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Universidade Federal de Pernambuco Centro de Artes e Comunicação Programa de pós-graduação em Comunicação Mestrado em Comunicação O QUE NOS DIZEM OS VÍDEOS DA REDE COQUE VIVE? Vinícius Andrade de Oliveira Recife 2013

Universidade Federal de Pernambuco Centro de Artes e ... · A meus pais: nada seria possível sem vocês. Obrigado pelo cuidado e por abençoar minhas escolhas. ... cujo acolhimento

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Universidade Federal de Pernambuco

Centro de Artes e Comunicação

Programa de pós-graduação em Comunicação

Mestrado em Comunicação

O QUE NOS DIZEM OS VÍDEOS DA REDE COQUE VIVE?

Vinícius Andrade de Oliveira

Recife

2013

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Vinícius Andrade de Oliveira

O QUE NOS DIZEM OS VÍDEOS DA REDE COQUE VIVE?

Dissertação apresentada por Vinícius Andrade de Oliveira à

banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em

Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco

como exigência para obtenção do grau de mestre em

comunicação.

Orientadora: Cristina Teixeira Vieira de Melo

Recife

2013

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Catalogação na fonte

Andréa Marinho, CRB4-1667

O48q Oliveira, Vinícius Andrade de O que nos dizem os vídeos da Rede Coque Vive? / Vinícius Andrade de Oliveira. – Recife: O Autor, 2013.

82p.: il.: fig.; 30 cm.

Orientador: Cristina Teixeira Vieira de Melo. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco,

CAC.Comunicação, 2013. Inclui Referências.

1. Comunicação. 2. Gravações de Vídeo. 3. Representação Cinematográfica. 4. Voz. I. Melo, Cristina Teixeira Vieira de (Orientador). II. Titulo.

302.2 CDD (22.ed.) UFPE (CAC2013-76)

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Autor do Trabalho: Vinícius Andrade de Oliveira

Título: O que nos dizem os vídeos da Rede Coque Vive?

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em

Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação da Professora

Dra. Cristina Teixeira Vieira de Melo

Banca Examinadora:

________________________________

Cristina Teixeira Vieira de Melo

_________________________________

Yvana Carla Fechine de Brito

__________________________________

Alexandre Simão de Freitas

Recife, 28 de março de 2013

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Aos meus pais, pelo exemplo de força e dignidade.

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AGRADECIMENTOS

A todos que participaram dos filmes analisados nessa pesquisa, atrás ou na frente das

câmeras, minha sincera admiração.

À Cris, pela contagiosa leveza, respeito, generosidade, apoio e tantas outras belezas que

me fazem terminar essa pesquisa encantado com a nossa amizade. Por ser, para além de

acadêmica, dançarina.

A João Neto, meu irmão, pela honra absoluta de compartilhar seu sangue, suas

iluminações e suas loucuras.

A meus pais: nada seria possível sem vocês. Obrigado pelo cuidado e por abençoar

minhas escolhas.

A Paula e Jeferson, casal querido cujo amor sempre me inspira.

A Tia Lala, Tio Joãozito, Pedro, Tia Nora, Angélica, Paulo e Nice por terem oferecido

uma convivência livre e amorosa que me possibilitou iniciar uma nova vida em Recife.

Aos meus avós, pela preciosa existência, a Tio Sandro, querido poeta de quem sou fã, e

a toda minha família.

A todos do Coque Vive, cujo acolhimento e companheirismo fizeram com que a minha

sensação de ser um estrangeiro fizesse cada vez menos sentido. Escrevemos juntos esse

trabalho.

A todos do Neimfa e do MABI, em especial a Alexandre, Berg e Sandokan.

A todos do CEBB, por estarmos juntos nas aspirações mais elevadas.

A todos os meus amigos do Imbuí: nesse trabalho, ecoa a voz feliz e perpétua de vocês.

Peu, Thiago, Diego, Jonathan, Léo, Matheus e todos os outros, tamo junto! Também a

Euro, Gregório, Felipe e Argôlo, bróders do peito. Vim da Bahia e algum dia eu volto

pra lá!

À Poly, pelo amor, carinho e cumplicidade compartilhados.

Ao Lama Samten, guia para toda a vida.

À Ligia Bittencourt, por tornar tão elevado o meu renascimento em terras

pernambucanas.

A Roberto Jaffier, malandro querido, coração de ouro, herdeiro de Glauber, pela

parceria absolutamente indispensável.

A Gabi e Caio, companheiros essenciais.

A João Albuquerque, amigo que tem ensinado com maestria como posso cuidar melhor

de mim mesmo.

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Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, nos

desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar

acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos

espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. (...) É ao nível de cada

tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a

um controle.

Gilles Deleuze

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RESUMO

O presente trabalho apresenta uma investigação acerca da produção audiovisual da Rede

Coque Vive, formada pelo Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis

(NEIMFA), o Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (MABI) e estudantes da

Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Uma das frentes de ação dessa rede,

formada em 2006 com o intuito de problematizar os discursos midiáticos que davam

conta de um Coque puramente violento, é a produção de vídeos que versam sobre a vida

no bairro, o estigma sofrido por ele, os processos de transformação de seu espaço, entre

outros temas. Nossa trajetória de pesquisa analisa como essas questões são abordadas

nos vídeos realizados colaborativamente entre esses atores sociais, identificando, em

primeiro lugar, as vozes presentes no interior dos filmes para, posteriormente,

evidenciar como essas vozes dialogam com vozes culturais outras, sejam aquelas

pertencentes aos gêneros audiovisuais, sejam aquelas veiculadas em jornais impressos,

propagandas, ou materiais discursivos da própria Rede Coque Vive. O corpus é formado

pelos vídeos “Desclassificados” (2008), “A linha, a maré e a terra” (2008), “Centenário

do Sul”, (2009) e “.Zip” (2011) e, além do processo de investigação das vozes que

compõem os vídeos, a pesquisa procura observar as principais recorrências e

descontinuidades dessa produção no intuito de promover uma visão geral a respeito da

maneira como o audiovisual tem sido usado pela Rede Coque Vive no debate e

entendimento de questões políticas mais amplas.

Palavras-chave: Rede Coque Vive, vídeo, Coque, audiovisual, voz, representação

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ABSTRACT

This research presents an investigation about the audiovisual production by the Group

Coque Vive, composed by the ‘Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de

Assis’ (NEIMFA), the Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis’ (MABI) e

students from the ‘Universidade Federal de Pernambuco’ (UFPE). One of the actions of

this Group — created in 2006 and having as its main goal to raise questions towards the

media discourse that couldn’t but emulate a purely violent image of the Coque — is the

production of videos dealing about the life in the neighborhood, their stigma as a violent

location, the process of transformation of its space, among other things. Our research

analyzes how these questions are addressed on the videos collaboratively produced by

these social actors, identifying, in the first place, the voices within the videos, to,

subsequently, bring to light how these voices are related with other cultural ones: those

ones belonging inside the film genres, the ones conveyed in newspapers, advertisement,

or the discourse within the material produced by the Group Coque Vive. The corpus is

composed by the vídeos “Desclassificados” (2008), “A linha, a maré e a terra” (2008),

“Centenário do Sul”, (2009) e “.Zip” (2011), and, in addition to the process of

investigation of the voices generated by the videos, this research seeks to find out the

most important recurrences and discontinuities of this production, in order to foment a

general vision about the way that the audiovisual is being used by the Group Coque

Vive inside the debate and the understating of broader political issues.

KEYWORDS: Group Coque Vive, video, Coque neighborhood, audiovisual, voice,

representation.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Cena do filme “Uma visão de fora”............................................................... 30

Figura 2 Ridivaldo Procópio, membro do MABI, em cena de “Desclassificados”..... 32

Figura 3 Moradora do Coque em cena de “Desclassificados”..................................... 36

Figura 4 Aurino Lima no filme “Desclassificados”..................................................... 40

Figura 5 Gutemberg Lima no filme “A Linha, a maré e a terra”..................................45

Figura 6 Letreiro do filme “A linha, a maré e a terra”.................................................. 46

Figura 7 Dona Paulina, no filme “A linha, a maré e a terra”....................................... 49

Figura 8 Da esquerda para a direita, Seu Xavier, Dona Paulina e Rafael Felipe.......... 50

Figura 9 Trecho de “Centenário do Sul” - encontro de mulheres na Biblioteca Popular

do Coque........................................................................................................................ 56

Figura 10 Vânia no filme “Centenário do Sul”............................................................. 58

Figura 11 Maria José, em close-up, no filme “Centenário do Sul”............................... 61

Figura 12 Filha de Vânia aponta fotografia da mãe no filme “Centenário do Sul”...... 62

Figura 13 Prazeres encontra Matias no filme “Centenário do Sul”.............................. 63

Figura 14 Abertura do filme “.Zip”............................................................................. 68

Figura 15 Trecho do filme “.Zip” em que criança chega no Coque.............................. 69

Figura 16 Cena final do filme “.Zip”........................................................................... 71

Figura 17 Meninos observam paisagem do Coque se transformando......................... 74

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SUMÁRIO

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS..................................................................... 10

2. FUNDAMENTAÇÃO E METODOLOGIA................................................. 19

3. “DESCLASSIFICADOS”............................................................................. 29

4. “A LINHA, A MARÉ E A TERRA”.............................................................. 43

5. “CENTENÁRIO DO SUL”........................................................................... 55

6. “.ZIP”............................................................................................................. 66

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................ 76

8. REFERÊNCIAS............................................................................................ 80

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1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A Rede Coque Vive define-se pela articulação entre três atores sociais cujo espaço de

atuação é o Coque, bairro pobre localizado na região central da cidade do Recife. Esses atores

são o Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis (NEIMFA), instituição que

coordena atividades de formação humana, o Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis

(MABI), coletivo de jovens moradores do Coque ligado, principalmente, à música e à

produção de fanzines, e a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), na forma de um

projeto de extensão que reúne estudantes e professores dos departamentos de comunicação,

ciências sociais e educação.

O conjunto de ações - cursos de formação, seminários, oficinas de fotografia,

iniciativas em novas mídias, livros, entre outras - que a Rede tem realizado no bairro desde

2006, quando dos primeiros contatos entre os três atores mencionados, esteve caminhando

constantemente ao lado de pesquisas no campo acadêmico que buscaram refletir sobre o

sentido dessas ações, suas problemáticas, seus eventuais desdobramentos, suas possíveis

melhoras. Nos últimos anos, a experiência da Rede Coque Vive funcionou ao mesmo tempo

como um campo de experiências afetivas e vínculos sociais e como propulsora de reflexões

sobre o seu próprio trabalho, sobre o Coque e a cidade.

Talvez possamos classificar os trabalhos acadêmicos que surgiram no âmbito dessa

rede em duas grandes categorias: aqueles que tematizaram diretamente a comunidade do

Coque e aqueles que tematizaram especificamente a Rede Coque Vive. Uma diferença sutil,

mas muito importante para os nossos objetivos. Consideramos que a pesquisa que aqui se

inicia pode ser enquadrada na segunda categoria, por interessar-se pela forma como essa Rede

faz a mediação entre o nosso olhar e a vida no bairro. A que se propõe, então, o presente

trabalho? Qual é esse elemento mediador que constitui o objeto de nossas análises?

Muito do que foi produzido no âmbito da Rede Coque Vive durante os últimos anos

teve como motivo, ainda que apenas em seu ponto de partida, a necessidade de discutir a

imagem social do Coque. A questão da visibilidade, porém, não é recente e aponta para o

próprio processo de formação histórica do local. Francisco Ludermir nos mostra, em seu

trabalho de conclusão de curso que se tornou livro sob o expressivo título “Dos Alagados à

Especulação Imobiliária – Fragmentos da Luta pela Terra na Comunidade do Coque”, que

assim como aconteceu com outras regiões de mangue que se avizinhavam do Rio Capibaribe

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e que, por isso, eram consideradas menos propícias à construção de habitações dignas, a

região do Coque foi sendo uma alternativa de habitação para aqueles que não podiam ocupar

locais salubres e bem estruturados, pessoas pobres que vinham, por exemplo, das regiões da

seca ou do plantio da cana.

Explica ele:

Com o crescimento populacional da cidade, novos habitantes pobres,

migrantes de outras regiões de Pernambuco, se viram, cada vez mais,

impossibilitados de ocupar terrenos salubres e infraestruturados no Recife.

Como último recurso, recorreram à invasão de terrenos. As invasões e

habitações populares ocuparam os mangues e alagados e subiram os morros

que circundam o Recife. A relação pobre-alagados foi sendo historicamente

construída. Com o passar do tempo, esses moradores passavam a consolidar

o solo artesanalmente. Pegavam a lama e botavam em caixas de verdura para

secar. Parafraseando o documento da URB, as áreas como o Coque e Brasília

Teimosa foram tomadas das águas pelo aterro paciente e corajoso dos seus

moradores. (FERREIRA, 2012, p. 34-35)

Entretanto, quando as terras consideradas habitáveis começaram a diminuir e o solo aonde a

população pobre ia construindo aqui e ali seus mocambos passou a ser mais firme, os olhares

das classes com mais propriedades se voltaram para essas regiões que outrora eram tidas

como sem valor. A questão da terra nas áreas de mangue passou a ser, portanto, razão de

severas lutas. À ação do governo e dos foreiros1 – isso por volta do final do século XIX e

início do século XX – os moradores dessas regiões responderam também com organização,

dando início a uma história de resistência que, para o geógrafo Jan Bitoun, citado em “Dos

Alagados à especulação imobiliária”, inaugura os embates contemporâneos em torno da

questão territorial. “Em contrapartida à força crescente de expulsão, a luta desses

mocambeiros, moradores dos Alagados, aos poucos foi se transformando em uma luta política

consistente, nas décadas de 1970 e 1980” (Ibid, p. 42).

No período da ditadura militar, pôde-se observar uma intensificação da repressão por

parte do governo, mas que resultou simultaneamente numa maior organização dos

movimentos da sociedade civil em torno das lutas pela posse da terra e reivindicações para

melhorias nas condições sociais dos bairros. Seguindo ainda os preciosos fragmentos

organizados por Francisco Ludermir (2012), nos deparamos com uma campanha difamatória

orquestrada pelo governo através da imprensa que tinha o bairro como alvo. O objetivo era

enfraquecer politicamente aqueles que movimentavam as lutas políticas para que o Estado

1 Pessoas que compravam grandes terras da Marinha sem adquirir a plena propriedade delas e sublocavam

essas terras visando o lucro (Ibid, p. 34)

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utilizasse a área segundo os seus próprios interesses. Uma primeira investida se deu depois da

cheia de 1971, uma segunda com a construção da linha de metrô – que acabou deslocando

muitos moradores - e uma terceira com a tentativa de construir um Shopping Center no bairro,

já em 1985, ano marcado também pela chamada reabertura democrática do país.

Outros capítulos mais recentes mereceriam compor esse mosaico de lutas construído

por Francisco Ludermir (2012) e acompanhado brevemente por nós com propósito

introdutório, mas acreditamos que já foi relatado o suficiente para que percebamos que a Rede

Coque Vive não surge de uma casualidade histórica. Aliás, os últimos parágrafos dos

“fragmentos da luta pela terra na comunidade do Coque”, fragmentos que acabam sendo

também sobre outras lutas políticas travadas na região e na cidade, dão conta justamente do

surgimento da Rede Coque Vive, situando-a numa linha de continuidade com esses outros

movimentos e lutas. Ao que gostaríamos de acrescentar algumas considerações a respeito

do(s) lugar(es) que o audiovisual vem ocupando nesse panorama.

Um dos episódios do ano de 1985 narrados em “Dos Alagados à Especulação

Imobiliária” é o vídeo produzido pela TV Viva a propósito da construção de um Shopping

Center na região do Coque, projeto que mencionamos anteriormente. Nele, moradores são

entrevistados sobre as possíveis vantagens ou desvantagens da chegada do empreendimento

no local; em seguida, já em frente à Câmara de Vereadores, a reportagem da TV Viva

entrevista dois políticos, vereadores àquela época, Pedro Eurico e Braz Batista, cada um

defendendo um ponto de vista diferente acerca da construção do shopping. A existência desse

vídeo não é uma raridade, como nos explica Cláudio Bezerra:

Na década de 80, o vídeo foi um suporte de comunicação amplamente

utilizado pelos movimentos sociais brasileiros. Nas ruas, nas praças, nos

sindicatos e associações de moradores, ele estava presente, no telão ou no

aparelho de TV, mostrando a realidade dos setores excluídos e discriminados

da população, ainda pouco divulgada nos mass media, em especial, a

televisão. (2001, p. 7)

Bezerra nos mostra, em seu estudo sobre a linguagem dos vídeos populares em Pernambuco

na década de 1980, as diversas maneiras que o audiovisual dialogou de maneira aberta com as

questões políticas em debate na sociedade de cada tempo, desde o cinema soviético ao cinema

novo brasileiro, passando pelo cinema veritè2 e outras cinematografias. O autor contextualiza

2 Estilo do documentário criado por Jean Rouch e Edgar Morin que se baseia na interação entre cineasta e

personagem

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a análise de seu corpus – um programa da TV Viva/Centro Cultural Luiz Freire e o outro do

Centro de Organização Comunitária de Chão de Estrelas – destacando que o aspecto

propriamente tecnológico, como a invenção de equipamentos que gravavam som e imagem

sincronicamente nos anos 50/60, e a posterior consolidação do vídeo, esteve a “serviço” do

uso político do audiovisual, tendo os diversos movimentos se apropriado dessas ferramentas

para propor, de diferentes maneiras, discussões sobre as suas visões políticas de mundo.

O autor mostra, assim como Robert Stam (2009) que tais processos podem ser

igualmente vistos como integrantes de dinâmicas mais globais, ligadas a uma reconfiguração

das políticas de identidade acerca de gênero, raça e sexualidade em todo mundo. No âmbito

internacional, a cobrança sobre a histórica disseminação de uma forma de vida centrada no

cidadão médio europeu foi um dos alvos das críticas, mas as lutas políticas se materializaram

esteticamente de maneiras múltiplas3.

Retornando ao contexto brasileiro, Consuelo Lins e Claudia Mesquita (2008)

enfatizam a transição dos 80 para o 90 como um momento em que o documentário, associado

às lutas políticas dos movimentos da sociedade civil, manteve viva a cena política com outros

olhares que não eram acolhidos por janelas hegemônicas de exibição como a televisão.

Diferentemente do cinema brasileiro de ficção (sobretudo em longa-

metragem) a produção documental não ‘sucumbiu’ à crise que marcou a

passagem dos anos 80 para os anos 90, com a extinção da Embrafilme,

estatal produtora e distribuidora de cinema, pelo governo Collor de Mello.

Na trilha iniciada nos anos 80, seguiu seu destino de gênero “menor”:

realizado sobretudo em vídeo, manteve fortes ligações com os movimentos

sociais que surgiram ou reconquistaram espaço com a redemocratização do

país, restrito à pouca visibilidade fora dos circuito dos festivais, associações,

sindicatos e TVs comunitárias – apartado, enfim, das principais janelas de

exibição (LINS; MESQUITA, 2008, p. 11)

Alexandre Figuerôa também nos dá pistas importantes de como a prática audiovisual se

manteve conectada a lutas políticas locais, dessa vez na passagem dos anos 90 para os 2000,

período em que surge, como vimos, a Rede Coque Vive. Afirma o autor:

Em alguns estados estruturaram-se pólos de produção, tentativa de

quebrar a hegemonia do Rio de Janeiro e São Paulo na captação dos

recursos, e tanto governos estaduais quanto municipais criaram

mecanismos de apoio à produção de filmes e vídeos por meio de

3 Ver capítulo “Como os documentários têm tratado as questões sociais e políticas?”, da “Introdução ao

documentário” de Bill Nichols

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concursos de roteiros ou leis de renúncia fiscal. Agregadas à nova

institucionalização dos mecanismos de apoio à produção audiovisual

desenvolvidos pelo governo federal, emergiram as ideologias da

responsabilidade social, da solidariedade, das políticas afirmativas, do

voluntariado, da cidadania, enfim, da valorização do terceiro setor

(FIGUERÔA, 2006, p. 8).

Não cessamos de ver surgir a referência ao uso do audiovisual como alternativa

política à grande mídia, o que constitui também um movimento que está na própria base do

nascimento da Rede Coque Vive. A discussão a respeito da imagem social do bairro é

atravessada pelo entendimento da contribuição da grande mídia na construção do Coque como

local a ser evitado, reduto de bandidos, morada da morte. As primeiras ações da Rede

concentraram esforços no sentido de combater esse estigma que, como vimos, vem de muito

tempo. A iniciativa que, se considera, inaugura a Rede é justamente o Jornal Coque, escrito de

maneira colaborativa entre estudantes de jornalismo da UFPE e jovens moradores do Coque.

