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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CANÇÃO POPULAR NAS COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE:
ANÁLISE DO PAPEL EDUCATIVO E SOCIAL NAS DÉCADAS
DE 70/80 EM LAGES/SC
LÚCIA DENISE DE SOUZA COSTA
Orientadora: Cristiana de Azevedo Tramonte
Florianópolis
2008
LÚCIA DENISE DE SOUZA COSTA
CANÇÃO POPULAR NAS COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE: ANÁLISE DO
PAPEL EDUCATIVO E SOCIAL NAS DÉCADAS
DE 70/80 EM LAGES/SC
Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do grau de Mestre, no Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientação da Professora Cristiana de Azevedo Tramonte.
Florianópolis
2008
DEDICATÓRIA
Ao meu esposo Francisco e aos meus filhos
Guilherme, Mayara , Maurício e Gyovanna,
com amor, admiração e gratidão por toda
compreensão, carinho, presença e incansável
apoio ao longo do período de elaboração deste
trabalho.
Aos meus pais José (in memorian) e Gessy,
pelo incentivo, pelas orações e pelo exemplo
de fé e de coragem.
EU SOU TRABALHADOR / SOU
COMPANHEIRÃO / MAS DE PROMESSAS
COMIGO NÃO.
Estamos em tempo de eleição / promessas não
faltam na televisão / Só promessa engana /
engana o peão / tudo acaba no dia que
termina a eleição... /
Quem votou se arrependeu / Pois o cruzado
desapareceu / foi mentira, mentira / que os
home elegeu / E o povo comendo / O pão que
o diabo não comeu..
Nosso voto é uma arma / Pra lutar com o
tubarão / Não troque sua consciência por um
pedaço de pão / Mas comigo não!
(NAEP, Lages, anos 80)
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo dom da vida e pela oportunidade de haver realizado esta pesquisa.
À Dra. Cristiana de Azevedo Tramonte, pela atenção e apoio durante o processo de
definição e orientação deste trabalho de pesquisa. Como orientadora e amiga, soube cobrar,
mas também não mediu esforços em oferecer todas as condições necessárias à realização do
presente trabalho.
Aos Professores da linha de pesquisa EMS (Educação e Movimentos Sociais),
UFSC, que muito contribuíram para meu crescimento científico e intelectual.
À Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC - e ao Programa de Pós
Graduação em Educação – PPGE - pela realização do presente trabalho.
Ao CNPq, pela bolsa de estudo concedida.
A Dom Oneres Marchiori, Bispo da Diocese de Lages, pela disponibilidade e
colaboração. Todas as vezes em que foi procurado ele prontificou-se a ir além da simples
resposta à informação que lhe era solicitada.
Ao Monsenhor Andréas Wiggers, pelo carisma, dedicação e conhecimento
transmitido todas as vezes em que foi solicitado.
À Profª Elza Marina Moretto, secretária da Educação do Município de Lages no ano
de 2006, pelo apoio a esta pesquisadora durante a realização do Curso e a elaboração da
Pesquisa.
À Doutora Neide Catarina Turra, mediadora e amiga, pelo conhecimento, pelo apoio
técnico e moral e pelo incentivo, desde o início do desenvolvimento desse trabalho. “Obrigada
por tudo!”.
À Antonia Salete, irmã e amiga, pela acolhida em sua casa, semanalmente, em cada
viagem minha a Florianópolis durante esses dois anos de Curso.
À Teresa Setti de Liz, pelo carinho, competência e dedicação quando da revisão do
texto. “Muito aprendi contigo!”
Aos colegas de trabalho, em especial, à Marilda, por acreditar e ‘dar força’ nos
momentos mais difíceis desta trajetória.
Aos entrevistados, que muito contribuíram no resgate da história da Canção Popular
nas CEBs de Lages. Sua colaboração foi de grande importância para a realização deste
trabalho.
Aos amigos de Lages que viram na minha ausência um motivo para que eu
alcançasse a realização pessoal e profissional.
À minha família: minha mãe, minhas irmãs, meus irmãos por todo o carinho e afeto.
Ao meu esposo e aos meus filhos. Este é um agradecimento especial por haverem
entendido as muitas vezes em que foram deixados de lado até à conclusão deste trabalho.
Às amizades conquistadas durante os dois anos de curso, especialmente Rosimeri,
Karina e Dione, “amigas, irmãs, camaradas”.
A todas as pessoas que, mesmo não estando aqui citadas, estiveram ao meu lado
durante esta jornada tão importante.
“Graças a Deus que a gente ainda canta!”
(Dom Oneres Marchiori/Bispo da Diocese de Lages – Pixirum das CEBs julho 2007)
RESUMO
Neste trabalho de pesquisa buscou-se apresentar a Canção Popular traçando o resgate do papel social e educativo desempenhado por essa canção nos movimentos sociais denominados Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), em Lages, Santa Catarina, nos anos 70 e 80 do século XX. Fez-se a apresentação dos Movimentos Sociais mais significativos e de suas atividades, desenvolvidas sempre ao som das canções, criadas ou adaptadas, com finalidade específica, por esses movimentos, dentre os quais foram citados neste trabalho, com maior destaque, o Vianei (Centro de Educação Popular Vianei) e o NAEP (Núcleo Alternativo de Educação Popular), dois importantes segmentos participantes das CEBs de Lages. Entrevistas, recortes de canções, buscas em cartilhas e documentos permitiram verificar a utilização da Canção Popular, no período pesquisado, como uma forma alternativa para os participantes de CEBs se pronunciarem, em um momento histórico em que a liberdade de expressão era restringida pelo regime político vigente. Em Lages, nos diversos movimentos destacados nesta pesquisa, percebe-se a Canção Popular dando visibilidade às reivindicações, denunciando e promovendo ações que levam à mudança da realidade e sugerindo reflexões sobre sentimentos e atitudes de um coletivo que se une contra injustiças e exclusões.
Palavras-chave: Canção Popular. Canções. CEBs. Participação. Movimentos Sociais.
ABSTRACT
In this research work it was looked for to present the Popular Song drawing the rescue of the social and educational paper carried out by that song in the social movements denominated Comunidades Eclesiais of Base (CEBs), in the city of Lages, Santa Catarina, in the years 70 and 80 of the century XX. It was did the presentation of the most significant Social movements and of their activities, always developed to the sound of the songs created or adapted, with specific purpose, by these movements, among which were mentioned in this work, with larger prominence, Vianei (Center of Popular Education Vianei) and NAEP (Alternative Nucleus of Popular Education), two important participant segments of CEBs of Lages. Interviews, cuttings of songs, searches in spelling books and documents allowed to verify the use of the Popular Song, in the researched period, as an alternative way for the participants of CEBs pronounce them selves, within a historical moment in that the freedom of expression was restricted by the effective political system. In Lages, in the several outstanding movements in this research, it is noticed the popular song giving visibility to the claims, denouncing and promoting actions that take to the change of the reality and suggesting reflections about feelings and attitudes of a collectivity that he/she joins against injustices and exclusions.
Key-words: Popular Song. Songs. CBEs. Participation. Social Moviments.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 Mapa do município de Lages, SC. ........................................................................ 15
Figura 2 Mapa do bairro Habitação do município de Lages, SC ........................................ 39
Figura 3 Mapa da Região Serrana do Estado de Santa Catarina ......................................... 53
LISTA DE ANEXOS
Anexo A Romaria da Terra ................................................................................................. 123
Anexo B Comissão Pastoral da Terra e a luta pela reforma agrária.................................... 124
Anexo C Reunião de conscientização na comunidade ........................................................ 125
Anexo D Conscientização: dinâmica do tubarão e os peixinhos......................................... 126
Anexo E Conscientização: dinâmica dos burrinhos ............................................................ 127
SUMÁRIO
RESUMO............................................................................................................................ 7
ABSTRACT ....................................................................................................................... 8
LISTA DE ILUSTRAÇÕES ............................................................................................. 9
LISTA DE ANEXOS ......................................................................................................... 10
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 13
Origens históricas da pesquisadora. Universo da pesquisa. Percurso metodológico .......... 13
1 ASPECTOS SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAIS DO MUNICÍPIO DE LAGES ..... 19
1.1 Compondo o cenário de Lages: das fazendas à cidade dos coronéis............................. 19
1.2 Diversidade cultural da população de Lages ................................................................. 26
1.3 “A força do povo” – Integração comunitária para construir cidadania ......................... 32
1.4 Participação popular: espaço de convivência e identidade coletiva .............................. 41
2 A CANÇÃO POPULAR E A CANÇÃO DAS CEBs EM LAGES ............................ 43
2.1 CEBs: significados e sentidos ....................................................................................... 43
2.2 O Catolicismo Caboclo e as CEBs de Lages................................................................. 47
2.3 A Canção Popular como arte nos movimentos sociais – CEBs .................................... 54
2.4 A Canção Popular na CEBs: o sentimento, as pulsações e o sonho de vencer de homens e mulheres em ação ................................................................................................ 60
2.5 Em ritmo de memória: a Canção Popular como parte integrante do Processo Histórico Brasileiro ............................................................................................................. 64
2.6 A Canção Popular como marco das CEBs de Lages ..................................................... 67
2.7 A influência das Canções das CEBs no contexto sócio-político-cultural ..................... 68
2.8 Descrevendo a contribuição sócio-educativa da Canção Popular nas CEBs de Lages. 70
3 O PAPEL SÓCIO-POLÍTICO-PEDAGÓGICO DA CANÇÃO POPULAR NAS CEBS DE LAGES.............................................................................................................. 75
3.1 A Canção Popular de protesto nas CEBs de Lages ....................................................... 78
3.2 O movimento da Canção Popular em Lages nas décadas de 70 e 80............................ 82
3.3 Os movimentos que forjavam a luta das comunidades em Lages nos anos 70/80 ........ 84
3.4 Centro Vianei de Educação Popular e a Comissão Pastoral da Terra – CPT: A Canção na formação de consciência política....................................................................... 87
3.5 Núcleo alternativo de Educação Popular – NAEP – Suas lutas e canções.................... 100
CONCLUSÃO.................................................................................................................... 113
REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 117
ANEXOS ............................................................................................................................ 122
INTRODUÇÃO
Se calarem a voz dos profetas As pedras falarão [...]
Muito tempo não dura a verdade Nestas margens estreitas demais
Deus criou o infinito Pra vida ser sempre mais
É Jesus este Pão de igualdade Viemos pra comungar
Com a luta sofrida do povo Que quer ter voz, ter vez, lugar
Comungar é tornar-se um perigo Viemos pra incomodar
Com a fé e a união Nossos passos
um dia vão chegar... (Autor desconhecido)
Origens históricas da pesquisadora. Universo da pesquisa. Percurso metodológico.
Nasci em Lages, em uma família de sete irmãos. Meu pai trabalhava em serraria e
minha mãe contribuía para as despesas da casa como costureira. Ainda criança, desenvolvi o
gosto pela música e, assim, procurei educar a voz. Sempre muito presente nas atividades
sociais da comunidade, mesmo antes da conclusão da oitava série do ensino fundamental eu já
organizava grupos de reflexões, e novenas de Natal, nas casas dos colegas de trabalho de meu
pai. Gostava de organizar encenações natalinas, a partir de textos bíblicos, utilizando as pilhas
de madeira da serraria para o cenário e a serragem, como elemento decorativo.
Por incentivo de algumas senhoras integrantes do Grupo “Legião de Maria1”,
comecei a participar deste Grupo e do Grupo de Jovens da Paróquia, o que proporcionou
maior entrosamento com diversos outros grupos pastorais, entre eles, Equipes de Liturgia e
1 Mulheres missionárias de Maria, que rezam o terço diariamente, reúnem-se uma vez na semana, visitam os
enfermos da comunidade, acolhem os novos moradores e levam a palavra de Deus às famílias. Celebram anualmente a Festa da Ácies, com a participação das atuais e antigas participantes da Legião de Maria.
14
Movimentos de “Jornada2”. Em todos esses grupos, minha função principal era a de
“animadora”, a de “puxar o canto3”, acompanhada por instrumentistas. Nos anos 80, formei
um “Coral” infantil na igreja matriz do Bairro Guarujá, e dei a ele o nome de “Coral Galileu”.
Com a ajuda dos pais das crianças, foi adquirido tecido e confeccionada uma roupa especial
para ser usada durante as apresentações deste “Coral” que reunia aproximadamente trinta
crianças do bairro. Realizavam-se ensaios semanais e apresentações, aos domingos, nas
missas, na matriz ou em capelas do interior.
Mesmo continuando a participar dos movimentos da Diocese, passei a trabalhar na
Rede Municipal de Educação de Lages, coordenando atividades culturais ligadas a crianças,
ensaiando canções regionais com o grupo, trabalho que resultou na formação (mais uma vez)
de um “Coral”, com 52 (cinqüenta e duas) crianças que integravam o Programa de
Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), ligado à Secretaria de Promoção Social da Prefeitura
de Lages e que faziam parte de uma realidade muito carente. Com aquele grupo desenvolvi
não só o trabalho musical mas uma relação de amizade, e tive a oportunidade de trabalhar
conteúdos como higiene e auto-estima, tornando o trabalho mais completo e realizador.
Com os filhos já crescidos, voltei a estudar e tive a oportunidade de, pela FACVEST
– Faculdades Integradas da Rede de Ensino UNIVEST - graduar-me em Pedagogia, um Curso
direcionado à Educação Infantil e às Séries Iniciais. Para o Trabalho de Conclusão de Curso –
TCC - escolhi como tema: “A Música e o Processo Educativo: Possibilidades Pedagógicas”,
buscando atingir a interdisciplinaridade por meio das letras das canções.
O trabalho realizado na conclusão de curso despertou o interesse em dar
continuidade a essa linha de pesquisa. Portanto, no ano de 2005, quando tive a oportunidade
de concretizar meu sonho de cursar Mestrado, não poderia ter sido outro o objeto de pesquisa
que não este, tão presente em minhas raízes. Encaminhei um projeto de pesquisa para o
programa de Educação e Movimentos Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina,
tendo, como foco, a Canção Popular, à qual sempre estive ligada, no dia a dia. Com o tema
“Canção Popular nas Comunidades Eclesiais de Base: Análise do Papel Educativo e Social
nas Décadas de 70/80 em Lages/SC”, inicia-se uma nova trajetória em minha vida.
Esta pesquisa foi realizada em Lages, cidade em que resido. Com uma área territorial
de 2.644.313 km², (IBGE, 2002), Lages está situada na Região do Planalto Serrano, a 223
2 Retiros de Jovens, que se realizavam durante um final de semana no Centro de formação Católica da
Diocese de Lages, com palestras, reflexões, discussões em grupos, fazendo o jovem rever atitudes e posturas relacionadas à família.
3 Função desempenhada por alguém com um bom grau de afinação vocal, encarregado de preparar e ensaiar as canções da celebração ou evento e segurar a tonalidade musical junto ao instrumento.
15
quilômetros de Florianópolis, no entroncamento das BRs 116 e 282. Foi fundada em 22 de
maio de 1771 e colonizada por italianos, portugueses, espanhóis e alemães, tendo, conforme o
Senso de 2000, uma população de 157.682 habitantes (IBGE 2000). Atualmente faz limites,
ao Norte, com Correia Pinto; ao Sul, com o Estado do Rio Grande do Sul; ao Leste, com
Bocaina do Sul, Palmeira e São Joaquim e, a Oeste, com Campo Belo do Sul e Capão Alto.
Possui clima subtropical e sua temperatura média é de 16ºC, alcançando, no inverno,
temperaturas inferiores a 0º Com freqüência, ocorrem geadas e nevascas.
Conhecida como “Princesa da Serra”, Lages orgulha-se dos ilustres filhos, entre eles
sete governadores do Estado, um dos quais, Nereu Ramos, chegou à presidência da República.
Lages foi fundada pelo desembargador Antônio Correia Pinto de Macedo, tropeiro
que conduzia gado dos “campos das Lagens”4 para São Paulo.
O povoado foi criado em 22 de novembro de 1776 e, em 1820, desanexado da
Província de São Paulo e incorporado ao estado de Santa Catarina. Em maio de 1860, Lages
foi elevada à categoria de cidade e reconhecida como município.
Fonte: LS Publicidade Lages (2007).
Figura 1 Mapa do município de Lages, SC.
4 Inicialmente, Lages era grafada com ‘g’. Na década de 40 do século XX, esse topônimo passou a ser grafado
ora com a letra ‘j’, ora com a letra ‘g’. Vinte anos depois, na década de 60, foi aprovada a grafia definitiva, com a letra ‘g’.
16
De acordo com o objetivo escolhido, buscou-se, nesta pesquisa, analisar a canção
popular e sua função social e educativa nos movimentos sociais e nas CEB’s (Comunidades
Eclesiais de Base) nas décadas de 70/80, na cidade de Lages. Tornou-se importante avaliar se,
naquele contexto histórico, a partir da letra das canções, houve, de alguma maneira, promoção
do sentimento de auto-estima nas realidades comunitárias e, ainda, se essas canções
colaboraram para uma prática solidária e libertadora dos sujeitos que nela interagiam.
Para o desenvolvimento deste trabalho de pesquisa e, na coleta de material, deu-se
ênfase ao trabalho de campo, estabelecendo contatos diretos, nos encontros de CEB’s, com as
lideranças envolvidas, por meio de observação participante.
A fim de descortinar o cenário destas comunidades e qual a influência da canção
popular como elemento marcante de um contexto histórico cultural, foram utilizadas técnicas
ligadas à pesquisa qualitativa como: entrevistas abertas buscando histórias de vida, análise de
materiais e letras de músicas cantadas na época, considerando-se também importante a
pesquisa em documentos.
Na pesquisa qualitativa:
A realidade é uma construção social da qual o investigador participa e, portanto, os fenômenos só podem ser compreendidos dentro de uma perspectiva holística, que leve em consideração os componentes de uma dada situação em suas interações e influências recíprocas, o que exclui a possibilidade de se identificar relações lineares de causa e efeito e de se fazer generalizações de tipo estatístico [...], para os qualitativos, conhecedor e conhecido estão sempre em interação e a influência dos valores é inerente ao processo de pesquisa. (ALVES, 1991, p.55).
Para os autores Bogdan e Biklen (1994, p. 47):
Na pesquisa qualitativa, a fonte direta de dados é o ambiente natural e o investigador qualitativo é seu instrumento principal, ou seja, o investigador “freqüenta o local de estudo”, porque entende que as ações podem ser mais bem compreendidas quando observadas no ambiente habitual.
Entrevistaram-se pessoas que participavam de grupos populares ligados às
Comunidades Eclesiais de Base, nas décadas de 70/80, em Lages, militantes leigos ou
consagrados, lideranças dos diferentes segmentos das CEB’s que fizeram parte daquele
contexto histórico, procurando levantar dados referentes à participação da Canção Popular nos
referidos movimentos.
Durante os meses de maio a novembro de 2007 efetivaram-se diversas entrevistas
individuais e com grupos, várias até de maneira informal, nas quais se procurou observar
diferentes pontos de vista, por meio da flexibilidade do questionário que permitiu tanto
modificar perguntas quanto acrescentar questões que pudessem surgir durante o processo.
17
A pesquisa foi realizada com diferentes atores e seus grupos, em ambientes diversos,
como festas comunitárias, reuniões de Associações de Moradores, Grupos de Famílias (GF)5,
celebrações religiosas, Romaria da Terra e Pixirum das CEB’s (Encontro Diocesano/Julho
2007 – Lages), buscando relacionar as informações atuais com o período histórico proposto
neste trabalho de pesquisa. Procurou-se observar atentamente documentos como “Cartilhas”
com letras de músicas, cantadas naquela década e que pudessem caracterizar um conteúdo
politizado, além de registros e/ou fotos das equipes participantes.
Como ex-agente de animação6, esta pesquisadora buscou investigar, no trabalho de
campo, uma (des)construção de pressupostos. Tendo participado por longo período nos
processos sócio-religiosos dos quais a música era parte integrante, realizaram-se contatos
interpessoais, familiares, comunitários, através de relações objetivas e subjetivas dentro do
cotidiano dessas comunidades.
