizado social por sua

natureza vital e essencial, embora rotineira”.

No entanto, importa ressaltar que os aprendizados sociais envolvidos nos

hábitos alimentares são características particulares de cada grupo. E essas

características alimentares estão em sinergia com as crenças e valores,

transformando as práticas culinárias e diversificando as formas culturais de

comensalidade.

Segundo Flandrin e Montanari (1998), a forma de preparo dos alimentos está

interligada com as crenças de cada cultura. Ainda sob este prisma, os autores

esclarecem que “as práticas culinárias revelaram-se, de povo para povo, mais ou

menos complexas, mas mesmo a mais simples delas já se pode chamar de cozinha”

(FLANDRIN; MONTANARI, 1998, p. 32). Essas especificidades culturais com

distintas práticas culinárias aludem à diversidade de elementos, ingredientes e

combinações que compõem as cozinhas nos mais diversos contextos.

Assim, as mudanças de comportamento alimentar representaram incentivos

relevantes para o processo de humanização. A necessidade de desenvolver e

aprimorar as técnicas de lascamento, tornando-as rebuscadas para o domínio da

caça, propiciou o avanço tecnológico. Essa analogia pode ser aplicada aos

desenvolvimentos tecnológicos que acompanham as demandas sociais emergentes

nos diferentes contextos. Em uma lacuna de tempo maior, a tecnologia humana

aprimorada, (re)pensada e (re)inventada, engendra as dimensões dos estilos de vida

na contemporaneidade.

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

14

2.1 OLHAR A NATUREZA: A EMERGÊNCIA DE UMA NOVA CONCEPÇÃO

No processo de construção social, o homem é considerado superior não

somente diante de outros homens, mas também frente aos seres denominados não

humanos, ou seja, os animais. Essa distinção é abordada desde a Antiguidade, com

a noção de Aristóteles (1988) acerca da racionalidade e da sociabilidade humana

em comparação aos animais, tendo em vista que somente o homem era tido como

capaz de constituir uma polis (cidade-estado).

Como já mencionado no primeiro subitem deste capítulo, Flandrin e Montanari

(1998) enfatizam as ascensões culturais do homem em comparação com outros

seres, após o domínio do fogo e sua utilização no preparo do alimento. Da mesma

forma, outras concepções surgiram no decorrer da história humana, subsidiando a

perspectiva de superioridade de grupos humanos em detrimento dos demais seres

animais.

A condição humana hierarquizada e organizada sob uma racionalidade é

sempre superior à não humana. Os animais acabam por ocupar a perspectiva do

“outro” sob o domínio humano. A atitude humana é caracterizada pelo especismo,

termo utilizado, de acordo com Singer (2004, p. 19), para determinar “um

preconceito ou atitude de favorecimento dos interesses dos membros de uma

espécie em detrimento dos interesses dos membros de outras espécies”.

Contudo, é na modernidade que emerge a concepção de cuidado com os

recursos naturais, servindo como inquietação sobre a noção de domínio humano,

anteriormente estabelecida. Por volta de 1800, enfatiza o historiador Thomas (1996),

muitos ingleses estavam insatisfeitos com o avanço industrial e urbano da civilização

humana. Havia o entendimento de que a natureza devesse ser dominada, mas não

completamente suprimida, pois grande parte da população aspirava estar por alguns

momentos no campo. Ainda, conforme o autor:

Uma nova preocupação com os sofrimentos dos animais viera à luz, e, ao invés de continuarem destruindo as florestas e derrubando todas as árvores sem valor prático, um número cada vez maior de pessoas passava a plantar árvores e cultivar flores para pura satisfação emocional. (THOMAS, 1996, p. 344)

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

15

Essa modificação no modo de pensar gradativamente contribuiu para

despertar novas sensibilidades acerca da natureza e demais espécies. Contudo,

segundo Thomas (1996), os hábitos alimentares de alguns ingleses dos séculos XV,

XVI e XVII já eliminavam o consumo de carne de suas dietas, pois acreditavam ser

errado matar animais.

Endossado por argumentos científicos2 acerca dos males à saúde causados

pela ingestão de carne3, o vegetarianismo eclodia entre as pessoas cultas da

sociedade inglesa. No início do século XVIII, já estavam pautados os argumentos

que embasam o vegetarianismo na modernidade, sobretudo acerca do sacrifício e

morte de animais em prol de necessidades humanas.

No princípio do século XVIII, portanto, todos os argumentos que haveriam de embasar o vegetarianismo moderno já estavam presentes: o abate de animais não somente tinha um efeito brutalizador sobre o caráter humano, como o consumo de carne fazia mal à saúde; fisiologicamente não era natural; tornava os homens cruéis e ferozes; e infligia indescritível sofrimento às criaturas nossas irmãs. Em fins do século, esses argumentos foram complementados por um de fundo econômico: a criação de animais era uma forma dispendiosa de agricultura, se comparada com o cultivo da terra, que produzia muito mais alimento por acre. (THOMAS, 1996, p. 284)

Nos anos 40 do século XX, esse debate se estende para a

contemporaneidade, com o fortalecimento da ideologia vegetariana e o surgimento

da filosofia vegan de libertação animal. Neste ponto, cabe expor as ideias de Singer

(2004) no que diz respeito à luta de libertação animal e ao princípio básico da

igualdade entre distintos grupos humanos e não humanos.

O princípio básico da igualdade não requer um tratamento igual ou idêntico; requer consideração igual. A consideração igual para com os diferentes seres pode conduzir a tratamento diferente e a direitos diferentes. (SINGER, 2004, p.18)

O autor salienta, ainda, que o objetivo do princípio da igualdade é levar em

consideração os interesses do ser, seja esse humano ou não humano. Esses são

aspectos que reverberam em um ativismo de abolição do uso animal para fins

2 Os cientistas do século XVII defendiam que a anatomia humana, mais especificamente os dentes e o intestino, não eram adequados ao consumo de carne. De acordo com Thomas (1996, p. 413), “Esse argumento veio a fornecer um argumento a mais para a tese de que comer carne não era natural”. 3 De acordo com Santana (2006, p. 337), a expressão vegetarianismo, somente se tornou mundialmente conhecida após a criação da Sociedade Vegetariana da Inglaterra, em 1847. Derivado do latim begetus, o termo tem o sentido de “forte”, “vigoroso”, “saudável”.

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

16

alimentares, de vestimenta ou de produção de pesquisa científica. De acordo com

Santana (2006, p. 1), “a filosofia vegan, mais próxima da teoria do abolicionismo

animal, recusa o consumo de todo e qualquer produto obtido com o sofrimento de

animais”. Esses princípios caracterizam os significados e os sentidos das escolhas

dos indivíduos que partilham o estilo de vida vegano4.

2.2 POR QUE NÃO COMO CARNE? PORQUE NÃO CABE NO MEU PRATO

Com o intuito de refletir acerca dos hábitos alimentares veganos, tema deste

estudo, entende-se pertinente que a construção destas ideias esteja embasada no

trecho de depoimento reproduzido no título deste item: “Por que não como carne?

Porque não cabe no meu prato”.

Entre muitas frases, imagens, vídeos e depoimentos expostos em algumas

páginas partilhadas por veganos na rede social Facebook, a pergunta e a resposta,

devidamente acompanhadas pela imagem de um prato com feijão, farofa, laranja,

salada e batata frita, representam escolhas alimentares veganas. Enunciado e

imagem, publicados na rede social Facebook em 26 de janeiro de 2016, receberam

até o dia 03 de fevereiro de 2016, 3.211 curtidas, 26 compartilhamentos e 85

comentários, o que de algum modo indica sua potência de representação não

apenas dos hábitos alimentares veganos, mas da ideologia do grupo.

Tais concepções de vida contemporânea e urbana podem ser pensadas a

partir de Leroi-Gourhan (2002, p. 121), que considera que “o homem só é homem na

medida em que está entre outros homens e revestido dos símbolos representativos

da sua razão de ser”. Essas conexões entre valores e sentidos engendram os

atravessamentos reverberados em hábitos de consumo distintos que caracterizam

os demais grupos.

Na perspectiva de Garine (1987), o homem escolhe o que come a partir da

sociedade e do grupo a que pertence. Carne, não! Feijão, salada e batata frita, sim!

Pode-se evidenciar, na escolha desses alimentos, uma classificação alimentar

permeada por expressões demarcadoras de significados. Para a interlocutora, a

4 Ao invés de vegan, de modo a preservar a linguagem dos interlocutores, optou-se por utilizar o termo vegano(s)/vegana(s).

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

17

carne é dispensável em sua dieta. Além disso, o fato de desamparar o consumo da

carne está em confluência com o significado simbólico do grupo vegano.

Assim, a partir da abordagem de Douglas e Isherwood (2004), no que se

refere aos significados simbólicos que permeiam as relações de consumo, torna-se

possível pensar acerca dos valores engendrados na dinâmica dos hábitos

alimentares veganos. O comportamento está permeado pelo ativismo político e

ideológico de abolição do consumo de animais, possibilitando a esses o direito à

vida. A salada é vida, pois os vegetais não possuem sistema neurológico. Portanto,

a salada, sim, cabe no prato.

Neste ponto, torna-se importante expor a ideia de Geertz (1978), que

denomina os aspectos morais e valorativos de uma cultura “ethos” e os aspectos

cognitivos “visão de mundo”. As escolhas acerca do consumo de determinados

alimentos veganos, na perspectiva teórica de Geertz (1978), podem ser entendidas

como “ethos”. Optar por não comprar e não ingerir alimentos de origem animal é

parte dos hábitos alimentares veganos. Estes hábitos, externalizados pelo consumo

de determinados produtos em detrimento de outros, estão em consonância com os

princípios valorativos do grupo, pois o ato de consumir um pedaço de animal em

uma refeição acarretaria em danos morais, individuais e coletivos ao grupo, por isso

não deve ser concretizado.

No que se refere à representação ideológica e aos sentidos subjetivos deste

tipo de consumo, estes remetem à “visão de mundo” proposta por Geertz (1978).

Nesta perspectiva, as escolhas e as práticas estão pautadas pelos sentidos que

orientam o ativismo vegano. O consumo é relativizado e ponderado de modo que

expressa a identidade e as características do grupo. Se a “visão de mundo” dos

veganos é garantir o direito à vida dos animais, então é primordial o banimento do

consumo animal.

