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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA
Joo e Maria de Barro - Quem So?
As Loiceiras do Tope, em Viosa do Cear.
Danielle Michelle Moura de Arajo
Recife
MARO
2006
2
Danielle Michelle Moura de Arajo
Joo e Maria de Barro - Quem So?
As Loiceiras do Tope, em Viosa do Cear.
Dissertao apresentada a Banca do Programa de Ps
Graduao em Antropologia da Universidade Federal de
Pernambuco, como parte dos requisitos para obteno
do ttulo de Mestre em Antropologia.
Orientadora: Prof. Dr. Roberta Campos
MARO
2006
3
4
A minha me e minha av, artess da vida,
escultoras de um cotidiano de
calma e simplicidade.
Dedico!
5
AGRADECIMENTOS
Meu agradecimento Fundao Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Cientifico e
Tecnolgico.
Alade, Priscila, Raimunda Moura, Iraci, Amiga Elis, Anne Paula, Ester, Roberta Campos, Cida
Nogueira Adjair Alves, Karla Melanias, Claudia Torres, Tios e Tias, Regina, Aluzio Medeiros,
Luciana Lira, Colegas do Mestrado, Coordenadores, Aline, Eliane Fera, Dona Naninha,
Teresinha Alves, Vilanir, Margarida Lopes, Renato, Sulamita, Kally Karine, Andreza Pavan,
Vitorie dlascou, Ademilda, Oswald Barroso, Madiana Valria, Eliete, Penlope, Ninpha,
Bethoweem, Rosilene Alvim, Carla Cristina, ris Verena, Renata, Elenir, Lara Jssica, Central
de Artesanato do Cear , Museu da Imagem e do Som, ....
Muito Obrigada!
Meus aplausos aos artesos do Tope; a admirao que minhas mos expressam um pequeno
smbolo do quero dizer.
Aos que me feriram, ofereo flores, aos que cuidaram das feridas, sorrisos.
Danielle Arajo
6
RESUMO
Muitos estudos sobre artesanato contemplam a importncia econmica das produes artesanais. De fato inegvel o potencial econmico que esta atividade desempenha na vida de muitas pessoas, mas a atividade artesanal no pode ser compreendida apenas por esta ptica. A nsia pelo aumento na comercializao do artesanato faz com que rgos pblicos e ou privados intervenham em ncleos artesanais, incentivando a feitura de novos modelos. Neste trabalhoprocurou-se investigar quais as mudanas sociais e simblicas ocorridas na localidade do Tope, apartir da implantao de um galpo de artesanato. O Tope, em Viosa do Cear, um antigo ncleo artesanal, conhecido na regio pela produo de loua de barro. H aproximadamente oitoanos, o Tope recebeu a implantao de um galpo de artesanato. Nesse local, as artess recebemcursos e oficinas sob a orientao da Central de Artesanato do Cear, um dos principais rgos responsveis pela poltica voltada ao setor no Estado. Por meio de uma metodologia pautada na observao participante, entrevistas semi-estruturadas, fotografias e filmagens, foram visitados tcnicos que participaram direta ou indiretamente da instalao do galpo, bem como as artess que trabalham no lugar, e as que no tem relao como galpo e praticam o ofcio em casa. Dentre os resultados, observa-se ntida mudana das formas e modelos dos objetos produzidos no galpo, se comparados ao que era produzido h tempos atrs, e ao que ainda feito por artess que trabalham em casa. O galpo, entretanto, no o nico responsvel pelas mudanas, pois as transformaes e a introduo de novos modelos sempre estiveram presentes na comunidade. Apesar da existncia do galpo, persiste a dificuldade das artess em comercializar seus produtos para outros segmentos que no a Central de Artesanato do Cear. Em suma, observo que se faz necessria uma poltica que conceba o artesanato para alm dos seus fins comerciais, levando em considerao suas instncias culturais e o contexto de vida das artess.
PALAVRA-CHAVE: Artesanato, Mudana, Interveno.
7
ABSTRACT
Many studies about craftwork talk about the economic importance of craftwork productions.In fact we cant refuse the performance of the economic power of this activity in peoples life. But, the craftwork activity cant be understood just by this perspective.The eagerness of the craftwork trade increase made the public or private organization make an intervention. In this work we tried to make an investigation about the social symbolic changes occurred in Tope Town when a craftwork shed was implanted.The Tope, in Viosa Cear is an old craftwork center well-know in the region by the production of crockery clay. Nearly, eight years ago, Tope received the implantation of a craftwork shed. In this place the craftworkers do workshops and courses oriented by Cear Central Craftwork one of the principals institutions responsible for the politic in State. The methodology used in a participant observation, interviews semi structured, photos and filming were visited by techniques that participant directed or indirectly in an installation of the shed, the craftwork that work in the place and the ones that dont work there, work in house. In the results we can see clearly changes in shapes and models made in the shed, if we compare the works made many years ago and the works made by craftworkers in house. The existence of the shed persists although the difficulties in commercial trade of the product to other segments that isnt the Cear Central Craftwork.So, observe that its necessary having a politic of making the craftwork more than commercial trade, watching the cultural differences and the context of the craftworkers life.
KEY WORDS: craftwork, Variety, Intervention.
8
SUMRIO
1. INTRODUO: UM ARTESANATO INTELECTUAL ............................ p.09
2. NO PRNCIPIO ERA O BARRO.................................................................... p.25
2.1 Artesanato, Artesanatos................................................................................... p.28
2.2 A Central de Artesanato do Cear (CEART)................................................... p.36
2.2.1 A Lgica Utilitarista..................................................................................... p.38
2.2.2 O slogan CEART......................................................................................... p.44
3. A CIDADE DE VIOSA DO CEAR............................................................ p.51
3.1 O Tope.............................................................................................................. p.54
3.2 Com as Mos na Massa; o Cotidiano do Fazer nas Residncias...................... p.58
3.3 A Tcnica de Fazer........................................................................................... p.65
3.4 A pea crua e a Queimana.............................................................................. p.68
3.5 A Tcnica da Queimana.................................................................................. p.73
4. CAMINHOS DA INTERVENO.................................................................. p.76
4.1 O Galpo........................................................................................................... p.81
4.2 O Retorno ao Trabalho em Casa....................................................................... p.91
4.3 Entre Potes e Suplcios...................................................................................... p.93
4.4 As Bonecas de Fransquinha.............................................................................. p.97
5. CONSIDERAES FINAIS: Quebrando o pote........................................... p.101
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.............................................................. p.109
9
1 INTRODUO
Artesanato Intelectual
A matria-prima foi o campo que estava apto a ser modelado, esculpido, mas at a
obteno do produto final, havia um longo percurso. Como no artesanato de barro ou ainda na
feitura da loia, como muitas loiceiras denominam, o trabalho foi lento e paciente, mas, at o fim
da pea, sempre possvel fazer algo a mais. Isto me faz lembrar uma frase de Valery (Apud
GEERTZ, 1997): No se termina trabalhos, eles so abandonados, no entanto, at a deciso do
ponto em que o trabalho seria deixado, um comprido caminho foi percorrido e sobre mincias
do fazer - como a massa que constitui esse trabalho foi selecionada, peneirada, modelada, para
enfim ser apresentada aos apreciadores da arte que pretendo discorrer agora.
Utilizo a metfora do trabalho com barro para falar da minha trajetria de pesquisa, por
encontrar elementos de semelhana que me fazem pensar em um artesanato intelectual, em que os
atos de ouvir e escrever foram uma constante.
Meu interesse no campo de estudos do artesanato cearense ocorreu ainda no perodo da
graduao em Terapia Ocupacional. Naquele momento, estudava e questionava o pouco uso das
atividades artesanais tradicionais como teraputica. Minha proposta central consistia em
pesquisar e compreender a produo do artesanato como uma expresso de sade. Nas minhas
pesquisas voluntrias em centros de artesanatos e feiras de Fortaleza, observei que a feitura do
artesanato demandava da pessoa que executava a atividade uma srie de propriedades motoras,
cognitivas, psquicas, sociais, dentre outras. Destas pesquisas, resultou uma monografia de final
de curso, onde propus maior aproximao e estudo da Terapia Ocupacional com o artesanato.
10
Neste mesmo perodo, pleiteei um estgio1 no MIS-CE (Museu da Imagem e do Som do
Cear), envolvendo-me em pesquisas relacionadas cultura cearense e as suas manifestaes. No
perodo do estgio, realizei diversas viagens pelo interior do Cear, tendo a oportunidade de
conhecer o cotidiano de localidades, cuja principal atividade era a produo de artesanato. Das
atividades pesquisadas, o trabalho com barro despertava meu interesse, de modo especial, pela
plasticidade e variedade de objetos produzidos. As peas variavam em um mesmo lugar e de um
lugar para o outro, expressando constante tenso entre permanncia e mudana. Isso aqui
artesanato todo manual no tem nada de mquina no, mas a gente tem que fazer coisas
diferentes se no o povo enjoa. (Artes Maria, 67 anos).
O contato com as comunidades propiciou o envolvimento com outras vertentes de
estudos, despertando meu interesse para a compreenso das problemticas levantadas pelas
pessoas das comunidades. Durante o estgio no MIS, observando de forma acurada as entrevistas
das artess, uma vez que o feitio realizado em grande parte por mulheres, percebi que estava em
contato com outra realidade.
Nesse contexto, poucas artess faziam referncia teraputica do barro. Os comentrios a
esse respeito vinham de pessoas de fora da comunidade. Um fato curioso aconteceu em uma
entrevista na residncia de uma das artess: Me, tem um homem pedindo barro eu perguntei
para que era que ele queria, ele disse que para mulher dele, ela usa para estrias, existe essa
doena chamada estrias? Eu no sei, s sei que eu no tenho, quem tem a mulher dele. (Artes,
Maria 64 anos).
Esse relato, que tem um certo tom hilariante, j comeava a apontar para a variedade de
sentidos contidos em uma mesma prtica. O que para alguns visto como teraputica para outros
1 Iniciei o estgio no MIS em 1999.
11
apenas trabalho; em um outro contexto, talvez arte. Para esta discusso, considero pertinentes as
colocaes de Clifford Geertz:
E esta incorporao, este processo de atribuir aos objetos de arte um significado cultural, sempre um processo local; o que arte na China ou no Isl em seus perodos clssicos, ou o que arte no sudeste Pueblo ou nas montanhas da Nova Guin, no certamente a mesma coisa, mesmo que as qualidades intrnsecas que transformam a fora emocional em coisas concretas (e no tenho a menor inteno de negar a existncia destas qualidades) possam ser universais. (1997:146).