Durante o trajeto de pesquisa, alguns obstáculos surgiram, como a dificuldade em
recuperar documentos, dificuldade ou impedimento de acesso a arquivos, pessoas que se
negaram a participar das entrevistas, ou, até mesmo, a falta de interesse de alguns grupos. A
pesquisa se desenvolveu não só com as pessoas que ‘pensavam’ as CEB’s, mas também com
os sujeitos integrantes dos grupos, visando encontrar pontos em comum, explorando suas
participações efetivas dentro do contexto das comunidades e, mais especificamente, nas letras
das Canções Populares.
Conforme José Geraldo Vinci de Moraes7, a canção popular8 ainda não aparece em
primeiro plano como fonte histórica. De acordo com este autor, pesquisas anteriores
“demonstram que o trabalho investigativo nessa área social e cultural, tendo a música como
eixo, é bastante tímido e, com poucos avanços, continua sendo muito restrita e tímida sua
atuação”.
5 Cf. Plano e Diretrizes Pastorais – Diocese de Lages- SC 1995, p.25 Grupos de Famílias – “A vida da
Comunidade Eclesial de Base caracteriza-se pela comunhão e participação – a) Reflexão da Palavra de Deus e da Realidade. A Bíblia está sempre presente e ilumina a vida da comunidade; b) Todos partilham aquilo que sabem, as experiências e os bens que possuem; c) A celebração da palavra e da Eucaristia é feita nos pequenos grupos, levando ao compromisso com a comunidade. Celebração também de aniversários, festas e outras datas significativas; d) compromisso com as lutas do povo, participando das organizações e movimentos populares: saúde, associações, sindicatos, partidos políticos populares, luta pela terra, moradia, direitos da criança e adolescente, juventude, mulheres...”
6 Atuava nos movimentos de Liturgia, Grupos de Jovens, Equipes de Jornada e de CEB’s como ‘puxadora’ de cantos, ou seja, da canção popular.
7 Revista Brasileira de História, vol. 20, n0 39, São Paulo, 2000, em pt MORAES, José Geraldo Vinci de. 8 Ver Vasconcellos (1977); Bezerra (1985); Aguiar (1986); Andrade (2004); Carvalho (2004).
18
Outro fator relevante que contribuiu para dificultar a pesquisa foi a falta de acesso a
espaços e materiais que pudessem revelar com maior clareza a presença e o desempenho da
canção dentro dos movimentos populares de Lages.
Ao realizar entrevistas e observação de campo, buscou-se ir ao encontro dos atores
sociais em seu próprio universo de atuação, procurando compreender sua cultura, como se
utilizava a canção nestas reuniões de CEBs, seu surgimento e qual função as mesmas
exerciam nos encontros das comunidades e além deles. Isso se torna importante para que o
resultado da pesquisa venha a contribuir para a mudança de práticas nas diversas áreas do
conhecimento e sirva como documento histórico na Diocese e cidade de Lages.
No primeiro capítulo foi feita uma contextualização histórica da cidade de Lages: sua
colonização e formação, suas lideranças políticas e eclesiais e o processo de constituição das
comunidades.
No segundo capítulo fala-se sobre a importância da canção popular como canção
engajada, mostrando que, especialmente durante os anos da ditadura militar, essa canção
serviu tanto como veículo de denúncia da opressão quanto como instrumento de reivindicação
de direitos além de, por sua oralidade e facilidade de assimilação, ser excelente meio para
incentivar a luta pela igualdade social e para despertar a esperança da conquista de dias
melhores. Neste capítulo procurou-se também dar visibilidade aos movimentos denominados
CEBs, quais desses Movimentos eram atuantes em Lages e como se serviam da Canção
Popular na identificação coletiva das Comunidades em que a Canção Popular era utilizada.
No terceiro capítulo encontra-se o foco principal desta pesquisa, o papel sócio-
político e pedagógico da canção popular nos movimentos de CEBs em Lages. Priorizaram-se
canções utilizadas nos diversos grupos,destacando-se, especialmente aquelas cantadas pelo
Vianei (Centro Vianei de Educação Popular) e pelo NAEP (Núcleo Alternativo de Educação
Popular), canções que foram adaptadas ou criadas pelos participantes, ou canções das quais os
grupos se apropriaram, tomando-as como suas.
Pôde-se perceber a partir das ‘falas’ dos entrevistados, a força que a canção
desempenha nas diversas questões trabalhadas pelo grupo. Além de animar, elas também
surgem com mensagens capazes tanto de alertar para as formas de opressão, quanto de, por
suas letras, conscientizar sobre o poder do grupo quando passa a ‘ler o mundo’ coletivamente
e assumir o compromisso da ação, depois do ‘ver’ e do ‘julgar’.
19
1 ASPECTOS SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAIS DO MUNICÍPIO DE LAGES
Caminhando levo apenas a esperança De algum dia a liberdade encontrar.
É a esperança que dá força ao caminheiro De ir seguindo pela vida a caminhar.
A liberdade é só certeza na esperança
E a encontra quem na vida se arriscar. E no risco posso ser crucificado
Mas cantando a liberdade vou viver (Fonte: Livro de Cantos “Caminhando e
Cantando”da Diocese de Lages)
1.1 Compondo o cenário de Lages: da fazenda à cidade dos coronéis
Vários trabalhos acadêmicos já foram desenvolvidos a respeito da região de Lages9,
retratando sua conjuntura política e econômica e estrutura social e geográfica desde a
fundação, em 1766, até aos dias de hoje. No entanto, na contextualização da Região Serrana e,
mais propriamente, da cidade de Lages, trazendo elementos de sua história, para melhor
encaminhar a discussão sobre o tema a que se propõe esta pesquisa, torna-se fundamental que
se faça um resgate da história da cidade e de sua organização sócio-político-cultural,
chegando-se, assim, ao objetivo principal de analisar a função social e educativa da Canção
Popular dentro dos movimentos de CEBs, no período histórico de 1970/1980.
Conforme Munarim (1990), o Planalto Serrano de Santa Catarina, intimamente
ligado à pecuária extensiva, com seus campos nativos, já no século XVII se constituía num
pouso ideal para as tropas de gado bovino que eram levadas do Rio Grande do Sul para a
Feira de Sorocaba, no estado de São Paulo.
Esse gado era conduzido pelos campos e, muitas vezes, extraviavam-se algumas
reses que se misturavam ao gado alçado ou ao de outras tropas. Para evitar esses
contratempos, que acarretavam prejuízos econômicos, foram demarcadas áreas, ao longo do
caminho. A demarcação de uma estrada para a condução desse gado através dos campos foi
feita com pedras, catadas10 por escravos, nos próprios campos, e engenhosamente empilhadas,
9 Mais pesquisas sobre Lages, ver: Caon (1978); Alves (1980); Martendal (1980); Costa (1982); Calazans
(1988); Munarim (1990); Peixer (2002) entre outros. 10 Ainda hoje, as pedras com que se fazem as taipas são ‘catadas’, uma a uma, nas proximidades do local onde
a taipa é construída. Atualmente, são raros os ‘fazedores’de taipas.
20
formando muros de ambos os lados do caminho escolhido. Nasceram assim os ‘corredores de
taipas’. Alguns daqueles primeiros tropeiros que passaram por esses campos, e depois, pelos
corredores de taipas, fixaram-se na região, transformando-se em fazendeiros criadores desse
gado. Nos dias de hoje, a passagem dos tropeiros por Lages é lembrada por monumentos
construídos em pontos que marcam este trajeto e na reconstrução da praça do Mercado
Velho11, ao lado do Terminal Urbano de ônibus e onde, naquela época, os tropeiros exerciam
seu comércio, trocando gado e mantimentos. Mais tarde, esse comércio passou a ser realizado
em outro local, que, pela atividade ali desenvolvida, foi - muito adequadamente - apelidado de
‘Conta Dinheiro’, dando origem ao atual bairro do mesmo nome. Esse local, hoje, é o “Parque
Conta Dinheiro” e nele acontece, anualmente a “Festa Nacional do Pinhão” que tem como
atrativo principal a diversidade musical, com destaque para a música nativista, resgatando, nas
letras de suas canções, os hábitos e costumes do serrano.
O gosto musical do lageano é bastante diversificado. São apreciados os mais diversos
ritmos, sobressaindo-se, porém o gosto pelas canções sertanejas e pela canção de estilo
nativista, ambas predominantes na região. Esses dois estilos de canções conquistam com
maior facilidade a admiração popular principalmente por terem, duas importantes funções: a
de retratar, em seus versos, a vida , os amores, as desilusões e esperanças das pessoas mais
simples - e que, na realidade, são os mesmos em todas as classes sociais, o que acaba por
granjear a simpatia da população em nível nacional - e a de descrever os costumes campeiros
regionais. Assim, muitas delas exercem uma função pedagógica, pois, guardam para as
gerações futuras a descrição de atividades que o tempo e as novas tecnologias vão fazendo
desaparecer. Além disso, ao mesmo tempo em que engrandecem o torrão natal e suas belezas,
alertam, por meio de suas letras, para a posse indevida da terra, para as implicações
decorrentes de seu uso inadequado e para a desilusão que pode resultar do êxodo rural cuja
principal conseqüência é o aumento da pobreza nas periferias da cidade grande.
Devido a essas características, muitas vezes os Movimentos Sociais (CEBs)
apropriam-se do ritmo e da mensagem veiculada nos diversos estilos de canções que, por seu
conteúdo, sirvam aos interesses desses movimentos que algumas vezes as usam na íntegra e
outras vezes, apenas parodiando-lhes12 a letra. Como exemplo citam-se as canções “Eta,
espinheira danada” e “Massa falida”, comentadas no Capítulo III, das quais os grupos se
apropriaram na íntegra, sem alterar-lhes a letra.
11 Espaço popular, de vendas de produtos alimentícios, principalmente agrícolas, vindos de outros municípios
(PEIXER, 2002, p. 85) 12 Paródia: Segundo o Dicionário Aurélio: Imitação Cômica de uma composição literária.
21
A respeito dessas apropriações, Piana (2001, p. 31) diz que, apesar de ser a letra o
fator mais importante dessas canções:
[...] percebe-se uma preocupação significativa com o ritmo, uma vez que, às vezes, é este que vai determinar a aceitação da música ou não. Quando a letra é significativa e o ritmo está em desacordo com o gosto das pessoas envolvidas, facilmente se muda o ritmo, mantendo a mesma letra; por outro lado, se o ritmo agrada e é bastante conhecido, mas a letra não é significativa, muda-se a letra.
A memória de Lages reflete uma rede de poder que surge da estruturação de uma
sociedade baseada nos interesses de um determinado grupo econômico, os fazendeiros, que
detêm a posse da terra, do gado, a concentração do poder político em níveis de município e
estado e o controle militar, desde o início da fundação.
Quando da fundação de Lages, em 1766, então denominada Vila Nossa Senhora dos Prazeres das Lagens, tendo à frente Antônio Correia Pinto de Macedo, a mando do português dom Luiz Antônio de Souza Botelho e Mourão, viu-se a necessidade de se instalar na região13 um posto militar avançado para prevenir-se contra possíveis avanços dos castelhanos. (MUNARIM, 1990, p. 47).
As relações de poder dos fazendeiros foram marcadas pelo coronelismo14 e pela
relação patriarcal clientelista15 com os grupos populares. Nelas, o dono da fazenda tinha a
autoridade maior, solidificando o papel dos coronéis como ‘dominadores’, fenômeno que
perdurou até depois de 1930, dando mostras desta cultura16 do coronelismo, presente até os
dias de hoje nos resultados culturais desta relação na região serrana de Santa Catarina. Nesta
prática, em que permanecia a exclusão das classes populares enquanto o fazendeiro era
beneficiado em seus interesses particulares, e nos daqueles que o sustentavam no poder,
resultou o que veio a chamar-se “compadrio”17.
13 Numa estratégia para ocupação e povoação a mando da capitania de São Paulo, Lages era o local exato para
servir como ponto de defesa do território em relação aos espanhóis e, além de favorecer o mercado consumidor na região sudeste e nordeste, Lages serviria, também, de apoio a esse mercado.
14 Se, de um lado, o coronelismo se caracteriza pela relação de compromissos num sistema de reciprocidade entre coronéis e chefes políticos do Estado, por outro, caracteriza-se também pelas relações dos coronéis com a sua base social local; a população rural.[...] aparecia como um protetor natural à classe rural quando de suas necessidades não atendidas pelos poderes públicos [...] era o mais forte, o mais rico, aos olhos da população rural (MUNARIM, 1990, p. 26/27).
15 Fase final do Coronelismo, na qual a máquina pública é o principal instrumento do “coronel” na prestação de favores à “clientela” – base social de sua sustentação no poder. (MUNARIM, 1990, p. 58).
16 Cultura do coronelismo: “A participação com os representantes políticos fortalecia a dominação e a área de abrangência do coronel”. (MUNARIM, 1990, p. 23).
17 “O agregado convidava o dono das terras ocupadas por ele e por sua família para batizar seus filhos, o que o ligava a diversos chefes de maior ou menor proporção”. (LOCKS, 1998, p. 38). A relação de compadrio era outra forma de suavizar as diferenças sociais e econômicas e de legitimar a autoridade do coronel. O coronel, padrinho, tem o compromisso de dar proteção aos afilhados; os afilhados têm obrigação de respeitar e de seguir os padrinhos. Entre os compadres, a relação é de receber e transmitir
22
Essa forma de exclusão vivida desde muito tempo pelas classes populares de Lages,
pode ser percebida nas letras das canções das quais os grupos vão se apropriando. É a música
- que unida à letra, forma a canção - utilizada como estratégia de luta que visa resgatar valores
e princípios na construção de uma sociedade que se baseie na igualdade. Essa história de
exclusão, permeada de lutas, é traduzida nos versos das canções, os quais, enquanto vão sendo
cantados, vão preservando a memória e construindo a identidade e a cultura, de forma
pedagógica, ao mesmo tempo em que aqueles que os cantam vão procurando formas de livrar-
se dos laços do compadrio que os subjugam pela força do coronelismo.
Uma característica forte do coronelismo é a intensa ligação dos coronéis com os
chefes políticos do Estado e o ‘apoio’ da população do meio rural, os ‘caboclos-peões’18 que
moravam e trabalhavam nas fazendas e os caboclo-roceiros19 que produziam e praticavam
uma agricultura de subsistência, fiéis, segundo Munarim (1990, p. 27), “porque, uma vez
abandonados pelo poder público, no que se refere à saúde, justiça e instrução, acreditavam na
pessoa do coronel, um protetor natural”. A respeito dessa situação, os versos da canção “A
Classe Roceira” traduzem, cantando, o pensamento e o grito preso na garganta desses
caboclos, sejam eles peões ou roceiros. Essa canção, também comentada no Capítulo III,
traduz igualmente o desejo de muitos outros operários, e, muitas vezes era cantada nas
Romarias da Terra e em celebrações comemorativas do “Dia do Trabalhador” e do “Dia do
Agricultor“.
Mas o ‘coronelismo’ não foi a única forma de dominação social em Lages, segundo
Lima (in MUNARIM, 1990, p. 36):
A Igreja Católica teve papel de destaque no que diz respeito à dominação. De certa forma, Igreja e Estado praticamente se confundiam, tendo a partir da Proclamação da República, o desmembramento destes dois segmentos, passando à Igreja Católica a tarefa da romanização20, passando a seguir as regras impostas por Roma. A Igreja se adapta a essas mudanças e procura se manter ligada às oligarquias, ligada às classes médias na cidade, enquanto que as classes dominadas (caboclos do campo e trabalhadores da cidade) sofriam a religião oficial.
homenagens. A relação é de igual para igual, forma requintada de exercício de dominação. (MUNARIM, 1990, p. 28).
18 Caboclo-Peão: acostumado às lides da fazenda e conseqüentemente influenciado por hábitos gauchescos. (MARTENDAL, 1980, p.39).
19 Caboclo-Roceiro: embrenhado em regiões mais íngremes, acostumado à simples necessidade de subsistir, avesso ao expansionismo econômico e ao progresso. Conformado com a realidade. (MARTENDAL, 1980, p. 39).
20 “Roma tratou de promover a desnacionalização do clero brasileiro, enviando ao Brasil padres de formação européia; a orientação ideológica era no sentido de anticomunismo e do antisocialismo”. (LIMA in MUNARIM, 1990, p. 37).
23
Esse processo de romanização da Igreja Católica “na região serrana catarinense
esteve a cargo da congregação dos padres franciscanos, em que se destaca Frei Rogério,
ordenado na Alemanha no ano de 1891, e que veio, em seguida, fazer pregações no Brasil”
(MUNARIM 1990, p.37).
Em Lages, nesse período, as canções eram mais voltadas para a religiosidade, com
temáticas diversas enfatizando fé, vocação e fortalecimento da espiritualidade dos integrantes
dos grupos. Os versos das canções levavam à meditação sobre o poder de Deus. Livros de
cantos como “O Povo Canta” das Edições Paulinas, assim como outros utilizados na
Diocese21, além desse convite a uma religiosidade mais forte, incentivavam também a
execução de um instrumento musical, pois era comum em suas páginas a cifragem de acordes
básicos nas letras das canções.
As CEBs de Lages engajaram-se no desafio às diversas formas de dominação, às
estruturas injustas e excludentes. Os diferentes grupos que se aglutinam, por meio de letras de
canções revelam seu cotidiano, trazendo, para as reuniões desses grupos, canções com
mensagens que contribuem na formação de sujeitos mais críticos e conscientes, motivando-os
a construir uma nova realidade.
É, assim, de grande importância a canção popular dentro desses Movimentos Sociais.
É por meio dela, pela diversidade e abrangência dos seus temas, que se torna possível a
criação de novas identidades, a divulgação de valores, não só religiosos mas também sociais e
políticos e a construção de novos significados pela compreensão de determinados aspectos
sócio-históricos que a canção popular desvela nos encontros desses grupos. É importante
salientar que as letras dessas canções eram, em sua maioria, criadas pelo grupo ou por algum
de seus integrantes. Mas, ainda que fosse um só o compositor, a letra revelava os anseios e
vontades coletivos, os quais, ao se transformarem em ações capazes de modificar a situação
existente, transformava cada integrante em ‘ator social’, ou seja, “[...] aquele que modifica o
meio ambiente material e sobretudo social no qual está colocado, modificando a divisão do
trabalho, as formas de decisão, as relações de dominação ou as orientações culturais”
(PIANA, 2001, p. 15).
A respeito da identificação de autoria dessas composições, as quais, na maior parte
das vezes, não se sabe se foram criadas individual ou coletivamente, Piana (2001) diz ser
comum que o nome do autor não apareça nas canções:
21 Os livros de cânticos - “O povo Canta” e “Caminhando e Cantando” - citados nesta pesquisa, compilados a
partir de informações orais ou de folhas escritas a mão, datilografadas ou mimeografadas, contêm canções
24
a influência da Igreja Católica que, na (grande)maioria de seus livros de cantos, não destaca nenhuma autoria, numa ênfase da supremacia do comunitário sobre o individual. A partir do momento em que alguém compôs uma música, esta já não mais lhe pertence, faz parte da comunidade. [...] Permanece aí a grande dificuldade de interpretar quem são estes compositores e a partir de que situação social específica estão falando. (PIANA, 2001, p. 74).
A educação escolar também tinha seu papel de dominação, o que podia ser visto por
meio da imprensa e de outros bens culturais da época:
Sendo que, na Educação era especial para os filhos dos fazendeiros; primeiro um “professor de fazenda”, com aulas particulares, que para suprir a demanda, ia de fazenda em fazenda ensinando a ler e a realizar as quatro operações da matemática. De 1882 a 1910, os filhos dos fazendeiros mais abastados iam estudar em colégios dirigidos por padres Jesuítas em São Leopoldo – RS - ou no Ginásio Catarinense em Florianópolis.
Com a fundação, em 1901, do Colégio Santa Rosa de Lima, coordenado pelas Irmãs da Divina Providência, e do Colégio Diocesano, em 1932, pelos padres Franciscanos, os filhos e filhas dos fazendeiros, mais abastados, mantinham-se isolados dos setores subalternos da população.
A Imprensa também era um meio de predileção à elite dominante da época: desde 1883, mais de uma dezena de jornais em Lages, todos, sem exceção, ligados a interesses de grupos dominantes da sociedade local, veículos de informação de partidos políticos, tendo como articuladores alunos e ex-alunos dos colégios de São Leopoldo – RS - e de Florianópolis.