Assim, por meio da compreensão sobre o que comer, quando e de que forma

comer, é possível conhecer as práticas culturais e os significados simbólicos do

grupo. Sob esse viés, Garine (1987) coloca a cultura como definidora do que é ou

não comestível, revelando a cultura em que os distintos grupos estão inseridos. E no

caso dos grupos veganos, a carne e seus derivados não cabem no prato e

tampouco no estômago.

Sob esse prisma, importa ressaltar a distinção entre alimento e comida, a

qual, de acordo com DaMatta (1987), dá-se pela relação de afetos e significados que

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

18

ocorre na elaboração e no preparo da comida, que pode ser entendida como

alimento transformado pela cultura. A batata sem casca, cortada em pequenas tiras

e posteriormente frita, assim como a salada limpa e temperada, representam, na

imagem descrita anteriormente, a comida vegana.

O preparo da comida, bem como o ato de comer, pode ser compreendido

como um ritual que exterioriza sentidos e significados, na medida em que, segundo

Douglas e Isherwood (2004, p. 112), “os rituais servem para conter as flutuações dos

significados, [...] são convenções que constituem definições públicas visíveis”.

Douglas e Isherwood (2004, p. 113) entendem, ainda, a comida como “um meio de

discriminar os valores, e quanto mais numerosas as ordens discriminadas, mais

variedades de comida serão necessárias”. O alimento e a comida, ao serem

selecionados, compõem os elementos desse ritual, em afluência com os significados

ideológicos e políticos do grupo.

No caso da dieta do grupo vegano, a seleção de alimentos está na exclusão

do consumo de animais ou derivados destes. Esse comportamento do grupo está

associado aos princípios de preservação, respeito e direito à vida animal, em que,

também por meio dos hábitos alimentares, o ativismo político e ideológico está em

constante evidência. Sob essa perspectiva, Rocha (2000) salienta a importância,

para a compreensão das práticas de consumo, de conhecer os costumes e valores

que constituem as culturas.

No entanto, importa destacar que os valores, saberes e práticas contam, na

contemporaneidade, com o formato de consumo autônomo e ativo. Este estilo de

consumo, abrangendo as escolhas alimentares, está em harmonia com as

características que envolvem o estilo de vida vegano. Para Portilho5 (2009, p. 209),

essa é “uma forma de ação política que incorpora, de diferentes maneiras e

diferentes graus, preocupações e valores em prol do meio ambiente e da justiça

social”.

Em consonância com as ideias de Portilho, está à reflexão de Rocha (2004)

acerca do consumo ativo e cotidiano marchetado na extensão cultural da sociedade

contemporânea. Conforme Rocha (2004), o consumo é estruturador de valores que

constroem identidades, regulam relações sociais, definem mapas culturais. Assim,

5 A autora aborda a temática do meio ambiente presente nas práticas de consumo na

contemporaneidade.

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

19

as concepção veganas estão sendo constantemente (re)afirmadas por uma conduta

de consumo, com específicas expressões identitárias e autônomas vinculadas ao

cunho ideológico do grupo.

Portanto, as questões políticas e ideológicas abordadas pelo grupo vegano

são difundidas através do compartilhamento de pesquisas, informações sobre

produtos e receitas, em confluência com uma perspectiva de consumo pensada e

construída pelo ativismo de proteção e respeito aos animais. Afinal, como aponta

Portilho (2009), o consumo é relacional e os bens selecionados/consumidos são

utilizados para caracterizar e distinguir um grupo dos demais. Neste caso, o grupo

vegano caracteriza-se por consumir produtos e serviços que não dependam do

sacrifício e da exploração animal em sua base de produção e consumo.

Os vegetais, as frutas e os cereais compõem o portfólio de regime alimentar

do grupo. Essas opções alimentares constituem o ativismo, impulsionando o

comportamento ideológico, político, social e cultural que se expressa na sociedade

contemporânea, dado que é com o respaldo nos hábitos alimentares característicos

que o grupo vegano exterioriza suas ideias, demarca sua trajetória e define sua

identidade diante de outros grupos.

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

3 MODO DE PREPARO: METODOLOGIA

Neste capítulo serão descritos a metodologia e as técnicas de pesquisa

utilizadas neste estudo. Porém, entende-se que as subjetividades são constituídas

de acordo com as vivências, tanto no campo científico quanto no campo empírico. A

oportunidade da autora desta pesquisa em relacionar-se, na vida cotidiana, com

veganos, propiciou o despertar de sensibilidades enriquecedoras ao trabalho de

campo, que não devem ser desprezadas. Afinal, não pode ser considerado

corriqueiro o sentimento de ser uma “carniceira da espécie humana”.

3.1 A CARNICEIRA DA ESPÉCIE HUMANA: UMA VIVÊNCIA PARA ALÉM DA PESQUISA6

A mesa composta ao “acaso”, sem prévia demarcação gestual ou verbal,

parecia ordenada a partir de estágios evolutivos. Este foi o cenário da última refeição

partilhada naquele final de semana, o almoço de domingo.

Onívoros ocupavam a ponta da mesa, próximos ao fogão, onde estava a

panela com o frango. Em seguida, os vegetarianos, com o queijo em frente dos

respectivos pratos e, logo após, os veganos. Meu lugar junto aos vegetarianos, entre

onívoros e veganos, tranquilizava uma das angústias latentes: de qual refeição

deveria participar?

Entre muitas refeições que transcorreram naquele final de semana, essa era a

primeira que reunia todos que habitavam a casa. Eram três veganos, dois

vegetarianos, três onívoros e eu, que, com o olhar de uma pesquisadora em

formação, desejava participar de todas as refeições e mesas que fossem

partilhadas.

O almoço de domingo foi, assim, a ocasião do “consenso” sobre a comida a

ser servida: macarrão espaguete ao molho sugo vegano7. “Consenso”, apesar do

6 Este escrito é construído a partir de uma vivência particular, tomada como oportunidade enriquecedora para a compreensão do campo de estudo. 7 O molho sugo, comumente conhecido, é de origem italiana, tendo a carne entre seus ingredientes. O molho sugo vegano, em vez da carne, tem como base de preparo a cebola.

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

21

frango com molho preparado pelos anfitriões onívoros e do queijo ralado utilizado

pelos vegetarianos. Mas, ainda assim, havia o acordo de todos para o almoço em

conjunto. E isso era satisfatório.

Após degustar a delicioso macarrão ao molho sugo com queijo ralado, em um

ambiente descontraído, refletia sobre aquele episódio. E, com algumas leituras em

mente, podia aproximar-me das afecções dos veganos ao presenciar o consumo de

carne.

O olhar antropológico era norteado pela curiosidade no processo de

(des)construção das memórias que permeavam as experiências alimentares dos

indivíduos que compunham o grupo vegano de amigos que acompanhava durante

aquele final de semana.

Além disso, estava presente o sentimento de admiração pela capacidade de

ruptura com os sabores da infância, o cozido temperado com os saberes e segredos

das respectivas famílias de origem. Pois, tinha ciência de que os costumes veganos

eram delineados por outras formas de ver, sentir e viver, distintas das tradições e

valores alimentares familiares. Os veganos defendem o consumo que rejeita o

argumento de que a condição de subsistência da espécie humana é associada à

necessidade de sacrificar, explorar e matar os seres não humanos, afirmando a

possibilidade de um consumo alimentar pautado em alternativas sustentáveis que

respeitem e preservem a vida de outras espécies.

Diante dos conflitos em torno dos hábitos alimentares entre

vegetarianos/veganos e onívoros, em poucos dias de convivência minha admiração

passou à frustração. Afinal, meus hábitos alimentares carnívoros eram igualados a

atos grosseiros como o de comer seres indefesos possuidores de sistemas

neurológicos completos. Descobri ainda que, implícita na “naturalidade” de meu

costume alimentar onívoro, estava a potente contribuição para a ampliação da

desigualdade social e econômica do mundo. As afecções aumentavam na medida

em que balizavam valores, suspeitas, sentimentos e memórias alimentares.

Entendi então que meus costumes onívoros promoviam-me a “carniceira”,

uma vez que não tinha o hábito de matar o animal, o ser não humano, para consumi-

lo. Encontrava-o morto, cozinhava e comia. E que, na qualidade de carniceira,

alimento-me de cadáveres. Cadáver, conceito que, na minha limitada concepção,

estava intimamente associado a humanos sem vida. Aos não humanos bastaria a

denominação “morto”.

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

22

No entanto, o termo cadáver contempla também os corpos mortos dos não

humanos. Aquelas partes de corpos que compõem minhas saborosas refeições: a

sopa de cadáver, o feijão de cadáver e, esporadicamente, o churrasco de cadáver.

Isso não é nada apetitoso, tampouco confortável! Esses distanciamentos e

estranhamentos considerados comuns em uma pesquisa etnográfica teriam a

possibilidade de suavizar-se, caso não estivessem os hábitos alimentares no cerne

da pesquisa.

O fato é que o hibridismo que caracteriza a pesquisadora onívora era

frequentemente pulsado e pensado. E, mesmo quando não participava de uma

refeição enquanto pesquisadora, as situações afetavam e fascinavam, constituindo

outras sensibilidades em minha subjetividade.

A convivência com este grupo de amigos proporcionou ainda reflexões

constantes, não apenas sobre os hábitos alimentares observados e analisados, mas,

sobretudo, com relação a meus próprios costumes e valores relacionados ao ato de

comer.

A vivência aqui descrita corroborou para minha inserção em campo e

percepção sobre “ser vegano(a)”, contribuindo para entender valores e ideais a partir

do olhar de meus interlocutores.

Assim, a partir destas experiências e das reflexões de alguns autores sobre

os temas que compõem este trabalho, coloca-se, então, como questão: Como são

(res)significados e transmitidos os saberes culinários veganos? Essa reflexão tem

por objetivo principal entender a constituição dos saberes culinários veganos, em

contexto em que as práticas de alimentação desse tipo têm se expandido. Além

disso, buscam-se elementos que permitam aclarar aspectos relacionados aos

objetivos específicos desta pesquisa:

- Conhecer o modo de compartilhamento dos saberes culinários veganos;

- Analisar, a partir da cibercultura, a sociabilidade entre veganos;

- Identificar formas de transmissão simbólica contidas nas receitas veganas.