Esse autor aponta para a diversidade de sentidos que podem coexistir em uma mesma
atividade. No caso do artesanato, comum ouvir de muitas artess a expresso arte, embora o uso
do termo tenha um sentido particular, como observa Sylvia Porto Alegre, (1994:33) O termo
arte usado na linguagem popular, com uma referncia conceitual semelhante aos termos oficio,
atividade produtiva.
medida que fui ampliando meu contato com os ncleos artesanais, questes e dvidas
se multiplicaram. O despertar para esses questionamentos e as estranhezas em relao ao campo
me fizeram recorrer a autores da Antropologia neles encontrando reverberaes.
Como assinala Geertz, (Op. cit. p.11) a antropologia sempre teve um sentido muito
aguado de que aquilo que se v depende do lugar em que foi visto, e das outras coisas que foram
vistas ao mesmo tempo. Em Velho, (2000:8), a Antropologia tem a pretenso de captar pontos
de vistas singulares, de tentar entender como, em diferentes situaes sociais e culturais, seres
humanos vivenciam e percebem sua existncia e como expressam essa vivncia e essa viso
As indagaes preliminares foram gradativamente me direcionando para a Antropologia,
apesar de que j vislumbrava as dificuldades do caminho, em virtude da falta de curso de ps-
graduao em Fortaleza, o que me levaria a buscar a continuidade dos estudos em outro Estado. E
foi no sentindo de tentar compreender como artesos e artess concebem e compreendem suas
prticas que aconteceu minha aproximao com a Antropologia.
12
Outro ponto me chamou a ateno na atividade com barro foi a transmisso dos saberes
em comunidades artesanais2. Este tema foi parcialmente desenvolvido em um curso de
especializao em Arte e Educao.
Dentre as comunidades visitadas como pesquisadora do MIS, estava o Tope, situado a 5
km do Municpio de Viosa do Cear, localizada na serra da Ibiapaba, regio norte do Estado.
Conhecida pelo seu patrimnio histrico, a cidade se destaca pela sua longevidade histrica e
pela produo de cachaas, licores e pela loias do Tope. Recentemente Viosa teve grande parte
dos prdios tombados pelo IPHAN.
Meu primeiro contato com a localidade aconteceu no ano 2000, em uma das pesquisas
pelo MIS. A princpio, observei uma comunidade pobre, onde grande parte dos moradores,
principalmente as mulheres, trabalhava com o barro. A falta de conhecimento sobre a
comunidade fez com que eu necessitasse de um guia turstico, que me levou at a comunidade,
apresentando-me a algumas artess, dentre elas a presidente da Associao dos Moradores, uma
senhora de aproximadamente 60 anos, conhecida como dona Fransquinha. Esta senhora
inicialmente me conduziu at um lugar pelos moradores denominado galpo.
O galpo havia sido implantado h trs anos e, desde sua implantao, segundo dona
Fransquinha, estava trazendo grandes benefcios comunidade. As melhorias operadas a partir do
galpo para as que atuavam no lugar era a produo de novos modelos e conseqentemente uma
maior comercializao. No galpo, o principal comprador era a Central de Artesanato do Cear,
rgo tambm responsvel pela estruturao do lugar. Paralelamente ao trabalho das artess do
galpo, havia uma produo domstica em vrias residncias da comunidade. As artess que
trabalhavam em casa, por motivos no muito claros, persistiam em produzir os mesmo objetos,
2 No trabalho final para o titulo de Especialista, produzi uma monografia cujo titulo : Tramas da Arte ou Tramas da Vida: O Artesanato de cip na comunidade em Guaramiranga-CE
13
rejeitando a proposta do galpo, apesar dos supostos benefcios oferecidos por este. A partir
deste, encontro passei a formular algumas indagaes3 sobre a interveno no artesanato do Tope.
Como aconteciam as intervenes? Quais as vantagens e desvantagens?
Outro encontro ocorreu em julho de 2004, com o objetivo de coletar maiores informaes
sobre a comunidade para finalizar o projeto de pesquisa do mestrado. Nesta visita, observei que
poucas mudanas aconteceram na comunidade, no que se refere construo de casas, estradas
ou qualquer outro tipo de edificao que modifique drasticamente a aparncia fsica do lugar. No
galpo, algumas artess persistem na produo de novos modelos, enquanto outras rejeitam o
lugar, realizando atividade com barro em casa. Dona Fransquinha, agora ex-presidente da
Associao de Moradores, no faz mais potes ou panelas, mas bonecas de barro.
Partindo dessas consideraes, observei a coexistncia de duas realidades, no Tope, que se
fundem em momentos da vida cotidiana e se distinguem nos momentos da produo. A
interferncia do galpo trazendo novos modelos e formas s artess no modifica apenas o
produto, isto , o artesanato, mas toda uma trama de relaes sociais e simblicas presentes da
concepo comercializao da pea.
Segundo Ayala e Ayala (1987:18), muitos estudos sobre cultura popular tiveram como
campo de pesquisa o meio rural para os autores: O meio rural considerado o local privilegiado
do folclore, desde os primeiros estudos, devido suposio de que o homem do campo seria mais
conservador, tradicional, ingnuo, rude inculto, atributos tidos por muitos como caracterizador
do folclore.
Partindo destas consideraes, minha escolha pelo Tope como campo de pesquisa no
ocorreu por se tratar de um ncleo situado no interior, mas por apresentar uma situao intrigante,
3 Durante a viagem de retorno a Fortaleza, fui discutindo sobre a interferncia do galpo. Alguns pesquisadores viam no galpo um espao que estava massificando a produo do artesanato, enquanto outros acreditavam na importncia da mudana. Optei pela dvida.
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ocasionada pela presena do galpo. A construo deste lugar, alm de acelerar mudanas nas
formas e modelos do artesanato, criou uma diviso no interior da comunidade. A partir do galpo,
passa a existir o artesanato do galpo e o das residncias. Antes de qualquer idia de aprovao
ou reprovao do citado lugar, ficou a indagao de como a comunidade recebe e percebe as
mudanas provocadas no artesanato. Em que nvel ocorrem as intervenes? Como a comunidade
elabora simbolicamente as mudanas? O que facilmente absorvido ou recusado? Por que
algumas artess se recusam a trabalhar no galpo, preferindo o trabalho em casa? Quais as
mudanas sociais e simblicas ocorridas na comunidade?
Guiada por essas perguntas, que considero centrais, procurei investigar como ocorre a
interferncia de rgos governamentais na comunidade do Tope e de que modo as artess reagem
s interferncias.
Ao longo das leituras e pesquisas sobre artesanato, percebi a existncia de vasta
bibliografia no campo da cultura popular, no entanto, poucos so os trabalhos sobre artesanato.
Os que existem normalmente o contemplam na sua importncia econmica. Com efeito, so
poucas as etnografias que relatam o contexto sociocultural em que essas atividades esto
envolvidas, apresentando assim sua importncia social e simblica.
Alguns estudos de base folclorista apontavam para a morte ou o desaparecimento do
artesanato, em razo de um incremento tecnolgico. De fato, observo que alguns objetos j no
so mais produzidos ou tiveram sua funo completamente modificada. A prtica artesanal e a
criao de modelos, entretanto, ainda uma realidade viva no cotidiano de muitas artess das
cidades e ou da zona rural.
Canclini (2000), na discusso sobre tradio e modernidade, diz que muitos estudos
revelam que nas ltimas dcadas as culturas tradicionais se desenvolveram nas transformaes. O
autor aponta quatro vertentes do crescimento das tradies populares. Uma a incapacidade da
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produo industrial em absorver toda a populao urbana, outra causa a necessidade do
mercado de incluir as estruturas e os bens simblicos tradicionais nos meios de comunicao,
como forma de atingir as camadas populares menos integradas modernidade. A terceira razo
o interesse dos sistemas polticos em fortalecer o folclore a fim de manter sua hegemonia. Por
ltimo, est a prpria continuidade da produo cultural por parte de seus agentes.
A discusso sobre mudanas e permanncias no campo das prticas culturais se mostra
um campo frtil de debates, onde os partidos se distinguem facilmente. Nestes debates, esto
presentes aqueles que so contrrios s mudanas, sob o jugo da morte das manifestaes
culturais; a outra ala compreende as mudanas como algo natural e inerente aos processos
culturais. Mais do que defender ou atacar uma vertente ou qualquer outra, defendo a importncia
de compreender o contexto em que uma ou a outra realidade est imersa, como os agentes das
manifestaes percebem suas mudanas e permanncias e de que modo as transformaes
alteram suas prticas sociais e simblicas.
Neste estudo, fiz uso do mtodo etnogrfico, utilizando como tcnicas de pesquisa a
observao participante, dirio de campo, histrias de vidas, entrevistas4 semi-estruturada,
reportagens de jornais, imagens fotogrficas e filmagens sobre a vida e o cotidiano da
comunidade. Durante o perodo da pesquisa, elaborei um cronograma de atividades a serem
executadas no campo por um perodo de dois meses. Para isto, teria que alugar uma casa em
Viosa do Cear que poderia ser at mesmo a residncia de alguma das artess, no Tope. Os
contatos anteriores foram fundamentais, no s para elaborao do projeto de pesquisa e
conhecimento parcial da problemtica, como tambm para firmar alguns contatos importantes
para o desenlace da pesquisa.
4 Meu contato com as artess na comunidade aconteceu mais num clima de conversas semi-estruturada do que necessariamente entrevistas.As conversas fluam, chegando a durar horas. As artess respondiam muito mais do que o perguntado ou ento davam uma resposta bem diferente da proposta inicial.
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Antes de iniciar a coleta de dados no Tope, realizei uma pesquisa de trs dias na Central
de Artesanato do Cear, em Fortaleza. Como citei anteriormente, a CEART foi o rgo
responsvel pela implantao do galpo, sendo importante conhecer a viso dos tcnicos5 sobre a
interferncia no artesanato. importante salientar a gentileza deles no sentido de contribuir com
as informaes solicitadas. Os dados obtidos na CEART foram teis para compreender, pela
viso dos tcnicos, como estes e a instituio concebem suas prticas interventoras. Na CEART
tambm me foram doadas algumas imagens do incio da construo do galpo que exponho ao
longo do trabalho.