E com relação aos bens culturais como Música, Teatro e Cinema, também eram reservados ao consumo dos mais abastados. Eram seletivos devido ao custo. Para as classes subalternas restavam os fandangos, bailes populares à base de sanfona, mas sempre com restrições: Não poderiam se realizar sem a licença das autoridades policiais (MUNARIM, 1990, p. 38-40).
Partindo-se deste contexto de dominação, percebe-se uma cultura de submissão nas
classes populares na região de Lages. Uma postura, muitas vezes, passiva dos trabalhadores
que estiveram expostos às relações de poderes políticos e econômicos, o que Gramsci
classifica como “conjunto de organismos, vulgarmente dito privados, que correspondem à
função de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade” (MUNARIM,
1990, p. 54, In: PORTELLI, 1983, p. 22).
Essa postura submissa dos trabalhadores de Lages, modifica-se quando os grupos
começam a se organizar e passam a reagir. Ao compreender o seu papel na sociedade
passaram a utilizar, nas celebrações, estratégias como a canção popular que lhes servia, e
existentes desde o início do movimento, mas só foram editados em datas posteriores ao período aqui pesquisado, tendo sido mencionados para facilitar o acesso a consultas.
25
ainda serve, de instrumento para discutir as necessidades e problemas dos grupos, enquanto
denunciavam as diversas formas de opressão contra as quais protestavam. Debater assuntos
relacionados à política, à economia, à saúde tornava-se mais fácil quando existia a mediação
da canção popular. Os debates a respeito desses ou de outros temas fluíam melhor por meio
das letras que “falavam” fazendo com que as comunidades interagissem sobre assuntos com
os quais muitos não gostavam de se envolver mas a respeito dos quais era necessário entrar
em discussão para que a comunidade deles tomasse consciência. Esses debates, certamente,
eram facilitados pela música.
Assim, a canção popular era, na época, uma forma encontrada pelos participantes
desses movimentos sociais para se colocar em oposição, fazer resistência às diferentes formas
de dominação. Por meio da canção popular se fazia contraponto às classes dominantes,
enquanto essa mesma canção motivava as classes populares a assumir posicionamentos frente
às diferentes adversidades em uma forma de participação coletiva.
A participação de um número significativo de pessoas em um determinado evento ou
movimentação ideológica, com certeza os fortalece já que, ainda que a adesão seja de um
único indivíduo, ele só pode aderir a algo que já existe. Assim, na realidade, toda participação
tem cunho coletivo já que, normalmente, indica a reunião de várias pessoas em torno de uma
idéia, um assunto, uma ação, um ideal. Segundo Fantin (1998, p. 182) “a noção de
participação ganha novos elementos à medida que ela deixa de ter autonomia, de ser isolada
do conjunto das relações sociais e se articula a uma abordagem que contempla as formas de
inserção dos indivíduos na sociedade”.
Essa tomada de consciência, nas camadas populares que se organizam, resulta em
reivindicações e luta pela conquista de direitos para todos. Os grupos assumem o
compromisso de resolução dos problemas que afligem a comunidade e também procuram
garantir que cada integrante consiga, além de moradia, educação, alimentação e saúde,
também o atendimento de outros direitos como dignidade, respeito, bem estar, afetividade e
participação. A esperada concretização desse ideal é proclamada na letra da canção: “Irá
chegar um novo dia, um novo céu, / Uma nova terra, um novo mar / E neste dia os oprimidos/
Numa só voz a liberdade irão cantar. / Na nova terra, o negro não vai ter corrente, / E o
nosso índio vai ser visto como gente. / Na nova terra, o negro, o índio e o mulato, / O branco
e todos vão comer do mesmo prato”. (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).
Desta forma a música, em especial a canção popular, é utilizada pelos movimentos
sociais como instrumento pedagógico na divulgação de valores e dos objetivos de luta..
26
1.2 Diversidade cultural da população de Lages
Na região serrana catarinense, grande parte da população é de origem “cabocla”, ou,
quando não é cabocla, compartilha diversos níveis de sua cultura, seu modo de vida e de
expressão22. Considerando esta diversidade, abrem-se parênteses para explicar o ‘caboclo’,
conforme Ribeiro (1988, p. 21):
São restos de nossa gente que ainda não queremos conhecer. Mas cuja presença não se pode ignorar no planalto, médio e extremo-oeste. [...] São descendentes de índios mansos, negros e paulistas que se foram cruzando por aqui certamente com outros índios, negros, portugueses desconhecidos... e esses se constituem num bloco de gente que não se enquadra nos quadros oficiais, por não se adaptar aos nossos esquemas do sistema econômico, político, social, cultural e religioso. O caboclo é a “não gente”, o “não homem”, senhor-de-valores-outros.
A partir de relatos de outros autores sobre Lages23, vislumbrou-se uma realidade
bastante difícil do peão de fazenda que começava suas ‘lidas’ de campo ainda antes de o sol
nascer e só as concluía bem depois de o mesmo ter desaparecido, sendo que seu salário era a
roupa que vestia, a alimentação que ele mesmo produzia e a casa ou galpão onde morava, não
tendo nenhuma estabilidade no trabalho, explorado pelo patrão, dono da fazenda, que deixava
para o empregado apenas o necessário para sua subsistência24.
Cansados dessa vida de miséria e exploração, principalmente em épocas que, devido
a condições climáticas desfavoráveis, tornavam-se mais difíceis, alguns desses caboclos peões
migravam para as cidades buscando realizar o sonho de uma vida melhor, sonho esse que
dificilmente se concretizava. A vida repleta de dificuldades tanto na roça quanto na cidade,
convertia-se, muitas vezes, em letras de canções: “Quando não chove a gente muda pra
cidade./ Procura emprego, emprego não tem./ A filharada passa fome de verdade;/ Não tem
dinheiro, dinheiro não vem./ O caboclo não tem mais seu rancho na fazenda e também, sem
emprego, não consegue viver na cidade com a pretendida dignidade: “A gente esconde então
numa periferia,/ e pede justiça, mas ela não vem./ A gente cansa de esperar um novo dia;/
persegue a chance e se sente ninguém./ Assim, essas pessoas acabam por constatar que sua
22 Peixer (2002, p. 42). 23 Caon (1978); Martendal (1980); Alves (1982); Costa (1982); Calazans (1988); Munarim (1990); Peixer
(2002), entre outros. 24 Até a década de 40, a cidade de Lages, sede religiosa e administrativa, estruturava seu cotidiano e sua
economia numa relação de estreita vinculação com as atividades da pecuária extensiva. Nesta década, inicia-se um período de transição econômica e social para a cidade, passando de residencial, nas lidas de campo, para fornecedora de bens e serviços para a indústria madeireira. (PEIXER, 2002, p.86).
27
vida, após a mudança tão sonhada, na realidade mudou para pior. Na fazenda, ao menos
contavam com o pouco que conseguissem colher do solo ressequido ou, em última instância,
do que recebessem como ‘dádiva’ dos seus “compadres”, dádiva que seria depois duramente
cobrada. Na cidade, “A gente grande não tem nada pra fazer,/ A criançada não tem nada pra
comer,/Se esta vida não mata,/ machuca demais, machuca demais25”. Por essa e outras
canções pode-se perceber que as vivências do caboclo fazem parte das temáticas de várias
letras cantadas nas CEBs de Lages.
Não só o caboclo, mas vários outros personagens participam desse cenário de
dificuldades diversas. No entanto, nem todos se acomodam. Muitos reagem e começam a
procurar meios que lhes permitam reverter a situação em que se encontram. Discutem seus
problemas e procuram alternativas que garantam as mudanças desejadas pelo grupo. Esses
conteúdos que vêm do imaginário das comunidades, com as aspirações que traduzem o dia-a-
dia do peão, do operário, as suas lidas e esperanças ‘falando’ de projetos comunitários para
uma vida nova transformam-se em letras de canções. Muitas dessas canções revelam um
sentimento de protesto pela situação vivida, sendo utilizadas nas celebrações dos diversos
movimentos que formam as CEBs como meio para mostrar a realidade das classes populares,
permitindo também a percepção de que é possível se construir espaços com maior igualdade e
solidariedade para todos.
Entre as décadas de 1940 a 1960, com o início da exploração da madeira, houve
grande circulação de pessoas, mercadoria, dinheiro e expansão dos limites da cidade de
Lages. Mas vale salientar que, segundo Peixer (2002, p.111), este período próspero não foi
comum a todos os moradores, sendo que operários, agregados e trabalhadores não tiveram o
mesmo retorno financeiro obtido pelos grandes madeireiros. Muitos jovens, agregados ou
peões de fazendas sonhavam transformar a dura faina com gado ou plantações em uma
realidade do passado buscando no trabalho em serrarias um ideal de sobrevivência.
Assim, o caboclo, que por sua vez se constitui no peão de fazenda e no operário
ligado à extração da madeira, com a decadência do ciclo madeireiro vem para a cidade em
busca de emprego e oportunidade. Se antes tinha uma relação direta de ‘amizade’ com o
coronel, passa a ter uma relação trabalhista, formal e distante com o patrão das serrarias,
quando nelas vem trabalhar. As dificuldades começam a surgir. Vai perdendo muitos de seus
costumes, seus valores e crenças vão ficando em segundo plano. Ao contrário da vida do
campo, não tem mais a costumeira estabilidade. Ao vir para a cidade o peão de fazenda se
25 Oração dos pobres sem voz nem vez. Composição de P. Zezinho,scj. LP: Oferenda . Livro “O Povo Canta”-
Ed. Paulinas.
28
transforma em ‘bóia-fria’, situação historicizada pela canção. Todos os dias, “Em cima de um
caminhão, bem cedinho ele vai, / sem nenhuma garantia / pro seu pão de cada dia / ele vai
tentar ganhar.” Essa situação é bem diferente da que ele vivia na roça onde, muito ou pouco,
sempre havia um ‘sustento’ a tirar do chão. Iludido, “Ele tentou melhorar pra sua família /
Pra cidade, certo dia, / com muita fé foi morar, / mas continuou sua fome de alegria / e o
sustento da família / ele tenta assim ganhar”. Antes da mudança para a cidade essas pessoas,
apesar das dificuldades vividas, sabiam quem eram: caboclos-peões ou caboclos-roceiros.
Com a vinda para a cidade, já não se conhecem, perdem suas identidades: “Ele não é roceiro,
nem operário, / ganha um mísero salário, / seu riso alegre não sai / seu dinheirinho, ele
nunca tem de sobra, / ele é ‘pau pra toda obra’, / ele ri pra não chorar.” E sente saudades da
“sua terra que tanto ama / e não pode cultivar26.”
A dificuldade econômica dessas pessoas faz com que elas, ao se encontrarem na
cidade, procurem se aproximar umas das outras, buscando convívio e auxílio mútuo. Assim,
os bairros, especialmente os da periferia da cidade, vão se constituindo, em grande parte com
a vinda dessa população que traz consigo sua cultura, seus costumes e tradições. Essas
famílias provenientes das comunidades do meio rural, unidas por meio de vizinhança com
outras famílias, criam laços de amizade e se organizam em grupos. Nesses grupos, diversas
culturas iam se agregando. As pessoas se encontravam para conversar, cantar e rezar juntas.
Eram os costumes que tinham no meio rural, que agora, nos bairros da cidade, vão se
constituindo no germe das Comunidades Eclesiais de Base: grupos de pessoas que se reúnem
pela espiritualidade e amizade para conversar enquanto refletem sobre assuntos que as
preocupam e que precisam de soluções.
Essas famílias passam a formar, em suas casas ou em algum local da comunidade, os,
depois chamados, ‘Grupos de Reflexão’, principalmente nos finais de ano com as ‘Novenas
de Natal’. A música era, e continua sendo, o elemento que reúne e sustenta esses encontros. A
canção das CEBs nasce dessa população, do sentimento dessas pessoas que sonham e que
querem fazer desse sonho, verdade. São canções voltadas para a mudança da realidade. Na
natureza, à qual essas comunidades estavam integradas, há um ciclo constante, imutável. As
estações do ano, assim como as atividades próprias a cada uma, se sucedem invariavelmente.
Na cidade a relação com a natureza se transforma e o homem tem que se transformar também.
Se na natureza, a cada ciclo todos recebem as dádivas da terra, que costumam repartir entre si,
na cidade tudo é diferente. Nas elites dominantes prevalece o individualismo, bem diferente
26 “Em cima de um caminhão”. Livro ‘Caminhando e Cantando’. 2. Ed. Diocese de Lages.
29
do compartilhamento comum às pessoas habituadas ao convívio com a natureza. Daí, na nova
situação em que essas pessoas se encontram, o surgimento das canções que protestam, criando
expectativas de mudanças.
No contexto social em que as canções das CEBs de Lages se inserem, é possível
perceber as diversas influências recebidas de pessoas que vieram de vários lugares,
procurando uma vida melhor, trazendo culturas próprias por meio de ritmos e de canções
cujas letras abordam temas diversos, compondo simbologias que criam identidades coletivas,
divulgando valores e construindo esperança, muitas vezes, sem saber que estavam
fortalecendo o Movimento.
A partir do século XIX, por quarenta e dois anos, o poder esteve na mão dos
coronéis. A família Ramos, proprietária de muitos milhões de hectares de terras, ocupou um
importante lugar na política da região, ao lado dos ‘Costa’, com quem, alternadamente,
dividiu o poder público em Lages desde a Proclamação da República até o ano de 1973,
assumindo sempre postos de liderança nos partidos conservadores (MUNARIM, 1990, p. 50).
“Oligarquia forte, muitos membros destacaram-se, sendo que o mais bem sucedido
foi Nereu Ramos27, chegando ao cargo de Presidente da República, em função de um golpe
militar, afastando Carlos Luz, para que se efetivasse a eleição de Juscelino Kubitschek”
(ALVES, 1980, p. 22). Vidal Ramos28, (Tio Vida), ocupou o cargo de Prefeito de Lages por
duas vezes, chegando a este número também no governo do Estado, (1902/1905 e
1910/1914).
O coronel, o chefe político e os cabos eleitorais, num sistema de troca de favores ou de mera identificação pessoal, faziam o eleitor sentir-se aparentemente co-responsáveis pela administração da coisa pública, sempre tão negligenciada pelos adversários, ‘esses inimigos fidalgais’. A pertença a uma agremiação política partidária, ‘igualava’ os desiguais que se sentiam importantes por estarem ao lado dos mandatários (RIBEIRO, 1988, p. 57)
Com o tempo, os Ramos foram alçando vôos maiores e ocupando cargos a níveis
estadual e federal, quando da instalação da Câmara Federal no Rio de Janeiro. À medida que
o tempo passava e que se fortalecia a industrialização da madeira, a oligarquia Ramos foi
perdendo sua força, sendo que logo imigrantes italianos e alemães ascendiam na vida pública,
27 Em sua homenagem, hoje Lages contempla uma estátua sua, construída no calçadão central, e também um
memorial ao lado do Colégio Vidal Ramos, também chamado de Colégio Rosa, tombado pelo Patrimônio Público Municipal.
28 Em Lages, enquanto prefeito, sua característica principal era a ‘caridade’ com os mais empobrecidos, abrindo diariamente as portas de sua cozinha, principalmente aos moradores do Bairro da Brusque, onde se concentrava grande número de afro-descendentes, servindo-lhes marmitas, ganhando a fidelidade de muitos ‘assistidos’ ao Partido da Renovação Nacional - ARENA.
30
chegando a assumir o poder local. (Alves, 1980, p. 22). Com o fim da oligarquia dos Ramos,
acaba também o coronelismo enquanto força política.
Com o desaparecimento dos pinheiros Araucárias, diminui consideravelmente o
número de serrarias e o domínio econômico dos madeireiros vai enfraquecendo29. Esses
empresários do ramo da madeira, que tinham como principal característica o espírito
empreendedor, eram os maiores detentores de negócios lucrativos. Considerados os ricos que
vinham substituir os fazendeiros, não mediam esforços no sentido de suplantar os políticos
tradicionais, visando à ocupação dos cargos. Alves (1980) dá ênfase aos conflitos que passam
a se estabelecer quando os novos ricos acusam os senhores da terra de insensibilidade ao
progresso, enquanto estes alegavam grosseria no relacionamento social e na política por parte
dos primeiros.
No início dos anos 70, em contínua decadência devido ao esgotamento proporcional
das reservas nativas e à crise econômica no país, a crise no setor madeireiro resulta numa fase
de reestruturação e busca de alternativas, principalmente econômicas. As reservas de
araucária chegam ao fim, ocasionando o fechamento de muitas madeireiras e com isso o
aumento significativo da população urbana, gerando um grande número de desempregados,
desqualificados, com um conhecimento restrito ao trabalho em madeireiras, resultando num
número considerável de pobres, ocasionando o aumento das populações das periferias30.
As famílias que chegam a Lages vêem suas oportunidades de trabalho se tornarem
cada vez mais escassas. Deixando as fazendas e serrarias, são desconhecidas na cidade, onde
essa falta de identidade se manifesta nas canções: “Eu venho de longe,/ eu sou do sertão./ Sou
Pedro, sou Paulo, / Maria e João.” Aumentando o número de desempregados, as condições
de vida tornam-se insustentáveis pela falta de oportunidades. Trabalhando em serviços nunca
dantes por elas executados, essas pessoas não conseguem obter recursos para atender suas
necessidades básicas mínimas: “Eu faço a cidade e não moro;/ Me arranjo! / Plantei e colhi, /
mas não como; / Sou anjo.../ Eu venho da terra sem distribuição, / Eu sou do cansaço, sem
compensação.” Muita gente vai embora em busca de melhores condições, sendo que o
contingente de pessoas que permanece apóia a iniciativa da administração municipal de
29 Para saber mais a respeito do fim das serrarias, consultar SILVEIRA, 2005 “História da Indústria da
Madeira”. 30 “[...] um momento de busca de alternativas num contexto de crise econômica aguda. Foi também quando
ocorreu o esgotamento de reservas de araucárias, o que resultou no fechamento de grande parte das madeireiras e no aumento considerável da população urbana”. (PEIXER 2002, p.171).
31
Dirceu Carneiro, líder envolvido com a comunidade, fazendo frente a um projeto que
priorizava o atendimento das necessidades mais urgentes das camadas populares31.
Os campos de Lages se caracterizam por três pontos: a pobreza dos solos, raros e
arenosos, o clima com fortes geadas e nevascas e a concentração da terra. Além dos
tradicionais latifúndios nas mãos dos fazendeiros, agora também há as reflorestadoras
multinacionais. O sistema capitalista de exploração do trabalhador do campo se impôs, ainda,
por meio dos cultivos empresariais da maçã, alho e fumo, o que provoca um grande número
de trabalhadores rurais ‘sem terra’. Estes, quando podem produzir, o fazem, por exemplo, nas
beiras das rodovias. Passam a ser trabalhadores volantes, assalariados temporários.
Inconformados com essa nova situação, identificam-se nos versos: “Amigo trabalhador, veja
a nossa situação, / Nós queremos trabalhar e não temos condição. / E a terra que era nossa,
hoje é toda do patrão”. Sabem, também, que não adianta fugir do campo, pois, nos centros
urbanos, sem as habilitações necessárias, a vida será, talvez, até mais difícil: “Desemprego na
cidade, / virou uma maldição.” Mas, como já disse alguém, ‘o sertanejo é antes de tudo, um
forte’; assim, mesmo diante das dificuldades ele não esmorece e convida os irmãos a terem
esperança e a persistirem na luta por melhores condições: “Precisamos resistir e nós vamos
conseguir, / pôr a terra em nossas mãos.”
A situação do pequeno produtor rural, pressionado pelos grandes pecuaristas e
industriais, explorado pelo sistema integrado de produção como o caso do fumo, leva-o a
perder suas terras, sua independência e sua autonomia. Sem crédito e preço adequado para
produção é afastado do comércio direto pelos atravessadores. Estes são os sintomas do
capitalismo no campo, onde, aliada à eletrificação, vem a exploração e enquanto se condenam
as queimadas, abandonam-se os rios à poluição pelas fábricas de celulose. Os agrotóxicos que
vieram salvar vidas, diminuindo perdas, na verdade, matam e criam escravos da produção.