Retomando Lins e Mesquita (2008) - numa análise do documentário “O prisioneiro da grade

de ferro” (2004) que se revela útil à nossa contextualização:

O prisioneiro da grade de ferro pode ser visto também numa linha de

continuidade em relação a projetos que surgiram na esteira do vídeo popular

e da democratização das câmeras de vídeo no decorrer dos anos 80 e 90 no

Brasil. O projeto de elaborar “de dentro” as identidades dos grupos sociais

retratados, em oposição ao estigma, de dar-lhes visibilidade de uma

perspectiva que se propõe ‘interna’, está presente em muitas iniciativas

ligadas aos movimentos populares. A intensificação do uso dos meios

audiovisuais provocou debates sobre identidade social e étnica de grupos

minoritários, a ponto de os próprios ‘sujeitos da experiência’, o ‘outro’ das

produções documentais, engendrarem processos de constituição de auto-

representações, geralmente em parceria com associações e organizações não-

governamentais. (LINS; MESQUITA, 2008, p. 40)

No caso específico da Rede Coque Vive, temos uma composição muito singular de

atores sociais na constituição desse lugar diferenciado de produção. Essa composição que, na

verdade, tem sido possível também em outros locais do país, sobretudo no contexto social

recente dos bairros periféricos das metrópoles brasileiras, é investigada por Ivana Bentes

(2010), que – com interesse na produção sensível engendrada nesses novos lugares – descreve

articulações similares à Rede Coque Vive da seguinte maneira:

Em meio a crises diversas, esses territórios são percebidos como laboratórios

de subjetivação, laboratórios de uma outra experiência de cidade que

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funciona paralelamente, em parceria ou mesmo contra o Estado, funcionando

na tensão entre uma nova produção cultural, entre “economias substitutas” e

o estado de exceção a que são submetidos (como as favelas e guetos

globais). (Ibid., p. 51)

Bentes nomeia esses territórios mistos de “reservas de mundo” (2010, p. 51), onde uma nova

produção do sensível torna-se propícia, onde novas formas de ocupar o mundo e experienciar

o seu tempo são experimentadas. Sem nos apegarmos à definição utilizada pela autora, o que

importa é observar que as relações que se constituem, por exemplo, a partir da TV Morrinho –

foco de análise em seu ensaio - caracteriza um “fora de lugar” da produção da sociedade

capitalista que permite aos sujeitos envolvidos uma nova forma de experienciar e pensar o

ambiente da cidade. Bentes (2010) cita não só a TV Morrinho, mas o Nós do Morro, também

do Rio de Janeiro, a TV Lata, da Bahia, o Filmagem Periférica, em São Paulo,etc:

O que essas propostas têm em comum? A horizontalidade das redes, a

tendência a abolir a rigidez de hierarquias e burocracias. Essa cultura das

favelas e periferias (música, teatro, dança, vídeo, moeda, educação) surge

como um discurso político ‘fora de lugar’ (não vem da Universidade, não

vem do Estado, não vem da mídia, não vem do partido político) e coloca em

cena outros mediadores e produtores de cultura, todo um precariado

emergente de rappers, funkeiros, b-boys, jovens atores, performers,

favelados, desempregados, subempregados, produtores da chamada

economia informal, artistas urbanos, grupos e discursos que vêm

revitalizando os territórios de pobreza e reconfigurando a cena cultural

urbana. (BENTES, 2010, p. 62)

Como podemos perceber, o caldo cultural que permeia o surgimento da Rede Coque

Vive é de grande riqueza social e histórica. Não só fazem-se notar as lutas políticas locais

diversas que ali foram travadas por seus moradores mas também a maneira como a prática

audiovisual integrou esse panorama. Essa contextualização se fez obrigatória para a nossa

pesquisa, já que o “elemento mediador” do qual falávamos, aquilo que constitui o objeto de

nossa análise e que nos “separa” do Coque “real”, são exatamente os quatro vídeos realizados

conjuntamente pelos integrantes da Rede Coque Vive.

O primeiro desses vídeos é “Desclassificados”4, (2008), realizado por integrantes do

Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis e pelos estudantes de comunicação da UFPE

integrantes da Rede, vídeo que discute a problemática do preconceito de classe. O segundo é

4 http://www.youtube.com/watch?v=BqchOeFj0yY

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“A linha, a maré e a terra”5 (2008), realizado também numa colaboração entre MABI e

estudantes, que trata das intervenções estatais e da consequente transformação do espaço do

bairro. Já “Centenário do Sul”6 (2009) entrevista as moradoras da rua que dá título ao filme a

respeito de suas memórias afetivas, tomando como ponto de partida fotografias pessoais. Por

fim, a animação intitulada “.Zip”7 (2011), produzida em parceria com a ONG Oi Kabum, do

Recife, cujo tema é a verticalização da cidade e os efeitos que ela provoca nos bairros

periféricos. Os vídeos de fotografia8 ficam de fora do nosso corpus, em função de sua

organização ter se dado sem intenção de impor uma narrativa e sentidos através da edição,

como também ficam de fora as reportagens9, por se inserirem mais propriamente no campo da

linguagem jornalística e possuírem como destinação outras vias de circulação.

A premissa que guia a presente pesquisa poderia ser resumida a partir da seguinte

questão: “como as questões relativas à representação do Coque e de seus moradores realizam

um embate particular no campo das imagens cinematográficas?”. Ou: “como os casos

particulares dos vídeos da Rede Coque Vive elaboram um modo próprio ao campo do cinema

documental de lidar com a construção de imagens dos habitantes do Coque e de seu espaço?”.

Interessa-nos investigar antes de tudo o que o Coque Vive diz imageticamente - o que nos

dizem as imagens produzidas pela Rede em seus vídeos. A partir daí, colocar em diálogo o

que o Coque Vive diz imageticamente e o modo como define o que faz, como se vê , assim

como explorar as conexões possíveis entre essas vozes e outras matrizes discursivas culturais,

como os discursos postos em circulação por jornais e televisões. Tal abordagem, que se

pretende imanente, sinaliza, na verdade, para o interesse naquilo que já mencionamos: a

questão da visibilidade (con)cedida à comunidade do Coque e a seus habitantes e do jogo de

vozes por trás dessa visibilidade.

Estruturamos a nossa pesquisa de modo que pudéssemos observar e destacar as

singularidades de que cada vídeo, por um lado, e promover uma interlocução entre essas

singularidades e referências “externas” a eles, por outro. No primeiro capítulo, procuramos

dialogar com os aportes teóricos surgidos no campo do cinema para discutir a imagem de

grupos sociais historicamente estigmatizados, delineando as principais escolhas teóricas e

5 http://www.youtube.com/watch?v=JiewEr9og8o

6 http://www.youtube.com/watch?v=Zm1HvWe3_gY

7 http://www.youtube.com/watch?v=1HpAROgBW5o

8 “Revelando o Coque” http://www.youtube.com/watch?v=5kZfoq0jQfM&feature=related ; “O coque e a

cidade http://www.youtube.com/watch?v=Mt5CEBfIrs0&feature=related

9 “Frei Aloísio” http://www.youtube.com/watch?v=6Q6y1kGP3aE&feature=related ; “Sandokan Xavier”

http://www.youtube.com/watch?v=elXPBrmwihc&feature=related

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metodológicas que guiaram a pesquisa. No segundo capítulo, dedicado à “Desclassificados”,

procuramos discernir de que modo operam os enunciados do vídeo e, tendo percebido o

preconceito de classe como principal debate, trouxemos algumas discussões a esse respeito.

Em “A linha, a maré e a terra”, “Centenário do Sul” e “.Zip”, terceiro, quarto e quinto

capítulos, esse processo se repete, sendo as interlocuções feitas a partir dos vídeos envolvendo

a temática da habitação, da memória e da subjetividade.

Esses vídeos têm, cada vez mais, ganhado os espaços dos circuitos alternativos de

exibição – apesar da pouca habilidade do Coque Vive no desenvolvimento de estratégias

consistentes para a circulação desse material. Todos esses vídeos estão disponíveis na internet;

“.Zip” tem percorrido, através da da Oi Kabum, alguns festivais nacionais e locais, e marcou

presença no Festival Pernambuco Nação Cultural, do Governo do Estado, em 2012;

“Centenário do Sul” foi exibido e debatido no Encontro Nacional de Direito à Comunicação;

“Desclassificados” fez parte da Mostra “Barreiras Invisíveis”, realizada pelo Cineclube

Cinecoque – uma das ações da Rede Coque Vive – nas Escolas Joaquim Nabuco e na Escola

Monsenhor Leonardo Barreto, ambas localizadas no Coque; “A linha a maré e a terra” e

“.Zip” integraram a Mostra “O Coque e a cidade” levada à Escola Monsenhor Leonardo

Barreto; além disso, todos os vídeos realizados pelo Coque Vive, inclusive os de fotografias e

as reportagens, foram reunidos em dois volumes e fazem parte da coleção de DVDs Coque

Vivo10

. Esses DVDs foram dados como brindes em algumas exibições do Cinecoque nas

escolas mencionadas para que fizessem parte do acervo audiovisual das instituições.

Esse panorama parece apontar para a necessidade que sentimos de uma investigação

mais detida dos vídeos da Rede Coque Vive. Consideramos que a abordagem aqui proposta,

atenta para o jogo de vozes nos vídeos, pode-nos revelar discursos que tanto podem estar

aquém como além do que os materiais discursivos já estudados nos fazem imaginar sobre a

Rede Coque Coque Vive e os debates que promove. Acreditamos que esse exercício de “olhar

de novo” tem muito a nos dizer sobre temas como preconceito de classe, estigma, luta pela

terra, memória individual e coletiva, mas também sobre subjetividade, afeto, vínculo, etc.

Para além dos objetivos diretamente articulados à pesquisa e sabendo da dificuldade de

exaurir, com apenas uma abordagem, as reflexões que esses vídeos têm o potencial de

produzir, esperamos gerar um repertório amplo e preciso que nos ajude a entender melhor não

só esses próprios vídeos como outros que devem ser lançados pela Rede Coque Vive, bem

10 Coletânea de DVDs organizada por Roberta Lira. O primeiro volume compila notícias de jornal sobre o

Coque, o segundo trabalhos acadêmicos e o terceiro e o quarto volumes reúnem os vídeos feitos pela Rede.

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como a entender vídeos de outros “lugares não-profissionais”, outras redes urbanas, coletivos

de comunicação, entre outros, que também trabalham com o audiovisual para a mudança

social.

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2. FUNDAMENTAÇÃO E METODOLOGIA

Consideramos que o debate travado no campo da teoria do cinema a respeito da

representação de grupos sociais historicamente marginalizados - debate que tematizou a

maneira como os negros vêm sendo retratados no cinema hollywoodiano, o modo como os

europeus mostram em seus filmes cidadãos do chamado ‘terceiro mundo’, a maneira como as

mulheres e gays ganham visibilidade no cinema mundial, entre outras coisas (STAM, 2009) -,

oferece contribuições importantes para a compreensão da imagem do Coque e de seus

moradores nos vídeos da Rede Coque Vive.

Os estudiosos que agitaram tal debate enxergaram o cinema como arte que pode

‘traduzir’ correlações de poder social não meramente numa chave mais “realista” ou

“dramática”, em que o comportamento dos personagens e o desenrolar da trama constituem o

foco principal da análise, mas, sobretudo, naquilo que o cinema carrega de próprio: os

posicionamentos de câmera, enquadramentos, iluminação, trilha sonora, etc. Esse

procedimento analítico será usado para identificar os discursos presentes “no interior” dos

filmes, o sentido que as diversas articulações entre som e imagem nos revelam, aquilo que nos

é dito ou silenciado, mostrado ou ocultado, referenciado ou ignorado dentro de uma rede de

significados.

A partir dessa inflexão sobre os vídeos em que delinearemos os seus enunciados,

partiremos para explorar as associações possíveis entre eles e enunciados advindos de outros

âmbitos culturais, seja no próprio campo do documentário ou no cinema, como a discussão

acerca do procedimento da entrevista no documentário brasileiro contemporâneo, seja na

história, como a questão da história oral e sua relação com a memória, seja nos jornais ou

televisões, como as diversas matérias de jornais pernambucanos que dão conta de um Coque

puramente violento, seja na história da arte ou filosofia, como a reflexão sobre a natureza da

imagem ou a reflexividade, seja em outras literaturas, como os próprios materiais discursivos

produzidos pela Rede Coque Vive.

Nesse sentido, a seguinte frase de Robert Stam (2009, p.305) parece lapidar:

Se, por um lado, o cinema é mimese e representação, por outro, é também

enunciado, um ato de interlocução contextualizada entre produtores e

receptores socialmente localizados. Não basta dizer que a arte é construída.

Temos de perguntar: construída para quem e em conjunção com quais

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ideologias e discursos? Nesse sentido, a arte é uma representação não tanto

em um sentido mimético quanto político, de delegação de voz.

As ideias de Stam sobre a arte enquanto constructo partem, como aludimos, do entendimento

de que é necessário, para refletir a respeito da imagem de determinado grupo social, fazer

perguntas muito precisas a respeito da dessa imagem, indo além dos debates que se contentam

em operar simploriamente na chave de imagens “positivas” ou imagens “negativas”. Vamos

seguir um pouco do raciocínio desenvolvido pelo autor.

No início do capítulo “Multiculturalismo, raça e representação” do seu livro sobre as

teorias do cinema, em que aborda a maneira como as questões raciais – e outras questões

“irmãs”, como as de gênero - vem sendo debatidas nesse campo, Stam traça, primeiramente,

um panorama das críticas ao chamado eurocentrismo. À atitude e discursos que atribuem ao

Ocidente, aqui identificado como a Europa, um “sentido quase providencial de destino

histórico”, que tomam esse Ocidente como principal vetor das transformações sociais do

mundo, Stam nos apresenta o que ele chama de projeto “multiculturalista”. (STAM, 2009)

Como não se trata de criticar os europeus enquanto indivíduos, observando que esses

discursos que percebem o mundo de “um único ponto de vista privilegiado” são

“historicamente situados”, a crítica multiculturalista mira “a relação historicamente opressiva

da Europa com seus “outros” externos e internos (judeus, irlandeses, ciganos, huguenotes,

camponeses, mulheres)”. (STAM, 2009, p. 296). Dessa maneira, o multiculturalismo “luta

pela descolonização da representação, não somente nos artefatos culturais, como nas relações

de poder entre as comunidades” (Ibid., p. 297). Discorre o autor:

A palavra “multiculturalismo” não possui uma essência, simplesmente

apontando para um debate. Embora conscientes de suas ambigüidades, talvez

possamos mobilizá-la com vistas a uma crítica radical das relações de poder,

um apelo por um intercomunitarismo substantivo e recíproco. Um

multiculturalismo radical ou policêntrico exige uma profunda reestruturação

e reconceitualização das relações de poder entre as comunidades culturais.

Percebe as questões de multiculturalismo, colonialismo e raça não de

maneira guetizada,mas sempre ‘em relação’. Comunidades, sociedades,

nações e mesmo continentes inteiros não existem de forma autônoma, mas

em uma rede densamente tramada de relacionalidade. Essa abordagem

relacional e dialógica é, nesse sentido, profundamente anti-segregacionista.

Ainda que a segregação possa ser temporariamente imposta, como um

arranjo sociopolítico, jamais será absoluta, especialmente no âmbito da

cultura. (Ibid, p. 297)

Para “globalizar” a noção de multiculturalismo, que como vimos surge como crítica ao

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eurocentrismo, o autor usa a noção de “Policentrismo”, que envolve as comunidades de fora e

de dentro dos estados-nação. Stam sinaliza outros debates que se coalizam ao debate acerca

do multiculturalismo: análises sobre a representação de minorias, críticas à mídia imperialista

e orientalista, reflexão acerca do “terceiro mundo” e do “terceiro cinema”, trabalhos sobre o

colonial, o pós-colonial e mídias “nativas”, cinemas “minoritários”, “diaspóricos” e de

“exílio”, etc. (STAM, 2009, p. 299)

Por muito tempo, as teorias “oficiais” do cinema silenciaram a respeito dessas

questões. Somente nas últimas décadas surgiram textos que problematizaram, por exemplo, a

maneira como Hollywood retratou em seus filmes os afro-americanos, ou o modo

pejorativamente caricatural com o qual os desenhos de Walt Disney representam lugares e

pessoas de outras regiões do mundo. Embora essas análises tenham adquirido força dentro da

teoria do cinema, campo que até então ignorava, entre outras tantas questões sociais, a racial,

revelando “padrões de preconceito” ou a “funcionalidade social dos estereótipos”, basearam-

se numa “estética da verossimilhança” – em que, segundo Steve Neale (apud STAM, 2009,

p.303) “os estereótipos são julgados simultaneamente a um ‘real’ empírico (precisão) e um

‘ideal’ ideológico (imagem positiva) - o que fez com que suas limitações não demorassem a

ser percebidas.

Essa percepção se deu, sobretudo, com a contribuição da psicanálise e do pós-

estruturalismo. As análises dos estereótipos e distorções foram consideradas legítimas, porém,

carregadas de uma série de armadilhas teóricas e metodológicas, entre elas: “o desejo por

personagens redondas e tridimensionais no contexto de uma estética realista-dramática”, a

desconsideração de “alternativas mais experimentais e antiilusionistas”, a eliminação da

“heteroglossia social e moral características de qualquer grupo social”, o privilégio a uma

moralidade individual, o risco do essencialismo, além do negligenciamento de “dimensões

especificamente cinematográficas” (STAM, 2009, p. 302). Como apontamos, são sobre estas

últimas que recaem o nosso interesse em vistas do primeiro procedimento metodológico de

análise do corpus, aquele que busca identificar os discursos que os vídeos da Rede Coque

Vive carregam.

Dessa forma, a seguinte frase de Stam, na sequência do texto que acompanhamos,

parece se aproximar da perspectiva que sinalizamos acima. Diz ele:

Uma análise rigorosa tem de estar atenta às ‘mediações’: a estrutura

narrativa, as convenções genéricas, o estilo cinematográfico. O discurso

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eurocêntrico no cinema pode ser transmitido não pelas personagens ou pela

trama, mas pela iluminação, pelo enquadramento, pela mise-em-scène e pela

música. O cinema traduz as correlações de poder social em registros de

primeiro plano e fundo, de espaço on-screen e off-screen, de fala e silêncio.

(Ibid, p. 304)

É justamente aí que o autor adverte para que façamos perguntas muito precisas a respeito da

imagem de determinado grupo social para entender as relações dessa imagem como o seu

contexto sócio-político e outros enunciados em circulação na sociedade: “quanto espaço os

representantes de diferentes grupos sociais ocupam no plano? Eles são vistos em close-ups ou

apenas em planos abertos? [...] São personagens ativas e com desejos ou apenas decorativos?

[...] Como a linguagem corporal, a postura e a expressão facial comunicam hierarquias

sociais, arrogância, servilidade, ressentimento ou orgulho?” são algumas dessas perguntas

(STAM, 2009, p.304-305). Postula, então, o autor:

Uma alternativa metodológica à abordagem dos estereótipos e distorções

miméticos é pensar menos em termos de imagens e mais em termos de vozes

e discursos. (...) Em lugar da adequação mimética pontual à verdade

sociológica ou histórica uma discussão mais matizada da questão racial no

cinema deveria enfatizar o jogo das vozes, dos discursos e das perspectivas,

incluindo aqueles operantes no interior da própria imagem. A tarefa do

crítico consistiria em chamar atenção para as vozes culturais em jogo, não

apenas as escutadas em um primeiro plano auditivo, mas também as

encobertas pelo texto. Ou seja, não se trata de um plularismo, mas de um

multivocalismo (STAM, 2009, p. 306)

Essa opção metodológica sinalizada por Stam nos lança diretamente para o aporte

metodológico que escolhemos utilizar para entender as “mediações” presentes nos vídeos da

Rede Coque Vive e, daí, entender como dialogam com outras vozes culturais. Esse aporte está

exposto no trabalho de um teórico que se consolida justamente em meio aos debates

mencionados acima. Operando especificamente dentro do campo do gênero documental, as

ideias de Bill Nichols (2009) parecem oferecer ferramentas muito úteis às nossas análises.