Apesar de ter estruturado um cronograma, no descartei, logicamente, o surgimento de
acasos que se impem ao planejado, desviando o rumo do percurso imaginado. As imprecises
do caminho tornaram-se elementos importantes na aproximao e compresso do campo. Em
decorrncia desses acasos, no consegui ficar no Tope os dois meses, de forma ininterrupta, como
havia planejado. Para a execuo da pesquisa, realizei duas visitas ao Tope, na primeira das quais
fiquei aproximadamente quinze dias e na segunda vinte. As interpretaes e mtodos utilizados
durante todo o tempo da pesquisa relatarei a seguir.
Em fevereiro de 2005, ainda seguindo o cronograma do projeto de pesquisa, iniciei minha
trajetria no Tope. Primeiramente, por telefone, fiz dois contatos um com a secretria de Cultura
do Municpio, no perodo, a senhora Margarida Lopes, para saber informaes adicionais sobre
os meios de acesso ao Tope e as possibilidades de apoio. O outro contato foi com uma amiga que
reside em um stio, aproximadamente a 5km do Tope, solicitando um apoio para hospedagem. Do
contato com a secretria de Cultura, consegui apoio de transporte at o Tope, uma vez que o
acesso comunidade difcil. Como em muitas outras localidades do interior, o Tope s dispe
5 O relato dos tcnicos da CEART ser identificado genericamente pela expresso tcnicos Optei por no revelar o nome para evitar qualquer tipo de problema ou discordncia sobre as informaes passadas.
17
de um nibus escolar que diariamente transporta crianas do Tope s escolas, que ficam em
Viosa. O nibus sai s 6h da manh e retorna as 12h, refazendo o percurso s 13h e 17h. Preferi
no ficar limitada aos horrios do nibus, embora ele tenha sido utilizado em alguns dias. Nos
encontros anteriores, quando conheci o Tope, e para a complementao do projeto de pesquisa,
contei com a presena dos pesquisadores do MIS, que sabendo das dificuldades de locomoo em
cidades do interior do Estado, sempre foram de carro.
Na minha primeira visita ao Tope, ento com o intuito de empreender numa pesquisa de
cunho antropolgico, contei com a presena de minha me, que aproveitou minha companhia
para conhecer uma das poucas cidades de clima frio no interior do Cear.
No Tope, meu reencontro com as artess foi muito agradvel. Algumas chegaram a
comentar que se haviam lembrado de mim, perguntando o porqu da minha ausncia por um
perodo, para elas, longo. Neste primeiro reencontro, dispensei o uso de gravadores, mquinas
fotogrficas ou qualquer espcie de objetos que de alguma forma viessem a inibir as artess. Uma
caneta e um caderno foram o bastante e, ainda assim, pouco utilizados. Malinowski, em seu
dirio de campo, j enfatizava a diferena entre um mergulho espordico na vida dos
entrevistados, chamados de nativos pelo pesquisador, e o contato efetivo com estes. Para o
etngrafo, significa que a sua vida na aldeia a princpio uma aventura estranha, s vezes
desagradvel, s vezes extremamente interessante, logo adquire um curso natural, em harmonia
com o ambiente. (Malinowski, 1953: 43).
18
Embora no concorde por completo com as colocaes de Malinowski, pois considero
pouco provvel essa harmonia com o ambiente, respeito a idia da importncia do contato com os
pesquisados, pois s assim possvel a leitura do contexto em que as pessoas esto imersas, o que
possibilita uma descrio densa. Como assinala Geertz:
Compreender a cultura como sistemas entrelaados de signos interpretativos (o que eu chamaria smbolos, ignorando as utilizaes provinciais) a cultura no um poder, algo ao qual podem ser atribudos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos as instituies ou os processos; ela um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligvel, isto , descrito com densidade. Geertz (1989:24).
Compreender esse sistema interpretativo no sentindo de empreender em uma pesquisa
antropolgica requer do pesquisador um senso aguado aos detalhes e sensibilidade para perceber
os limites e barreiras do campo.
No Tope, o primeiro lugar visitado foi o galpo. A opo por iniciar a pesquisa pelo
galpo veio da minha maior aproximao com as artess, alm de o lugar proporcionar o
encontro de duas ou mais artess, o que supostamente facilitaria o dilogo. A visita s residncias
demandava uma caminhada pela comunidade em busca de informantes, ou ento de uma pessoa
que me levasse at as casas.
No galpo procurei estabelecer um dilogo livre, o que foi muito difcil, pois em razo da
minha presena, elas ficavam grande parte do tempo caladas. Sinto claramente a inibio que a
minha presena causa no grupo. Um sorriso desconfiado ou ento uma resposta passada a colega
ao lado expressa essa inibio. (Dirio de campo, 10/02/05).
Os momentos de silncios foram importantes para observar, detalhadamente, a destreza daquelas
mulheres que possuem uma habilidade surpreendente, at mesmo por elas despercebida, tamanha
a naturalidade com que fazem o trabalho.
19
Nos dias subseqentes, fui gradativamente percebendo as dificuldades em me transportar
ao Tope. Como relatei anteriormente, a Secretaria de Cultura ofertou-me uma moto txi para ir ao
Tope. Neste perodo, por ficar hospedada no stio, matinalmente entre respingos de chuvas6 e
neblina, caminhava cerca de vinte cinco minutos para pegar a moto. A mudana de temperatura,
somada s caminhadas, deixou-me resfriada, o que prejudicou o andamento da pesquisa, uma vez
que no consegui passar os dias planejados ininterruptamente7. Este episdio, no entanto, fez com
que as artess demonstrassem certo cuidado comigo. Muitas comentavam que nesse perodo, por
causa da frieza, comum as pessoas ficarem resfriadas. Fizeram recomendaes de chs. Este
fato possibilitou maior aproximao e realizao de perguntas afirmativas do tipo Seu marido
deve ficar preocupado! A senhora casada? No ? A casa de dona Fransquinha por ficar
prximo ao galpo, tornou-se um lugar de apoio.
J nesses primeiros encontros sentindo a separao entre as pessoas que trabalham no
galpo e as das residncias, procurei sempre comentar que o meu trabalho estava relacionado
com a comunidade e no s com as artess que trabalham no galpo.
Os encontros com as artess do galpo aconteciam com grupos de trs ou quatro pessoas,
em horrios variados. Nessas ocasies, percebi que o fato de os dilogos acontecerem durante a
execuo da atividade as deixava menos tensas, fazendo com que estes em alguns momentos
flussem. Poucos foram, porm, os momentos de uma conversa grupal, pois a conversa
estabelecida com uma artes fazia com as outras ficassem caladas. Por outro lado, a falante, com
frases curtas ou evasivas, demonstrava um certo incmodo. Pensei em marcar uma conversa
grupal para discutir um assunto: a criao do galpo, por exemplo, mas, na percepo de que as
6 importante frisar que Viosa uma cidade serrana entre os meses de outubro a maro essas cidades ficam com temperatura amena. 7 Fiquei apenas quinze dias, tendo que retornar a Fortaleza.
20
artess esto envolvidas num cotidiano em que o tempo e os afazeres so preciosos, julguei
coerente no interferir no modo como organizam e distribuem seu tempo.
Desta forma, resolvi aproveitar os momentos em que as artess estavam a sozinhas no
galpo para estabelecer os dilogos que progressivamente se tornavam mais informais, logo
recheados de informaes que desaguavam em um novo dado, pequenas confisses, segredos
coletivos e interpessoais, alguns revelados e outros velados onde um signo gestual emitia a
mensagem. Isto era transmitido por intermdio pequenas expresses, como um sorriso, uma
negao com a cabea, a substituio de nomes: Ela l que sabe. Expresses aparentemente
desconexas que s se completavam com um gesto.
Esta primeira fase da pesquisa durou cerca de quinze dias. A variao climtica com
chuvas matutinas e o sol intenso tarde, conjugado ao meu resfriado, fizeram com que eu
freqentasse mais o galpo, apesar de no ter deixado de ir a algumas residncias. A presena de
minha me em uma das visitas ao Tope, tornou-se um elemento facilitador na relao com as
informantes, pois tornou a relao menos formal.
Em julho de 2005, retornei ao Tope para prosseguir na minha coleta de dados. Responder
a alguns questionamentos e compreender novos elementos que surgiram do encontro passado.
novamente Malinowski em seu dirio de campo que discorre sobre a importncia da formulao
de problemas em confronto ou complementao com a teoria.
Mas quanto maior o nmero de problemas ele trouxer consigo para o campo, quanto mais estiver habituado a formular suas teorias de acordo com os fatos e a verificar at que ponto os fatos podem contentar a teoria, tanto mais bem equipado estar para o trabalho. (1953).
Desta vez optei por ficar instalada numa pousada no centro urbano de Viosa, por
considerar este espao mais propcio reflexo do campo. A escolha de outro lugar que no a
comunidade veio da necessidade de refletir sobre o contedo coletado durante o dia, o que se
21
tornaria impossvel, caso estivesse muito prximo. O perodo noturno foi importante para rever as
imagens, fazendo suas identificaes - nomes, momentos e complementao do dirio de campo.
A solido no campo foi um aspecto marcante dessa minha viagem ao Tope. Os meios de
transportes se resumiram moto txi para ir ao Tope, caronas de retorno pousada em carros e
nibus da Prefeitura. Na comunidade, inmeras caminhadas para visitar as artess em suas
residncias.
interessante observar que pela manh acordo com uma grande disposio para ir comunidade e conversar com elas, mas ao final do dia uma espcie de angstia vai lentamente me tomando e sinto uma grande necessidade de sair do campo. Na pousadano encontro ningum para conversar sobre o assunto, isso me angustia bastante, entoaps os escritos, no resta nada a fazer do que dormir, durmo muito cedo e quase sempre estou muito cansada. Em alguns momentos que tenho a impresso que sou de barro. (Dirio de campo, 15/07/05).