A delimitação do universo empírico pesquisado abarca o grupo vegano

localizado na cidade de Pelotas. Com o intuito de apreender o contexto cultural do

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

23

grupo, optou-se pelo método etnográfico e pela técnica de pesquisa observação

participante em duas modalidades: off-line e online.

A pesquisa off-line consistiu na interlocução com dois veganos que

concordaram em participar da pesquisa. No que tange à modalidade online, essa

ocorreu na rede social Facebook, mais especificamente na página do grupo

“Veganos Pelotas”8, espaço destinado ao compartilhamento de materiais

informativos, produtos e receitas veganas. Nesse espaço, destinado às vivências

virtuais do grupo vegano, a pesquisa foi realizada por meio de etnografia virtual.

Estes contextos, off-line e online, serviram como aportes interpretativos

complementares, engendrados nos significados culturais atribuídos pelo grupo

estudado.

3.2 ETNOGRAFIA COM ETNOGRAFIA VIRTUAL

Observar as relações dos indivíduos entre si e do grupo com o ambiente onde

estão inseridos são artifícios do método etnográfico, incorporados ao

aprofundamento do estudo antropológico acerca das distintas culturas.

Ao buscar apreender o contexto cultural por meio da pesquisa etnográfica, é

importante toma-la a partir da ideia de “descrição densa”, proposta por Geertz

(1978). Para o autor, os discursos humanos e os sistemas simbólicos que permeiam

os comportamentos e os acontecimentos sociais servem como subsídios

interpretativos para uma descrição com densidade.

Em consonância com as ideias de Geertz (1978), está a perspectiva que fora

proposta por Malinowski (1997, p. 23), que enfatizou ser necessário, para o êxito no

trabalho de campo, “sentir em verdadeiro contato com os nativos”. Ou seja, o

pesquisador necessita entender os aspectos culturais do grupo com profundidade,

com o intuito de fazer conexões entre as evidências e as narrativas, as tensões e

8 O status do grupo “Veganos Pelotas” foi alterado de fechado para aberto na Rede Social Facebook. No entanto, essa alteração, não modificou os conteúdos compartilhados pelo grupo, mas, as formas de visualizações. Pois, a modalidade “grupo aberto” permite a visualização de todos os usuários do Facebook que acessem o grupo “Veganos Pelotas” na Rede Social. O acesso ao “Veganos Pelotas” está disponível em: https://www.facebook.com/groups/opcaoveganapelotas/?fref=ts

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

24

intenções, a objetividade e a subjetividade entre outras especificidades que

aparecem em campo.

Sobre esse aspecto, importa destacar que o grupo vegano estudado utiliza-se

do meio virtual como articulador de valores políticos e ideológicos, bem como para a

transmissão e propagação de conhecimentos em torno dos direitos animais.

Lévy (1999, p. 47) esclarece que o virtual não deve ser empregado com o

significado de “irrealidade”. Ou ainda, em contraposição à tangibilidade que compõe

a compreensão de “realidade”. Isso porque o virtual é uma dimensão importante da

realidade. Segundo esse autor, “ainda que não possamos fixá-lo em nenhuma

coordenada espaço-temporal, o virtual é real” (LÉVY, 1999, p.48). O virtual pode ser

considerado o habitar de distintos espaços que constituem a cibercultura. Por meio

de informações codificadas e digitais que movimentam o ciberespaço, a virtualidade

extrapola a dicotomia entre “realidade” e “irrealidade”.

Neste sentido, a virtualização da informação, através de hiperdocumentos e

hipertextos, possibilita a (re)construção de saberes coletivos. Conforme explica Lévy

(1999, p.57), “os hiperdocumentos abertos acessíveis por meio de uma rede de

computadores são poderosos instrumentos de escrita-leitura coletiva”. Assim, as

informações virtuais, em seus distintos formatos (fotos, músicas, textos), possuem

características fluídas e maleáveis e, por isso, passíveis de interações e

transformações da cibercultura.

Neste ponto, importa ressaltar o conceito de cibercultura como proposto pelo

filósofo contemporâneo Lévy (1999, p. 17): “[...] um conjunto de técnicas (materiais e

intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se

desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço”. Já o ciberespaço

“especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas

também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres

humanos que navegam e alimentam esse universo” (LÉVY, 1999, p. 17).

Para buscar entender a cibercultura, voltemos ao pensamento de Geertz

(1978), que relaciona a cultura como uma teia de significados, possibilitando ao

homem constituir especificidades culturais através das conexões com o contexto em

que está inserido. Nessa perspectiva, cabe entender a cibercultura como um

ambiente que compõe a teia de significados do grupo, na medida em que é também

neste âmbito que o grupo estudado interage, mobiliza, articula e fortalece a ideologia

vegana.

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

25

Importa, assim, destacar que a constituição vegana está, na

contemporaneidade, pautada por discussões, articulações e trocas que acontecem

na cibercultura. Desta forma, a cibercultura é, para os veganos, um importante meio

de comunicação e, por isso, ambiente que possibilita produção de sentido ao grupo.

Desse modo, o olhar etnográfico sobre este ambiente é de extrema importância para

a compreensão cultural do grupo, o que justifica trazer a etnografia virtual ao método

etnográfico na realização deste estudo.

Vale ainda destacar que a perspectiva da etnografia virtual se pauta nas

premissas etnográficas – tal como discutidas por Geertz (2001) – no que se refere à

postura de estranhamento do pesquisador diante do objeto, à percepção dos

aspectos subjetivos envolvidos na investigação, aos dados oriundos como

interpretações de segunda e terceira mão, bem como aos relatos etnográficos como

textualidades múltiplas.

Contudo, se considerarmos a transposição etnográfica do espaço físico ou

off-line para o espaço virtual ou online, faz-se necessário inserir alguns

procedimentos específicos ao método.

Conforme Amaral (2008), uma diferenciação da etnografia virtual seria a

capacidade metodológica de abarcar diferentes contextos, característica que está

em consonância com a pluralidade cultural presente no ciberespaço. Sob esse viés,

Kozinets (1998) indica que a etnografia virtual, diante dos grupos pesquisados nos

ciberespaços, precisa estar em sintonia com a participação imersa e a observação

cultural, exigindo do pesquisador a inserção e o reconhecimento como um membro

da cultura. No que diz respeito à coleta de dados, esse autor salienta que as notas

de campo devem ser relacionadas com os “artefatos” da cultura ou comunidade, tais

como: download de arquivos, transcrições de bate-papo, postagens em newsgroups,

postagens e/ou comentários em blogs, troca de e-mails, imagens e arquivos de

áudio e vídeo.

Com relação ao compartilhamento de arquivos nas comunidades online,

Gomes (2006) comenta sua essencialidade na troca de informação nos ambientes

online. Para a autora, os arquivos garantem toda a base de reciprocidade,

solidariedade e confiança que caracterizam as relações virtuais.

Os arquivos, em seus mais variados formatos, sustentam o portfólio de

informações, sociabilidade e interatividade no interior dos ambientes virtuais. Cabe

salientar que os arquivos podem ser realizados e compartilhados de maneira

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

26

instantânea e concomitante às vivências que permeiam a rede, ou seja, na vida off-

line. Neste sentido, diferentemente da etnografia submetida ao campo presencial ou

off-line, na etnografia virtual os dados de pesquisa estão sendo produzidos a todo

instante e em diferentes ambientes online, muitas vezes de maneira síncrona.

Sob a perspectiva de estudo off-line e online, Miller e Slater (2004), em

estudo tomado aqui como aporte metodológico, expressam a importância de a

pesquisa realizar-se, de forma inter-relacionada, nos dois espaços.

Ainda no que se refere ao estudo concomitante dos ambientes off-line e

online, Leitão e Gomes (2011, p. 27) relatam que em suas “experiências prévias de

pesquisa do e no ciberespaço têm procurado primeiramente analisar a relevância da

distinção on/off para os próprios sujeitos, seus interlocutores de pesquisa”. As

autoras ressaltam a importância de o pesquisador verificar se “as interações sociais

online são por eles estendidas para o off-line, através de encontros fora do ambiente

digital”. Caso este aspecto seja evidenciado, aconselham ao pesquisador a

acompanhar esses deslocamentos, estendendo a observação para a dimensão off-

line.

3.3 INSERÇÃO EM CAMPO

O primeiro contato estabelecido com os possíveis interlocutores desta

pesquisa ocorreu em um evento intitulado 1º Veganique, realizado no dia 13 de

setembro de 2015, na Praça Coronel Pedro Osório localizada na cidade de Pelotas.

O evento foi articulado, organizado e desenvolvido pelos integrantes/ representantes

do ONCA9 na cidade de Pelotas/RS.

Logo após chegar ao local, apresentei-me a um grupo que estava sentado na

grama da praça em torno de uma toalha que servia como suporte para acomodar um

prato com bolo e uma jarra com suco. Posterior à apresentação, convidaram-me a

9 Conforme informações acessadas no dia 05 de fev. 2016, no site da organização “ONCA é uma entidade de defesa animal, totalmente voluntária, independente e sem fins lucrativos, que divulga e defende os Direitos Animais (também chamados de Libertação Animal), ou seja: a extinção do uso e exploração animal ou sua substituição, através de usos alternativos e conscientes”. O acesso à página “ONCA” está disponível em: http://www.onca.net.br/quem-somos-2/quem-somos/

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

27

sentar junto deles e, em conversa, disseram ser vegetarianos e que participavam do

evento por admirar os princípios do grupo vegano.

Os membros deste grupo de vegetarianos assumiram que algumas vezes

faziam bolos veganos, à exemplo, o bolo de banana que haviam preparado para

compartilhar no 1º Veganique. A receita do bolo, o grupo relatou que obteve por

meio da internet, salientando que, com frequência, após pesquisar as receitas

veganas na rede, pensavam em fazê-las, mas somente se aventuravam a replicar

algumas delas.

Apesar de muito bem recepcionada pelo grupo, necessitava encontrar

possíveis interlocutores veganos e foi assim que me despedi do grupo vegetariano,

agradecendo-lhes pela atenção dispendida.