Podemos dizer que o principal conceito com o qual autor trabalha seja o de “voz do

documentário”. É com ele que Nichols “adentra” os vídeos que analisa, sem que, com isso,

esqueça que eles estão inseridos numa “arena de debate e contestação social” mais ampla. É

também com esse conceito, que mais se assemelha a um dispositivo teórico-metodológico,

que iremos nos debruçar sobre o corpus escolhido. Nichols inicia sua explanação sobre as

características da voz do documentário da seguinte forma:

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Se os documentários representam questões, aspectos, características e

problemas encontrados no mundo histórico, pode-se dizer que falam desse

mundo tanto por meio de sons como de imagens. Essa questão de discurso

suscita a questão da voz. Todavia, documentários não são palestras, e

questões de discurso e voz não são entendidas aqui literalmente. (Ibid., p.

72)

Podemos começar a delinear a questão da voz tomando exatamente essa primeira

investida de Nichols a respeito do seu assunto. As questões de voz, como, aliás, já vimos em

Stam, não são tomadas de maneira literal, e os filmes são localizados num contexto sócio-

cultural mais amplo. O seu caráter de representação determina que estes apresentam “apenas”

versões da realidade: perspectivas, argumentos, pontos de vistas, opiniões. Isso através de

“todos os meios disponíveis”, ou seja, uma articulação fundamental entre imagem e som,

plano a plano, compondo sentidos pontuais e também mais genéricos. (NICHOLS, 2009, p.

72).

Nichols nos explica que a voz do documentário é o modo singular como o ponto de

vista do filme sobre o real se dá a conhecer. A ênfase recai aqui sobre a maneira com que essa

perspectiva é transmitida; ela pode simplesmente nos informar, ou persuadir, ou defender

determinada causa, entre outras posições, mas faz isso em vários níveis, ou seja, “quando

representamos o mundo de um ponto de vista particular, fazemos isso com uma voz de tem

características de outras vozes” (Ibid, p.76). Explica o autor:

A voz do documentário não está restrita ao que é dito pelas vozes ‘deuses’

invisíveis e ‘autoridades’ plenamente visíveis que representam o ponto de

vista do cineasta – e que falam pelo filme – nem pelos atores sociais que

representam os seus próprios pontos de vista – e que falam no filme. A voz

do documentário fala por intermédio de todos os meios disponíveis para o

criador. Esses meios podem ser resumidos como seleção e arranjo de sons e

imagem, isto é, a elaboração de uma lógica organizadora para o filme. Isso

acarreta, no mínimo, estas decisões: 1) quando cortar, ou montar, o que

sobrepor como enquadrar ou compor um plano [...] 2) gravar som direto, no

momento da filmagem, ou acrescentar posteriormente som adicional, como

traduções em voz over, diálogos dublados, música, efeitos sonoros ou

comentários; 3) aderir a uma cronologia rígida ou rearrumar os

acontecimentos com o objetivo de sustentar uma opinião; 4) Usar fotografias

ou imagens de arquivo, ou usar apenas as imagens filmadas pelo cineasta no

local […] (Ibid, p.76)

Diversos exemplos da elaboração da voz em filmes documentários são citados pelo autor,

demonstrando os diferentes modos e níveis em que as vozes são apresentadas num filme. No

documentário Portrait of Jason (1967), uma das principais vozes presentes no interior da

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estrutura narrativa do filme é composta por toda movimentação corporal do personagem que

dá título ao filme, incluindo a maneira como ele se comporta em relação à cineasta. Ou no

caso dos documentários Speak Body (1980), Abortion Stories (1984): ambos tratam da

questão do aborto, mas, no primeiro, isso é feito através da combinação entre vozes fora do

campo e imagens de pedaços dos corpos das mulheres que participam do filme, já no segundo

a experiência singular de mulheres latinas que fizeram aborto em algum momento de suas

vidas é enfatizada através de entrevistas pessoais.

Em Na linha da morte (2004), Errol Morris dispensa o uso da chamada Voz de Deus,

narração que tem como papel orientar a direção que o espectador deve seguir na interpretação

das imagens, optando por compor um mosaico de entrevistas que, nem por isso, deixa de

expressar a defesa e a postulação da inocência de um condenado à morte. A inclusão das

imagens de uma série de TV norte-americana em que um ladrão faz justiça com as próprias

mãos, agindo de maneira autônoma em relação à polícia, produz uma voz que não deixa

dúvidas a respeito da posição do documentarista no que diz respeito ao mundo histórico

compartilhado nas imagens.

Um exercício analítico que parece se aproximar da perspectiva aqui mencionada é a de

Jean-Claude Bernadet no livro “Cineastas e imagens do povo” (2003). O interesse de

Bernadet sobre a produção documental brasileira do chamado período moderno – anos 60 até

meados dos anos 80 -, sobretudo aquela ligada aos integrantes do Cinema Novo brasileiro,

resultava de uma necessidade de revisão das relações entre estética e política dos filmes desse

período. O autor procurou demonstrar como, a despeito do desejo dos cineastas envolvidos

com esse movimento, como Arnaldo Jabor e Leon Hirzsman, de adentrar o universo do

popular através do tom de crítica social que esteve ausente do documentário brasileiro de até

então, as imagens produzidas por eles representaram um povo destituído de consciência

própria e dependente do intelectual de esquerda para fazer uma leitura de sua própria

experiência.

Bernadet denominou a estrutura fílmica que traduzia esse desnivelamento fundamental

na relação entre intelectual e povo de “Modelo sociológico”, em função do fato de seus

métodos quase científicos de distanciamento do sujeito do discurso em relação ao objeto

retratado se assemelharem aos procedimentos sociológicos, muito em voga na época. O autor

resume da seguinte maneira o seu estudo:

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Sob a influência da evolução política posterior ao golpe de 1964, dos

movimentos sociais que foram abafados ou conseguiram se expressar, do

questionamento relativo ao papel dos intelectuais, das diversas revisões por

que passaram as esquerdas, do aparecimento das “minorias” que colocaram a

questão do outro, da evolução do cinema novo e da perda de sua hegemonia

ideológica e estética, das preocupações quanto à linguagem cinematográfica,

ao realismo e a metalinguagem, esse cinema documentário viveu uma crise

intensa, profundamente criadora e vital. O “Modelo sociológico”, cujo

apogeu situa-se por volta de 1964 e 1965 foi questionado e destronado, e

várias tendências ideológicas e estéticas despontaram. […] Foi essa crise que

tentei estudar aqui. (BERNADET, 2003, p. 12)

O que nos interessa particularmente nesse estudo é a maneira através da qual Bernadet

“atravessou” o percurso exposto acima. E esse aspecto nos é revelado ainda na apresentação

de seu livro. Ele afirma: “Numa espécie de corpo-a-corpo com essas obras, procurei entender,

em cada um delas, quem era o dono do discurso” (Ibid, p. 13). Esse corpo-a-corpo que o autor

trava com cada documentário escolhido na busca por evidenciar as vozes que estão, de fora e

de dentro, repercutindo na imagem, se reflete mesmo num aspecto como o título dos

capítulos: “o modelo sociológico ou a voz do dono”, para o texto que analisa o filme

“Viramundo” (1965) de Geraldo Sarno; “a voz do documentarista”, para o texto que analisa os

filmes “Lavrador” (1968), “Indústria” (1968) e “Congo” (1972); “a voz do outro”, para o

texto que analisa “Tarumã” (1975) e “Jardim Nova Bahia” (1971). Uma característica

fundamental é destacada da análise do filme e funciona como uma maneira substituta ou

complementar de se referir a ele.

Consuelo Lins (2007) também nos dá mostras da operatividade dessa abordagem no

seu livro sobre o documentarista Eduardo Coutinho. Afirma ela:

Decidi, logo de início, acompanhar a trajetória de Coutinho “filme a filme”.

Esse caminho me pareceu o mais justo, porque manteria a singularidade de

cada documentário, evitando reduzir um filme a outro. Também me permitira

estabelecer relações pontuais entre eles. Assim seria possível identificar mais

claramente os movimentos dessa obra, suas permanências, mudanças,

suspensões, rupturas. Aproveitei portanto a cronologia dos documentários

como fio condutor para analisar o procedimento de criação, os métodos de

trabalho, as condições de realização, as posturas éticas e as opções estéticas

expressivas (Ibid., p.15)

Retornando a Nichols (2009) devemos observar que o autor chama atenção para o fato

de que, no caso especificamente do cinema documentário, a voz é “acompanhada” por um

fator adicional, sinalizado por Consuelo Lins no trecho citado acima. Além do que podemos

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chamar de estilo do filme, aquilo que podemos identificar como sendo sua estética, há

também um elemento ético importantíssimo, afinal de contas, no dizer de Jean-Louis Comolli

os documentários são caracterizados pela realização “sob o risco do real” (2008, p.169).

Nichols (2009) oferece dois exemplos de como esse elemento ético caminha de

maneira inseparável das questões estéticas no documentário. O primeiro se trata do clássico

do gênero documental Nanook of North (1922) de Robert Flaherty, em que, deliberadamente,

o diretor permite que seu personagem principal, no manejo de um disco de vinil, pareça

“atrapalhado”, incapaz de entender a utilidade do objeto que manipula. Mas talvez no caso do

filme Watsonville on Strike (1985) o envolvimento do cineasta no seu tema seja ainda mais

marcante. Nele, Jon Silver registra uma greve de trabalhadores de uma cidade da costa dos

Estados Unidos. Optando por fazer isso num plano sem cortes, Silver tem o seu direito de

filmar questionado pelo diretor do sindicato, que o ameaça. Numa postura que revela de

maneira firme o seu posicionamento político, o documentarista faz uma panorâmica do

saguão da fábrica e pergunta diretamente aos trabalhadores em greve se tem o direito ou não

de registrar o momento. A respeito dessa nuance ética da voz do documentário, Nichols

afirma:

A voz do documentário atesta o caráter de cineastas como Robert Flaherty e

Jon Silver, como se saem diante da realidade social e também sua visão

criativa. O estilo assume uma dimensão ética. A voz do documentário

transmite qual é o ponto de vista social do cineasta e como se manifesta esse

ponto de vista no ator de criar o filme. (2009, p.76)

Tendo observado, do ponto de vista metodológico e conceitual, como operaremos com o

corpus de filmes selecionados para a nossa análise, faz-se necessário delinear também de que

maneira se dará a associação dessas vozes, mais “internas” ao filme e que contam com um

olhar atento à linguagem própria ao cinema, com vozes culturais outras – de documentários,

ficções, matérias de telejornal, textos diversos, etc.

Para darmos conta desse segundo movimento metodológico de base da nossa pesquisa,

escolhemos acompanhar novamente as considerações de Robert Stam (2009) em seu livro

sobre as teorias do cinema. Dessa vez, o capítulo que trata da preocupação de alguns teóricos

de discutir o cinema no diálogo com outras matrizes discursivas. Intitulando o capítulo de

“Do texto ao intertexto”, o autor explica que “Em vez de se preocupar com filmes ou gêneros

individuais, as teorias da intertextualidade passaram a considerar que todo e qualquer texto

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mantinha relação com outros textos e, portanto, com um intertexto” (STAM, 2009, p. 225)

Stam nos mostra como o termo “intertextualidade” advém, na verdade, da noção mais

antiga, formulada por Bakhtin, de “dialogismo”. Baseando-se na idéia de signo, a noção de

dialogismo intertextual nos propõe que qualquer enunciado, seja ele verbal ou não-verbal,

mantém relação com outros enunciados. Tomado numa chave que se distancia dos debates

sobre influências ou fontes, e mesmo da idéia de gênero, “o intertexto da obra de arte inclui

não apenas outras obras de arte de estatuto igual ou comparável, mas todas as ‘séries’ no

interior da qual o texto se localiza” (2009., p. 226). Discorre Stam:

Em seu sentido mais amplo, o dialogismo intertextual se refere às

possibilidades infinitas e abertas produzidas pelo conjunto de práticas

discursivas de uma cultura, a matriz inteira de enunciados comunicativos no

interior da qual se localiza o texto artístico, e que alcançam o texto não

apenas por meio de influências identificáveis, mas também por um sutil

processo de disseminação. (Ibid, p. 226)

O autor também nos oferece diversos exemplos de como podemos entender o funcionamento

da noção de dialogismo intertextual no cinema. Nashville (1975), de Robert Altman, é

composto com uma série de discursos e referências que incluem o documentário, a música

gospel, o musical, o discurso político populista, os próprios filmes do autor, entre outros. Já

Cabo do Medo (1991), de Martin Scorsese, retoma a literatura do Apocalipse, indo até mesmo

ao texto bíblico que versa sobre o assunto; Funeral (1984), de Juzo Itami, filia-se, de certo

modo, ao gênero do que Stam chama de “discurso funerário” (Ibid., p. 227).

Retomando Nichols (2009) devemos observar que o autor também adverte que a voz

do documentário assume, eventualmente, a característica de outras vozes sócio-culturais, seja

de maneira mais evidente ou de forma mais camuflada. De todo modo, não faltam exemplos

de documentários que se aproximam de ensaios, ou de diários, ou de confissões, homenagens,

reportagens, evocações, etc. Não devemos esquecer que o próprio Bakhtin identificou

diferentes “níveis” de dialogismo. Segundo ele, os materiais textuais dialogam tanto com

referências consideradas mais cultas, como as da literatura, como com referências mais

imediatas, a exemplo das gírias que fazem parte da linguagem cotidiana.

Sem dúvida nenhuma, não se trata, para a nossa pesquisa, de explorar todas as

possibilidades que os vídeos produzidos pela Rede Coque Vive oferecem em sua “tessitura”.

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Pretendemos, aqui, fazer associações pontuais, a partir daqueles aspectos que parecem ser os

mais marcantes de cada filme. No caso de “Centenário do Sul”, como veremos, um

aprofundamento na ideia de memória parece ser prioritário; já no caso de “.Zip”, os detalhes

na construção de cada personagem e do espaço descrito no filme parecem merecer atenção

semelhante; em “A linha, a maré e a terra” o fato do filme decorrer paralelamente a uma

transmissão radiofônica não pode passar sem maiores reflexões; em “Desclassificados”, o seu

sistema geral de expressão é que chama atenção. Feitas essas considerações, podemos avançar

para a análise propriamente dita do nosso corpus.

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3. “DESCLASSIFICADOS”

O vídeo “Desclassificados” foi realizado em 2008 pela Rede Coque Vive a convite do

Digi-Lab, da ABA11

, como resposta para o vídeo "Uma visão de fora", produzido pelos alunos

de uma das turmas da instituição. Enquanto nesse vídeo os alunos da ABA falam sobre como

vêem os moradores da periferia, no vídeo produzido pelo Coque Vive, moradores da

comunidade do Coque falam sobre o que pensam sobre a classe média (SILVA, 2011). As

discussões sobre visibilidade social e preconceito de classe que mobilizavam os integrantes da

Rede quando do seu surgimento12

somam-se ao fato de que a maioria da equipe de realização

do vídeo fazia parte do Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis (MABI) - para o qual a

discussão acerca das “barreiras sociais” é central - para compor um cenário cujo traço

principal é o desejo por um engajamento político.

Antes de iniciarmos a análise de “Desclassificados”, parece-nos importante descrever

um pouco daquilo que encontramos no vídeo que o precede, “Uma visão de fora”. O título do

curta13

sugere já um relativismo revelador: embora expresse a visão genuína dos que o

realizaram, esses não mantêm ilusões a respeito de que essa visão represente um veredicto

sobre a realidade social, como se o discurso ali exposto de saída demarcasse o seu próprio

espaço, seu lugar de fala. É, de fato, esse movimento de relativização que encontramos no

vídeo e umas das primeiras falas nele expressa, sublinhada pela decisão de edição de repetir o

seu início - “minha opinião (...), “minha opinião”, “minha opinião (...), como um rap – não

nos deixa dúvidas a esse respeito. Imagens da mídia ilustram essa repetição, como a indicar

que não apenas a opinião de quem fala é “somente a sua opinião”, mas também sinalizando

que ela se confunde com aquilo que é veiculado pelos meios massivos de comunicação sem

que isso seja ignorado. A mensagem explícita: sei que não conheço a periferia, a não ser pela

mídia, e sei que isso significa não conhecer efetivamente ou conhecer tendenciosamente.

O vídeo desses jovens de classe média alterna fotografias e letreiros, guiados quase

sempre por uma narração off – ora o que parece ser um texto de uma aluna para uma questão

11 Instituição que oferece cursos de língua inglesa.

12 Podemos ter ideia dessas discussões tomando como exemplo o seguinte trecho do editorial do primeiro

produto feito colaborativamente entre os atores da Rede, a primeira edição do Jornal “Coque”: “Para elaborar

esse jornal, discutimos com seus moradores sobre a imagem do Coque dentro e fora do bairro. Apoiados

nessas discussões e nas nossas apurações, propomo-nos a fazer uma apresentação geral do bairro a partir de

grandes temas que revelam as suas múltiplas faces. Para entender melhor o Coque, é preciso buscar as causas

e conseqüências perversas da violência, que tem implicações em toda a vida da comunidade”. 13

Acessível em http://www.youtube.com/watch?v=8vojoxM0T2Y, com duração de 4 minutos e 58 segundos

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feita em sala de aula, ora uma poesia rimada - numa estrutura narrativa bastante simples e de

poucos recursos. Parece, inclusive, se organizar por blocos, blocos diferentes, como um

mosaico (cada ‘bloco’ teria um ‘autor’’?). Um momento de encenação, porém, se diferencia

do restante do vídeo e parece operar consigo uma visão importante para entendermos a voz ali

construída. Nesse momento, um dos garotos participantes do vídeo reflete sobre sua visão das

pessoas que moram na periferia. Povoada de perguntas, de auto-questionamentos, essa

reflexão é marcada por uma câmera subjetiva que ‘traduz’ o caráter de visão parcial que o

vídeo assumiu pra si. Nela, uma novidade é expressa através das seguintes perguntas: ‘desde

que tenho dois anos, estou acostumado a ir pro colégio, será que pra eles é assim também?

Sempre fui respeitado por todos ao redor, será que eles também? A mídia me diz que não. É

verdade? Então, quem eles acham que eu sou? Eles acham que eu sou uma vítima? Será que

eles tiram vantagem de mim? Eles pensam que nossa vida é mais fácil?’. Esse trecho no qual

o vídeo questiona diretamente as classes baixas não é exatamente o fim de “Uma visão de

fora”, mas é, sem dúvida, a deixa para “Desclassificados”.

Figura 1 Cena do filme “Uma visão de fora”

O fio condutor do vídeo da Rede Coque Vive é uma pergunta-provocação: o que é a

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classe média? A pergunta é feita no início do filme por um morador do Coque14

e figura

implicitamente nas respostas dos moradores entrevistados na sequência. Nesse curta é a vez

da classe média, historicamente detentora do direito de falar sobre as classes consideradas

mais baixas, ser o objeto de análise. Contudo, e essa parece ser a voz mais preponderante, a

'classe baixa' responsável por essa análise – alguns moradores do Coque – usa o seu espaço de

fala no vídeo de modo a se defender, sobrepondo naturalmente à resposta para a pergunta 'o

que é a classe média?' uma resposta para o próprio modo através do qual é enxergada por essa

classe. A reflexão feita pelo garoto em “Uma visão de fora” encontra aqui eco.

A fala do primeiro entrevistado15

a aparecer no vídeo depois da pergunta inicial - fala

que revela aquilo que nos é apresentado como o parâmetro mais corrente para uma

'classificação social' das pessoas, a condição material e financeira - nos permite visualizar a

tendência apontada. Afirma ele: “A classe média são aquelas pessoas que moram em prédios e

que têm uma boa estabilidade financeira e, assim, eles passam a ter um certo preconceito

contra as pessoas que moram na favela”. E não só o primeiro entrevistado; na sequência, pela

voz de outros mais, a definição para o que é a classe média ganha espaço acobertada por um

tom defensivo :

“É os pessoal que hoje em dia quer ser o dono da verdade, os pessoal que

tem o poder aquisitivo lá em cima e os pessoal que sofre com isso é os

pessoal pobre”; “[...] a classe média, por ter mais dinheiro, são uma classe

mais favorecida, pelo governo e pelo país também, e a gente que somo da

classe menos favorecida não temos tanto direito como eles”.