Lages foi sede do engajamento de jovens, mulheres e homens numa diversidade de
movimentos de Base. Algumas Pastorais, por meio de suas lideranças, tomavam iniciativas e
contribuíam para humanizar as comunidades, fazendo uso de ferramentas como a Canção
Popular que nasce a partir da realidade de seus participantes, e é capaz de abranger uma
variedade de temáticas: diferentes situações que oprimem as classes populares, como
desemprego, falta de atendimentos médicos, falta de escolas. A resolução desses problemas
certamente passa pelo engajamento de todos nas lutas necessárias, ainda que sem armas, para
31 Classes populares, ou massas populares, expressão utilizada para captar a possível homogeneidade do
grande conjunto de pessoas que ocupam os escalões sociais e econômicos inferiores nas diversas áreas do sistema capitalista vigente no Brasil. (WEFFORT, in WANDERLEY, 1984).
32
obter as reivindicações da comunidade e se expressa nos versos: “Vem, me dá a mão/ e uma
canção vamos cantar, / Vem que a vida é bela, / juntos com ela vamos lutar./ Unidos vamos
em frente / e esta corrente vamos levar, / E cantando esta canção, / De coração, vamos
lutar.” É por meio desse tipo de canção que vão se apontando caminhos para a resolução
desses problemas, pois a canção desperta a reflexão, coletiva, quando cantada nas reuniões
dos grupos e a reflexão, por sua vez, impulsiona a ação. A canção das CEBs em Lages
contribuiu para a formação de sujeitos mais atuantes, pois, como expressão de cultura possui
poder aglutinador e serve de linguagem que pode ser entendida por todos. Seu conteúdo
sócio-político ou cultural engloba formas de contestação, alegria, revolta, entre outras. Se as
CEBs, como uma igreja que tem a opção primeira pelos pobres e pequenos, a canção das
CEBs é oposição às iniciativas de exclusão e tem capacidade de organização. A música, nesse
contexto, convida à luta, animando o grupo a unir-se e a superar as dificuldades comunitárias.
Tem-se assim, com a utilização da canção popular como ferramenta de transformação, o
desencadear de uma seqüência imprescindível à realização das mudanças: realidade-reflexão-
canção-reflexão-ação.
1.3 “A força do povo” – Integração comunitária para construir cidadania
O processo de dominação nas relações políticas, sociais e religiosas na região de
Lages persistiu até o início da década de 70 do século XX, quando as decisões de interesses
coletivos passam a ter a participação das comunidades por meio de uma administração pública
que expressa uma política denominada ‘Lages, a força do povo’32. Ocorre a integração de
alguns setores da população nas diferentes decisões administrativas, buscando a elaboração de
um regime democrático e participativo. No final dessa década de 70, e início dos anos 80,
mudanças significativas ocorrem na vida política da cidade de Lages.
É o que assegura Peixer (2002, p.170):
A década de 70 foi marcante na história Política e Social de Lages. Foi uma década em que se quebrou a hegemonia política dos tradicionais mandatários locais e iniciou-se uma experiência mais voltada para os grupos populares, com os governos de Juarez Furtado (1973-1976) e Dirceu Carneiro (1977-1982).
32 Alves, (1980): Democracia Participativa em Lages.
33
Almejava-se a mudança e a possibilidade de se construir uma sociedade
fundamentada principalmente na participação coletiva. Nas eleições de 1972, acaba a
hegemonia dos Ramos, que perdem as eleições para Juarez Furtado33, político dinâmico,
bacharel formado na cidade de Curitiba, numa administração moderna e criativa, com projetos
mais voltados à área urbana, beneficiando a maior concentração eleitoral.
Para a gestão de 1977/1982, foi eleito Dirceu Carneiro que teve uma votação maior
do que a atingida por seus quatro adversários juntos. Antigo líder secundarista e ex-presidente
do Centro Acadêmico da Faculdade de Arquitetura de Porto Alegre, nascido na cidade de
Caçador, filho de fazendeiros, aliou-se, segundo Alves (1980, p. 27), a uma análise técnica da
crise da indústria madeireira, o que resultou no fortalecimento de uma opção agrícola nos
projetos de sua administração. Naquela administração priorizou-se a agricultura e teve-se
dedicação particular na utilização de recursos locais e no respeito ao equilíbrio ecológico.
Conforme Alves (1980, p. 27):
Dirceu articulava uma equipe cheia de idéias para elaborar um programa e lia desabridamente relatórios da ONU e da FAO sobre a carência de habitações no Terceiro Mundo, sobre a crise de energia, os debates dos ecologistas franceses e americanos, as alternativas para a agricultura fora do esquema das variedades de arroz e de trigo ‘milagrosas’, que as multinacionais inventaram para vender os seus adubos e concentrar a propriedade da terra.
A administração de Dirceu Carneiro tinha uma proposta voltada para a animação
popular34, dialogando com os moradores, procurando recuperar o entusiasmo de trabalhar
comunitariamente e aumentando a crença nas suas capacidades de tomar decisões e atitudes
sem esperar pelo poder público. A partir de reuniões, promovia-se um alto grau de
organização da população, o que se constituía num processo educativo e dialético.
Através do MDB de Dirceu Carneiro, segundo Alves (1980, p.30), criaram-se
núcleos e sub-núcleos nos bairros e nos distritos, passando a se promover associativismo e o
incentivo à criação de Associações de Moradores nos bairros da cidade e nos distritos,
discutindo com a população a importância da organização, considerando-se que, para acessar
os serviços da municipalidade era necessário que os grupos estivessem envolvidos. É neste
espírito de co-participação que surge o lema “Lages, a Força do Povo”, com a criação das
33 Assíduo freqüentador de bailes e batizados, com uma administração aberta à comunidade, considerado,
pessoalmente, um ótimo prefeito para Lages naquele período. (ALVES, 1980, p. 25). 34 “A animação popular é uma tarefa da comunidade. [...] Tem que ser objetiva, ter atuação visível, com
repercussão e conseqüências sensíveis [...] se insere como ponto de reflexão e ação no contexto da luta pela transformação de estruturas, elaboração de esquemas mais humanos, sem o que seu sentido se esvazia”. (MEB Nacional, “Animação Popular – ANPO: Tentativa de Definição”, in MEB em cinco anos –Primeira Parte).
34
Associações de Moradores, nos bairros da cidade, e de Postos de Saúde, que eram
reivindicações de muitos, tornados possíveis por meio do trabalho “de mutirão” em que os
habitantes fornecem a mão-de-obra e o material é repassado pela Prefeitura.
Segundo Alves (1980, p.63), naquela administração, a educação em Lages ia muito
além dos livros e do quadro-negro, uma vez que todo membro da comunidade tinha algo a
ensinar e a aprender, inclusive ensinar profissões como pedreiro, cesteiro, agricultor ou
aprender noções preventivas de doenças. Uma escola que vai além do âmbito educativo, com
técnicas pedagógicas que se fundamentam em teorias que discernem sua função na sociedade
inclusiva, em outras palavras, faz com que o aluno realize uma verdadeira ‘leitura de mundo’.
Freire (1983, p. 46) diz que Educação libertadora é fundamentalmente:
Uma situação na qual tanto os professores como os alunos devem ser os que aprendem; devem ser os sujeitos cognitivos, apesar de serem diferentes. Este é, para mim, o primeiro teste da educação libertadora: que tanto os professores como os alunos sejam agentes críticos do ato de conhecer.
Mutirão era a palavra chave dessa administração. Juntos, poder público e
comunidade, discutiam propostas e soluções, faziam avaliações da disponibilidade ou não de
recursos para determinar sua execução, demonstrando a capacidade que o ser humano tem
para viver em comunidade e ainda a busca da solidariedade entre vizinhos tentando reverter
uma sociedade desagregada e excludente. Os moradores sabiam que muita coisa precisava ser
feita e que, como eles mesmos é que seriam os maiores beneficiados pela mudança, não
deveriam esperar de braços cruzados. Deviam unir-se e colaborar com a administração
pública: “Queridos amigos, eu peço licença, / Com sua presença eu quero contar. / A
empreitada é dura e está chegando a hora / De fazer a história e o rumo trilhar. / Até as
mulheres, se organizando, / É mais uma força a se mobilizar”. (CAMINHANDO E
CANTANDO, 1994).
A nova sociedade, em crescente conscientização e organização, mostrava que era
possível superar antigas concepções de auto-suficiência e individualismo. Nos seus encontros,
cantavam a força da união e o resultado das ações que vinham realizando, visível na
construção de suas próprias habitações, fruto do seu trabalho conjunto e do auxílio do poder
público local: “[...] O Santo Evangelho é uma semente / Que a classe roceira cultiva no chão
/ se organizando em grupos pequenos, / ganhando o terreno para o mutirão.” Essa canção
reforça uma realidade existente naquele momento, nesses grupos: Bíblia e ação política juntas
- quando os grupos estudavam o evangelho, refletiam a respeito de suas mensagens e
discutiam a realidade local - desencadeavam ações e celebravam vitórias.
35
Sobre a importância da presença da canção na vida das comunidades, Dom Oneres
Marchiori, Bispo Diocesano de Lages, diz:
Em nossas celebrações, o cântico ocupa um lugar especialíssimo. Ele é um meio para viver o mistério que está sendo celebrado [...] deve ser a expressão da caminhada do povo, de suas aspirações, de suas lutas e conquistas. Graças a Deus, nossas comunidades descobrem sempre mais essa realidade e cantam. Cantam com alegria, com entusiasmo, com vigor. Cantam a esperança, a fé em Deus, a prece suplicante, a história sofrida. [...] No canto, a verdade está presente de forma aguda, poeticamente denunciadora. (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).
Com esse projeto de mutirão as comunidades de Lages vão conquistando dignidade
porque percebem que é possível por meio do envolvimento, do trabalho em grupo, conquistar
direitos que anteriormente pareciam distantes. As CEBs já davam sinal, na prática, de que era
preciso organização e consciência política. O que se debatia nas reuniões de CEBs, nesse
projeto de construção a muitas mãos da administração popular de Lages saía do papel e se
tornava realidade. Uma vez que a canção estava presente nas iniciativas e ações desses
grupos, era a letra da canção que trazia uma nova esperança: “Caminhando levo apenas a
esperança / de um dia a liberdade encontrar. / É a esperança que dá força ao caminheiro / de
ir seguindo pela vida, a procurar [...]”.
O projeto de democracia experimental em Lages, na busca de obter respostas
coerentes às necessidades, de fazer o trabalho avançar, realizava dias de estudo, cursos,
treinamentos e debates com a perspectiva de que a população ensina e aprende, desde o
incentivo do plantio de legumes e frutas no quintal, produzindo mudas e sementes, até a
utilização do adubo orgânico, e, ainda, a elaboração de outras modalidades de cultura, como a
fruticultura, o cultivo da maçã, a criação de trutas, carpas, tilápias e rãs e também a criação de
coelhos, dando, assim, condições econômicas para a sua permanência no campo.
A respeito da valorização dos conhecimentos que cada integrante da comunidade tem
sobre determinado assunto e da utilização da experiência desses integrantes na obtenção de
mudanças significativas no processo histórico comunitário, em Lages, no período pesquisado,
enfatiza-se: “a necessidade de considerar a experiência humana como parte fundamental do
processo histórico e, portanto, de qualquer leitura que dele se faça.” (CALDART, 2000, In
PIANA, 2001, p. 22)
Wanderley (1984, p. 112), também observa:
A mudança de atitudes, intimamente ligada à conscientização, representa disposição para a ação consciente e livre, a partir da compreensão e da crítica das situações concretas. Pode-se sintetizar, mostrando que a motivação de atitudes encaminha-se em quatro direções: atitude crítica, atitude de valorização, atitude de mudança e atitude de cooperação.
36
Na verdade, uma prática de Educação popular que tem como principal objetivo
produzir o conhecimento, dando condições para uma vida mais digna, gerando consciência
crítica da realidade, integra-se a suas culturas, no sentido de obter, conjuntamente, condições
de transformar esta realidade, buscando outras práticas sociais em que todos participem como
protagonistas, conforme a letra da canção: “Pra conquistar os direitos no campo e na cidade,
/ Povo unido é semente para a nova sociedade”.
Para Alves (1980, p. 49) um grande problema enfrentado pela população de Lages,
naquele período era a questão habitacional: “A ponta envenenada do êxodo rural é a favela”,
considerando-se, então, duas situações: as famílias com renda maior que três salários mínimos
podiam aderir aos financiamentos habitacionais da COHAB; já as famílias com renda inferior,
inseriam-se no “Projeto Lageano de Habitação”, da equipe de Dirceu Carneiro, mais
conhecido pela comunidade como “Projeto Mutirão”.
De acordo com entrevista concedida por Nilza35, “o projeto nasce, a partir de um
sonho, um bairro construído em mutirão, acreditando na força do povo, e na capacidade de
construir sua própria moradia. Para possibilitar a concretização desse projeto, foi
construído um ‘Banco de Materiais’ constituídos de telhas, tijolos e madeiras oriundas de
demolições urbanas, não reaproveitadas. É no ‘Mutirão’ que se concentram amostras de
quase todas as experiências inovadoras em curso no município. A idéia de um mutirão
vastíssimo - 690 casas, em um terreno de 287 mil metros quadrados, com uma população
prevista de 4.000 pessoas - nasceu da crença do arquiteto Dirceu Carneiro o qual acreditava
que qualquer grupo de pessoas, com um mínimo de assistência técnica, é capaz de erguer a
sua própria casa. Como faziam antigamente”.
Alzira36, também por meio de entrevista, lembra que, no contexto de organização do
Bairro Mutirão, as irmãs religiosas contribuíram desde o início para a organização do bairro e
na formação das lideranças: “Irmã Jandira dava curso de Bíblia para as lideranças, Ir. Hilda
trabalhava com as equipes de liturgia e dava aula de violão e as jovens que moravam com as
irmãs organizavam os Grupos de Famílias e os de Juventude”.
Esse projeto da Equipe Dirceu Carneiro, por meio do qual as famílias puderam
construir suas casas a partir de materiais alternativos e com auxílio da comunidade e dos
órgãos públicos, é percebido como um momento democrático e participativo, ao qual se pode
chamar de Educação de Base.
35 Nilza Aparecida Camargo, 52 anos, Agente de Pastoral da congregação das Irmãs Franciscanas do
Apostolado Paroquial do Bairro Habitação. 36 Alzira Gomes Machado, 49 anos, vida Religiosa Consagrada. Educadora Popular MMC/SC.
37
Segundo Wanderley (1984, p.109):
Entende-se como Educação de Base o processo de auto-conscientização das massas, para uma valorização plena do homem e uma consciência crítica da realidade. [...] deverá partir das necessidades e dos meios populares de libertação, integrados em uma autêntica cultura popular que leve a uma ação transformadora. Concomitantemente, propiciar todos os elementos necessários para capacitar cada homem a participar do desenvolvimento integral de suas comunidades [...].
De acordo com Alves (1980), visando a economia e o entrosamento da comunidade,
passaram a acontecer diversas alternativas em mutirão, como no caso do calçamento feito de
lajotas de cimento, beneficiando seu acesso pelas camadas populares. As lideranças dos
diferentes bairros reuniam-se, discutiam estratégias e votavam para escolher a rua a ser
contemplada, sendo que a participação de todos os envolvidos refletia-se no
comprometimento com os encargos da melhoria, o que levou ao desenvolvimento do
sentimento de comunidade.
Sobre a forma como se desenvolveu o Projeto Mutirão, Nilza acrescenta: “As casas
foram construídas em mutirão. Foram usados os materiais de forma mais alternativa
possível, como troncos de árvores, resto de material de outras construções demolidas, barro
para usar como massa corrida. É a partir do Mutirão que nasce o bairro Habitação. No ano
de 1978, durante a administração do então Prefeito Dirceu Carneiro, nasce de um sonho e
também da necessidade de abrigar pessoas carentes, sem condições de ter casa própria. O
projeto foi intitulado de “Mutirão de construções de casas populares”. Foram beneficiadas,
inicialmente, 700 famílias. Os terrenos onde atualmente está situado o bairro, pertenciam à
Associação Hípica e à Cúria Diocesana”.
A participação social é valorizada e, apoiada pelo poder público, que garante
autonomia aos grupos, tornando-os responsáveis e comprometidos com a causa do coletivo. A
população passa a assumir uma atitude diante da realidade, partindo da tomada de consciência
sobre a importância da colaboração de todos. Se de algum modo esta participação popular foi
ou não induzida, certamente contribuiu como um instrumento de democracia participativa.
Em entrevista, o senhor Martin Joel Cardoso37 relata: “No final de 1978, iniciamos a
construção de nossa casa. Para ter direito, o interessado deveria ajudar na construção de
outras casas. Como éramos quatro irmãos, um ajudava o outro. Moramos todos, até hoje, no
bairro, com exceção de um que foi embora para Caxias do Sul depois de alguns anos”.
37 Vigilante, 53 anos, morador na Rua das Magnólias do Bairro Habitação, Liderança do Conselho Paroquial
Pastoral da Paróquia Nossa Senhora das Graças daquele bairro, participa ainda hoje como Ministro do Sacramento do Batismo, naquela comunidade.
38
Nilza relata os critérios para que o morador pudesse ser contemplado com um espaço
no bairro, para a construção de sua casa. Segundo ela, “era necessário ter uma renda familiar
baixa, não possuir nenhum imóvel e estar residindo em Lages há mais de cinco anos. O
número de filhos era também considerado como critério e quem tivesse mais filhos era
atendido primeiro. O coração do Mutirão era um depósito chamado “Banco de Materiais”.
Para esse local eram encaminhados os tijolos, a madeira, as telhas oriundas de demolições
feitas na cidade. Para isso, Dirceu Carneiro fez um decreto facilitando os alvarás de
demolições e permitindo que os funcionários municipais auxiliassem e que os materiais
fossem transportados em caminhões da Prefeitura, desde que fosse tudo doado ao Mutirão”.
Recordando daqueles anos 70/80 na comunidade do Bairro Habitação, Nilza
continua, lembrando que, com a vinda das Irmãs Franciscanas para o bairro, elas organizaram
os moradores, formando equipes de estudo. “Nos reuníamos na escola, onde fazíamos estudos
e nos organizávamos para resolver os problemas do bairro. Lembro-me que um dos maiores
problemas era o esgoto, porque o bairro não tinha nenhuma infra-estrutura. Então era
urgente que os moradores se organizassem e tomassem algumas decisões sem esperar pelo
executivo. Então surgiu a idéia de que a Igreja também ajudasse nesse trabalho, já iniciado
pela associação de moradores, mas que não andava”. Ainda acrescenta: “Então compramos
manilhas, e conseguimos uma doação, da CASAN, (Companhia de Águas e Saneamento de
Lages), de alguns canos, e, em mutirão, construímos, nas divisas dos lotes um encanamento,
que ficou por muitos anos de forma precária, devido à demanda e os canos, muito finos, que
entupiam freqüentemente, mas foi um trabalho realizado pela Igreja e pelos moradores”.
Descrevendo um pouco o bairro Habitação, todas as ruas estão direcionadas à escola
e todas têm nome de árvores frutíferas ou de flores. Como por exemplo: Rua das Camélias, da
Pitangueira, dos Pessegueiros, das Acácias etc... A sua organização geográfica é de forma
circular. A escola Mutirão fica no coração do Bairro e também foi construído pela
coletividade. Possui uma estrutura que na época foi pensada a partir do espírito comunitário:
na medida em que surgiam as necessidades, as salas eram edificadas, até fechar o círculo, ao
redor do pátio, no centro. Pensando assim, também se pensaria uma outra educação possível,
diferente, sem um aluno atrás do outro, para que dessa forma se possibilitasse a participação
de todos.
39
Fonte: LS Publicidade Lages (2007).
Figura 2 Mapa do bairro Habitação do município de Lages, SC.
