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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
Camila Laurentino Lopes
A MORALIDADE ADMINISTRATIVA NO CONTEXTO DEMOCRÁTICO
BRASILEIRO: desencontros da doutrina administrativista e da jurisprudência do STF
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Recife
2017
Camila Laurentino Lopes
A moralidade administrativa no contexto democrático brasileiro: desencontros da
doutrina administrativista e da jurisprudência do STF
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Direito do Centro de Ciências
Jurídicas/Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco como requisito
final para obtenção do título de Mestre em Direito.
Área de concentração: Teoria e Dogmática do Direito
Linha de pesquisa: Estado, Constitucionalização e
Direitos Humanos / Direitos Humanos, Sociedade e
Democracia
Orientador: Prof. Dr. João Paulo Fernandes de Souza
Allain Teixeira
Recife
2017
Catalogação na fonte
Bibliotecário Wagner Carvalho CRB/4-1744
L864m Lopes, Camila Laurentino A moralidade administrativa no contexto democrático brasileiro: desencontros da doutrina administrativista e da jurisprudência do STF. – Recife: O Autor, 2017. 115f.
Orientador: Profº. Drº. João Paulo Allain Teixeira.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Programa de Pós-Graduação em Direito, Recife, 2017. Inclui referências.
1. Direito Administrativo - Brasil. 2. Ciência política – Brasil. 3. Pós-
positivismo filosófico. 4. Brasil. Supremo Tribunal Federal. 5. Democracia - Brasil. I. Teixeira, João Paulo Allain (Orientador). II. Título.
342.8106 CDD (22. ed.) UFPE (BSCCJ2017-33)
Camila Laurentino Lopes
A MORALIDADE ADMINISTRATIVA NO CONTEXTO DEMOCRÁTICO
BRASILEIRO: desencontros da doutrina administrativista e da jurisprudência do STF
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito
do Recife / Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco, como
requisito para obtenção do grau de Mestre em Direito. Área de concentração: Teoria e
Dogmática do Direito. Orientador: Prof. Dr. João Paulo Fernandes de Souza Allain Texeira.
A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro,
submeteu a candidata à defesa, em nível de Mestrado, e a julgou no seguintes termos:
MENÇÃO GERAL: ____________________________
Professor Dr. João Paulo Fernandes de Souza Allain Teixeira (Presidente)
Assinatura: ______________________________________________
Professor Dr. José Luciano Gois de Oliveira (1º Examinador: Externo/UNICAP)
Julgamento: _____________________________ Assinatura:_________________________
Professor Dr. Artur Stamford da Silva (2º Examinador: Interno/UFPE)
Julgamento: _____________________________ Assinatura:_________________________
Professor Dr. Alexandre Ronaldo da Maia de Farias (3º Examinador: Interno/UFPE)
Julgamento: _____________________________ Assinatura:_________________________
______________, ___ de _________ de _______.
Coordenadora Profª. Drª. Juliana Teixeira Esteves
Aos que têm fome e sede de justiça.
AGRADECIMENTOS
Ao Deus de todo o entendimento, pela oportunidade de qualificar-me em busca de
melhor servi-Lo no mundo profissional;
A Luis, Rosilene, Flaviana e Tarcísio, por serem a firmeza da minha raiz, quando
os ventos do mundo sopram meus galhos em tantas direções;
A Thomas, pela sublime realização de ser comigo, em cada momento, dos
gráficos e formatações deste trabalho aos contornos e formas que o Amor nos traçar;
A Luiz Carlos e à Comunidade Lumen, pelo aprendizado de ofertar esforços por
algo muito além de mim mesma;
A Vitória, por compartilhar pacientemente suas descobertas, recursos e etapas de
construção de um mesmo projeto acadêmico e de vida;
A Artur Stamford, pela disponibilidade e atenção gratuitas para com este
trabalho.
“Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é túmulo, e escreve-se
na pedra.
Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!”
(Carlos Drummond de Andrade)
RESUMO
Os desencontros na delimitação de sentido do princípio da moralidade administrativa, tanto
entre os administrativistas e diplomas legais que tratam do tema, quanto na jurisprudência
recente do Supremo Tribunal Federal, formam a tônica do presente trabalho. Inicialmente,
contextualizou-se o tema no âmbito do pós-positivismo filosófico de resgate de cargas
valorativas, da crise do liberalismo econômico na crítica à busca do autointeresse e da crise
ética e democrática da esfera pública brasileira, motivada pelos recentes escândalos de
corrupção no país. Em seguida, usando a metodologia da pesquisa bibliográfica, abordou-se a
origem sistematizada da moralidade administrativa, que remonta ao controle dos desvios do
poder na seara do direito francês, e as controvérsias doutrinárias na recepção desse instituto
no Brasil, onde se firmou como contraponto à legalidade formal dos atos administrativos, sob
a feição de conceito jurídico indeterminado. Depois da menção aos dispositivos
constitucionais e diplomas legais que regulamentam esse instituto, realizou-se uma pesquisa
empírica de dados dos acórdãos do STF que citam expressamente a moralidade
administrativa, entre os anos de 2012 a 2016, buscando analisar se também a jurisprudência
da Suprema Corte espelhou a fluidez conceitual observada na doutrina e na legislação pátrias
que versam sobre o tema.
Palavras-chave: Moralidade administrativa. Democracia. Doutrina. Jurisprudência do STF.
ABSTRACT
Disagreements towards the delimitation of meaning of the administrative morality principle,
both among the Administrative Law writers and laws concerning the subject, and in the recent
jurisprudence of the Federal Supreme Court, are the focus of this work. Initially, the topic was
contextualized in the scope of the philosophical post-positivism of values rescue, from the
crisis of economic liberalism in the critique of the search for self-interest and the ethical and
democratic crisis of the Brazilian public sphere, motivated by the recent corruption scandals
in this country. Then, using the methodology of the bibliographical research, we approached
the systematized origins of administrative morality, which goes back to the control of power
deviations in French law, and the legal doctrine controversies in the reception of this institute
in Brazil, where it was firmed as a counterpoint to the formal legality of administrative acts,
in terms of an indeterminate legal concept. After mentioning the constitutional articles and
legal acts that regulate this institute, there was an empirical research of data of the Supreme
Court judgments that explicitly cite the administrative morality between the years of 2012 to
2016, seeking to analyze if also the jurisprudence of the Brazilian Supreme Court mirrored the
conceptual fluidity observed in the legal doctrine and laws that deal with the subject.
Key words: Administrative morality. Democracy. Doctrine. Supreme Court Jurisprudence.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADC – Ação Direta de Constitucionalidade
ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade
ADPF – Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
AgR – Agravo Regimental
AI – Agravo de Instrumento
AP – Ação Penal
ARE – Recurso Extraordinário com Agravo
CNJ – Conselho Nacional de Justiça
CPC – Código de Processo Civil
HC – Habeas Corpus
Inq – Inquérito
MS – Mandado de Segurança
OAB – Ordem dos Advogados do Brasil
PJe – Processo Judicial Eletrônico
Rcl – Reclamação
RDA – Revista de Direito Administrativo
RE – Recurso Extraordinário
RHC – Recurso Ordinário em Habeas Corpus
RMS – Recurso em Mandado de Segurança
SL – Suspensão de Liminar
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
STM – Superior Tribunal Militar
TJSP – Tribunal de Justiça de São Paulo
TSE – Tribunal Superior Eleitoral
TST – Tribunal Superior do Trabalho
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 11
1 O CONTEXTO POLÍTICO-ECONÔMICO DO ESTADO SOCIAL
DEMOCRÁTICO: AMBIENTANDO A DISCUSSÃO SOBRE A MORALIDADE
ADMINISTRATIVA ................................................................................................ 16
1.1 DA FILOSOFIA PÓS-POSITIVISTA DO DIREITO ÀS TEORIAS POLÍTICAS
DEMOCRÁTICAS ..................................................................................................... 16
1.2 O ASPECTO MORAL DA BUSCA DO INTERESSE COLETIVO NA CRÍTICA AO
LIBERALISMO POLÍTICO-ECONÔMICO .............................................................. 20
1.3 A CORRUPÇÃO DA ESFERA PÚBLICA BRASILEIRA .......................................... 24
2 MORALIDADE ADMINISTRATIVA: UMA CONTROVÉRSIA BRASILEIRA 30
2.1 ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE MORALIDADE
ADMINISTRATIVA .................................................................................................. 30
2.1.1 França: o berço da sistematização ................................................................................ 30
2.1.2 Desenvolvimentos em outros sistemas jurídicos: Itália, Espanha e Portugal ................. 36
2.2 A RELEITURA BRASILEIRA DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA ............... 40
2.2.1 Primeiras menções....................................................................................................... 40
2.2.2 Tentativas dispersas de situar e conceituar a moralidade do ato administrativo ............ 42
2.2.3 Moralidade X Legalidade ............................................................................................ 47
2.2.4 Moralidade administrativa X Moralidade comum ........................................................ 50
2.3 A PREVISÃO CONSTITUCIONAL DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA NA
FORMA DE PRINCÍPIO ............................................................................................ 52
2.3.1 Uma relevância sem precedentes ................................................................................. 52
2.3.2 O princípio constitucional da moralidade administrativa: conceito indeterminado ou
discricionário? ............................................................................................................ 54
2.3.3 As diferentes feições da moralidade administrativa na Constituição Cidadã e as lacunas
de sentido nos diplomas legais que regulamentam a matéria........................................ 57
2.3.4 O desencontro de sentidos espelhado na jurisprudência ............................................... 62
3. ANÁLISE DE ACÓRDÃOS: UMA PESQUISA EMPÍRICA DA MORALIDADE
ADMINISTRATIVA NA JURISPRUDÊNCIA RECENTE DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL ............................................................................................ 68
3.1 BREVES COMENTÁRIOS SOBRE A PESQUISA EMPÍRICA EM DIREITO E A
ANÁLISE DE ACÓRDÃOS ....................................................................................... 68
3.1.1 A pesquisa empírica como superação do paradigma idealista da doutrina jurídica........ 68
3.1.2 O “mundo dos fatos” do direito: o Poder Judiciário e seus acórdãos ............................ 69
3.1.3 Características da pesquisa de acórdãos judiciais ......................................................... 72
3.2 DESENHANDO A PESQUISA: PROBLEMÁTICA, HIPÓTESE E VERIFICAÇÃO 75
3.2.1 Esclarecendo a problemática e formulando a hipótese a ser testada .............................. 75
3.2.2 Elegendo os meios e métodos de verificação da hipótese ............................................. 80
3.3 RESULTADOS E CONCLUSÕES DA PESQUISA: MEDIANDO CERTEZAS E
INCERTEZAS EM INFERÊNCIAS DESCRITIVAS QUANTO À MORALIDADE
ADMINISTRATIVA .................................................................................................. 85
3.3.1 Resultados da pergunta n.º 1: Qual a data de julgamento? ............................................ 86
3.3.2 Resultados da pergunta n.º 2: Quantas vezes a moralidade é citada? ............................ 87
3.3.3 Resultados da pergunta n.º 3: Quantas vezes a moralidade é referida junto a outros
princípios ou valores? Quais e por quantas vezes cada um? ......................................... 88
3.3.4 Resultados da pergunta n.º 4: A moralidade é referida como princípio central na questão
de fato sob exame? Se sim, ele foi considerado observado ou violado? ....................... 91
3.3.5 Resultados da pergunta n.º 5: Houve algum balizamento do conceito de moralidade? Se
sim, por mera afirmação, doutrina ou precedente judicial? .......................................... 91
3.3.7 Analisando os resultados da pesquisa através de inferências ........................................ 92
3.3.8 Posicionar-se é encarar o desafio: o exemplo do ministro Teori Zavascki .................... 95
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: TRAÇANDO LINHAS PARA UM POSSÍVEL
BALIZAMENTO DO PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA . 100
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 105
11
INTRODUÇÃO
O tema da moralidade administrativa encontra-se em plena discussão no cenário
sociopolítico brasileiro, especialmente diante dos recentes e alarmantes casos de corrupção
dos agentes públicos nacionais. O escândalo do Mensalão1 somado, recentemente, às
investigações, acusações e condenações no bojo da Operação Lava Jato2, vem levando a
opinião pública a um cansado descrédito na probidade das instituições públicas nacionais e
dos agentes administrativos e políticos, que frequentemente as movem em prol de seus
interesses particulares, deixando o bem público em segundo (ou último) plano.
Nesse cenário, volta a ganhar força o clamor social pela moralização do Poder
Público, pelo exercício do chamado direito à boa administração pública, que alberga a
faculdade de exigir uma administração: transparente (com especial resguardo do direito à
informação), dialógica (com as garantias do contraditório e da ampla defesa), imparcial (que
não pratica nem estimula discriminação negativa, mas promove discriminações inversas ou
positivas, redutoras das desigualdades injustas), proba (na vedação de condutas éticas não-
1 O Supremo Tribunal Federal concluiu que o “Mensalão” foi um esquema ilegal de financiamento político
organizado pelo PT para corromper parlamentares e garantir apoio ao governo Lula no Congresso em 2003 e
2004, logo após a chegada do partido ao poder. Esse esquema possuía três núcleos: o político, chefiado pelo
então ministro da Casa Civil, José Dirceu, e formado por outros três dirigentes partidários que integravam a
cúpula do PT; o operacional, encabeçado pelo empresário Marcos Valério Fernandes de Souza, dono de agências
de publicidade que tinham contratos com o governo federal, condenado por usar suas empresas para desviar
recursos dos cofres públicos para os políticos indicados pelos petistas; e o financeiro, alimentado pelo Banco
Rural através de empréstimos fraudulentos, permitindo que os políticos sacassem o dinheiro sem se identificar e
transferissem parte dos recursos para o exterior. Os participantes desse esquema foram acusados de sete crimes:
formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, corrupção ativa, corrupção passiva, peculato, evasão de divisas e
gestão fraudulenta. [FONTE:
<http://www1.folha.uol.com.br/especial/2012/ojulgamentodomensalao/ojulgamento/> Acesso em 31 jul. 2015.] 2 “A operação Lava Jato é a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro que o Brasil já teve. Estima-
se que o volume de recursos desviados dos cofres da Petrobras, maior estatal do país, esteja na casa de bilhões de
reais. Soma-se a isso a expressão econômica e política dos suspeitos de participar do esquema de corrupção que
envolve a companhia. (...)
Nesse esquema, que dura pelo menos dez anos, grandes empreiteiras organizadas em cartel pagavam propina
para altos executivos da estatal e outros agentes públicos. O valor da propina variava de 1% a 5% do montante
total de contratos bilionários superfaturados. Esse suborno era distribuído por meio de operadores financeiros do esquema, incluindo doleiros investigados na primeira etapa. (...)
Essa repartição política revelou-se mais evidente em relação às seguintes diretorias: de Abastecimento, ocupada
por Paulo Roberto Costa entre 2004 e 2012, de indicação do PP, com posterior apoio do PMDB; de Serviços,
ocupada por Renato Duque entre 2003 e 2012, de indicação do PT; e Internacional, ocupada por Nestor Cerveró
entre 2003 e 2008, de indicação do PMDB. Para o PGR, esses grupos políticos agiam em associação criminosa,
de forma estável, com comunhão de esforços e unidade de desígnios para praticar diversos crimes, dentre os
quais corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Fernando Baiano e João Vacari Neto atuavam no esquema
criminoso como operadores financeiros, em nome de integrantes do PMDB e do PT.” [FONTE:
<http://lavajato.mpf.mp.br/entenda-o-caso> Acesso em 31 jul. 2015.]
12
universalizáveis), além de preventiva, precavida e eficaz (comprometida com resultados e em
sintonia com os objetivos fundamentais do Estado Democrático). (FREITAS in JORGE et al,
2010, p. 355)
O desencanto da população com a moralidade de seus representantes e
administradores faz com que o direito a um Estado dirigido por administradores íntegros,
legisladores probos e juízes incorruptíveis, que desempenhem as suas funções com respeito
aos postulados ético-jurídicos, num exercício legítimo da atividade pública em terras
brasileiras, mais pareça uma utopia. Assim, permanece longe de concretização o direito a um
governo honesto, a uma administração legal, impessoal, moral e eficiente, cujos atos sejam
públicos e permitam a qualquer pessoa contestar aquilo que considera prejudicial ao seu
interesse ou ao interesse público (DAL BOSCO, 2004, p. 78).
Atualmente, portanto, o estudo da moralidade administrativa ganha contornos
urgentes e imprescindíveis ao enfrentamento da crise ético-política que atinge a
Administração Pública brasileira. Trata-se de uma matéria de dimensão teórica controversa e
de grande repercussão prática, sendo um dos mais relevantes vetores normativos que formam
o ordenamento jurídico brasileiro. Assim, não se pode considerá-la uma simples abstração,
mas uma questão de senso político, de regime de liberdades públicas e de direitos
consubstanciados em leis. (FRANCO SOBRINHO, 1993, p. 21)
De fato, o direito positivo está repleto de normas que se utilizam de conceitos
jurídicos indeterminados, retirados do mundo da cultura e dos valores ético-morais, os quais
não podem ser desprezados pelo intérprete que deseje fixar o sentido e o alcance dessas
normas. (CAMMAROSANO, 2006, p. 37)
Por um lado, os indivíduos são livres para se determinarem e relacionarem
segundo os valores e preceitos morais que mais lhes apeteçam, abrindo a possibilidade para
uma infinidade de comportamentos baseados nos mais diversos sistemas morais, cada qual
segundo as práticas culturais de um povo ou grupo de interesse. Porém, é inegável, de outro
lado, que a positivação da moralidade dentro de um ordenamento jurídico, ainda que sem um
conteúdo determinado, aponta para a consagração de certos valores morais específicos, os
quais devem guardar consonância com as demais regras e princípios desse mesmo
ordenamento. Isso sem deixar de remeter aos valores morais que permanecem em voga na
sociedade para além do direito, tal qual vem sendo recentemente resgatado pela filosofia do
direito e a teoria política democrática.
13
Nos ordenamentos jurídicos, a consagração do respeito à moralidade estabelece
uma conexão entre as esferas da política, da economia, da moral e do direito. Quiçá por essa
razão, a moralidade ganhou um destaque sem precedentes na Constituição Cidadã, a partir de
sua nomeação expressa: como princípio constitucional, no art. 37, caput; como direito
fundamental, no art. 5º, LXXIII; e como requisito de elegibilidade, no art. 14, §9º. Tal
previsão está em consonância com o paradigma seguido por nossa carta constitucional: o do
Estado Democrático e Social de Direito e das chamadas Constituições Programáticas ou
Dirigentes, voltadas à implementação de políticas públicas e à efetivação dos direitos
fundamentais, buscando o resgate da utilização de cargas valorativas dentro dos âmbitos de
aplicação e interpretação jurídica.
Contudo, a efetividade desse instituto não supõe apenas seu reconhecimento como
direito fundamental e critério de conduta a ser seguido pelo cidadão comum e pelo gestor
público, em consonância com o conteúdo axiológico da constituição, mas a reflexão sobre os
contextos filosófico, político e econômico nos quais esse princípio se realiza, compreendendo
sua dimensão ideológica e concebendo sua expressão prática. Caso contrário, corre-se o risco
de cair num discurso vazio de moralização da Administração Pública, manipulável pelos
detentores do poder e atentatório ao Estado Democrático de Direito, não sendo raros os
exemplos de ditaduras que se instalam sob o discurso de moralização das práticas
governamentais.
A relação íntima entre Moralidade Administrativa, que alcança indubitavelmente a
atuação parlamentar, e o princípio democrático é inegável, já que a efetivação deste
implica necessariamente a fidelidade política da atuação dos representantes
populares, como bem assinala Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Mais do que isso,
a confiança depositada pela sociedade em sua classe governante é elemento indeclinável da consecução da segurança jurídica erigida como um dos fundamentos
da República. (MARTINS, 2012, p. 150-151)
Nessa senda, o objetivo geral deste trabalho consistiu na investigação dos
(desencontrados) caminhos percorridos pela doutrina, legislação e jurisprudência brasileiras
quanto à exegese do princípio constitucional da moralidade, isto é, sua construção de sentido,
a partir do paradigma do regime democrático de governo, suportado pelo desenvolvimento de
uma filosofia pós-positivista e pelas críticas ao liberalismo político-econômico, e culminando
numa análise de acórdãos do Supremo Tribunal Federal (STF) que mencionaram a moralidade
administrativa nos anos de 2012 a 2016.
Como objetivos específicos, propomos, inicialmente, a contextualização da
temática da moralidade administrativa dentro da filosofia pós-positivista e das teorias políticas
14
democráticas, bem como da crítica ao pensamento econômico liberal diante da primazia da
busca do interesse público num paradigma de Estado Social Democrático. Prosseguindo a
ambientação das discussões sobre a moralidade administrativa, refletimos sobre a
problemática da corrupção na esfera pública brasileira, expondo um breve diagnóstico das
bases patrimonialistas da construção da sociedade brasileira e dos avanços recentes no
fortalecimento de uma consciência cidadã por parte dos brasileiros.
No segundo capítulo, debruçamo-nos sobre o instituto da moralidade
administrativa, desde a sua origem e desenvolvimento, da França até o Brasil, identificando
suas controvérsias no âmbito da doutrina, além de detalhar os diversos aspectos
constitucionais e legais que circunscrevem a aplicação desse princípio. Antecipando o
provável reflexo da fluidez conceitual observada na doutrina e na legislação, destacamos
algumas decisões da Suprema Corte, além do acórdão referente à Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) nº 3026/DF, em cujo julgamento os ministros divergem sobre o
sentido da moralidade frente ao conteúdo de outros princípios caros à Administração Pública.
Por fim, procedemos a uma pesquisa empírica no âmbito jurisprudencial,
identificando todos os acórdãos do Supremo Tribunal Federal, entre os anos de 2012 e 2016,
que fizeram referência expressa à moralidade administrativa, e relevando os aspectos
quantitativos da análise do conteúdo de cada acórdão, a partir das seguintes: 1) Qual a data de
julgamento?; 2) Quantas vezes a moralidade é citada?; 3) Quantas vezes a moralidade é
referida junto a outros princípios ou valores? Quais e por quantas vezes cada um?; 4) A
moralidade é referida como princípio central na questão de fato sob exame? Se sim, ele foi
considerado observado ou violado?; 5) Houve algum balizamento do conceito de moralidade?
Se sim, por mera afirmação, doutrina ou precedente judicial?
O objetivo da investigação empírica supradescrita foi constatar se a
indeterminação conceitual que se observou nas referências à moralidade administrativa no
âmbito da doutrina e legislação pátrias espelhava-se na jurisprudência cotidiana do mais alto
tribunal do país.
A metodologia utilizada neste trabalho foi, inicialmente, a pesquisa bibliográfica
das diferentes doutrinas administrativistas sobre o tema e um aporte documental da legislação
brasileira, seguida pela pesquisa empírica de acórdãos judiciais. Num primeiro momento, a
pesquisa bibliográfica levou ao aprofundamento teórico sobre a contextualização do tema
central do trabalho, nas esferas jusfilosófica, econômica, sociopolítica e jurídico-
15
constitucional contemporâneas. Em seguida, procedeu a uma minuciosa análise doutrinária
sobre o surgimento da moralidade administrativa no cenário jurídico, sua finalidade e seu
desenvolvimento histórico na França e em outros países europeus até a sua recepção no
direito brasileiro, seguida de uma investigação sobre as diversas tentativas de caracterização
desse instituto pelos doutrinadores brasileiros.
Em continuação, realizou-se um aporte documental na identificação e comentário
dos dispositivos constitucionais e diplomas legais pátrios que preveem a moralidade
administrativa e no destaque de alguns julgados do Supremo Tribunal sobre a matéria e suas
divergências. Por fim, procedeu-se a uma pesquisa empírica de todos os acórdãos do Supremo
Tribunal Federal que mencionaram a moralidade administrativa, entre os anos de 2012 e
2016, a partir de pesquisa no banco de dados disponível no sítio eletrônico da corte, seguida
pela crítica desses resultados. A pesquisa foi do tipo estudo de casos cruzados, com a exceção
de um acórdão em especial, o RE 405386/RJ, julgado em 26/02/2013, que pelo foco dado à
moralidade administrativa, especialmente no voto do ministro Teori Zavascki, mereceu uma
análise mais aprofundada.
16
1 O CONTEXTO POLÍTICO-ECONÔMICO DO ESTADO SOCIAL
DEMOCRÁTICO: AMBIENTANDO A DISCUSSÃO SOBRE A MORALIDADE
ADMINISTRATIVA
1.1 DA FILOSOFIA PÓS-POSITIVISTA DO DIREITO ÀS TEORIAS POLÍTICAS
DEMOCRÁTICAS
De acordo com a filósofa italiana Carla Faralli, a partir dos anos 1960, surgiram
novas correntes jusfilosóficas, fruto de correções, especificações ou crises das escolas de
pensamento anteriores. A autora agrupa essas novas correntes em cinco linhas de pesquisa: 1)
retorno aos valores ético-políticos; 2) institucionalismos e realismos jurídicos; 3) raciocínio
jurídico; 4) lógica jurídica; e 5) novas fronteiras técnico-científicas. A primeira linha, que
interessa particularmente a este trabalho, é dedicada ao retorno do valor ético-político ao
debate jusfilófico e à renovada aplicação dessa perspectiva às constituições democráticas,
remetendo a uma crise do positivismo jurídico. (LOSANO In FARALLI, 2006, p. X-XI)
Faralli observa que o juspositivismo encontrava suporte em duas teses: a da
teorização dos cientistas sociais do final do século XIX, sustentando a impossibilidade
estrutural de encontrar critérios de juízo moral para fundamentar decisões no campo do direito
e da política, e a da filosofia analítica, mais característica da primeira metade do século XX,
que desenvolveu uma metaética não cognitivista dos valores, afirmando a impossibilidade de
conhecê-los objetivamente. Para a autora, o debate contemporâneo questionou ambas as teses,
determinando, de um lado, a abertura da filosofia do direito ao mundo dos valores ético-
políticos, e, de outro, essa mesma abertura ao mundo dos fatos, integrando as duas primeiras
novas linhas de pesquisa supracitadas. (FARALLI, 2006, p. 3)
No centro desse debate contemporâneo encontra-se a Teoria dos Princípios de
Robert Alexy, segundo a qual os princípios são mandados de otimização, gerais e abstratos, os
quais interagem entre si por meio da ponderação justificada pelo razoável. Eles concentram
relevante grau de imperatividade, impondo obrigatoriamente a conformação das ações, atos e
17
condutas ao respectivo comando normativo, característica que lhe é própria. Suas
semelhanças e diferenças no tocante às regras foram explanadas in verbis:
“Tanto regras quanto princípios são normas, porque ambos dizem o que deve ser.
Ambos podem ser formulados por meio de expressões deônticas básicas do dever, da
permissão e da proibição. Princípios são, tanto quanto as regras, razões para juízos
concretos do dever-ser, ainda que de espécie muito diferente. A distinção entre regras e princípios é, portanto, uma distinção dentre duas espécies de norma”
(ALEXY, 2008, p. 87).
“O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas
que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das
possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte,
mandamentos de otimização que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em
graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende
somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas”.
(ALEXY, 2008, p. 90)
A abertura do debate filosófico e jurídico hodierno aos valores ético-políticos
trouxe, como um de seus mais importantes resultados, as chamadas teorias constitucionalistas
ou neoconstitucionalistas, que reconhecem o aumento da complexidade da estrutura
normativa dos sistemas constitucionais contemporâneos, com introdução dos princípios e a
sua diferenciação das regras. Essas teorias seguem três aspectos principais: a consideração de
que a moral não pode ser resumida ao direito válido, mas deve passar pelo processo de
inclusão no direito, através dos princípios e dos direitos fundamentais dos indivíduos; o
destaque aos processos de aplicação do direito, em particular, a atuação do Judiciário, para
sua determinação no interior dos sistemas constitucionais; e, por fim, a vinculação do
legislador aos princípios e aos direitos constitucionais e sua execução pelos juízes, ainda que
em contraste com a lei. (FARALLI, 2006, p. 12)
O reconhecimento da formação ética e moral coletiva é consubstanciado
justamente no regime democrático, de modo que um dos grandes méritos da filosofia política
e do direito contemporâneo foi resgatar a visão positiva sobre a democracia, pois, até os anos
1980, por influência do marxismo e do estruturalismo, a democracia fora considerada
asseguradora de uma mera liberdade formal, que ocultava a história de exploração e alienação
das classes menos favorecidas. Era a chamada democracia liberal, uma democracia “de baixa
intensidade”.
Sociólogo contemporâneo de grande expressão na temática da democracia,
Boaventura de Sousa Santos tece importantes reflexões críticas à sociedade hodierna,
propondo um modelo contra-hegemônico de defesa dos direitos humanos e sociais e
anunciando uma degeneração das práticas democráticas nos sistemas políticos dominados
pela lógica capitalista globalizada neoliberal e fomentados pela mídia oligopolizada.
18
Nesse sentido crítico dos rumos atuais da democracia, Boaventura defende que, à
parte as exclusões sociais gestadas e ampliadas no bojo de uma vivência democrática
meramente formalista, a democracia liberal caracterizou-se, sob a influência norte-americana,
por campanhas eleitorais midiáticas, partidos cada vez menos diferenciados, financiamentos
milionários e substituição das ruas e praças pela privacidade das casas, numa ideologia que
buscava identificar o cidadão com o consumidor e o processo eleitoral com o mercado. A
formação da opinião pública é feita cada vez mais pela ação dos grandes meios de
comunicação, cada vez mais condicionados por critérios comerciais de busca de audiência e
de publicidade. (SANTOS, 2005, p. 653)
O catedrático português afirma que o debate sobre a democracia, ao longo do
século XX, especialmente no período entre guerras, na Europa, deu ensejo a duas formas
complementares de hegemonia: a primeira, baseada no abandono do papel da mobilização
social e da ação coletiva na construção democrática; a segunda, calcada numa solução elitista
para o debate sobre a democracia, com a supervalorização do papel dos mecanismos de
representação, sem que esses precisassem ser combinados com mecanismos societários de
participação. Estabeleceu-se uma contradição entre mobilização e institucionalização, além de
uma valorização positiva da apatia política do povo, concentrando o debate democrático na
questão dos desenhos eleitorais de cada Estado. (SANTOS, 2005, p. 43)
Num diagnóstico preciso, Boaventura conclui que a democracia liberal
contemporânea, desenvolvida sob o influxo direto do neoliberalismo, encontra-se em grave
crise, induzida pela corrosão da estrutura social e cultural por parte das relações mercantis
sem o contrapeso da ação reguladora do Estado na promoção de direitos. As consequências
dessa crise seriam a perda de legitimidade dos governos, dos legislativos e da Justiça, o
enfraquecimento das organizações sociais, a desmoralização das ideologias e dos partidos, o
desinteresse eleitoral e político geral e a privatização exacerbada das relações sociais e do
próprio Estado. (SANTOS, 2005, p. 653-654)
O jurista português arremata que, após a expansão global da democracia liberal,
observou-se a degradação das práticas democráticas até mesmo nos países centrais, onde o
regime mais se tinha consolidado, acarretando uma “dupla patologia”: a da participação
popular, em vista do aumento dramático do abstencionismo; e a da representação, pelo fato de
os cidadãos se considerarem cada vez menos representados por aqueles que elegeram. Diante
disso, surgiram correntes teóricas contra-hegemônicas acerca do conceito e da efetivação da
democracia, as quais ressaltaram a pluralidade humana, dando ênfase à criação de uma nova
19
gramática social e cultural, à procura de uma nova institucionalidade da democracia.
(SANTOS, 2005, p. 41 e 51)
Portanto, a efetivação da democracia numa experiência contra-hegemônica
implicaria o reconhecimento da pluralidade humana e da ampliação de uma cultura
democrática que proponha uma nova institucionalização da democracia. Em seguida, caberia
a valorização positiva de uma mobilização social para além do jogo eleitoral, mais próxima de
um modelo de democracia representativa e participativa, na qual haja a prática fiscalizada dos
princípios e valores morais consubstanciados na ordem jurídica.
Não se trata, portanto, de promover a participação política dos cidadãos
centrando-a no voto, como fez a democracia liberal, ao sacralizar o momento eletivo e tomá-
lo como uma espécie de cheque em branco, num vínculo que só é retomado a cada ciclo
eleitoral. (SANTOS, 2005, p. 658) De fato, o respeito à consciência cívica de cada cidadão
implica a valorização de sua participação, do “fazer política” no cotidiano, resultando na
ocupação da esfera pública numa dimensão política e pedagógica, sem apelar a ideologias
políticas específicas.