Os conteúdos que surgem nos depoimentos dos moradores do Coque fazem,

efetivamente, as vezes de defesa frente a um repertório de difamação preexistente. Um deles

afirma “A classe média vê as pessoas que moram na favela como se fossem […] bandidos ou

alguma coisa assim”; o outro “Eu não gosto da classe rica, porque só vê a gente como

marginal, só vê a gente como pessoas miseráveis, pessoas sem cultura, e não é por aí”; e uma

mulher – a única a dar depoimento ao longo de todo o filme: “Não vê a gente como uma

pessoa do nível deles, vê inferior a eles, aí acha a gente ruim. Mas não apenas isso: vai se

construindo, logo nos primeiros momentos de “Desclassificados”, uma rede de significação

que reúne e relaciona os sentidos presentes nas palavras “estabilidade”, “poder aquisitivo”,

com, por exemplo, os sentidos presentes nas palavras “direito” e “verdade”. Esse jogo por trás

14 Ridvaldo Procópio, membro do MABI.

15 Gutemberg Lima, também membro do MABI.

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da linguagem como que denuncia um centro de “referenciação” para o qual os enunciados –

as vozes – do vídeo convergem. Outras palavras irão se somar a essas, mas isso não importa

tanto quando nós mesmos estamos autorizados a atualizar essa teia de significados:

estabilidade, poder aquisitivo, direito, verdade, mais cidadania, liberdade, e opondo-se à

instabilidade, mentira, etc. A voz que evoca e enuncia essas categorias se delineia em meio às

vozes dos próprios entrevistados, abstraída de dentro do depoimento deles.

O morador do bairro que ao começo levanta a pergunta-provocação reaparece

justamente no meio do vídeo, afirmando com eloquência o que já estava presente nas outras

falas, de modo a costurá-las: “Pra classe média a favela já é bem definida. Pobre é assim,

pobre é assado. Pobre é daquele jeito, pobre é daquele outro jeito. Pobre não tem isso, pobre

não tem aquilo”. A pergunta “O que é a classe média?”, nessa altura, parece ter sido

completamente substituída para algo como “quem somos nós para a classe média?”, ou “O

que eles pensam de nós?”. Esse personagem de frases tão categóricas que dá o pontapé inicial

do filme com uma pergunta não se furta de também respondê-la - responder a si próprio,

podemos dizer -, e faz isso a partir da perspectiva contestatória que indicamos. Seu

reaparecimento ao final do filme, encarando a câmera – os espectadores -, parece indicar que

a provocação do começo, o tom de eloquência do meio e o olhar ao final querem,

efetivamente, ser compartilhados enquanto ponto de vista do vídeo.

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Figura 2 Ridivaldo Procópio, membro do MABI, em cena de “Desclassificados”

Essa característica parece marcar, ao menos naquele momento, o modo de pensar e

agir do Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis. Na matéria de abertura da revista16

que

carrega no título o nome do grupo, lançada em 2009, a colaboradora Sofia Costa Rêgo abre

aspas para as palavras de Procópio – o personagem condutor de “Desclassificados” –

identificando-as, na sequência do texto, como dotadas de “uma vontade de fazer com que o

Coque seja conhecido pelo que realmente tem, e não pelo que as pessoas imaginam ou julgam

do bairro” (REVISTA MABI, 2009). Mais à frente, junto ao depoimento de outros integrantes

do MABI, somos apresentados à origem do nome do grupo, emblemática no que diz respeito

à característica que se materializa em “Desclassificados”:

O nome do movimento, Arrebentando Barreiras Invisíveis, vem desse

estigma. ‘Essas barreiras são muito abstratas. O preconceito é algo abstrato,

não é palpável, mas é algo vivenciado, está ali no dia-a-dia e machuca

bastante’, explica Rodrigo. De acordo com Irandir, a ideia de dar esse nome

ao grupo surgiu após de uma aula a que Procópio assistiu e depois de um

filme francês que Irandir viu, 13º Distrito: diante do aumento da

criminalidade em alguns subúrbios de Paris, o governo autoriza a construção

de um muro de isolamento ao redor dos bairros classificados como de alto

risco. [...] ‘Procópio assistiu a uma aula de Alexandre [no Neimfa] que

falava das barreiras invisíveis, e eu assisti 13º Distrito e achei interessante

discutir. No final, os governantes concordam em tirar esse muro que, no

filme, é concreto. É só derrubar tijolo por tijolo que acabou a barreira. Mas

no nosso caso não, é uma barreira invisível, não são tijolos o que temos para

arrebentar’, diz Irandir. (REVISTA MABI, 2009)

No final da matéria, Procópio chama a atenção para a despolitização dos habitantes do Coque,

indicando como causa histórica disso os inúmeros condicionamentos sociais por eles

enfrentados, e seu irmão, Ridivânio, mais conhecido como Fio, lembra da participação das

crianças do Projeto Orquestra Cidadão Meninos do Coque17

no programa televisivo da Rede

Globo “Domingão do Faustão”, no qual as crianças “apareceram” de um modo que poderia

ser classificado como cruel e exótico: a mensagem é a de que Projeto “salvou” as crianças do

destino Coque, porque, se lá elas permanecessem, onde não há nada de bom, não haveria

nenhuma esperança para o seu futuro.

Retornando especificamente a “Desclassificados”, não demoramos a perceber que a

16 Revista Mabi. Recife: Rede Coque Vive, 2009.

17 Projeto que prevê uma inclusão social de jovens do Coque através do aprendizado da música.

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pergunta-provocação “o que é classe média?” serve, de fato, a um propósito “maior”: o filme,

ele todo, se encaminha no sentido de oferecer uma resposta para a questão. A pergunta-

provocação funciona, então, como um dispositivo, dispositivo que, na medida em que conduz

praticamente todas as situações de filmagem, passa a engendrar uma espécie de filme-

resposta: pergunta-provocação, filme-resposta. E, de fato, assim como vimos, o discurso aqui

construído parece se dirigir diretamente a “Uma visão de fora”, realizado por alunos da ABA,

especialmente à reflexão do garoto que especula sobre como é visto por pessoas mais pobres,

se estas o vêem como uma vítima, se tiram vantagem dele, etc.

A noção de dispositivo no campo do documentário recente – mencionada acima –

mostra-se fundamental para compreendermos a relação dialógica que esses dois vídeos

estabelecem entre si e a “polêmica” que surge entre seus discursos. Se o vídeo que analisamos

se desenrola a partir de uma pergunta e essa pergunta surge, no limite, para responder a outro

vídeo, devemos compreender o nível de repercussão que esse “pontapé” inicial produz no

vídeo analisado. Consuelo Lins explica, no livro “Sobre fazer documentários” (2007) que a

ideia de dispositivo, da maneira que tem sido usada nas reflexões acerca do documentário

brasileiro contemporâneo, se diferencia da famosa noção usada por parte da crítica francesa

dos anos 70, sobretudo àquela de inspiração semiológica, representada pela figura de

Christian Metz18

. De nossa parte, devemos esclarecer que se diferencia também do conceito

de dispositivo forjado por Giorgio Agambem a partir de uma leitura da obra de Michel

Foucault.19

Dispositivo, no sentido amplo usado no contexto mais recente da produção

documental, designa um artifício criado pelo(s) autor(es) do documentário anterior à

realização do mesmo, mas que reverbera, em maior ou menor medida, em sua totalidade. No

cinema de Eduardo Coutinho, o dispositivo é o imperativo de filmar num espaço definido – o

Edifício Master20

, por exemplo -, entrevistando apenas as pessoas desse espaço sobre suas

experiências pessoas a respeito de um tema específico. No documentário 3321

, de Kiko

Goiffman, o dispositivo é enunciado pelo autor como a obrigatoriedade de encontrar sua mãe

biológica em 33 dias, tempo que lhe falta para completar justamente 33 anos. Noutro filme

paradigmático do uso do dispositivo, a cineasta Sandra Kogut estabelece como meta tirar o

18 Metz é autor do famoso livro da abordagem semiológica transposta ao cinema intitulado “A significação no

cinema”.

19 Conceito apresentado no livro “O que é o contemporâneo? E outros ensaios” (2009).

20 “Edifício Master” (2002), dirigido por Eduardo Coutinho

21 “33” (2004), dirigido por Kiko Goiffman

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passaporte húngaro na França22

. Em mais um texto sobre o assunto, Consuelo Lins nos

explica:

A noção remete à criação, pelo realizador, de um artifício ou protocolo

produtor de situações a serem filmadas – o que nega diretamente a ideia de

documentário como obra que ‘apreende’ a essência de uma temática de uma

realidade fixa e preexistente. Como nos filmes de Goiffman e Kogut,

teríamos, nos filmes de ‘dispositivo’, a criação de uma ‘maquinação’, de

uma lógica, de um pensamento, que institui condições, regras, limites para

que o filme aconteça. (2008, p. 56)

Como vimos, é a pergunta inicial de “Desclassificados” que funciona como seu

“dispositivo” próprio. Ela não é proferida por meio de uma narração ou mesmo feita por um

cineasta que possamos reconhecer enquanto tal no vídeo: ela é expressa da boca de um

morador do Coque. Por isso esse morador se torna a figura que melhor representa a voz do

filme; é, de fato, provável que ele forneça – em sua aparição na abertura, na metade e no fim

do vídeo - os indícios mais claros para a identificação dessa voz. Isso porque não somos

postos, em momento algum, diante de outra instância enunciadora mais evidente. As

entrevistas são cortadas de uma para a outra sem que a pergunta que as antecede seja

explicitada, sem que saibamos mesmo quem as faz e em quais condições.

O que é dito verbalmente ganha privilégio na organização geral do filme, o que é

possível perceber tanto nos enquadramentos, que se detém predominantemente sobre os

entrevistados, em planos médios, quanto nos momentos em que as imagens vêm ilustrar as

falas desses entrevistados. Tal organização também é percebida no ritmo temporal do vídeo:

em momento algum, por exemplo, somos postos diante de uma cena dramática ou da

observação de um fato social em seu desenrolar cotidiano, mas sim “obrigados” a acompanhar

o tempo da própria entrevista em sua dinâmica 'interna', o tempo e o ritmo das palavras de

cada entrevistado. Pouquíssimas cenas fogem a essa dinâmica, como a que acompanhamos

pouco antes da entrada do primeiro entrevistado. Essa entrada é pontuada pela imagem de

prédios ao longe - a câmera oscila -, mas a marcação feita através da imagem é sintomática: a

classe média – assim como a classe baixa no caso do vídeo “Uma visão de fora” - é analisada

por pessoas que estão em posição de exterioridade ao seu universo, fora de seu universo físico

e simbólico. Na fuga do esquema geral de filmagem, uma importante indicação. Veremos

adiante que, na verdade, esse momento não é único.

22 “Passaporte húngaro” (2001), dirigido por Sandra Kogut

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Mas, de maneira geral, as images/falas dos entrevistados se alternam no vídeo, mas

são variações em torno do mesmo tema. Articula-se uma composição que tende ao

fechamento e a linearidade. A cena da entrevista encerra seus personagens num espaço físico

específico, diante de uma pergunta específica. E ela mesma deriva de uma visão de mundo

também específica dos que a escolheram como estratégia narrativa principal: as “verdades”

para as quais se direcionam as falas dos habitantes do Coque, em função do pertencimento a

essa estrutura em que são inseridas, estão previamente colocadas: a imagem de uma classe

média preconceituosa e arrogante surge como fato irrecorrível e a visão que esta sustenta do

bairro do Coque e seus moradores como bandidos ou meramente pobres soa igualmente

irrecorrível; a classe baixa, de sua parte, não tem outra maneira de agir senão reclamar da

imagem negativa e estanque que a ela querem reservar socialmente.

Figura 3 Moradora do Coque em cena de “Desclassificados”

Em “Cineastas e Imagens do povo”, Jean-Claude Bernadet (2003) recupera a trajetória

da entrevista enquanto estratégia narrativa, desde o advento dos equipamentos de gravação

sincrônica de som e imagem. Para ele, com o decorrer dos anos, fazer documentário passou a

significar acionar essa estratégia, como se outras abordagens não fossem possíveis ao gênero.

Documentário e entrevista se tornaram sinônimos, e o público se acostumou com os filmes

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das chamadas talking heads23

. Assinalando que, no seu modo de ver, os filmes mais

provocadores do documentário contemporâneo são aqueles que, de alguma maneira,

problematizam a entrevista, Bernadet observa como essa estratégia aparece em dois filmes

recentes, “Vida de cachorro”24

e “`À margem da imagem” 25

.

No primeiro, duas cenas promovem a crise dessa estratégia: na primeira cena, a

mulher do entrevistado principal, um sem-teto que constrói casa de cachorros, observa,

escondida, o marido comprar madeira de um vendedor que chega num caminhão, numa

imagem rara dentro de um filme baseado em entrevistas; ela deixa a sugestão de que outras

dramaturgias ali seriam interessantes; na segunda cena, um dos entrevistados primeiro

responde a uma pergunta do documentarista fazendo apenas gestos, quebrando o privilégio do

verbal, depois se dirige diretamente ao documentarista, invertendo os papéis nos quais a

entrevista se constrói, e depois puxa o documentarista para onde a imagem também o capta; o

entrevistador deixa aí de ser o centro ao qual o entrevistado se dirige. Em “À margem da

imagem”, dois momentos problematizam a estratégia da entrevista: num deles, uma freira que

ajuda os sem-teto que aparecem no filme fala da estratégia do acharque, que consiste na tática

dos moradores de rua de pedirem algo contando uma história não necessariamente verdadeira,

mas comovedora e crível, o que lança dúvida sobre a veracidade das próprias entrevistas. O

segundo momento se dá ao estilo “Crônicas de um verão” 26

: o diretor vê junto com os

entrevistados o filme e, na análise que um dos sem-teto faz, os furos do filme são expostos e o

status desse personagem é alterado, saindo da condição “sacralizada” à qual os entrevistados

pobres são muitas vezes arremessados pelos cineastas.

Ainda que não constituam fórmulas, é sintomático que de nenhuma dessas formas

vemos o procedimento da entrevista ser problematizada em “Desclassificados”. A questão da

visibilidade social é recolocada, mas em quê termos? O tom de defesa usado no vídeo, a

reivindicação daquilo que, por exemplo, os discursos difamatórios da mídia (Rota do

medo”27

, “Adolescente assassinado no Coque”28

, “Centro: miséria e decadência: luta das

ruas”29

) aspiram esconder – a possibilidade de existência digna no Coque, a possibilidade de

vida no local, a possibilidade de felicidade – esbarra em imagens que não resultam em nada

23 Trad. Cabeças falantes.

24 Filme de 2001 dirigido por Thiago Villas Boas.

25 Filme de 2002 dirigido por Evaldo Mocarzel

26 Filme de 1961 dirigido por Jean Rouch e Edgar Morin

27 Notícia publicada na seção “Vida urbana”, do Diário de Pernambuco, em 25/10/2003

28 Notícia publicada na seção “Vida urbana”, do Diário de Pernambuco, em 22/05/1999

29 Notícia publicada em 26/10/1980 na seção “Geral” do Diário de Pernambuco

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mais que numa voz cujas características em muito se assemelham a voz daqueles que

desclassificam os “desclassificados”. Aqui nos cabe relembrar as considerações de Robert

Stam (2009) citadas na fundamentação, quando o autor argumenta que análises sobre

distorções na representação de um grupo social e estereótipos negativos são importantes, mas

se fundamentam ainda numa estética que leva em consideração sobretudo a verossimilhança,

algo como um realismo puritano. A verdade de uma comunidade, sem dúvida, não pode ser

facilmente acessada, tampouco as mentiras sobre ela podem ser tranquilamente

desconstruídas.

Tal construção discursiva se enquadra naquilo que Bill Nichols chamou de “modo

expositivo de representação” (2009, p. 142) do documentário. Nichols afirma: “os

documentários expositivos dependem muito de uma lógica informativa transmitida

verbalmente. Numa inversão da ênfase tradicional do cinema, as imagens desempenham papel

secundário. Elas ilustram, esclarecem, evocam ou contrapoem o que é dito” (Ibid., p. 143); em

seguida, define assim o processo desdobrado por esses estruturas narrativas:

O documentário expositivo facilita a generalização e a argumentação

abrangente. As imagens sustentam as afirmações básicas de um argumento

geral em vez de construir uma ideia nítida das particularidades de

determinado canto do mundo. (…) O filme aumenta nossa reserva de

conhecimento, mas não desafia ou subverte as categorias que organizam esse

conhecimento. O bom senso constitui a base perfeita para esse tipo de

representação do mundo, já que está, como a retórica, menos sujeito à logica

que à crença. (NICHOLS, 2009, p.144)

Nesse tipo de filme, temos a sensação de que a nossa reserva de saber está sendo expandida,

uma reserva ligada ao conhecimento já legitimado ou às ciências, entretanto, as bases que

fundamentam esse saber não são questionadas muito menos subvertidas.

Fernão Pessoa Ramos (2008), ao analisar as produções do período moderno do cinema

brasileiro, afirma que o documentário dessa época funcionava como um lugar de fala

semelhante a um “Púlpito”: “O diretor brasileiro ainda respira a visão griesorniana do

documentário como púlpito. Púlpito para a catequese do mesmo de classe, para quem a

narrativa enuncia as condições de vida do outro […] O púlpito alto e com vista, de onde fala a

voz over para a cataquese política” (Ibid., p. 331). Fernão Ramos se refere obviamente aos

“filhos” da classe média brasileira que encabeçavam as produções da época; porém não seria

igualmente como “púlpito” para uma “catequese” do mesmo de classe – esse mesmo de classe

cuja capacidade de uma análise geral sobre o estado de coisas da sociedade deve passar como

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insuspeita - a definição de documentário que atravessa e embarga a voz de

“Desclassificados”? “Desclassificados” (2008) se mostra filme de embate, no qual a polêmica

que embaralha a categoria do “ser” com a do “possuir” não permite vislumbrar algo mais do

que a luta de classes no horizonte social.

Contudo, concluir que o vídeo apresenta unicamente vozes cujas características podem

ser tomadas como “puro grito” (GUIMARÃES, 2010, p. 189) talvez se revele exagerado. As

seguintes respostas para a mesma pergunta-provocação que vimos no começo do vídeo: “Se,

na verdade, nos conhecerem, vão saber que nós somos bem diferentes do que eles realmente

pensam e que há muita gente boa aqui no Coque também”; “Aí vem visitar aqui a comunidade

e fica achando assim, que a comunidade é perigosa […] Vê o outro lado do Coque também,

que tem arte, tem educação” - não sinalizariam, ainda que sutilmente, para a presença de

outros vozes em seu interior ou mesmo a simples insinuação de que essas outras vozes seriam

possíveis? O vídeo não concretiza, mas parece indicar as possibilidades de sua própria crise,

parece apontar uma crise possível para o seu próprio sistema de expressão.

De fato, apesar de boa parte do curta se dedicar a falas que se constituem como uma

espécie de defesa diante do preconceito de classe, efetivamente uma reação ao vídeo dos

alunos da ABA que serviu como mote para sua realização, seu trecho final opera um

movimento diferente, nos apresentando uma outra voz que provoca um tensão ligeiramente

maior na questão posta. A melhor resposta que o filme parece carregar, que em sua força

talvez possa, ao menos, colocar em crise o próprio estatuto de resposta do vídeo, e assim se

colocar num patamar diferente de todas as falas apresentadas até então, é a de que a separação

entre as classes só existe no momento em que é acionada. No momento em que a posse dos

bens materiais é tomada como critério para se olhar a sociedade, no momento histórico em

que faz sentido uma divisão social de acordo com o poder de aquisição de bens materiais,

nesse momento mesmo é que pode se justificar o preconceito contra aquele que não detém

poder aquisitivo e que, supostamente, estaria interessado em vencer a luta da qual por ora faz

parte do lado dos vencidos.

Essa indicação está presente num depoimento em especial, depoimento que ganha

posição de destaque no vídeo, talvez mais importante até do que a pergunta que abre o filme e

indica seu caminho. Ela é proferida por alguém que inicialmente não sabemos quem é, pois,

no momento de sua entrada, o vídeo passa a revisitar a imagem de cada um dos entrevistados,

como se, dessa vez, todas as falas anteriores ilustrassem o que a fala que se desenrola no

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momento está dizendo. A relação palavra-imagem se mantém, mas se antes aquilo que estava

sendo dito se bastava e as imagens que vinham a se colocar num plano secundário de

importância, devido a seu caráter meramente ilustrativo, eram tomadas de lugares do Coque,

agora as imagens dos próprios entrevistados vêm servir como amostragem daquilo que é dito

por esse último entrevistado.

A novidade trazida nessa entrevista é expressa da seguinte forma:

No momento em que o Brasil se encontra, você ter uma visão de classe

média é ainda uma visão limitante. É preciso a gente ter uma visão mais

crítica dessa noção de classe social e de como essas noções excluem as

pessoas, excluem também as possibilidades de diálogo entre as pessoas e

excluem esse processo de humanização.

Aqui menos se responde e mais se postula. Para o problema do preconceito de classe, não

mais um tom indignado e uma tomada de postura reativa, mas sim a indicação de uma

possibilidade de superação. O entrevistado30

parece sublinhar as outras falas, ao mesmo tempo

em que confere a elas legitimidade. Ele não é filmado de maneira tão informal quanto os

outros, que falam no meio da rua ou na janela de suas casas, nem tem a fala entrecortada por

outros depoimentos, prescindindo dessa espécie de apoio.