Na visita anterior8 comunidade, encontrei poucas pessoas que fazem artesanato em suas
casas. Partindo desta constatao, apesar de continuar o contato e conversas com as artess que
trabalham no galpo, procurei ir ao encontro das pessoas nas suas residncias. As artess do
galpo me fizeram recomendaes das mulheres que ainda faziam loia em casa e de pessoas que
trabalhavam no galpo e saram. Apesar do sol intenso, saio em direo as artess da
comunidade. Ao passar em frente s casas, muitos potes, pedaos de peas quebradas, em
algumas casas, fumaas. So casas muito pobres, feitas de barro com acabamento incompleto.
(Dirio de campo 17/07/05).
O contato com as artess em suas casas acontecia numa atmosfera de
informalidade. Aps uma apresentao parcial do motivo da minha visita, iniciava a conversa
com algumas perguntas sobre a atividade. Durante as gravaes9, procurei no dar muita
formalidade quando estava gravando o que foi muito proveitoso. Quando comevamos a
8 Refiro-me ao encontro em fevereiro de 2005.9 No inicio das gravaes, sempre tomei o cuidado de informar s artess quando estaria ou no gravando.
22
conversar o gravador era acionado e tudo era gravado: a interferncia de outras pessoas e o som
ambiente, havendo momentos em que at eu esquecia do gravador.
Nos contatos seguintes, passei a observar que algumas artess sentiam uma espcie de
honra com a minha presena, convidando-me para almoos ou descansos. A falta de restaurantes
ou lanchonetes no Tope fez com que eu aceitasse os convites, apesar de ficar um pouco
constrangida por ter que adentrar essa intimidade familiar. Esses momentos foram valiosos para o
estabelecimento de um vnculo mais prximo, ocasies de informalidade e percepo da
dinmica cotidiana, quando as artess sempre me tratavam com gentileza.
O uso da fotografia digital foi importante tcnica de registro, sobressaindo-se, na
socializao com as crianas, pois o fato de ser digital, fazia com que eu pudesse dar um retorno
imediato s crianas. Os pais, por sua vez, gostavam de ver seus filhos fotografados,
estabelecendo uma relao amistosa, que possibilitou a minha insero por horas no cotidiano de
algumas famlias:
Foram aproximadamente quatro horas de fotografias com as crianas no quintal da casa, enquanto a me fazia a loia. Esta, logo no incio avisou que no queria ser fotografada. Aps as quatro horas de contato, uma das crianas traz um copo de ki-suco10 com um po dizendo: da prxima vez a senhora avisa quando vai vir, que a gente prepara algo melhor. Esta atitude deixou-me bastante emocionada, eu no esperava por isso. (Dirio de Campo 20/07/05).
Observo que na medida em que meu contato com as pessoas se torna amizade estas
passam a ter uma necessidade de dar algo em troca, uma vez que eu oferecia fotografias11. Isto
evidencia a reciprocidade no campo. necessrio enfatizar que este tipo de relao esteve mais
presente entre as artess que no tem relao com o galpo. Nas residncias, embora fosse mais
difcil ter acesso, levando em considerao em que a artes, muitas vezes tinha que interromper o
10 Suco artificial de morango ou de qualquer fruta. 11 Na fase final desse trabalho retornei ao Tope para entregar algumas fotos impressas.
23
que estava fazendo para me atender, houve maior receptividade. Isto aconteceu no s por
estarem em casa, mas pela carncia de pessoas que de alguma forma valorizassem o seu trabalho.
Entre um contato e outro, em momentos de vivncias e relembranas o p incrustado nas
palavras vai lentamente saindo e tornando inteligveis gestos e atitudes, favorecendo assim a
leituras de prticas sociais e simblicas que permeiam a convivncia das artess do barro.
Logicamente, para fins de delimitao da pesquisa, muito do que foi coletado no ser
plenamente exposto. Assumo, desde j, as lacunas que porventura existam no trabalho. Gratifica-
me saber da sua incompletude, pois isto alimenta a continuidade e a persistncia no caminho.
Para fins didticos optei por dividir a dissertao em cinco captulos, o primeiro dos quais
est a introduo, quando exponho a aproximao com o campo e a metodologia da pesquisa. No
segundo discorro acerca das concepes de tradio, a que vista no artesanato e a que adoto na
pesquisa. Reflito ainda, sobre a trajetria de algumas polticas que regem o artesanato e os
caminhos percorridos pela Central de Artesanato do Cear, principal responsvel pelos
programas de artesanato no Estado. possvel que faltem dados ou verses outras sobre a
histria de implantao da CEART. As informaes aqui apresentadas vieram de tcnicos que
vasculharam a memria no sentido de contribuir com o presente trabalho. No captulo seguinte,
fao breve descrio sobre a cidade de Viosa e a comunidade do Tope, apresentando um pouco
do cotidiano comunitrio e as particularidades da atividade com barro. No quarto captulo
procuro fazer um entrelaamento da atividade nas residncias com as do galpo, descrevendo sua
estruturao e problemticas internas, para trazer o remate da pesquisa no captulo cinco que so
as consideraes finais, ao que se segue a lista bibliogrfica.
24
Estrada do Tope
25
2 No princpio era o barro
Segundo a gnese bblica, o primeiro arteso foi Deus, que criou o cu e a terra e tudo o
que nela habita; do barro Deus criou o homem e as possibilidades do seu sustento. Da terra e na
terra o homem extrai e planta o sustento da vida, suga de suas entranhas as condies de
existncia, cria e inventa trabalhos e meios de expresso.
Difcil encontrar um registro em que se possa saber a origem do feitio das peas de
barro. Escavaes arqueolgicas indicam que, desde a Pr-Histria o homem j utilizava o barro
endurecido para a produo de objetos. A palavra cermica, do grego Kramos, significa terra
queimada. Muitos estudiosos confirmam que a arte da cermica a mais antiga das indstrias.
O feitio de artesanatos utilizando o barro como matria-prima encontrado em vrios
pases. De acordo com a historiografia, no Brasil, ao contrrio de outras formas de artesanato que
foram introduzidas com o colonizador portugus, a prtica da atividade utilizando o barro como
matria-prima j era conhecida dos indgenas que habitavam o territrio. O uso de tornos e meios
de estruturao para uma produo em larga escala, bem como a aprendizagem em oficinas e
escolas de artes e ofcios, foi uma decisiva interferncia portuguesa na produo do artesanato
indgena.
Muitos estados brasileiros mantm larga produo de objetos de barro, que variam na
composio dessa matria-prima para produzir objetos. Os estudos arqueolgicos da Ilha de
Maraj, na Amaznia, apresentam cermicas com indcios de maior antigidade.
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Na regio Nordeste, vrios estados produzem artesanatos de barro, alguns com maior
inclinao para o decorativo, outros para o utilitrio. H locais onde a produo se destaca pelo
seu carter artstico, como o Alto do Moura12 e Tracunham, em Pernambuco. As peas
produzidas variam em formas e tamanhos, expressando a vida cotidiana. H ainda peas com
forte ligao ao universo religioso.
No Cear a produo se encontra disseminada em todo o Estado. E os municpios que
apresentam uma produo relevante posso citar: Misso Velha, Juazeiro do Norte, Limoeiro do
Norte, Ipu, Beberibe, Caridade, Caucaia, Sobral e Viosa do Cear. Estes ncleos artesanais
apresentam distines entre si nos objetos que produzem, bem como nos tipos, de barro
utilizados. O barro, em alguns casos, obtido em rios ou diferentes locais. misturado a outros
barros para ter uma consistncia adequada para confeco da pea, sendo ainda possvel
encontrar localidades que fazem suas peas com um s barro.
A interferncia no artesanato e sua constante transformao, adquirindo novas formas e
modelos, sempre foram uma realidade. A mudana acontecia por uma vontade do arteso em
criar peas ou pelo processo da cpia. Havia ainda a encomenda feita por pessoas que residiam
distantes das comunidades. s vezes eu ia numa casa, ai eu via uma coisa de um jeito, botava na
cabea, e quando chegava em casa fazia do mesmo jeitim... s vezes vinha umas mulher da
cidade com umas fotos, umas revistas com umas coisinhas lindas, a eu tambm fazia. (Arteso
Ia, 84 anos).
Somado a essas pequenas formas de intervenes no artesanato est a interferncia de
rgos pblicos e privados que estruturam espaos para a realizao de cursos e oficinas
oferecidas aos artesos. Nestas intervenes est envolvida uma miscelnea de profissionais,
12 Embora Tracunham e o Alto do Moura no fizessem parte do meu objeto de pesquisa, esses locais foram visitados durante a realizao deste trabalho.
27
como arquitetos, decoradores, designers que buscam unir o dito tradicional ao contemporneo.
Estas intervenes so de origens pblicas e privadas. No que se refere a interveno pblica
importante salientar os programas governamentais que aliam a feitura do artesanato a uma idia
de identidade regional, estimulando a produo de modelos considerados arrojados, embora
tentam um discurso de preservao. Apesar de estarem cada vez em maior evidncia poucos so
os estudos que analisam estes programas e o impacto gerado por estes nas comunidades. As
intervenes modificam no apenas formas e modelos, mas todo uma trama social envolvida em
torno do artesanato. Neste trabalho, analiso a interferncia do galpo de artesanato de barro na
comunidade do Tope.
O galpo foi construdo em 1997 pela Central de Artesanato do Cear - CEART. No
sentido de compreender as formas de interveno e como as artess s percebem, julgo
importante abordar uma srie de pontos que as intervenes suscitam. A interferncia no
artesanato visa a produzir peas, aumentando a comercializao. Logo, a interveno na forma e
modelos dos produtos est relacionada venda dos produtos a um determinado pblico a que
intenta chegar, porm, anterior interveno est o conceito que os rgos interventores tm
sobre a categoria artesanato.
Nas sees seguintes discuto a respeito do termo artesanato, mostrando sua amplitude e a
falta de delimitao, que semelhante aos primeiros estudos de base folclrica que se
debruavam em registrar de modo generalista as manifestaes, sem levar em considerao o
contexto sociocultural em que elas aconteciam. Logo em seguida examino a concepo
tradicional de artesanato. Sigo com uma descrio sobre a criao da CEART, discutindo a lgica
tradicionalista expressa no slogan da instituio e a utilitarista, que concentram seus esforos na
venda de produtos tidos como novos, mas, ao mesmo tempo, tradicionais.