Continuando o relato sobre o Bairro Habitação, Nilza lembra que: “as celebrações
religiosas eram feitas no colégio, depois na sede da Associação. Então resolvemos adquirir
um lote e construir uma capela (que hoje é o centro da Pastoral da Criança), neste local
foram feitas festas e celebrações, até que sentiu-se a necessidade de construir uma capela
maior, num local mais central. Conseguimos dois terrenos e começamos a idealizar esta
construção. Parecia uma utopia, mas com coragem e determinação começamos essa
construção. Com o dinheiro das festas fizemos a parte de baixo da capela, e como a “força”
era pouca pedimos ajuda no exterior. [...] lembro que a comunidade da Alemanha, numa
arrecadação e através de um projeto feito pelas irmãs, doou para a comunidade São
Francisco essa coleta, que foi de muita ajuda. A Igreja também foi construída em mutirão”.
Relativamente à questão cultural, naquela gestão administrativa de Dirceu Carneiro
os artistas plásticos tornaram-se conhecidos, expondo seus materiais periodicamente. O
mesmo ocorreu com os artesãos, os contadores de “causos” e os trovadores do interior,
despertando o interesse dos moradores. Destacava-se, nessa época, o teatro de bonecos
“Gralha Azul”38 utilizado como ferramenta nas campanhas educativas nas escolas, tais como
‘escovação dos dentes’, ‘vacinação’ e outras. Uma forma lúdica de ‘ensinar’.
38 Criado pelo Argentino Fernando de Fierro que escolheu como estratégia de trabalho a linguagem de
bonecos. Peças como: ‘Lages lá, lá Lages lê, lê’; ‘No planalto sul tropical do sol’; e ‘E a gralha falou’ (Caderno Especial ‘O Estado’, 16.09.79, p. 12) . “Deveu-se a ter buscado um repertório nas velhas tradições
40
Por meio de seminários e discussões freqüentes, o conjunto de atividades
desenvolvido nas séries iniciais se faz através do conhecimento da realidade do dia-a-dia e
com a participação de pais, alunos, professores e membros da comunidade. A horta também
estava presente na escola, os alunos ajudavam na sua preparação, plantio e conservação, e
dela se enriquecia a merenda. Cada pessoa passava a sentir-se importante dentro do processo
de construção de uma nova escola, despertando um espírito de solidariedade e força
homogênea.
O objetivo da ação dos rapazes e moças da Secretaria de Cultura de Lages é precisamente esse: fazer com que renasçam os valores locais, valorizar as tradições do povo, fazer com que até os mais humildes compreendam que cultura é tudo o que o cérebro e a mão do homem produzem, e não apenas a erudição dos letrados da classe dominante. É, também, utilizar os métodos da expressão cultural para promover o desenvolvimento, quer isso signifique a abertura de novas possibilidades de trabalho material, quer queira dizer aprender noções de higiene ou de medicina preventiva (ALVES, 1980, p. 103).
O projeto ‘Lages: A Força do Povo’ aponta perspectivas multiplicadoras. A
democracia participativa vivida em Lages é um progresso, talvez decisivo para ampliar a
solidariedade e combater o individualismo, buscando fazer a integração do conhecimento com
a prática, valorizar o ser humano e sua dignidade, procurando eliminar relações opressivas, no
sentido de tornar todos iguais nas oportunidades que têm, e que devem ser para todos. O
projeto de Lages incentiva os valores locais através das tradições da população, valorizando
sua cultura, abrindo novas possibilidades, dando espaço para a libertação pessoal e coletiva,
em que cada pessoa assume suas relações sociais.
Cada um descobre sua liberdade através das aptidões que possui, seja pela música,
pelo teatro, nas artes plásticas ou exercendo uma função, principalmente através da mediação
dos diferentes profissionais capacitados que faziam parte da equipe de Dirceu Carneiro
contribuindo na construção do conhecimento e na formação da cidadania39.
Esta administração fez investimentos no processo de democratização e
descentralização social, estimulando a população para o envolvimento e para a formação do
conhecimento da realidade, incentivando-a a intervir e agir para alcançar melhorias que
beneficiariam a todos. A cidade de Lages visualizava um palco de novas perspectivas contra
os sistemas autoritários e grande número da população protagonizava esta ação.
lageanas e nos ‘causos’ recolhidos no interior, onde ainda é forte a tradição da literatura oral, comum a todos os povos em que são altos os índices de analfabetismo. [...] O teatro de bonecos “Gralha Azul” foi vítima de seu próprio sucesso. Ganhou fama, foi convidado para se apresentar em outros Estados, acabou indo fazer uma tournée na Europa e só três dos seus componentes voltaram para Lages”. (ALVES, 1988, p. 106).
39 Faziam parte da equipe de Cultura e Educação desta gestão os professores do PPGE – UFSC, Dr. Antônio Munarin e Drª. Sônia Beltrame (ALVES, 1980).
41
No pleito de 1982 o projeto democrático é interrompido com a vitória, nas urnas, do
PDS, (Partido Democrático Social), que vem com ‘grandes realizações’ privilegiando os
centros urbanos.
1.4 Participação popular: espaço de convivência e identidade coletiva
Este foi um período da história de Lages durante o qual se destacou o caráter
pioneiro da participação popular na administração pública. Quando, no Brasil, atingia-se o
auge do regime militar, essa cidade caracteriza-se como agente de desenvolvimento. No
entanto, depara-se com adversários fortes, representantes de elites econômicas nos segmentos
locais, regionais e até estaduais, que lhe impõem limites, interrompendo o processo
organizativo e colocando um ponto final à gestão da equipe Dirceu Carneiro.
Priorizando as classes empobrecidas e conjugando a política a outras dimensões
como cultura e religiosidade, fortalecendo a luta de movimentos populares em favor de
mudanças qualitativas, passa a acontecer, nesse período, após a vitória do PDS, uma nova
etapa administrativa.
Considerável número da população integra-se à participação nos programas da
administração pública, entre os quais a criação de Associações de Moradores, Horta
Comunitária, Projeto Habitação, Medicina Preventiva, Associação de Pequenos e Médios
Comerciantes, Associação de Pais e Professores, Educação Popular e outros. A cultura da
população é valorizada por meio do teatro e da educação informal que partem da realidade e,
por sua vez, valorizam a experiência do aluno, contextualizando a participação de pais e
comunidade no processo de ensino-aprendizagem, favorecendo o surgimento das atividades
em grupos e a integração das comunidades do meio rural.
Ao se referir à nova administração, Peixer (2002, p.167) enfatiza:
Está presente nos debates sobre democratização da sociedade, da participação popular e sobre processos de globalização. O espaço local é um espaço de convivência, conflitos, identidades, culturas e singularidades; espaços múltiplos e diversos, específicos e interligados; espaço de histórias, identidades e práticas políticas, tradicionais ou inovadoras. Vê-se um processo de valorização dos canais e formas concretas e efetivas de participação dos grupos populares, principalmente os grupos organizados, percebendo a descentralização como forma efetiva de democratização do poder político.
42
Em entrevista com o senhor José Eroni de Medeiros40 sobre aquele período histórico
em Lages, ele diz: “As pessoas se reuniam e pensavam o que poderia ser feito para
transformar a realidade da comunidade [...] a partir dos grupos de reflexão, organizavam-se
em atividades sociais, convidavam outras famílias para que também se engajassem [...]
chegando até aos dirigentes da prefeitura para que se organizasse uma Associação dos
Moradores no seu bairro, para que a partir dali, fossem buscar melhorias para a
comunidade, e para que dali saíssem líderes que se candidatariam à presidência do bairro e,
mais tarde, a vereadores”.
Percebe-se que com o apoio do poder público e a participação efetiva da
comunidade, os grupos passam a se organizar e a criar alternativas de mudanças, numa
educação permanente. Refletindo sobre sua prática, constroem memória e protagonizam sua
própria história.
O período histórico escolhido demonstra a existência, em Lages, de traços de
parceria entre o poder público e a população integrando-se em uma ação comum de
desenvolvimento coletivo, protagonizando um processo de mudança, favorecendo a
transmissão de conhecimento e o incentivo à consciência crítica, autonomia e reflexão.
40 Atualmente (2007) com 51 anos de idade, Eroni é liderança desde os anos 70/80 até os dias atuais na
Comunidade do Bairro Guarujá, em Lages. É ministro de Sacramentos, da Eucaristia e da palavra, membro da Cáritas Diocesana e da equipe de Pastoral de Lages. Formador de opiniões e líder de Associações de Moradores e Grupos de Famílias.
43
2 A CANÇÃO POPULAR E A CANÇÃO DAS CEBS EM LAGES
2.1 CEBs: significados e sentidos
Também sou teu povo Senhor E estou nessa estrada
Perdoa se, às vezes, Não creio em mais nada
A partir do Concílio Vaticano II e de Medellín (1962-1965), e de Puebla (1979),
surge, na América Latina, a idéia de uma “Igreja do Povo de Deus” que vem para evangelizar
e ser evangelizada, considerando-se sua cultura e realidade, tendo uma ‘opção preferencial
pelos pobres e pelos jovens’. Novas diretrizes teológico-pastorais se formam e as
comunidades são vistas como “Povo de Deus” sentindo-se parte ativa na construção do Reino.
Segundo vasta literatura sobre CEBs41, nesse contexto se pretendia mudar o estilo
piramidal da Igreja, vislumbrando um maior engajamento dos leigos42 e maior participação
nas tomadas de decisões. Cria-se um grau de afetividade e partilha entre os participantes do
grupo, um sentimento de auto-identificação coletiva.
Inspiradas no método Paulo Freire de alfabetização de adultos, trabalhando da
conscientização à ação, gerando uma nova consciência nas camadas populares e priorizando o
processo de libertação dos pobres, as CEBs tiveram que repensar a sua identidade ao final da
Ditadura Militar. A Igreja passa a participar da realidade de sua comunidade buscando
encontrar novos caminhos, que abram espaço para a elaboração coletiva e crítica da vida
individual e social das classes populares, constituindo formas de aquisição de conhecimento,
elaboração de projetos e transformações sociais que levem atores antes excluídos da
sociedade a se tornarem membros ativos em crescimento.
41 Boff (1978); Alves (1979); Betto (1981); Ribeiro (1982); Boff (1984); Gutierrez (1984); Wanderley (1984). 42 Nos papiros e nas inscrições do culto grego anterior a Cristo, laós queria dizer povo não iniciado, ou seja,
não especialmente consagrado a Deus. O Novo Testamento não lhe deu foros de cidadania. Mesmo assim, no século II da Era Cristã, leigo já passa a designar, na Igreja, o não clérigo (ARNS, 1985, p. 58).
44
Boff (2005, p.10) diz que “a fé é um dom politicamente encarnado, que tem razão de
ser nesta conflitividade histórica, na qual somos chamados, pela graça, a distinguir o projeto
salvífico de Deus”. Com a Teologia da Libertação, nos anos 70, é fortalecida a ligação da fé e
da política, considerando-se que espiritualidade e ação não podem mais estar desvinculadas43,
como seres sociais que somos. As CEBs, segundo Betto (1981, p.16):
São pequenos grupos organizados em torno da paróquia (Urbana) ou da capela (Rural), por iniciativa de leigos, padres ou bispos. As primeiras surgiram por volta de 1960, de natureza religiosa e caráter pastoral, podem ter dez, vinte ou cinqüenta membros. Nas paróquias de periferia, as comunidades podem estar distribuídas em pequenos grupos ou formar um único grupão.
Vistas como um “novo jeito de ser igreja”, organizadas na base, partindo dos
princípios da Educação Popular de Paulo Freire e formadas por pequenos grupos, geralmente
de vizinhos que compartilhavam das mesmas idéias, as CEBs são ligadas principalmente à
Igreja Católica, mas agem de forma ecumênica. Espalharam-se nos anos 70 e 80 do século
XX, lutando contra a ditadura militar no Brasil, buscando conscientizar para o processo de
democratização do país, e abrindo caminhos para formar uma nova sociedade.
Conforme Boff (1995, p.17): “na medida em que as igrejas se engajarem na missão
pastoral dos pobres, dos desempregados, drogados, idosos, trabalhadores, estrangeiros, nesta
mesma medida, as igrejas terão sentido e futuro”.
A Igreja Povo de Deus aparece, neste contexto de CEBs, em favor do oprimido,
criando condições para o exercício da democracia, na luta pelos direitos dos empobrecidos,
com uma proposta de libertação autêntica dos homens, ou seja, um processo de humanização,
onde o ser humano não seja visto apenas pela lógica do capital e pela da submissão ao Estado.
As CEBs não se fecham em si mesmas. As questões levantadas nas reuniões raramente deixam de ser questões sociais, ligadas à sobrevivência das classes populares. O abaixo-assinado à prefeitura pedindo água para o bairro, não interessa apenas aos cristãos, é uma questão de interesse geral. A luta contra a expulsão de posseiros mobiliza todos que não se identificam com os interesses dos açambarcadores de terras. Assim, a comunidade eclesial de base abre-se ao movimento popular, ajudando a criar ou a fortalecer formas de organização popular autônomas, desvinculadas do Estado e da Igreja (BETTO, 1981, p. 24).
Desta forma, as CEBs realizam um trabalho educativo, formando lideranças críticas e
que procuram vivenciar uma nova realidade, abrindo possibilidades para que todos possam
exercer com dignidade seus direitos e deveres. Assim, as comunidades saem da igreja e
reivindicam um desejo comum, em uma identidade elaborada coletivamente.
43 Boff (2005, p.10).
45
As palavras da Bíblia tornam-se ação, por meio de gestos concretos, e partem para o
“ver, julgar e agir”, dando início à intervenção coletiva através dos temas das Campanhas de
Fraternidade, que, também sob a influência do Concilio Vaticano II, tiveram início,
nacionalmente, no ano de 1963.
Quando o grupo passa a agir coletivamente, o que antes era considerado sonho pode
mais facilmente tornar-se realidade. Adotando uma visão religiosa, social e politicamente
engajada, partilhando as dificuldades comuns, reúnem-se em assembléias onde são discutidos
os problemas e encontrados os encaminhamentos adequados, encerrando-se, essas
assembléias, com um compromisso concreto que é assumido por todos. As comunidades
aprendem a questionar propostas que antes eram impostas.
Conforme Locks (2006, mimeo), as CEBs incentivam os participantes do grupo ao
engajamento em sindicatos, partidos políticos com ideologias semelhantes à sua doutrina e os
estimula a sensibilizarem-se com os problemas de interesse comunitário, reforçando, nos
pequenos grupos, o atendimento aos anseios das camadas populares na conquista da sua
dignidade.
Segundo Wanderley (1984, p. 252):
Nesse processo de ascensão coletiva de uma comunidade de base, o essencial é ajudar a comunidade a ajudar-se. Ela deve saber aproveitar todos os recursos próprios. Deve ser educada para assumir seus problemas e procurar solucioná-los. Muito importante aqui, são os treinamentos de líderes que, aos poucos, vão capacitando o homem para assumir responsabilidades, ao mesmo tempo em que levam para a formação de consciência crítica.
Com isso, percebe-se a Educação Popular profundamente imbricada aos métodos de
vinculação das CEBs e à ação político-social, organizada para comunicar e formar lideranças
capazes de participar da transformação social, tornando possível a inserção de todos neste
processo. Constata-se, então, que estas Comunidades Eclesiais buscam desenvolver ações
político-transformadoras, relacionando fé e vida.
Sobre essa forma de educação:
Através da educação libertadora, não propomos meras técnicas para se chegar à alfabetização, à especialização, para se conseguir qualificação, ou pensamento crítico. Os métodos de educação dialógica nos trazem à intimidade da sociedade, à razão de ser de cada objeto de estudo. Através do diálogo crítico sobre um texto ou um momento da sociedade, tentamos penetrá-lo, desvendá-lo, ver as razões pelas quais ele é como é, e o contexto político e histórico em que se insere (FREIRE, 1987, p. 4)
Dessa forma, os sujeitos que participam desses grupos passam a escrever sua própria
história, tornando-se responsáveis por melhorias que irão beneficiar a coletividade.
46
Do ponto de vista dos setores progressistas, a participação facilita o crescimento da consciência crítica da população, fortalece seu poder de reivindicação e a prepara para adquirir mais poder na sociedade. Além disso, por meio da participação, consegue-se resolver problemas que ao indivíduo parecem insolúveis, se contar só com as próprias forças (BORDENAVE, 1983, p. 12).
Essa educação tem o dever de libertar e levar os indivíduos à organização, avaliando
criticamente a sua prática e tendo condições de atuar com maior segurança, dando um novo
sentido à sua práxis e percebendo o poder da ação que desenvolve a partir da tomada de
consciência da realidade.
Boff (2005, p. 25) justifica que: “assim, a teologia na América Latina, liberta-se do
limbo das categorias acadêmicas e, de novo, encarna-se na vida e na luta de inúmeros crentes
e oprimidos que já não podem separar fé e vida, pastoral e política, salvação e libertação”.
Portanto, a CEB é formada por três ou mais grupos que se integram, articulados por um
mesmo objetivo. É uma comunidade44 de base e é eclesial pela comunhão que forma com seus
pastores em sintonia com a igreja.
Dessa forma, surgem ministérios leigos que, devido à demanda, foram se
multiplicando. Mulheres e homens passam a desenvolver diversos Ministérios como: da
Eucaristia, da Palavra, da Moradia, da Saúde, da Criança, do Menor, do Trabalho, sendo
outros como organizações para hortas comunitárias, clubes de mães, alfabetização de adultos
ou grupos de sustentação dos movimentos populares, mostrando claramente o compromisso -
profundamente ativo no campo social - das CEBs com os mais pobres.
Segundo Ribeiro (1988, p.169):
Quando o tema CEBs começou a ser abordado em Santa Catarina, um zeloso vigário comentava estar sua paróquia, sobretudo a matriz, organizada em CEBs, pois as “Capelinhas de Nossa Senhora”, nada mais eram do que estas comunidades, organizadas por zeladoras que afixam na capelinha uma lista indicando a data da visita a cada família, além de levar os comunicados paroquiais àquele grupo de 30 famílias aproximadamente.
Com o trabalho dos Grupos reunidos para refletir sobre tema específico, “o sal, o
fermento e a luz45”, vão atuando. Com um encontro geral dos ‘Grupos de Reflexão’ de uma
determinada comunidade, ações e respostas do grupo são colocadas em comum, favorecendo
o amadurecimento da fé, da consciência política, e o despertar para as causas públicas numa
ampla visão social, que se estabelece na crença religiosa e filosófica.
44 Comunidade, porque reúnem pessoas que têm a mesma fé, pertencem à mesma igreja e moram na mesma
região (BETTO, 1981, p. 17). 45 Concepções Bíblicas que indicam participação, crescimento do grupo e discernimento para comunidade.
47
Um exemplo típico da ligação ‘fé e vida’ colhido nas reuniões de CEBs, presenciado
por esta pesquisadora quando da sua atuação como liderança, pode ser caracterizado pela
encenação do Nascimento de Jesus, em que a “Família Santa”, na manjedoura pobre, rodeada
de pastores e animaizinhos, é substituída por um presépio onde se vê a realidade das famílias
mais carentes, do desempregado, do doente, do menino de rua, chamando a atenção para as
desigualdades sociais existentes.
Assim, nas CEBs são utilizados termos como Justiça, Fraternidade, Solidariedade,
Compromisso e Caminhada, destacando a vontade de implantar o Reino de Deus no meio da
sociedade mais empobrecida. Acima de tudo, na questão pastoral, elas continuam tendo forte
vínculo com as lutas populares, com as ONGs, com os grupos de mulheres etc. qualificando
uma nova estrutura para a igreja, de forma ministerial e missionária.
2.2 O Catolicismo caboclo e as CEBs de Lages
Segundo o Plano de Diretrizes da Diocese de Lages, buscando um pouco sobre as
tradições religiosas dessa cidade, percebe-se as fortes raízes e influências deixadas pelo negro
e pelo caboclo. A evangelização sempre esteve presente, porém muitas vezes aparece como
experiências de violência com a população. Sobre a evangelização, destaca-se que o próprio
fundador da cidade de Lages, Antonio Correia Pinto de Macedo, no ano de 1766, trazia
consigo a devoção àquela que viria a ser padroeira, madrinha e protetora do povoado, Nossa
Senhora dos Prazeres.