30 O entrevistado ao qual nos referimos é Aurino Lima, membro antigo do NEIMFA e professor do Programa de

Pós-Graduação em Educação – linha de pesquisa em “Educação e Espiritualidade “- da UFPE.

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Figura 4 Aurino Lima no filme “Desclassificados”

Esse “tratamento” que recebe dos realizadores do filme nos faz imaginar que talvez ele

não seja exatamente vítima de preconceito, como os outros entrevistados demonstram ser;

talvez nem mesmo more no Coque ou não tenha construído sua história lá. Talvez não tenha

nascido e sido formado lá. Sua fala, um tanto mais elaborada e tendendo a uma linguagem de

especialista aponta nessa direção. Se relembrarmos o uso do especialista tomando novamente

o filme “Viramundo” como exemplo, entenderemos a função que essa voz assume. Como

vimos, o que caracteriza o chamado “Modelo sociológico” é uma estrutura narrativa que

confere autoridade à figura do locutor, que não aparece na imagem mas possui o poder de

guiar as experiências que vemos na tela e definir o modo como iremos encarar os

personagens. Ele representa a “voz do saber”, “um saber generalizante que não encontra sua

origem na experiência, mas no estudo de tipo sociológico; ele dissolve o indivíduo na

estatística e diz dos entrevistados coisas que eles não sabem a seu próprio respeito”

(BERNADET, 2003, p. 17). Bernadet (2003) observa que em “Viramundo” – mas não só –

uma maneira de descentralizar um pouco o filme do investimento verbal construído na

narração e materializado pelo narrador é usar um personagem – nesse caso, um entrevistado –

que reitere a fala desse narrador na imagem, que tenha por função operar no mundo histórico

a função que o locutor opera “acima” dele. Bernadet define essa “função-personagem” como

“Locutor auxiliar”.

Sua função é ajudar o locutor a expor as ideias e os conceitos a serem

transmitidos [...] Ele alivia a locução off do filme possibilitando que ela

ocupe menos tempo, e aproxima as informações genéricas do ‘real’. [...] De

modo geral, os locutores auxiliares estão numa posição de poder, quer pelo

saber, quer pelo cargo que ocupam, bem como pela função que

desempenham no sistema de informação dos filmes. Estão assim mais

próximos dos locutores que dos entrevistados. [...] (Ibid, p. 26)

Em “Desclassificados” não temos narrador, mas é impossível negar que as entrevistas dadas

ao longo do vídeo evocam uma mesma voz, uma voz consensual nos temas que se põe a

abordar e, dessa maneira, torna-se igualmente impossível não notar que essa “voz do

especialista” surge justamente em relação a essa univocidade do sistema geral de expressão do

filme. Como dissemos, ela legitima as outras falas falando de um patamar mais elevado. A

linguagem que esse personagem usa é diversa e o fato das imagens dos outros personagens

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retornarem à tela enquanto ele fala, denuncia a intenção dos realizadores de “condensar”,

“resumir”, “legitimar” essas falas propondo, ainda que inconscientemente, uma diferença de

status entre elas.

Depois desse momento revelador, dois momentos mais encerram o filme.

Curiosamente, retorna à tela um morador do Coque, um dos primeiros a dar depoimento.

(Aparentemente, o depoimento mencionado no parágrafo acima oferecia o desfecho perfeito

para o vídeo, dado o seu caráter analítico único). Também contorna uma certa rivalização

entre as classes e propõe o diálogo – “pontes”, nas suas palavras – entre os diferentes grupos

sociais. Sua fala não poderia ser inserida em meio às outras simplesmente. Ao que parece, só

poderia vir antes ou depois do entrevistado que desconstrói a noção de classe social. Ambos

se arriscam a ir além de uma resposta.

Retorna também, em seguida, o morador do Coque que faz a pergunta inicial. Seu

olhar provocativo em direção à câmera permanece inquirindo, mas já parece ter adquirido,

com o desenrolar mesmo do filme, outro caráter. O seu olhar agora tem também corpo, o

corpo do filme, digamos assim, e ele não reage simplesmente, mas, se encontrando com o fim

do vídeo, se apropria de uma consciência diferente. Talvez já saiba que não precisa tomar a

condição financeira como parâmetro para olhar a si próprio e a sociedade. Talvez já saiba que

essa não é a única classificação possível, ou que classificações não são desejáveis, porque

sempre segregam. Talvez seu olhar já expresse a certeza de que a ele não se deve mais atribuir

o tratamento de “desclassificado”. Nada disso podemos concluir com total certeza com esse

final, mas a voz que seu olhar expressa, e sua voz “real” não precisa manifestar, se aproxima

da crise com a qual o “especialista” que aparece no vídeo também flertou.

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4. “A LINHA, A MARÉ E A TERRA”

O vídeo “A linha, a maré e a terra”, a exemplo de “Desclassificados”, foi também

realizado no ano de 2008, tendo sido filmado em paralelo a uma entrevista organizada para a

“Rádio Coque Livre”31

. Seu Xavier, pai de Sandokan Xavier, integrante do MABI, Dona

Francisca, mãe de Berg, também integrante do MABI, e Dona Paulina, avó de Monick, (à

época aluna do Projeto Coque Vive nas aulas realizadas no NEIMFA), falam de lembranças

de quarenta anos antes, período em que chegaram ao bairro. O relato dessa chegada e da

posterior estadia mistura-se às histórias de transformação urbanística do bairro; atravessando

décadas, a Estação de Metrô Joana Bezerra, o Fórum Rodolfo Aureliano, as lutas pela posse

da terra, vão surgindo no depoimento dos entrevistados.

O início do curta poderia ser descrito como um travelling horizontal, divergindo do

movimento panorâmico utilizado convencionalmente no cinema em função da imobilidade da

câmera. Quem percorre o caminho ao qual somos induzidos a também percorrer com o olhar

não é propriamente o equipamento de filmagem, que repousa sobre o seu próprio eixo;

estamos a bordo de um transporte em movimento e a câmera mira através da janela. O reflexo

do vidro que recobre sutilmente a imagem não nos deixa dúvida – e o rio que vemos nos

primeiros segundos de filme não “reflete” apenas o céu acima de si. Por trás desse vidro e por

trás de um pequeno muro que se ergue metros a frente, se apresentam também casas, ruas e

estabelecimentos comerciais de um lugar que logo saberemos qual é. Curiosamente, e isso não

pode passar despercebido, a primeira imagem que temos do Coque é, na verdade, um reflexo.

O olhar da câmera encontra uma imagem da imagem, como um duplo de sua imagem, como

um Coque que não é acessível em sua realidade, que não pode aparecer em si. Seria simbólico

das vozes mobilizadas no filme?

Essas imagens são alternadas com as logomarcas das instituições que, cada uma à sua

maneira, contribuíram para a realização do vídeo. Primeiro, a Faculdade Latino Americana de

Ciências Sociais (FLACSO); depois, o Coque Vive; por último, o Neimfa. Elas “apresentam”

o vídeo documentário “A linha, a maré e a terra”, título que nos é mostrado no momento

mesmo em que também se revela o espaço – ou o móvel – de onde a câmera lançava seu

olhar: o metrô. A câmera, como uma pessoa que contempla a paisagem e, de repente, se

31 Rádio Coque Livre foi o nome que adquiriu a “Rádio Livre-se” durante o período de uma semana em que

permaneceu no Coque, uma das paradas do seu circuito de itinerância. (SILVA, 2011)

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lembra de onde está, se desloca para a direita do quadro e vemos toda a extensão do vagão do

metrô, onde estão também outras pessoas. O deslocamento da câmera e o desvelar de “seu”

espaço de filmagem pontuam, na realidade, a chegada a uma estação, e é aí que o título se faz

presente. Com ele o subtitulo, “Memórias do Coque”, e então, finalmente, podemos fazer as

conexões necessárias para entender que o rio das primeiras imagens deverá ser o Capibaribe,

que as casas, ruas e estabelecimentos comerciais fazem parte do bairro do Coque, e que a

estação onde acabamos de aportar é a Estação de metrô que atende a região da Ilha de Joana

Bezerra. Por enquanto, não era com uma imagem que estávamos lidando?

No momento seguinte, dessa vez fora do metrô, percorrendo já as ruas que

anteriormente eram miradas somente à distância, somos conduzidos até a Biblioteca Popular

do Coque. A trilha sonora que nos acompanha desde o começo parece dizer que a

apresentação ainda não se concluiu. Do lado de dentro da biblioteca, nos fala a rádio “Coque

Livre”, pela voz de Berg, integrante do MABI que, como vimos, participou também da

realização de “Desclassificados”. É a voz dele que enuncia o “projeto” que estamos prestes a

conhecer e que o subtítulo “memórias do Coque” já sinalizou: ouvir moradores antigos do

Coque para entender como era o bairro quando eles ali chegaram. Dito de outro modo:

reconstruir o bairro do Coque “por dentro” das lembranças de quem ali há muito habita. É

impossível não enxergar certa beleza nesse modo do filme enunciar-se - de enunciar a si

mesmo -, não só porque essa enunciação é feita à maneira do radialismo, que vem se integrar

aqui ao universo da imagem, mas também em razão do vídeo ser tomado como um “projeto”

e, tomemos a liberdade, “projeto” soa aqui como “tentativa”. O filme é, portanto, uma

tentativa de reapresentar o Coque através das memórias de seus moradores mais antigos. Se

será bem-sucedido, é essa experimentação que se inicia que nos permitirá dizer.

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Figura 5 Gutemberg Lima no filme “A Linha, a maré e a terra”

O modo do filme enunciar a si mesmo – anunciar-se – parece também sinalizar para

uma outra voz que se desenvolve dentro de sua estrutura narrativa e que se materializa no

procedimento da entrevista, como veremos adiante. A entrevista não aparece em sua forma

convencional, como em “Desclassificados”, é o que voz “radiofônica” antecipa. De qualquer

modo, à essa apresentação orgânica da proposta do filme, se segue um letreiro que, nos

parece, impõe o tom absolutamente inverso. Ele nos faz ver: “O Coque é um bairro da cidade

do Recife, Nordeste do Brasil. Por abrigar grupos criminosos, ligados ao narcotráfico, é

considerado pelos moradores da cidade como um dos seus bairros mais violentos”. Primeiro,

o Coque é situado geograficamente. Em seguida, podemos considerar que três sentenças

recaem sobre ele: a de que abriga grupos criminosos, a de que esses grupos são criminosos em

razão da atividade ilegal de tráfico de drogas e a de que os moradores da cidade o enxergam

como um local perigoso. É possível afirmar que, independentemente da veracidade dessas

sentenças, ou ainda da medida em que podem ser tomadas como verdadeiras – e, de fato, para

o filme isso não está em jogo -, ao compartilhá-las nesse letreiro que integra sua abertura, o

vídeo obriga aquele que se relaciona consigo a se relacionar portando esse dado. Com força

ou sutilmente a apreensão de seu percurso vai ser dar com essa informação.

Um letreiro mais encerra a abertura. Ele complementa o primeiro mostrando: “O

Coque estende-se por mais de 130 hectares da região central e abriga uma das principais

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estações de metrô e ônibus da cidade. O bairro surgiu a partir da ocupação irregular de áreas

às margens do Rio Capibaribe e de uma antiga linha de trem”. O filme chama a atenção aqui

para algumas questões que, a exemplo das colocadas pelo primeiro letreiro, precisamos

pontuar. Em primeiro lugar, para o tamanho da região do Coque, diz, entrelinhas, que uma

região de 130 hectares não pode passar despercebida, ou, digamos assim, não pode passar mal

percebida – não esqueçamos do que alertava para a má fama da região -; em segundo lugar, o

segundo letreiro chama atenção para o quão populosa é a região do Coque; não apenas é

grande em extensão, mas lá moram muitas pessoas, tanto que o bairro possui “uma das

principais” estações de metrô e ônibus da cidade. Por último, chama atenção para a formação

histórica do bairro, para a História do bairro, observando o seu início “irregular“ e a existência

de uma linha de trem. É a última frase, que evoca o passado do Coque, que conectamos mais

diretamente ao tema que nos foi sinalizado pelo título e pelo subtítulo. As frases relativas à

extensão e à populosidade do Coque entram, por sua vez, como entram as considerações sobre

a violência do bairro e sua má fama: só será possível assistir ao restante do filme – ou seja, o

seu todo – com essas informações num lugar mais ou menos tangível, certamente inevitável

ao prosseguimento da “leitura”. São vozes oficiosas, essas últimas, impossível identificá-las

de modo natural à experiência pessoal de algum habitante do Coque ou outro indivíduo que

ali tenha tido uma vivência narrável.

Figura 6 Letreiro do filme “A linha, a maré e a terra”

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A primeira a falar no filme é Dona Francisca, que descreve como eram as casas do

Coque no tempo em que havia linha de trem, no tempo em que a chuva fazia a maré invadir

essas casas. Enquanto empresta sua voz e imagem para relatar os primeiros anos no bairro,

ancoram-se a esses elementos algumas informações no canto direito da tela, nos fornecendo

dados de natureza semelhante aos que anteriormente apareceram nos letreiros. Dizem eles:

“Dona Francisca vive há 44 anos no Coque. Chegou aos 23 anos com o marido e a filha. Veio

de Juazeiro do Norte, Ceará”. De fato, a exemplo da abordagem usada para apresentar o

Coque nos letreiros iniciais, as informações que apresentam complementarmente Dona

Francisca versam sobre sua origem e história e fazem isso se aproximando de um tom formal:

é quase diante de uma carteira de identidade, uma carteira de identificação de Dona Francisca

enquanto moradora do Coque, acrescida de outras informações, que somos colocados.

Rapidamente, passa a fazer parte da conversa uma segunda entrevistada, Dona

Paulina. Lembra igualmente das consequências da proximidade do bairro com a zona central,

mais caudalosa, do rio Capibaribe. O letreiro que aparece para complementar a apresentação

dessa personagem surge no lado superior da imagem, mas não no canto, não discretamente. É

por isso que talvez possamos dizer que ele não deseja simplesmente complementar a

apresentação de Dona Paulina, mas sim integrar essa apresentação, com força igual a seu

depoimento e imagem. A mudança de posição na aparição do letreiro na tela recoloca a

centralidade desse mecanismo para o sistema de expressão do vídeo. Se o teor das palavras

que descrevem Dona Francisca se aproximam do teor das palavras do início do filme – e, já

podemos dizer, é o mesmo teor das que acompanham Dona Paulina – o seu espaço na imagem

é mais discreto; como dissemos, ganhou “apenas” o canto do direito da tela. O letreiro que

acompanha Dona Paulina, por sua vez, compete com sua imagem, quase a “roçando”.

O próximo entrevistado é Seu Xavier. Antes mesmo que ouçamos sua voz, ou que ela

ocupe de fato a nossa atenção, o que podemos considerar como a pergunta central do

entrevistador vai ressoar no vídeo, revelando-nos o que havia sido indagado exatamente no

ponto de partida de cada depoimento. De maneira tal que não pode chegar a nos surpreender,

o letreiro que o descreve aparece à tela também antes de sua fala ter início. Sua imagem já nos

alcança, mas sua voz é antecipada pela voz do filme, se exibindo muda na tela. Parece mesmo

que para “se contar” - para transmitir a nós sua narrativa – conta também com esse

mecanismo, espera solidariedade dessa informação textual levada à tela. Esse texto o

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apresenta da seguinte maneira: “Seu Xavier tem 64 anos. Antes do Coque, morava no

Mustardinha, na Região Metropolitana do Recife”. A fala de Seu Xavier se concentra em

referências a respeito da linha de trem. Seu desfecho é curioso: “[...] o assassino daqui era o

trem mesmo, né?! […] hoje é o ser humano, né?! Antigamente era o trem”. O limiar dessa fala

nos traz indicações interessantes. A fala de Dona Paulina atravessa a de seu Xavier, sem com

ela competir. Além disso, temos uma pequena sequência de falas e imagens alternando-se. O

trem, existente no passado, é mencionado e vemos o metrô, em funcionamento atualmente, na

tela. A maré é mencionada e vemos o Capibaribe de hoje na tela. Imagem-ilustração: o que

vemos no plano visual recebe importância secundária ao que ouvimos verbalmente ou, pelo

menos, fica a tal ponto dependente do que é dito que a “apreciação” da imagem é sempre

parcial.

Mais adiante, um momento marcante, uma pergunta reveladora: o entrevistador,

Rafael Felipe32

, se direcionando a Dona Paulina, que acabara de falar, animadamente

pergunta, “aí a senhora tirava o sapato e andava pela maré, era?!''. O interesse pelo subjetivo

pode pontuar outra direção para o filme. Esse interesse não se revela integralmente

consolidado; talvez seja justamente esse o momento em que começa a se insinuar. Não

podemos esquecer da objetividade que caracteriza “Desclassificados” e notar que aqui esses

dois vídeos tomam certa distância, que a nós cabe definir. O interesse pelo subjetivo, exposto

na pergunta do entrevistador, é apropriado e materializado.

Apesar disso, a imagem seguinte, que faz a “tradução” da descrição que Dona Paulina

faz de suas caminhadas pela maré, retorna à função ilustrativa que assumiu junto às falas

anteriores. Se aquilo que é dito pelo entrevistador revela um desejo de que adentrem de vez o

terreno da memória, a função ilustrativa para a qual chamamos atenção nos mostra que o

olhar da câmera ainda não pôde incorporar esse desejo. O som direto – de pés caminhando

sobre folhas secas na mata que margeia o rio – não é, inclusive, totalmente assumido.

Ficamos, talvez, na vontade de ouvir mais do estalar das folhas, ver mais da mata, imaginar,

enfim, mais nossos pés no lugar daqueles pés e compartilhar a experiência do caminhante.

32 Estudante do Curso de Jornalismo que, à época, integrante a equipe do Projeto Coque Vive e não só

contribuiu com a produção audiovisual do grupo, mas também com a acadêmica. Sua pesquisa “tal”, tem sido

essencial para inúmeras outras.

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Figura 7 Dona Paulina, no filme “A linha, a maré e a terra”

Podemos dizer, diante do que descrevemos até agora, que o formato de entrevista,

central para a estrutura de expressão de “Desclassificados”, aparece aqui reconfigurado. A

princípio, observamos que dois aspectos caracterizam essa reconfiguração: o primeiro diz

respeito à aparição do entrevistador no vídeo e o segundo refere-se ao espaço mesmo da

entrevista, que, dessa vez, não acontece no um-a-um, mas numa espécie de dinâmica coletiva,

como uma conversa, algo, talvez, mais informal, mas, de toda maneira, menos “unilateral”.

Sinal disso é que um entrevistado, ou melhor, um integrante dessa roda de conversa, quase

nunca aparece sozinho nas imagens, sempre tendo ao fundo mais um debatedor. Assim, por

um lado, com a “participação” do entrevistador integralmente assumida, o vídeo expõe suas

condições de realização, suas circunstâncias de interlocução, dobra-se sobre si para assumir o

tecido de sua composição. Por outro lado, temos diante de nós uma cena de interlocução

“pura”, no sentido de que vozes diversas relacionam-se entre si sem que haja maiores

investimentos de outras ordens por parte do filme. Naturalmente, a edição “organizou” essa

conversa segundo suas intenções, mas há ali uma inevitabilidade básica surgida da co-

presença dos personagens. O vídeo nos remete à história do cinema participativo,

especialmente às interações forjadas nos filmes de Jean Rouch.

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Figura 8 Da esquerda para a direita, Seu Xavier, Dona Paulina e Rafael Felipe

Nas falas que se seguem, a maré surge como uma personagem em comum na história

dos entrevistados, mas não só para eles; seja no relato de Dona Francisca, no qual um

caranguejo se engancha numa de suas filhas, seja no relato de Dona Paulina, no qual a maré

impunha uma verdadeira divisão geográfica no bairro, a maré é evocada como uma marca

comum a todos do bairro, evocada como uma experiência que diferencia esses moradores dos

moradores de outras localidades, marca que os individualiza no âmbito da cidade e, ao mesmo

tempo, os reúne entre si. A questão da terra/habitação surge como categoria ontológica – o

direito de estar misturando-se ao direito de ser - para essas pessoas que moram em locais cuja

formação histórica sob o estigma da marginalidade, sempre sendo consideradas “o outro” da

cidade, o oposto de seu centro econômico e simbólico.