A participação tem valor em si mesma, por isso não é instrumental de um projeto
político. Podemos dizer que a participação tem suas dimensões fundamentais
interligadas e que interagem permanentemente: a dimensão política e a pedagógica.
Participação, antes de tudo, é a partilha do poder e o reconhecimento do direito a
interferir de maneira permanente nas decisões políticas (dimensão política). É também a maneira através da qual as aspirações e as necessidades dos diferentes
segmentos da população podem ser expressas no espaço público de forma
democrática, estando associada ao modo como esses “grupos” se percebem como
cidadãos e cidadãs. A participação é um processo educativo-pedagógico. Expressar
desejos e necessidades, construir argumentos, formular propostas, ouvir outros
pontos de vista, reagir, debater e chegar ao consenso são atitudes que transformam
todos aqueles que integram processos participativos. É uma verdadeira educação
republicana para o exercício da cidadania, que amplia um espaço público real, em
que a construção dialogada do interesse público passa a ser o objetivo de todos os
homens e mulheres. Por isso, participar também é disputar sentidos e significados.
(MORONI, 2006).
Hoje, pode-se identificar uma nova visão do espaço público, como
questionamento permanente dos significados, das instituições e das representações de cada
comunidade, calcada na ideia de dignidade humana. Essa é concebida como uma cláusula
aberta que assegura a mesma consideração e respeito a todos os indivíduos, mas que depende,
na sua concretização, dos próprios julgamentos desses indivíduos, tonando-se o próprio ethos
da moralidade administrativa. (RABENHORST, 2001, p. 48-49)
Entretanto, não se pode supor que a fidelidade aos princípios democráticos,
especialmente à dignidade humana, imponha a aceitação de um “populismo moral”, isto é, a
20
concepção de que a maioria tem o direito moral de determinar como todos devem viver. Essa
interpretação da democracia ameaça a liberdade individual e elimina a voz política dos grupos
minoritários. Segundo Hart, não se pode incorrer no equívoco de pensar que o exercício do
poder político pela maioria implique no uso desse poder, pela maioria, como estando acima de
críticas e resistências. (HART, 1987, p. 95-96)
Portanto, o debate reavivado pela teoria jusfilosófica contemporânea dialoga
diretamente com os direitos e garantias fundamentais previstos nas constituições modernas em
proteção às minorias, enriquecendo o debate da moralidade administrativa a partir dos
horizontes e limites interpretativos dos institutos constitucionais de cunho democrático.
1.2 O ASPECTO MORAL DA BUSCA DO INTERESSE COLETIVO NA CRÍTICA AO
LIBERALISMO POLÍTICO-ECONÔMICO
Numa perspectiva histórica, pode-se afirmar uma flagrante contradição entre o
desenvolvimento da economia liberal e o nascedouro do pensamento econômico na cultura
grega, em meio às considerações éticas do comportamento humano, subjacente à política e à
busca do interesse coletivo. Em “Ética a Nicômaco”, Aristóteles (1991, p. 6) afirma que até as
faculdades tidas em maior apreço, como a estratégia, a economia e a retórica, estão sujeitas à
política, de modo que a finalidade desta abrange a das outras ciências, consistindo na busca do
bem humano. E quando esse fim é o mesmo para o indivíduo e para o Estado, o deste último
parece ser algo “maior e mais completo”, “mais belo e divino” a se atingir e preservar.
É que a dimensão política referida por Aristóteles consubstanciava-se já na
primeira experiência democrática consagrada da história da humanidade: a democracia grega
do século IV a.C. Construída enquanto sistema político de cidadãos iguais, governando a si
próprios numa coletividade de indivíduos soberanos e com capacidades, recursos e
instituições suficientes para tal governo, a democracia grega permanece como um notável
referencial de participação política e concretização de valores morais na política.
Em seu berço filosófico-cultural, portanto, a economia estava atrelada à política e
à busca do bem comum, e o mesmo ocorreu quando do seu despontar científico, no século
XVIII. Com efeito, Adam Smith, em sua obra “The Theory of Moral Sentiments”, publicada
21
em 1759, enaltece o aspecto moral da conduta dos seres humanos individualmente e em
sociedade, salientando, entre outros valores, o espírito público e a realização de estudos
científicos para animar os homens a buscar meios de promover a felicidade social. Ele afirma,
ainda, que embora pareça louvável cultivar hábitos econômicos por motivos de autointeresse,
o egoísmo mancha a beleza dessas ações, que devem emergir de uma afeição benevolente.
(SMITH, 1790, p. 249-250, 327-328)
Não obstante suas raízes históricas ligadas à ética e aos valores morais, a
economia contemporânea foi dominada pelo capitalismo de mercado, que encontra no jurista
espanhol Joaquín Herrera Flores um de seus maiores opositores. Da mesma linha crítica ao
neoliberalismo adotada por Boaventura de Sousa Santos, com cuja teoria converge
especialmente na defesa da interculturalidade dos direitos humanos, o professor de Sevilla
analisa a globalização a partir de sua contextualização histórica e fundamentação teórica.
Numa breve remissão histórica do último século, Flores afirma que, nas décadas
que se seguiram à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, os economistas e
políticos keynesianos reformularam os âmbitos produtivos e geoestratégicos, nas bases de
uma “geopolítica de acumulação capitalista baseada na inclusão”, política que lançou as bases
do chamado Estado de bem-estar social, no qual se consagraram diversos pactos entre o
capital e o trabalho, com o Estado servindo de garantidor e árbitro da distribuição da riqueza.
No entanto, desde a década de 1970 até os dias de hoje, estabeleceu-se globalmente o
neoliberalismo, como resultado de uma “geopolítica de acumulação capitalista baseada na
exclusão”, acarretando a desregulamentação dos mercados, dos fluxos financeiros e da
organização do trabalho, com a conseguinte erosão das funções do Estado. (FLORES, 2002,
p. 9)
Ainda segundo o humanista espanhol, a teoria neoclássica elevou a economia ao
ambicioso posto de justificação e racionalização da luta para conseguir o maior benefício
individual, num pretenso ambiente de escassez de meios e recursos exigíveis para cumprir
simultaneamente com as expectativas de todos. A sociedade de mercado capitalista
subordinou o objetivo de satisfazer as necessidades materiais dos seres humanos ao da
apropriação de meios e recursos que satisfaçam as necessidades dos indivíduos “mais
racionais”. (FLORES, 2009, p. 58-59)
Herrera Flores afirma que a própria forma ocidental de ver o mundo, sobretudo a
partir do final do século XIX, teria sido constituída com base num processo de separação
22
entre a economia e o restante das instituições sociais, resultando na instauração do capitalismo
de mercado como ideologia, racionalidade e fundamento da vida em sociedade.
Consequentemente, entrou em evidência o aspecto individualista, travestido de racional, na
busca dos interesses econômicos do homem contemporâneo, processo em que a moralidade é
muitas vezes circunscrita à legalidade prática dos direitos garantidos aos trabalhadores,
pequenos e médios empresários e consumidores, porém pouco aplicada na própria motivação
das iniciativas econômicas e na efetiva distribuição dos lucros. (FLORES, 2009, p. 57)3
De fato, no último século, ganhou popularidade na economia a ideia de que as
pessoas se determinam de maneira racional apenas quando conscientemente buscam
maximizar a realização de seu autointeresse. Esse é o núcleo das teorias da escolha racional
formuladas por diversos economistas e cientistas políticos, como um reflexo da hegemonia
liberal no campo econômico e da filosofia individualista e pretensamente racional do
capitalismo de mercado, herdando toda a insatisfação social com as desigualdades fomentadas
nesse sistema.
Assim como o liberalismo político conheceu um significativo enfraquecimento
ante a recente retomada de valores democráticos na própria concepção dos sistemas políticos,
também o liberalismo econômico, fomentado pelas teorias da escolha racional, vem sofrendo
fortes críticas dos teóricos que advogam a defesa de valores éticos e sociais na definição e
concretização das práticas de mercado. Um desses teóricos mais renomados é o economista
indiano Amartya Sen, vencedor do Prêmio Nobel de Economia de 1998.
Quando proferiu uma série de conferências na Universidade da Califórnia (EUA)
– adaptadas para publicação no livro “Sobre Ética e Economia” –, em 1996, Amartya criticou
o empobrecimento da economia moderna em razão de seu distanciamento da ética.
Desenvolvendo seus estudos, o Nobel de economia deixou clara sua crítica à chamada
“escolha racional”, observando que os seres humanos podem facilmente ter boas razões para
3 Um dos projetos que se contrapõem integralmente à chamada “economia de domínio”, desde os ideais
subjacentes à atividade econômica até o cotidiano de partilha dos esforços e ganhos dela decorrentes, é a
Economia de Comunhão (EdC), criada em 1991 por Chiara Lubich, fundadora do Movimento dos Focolares,
após uma visita ao Brasil, no intuito de dar uma resposta concreta à desigualdade social e ao desequilíbrio econômico patentes no nosso país e no sistema capitalista em geral. Dirigida primariamente às empresas, a
proposta da EdC é colocar em comum a riqueza produzida e fundamentar a dinâmica operacional sobre a
comunhão e a fraternidade. Atualmente, centenas de empresas, no mundo inteiro, inspiram-se nela, ao adotar
uma governança centralizada na fraternidade, partilhando a riqueza produzida. O objetivo do projeto é apresentar
uma porção de humanidade “sem indigentes”, ativando a reciprocidade em vários níveis: criando postos de
trabalho a fim de incluir os excluídos do sistema econômico e social, difundindo uma “cultura da partilha” e da
comunhão, suscitando iniciativas educativas e culturais e intervindo em situações de emergência, com ajudas
concretas e projetos de desenvolvimento, conduzidos em colaboração com a ONG AMU (Ação Mundo Unido).
[Fonte: http://www.focolare.org/pt/in-dialogo/cultura/economia/]
23
adotar objetivos distintos da obstinada busca do autointeresse e perceber razões a favor do
reconhecimento de valores mais amplos que os individuais ou de regras normativas de um
comportamento decente. Desse modo, aquela teoria não passaria de uma compreensão
limitada da racionalidade (SEN, 2011, p. 212).
Amartya Sen observa que o próprio Adam Smith, em “The Theory of Moral
Sentiments”, elaborou as limitações da pressuposição de uma busca universal do
autointeresse, distinguindo claramente entre as diferentes razões para ir contra os ditames do
“amor próprio” ou self-love. Essas diferentes motivações seriam: a simpatia (a qual não exige
abnegação, autocontrole ou grande esforço do senso de prioridade), a generosidade (quando
se sacrifica algum grande e importante interesse próprio por um interesse igual de um amigo
ou de um superior) e o espírito público (observação dos fatos não sob a luz em que aparecem
naturalmente a nós mesmos, mas à nação pela qual lutamos). E se a primeira delas ainda pode
ser enquadrada no espectro do “amor próprio”, a generosidade e o espírito público seriam
motivações não centradas no autointeresse, ainda que muitas vezes não em virtude de uma
reflexão crítica, mas do mero seguimento de regras de comportamento bem estabelecidas em
sociedade. (SEN, 2011, p. 218-222)
Constatando a debilidade dos pressupostos individualistas das teorias da escolha
racional, Amartya Sen propõe uma teoria alternativa, defendendo que as escolhas humanas
seriam dotadas de racionalidade quando baseadas em argumentos que possam ser sustentados
de forma reflexiva quando submetidos à análise crítica, isto é, à investigação crítica das
razões para agir. Tal ponderação seria feita a partir de um raciocínio minucioso (quando
necessário, com o diálogo com os outros), levando em conta mais informações, quando e se
forem relevantes e acessíveis. Porém, isso não supõe a possibilidade de uma previsão da
escolha real que será feita por cada indivíduo, visto que, supondo que todos os seres humanos
agem de maneira racional, existe em cada situação um conjunto de escolhas potencialmente
racionais, mesmo nesse sentido reflexivo e crítico. (SEN, 2011, p. 213-216)
As considerações acima indicam que a economia, especialmente quando
vivenciada em meio a um regime democrático de governo, não pode se furtar ao seguimento
de princípios políticos e morais de busca do interesse coletivo, nem mesmo a propósito de
uma suposta racionalidade individualista de cunho liberal. Com efeito, a construção de um
espaço público democrático será consideravelmente limitada enquanto o liberalismo continuar
sobrelevando a vida privada e reduzindo a participação cidadã na esfera política a uma mera
gestão de economia de mercado baseada num modelo representativo de democracia.
24
É certo que o grau de egoísmo, de um lado, ou de busca do interesse coletivo, de
outro, responde diretamente ao nível de lealdade de um indivíduo ao grupo do qual participa,
seja no âmbito das relações familiares e comunidades ou dos sindicatos e grupos de pressão
econômica. (SEN, 2003, p. 38) Porém, as críticas atualmente direcionadas ao liberalismo
político-econômico evidenciam que as democracias contemporâneas urgem a lealdade de seus
participantes, especialmente dos que detêm cargos de gestão, dos quais se espera uma conduta
pautada pela moralidade, em consubstanciação dos valores afeitos ao interesse coletivo e à
concretização dos princípios estabelecidos nas constituições nacionais.
1.3 A CORRUPÇÃO DA ESFERA PÚBLICA BRASILEIRA
Num cenário em que a economia liberal centraliza a racionalidade humana na
busca do autointeresse e da maximização do poder de consumo, exsurge a insistente
problemática da corrupção. Inobstante a crescente tomada de consciência política dos
cidadãos, a corrupção ainda não foi eficazmente atacada em seu ponto-chave: a permanência
do comum entre os indivíduos, o restabelecimento de um processo de demarcação entre
público e privado. (AVRITZER, 2008, p. 134)
De grande valia para a compreensão do fenômeno da corrupção é a teoria política
da alemã Hannah Arendt. É de sua autoria o conceito de esfera pública, cujo desenvolvimento
retirou a teoria democrática do dilema entre uma concepção elitista e uma concepção direta do
exercício da política e criou uma terceira opção interativo-participativa, razão pela qual é
considerado por Leonardo Avritzer (2008, p. 133) o mais importante conceito elaborado pela
teoria política na segunda metade do século XX. A esfera pública foi definida no âmbito da
obra magna de Hannah Arendt, “A Condição Humana”, significando tudo aquilo que “pode
ser visto e ouvido por todos e adquire a maior visibilidade possível” (ARENDT, 2007, p. 50).
Hannah Arendt associa a esfera pública diretamente à política, cujo elemento
central seria a demarcação distintiva entre o público e o privado, uma dicotomia expressa
numa dupla chave de ação e de interação entre os indivíduos, pensada a partir do contraste
entre o que é visível e partilhável (público) e o que é invisível e não partilhável (privado)
25
(AVRITZER, 2008, p. 133). Por isso, Hannah sustenta que a sociedade de massas e a
ascensão das preocupações e necessidades sociais, enquanto centro ou objetivo primeiro da
vida em sociedade, despolitizaram a condição humana, transferindo para as atividades
privadas e, em especial, para o consumo, o centro das atividades humanas.
Essa centralidade dada à satisfação das necessidades sociais e, proximamente, dos
interesses pessoais, afetou diretamente a política, pois introduziu no seu interior a dimensão
do interesse privado, da busca pelo poder econômico, gerando aquilo que podemos denominar
de “societalização da política”, fenômeno em que o interesse passou a ser o elemento
fundamental da ação política moderna. (AVRITZER, 2008, p. 134)
Tal observação, conjugada com as pontuações anteriores, faz-nos concluir que a
democracia pode ser considerada um regime de governo que fomenta liberdades individuais,
expressadas no plano da representação dos interesses particulares na esfera pública.
Tomando-se o interesse enquanto um valor que se projeta sobre determinada coisa ou prática,
percebe-se que pensar a questão da democracia e a economia significa pensar os elementos
ligados à própria moralidade, entendida como um sistema valorativo social.
A complexidade da questão, porém, é agravada ao se verificar que o intercâmbio
entre interesses públicos e privados é uma característica típica das democracias modernas –
não apenas dos regimes ditatoriais. No regime democrático, de um lado, aumentam-se as
oportunidades de transações ilegítimas entre o público e o privado e, de outro, permanecem
ausentes as restrições de acesso aos lugares de poder, o que distingue o Estado democrático
do absolutista e do oligárquico. Na mesma extensão em que se distribui o poder, distribuem-
se as oportunidades de corrupção nele implícitas (SANTOS, 2008, p. 126), entendida a
corrupção, de maneira geral, enquanto confusão entre a esfera pública e a esfera privada.
Seria a corrupção, assim, um fenômeno intrínseco à democracia ou à própria
política, de modo que nem o fim de um regime autoritário poderia salvar o país do desrespeito
contumaz à coisa pública? A resposta é negativa, se se considera que a política, em si mesma,
insere-se no campo do pensamento plural, no ser capaz de pensar no lugar e na posição dos
outros, numa mentalidade alargada (LAFER, 2003, p. 59): o inverso do pensamento
individualista do agente público que superpõe seus interesses particulares aos interesses
coletivos, da cultura do agir político em benefício próprio, que parece arraigada na cultura
patrimonialista brasileira há tempos.
26
Assim, pensar a corrupção enquanto resultado, e não causa, de diversas
características sociopolíticas que permeiam a histórica nacional – desde o patrimonialismo, a
motivação individualista dos partidos políticos, a deficiência de movimentos políticos
organizados e até mesmo a própria estrutura da democracia – não significa uma fuga ao
enfrentamento da questão, mas uma estratégia interdisciplinar epistemológica de sua
abordagem.
É fato que os males da corrupção são prementes e danosos nos mais diversos
âmbitos da vida humana em sociedade4, contudo, parece infrutífero o empenho numa luta
anticorrupção às cegas. Por esse motivo, ora se põe uma reflexão sobre os diversos fatores que
influenciam a problemática da moralidade no âmbito da esfera pública brasileira.
Embora os debates acerca da (i)moralidade da esfera pública brasileira tenham
ganhado novo fôlego com os escândalos recentes de corrupção, é antiga a constatação de que
os desmandos do Estado Brasileiro decorrem, em grande parte, do uso que os agentes
públicos fazem dos recursos estatais para fins particulares, assim como da ausência de uma
mobilização democrática politicamente organizada por parte dos cidadãos.
Tal posicionamento pode ser encontrado, com farta argumentação, na análise da
República Velha feita por Oliveira Vianna, jurista, historiador e sociólogo brasileiro nascido
no final do século XIX, estudioso dos direitos sociais e do processo de formação do povo
brasileiro. Em sua obra “O Idealismo da Constituição”, escrita no início do século XX, o
jurista fluminense observa que a formação de partidos políticos, após a proclamação da
República, não passou por uma mudança cultural que os dominasse do “espírito do interesse
público” e os impulsionasse a agir de maneira transcendente à sua própria corporação. Em vez
disso, os partidos continuaram a atuar no plano provincial e, depois, no plano nacional, com
os mesmos objetivos e o mesmo espírito de afirmação dos interesses dos seus chefes e do
pequeno grupo de ambiciosos que os formavam desde sua origem, no âmbito doméstico.
(VIANNA, 1939, p. 184)
De fato, a sociedade brasileira perpetuou, ao longo de sua histórica política, suas
raízes culturais patrimonialistas, que se refletem no exercício autoritário da política, na
instituição de uma ética que consagra a honra como valor social maior e submete o espaço
público à pilhagem dos interesses privados, fazendo daquele um prolongamento da
4 “A corrupção impede de olhar para o futuro com esperança, porque, com a sua prepotência e avidez, destrói os
projetos dos fracos e esmaga os mais pobres. É um mal que se esconde nos gestos diários para se estender depois
aos escândalos públicos.” (IGREJA CATÓLICA, 2015)
27
propriedade, da família, das manobras aliancistas e da rapinagem política. É a prática do
favorecimento e do clientelismo, uma espécie de “domesticação da política”, na qual se
contemplam com benesses e favores os familiares e amigos, dando continuidade às relações
do “espaço doméstico-afetivo-familiar”. (SIQUEIRA, 1993, p. 437 e 441)
Não se pretende, com a referência ao patrimonialismo enquanto elemento
histórico-cultural formador da sociedade brasileira, reforçar o mito da demonização do Estado
corrupto e da divinização do mercado como reino da virtude, tampouco justificar a conduta
dos agentes públicos como uma mera consequência desse traço formador da sociedade
brasileira, tal qual adverte outro sociólogo crítico do patrimonialismo estatal e estudioso da
formação das classes sociais no Brasil, o potiguar Jessé de Souza (2009, p. 63 e 73). Ao
contrário, a razão patrimonialista identificada historicamente auxilia a compreender que a
postura classicamente individualista (ou “familiarista”) do agente público brasileiro, que
utiliza a máquina pública em favor de si e dos seus, sobretudo em termos econômicos, vem de
um longo passado político e se repete insistentemente até os dias de hoje, sinalizando que
ainda não foi combatida eficazmente, na sua origem cultural.
Em tom crítico e aguçado, Oliveira Vianna também nega que a culpa pelos males
da sociedade brasileira estaria apenas no Estado corrupto, na superposição dos interesses
particulares dos agentes públicos ao interesse coletivo do povo. Vianna critica, sobretudo, a
postura passiva e politicamente desorganizada dos cidadãos brasileiros, que não tinham
espírito democrático, sentimento democrático, nem tradições e hábitos democráticos. Por isso,
os “clãs partidários” fizeram dos cargos públicos sua propriedade privada, tal qual um
indivíduo que se apoderasse de uma res derelicta. (VIANNA, 1939, p. 103)
Apesar das graves críticas à formação político-democrática do Brasil ao longo de
sua história, as transformações sociais vividas no último século apontam para um
amadurecimento do exercício da cidadania no Brasil, sem perigo de incorrer num otimismo
ilusório. Pode-se constatar essa mudança, por exemplo, a partir da externalização do clamor
da sociedade brasileira insatisfeita com a conduta imoral de seus agentes públicos, em
diversas manifestações públicas organizadas que envolveram boa parte da população, tais
como as que se viram nas ruas em junho de 2013.5
5 Segundo Leonardo Avritzer (2013), em artigo publicado em julho/2013 sobre a onda de manifestações
populares que tomou as ruas do país em junho/2013, movimento popularmente apelidado “Vem Pra Rua”: “Ele
[o movimento] surgiu em um campo de esquerda semi-petista ou pós-petista que envolveu militantes de
diferentes movimentos da juventude quase todos de esquerda com uma agenda de democratização do acesso ao
28
Alexandre Delduque Cordeiro (2005, p. 2-3) afirma que a insatisfação popular
atual parece estar ligada, fundamentalmente, a dois fatores. O primeiro seria um maior
esclarecimento da população a respeito do papel dos administradores públicos e agentes
políticos, bem como dos desvios que são por eles cometidos, conhecimento devido, em
grande parte, ao elevado grau de liberdade da imprensa brasileira, à popularização do acesso
aos meios de comunicação (especialmente os que utilizam a Internet) e ao aumento do nível
de instrução da população, que implica uma maior fiscalização das ações dos homens
públicos e de exigência por um feedback pós-eleições.
Em segundo lugar, a maior tomada de consciência política pelos cidadãos
brasileiros também estaria ligada às mudanças estruturais do próprio papel do Estado,
ocorridas ao longo do século XX. De fato, o Estado passou de executor e explorador direto de
serviços públicos para regulador da atividade econômica e concessor da exploração dessas
mesmas atividades, resultando num maior intercâmbio entre o setor privado e a
Administração Pública, o que gera certa desconfiança por parte do cidadão (CORDEIRO,
2005, p. 3-4). E essa suspeita acaba sendo corroborada pelas inúmeras notícias de fraudes em
licitações, superfaturamento de obras públicas executadas por empresas privadas, desvio de
dinheiro público dentro de Organizações Sociais (OSs), supostos patrocínios a Organizações
Não-Governamentais (ONGs) “fantasmas”, etc. – acirrando ainda mais o debate acerca da
ética pública no Brasil.
Foi nesse cenário que a moralidade administrativa foi inserida na Constituição
Cidadã de 1988. A palavra “moralidade” ecoa forte, traz consigo uma ideia de justiça para
além da lei, após o fim de um regime autoritário de mais de duas décadas. Com os olhos no
passado recente de menosprezo e desrespeito a direitos do cidadão pelo próprio Estado,
pretendeu o legislador constituinte romper com o modelo autoritário, consagrando, inclusive,
transporte público e com críticas ao sistema político. Tais críticas, em quase todos os casos, estavam
relacionadas ao que podemos denominar de forma da democracia, isto é, uma crítica à maneira como o governo
federal e, em especial, o Congresso Nacional vem governando o país através de acordos para a nomeação de
cargos políticos. [...] A lição que fica das manifestações tanto para o sistema político quanto para a opinião
pública pode, talvez, ser resumida da seguinte forma: há um enorme potencial de insatisfação ligado a infra-
estrutura urbana e às políticas públicas no Brasil hoje. Este potencial tem sido explorado por atores de esquerda, mas pode vir também a ser objeto de manifestações de atores conservadores, quando a porta de entrada leva
apenas a uma agenda despolitizada relativa à luta anti-corrupção.” A ressalva premonitória final do autor
demonstra a preocupação de que, enquanto o movimento político em favor da probidade democrática
permanecer sem uma orientação política definida, operando um combate cego à corrupção, o clamor de
insatisfação das massas populares – especialmente dos jovens – tende a seguir a orientação ideológica, inclusive
conservadora, dos agentes que tiverem maior apelo social e midiático no momento. No ano de 2016, frente à
permanente insatisfação popular com as medidas governamentais a partir da reeleição de Dilma Roussef, a
previsão de Leonardo Avritzer pareceu concretizar-se nas manifestações populares de cunho conservador que
pressionaram o Congresso Nacional a aprovar o impeachment da presidente petista.
29
o extenso rol de direitos do art. 5º, certamente o ponto alto e mais libertário da Constituição
Federal vigente. (GIACOMUZZI, 2013, p. 142)
No entanto, a moralidade administrativa já se havia consagrado no cenário
jurídico brasileiro ou mundial muito tempo antes da Constituição de 1988, desde o início do
século XX, quando foi invocada como fundamento de um controle supralegal da
discricionariedade dos agentes públicos, tal qual será explanado no tópico seguinte.
30
2 MORALIDADE ADMINISTRATIVA: UMA CONTROVÉRSIA BRASILEIRA
2.1 ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE MORALIDADE
ADMINISTRATIVA
2.1.1 França: o berço da sistematização
Não se pode dizer que o reconhecimento da moralidade, para além da legalidade,
é ideia de cunho recente no âmbito jurídico. Os jurisconsultos romanos já a expressavam
desde a Antiguidade, no famoso brocardo jurídico non omne quod licet honestum est6.
Contudo, a primeira sistematização teórica conhecida sobre a moralidade administrativa data
do início do século XX e é atribuída ao jurista e sociólogo francês Maurice Hauriou, autor da
obra Précis de droit administratif et de droit public.
É de Hauriou o mérito de tomar um conceito até então restrito ao âmbito do
direito privado – em institutos como o de boa-fé contratual e abuso de direito – e aplicá-lo ao
direito público. O intuito do pensador francês era fundamentar o controle dos atos
discricionários pelo Conselho de Estado da França, opondo-se ao desvio de poder, o
détournement de pouvoir das autoridades, quando a legalidade falhasse no alcance da
regulação de seus juízos de valor. (HAURIOU, 1933. p. 442-454)
O jurista francês defendeu a moralidade enquanto critério para o controle dos atos
administrativos no momento histórico da fase republicana do Conselho de Estado, já com a
feição de tribunal soberano, que pronunciava arrêts (sentenças) em matéria administrativa. O
Conselho foi o precursor da autonomização do direito administrativo e, por meio de sua
jurisprudência, firmou os princípios da legalidade e da responsabilidade da ação
administrativa, facultando aos indivíduos administrados manejar o recours pour excès de
pouvoir (recurso por excesso de poder), com o intuito de anular os atos administrativos
6 “Nem tudo o que é lícito, é honesto.” (TARANTI, 2006, p. 48)
31
ilegais, e o recours en indemnisation (recurso de indenização), almejando condenar o Estado a
uma reparação pecuniária em caso de desconhecimento dos direitos do requerente. (GAZIER,
1955, p. 7-8)
Portanto, a única forma de garantia do administrado frente ao administrador, na
França do início do século XX, era a invocação à ilegalidade ou à lesividade do ato
administrativo: aquela, no momento da ação; esta, no momento da repercussão do ato
administrativo. Não havia, portanto, mecanismos que resguardassem os administrados da
prática de atos administrativos legais, porém viciados em sua concepção, isto é, em seus
motivos determinantes ou móveis subjetivos, quando esses fossem contrários ao interesse
público, a serviço de algum interesse particular.
Nesses casos, defendeu Hauriou que estaria caracterizado o desvio de poder por
violação à moralidade, facultando ao administrado acionar o Conselho de Estado via recours
pour excès de pouvoir. A primeira obra a desenvolver essa ideia pioneira do teórico francês
foi uma publicação em conjunto com Guillaume Bezin, datada de 19037, mencionada por José
Guilherme Giacomuzzi (2013, p. 63 e 73)8.
Recorde-se que, no início do século XX, já estava plenamente consolidado o
positivismo científico9. Portanto, o contexto filosófico de que participava Hauriou rejeitava a
cientificidade de quaisquer concepções baseadas em justificativas não objetiváveis. Por essa
razão, desde a primeira menção à ideia de moralidade administrativa, o mestre de Toulouse
fez questão de desvinculá-la de escalas de valores morais de cunho subjetivo, remetendo-a a
duas condicionantes objetivas, a teoria da declaração de vontade do ato administrativo
(Erklärungstheorie) e a noção de “boa administração” (GIACOMUZZI, 2013, p. 54-72).
Na obra supracitada, Hauriou e Bezin afirmam que a declaração de vontade “é
oponível, em princípio, desde o momento de sua emissão, da qual se retira a consequência de
dar à declaração uma existência objetiva, fazendo-a independente de seu autor e
7 La déclaration de volonté dans le droit administratiff français, Revue Trimestrielle de Droit Civil 3/543-586.
Ano 2. Julho-setembro/1903. 8 Portanto, está equivocada a referência de que a obra pioneira no trato da moralidade administrativa foram as
anotações de Hauriou às decisões do Conselho de Estado proferidas no caso “Gomel”, no ano de 1914, como
erroneamente afirmam Diogo Moreira Neto (1992, p. 5) e Antônio José Brandão (1951, p. 457). 9 O positivismo foi invocado por seu maior expoente, Augusto Comte, como o último estado que a humanidade
teria atingido após o movimento histórico que perpassou o “estado teológico” e o “estado metafísico”,
alcançando o “estado positivo”, onde se encontraria a ciência, que se atém à observação dos fatos e se limita a
raciocinar sobre eles e procurar suas relações invariáveis, suas “leis”. Como consequência, estaria posta a
utilidade do conhecimento, que se traduziria na previsão e controle do fenômeno da construção da sociedade
positiva. (SIMON, 2004, p. 144-148)
32
transformando-a em um ato” (GIACOMUZZI, 2013, p. 63)10
. A afirmação consiste, pois, um
endosso da Erklärungstheorie, uma vez que é ressaltado o caráter controlável da declaração
de vontade apenas após ser emitida, não dependendo de qualquer perquirição sobre a psique
de seu emissor.