O caboclo é o não-descendente de italianos, alemães ou poloneses etc. Ele é o ‘brasileiro’ como pejorativamente é qualificado. Descendente de europeu cruzado com bugres e alguns negros, e depois casando entre si, [...] é um quase-escravo branco hoje. Explorado nas lavouras, peão nas fazendas, bóia-fria nos cinturões verdes das cidades, desempregados nas periferias urbanas: é um enjeitado social (RIBEIRO, 1988, p. 91)
No ano de 1768, a cidade de Lages é elevada a Paróquia, sob o patrocínio da Santa
Padroeira Nossa Senhora dos Prazeres e confiada aos padres diocesanos, até o ano de 1891
quando a paróquia passou a ser atendida pelos padres Franciscanos que, mais tarde, foram
responsáveis pela organização da Diocese de Lages.
48
Conforme o Plano de Diretrizes e Bases da Diocese de Lages, a Igreja, em Santa
Catarina, estava organizada em uma única diocese até o ano de 1926, tendo sua sede em
Florianópolis.
Por necessidades pastorais e devido à extensão geográfica, desmembraram-se, em
1927, a Diocese de Lages e a de Joinville. No processo de instalação da Diocese em Lages,
processou-se a romanização da igreja, configurada no Concílio Vaticano II (1875), ou seja,
um modelo de “Igreja Romana”, na qual a principal preocupação da ação pastoral era a
celebração de sacramentos, disciplina, catequese, procurando fortalecer os conteúdos e as
verdades da fé católica. Foi o tempo do Catecismo, uma igreja hierárquica, juridicista e
doutrinal.
A Diocese de Lages estendia-se desde o Planalto indo pelo centro até o oeste do
Estado de Santa Catarina (1920-1964). Funda-se o Seminário Diocesano, com o intuito de
formar padres, e, em 1959 desmembra-se a Diocese de Chapecó, em 1969, a de Caçador e em
1975, a Diocese de Joaçaba. Naquele período era intenso o serviço de religiosos e religiosas
em funções de saúde, educação, catequese, apostolado, obras sociais ou missionárias.
Uma igreja que durante a Primeira República, segundo Munarim, (1990, p.73-74):
Agia no sentido de ‘domesticar’ um povo anti-clerical, que lutava contra o catolicismo popular e que implantava a reforma tridentina, [...] já em 1929 tinha nomeado seu primeiro Bispo: Dom Daniel Hostin46, dando um novo impulso à romanização da Igreja na região e ao fortalecimento do catolicismo. Além de impor o centralismo administrativo e a defesa do clericalismo, suas opções político-partidárias e poder de persuadir, o aproxima das oligarquias politicamente dominantes, fazendo alianças.
Segundo o Plano de Diretrizes e Bases da Diocese de Lages, (2005-2009, p.11):
“Desde a fundação de Lages até os dias atuais, a história da evangelização da igreja presente
nesta Diocese foi marcada por diversas formas de ser, nos diversos contextos vividos pelo
povo serrano, sendo que no início, (1766-1920) apresentava-se como uma ‘Igreja Cabocla’47,
cuja religiosidade era oriunda das tradições religiosas indígena, africana e católica portuguesa.
Em relação a essa última são citadas como principais manifestações religiosas, naquele
tempo, a festa do Divino Espírito Santo, a de Nossa Senhora dos Prazeres, as de Santa Cruz,
do Senhor Bom Jesus e de Nossa Senhora do Rosário. A população cabocla traz em sua vida
46 O primeiro bispo que esteve à frente da diocese de Lages foi Dom Daniel Henrique Hostin (1927-1973),
seguido por Dom Honorato Piazera (1973-1987) e, em 1987, por Dom Oneres Marchiori, ainda até hoje (2007), à frente dos trabalhos diocesanos.
47 As expressões religiosas, cultos e crenças partiam da crença afro-luso-brasileira, ou ‘cabocla’, obedientes a uma cultura própria da região, bem como à resistência daqueles mais empobrecidos. De tempo em tempo o povo recebia a presença de padres, que vinham ao povoado para a realização dos sacramentos. (PDB Diocese de Lages).
49
religiosa, como forte característica, muitas devoções. Nesta religião de poucos padres, eram
comuns diversos ministérios como parteiras, benzedeiras, puxadoras de rezas, festeiros,
curandeiros e curandeiras, penitentes, cantadores, cuidadores de capelas e de cemitérios. Em
Lages, a Igreja “Povo de Deus” contou, desde o início com o engajamento feminino. A
mulher foi presença marcante, ao lado do homem, nas construção dessa Igreja que lutava
contra as diversas formas de opressão, tendo papel de destaque nesses Ministérios. A
participação da mulher, voltada sempre para a obtenção de melhorias para a vida de sua
família e, para isso, executando as mais variadas atividades, dentro do lar, na roça, na beira do
rio. Em casa, naquela época, como ainda hoje, a mulher tinha sob sua responsabilidade as
mais variadas tarefas e, muitas vezes, enquanto as executavam encontravam tempo para
‘benzer’, fazer remédios caseiros, e realizar partos. “É mulher, dona de casa, / sem tempo pra
descansar, / Faz o almoço, faz a janta, / E, à noite, lá pras tantas, ela ainda sem deitar.”
Quando precisa auxiliar economicamente no sustento da família, não hesita em, além das
tarefas domésticas, trabalhar para outras pessoas: “Vai pra beira do riacho, / com a trouxa na
cabeça, / pra ganhar uma mixaria, / lava roupa todo dia, / se resfria e não se queixa.” Dentro
de casa, no riacho, na roça ou em qualquer outro lugar e trabalho, a mulher se apercebe de
que, para realmente melhorar sua vida, precisa engajar-se na luta comunitária : “É a mulher
que se organiza / E ao homem dá a mão, / Duas forças bem unidas, / Pra fechar esta ferida, /
e acabar com a opressão.”
Pode-se citar como fortes expressões de liderança política e espiritual nesta igreja
cabocla de Lages, no período de 1870 a 1916, João Maria de Agostinho, João Maria de Jesus
e José Maria48. Como orientadores de condutas e estilos de vida, foram líderes que mostravam
a realidade no contexto de um ambiente rústico, pobre, sem escola, nos quais os próprios
valores culturais são ensinados e perpetuados pela tradição oral. Foram monges profetas,
aglutinadores de homens e mulheres, como, por exemplo, Maria Rosa, fortalecendo o espírito
de cooperação e solidariedade em seus grupos, na Guerra do Contestado49 (1911-1916). Por
certo esses monges ainda habitam o imaginário individual e coletivo de muita gente do
Planalto Serrano. Lembrados até os dias de hoje, em devoção aos monges, em diversas
comunidades, grutas recebem grandes romarias, relembrando a fé e a forma religiosa.
48 Denominados pelo povo como Monges ou Profetas, foram de grande influência nesse jeito de igreja popular,
iam de casa em casa abençoando, curando, profetizando, plantando cruzes próximas às fontes de água, nas grutas e fazendo convites para que o povo rezasse e lutasse contra a fome, a peste e a guerra.
49 Movimento Messiânico, fenômeno religioso que moveu milhares de caboclos – diretamente envolvidos ultrapassou os 20 mil que se puseram em luta de vida ou morte liderados pelo Monge José Maria, numa “Guerra Santa”. O misticismo é que foi o espaço de unidade e de coesão militar interna dos caboclos em guerra. Ver mais em Derengoski (2000), Cabral (2000), Auras (1984), Thomé (2002), Valentini (1998).
50
Também as ‘virgens’ do Contestado ainda são lembradas na região de Lages, durante reuniões
ou em Romarias, em versos cantados que exaltam os feitos de ‘Chica Pelega’ e de ‘Maria
Rosa’, relembrando a bravura da mulher serrana.
Em pesquisa realizada em documentos no Centro Diocesano de Pastoral,
acompanhada pelo Monsenhor Andréas Wiggers50, pôde-se constatar que a partir de 1980
surgiram, na diocese de Lages, diversos segmentos pastorais, entre eles, Pastoral da Saúde, da
Terra, da Criança, Operária, da Juventude.
Cresce o trabalho da Cáritas Diocesana, dos Centros Sociais, que conjuntamente
formam a Pastoral Social. Renovam-se as Liturgias e diversificam-se os ministérios leigos,
sendo que novos processos são estimulados pelo Instituto de Teologia Pastoral da Diocese de
Lages, incentivando o leigo como protagonista, no sentido de se criar uma igreja participativa,
ministerial, celebrativa, missionária, ecumênica e transformadora. Essas ações foram
favorecidas com o nascimento do Jornal ‘A Caminhada’ que, tendo como conteúdos a
realidade social, política, econômica, cultural e religiosa da Diocese de Lages, produz
subsídios para realização de catequese e Grupos de Famílias.
Os encontros dos Grupos de Famílias, nas comunidades de Lages, são realizados de
forma circular, a cada semana na residência de uma das famílias que compõem o grupo. Essas
reuniões têm como base, o Jornal ‘A Caminhada’ e os livrinhos das novenas, com letras de
canções em que se relacionam fé e vida. A leitura da “Palavra de Deus” e as leituras das
“Palavras da Vida”, trazem a realidade da comunidade local, e são sempre intercaladas por
canções populares, conduzidas ou não pelo toque de um instrumento musical, geralmente o
violão. O “Grupo de família CEBs” é uma ação evangelizadora em que as pessoas se
encontram para estudos, leituras, meditações e trocas de idéias. Fazendo a partilha, o Grupo
de Famílias dá sustentação às Comunidades Eclesiais de Base. Uma caminhada
evangelizadora, sempre com a intercessão da padroeira da Diocese, Nossa Senhora dos
Prazeres, Companheira de Caminhada.
50 Vigário Geral da Diocese de Lages, recebeu o título de Monsenhor, concedido pelo Papa João Paulo II, no
ano de 2003. Ordenado Padre aos 28 anos, desempenhou com fidelidade os cargos a ele confiados. Sempre presente na Comissão Pastoral da Terra, destacando-se na luta em favor dos agricultores, na defesa dos trabalhadores sem-terra e na conscientização em torno dos problemas das Barragens, além do trabalho ecumênico e do ensino religioso. Coordenador Diocesano de Pastoral, responsável pelos arquivos do Centro Diocesano de Pastoral.Recebeu na assembléia Legislativa de SC a medalha Dom José Gomes em 20 de Novembro de 2006. (Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina – sessão solene de Outorga).
51
Em entrevista cedida a esta pesquisadora, Padre Henrique51 comenta como foi o
surgimento do jornal ‘A Caminhada’que veio para embasar os encontros dos grupos e da
catequese na Diocese de Lages: “naquele período de 77/78 ainda não se falava em CEB’s, em
Lages. A partir das capelinhas de Nossa Senhora, que passavam de casa em casa,
coordenadas por uma senhora que era a zeladora, lideranças da igreja tomaram a iniciativa
de criar a ‘Folha do Mês’, onde se expunha um tema para se pensar e se convidavam as
famílias para, durante o mês, debater sobre aquela realidade. As pessoas passaram a se
reunir nas residências, refletindo sobre o determinado tema”.
Passam a se firmar movimentos eclesiais52, que surgem na busca da espiritualidade
sustentadora da missão das famílias: a Legião de Maria, o Apostolado da Oração, Encontro de
Casais, Lareira, Grupos de Jovens, Equipes de Nossa Senhora.
Ainda na década de 80 emergem, na Região Serrana diversas Organizações e
Movimentos Populares, como: MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens)53, em 1984,
novo sindicalismo e implantação de novos sindicatos de trabalhadores rurais e urbanos em
1984), e MMA (Movimento das Mulheres Agricultoras) em 1985.
Abre-se espaço para a participação de líderes de diversos segmentos, não sendo mais
o espaço geográfico, ou o grupo que freqüenta, um determinante no relacionamento pessoal.
A igreja católica assume e apóia diversas reivindicações.
Conforme salienta Padre Andréas Wiggers: “uma das tônicas pós-Conciliares da
Evangelização é a preocupação com o ser humano por inteiro. A Igreja assume e apóia
diversas reivindicações de ordem econômica, social e política que se apresentam como
resultado, nas grandes cidades, dos conflitos sociais exacerbados. Surgem os agentes de
pastorais que absorvem-se destas tarefas em que predominam a inquietação e o
questionamento de que a Igreja esteja se afastando da sua função específica. A instituição
que antes era vista apenas como celebrativa, naquele momento revestia-se de força para
assumir um compromisso com ‘o mais pobre e pequeno’, com o oprimido”.
Relacionando CEBs com as lutas populares, a alfabetização de adultos, as
celebrações e as conquistas da população, conclui-se que elas têm por meta incentivar as
51 Padre na Catedral de Lages no período pesquisado, fundador da Escola de Teologia na cidade, atua hoje na
Paróquia Nossa Senhora das Graças à qual pertence o Bairro Habitação, formado no processo de mutirão no período da administração de Dirceu Carneiro.
52 Grupos de cristãos e cristãs que vivem no seguimento de Jesus, na comunhão com seus pastores e acreditando na Ressurreição de Jesus, que faz ‘acontecer a Igreja’, a prática das primeiras comunidades contidas na Bíblia.
53 Em Lages não houve construção de barragens, mas os lageanos engajados nos Movimentos Sociais, apoiavam os que, em outras regiões, eram atingidos por elas.
52
camadas populares para que não desistam de seus sonhos, fortalecendo a esperança de
concretizá-los e promovendo a formação de consciência crítica num sentido mais amplo.
Com as CEBs desafia-se a comunidade que se organiza nas diversas frentes de
trabalho não só a buscar uma convivência pacífica nas diferentes estruturas, mas a procurar
uma articulação funcional e uma cooperação mútua e fecunda na busca de novas estruturas.
De acordo com Locks (2006)54, depois de meados da década de 80 ocorrem
mudanças sociais, políticas, econômicas e religiosas em âmbito nacional e internacional,
produzindo alterações no modo de ser das CEBs. É a partir do esgotamento do regime militar,
quando do processo de democratização da sociedade, que surgem outros atores sociais, então
chamados de Novos Movimentos Sociais, Organizações Não Governamentais (ONGs) e
conselhos gestores de políticas públicas e de controle social em todas as esferas do Estado.
Desta forma surge um conjunto de novas e diversas organizações sociais atuando ao lado das
CEBs.
Continuando a pesquisa em materiais do arquivo da diocese de Lages, em 1989 as
comunidades cristãs celebravam 60 anos de instalação desta Diocese, acontecimento este que
denominou-se ‘Ano Mariano’, com o lema: “Maria, Companheira de Caminhada”. Naquele
ano, se fez levantamento de dados e análise da realidade além de encaminhamentos do novo
Plano Diocesano de Pastoral. Foi um ano de peregrinação da imagem da Padroeira, Nossa
Senhora dos Prazeres por todas as comunidades paroquiais da Diocese. Nessa época, algumas
das canções em louvor à Maria, não deixavam esquecer da necessidade da luta em favor dos
oprimidos: “Intercessora Maria, / Perfeita harmonia, / Entre nós e o Pai. / Justiça dos
explorados, / Combate o pecado, / Torna os homens iguais”. Outros versos imploravam que
ela, Maria, fosse a intermediária entre os homens e a sonhada liberdade: “Ave, Maria dos
oprimidos, / abre a nós teu coração / bendito é o fruto do teu ventre / Que é semente de
libertação.”
Hoje a Diocese de Lages compreende 16 municípios do Planalto Serrano
Catarinense: Lages, Anita Garibaldi, Bocaina do Sul, Bom Retiro, Bom Jardim da Serra,
Campo Belo do Sul, Celso Ramos, Correia Pinto, Curitibanos, Otacílio Costa, Painel, Ponte
Alta, São Cristóvão do Sul, São Joaquim, São José do Cerrito e Urubici.
54 Projeto de Doutorado: “As Cebs não morreram: Grupos de Família na contemporaneidade em Lages/SC”,
2006, (mimeo).
53
Fonte: LS Publicidade Lages (2007).
Figura 3 Mapa da Região Serrana do Estado de Santa Catarina
Nos anos 80 esta Diocese era composta por três Comarcas e 21 Paróquias além de ser
a maior do Estado em área geográfica. Naquele período, a população de 350.000 (Trezentos e
Cinqüenta mil) habitantes55 desta diocese apresentava características mais ou menos
semelhantes, isto porque a origem de todos estava ligada à história de Lages. À medida que as
localidades alcançaram a autonomia administrativa, foram se desmembrando de Lages.
Alguns ‘Movimentos Populares’ que deram abertura ao processo participativo das
Comunidades podem ser citados:
A partir dos movimentos dos atingidos pelas barragens, o trabalhador rural começou a sentir sua força. Manifestações surgem como a ‘Caminhada do dia 1º de Maio’ e a ‘Romaria do Trabalhador’. Reuniões são realizadas onde se discute o saber popular e as lutas imediatas do trabalhador, como ‘Constituinte’ e ‘Reforma Agrária’. O saber popular é valorizado nas ‘Mostras do Campo’. As associações de produtores rurais se organizam articuladas aos trabalhadores urbanos. A prática assistencialista das diretorias dos Sindicatos são questionadas. O sindicato de Curitibanos, combativo, é fortalecido pelos movimentos dos Sem Terra e as Mulheres Agricultoras também se unem e se organizam no seu sindicato. O trabalhador rural sabe que não deve plantar em tempo de queimada. Reforma Agrária é a nossa bandeira, sindicalismo é prioritário, mas nosso propósito é nos firmarmos na terra. (CEBs, Secretariado Diocesano de Pastoral, Projeto Vianei de Educação Popular, tecnologias Alternativas – Anos 80).
55 Arquivo Secretariado Diocesano de Pastoral, Plano de Diretrizes da Diocese de Lages, 2005.
54
As CEBs constituíram-se em espaços de sociabilidade e de educação para um grande
número de moradores de áreas rurais e urbanas de Lages, sendo que, nos dias atuais, a maioria
daqueles que na década de 80 participavam ativamente destes grupos, estão ligados a
Sindicatos de trabalhadores, Rádios Comunitárias, Cooperativas, Associações, ou migraram
para partidos políticos, exercendo funções na esfera do Poder Executivo ou Legislativo em
alguns municípios da região (LOCKS, 2006, mimeo).
2.3 A Canção Popular como arte nos movimentos sociais – CEBs
A música sempre se apresenta na vida de todos os seres humanos como expressiva
manifestação cultural, e, dependendo do momento sócio-histórico em que é produzida, a
música é não apenas fonte de alegria e enlevo espiritual mas também, como retrato da
situação vivida no momento de sua produção, excelente meio de denúncias e/ou de incentivo
a determinadas ações, promovendo ou sendo fator de demarcação das posturas ideológicas, de
forma individual ou coletiva, nas mais diferentes atividades e nos mais diversos grupos
sociais, entre eles as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
Dentre as diversas formas de manifestações culturais, a canção popular, tem
inestimável valor como veículo de transmissão de conhecimentos, nas mais diversas áreas,
podendo, também, em algumas situações socioeconômicas ou em determinados períodos
históricos, ser transformadas em grito de protesto pelo desamparo e pelo descaso que, muitas
vezes, as classes menos favorecidas sofrem. O vigor que emana das letras das canções
populares parece expressar a luta dos grupos pela reconquista da sua identidade e
pertencimento a uma determinada sociedade. Com essa diretriz, manifesta-se de forma mais
intensa nos grupos mais diretamente envolvidos com a ideologia das lutas das comunidades
de base.
O atributo democrático da canção busca significar a criatividade comunitária, sendo
elemento participativo pelo qual o grupo se identifica e se caracteriza. É pela canção, ao
identificar-se com o conteúdo das letras, que os integrantes do grupo constroem o seu
convívio, tecem as suas expressões e participam da construção de uma nova realidade.
55
Numa grande diversidade de modos e gêneros, a música faz parte do dia-a-dia da
população, principalmente a canção popular, também chamada de ‘arte do povo’56, em que se
caracteriza a expressão da comunidade, seus valores e culturas, moldados a partir das
necessidades coletivas e no modo de resolverem seus problemas.
A canção popular está presente na maioria das atividades humanas, de forma mais
relevante e próxima nas atividades daqueles que, tanto como criadores, quanto como
receptores, tiveram menor acesso à escolaridade. Além disso, a canção popular tem um forte
poder comunicador, difundindo-se rapidamente e atingindo, de uma ou de outra forma, todas
as classes sociais.