A trilha sonora que ouvimos a essa altura, mais ou menos a metade do vídeo, soa como

quisesse materializar musicalmente o rastro da memória que os personagens têm ali seguido e,

apesar de distantes, os acordes da guitarra não são propriamente nostálgicos. Essa música

antecede a aparição de um novo letreiro, que diz: “Por sua localização central, os moradores

do Coque vêm sendo ameaçados pela expansão imobiliária. Desde os anos 70, eles lutam pela

regularização da posse da terra e pela permanência no local”. O tom informativo presente nos

outros letreiros não é abandonado e o vídeo segue permitindo a concorrência entre essa voz,

que se exerce não só através dos letreiros, mas também na escolha por tornar a imagem

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secundária aos depoimentos e relegar o som ambiente nas cenas, e uma voz mais subjetiva

que se insinua nas entrevistas e planos do rio, do mangue e de outros locais do bairro. Talvez

essas vozes não cheguem a ser contraditórias, mas lançam o vídeo numa espécie de entre

lugar.

Na sequência, mais um letreiro, que complementa o primeiro: “Uma parte da área foi

ocupada pela Estação de Metrô Joana Bezerra e pelo Fórum Desembargador Rodolfo

Aureliano. Já tentaram, também, construir um shopping center”. Essa marcação pontua

exatamente o próximo assunto da roda de conversa que estamos acompanhando. O

entrevistador pergunta sobre a construção do shopping Center, ao qual o letreiro se referia. Os

realizadores desejam agora se debruçar de maneira mais detida sobre a questão da posse da

terra e as lutas que a envolveram. E é algo dessas lutas que Dona Paulina revela: afirma que

houve briga, “briga de passeata”, para evitar a construção do shopping, que em nada

beneficiaria os moradores do Coque, mas que o mesmo não aconteceu em relação ao Fórum.

O vídeo da TV Viva, que citamos na nossa introdução, relata exatamente esse momento

histórico mencionado por Dona Paulina.

Para completar a tríade de intervenções urbanas no bairro, o próximo assunto da

conversa é a construção do metrô. A ordem de apresentação desse assunto é invertida:

primeiro as imagens, dessa vez com o som ambiente assumido, depois as palavras. Podemos

dizer que a questão de moradia, que já atravessava, à sua maneira,“Desclassificados”, é aqui

plenamente apresentada. E o debate é feito. Mas em que chave isso se dá? Esse é um ponto,

nos parece, que merece muita atenção. A rede de referências que os moradores do Coque

usam para nomear os processos de transformação do espaço do bairro é “humanizada”: o

centro de importância dessa questão para eles não é uma lógica desenvolvimentista que, em

nome de uma suposta modernização da cidade, define e recria incessantemente lugares e não-

lugares. De um lado pessoas, casas, histórias, afetos; do outro, desenvolvimento, expansão,

dinheiro, etc.

O caráter desses depoimentos tem também uma tarefa paralela, a de colocar em

perspectiva os diversos momentos históricos de transformação do espaço da cidade e, por

isso, perceber como essa lógica para a qual chamamos atenção no parágrafo anterior está

solidamente enraizada na mentalidade governamental nas últimas décadas. As intervenções

estatais em ação atualmente podem assim ser claramente identificadas dentro de um escopo

histórico mais amplo. É o tom informativo do vídeo – curiosamente? - que nos permite

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acessar isso. Já no final do século XIX e início do século XX, a postura dos governantes de

ignorar as raízes históricas da composição de cidade que aí ganhava contornos e desqualificar

os moradores dos mocambos simplesmente em função de sua condição de pobreza, por

exemplo, revelava como ganhava contornos também uma determinada forma de olhar os

locais periféricos da cidade. Para o geógrafo Jan Bitoun, citado em “Dos Alagados à

especulação imobiliária” (FERREIRA, 2012), as lutas dessa época inauguram os embates

contemporâneos em torno da questão territorial.

O letreiro seguinte insiste: “O Coque está no caminho entre Boa Viagem, o bairro mais

rico da cidade, e a região central do Recife. A necessidade de duplicação do viaduto, que liga

essas áreas e corta o Coque, é uma nova ameaça para parte de seus moradores”. Talvez essas

palavras resumam bem o entre lugar que as vozes de “A linha, a maré e a terra” construíram

para si. Na primeira sentença, mais uma vez o Coque referido sob uma perspectiva

“oficialista”, institucional,, naquilo que ele representa para os outros e não para os seus

moradores. Na sentença seguinte, uma frase emblemática, absolutamente reveladora, e que, a

nosso ver, causa um pequeno curto-circuito no sistema de informação rígido que o filme

adotou – e que, como vimos, tem seus desdobramentos “positivos”, o olhar histórico, e os

“negativos”, a contradição com o tom pessoal das entrevistas. Na verdade, essa sentença

aparece na forma de um aposto – intrusão? -: “A necessidade de duplicação do viaduto, que

liga essas áreas e corta o Coque, é uma nova ameaça para parte de seus moradores”.

Podemos observar, em primeiro lugar, a singularidade das palavras que classificamos

como intrusas: o viaduto, que pode ser uma ameaça para os moradores do Coque, liga Boa

Viagem e a região central da cidade, mas corta o Coque. Independentemente do centro

geográfico ou econômico da cidade, boa viagem e centro surgem, no fundo, como centros do

próprio discurso. Discurso que, mais uma vez, se coloca a meio caminho, pois essa frase é

inserida entre uma oração que revela a ameaça que é o viaduto para os moradores, oração que,

por sua vez, tem os moradores como centro.

Imagens dos espaços do Coque são novamente usadas. A função que elas têm em cada

momento – se é a mesma ou se demarca diferenças – é muito importante para

compreendermos as vozes em funcionamento no interior das imagens do filme. Os acordes de

guitarra também retornam e, depois de questões tão importantes serem debatidas, até ficamos

com a impressão de que esse momento pretende fazer o espectador respirar. O fôlego que irá

adquirir nesse momento não é foi trazido ao acaso: mais uma vez acompanhando a marcação

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feita pelo letreiro, o assunto a seguir é o momento atual do Coque no que diz respeito às

transformações de seus espaços e a relação disso com a vida das pessoas.

“O mesmo problema do passado”, “ainda tem gente brigando”, entre outras frases,

resumem o teor da sequência. A trilha, dessa vez, não desaparece, o que nos faz crer que a

atmosfera que tenta imprimir também não deseja mais ir embora: um Coque que não é mais o

que era. Não seria uma maneira de enunciar o mesmo que Berg, o locutor da Rádio Coque

Livre, enuncia? Em vez de “projeto” que envolve a narrativa de memórias do passado por

moradores antigos do Coque, fragmentos de um Coque que não pôde ser hoje aquilo que esses

moradores desejaram para ele. Essa voz talvez seja subterrânea demais para ser encarada, mas

não é menos presente e viva. A trilha que, aparentemente apenas sublinha as imagens,

apresenta sua força inegável.

Podemos dizer que o letreiro que se segue lança o filme noutra direção. O seu

conteúdo, para além do tom oficioso que identificamos, já traz outras problematizações,

outras perspectivas, outras vozes. Ele diz: “O Coque é o bairro do Recife com o mais baixo

índice de desenvolvimento humano. Seus mais de 40 mil moradores enfrentam problemas de

moradia, saúde, educação e desemprego. Esses problemas são agravados pela fama de ‘gente

perigosa’. Por isso, o que essa gente deseja é ser vista de modo diferente”. Essa última frase

representa precisamente a entrada dessa nova voz na estrutura narrativa do vídeo

documentário. Ela aponta para algo que até então não fora dito, apesar de aqui e ali estar

esboçada nos depoimentos de Dona Paulina, Dona Francisca e Seu Xavier, a saber, o desejo

dos moradores do Coque de serem vistos de uma forma “diferente”.

Há muitas questões a serem debatidas aqui: a aproximação que essa sentença exerce

com “Desclassificados” e, ao mesmo tempo, sua distância do primeiro vídeo que analisamos,

o primeiro aspecto remetendo à própria tematização da visibilidade do bairro e o segundo

dizendo respeito ao modo como a memória, a sua indeterminação, demarcou uma distância

entre o discurso dois filmes; também podemos debater como, sutilmente, o que foi usado

como centro de expressão do documentário, o sistema de letreiros, cujo tom oficioso já

revelamos, puxa para si o papel de dizer o que os moradores do Coque desejam. Será mesmo

que os desejos dos moradores do Coque podem ser enunciados dentro desse escopo de sua

relação com o resto da cidade ou outros sentimentos que não envolvem a visibilidade do

bairro mais uma vez ficaram de fora do discurso, de um discurso que tinha justamente como

objetivo contornar essa operação de poder?

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Os depoimentos versam sobre a infância. E, em seguida, depois de mais imagens de

“apoio” – termo sintomático da função que aqui têm – uma imagem “perdida”: o menino e o

bode. Mereceria ela algumas linhas de nossa análise? Cremos que sim, parece estar ali uma

“sobra” que não pôde ser descartada - um descuido do editor na sua inclusão? - uma imagem

que não teria lugar na estrutura do filme, mas, por alguma razão, por alguma coisa que diz – e

diz diferente de tudo o que foi – ela se impõe, impôs. E ainda que não funcione dentro da

malha de vozes que o filme manipula, ela é a própria denúncia daquilo que o filme deixou de

fora. Quem é aquele menino loiro, o que faz ali segurando o bode, o que fazem os dois no

meio de um campo de futebol qualquer do Coque, tudo isso para sinalizar, no dizer de Jean-

Claude Bernadet (2003), “uma outra abordagem menos óbvia”, a possibilidade de explorar

uma outra dramaturgia. No deslize de uma abordagem, o sinal para outras possibilidades.

Veremos que a coragem e habilidade para lidar com esses “furos” da narrativa (DA-RIN,

2004) que carregam tanto significado, reaparece mais assumida em “Centenário do Sul”.

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5. “CENTENÁRIO DO SUL“

O vídeodocumentário “Centenário do Sul” (2009) faz de um aparente pequeno gesto o

ponto de partida para sua narrativa. Antes de sua realização, foi organizado por membros da

Rede Coque Vive um encontro para que algumas moradoras do bairro falassem sobre suas

memórias a partir de álbum pessoais de fotografia. Desse primeiro encontro – ao qual se

seguirão outros mais, como veremos – nasce a iniciativa de convidar essas mulheres para

fazer o mesmo, dessa vez diante das câmeras. Vânia, Maria José e Prazeres, todas moradoras

da Rua Centenário do Sul, aceitam o convite e passam a ser as personagens principais desse

novo momento. A equipe de filmagem foi composta, em sua maioria, por mulheres.

A breve apresentação ao início do vídeo, conduzida por uma voz feminina, põe à luz

os termos em que filme pretende se construir; à fotografia de um grupo de mulheres reunidas

na Biblioteca Popular do Coque, como nos indica a legenda, acrescenta-se a seguinte

explicação em voz over: “Essa é a foto de um encontro. O encontro de mulheres com suas

memórias a partir de fotografias. Três delas aceitaram participar desse vídeo. Todas elas

moradoras da Rua Centenário do Sul”. Por meio da narração, o filme enuncia seu ponto de

inflexão: o encontro de mulheres com memórias, a memória como encontro. A placa da

Centenário do Sul é filmada – vemos seu número e a informação de que faz parte da Ilha de

Joana Bezerra – e surge à tela o logo do Projeto Coque Vive e seu slogan. Um letreiro com o

título, “Centenário do Sul”, complementa o trecho de abertura. O universo geográfico e

simbólico com o qual iremos travar relação é logo situado, recortando suas coordenadas

particulares.

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Figura 9 Trecho de “Centenário do Sul” - encontro de mulheres na Biblioteca Popular do

Coque

Antes dessa breve porém significativa apresentação, assistimos a uma sequência de

fotografias, revezadas sobre uma imagem de fundo branco – como a indicar um desbotamento

que as fotos que vêm se colocar por sobre ela estariam ostentando – e acompanhadas pela voz

de cada uma das entrevistadas, a quem até então não fomos devidamente apresentados. O

tema da memória é, assim, introduzido, seguido da breve narração de teor expositivo à qual

nos referimos. A estes dois primeiros momentos vêm se integrar um terceiro, no qual as

personagens, de quem por enquanto só ouvimos a voz e a referência feita na narração, são

identificadas: um a um, os rostos de Vânia, Maria José e Prazeres são dados a ver. Aqui já

observamos “Centenário do Sul” tomar distância do seu vídeo antecessor “A linha, a maré e a

terra” – e se aproximar de “si mesmo”. O sistema de identificação das personagens é o que

nos permite insinuar essa leitura. Assim como já circunscreveu o espaço, o vídeo agora

individualiza seus personagens.

A imagem de fundo branco retorna – é a memória que deve conduzir a narrativa, diz

ela – e faz a transição do momento de identificação das personagens para o início efetivo do

vídeo. Uma das entrevistadoras lê a dedicatória de uma foto pertencente à Maria José, que em

seguida revela a origem da foto. A partir de então a personagem parece se deixar levar pelas

lembranças, obedecendo ao fluxo de rememoração disparado com a fotografia, e a

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entrevistadora, tirando uma dúvida sobre a criança fotografada, estimula o processo. Temos de

abrir parênteses novamente para colocar esse gesto em perspectiva: a despeito do

“dispositivo” – conceito que já elucidamos anteriormente – da entrevista se insinuar aqui

numa forma semelhante a que é usada em “Desclassificados”, o “um-a-um” convencional, a

sua “base” é outra. Agora, o dispositivo é atravessado pelo processo de rememoração

motivado pelas perguntas e disparado pelas fotografias.

As falas de Maria José, Vânia e Prazeres passam a se alternar na tela. Apesar de

estarmos apenas no início do vídeo, para quem o seu material já não é inédito, a lembrança do

agradecimento à Dona Arlete e sua justificativa, que aparecem nos créditos finais do vídeo,

emerge com toda força. Dona Arlete não participa do filme, mas seu nome aparece na lista de

mulheres que estiveram presentes no encontro sobre memória na Biblioteca Popular do

Coque. Nos créditos finais, depois do agradecimento às mulheres da Rua Centenário do Sul e

do agradecimento às mulheres que participaram do encontro na Biblioteca, lemos:

“Agradecimento especial à Dona Arlete, por nos ensinar a apurar o ouvido para ouvir”. O

agradecimento não nos oferece nenhuma “prova” a respeito da opção pela entrevista,

estratégia novamente mobilizada nesse vídeo, mas nos permite especular se a “lição” de Dona

Arlete não motivou, ou ajudou a motivar, a escolha pelo seu uso, já que o seu espaço, dessa

vez, pode ser identificado não como o da fala nem como o da conversa, mas sim como o da

escuta. A entrevista como espaço da escuta. E a memória como encontro. “Centenário do Sul”

impõe suas coordenadas: sua voz, apesar de poética – ou justamente por isso -, é muito

evidente.

Aliás, poderíamos nos perguntar pela ausência de Dona Arlete, já que seu

“ensinamento” parece ter significado muito para a equipe de realização. Nesse ponto talvez

nos deparemos com um “problema” e sua respectiva “solução”, ao modo das postulações de

David Bordwell (2008). Segundo a narração feminina em voz over que faz a abertura do filme

– e aparece acompanhada da foto na Biblioteca – o convite para participar do vídeo foi feito a

todas as mulheres que estiveram no primeiro encontro. Não sabemos porquê apenas três delas

aceitaram o convite, não sabemos porque, por exemplo, Dona Arlete, mesmo tendo oferecido

algo que, de alguma maneira, influenciou a própria conduta das realizadoras ao longo do

filme, não participou do filme. Impossível dizer aqui a razão. O fato é que aquelas que

aceitam, coincidentemente ou não, são da Rua Centenário do Sul, rua que não é somente a rua

delas, mas também da Biblioteca. O aceite parece vir a se ajustar ao recorte. O título

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“Centenário do Sul” pode, então, luzir nesse horizonte no qual o pessoal e o local ganham

privilégio.

Embora as fotografias sejam para vídeo o pretexto ou o motivo primeiro para suas

falas, o procedimento da entrevista, isolando cada mulher numa interlocução com uma

entrevistadora, faz com que os gestos e o modo de falar de cada uma revelem suas

personalidades únicas, nos dando, ainda que de maneira frágil, a oportunidade de acessar a

dimensão do singular. Maria José, a mais velha das três, de fala mais arrastada e tom saudoso,

no vai-e-vem de uma cadeira de balanço parece simular o jogo oscilante de recuperação e

perda entre memória e esquecimento. Vânia mostra uma natureza vívida; exibe suas fotos

como que a saborear as lembranças que elas carregam; se diverte com a história do casamento

de sua mãe: “ […] Foi em Prazeres. A gente foi de ônibus. Quando chegou lá foi um processo,

porque o juiz chegou bêbado e o juiz queria casar todo mundo às pressas. E a gente já tava

passado de fome, porque a gente tinha saído pela manhã. Já era tarde e o casamento não tinha

acontecido [...]”. Prazeres, em dúvida sobre como fazer para que uma de suas fotografias

fique num formato adequado para ser posta num quadro, consulta a equipe de filmagem;

primeiro demonstra querer cortar a fotografia, mas em seguida muda de ideia, e sua indecisão,

se vista atenciosamente, diz muito sobre sua personalidade.

Figura 10 Vânia no filme “Centenário do Sul”

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Seguem-se histórias não somente da época das fotos, mas também do momento em

que foram tiradas, da história por trás de cada fotografia, que as poses, os sorrisos, a

disposição espacial que aparecem dentro do quadro delas poderiam revelar apenas de forma

fugidia. Nos reencontramos com Prazeres pela segunda vez depois do início efetivo do vídeo,

e entramos numa sequência em que, a despeito de certa rigidez das posições no sistema de

entrevistas – não a mesma de “Desclassificados” -, as mulheres nos oferecem momentos

interessantes com histórias de suas vidas, e as próprias perguntas feitas parecem ir se

moldando às demandas criadas por cada uma durante os diálogos. O filme se desdobra, de

fato, na direção das singularidades. Prazeres é perguntada sobre como adquiriu a câmera que

registrou algumas de suas fotos e responde: “Eu comprei com meu dinheiro!”. A

entrevistadora inquire novamente: “Comprasse aonde?”, e Prazeres diz: “Na cidade”. O

diálogo continua, Prazeres explica que foi roubada e completa “Eu vou comprar outra

máquina”. O vídeo não demonstra preocupação em derivar para assuntos que, em sendo

“menores”, não deixam de dizer muito, como é o caso aqui sobre Prazeres. Esse “pequeno”

momento, sobra de conversa, revela muito a seu respeito.

Depois de mais algumas palavras de Prazeres, acompanhadas de uma imagem com

fotos espalhadas numa mesa, a câmera de filmagem – nosso olho no vídeo – desfoca e,

quando foca novamente, vemos outras fotos espalhadas, dessa vez sobre outra mesa.

Operação técnica do olhar da câmera. Operação da memória? Aparentemente, o entusiasmo

de Vânia em falar do passado também já foi notado pelas interlocutoras e ouvimos sua voz

dizendo: “É sempre bom a gente recordar o passado, porque cada vez que você vai pegando

uma foto pra selecionar, você lembra um pouco do seu passado, lembra como foi bom”. Ela

apresenta a sua própria definição para o processo a partir do qual o filme vai se construindo. E

o vídeo acolhe essa definição, compartilhando sua voz para, de passagem, definir a si próprio.

Nesses trechos singulares, as perguntas se apresentam mais ou menos implícitas, mas

podemos considerar, de fato, que tratam-se de perguntas surgidas nos diálogos, que muito

provavelmente não foram escolhidas para ser feitas para cada uma das três mulheres num

momento anterior às filmagens.

A pergunta que ouvimos em seguida – que, logo saberemos, se dirige à Maria José -,

revela justamente essa característica: “E das coisas que tinha aqui no Coque, que a senhora

tem lembrança boa, o que foi aqui que tinha melhor lembrança pra senhora que já acabou?”.

Poderia ser considerada a mesma pergunta feita pelo entrevistador de “A linha, a maré e a

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terra”, pergunta a partir da qual se cria a possibilidade de um desenvolvimento mais subjetivo

da narrativa do filme que ele acaba por não alcançar completamente. Mas é o saudosismo de

Maria José que é voluntariamente estimulado. E esta responde: “Tudo pra mim aqui era bom.

Porque não tinha essa algazarra que tinha hoje, as casas eram sempre distantes umas das

outras, todo mundo tinha sua casa grande, com quintal, com espaço pra botar suas plantas...

Hoje em dia ninguém tem mais quintal […]”, e continua a pesar as diferenças entre o Coque

do presente e o Coque do passado. Esse momento é intercalado por falas de Vânia, tecendo a

mesma relação entre o ontem e o hoje da comunidade, mas o seu tom alegre já se distancia do

de Maria José.