Já sobre a ideia geral de “boa administração”, o pensamento de Hauriou pode ser
conferido na tradução do texto original feita por Márcia Noll Barboza (2002, p. 90), com
grifos nossos:
O desvio de poder é o fato de uma autoridade administrativa usar de seus poderes
em conformidade com a letra da lei, mas em objetivo outro que não aquele em vista
do qual eles lhe foram conferidos. Tal definição mostra que, por essa abertura, o
Conselho de Estado anula os atos cuja causa seja ilícita ou que tenha uma falsa
causa. O que nos interessa é saber como o Conselho de Estado aprecia esta violência
praticada em relação a causa. (...) Quanto à questão de saber em relação a que norma a causa do ato é declarada falsa ou ilícita, a jurisprudência do Conselho de Estado
responde muito claramente que é em relação à “boa administração”. O que é então
essa “boa administração”? É uma noção puramente objetiva que se dá ao juiz
administrativo apreciar soberanamente, a parte das circunstâncias, do meio, do
momento. Ela é o equivalente da noção comum de boa-fé no comércio jurídico
privado à qual se refere o legislador alemão. O Conselho de Estado parte da ideia
de que a Administração está vinculada por uma certa moralidade objetiva; ela tem
uma função a cumprir, e quando os motivos que impulsionaram não são conformes
aos fins gerais desta função, o Conselho de Estado os declaro ilícitos. Ora, se
concebe como esses “fins gerais da função” são elementos concretos, objetivos,
que o juiz recolhe na constatação dos fatos. Notemos, de passagem, que o
Conselho de Estado está melhor colocado que qualquer outro para delinear
essa moralidade, pois que é ele mesmo o conselho administrativo mais elevado e
mais esclarecido. (HAURIOU; BEZIN, 1903, p. 575-576)11
Observa-se, inicialmente, que o desvio de poder, ensejador do recurso por excesso
de poder, é definido como a prática de um administrador que age dentro dos ditames legais,
porém animado por intuito contrário à “boa administração”. Já essa “boa administração” seria
10 HAURIOU, Maurice; BEZIN, Guillaume. La déclaration de volonté dans le droit administratiff français,
Revue Trimestrielle de Droit Civil 3/543-586. Ano 2. Julho-setembro/1903, p. 565. 11 No original: Le détournement de pouvoir est le fait par une autorité administrative
d'user de ses pouvoirs conformément à la lettre de la loi, mais dans un but autre que celui en vue
duquel ils lui ont été conférés. Cette définition montre que, par cette ouverture, le Conseil d'Etat annule
des actes dont la cause est illicite ou qui ont une fausse cause. Ce qui nous intéresse, c'est de savoir
comment le Conseil d'État apprécie cette violence par rapport à la cause. (...) Quant à la question de
savoir par rapport à quelle norme la cause de l'acte est déclarée fausse ou illicite, la jurisprudence du
Conseil d'Etat répond très clairement que c'est par rapport à la "bonne administration". Qu'est-ce
donc que "cette bonne administration"? C'est une notion purement objective qu'il est donné au juge administratif d'apprécier souverainement, d'après les circonstances, le milieu, le moment. Elle est
l'équivalent de cette notion commune de la bonne foi dans le commerce juridique privé à laquelle se
réfère le législateur allemand. Le Conseil d'Etat part de cette idée que l'administration est liée par une
certaine moralité objetive; elle a une fonction à remplir et lorsque les motifs que l'ont poussée ne sont
pas conformes aux buts généraux de cette fonction, le Conseil d'Etat les déclare illicites. Or, on conçoit combien
ces "buts généraux de la fonction" sont des éléments concrets, objectifs, que le juge puise dans
la constatation des faits. Remarquons, en passant, que le Conseil d'Etat est mieux placé que tout autre
pour dégager cette moralité, puisqu'il est lui-même le conseil administratif le plus élevé et le plus
éclairé.
33
a concretização de uma certa “moralidade objetiva da administração”, equivalente à boa-fé no
direito privado, citada no Código Civil Alemão de 190012
, e remitida aos “fins gerais da
função administrativa”. Assim, os juristas sinalizam que o balizamento objetivo para a ideia
de moralidade administrativa se daria na referência a conceitos abertos já trabalhados pela
doutrina e jurisprudência (“boa-fé” e “fins gerais da administração”) e furtam-se a definir
concretamente quais aspectos deveriam ser avaliados no controle da vontade declarada do
administrador, deixando essa função ao Conselho de Estado na análise do caso concreto.
Anos mais tarde, desenvolvendo a noção de moralidade administrativa em sua
obra célebre, “Précis de droit administratif et de droit public”, Hauriou foi além das
referências à “boa-fé do direito privado” e aos “fins gerais da função administrativa”,
introduzindo a vinculação entre moralidade administrativa e interesse público ou interesse do
serviço, mais uma vez defendendo seu controle pelo Conselho de Estado francês via recurso
por excesso de poder lastreado na ocorrência de desvio de poder:
Quanto à moralidade administrativa, sua existência deriva de que cada um deve
possuir uma conduta prática na qual, obrigatoriamente, haja uma distinção entre o
bem e o mal. Como a administração tem uma conduta, ela pratica, obrigatoriamente,
essa distinção, a qual revive especialmente a discriminação entre aquilo que está e
que não dentro do significado do interesse público ou de interesse do serviço.
A moralidade administrativa é quase sempre mais exigente que a legalidade.
Veremos que o instituto do excesso de poder, com base no qual são anulados muitos
atos da administração, está fundamentado tanto sobre a noção de moralidade
administrativa quanto sobre aquela de legalidade, de tal sorte que a administração
está vinculada, em certa medida, pela moral jurídica, particularmente no que
concerne ao desvio de poder.13 (HAURIOU, 1933. p. 360)
Em suma, a moralidade administrativa, para Hauriou, representava o espírito geral
da lei administrativa, que impunha aos administradores o dever de agir pelo bem do interesse
público e a seu serviço. Todavia, a noção vigente de violação da lei, que ensejava controle de
legalidade, não alcançava os casos de desvio de poder, de excesso de poder no exercício do
poder discricionário, sobre o qual não havia estrita regulamentação legal.
12 O princípio da boa-fé foi consagrado no BGB a partir da cláusula geral inserta no §242, que dispunha que o
devedor estava adstrito a realizar a prestação tal como o exigisse a boa-fé, com consideração pelos costumes do
tráfico (negocial). Para uma análise histórica e detalhada de sua exegese, conferir: NOBRE JÚNIOR, Edilson
Pereira. O princípio da boa-fé e sua aplicação no direito administrativo brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 97-103. 13 Tradução livre do original: "Quant à la moralité administrative, son existence provient de ce que tout être
possédant une conduite pratique forcément la distinction du bien et du mal. Comme l’administration possède
une conduite, elle pratique forcément cette distinction, qui, pour elle, se ramène surtout à la discrimination de ce
qui est ou n’est pas dans le sens de l’intérêt public et de l’intérêt du service.
La moralité administrative est souvent plus exigeante que la légalité. Nous verrons que l’institution de l’excès de
pouvoir, grâce à laquelle sont annulés beaucoup d’actes de l’administration, est fondée autant sur la notion de
la moralité administrative que sur celle de la légalité, de telle sorte que l’administration est liée, dans une
certaine mesure, par la morale juridique, particulièrement en ce qui concerne le détournement de pouvoir".
34
(CAMMAROSANO, 2006, p. 19) Por isso o fundamento do controle do exercício do poder
discricionário, de apreciação pelo Conselho de Estado da França de recursos contra atos
eivados de desvio de poder, repousaria tanto na noção de moralidade administrativa quanto de
legalidade.
Após essa formulação inicial, Henri Welter14
e René Ladreit de Lacharrière15
deram prosseguimento aos estudos sobre o tema. Welter afirmou que a moralidade
administrativa não se confundia com a moralidade comum, sendo composta por regras de boa
administração. Lacharrière conceituou a moral administrativa como o conjunto de regras que
é imposto aos subordinados por parte de seu superior hierárquico, para disciplinar o exercício
do poder discricionário da Administração. (MEIRELLES, 2008, p. 90) Porém, os discípulos
de Hauriou não lograram, assim como seu mestre, esboçar contornos mais precisos acerca dos
elementos a serem considerados na avaliação da conformidade da intenção do administrador à
tal moralidade.
Ainda na época de Hauriou, sua defesa de que a moralidade (ou a imoralidade) do
ato administrativo residiria sempre na intenção do agente que o praticava foi fortemente
contestada por diversos juristas da época, como Marcel Waline. Para esse, se o vício do
desvio de poder ofendia ao espírito da lei, ofendia à própria lei, de modo que a violação à
moralidade não passaria de agressão à própria legalidade administrativa. (CORDEIRO, 2005,
p. 95)
A essa crítica, Hauriou rebateu o seguinte, em tradução do original feita por
Márcia Noll Barboza (2002, p. 92):
Para combater a distinção que fazemos aqui entre a legalidade e a moralidade
administrativa, se objeta que a moralidade administrativa não é outra coisa senão o
espírito da lei, e que, por consequência, o desvio de poder não é outra coisa senão a
violação do espírito da lei, caso particular de violação da lei.
Mas não é verdade que o espírito das leis administrativas se confunde com a
moralidade administrativa, como o espírito das leis civis não se confunde com a
moralidade individual. Se consultássemos apenas o espírito das leis, só teríamos
uma fraca idéia da moralidade. O espírito da lei é o limite a impor aos direitos no
interesse da justiça; o espírito da moralidade é a diretiva a impor aos deveres no
interesse do bem; há uma distância entre o que é justo e o que é bom.
14 WELTER, Henri. Le Contrôle Jurisdictionnel de la Moralité Administrative – Étude de Doctrine et de
Jurisprudence. Paris: Recueil Sirey, 1929. 15 LACHARRIERE, René de. Le Contrôle Hiérarchique de L'administration Dans la Forme Juridictionnelle.
Paris: Recueil Sirey, 1937.
35
É evidente que a moralidade administrativa ultrapassa a legalidade e, por
consequência, o desvio de poder ultrapassa em profundidade de ação a violação da
lei.16
Portanto, o mestre de Toulouse recusou-se a aceitar que a violação à moralidade
consistiria, em verdade, uma violação à legalidade, ainda que essa fosse entendida como o
“espírito da lei” ou uma “legalidade substancial” para além do simples conteúdo formal da
legislação. A contrario sensu, o jurista francês asseverou que o intuito da legalidade seria a
busca do justo, enquanto o fim da moralidade seria o alcance do bem.
No entanto, permanecendo a individualização da moralidade administrativa mais
num campo filosófico que prático, seu intuito pareceu desenvolver-se mais que o próprio
nomen iuris na França. Assim é que ganhou maiores formulações doutrinárias e
jurisprudenciais a temática do controle dos atos discricionários dos gestores públicos, do
abuso e do desvio de poder, ao contrário da moralidade administrativa, que não alcançou
popularidade em seu próprio país de berço, permanecendo na sombra do princípio da
legalidade em seu contexto pós-positivista.
Embora tenha sido explicitamente rejeitada pelo precursor da ideia de moralidade
administrativa, a remissão desse instituto a um conceito amplo de legalidade, que abrange
uma conformidade do ato administrativo à lei no sentido interno, material ou substancial,
parece ter se consolidado na doutrina francesa, tal qual ilustrado por René Chapus17
. O autor
admite que o controle da legalidade do ato administrativo pode se dar de duas formas: por
meio da legalidade externa (cuja violação enseja incompetência, vício de procedimento ou
16 Confira-se o texto original: Ainsi le détournement de pouvoir marque la subordination du pouvoir
administratif au bien du service, notion qui dépasse celle de la légalité et qui permet de restreindre le
pouvoir dans ce qu'il a de plus discrétionnaire: les mobiles qui le font agir. La légalité dont les règles
générales sont rigides ne saurait pénétrer dans la région des mobiles sans tuer la spontanéité du pouvoir
discrétionnaire; au contraire, la moralité administrative, descendant avec le juge dans les cas particu
liers, peut pénétrer dans cette région sans tuer cette spontanéité. Pour combattre la distinction que
nous faisons ici entre la légalité et la moralité administrative, on objecte que la moralité administrative
est pas autre chose que l'esprit général de la loi, et que, par conséquent, le détournement de pouvoir
n'est pas autre chose que la violation de l'esprit de la loi, cas particulier de la violation de la loi. Mais
il n'est pas vrai que l'esprit des lois administratives se confonde avec la moralité administrative, pas
plus que l'esprit des lois civiles ne se confond avec la moralité individuelle. Si on ne consultait que l'esprit des lois on n'aurait qu'une piètre idée de la moralité. L'esprit de la loi, c'est la limite à imposer
aux droits dans l'intérêt de la justice; l'esprit de la moralité, c'est la directive à imposer aux devoirs
dans l'intérêt du bien; il y a un écart entre ce qui est juste et ce qui bien. Il est évident que la moralité
dépasse la légalité et, par conséquent, le détournement de pouvoir dépasse en profondeur d'action la
violation de la loi. (HAURIOU, Maurice. Précis de droit administratif et de droit public. 11 édition. Paris:
Sirey, 1927, p. 419-420) 17 Cf. Droit Administratif Général, 12ª ed., t. I, Paris, Montchrestien, 1998, p. 941-971, citado por
GIACOMUZZI, Guilherme. A moralidade administrativa e a boa-fé da administração pública: o conteúdo
dogmático da moralidade administrativa. 2ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2013, p. 119-122.
36
vício de forma) ou da legalidade interna (cuja violação enseja vício de conteúdo, de motivos e
de intenção). (GIACOMUZZI, 2002, p. 297-299)
O próprio discípulo de Hauriou, Henri Welter, após análise minuciosa da
jurisprudência administrativa francesa dos anos 1860 até 1929, afirmou, na obra “Le Contrôle
Jurisdictionnel de la Moralité Administrative – Étude de Doctrine et de Jurisprudence”, que a
doutrina francesa não tinha em boa conta a moralidade administrativa, e que as decisões que
ele próprio classificou enquanto pertencentes ao controle da moralidade podiam, em grande
parte, ser ligadas ao controle da legalidade, entendida em senso lato. (GIACOMUZZI, 2013,
p. 115)
Portanto, constatou-se o pouco crédito dado à noção de moralidade administrativa
na França, pois, além de vaga, foi-se mostrando desnecessária ao controle do desvio de poder,
quando a noção de legalidade passou a abarcar uma exigência de legalidade substancial, não
apenas de mera legalidade formal, consistindo um imperativo de juridicidade, de
conformidade ao direito. (BARBOZA, 2002, p. 96)
2.1.2 Desenvolvimentos em outros sistemas jurídicos: Itália, Espanha e Portugal
O desenvolvimento do controle jurisdicional sobre os motivos determinantes,
móveis subjetivos ou simples intenção do administrador deu-se igualmente sob outras
nomenclaturas, que não a de moralidade administrativa, em diversos outros países, a exemplo
da Itália, Espanha e Portugal.
Na Itália, o administrativista Renato Alessi18
afirmou que, por meio do sviamento
di potere, ataca-se a ilegitimidade substancial do ato por duas causas: ato emanado sem
relação com o interesse público, mas a serviço de interesse privado, e ato emanado por
interesse público de natureza diversa do proposto em lei. Portanto, foi a noção de interesse
público que vigorou no direito italiano enquanto critério a embasar o desvio de poder, num
contexto de legalidade substancial, não se problematizando a “causa” ou o móvel moral do ato
administrativo. (GIACOMUZZI, 2013, p. 124)
18 Sistema Istituzionale del Diritto Amministrativo Italiano, Milão, Giuffrè Editore, 1953, p. 306-308, conforme
citado por Guilherme Giacomuzzi (2013, p. 123)
37
Outro administrativista de expressão na Itália, Massimo Severo Giannini (1991, p.
112-115) cita como princípios decorrentes e complementares do princípio da legalidade, no
direito italiano: o princípio do acesso à justiça, o princípio da imparcialidade, o princípio da
regularidade e os princípios de garantia e organização. Segundo o jurista italiano, o princípio
do acesso à justiça desenvolveu-se modernamente para abarcar não apenas a possibilidade de
controle judicial dos atos administrativos no sentido de tutela dos interesses dos particulares,
mas também de “interesses legítimos”, o que seria uma das mais importantes conquistas da
ciência jurídica dos últimos séculos. Nenhuma menção é feita à moralidade administrativa.
Já a Constituição Espanhola de 1978, no seu Título IV, que cuida “Do Governo e
da Administração”, afirma, no artigo 103 que “la Administración Pública sirve con
objetividad los intereses generales y actúa de acuerdo con los principios de eficacia,
jerarquía, descentralización, desconcentración y coordinación, con sometimiento pleno a la
ley y al Derecho”. A seguir, versando sobre o controle da administração, no artigo 106, afirma
que “los Tribunales controlan la potestad reglamentaria y la legalidad de la actuación
administrativa, así como el sometimiento de ésta a los fines que la justifican”.
Portanto, na legislação espanhola, à parte não ter sido incluído o princípio da
moralidade no rol daqueles que regem a atividade administrativa, a referência à legalidade é
complementada pelo controle da submissão da administração aos “fins que a justificam”.
Embora não haja, nessa expressão, qualquer reminiscência a condicionantes morais, ela
expressar justamente a ideia de legitimidade supralegal, cujo papel é exercido pelo princípio
da moralidade no ordenamento brasileiro.
Tal assertiva é corroborada pela análise da Ley reguladora de la Jurisdicción
contencioso-administrativa de 1956, vigente de 28/06/1957 a 14/12/1998 em território
espanhol. O diploma definia o instituto do desvio de poder em seu artículo 83.3, assim
redigido: “constituirá desviación de poder el ejercicio de potestades administrativas para
fines distintos de los fijados por el Ordenamiento Jurídico”. A mesma definição foi repetida
na lei que a sucedeu, a Ley 29/1998, de 13 de julio, reguladora de la Jurisdicción
Contencioso-administrativa19
.
19 Esclareça-se que a referência feita por Guilherme Giacomuzzi na nota de rodapé n.º 303 (op. cit. 2013, p. 192)
encontra uma pequena inconsistência, dado que a definição de desvio de poder, na Lei Jurisdicional de 1956,
encontra-se no artigo 83.3, não no 70.2. Com efeito, é na Lei Jurisdicional de 1998, que sucedeu à lei de 1956,
que dita conceituação é repetida no artigo 70.2.
38
Versando sobre essa norma do contencioso-administrativo espanhol, o catedrático
de direito administrativo da Universidade de Valladolid e destacado teórico espanhol do
direito público, García de Enterría20
(1962, p. 169-170) afirma que a Lei de 1956 introduziu,
pela primeira vez no ordenamento da Espanha e sem respaldo da jurisprudência, a técnica de
controle dos poderes discricionários pelo instituto do desvio de poder. Segundo o autor, o
direito espanhol se encontrava, na segunda metade do século XX, numa fase de redução dos
poderes discricionários a partir do controle dos elementos formais do ato administrativo,
incluindo o seu fim, fiscalizado pela técnica do desvio de poder – que não seria a forma de
controle mais substanciosa, na opinião do autor.
García de Enterría (1962, p. 169-176) especifica, então, três técnicas que seriam
mais efetivas no exercício do controle do poder discricionário, quais sejam: a) o controle dos
fatos determinantes; b) a distinção entre conceitos jurídicos indeterminados e sujeitos à
discricionariedade; c) o controle via princípios gerais do direito. Dentre esses, interessa a este
estudo, por ora, apenas o terceiro tipo, no qual se poderia pensar incluída a moralidade
administrativa. A segunda técnica será tratada mais adiante.
O autor espanhol ressalta que os princípios gerais de direito seriam princípios
jurídicos materiais que legitimam o Estado de Direito e exemplifica suas extensas
possibilidades de controle citando os princípios: da iniquidade manifesta, da irracionalidade,
da boa-fé, da proporcionalidade entre os meios e os fins e da natureza das coisas. Por fim,
argumenta que outros princípios se revelariam mais imediatos e operantes naquele
ordenamento, tais como o princípio da igualdade e todos os derivados dos direitos e
liberdades fundamentais. (ENTERRÍA, 1962, p. 176-179) Em nenhum momento, mais uma
vez, é sequer mencionado o princípio da moralidade administrativa ou qualquer condicionante
moral no controle da Administração Pública na Espanha.
Tal situação se repete no direito português. A Constituição da República
Portuguesa de 1976 abre o Título IX (“Administração Pública”) com o artigo 266º, intitulado
“Princípios fundamentais”. Na 1ª parte, explicita-se o caráter garantista da carta política ao se
afirmar que “a Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito
pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”. Observa-se, mais uma vez, a
centralidade dada ao interesse público enquanto finalidade do atuar administrativo.
20 Em trabalho que recolhe o texto da conferência pronunciada pelo autor na Faculdade de Direito da
Universidade de Barcelona, no dia 2 de março de 1962, dentro do curso “O Poder e o Direito”, organizado pela
Promoción Manuel Ballbé daquele ano.
39
Já na segunda parte do artigo 266º, além da submissão à Constituição e à lei – que
pode ser traduzida enquanto princípio da legalidade –, elencam-se como regentes dos órgãos e
agentes administrativos do Estado português os princípios: da igualdade, da
proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé. A ausência da enunciação do
princípio da moralidade parece ter sido suficientemente suprida pela menção aos princípios da
justiça e da boa-fé, os quais também apontam para uma construção de sentido de normas para
além do positivado.
Tomando por base a Constituição da República Portuguesa de 1976, o
constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho (1999, p. 30-31) afirma que a dimensão do
Estado de direito encontra expressão jurídico-constitucional num complexo de princípios e
regras dispersos pelo texto constitucional. Além do já citado princípio da legalidade, expresso
no artigo 266º, o constitucionalista português identifica: o princípio da constitucionalidade
(artigo 3º); o controle judicial da constitucionalidade de atos normativos, a começar pelos de
valor legislativo (artigos 277º e seguintes); o princípio da responsabilidade do Estado por
danos causados aos cidadãos (artigo 22º); o princípio da independência dos juízes (artigo
218º) e os princípios da proporcionalidade e da tipicidade no domínio de medidas de polícia
(artigo 272º).
Aprofundando-se no caráter jurídico fundacional desses valores constitucionais, o
catedrático da Universidade de Coimbra contrapõe-se ao entendimento de que o Estado de
direito é uma forma de organização jurídica e política circunscrita aos Estados liberais do
Ocidente, adeptos de determinado paradigma jurídico, político, cultural e econômico, e afirma
que o Estado de direito seria uma forma de organização política em torno da chamada
juridicidade estatal. Essa, por sua vez, estaria calcada no governo de leis gerais e racionais, na
organização do poder segundo o princípio da divisão de poderes, o primado do legislador, a
garantia de tribunais independentes, o reconhecimento de direitos, liberdades e garantias, o
pluralismo político, o funcionamento do sistema organizatório estadual subordinado aos
princípios da responsabilidade e do controle e o exercício do poder estadual através de
instrumentos jurídicos constitucionalmente determinados. (CANOTILHO, 1999, p. 20)21
Igualmente, portanto, a doutrina e a constituição portuguesas demonstram ter
construído todo o sentido de juridicidade estatal passando ao largo da moralidade
administrativa e aparelhando o princípio do “governo das leis” com outros princípios de
21
Para um aprofundamento acerca desses princípios jurídicos informadores da juridicidade estatal, na visão de
Canotilho, conferir a obra Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2ª ed., Coimbra, 1998, p. 235-272.
40
cunho ideológico supralegal, tais quais o da proporcionalidade e do pluralismo político. Outro
doutrinador português, Marcelo Caetano, chega a afirmar que a doutrina da moralidade
administrativa se encontra hoje abandonada, sendo majoritária a opinião de que a moralidade
está acautelada pela lei nos termos por essa estabelecidos. (GIACOMUZZI, 2013, p. 125)
2.2 A RELEITURA BRASILEIRA DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA
2.2.1 Primeiras menções
A moralidade administrativa surgiu, no âmbito do direito pátrio, muito antes da
Constituição de 1988, contando com diversas referências na doutrina e jurisprudência
brasileiras, lastreadas nos estudos franceses. Um dos acórdãos pioneiros no cenário nacional a
adotar como fundamento a proteção à moral administrativa, foi o da Apelação Cível nº
151.580, julgada pela 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP, em
01/03/1966, com relatoria de Cardoso Rolim.22
Tratava-se de uma apelação interposta por um
ex-tesoureiro da Caixa Econômica de São Paulo, demitido da autarquia, após o devido
procedimento administrativo, em virtude da emissão de cheque sem fundo contra a própria
instituição financeira. Buscando o reexame do mérito desse ato administrativo, o ex-
funcionário recorreu ao Judiciário, tendo por improcedente seu pleito em primeiro e segundo
graus.
Apreciando o caso, o TJSP não se limitou a afirmar a legalidade do ato
administrativo de demissão e o respeito ao princípio da separação de Poderes, que vedava ao
Judiciário imiscuir-se no mérito das decisões do Executivo e permitia-lhe apenas controlar a
apuração da falta segundo a lei, além da conformidade do ato à apuração administrativa. Por
unanimidade, recorrendo à doutrina de Hely Lopes Meirelles, a 1ª Câmara Cível decidiu que o
ato administrativo questionado era plenamente legal, tanto pela sua conformação à lei quanto
por atender à moral administrativa e ao interesse coletivo, pois “seria absolutamente contrário
22 Julgado publicado pela Revista de Direito Administrativo (RDA), vol. 89, jul./set. 1967. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, p. 134-137.
41
ao interesse público, reintegrar-se num cargo em que se exige a mais estrita probidade, pessoa
que levianamente emite cheque sem fundos”.
Nessa análise histórica, destaque-se a rica contribuição, para a doutrina brasileira,
dos estudos do promotor de Justiça do Rio Grande do Sul, José Guilherme Giacomuzzi, cuja
dissertação de mestrado, defendida em dezembro/2000 na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul – UFRS, foi publicada em forma de livro, com o título: “A Moralidade
Administrativa e a Boa-Fé da Administração Pública – o conteúdo dogmático da moralidade
administrativa”, obra de referência central para o presente trabalho.
Consoante mapeado por José Guilherme Giacomuzzi (2002, p. 32 e 128, 293-
294), a expressão “moralidade administrativa” não é nova no Direito Brasileiro, pois veio
mencionada “aqui e ali, ainda que tímida e circunstancialmente”, tal qual no art. 7º do Decreto
19.398, de 11/11/193023
. No âmbito da doutrina jurídica brasileira, José de Castro Nunes, em
1937, em obra acerca do mandado de segurança, tratando do cabimento do writ também nos
casos de excesso de poder, afirmou que a moralidade administrativa estava enquadrada na
legitimidade dos fins e motivos do ato administrativo e compunha, nas palavras do autor, a
“trilogia” da autoridade administrativa, junto à legalidade e à oportunidade. (CASTRO
NUNES, 1937, p. 132-133)
Outro doutrinador pátrio, Seabra Fagundes, referiu-se à moralidade administrativa
ainda em 1946, quando abordou a ação popular em artigo doutrinário24
. Ademais, pioneiro
nos estudos de Direito Administrativo no Brasil, Hely Lopes Meirelles já falava em
moralidade administrativa em 1964, desde a 1ª edição de seu clássico “Direito Administrativo
23 Trata-se do decreto que instituiu o “Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil”, após a
Revolução de 1930, que culminou com o golpe de Estado que levou Getúlio Vargas ao poder e ao fim da
República Velha no Brasil. O artigo citado é o seguinte: “Art. 7º Continuam em inteiro vigor, na forma das leis
aplicaveis, as obrigações e os direitos resultantes de contratas, de concessões ou outras outorgas, com a União, os
Estados, os municípios, o Distrito Federal e o Território do Acre, salvo os que, submetidos a revisão,
contravenham ao interesse público e á moralidade administrativa.” 24 “Da ação popular”, RDA 6/1-19, Rio de Janeiro, outubro/1946. Com efeito, a Lei n.º 4.717/65 ou Lei da Ação
Popular (LAP) prevê, em seu art. 2º, “e”, que os atos administrativos serão anulados quando eivados de desvio
de finalidade. A expressão remete-se à origem francesa da moralidade administrativa, a qual foi desde o início
identificada aos fins do ato administrativo. Tal vinculação se reflete na leitura da exposição de motivos da lei,
especialmente na citação de Seabra Fagundes, quando afirma que a ação popular é um “instrumento de colaboração para a moralidade da prática de governo”, e de Raphael Bielsa, ao asseverar que o autor da ação
popular: “É um cidadão que impugna o ato lesivo para o interesse geral, porque esse ato viola a lei ou prejudica
o patrimônio da entidade pública ou implica uma imoralidade ou restringe arbitrariamente a liberdade. (...) O
autor da Ação Popular é uma espécie de „cavaleiro cruzado‟ da legalidade e da moralidade pública. Nêle (SIC) se
vê uma expressão da solidariedade para com todos os cidadãos honestos ou animados de espírito cívico”. Fonte:
Exposição de Motivos nº 211-B-65 do Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Dossiê do PL nº 2726/1965.
Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=0233E038E64216ABAF3B96C81
00CC609.proposicoesWeb1?codteor=1196645&filename=Dossie+-PL+2726/1965> Acesso em 08/10/2016.
42
Brasileiro”. Hely adotara, então, sem reservas, as posições do advogado português Antônio
José Brandão, o qual escreveu um artigo intitulado “Moralidade Administrativa”,
originalmente publicado em 1947, no Boletim do Ministério da Justiça de Lisboa. Esse escrito
foi copiado para a nossa Revista de Direito Administrativo (RDA), volume 25, de 1951, por
meio da qual foi divulgado no Brasil e referenciado pela nossa doutrina, muitas vezes
acriticamente. (GIACOMUZZI, 2002, p. 131, 293-294)
No mencionado artigo, Antônio Brandão (1951, p. 454-467) disserta sobre o
desenvolvimento do conceito de moralidade administrativa, transcrevendo trechos das obras
de Hauriou e de dois de seus discípulos, Lacharrière e Welter, todavia sem referências
bibliográficas completas e imiscuindo os pensamentos desses autores às suas próprias
ponderações.
2.2.2 Tentativas dispersas de situar e conceituar a moralidade do ato administrativo
Antônio José Brandão, no artigo supracitado, reproduz a seguinte frase de Henri
Welter, da obra Le Contrôle Jurisdictionnel de la Moralité Administrative - Étude de Doctrine
et de Jurisprudence25
, como se fosse a chave para o desvelamento dos sentidos subjacentes ao
conceito em exame:
A moralidade administrativa, que nos propomos estudar, não se confunde com a
moralidade comum; ela é composta por regras da boa administração, ou seja: pelo conjunto de regras finais e disciplinares suscitadas, não só pela distinção entre o bem
e o mal, mas também pela idéia geral de administração e pela idéia de função
administrativa.
Insistentemente referenciada no âmbito doutrinário26
e jurisprudencial27
até os
dias de hoje, a máxima de Welter traz conceitos fluidos e abertos (“boa administração”, “bem
25 Cuidadosamente analisada por José Guilherme Giacomuzzi (2002, p. 295), que encontra o trecho em questão
na pág. 77 da citada obra, publicada em Paris pela Recueil Sirey, em 1929. 26 Por todos, considerando inclusive referência errônea ao autor da frase, confiram-se: MEIRELLES, Hely
Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 39ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013, p. 92; BRANDÃO,
Antônio José. Moralidade Administrativa. Revista de Direito Administrativo (RDA). Rio de Janeiro, v. 25,
jul./set. 1951, p.459; MADEIRA, José Maria Pinheiro. Administração Pública. 10 ed. Rio de Janeiro: Elsevier,
2008, p. 19; LIMA, Rogério Medeiros Garcia. O Direito Administrativo e o Poder Judiciário. 2 ed. rev. atual e
ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 136; BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo administrativo
disciplinar. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 199. 27 TRF-3 - AC: 1199 SP 2002.61.14.001199-5, Relator: JUIZA RAMZA TARTUCE, Data de Julgamento:
08/03/2004, Data de Publicação: DJU DATA:06/04/2004, PÁGINA: 403 (inteiro teor); TRT-4 - ROREENEC:
43
e mal”, “ideia geral de administração” e “função administrativa”) que, longe de delimitarem o
sentido e a aferição da moralidade nas condutas praticadas no seio da Administração Pública,
carecem de uma extensa digressão conceitual – que quase nunca se segue à sua menção.
Assim, a moralidade administrativa permanece sendo referenciada no direito
brasileiro com base em referências de autores que fizeram referência aos autores franceses,
que se referem a termos igualmente indeterminados, sem ao menos ir-se consolidando uma
interpretação doutrinária orientada em torno de parâmetros concretos de análise.