Nesse ínterim, os integrantes do ONCA haviam chegado. Identifiquei-os pela

faixa exposta na grama, bem como pelos alimentos disponibilizados: pizza com

recheio de molho de tomate e coxinha de jaca.

Na ocasião, conversei com veganos que participavam do evento. Nesse

diálogo, convidaram-me a participar da página do grupo “Veganos Pelotas” na rede

social Facebook, ambiente virtual de que muitos deles participam. Dispuseram

alguns folders explicativos, demonstrando interesse em participar da pesquisa.

No entanto, o vínculo com o ONCA enquanto organização/entidade, ao menos

no cerne deste estudo, torna-se dispensável. O mesmo não se aplica ao cotidiano

de seus integrantes interlocutores potenciais do recorte etnográfico proposto: a

constituição das receitas veganas.

Antes desse encontro, já realizava uma incipiente observação na página do

grupo “Veganos Pelotas”. Incipiente porque naquele instante não coletava dados,

apenas conhecia o andamento da página: o fluxo de compartilhamentos, curtidas,

comentários e as participações constantes e as mais reservadas.

Essa parte da pesquisa ajudou-me a identificar outras páginas relacionadas

ao assunto, às problematizações expostas, aos protestos ocorridos em defesa dos

animais, às mobilizações financeiras para ajuda e cuidado de alguns animais, à

comercialização de produtos, aos locais comerciais onde fornecem alimentos e

refeições específicas e, por fim, às tão cobiçadas receitas.

Após essa etapa, alguns contatos iniciais foram estabelecidos com possíveis

interlocutores, por meio de mensagem privada ao perfil do usuário da rede social

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

28

Facebook. Para os veganos com quem ainda não havia estabelecido contato prévio

no Veganique, escrevia a seguinte mensagem:

Olá, sou aluna do curso de Antropologia da UFPel. Estou desenvolvendo meu Trabalho de Conclusão de Curso em torno da constituição de receitas veganas. E, por esse motivo, gostaria muito de conversar! É possível? Tua contribuição seria importante para o processo de construção deste trabalho! Aguardo teu retorno. Abraços. (Pesquisadora)

A mensagem enviada àqueles com quem já havia estabelecido contato

através do Veganique geralmente esclarecia que pretendia dar continuidade à

pesquisa sobre receitas veganas. O contato era concluído com: “Gostaria de marcar

uma conversa. É possível? ”.

A intenção era encontrar voluntários para desenvolver a pesquisa na

modalidade off-line. O fato é que de todas as pessoas contatadas, seis aceitaram

participar da pesquisa e, assim, marcar um encontro. Mas o encontro e a pesquisa

off-line ocorreram efetivamente apenas junto a dois interlocutores, conforme

mencionado no item 3.4 deste trabalho.

No que se refere aos quatro interlocutores que haviam aceitado participar da

pesquisa, mas cujo aceite não se concretizou em encontros off-line válidos para esta

pesquisa, cabe esclarecer que em dois dos casos isso se deu em decorrência da

indisponibilidade de horários devida a compromissos profissionais dos interlocutores;

em um caso não houve respostas às propostas de encontro; no quarto caso, a

interlocutora compareceu ao encontro, quando foi possível verificar tratar-se de

hábitos alimentares vegetarianos, perfil distinto dos demais interlocutores que

compõem esta pesquisa.

3.4 CAMPOS OFF-LINE E ONLINE

A pesquisa de campo off-line foi realizada entre janeiro e abril de 2016. Por

escolha dos interlocutores, os encontros ocorreram em um restaurante vegano da

cidade. Essa escolha se deu, provavelmente, por ser um local central e fazer parte

dos ambientes frequentados pelos interlocutores.

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

29

Os encontros, entre sete e oito com cada interlocutor, ocorreram de forma

individual e duraram em média uma hora. As conversas foram principalmente

pautadas em torno de suas preferências alimentares, antes e após tornarem-se

veganos. Ao discorrer sobre suas preferências, os interlocutores falavam sobre as

adaptações em suas alimentações, bem como os elementos que retiravam, incluíam

e substituíam em suas receitas.

Nas conversas estabelecidas, eram, com frequência, explicitadas dinâmicas

de relações pessoais com indivíduos onívoros, vegetarianos e veganos. O diálogo a

respeito dos hábitos alimentares dos interlocutores e de suas receitas ocupava o

centro das conversas.

Com o intuito de contextualizar relatos dos interlocutores na modalidade off-

line desta pesquisa, apresento-os brevemente:

Lucas tem 33 anos e é professor da área de humanas no ensino

médio/técnico em Pelotas. Com relação a sua experiência com o veganismo, segue

seu relato:

Eu era vegetariano há uns quatro anos, mas com ajuda de uma amiga, conversas e trocas de receitas, comecei a pensar sobre a possibilidade de ser vegano. Mas quando assisti um documentário sobre consumismo, um vídeo chamado Baraka, vendo o sacrifício que fazem com os pintinhos que viram nuggets, é que deixei de vez de consumir ovos e laticínios e virei vegano. Há cinco anos sou vegano. É, sou um vegano abolicionista relativista. Pois, penso e relativizo a utilização animal por outros grupos, como por exemplo, os grupos das religiões afro. Levo em consideração as discussões políticas, econômicas e sociais. (Lucas)

Luiza tem 27 anos, é estudante de artes e conta que:

Sou vegana há cinco anos e antes de ser vegana era, há três anos, vegetariana. Mas mesmo antes de ser vegetariana já não tinha costume de comer carne vermelha, pois minha mãe comia pouca carne e quando comia era carne branca (peixe e frango). Sou vegana pela causa animal. E porque quando era vegetariana percebi que consumia muito mais laticínios que antes. E o consumo de laticínios, se comparado ao consumo de carne, afeta tanto ou mais os animais. (Luiza)

Além da contribuição desses interlocutores, a análise deste estudo se estende

ao campo online, mais especificamente a partir da página do grupo “Veganos

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

30

Pelotas”. Neste ambiente, a coleta de dados – mais especificamente de receitas –

limitou-se ao período compreendido entre fevereiro e junho de 2016. No entanto,

estou inserida nesse ambiente virtual desde o início da pesquisa, em novembro de

2016, até o presente momento. O convite para participar da página do grupo

“Veganos Pelotas” ocorreu, como já mencionado, no momento em que apresentei a

proposta de pesquisa a uma das administradoras.

Essa inserção possibilitou-me estabelecer contatos, por meio de mensagens

privadas ao perfil do usuário da rede social Facebook, com os interlocutores off-line.

Estes contatos incidiram em pelo menos dois momentos: o primeiro, com o intuito de

explicar a proposta e realizar o convite para participar da pesquisa e o segundo,

como meio de comunicação com os interlocutores que participaram da pesquisa off-

line.

Além disso, fazer parte do “Veganos Pelotas” possibilitou-me observar

discussões sobre distintos temas abarcados pelo veganismo, inserções em novas

páginas na rede social, articulações de encontros veganos, mobilizações de verbas

em prol da causa animal.

O fato, é que essa experiência, permitiu “curtir” e “compartilhar” algumas das

postagens da página do grupo “Veganos Pelotas” em meu perfil particular da Rede

Social Facebook. Ou seja, viver os veganos também no âmbito virtual.

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

4 COZIMENTO: A MEMÓRIA DAS ESCOLHAS ALIMENTARES

A seleção de alimentos e o preparo da comida estão intrinsicamente

relacionados com os hábitos alimentares. Conforme Barbosa (2007, p. 88), os

estudos sobre hábitos alimentares na contemporaneidade não se limitam às

características nutricionais, sociais ou históricas, abrangendo também a dimensão

política/ideológica.

Isso implica em outras possibilidades de compreensão em torno dos hábitos

alimentares, segundo Barbosa (2007, p. 88), dispostos em “posturas éticas e morais

em face de todos os demais seres vivos”. Ou seja, o homem come e (re)constitui

seus costumes alimentares conforme seus princípios éticos. O hábito alimentar,

nesta instância, é pensado dentro dos limites de sua ideologia e estilo de vida.

Nesse quadro, verifica-se certa autonomia alimentar entre os membros de um

mesmo grupo doméstico, bem como entre os integrantes de grupos semelhantes.

[...] os indivíduos tenderiam a comer de forma diferente entre si. Tanto o conteúdo das refeições como a própria ingesta estariam se tornando crescentemente diferentes. Essa diferenciação sinalizaria para uma menor influência dos hábitos alimentares compartilhados e socialmente sancionados na escolha do comportamento alimentar dos indivíduos. (BARBOSA 2007, p. 108)

Importa destacar que embora o comportamento alimentar dos indivíduos e/ou

grupo seja composto também a partir de influências distintas às partilhadas

socialmente, ainda assim, há conexões com práticas alimentares que remetem às

linhas identitárias de um grupo e/ou uma cultura.

Nesta perspectiva, Contreras e Gracia (2004) mostram que por meio da

cozinha é possível apreender os elementos identitários característicos de uma

sociedade. De acordo com esses autores, cada grupo social tem referências

específicas que orientam o conjunto de elementos que podem ser entendidos como

“marcadores étnicos”. Essa característica é parte da identidade cultural que se

(re)constrói na medida em que ocorre a interação com outros grupos.

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

32

Assim, os hábitos alimentares incorporam conhecimentos culinários10 que

têm origem em distintas vertentes: familiares, regionais, religiosas, políticas,

econômicas, entre outras. Contreras e Gracia (2004) esclarecem que as

transformações e inovações, com a inserção ou o (des)uso de elementos, afetam e

(re)definem as características da cozinha e que, nesses processos, pode-se

observar que os ingredientes se modificam, mas as formas de preparo permanecem.

Maciel (2001) define as “cozinhas” sob perspectiva territorial: de uma nação,

uma região ou um grupo específico, afirmando, contudo, que os pratos

emblemáticos são diferentes dos pratos cotidianos, pois os primeiros representam as

características de como o grupo quer ser socialmente reconhecido. A autora

esclarece ainda, que as cozinhas representam uma complexificação do ato

alimentar, ou seja, possibilitam a composição de um prato de maneira diversificada

no que se refere à combinação, preparação e transformação do alimento em comida.