28
2.1 Artesanato, artesanatos
O termo artesanato abrange uma srie de atividades manuais que difere no uso da matria-
prima para produo da obra, como tambm nos objetos produzidos. Esta categoria utilizada
para designar um conjunto de atividades com barro, tecido, palha, couro e uma infinidade de
outros materiais e tcnicas. De acordo com Alvim (1983:50)
As diferentes realidades que se escondem muitas vezes sob a capa do artesanato so bastante diversas e particulares. O conhecimento de uma forma particular de artesanato constitui-se numa descoberta que no deve ser minimizada em funo de uma pretensa homogeneidade que muitas vezes a categoria artesanal parece incluir.
A diversidade da prtica aponta para a fragilidade do vocbulo artesanato, que no
consegue contemplar as inmeras possibilidades do fazer. O fato que a palavra artesanato diz
pouco das pessoas que esto envolvidas no processo produtivo; o arteso o homem, mulher,
criana, jovem, idoso, algum que realiza um oficio h dcadas, ou aprendeu em poucas horas;
todos recebem a denominao de artesos.
Neste trabalho, adoto preferencialmente a expresso loia de barro para referir-me a
prtica artesanal de pessoas que trabalham com barro no Tope. A opo pelo nome loia vem da
forma como muitas artess se denominam, havendo tambm as designaes ceramistas, usadas,
eventualmente. Como relata a artes:
A cermica que hoje em dia chama cermica, ningum conhecia como cermica; agente conhecia a cermica de colocar em casa, mas a gente conhecia por loia, o pessoal perguntava o que tu vai fazer hoje, eu vou fazer minha loia ou ento era trabalhar com barro, cermica a gente veio conhecer de 1997 pra c com o galpo. A no foi mais chamado de loia mas, de cermica. (Artes, Francisca 67 anos).
29
Segundo Sylvia Porto Alegre (1994:36), O termo artesanato novo sendo introduzido a
partir da venda e da produo para o mercado externo, este termo no faz parte do vocabulrio
popular. Na sua tese sobre o artesanato do Cear, a autora identificou uma srie de categorias
nos depoimentos coletados:
Artista aquele que se distingue pela competncia em sua profisso, com isso, ganha admirao e o reconhecimento dos demais. O conceito de artista em ltima anlise anlogo ao de mestre ou seja aquele que alcanou o domnio de sua arte. H os que aspiram chegar um dia a essa condio mas h tambm os aproveitadores , isto , os que se fazem passar por artistas, sem a devida competncia. Verificamos assim que o termo arte, artista, na linguagem popular, deriva diretamente do referencial semntico da organizao medieval portuguesa do trabalho. A expresso ofcio designava, em Portugal, o conjunto dos artfices, ou seja, todos aqueles que, senhores da tcnica exigida, se aplicavam a uma arte. (SERRO apud, PORTO ALEGRE, 1994: 35).
De acordo com Sylvia Porto Alegre, a designao de mestre proveniente das
corporaes de ofcios que estabeleciam uma hierarquia, em que o mestre vinha primeiro, depois
os aprendizes e, na escala mais baixa, os operrios (LANHANS apud, PORTO ALEGRE,
1994:35) Apesar de muitos rgos utilizarem a categoria artesanato em programas e projetos,
muitas artess ainda utilizam termos como rendeiras, loieiras, labirinteiras, para se identificar,
fugindo assim da abrangncia que o nome artesanato conota.
Muitos pesquisadores, sejam eles denominados de folcloristas ou de cultura popular,
observaram a variedade e a diversidade das manifestaes populares. Os estudiosos,
normalmente, fazem referncia multiplicidade das manifestaes, como reisado, congadas e
outros, uma vez que observam as semelhanas e diferenas de uma mesma manifestao em um
mesmo lugar ou lugares diferentes.
A existncia dessa variedade fez com que houvesse uma grande produo de registros
generalistas, escamoteando as particularidades e singularidades de cada manifestao. No
sentindo de obter maior fidelidade dos dados, muitos pesquisadores passaram a ter um maior
30
rigor metodolgico na coleta das informaes, fazendo com que estas contemplassem detalhes
importantes de cada manifestao popular.
Para introduzir esta discusso, considero importantes as contribuies de Ayala e Ayala
(1987:55).
medida que se agua a percepo da diversidade e da complexidade da cultura popular, os trabalhos voltados para a generalizao vo se tornado cada vez mais insatisfatrios. Por outro lado, a preocupao com uma maior rigor terico e metodolgico faz com que tambm as descries por mais detalhadas que sejam, passem a ser consideradas ainda insuficientes.
Ainda Ayala e Ayala dizem que a questo est nos pressupostos metodolgicos e tericos
adotados pelo pesquisador.
Se o levantamento e a descrio derem conta apenas dos aspectos formais e imediatamente visveis, no permitiro uma anlise das relaes e condies sociais que explicam e garantem a prpria existncia das prticas culturais populares as formas de organizao dos produtores, as relaes com a comunidade da qual fazem parte, a existncia ou no de vnculos com o estado, com outras instituies ou com pessoas das classes dominantes, as formas de trabalho, as condies de vida e as relaes de poder que atravessam a cultura popular. (Op. Cit. p: 56).
A necessidade de maior conhecimento das particularidades sociais fez com que fosse
observada a carncia de informaes acerca das relaes sociais e o contexto em que as
manifestaes culturais estavam inseridas. Era necessrio compreender a maneira como as
pessoas produzem e significam suas prticas; como interferem e recebem interferncias do
contexto social, consoante enfatiza Durham:
As prticas culturais veiculam valores, padres de comportamentos, pontos de vistas sobre as relaes sociais, que so comuns a seus produtores e ao seu pblico. Alm disso, so elaboradas de acordo com normas e valores estticos especficos, partilhados pelo conjunto formado por produtores e o pblico. (DURHAM apud, AYALA E AYALA, 1987:65).
A documentao excessiva, sem um arsenal terico e metodolgico que levasse em
considerao o contexto das prticas, foi um ponto deveras criticado nos estudos do folclore.
31
Apesar dos procedimentos tericos metodolgicos utilizados, na observao e coleta interpretao, no permitem alcanar os objetivos anunciados. Isto se deve a dificuldade de superar a tradio dos estudos folclricos, marcados desde o incio pela preocupao com o registro e preservao de elementos culturais considerados em vias de extino, com busca de origens e de traos da psicologia popular e como estabelecimento de comparaes tentando identificar variantes em outros tempos e lugares. (AYALA eAYALA 1987:37)
O que muitos pesquisadores buscavam registrar em suas pesquisas era a tradio que,
segundo estes, estava se perdendo. Mrio de Andrade acreditava que o registro tinha que ser
minucioso, sendo ainda fiel forma como as manifestaes populares aconteciam. Os discursos
sobre a morte da tradio acreditavam que esta era a guardi de prticas e saberes legtimos. Tais
saberes estavam agregados a um tempo passado e a um lugar: o meio rural. A concepo dualista
de muitos pesquisadores situava a tradio, em relao oposta Modernidade. A tradio estava
relacionada com o passado e o meio rural, enquanto o moderno era o novo, a cidade. Sob esta
ptica, tradio e Modernidade, portanto, seriam foras antagnicas em que a segunda colocaria
em extino a primeira.
Roger Bastide, d uma outra perspectiva s pesquisas sobre as manifestaes populares,
salientando a importncia do contexto social e o espao fsico em que estas acontecem. medida
que as pesquisas passaram a levar em considerao o contexto social em que as manifestaes
ocorriam, os conceitos tornaram-se flexveis. A flexibilidade da compreenso acerca das prticas
culturais possibilitou perceb-las, como mutveis cuja relao com elementos contemporneos
no implica na sua perda ou descaracterizao, mas um processo natural da cultura. Em relao
ao artesanato, as previses apostavam na substituio dos objetos, o que levaria extino da
atividade. Nesse contexto, a feitura do artesanato percebida como uma atividade tradicional
com forte ligao ao passado. Como assinala Alvim,
32
A relao do artesanato com a tradio fez com que muitas vezes grupos sociais que tiram do artesanato seus meios de existncia sejam catalogados como partes de uma sociedade tradicional que se define por oposio a uma sociedade moderna. (Op. cit, p 49).
Esta mesma autora aponta para dois tipos de concepes sobre tradio ligada ao
artesanato. A primeira est relacionada idia de pureza e autenticidade, em que as artess
estariam apartadas do mundo moderno. Esta concepo sobre a tradio do artesanato encontra
reverberaes nos estudos que previam a morte das atividades manuais e a necessidade de um
registro minucioso.
A segunda concepo compreende o artesanato como prtica atrasada, que deve ser
substituda pela produo industrial. Para Alvim, essa concepo traz poucas possibilidades de
um discurso profcuo sobre o artesanato.
Observo que estas duas concepes sobre a tradio no artesanato, uma ligada noo de
pureza e outra ao atraso, embora sejam analisadas de forma separada, na prtica, esto
profundamente imbricadas. A tradio, compreendida como algo imutvel, relaciona-se
intimamente com o ideal de pureza. A concepo modernista que reivindica a substituio ou
eliminao por uma produo industrial alimenta a necessidade de uma preservao, que, por sua
vez, compreende as prticas como legtimas.
Muitos dos discursos sobre artesanato esto no fluxo das duas concepes h pouco
apontadas. As instituies interventoras produzem discursos sobre a pureza e autenticidade do
artesanato, relacionando-o concepo de identidade regional. A prtica da interveno, porm,
consiste em modificar o artesanato por modelos e formas arrojadas. A modificao de um modelo
por outro lado, deixa implcita a compreenso de que a produo anterior concebida como
ultrapassada.
33
A concepo que atribui ao artesanato adjetivos de pureza e identidade ou a que aposta na
mudana e substituio da atividade por uma prtica industrial encarna a tradio no objeto, isto,
o produto artesanal.