O próprio Antônio Brandão, ao analisar o conceito proposto por Welter, julga que
dele resulta a “mais clara noção de moralidade administrativa”, em virtude da especificação
de que se trata de uma “moralidade especial”, distinta da moralidade comum (gênero do qual
aquela seria espécie), com caráter disciplinar, composta por juízos sobre o bem e o mal a
serem formulados a partir da concepção da função administrativa. A única ressalva que
Brandão faz acerca da precisão do conceito de Welter é no tocante à “boa administração”. Ele
afirma que, pelo contexto, a expressão trata da gestão administrativa, “que consiste em aplicar
normas de direito público, satisfazer intêresses (SIC) gerais mediante serviços burocráticos
apropriados e exercer poderes de polícia dentro dos próprios fins assinalados ao poder público
pela função administrativa”, de modo que a “boa administração” requereria o exercício do
senso moral comum juntamente com a não violação da ordem institucional. (BRANDÃO,
1951, p. 459)
À luz dessas ideias, o advogado português arremata que:
“(...) tanto infringe a moralidade administrativa o administrador que, para atuar, foi
determinado por fins imorais ou desonestos, como aquêle (SIC) que desprezou a
ordem institucional e, embora movido por zêlo (SIC) profissional invade a esfera
reservada a outras funções, ou procura obter mera vantagem para o patrimônio à sua
guarda. Em ambos êstes (SIC) casos, os seus atos são infiéis à idéia (SIC) que tinha
de servir, pois violam o equilíbrio que deve existir entre tôdas (SIC) as funções, ou,
embora mantendo ou aumentando o patrimônio gerido, desviam-no do fim
institucional, que é o de concorrer para a criação do bem-comum.” (BRANDÃO, 1951, p. 459)
1083012 RS 01083.012, Relator: TÂNIA MACIEL DE SOUZA, Data de Julgamento: 04/11/1999, 12ª Vara do Trabalho de Porto Alegre (inteiro teor); TJ-MG - AC: 10143090224740001 MG, Relator: Belizário de Lacerda,
Data de Julgamento: 05/08/2014, Câmaras Cíveis / 7ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 08/08/2014
(inteiro teor); TJPE – AC: 0420279-9 (Proc. Originário n.º 0000496-12.2013.8.17.1170), Relator Substituto:
Des. Alfredo Sérgio Magalhães Jambo, Data de Publicação: 01/02/2016 (inteiro teor); TJPE – AC: 0393663-2
(Proc. Originário n.º 0000654-67.2013.8.17.1170), Relator: Des. José Ivo de Paula Guimarães, Data de
Publicação: 05/10/2016 (inteiro teor); TJ-MG - AC: 10134110048896001 MG, Relator: Teresa Cristina da
Cunha Peixoto, Data de Julgamento: 28/11/2013,Câmaras Cíveis / 8ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação:
09/12/2013 (inteiro teor); entre tantas outras.
44
Observa-se, portanto, que Brandão enquadra como violação à moralidade
administrativa não apenas a conduta do administrador que age motivado por fins “imorais e
desonestos”, no sentido de contrários à moral comum (cujo conteúdo não é problematizado),
mas do administrador incompetente (que age fora de sua atribuição funcional) e daquele que
superpõe ao bem comum o patrimônio sob sua guarda, ou seja, prioriza o interesse público
secundário sobre o interesse público primário – sendo essas duas últimas condutas as
violadoras da “ordem institucional”.
Embora faça uma digressão autêntica sobre o conteúdo do princípio da
moralidade, Brandão parece estreitar em demasia os pormenores da moralidade, ao ponto de
enxergá-la violada até mesmo no vício de competência do ato administrativo, o qual em muito
dista da ideia inicial de controle dos móveis subjetivos do agente público.
Nessa senda, cabe relembrar que se pode constatar vício em qualquer dos cinco
elementos do ato administrativo: 1) competência (do sujeito), 2) forma, 3) finalidade, 4)
objeto e 5) motivo. Sobre o elemento motivo, Carvalho Filho (2016, p. 118) explica que se
subdivide em duas classes: motivo de direito e motivo de fato – o primeiro, a situação de fato
eleita pela norma legal como ensejadora da vontade administrativa; o segundo, a própria
situação de fato ocorrida no mundo empírico. Se a situação de fato já está delineada na norma
legal, trata-se de um ato vinculado ao motivo de direito; quando a lei não delineia a situação
fática que deve motivar determinada atuação estatal, o agente é que deve eleger ou não
determinado motivo de fato para subsidiar o ato administrativo, atendendo aos critérios da
conveniência e oportunidade, tratando-se de um ato discricionário.
Assim, havendo um motivo de direito, a violação do ato administrativo a esse
motivo seria uma questão de legalidade. Porém, havendo apenas um motivo de fato, eleito
como intencionalidade do ato administrativo pela discricionariedade do agente público, o
controle de legalidade restaria prejudicado, ao menos em seu aspecto formal, qual seja, de
conformação à lei escrita. Foi justamente visando ao controle dessa eleição de motivos de
fato, ou seja, da motivação dos atos discricionários da administração, não abarcados pela
noção formal de legalidade, que surgiu a ideia de moralidade administrativa.
Voltando às tentativas de conceituação da moralidade administrativa, outro autor
que propõe uma exegese bastante ampla do instituto, identificando sua violação em todos os
possíveis vícios de motivo e objeto do ato administrativo, é o advogado e professor titular de
Direito Administrativo da Universidade Cândido Mendes, Diogo de Figueiredo Moreira Neto.
45
Ele busca situar a moralidade administrativa na escolha dos motivos e objetos do ato
administrativo, e não na intenção do agente – território da moral comum, para o autor. Assim,
o autor visa fugir ao subjetivismo da matéria, embora a partir de uma relação direta entre os
motivos e objetos do ato administrativo e o interesse público específico identificado com o
elemento finalidade.
Moreira Neto designa como vício de moralidade administrativa o fato de o agente
público praticar ato administrativo (contrato administrativo ou ato administrativo complexo)
fundando-se em motivo: a) inexistente28
; b) insuficiente29
; c) inadequado30
; d) incompatível31
;
ou e) desproporcional32
. Da mesma forma, para o autor, haverá vício de moralidade
administrativa se o agente público praticar ato administrativo (contrato administrativo ou ato
administrativo complexo) cujo objeto seja: a) impossível, fática e juridicamente33
; b)
desconforme34
; e c) ineficiente35
. (MOREIRA NETO, 1992, p. 11-14)
Porém, ao tentar restringir a análise da moralidade administrativa a fatores
“objetivos”, desvinculados dos móveis subjetivos do agente público, Moreira Neto deixa de
considerar, por exemplo, a possibilidade de tais vícios serem causados por equívocos ou
inabilidades do gestor. Dessa forma, pode-se concluir que a construção teórica de Moreira
Neto, assim como a de Antônio Brandão, ao tentar fugir ao subjetivismo da matéria, cai num
objetivismo que ignora a intenção do agente público, não diferenciando sua consciência e
vontade, afastando-se da noção de imoralidade proposta por Hauriou, no sentido de
desonestidade do agente público amparado pela lei formal.
Optando por uma abordagem ainda mais larga, Di Pietro (2001, p. 154) aduz que a
moralidade deve ser identificada na intenção do agente, nos meios de ação escolhidos por ele,
no objeto/conteúdo do próprio ato administrativo e, por fim, na sua interpretação. Ou seja, a
28 Cujo exemplo seria a concessão de período de férias remuneradas a servidor que já tenha gozado esse
benefício relativamente ao mesmo período. 29 Cujo exemplo seriam atos punitivos praticados exagerando-se o motivo. 30 Cujo exemplo seria a utilização de motivos indiciários para aplicar sanções extremas que, por sua própria
natureza categorial, exigiriam provas concludentes. 31 Cujo exemplo seria a retenção da carteira de habilitação de um motorista pela autoridade de trânsito porque em
seu veículo são encontrados petrechos de pesca predatória. 32 Cujo exemplo seria a retenção da carteira de habilitação apenas porque o agente de trânsito não se agradou de
uma atitude do motorista. 33 Cujo exemplo seria um prefeito que pretender estabelecer uma barreira sanitária para proibir o ingresso de
aidéticos em sua cidade. 34 Cujo exemplo seria um prefeito que, não satisfeito com a qualidade do ensino ministrado nas escolas
municipais, resolver encerrar as atividades escolares até que sejam admitidos novos professores. 35 Cujo exemplo seriam as encampações ideológicas de concessionárias de serviços públicos, tão dispendiosas
para os tesouros públicos quanto catastróficas para os usuários, embora vantajosas para a clientela política e para
a captação de votos radicais.
46
moralidade administrativa deveria ser aferida durante todo o agir administrativo, desde a
concepção até a feitura e execução do ato. Tal afirmação nos remete à pergunta: o que se deve
buscar observar em todos esses momentos a fim de identificar a violação à moralidade
administrativa? A resposta, porém, parece ser dada pela autora apenas na forma de exemplos:
[Há imoralidade] quando o conteúdo de determinado ato contrariar o senso comum
de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano, à
boa-fé, ao trabalho, à ética das instituições. A moralidade exige proporcionalidade
entre os meios e os fins a atingir; entre os sacrifícios impostos à coletividade e os
benefícios por ela auferidos; entre as vantagens usufruídas pelas autoridades
públicas e os encargos impostos à maioria dos cidadãos. [...] Por isso mesmo a
imoralidade salta aos olhos quando a Administração Pública é pródiga em despesas
legais, porém inúteis, como propaganda ou mordomia, quando a população precisa
de assistência médica, alimentação, moradia, segurança, educação, isso sem falar no mínimo indispensável à existência digna. (DI PIETRO, 2001, p. 155)
Tal caminho doutrinário parece mais “seguro”, ao evitar polêmicas em torno da
conceituação e da indicação de critérios identificadores da moralidade administrativa. Outra
saída popular entre os doutrinadores é remeter o conteúdo da moralidade administrativa a
outros princípios ou normas da administração pública, muitas vezes sem se debruçar sobre o
significado desses, como se a simples vinculação da moralidade a outros institutos jurídicos
ou valores sociais sanasse sua indeterminação conceitual. É o que se percebe da leitura da
obra do administrativista brasileiro Celso Antônio Bandeira de Mello, ao relacionar a
moralidade administrativa aos conceitos de lealdade e boa-fé:
De acordo com ele [o princípio da moralidade administrativa], a Administração e
seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos. Violá-los implicará
violação ao próprio Direito, configurando ilicitude e assujeita a conduta viciada a
invalidação, porquanto tal princípio assumiu foros de pauta jurídica, na
conformidade do art. 37 da Constituição. Compreendem-se em seu âmbito, como é
evidente, o chamado os princípios da lealdade e boa-fé, tão oportunamente
encarecidos pelo mestre espanhol Jesús Gonzáles Perez em monografia preciosa.
Segundo os cânones da lealdade e da boa-fé, a Administração haverá de proceder em
relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer
comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos. (MELO, 2013,
p. 122-123)
Esse padrão repete-se nos escritos de administrativistas de renome na matéria, tais
como Juarez de Freitas e Carmem Lúcia Antunes da Rocha, que discorrem sobre a moralidade
administrativa remetendo-a a valores sociais como honradez, lealdade, honestidade e justeza,
conforme ilustrado nos trechos abaixo destacados:
Decerto, o princípio determina que se trate a outrem do mesmo modo ético pelo qual
se apreciaria ser tratado, isto é, de modo virtuoso, honesto e leal. [...]. Tudo no
combate contra qualquer modalidade de corrupção ou de lesão exclusivamente
moral e imaterial provocada por intermédio das condutas omissivas e comissivas dos
agentes públicos, destituídas de probidade e honradez. (FREITAS, 2012, p. 87-88)
47
Pelo princípio da moralidade administrativa, põe-se a conduta administrativa
conformada aos valores de honestidade e justeza devida a cada qual dos cidadãos e
dos administrados na base das condutas públicas. Quer-se por ele atingir-se a
juridicidade administrativa justa, a dizer, havida com a justeza determinada segundo
os paradigmas do Direito traçados como norte e limite da atuação dos agentes da
Administração Pública. A moralidade administrativa desempenha, então, um papel
preponderante e diretivo na garantia dos direitos subjetivos dos administrativos no
exercício do poder manifestado pela função administrativa. (ROCHA, 1997, p. 9-10)
A respeito de conceituações como essas, José Guilherme Giacomuzzi afirma que
compor o sentido da moralidade com noções, conceitos ou princípios tais como os de
interesse público, proporcionalidade e razoabilidade, significa apenas dar a uma mesma
realidade fenomênica nomenclatura diversa. (GIACOMUZZI, 2013, p. 175)
Percebe-se, portanto, a dificuldade dos doutrinadores em apontar um conteúdo ou
uma definição mais tangível ou específica acerca do princípio da moralidade, bem como sobre
em quais elementos do ato administrativo repousaria a violação a esse princípio. Resta, assim,
inviabilizada a segurança jurídica de sua aferição no caso concreto.
2.2.3 Moralidade X Legalidade
A doutrina brasileira mostra-se dividida entre a independência,
complementariedade ou sobreposição entre os princípios da moralidade e da legalidade.
A corrente que advoga a superposição da legalidade sobre a moralidade segue o
pensamento de Márcio Cammarosano (2006, p. 24-25, 81-83 e 114), segundo o qual não se
pode admitir que a moralidade referida na Constituição diga respeito às regras da moral
comum retiradas do corpo social, visto que o objetivo maior do direito seria a segurança
jurídica, alegadamente incompatível com o caráter mutável e fluido das disposições morais.
Ademais, admitir que as regras jurídicas poderiam ser determinadas pelas regras morais seria
um esvaziamento da função do legislador. Por essa razão, violar a moralidade administrativa
seria violar o direito, uma questão de legalidade, na medida em que a só violação de preceito
moral não juridicizado não implicaria invalidade do ato.
Mostram-se adeptos desse entendimento, tributando a definição de moralidade
administrativa à de legalidade, Maria Goretti Dal Bosco e Celso Antônio Bandeira de Mello: a
48
primeira ressalta a superação da doutrina de Hauriou, e o segundo aduz que a moralidade é
um reforço à legalidade, conforme se observa dos trechos infra:
(...) a visão de moralidade, oferecida pela doutrina de Maurice Hauriou, está
superada, e dá lugar, modernamente, à idéia de que a moralidade se acha acautelada
pela lei nos termos por ela estabelecidos. No Direito Administrativo, como em
qualquer outro ramo de Direito, a Moral só vale na medida em que, sendo recebida pela norma jurídica e como conteúdo desta, passe a beneficiar da sanção peculiar da
ordem jurídica, em lugar de ficar limitada às suas sanções peculiares (reprovação das
consciências). (DAL BOSCO, 2004, p. 98)
Quanto a nós, também entendendo que não é qualquer ofensa à moral social que se
considera idônea para dizer-se a ofensiva ao princípio jurídico da moralidade
administrativa, entendemos que este será havido como transgredido quando houver
violação a uma norma de moral social que traga consigo menosprezo a um bem
juridicamente valorado. Significa, portanto, um reforço ao princípio da legalidade,
dando-lhe um âmbito mais compreensível do que normalmente teria. (MELLO,
2013, p. 123)
A segunda corrente, seguida por juristas eminentes como Oswaldo Aranha
Bandeira de Mello (2012), Marçal Justen Filho (1995), Manoel de Oliveira Franco Sobrinho
(1993), Weida Zancaner (2001) e Maria Sylvia Di Pietro (2001), afirma que a moralidade
possui conteúdo próprio, autônomo, extraído dos valores éticos existentes na sociedade, os
quais comporiam latentemente os preceitos legais. Tal pensamento é ilustrado pelos trechos a
seguir:
“(...) pode perfeitamente ocorrer que a solução escolhida pela autoridade, embora
permitida pela lei, em sentido formal, contrarie valores éticos não protegidos
diretamente pela regra jurídica, mas passíveis de proteção por estarem subjacentes
em determinada coletividade. [...]
Por isso mesmo, a discricionariedade administrativa, da mesma forma que é limitada
pelo Direito, também o é pela Moral; dentre as várias soluções legais admissíveis, a Administração Pública tem que optar por aquela que assegure o mínimo ético da
instituição.” (DI PIETRO, 2001, p. 161-162)
“Hão de dizer que a legalidade é um fenômeno de normatividade legal. Mas não é
bem assim. As dúvidas podem atingir até a própria manifestação da vontade. Uma
vez que na formação da vontade há um fator maior de interesse social e de natureza
jurídica. A questão da vontade, não obstante ser psicológica, envolve
condicionamentos de licitude e de comportamento, de conduta e de procedimento
legal permitido.
Nesse fator de maior interesse, o fator constitucional determinante, está o sentido da
moralidade, isto é, um sentido de direito que excede o próprio conceito de
legalidade. Uma vez que o poder administrativo, como direito de decidir, agir e
ordenar, está rigorosamente cingido, nas sociedades políticas, à lei e à moral.” (FRANCO SOBRINHO, 1993, p. 84)
Para essa última corrente, defender a amplitude e a dignidade normativa do
princípio da moralidade não implica favorecer uma regência estrita do ordenamento jurídico
pelo regramento moral, uma derrogação de normas jurídicas por regras morais ou mesmo um
atuar em desprezo das normas positivas e em atenção a conceitos morais intrínsecos
(moralidade íntima). A defesa da autonomia da moralidade importaria, sim, a incidência de
49
parâmetros morais na orientação finalística da conduta do agente (MOREIRA, 2008, p. 101),
todavia, reconhecendo que o princípio da moralidade é um princípio jurídico “em branco”,
uma vez que seu conteúdo não se exaure em comandos concretos e definidos, mas contempla
a determinação da “observância de preceitos éticos produzidos pela sociedade, variáveis
segundo as circunstâncias de cada caso”. (JUSTEN FILHO, 1995, p. 50)
No entanto, por vezes, os doutrinadores evitam defender a existência de uma
superposição entre legalidade e moralidade, tentando conciliar a importância de ambos os
princípios, formando uma terceira corrente que ora enfatiza o viés da legalidade enquanto
juridicidade – ideia que congrega a noção de legalidade, legitimidade e moralidade, conforme
defendido por Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2014)36
–, ora salienta a posição da
moralidade e da legalidade como superprincípios, tal qual sustentado por Márcia Noll
Barboza (2002)37
.
Situando-se nesse terceiro escopo conciliador da importância dos princípios da
moralidade e da legalidade, merece destaque, mais uma vez, o posicionamento de José
Guilherme Giacomuzzi, que se posiciona, em termos práticos, quanto à interpretação jurídica
do instituto da moralidade administrativa. Sem pretender negar-lhe autonomia própria ou
descartá-la como cânone interpretativo do direito, o autor assevera que todo esforço de
desvincular a ideia de moralidade administrativa da de legalidade, emprestando à moralidade
um sentido subjetivo no controle dos móveis do agir administrativo ou do exame dos fatos,
motivos ou objeto do ato, será vão quando se interpreta o princípio da legalidade em sentido
lato ou substancial. (GIACOMUZZI, 2013, p. 146-147)
Para conceituar a legalidade substancial, Giacomuzzi (2013, p. 124) remete à
teoria do italiano Renato Alessi38
, segundo o qual a substância da legalidade não estaria na
causa do ato administrativo – nem, portanto, na intenção do agente – mas no interesse público
concreto, termo extrínseco oferecido pela lei com o fim de limitar, para a tutela tanto do
36 “O princípio da juridicidade, como já o denominava Adolf Merkl, em 1927, engloba, assim, três expressões
distintas: o princípio da legalidade, o da legitimidade e o da moralidade, para altear-se como o mais importante
dos princípios instrumentais, informando, entre muitas teorias de primacial relevância na dogmática jurídica, a
das relações jurídicas, a das nulidades e a do controle da juridicidade O princípio da juridicidade corresponde ao que se enunciava como um „princípio da legalidade‟, se tomado em sentido amplo, ou seja, não se o restringindo
à mera submissão à lei, como produto das fontes legislativas, mas de reverência a toda a ordem jurídica”
(MOREIRA NETO; FREITAS, 2014, p. 5) 37 “O quadro por nós figurado, assim, é o de um superprincípio – o princípio da moralidade administrativa – que,
em posição elevada, ilumina e reforça todos os demais princípios do regime jurídico administrativo, inclusive o
da legalidade, que também ocupa posto elevado, aparecendo como exigência de conformidade ao direito. De
acordo com esse quadro, portanto, ambos os imperativos se colocam como superprincípios no regime jurídico
administrativo, a ele conferindo qualidade formal e substancial.” (BARBOZA, 2002, p. 123) 38 Instituciones de Derecho Administrativo, vol. I, Barcelona, Bosch, 1970, p. 277-278.
50
citado interesse público como dos indivíduos, o poder de ação da Administração Pública de
uma maneira mais estrita que o poder de ação do sujeito privado no direito privado. Assim, o
uso de todo poder de ação administrativa estaria subordinado, por lei, à existência concreta de
um interesse público na medida, na natureza e no grau determinado pela norma.39
Dessa forma, para José Guilherme, compreendendo-se a legalidade de uma forma
ampla e atentando-se para sua realização a partir do alcance do interesse público concreto em
cada ato administrativo, conforme a teoria de Renato Alessi, seria inútil buscar uma definição
particular para a moralidade administrativa, uma vez que seu escopo repousaria justamente no
controle da finalidade do ato administrativo – desvio de finalidade – para além da legalidade
formal, em nada acrescentando à legalidade substancial daquela forma conceituada.
Tal posicionamento, porém, recorde-se, vai de encontro ao que o próprio Hauriou
afirmou em seu “Précis de droit administratif et de droit public”, tomando-se a legalidade
substancial enquanto o espírito da lei. Segundo o publicista francês, “o espírito da lei é o
limite a impor aos direitos no interesse da justiça; o espírito da moralidade é a diretiva a impor
aos deveres no interesse do bem; há uma distância entre o que é justo e o que é bom”,
portanto, afirma ser “evidente que a moralidade administrativa ultrapassa a legalidade e, por
consequência, o desvio de poder ultrapassa em profundidade de ação a violação da lei”.
(HAURIOU, 1927, p. 419-420)
Tais controvérsias entre a ideia inicial da moralidade administrativa, frente à
legalidade, e seus diversos desenvolvimentos na doutrina jurídica colocam em cheque a
existência de um consenso mínimo acerca do conteúdo e da construção de sentido da
moralidade administrativa, hábil a proporcionar a segurança jurídica de sua aplicação.
2.2.4 Moralidade administrativa X Moralidade comum
39 A referência aqui ao princípio do interesse público em muito se diferencia das simples e vazias menções feitas
por grande parte dos administrativistas brasileiros, uma vez que, neste particular, remete aos estudos abalizados
de Renato Alessi, amplamente difundidos no campo do direito público, tendo consagrado, inclusive, as
categorias do interesse público primário e do interesse público secundário. Para maior aprofundamento sobre o
tema, conferir: ALESSI, Renato. Sistema Istituzionale del diritto amministrativo italiano. Milano: Dott. Antonio
Giuffrè Editore, 1953.
51
Desde sua sistematização na doutrina jurídica francesa, o conceito de moralidade
administrativa desenvolveu-se no sentido de notabilizar uma moral administrativo-jurídica,
que não se confunde com a moral comum (ou “as morais comuns”), visto que esta regeria o
homem em suas relações em sociedade, de maneira geral, enquanto aquela regularia mais
especificamente os agentes públicos em seu atuar dotado de munus estatal.
Não obstante a dicotomia entre moralidade administrativa e moralidade comum,
reconhece-se certa interdependência entre ambas, devido às suas influências recíprocas, as
quais não descuidam da diferenciação entre o sistema moral e o sistema jurídico:
É bem verdade que o direito positivo está repleto de normas que se utilizam de
conceitos jurídicos indeterminados, retirados do mundo da cultura e dos valores, de
sorte que o intérprete dessas normas não pode voltar as costas para dados que deve
recolher desses mesmos mundos para fixar seu sentido e alcance, bem como para
avaliar situações de fato, detectando quais delas ficam sob a incidência dessas
mesmas normas. Mas uma coisa é interpretar normas que desses conceitos se valem,
e que deles não podem abusar, e outra bem diferente é recolher de ordens normativas
não jurídicas supostas normas de comportamento que se queira aplicar como se
jurídicas tivessem passado a ser por força do princípio constitucional da moralidade. (CAMMAROSANO, 2006, p. 37)
Todavia, num Estado democrático, o princípio da moralidade administrativa só
pode se reportar à moral comum que a ordem constitucional prioriza, expressa e.g. nos valores
supremos da liberdade, certeza e segurança jurídica, não à existência de uma só moral,
absoluta e objetivamente identificável. (CAMMAROSANO, 2006, p. 43)
Ora, se é certo que os indivíduos são livres para adotarem, em seu comportamento
social, os valores e preceitos morais que mais lhes apeteçam (moral interior), é também
inegável, diante das inúmeras diferenças culturais entre os vários povos e, até mesmo, diante
das diversas classes sociais ou grupos de interesse dentro de um único povo, que o referido
conceito subjetivo de moral não é unívoco e, portanto, não pode ser alçado à categoria de
moral absoluta.
Por outro lado, a positivação de determinadas normas jurídicas em cada
ordenamento, ainda que de conteúdo bastante indeterminado, aponta para a consagração de
certos valores morais específicos em cada ordem jurídica, os quais devem guardar
consonância com as demais regras e princípios desse mesmo ordenamento, sem deixar de
remeter aos valores morais que permanecem em voga na sociedade para além do direito.
Sobre essa interlocução direta entre direito e moral, pondera Juarez Freitas:
É o mútuo relacionamento dos princípios e dos direitos fundamentais que justifica a
aludida vinculação entre Direito e Moral: nesse sentido, o constituinte acolheu a
melhor postura, ao incorporar o princípio da moralidade, mas sem intentar o absurdo
monismo pleno (equívoco que representaria a negação dos demais princípios).
52
Ao mesmo tempo, não se acolhe a mera positivação da moralidade: realiza-se
autêntica proclamação da eficácia direta e imediata desse princípio como inerência
do direito fundamental à boa administração pública, de modo que a probidade tem
de ser considerada em toda e qualquer hierarquização tópico-sistemática, na tomada
de decisões administrativas, vale dizer, em toda justificação eficiente, eficaz e
moralmente universalizável. (FREITAS in JORGE et al, 2010, p. 356)
Deveras, ao abarcar as noções de moralidade dentro do ordenamento jurídico e do
controle da Administração Pública, a moralidade administrativa vai além da moralidade
comum e estabelece uma conexão entre as esferas do político, do moral e do jurídico.
(CADEMARTORI, 2008, p. 173) Assim, seu estudo nas constituições axiológicas modernas
parte do pressuposto de que está superada a postura infecunda que entendia o direito e a
moralidade como sistemas sociais isolados ou inconciliáveis40
.
2.3 A PREVISÃO CONSTITUCIONAL DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA NA
FORMA DE PRINCÍPIO
2.3.1 Uma relevância sem precedentes
Observa-se a referência expressa à moralidade ou moral administrativa em apenas
duas Constituições de países desenvolvidos: a colombiana, de 1991, e a brasileira, de 1988.
(GIACOMUZZI, 2002, p. 291)41
Ambas possuem o viés axiológico, consagrando a proteção a
40
Para um aprofundamento da ideia de interdependência entre os sistemas sociais que compõem a sociedade
moderna, numa abordagem universalista, conferir a extensa obra do sociólogo Niklas Luhmann. Ele observa a
sociedade como um sistema formado por comunicações, organizadas em subsistemas sociais, entre os quais
estariam direito, moral, educação, religião, arte, economia e poder (política), por exemplo. Cada subsistema
funcionaria de maneira autopoiética, com a seleção e o processamento interno de informações orientado em
torno de códigos binários específicos (e.g., lícito/ilícito para o direito, ter/não-ter para a economia), e possuiria
dois aspectos: um estrutural, compreendendo suas fronteiras e elementos sistêmicos, e um funcional, referente às
interações do sistema com o meio, formado pelos outros subsistemas sociais. A interrelação entre os subsistemas
aconteceria por meio de um acoplamento estrutural, em que as estruturas individuais de cada sistema seriam
preservadas, mas enfrentariam a abertura de um espaço para irritações comunicativas vindas de outros
subsistemas, a serem processadas pelas operações estruturais do próprio subsistema, num processo denominado
abertura cognitiva. Essa constante interação sistema/entorno garantiria a continuidade dos processos de comunicação na sociedade. (LUHMANN, 2007, p. 40-55) 41
As demais Constituições Nacionais, quando se referem à moralidade, fazem-no em sentido abrangente, o qual
mais se aproxima da moralidade comum aos cidadãos, em atividades de cunho social por eles desenvolvidas, que
da moralidade exigida nas condutas dos agentes públicos. É o que se observa, por exemplo, na Constituição
53
esse instituto como garantia fundamental dos cidadãos, a ser exercida por meio da ação
popular (ou acción popular). Na Carta brasileira, essa previsão encontra-se no Capítulo I (Dos
Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) do Título II (Dos Direitos e Garantias
Fundamentais), mais precisamente no artigo 5º, LXXIII42
. Já na Carta Colombiana, referência
semelhante está no Título II (De Los Derechos, Las Garantías Y Los Deberes), Capítulo 4 (De
La Protección Y Aplicación De Los Derechos), Articulo 8843
.
Na feição de princípio, também a moralidade administrativa encontra previsão
análoga em ambas as Constituições. Na nossa Constituição Cidadã, dito princípio encontra-se
consagrado no artigo 37, caput, incluído na Seção I (Disposições Gerais), do Capítulo VII (Da
Administração Pública), do Título III (Da Organização Do Estado)44
. Na Constitución
Política, encontra-se a disposição da moralidade enquanto princípio de conduta da
Administração Pública no Artículo 209, Capítulo V (De La Funcion Administrativa), Título
VII (La Rama Ejecutiva).45
Embora os dispositivos que tratem da ação popular numa e noutra Constituições
possuam o mesmo caráter abrangente de direito conferido a todo cidadão, nos dispositivos
que tratam da moralidade enquanto princípio, de pronto, verifica-se uma diferença
substancial: a Constituição colombiana impõe o dever de moralidade à função pública situada
no âmbito da Rama Ejecutiva, ou seja, do Poder Executivo, enquanto a Constituição brasileira
faz expressa menção à moralidade enquanto dever da Administração Pública exercida por
todos os três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Portanto, a previsão constitucional
Venezuelana, em seu Artículo 104, do Capítulo VI (De los Derechos Culturales y Educativos), Título III (De los
Derechos Humanos y Garantías, y de los Deberes), a seguir transcrito: “La educación estará a cargo de
personas de reconocida moralidad y de comprobada idoneidad académica. El Estado estimulará su
actualización permanente y les garantizará la estabilidad en el ejercicio de la carrera docente, bien sea pública
o privada, atendiendo a esta Constitución y a la ley, en un régimen de trabajo y nivel de vida acorde con su elevada misión. El ingreso, promoción y permanencia en el sistema educativo, serán establecidos por ley y
responderá a criterios de evaluación de méritos, sin injerencia partidista o de otra naturaleza no académica.”
(Grifo nosso) 42 “LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao
patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e
ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus
da sucumbência;” (Grifo nosso) 43
“Artículo 88. La ley regulará las acciones populares para la protección de los derechos e intereses
colectivos, relacionados con el patrimonio, el espacio, la seguridad y la salubridad públicos, la moral
administrativa, el ambiente, la libre competencia económica y otros de similar naturaleza que se definen en
ella.” (Grifo nosso) 44
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]” (Grifo nosso) 45
“Artículo 209. La función administrativa está al servicio de los intereses generales y se desarrolla con
fundamento en los principios de igualdad, moralidad, eficacia, economía, celeridad, imparcialidad y publicidad,
mediante la descentralización, la delegación y la desconcentración de funciones.” (Grifo nosso)
54
brasileira é mais ampla que a colombiana, no que diz respeito ao destinatário do dever de
respeito ao princípio da moralidade administrativa.
Pode-se afirmar, portanto, que a moralidade administrativa possui, no Brasil, uma
expressividade jurídico-constitucional sem precedentes nos ordenamentos jurídicos mundiais.
Por essa razão, impõe-se aprofundar-lhe mais o sentido em cada dispositivo da Constituição
brasileira que a consagra.
2.3.2 O princípio constitucional da moralidade administrativa: conceito indeterminado
ou discricionário?
Com o fortalecimento de um novo modelo estatal garantista, o do Estado
Democrático e Social de Direito, surgiram as chamadas Constituições programáticas ou
dirigentes, voltadas à implementação de políticas públicas e demandando uma nova
harmonização e otimização do sistema jurídico, a fim de permitir a efetivação dos direitos
fundamentais. Entre outros objetivos, tais constituições buscam resgatar a utilização de cargas
valorativas dentro dos âmbitos de aplicação e interpretação jurídica, como diretrizes que
consistem parte integrante e indissociável do ordenamento, dentre as quais exsurgem
justamente os princípios jurídicos.