Se a canção popular pode constituir um verdadeiro acervo de informações para se
conhecer melhor os espaços ainda desconhecidos da história destas comunidades e de suas
crenças e valores, torna-se importante levar em consideração que esse gênero musical pode
descortinar certas realidades da cultura desta comunidade e ser encarada como uma rica fonte
de informações, ainda pouco valorizada pela historiografia.
A canção, vista apenas como arte, é voltada para o individual, onde quem cria é o
gênio, o realizador. Já a canção popular é direcionada ao coletivo, dialoga com outras áreas do
conhecimento, é expressão viva das comunidades, da sua cultura, contém suas alegrias,
angústias e esperanças.
Para Fischer (1987, p.13), “o homem anseia por unir na arte o seu ‘eu’ limitado com
uma existência humana coletiva e por tornar social a sua individualidade”.
A canção popular, especialmente a das CEBs, pode ser considerada uma arte
“engajada”, que se envolve não somente na questão da alfabetização, mas, como Arte
transformadora e libertadora, capaz de oferecer incentivo às mudanças qualitativas e às
reformas estruturais, além de ser anti-autoritária, anti-massificadora e anti-elitista, já que,
resultante do interesse mútuo das classes populares, une coerentemente a teoria com a prática.
Assim, a canção popular aparece não só como arte e cultura de um povo, mas como
instrumento de integração das camadas populares, por meio de mensagens que traduzem o
sentimento de uma classe em sua busca por mudanças significativas da realidade e na sua luta
pela igualdade e pela promoção da cidadania.
É desta forma que Fischer (1987, p. 20) acrescenta: “é verdade que a função
essencial da arte, para uma classe destinada a transformar o mundo não é a de fazer mágica,
mas de esclarecer e incitar à ação”. O mesmo autor diz (1987, p. 57-58): “A arte capacita o
56 A arte do povo era considerada prova de ter sido espontaneamente criada por uma misteriosa comunidade
não-individualizada e sem consciência (FISCHER, 1987).
56
homem para compreender a realidade e o ajuda não só a suportá-la como a transformá-la. [...]
A arte precisa mostrar o mundo como possível de ser mudado e ajudar a mudá-lo”.
Com isso, a poesia, que antes encantava, agora vinha com uma qualidade nova: a de
impor-se como canção de protesto contra o autoritarismo e a desigualdade social. Conforme
Fischer (1987, p. 8):
à medida que a vida do homem se torna mais complexa e mecanizada, mais dividida em interesses de classes, menos interessada no espírito coletivo, a função da arte é refundir esse homem, torná-lo de novo são e incitá-lo à permanente escalada de si mesmo.
Quando utilizada como instrumento de construção e transformação social, uma vez
produzida em determinada comunidade e para as pessoas que nela moram, a canção popular
retrata essa sociedade reconstituindo, de forma musical, sua fala, sua ginga, seus anseios, toda
a sua vivência, mesmo que, por essa razão, muitas vezes seja censurada.
A canção popular cria a possibilidade de levar o indivíduo ao próprio encontro, ao
fortalecimento de sua identidade, ao conhecimento de sua história e de sua cidade, estado,
país. Nas CEBs, a canção popular, intencionalmente dirigida, muitas vezes apresenta letras de
conteúdo político e social, tornando-se instrumento de conscientização57 das classes
empobrecidas. Desta forma, o artista/compositor/cantor torna-se capaz de criar uma nova
realidade social no sentido coletivo, expressando em suas letras os anseios da comunidade.
Nas décadas de 60 e 70 do século XX, houve mudanças consideráveis no
comportamento da sociedade. Os Movimentos Eclesiais de Base foram fortes aliados nessa
tomada de consciência de valores que possibilitava maior reflexão sobre uma nova realidade
histórica. Segundo Brandão (1954, p. 6), “a canção popular é vista como expressão cultural,
podendo servir tanto para representar os anseios de liberdade, amor, solidariedade, como
também para reforçar a dominação ou formas de resistência a essa dominação”.
Assim, o engajamento político explícito na letra das canções, preocupa-se com um
novo dia, acreditando que as coisas podem melhorar. O poeta/compositor, inconformado com
o seu tempo, faz com que a música apareça com dupla função: encantar como poesia
sentimental e se impor, com o poder de convencer.
Conforme Aguiar (1996, p. 45), em cada momento histórico a música se fez presente,
reunindo cultura e política nos movimentos sociais, “mas como os versos não explicam o
57 Conscientização: Pensar as relações entre si e o significado próprio da existência humana e a circunstância
histórica que determina alguns aspectos mais importantes dessa existência (WANDERLEY, 1987).
57
significado dos tempos, cabe-nos contextualizá-los conforme a época da composição”,
codificando e fazendo uma leitura do período a que se refere.
Todas as Artes são influenciadas pelas características do período histórico em que as
mesmas se manifestam, o qual, por sua vez, é também influenciado pelas Artes. Daí a
necessidade de vincular o estudo das mesmas à história econômica, política e social dentro do
respectivo contexto. A música popular brasileira não foge a essa regra havendo, portanto, no
seu estudo, necessidade de relacioná-la aos momentos históricos que influenciou e dos quais
resulta.
É o que salienta Vasconcellos (1977, p. 81):
no limiar dos anos 60, época em que os intelectuais do Brasil depositavam uma confiança inocente no poder da cultura em transformar a realidade, a canção popular foi concebida enquanto instrumento privilegiado de catalisação política de alguns setores da população.
De acordo com Bastide, (1979, p. 3), “a arte não é um simples jogo individual, sem
conseqüência; pelo contrário, agindo sobre a vida coletiva, pode transformar o destino das
sociedades”. Assim, a música é vista como um instrumento essencial e possível de ser
utilizado com eficácia nos diversos movimentos de diferentes áreas, preocupados com a
mudança social.
Ainda segundo Bastide (1057, p. 57):
[...] compreende-se que a palavra apareça como tendo um poder mágico considerável, pois que basta falar para que no mesmo instante se dê toda uma série de mecanismos motores: é a voz que cria. Chegaremos então forçosamente à idéia que a magia da palavra é primitivamente uma magia de música.
A música popular brasileira exerceu uma forte influência na linguagem e no
comportamento de amplos setores da juventude, sendo que, nas décadas de 60 e 70, a questão
política incorporou-se a ela de tal forma que esta, escancaradamente, mostrava-se como uma
canção de protesto. Um exemplo muito forte de como a canção expressa os dilemas de uma
geração, encontra-se na música “Pra não dizer que não falei das flores”, composta por
Geraldo Vandré em 1968, período da ditadura militar. É uma letra que denuncia a situação
dos oprimidos: “Pelos campos a fome em grandes plantações”, e a situação daqueles que,
embora fazendo “[...] da flor seu mais forte refrão” por acreditarem “[...] nas flores
vencendo o canhão” continuam “perdidos de armas nas mãos” pois “Nos quartéis lhes
ensinam antigas lições/ De morrer pela Pátria e viver sem razão.” A Diocese de Lages,
apropriou-se da letra desta Canção, copiando-a, na íntegra, na contracapa de seu livreto de
‘Cantos’ utilizado pelos diversos grupos de CEBs, em todas as paróquias locais, urbanas e/ou
58
rurais. Este livreto (2ª Edição) traz na capa o título: “Caminhando e Cantando”, ou seja, as
duas palavras iniciais da canção de Vandré, as quais resumem o trabalho realizado pelas
CEBs de Lages que, enquanto cantam com alegria, procuram mostrar a seus integrantes que
ninguém deve se sentir inferior, sendo, às vezes, necessário lutar, mesmo sem armas, pela
igualdade entre todos: “Nas escolas, nas ruas, campos e construções/ Somos todos soldados,
armados ou não/ Caminhando e cantando e seguindo a canção/Somos todos iguais/ braços
dados ou não”. As últimas palavras da canção indicam que todos podem mudar a realidade
“Aprendendo e ensinando uma nova lição”.
No contexto histórico dos anos 60/70 a música popular procurava passar uma
mensagem de protesto, deixando em segundo plano a dimensão estética, que, anteriormente,
seria fundamental colocar-se acima de qualquer outro aspecto. Fischer (1987, p.58), lembra
que a Arte não se limita a apenas agradar seu público, “a arte precisa mostrar o mundo como
passível de ser mudado e ajudar a mudá-lo”. Este conceito é bastante difundido dentro das
CEBS, as quais procuram concretizá-lo por meio das letras de suas canções que incentivam os
integrantes desses movimentos a lutarem pelas mudanças necessárias. A respeito do
importante papel desempenhado pelas Comunidades Eclesiais de Base e de suas canções
pode-se lembrar que a música, como Arte, sempre fez parte das celebrações religiosas, nas
quais há cantos específicos para cada ocasião. A esse respeito, Bastide (1979, p. 11) relata:
As principais formas de arte parecem ter nascido da religião [...] O estado efervescente em que se encontram os fiéis reunidos se traduzem no exterior por movimentos exuberantes [...] desdobram-se, pelo simples prazer de se desdobrar numa espécie de jogo.
A partir desta constatação, percebe-se que no rito religioso também aparece o espaço
para a recreação, ou seja, para a Arte. Daí as cerimônias religiosas revestidas de ar festivo,
enquanto que algumas festas populares, mesmo leigas revestem-se de caráter religioso. Para
Canclini (1982, p. 52):
[...] esta arte para as massas, ou folclore, presente nas festas populares ou nas festas religiosas, sintetiza a totalidade da vida de cada comunidade. Mais diretamente as festas religiosas surgem como movimentos de unificação da comunidade que se reúne para celebrar os acontecimentos ou as crenças populares que vêm das experiências do dia-a-dia, com a natureza e com os outros homens ou que são impostas pela igreja ou também pelo poder cultural, estando assim vinculada a festa à vida em comunidade do povo. [...] por outro lado reafirma as diferenças sociais, beneficiando os que já possuem muito e promovendo a exploração sobre o povo. (CANCLINI, 1982, p. 52).
Assim, ainda de acordo com Canclini, as festas populares e/ou religiosas, que
sintetizam os diversos aspectos da vida comunitária em que se realizam, podem, sob um outro
59
olhar, ser consideradas como denunciadoras da situação de desigualdade social, tornando-se,
por isso, capazes de evidenciar o distanciamento entre as camadas populares e as elites.
Dessa forma, em toda e qualquer manifestação de uma coletividade, diante da
presença da Arte, em especial, da música, considera-se importante a presença do artista que,
por meio de suas aptidões, coloca-se a serviço da comunidade onde vive, sendo um
representante na concretização de anseios coletivos, utilizando a Arte que realiza como
instrumento de transformação social. Bastide (1979, p.144) complementa:
[...] a arte pode se apresentar como oposição, como reação contra a sociedade, como crítica do Estado, da religião, que o artista surge freqüentemente como um refratário, um herético, um não conformista ou um desadaptado. Mas tal observação só tem valor para uma sociedade homogênea, uma comunidade sem diferenciação; então, seria realmente curioso que o artista não fosse o eco de seu ambiente, o cantor dos sentimentos coletivos.
Portanto, a arte pode ser uma oposição à vida social, ou até mesmo uma fuga ao real.
Também pode ser vista, especialmente no caso das CEBs e dependendo das circunstâncias,
como forma de oposição ou de apoio às instituições sociais, como família, escola e meios de
comunicação, criticando-as ou abatendo-as, mas podendo, da mesma forma, incentivá-las
quando o seu caminho é o da construção de um mundo melhor. Assim, Por meio de seu
criador, a Arte se compromete com a vida humana, sem distinção de cor, raça, religião. “Eu
te faço meu profeta/ Para arrancar e destruir / Sobre reinos e nações, / Pra plantar e
construir [...]” (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994)
2.4 A Canção Popular nas CEBs: o sentimento, as pulsações e o sonho de vencer de
homens e mulheres em ação.
Uma vez que a sociedade é bastante heterogênea, tendo diferentes práticas culturais,
que se submetem à divisão do trabalho, e diferentes grupos, hierarquias e classes, esta
sociedade se traduz por meio de diversas representações coletivas.
De acordo com Semeraro (2001, p. 236):
A sociedade civil, hoje, tornou-se mais complexa e diferenciada, mais volátil e contraditória. Possuímos maiores e melhores instrumentos de informação e expressão: ao mesmo tempo, porém, o poder da mídia, da produção simbólica e da manipulação do imaginário se expandiram de maneira incontrolável. Cresceu espaço para as diferenças, a pluralidade dos grupos e o reconhecimento das minorias, mas ficaram afetados o sentido do conjunto e as dimensões públicas.
60
Essas diferenças refletiram-se, principalmente nas camadas populares que foram
vendo suas oportunidades diminuírem. Mesmo com o aumento do número de empresas, a
tecnologia fez com que o trabalhador necessitasse cada vez mais de qualificação, ao mesmo
tempo em que era, na maioria das vezes, substituído por máquinas.
Ainda de acordo com Semeraro (2001, p. 236):
Nas fábricas foi reduzido o número de trabalhadores, enquanto despontavam novos setores de produção, aumentou o desemprego, difundiram-se práticas de trabalho autônomo e informal. Os partidos se multiplicaram, surgiram movimentos e organizações nacionais e internacionais em defesa dos mais diferentes direitos humanos e da natureza. A sociedade, que parece se segmentar em incontáveis formas de vida localizada, vive o fenômeno da globalização, assim como paralelamente à exaltação da subjetividade e da singularidade, formam-se imensas massas de excluídos e de desenraizados. [...] Não é mais a pátria, [...] a ideologia, o progresso que movimentam as paixões e fazem apelo aos sentimentos populares. Existem interesses e preocupações bem diferentes que se relacionam mais com as questões da ecologia, da violência, da saturação das cidades, do desemprego, das migrações, dos poderes paralelos, da apatia política e do indiferentismo social.
Pelo que diz Semeraro (2001) a respeito dos escritos de Gramsci, pode-se concluir
que o homem tem condições de reinventar a sociedade, partindo de iniciativas livres e
responsáveis e, dessa forma, traçar os rumos da própria história. Dentro dessa concepção tem
início a organização de grupos que entendem a ação política não como função apenas de
pessoas que possuem um ‘cargo’ público, mas como um ‘ato criador e socializador de toda a
população’.
Surgem, assim, novas relações sociais de solidariedade que, por meio da animação
popular auxiliam no processo de promoção do ser humano pela própria ação do grupo, cujos
integrantes pensam, planejam e agem em comum, sabendo que é essencial partir da reflexão
para a ação “ Formamos a Igreja Viva / Que caminha para o reino do Senhor. / Vivendo em
comunidade / Nós faremos este mundo ser melhor. // Vamos juntos construir fraternidade /
Trabalhando pela Paz universal. / Ser sementes de uma nova sociedade / gente unida para
combater o mal.” (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).
Com o engajamento político explícito na temática da canção, o que confirmava o
poder revolucionário que a arte possui, defrontando-se com a força castradora da censura e da
repressão no período da ditadura militar, momento triste da história para o país onde as
liberdades democráticas estavam suspensas, várias canções foram proibidas e os
compositores, presos ou exilados. Nesse período, em alguns Movimentos Populares de Lages
já se cantavam muitas canções que clamavam por justiça e liberdade das camadas populares.
As letras eram criadas a partir da vivência dessas comunidades diante da opressão em que
viviam. Abre ,Senhor, os meus lábios / Pois quero entoar a canção, / Que vem da fonte da
61
vida / e toma o meu coração. / [...] Quando a vida se torna / Deserto de dura aflição, / Que
nós possamos ouvir-te, / mostrando-nos a direção. //(CAMINHANDO E CANTANDO,
1994).
A canção de protesto aparece como agente de transformação histórica com seu tempo
verbal indicando sempre o futuro, “o que há de vir”. E com a presença castradora da censura e
da ameaça, são suspensas as liberdades democráticas no plano cultural com a expressa
proibição de canções e espetáculos, surgindo a necessidade de decodificar as letras dessas
canções conforme o contexto histórico da época em que são produzidas. “Vendo no mundo
tanta coisa errada / A gente pensa em desanimar. / Mas quem tem fé sabe que está com
Cristo/ Tem esperança e força pra lutar. // Não diga não que Deus é culpado / Quando na
vida o sofrimento vem. / Vamos lutar que o sofrimento passa / Pois Jesus Cristo já sofreu
também. / Libertação se alcança no trabalho. / Mas há dois modos de trabalhar: / Há quem
trabalha escravo do dinheiro / Há quem procura o mundo melhorar. // E pouco a pouco o
tempo vai passando... / A gente espera a libertação. / Se a gente luta ela vai chegando. / Se a
gente pára, ela não chega não!” (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994)
O engajamento político surgia explícito na letra da canção, a partir de uma exigência
exterior. Nessa época, de acordo com Vasconcellos, (1977), anteriormente citado,
ideologicamente, a música passa a realizar uma função revolucionária, tornando visíveis as
diferenças sociais e o autoritarismo e vindo a ser instrumento catalisador político de alguns
setores populacionais.
Com essa mesma intenção, a produção musical dentro das comunidades eclesiais de
base é feita pelo próprio grupo, por agentes de pastoral que se identificam com a questão do
movimento. Pode ocorrer que esta canção seja adaptada de outra situação e que, por responder
ao problema da comunidade, o grupo dela se aproprie, como no caso já citado neste capítulo,
da apropriação, pela Diocese de Lages, da canção de Vandré. Pode também ocorrer somente a
utilização do ritmo de outra canção com apenas a mudança da letra que reflita a realidade
local.
As letras de canções populares criadas pelos próprios participantes das CEBs, ou
adaptadas pelo grupo, com conteúdos que enfatizam as necessidades comuns e a realidade
vivida, induzem à resistência contra a violação da liberdade ou protestam contra tudo o que
oprime e desagrega o ser humano numa sociedade controlada pelo capitalismo. Surge, nessas
canções, um processo de busca pela construção da cidadania, uma forma coletiva de reflexão
e de ação sobre os processos de emancipação e seus desafios.
62
Percebe-se nessas canções o reflexo do processo de mudança iniciado com o
Concílio Vaticano II e que resulta em atitudes de inconformismo e críticas, propiciando
diversas expressões pastorais. O contato com os outros, no trabalho profissional, no lazer, nas
atividades culturais e/ou sociais, abre maiores possibilidades de convivência. Paralelamente às
estruturas eclesiásticas tradicionais surgem instituições tais como as Comunidades Eclesiais
de Base, e outras, as quais buscam respostas às novas formas de convivência urbana,
É principalmente nessas comunidades que se almeja ver um modelo de sociedade
que, caracterizado pelo ideal de cooperação, solidariedade e companheirismo, seja capaz de
modificar uma sociedade marcada por desigualdades e exclusão social. A canção popular,
dentro dos movimentos, geralmente, é a forma encontrada pelos participantes para dizer o que
sentem, para denunciar o que está errado e para provocar uma formação de consciência a
partir da realidade do grupo, expressando o sentimento coletivo e abrindo possibilidades para
a ação transformadora. “Transforma, Senhor, pão e vinho: / São frutos do nosso labor; / A
nossa palavra em ação, / Transforma, transforma, Senhor. / Transforma, Senhor, nossa vida,
/ Em novos critérios de amor. / A nossa fraqueza em perdão. / Transforma, transforma,
Senhor. / Transforma, Senhor, a injustiça, / o ódio, a inveja, a dor. / A nossa pobreza, em
união, / Transforma, transforma, Senhor.” (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).
Assim, quando se produz e/ou se utiliza a canção dentro do movimento ela ocupa um
espaço significativo, produzindo novos saberes, fazendo acontecer aprendizagem desde as
relações do dia-a-dia até o processo de luta pelas conquistas. A canção aparece como um
instrumento pedagógico auxiliando na construção do conhecimento e no discernimento de
atitudes.
Quando o grupo presta atenção às letras das canções que são escolhidas para os
encontros, despertam-se sentimentos e emoções que não seriam percebidos a não ser através
delas. Esta canção permite compreender as transformações que ocorrem no movimento e
impulsiona seus participantes a fazerem parte deste processo como sujeitos que se organizam,
que aprendem e que se põem a serviço da comunidade.