É o que podemos, a título de exemplo, observar no documentário etnográfico

“Quindim de Pessach”11no encontro da cultura brasileira com a cultura judaica por

meio da culinária. O vídeo retrata como ocorre no Brasil os ensinamentos culinários

das matriarcas judias para as suas cozinheiras brasileiras. A transmissão destes

preceitos culinários por meio de receitas e pratos carregam os costumes e os

valores simbólicos da cultura judaica. Contudo, no Brasil as receitas da culinária

judaica são preparadas por membros de outras etnias. Deste modo, de acordo com

as narrativas do documentário mencionado, as receitas judaicas muitas vezes são

preparadas por mãos africanas e/ou indígenas, o que implica na inserção de novos

temperos e sabores, (re)configurando as práticas culinárias judaicas. Essas

(re)configurações estão presentes nas receitas e pratos judaicos transmitidos pelas

cozinheiras brasileiras às gerações mais novas da cultura judaica.

As receitas e pratos judaicos carregam os valores e costumes de sua

cultura. Ao ser ensinado para as cozinheiras brasileiras o significado simbólico do

prato permanece arraigado na cultura judaica, mas, alguns de seus elementos são

10 Na concepção de Barbosa (2007, p. 93), culinária é “um conjunto que engloba manipulação, técnicas de cocção, representações e práticas sobre as comidas e as refeições, é o principal mecanismo que transforma o alimento em comida, ou seja, nos pratos”. 11 O vídeo “Quindim de Pessach” foi premiado no Etnodoc 2009. O Etnodoc é um projeto criado pelo Iphan e tem como intuito apoiar os documentários etnográficos voltados para exibição em rede pública de televisão. O documentário etnográfico “Quindim de Pessach” está disponível no site do projeto e pode ser acessado no link: http://www.etnodoc.org.br/indexe943.html?option=com_content&view=article&id=48%3Aquindim-de-pessach&catid=7%3Afilmes-2009&Itemid=41

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

33

alterados. Ocorre que tanto na transmissão quanto na adaptação da culinária

judaica, são evidenciadas a reprodução social dos elementos que compõe as

cozinhas (MACIEL, 2001; CONTRERAS; GRACIA, 2004) das distintas culturas. Pois,

percebem-se nos relatos do “Quindim de Pessach” que as receitas da cultura judaica

e os elementos da cultura brasileira demonstram conhecimentos culinários distintos,

demarcadores de identidades culturais.

Em uma perspectiva não divergente, mas mais abrangente, está reflexão de

Candau (2011) acerca da construção de identidades. Para o autor, a construção de

identidade ocorre por meio da transmissão e reprodução social do aprendizado.

No entanto, esta transmissão jamais será pura ou uma “autêntica” transfusão memorial [...] pois, para ser útil à estratégias identitárias, ele deve atuar no complexo jogo da reprodução e da invenção, da restituição e da reconstrução, da fidelidade e da traição, da lembrança e do esquecimento. (CANDAU, 2011, p. 106)

Ainda de acordo com o autor, a transmissão pode ser percebida como central

na memória humana. Por isso, em suas diferentes formas, torna-se essencial para

reprodução da memória individual e coletiva que constituem o corpo social. No

entanto, Candau (2011) esclarece que é por meio da exteriorização da memória que

ocorre a transmissão memorial. Esta exteriorização sucede com o intuito de

compartilhar sinais, principalmente por meio de narrativas ou inscrição de gravuras e

escrita.

Em nossa sociedade as tradições culinárias são geralmente transmitidas às

gerações seguintes por meio de narrativas, via oral e/ou escrita, muitas vezes

através de “caderninhos de receitas”. Sob essa perspectiva, para Amon e Menasche

(2008), a comida tem uma dimensão comunicativa e as receitas narram os saberes e

as histórias de uma memória coletiva. Na concepção das autoras, por meio das

receitas, é possível partilhar os saberes da experiência cotidiana, os gostos, as

preferências das comidas construídas e mantidas na memória social.

Como exemplo, no artigo12 apresentado por Menasche (2010), a polenta prato

básico, preparado e mantido por descendentes italianos, no Brasil, é uma forma de

narrativa das histórias da vida cotidiana dos agricultores localizados na região sul do

país. 12 O artigo é um recorte da pesquisa realizada entre 2000 e 2007 em quatro distintas regiões do Rio grande do Sul. A pesquisa aborda, entre outros aspectos, as práticas alimentares de agricultores e citadinos desta região do país.

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

34

Já a partir do início do século XVI, o milho, planta de origem americana, podia ser encontrado em várias regiões européias, sendo sua ampla difusão atribuída, por um lado, à elevada produtividade obtida em seu cultivo – em comparação à de outros cereais há mais tempo semeados naquele continente, como centeio e trigo – e, por outro lado, à facilidade com que substituiu outros grãos no preparo de papas de cereais, comuns em toda a Europa desde tempos remotos (FLANDRIN; MONTANARI, 1998; CONTRERAS; GRACIA, 2004). Assim é que a polenta se constituiu em alimento de base dos camponeses da região do Vêneto, no norte da Itália, região de origem de italianos que, a partir de 1875, migrariam para o sul do Brasil. (MENASCHE, 2010, p.11)

Neste sentido, a pesquisa de Menasche (2010), aponta as distintas formas de

participação do prato na vida dos camponeses. A polenta está relacionada com as

atividades diárias destes agricultores, pois, a circunstância de preparo ocorria

sempre após o trabalho no campo. O prato, na maioria das vezes, constituía a janta

e o café da manhã da família devido à escassez da farinha de trigo e outros

alimentos. Ainda hoje, embora menos frequente, a polenta faz parte das refeições

das famílias rurais. Porém, entre os jovens das famílias de agricultores há rejeição

pelo meio rural devido às aspirações pela vida na cidade. Por conseguinte, ocorre a

vergonha do consumo da polenta, pois, esse é o prato típico que representa a vida

dos agricultores no meio rural.

O fato é que por meio da polenta, prato típico dos agricultores rurais, está à

possibilidade de narrativas e a exteriorização da memória coletiva. Pois, a polenta

remete a história da etnia italiana, comunica distintas percepções e vivências no

meio rural. A polenta é tida como um prato emblemático do meio rural. No entanto,

os pratos emblemáticos de cada grupo parecem ser constantemente recombinados

a partir de fluxos e trocas com outros grupos, sendo atualizados e reinventados, com

a criação de novos saberes.

No que se refere aos pratos emblemáticos, um exemplo, pode ser

evidenciado no estudo de Barbosa (2007) sobre hábitos alimentares brasileiros13. A

autora evidencia que, entre as refeições realizadas pelos brasileiros, o almoço é

considerado a mais importante e apresenta um cardápio mais homogêneo, pois 94%

dos interlocutores declaram comer feijão14 e arroz. Este dado, entre outros que a

13 O artigo de Barbosa (2007) está embasado na pesquisa sobre os hábitos alimentares brasileiros realizada em com 1 milhão de habitantes em dez cidades brasileiras. O estudo abordou todas as classes sociais, distintas idades e gêneros. 14 De acordo com Barbosa (2007, p. 112) o feijão era consumido pelos brasileiros do século XIX. “os brasileiros, ricos e pobres, daquela época já comiam diariamente feijão com farinha. O que os

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

35

pesquisa fornece, indica que no Brasil alguns hábitos alimentares são

compartilhados e legitimados socialmente. Uma vez que, ocorre a escolha e

ingestão de um cardápio semelhante e a seleção dos alimentos transcende os

aspectos como renda, gênero e faixa etária.

Assim, o “típico” feijão preparado com carnes, derivados e temperos

convencionais ao preparo do prato na culinária brasileira, são (re)elaborados em

consonância com os gostos e costumes das cozinhas familiares e/ou regionais. As

distintas cozinhas promovem a complexificação (MACIEL, 2001) do emblemático

feijão e arroz, ou seja, a preparação e a composição do prato são realizadas de

maneira diversificada.

Nesta perspectiva, o feijão preparado com um ou vários elementos de origem

animal, aparência que remete à “feijoada” brasileira, dá espaço ao “feijão vegano”.

Para os interlocutores desta pesquisa, o feijão faz parte de sua alimentação diária.

Em relato, um interlocutor da pesquisa diz:

Hoje meu almoço foi: feijão, arroz, couve e farofa. Tempero meu feijão com cebola e alho e a couve com alho e azeite. Como quase todos os dias feijão. E, quando não tenho feijão, faço lentilha com os mesmos temperos do feijão. (Luiza)

Enquanto outro interlocutor relata:

Como sempre feijão, arroz e duas cores: folhas, verduras ou legumes. Faço o feijão e congelo. Preparo ele com cebola, alho, pimentão e às vezes louro. Durante o dia como fora porque trabalho, mas à noite chego em casa e janto. Tiro o potinho de feijão do congelador, faço um arroz e pico umas folhinhas com a mão em cima do prato e já era. Geralmente é, arroz, feijão e o que tiver na geladeira. (Lucas)

Com preparo à base de temperos sem origem animal, o “feijão vegano”,

expressa a ideologia, o estilo de vida e a visão de mundo de um grupo. Sob este

viés, AMON e MENASCHE (2008) esclarecem que, a partir das escolhas dos

alimentos, através das atividades de seleção e combinação, é possível manifestar as

concepções de um grupo social e a expressão de uma cultura. A (re)configuração na

seleção dos ingrediente para o preparo do feijão, comunica sobre as dimensões

ideológicas e políticas que podem estar presentes nos hábitos alimentares.

diferenciava entre si era justamente a qualidade do feijão: caldo ralo entre os mais pobres e grosso entre os mais ricos”.

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

36

A tradição do consumo de feijão não é esquecida, mas, seu preparo é (re)

elaborado. Por vezes com base em vegetais como cebola, alho e pimentões, bem

como com o aporte de carnes e linguiças elaboradas com base em vegetais, soja ou

glúten. Assim, o feijão, enquanto prato simbólico que compõe os hábitos alimentares

dos brasileiros é preparado de forma distinta e em consonância com um estilo de

vida, no caso, com o banimento do uso de animais.

4.1. OS SIGNIFICADOS DE UM AÇOUGUE VEGANO

O veganismo incentiva a reinvenção da dieta alimentar humana. Mas, na

ruptura com os costumes de humano onívoro, baseados em uma dieta animal e

vegetal, há buscas de mecanismos que deem conta de preservar elementos que

fazem parte da memória alimentar.