Não podemos deixar de observar como as memórias - não aquelas que poderiam ser

consideradas “sem importância”, mas sim as memórias positivas - se conectam naturalmente,

pelo depoimento das personagens, a aspectos do espaço do Coque, a questões de habitação e

circulação, à maneira de transitar e experienciar esse espaço. E não é também de um “tempo”

– próprio – que essas palavras que versam sobre o espaço do Coque dão conta? Maria José

retorna à tela mais adiante e dessa vez também conta uma história engraçada do passado.

Apesar de saudosista, não parece uma mulher amargurada. As falas das duas mulheres são

alternadas e, agora mais claramente, podemos dizer, a história do Coque é contada através de

suas pequenas histórias. Essa tendência – a “particularização do enfoque” - está presente em

diversas abordagens feitas por documentários contemporâneos:

Ao invés de almejarem grandes sínteses, análises ou interpretações de

situações sociais mais amplas, os documentários buscam seus temas através

do recorte mínimo, abordando experiências e expressões estritamente

individuais. As composições são variadas, mas há, de todo modo, uma

valorização da subjetividade do homem comum. Muitos filmes se

relacionam com experiências socialmente demarcadas (moradores de uma

localidade, por exemplo), evitando o ensaio que poderia, a partir de

características transversais ou generalizações, relacionar tais experiências

àquelas de outros indivíduos ou grupos, pela vida da interpretação ou do

diagnóstico. (...) As experiências são tratadas, de um modo geral, como

irredutíveis. Nem típicas, nem exemplares, tampouco extraordinárias. Ao

contrário: únicas, singulares. O valor, aparentemente, está no “registro” e no

trato respeitoso com elas, expondo suas particularidades – e não no olho que

vê mais longe, relacionando-as à conjuntura e a outras experiências, ou à

estrutura social, com suas potencialidades e problemas. (LINS; MESQUITA,

2008, p. 49-50)

Mais à frente, depois de mais uma história de Vânia, nos deparamos com uma cena

que se diferencia da estrutura composta por entrevistas. O rosto envelhecido de Maria José é

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filmado num primeiro plano, os traços da passagem do tempo são vistos na sua testa, na sua

boca, em seus olhos, e a ausência de música sublinha o foco de atenção da câmera.

Figura 11 Maria José, em close-up, no filme “Centenário do Sul”

Essa cena se coloca em posição diametralmente oposta àquela dos vídeos anteriores e

mesmo do restante de sua estrutura de organização em função da aposta numa poeticidade da

imagem que vai buscar sentido naquilo que o filme mais focado no verbal despreza. Nichols

nos explica essa forma de representar utilizada por alguns filmes, definindo como “modo

poético” de representação: “O modo poético é particularmente hábil em possibilitar formas

alternativas de conhecimento para transferir informações diretamente (...). Esse modo enfatiza

mais o estado de ânimo, o tom e o afeto do que as demonstrações de conhecimento ou ações

persuasivas” (2009, p.138)

Um pouco mais adiante, mais uma cena “diferente” das demais. Depois de Vânia

revelar que gostaria que a filha brincasse como ela brincava em sua infância, vemos o dedo de

uma criança sobre a imagem de uma fotografia, e a criança aponta e pergunta: “Quem é essa,

mainha?”. Vânia responde: “Tio Manezinho”. Sua filha: “E quem é essa?”, “Mainha”. A

criança exclama “é?” e Vânia completa “é!”. Assim como a opção por filmar o rosto de Maria

José nos ofereceu um efeito poético que o sistema de entrevistas não pode simplesmente

acessar, pois, nessa opção, é no olhar e no silêncio que se aposta, o momento de Vânia com

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sua filha nos revela algo sobre essa personagem, sobre sua relação com a filha, sobre seu

passado, que vai além dos relatos que ela dá ao longo do vídeo. Uma espécie de fenda, bem

ali na fuga do sistema geral de informação – que já se apresenta transmutado em relação aos

vídeos anteriores - é responsável por nos proporcionar outra experiência com essa que é

filmada. As fotografias intermediam a relação com o passado, as personagens intermediam

nossa relação com as fotografias, e, agora, Vânia intermedia e conjuga, ao mesmo tempo,

esses aspectos com o olhar de sua filha. O que parece conjugar, afinal de contas – e o olhar da

câmera capta isso – é uma transmissão.

Figura 12 Filha de Vânia aponta fotografia da mãe no filme “Centenário do Sul”

Estamos agora no fim do vídeo, anunciado pela narradora, que anuncia também outro

convite feito pela equipe: que as participantes posassem para fotos que gostariam de tirar no

Coque. O filme se abre para o presente. A abertura para o passado parece ter significado

também, no fundo, a reabertura para o presente. Essas fotos são exibidas lado a lado,

espalhadas por sobre a imagem de fundo branco, que volta para fechar a história que iniciou.

A trilha musical do início também retorna e são exibidos alguns momentos de bastidores do

filme e bastidores das fotos que aparecem ao final, tiradas em locais escolhidos pelas

mulheres.

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Antes do fim, vemos uma imagem de Prazeres - com quem, no fim das contas, tivemos

pouco contato – exibindo uma foto tirada na “Rua do canal”. Ela explica que essa foi a rua por

onde ela conduziu a equipe de filmagem em determinado momento da gravação. A narração

revela que, durante as filmagens, Prazeres reencontrou casualmente Matias, que tirou a foto

de Prazeres na Rua do Canal, foto mostrada por ela à equipe. O encontro é registrado. A

narração dá enfâse: “Mais um encontro, mais uma memória”. Matias olha a foto, e olha

Prazeres, - balança a cabeça como se dissesse “sim, lembro muito bem” -, e o movimento de

seu olhar é repetido pela câmera, que depois de repousar na fotografia, filma Prazeres

reagindo ao olhar lançado por Matias. O áudio é suprimido, como que a tentar suspender esse

encontro em algum lugar fora de uma continuidade do tempo. Aqui, nem passado, nem

presente, nem futuro. Fade out e, daí em diante, fotografias e créditos. Assim acaba

“Centenário do Sul”. O ponto final do filme parece arrematar a ideia da memória como

encontro

Figura 13 Prazeres encontra Matias no filme “Centenário do Sul”

No início do vídeo, observamos que as personagens são identificadas uma a uma. Seus

nomes aparecem na legenda e somos levados a intuir que serão, efetivamente, protagonistas

da(s) história(s), até porque no trecho anterior, que constitui a abertura do filme, é a voz das

três que ouvimos comentar das fotos que surgem à tela. Entretanto, Prazeres pouco aparece ao

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longo do vídeo. Antes da parte em que a narradora anuncia o convite para que as mulheres

posassem para fotos que gostariam de tirar no Coque, o fim do vídeo, só assistimos dois

momentos de entrevista com ela. No primeiro, fala sobre sua máquina, no segundo sobre a

foto tirada na rua do canal. À Prazeres não parece ter sido reservado um espaço de fala, na

pós-produção, semelhante ao das outras duas mulheres, que têm momentos sobre o passado

do Coque, momentos fora da situação da entrevista, momentos em que se alternam como que

dando uma “liga” que um documentário baseado em expressões de ordem verbal, oral,

procura para se estruturar melhor.

Mas isso, que podemos considerar uma “irregularidade”, certamente não se concretiza

sem razão de ser. A cena em que Prazeres demonstra dúvida sobre o que fazer com uma

fotografia que pretende colocar num quadro já indicava, naquilo que evocava sutilmente da

personalidade da mulher, que ela poderia ter a mesma importância que as outras participantes,

mas, em função de sua fala menos ordenável, mais caótica, não ser tão filmável. Uma

consideração que nos coloca justamente a condição de engajamento e a dimensão ética para as

quais Bill Nichols (2009, p.74-76) chama atenção na sua diferenciação entre estilo no cinema

de ficção e estilo no documentário, entre estilo, meramente, e voz do documentário, que

envolve uma participação ética nas situações experienciadas no mundo histórico.

Aos realizadores costumam se impor questões dessa natureza, questões nas quais

precisa se engajar por não estar criando mundos fictícios, mas tentando representar realidades.

Esse engajamento ao qual nos referimos curiosamente viabilizou o momento em que Prazeres

recebe maior destaque, seu encontro com Matias, e que melhor condensa o sentido que a voz

dessa vídeo assume, a da memória como um processo de encontro, interno – consigo mesmo -

, ou externo – com objetos (fotografias, por exemplo) e pessoas. Prazeres mostra, em

determinado momento do filme, uma fotografia tirada por “Matias”, em que posa sozinha na

rua do canal, na comunidade do Coque. Por acaso, durante as gravações, como revela a

narradora, Prazeres e a equipe se encontram com Matias, exatamente na rua do canal, dez

anos depois. A equipe não se furta em registrar o reencontro, que tem um apelo dramático

diverso de todos os outros apresentados até então. A câmera simula o olhar de Matias

reconhecendo a foto e, em seguida, Prazeres. A postura ativa dos realizadores descreve seu

envolvimento com o real: Prazeres, que durante o vídeo, pelo menos em termos de tempo de

fala, não obteve grande destaque, recebe, em função da atitude da equipe, uma espécie de

“redenção”.

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Essa cena belíssima encerra o filme deixando-nos implicitamente um recado de que a

abertura do documentário para o mundo histórico, esse risco que permanentemente o

“ameaça” pode-se configurar, na revisão “imanente” de valores que proporciona, algo

enriquecedor. É para essa possibilidade que nos alerta Jean-Louis Comolli:

Diante dessa crescente roteirização das relações sociais e intersubjetivas, tal

como é veiculada (e finalmente garantida) pelo modelo ‘realista” da

telenovela, o documentário não tem outra escolha a não ser se realizar sob o

risco do real. O imperativo de ‘como filmar’, central no trabalho do cineasta,

coloca-se como a mais violenta necessidade: não mais como fazer o filme,

mas como fazer para que haja filme. (...) Ao abrir-se àquilo que ameaça sua

próprio possibilidade (o real que ameaça), o cinema documentário possibilita

ao mesmo tempo uma modificação da representação (...). Os filmes

documentários não são apenas ‘abertos para o mundo’: eles são atravessados,

furados, transportados pelo mundo. Eles se entregam aquilo que é mais forte,

que os ultrapassa e, concomitantemente, os funda (2008, p. 169-170)

“Centenário do Sul” se abre aqui para o mundo, revelando parcialmente o próprio

processo através do qual foi construído. Expõe seu “interior”, na medida em que o torna

componente de sua forma final. Sinaliza uma fenda onde o que se vê é o seu próprio reflexo,

um gesto que evidencia as possibilidades que estavam por trás de sua realização. Tematiza a si

próprio, incorporando o imprevisível do mundo, e, inversamente, deixa-se penetrar pelo

mundo abordando o seu percurso particular de constituição. Também naquilo que se refere ao

seu próprio lugar de fala, “Centenário do Sul” privilegia o singular.

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6. .ZIP

“.Zip” é uma animação realizada em 2010 a partir de uma parceria entre o Coque Vive

e jovens da Oi Kabum como fruto do “Edital da Gente” (2010), lançado pela própria Oi

Kabum para coletivos de comunicação que trabalham com audiovisual em regiões periféricas

da cidade do Recife. A participação dos integrantes da Rede Coque Vive se deu, sobretudo, na

fase de concepção do vídeo, com a parte técnica ficando a cargo dos integrantes da Oi

Kabum. O vídeo conquistou o primeiro lugar na mostra competitiva “TV no Parque”,

realizada no início de 2011, na categoria Júri Popular. Além disso, foi exibido numa das

edições de 2012 do Festival Pernambuco Nação Cultural, do Governo do Estado. Porém, seu

lançamento aconteceu no Coque, na academia da cidade do bairro, evento que contou com a

presença de membros da Oi Kabum, do Coque Vive, lideranças comunitárias e moradores do

Coque, principalmente crianças.

Do dia do seu lançamento, entre outros momentos, podemos recuperar a razão – não

tão óbvia para gerações mais antigas ou mesmo para os pouco afeitos a computadores – para o

título dado ao filme pela equipe de realização. “.Zip” designa um tipo de arquivo de

computador que foi compactado; trata-se de uma espécie de pós-fixo que define esse arquivo,

justamente em função do fato dele ter sido reduzido em tamanho para ocupar menos “espaço”

no computador. O arquivo ou documento – que pode ser de qualquer natureza, como um texto

– é “comprimido” dentro de um programa: suas “arestas” são cortadas, informações são

“abreviadas”, podendo esse arquivo perder em qualidade, como no caso de uma fotografia –

depois dessa compactação, sua “resolução”, a forma como a visualizamos, inevitavelmente

piora.

A descrição para a origem do título de “Zip”, a voz trazida já pelo título - uma

compressão forçada – nos diz muito sobre o tipo de discussão que o vídeo propõe. Essa

discussão, assim como todas as outras presentes nos vídeos da Rede Coque Vive, se instala

num ponto de tensão social, a saber, as transformações do espaço urbano a partir de um

privilégio pela verticalização das construções que, por sua vez, se dá dentro de um universo

de intensa especulação imobiliária. Entretanto, dessa vez, o foco da abordagem se concentra

no impacto subjetivo dessas transformações espaciais. Como em “Centenário do Sul”, o

mundo de fora – aquele que nos é apresentado visualmente - espelha o mundo de dentro – das

pessoas. Esse mundo interno, subjetivo, assumidamente povoado de marcas, faz a mediação

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obrigatória com o real.

“.Zip” se divide em três momentos que se desenrolam paralelamente. O primeiro deles

se inicia com a chegada de uma criança a Estação de Joana Bezerra através do Metrô.

Sabemos que ela vem de outro lugar, pois carrega uma mala nas mãos. Ao longo da viagem,

observa através da janela do metrô demonstra expectativa e mata o tempo se divertindo com

um carrinho de brinquedo. No segundo desses momentos, acompanhamos uma criança em

suas peregrinações pelas ruas do Coque. Ela cruza pequenos becos, almoça e se diverte

erguendo pipa no céu. O terceiro momento não envolve a ação de um personagem, pelo

menos não de um personagem propriamente dito, pois descreve o próprio movimento da

cidade, “para frente” e para o alto”, em que prédios cada vez mais imponentes avançam cada

vez mais no espaço, vindo de encontro ao local onde a história acontece. “.Zip” narra,

portanto, o encontro de duas crianças e o seu desencontro com a cidade ao redor, um encontro

e um embate, paralelamente, no tempo de um dia, como se o tempo histórico tivesse sido

simultaneamente condensado e dilatado através dos acontecimentos ali narrados.

Em “Desclassificados”, “A linha a maré e a Terra” e “Centenário do Sul”, o momento

de abertura do filme impõe as coordenadas através das quais o restante de seu “discurso” irá

operar. Com “.Zip” não é diferente. A sua primeira imagem, dentro da qual surge o nome do

filme, é de um céu azul visto de baixo, cortado por postes de iluminação, e onde sobrevoam

algumas pipas. Esses elementos todos marcam presença de modo indicial, porém, com o

desenrolar do filme, veremos que são também operações estilísticas de ênfase no aspecto

simbólico, uma função de estilo que sugere implicações abstratas a partir da imagem

(Bordwell, 2008). Por enquanto, vale chamar a atenção para o aspecto que nos parece o mais

importante nessa abertura: a imagem não nos é apresentada como viesse de uma perspectiva

qualquer, mas da perspectiva de alguém. A imagem “pisca” e, como um olho humano, busca

um foco – e para o “barulho” que a acompanha só pode haver alguma explicação. Essa é,

obviamente, a estratégia básica do cinema, a simulação do ponto de vista. Mas em “.Zip”,

vamos descobrir, esse ponto de vista simula o olhar, muito próprio, de um dos personagens

principais. É o seu olhar subjetivo, é a sua voz subjetivamente.

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Figura 14 Abertura do filme “.Zip”

A despeito dos postes de iluminação e dos fios que os ligam cortarem o céu nessa

imagem, ele é ainda um céu plenamente visível, que se impõe completamente em sua

extensão, com nuvens o povoando e raios de sol o atravessando. Além disso, nos cantos

inferiores da imagem, vemos a ponta do telhado de uma casa e, no lado oposto, os galhos e

folhas de uma árvore. Veremos que um céu visível como o que descrevemos, mais uma casa e

uma árvore, são os rastros de um ambiente que a história nos apresentará como ameaçado pela

invasão de um outro ambiente, diametralmente oposto. “.Zip” não joga com um espaço

geográfico verossímil, mas, sim, com um espaço virtual. Essa virtualidade se traduz nesse

início em detalhes e, posteriormente, se concretiza ou atualiza de um modo que nos permite

especular se essa cidade ali construída não é um lugar distópico, promessa de um futuro

negativo.

Depois dos primeiros momentos em que o primeiro menino ao qual nos referimos

viaja de metrô e o segundo transita pelo bairro onde mora, este último ganha a rua, de pipa na

mão, e aquele chega à Estação de Joana Bezerra. Enquanto isso, vemos as primeiras imagens

de prédios sendo construídos. Algumas pipas aparecem “barradas” pelos fios elétricos dos

postes e outras balançam ainda livres no céu. Na cena em que o nosso primeiro personagem

chega à Joana Bezerra, o plano se coloca à sua altura, cortando a parte de cima do corpo de

uma mulher que o acompanha, que supomos ser sua mãe. O enquadramento é claro: o

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universo de “gente grande” é posto de lado em detrimento do universo infantil dos

personagens principais. O que percebemos também no contraste entre as cores desses

personagens e as outras pessoas que vão aparecendo ao seu redor ao longo do vídeo. Estas

pessoas mais se assemelham a sombras, têm o corpo coberto por uma escuridão; estão no

mesmo ambiente geográfico que os personagens principais, mas certamente não no mesmo

ambiente afetivo. Esse aspecto está presente mesmo na diferenciação entre os personagens e

algumas crianças que aparecem brincando numa praça. Elas também estão cobertas de uma

escuridão. O vídeo mergulha na singularidade dos dois meninos.

Figura 15 Trecho do filme “.Zip” em que criança do campo chega no Coque

Nessa altura, muitos ruídos já povoam a banda sonora do filme, competindo com uma

trilha musical suave, usada para sublinhar as ações dos personagens. Esses sons se fundem,

ruído e música, de um modo cada vez mais orgânico. O menino que acabou de se mudar para

o Coque já se instalou na sua casa e o outro permanece explorando o tempo e o espaço do

bairro ao seu modo. Um “estrangeiro” e o outro “errante”? O vídeo parece nos reservar a

indicação de que, ao mesmo tempo, pertencem e não pertencem a esse território. É aí que o

novato se põe a janela, com o ar de curiosidade ao qual já nos acostumamos, e se depara com

a visão de um verdadeiro canteiro de obras. Homens trabalham, estruturas estão em vias de se

erguer, amontoados de tijolos ocupam os espaços, um caminhão cruza a rua. E o contexto que

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justifica o seu ar de curiosidade vai sendo substituído, nos fazendo imaginar que sua

expressão denota cada vez mais perplexidade. Seu rosto não muda de verdade, mas é

impossível não supor que essa transformação, da curiosidade à perplexidade, esteja

acontecendo. O gesto simples porém marcante de piscar os olhos que o caracteriza, aliás,

testemunha essa mudança. É o nó mesmo de toda a trama: o espaço real que muda e impacta o

universo subjetivo, que devolve ao mundo externo suas impressões. E não só devolve, mas

também o significa à sua maneira.

Os ruídos invadem de vez o vídeo – os ouvidos dos personagens e os nossos – e uma

atmosfera cada vez mais sombria começa a se instalar. Quando um caminhão se põe ao lado

de um amontoado de tijolos, já não ouvimos mais a trilha suave que esteve presente até então.

É, na verdade, o momento em que o menino novato se põe a janela. E o que ele vê nessa hora

– e que vemos junto, de seu ângulo – entre as cenas mencionadas, parece ser a mais

impressionante: uma pipa compete com um guindaste, balançando no céu, ameaçada por ele,

como se o guindaste pudesse cortá-la a qualquer momento. Os letreiros concorrendo com os

depoimentos e imagens em “A linha, a maré e a terra”? Aparecem lado a lado no vídeo e

parecem, efetivamente, duelar. Como pode a pipa vencer um guindaste, perguntaríamos. A

imagem é emblemática. A perplexidade do menino que é nosso intercessor, o seu

estranhamento, está completamente justificado. Esse estranhamento que talvez já tenhamos

perdido, uma criança não pode contornar.