No mbito dessas discusses, invariavelmente, surgem questes como originalidade,
autenticidade concebendo os modelos atuais como falsos ou inautnticos, cpias de um passado
distante. Acerca dessa concepo essencialista e muitas vezes dicotmica que tende a perceber os
fenmenos dentro de uma lgica linear e segregacionista, considero importante s objees de
Sahlins (1999) ao dizer: que o pensamento ocidental pressupem uma oposio entre
estabilidade e mudana considerando-as como antitticas. Sahlins defende que toda mudana
pratica tambm uma reproduo cultural. Toda reproduo da cultura uma alterao, tanto que
na ao, as categorias atravs das quais o mundo atual orquestrado assimilam algum novo
contedo emprico.(SAHLINS, 1999:181).
O dilogo simblico da histria transporia para Sahlins categorias engessadas e tidas
como dicotmicas como estrutura e histria. As colocaes de Sahlins so importantes para
pensarmos sobre as mudanas do artesanato, no como algo desenraizado, ligado apenas a
saberes provenientes da tradio, mas pertencente a uma lgica peculiar onde passado e presente
estariam unidos atravs de uma lgica simblica ressigninificada na ao.
Os significados da atividade artesanal se atualizam na prtica do fazer, sendo portanto, o
sentido do fazer arbitrrio, uma vez que cada arteso confere um significado diferente de acordo
com a sua trajetria individual. O autor fala da possibilidade de uma transformao cultural uma
vez que a alterao dos sentidos muda no decorrer do processo histrico, resultando na
transformao das posies entre as categorias culturais, logo uma mudana sistmica.
34
Sahlins (Op.cit, p 9), defende, que a mudana ocorre na prtica sendo a histria construda
no interior das sociedades, mas tambm entre elas. De acordo com Sahlins, os elementos
dinmicos em funcionamento incluindo o confronto com um mundo externo, que tem
determinaes imperiosas prprias e com outros povos, que tm prprias intenes paroquiais
esto presentes por toda a experincia humana (WOLF apud, SAHLINS, 1999:09 ).
Sob a ptica de Eric Wolf as mudanas ocorridas e as entidades estudadas pelos
antroplogos devem seu desenvolvimento a processos externos, sendo pouco proveitoso pensar
em cultura como algo puro resultante de elementos autnticos ou orquestrados como nos diria
Sahlins, a um modo nativo.
Wolf (2003:297) diz que Os conjuntos culturais -e conjuntos de conjuntos -esto
continuamente em construo, desconstruo e reconstruo, sob o impacto de mltiplos
processos que operam sobre amplos campos de conexes culturais e sociais. Wolf compreende
que a construo e desconstruo desses conjuntos culturais abrangem tambm as ideologias e
esta como as relaes econmicas, ecolgicas, sociais e polticas, transpem fronteiras.
Os seres humanos no se relacionam com o mundo natural apenas pela fora de produo,
mas mediante tambm as relaes sociais estratgicas que governam a mobilizao do trabalho
social.
Neste cenrio o termo cultura seria semelhante a uma ideologia em produo
racionalizada para conferir sentido a vida cotidiana. Wolf (op.cit. p, 298) diz ainda que: a
construo e desconstruo de culturas ocorrem de maneira continua em campos histricos
maiores, tendo como motor os modos de mobilizao do trabalho social, os conflitos que esses
modelos geram interna e externamente.
35
Seguindo as reflexes do autor as transformaes por diversas reas dentre elas, se pode
citar o artesanato no gerado internamente, mas tambm resultante de alianas e conflitos
internos com relaes externas.
Essa esfera maior e externa modela de forma aparentemente natural, maneiras e formas de
produo econmica e simblica. As concepes de Wolf direcionam as reflexes sobre as
mudanas no artesanato, atravs de um novo ponto de vista que privilegia a interferncia externa
em detrimento a uma lgica interna. O que externo parte constitutiva do que interno, desta
forma, o contexto sociocultural algo que constitui, mas no determina.
A busca pelo tradicional e/ ou as mudanas para agradar um publico que almeja requinte,
isto o novo, mas ao mesmo tempo exige marcas da tradio, se mostra como um dado paradoxal
na atualidade.
O artesanato de barro uma atividade prtica que se atualiza, trazendo elementos do
passado atualidade; uma experincia orquestrada por uma vivncia anterior na qual elementos
do passado e do presente se materializam na prtica, imerso num cotidiano do fazer. Esse
cotidiano do fazer experienciado por muitas artess, agregando uma concepo de mundo em
que os saberes e vivncias ancestrais so revalidados na prtica. Esta atividade no constitui
apenas uma atividade mercantil, como professam tcnicos de instituies pblicas e / ou privadas.
Como diz Alvim: Os trabalhadores artesos esto organizados atravs de seu trabalho, onde se
materializam e reproduzem-se formas particulares de concepes de mundo, mais ricas em seus
significados simblicos do que sua maior ou menor autenticidade (Op. cit. p.49)
Enquadrar o artesanato como um produto, fruto de uma tradio imutvel, negar essa
reproduo, que se mantm e se reatualiza na prtica cotidiana absorvendo ou resistindo a
interferncias externas. Enfatiz-lo como produto de troca, por outro lado, tambm reduz
aspectos importantes presentes na prtica artesanal.
36
2.2 A Central de Artesanato do Cear (CEART)
Nessa seo discuto a respeito da histria da estruturao da Central de Artesanato do
Cear (CEART). Compreender a trajetria da criao da CEART importante para saber quais os
rgos e pessoas que estiveram frente das polticas interventoras, desta instituio, no Estado do
Cear
A CEART um dos principais rgos governamentais com interveno direta no
artesanato cearense, juntamente com o SEBRAE, atuando, este ltimo, nacionalmente. Durante
o governo de Virgilio Tvora, no Cear, a primeira dama, a senhora Luiza Tvora, resolve utilizar
uma antiga construo, situada na Aldeota, bairro nobre da cidade de Fortaleza, para atuao na
rea social. O prdio era conhecido como Palcio do Plcido, uma construo exuberante do
milionrio Plcido de Carvalho, que viera residir em Fortaleza.
No ano de 1938, Plcido falece e sua esposa constri seis casas laterais para os filhos. As
casas passam ento a compor o Palcio do Plcido. Na dcada de 1970, o palcio demolido,
sobrando apenas s casas laterais. Em razo do atraso no pagamento de impostos a Secretria da
Fazenda recebe o imvel como pagamento das dvidas. Neste perodo, Luiza Tvora inicia seu
projeto de interveno social no artesanato. A poltica voltada ao artesanato sai da Secretaria de
Indstria e Comercio para a Central de Artesanato Luiza Tvora, em 1980.
No segundo momento, a edificao era toda de carnaubeiras, lembrando uma casa de
farinha, com restaurante de comidas tpicas e oficinas de artesanato que aconteciam no local.
Com o passar dos anos, a estrutura destruda, desta vez pelos cupins, colocando em risco a vida
das pessoas que trabalhavam no local. Em 1990, o Governo Tasso Jereissati ergue outra
edificao, agora em concreto, tendo frente a ento primeira dama, Renata Jereissati.
37
No local do restaurante, abre-se uma grande loja de exposio que negocia as peas em
forma de consignao e, nas antigas lojas passam a funcionar: a coordenao, cadastro (com
oficina para comprovar as habilidades), salas de reunio, galerias, depsitos etc.
A ligao do artesanato com as primeiras damas tambm ilustra a relao do fazer
artesanal com o feminino. A influncia das primeiras na CEART e, conseqentemente, no
artesanato ainda bastante presente na fala de algumas artess. possvel, inclusive, encontrar
relatos curiosos como que mostro a seguir: Dona Renata ajudou muito a nossa comunidade,
quando a gua chegou aqui ela veio de helicptero, e parou no campo, menina era tanta gente
nesse campo que eu no sei no! (Artes: Francisca, 65 anos).
Nos anos seguintes, a CEART passou a ser uma clula da Secretaria do Trabalho e
Assistncia Social (SETAS). Atualmente 13 houve um desmembramento, gerando a Secretaria de
Assistncia Social (SAS) e Secretaria de Trabalho e Empreendedorismo (SETE).
A CEART est ligada SETE, estando a loja-matriz localizada na Aldeota, antigo Palcio
do Plcido, com outras lojas no Shopping Iguatemi, aeroporto, na sede do SEBRAE-Fortaleza, no
Centro de Arte e Cultura Drago do Mar, outra loja na Cidade de Guaramiranga e uma
recentemente inaugurada no Resort Bela Vista, na cidade de Camocim. A localizao das lojas
CEART expressa claramente a que consumidor estas quer chegar.
Os artesanatos comercializados nas lojas da CEART passam por criteriosa anlise de
qualidade. Os produtos so em grande parte encomendados aos artesos. O critrio bsico
conseguir agradar o pblico, em grande parte, turista.
13 O atual governador do Cear Lcio Alcntara-PSDB.
38
Numa lgica que envolve tradio, identidade e consumo os produtos que chegam s lojas
CEART tm que ter o que alguns tcnicos denominam de design arrojado, como possvel
observar no discurso de alguns tcnicos. L no Tope o barro bem antigo, indgena, ento a
gente adaptou para o moderno e escolhemos os modelos com designer mais arrojados para o
momento. (Tcnico da CEART).
2.3 A lgica utilitarista
Optei aqui por elaborar indagaes sobre a vertente econmica muito enfatizada na
prtica do artesanato. importante salientar que no concebo a vertente que compreende o
artesanato apenas pelo vis econmico, dissociada da tradicionalista, que enfatiza a noo de
pureza e identidade. Essas duas posies caminham juntas e compem uma concepo de
artesanato.
As polticas que atuam nos programas de apoio e incentivo ao artesanato brasileiro,
expressam por meio de suas aes, como o artesanato compreendido. No Cear, no pequena
a literatura que analisa e discute o aumento da produtividade, bem como a introduo de
tecnologias que levariam a um maior consumo e supostamente a melhoria na qualidade de vida
do arteso. Essas pesquisas, em grande parte, so financiadas por instituies governamentais
como SEBRAE CEART 14, o Banco do Nordeste, entre outras instituies.
14 SEBRAE CEART Central de artesanato do Cear.
39
No ano de 1962 a Diviso Tcnica do Departamento Nacional de Servio Social da
Industria (SESI) solicitou um levantamento das atividades artesanais do Cear para fins de
assistncia tcnica e financeira aos artfices cearenses.15 (RIOS, 1962:9). Nesse estudo, com uma
equipe composta por folcloristas, socilogos e antroplogos, foi realizada uma pesquisa sobre a
funo do artesanato na sociedade tradicional e suas relaes com a estrutura industrial.