As associações alimentares são consideradas importantes, principalmente no

período de transição da dieta onívora para vegana. Sob este aspecto, um dos

interlocutores assume: “é melhor uma carne de glúten a uma carne bovina, suína ou

de qualquer outro animal”. Outro relata ainda: “a galera precisa de um substituto

para carne e para os embutidos”.

Dentre essas e outras ressignificações alimentares, nos deparamos com a

implantação do primeiro açougue vegano do Brasil e da América Latina. Neste

espaço, segundo matéria veiculada na revista Vista-se (2016) ainda no período que

antecedeu ao funcionamento do empreendimento, seriam comercializadas “linguiças

de vários tipos, hambúrgueres, salsichas, bifes e outros tipos de carnes 100%

vegetais”.

Os hábitos alimentares veganos instituem novas concepções sobre o que é

comestível em consonância com os estilos de vida recomendados pelo grupo.

Assim, o que em outro grupo não seria concebido como comida, carnes elaboradas

a base de vegetais, é tomado como elemento necessário para alguns adeptos do

ativismo vegano.

As questões morais e valores dos ativistas estão profundamente relacionados

com os alimentos ingeridos. O alimento preparado como de costume em uma

sociedade (DAMATTA, 1987) é reconhecido como comida. Em seu preparo, estão

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

37

presentes as emoções e identidades sociais que traduzem os sistemas de valores

do grupo.

Essa ideia sobre os significados sociais atribuídos à comida remete ao

conceito de “comensalidade totêmica” cunhado por Lévi-Strauss (apud Da Matta,

1987, p. 22), entendido como “um sistema onde pessoas, ambientes, emoções,

alimentos e até mesmo o modo de preparar a refeição deve estar em plena

harmonia”.

Além de essencial ao organismo, a comida é permeada de significados

simbólicos. Por esse motivo, alimentos inseridos em um grupo social podem ser

excluídos ou vistos com cautela.

Assim, segundo Maciel (2001, p. 145), “o homem cria práticas e atribui

significados àquilo que está incorporando a si mesmo, o que vai além da utilização

dos alimentos pelo organismo”. Em distintas ocasiões, os alimentos ingeridos não

são aceitos ou consentidos socialmente e, portanto, não são consumidos. Assim,

exceto em situações de escassez alimentar, o significado simbólico deixa de

predominar em relação à saciedade e/ou necessidade fisiológica.

A relação do que é considerado permitido ou proibido pode ser pensada,

segundo Douglas (1976), em estudo sobre as interdições alimentares entre os

judeus, a partir da dicotomia entre sagrado e profano. Nesta obra a autora traz como

elemento essencial para discussão os princípios da religião e suas interferências nas

convenções sociais judaicas, sobretudo acerca das escolhas dos alimentos. Para

tanto, a referida autora analisa as regras de dieta – especialmente as interdições, as

ditas abominações – que constam no texto bíblico, o Levítico.

Na procura da santidade, com o intuito de ser íntegro e perfeito enquanto

indivíduo e espécie, segundo a interpretação de Douglas (1976), os judeus

pautavam as regras da dieta alimentar na classificação de carnes puras e impuras.

Poderiam ingerir apenas os animais que têm casco fendido e ruminam. Se por

ventura tivessem somente uma das duas características, este se somaria à lista de

animais considerados impuros, a exemplo do porco e do camelo.

No entanto, de acordo com Douglas (1976), para entender a lógica de animais

descritos como impuros pelo Levítico faz-se necessário recorrer ao texto bíblico.

No firmamento aves de duas pernas voam com asas. Na água, peixes com escamas nadam com nadadeiras. Na terra, animais de quarto pernas pulam, saltam ou andam. Qualquer classe de criaturas que não esteja equipada

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

38

para o tipo correto de locomoção no seu elemento é contrária a santidade. O contacto com ela desqualifica uma pessoa e aproximar-se do Templo. (DOUGLAS, 1976, p. 73)

Assim, os animais aquáticos que não tenham nadadeiras e escamas; as aves,

os répteis, os de quatro patas que pulam ou tenham outras características não

próprias a seu meio são classificados como impuros. Qualquer contato que o homem

possa ter com esses animais será percebido como elemento que o afasta da

santidade.

Outro aspecto relevante é a noção de contaminação proposta por Douglas

(1976, p. 57): “A contaminação nunca é um acontecimento isolado”. Ou seja, os

indivíduos partilham de um conjunto de ideias que constituem a estrutura social e

cultural. Mas, os limites dentro desse conjunto de ideias partilhadas sobrevêm pela

separação, neste caso, o sagrado diante o profano.

Maciel (2001) menciona a ideia de que o homem classifica a comida, as

permissões e proibições, no quadro das delimitações e abrangências de sua cultura.

A autora elucida ainda que muitas vezes o que é considerado comida em uma

cultura pode não ser assim concebido em outra.

Desta forma, importa destacar que os critérios pelos quais o homem escolhe

e determina o que é comestível estão ancorados em sua visão de mundo. As

escolhas alimentares estão associadas ao religioso, político, social, ideológico e

econômico entre outras dimensões que compõem o contexto cultural.

Desse modo, as percepções sobre o que é “bom”, “ruim”, “saudável” ou

“prejudicial”, entre outras compreensões, assumem sentidos diversos que podem

não ser (re)conhecidos pelos demais grupos.

As carnes e embutidos a serem vendidos pelo açougue vegano, por serem

preparados em sinergia com os valores do grupo, são entendidos aqui como

alimentos construídos a partir de um sistema de ideias, e por isso, são considerados

comida.

A comida do açougue vegano evidencia uma (re)configuração de elementos,

que possibilita a degustação de sabores comuns ao paladar que remete à vivência

anterior ao ativismo vegano. No entanto, os temperos e misturas preparados a partir

de vegetais estão em acordo com a concepção de mundo do grupo, na mediada em

que não há derivados de animais em sua composição. Isso ao mesmo tempo em

que possibilita (re)viver hábitos alimentares destituídos pela causa animal.

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

4.2 UM OLHAR ANTROPOLÓGICO ACERCA DAS RECEITAS VEGANAS

Ao longo desta pesquisa foi realizado o levantamento de quarenta e cinco

receitas veganas, sendo os nomes dos pratos/receitas, atribuídos pelos

interlocutores. Pode-se notar que as receitas obtidas online são mais elaboradas do

que aquelas que o foram off-line. Enquanto que no ambiente online são

disponibilizadas receitas especiais e de boa aparência, as receitas fornecidas pelos

interlocutores off-line estão associadas aos hábitos alimentares cotidianos.

Os pratos, além de serem preparados para a degustação, são atualmente

elaborados para o registro por meio da câmera fotográfica. Na etnografia virtual

desta pesquisa, observou-se que todas as receitas postadas na Rede Social

Facebook possuíam imagens das receitas, sendo que em um universo de trinta

receitas online, vinte e oito apresentavam imagem estática (fotografia), enquanto que

duas em movimento (vídeo).

No que tange a amostra off-line, os interlocutores desta pesquisa relatam

realizar o registro fotográfico dos pratos que elaboram com o intuito de enviar, por

meio com dispositivos móveis, as imagens aos amigos. Porém, as imagens

partilhadas não são dos pratos que compõem as práticas alimentares cotidianas dos

interlocutores, mas, das novas receitas ou das inusitadas comidas.

Assim, importa destacar que as imagens representam uma maneira distinta

de produção de significado para o grupo pesquisado. A análise destas imagens é de

extrema importância para a continuidade desta pesquisa, motivo pelo qual, será

abordada em estudos posteriores. Contudo, alguns arranjos dos pratos veganos que

compõe a amostra online podem ser observados nas imagens disponibilizadas no

anexo neste trabalho.

4.3 ANÁLISES DAS RECEITAS VEGANAS

A constituição de valores e práticas alimentares associados ao veganismo,

mais especificamente às receitas veganas, é objeto de reflexão proposto pela

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

40

pesquisadora deste trabalho também em eventos de iniciação científica que

antecedem ao recorte de análise desta pesquisa. Em um destes eventos15, como

forma de exemplificar a adaptação de foi analisada a seguinte receita:

.

Receita 01: Almôndegas de abobrinhas

Modo de preparo e ingredientes:

Cozinhe uma abobrinha em água até ficar molinha.

Escorra e amasse ela. Acrescente temperos a gosto: pimenta, sal, orégano e

farinha integral até conseguir pegar com a mão e fazer bolinhas.

Não fica uma massa, fica meio pastoso mas possível de fazer bolinhas com a

mão. Coloque em uma forma untada e asse por 30 minutos. A foto é de antes

delas irem para o forno.

Você também pode fritar, fica menos saudável mas é do gosto e da dieta de

cada um.

Depois de prontas eu coloquei em um molho de tomate delícia.

Como análise, observou-se que o preparo das almôndegas conta com a

substituição da carne por abobrinhas. As questões políticas e ideológicas abordadas

pelo grupo vegan são difundidas através do compartilhamento de pesquisa, práticas,

hábitos e receitas, isso em confluência com uma perspectiva de consumo pensada e

construída pelo ativismo de proteção e respeito aos animais. Afinal, como aponta

PORTILHO (2009), o consumo é relacional e os bens selecionados/consumidos são

utilizados para caracterizar e distinguir um grupo dos demais.

Os valores, saberes e práticas culturais contam, na contemporaneidade, com

o formato de consumo autônomo e ativo. Para PORTILHO (2009 p.209), essa é

“uma forma de ação política que incorpora, de diferentes maneiras e diferentes

graus, preocupações e valores em prol do meio ambiente e da justiça social”. Assim,

a (re)construção desta receita vegana sem a é realizada por meio da seleção de

alimentos que estejam em consonância com o estilo de vida do grupo, sugerindo,

assim, uma espécie de hibridismo cultural, evidenciado na receita de almôndegas.