O princípio é um mandamento nuclear que se irradia sobre as diferentes regras e
funciona como alicerce do sistema normativo, compondo-lhe o espírito e servindo de critério
para sua exata compreensão e inteligência, por definir a lógica e a racionalidade de todo o
sistema, outorgando-lhe sentido harmônico (MELLO, 2013, p. 54). Veicula, assim, diretivas
comportamentais de maior grau de generalidade quando comparados às regras, embora estas e
aqueles devam ser aplicados em conjunto. Os princípios implicam, ademais, um agir positivo,
direcionado à consecução dos valores que integram o sistema, e um agir negativo, na
interdição da prática de qualquer ato que se afaste de tais valores. (GARCIA, 2002, p. 156)
Existe, pois, um elevado grau de abstração e dispersão do conteúdo de um
princípio dentro do ordenamento jurídico. Tal circunstância dificulta que se identifique se ou
quando há violação a um princípio específico. Para Juarez Freitas (in JORGE et al, 2010, p.
356), para ser considerada, dita violação deve ser grave ao ponto de atingir o âmago do
55
princípio violado, o qual precisa ser alvejado, não remota ou mediatamente, mas em seu
círculo eficacial próprio.
Acerca do princípio da moralidade administrativa, já se aduziu que ele segue a
feição dada à moralidade dentro do direito, passando a ser aceito como critério de conduta a
ser efetuado em total consonância com o conteúdo axiológico dos direitos fundamentais,
numa forma logicamente coerente de estabelecer a conexão entre as esferas do político, do
moral e do jurídico. (CADEMARTORI, 2008, p. 173) Contudo, não se pode considerá-lo
malferido em virtude de qualquer ofensa à chamada “moral social” (sob qualquer hipótese
unívoca). Para que se considere transgredido esse princípio, é necessário que haja violação a
uma norma de moral social que traga consigo menosprezo a um bem juridicamente valorado.
(MELLO, 2013, p. 123)
Percebe-se que a violação à moralidade enquanto princípio remete-se
inevitavelmente aos valores consagrados no ordenamento jurídico que o abriga, nos bens
jurídicos albergados por cada sistema normativo, a partir dos direitos e garantias fundamentais
juridicamente reconhecidos. Dessa forma, o estudo do alcance e da violação do princípio em
exame aponta a relevância de se fazer uma digressão acerca das normas que protegem a
moralidade em nosso sistema normativo.
Sabe-se, porém, que a moralidade administrativa é um conceito indeterminado,
pois não se encontra definido na Constituição nem nos diplomas que o regulamentam – nem
poderia estar, sob o risco de se deliberadamente limitar sua abrangência, propositadamente
larga. Todavia, o fato de esse princípio não ter uma definição taxativa não significa que ele
pode ser invocado sob os auspícios de cada aplicador do direito.
García de Enterría explana essa diferença fundamental, que para ele representa um
dos aportes mais importantes da ciência jurídica alemã dos últimos tempos: a distinção entre
discricionariedade e indeterminação dos conceitos jurídicos. Os conceitos indeterminados ou
normas flexíveis – boa-fé, ordem pública, bons costumes, fidelidade, respeito, coação
irresistível, entre outros – são consubstanciais a toda a técnica jurídica e sua indeterminação
decorre do fato de que a medida concreta para sua aplicação em um caso particular não
resolve ou determina com exatidão a própria lei que os previu ou de cuja aplicação trata.
Porém – e isso é essencial –, sua incidência no caso concreto não admite meios termos, e.g.,
ou se agiu com boa-fé ou não, ou se preservou a ordem pública ou não, de modo a supor uma
única solução justa a cada caso. (GARCÍA DE ENTERRÍA, 1962, p. 171)
56
Por outro lado, a discricionariedade parte do pressuposto de que há uma
pluralidade de soluções justas possíveis ao seu exercício, sendo todas essas passíveis de
escolha pelo administrador. Dessa forma, o poder discricionário perfaz um processo volitivo
de discricionariedade ou de liberdade de eleição entre indiferentes jurídicos, diferentemente
do conceito indeterminado, que, dada sua perspectiva de alcançar a solução justa, deve ser
aplicado por referência a critérios de valor ou de experiência, a serem ponderados
juridicamente, segundo o sentido da lei que o prevê e as consequências reais de sua aplicação.
Portanto, a constatação de se um conceito jurídico indeterminado se aplica ou não a cada caso
perfaz um juízo de ponderação, aplicação e interpretação da lei e de subsunção às categorias
de um dado concreto, sendo, assim, um processo regulado, nunca discricionário. (GARCÍA
DE ENTERRÍA, 1962, p. 172)
Já se explanou que a ideia de moralidade administrativa nasceu no mundo jurídico
visando controlar a intenção do agente, quando refletida em finalidades metajurídicas
irregulares do ato administrativo. Porém, observa-se na doutrina grande disparidade de
opiniões, remissões, comparações e conceituações acerca da moralidade administrativa,
frequentemente reduzida a um posicionamento subjetivo sobre o que seja “moral” no contexto
da sociedade contemporânea.
Pode-se dizer, portanto, que focar a aplicabilidade do princípio em tela apenas
num exame subjetivo da finalidade do ato administrativo significaria reduzir o alcance de sua
previsão constitucional, uma vez que põe em risco a confiabilidade de sua aplicação – e,
consequentemente, a segurança jurídica sobre os atos que implicam sua violação e ensejam a
respectiva sanção. Por outro lado, sendo a moralidade um conceito indeterminado por
natureza, defini-lo taxativamente implicaria também reduzir sua abrangência, uma vez que
cada caso suscita uma determinada solução justa e defini-lo a partir de um viés específico, por
exemplo, as categorias de vícios nos elementos do ato administrativo, pode levá-lo a não
cumprir sua função principiológica de standard interpretativo, nem sua finalidade original de
controle da intenção do agente público para além de critérios legalmente postos.
Apesar de tantos contrapontos, ainda cumprindo sua condição de conceito
indeterminado conforme a exegese de García de Enterría, a interpretação sobre a satisfação da
moralidade administrativa no caso concreto demanda que se encontre uma solução justa
adequada. Trata-se de um conceito que busca respostas, assim como o próprio direito. Toca o
campo subjetivo do poder administrativo mas não pode se resumir a análises subjetivas do
57
arbítrio do julgador nem a conceitos objetivos estreitos, sob pena de lhe ferir a aplicabilidade
casuística.
Desse modo, parece-nos que o labor de identificar a violação à moralidade
administrativa se amolda mais à busca de critérios e balizamentos objetivos que de análises
subjetivas ou definições taxativas, a fim de instruir o jurista e o cidadão na interpretação
casuística desse princípio. Eis o grande desafio da doutrina, legislação e jurisprudência – pelo
visto, apenas – brasileiras: perquirir sobre a possibilidade de condicionantes objetivas para a
identificação do respeito ou da violação à moralidade dos atos administrativos; isto é, para
além da ontologia do conceito, encontrar-lhe balizamentos de aplicação prática.
2.3.3 As diferentes feições da moralidade administrativa na Constituição Cidadã e as
lacunas de sentido nos diplomas legais que regulamentam a matéria
Analisando-se o texto da Carta de 1988, observa-se que a moralidade
administrativa encontra previsão nos já citados artigos 37, caput, sob a feição de princípio, e
5º, LXXIII, sob a égide de direito fundamental de todo cidadão. Também é importante a
referência do artigo 14, §9º, à moralidade enquanto dever político-administrativo.
Prevista no artigo 37, caput, ao lado dos princípios da legalidade, impessoalidade,
publicidade e eficiência, o mandatório de moralidade na atuação dos administradores públicos
ganhou proteção legal em vários notáveis diplomas, dentre os quais destacam-se a Lei de
Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92) e a Lei dos Processos Administrativos Federais
(Lei nº 9.784/99).
Fundamental à efetivação do princípio em tela, especialmente diante do cenário de
escândalos de corrupção que minam a credibilidade dos agentes públicos perante a sociedade
brasileira, a Lei nº 8.429/92, em seu artigo 11, estabelece como ato de improbidade
administrativa a violação aos cinco princípios da Administração Pública e aos deveres de
honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, elencando um rol
exemplificativo desses atos ímprobos, nos incisos do dispositivo. Ademais, o diploma em
comento define quais entes fazem parte da Administração Pública e, consequentemente,
podem ser vítimas de atos de improbidade, bem como quem pode ser considerado agente
58
público e, nessa condição, possível infrator daqueles mesmos princípios e deveres públicos.
Observe-se que, embora a Lei nº 8.429/92 esclareça alguns pontos relacionados ao
princípio da moralidade administrativa, mormente quem pode ser agente e quem pode ser
vítima de sua violação, a conceituação e exemplificação do artigo 11 é feita indistintamente
quanto a todos os princípios da Administração Pública e, ainda, a alguns chamados deveres,
que possuem conceituação também abstrata. Portanto, a Lei de Improbidade contribui muito
timidamente para a fixação de um balizamento conceitual sobre o princípio da moralidade
administrativa.
Já a Lei dos Processos Administrativos Federais dispõe, no artigo 2º, que a
Administração Pública obedecerá ao princípio da moralidade e a outros princípios caros à
processualística brasileira, exemplificando, no parágrafo único, os critérios a serem
observados pelos administradores na condução dos procedimentos em âmbito federal. Assim
como no artigo 11 da Lei nº 8.429/92, os critérios são mencionados sem qualquer distinção de
qual(is) princípio(s) seria(m) violado(s) por seu descumprimento. Dessa forma, pode-se
apenas inferir, pelo senso comum, por exemplo, que os deveres de atendimento objetivo ao
interesse público, vedada a promoção pessoal do agente público, e de atuação segundo
padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé dizem respeito diretamente ao princípio da
moralidade.
No tocante à referência do artigo 14, §9º, da Constituição Cidadã, observa-se que
a proteção da moralidade para o exercício de cargos eletivos foi incluída nesse dispositivo,
junto com a proteção à probidade administrativa, a partir da Emenda Constitucional de
Revisão nº 4, de 199446
. A recente mudança denota uma preocupação do constituinte
derivado, nas últimas décadas, com o alargamento da aplicação do princípio da moralidade às
diversas atuações no âmbito público, incluindo a política.
Trata-se não de uma previsão abstrata, mas de uma exigência concreta e
individualizada ao político eleito para exercer mandato eletivo, cuja vida pregressa será
considerada para se verificar se seu “histórico moral” é compatível com o exercício desse
mandato. A Constituição previu a edição de lei complementar para regulamentar tais casos de
inelegibilidade, uma vez que tal juízo não poderia ocorrer sob o manto da discricionariedade
46
Antes da Emenda Constitucional nº 4/1994, a redação do dispositivo era a seguinte: “§ 9º Lei complementar
estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a normalidade e
legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou
emprego na administração direta ou indireta.”
59
do administrador, especialmente por se tratar de uma possível interferência na expressão da
vontade do povo, princípio central da democracia.
Hodiernamente, os critérios objetivos para essa proteção à moralidade pública no
âmbito político encontram-se dispostos na Lei Complementar nº 135/2010, conhecida como
Lei da Ficha Limpa, que veio alterar a Lei Complementar nº 64/1990 para incluir novas
hipóteses de inelegibilidade – situações legalmente previstas como violadoras não apenas do
dever de moralidade, mas também de probidade administrativa e normalidade e legitimidade
das eleições. Tal como nos diplomas anteriormente citados, a Lei da Ficha Limpa não
diferencia, em suas prescrições, quais condutas estariam ferindo qual(is) dever(es) previsto(s)
no artigo 14, §9º, da Constituição; contudo, observando que o texto desse dispositivo se refere
à consideração da vida pregressa do candidato unicamente para a aferição da moralidade para
o exercício do mandato eletivo, pode-se concluir que as referências da LC nº 135/2010 ao
passado dos candidatos eleitos reportam-se diretamente ao dever em comento.
Interessante observar que, em seu art. 1º, e, a Lei Complementar nº 64/1990
passou a prever a inelegibilidade, por até 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, nos caso
de condenação transitada em julgada ou proferida por órgão colegiado em desfavor dos
candidatos condenados pelos seguintes crimes: contra a economia popular, a fé pública, a
administração pública e o patrimônio público; contra o patrimônio privado, o sistema
financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência; contra o meio
ambiente e a saúde pública; eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de
liberdade; de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à
inabilitação para o exercício de função pública; de lavagem ou ocultação de bens, direitos e
valores; de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e
hediondos; de redução à condição análoga à de escravo; contra a vida e a dignidade sexual;
e praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando. (BRASIL, 2010)
Vê-se que a citada lei não se resumiu a mencionar os crimes diretamente
relacionados à atuação administrativa ou política da vida pregressa do candidato ao exercício
de mandato. O dispositivo inclui também os delitos contra o meio ambiente, a saúde pública,
a vida e a dignidade sexual, assim como o tráfico de entorpecentes e a redução à condição
análoga à de escravo, crimes que dizem respeito ao agir do candidato em sociedade, de uma
forma geral.
60
Da mesma forma, o art. 1º, m, da mesma Lei Complementar nº 64/1990, ao prever
a inelegibilidade dos que forem excluídos do exercício da profissão, por decisão sancionatória
do órgão profissional competente, em decorrência de infração ético-profissional, não diz
respeito a uma conduta pública do agente político, mas à sua conduta ética no exercício da
profissão, a qual não incide, necessariamente, sobre o trato da coisa pública. (BRASIL, 1990)
Infere-se, pois, que a referência constante no artigo 14, §9º, da Constituição Federal possui
um sentido ainda mais largo que a moralidade exigida no atuar administrativo, dizendo
respeito também à moralidade comum, atinente à conduta desejada de todo cidadão em seu
agir social.
Percebe-se que a Constituição Federal contemplou a moralidade não apenas como
um princípio administrativo, mas também como uma regra de procedimento social que possui
reflexos, inclusive, na permissão para que o agente se candidate ao exercício de mandato
eletivo. Concomitantemente, embora as hipóteses de inelegibilidade citadas na lei
complementar tenham por escopo a proteção da moralidade no exercício de mandato eletivo,
certo é que o cumprimento da moralidade não se restringe a tais hipóteses.
Outra menção constitucional de suma relevância à moralidade administrativa é
atinente à sua tutela pela via da ação popular, prevista no artigo 5º, LXXIII, da Carta Magna,
com regulamentação da Lei nº 4.717/65. Embora o dispositivo constitucional cite
expressamente o termo “moralidade administrativa”, o qual não volta a aparecer no texto do
diploma legal (promulgado antes da constituição), uma análise de seu conteúdo à luz do
desenvolvimento histórico do conceito em questão, permite aproximar a tutela da moralidade
administrativa, na ação popular, à anulação dos atos administrativos eivados do vício de
desvio de finalidade, previsto no artigo 2º, “e”, e parágrafo único, “e”, da citada lei, o qual diz
respeito diretamente ao desvio de poder das autoridades públicas. (GIACOMUZZI, 2013, p.
126)
Ante a menção aos diplomas legais que orientam a sanção do agente público
ímprobo (função repressora), bem como a correção do atuar estatal mediante a anulação dos
atos administrativos eivados de desvio de finalidade (função corretora), pode-se concluir que,
embora sob uma flagrante porosidade de sentido, o ordenamento brasileiro concretiza o
princípio da moralidade a partir dos vieses repressivo e corretor. Porém, existe ainda outra
dimensão de suma relevância à concretização do princípio constitucional em tela, que aparece
diluída no texto constitucional: a formação ético-profissional do agente público. Essa
formação desempenha uma função conformadora da moralidade administrativa, a partir, e.g.,
61
do treinamento e da motivação dos servidores públicos para o conhecimento e escorreito
cumprimento de seus deveres. (BARBOZA, 2002, p. 130-133)
Dita feição conformadora do princípio da moralidade aparece en passant no texto
constitucional, quando se menciona que “a União, os Estados e o Distrito Federal manterão
escolas de governo para a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos” (art. 39,
§2º) e que a lei disciplinará a aplicação de recursos “no desenvolvimento de programas de
qualidade e produtividade, treinamento e desenvolvimento, modernização, reaparelhamento e
racionalização do serviço público” (art. 39, §7º). A Lei n.º 8.112/90, que disciplina o regime
jurídico dos servidores públicos em âmbito federal, não deixa dúvidas de que é dever do
servidor público “manter conduta compatível com a moralidade administrativa” (art. 116, IX),
embora não comprometa a administração a tomar responsabilidade concreta sobre a formação
do servidor nesse talante.
A nível nacional, observam-se apenas algumas iniciativas esparsas nesse sentido
formativo, tal qual a aprovação do Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil
Federal e a instituição do Sistema de Gestão da Ética do Poder Executivo Federal,
respectivamente por meio dos Decretos n.º 1.171/1994 e n.º 6.029/2007. No inciso III da
Seção I do retrocitado código de ética, inclusive, encontra-se não uma definição, mas um
caminho interpretativo acerca da moralidade do ato administrativo, conforme se transcreve a
seguir:
III - A moralidade da Administração Pública não se limita à distinção entre o bem e
o mal, devendo ser acrescida da idéia de que o fim é sempre o bem comum. O
equilíbrio entre a legalidade e a finalidade, na conduta do servidor público, é que
poderá consolidar a moralidade do ato administrativo.
Vê-se que o dispositivo acima não se propõe a definir abstratamente o que seria a
moralidade administrativa à parte do caso concreto, mas estabelece diretrizes interpretativas
para sua aplicação ao delimitar que ela passa pela distinção entre o bem e o mal e alcança a
finalidade do bem comum, a ser equilibrada pelo cumprimento da legalidade. Nesse sentido, o
dispositivo parece orientar-se à busca de critérios e balizamentos objetivos a fim de instruir o
jurista e o cidadão na interpretação casuística da moralidade administrativa, em consonância
com os caminhos apontados por García de Enterría para se trabalhar com conceitos
indeterminados.
Retornando à feição formativa do princípio, importante reconhecer que a questão
ética vai muito além da mera previsão legal educativa e alcança o enfrentamento de toda uma
62
cultura social que subjuga o exercício da cidadania ao ganho individual e ao desprezo pela
coisa comum.
Faz-se imprescindível, bem menos por temor e muitíssimo mais por espontânea
persuasão, interiorizar padrões éticos respeitáveis, se se quiser timbrar a jornada dos
que lidam com a coisa pública pelo acatamento cabal aos princípios superiores.
Indubitavelmente, a eticidade apenas haverá de se tornar um bem universalizado, gerando o correlato afastamento do improbus administrator e dos seus comparsas, se
vivificada – sem ingenuidade – a noção de cidadania plena e adulta, antes pela
formação contínua do que pela repressão (...)” (FREITAS, 1996, p. 64)
Seja na dimensão repressiva, corretiva ou conformadora, certo é que a moralidade
administrativa é contemplada no texto constitucional e em diversos diplomas legais que o
regulamentam, assumindo um papel de destaque no ordenamento pátrio. Porém, em que
consiste a atuação do agente público pautada pela moralidade administrativa? Ou, mais
significativamente, quando se poderia demandar o agente público por ter violado o princípio
da moralidade administrativa?
2.3.4 O desencontro de sentidos espelhado na jurisprudência
Tal qual ocorreu com os doutrinadores, os tribunais brasileiros parecem adotar a
moralidade administrativa como fundamento de suas decisões embarcando numa fluidez
conceitual propícia aos artifícios retóricos usados para justificar interpretações convenientes
ao subjetivismo de cada julgador.
Dita constatação é sinalizada por várias decisões dos tribunais pátrios, em especial
as que versam sobre a violação ao artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa. Nesses
julgados, percebe-se que a declaração de afronta ao princípio da moralidade vem
acompanhada pela de outro princípio, geralmente o da legalidade ou da impessoalidade, os
quais, esses sim, parecem ser diretamente malferidos pelo ilícito praticado. De outro lado
estão as decisões em que, invocado apenas o malferimento do princípio da moralidade como
lastro acusatório, não se obtém a condenação do agente público, pois não se reconhece a
ilicitude da conduta praticada, que seria (apenas) alegadamente imoral.47
47 IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. VIOLAÇÃO A PRINCÍPIOS. LEGALIDADE,
IMPESSOALIDADE E MORALIDADE. CONTRATAÇÃO E DESPESAS REALIZADAS SEM
QUALQUER PROCEDIMENTALIZAÇÃO. CONFIGURAÇÃO. SANÇÃO. PROPORCIONALIDADE.
63
Nem mesmo a Suprema Corte parece superar a flagrante indeterminação
conceitual sobre a violação à moralidade administrativa. Em junho de 2006, no julgamento da
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3026/DF, discutiu-se a inconstitucionalidade
de dispositivo do art. 79, §1º, da Lei nº 8.906/94, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e
a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O Supremo Tribunal decidiu, por maioria de votos,
que a OAB não se sujeitava aos ditames impostos à Administração Pública Direta e Indireta,
pois consistia um serviço público independente, sui generis, razão pela qual o regime
estatutário imposto aos seus empregados não se mostrava compatível com a entidade, que é
autônoma e independente48
.
PROIBIÇÃO DO EXCESSO E DA INSUFICIÊNCIA. -Configura improbidade administrativa a contratação
levada a efeito pelo chefe da administração municipal, que, a priori, a seu alvedrio, realizava despesas,
supostamente revestidas de viés público, com recursos próprios e em nome da municipalidade, para posterior
ressarcimento pelos cofres públicos, sem qualquer procedimentalização que, em observância à legalidade e
moralidade, assegurasse um mínimo de isonomia e impessoalidade, mormente se referida prática importou em
prejuízos à administração. -Ainda que não se olvide que a vedação do excesso é inerente ao princípio da
proporcionalidade, deve ser privilegiada a necessidade de não se aniquilar a gravidade da conduta praticada, pela
aplicação de sanção que possa se revelar insuficiente aos fins de prevenção e repressão ao ilícito praticado contra
a probidade administrativa.(TJ-MG - AC: 10398060008404001 MG , Relator: Selma Marques, Data de Julgamento: 29/04/2014, Câmaras Cíveis / 6ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 13/05/2014) Grifos
nossos.
ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LESÃO AO PRINCÍPIO DA MORALIDADE.
INEXISTÊNCIA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. DECISÃO UNÂNIME. O Superior Tribunal de
Justiça já firmou entendimento no sentido de que em ações de improbidade administrativa não se há falar em
foro por prerrogativa de função, pois "a ação de improbidade administrativa deve ser processada e julgada nas
instâncias ordinárias, ainda que proposta contra agente político que tenha foro privilegiado no âmbito penal e nos
crimes de responsabilidade." (AgRg na Rcl 12514/MT, Rel. Min. Ari Pargendler, Corte Especial, julgado em
16/09/2013). Ainda que o Ministério Público tenha requerido a incidência de apenas uma das sanções, ao
magistrado cabe verificar se os fatos descritos na exordial podem engendrar obrigações diversas daquelas citadas
na inicial. O ato do ora apelante foi simplesmente no sentido de se manter uma situação que, de fato, já
existia na administração pública do Município de Colônia de Leopoldina, de modo que o ato praticado
pelo recorrente não configura qualquer improbidade administrativa. Recurso conhecido e provido. Decisão
unânime. (TJ-AL - APL: 00005179520108020010 AL 0000517-95.2010.8.02.0010, Relator: Des. James
Magalhães de Medeiros, Data de Julgamento: 26/05/2014, 3ª Câmara Cível, Data de Publicação: 28/05/2014)
Grifos nossos. 48 EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. § 1º DO ARTIGO 79 DA LEI N. 8.906, 2ª
PARTE. "SERVIDORES" DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. PRECEITO QUE POSSIBILITA A
OPÇÃO PELO REGIME CELESTISTA. COMPENSAÇÃO PELA ESCOLHA DO REGIME JURÍDICO NO
MOMENTO DA APOSENTADORIA. INDENIZAÇÃO. IMPOSIÇÃO DOS DITAMES INERENTES À
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA E INDIRETA. CONCURSO PÚBLICO (ART. 37, II DA
CONSTITUIÇÃO DO BRASIL). INEXIGÊNCIA DE CONCURSO PÚBLICO PARA A ADMISSÃO DOS CONTRATADOS PELA OAB. AUTARQUIAS ESPECIAIS E AGÊNCIAS. CARÁTER JURÍDICO DA OAB.
ENTIDADE PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO INDEPENDENTE. CATEGORIA ÍMPAR NO
ELENCO DAS PERSONALIDADES JURÍDICAS EXISTENTES NO DIREITO BRASILEIRO.
AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA DA ENTIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE. VIOLAÇÃO DO
ARTIGO 37, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. NÃO OCORRÊNCIA. [...] 11. Princípio da
moralidade. Ética da legalidade e moralidade. Confinamento do princípio da moralidade ao âmbito da ética da
legalidade, que não pode ser ultrapassada, sob pena de dissolução do próprio sistema. Desvio de poder ou de
finalidade. 12. Julgo improcedente o pedido. (STF - ADI: 3026 DF, Relator: EROS GRAU, Data de Julgamento:
08/06/2006, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 29-09-2006 PP-00031 EMENT VOL-02249-03 PP-00478)
64
O dispositivo questionado possibilitou aos "servidores" da OAB, cujo regime
outrora era estatutário, a opção pelo regime celetista, em troca de uma indenização a ser paga
à época da aposentadoria. O Procurador-Geral da República, autor da ADI em exame,
argumentou que referida indenização seria afrontosa ao princípio da moralidade, visto que “os
fins pretendidos pelo agente público de incentivar os servidores da OAB a aderirem ao regime
trabalhista não são proporcionais ao pagamento de uma indenização no valor de cinco vezes a
última remuneração do servidor”. (BRASIL, 2006) Observe-se que a violação ao princípio da
moralidade foi justificada pelo requerente com base na desproporcionalidade da indenização
prevista, não com lastro numa violação ao conteúdo próprio da moralidade administrativa.
O julgamento feito pelos ministros da Suprema Corte não fugiu a essa prática de
indeterminação conceitual e de divergências no viés de apreciação. Inicialmente, o Ministro
Eros Grau, relator da ação, aduziu que a ética do sistema jurídico era a ética da legalidade, de
modo que o princípio da moralidade estaria confinado “aos lindes do desvio de poder ou de
finalidade” e “qualquer questionamento para além desses limites estará sendo postulado no
quadro da legalidade pura e simples”. (BRASIL, 2006) Com isso, o ministro deu por superado
o argumento de violação à moralidade administrativa, sequer justificando por que não teria
havido desvio de poder ou de finalidade no caso em apreço.
Ademais, da análise de todos os posicionamentos proferidos no julgamento da
causa, verificou-se que apenas dois outros ministros rechaçaram expressamente o argumento
da imoralidade da indenização: o Ministro Gilmar Mendes, por considerar “razoável” a
indenização frente às vantagens que os estatutários perderiam ao optar pelo regime celetista, e
o Ministro Marco Aurélio, por considerar “socialmente aceitável” a previsão de
compensações para a mudança ao regime celetista, acrescentando que uma indenização de
cinco vezes a remuneração do servidor “não deve ser lá tão grande assim” (BRASIL, 2006).
Em ambos os casos acima, não se justificou a inocorrência de violação à
moralidade com base numa tributação desta ao princípio da legalidade, sinalizando que esses
dois ministros não entenderam por bem simplificar a questão à pura afirmação da legalidade
do preceito questionado; de outro lado, porém, não problematizaram em nenhum instante a
moralidade em si, senão a razoabilidade e a proporcionalidade da regra prevista.
Não obstante as referidas indeterminação e divergências, oriundas de critérios
diferenciados na efetivação de juízos morais, é de se reconhecer a importância da aplicação
concreta do princípio da moralidade como meio de efetivação do direito fundamental do
65
cidadão à boa administração da res pública. Embora ainda desprovido de critérios de
balizamento concordes pela doutrina e jurisprudência, o princípio da moralidade
administrativa permanece sendo um paradigmático critério para punir os agentes públicos que
praticam atos em desconformidade com a noção de moral administrativo-jurídica formada
pelo conjunto do ordenamento pátrio (qual seja sua amplitude conceitual).
A importância fulcral alcançada pelo princípio da moralidade, no intuito de
proteção do interesse público, foi reconhecida pela Suprema Corte, de maneira particular, no
julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 144/DF,
ocorrido em agosto de 2008, em que os ministros decidiram, por maioria de votos, que a
Justiça Eleitoral não pode negar o registro de candidatos que respondem a processo judicial,
sem condenações com trânsito em julgado, em homenagem ao princípio da presunção de
inocência.49
O exame dessas decisões do Supremo Tribunal é também inconclusivo acerca da
determinação conceitual do princípio da moralidade administrativo, tal qual o exame da
Constituição e dos diplomas legais que o tutelam especificamente. No entanto,
casuisticamente, observa-se que a Suprema Corte já decidiu no sentido da ocorrência de
violação ao princípio em tela em diversos casos. (BRASIL, 2014)
No âmbito administrativo, o STF reconheceu como afrontoso ao princípio da
moralidade o exercício da advocacia por um bacharel em direito que exercia o cargo de
assessor de desembargador50 e por outro que ocupava o cargo de Diretor Geral de Tribunal
Regional Eleitoral51. Ademais, julgou ser violadora da moralidade a autorização para que
estudante dependente de militar, na localidade para onde este fosse removido, transferisse seu
49
Na ocasião, o relator da ação, ministro Celso de Mello, assim destacou a relevância do princípio em exame:
“Não se questiona a alta importância da vida pregressa dos candidatos, pois a probidade pessoal e a moralidade
administrativa representam valores que consagram a própria dimensão ética em que necessariamente se deve
projetar a atividade pública. Sabemos todos que o cidadão tem o direito de exigir que o Estado seja dirigido por
administradores íntegros, por legisladores probos e por juízes incorruptíveis, que desempenhem as suas funções
com total respeito aos postulados ético-jurídicos que condicionam o exercício legítimo da atividade pública. O
direito ao governo honesto – nunca é demasiado reconhecê-lo – traduz uma prerrogativa insuprimível da cidadania. Tenho reconhecido, por isso mesmo, que a probidade e a moralidade traduzem pautas interpretativas
que devem reger o processo de formação e composição dos órgãos do Estado, observando-se, no entanto, as
cláusulas constitucionais cuja eficácia subordinante conforma e condiciona, qualquer que seja a dimensão de sua
atuação, o exercício dos poderes estatais. A defesa dos valores constitucionais da probidade administrativa e da
moralidade para o exercício do mandato eletivo traduz medida da mais elevada importância e significação para a
vida política do País”. (ADPF 144, voto do Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 6-8-2008, Plenário, DJE de
26-2-2010) 50 RE 199.088, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 1º-10-1996, Segunda Turma, DJ de 16-4-1999. 51 RE 464.963, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 14-2-2006, Segunda Turma, DJ de 30-6-2006.
66
vínculo de uma instituição de ensino privada para uma pública52. Nesse mesmo âmbito, a
Corte considerou violadora do princípio em exame a modificação dos critérios de convocação
para as provas orais de concurso para a Magistratura do Estado do Piauí, mediante alteração
do edital no curso do processo de seleção, quando já concluída a fase das provas escritas
subjetivas e divulgadas as notas provisórias de todos os candidatos53.
Já na esfera legiferante, a Suprema Corte julgou que houve transgressão ao
princípio da moralidade quando um dispositivo do Ato das Disposições Constitucionais
Gerais e Transitórias da Constituição do Mato Grosso do Sul previu que os ex-governadores
do estado receberiam subsídio mensal e vitalício, igual ao percebido pelo atual governador54.
Igualmente, os ministros decidiram que ocorreu malferimento ao princípio em análise quando
lei estadual maranhense autorizou a inclusão, no edital de venda do Banco do Estado do
Maranhão S.A., da oferta do depósito das disponibilidades de caixa do tesouro estadual55, bem
assim, quando os vereadores de um município mineiro fixaram sua própria remuneração, com
vigência na própria legislatura56.
Por fim, na seara jurisdicional, o STF reconheceu ofensa ao princípio da
moralidade na negação, ao delator de crime, do exame do grau da relevância de sua
colaboração e a criação de outros injustificados embaraços para lhe sonegar a sanção premial
da causa de diminuição da pena57, outrossim, no controle da nomeação dos membros do
Tribunal de Contas do Estado sem a observância dos requisitos que vinculam a nomeação58.