Na citada pesquisa, Rios (Op. cit. P.10) assinala:
O artesanato desempenha no nordeste funo social e econmica das mais importantes. Antes de tudo absorve largos contingentes de mo de obra. fcil de compreender o que representa em qualquer economia subdesenvolvida uma atividade, embora precria, ou irregularmente exercida, que assegura sustento a milhares de bocas e emprego continuado a mos ociosas.
O trabalho de Rios emblemtico para exemplificar como a literatura aborda o artesanato,
na qual o utilitarismo parece imperar sobre os demais as aspectos em que esta prtica est
envolvida. Outros trabalhos, como o desenvolvido pelo Ministrio do Trabalho16, tambm
abordam o artesanato sob a lgica socioeconmica. O trabalho de Carlos da Costa Pereira procura
definir o artesanato, buscando, ainda, uma nova poltica governamental que estabelea o que
artesanato e quem o arteso.
Os estudos realizados sobre artesanato sob a gide da esfera governamental salientam seu
potencial econmico, como o projeto da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, do ento
Departamento de Assuntos Culturais do Ministrio da Educao e Cultura, que teve como
objetivo registrar e pesquisar o folclore, bem como realizar cursos e exposies. Os folcloristas
direcionaram seus esforos no sentido de registrar e especificar o artesanato, operando assim uma
diferenciao entre arte e artesanato popular.
15 Esta pesquisa resultou no livro: Artesanato e Desenvolvimento, o caso cearense. 16 Artesanato definies e evoluo: ao do MTB-PNDA do professor Carlos da Costa Pereira (1979).
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Para os folcloristas, a arte popular est nos adornos, pinturas, esculturas, xilogravuras, e
outros, o artesanato popular est ligado a utenslios domsticos em geral, mquinas, cestarias,
brinquedos, tecelagem etc...
Segundo Pereira (1979), a criao de uma poltica governamental voltada para o
desenvolvimento do artesanato, como o Programa Nacional de Desenvolvimento do Artesanato
(PNDA), adveio dos movimentos folclricos, principalmente da experincia do Rio Grande do
Sul que, entre 1964-1966, realizou o cadastramento de artesos.
No ano de 1975 aconteceu o primeiro encontro de artesanato, onde foi verificada a
ausncia de um rgo coordenador e disciplinador da atividade artesanal, como tambm de
pessoas qualificadas para estudos e operacionalizaes dos projetos. Em 1977, o presidente
Ernesto Geisel baixou o decreto n 80.098/77, criando o PNDA, que passava da Secretria de
Mo-de-Obra do Ministrio do Trabalho Secretaria Geral da mesma pasta. O PNDA foi criado
visando a organizao da atividade artesanal em sua produo a comercializao.
Ficou ento institudo o PNDA, e com ele a comisso consultiva do artesanato, integrada pelo representante do Ministrio do Trabalho, do Ministrio da Industria e Comercio, do Ministrio da Fazenda de colonizao e Reforma Agrria (INCRA), da Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR), do Servio Social da Industria e do Comercio (SESI) e do Servio Social do Comrcio (SESC) tendo como coordenador o Secretario de Planejamento do Ministrio do Trabalho. (Pereira, Apud, Fleury: 2002).
O PNDA criou relaes que serviram de base para estruturao de planos estaduais
(PEREIRA, Apud, FLEURY, 2002) diz que se tornava importante definir o artesanato e
caracterizar profissionalmente o arteso. Ficou decidido, ento, que artesanato :
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a atividade predominantemente manual de produo de um bem que requeira
criatividade e /ou habilidade pessoal, podendo ser utilizado ferramentas e
mquinas;
o produto ou bem resultante da atividade acima referida e
o resultante da montagem individual de componentes, mesmo anteriormente
trabalhados, e que resulta em novo produto.
Nestas condies o arteso aquele indivduo que faz artesanato nas condies
supracitadas (PEREIRA, 1979). Com este decreto, o arteso passou a ter linhas de crdito e
incentivos especficos.
Segundo Fleury, o professor do SENAI, Jos Carlos Pereira da Costa, aborda em seu
livro17 a histria do artesanato, do seu ciclo evolutivo dos sistemas de produo. O livro faz
referncia ainda a indstria familiar ou domstica, os trabalhadores autnomos, mestres de
ofcios, manufaturas e a fabricao.
Na citada literatura o autor busca uma conceitualizao precisa do termo artesanato,
criando uma srie de classificaes, como: artesanato utilitrio dos bens de consumo, utilitrio
dos bens de produo, artstico dos bens de consumo, artstico, compreendendo bens de utilizao
acessria, artesanato misto e de manuteno. No conceito de Pereira o artesanato de barro do
Tope est em bens de consumo utilitrio.
No ano de 1991, o PNDA foi reestruturado como Programa do Artesanato Brasileiro
(PAB), passando em 1995 ao Ministrio da Indstria, Comrcio e Turismo. Em 1998, com a
reforma ministerial, e criao do Ministrio do Esporte e Turismo, passou a este Ministrio. 17 Artesanato definies e evoluo-ao do MTB, Braslia Ministrio do Trabalho, 1979.
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Posteriormente, o PAB agregou-se ao Ministrio do Desenvolvimento, Industria e Comrcio. O
PAB visava ao fortalecimento do artesanato e preparao para comercializao externa. Para
isso, foi necessria a parceria com entidades governamentais e no governamentais. As diretrizes
atuais buscam maior comercializao do artesanato brasileiro, inclusive no plano internacional.
Projetos como o Programa Brasileiro de Designer, Projeto-piloto de Fortalecimento do Segmento
Artesanal, dentre outros, so algumas medidas governamentais para uma ampliao na
comercializao do Artesanato. Algumas destas iniciativas mostram indicadores numricos
satisfatrios, mas poucas so as pesquisas que exploram o modo como as comunidades artesanais
absorvem e reagem diante dessas polticas.
Considero importante apresentar um pouco dos caminhos percorridos pelas polticas que
regeram o artesanato, no sentido de observar as concepes ideolgicas que guiaram as aes
dirigidas a essas prticas ao longo dos anos.
Compreender a prtica do artesanato apenas em seu potencial econmico significa reduzir
aspectos importantes agregados ao fazer artesanal. No intuito de traar questionamentos e
iluminar caminhos, considero importantes as objees de Sahlins, quando formula uma crtica
sobre as noes utilitaristas da atividade humana:
Este utilitarismo propriamente dito; sua lgica a maximizao das relaes meios-fins. As teorias da utilidade objetiva so naturalistas ou ecolgicas. Para elas, o saber material determinante substancializado na forma cultural a sobrevivncia da populao humana ou da ordem social dada. (1976: 1).
O utilitrio diz Sahilns (Op. cit.p.07), pode igualmente ser pensado nas dimenses
subjetivas e objetivas, embora muitas teorias no especifiquem bem qual sua lgica prtica que
tomam como base na ordem cultural.
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Contrapondo-se s concepes utilitaristas que privilegiam as relaes meio-fins Sahlins
(Op. cit. p.8) defende como distino humana a razo simblica ou significativa sem negar o
mundo material, instncia que compartilha com todos os organismos, mas o fato de faz-lo de
acordo com um esquema de significado criado por si prprio, qualidade pela qual a humanidade
nica.
As idias de Sahlins encontram reverberao na concepo que o autor tem do termo
cultura como: responsvel pela ordenao e desordenao do mundo em termos simblicos, essa
cultura a capacidade singular da espcie humana.(SAHLINS, 1997:1).
Sahlins enfatiza que, apesar das inmeras discusses, o termo cultura, est longe de
desaparecer, como objeto principal da Antropologia. A organizao da experincia e da ao
humana se faz por meios simblicos; os valores e significados no podem, portanto, ser
determinados a partir de propriedades biolgicas ou fsicas.(SAHLINS, op. cit.).
Restringir a prtica do artesanato ao prisma meramente econmico, em que o valor de
troca se sobrepe ao cultural, subestimar a complexidade desta prtica. O relato dessa artes
um fragmento da dimenso do fazer na vida daquelas que tm na atividade artesanal um meio de
sobrevivncia, mas que no se restringe apenas ao econmico: Isso aqui a minha vida, se eu
disser que no, eu t mentindo, quem leva, leva pedaos da minha vida. Momento de tristeza de
alegria fica tudo na pea. (Artes: Maria, 57anos).
A cultura que deve ser vista no artesanato est para alm de seu uso comercial. Afirmar a
importncia do artesanato num prisma cultural, logo, simblico, no significa negar sua
importncia econmica mas compreend-lo de uma forma abrangente. Para esta questo,
considero importante a expresso de Sylvia Porto Alegre (1994:112) ... o fato de que os objetos
produzidos revelam pedaos da vida diria, das prticas religiosas, das crenas, das festas, das
tarefas domesticas, da dura luta pela sobrevivncia.
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A propaganda feita sobre artesanato para turistas e pblico consumidor em geral, vincula
a idia de tradio de cultura. Aos agentes da produo, enfatizado um ideal econmico, pois
o artesanato precisaria se desenvolver na sua qualidade e eficincia, seguindo uma lgica
industrial. O arteso precisa produzir um objeto artesanal, mas a lgica de exigncia segue a
industrial, como pode ser observado no relato abaixo:
Eu j fiz uns pedidos de umas garrafas l no Tope, mas era um problema. Porque se eu pedia 200 garrafas para prxima semana, se eu peo na prxima semana, tem que ser na prxima semana. Mas elas nunca conseguiam entregar na data ento eu deixei de comprar elas precisam de uma viso de negcio. (Paulo18, produtor de cachaa).
2.4 O slogan CEART
Carto Postal CEART
18 Durante a noite conheci um comerciante de nome Paulo, que me informou sobre os pedidos de garrafas para colocao de cachaa. O comerciante comprava as garrafas de barro no Tope e vitrificava em outro lugar.
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Folheto CEART
A CEART tem como slogan central: Legtimo Artesanato Cearense. Quem conhece
compra. Em folhetos e folders a instituio atrela comercializao do artesanato o ideal da Arte
do Povo Cearense. Grande parte dos folhetos e cartes postais da CEART, atravs de
informaes bilnges, expressa um pouco do artesanato cearense. Nas imagens acima
apresentadas interessante observar a figura de um pote, um jarro e uma quartinha, objetos no
produzidos em espaos como o galpo.