15 O resumo expandido apresentado no XXIV Congresso de Iniciação Científica da Universidade Federal de Pelotas, está disponível nos anais do evento e pode ser acessado no link: http://cti.ufpel.edu.br/siepe/arquivos/2015/CH_03869.pdf

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

41

Esta é uma perspectiva que pode ser evidenciada com frequência na análise

das amostras desta pesquisa. A seleção dos elementos para a constituição das

receitas veganas estão associadas ao esforço de substituição e adaptação de três

derivados de origem animais: carnes, leite e ovos. A adaptação da receita de

lasanha vegana está em torno da substituição do presunto e do queijo derivados

produzidos, respectivamente, a partir da carne e do leite animal. Assim, no que se

refere à análise da receita de lasanha vegana, será abordado o seguinte relato:

Antes de ser vegano a comida que eu mais gostava era lasanha de presunto e queijo. Na realidade era o prato que eu mais gostava que minha mãe fizesse. Depois, quando virei vegano, ela adaptou para lasanha de espinafre. É uma delícia. É uma adaptação da lasanha de presunto e queijo [...] Mas eu quando faço é lasanha vegana com molho e queijo. (Lucas)

Receita 02: Lasanha vegana

Ingredientes:

- Massa para lasanha sem ovos

- Molho de tomate, cebola e pimentão

- Queijo vegetal

Modo de preparo:

- Cortar o tomate a cebola e o pimentão

- Fazer o molho

- Montar e colocar no forno

Percebe-se, por meio da transcrição, que a lasanha vegana à base de

espinafre e/ou queijo e molho compõe escolhas alimentares ajustadas a uma

ideologia. Os significados simbólicos (Douglas; Isherwood, 2004) das escolhas dos

ingredientes da lasanha vegana diferem dos elementos utilizados para fazer o prato

em família. Pois, o interlocutor admite: “quando eu vou almoçar com a minha mãe e

ela faz lasanha de presunto e queijo, sempre faz lasanha de espinafre pra mim”.

Nesta perspectiva, o preparo da comida, bem como o ato de comer, pode ser

compreendido como um ritual que exterioriza sentidos e significados, na medida em

que, segundo Douglas e Isherwood (2004, p. 112), “os rituais servem para conter as

flutuações dos significados, [...] são convenções que constituem definições públicas

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

42

visíveis”. Os autores entendem ainda, a comida como uma forma de revelar os

valores, e quanto maior a diversidade de valores revelados, mais variedades de

comida serão necessárias. O alimento e a comida, ao serem selecionados,

compõem os elementos desse ritual em afluência com os significados simbólicos

do(s) grupo(s).

No caso do interlocutor, ao abolir o consumo de aninais e seus derivados, o

presunto é um ingrediente inconcebível no preparo da lasanha. E mesmo, o

espinafre da classificação de vegetais é dispensável quando a lasanha é preparada

pelo interlocutor. Porém, ao ser preparada pela mãe, a lasanha de espinafre “É uma

delícia”. Sob este aspecto, no preparo da comida (DAMATTA, 1987) estão presentes

as emoções e identidades sociais que traduzem os sistemas de valores do grupo.

Há um significado especial na lasanha de espinafre preparada pela mãe, o carinho e

o afeto envolvidos na substituição do ingrediente podem ser observados no seguinte

trecho da transcrição do interlocutor: “Antes de ser vegano, a comida que eu mais

gostava era lasanha de presunto e queijo”, prato elaborado e preparado pela mãe.

A receita da mãe e o preparo da lasanha de presunto e queijo na família do

interlocutor remetem à (AMON; MENASCHE, 2008) dimensão comunicativa da

comida, mais especificamente, à possibilidade de transmissão de saberes culinários

praticados e adaptados pela família. Sob este viés, Contreras (2005, p.140) salienta

que “cultura alimentar é o resultado de um longo processo de aprendizagem que se

inicia no momento do nascimento e se consolida no contexto familiar e social”.

A cultura alimentar se faz presente na (re)elaboração do prato. Assim, as

transformações e inovações com a inserção ou o (des)uso de elementos, (Contreras

e Gracia, 2004) afetam e (re)definem as características da cozinha. Neste sentido, a

cozinha do interlocutor transformou-se com a troca dos ingredientes de origem

animal pelos de origem vegetal. Neste processo pode ser considerada a construção

de uma identidade incorporada ao (Candau, 2011) aprendizado social do

interlocutor.

Assim, apesar de inserir novos elementos em seus hábitos alimentares, o

interlocutor está em conexão com as receitas e os pratos que constituem sua

memória alimentar em âmbito familiar. A ideologia e a concepção de vida do

interlocutor permitem relacionar e adaptar os ingredientes sem a necessidade que a

memória alimentar seja esquecida ou, em alguma medida, não possa ser (re)vivida a

partir do seu prato predileto.

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

43

Receita 03: Delícia de pastel de carne de jaca com massa caseira e

queijo vegano!16

Massa:

- 500 g de farinha de trigo

- 200 ml de água morna

- 1 colher de sopa de óleo

- 1 colher de sobremesa de sal

- Óleo para fritar

Preparo:

- Coloque a farinha e o óleo num recipiente e acrescente água morna e o sal.

- Mexa e coloque em superfície lisa e sove.

- Acrescente mais um pouquinho de água se for necessário.

- Deixe descansar por dez minutos.

- Cilindre ou abra pequenas porções da massa com o rolo, até ficar bem fina,

com uns 2 mm de espessura.

- Se for necessário, coloque um pouco de farinha na superfície.

- Corte no formato e tamanho desejado e coloque o recheio já frio.

- Feche os pasteis apertando com as mãos.

- Pressione o garfo nas barreiras.

- Frite jogando óleo por cima ou afundando.

Recheio:

Carne de jaca versão salgada da fruta

- É importante a jaca ser verde para o preparo do prato.

- Passe óleo nas mãos e na faca para não grudar.

16 Esta receita foi disponibilizada na página do grupo “Veganos Pelotas”, em dois momentos: o primeiro com os ingredientes e modo de preparo da massa com acesso em: 13 de fev. 2016, disponível em: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=994863803919069&set=gm.496325370547207&type=3&theater e o segundo com o link de acesso para o preparo da carne de jaca. Portanto, o recheio acima exposto é uma transcrição do vídeo “Como fazer "Carne" de Jaca (e Fricassê Vegano)” acessado em 13 de fev. 2016, disponível em: https://l.facebook.com/l.php?u=https%3A%2F%2Fwww.youtube.com%2Fwatch%3Fv%3DdpkFE06m22o&h=JAQGc6uxI

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

44

- Corte a jaca já lavada em pedaços menores, lavando-os para tirar um pouco

do leite.

- Coloque-os na panela de pressão cobrindo-os com água.

- Deixe cozinhando e quando a panela pegar pressão conte 15min e desligue.

- Escorra a água e espere esfriar para desfiar.

- Retire o miolo e a casca que são mais duros, as sementes também.

- Após, desfiada a carne de jaca já está pronta para ser temperada.

- Em uma panela com um fio de óleo refogue três dentes de alo picados e

meia cebola picada até dourar.

- Acrescente duas xícaras de carne de jaca.

- Tempere com meio limão e outros temperos a gosto, como por exemplo,

cominho e orégano.

“A carne de Jaca não tem gosto próprio, ela tem mais uma textura, que

parece um pouquinho com o frango, ela vai pegar o tempero que você der”.

Na receita exposta percebe-se que a massa do pastel é preparada em casa.

Os elementos utilizados na massa não têm origem animal e a massa poderia servir

de suporte para diversos recheios. O recheio é peculiar: a versão salgada de uma

fruta, a jaca.

Nesta perspectiva, nota-se que a cultura (Garine, 1987) define que a jaca é

comestível, pois é uma fruta originária da Índia. O infrequente consumo da exótica

jaca na região sul do Brasil, desperta os seguintes questionamentos em comentários

distintos na postagem: “Onde se encontra jaca por aqui?” “Dá pra assar? ” O

interesse pela aquisição e forma de preparo emerge pelo consumo inabitual da jaca

em Pelotas.

No entanto, o consumo de jaca no sul do país demonstra uma

complexificação (Maciel, 2001) que representam as cozinhas e os hábitos

alimentares de um grupo. Pois, as cozinhas possibilitam a composição de um prato

de maneira diversificada no que se refere à combinação e preparação do alimento

em comida. E neste caso, a jaca enquanto fruta, passa a ser carne. Por meio do

processo de preparo: corte, seleção/exclusão das partes da fruta, cozimento e

combinação de temperos o alimento é (re)significado. Nesta perspectiva, a jaca pode

ser transformada com diferentes combinações e temperos, pois, conforme o relato

da apresentadora do vídeo “a carne de Jaca não tem gosto próprio, ela tem mais

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

45

uma textura, que parece um pouquinho com o frango, ela vai pegar o tempero que

você der”.

Assim, os elementos inseridos no preparo da carne de jaca são determinados

de acordo com os hábitos alimentares e os valores simbólicos. Neste caso, por ser

uma carne de jaca vegana, não há entre os temperos, elementos de origem animal.

Pois, as práticas alimentares veganas estão em consonância com a ideologia e o

estilo de vida do grupo. Portanto, representam os hábitos alimentares

contemporâneos (Barbosa, 2007) centrados em posturas éticas e morais em torno

dos animais. Desta forma, os hábitos alimentares veganos apontam para um formato

de consumo politizado (Portilho, 2009) caracterizado, entre outros aspectos, pela

valorização do meio ambiente.

Os valores engendrados nas escolhas dos ingredientes e no preparo do

pastel de carne de jaca, (re)afirmam-se no seguinte comentário: “Que delícia! ”.

Expressão que permite compreender os significados simbólicos (Douglas e

Isherwood 2004) que envolvem o consumo alimentar vegano. O pastel de jaca é

delicioso porque está em harmonia com o estilo de consumo que respeita a vida dos

animais.

Outro aspecto relevante é a constituição da receita nas nuvens, ou seja, no

ambiente virtual. A receita do pastel de carne de jaca, a receita é partilhada por uma

postagem escrita da massa e uma fotografia do pastel. Porém, por meio da interação

com os demais membros da página solicitando a receita, houve a inserção de um

vídeo com o preparo da carne de jaca. Entretanto, o vídeo era sobre a receita de um

Fricassê de carne de jaca. Os membros não questionaram, pois entenderam que

para o pastel deveriam utilizar apenas o início da receita. A receita virtual tem uma

dimensão comunicativa e interativa características da cibercultura (Lévy, 1999), que

corrobora para o processo de troca de saberes culinários ocorrer de forma mais

fluida.