Da mesma forma, houve reconhecida infração ao princípio em tela a prática, por magistrado,
de ato de seu ofício, jurisdicional ou administrativo, sem nota demarcatória de impedimento e
suspeição, que implicam presunção juris et de jure de parcialidade59.
Embora a análise dos julgados acima mencionados auxilie na compreensão e
efetivação do preceito da moralidade administrativa à luz do ordenamento jurídico brasileiro,
é premente a dificuldade também existente na jurisprudência pátria em utilizar uma
abordagem de maior segurança jurídica a respeito do tema e, portanto, menos casuística e
particularizada.
52 ADI 3.324, voto do Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 16-12-2004, Plenário, DJ de 5-8-2005. 53 MS 27.165, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 18-12-2008, Plenário, DJE de 6-3-2009. 54 ADI 3.853, Rel. Min. Cármen Lúcia, Julgamento em 12-9-2007, Plenário, DJ de 26-10-2007. 55 ADI 2.661-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 5-6-2002, Plenário, DJ de 23-8-2002. 56 RE 206.889, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 25-3-1997, Segunda Turma, DJ de 13-6-1997. 57 HC 99.736, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 27-4-2010, Primeira Turma, DJE de 21-5-2010. 58 RE 167.137, Rel. Min. Paulo Brossard, julgamento em 18-10-1994, Primeira Turma, DJ de 25-11-1994. 59 MS 21.814, Rel. Min. Néri da Silveira, julgamento em 14-4-1994, Plenário, DJ de 10-6-1994.
67
Ademais, todos os julgados destacados acima, relevantes para um balizamento
conceitual da moralidade administrativa quando vistos em conjunto, possuem em comum o
fato de não serem recentes, pois nenhum deles foi proferido nos últimos 5 (cinco) anos, mas
entre os anos de 1994 e 2010. Tem-se, portanto, um lapso temporal significativo, de 16
(dezesseis) anos, dentre o qual destacou-se uma dezena de julgados.
Assim, conquanto a menção supra aos julgados da Suprema Corte tenha a
importante função de ilustrar o desenvolvimento da matéria nos tribunais pátrios, apenas uma
análise pormenorizada da jurisprudência do Pretório Excelso nos últimos anos, com base em
certos critérios objetivos, pode trazer uma credibilidade científica maior à afirmação sobre o
caráter dependente e poroso da moralidade administrativa na jurisprudência brasileira atual.
68
3. ANÁLISE DE ACÓRDÃOS: UMA PESQUISA EMPÍRICA DA MORALIDADE
ADMINISTRATIVA NA JURISPRUDÊNCIA RECENTE DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL
3.1 BREVES COMENTÁRIOS SOBRE A PESQUISA EMPÍRICA EM DIREITO E A
ANÁLISE DE ACÓRDÃOS
3.1.1 A pesquisa empírica como superação do paradigma idealista da doutrina jurídica
Tradicionalmente, a teoria jurídica é criada com base em raciocínios silogísticos
em torno das interpretações possíveis de uma norma e de suas possibilidades de aplicação
concreta, numa contraposição de discursos retóricos e da sistematização taxonômica de
categorias abstratas. Porém, no cenário moderno de inflação legislativa, quando não é mais
factível aferir a sustentação de todas as teses jurídicas criadas, o valor da teoria jurídica acaba
sendo classificado conforme a autoridade de que desfruta o seu autor, por vezes advinda da
sua função e poder institucional; outras vezes, da credibilidade e fama como professor ou
doutrinador. (NERI, 2013, p. 7)
Como reflexo desse cenário, a pesquisa jurídica no Brasil acaba sendo marcada
por uma preponderância da pesquisa bibliográfica (especialmente doutrinária), que privilegia
as teorias acerca do objeto de estudo, em detrimento da pesquisa empírica, que privilegia os
dados, as informações e as evidências. (NORONHA; MONTEIRO, 2015, p. 108) Mesmo o
apanhado documental das leis que fazem parte do ordenamento pátrio, no sentido de
identificação de expressões textuais e matérias regulamentadas, não goza de popularidade
entre os juristas, que parecem mesmo preferir transitar entre conceitos idealizados e meras
opiniões.
Ocorre que uma doutrina sem qualquer embasamento empírico se mostra
insuficiente para construir uma percepção adequada do direito e entender a lógica do sistema
judiciário. Por isso a pesquisa empírica vem sendo muito utilizada por várias áreas das
69
ciências sociais60
como instrumento para romper o idealismo que permeia a doutrina e
estreitar a relação entre sujeito e objeto, a partir das escolhas metodológicas de análise que
permitem ao pesquisador interpretar e reconstruir a realidade. (REIS, 2015, p. 160)
Uma vez que, nos capítulos anteriores deste trabalho, já se utilizou o
procedimento de análise bibliográfica, buscando abordar os diferentes vieses da origem e
desenvolvimento do princípio da moralidade administrativa no direito brasileiro,
introduziremos, neste capítulo, a pesquisa empírica realizada sobre a problemática em estudo,
a fim de conferir-lhe um panorama mais completo e inovador.
Não se pretende, neste ponto do trabalho, alcançar uma pretensa objetividade
avaliativa supostamente inexistente nos capítulos anteriores. Com efeito, também a pesquisa
bibliográfica goza de objetividade científica quando seus resultados são fiéis aos dados
levantados, não obstante as interpretações e releituras feitas pelo pesquisador a partir desses
dados. Na pesquisa empírica, não é diferente. Embora a análise de dados do mundo fático –
no caso do direito, dados referentes à vivência concreta das demandas jurídicas, a exemplo
dos documentos produzidos pelos tribunais – tenha um apelo maior à cientificidade, por
remeter aos métodos de observação da natureza, próprios das ciências naturais, a objetividade
do procedimento permanece contida na etapa de coleta de dados, não de sua interpretação.
3.1.2 O “mundo dos fatos” do direito: o Poder Judiciário e seus acórdãos
O Judiciário brasileiro é dividido em instâncias. Em resumo, pode-se dizer que, na
primeira instância, os processos se iniciam, as provas são produzidas, as testemunhas são
ouvidas, o julgamento é realizado e o cumprimento da sentença será efetivado, tudo sob o
crivo de um juiz singular, que em regra acompanha o processo do início até a decisão “final”
– que nem sempre finaliza o processo, graças ao princípio do duplo grau de jurisdição. Na
60 Na área jurídica, essa importância vem sendo alavancada, recentemente, pela chamada Rede de Pesquisa
Empírica em Direito (REED). Trata-se de uma organização sem fins lucrativos de professores e pesquisadores
envolvidos em iniciativas de pesquisa empírica em direito, assim como em reflexões de natureza metodológica e
epistemológica no campo das investigações jurídicas. Os objetivos da REED são articular pesquisadores no
Brasil e no exterior de forma horizontal e acêntrica, divulgar trabalhos e informações sobre pesquisas empíricas
no campo jurídico, bem como promover a difusão e capacitação em métodos e técnicas de pesquisa empírica em
direito. Para tanto, a REED promove eventos e cursos e publica, semestralmente, a Revista de Estudos Empíricos
em Direito. FONTE: <http://reedpesquisa.org/institucional/quem-somos-nos/> Acesso em 18 jan. 2017.
70
segunda instância, pode ser feita uma revisão dos julgados de primeira instância, para
confirmar, alterar ou desconstituir a decisão inicial.
Em geral, o papel de primeira instância é feito pelas varas federais ou estaduais,
enquanto o de segunda instância é desempenhado pelos tribunais. Nesses, as decisões podem
ser monocráticas, quando tomadas por apenas um magistrado (desembargador), ou colegiadas,
quando proferidas por um grupo de julgadores (câmara, turma, seção, plenário ou órgão
especial). Nessa segunda hipótese, um dos magistrados atua como relator do caso, sendo
responsável por analisá-lo previamente e emitir seu voto, que será submetido à concordância
ou discordância dos demais membros do colegiado. A partir do entendimento unânime ou
majoritário a favor de algum voto, decide-se a questão e proclama-se o resultado final, por
meio do documento que se chama de acórdão61
.
Os tribunais superiores – Superior Tribunal de Justiça (STJ), Superior Tribunal
Militar (STM), Tribunal Superior do Trabalho (TST) e Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – e
o Supremo Tribunal Federal (STF) constituem uma instância especial, atuando como
guardiões da lei e, no caso do STF, guardião da Constituição. Por essa razão, só analisam
matéria de direito, omitindo-se a reanalisar as provas e a matéria de fato em litígio. Apenas de
forma excepcional o STJ, o TST, o TSE e o STF podem atuar como primeira ou segunda
instância, respectivamente nos casos de suas competências originárias previstas na
Constituição e quando outro tribunal inferior julgar uma causa em primeira instância, para
garantir efetividade ao duplo grau de jurisdição.62
Se o Código de Processo Penal (BRASIL, 1941) faz poucas remissões aos
acórdãos e não os disciplina em si mesmos, o Código de Processo Civil (BRASIL, 2015) traz
vários dispositivos acerca da definição, elementos, publicação e julgamento dos acórdãos.
Dois desses dispositivos possuem grande relevância para o presente trabalho. O primeiro é o
art. 489, §1º, II, ao dispor que a decisão judicial lato sensu, incluindo o acórdão, não pode ser
considerada fundamentada quando “empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem
explicar o motivo concreto de sua incidência no caso”. Tal prescrição é aplicável, portanto, ao
conceito indeterminado de que ora se trata, o de moralidade administrativa.
Se porventura um acórdão não explicar, balizar, contextualizar a subsunção do
caso julgado às normas que disciplinam a violação ao princípio da moralidade administrativa,
pode-se considerá-lo um acórdão sem fundamentação. E uma decisão não fundamentada é
61 Numa acepção clara e objetiva, o Código de Processo Civil de 2015 afirma, no art. 204: “Acórdão é o
julgamento colegiado proferido pelos tribunais.” 62 Conforme bem sumarizado por Thiago Coacci (2013, p. 96).
71
nula, tal qual assevera o art. 11 do mesmo diploma legal e o art. 93, IX, da Constituição
Federal, devendo ser a nulidade decretada de ofício pelo juiz.
Acerca da sua disponibilização, os acórdãos em regra são públicos, como os atos
processuais em geral, salvo as exceções previstas no art. 189 do CPC, e podem ser registrados
em documento eletrônico inviolável e assinados eletronicamente, na forma da lei, devendo ser
impressos para juntada aos autos do processo quando este for físico, tal qual disposto no art.
943 do mesmo código63
. A norma encontra-se em consonância com a expansão do Processo
Judicial Eletrônico (PJe) no Brasil, sistema desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) em parceria com os tribunais para a automação do Judiciário.
Das normas supracitadas decorre que os acórdãos proferidos pelos tribunais
brasileiros em regra encontram-se disponíveis para consulta em sítios eletrônicos de busca,
mediante a procura direcionada por palavras-chave. Cada tribunal possui seu próprio sistema
de busca e não há uniformização entre eles, sendo possível encontrar, e.g., apenas a ementa e
o dispositivo do acórdão em um sítio de busca e, em outro, o inteiro teor dos votos dos
magistrados em arquivo de texto a ser descarregado em dispositivo eletrônico.64
Os acórdãos também podem ser encontrados em revistas de jurisprudência, como
a Revista dos Tribunais. Contudo, esses periódicos publicam apenas os acórdãos marcados
por alguma especificidade que o faz merecer a divulgação, desde características atípicas a
uma nova forma de se decidir sobre uma determinada matéria. Ainda, é possível consulta ao
acervo físico dos processos, mantido pelos diversos tribunais e acessado mediante requisição.
(COACCI, 2013, p. 101)
Destaque-se, ademais, que os acórdãos são importantes instrumentos de fundação
e consolidação de paradigmas jurídicos, seja por meio da referência inserta em outras
decisões, na condição de precedente, seja pelo destaque conferido pela literatura jurídica
(COACCI, 2013, p. 103), tanto maior quanto mais alta posição na hierarquia do Judiciário
possuir o tribunal decisor. Tal relevância paradigmática espelha o valor dado ao
posicionamento colegiado e a larga publicidade que é conferida aos acórdãos pelos sites de
busca de jurisprudência (nos quais as decisões de primeira instância em regra não são
cadastradas), mas encontra sua fundamentação especialmente nos próprios dispositivos legais.
63 Cujo teor é o mesmo do parágrafo único do art. 556 do antigo CPC/1973, com redação dada pela Lei nº
11.419, de 2006, em vigor quando foram proferidos os acórdãos analisados neste trabalho. 64 No primeiro caso (disponibilização apenas da ementa e do dispositivo) encontra-se o sítio eletrônico do
Tribunal Regional Federal da 5ª Região, enquanto na segunda hipótese (disponibilização também do inteiro teor
dos votos) encontra-se o sítio eletrônico do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. FONTE:
<https://www.trf5.jus.br/Jurisprudencia/> e < http://www10.trf2.jus.br/consultas/jurisprudencia/> Acesso em 19
jan. 2017.
72
O Novo CPC veio fortalecer a importância dos acórdãos alargando o sistema de
vinculação de precedentes, em especial no art. 927, inciso “V”. Muito além de fazer valer a
precedência dos tribunais superiores, esse artigo disciplina que os juízes e tribunais devem
observar os acórdãos proferidos pelo plenário ou órgão especial65
do próprio juízo ao qual
estiverem ligados, ainda que não seja um tribunal superior. Tal novidade no processo civil
brasileiro vem acompanhada de uma incorporação de premissas e conceitos próprios do
sistema de common law, tais quais os conceitos de ratio decidendi e obter dictum.
(MARINONI, 2012)
3.1.3 Características da pesquisa de acórdãos judiciais
A pesquisa fundada em acórdãos é uma pesquisa de cunho empírico que utiliza o
procedimento técnico da pesquisa documental, uma vez que os acórdãos são, essencialmente,
documentos escritos oficiais do Poder Judiciário, dados prontos e acabados, aos quais se pode
observar e interpretar, mas nunca influenciar no desfecho, já processado no tempo. Embora
alberguem diversas análises jurídicas das matérias sob julgamento, os acórdãos, considerados
em si, são documentos que não possuem tratamento analítico agregado – salvo nos casos de
jurisprudência comentada, os quais se enquadram entre as fontes bibliográficas. Com efeito, a
análise do acórdão, enquanto documento, fica a cargo do pesquisador, de acordo com a
técnica escolhida.
Quanto à abordagem a ser empregada na análise dos casos, a pesquisa pode ser
quantitativa, quando privilegia a necessidade de encontrar a frequência e constância das
ocorrências, ou qualitativa, quando pretende interpretar o sentido do evento a partir do
significado que se atribui a ele por um determinado grupo de indivíduos ou de fontes de
dados. As pesquisas de acórdãos podem ensejar abordagens quantitativas ou qualitativas, a
depender do objetivo do pesquisador.
65 A Constituição Federal dispõe: “Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal,
disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: [...] XI nos tribunais com número
superior a vinte e cinco julgadores, poderá ser constituído órgão especial, com o mínimo de onze e o máximo de
vinte e cinco membros, para o exercício das atribuições administrativas e jurisdicionais delegadas da
competência do tribunal pleno, provendo-se metade das vagas por antigüidade e a outra metade por eleição pelo
tribunal pleno;”
73
Os instrumentos mais comuns às abordagens quantitativas são os questionários,
enquanto instrumentos padronizados, que permitem avaliar e comparar as respostas obtidas a
partir da análise de um número de casos argumentados como suficientes para representar um
universo de situações, reduzindo sua complexidade por meio dos padrões de comparação
encontrados. Para tanto, os questionários serão mais efetivos quanto mais objetivos e
aplicados sob a mesma sistemática. Segundo Laville e Dionne (2008, p. 226), se o
pesquisador escolhe o recurso aos instrumentos estatísticos, cumpre quantificar os dados
reunidos em cada uma das categorias, cujo modo mais usual é o de estabelecer frequências
enumerando as unidades presentes sob cada rubrica.
Por outro lado, as pesquisas qualitativas geralmente recorrem a pesquisas de
campo e à análise de características subjetivas, tais quais as diferentes opiniões e vivências de
determinado grupo social.
Desta feita, os que se valem dos métodos quantitativos estão centrados na
descoberta e explicação de alguns fatos sociais, enquanto os que se valem dos métodos
qualitativos estão mais interessados na descrição e na demonstração do funcionamento de
determinadas organizações (MEDEIROS, 2015, p. 65), tentando reconhecer suas motivações,
representações e valores, variáveis não quantificáveis. (LAVILLE; DIONNE, 1999, p. 43) É
possível, ainda, uma abordagem mista dos casos analisados, em parte quantitativa e em parte
qualitativa.
A pesquisa documental de acórdãos pode também ser combinada com o estudo de
casos ou estudo de casos cruzados, de acordo com a tipologia do professor da Universidade de
Boston, John Gerring, autor de “Case Study Research – Principles and Practices”. Segundo
Gerring (2007, p. 20-21), um estudo de caso compreende o estudo intensivo de um único caso
e de suas variáveis internas, com o propósito de lançar luzes sobre a análise de um número
maior de casos; já no estudo de casos cruzados, geralmente se testam algumas hipóteses a
partir da observação de variáveis que perpassam diversos casos, a fim de testar a extensão de
alguma teoria.
Nenhum dos dois tipos de estudo de caso é quantitativo por natureza, porque
mesmo tentando englobar vários casos numa única análise, será necessário reduzir as
evidências a um pequeno número de dimensões, pois ninguém pode abordar milhares de casos
em todos os seus termos. Para chegar a uma conclusão significativa sobre esses dados, será
necessário reduzir as informações e sistematizá-las através da estatística (GERRING, 2007, p.
33)
74
À vista dessa tipologia, cada acórdão corresponderia a um caso ou uma amostra.
O estudo de caso aplicado à pesquisa de acórdãos implicaria a análise aprofundada de um
determinado acórdão, escolhido por sua relevância paradigmática para o tema em exame, a
fim de ser dissecado em suas variáveis internas, tais quais os votos de cada julgador, os
debates, o resultado da decisão, os fundamentos utilizados em cada voto, os precedentes e
excertos doutrinários referenciados, etc. Já o estudo de casos cruzados ocorreria na análise de
vários acórdãos, escolhidos como uma amostra interessante ao teste da hipótese de pesquisa, a
fim de comparar determinadas varáveis presentes em todos eles, sem aprofundar as
individualidades de cada caso. Assim, seja na análise de muitas variáveis de um só acórdão ou
de algumas variáveis de muitos acórdãos, sob uma abordagem estatística quantitativa, sempre
será necessária uma visão qualitativa dos casos, a fim de perceber e reduzir as variáveis sob
observação.
Ademais, como qualquer outro tipo de pesquisa, a análise de acórdãos pode ter
como objetivos gerais descrever, explicar ou explorar a hipótese formulada por meio dos
dados verificados. A descrição objetiva produzir um minucioso registro da amostra de dados
analisada; a explicação busca raciocínios causais para o fenômeno observado; a exploração
intenta proporcionar mais familiaridade com a problemática trabalhada, tornando-a mais
explícita e construindo-lhe hipóteses.
Já o objetivo da análise de dados pode ser inferencial descritivo ou inferencial
causal, a partir do raciocínio utilizado para interpretar os dados colhidos. A inferência seria o
“processo de utilizar os fatos que conhecemos para aprender sobre os fatos que
desconhecemos” (EPSTEIN; KING, 2013, p. 36). As inferências, porém, não podem fornecer
juízo de certeza sobre uma descrição ou raciocínio causal, pois partem do viés analítico do
pesquisador. Esse caráter subjetivo, porém, não nega a cientificidade da pesquisa, pois toda
análise compreende uma etapa de interpretação em que o pesquisador explicita o que ele
entende dos resultados obtidos. (LAVILLE; DIONNE, 2008, p. 217)
Em verdade, a escolha dos dados a coletar (perguntas a responder) e do método a
ser seguido (se quantitativo ou qualitativo, por exemplo), até mesmo na pesquisa empírica,
pode conter juízos de valor subjacentes, reflexos da ideologia do pesquisador. A grande
exigência de cientificidade e “neutralidade” da pesquisa estaria no cumprimento do método
pré-fixado, na fidelidade aos procedimentos de investigação determinados pelo próprio
pesquisador. (OLIVEIRA, 1988, p. 127)
75
Por fim, é importante ressaltar que, seja de que tipo for, a pesquisa de acórdãos
não se debruça sobre o eventual cumprimento ou descumprimento dessas decisões. Tal
circunstância extrapola o processo de subsunção do fato à norma jurídica, tocando às
vivências sociais enquanto medidas de eficácia das normas e enveredando pela pesquisa de
cunho sociológico – denominada pesquisa de campo. Diferentemente, a pesquisa de acórdãos
restringe-se à análise do processo decisório de cada caso concreto, tratando-o como fato desse
“mundo real” do direito, que é o Poder Judiciário, onde as pretensões são deduzidas pelas
partes e as normas jurídicas são aplicadas pelos juízes.
3.2 DESENHANDO A PESQUISA: PROBLEMÁTICA, HIPÓTESE E VERIFICAÇÃO
3.2.1 Esclarecendo a problemática e formulando a hipótese a ser testada
Laville e Dionne (2008, p. 84) afirmam que a pesquisa científica seria composta
das seguintes etapas e subetapas: 1) propor e definir um problema – 1.1) conscientizar-se de
um problema, 1.2) torná-lo significativo e delimitá-lo, 1.3) formulá-lo em forma de pergunta;
2) elaborar uma hipótese – 2.1) analisar os dados disponíveis, 2.2) formular a hipótese tendo
consciência de sua natureza provisória, 2.3) prever suas implicações lógicas; 3) verificar a
hipótese – 3.1) decidir sobre novos dados necessários, 3.2) recolhê-los, 3.3) analisar, avaliar e
interpretar os dados em relação à hipótese; 4) concluir – 4.1) invalidar, confirmar ou
modificar a hipótese, 4.2) traçar um esquema de explicação significativo, 4.3) quando
possível, generalizar a conclusão.
Seguindo o roteiro proposto por Laville e Dionne, no presente estudo temos que a
problemática em exame já foi suficientemente contextualizada e explorada nos tópicos
anteriores, podendo ser resumida na seguinte pergunta: o princípio da moralidade
administrativa vem sendo referido no direito brasileiro a partir de conceitos ou balizamentos
objetivos? Nossa hipótese inicial – a partir da pesquisa bibliográfica em fontes da doutrina
administrativista pátria e do apanhado documental da legislação que faz referência a esse
princípio, bem como diante da análise do conteúdo de algumas decisões de relevo na matéria,
76
proferidas pelo Supremo Tribunal Federal entre os anos de 1994 a 2010 – é que a moralidade
administrativa não vem sendo referenciada em termos objetivos no discurso jurídico
brasileiro, tendo em vista a insuficiência ou o desencontro de estudos exegéticos sobre esse
princípio, favorecendo o subjetivismo casuístico do jurista (doutrinador ou julgador).
A confirmação dessa hipótese, por limitações concretas, não pode ser feita em sua
integralidade, pois não existem dados concretos, disponíveis no mundo dos fatos, que
consubstanciem o “direito brasileiro” em sua totalidade. Trata-se de uma variável não
diretamente observável, que pode ser denominada de variável latente. Nas ciências sociais
frequentemente se faz referência a variáveis latentes tais como opinião pública, status sócio
econômico, capital social, ideologia ou democracia. Ao invés de observar essas variáveis, a
abordagem comum é estimar ou explorar essa variável a partir de variáveis observáveis
sabidamente relacionadas a ela. (FONSECA, 2008)
A variável observável escolhida neste trabalho, enquanto representativa do
discurso jurídico brasileiro, foi a análise de acórdãos do Supremo Tribunal Federal entre os
anos de 2012 e 2016, que contivessem a referência textual à moralidade administrativa. Por
óbvio, o resultado dessa pesquisa não ensejará conclusões baseadas em certezas sobre o
direito brasileiro, mas apenas indicativas, inferentes acerca dessa matéria, dada a limitação
concreta de aferição dessa variável.
Isso posto, é importante justificar o porquê da escolha dessa amostra de dados
enquanto representativa do direito brasileiro. Ora, salta aos olhos o papel que as cortes de
Justiça vêm desempenhando nas sociedades contemporâneas como protagonistas de decisões
envolvendo questões de largo alcance político, implementação de políticas públicas ou
escolhas morais em temas controvertidos na sociedade. Esse fenômeno de judicialização da
vida representa o avanço da justiça constitucional sobre o espaço da política majoritária,
aquela feita no âmbito do Legislativo e do Executivo tendo por combustível o voto popular.66
(BARROSO, 2012, p. 23)
66 Segundo Luís Roberto Barroso, o fenômeno da judicialização, no Brasil, teria três causas principais. Em primeiro lugar, estaria a redemocratização do país, que reavivou a cidadania, dando maior nível de informação e
de consciência de direitos a amplos segmentos da população, que passaram a buscar a proteção de seus interesses
perante juízes e tribunais, os quais ganharam importância política, não apenas técnica, junto a duas instituições
essenciais à expansão da prestação jurisdicional: o Ministério Público e à Defensoria Pública. A segunda causa
seria a constitucionalização abrangente, que trouxe para a Constituição inúmeras matérias que antes eram
deixadas para o processo político majoritário e para a legislação ordinária, transformando-as, potencialmente, em
pretensão jurídica que pode ser formulada sob a forma de ação judicial. Por fim, a judicialização seria um
resultado do nosso abrangente sistema de controle de constitucionalidade, concentrado e difuso, além do amplo
direito de propositura, previsto no art. 103 da Constituição. (BARROSO, 2012, p. 24)
77
No Brasil, desde a Constituição de 1988, esse fenômeno é especialmente evidente,
pois os tribunais passaram a decidir sobre as mais complexas relações sociais, determinando o
equilíbrio de competências e forças políticas, mesmo desprovidos da legitimação democrática
do voto popular. A depender da repercussão midiática alcançada pelo caso concreto sob
julgamento, os juízes tornaram-se conhecidos do público e emitem opiniões sobre os mais
variados assuntos, têm seus perfis descritos em periódicos de circulação nacional e seu
trabalho é acompanhado pelos meios de comunicação de abrangência nacional. (NERI, 2013)
No Brasil, acrescente-se a isso a transmissão direta dos julgamentos do Plenário da
Suprema Corte pela TV Justiça, um canal de televisão público e aberto, portanto, de
largo alcance entre a população.
Exemplo recente da visibilidade alcançada pelos magistrados é a que goza,
atualmente, o juiz Sérgio Moro, que atua na primeira instância da Justiça Federal no Estado
do Paraná e é responsável pelo julgamento dos crimes apurados na “Operação Lava-Jato”. Só
para exemplificar, numa rápida busca pela Internet, foi possível encontrar cinco grandes
portais e periódicos brasileiros de notícias – G167
, El País68
, Exame69
, Veja70
e Estadão71
–
que possuem tags específicas com o nome do magistrado, a fim de reunir em uma só página
eletrônica todas as (numerosas) notícias publicadas sobre ele.
Ainda assim, cabe esclarecer o porquê da escolha específica do Supremo Tribunal
Federal como órgão produtor das decisões judiciais a serem analisadas. Para além da razão
patente de ser a instância máxima de julgamento, dentro do sistema processual brasileiro
(previsto especialmente no Código de Processo Civil e no Código de Processo Penal),
proferindo a “última palavra” nas ações que lhe são submetidas – com exceção dos poucos
casos submetidos à jurisdição de tribunais internacionais aos quais o Brasil consente em
subordinar-se – existe uma razão simbólica e uma razão prática na escolha do Pretório
Excelso para esta pesquisa empírica.
Em primeiro lugar, o STF é o órgão jurisdicional que representa a abertura do
direito a outros sistemas normativos sociais, complementando a força constitucional no
diálogo entre moral e política.
Um dos pontos de contato mais importantes entre o Direito, a moral e
a política está justamente no texto constitucional. Ocorre que o texto é mudo, na medida em que admite as mais diversas conotações e
67 Disponível em: <http://g1.globo.com/tudo-sobre/sergio-moro> Acesso em 16 jan. 2017. 68 Disponível em: < http://brasil.elpais.com/tag/sergio_fernando_moro/a> Acesso em 16 jan. 2017. 69 Disponível em: < http://exame.abril.com.br/noticias-sobre/sergio-moro/> Acesso em 16 jan. 2017. 70 Disponível em: < http://veja.abril.com.br/noticias-sobre/sergio-moro/> Acesso em 16 jan. 2017. 71 Disponível em: < http://topicos.estadao.com.br/sergio-moro> Acesso em 16 jan. 2017.
78
denotações, todas dependentes de interesses, convicções
profundamente arraigadas, especificidades de casos únicos e
irrepetíveis. Por isso, o ponto de contato propriamente dito, passa
modernamente para a chamada jurisdição constitucional, isto é, o
conjunto de interpretações e consequentes decisões dos tribunais a
partir do texto da Constituição. No Brasil, tem papel central nessa
jurisdição o Supremo Tribunal Federal (ADEODATO, 2008, p. 12)
Uma vez que o tema deste trabalho está diretamente ligado à moral e ao direito,
perpassando a política no caso de agentes públicos que tenham acedido a um múnus na
Administração Pública pela via eletiva, pareceu-nos imprescindível, em termos de relevância
simbólica, a análise da jurisprudência do Pretório Excelso enquanto termômetro do direito
brasileiro.
Em segundo lugar, tal qual destacado anteriormente, é relevante o fato de a
Suprema Corte ser formada por apenas onze ministros: juristas qualificados (aprovados após
sabatina do Senado Federal) e dotados de grande estrutura técnica e de pessoal para
exercerem sua função jurisdicional, sempre sob os holofotes da mídia e em constantes
debates, numa formação regularmente estável ao longo do tempo72
. Por essas razões, pareceu-
nos que a jurisprudência do STF possuía maior tendência à coesão ao longo do tempo, em
comparação com os outros tribunais, de instâncias inferiores, cujos magistrados são mais
numerosos, estando mais suscetíveis a mudanças de composição e, possivelmente, de
posicionamento.
Isso posto, consideramos devidamente justificada a escolha da análise da
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal enquanto representativa do direito brasileiro.
Resta, ainda, esclarecer o porquê da eleição de acórdãos proferidos entre os anos de 2012 e
2016.
Quanto à eleição dos acórdãos enquanto únicas decisões a serem analisadas,
destaquem-se novamente uma razão simbólica e uma razão prática. A primeira advém do fato
de o acórdão ser um decisum produzido em colegiado. O STF é dividido, atualmente, em duas
turmas julgadoras, cada uma composta por cinco ministros, não tomando parte o presidente da
corte. Nesses pequenos colegiados são julgados os casos que não demandam a declaração de
inconstitucionalidade de leis, que compete somente ao Plenário. Portanto, os acórdãos são as
decisões produzidas colegiadamente pelos ministros da Suprema Corte, seja nas turmas
72 Nos últimos cinco anos, apenas três ministros aposentaram-se e deixaram a corte: Carlos Ayres de Britto (em
2012), sucedido por Luis Roberto Barroso, Cesar Peluzo (em 2012), sucedido por Teori Zavascki, e Joaquim
Barbosa (em 2014), sucedido por Edson Fachin. Com o recente falecimento do ministro Teori Zavascki, em
19/01/2017, deve passar a integrar a corte um novo ministro a ser indicado pelo atual presidente.
79
julgadoras ou no Plenário, reunindo, portanto, o posicionamento de ao menos cinco ministros,
em regra, diferentemente das decisões monocráticas, proferidas por apenas um ministro.
Uma vez que nos propomos a analisar julgados representativos da jurisprudência
do STF, pareceu-nos mais adequado analisar apenas as decisões colegiadas dos ministros, ao
invés de abranger também as decisões tomadas individualmente.
De outro lado, sobressaiu-se também um viés prático na seleção dos acórdãos
como únicas decisões a serem analisadas neste trabalho: o número de decisões monocráticas
proferidas pelos ministros da corte, no corte temático e temporal proposto, era superior a
2.000 (dois mil) e ainda lacunoso, visto que o próprio sítio eletrônico do STF observa que o
banco de dados de decisões monocráticas acessado virtualmente não está completo. O grande
quantitativo, somado à incompletude do banco de dados pesquisado, levou-nos a excluir as
decisões monocráticas desta pesquisa empírica.