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Muitas das estratgias miditicas, inclusive a da CEART, vinculam o artesanato a um
produto tradicional. Estudos de autores como Silvio Romero, Cmara Cascudo, entre outros,
foram enfticos em abordar a temtica da cultura popular e sua relao com o nacional. Como
diria Nelson Werneck Sodr, s nacional o que popular.
De acordo com Canclini a noo de patrimnio usada para legitimar uma identidade
autntica:
Talvez a crise da forma tradicional de pensar o patrimnio se manifeste de forma aguda mais em sua valorizao esttica e filosfica. O critrio fundamental o da autenticidade, conforme proclamam os folhetos que falam sobre costumes folclricos, os guias tursticos quando exaltam o artesanato e as festas autctones , os cartazes das lojas que garantem a venda de genuna arte popular . (CANCLINE, 2000: 198).
A publicidade sobre artesanato, de fato, reincide em afirm-lo como detentor de
identidade cultural.
O que se define como patrimnio e identidade pretende ser o reflexo fiel da essncia nacional. Da que sua principal atuao dramtica seja a comemorao em massa: festas cvicas e religiosas, comemoraes patriticas e nas sociedades ditatoriais, sobretudo restauraes. Celebra-se o patrimnio histrico constitudo pelos acontecimentos fundadores, os heris que os protagonizaram e os objetos fetichizados que os evocam.(CANCLINI, Op. cit. p.163).
No caso do artesanato, observo que muitas propagandas, de fato, proclamam o artesanato
como detentor de uma identidade legtima. inegvel que o produto artesanal traz desde a sua
concepo elementos intimamente relacionados ao lugar e ao povo que o produz.
Entretanto, o que produzido sobre o artesanato pela ptica utilitarista, concebendo-o
apenas como mercadoria de troca, e a tradicionalista, o entende como detentor de uma identidade,
no leva em considerao condies de trabalho e de vida do arteso, pois a nfase recai sobre o
produto o que faz dos artesos mestres annimos, no sendo identificados pelas peas que
produzem. Muitos programas de interveno no artesanato discutem prioritariamente a
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necessidade de mudana e aumento nas vendas o que supostamente melhoria a condio
socioeconmica da categoria arteso. interessante observar as imagens de folders, cartes
postais, vinhetas, sobre artesanato produzidas pelo governo do Estado. As imagens mostram o
completo entrelaamento do artesanato em ambientes luxuosos, mas dificilmente apresentado a
situao de pobreza dos lares das artess.
Persistindo na crtica a um modelo que utiliza o patrimnio como uma espcie de
emblema unificador, logo que nega as diversidades, agora discorrendo sobre o papel dos museus
Canclini fala da necessidade de uma museografia interessada em reconstruir o significado de que
promov-la como espetculo:
Ao contrrio, um objeto pode ocultar o sentido que teve (pode ser original, mas perder sua relao com a origem) porque est descontextualizado, teve cortado o seu vnculo com a dana ou com a comida na qual era usado, e foi lhe atribuda uma autonomia,inexistente a seus primeiros detentores. (Op. cit. p. 201).
Trao aqui um paralelo, outrora feito por Waldeck (2000), entre as exposies e as feiras,
acrescentando outro espao de comercializao bastante volante -as feirinhas. Waldeck observou
que, quando na organizao de uma exposio no Rio Design as artess perguntavam quando
vai ser a feira?.
De incio, fica a impresso de que seria apenas emprego de termos diferentes para designar o mesmo universo. Entretanto, quando os artesos chegavam de suas cidades para cuidar das vendas no shopping especializado em decorao e arquitetura de interiores, no Leblon, percebia-se a extenso da distncia entre significados -feira para os artesos do vale do Jequitinhonha, e exposio enquanto espao criado pelos tcnicos do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. (2000:75).
Um dos primeiros pontos que Waldeck observa em seu trabalho quanto organizao
das barracas nas feiras, que acontecem de acordo com o lugar onde o arteso mora. Outro ponto
a autonomia do arteso em desembrulhar o objeto, circular livremente, comprar alimentos etc.
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As feiras -realidade ainda muito comum no Cear, como em outras regies do Brasil so
os espao da multiplicidade, onde objetos de todas as formas e tamanhos so comercializados. As
feiras so tambm espaos de sociabilidades, onde se estabelecem trocas econmicas e
simblicas, estando direcionadas a um pblico especfico. No caso do Tope, as peas produzidas
pelo galpo no so comercializadas na feira de Viosa do Cear que acontece todo sbado.
Agente no leva as peas aqui do galpo pra feira porque no tem sada. As pessoas querem
comprar bem baratim, ento, agente vende s pra CEART. (Artes Francisca, 47 anos).
De acordo com as artess, as peas produzidas no galpo no tm venda na feira, porque
so diferentes das que o pblico procura. Estes em sua maior parte busca objetos utilitrios:
potes, panelas, vasos. As peas do galpo so vendidas quase que exclusivamente para a CEART
que as comercializa em suas lojas. Outra forma de comrcio do artesanato do galpo so as feiras
e feirinhas promovidas pelo SEBRAE e / ou CEART.
Segundo tcnicos da CEART, tempos atrs, a instituio oferecia passagem, hospedagem
e alimentao aos artesos para participarem de feiras. Atualmente a verba foi cortada. Em alguns
casos so oferecidos apenas hospedagem e alimentao. Para os tcnicos, importante que os
artesos tenham conscincia que precisam investir no seu trabalho. Antigamente a CEART
bancava tudo, transporte, hospedagem, alimentao, quando foi feito um corte das verbas. A
gente tinha que conscientizar que eles precisavam investir neles mesmo (Tcnico CEART).
O que quero enfocar em relao ao artesanato, nas exposies, feiras e feirinhas, e ou nos
museus, a distncia do observador ou comprador da realidade em que a pea ou obra foi
produzida. bem verdade que dificilmente as peas artesanais chegam a espaos como museus
sob a designao de artesanato, para isto o que em momento fora chamado de artesanato
denominado de arte. Com efeito, Geertz, em seu texto A Arte como um sistema cultural, diz que
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A capacidade de uma pintura (ou de poemas, melodias edifcios, vos peas teatrais, ou estatuas), que variam de um povo para o outro, bem assim como de um individuo para outro, , como todas as outras capacidades plenamente humanas, um produto da experincia coletiva que vai bem mais alm dessa prpria experincia. O mesmo se aplica capacidade ainda mais rara de criar essa sensibilidade onde no existia. A participao no sistema particular que chamamos de arte s se torna possvel atravs da participao no sistema geral de formas simblicas que chamamos de cultura, pois o primeiro sistema nada mais que um setor do segundo. Uma teoria da arte, portanto, ao mesmo tempo, uma teoria da cultura e no um empreendimento autnomo (Op. cit. p.165).
O artesanato produzido nas residncias comercializado na feira de Viosa do Cear; aos
pequenos atravessadores que transportam para as cidades vizinhas. Nas feiras do interior,
possvel encontrar casos em que o prprio arteso negocia suas peas, invalidando a figura do
atravessador. Quando isto acontece, observa-se uma melhoria nas condies de compra e venda,
para o comprador que adquire um objeto mais barato, obtendo, tambm, maiores informaes
sobre o produto. Para o arteso tambm vantajoso, pois vende o produto a um preo melhor.
Observem o relato abaixo:
O turista chegou para mim e disse assim, dez reais esse vaso, muito caro isso feito de barro e eles pegam de graa. Eu olhei pra ela e disse a senhora sabe o que pegar um uru19 de barro na cabea, amassar, d a forma e depois queimar, pra chegar no que ta a. Num instante ela pegou o dinheiro na bolsa e comprou, porque o povo no sabe o trabalho que dar. (Artes Nazar, 22 anos).
A forma como acontecem as relaes entre os turistas e o artesanato, em espaos como as
feiras e feirinhas, evidencia e proporciona um afastamento das realidades. As feirinhas colocam
em prtica outra modalidade de atravessador que no o pequeno comerciante mas, agora grandes
lojas e empresas.
Na figura do vendedor, as feirinhas perpetuam a cadeia de desinformao sobre o
produtor e comprador como tambm a explorao que acontece nestas relaes. Segundo
Cohen,(apud, BARRETO) 19 Objeto de palha utilizado para carregar alimentos ou barro.
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O encontro entre visitantes e visitados essencialmente transitrios assimtricos e sem repetio onde os participantes procuram gratificao imediata em lugar dacontinuidade. Acrescenta-se que essa efemeridade das relaes a que propicia a explorao, o engano, a hostilidade e a desonestidade, que so moeda corrente na relao entre turistas e populao local justamente porque nenhuma das partes envolvidas sesente comprometida com as conseqncias da ao.
Enfatizo a importncia do arteso em negociar suas peas, pois isto agrega ao ato da
comercializao outras caractersticas que esto presentes no produto. um momento importante
em que artesos e consumidores estabelecem um contato, criando assim uma dinmica prpria.
Como exemplo, destaco o Centro das Rendeiras, da Prainha20, que tem uma associao h 26
anos, Este centro organizado em boxes onde as artess produzem e vendem suas rendas,
diariamente. No momento da compra, os turistas observam o feitio da renda, como tambm
podem obter informaes adicionais como tempo de trabalho etc...De acordo com Sylvia Porto
Alegre:
A recente expanso de um marketing cultural do lazer e turismo estimula a produo e venda dos denominados produtos tpicos ou regionais, especialmente daqueles mais carregados de um valor simblico capaz de remeter o homem urbano e moderno a modos de vida costumes que lhe paream distantes no tempo e no espao. (1994:21).
O contato do comprador com a artes, conforme verifiquei em lugares como o Centro das
Rendeiras, proporciona maior compreenso da realidade da vida das artess. O visitante
despertado para compreender sobre a complexidade da tcnica e a histria de vida das artess. O
fascnio que o artesanato desperta no comprador est na lgica de uma tradio, entendida nesta
perspectiva como algo que remonta a um tempo passado mas, tambm, idia de autenticidade.
20 A Prainha fica a 30km de Fortaleza no municpio de Aquiraz, sendo a Associao das re