Nas receitas veganas trazidas como exemplo, pode-se notar características

de um consumo politizado, aspecto que reverbera em receitas adaptadas e

construídas com embasamento nos valores ideológicos e simbólicos do grupo. A

cooperação, compartilhamento e socialização dos hábitos alimentares e de consumo

é pautada pelo respeito aos animais, estimulando a re(construção) de determinadas

receitas familiares, eliminando delas os ingredientes originários de animais.

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

46

Neste contexto, a almôndega de abobrinha e a lasanha vegana são

adaptadas à forma de vida de um grupo que (re)inventa as formas de consumo, os

hábitos alimentares e as cozinhas veganas. A jaca fruta exótica e a proteína de soja,

que por outros grupos não são consideradas comida, são elevados ao status de

comida por substitutos do que é considerado comida. Na substituição, adaptação e

no processo de sua transformação em comida vegana, os alimentos são

reclassificados.

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

5 A CEREJA DO BOLO: CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente Trabalho de Conclusão de Curso propôs entender a constituição

dos saberes culinários veganos em um contexto em que os hábitos alimentares e o

consumo têm se expandido. Para tanto, como aporte interpretativo, realizou-se, a

etnografia nas modalidades online e off-line, com a análise de algumas receitas

veganas.

Assim, embora os hábitos alimentares veganos sejam caracterizados pela

seleção e escolha de alimentos que não contêm derivados animais e pelo consumo

pautado na ética, as receitas veganas estão calcadas no aprendizado social e nas

culturas alimentares dos grupos onívoros.

A compreensão desse fato pode ser evidenciada pela nomenclatura atribuída

às receitas veganas, a exemplo do “Pastel de carne de jaca”, “Feijão vegano”,

“Lasanha vegana”, entre outras. Entretanto, esse aspecto pode ser percebido como

um processo de práticas alimentares sem origem animal, pois, os interlocutores

desta pesquisa assumem que hábitos alimentares vegetarianos antecedem o

veganismo.

Nesta perspectiva, percebe-se que com o decorrer do tempo a necessidade

de associação com a carne nos hábitos alimentares veganos diminui. A “carne de

soja”, a “linguiça vegetal” e o “presunto vegano”, entre outros, seriam itens presentes

na transição entre onívoros e veganos.

Apesar disso, entende-se, que alguns veganos permanecem veganos por

terem essas possibilidades de comida associadas, em suas concepções, à carne de

origem animal. Porém, torna-se evidente que a combinação de ingredientes para a

elaboração de comidas que lembram a carne não é problema, uma vez que diminui

o consumo de carne de origem animal e fortalece o objetivo principal do ativismo

vegano: garantir aos animais o direito à vida.

Portanto, no grupo vegano, a soja é temperada e preparada até virar comida.

A jaca, fruta com característica doce, pode ser salgada. Ou seja, esses alimentos

transformados em comida, são ressignificados simbolicamente, representando e

constituindo a identidade do grupo vegano.

Ainda, no que se refere à constituição das receitas, percebe-se que há um

saber culinário adaptado à concepção de vida vegana. E nesse sentido, a

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

48

virtualização das receitas veganas possibilita a combinação de elementos e a troca

de saberes culinários. A interatividade entre os veganos proporcionada pela

cibercultura potencializa as práticas alimentares sem ingredientes de origem animal.

As imagens que acompanham as receitas incentivam o preparo dos pratos.

Compartilhar a fotografia de uma receita é tornar público o que se come, é pensar na

aparência do prato e ter orgulho do preparado daquela comida, contrapondo-se a

um estigma que remete a comida ruim. É, portanto, uma maneira de desconstruir a

ideia comumente disseminada de que o vegano só come alface, ou ainda, que se

alimenta mal pela não ingestão de carnes ou derivados destas.

Assim, a construção das receitas veganas é colaborativa, mas as cozinhas e

os temperos são distintos. Esses estão de acordo com a memória coletiva e

individual que compõem o aprendizado social e a cultura alimentar de cada vegano.

Dentro desse panorama, entende-se que o compartilhamento das fotografias

dos pratos, as constituições das receitas veganas nas dimensões online e off-line,

exteriorizam os significados simbólicos do grupo. Portanto, é também por meio das

receitas que o grupo vegano estabelece sua identidade. As receitas veganas são

uma forma de ativismo e abolição ao consumo dos animais.

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

REFERÊNCIAS

AMARAL, A. Netnografia como aporte metodológico da pesquisa em comunicação digital. Sessões do Imaginário, Porto Alegre, v. 13, n. 20, p. 34-40, 2008. AMON, D.; MENASCHE, R. Comida como narrativa da memória social. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 11, n. 1, p. 13-21, 2008. ARISTÓTELES. A política. 15. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1988. BARBOSA, L. Feijão com arroz e arroz com feijão: o Brasil no prato dos brasileiros. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 13, n. 28, p. 87-116, 2007. CANDAU, J. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011. CONTRERAS H., J.; GRACIA A., Mabel. Alimentación, "cocina" e identidad cultural. In: Alimentación y cultura: perspectivas antropológicas. Barcelona: Ariel, 2004. CONTRERAS H., J. Patrimônio e globalização: o caso das culturas alimentares. In: CANESQUI, Ana Maria; GARCIA, Rosa Wanda Diez (Org.). Antropologia e Nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2005. DA MATTA, R. Sobre o simbolismo da comida no Brasil. O Correio da Unesco, Rio de Janeiro, v. 15, n. 7, p. 22-23, 1987. DOUGLAS, M. As abominações do Levítico. In: Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976. DOUGLAS, M.; ISHERWOOD, B. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2004. FLANDRIN, J.L.; MONTANARI, M; História da alimentação. São Paulo: Ed.: Estação Liberdade, 1998. GARINE, I. Alimentação, culturas e sociedades. O Correio da Unesco, Rio de Janeiro, v. 15, n. 7, p. 4-7, 1987. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

50

GEERTZ, C. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 2006. GOMES, L.G.F.F. As representações do "eu na vida virtual": o incrível mundo dos fotologs, avatares, banners, pps e outras formas de manipulação, fruição e veiculação da imagem no mundo virtual. 25ª Reunião Brasileira de Antropologia. Acesso em: 08 fev. 2016. Disponível em: http: / /www.porta l .abant.org.br /index.php/2013 -04-20-13-57-45/2013-04-20-13-57-11

KOZINETS, R. V. On netnography: initial reflections on consumer research investigations of cyberculture. In: ALBA, J; HUTCHINSON, W. Advances in, Provo-UT: Association for Consumer Research, 1998. LEAKEY, R. A origem da espécie humana. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1995. LEITÃO, D.K.; GOMES, L.G.F.F. Estar e não estar lá, eis a questão: pesquisa etnográfica no Second Life. Revista Cronos, Natal, v. 12, p. 23-38, 2013. Acesso em: 06 fev. 2016. Disponível em: http://www.periodicos.ufrn.br/cronos/issue/view/224 LEROI-GOURHAN, A. Os símbolos da sociedade. In: O gesto e a palavra, memórias e ritmos. Rio de Janeiro: Ed. 70, 1990. LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999. MACIEL, M. E. Cultura e alimentação ou o que tem a ver os macaquinhos de Koshima com Brillat-Savarin? Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 145-156, 2001. MALINOWSKI, B. Introdução: Tema, método e objetivo desta pesquisa. In: Os Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato de empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné, Melanésia. São Paulo: Abril Cultural, 1997. MENASCHE, Renata. Campo e cidade, comida e imaginário: percepções do rural à mesa. Ruris, Campinas, v. 3, n. 2, p. 195-218, 2010.

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

51

MENASCHE, R.; ALVAREZ, M.; COLLAÇO, J. Alimentação e cultura em suas múltiplas dimensões. In: ________ (Org.). Dimensões socioculturais da alimentação. Diálogos latino-americanos. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2012. MILLER, D. e SLATER, D. Etnografia On e Off-line: cibercafés em Trinidad. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, n. 21, p. 41-65, 2004. MINTZ, S. W. Comida e antropologia: uma breve revisão. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 16, n. 47, p.31-41, 2001. PORTILHO, F. Novos atores no mercado: movimentos sociais econômicos e consumidores politizados. Política e Sociedade, Santa Catarina, v. 8, n. 15, p. 199-224, 2009. ROCHA, E. Os bens como cultura: Mary Douglas e a Antropologia do Consumo. In: DOUGLAS, M.; ISHERWOOD, B. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2004. ROCHA, E. Totem e consumo: um estudo antropológico de anúncios publicitários. Revista Alceu, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 18-37, 2000. SANTANA, H.J. O vegetarianismo como ação política. Revista Evocati, Aracaju, n.12, 2006. SINGER, P. Libertação animal. São Paulo: Lugano, 2004. THOMAS, K. O homem e o mundo natural. São Paulo: Ed. Companhia de Letras, 1996.

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

ANEXO

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Instituto de Ciências … · O caderninho de receitas está nas nuvens: um estudo on e off-line sobre práticas alimentares veganas Trabalho de Conclusão

53

Anexo A

Figura 01. Receita: espaguete com proteína. https://www.facebook.com/groups/opcaoveganapelotas/?fref=ts

Figura 02. Receita: ensopado de legumes https://www.facebook.com/photo.php?fbid=271952833159206&set=gm.543304929182584&type=3&theater

Figura 03. Receita: pastel de refogadinho de berinjela. https://www.facebook.com/groups/opcaoveganapelotas/?fref=ts

Figura 04. Receita: almondegas de grão de bico https://www.facebook.com/photo.php?fbid=261764927511330&set=gm.535964823249928&type=3&theater

Figura 05. Receita: bolinho de abobrinha https://www.facebook.com/photo.php?fbid=264991750521981&set=gm.538174423028968&type=3&theater

Figura 06. Receita: panqueca. https://www.facebook.com/photo.php?fbid=262270480794108&set=gm.536287999884277&type=3&theater

Figura 07. Receita: arroz com proteína de soja e legumes https://www.facebook.com/photo.php?fbid=263333300687826&set=gm.536870186492725&type=3&theater

Figura 08. Receita: hambúrguer de grão de bico https://www.facebook.com/photo.php?fbid=261247614229728&set=p.261247614229728&type=3&theater