Outrossim, a escolha dos acórdãos em detrimento das decisões de cunho
específico, tais quais as questões de ordem e de repercussão geral, representa também uma
opção de representatividade da jurisprudência da Suprema Corte, uma vez que os acórdãos
decidem os casos práticos levados à jurisdição máxima, pretensões jurídicas a serem providas
ou improvidas, não apenas questões procedimentais prévias ao julgamento de mérito.
Por fim, a escolha dos anos de 2012 a 2016 enquanto lapso temporal de
julgamento dos acórdãos analisados reflete a disposição de debruçarmo-nos sobre os julgados
mais recentes da Suprema Corte. No primeiro momento, possuíamos a intenção de analisar os
acórdãos proferidos desde o ano de 2005 ao ano de 2016, por compreender o período no qual
o Brasil vivenciou os dois maiores escândalos de corrupção de sua história recente: o
Mensalão e a Operação Lava-Jato.
Todavia, observamos que vários acórdãos proferidos no ano de 2011 e em anos
anteriores tiveram o seu inteiro teor disponibilizado eletronicamente a partir da digitalização
das respectivas decisões impressas, semelhante a fotografias. Tal formatação impediu-nos de
utilizar as ferramentas de busca textual73
nos arquivos do inteiro teor das decisões,
inviabilizando a continuidade das análises, em razão do longo tempo que seria necessário para
ler todas as decisões na íntegra e identificar todas as informações pretendidas. Dessa forma,
optou-se por analisar acórdãos proferidos apenas nos últimos 5 (cinco) anos, cujos arquivos
de inteiro teor puderam ser acessados no formato hábil a instrumentalizar pesquisas textuais
específicas.
73 Comando “Ctrl + F”.
80
Portanto, em suma, a hipótese inicial desta pesquisa era a de que uma análise dos
acórdãos proferidos pela Suprema Corte, entre os anos de 2012 e 2016, que fizessem
referência expressa à moralidade administrativa, revelaria o desencontro e a fluidez de
significados atribuídos ao princípio em exame, bem como uma aplicação deveras casuística da
matéria. Caso tal hipótese fosse verificada, constataríamos a falta de balizamentos objetivos
na referência à moralidade administrativa no direito brasileiro, o que, dentre muitas
consequências negativas, geraria insegurança quanto ao resultado das demandas levadas ao
Judiciário pátrio.
3.2.2 Elegendo os meios e métodos de verificação da hipótese
Esclarecida a problemática inicial e a hipótese formulada diante das considerações
tecidas nos capítulos anteriores deste trabalho, optamos pela verificação da hipótese
supracitada por meio de uma pesquisa empírica centrada na análise de acórdãos proferidos
pelo STF entre os anos de 2012 e 2016 contendo referência expressa à moralidade
administrativa. Nosso objetivo era desenvolver uma pesquisa de cunho exploratório e, ao
final, realizar inferências descritivas acerca da referência à moralidade administrativa nos
julgados da Suprema Corte, enquanto representativos do direito brasileiro.
Para selecionar os casos a serem estudados, utilizamos a base de dados eletrônicos
do sítio virtual do próprio STF, de livre acesso ao público74
. Relevante esclarecer que esse não
é o único banco de dados da jurisprudência do Pretório Excelso, que também conta com o
Ementário de Jurisprudência75
e os chamados repositórios de jurisprudência76
. Ademais, é
possível solicitar uma pesquisa via e-mail diretamente ao STF, pelo endereço virtual
“[email protected]”. (VERÇOSO et al, 2014, p. 114-115)
74 “A página eletrônica do STF foi criada em 1996 e desde esta data é possível realizar pesquisas de
jurisprudência em seu campo. No começo, o banco de dados eletrônico dispunha de poucos acórdãos.
Gradativamente os acórdãos foram digitalizados e incorporados ao banco de dados até a conclusão dos trabalhos em 2000, quando os acórdãos publicados após 5 de julho de 1950 foram disponibilizados. Nesse período, o STF
contou com uma empresa terceirizada para construção do banco de dados e para a alimentação de seu conteúdo.
Após 2002, o trabalho de digitalização e disponibilização dos acórdãos passou a ser feito pelo próprio tribunal.”
(VEÇOSO et al, 2014, p. 114) 75 Repositório físico onde se encontram os acórdãos publicados após 5 de julho de 1950, acessível a qualquer
interessado mediante agendamento com o chefe da Seção de Gerenciamento do Banco de Jurisprudência. 76 Compreendidos como “repertórios e revistas impressos ou em meio digital que reproduzem, na íntegra,
decisões do Supremo Tribunal Federal, obrigatoriamente, e de outros tribunais do País”, nos termos do art. 1º,
caput, da Resolução n.º 330/06 do STF.
81
O campo Pesquisa de Jurisprudência, disponível no site da Suprema Corte
permite uma pesquisa livre, a partir de determinadas palavras-chave, com a possibilidade do
uso de operadores booleanos77
– “e”, “adj”, “prox”, “ou”, “nao”, “mesmo” e “$” – cuja
função é esclarecida no tópico “ajuda”. (VERÇOSO et al, 2014, p. 116 e 119) Segundo
informações obtidas junto à Coordenadoria de Análise de Jurisprudência da Suprema Corte78
,
a pesquisa livre é feita pelo sistema não a partir do inteiro teor, mas do espelho do acórdão:
documento no qual são consolidados dados de identificação e de publicação, ementa e
decisão, bem como indexação79
, doutrina80
, legislação81
e observação82
, além de outras
informações relevantes para o resgate dos julgados. Enquanto as ementas são elaboradas pelo
próprio relator ou redator para o acórdão, os demais campos são preenchidos mediante a
análise e o tratamento de informações contidas no relatório e nos votos, atividade feita pela
Coordenadoria de Análise de Jurisprudência da Suprema Corte.
Isso posto, avancemos para a descrição dos métodos e abordagens utilizados nesta
pesquisa.
Inicialmente, buscamos obter o quantitativo total dos acórdãos proferidos pelo
STF entre 01/01/2012 e 31/12/2016, sem especificar um argumento textual de pesquisa, a fim
de obter o universo de acórdãos do qual selecionaríamos a nossa amostra. Obtivemos o
número de 30.365 (trinta mil, trezentos e sessenta e cinco) acórdãos.
Em seguida, para formar a amostra de casos a ser analisada nesta pesquisa,
inserimos a chave “moralidade e administrativa”83
(sem aspas) no campo de pesquisa livre da
jurisprudência do STF, especificando o período de 01/01/2012 a 31/12/2016 e selecionando a
busca exclusiva de acórdãos. Obtivemos como resultado uma lista de 67 (sessenta e sete)
77 Palavras que têm o objetivo de indicar ao sistema de busca como deve ser feita a combinação entre os termos
ou expressões utilizados numa pesquisa. 78 Em correios eletrônicos trocados nos dias 23 a 25/01/2017, por meio do endereço “[email protected]”. 79 A indexação consiste na representação do conteúdo do julgado com o uso de linguagem controlada, para que o
pesquisador possa recuperá-lo pelo espelho do acórdão. Atualmente a indexação é realizada com os termos do
“Tesauro”, uma ferramenta de controle terminológico cujo objetivo é a padronização da informação. Com
frequência a indexação se restringe à expressão “VIDE EMENTA”. Isso ocorre quando todo o entendimento do
órgão julgador foi esboçado na ementa. 80 No campo “doutrina” é indicada toda a bibliografia, inclusive os artigos científicos e os periódicos citados
pelos ministros em seus votos e debates. 81 No campo “legislação” são catalogados todos os atos normativos citados nos votos do acórdão. Visa a
possibilitar pesquisas que utilizem como critério dispositivos constitucionais e infraconstitucionais. 82 No campo “observação” estão registradas informações importantes para a identificação do acórdão e de
interesse do pesquisador. Aqui são indicados temas da repercussão geral; precedentes citados pelos Ministros
(atualmente agrupados por matéria com uma breve indicação do assunto para auxiliar o pesquisador); decisões
judiciais e administrativas de outros órgãos, as quais tenham maior relevância; legislação e decisões estrangeiras
citadas; termos de resgate; apelidos atribuídos a casos notórios; outras informações importantes atinentes ao
julgado (acolhimento de embargos de declaração com efeitos modificativos, etc.). 83 O operador lógico “e” comanda a busca de todas as palavras desejadas em qualquer lugar do documento.
82
acórdãos disponíveis na base de dados eletrônicos do site do STF84
que trazem a expressão
moralidade administrativa seja na ementa, decisão, indexação, legislação, observação, tema,
tese ou doutrina citados no acórdão.
Contudo, uma vez que tais campos passam por um tratamento de informações pela
Coordenadoria de Análise de Jurisprudência da Suprema Corte, fixamo-nos apenas sobre o
inteiro teor do acórdão (o qual contém a sua ementa), a fim de recorrer à fonte única e
exclusiva dos votos e debates entre os ministros do Pretório Excelso.
Dado o quantitativo significativo de casos enquadrados no corte temático
proposto, decidimos pela realização de uma pesquisa do tipo estudo de casos cruzados, com a
exceção de um acórdão em especial, o RE 405386/RJ, julgado em 26/02/2013, que pelo foco
dado à moralidade administrativa mereceu uma análise mais aprofundada, consubstanciando
um estudo de caso propriamente dito85
.
Quanto à abordagem a ser utilizada, escolheu-se a análise quantitativa dos dados.
A partir do texto do inteiro teor de cada acórdão selecionado, respondemos às seguintes
perguntas:
1) Qual a data de julgamento?
2) Quantas vezes a moralidade é citada?
3) Quantas vezes a moralidade é referida junto a outros princípios ou valores?
Quais e por quantas vezes cada um?
4) A moralidade é referida como princípio central na questão de fato sob exame? Se sim, ele foi considerado observado ou violado?
5) Houve algum balizamento do conceito de moralidade? Se sim, por mera
afirmação, doutrina ou precedente judicial?
O questionário acima foi preenchido com as informações encontradas no inteiro
teor de cada acórdão, não fazendo distinção entre o discurso direto de cada ministro – quando
encontramos suas opiniões e posicionamentos em cada voto – e as citações de precedentes,
doutrina, excertos da legislação ou dos requerimentos feitos pelas partes litigantes, uma vez
que, inseridos no contexto do voto, esses trechos também consistem no discurso – indireto –
dos ministros, expressando a ênfase conferida pelos membros do STF à moralidade
administrativa em diversos contextos. Ademais, dado que muitas argumentações são
84 A pesquisa foi feita no dia 03/01/2017. Ao repetirmos a busca nos mesmos termos, no dia 25/01/2017, porém,
observamos que os dois acórdãos mais recentes contendo a expressão “moralidade administrativa” (a qual
aparece como um único termo de pesquisa, a partir do uso do operador booleano “e”) foram suprimidos dos
resultados, quais sejam, e Rcl 23282 AgR/MG e a Rcl 23427 AgR/RJ, ambas julgadas no dia 09/12/2016,
resultando numa amostra de 65 (sessenta e cinco) acórdãos. Dado que a pesquisa inicial foi mais completa e
supondo um equívoco técnico temporário da busca eletrônica de jurisprudência no site do STF, prosseguimos à
análise dos 67 (sessenta e sete) acórdãos inicialmente encontrados. 85 As tipologias estudo de caso e estudo de casos cruzados já foram explanadas no tópico anterior, utilizando
como base a obra do professor da Universidade de Boston, John Gerring.
83
construídas inclusive textualmente a partir da incorporação de citações, não faria sentido
excluir essas últimas da presente análise.
Quanto à segunda pergunta, necessário tecer alguns esclarecimentos. Embora a
pesquisa de jurisprudência tenha usado o argumento textual “moralidade administrativa”,
contabilizamos também o número de vezes em que são citadas as expressões “moralidade” e
“imoralidade”, quando empregadas no sentido de observância e violação do princípio da
moralidade administrativa. Da mesma forma, por possuir o mesmo sentido, consideramos a
incidência das expressões “moral administrativa” (ex.: HC 112388/SP) e “moralidade
pública” (ex.: ADI 4650/DF)
Porém, excluímos da contagem o número de vezes em que “(i)moralidade” foi
citada no tocante à moralidade comum – associada aos bons costumes e exigida de todo
cidadão em sua vivência em sociedade, e não dos agentes públicos em razão de sua função –
ou à moralidade castrense – exigida de todos os militares, em razão das normas de obediência
e hierarquia que regem o Exército Brasileiro. Essa depuração de resultados fez com que dois
acórdãos de nossa amostra, a ADI 4815/DF e o RHC 118030/RS, não tivessem contabilizada
nenhuma referência expressa à moralidade administrativa86
.
Já a respeito da terceira pergunta, asseveramos que só foram considerados
princípios ou valores citados junto à moralidade aqueles que complementavam a mesma ideia
ou enumeração da qual fazia parte o termo “moralidade administrativa”, não quando faziam
parte de outra ideia, ainda que no mesmo período textual, nem quando eram citados como
definição ou balizamento conceitual da própria moralidade administrativa. Ademais,
desconsideramos, para fins de categorização em resposta a essa pergunta, frases grandes, tal
como: “livramento do processo eleitoral de investidas perniciosas do poder econômico e do
abusivo exercício de função pública” (ADC 29/DF).
Ainda sobre a terceira pergunta, advertimos que contabilizamos também os
princípios e valores cuja negativa estaria implicada na violação da moralidade. Por exemplo,
na ADI 4650/DF, o ministro Luís Roberto Barroso afirmou: “no modelo brasileiro, considero
antirrepublicano, antidemocrático e, em certos casos, contrário à moralidade pública o
financiamento eleitoral conduzido por empresas privadas”. Ora, se o argumento é o de que a
violação ao princípio da moralidade estaria atrelada à violação aos princípios republicano e
86 Tais acórdãos foram enquadrados nos resultados de busca jurisprudencial por possuírem a moralidade
administrativa registrada em sua indexação, mas sem a expressão correspondente em seu inteiro teor, cujo texto
está sendo tomado por base para a análise quantitativa do presente estudo.
84
democrático, esses dois princípios foram também registrados como resposta à terceira
pergunta do questionário.
Todavia, nem sempre o termo de sentido negativo, assemelhado à imoralidade
administrativa, possuía um claro termo positivo correspondente. Se o termo
“antidemocrático” nos fez concluir imediatamente pela vinculação do “princípio democrático”
à moralidade administrativa, o mesmo não ocorreu com os termos “abuso de poder” (ADC
29/DF, ADC 30/DF e ADI 4578/AC), “desvio de finalidade” (MS 24020/DF e AI 842925
AgR/SP) e “lesividade” (RE 405386/RJ). Por essa razão, registramo-los com a observação
“(vedação a)”, a fim de conferir à classe o valor positivo de seu contrário.
Da mesma forma, expressões semelhantes foram unificadas sob uma única
denominação, ainda que aparecessem sob diferentes formas. Por exemplo: na ADI 4650/DF,
observam-se mais duas referências contabilizadas para o princípio democrático e o princípio
republicano, embora fraseados de maneiras distintas, in verbis: “nós precisamos criar um
sistema eleitoral mais barato e, consequentemente, mais autêntico, mais democrático, mais
republicano e mais capaz de atender as demandas por moralidade pública da sociedade
brasileira” (voto do ministro Luís Roberto Barroso) e “estão em jogo princípios caríssimos à
democracia, à República, à moralidade administrativa, e princípios caríssimos atinentes ao
binômio sinceridade e realidade institucional” (voto do ministro Luiz Fux).
Ademais, algumas especificações de certos princípios ou valores foram
desconsideradas a fim de que se contabilizasse a frequência do termo mais amplo, mantido o
mesmo sentido. Por exemplo: na ADI 4792/ES, fala-se em “probidade da Administração”,
“probidade administrativa” e “probidade dos representantes (eleitorais)”. Todas essas
expressões foram contabilizadas na frequência do termo genérico “probidade”, a fim de se
evitar um detalhamento excessivo e facilitar a visualização geral da referência aos diversos
termos. Da mesma forma, as referências “legitimidade das eleições” e “legitimidade de
pleitos” (ADC 29/DF, ADC 30/DF e ADI 4578/AC) foram todas contabilizadas como
“legitimidade”.
Já o quarto questionamento diz respeito à moralidade ter sido referida em algum
argumento como o princípio central (único ou principal) para se analisar a matéria de fato sob
julgamento. A segunda parte da pergunta diz respeito à eventual indicação, feita por algum
ministro, de que o caso sob exame caracterizava uma hipótese de violação do princípio da
moralidade ou de sua observância (ou falta de provas de violação). O objetivo era entender se
a moralidade administrativa é um conceito que alberga situações de violação mais claras e
85
concordes que situações de observância, isto é, se é mais comum defini-lo concretamente, por
aquilo que é (observância) ou pelo que não é (violação).
Por fim, a última pergunta busca definitivamente comprovar ou refutar a hipótese
de pesquisa formulada, quantificando quantas vezes e de que forma a moralidade
administrativa foi esclarecida, balizada, definida ou teve seu conteúdo problematizado pela
Suprema Corte. O questionamento que se segue cria três classes para esse eventual
balizamento: o precedente judicial, a doutrina (sejam obras completas ou artigos de
periódicos) e as meras afirmações dos juristas (sejam lugares-comuns simplificados e
repetidos acriticamente ou digressões baseadas em reflexões mais elaboradas sobre a matéria,
porém sem qualquer balizamento doutrinário ou jurisprudencial).
Importante relevar que as três classes estabelecidas nessa segunda parte da quinta
questão não são mutuamente excludentes, podendo um mesmo acórdão, contendo o tal
balizamento, ser contabilizado em uma, duas ou nas três classes, conforme a delimitação
conceitual apareça ao longo do teor da decisão.
3.3 RESULTADOS E CONCLUSÕES DA PESQUISA: MEDIANDO CERTEZAS E
INCERTEZAS EM INFERÊNCIAS DESCRITIVAS QUANTO À MORALIDADE
ADMINISTRATIVA
Segundo Lee Epstein e Gary King (2013, p. 63), uma premissa básica de toda a
pesquisa empírica e teoria de inferência é a de que todas as conclusões possuem um grau de
incerteza, pois os fatos que conhecemos relacionam-se aos fatos que não conhecemos somente
por suposições que jamais poderemos verificar completamente. Portanto, não faria sentido
afirmar o grau de certeza de alguma inferência, mas estimar justamente o seu grau de
incerteza, relatando essa estimativa junto a cada conclusão.
Diante dessa perspectiva, não pretendemos apresentar, aqui, resultados que gerem
certezas acerca da hipótese que submetemos a verificação, mas conclusões que, após a
realização do método escolhido, lancem sobre os resultados descrições e constatações que
sistematizem os dados obtidos e lhes façam inferências de sentido, a partir de todo o
arcabouço teórico construído nos capítulos anteriores. A esse respeito, cabe lembrar que, sob
pena de um ingênuo desprezo às ideologias assumidas – consciente ou inconscientemente –
86
por cada ser humano, o pesquisador não perde a objetividade de seu trabalho ao propor
interpretações para os seus resultados, contanto que esses tenham sido produzidos com
fidedignidade ao método.
Isso posto, iniciemos o relato dos resultados que obtivemos com a aplicação dos
métodos descritos no tópico anterior, escolhidos com o fito de verificar a hipótese elaborada a
partir da problemática em estudo e que pode ser resumida na seguinte inquirição: o princípio
da moralidade administrativa vem sendo referido no direito brasileiro a partir de conceitos ou
balizamentos objetivos?
Inicialmente, observamos que, entre 01/01/2012 e 31/12/2016, 67 (sessenta e sete)
acórdãos referiram-se expressamente à moralidade administrativa. Foram eles: Rcl 23282
AgR/MG, Rcl 23427 AgR/RJ, Rcl 23505 AgR/PE, Rcl 24581 AgR/PE, AP 971/RJ, RMS
33666/DF, Inq 4177/DF, ADPF 388/DF, Rcl 22286 AgR/SC, RHC 132657/DF, ARE 921282
ED/SC, RE 837311/PI, Inq 4088/DF, SL 885 AgR/RJ, MS 32770 AgR/DF, Inq 3399/DF,
ADI 4650/DF, RE 632265/RJ, ADI 4815/DF, AC 2996 AgR/PI, Pet 3047 AgR/DF, ADI
1923/DF, RE 675978/SP, Rcl 19845 AgR/RS, ARE 860136 AgR/MG, ARE 855648 AgR/RS,
ADI 4792/ ES, RHC 125478 AgR/ES, RE 570392/RS, Rcl 14729 AgR/AM, Rcl 18778
ED/RJ, Rcl 14048 AgR/MG, Rcl 12017 AgR/DF, Rcl 17831 AgR/RJ, Rcl 15279 AgR/SP,
Rcl 15297 AgR/MS, Rcl 11692 AgR/RO, Rcl 14704 AgR/SP, Rcl 15365 AgR/PR, Rcl 14732
AgR/DF, Rcl 18181 AgR/RS, Rcl 11834 AgR/RN, ADI 4180/DF, AC 3585 AgR/RS, RHC
118030/RS, AI 747402 AgR/BA, RMS 28208/DF, AP 565/RO, Rcl 14151 ED/MG, Rcl
12758 AgR/DF, RE 503436 AgR-segundo/ PI, RE 589998/PI, ADI 4425/DF, ADI 4357/DF,
RE 405386/RJ, AP 470/MG, HC 112388/SP, RE 683168 AgR/AL, RE 423560/MG, RE
550005 AgR/PR, MS 28720/DF, RE 310028 AgR-ED/SP, MS 24020/DF, ADC 29/DF, ADC
30/DF, ADI 4578/AC e ADI 4638 MC-Ref/DF.
Considerando os 30.365 (trinta mil, trezentos e sessenta e cinco) acórdãos
julgados pelo STF no mesmo período, tal quantitativo representa uma porcentagem de
aproximadamente 0,2% (zero vírgula dois por cento)87
.
3.3.1 Resultados da pergunta n.º 1: Qual a data de julgamento?
87 As porcentagens serão referidas, neste trabalho, com aproximação até a primeira casa decimal, seguindo a
regra de arredondar o número para cima quando a casa decimal seguinte tem valor igual ou maior que 5.
87
Dentre os 67 (sessenta e sete) acórdãos analisados, 12 (doze) haviam sido julgados
no ano de 201288
, 8 (oito) em 201389
, 19 (dezenove) em 201490
, 18 (dezoito) em 201591
e 10
(dez) em 201692
. Observe-se tal divisão anual por meio do gráfico abaixo:
Gráfico 1: Número de acórdãos por ano de julgamento.
FONTE: Dados de pesquisa.
O elevado número de acórdãos no ano de 2014 remonta a diversas Reclamações93
que foram julgadas seguidamente, entre os meses de outubro a dezembro, no mesmo sentido,
através de acórdãos praticamente idênticos em conteúdo de ementa e inteiro teor.
3.3.2. Resultados da pergunta n.º 2: Quantas vezes a moralidade é citada?
88 Nas seguintes datas: 08/12/12, 16/02/12 (três acórdãos), 06/03/12, 20/03/12 (dois acórdãos), 08/05/12,
29/05/12, 07/08/12, 21/08/12 e 17/02/12. 89 Nas seguintes datas: 26/02/13, 14/03/13 (dois acórdãos), 20/03/13, 16/04/13, 24/04/13, 23/05/13 e 08/08/13. 90 Nas seguintes datas: 25/02/14, 27/05/14, 19/08/14, 02/09/14, 11/09/14, 21/10/14 (dois acórdãos), 28/10/14,
25/11/14 (três acórdãos), 02/12/14 (cinco acórdãos), 09/12/14 (dois acórdãos) e 11/12/14. 91 Nas seguintes datas:10/02/15, 12/02/15, 24/02/15, 24/03/15, 14/04/15, 15/04/15, 16/04/15, 02/06/15 (dois
acórdãos), 10/06/15, 18/06/15, 17/09/15, 20/10/15, 24/11/15, 25/11/15, 01/12/15, 09/12/15 e 15/12/15. 92 Nas seguintes datas: 16/02/16 (dois acórdãos), 09/03/16, 12/04/16, 31/05/201628/06/16, 18/11/16 e 09/12/16
(três acórdãos). 93 Rcl 14729 AgR/AM, Rcl 18778 ED/RJ, Rcl 14048 AgR/MG, Rcl 12017 AgR/DF, Rcl 17831 AgR/RJ, Rcl
15279 AgR/SP, Rcl 15297 AgR/MS, Rcl 11692 AgR/RO, Rcl 14704 AgR/SP, Rcl 15365 AgR/PR, Rcl 14732
AgR/DF, Rcl 18181 AgR/RS e Rcl 11834 AgR/RN.
0
2
4
6
8
10
12
14
16
18
20
2012 2013 2014 2015 2016
88
Do inteiro teor dos 67 (sessenta e sete) acórdãos analisados, observou-se a
incidência da moralidade administrativa por 654 (seiscentos e cinquenta e quatro) vezes,
sendo 376 (trezentos e setenta e seis) no ano de 2012, 98 (noventa e oito) no ano de 2013, 60
(sessenta) no ano de 2014, 99 (noventa e nove) no ano de 2015 e 21 (vinte e uma) no ano de
2016. Podem-se visualizar as porcentagens desses resultados no gráfico abaixo:
Gráfico 2: Citações da moralidade administrativa por ano de julgamento de acórdão (em %).
FONTE: Dados de pesquisa.
O significativo número de aparições em 2012 deve-se ao fato de, em fevereiro
desse ano, terem sido julgadas em conjunto a ADC 29/DF, a ADC 30/DF e a ADI 4578/AC,
também contando com acórdãos quase idênticos em ementa e inteiro teor, cada um contendo
97 (noventa e sete) referências textuais à moralidade administrativa. Os julgamentos trataram
da aplicação da Lei Complementar n.º 35/2010, que veio acrescentar hipóteses de
inelegibilidade à Lei Complementar n.º 64/1990, popularmente conhecida como “Lei da Ficha
Limpa”.
Caso o julgamento dessas três ações constitucionais fosse considerado único,
contabilizando-se apenas uma vez as 97 (noventa e sete) referências à moralidade
administrativa, ainda assim o ano de 2012 contaria com 182 (cento e oitenta e duas) menções
ao princípio.
3.3.3. Resultados da pergunta n.º 3: Quantas vezes a moralidade é referida junto a
outros princípios ou valores? Quais e por quantas vezes cada um?
2012 58%
2013 15%
2014 9%
2015 15%
2016 3%
89
Das 654 (seiscentos e cinquenta e quatro) vezes referida nos últimos 5 (cinco)
anos, a moralidade administrativa apareceu 450 (quatrocentas e cinquenta) vezes ladeada por
outros princípios ou valores aplicáveis à ordem pública no direito pátrio, o que representa um
quantitativo de aproximadamente 68,8% (sessenta e oito vírgula oito por cento) do total de
referências. Isso significa que apenas em 204 (duzentos e quatro) momentos a moralidade
administrativa foi referenciada isoladamente, por si mesma.
Do montante de 450 (quatrocentos e cinquenta) referências conjuntas, 267
(duzentos e sessenta e sete) foram no ano de 2012, 59 (cinquenta e nove) no ano de 2013, 42
(quarenta e dois) no ano de 2014, 69 (sessenta e nove) no ano de 2015 e 13 (treze) no ano de
2016. Mais uma vez, ressalte-se que o alto número correspondente ao ano de 2012 deve-se ao
julgamento em conjunto das já citadas ADC 29/DF, ADC 30/DF e ADI 4578/AC.
Da análise do inteiro teor de cada um dos 67 (sessenta e sete) acórdãos da
amostra, catalogamos 66 (sessenta e seis) princípios e/ou valores citados junto à moralidade
administrativa, fazendo parte do mesmo argumento, lista descritiva ou situação. No total,
foram 817 (oitocentas e dezessete) referências a outros princípios ou valores, nas 654
(seiscentos e cinquenta e quatro) aparições do princípio da moralidade administrativa. Isso
significa 1,3 valores ou princípios “acessórios” para cada referência à moralidade
administrativa.
Entre os 66 (sessenta e seis) outros princípios ou valores, destacaram-se a
probidade administrativa – citada por 231 (duzentas e trinta e uma) vezes –, a impessoalidade
– citada por 89 (oitenta e nove) vezes –, e a legalidade – citada por 65 (sessenta e cinco)
vezes. O número de referências textuais a cada um desses princípios/valores está disposto no
gráfico abaixo:
Gráfico 3: Número de citações de outros princípios/valores junto à moralidade administrativa.
90
231 89
65 64
57 51
29 22 21 16 12 11 10 7 7 7 6 6 6 5 5 5 5 4 4 4 4 3 3 3 3 3 3 3 3 2 2 2 2 2 2 2 2 2 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
0 50 100 150 200 250
ProbidadeImpessoalidade
LegalidadeLegitimidade
Normalidade das eleiçõesEficiência
PublicidadePrincípio democrático
IsonomiaIgualdade
ÉticaInteresse público
EconomicidadeBoa-fé
Princípio republicanoRazoabilidade
Abuso de poder (vedação a)Honestidade
Meio ambiente ecologicamente equilibradoIndependência/Separação dos Poderes
LealdadeLei penal (respeito a)
Princípios ético-políticos basilaresCoisa julgada
Lisura do certamePatrimônio estatal (proteção do)
TransparênciaBem comum
Lesividade (vedação a)Presunção de inocência
ProporcionalidadeProteção da confiança
Regularidade do certameSegurança jurídica
SoberaniaAmpla defesa
Concurso públicoContraditório
Desvio de finalidade (vedação a)DignidadeFinalidade
Fiscalização pelo Tribunal de ContasMotivação
RespeitabilidadeAdministração pública (respeito a)
Aperfeiçoamento do serviço públicoAtuação correta e honesta dos servidores
AusteridadeCombate à corrupção
Controle dos recursos públicosCredibilidade do certame
Decência políticaDevido processo legal
DireitoHonorabilidade
IdoneidadeIntegridadeInvestidura
Legislação eleitoral (respeito a)Livre iniciativa
PropriedadeRegular funcionamento da administração
Responsabilidade dos agentes públicosSinceridade e realidade institucional
Sistema financeiro (respeito a)Zelo no trato da coisa pública
91
FONTE: Dados de pesquisa.
3.3.4. Resultados da pergunta n.º 4: A moralidade é referida como princípio central na
questão de fato sob exame? Se sim, ele foi considerado observado ou violado?
Da análise do assunto tratado nos 67 (sessenta e sete) acórdãos da amostra,
constatamos que apenas 15 (quinze) deles, ou 22,4% (vinte e dois vírgula quatro), apontam a
moralidade administrativo como princípio central na questão fática sob julgamento, sendo
que, desses, 4 (quatro) foram julgados em 2012, 2 (dois) em 2013, 1 (um) em 2014, 6 (seis)
em 2015 e 2 (dois) em 2014. E dos 15 (quinze) acórdãos mencionados, 5 (cinco) trouxeram
indicativo de cumprimento ou observação à moralidade administrativa, enquanto 10 (dez)
ostentaram referência à violação do princípio.
Gráfico 4: Número de acórdãos cujo princípio central é a moralidade administrativa
(observada ou violada).
FONTE: Dados de pesquisa.
3.3.5. Resultados da pergunta n.º 5: Houve algum balizamento do conceito de
moralidade? Se sim, por mera afirmação, doutrina ou precedente judicial?
0
1
2
3
4
5
6
7
2012 2013 2014 2015 2016
Observação Violação Total
92
Da leitura dos acórdãos da amostra, observamos que em apenas 10 (dez) deles a
moralidade administrativa recebeu algum balizamento, conceituação, tentativa de definição ou
esclarecimento de sentido, o que representa 14,9% (catorze vírgula nove por cento) do total.
Desses 10 (dez) acórdãos, 5 (cinco) foram julgados em 2012, 2 (dois) em 2013 e 1
(um) nos anos de 2014 a 2016. Em 3 (três) deles, houve um balizamento por meio de citação
de precedente judicial; em outros 3 (três), por meio de citação doutrinária; e em 9 (nove)
verificaram-se esforços de delimitação de conteúdo da moralidade administrativa por meio de
meras afirmações ou opiniões dos julgadores.
Em termos percentuais, 30% (trinta por cento) dos 10 (dez) acórdãos citaram
precedente ou doutrina, enquanto 90% (noventa por cento) deles recorreu a opiniões livres de
referências objetivas. Do total de acórdãos pesquisados, porém, registra-se que apenas 4,5%
(quatro vírgula cinco por cento) fizeram a citação de precedente ou doutrina acerca da
moralidade administrativa, enquanto 13,4% (treze vírgula quatro) trouxeram esforços
conceituais baseados em meras opiniões. Observe-se o gráfico abaixo:
Gráfico 5: Número de acórdãos que trazem algum balizamento da moralidade administrativa
(por precedente, doutrina ou mera afirmação).