Um trabalhador de construção civil cruza a rua de bicicleta, seu capacete atesta sua

ocupação, um trator remove entulhos, um outro trabalhador levanta um muro. Enquanto isso,

ao redor deles, e ao redor dos meninos que brincam na praça – e que justo nesse momento se

encontram – edifícios começam a surgir. Eles surgem sucessivamente, cada vez mais

próximos da área do Coque, como um exército de concreto – impessoal – que cerca o seu

adversário. Mas esse exército não tomba o adversário porque por lhe impor uma morte física

imediata. A derrota que pretende instalar passa justamente pelo processo de acobertamento do

horizonte que encerra, de isolamento que produz, de subjetivações que não canaliza. A morte

são as fronteiras e se faz presente de modo gradativo.

Os meninos que alçavam pipas interrompem a brincadeira, o céu está sendo

expropriado. Enquanto observam essa invasão, o sentimento que lhes resta é, de fato, a

perplexidade. Um circo dá lugar a um fórum judiciário: um juiz golpeia um palhaço com um

martelo e todo o chão de terra batida da localidade é substituído por um chão de concreto.

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Mais prédios surgem. Não seria de terror essa atmosfera? Entre os prédios, do lado de lá, onde

os meninos já não conseguem mais ver, uma multidão se amontoa num pequeno pedaço de

chão. Mais parecem um imenso formigueiro engolido pelos edifícios que o cercam. Esses já

parecem ter sido encurralados. Nem mais podemos vê-los. Talvez com eles também não

possamos mais dialogar. O seu horizonte já foi expropriado? A gritaria que vem de onde estão

sugere algo diverso de uma comunicabilidade plena. Na cena derradeira do filme, os meninos

observam a pipa que empinavam flanar num espaço ínfimo de céu, já completamente tomado

pelos prédios-monstros que avançaram sobre esse ambiente. Eles piscam muitas vezes,

parecem não assimilar. A pipa permanece no ar e, como na cena do guindaste, compete com

os arranha-céus. É assim que acaba “.Zip”.

Figura 16 Cena final do filme “.Zip”

Os dois meninos inseridos na trama como personagens principais chamam a atenção

não somente por suas ações e pelo mundo que seus olhos descortinam para nós. Uma outra

marca oferecida por suas ações está nos gestos, trejeitos e modo de se vestir. Nos parece que,

em todos esses elementos, eles revelam uma espécie de precariedade. Mas essa precariedade

ressignifica a aparência desses jovens, os torna escorregadios, os faz transbordar: nem

classificados nem desclassificados, eles agora são “inclassificáveis”. E de que outra forma

uma animação de poucos recursos, feita de maneira tão simples, poderia dizer tanto? Esse

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aspecto nos remete ao ensaio de Ivana Bentes (2010) sobre os trabalhos da TV Morrinho.

Neles, uma maquete que reproduz a favela Morrinho é tomada como palco para um

sem-número de encenações feitas por jovens moradores do local a partir do manuseio de

bonecos Lego. O entrelaçamento entre a vida dos jovens e as histórias por eles produzidas na

maquete é observado pela autora. Um penetrar mútuo do real na ficção e da ficção no real.

Esse processo, segundo ela, e como vimos em “.Zip”, permite que esses filmes escapem da

busca por uma mera afirmação das “identidades sociais”, expondo “a insuficiência das teorias

das representações sociais para dar conta das singularidades das vidas-linguagens” (Bentes,

2010, p. 47). Discorre Bentes:

O que surpreende nesses microfilmes da TV Morrinho é uma restituição e

transfiguração do “comum”, não simplesmente o “estado de coisas” e a

banalidade cotidiana, no seu lirismo e/ou brutalidade, ou a encenação dos

discursos midiáticos que contaminam o cinema brasileiro contemporâneo

com filmes que são muitas vezes réplicas-maquetes do “senso-comum”,

duplicações de matrizes sociais gastas e despontencializadas. Se os filmes da

TV Morrinho também trazem alguns discursos prontos (e certa infantilidade

desconcertante), são de tal forma atravessados pelas vidas-linguagens que se

expressam ali que vemos emergir qualidades novas, singularidades capazes

de potencializar a pobreza dos discursos, a pobreza dos cenários e da

realidade, (…) capazes de fazer aparecer a riqueza da pobreza, uma bios

tornada estética e linguagem, que transborda e fere de morte os próprios

clichês que porventura se instalem ali. (Ibid, p. 48)

Parece-nos que acontece aqui uma reconexão com a tradição cinematográfica brasileira, cuja

“trajetória no subdesenvolvimento”33

nunca significou um “subdesenvolvimento artístico”34

.

Era o princípio da “Estética da fome”; parece ser a voz mais forte em“.Zip”.

O documentário “Estamira”35

parece ser um filme-irmão de “.Zip” na reversão da

“pobreza material” em riqueza da linguagem. Nele, somos apresentados a um retrato poético

de uma moradora do aterro sanitário de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro. Estamira, nome

que essa própria moradora se deu, faz reflexões livres sobre sua vida diante da câmera. Mas o

que se esperaria – que o seu discurso fosse jogado num contexto de outras vozes que o

legitimassem ou não, ou que não recebesse um tratamento sério, ou que, ao contrário, fosse

sacralizado – não acontece: temos um mergulho singelo, através de recursos visuais e sonoros,

33 Título do livro de Paulo Emílio Salles Gomes que analisa a produção brasileira do período moderno.

34 Glauber dizia que o novo cinema do terceiro mundo deveria ser “tecnicamente imperfeito, dramaticamente

dissonante, poeticamente rebelde e sociologicamente imperfeito” (Stam, 2009, p. 115)

35 Documentário de 2004 dirigido por Marcos Prado.

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no seu universo pessoal. A sua “loucura”, o seu falar desconexo, as suas expressões incomuns,

a sujeira de mundo, tudo isso 'vira a seu favor', produzindo sentido, revelando uma forma

única de expressão. Mesmo o local onde ela vive, uma aterro sanitário, sofre um reversão.

Não para se tornar um local limpo, mas para sinalizar algo que fica de fora do senso-comum.

Aliás, em “.Zip”, como somos informados, ao longo do filme, onde estamos? Com

quais referências temos de jogar para nos situar geograficamente na história? Podemos

adiantar a resposta: nenhuma referência vem “de fora” da trama. Quando o primeiro menino,

o que faz o trajeto no metrô, chega ao local onde as ações se desenrolam, é pela voz do

serviço interno de comunicação do metrô que sabemos que ele está na Estação de Joana

Bezerra. É nesse momento, “por dentro” da história, que podemos começar a entender que a

trama se passa no Coque. E quando bem mais adiante, os meninos brincam de soltar pipa ao

lado de um viaduto ou um juiz de direito, de martelo na mão, bate na cabeça de um palhaço e

o circo que ali estava dá lugar a um fórum, não temos mais dúvidas: a história se passa, de

fato, no Coque.

João Moreira Salles36

chama atenção, de modo simples, para a diferença entre

informação e experiência na linguagem do documentário37

. Para tal, ele cita o exemplo do

cineasta que quer retratar a chegada de uma estação do ano. Ele observa que isso pode ser

feito através da narração, e a imagem que ilustraria essa narração não precisaria

necessariamente ser a da chegada de uma estação, pois é na narração que o espectador deve

obrigatoriamente confiar. Por outro lado, num filme que desejasse retratar a chegada da

primeira, uma tomada de uma árvore florida nos daria não mais uma informação sobre a

chegada da primavera – informação que, como afirma Salles, poderia ser colhida em qualquer

jornal ou mesmo na internet -, mas sim uma experiência semelhante à da chegada da primeira.

Uma proposta de engajamento, de vivência.

Um outro aspecto interessante em “.Zip” é a composição da cena em que as crianças

aparecem. Se tomarmos, por exemplo, as fotografias tiradas pela Rede Coque Vive38

– por

seus integrantes e por moradores que participaram das oficinas – veremos que, na maior parte

dos casos, as crianças que aparecem na imagem estão frequentemente acompanhadas, sempre

36 João Moreira Salles, documentarista que realizou alguns dos mais importantes documentários dos últimos

anos, entre eles “Notícias de uma guerra particular” (1999), “Entreatos” (2004) e “Santiago” (2007).

37 Conforme palestra do diretor em “Diferenças entre notícia e documentário” disponível em

http://www.youtube.com/watch?v=J6cjVR_tTxc . Acesso em 10/12/2012.

38 Observamos essa característica tanto em “O Coque e a cidade” quanto em “Revelando o Coque”, os dois

vídeos de fotografia realizados pelo Coque Vive.

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aparecem ao lado de outras crianças, sempre estão inseridas numa coletividade.

Curiosamente, em “.Zip” essa composição dos personagens em cena não é replicada. Seria

por acaso? Ivana Bentes afirma, sobre as já citadas maquetes da TV Morrinho, que elas

apresentam um “mundo-ambiente que não reproduz simplesmente o estado de coisas, mas é

pleno de virtualidades” (BENTES, 2010, p. 45). E o que significaria essa virtualidade no caso

de “.Zip”? Ela nos parece um reforço sutil daquilo que é a principal assertiva do vídeo, o

encurralamento dessas vidas numa espaço cada vez menor. O concreto invadindo seu espaço

de convívio e seu convívio se tornando cada vez mais atomizado. De outro forma, poderíamos

dizer também que essa composição, a considerar as fotografias que vemos do Coque, não

condiz com a interação vivida pelas crianças no mundo real, mas era necessário apresentá-las,

em alguma medida, numa condição de vulnerabilidade espacial.

Figura 17 Meninos observam paisagem do Coque se transformando

Essas questões de “lugar, habitação, estar” são exatamente as trabalhadas por Bentes

por se referirem ao modo como uma rede de atores sociais como a Rede Coque Vive extrai

“estéticas dessas relações entre arte, trabalho, e os arranjos/disposição do espaço social”

(2010, p. 52).

Um elemento essencial para entender os sentidos de “.Zip” é adentrar numa análise de

sua trilha musical. Ela parece mesmo pontuar, a todo momento, o arco dramático através do

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qual o filme quer conduzir o espectador. Num curta de animação cuja estratégia principal é o

uso de fotografias reais para compor o cenário do Coque, no qual, necessária e

consequentemente, os movimentos dos personagens no espaço tomam outra dinâmica, a

música vem ocupar um lugar tão relevante quanto à imagem, colocando em pé de igualdade

olhar e audição. No que outros sentidos são chamados à participar de maneira ativa da fruição

do filme, entramos mais uma vez menos na ordem do conhecimento e mais na ordem da

experiência.

Se acompanharmos, portanto a trilha musical de “.Zip” veremos que sua primeira parte

é composta de sons suaves, como uma música clássica executada ao piano, como um som de

vento, e sua segunda parte é construída por ruídos, ruídos de construções, de máquinas

trabalhando, ou de músicas que carregam uma atmosfera de tensão. Um cuidado especial é

dado também aos detalhes. Isso já está presente na imagem, mas vale igualmente para a banda

sonora do filme. O barulho do abrir e fechar de olhos de um dos meninos, o serviço interno do

metrô que sinaliza sua chegada na Estação de Joana Bezerra, a passagem do momento neutro

e leve do filme para o momento mais tenso, feita de forma extremamente sutil e orgânica:

todos esses aspectos enriquecem a nossa fruição de “.Zip”. E, além, na cena final, temos uma

indicação que talvez nem mesmo a imagem nos dê. Com a música claramente executada por

um piano, ficamos com uma sensação melancólica. À perplexidade dos meninos, para quem a

cidade foi algoz e pouco fez sobrar do céu que era espaço para as suas brincadeiras, vem se

somar melancolia. Melancolia, pode-se dizer, daquilo que está em vias de desaparecer. Das

casas, das árvores, das pipas, do céu, da vida associada a tudo isso.

“.Zip” carrega um tempo que os vídeos que analisamos até não conseguiram alcançar.

Na mobilização de um universo virtual, o vídeo conecta passado, presente e futuro. Diz do

que já foi, diz do que tem sido, e diz daquilo que pode vir a ser. É a partir desse último

aspecto – do vir a ser – que insinua uma distopia. Ainda que pudéssemos entender a pipa que

compete com os prédios como um símbolo de resistência, é um futuro sombrio que atravessa

o horizonte desse vídeo. O Coque está desmobilizado pelas intervenções feitas no seu espaço

e o processo que opera essa desmobilização age de fora pra dentro no bairro sem que possa

ser efetivamente combatido. A pipa, o simbólico, sim, combatem, mas não parecem suficiente.

“Desclassificados” opera pelo combate, “.Zip” pela sensibilização. Nos perguntamos se não

podem caminhar lado a lado.

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7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O balanço proposto para as considerações finais da nossa pesquisa pode ser resumido

na seguinte questão: quais as principais recorrências e descontinuidades que caracterizam a

produção audiovisual da Rede Coque Vivem? Este espaço é destinado a pontuar algumas das

“marcas” e “rupturas” dentro da trajetória de vídeos que acompanhamos até aqui, observando

que os filmes carregam sentidos não apenas isoladamente, mas também enquanto conjunto,

enquanto integrantes de uma trajetória de produção maior.

Podemos dizer inicialmente que, se “Desclassificados” (2008) é um filme de embate,

no qual a polêmica que embaralha a categoria do “ser” com a do “possuir” não permite

vislumbrar algo mais do que a luta de classes no horizonte social, “.Zip” (2011) o último

vídeo analisado, se apresenta como um universo quase onírico, deixando escapar

conscientemente, aqui e ali, a imagem de um Coque distópico. Os anos que separam esses

dois vídeos parecem revelar o modo como temas-chave para uma rede que busca forjar novas

formas de sociabilidade, questões como o preconceito de classe, o estigma e a da moradia,

ganham contornos diferentes ao longo dos anos de atividade.

A proposição do projeto carioca “Reperiferia”, Bentes (2010, p.53) nos diz que “não

há inclusão sem inclusão subjetiva”, tal afirmação encontra eco no trabalho da Rede Coque

Vive e o que podemos chamar de indeterminações dessa filmografia ultrapassam a mera

afirmação das identidades positivas. O recado dado pelos filmes nos parece claro: não

estamos falando de um Coque menos “problemático”, mas de um Coque, no mínimo, menos

“engessado”, um lugar que apareça em sua complexidade, livre do mecanismo discursivo que

conjuga pobreza e crime para marginalizá-lo, livre também do discurso que enxerga apenas as

suas potencialidades e que igualmente mascara sua realidade.

A perspectiva geral - o próprio universo visual e sonoro sobre o qual um filme constrói

suas bases - de cada vídeo parece apresentar a “descontinuidade” mais emblemática dessa

produção. Em “Desclassificados”, a perspectiva do filme, simbólica e literal, é somente

aquela proporcionada pelas entrevistas, surgida do debate que elas próprias propõem, um

universo mais intelectual e racional. A ênfase no verbal explicita essas condições. Em “A

linha, a maré e a terra” começamos a adentrar o terreno da memória, pelo depoimento de seus

entrevistados, mas isso é feito apenas parcialmente – os letreiros são responsáveis por

“segurar” a narrativa ainda dentro de uma perspectiva informativa, objetiva. Em “Centenário

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do Sul”, o investimento na memória se dá de maneira integral: a entrevista, ainda que

inerentemente dotada de um viés objetivo, é mobilizada para viabilizar o acesso à memória

das personagens de modo desimpedido. Já “.Zip” radicaliza esse arco que traduz um

investimento na subjetividade: nos personagens, no seu espaço, nos seus detalhes, nada parece

literal, nada parece indicial, nada parece querer significar somente aquilo que dá a ver. Este

último vídeo dar-se a ver ocultando e oculta dando a ver.

Esse movimento em direção ao subjetivo se mostra bastante significativo do próprio

entendimento do papel social, digamos assim, da Rede Coque Vive. A transição de uma

linguagem mais informativa e objetiva, que, para afirmar o que quer que fosse, precisava

negar o estigma, a imagem de um Coque miserável, a sentença que recai simbolicamente

sobre o bairro, para uma linguagem que afirma a singularidade dos sujeitos (Centenário) a

ponto dessa subjetividade construir o próprio universo social (Zip), ele todo, parece-nos dizer

que esse afastamento em relação ao objetivo/racional era necessário, que ele configura uma

espécie de etapa de maturação coletiva na direção de uma postura política mais ampla e

inventiva.

O tempo histórico constitui uma “ruptura” de filme pra filme que também não

podemos deixar passar despercebida. Enquanto “Desclassificados” finca os dois pés no

presente, numa discussão que, apesar de se referir a todo um passado histórico, se concentra

na forma contemporânea do embate, “A linha, a maré e a terra” olha para trás. Esse olhar se

acentua em “Centenário do Sul”, e, diferentemente do que poderíamos imaginar, “.Zip” olha

para o presente abrindo um portal para o passado e postulando, ainda que de um modo que

poderíamos chamar de pessimista – afinal de contas, é como um “canteiro de obras” prestes a

dar lugar a um novo Coque que aparece ali – acerca do futuro.

E não só o que chamamos de tempo histórico muda de filme pra filme na produção da

Rede Coque Vive, mas também, com ele, a própria visão de história. “Desclassificados” é um

filme de aspiração totalizante, mira abordar o “estado de coisas” social, opera uma análise

desses estados de coisas, e assim compartilha uma visão de história cujo papel é exatamente

esse: olhar para os grandes processos, a cidade em seu conjunto, a dinâmica de classes, “o

problema” do estigma, “o problema” da relação classe média/classe baixa. Os vídeos

seguintes vão aparando as arestas e reduzindo esse escopo sem que isso signifique um

empobrecimento da linguagem – ao contrário -, muito menos uma perda de alcance política.

Parecem apostar nas pequenas históricas, num recorte micro, naquilo de mais singular que

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pode evocar um geral sem que isso soe reducionista, ambicioso. Parecem saber que, falando

de “coisas pequenas”, como uma fotografia antiga de família, estamos falando das “coisas

grandes”. Como se soubessem muito bem operar um trânsito que leva da do afeto ao fato

sociológico e, inversamente, do fato sociológico ao afeto.

A entrevista se constitui como uma estratégia narrativa igualmente reveladora. Em

“Desclassificados”, vemos os personagens enquadrados num plano médio convencional,

cerrados no espaço que lhes foi destinado – a forma como interagem com os outros e com o

mundo não interessa, a interação não interessa. Como diria Jean-Claude Bernadet (2003), uma

“abordagem menos óbvia” é secamente preterida. Em “A linha, a maré e a terra” essa mesma

estratégia aparece na forma de uma conversa, instaurando uma inversão em relação ao filme

anterior, já que, nela, o isolamento dos entrevistados é sacrificado em nome daquilo que só

pode surgir de sua interação. Já em “Centenário do Sul”, a proposta é um mergulho no

universo pessoal de cada personagem, em que fotografias familiares são o pretexto ideal para

uma rememoração afetiva do passado. “.Zip” nasce de um edital para o qual a realização de

uma animação era uma exigência, mas o interesse dos integrantes da Rede por esse formato

que prescinde já da entrevista não nos diz muito?

A incorporação do acaso também é outro aspecto marcante nos vídeos da Rede Coque

Vive. O encontro de Prazeres e Matias em “Centenário do Sul” era impossível para

“Desclassificados”, podemos considerar. Era o território crespuscular – de inconsciência –

sobre a qual o filme não podia avançar, como os letreiros de “A linha, a maré e a terra” e sua

banda sonora, parcialmente, também não puderam. Esse encontro casual do terceiro vídeo que

analisamos parece sinalizar uma abertura: não apenas aquilo que é previsto, de antemão

discriminado, de algum modo “roteirizado”, está autorizado a integrar a composição dos

vídeos. O acaso, o imprevisível, o “fora” do roteiro ganha, com o tempo, igual importância.

Ou a indeterminação que proporcionou o reencontro de Prazeres e Matias não se aproxima da

própria indeterminação que caracteriza o retorno ao passado que marca o movimento

principal de “Centenário do Sul”, o movimento “incerto” da lembrança? Quem somos no

momento definindo o que e como lembramos, as fronteiras sendo tateadas, isso tudo sendo

responsavelmente assumido.

Esse último aspecto, aliás, podemos considerar na chave da reflexividade. A grande

força de “A linha, a maré e a terra”, a despeito da predominância de uma voz formal, parece

advir da conversa que se desenrola paralelamente à filmagem, dotando essa filmagem de um

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viés radiofônico, já que é uma transmissão da Rádio Coque Livre que está em curso. E uma

umas cenas mais marcantes de “Centenário do Sul” é o encontro casual de Prazeres e Matias.

Esse dois momentos se aproximam naquilo que revelam as condições de realização dos

vídeos, naquilo que incorporam do próprio processo de feitura deles. Os filmes dobram-se

sobre si mesmos para destacar as suas circunstâncias de enunciação, seu lugar de fala, enfim,

aquilo que precedeu seu acabamento.

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