FONTE: Dados de pesquisa.
3.3.7. Analisando os resultados da pesquisa através de inferências
0
1
2
3
4
5
6
2012 2013 2014 2015 2016
Cita Precedente Cita Doutrina Mera afirmação Nº de Acórdãos
93
De início, não podemos afirmar que o quantitativo de acórdãos integrantes da
amostra de pesquisa seja pouco ou muito significativo em cotejo com o número total de
acórdãos proferidos pelo STF no mesmo período, uma vez que não possuímos informações
comparativas quanto ao resultado de uma busca de mesmos critérios utilizando a referência
textual a outros princípios ou valores fundamentais à Administração Pública brasileira. Trata-
se do nosso “ponto cego”, por ser informação externa ao nosso universo de casos. Por essa
razão, nos deteremos a comentar os resultados encontrados da análise dos 67 (sessenta e sete)
acórdãos.
Quanto à primeira pergunta, observamos certa regularidade na distribuição de
acórdãos por ano de julgamento, não se percebendo um movimento crescente ou decrescente
nessas referências, apenas uma concentração de casos nos anos de 2014 e 2015.
Já a respeito da segunda pergunta, podemos observar que há uma grande
discrepância entre o número de vezes em que a moralidade é referida, por exemplo, nos anos
de 2012 e 2016. Mesmo que se entenda que o alto índice de frequência do ano de 2012 se
deva ao julgamento conjunto de três ações constitucionais, caso considerássemos apenas um
dos três acórdãos (cujo teor é quase idêntico), o ano de 2012 ainda contaria com o maior
número de referências textuais à moralidade administrativa – 182 (cento e oitenta e duas) –
numa divergência flagrante em relação às 21 (vinte e uma) aparições do princípio nos
acórdãos de 2016.
Por sua vez, os resultados da terceira pergunta nos permitem visualizar o quanto a
moralidade administrativa aparece nos acórdãos do STF atrelada a outros princípios,
denotando o hábito de ser expresso junto a certos valores complementares ou de
complementar o significado de outros valores. Observa-se essa situação em 68,8% (sessenta e
oito vírgula oito por cento) do total de referências.
Sobressai-se, dentre esses valores ou princípios “acessórios”, o da probidade
administrativa, que aparece junto à moralidade por 231 (duzentas e trinta e uma) vezes. Isso
representa 51,3% de todas as vezes em que a moralidade apareceu ladeada de outro valor ou
princípio. Outra observação curiosa é que o número de vezes em que a moralidade
administrativa é citada ao lado da probidade é maior que o número de vezes em que a
moralidade é citada sozinha – 204 (duzentas e quatro). Portanto, os ministros aparentam estar
mais confortáveis em citar moralidade e probidade administrativa juntas que apenas
moralidade administrativa, o que aponta para uma inconsistência na percepção do significado
94
de cada um desses princípios, razão pela qual optam em citá-los juntos para que um reforce o
outro.
A probidade também é citada em vários acórdãos nos quais se tenta apontar o
conteúdo da moralidade administrativa, o que reforça a ideia de confusão entre ambos os
conceitos, segundo será detalhado mais abaixo.
Os resultados da quarta pergunta são interessantes para visualizar que, embora
seja citada como fundamentação argumentativa das decisões dos ministros, apenas em 15
(quinze) doas 67 (sessenta e sete) casos a moralidade administrativa é tratada como o
princípio central a ser aplicado ao caso concreto para se chegar a uma solução justa. Esse
quantitativo representa 22,4% (vinte e dois vírgula quatro por cento) dos casos. Desses, fala-
se em violação à moralidade em 2/3 (dois terços) dos acórdãos, enquanto a sua observação
(ou falta de provas de violação) é estatuída em somente 1/3 (um terço) das decisões.
Tais resultados reforçam a constatação de que, muitas vezes, a moralidade é usada
apenas como um reforço argumentativo-retórico do magistrado, e não como princípio jurídico
específico a ser aplicado ao caso concreto. Da mesma forma, mostra-se mais comum apontar
aquilo que nega a moralidade administrativa do que aquilo que a reforça, ou seja, na
dificuldade de se definir do que se trata a moralidade administrativa, o ministro prefere
apontar casuisticamente situações que não se enquadram na moralidade administrativa do que
reconhecer as que se enquadram.
Por fim, a quinta pergunta traz observações valiosas para a verificação da nossa
hipótese de pesquisa. Dos 67 (sessenta e sete) acórdãos analisados, verificamos que em
apenas 10 (dez) deles existem esforços de balizamento, delimitação ou fixação conceitual
acerca da moralidade administrativa. Isso significa que numa maioria de 85,1% (oitenta e
cinco vírgula um por cento) dos casos, a moralidade administrativa é citada em passant, como
se seu significado fosse perfeitamente conhecido pelas partes litigantes e demais magistrados,
prescindindo de qualquer esclarecimento. Uma vez que tal clareza de sentido não se sustenta,
diante das observações feitas nos capítulos anteriores, pode-se concluir que, na verdade, os
ministros evitam a problematização do significado da moralidade administrativa.
Assim, apenas em 14,9% (catorze vírgula nove por cento) dos acórdãos houve
alguma delimitação de sentido do princípio da moralidade administrativa. Desses, 90%
(noventa por cento) fizeram o balizamento utilizando meras afirmações do magistrado, sem a
indicação de qualquer fonte de dados, tal qual um precedente judicial ou uma obra
doutrinária. Destacou-se a assertiva de que a probidade administrativa é um dos ou o principal
95
conteúdo da moralidade administrativa (AP 470/MG, ADC 29/DF, ADC 30/DF e ADI
4578/AC) ou que a lealdade o seja (MS 28720/DF).
Dos 10 (dez) acórdãos contendo balizamentos, apenas 30% citaram alguma fonte
doutrinária ou jurisprudencial, isto é, 3 (três) acórdãos de uma amostra total de 67 (sessenta e
sete). E desses 3 (três) que citaram doutrina e dos 3 (três) que citaram precedentes, 2 (dois)
acórdãos (AC 3585 AgrR/RS e Pet 3047 AgR/DF) pertencem a ambos os grupos e citam a
mesma obra doutrinária94
, o mesmo precedente judicial95
e as mesmas afirmações96
sobre a
moralidade administrativa, denotando que o mais antigo (AC 3585 AgrR/RS) teve sua
fundamentação aproveitada pelo acórdão mais recente (Pet 3047 AgR/DF).
Portanto, delimitar conceitualmente a moralidade administrativa foi algo raro nos
acórdãos pesquisados, o que corrobora a hipótese de que a moralidade administrativa é
referida no direito brasileiro sem esclarecimentos de sentido. Por outro lado, a constatação de
que, quando existe algum balizamento conceitual do princípio em exame, isso é feito através
das meras opiniões ou ideias do jurista, sem qualquer fonte objetiva de dados, reforça o
argumento de que a moralidade administrativa é frequentemente referida ao arbítrio do
julgador. Por fim, a ínfima quantidade de fontes doutrinárias e jurisprudenciais a embasar a
utilização da moralidade administrativa aponta para uma necessidade premente de se
fortalecerem os estudos acerca do conceito e de regras gerais para a aplicação concreta do
princípio em exame.
3.3.8. Posicionar-se é encarar o desafio: o exemplo do ministro Teori Zavascki
Um dos acórdãos analisados chamou-nos a atenção pelos debates travados entre
os ministros justamente acerca da delimitação conceitual da moralidade administrativa e de
94 “Princípios Constitucionais da Administração Pública”, p. 191, item n. 3.3, 1994, Del Rey, da doutrinadora e
também ministra da Suprema Corte, Carmem Lúcia Antunes da Rocha. 95 Voto do ministro Carlos Velloso na Rcl 2138/DF. 96 Confiram-se os trechos meramente afirmativos: “Nesse contexto, vale referir que o princípio da moralidade
administrativa (que tem, na Lei nº 8.429/92, poderosíssimo instrumento de sua concretização, na medida em que
legitima a punição do „improbus administrator‟) qualifica-se como valor constitucional impregnado de substrato
ético, erigido à condição de vetor fundamental que rege as atividades do Poder Público, como resulta da
proclamação inscrita no art. 37, „caput‟, da Constituição da República. (...) Na realidade, e especialmente a partir
da Constituição promulgada em 1988, a estrita observância do postulado da moralidade administrativa passou a
qualificar-se como pressuposto de validade dos atos que, fundados, ou não, em competência discricionária,
tenham emanado de autoridades ou órgãos do Poder Público (...)”
96
sua aplicação no caso concreto: o RE 405386/RJ, julgado em 26/02/2013, sob a relatoria da
ministra Ellen Gracie. O acórdão trata da instituição de pensão vitalícia à viúva de um ex-
prefeito de Porciúncula/RJ, por meio de lei municipal, o que, segundo a relatora, era um
privilégio que agredia frontalmente os valores jurídicos contidos no art. 37 da Constituição
Federal, “notadamente os princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa, esta
qualificada, no caso dos autos, pela manifesta lesividade ao erário municipal, impondo-se a
condenação prevista no art. 3º da Lei n.º 7.347/85”.
Diante da fundamentação dada pela relatora, o ministro Eros Grau pediu vista dos
autos, afirmando que o aspecto da moralidade o preocupava muito, pois temia “um dia
rompermos a garantia da certeza e segurança jurídica e substituirmos o direito pela moral”.
Posteriormente, em seu voto-vista, o ministro asseverou que:
Deveras, o conteúdo desse princípio há de ser encontrado no interior do próprio
direito, até porque a sua contemplação não pode conduzir à substituição da ética da
legalidade por qualquer outra. Vale dizer, não significa uma abertura do sistema
jurídico para a introdução, nele, de preceitos morais. O que importa assinalar, ao
considerarmos a função do direito positivo, o direito posto pelo Estado, é que este o
põe de modo a constituir-se a si próprio, enquanto suprassume a sociedade civil, conferindo concomitantemente a ela a forma que a constitui. Nessa medida, o
sistema jurídico tem de recusar a invasão de si próprio por regras estranhas a sua
eticidade própria, advindas das várias concepções morais ou religiosas presentes na
sociedade civil, ainda que isto não signifique o sacrifício de valorações éticas.
Ocorre que a ética do sistema jurídico é a ética da legalidade. E não pode ser outra,
senão esta de modo que a afirmação, pela Constituição e pela legislação
infraconstitucional, do princípio da moralidade o situa, necessariamente, no âmbito
desta ética, ética da legalidade, que não pode ser ultrapassado, sob pena de
dissolução do próprio sistema.
Isto posto, compreenderemos facilmente esteja confinado, o questionamento da
moralidade da Administração, nos lindes do desvio de poder ou de finalidade. Qualquer questionamento para além desses limites estará sendo postulado no quadro
da legalidade pura e simples. Essa circunstância é que explica e justifica a menção, a
um e a outro princípios, na Constituição e na legislação infraconstitucional.
Permitam-me que eu insista neste ponto: a moralidade da Administração somente
pode ser concebida por referência à legalidade.
Para lastrear sua primeira afirmativa, Eros Grau cita o seu “O direito posto e o
direito pressuposto”, 6ª ed., Malheiros Editores: São Paulo, 2005, p. 286 e ss. A preleção
supra abertamente aproxima o ministro da corrente doutrinária que defende a submissão da
moralidade à legalidade e a situa no âmbito do desvio de finalidade. Todavia, o ministro não
segue apontando argumentos que embasem o reconhecimento ou não do desvio de finalidade
no caso concreto. Em vez disso, Eros Grau assevera não pensar que houve desvio de
finalidade na situação em tela, mas usa argumentos estranhos à matéria – não tratando de
finalidade ou poder – para defender seu posicionamento.
97
Primeiramente, afirmou que a pensão foi concedida por lei tomada em sentido
formal ou de ato administrativo, datada de 1986, sendo-lhe inaplicável o art. 37 da
Constituição Federal de 1988, cuja aplicação não é retroativa. Em segundo lugar, citou
precedentes do STF e de outros órgãos sobre a constitucionalidade das chamadas pensões
especiais. Depois, voltou a afirmar que não via desvio de poder ou finalidade no caso, sem
esclarecer o sentido dessa expressão, e passou a questionar o que seria uma “arbitrariedade
legislativa”, conforme citado pela relatora, concluindo por confundir-se com o princípio da
constitucionalidade. Por fim, diz não estar ferido esse princípio em virtude de a situação
encontrar abrigo sobretudo no art. 3º, I, da Carta Maior97
.
Em seguida, pediu vista do processo o ministro Cezar Peluso, que se aposentou
antes de proferir o voto, sendo sucedido nesse mister pelo ministro Teori Zavascki, cujo voto
demonstra a coragem e a lucidez de uma digressão teórica sobre o princípio da moralidade,
enfocando a necessidade de se examinar o elemento subjetivo no caso concreto. Os trechos do
voto que dizem respeito ao princípio em estudo merecem transcrição literal, com grifos
nossos:
Resta saber se a lei municipal em causa é, em sua substância, passível de anulação,
em face do princípio da moralidade. Embora se trate de lei anterior à Constituição de
1988, a discussão se travou a partir de referências a dispositivos da nova Carta,
especialmente porque o princípio da moralidade, implicitamente previsto no
regime constitucional anterior, foi intimamente associado, aqui, ao princípio da isonomia, comum a todas as Constituições.
Não há dúvida de que a lei deu tratamento privilegiado – e, portanto, anti-isonômico
- a certa pessoa, mas também isso, por si só, não pode ser considerado “imoral”.
Para tanto, seria indispensável demonstrar que o tratamento discriminatório não tem
qualquer motivo razoável. O que a Constituição proíbe não é, propriamente, o
tratamento privilegiado, mas a concessão de privilégios injustificados e
injustificáveis. Um mínimo de investigação a respeito das causas que
determinaram o tratamento privilegiado seria, portanto, indispensável à
declaração de nulidade por “imoralidade”. Convém enfatizar – e aqui pedimos
licença para invocar o que registramos em sede doutrinária (Processo Coletivo –
tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos, 5ª ed., P:RT, 2.011, p. 82 e
seguintes) - que a moralidade, tal como erigida na Constituição - como princípio da Administração Pública(art. 37) e como requisito de validade dos atos administrativos
(art. 5.º,LXXIII) -, não é, simplesmente, um puro produto do jusnaturalismo, ou
da ética, ou da moral, ou da religião. É o sistema de direito, o ordenamento
jurídico , sobretudo, o ordenamento jurídico-constitucional a sua fonte por
excelência, e é nela que se devem buscar a substância e o significado do referido
princípio. É certo que os valores humanos, que inspiram o ordenamento jurídico e a
ele subjazem, constituem, em muitos casos, inegavelmente, a concretização
normativa de valores retirados da pauta dos direitos naturais, ou do patrimônio ético
e moral consagrado pelo senso comum da sociedade. Sob esse aspecto, há, sem
97 O dispositivo em questão fala que um dos objetivos da república brasileira é a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária. Tal abrangência não embasa diretamente a concessão de benefício discutida no caso
concreto, razão pela qual consideramos a fundamentação do ministro para o tal “princípio da
constitucionalidade” e, portanto, para a inocorrência de desvio de finalidade, deveras lacunosa.
98
dúvida, vasos comunicantes entre o mundo da normatividade jurídica e o mundo
normativo não jurídico (natural, ético, moral), razão pela qual esse último, tendo
servido como fonte primária do surgimento daquele, constitui também um
importante instrumento para a sua compreensão e interpretação. É por isso mesmo
que o enunciado do princípio da moralidade administrativa – que, repita-se,
tem natureza essencialmente jurídica – está associado à gama de virtudes e
valores de natureza moral e ética: honestidade, lealdade, boa-fé, bons costumes,
equidade, justiça. São valores e virtudes que dizem respeito à pessoa do agente
administrativo, a evidenciar que os vícios do ato administrativo por ofensa à
moralidade são derivados de causas subjetivas, relacionadas com a intimidade
de quem o edita: as suas intenções, os seus interesses, a sua vontade. Ato
administrativo moralmente viciado é, portanto, um ato contaminado por uma
forma especial de ilegalidade: a ilegalidade qualificada por elemento subjetivo
da conduta do agente que o pratica. Estará atendido o princípio da moralidade
administrativa quando a força interior e subjetiva que impulsiona o agente à
prática do ato guardar adequada relação de compatibilidade com os interesses
públicos a que deve visar a atividade administrativa. Se, entretanto, essa
relação de compatibilidade for rompida – por exemplo, quando o agente, ao
contrário do que se deve razoavelmente esperar do bom administrador, for
desonesto em suas intenções, for desleal para com a Administração Pública,
agir de má-fé para com o administrado, substituir os interesses da sociedade
pelos seus interesses pessoais –, estará concretizada ofensa à moralidade
administrativa, causa suficiente de nulidade do ato. A quebra da moralidade
caracteriza-se, portanto, pela desarmonia entre a expressão formal (= a aparência) do
ato e a sua expressão real (= a sua substância), criada e derivada de impulsos
subjetivos viciados quanto aos motivos, ou à causa, ou à finalidade da atuação
administrativa. É por isso que o desvio de finalidade e o abuso de poder (vícios
originados da estrutura subjetiva do agente) são considerados efeitos
tipicamente relacionados com a violação à moralidade. Pode-se afirmar, em
suma, que a lesão ao princípio da moralidade administrativa é, rigorosamente,
uma lesão a valores e princípios incorporados ao ordenamento jurídico,
constituindo, portanto, uma injuridicidade, uma ilegalidade lato sensu.
Todavia, é uma ilegalidade qualificada pela gravidade do vício que contamina a
causa e a finalidade do ato, derivado da ilícita conduta subjetiva do agente.
O registro dessas premissas é importante para reafirmar a indispensabilidade da
investigação do elemento subjetivo da conduta dos agentes públicos como condição
inafastável para caracterizar a violação ao princípio da moralidade administrativa e,
com base nele, anular o ato.
Com o voto acima, o ministro Teori Zavascki diferenciou-se de todos os demais
ministros da corte, nos julgamentos dos últimos 5 (cinco) anos. Ele rompeu o ciclo de
negligência ao sentido objetivo do princípio da moralidade e posicionou-se claramente a esse
respeito, enfatizando a moralidade enquanto princípio eminentemente jurídico, que prestigia
os valores do ordenamento mas é aberto à pauta dos direitos naturais e ao patrimônio ético e
moral consagrado pelo senso comum da sociedade, o “mundo normativo não jurídico”, que
ajuda na compreensão e interpretação do princípio.
Além disso, o ministro apontou um elemento concreto a ser examinado a fim de se
constatar a violação ou observação da moralidade administrativa: a intenção do agente.
Assim, estaria observado o princípio da moralidade quando a subjetividade do agente público
fosse compatível com os interesses públicos a que deve visar a atividade administrativa; e
99
estaria violado o princípio quando tal atitude subjetiva fosse desonesta em suas intenções,
desleal para com a Administração Pública, agisse de má-fé para com o administrado e
substituísse os interesses da sociedade pelos seus interesses pessoais.
Percebe-se no posicionamento do ministro a centralidade da busca do interesse
coletivo como ponto distintivo de uma intencionalidade do agente público compatível com a
moralidade administrativa. Tal entendimento guarda forte congruência com o surgimento da
moralidade administrativa na doutrina de Maurice Hauriou, Renato Alessi e diversos outros
administrativistas, como Antônio Brandão, Diogo Moreira Neto e José Guilherme
Giacomuzzi, conforme se viu no capítulo anterior.
Após o voto de Teori Zavascki, o ministro Gilmar Mendes reafirmou a
problemática inicial deste trabalho, afirmando que: “em muitos casos, o que se aponta, a
pretexto de invocar o princípio da moralidade, é uma flagrante violação ao princípio da
Isonomia, princípio da igualdade, num caso de discriminação arbitrária, não fundamentada” e,
ainda, “devemos ter cuidado para que a moralidade não se torne esse tipo de pedra de toque
que vai resolver todos os nossos anseios e desejos, em matéria de jurisdição constitucional”.
Por fim, corroborou o entendimento divergente do colega catarinense.
Dessa forma, observa-se que, a despeito de o conjunto dos acórdãos recentes do
STF permitir a verificação da hipótese de pesquisa proposta anteriormente, de que
amoralidade administrativa é referida no direito brasileiro, em regra, sem qualquer
delimitação conceitual objetiva, à mercê de casuísmos dispersos dos julgadores, o ministro
Teori Zavascki, no voto proferido no RE 405386/RJ constitui um ponto fora da curva, por ir
de encontro à tendência dos demais ministros nos demais acórdãos, propor balizamentos
objetivos para a moralidade administrativa e apontar elementos concretos a serem observados
na situação em exame a fim de considerá-lo observado ou violado, baseado no conceito
central de interesse público.
Diante desse posicionamento convergente com o arcabouço doutrinário delineado
no capítulo anterior, pretende-se em estudos posteriores aprofundar o estudo teórico dessa
proposta de balizamento esposada pelo ministro. Diante de seu recente falecimento, esse voto
é um dos muitos legados deixados por Teori Zavascki para o direito brasileiro.
100
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: TRAÇANDO LINHAS PARA UM POSSÍVEL
BALIZAMENTO DO PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA
Os desencontros na delimitação de sentido do princípio da moralidade
administrativa foram a tônica do presente trabalho, que se iniciou a partir da contextualização
do tema no âmbito do pós-positivismo filosófico e do governo democrático. Seguiu-se uma
pesquisa bibliográfica sobre os estudos administrativistas da matéria, finalizando o trabalho
com uma pesquisa de dados sobre os balizamentos da moralidade administrativa nos acórdãos
do STF entre os anos de 2012 a 2016.
Sumarizando o conteúdo abordado, pode-se iniciar afirmando que o caráter
programático da Constituição Cidadã – primeiro diploma constitucional pátrio a dispor
explicitamente sobre a moralidade administrativa – remete ao desenvolvimento de uma
corrente jusfilosófica contemporânea de retomada de valores morais na ordem jurídica. Tal
resgate filosófico somou-se ao desenvolvimento de uma teoria política democrática, que
reconheceu os desgastes de uma democracia representativa de “baixa intensidade” e construiu
o apelo a uma nova cultura democrática participativa e à volta da publicização da esfera
política, como alternativas à crise política de abandono da esfera público-política pelos
cidadãos.
Analisou-se igualmente outra crise de suma relevância para o resgate dos valores
ético-morais no agir em sociedade: a do liberalismo econômico e da irrefreada e
pretensamente racional busca do autointeresse na consumação do capitalismo de mercado.
Observa-se uma forte corrente de pensamento que reconhece o desgaste sofrido pela teoria
econômica neoclássica em virtude das consequências socialmente deletérias do fomento
individualista e da segregação promovida entre economia e moralidade, advogando o retorno
do exercício econômico à sua concepção primeira, no aspecto cultural e propriamente
científico, de busca do interesse coletivo.
Em seguida, refletiu-se sobre a corrupção na esfera pública brasileira, a partir da
sua relação com a democracia e dos reflexos de uma cultura patrimonialista, desafiada por
uma crescente insatisfação popular contra os desmandos dos agentes públicos envolvidos em
escândalos de corrupção. Nesse impasse ganha relevo o maior esclarecimento da população a
respeito do papel dos agentes públicos e de seus desvios, pela imprensa, meios de
101
comunicação virtuais e pelo aumento do nível de instrução, que implicam maior fiscalização
das ações dos homens públicos e de exigência por um feedback pós-eleições.
Posteriormente, resgatou-se a origem sistematizada do instituto jurídico da
moralidade administrativa, que remonta ao controle dos desvios do poder na seara do direito
francês. Tratou-se de seu desenvolvimento em outros países europeus e da controvérsia
doutrinária que se instalou na doutrina brasileira quando da recepção desse instituto e de sua
aplicação ao âmbito público. Assim, de Maurice Hauriou a Antônio José Brandão e Hely
Lopes Meirelles, a moralidade administrativa desenvolveu-se e consagrou-se como
contraponto à legalidade formal dos atos administrativos. Os doutrinadores brasileiros
perpetuaram os debates acerca da relação entre moralidade e legalidade, alguns polarizando-
se entre a vedação ou fomento de interferências morais no direito, outros defendendo uma
complementariedade entre ambas as ideias ou a desnecessidade de controverter-se ante a
nomenclaturas, se compreendida a finalidade de cada princípio.
Destacou-se, em seguida, que a moralidade administrativa está prevista como
garantia fundamental do cidadão e como princípio da Administração Pública em duas
Constituições axiológicas modernas: a brasileira e a colombiana. No Brasil, porém, esse
instituto possui importância sem precedentes, constando expressamente no artigo 37, caput,
artigo 5º, LXXIII e artigo 14, §9º, da Constituição Cidadã – este último sob uma feição
político-administrativa.
Todos os mencionados dispositivos constitucionais tiveram sua eficácia
regulamentada ou alargada por diversos diplomas legais, como a Lei de Improbidade
Administrativa, Lei do Processo Administrativo Federal, Lei da Ficha Limpa e Lei da Ação
Popular. Contudo, em nenhum dispositivo constitucional ou legal a moralidade administrativa
é taxativamente definida ou prevista individualmente, fora do contexto de outros princípios ou
normativas de direito público.
Essa falta de definição legal faz da moralidade administrativa um conceito
indeterminado, mas não discricionário, pois decorre do fato de que a medida concreta para sua
aplicação em um caso particular não resolve ou determina com exatidão a própria lei que o
previu ou de cuja aplicação trata. A diferença entre ambos é fundamental para o escopo deste
trabalho: enquanto o conceito discricionário enseja um processo volitivo de discricionariedade
ou de liberdade de eleição entre indiferentes jurídicos, o conceito indeterminado mantém a
perspectiva de alcançar a solução justa, devendo ser aplicado por referência a critérios de
102
valor ou de experiência a serem ponderados juridicamente segundo o sentido da lei que o
prevê e as consequências reais de sua aplicação.
Portanto, a observação e determinação dos critérios e valores utilizados para a
ponderação da aplicabilidade da moralidade administrativa em cada caso concreto faz parte da
ontologia desse princípio. Não obstante, persistiu na doutrina e na legislação uma incômoda
abertura e vagueza no tocante aos parâmetros conceituais de aplicação da moralidade
administrativa. Esse mesmo cenário se repetiu na análise dos julgados do STF, inicialmente
buscados por amostragem e em seguida analisados mediante a problemática, hipótese,
metodologias de verificação e conclusões baseadas na análise de dados de uma pesquisa
empírica, tomando-se essa análise enquanto representativa do direito brasileiro.
Nessa etapa final do trabalho, inicialmente foram feitas breves considerações
acerca da importância da pesquisa empírica no direito e das características de uma pesquisa de
análise de acórdãos. Em seguida, detalhou-se todo o procedimento e os meios utilizados para
a seleção e análise dos dados pesquisados, partindo da seguinte pergunta-problema: o
princípio da moralidade administrativa vem sendo referido no direito brasileiro a partir de
conceitos ou balizamentos objetivos?
Para tentar responder ao questionamento, escolhemos analisar a jurisprudência
recente do STF, nos últimos cinco anos (de 2012 a 2016), acessada pela plataforma virtual de
jurisprudência da Corte, buscando por todos os acórdãos que tenham se referido
expressamente à moralidade administrativa. Obtivemos um quantitativo de 67 (sessenta e
sete) acórdãos, que foram analisados a partir de cinco perguntas: 1) Qual a data de
julgamento?; 2) Quantas vezes a moralidade é citada?; 3) Quantas vezes a moralidade é
referida junto a outros princípios ou valores? Quais e por quantas vezes cada um?; 4) A
moralidade é referida como princípio central na questão de fato sob exame? Se sim, ele foi
considerado observado ou violado?; 5) Houve algum balizamento do conceito de moralidade?
Se sim, por mera afirmação, doutrina ou precedente judicial?
A partir dos resultados obtidos, representados graficamente e devidamente
analisados, pudemos concluir que, de fato, a moralidade administrativa é majoritariamente
referida na jurisprudência recente da Suprema Corte – enquanto representativa do direito
brasileiro – sem qualquer tentativa de delimitação ou esclarecimento acerca de quais condutas
abarca, seja em sua violação (definição negativa) ou observação (definição positiva). Além de
frequentemente vir acompanhada por outros valores ou princípios – especialmente o da
103
probidade administrativa – demonstrando a dificuldade em referir-se a ela individualmente,
por seu próprio significado.
Com efeito, nos poucos casos em que se verificou algum balizamento sobre o
conteúdo desse princípio, preponderaram as meras afirmações do magistrado, sem referências
doutrinárias ou jurisprudenciais, demonstrando o quanto a moralidade administrativa
encontra-se suscetível ao arbítrio do julgador. Como uma exceção à regra, destacou-se o
julgamento do RE 405386/RJ, no qual o ministro Teori Zavascki expõe um posicionamento
claro sobre o alcance da moralidade administrativa, afirmando-lhe imprescindível o exame da
intenção do agente público de atuar contra o interesse público.
Assim, em todos os contextos abordados – doutrinário, legislativo e
jurisprudencial – reconheceram-se lacunas na construção de um sentido próprio da moralidade
administrativa no direito brasileiro. Essa vagueza de significado representa um fator de
insegurança jurídica que pode ensejar um discurso cego de moralização da Administração
Pública, passível de manipulação pelos grupos políticos mais expressivos na formação da
opinio populi.
Dessa forma, sem esquecer que a moralidade administrativa é conceito
indeterminado inserto no mundo do direito, cuja aplicação pressupõe a busca da solução justa
em cada caso concreto, afirma-se, em conclusão de toda a pesquisa ora culminante, a
necessidade de integrar referidas lacunas conceituais, a fim de preservar a segurança jurídica e
a efetividade do princípio em estudo. Tal escopo requer a análise da moralidade
administrativa de maneira associada à sua dimensão sistêmica, incorporada que está ao
próprio ordenamento, bem como à sua dimensão prática, enquanto viabilizadora da proteção
dos direitos e garantias dos cidadãos frente aos agentes públicos.
Embora a moralidade administrativa já produza efeitos no cenário jurídico pátrio,
identificaram-se poucos ecos de referências doutrinárias, legislativas e jurisprudenciais
específicas defendendo uma linha argumentativa para sua construção de sentido. Resta
premente a realização de mais estudos para uma construção de sentido clara acerca do núcleo
comum entre os fatos jurídicos considerados violadores da moralidade no direito brasileiro.
Nessa busca de integração conceitual, relevamos a proposta do inciso III da Seção
I do Código de Ética dos Servidores Públicos Civis Federais (Decreto n.º 1.171/1994), que
lança um caminho interpretativo para a moralidade administrativa, não focado em sua
definição abstrata, mas em sua aplicação prática. O dispositivo pondera que a moralidade da
104
Administração Pública passa pela distinção do bem e do mal e completa-se pela ideia de que
“o fim é sempre o bem comum”, afirmando que o equilíbrio entre legalidade e finalidade “é
que poderá consolidar a moralidade do ato administrativo”.
Espelhando a abordagem do dispositivo acima, parece-nos que o labor de
identificar a violação ou observação à moralidade administrativa se amolda mais à busca de
critérios e balizamentos objetivos que de análises subjetivas ou definições taxativas, a fim de
instruir o jurista e o cidadão na interpretação casuística desse princípio. Pensar, portanto, a
possibilidade de condicionantes objetivas nos casos a serem analisados, com vistas a orientar
sua aplicação.
Partindo desse princípio de que a moralidade administrativa se integraria na busca
do bem comum enquanto finalidade essencial do ato administrativo (a ser equilibrada pela
legalidade), uma alternativa de balizamento seria a digressão acerca do cunho intrinsecamente
político-democrático da busca do bem comum. Isso implicaria aproximar o sentido de
moralidade administrativa da própria razão de ser da Administração Pública e da democracia
no Brasil contemporâneo, relacionando-o diretamente à superposição do interesse público
sobre os interesses particulares.
Tendo em vista as limitações concretas que envolveram a elaboração do presente
trabalho, tal observação conclusiva será melhor abordada e desenvolvida em estudos
posteriores, contando com o aprofundamento interdisciplinar do tema no campo da ciência
política e da filosofia do direito.
105
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