A canção popular presente nas dificuldades e obstáculos enfrentados pelo grupo
também aparece nos momentos de vitória, caracterizando-se conforme o gosto predominante
na região. Em Lages, como citado anteriormente, na preferência da população, existe mistura
de gêneros musicais com destaque para o popular e o nativista. Dessa forma, a canção popular
aponta elementos de identidade dos envolvidos nos Movimentos Sociais e sugere uma
perspectiva de alteração da realidade a partir do momento em que, no sentido coletivo, se
forma uma nova consciência crítica.
63
Nesse contexto, durante os períodos eleitorais, muitas vezes a canção popular se fez
presente e até ajudou a eleger alguns políticos. Em Lages, a campanha do candidato Fernando
“Coruja”, que o elegeu como prefeito, teve como “mote” de campanha uma “quadrinha”
ouvida dia e noite, cantada inclusive por crianças cujos pais eram adversários políticos, mas
que não conseguiam proibir os filhos de repetir a fácil e agradável canção popular. Apesar de
alguns dos candidatos haverem sido eleitos com o apoio de muitos integrantes de CEBs
muitas lideranças das ‘organizações populares’ - o trabalho de base, considerado como
‘responsável’ pela mobilização e formação permanente dos sujeitos como protagonistas do
processo de mudança social- lideranças essas com importante desempenho na formação da
consciência crítica individual e/ou coletiva, acabaram afastando-se da liderança das CEBs,
desiludidos em decorrência da falta de atendimento dos projetos sociais apresentados às
autoridades políticas competentes para torná-los realidade.
A partir dos problemas vividos pela comunidade da Diocese de Lages, quando frente
a desafios e exigências do clamor dos trabalhadores, os grupos se desenvolvem articulando
espiritualidade e ação no novo jeito de ‘ser Igreja’ (CEBs) e a formação dos trabalhadores
visa à construção de um projeto político onde todos possam ter vez e voz.
Nas diferentes necessidades que vão desde a luta pela terra, a busca pela reforma
agrária, a preservação do meio ambiente, o saneamento, a moradia digna e a qualidade de
vida, busca-se fortalecer a organização criando-se estratégias que venham contemplar a
conquista desses direitos. Por meio da canção popular, que serve de animação e divulgação de
valores dos próprios participantes do grupo, as classes populares passam a compreender-se
num constante processo de construção. Manifestando, pela música, sua própria história,
traduzida em versos, conseguem perceber que são sujeitos capazes de construir uma sociedade
mais justa, especialmente se estiverem unidos. A percepção de que todos são capazes de
alguma ação pode ser percebida nesta letra: “Pelas estradas da vida / Nunca sozinho estás[...]
/ Mesmo que digam os homens: / ‘Tu nada podes mudar’. / Luta por um mundo novo / De
unidade e paz. // Se pelo mundo os homens / sem conhecer-se vão, / não negues nunca a tua
mão / A quem te encontrar. // Se parecer tua vida / um inútil caminhar, / Pensa que abres
caminho / e outros te seguirão. //” (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).
É o caso de se dizer, com Fisher, que “a arte não só precisa derivar de uma intensa
experiência da realidade, como precisa ser construída, precisa tomar forma através da
objetividade” (FISCHER, 1987, p. 14).
Num processo histórico mais amplo pôde-se visualizar como a canção popular
contribuiu para que os integrantes das comunidades de base e a população, de modo geral,
64
percebessem os vários momentos político-sociais e culturais vividos e que, por fazerem parte
desse processo, tinham o direito de modificá-lo para melhor e a isso eram incentivados, por
diversas formas, especialmente pelo chamado contido nas letras das canções.
2.5 Em ritmo de memória: a Canção Popular como parte integrante do Processo
Histórico Brasileiro
Sendo a canção um dos principais veículos de transmissão cultural em todas as
classes sociais, a canção popular parte das vivências e subjetividades, da realidade e do
simbolismo, faz parte do cotidiano do grupo que lhe serve de berço e que, ao mesmo tempo, a
torna conhecida. Nela são cantadas as condições de vida com seus sonhos, notícias,
reivindicações, refletindo um momento histórico. A canção popular difunde processos de
aprendizagem, imaginação, criação e é por meio dela que os grupos se definem, se organizam
e se identificam.
Para melhor compreensão da necessidade de os Movimentos Sociais realizarem
ações educativas por meio de diversas mobilizações e utilização de diferentes ferramentas, se
faz necessário revisar a história de dominação, desde o início da colonização brasileira na qual
se efetivam processos discriminatórios, seja por etnia, nível social, econômico, cultural e/ou
religioso. De acordo com Fleuri (1998, p.45), como todos sabem,
O Brasil é um ‘país-continente’ [...] que se estende entre a longa costa atlântica e a imensa floresta amazônica, com regiões muito férteis e grandes reservas minerais e ecológicas. Uma terra que, justamente pelas suas vastas riquezas, atraiu durante os últimos cinco séculos conquistadores ávidos e enriquecimento rápido [...] extraindo ouro e pedras preciosas, ou implantando monoculturas de cana de açúcar e depois de café. [...] Esta produção foi desenvolvida durante durante quatro séculos graças aos latifúndios e ao trabalho escravo. Num primeiro momento, os colonizadores tentaram, submeter índios à escravidão [...] Mas os índios não se deixaram escravizar e foram sendo pouco a pouco exterminados. [...] Em seu lugar foram trazidos à força, como escravos, grupos de diferentes etnias de origem africana. [...] a partir da segunda metade do século XIX, foi incentivada a maciça imigração de europeus, árabes, japoneses, chineses e outros, que se dirigiram principalmente ao sul do país, contribuindo para promover a industrialização e o desenvolvimento agrícola da região, com tudo o que este fenômeno significa de enriquecimento e, ao mesmo tempo, de novos conflitos e desafios.
Pode-se, então, dizer que o Brasil é um país com uma tradição autoritária e
excludente. A colônia portuguesa excluiu os indígenas, que foram escravizados. Escravizou
os negros que, assim, também foram excluídos. E os próprios brancos dominadores excluíram
65
seus irmãos de raça que se encontravam em situação social menos favorecida: uma forma
disfarçada de escravidão.
A cultura de índios, negros ou brancos imigrantes, incorporada à cultura local,
mantém-se viva e expressa-se nas letras das canções populares, contando seus sonhos,
cantando suas lidas, clamando por justiça, igualdade e dignidade. São canções ouvidas nas
festas populares, nas manifestações políticas, nos grupos liderados pela Igreja. São canções
que preservam as tradições culturais e veiculam valores para a formação de uma sociedade
melhor e, dependendo do momento sócio-histórico vivido, denunciam situações opressoras.
Refletindo-se a respeito da canção popular percebe-se que muitas vezes, esta é
inferiorizada em relação à erudita. Talvez porque, no sentido que lhe é comumente atribuído,
“popular” está relacionado ao que é feito ou que é aprovado pelas pessoas simples, sem muita
instrução. Chauí (1994, p.124) considera existir “ambigüidade ao se tratar de popular, ‘tecido
de ignorância e de saber, de atraso e de desejo de emancipação, capaz de conformismo ao
resistir, capaz de resistência ao se conformar.”
De acordo com Chauí, (1989, p.43),
considerar a cultura como sendo do povo, permitiria assinalar mais claramente que ela não está simplesmente no povo, mas que é produzida por ele, enquanto a noção de ‘popular’ é totalmente ambígua para levar à suposição de que representações, normas e práticas porque são encontradas nas classes dominadas são, ipso, facto, do povo. Em suma, não é porque algo está no povo que é do povo
Assim, “popular” pode significar tudo que está relacionado às pessoas que habitam
em um país, especialmente aos cidadãos qualificados para participar de uma eleição,
(exemplo: voto popular, eleição popular). Entre os votantes e os candidatos, com certeza,
além das pessoas com escolaridade mínima, encontram-se os mais ilustres membros da
sociedade, com os mais altos graus de escolaridade.
Observada sob esse prisma, torna-se mais fácil entender a canção popular como
veículo de expressão de sentimentos, aspirações e afetos, transformando-se em documento de
vida de uma comunidade. Assim compreendida, mais do que qualquer outra manifestação do
temperamento, da cultura ou das capacidades criadoras de uma determinada comunidade, a
canção popular é um dos elementos que define a realidade psicológica e social dessa
comunidade, além de, como outras formas de Arte, ser retrato poético-musical, talvez o
melhor, da situação política, econômica e cultural do momento em que é criada. Portanto,
naturalmente, sua maior expressividade se dá na representação dos hábitos mais comuns às
pessoas da comunidade em que surge ou na descrição, em linguagem poética, dos sentimentos
66
e desejos dessa comunidade, em relação aos seus costumes e ao momento sócio-histórico da
criação desse gênero de canção.
Concorda-se com Sakai (2004)58, quando diz que em qualquer circunstância da vida
pode-se cantar, pois as canções são companheiras que podem sempre estar ao lado das
pessoas, interferindo no seu comportamento, de forma consciente ou não, enquanto a memória
grava as experiências da relação entre a vida e a canção, influenciando o próprio ritmo
evolutivo de cada um.
Para corroborar essa assertiva, novamente concorda-se com Sakai (2004) convidando
a relembrar que a canção está presente não apenas desde a infância, mas até mesmo antes
dela, desde o período embrionário quando o feto já está exposto ao ritmo cadenciado dos
batimentos cardíacos dele próprio e de sua mãe. Logo ao nascer, e até mesmo antes de seu
nascimento, a criança, além dos outros sons, ouve canções de ninar, as quais começa a repetir
logo que aprende a falar, passando, depois, para as primeiras cantigas de roda e, em seguida,
sucessivamente, por vários ritmos e letras. Depois de adultas, as pessoas têm outras
necessidades musicais relacionadas não só à recreação e ao prazer, mas utilizando as letras
das canções como suporte psicológico e, algumas vezes, como instrumento de denúncia de
atos repressivos ou de reivindicação de seus direitos. O modo como uma pessoa canta, ouve
ou escolhe uma canção é uma manifestação singular da sua identidade como ser humano.
2.6 A Canção Popular como marco das CEBs de Lages
A riqueza e a versatilidade da canção popular está presente também nos movimentos
religiosos, tanto nos católicos apostólicos romanos como nos de outras denominações, pois
música é linguagem universal.
A Canção Popular dentro das Comunidades Eclesiais de Base da cidade de Lages,
pode ser vista como herança histórica de luta política, como identificação coletiva na qual se
manifestam sentimentos semelhantes, refletindo a mesma ideologia em uma cultura em que as
pessoas comungam do mesmo ideal.
Em Lages, a canção popular que fala dos preconceitos e das resistências, da
fatalidade da vida, do trabalho árduo e mal remunerado das classes mais empobrecidas,
manifesta-se, principalmente, dentro dos movimentos sociais conhecidos como Comunidades
58 SAKAI, F.A. Cantando as histórias que corporificamos. 2004.
67
Eclesiais de Base (CEBs). As canções criadas dentro desses movimentos refletem o
imaginário das pessoas que deles participam, e que procuram, por meio das letras dessas
canções, contribuir no processo de mudança em um período político repressivo.
Considerando a pluralidade lingüística musical e levando-se em conta o sincretismo
cultural que marcou a colonização brasileira e, dentro dela, a serrana, poder-se-ia questionar
quais são as características brasileiras a que se pode relacionar a canção popular em Lages.
As três principais vertentes culturais formadoras da cultura brasileira – africana,
indígena e européia também estão presentes na região de Lages. Essas três culturas, aliadas à
influência de outras também presentes na região, podem ser percebidas, de modo geral, em
muitos aspectos da vida cotidiana e também em algumas manifestações como nas brincadeiras
e canções infantis, nas festas e danças populares, na gastronomia, nos fatores sócio-culturais e
religiosos, determinantes nos costumes da sociedade lageana, nas suas lendas, crendices e
mitos, seus hábitos, valores humanos e morais, suas diversões e Arte.
Durante a administração de Dirceu Carneiro e de sua fiel e atuante Equipe, no
período de 1976 a 1982 - uma administração eminentemente participativa - aconteciam
reuniões que ensejavam o entrosamento entre pais e filhos, professores e alunos, lideranças
políticas e religiosas, resultando na integração com a comunidade em geral. Estas reuniões
eram denominadas ‘Mostra do Campo’59. Realizavam-se como uma festa popular,
valorizando o saber popular das comunidades e reunindo os mais variados segmentos da
população, propiciando-lhes a venda de produtos de origem agrícola ou pecuária e de
artesanato.
Nessas ‘Mostras de Campo’ a música e a canção popular estavam sempre presentes.
Nelas se ouvia a voz dos cantores acompanhada pelo som das gaitas e dos violões. Algumas
das canções ouvidas nessas ‘Mostras’ utilizavam letras de reivindicação e de formação de
consciência, uma vez que tanto alguns dos cantores e compositores quanto muitos outros
participantes dessas ‘Mostras’, entre eles pais, professores e lideranças diversas, eram
integrantes das CEBs.
A letra de uma dessas canções, de origem portuguesa e da qual as CEBs se
apropriaram, dizia: “Uma gaivota voava, voava/ Asas de vento, coração de mar/ Como ela
somos livres/ Somos livres pra voar/. // [...] Uma criança dizia, dizia / ‘Quando for grande /
59 Mostra do Campo, uma espécie de grande feira-festa que se realizava uma vez por ano em cada um dos
distritos do município. É a ampliação de um trabalho desenvolvido a partir das escolas rurais. A participação da comunidade foi intensa valorizando as pequenas coisas. Uma manifestação cultural da comunidade: artes, músicas e danças etc... Nos dias de hoje a mostra continua acontecendo somente em Bocaina do Sul. A
68
Não vou combater.’ / Como ela, somos livres, / Somos livres pra dizer. // Somos um povo que
cerra fileiras, / Parte em conquista do pão e da paz. / Somos livres, somos livres. / Não
voltaremos atrás.” Essa canção procurava mostrar que todos aqueles que possuem,
metaforicamente, ‘coração grande e aberto’, têm liberdade para ‘voar’ em busca dos seus
ideais.
2.7 A Influência das Canções das CEBs no contexto sócio-político-cultural
Além dos usos e costumes de cada época e da experiência histórica e política dos
atores protagonistas, a maior ou menor abertura dos governantes ao diálogo e à negociação,
definem as mobilizações e as diferentes formas de participação popular, nos vários
movimentos sociais, na busca por suas reivindicações.
Quando, nos anos 70 e 80 do século XX, os artistas, preocupados com as questões
sociais e com as classes empobrecidas passam a ver o ‘público’ como fonte e razão de sua
música, fazendo desta um instrumento engajado e comprometido com as classes populares por
meio de um conteúdo político e revolucionário, Lages também demonstrava, por meio de seus
Movimentos Populares, a forte presença da canção como catalisadora dos problemas sociais.
Em Lages, a presença da diversidade musical tinha, nos diferentes ritmos , letras de conteúdo
participante, nos quais eram mostrados as lutas, os costumes, as lidas, as tradições, dores e
amores do lageano.
A partir dos problemas vividos pelos moradores da Diocese de Lages, quando frente
aos desafios e exigências do clamor dos trabalhadores, vários grupos se desenvolvem,
articulando espiritualidade e ação no ‘novo jeito de ser Igreja’ (CEBs) e a formação dos
trabalhadores visa à construção de um projeto político onde todos possam ter vez e voz.
Nas diferentes necessidades que vão desde a luta pela terra, a busca pela reforma
agrária e a preservação do meio ambiente, até a reivindicação dos mais diferentes direitos da
cidadania, busca-se fortalecer a organização criando-se estratégias que venham contemplar a
conquista desses direitos. Uma das estratégias utilizadas pelos grupos é a canção popular, que
serve de animação e divulgação de valores dos próprios participantes do grupo. As classes
populares passam a compreender-se num constante processo de construção vendo-se como
“Mostra do Campo” teve sucesso instantâneo. É que correspondia, mais uma vez, à experiência histórica da população (ALVES, 1988, p. 106).
69
sujeitos excluídos. No entanto, manifestando, pela música, sua própria história, traduzida em
versos, conseguem perceber que, apesar de excluídos, são, também, sujeitos que podem
mudar ou construir uma nova realidade.
É o caso de se dizer, com Fisher (1987, p.14), que “a arte não só precisa derivar de
uma intensa experiência da realidade, como precisa ser construída, precisa tomar forma
através da objetividade”.
Ampliando-se o círculo de visão histórica, pode-se perceber como a canção popular
contribuiu nos processos político-sociais e culturais das comunidades, auxiliando seus
integrantes no aprendizado e na tomada de consciência diante das injustiças, assumindo
sempre o compromisso com a vida dos que se encontram à margem da sociedade.
Partindo dessa realidade, incentivados por um discurso religioso e/ou político, os
Movimentos Populares de Lages começam a criar suas letras de canções, ampliando o
repertório que animaria os encontros e serviria para reflexões com o grupo, para as
celebrações, mas principalmente para a formação de consciência crítica e comprometimento
com as mudanças que beneficiariam a maioria da população.
A canção nos movimentos de Lages esteve sempre ligada ao curso normal da
história. Compartilhando das necessidades, angústias e vitórias, as diferentes letras e ritmos
eram uma forma alternativa de a população reivindicar melhorias e proclamar conquistas. As
canções nesses grupos deixam de ser apenas símbolos escritos e passam a dar voz àqueles que
as compõem, ou que delas se apropriam, e a aqueles que as assimilam enquanto as cantam,
caracterizando-as como uma forma de resgatar a identidade comunitária. Com respeito à
apropriação de ritmos e letras canções, Piana (2001, p. 73) diz:
É importante destacar que, das muitas composições, ainda que se saiba quem são os seus autores, os seus nomes nem sempre são colocados nas folhas de cantos e/ou em pequenas coletâneas que são utilizadas [...] em celebrações diversas. É dado um destaque no título do folheto [...] mas poucas são as letras que trazem o nome do seu compositor. Parece que o “eu” individual deve ser absorvido pelo coletivo. Porém, quando é uma paródia, geralmente aparece, no início ou no final da letra, qual é o ritmo em que deve ser cantada, indicando, nesse sentido, o nome da música conhecida.
Nas CEBs de Lages, era cantada uma paródia da música “Pinga ‘ni’mim”, de autoria
do cantor Sérgio Reis, cuja letra foi adaptada para despertar a consciência política em relação
ao repasse das verbas governamentais para os Serviços de Saúde “/Se a Saúde está precária/
Veja por quê:/ Chegam as verbas/ Mas ninguém vê.”
A exemplo do que se via em nível de Brasil, quando jovens, artistas e intelectuais
assumiam a causa dos empobrecidos nas letras de suas canções, os grupos populares de Lages
70
também viam despertar a sensibilidade às causas sociais. Percebiam que tanto denúncias
quanto respostas e/ou incentivos poderiam ser transportados para as letras das canções das
quais se apropriavam, ou que transformavam em paródias nos ritmos já conhecidos ou ainda,
que se criavam coletivamente, e que eram vivificadas na poesia cantada por todos aqueles que
estavam na luta por uma nova realidade. A oralidade presente nessas canções, além de
facilitar a assimilação dos conteúdos pelos participantes, refletia o momento histórico em que
viviam as comunidades.
Sendo a canção popular um instrumento que reflete o imaginário de seus
participantes, ao mencionar as situações de desigualdades e injustiças sociais, partindo-se do
‘ver, julgar e agir’, unem-se a reflexão, a celebração e a luta em favor daqueles que estão à
margem da sociedade. Assim, com fé e política interligadas, as possibilidades de combater
essas injustiças e exploração se ampliam, uma vez que, com as letras dessas canções, as
classes populares têm um maior esclarecimento da realidade, acessam mais facilmente uma
outra ‘leitura do mundo’ em que vivem, tornando-se protagonistas do processo.
2.8 Descrevendo a contribuição sócio-educativa da Canção Popular nas CEBs de Lages
Em Lages, as CEBs, com alguns setores da Igreja Católica, ganham força e passam a
constituir-se espaços de defesa dos direitos humanos, incentivando a população na busca de
melhores condições de vida. Nas décadas de 70/80, diversos movimentos populares se
organizaram, gerando novas mentalidades e novas práticas sociais, fundamentais para a
formação dos indivíduos enquanto cidadãos, utilizando a fé como instrumento de
conscientização e renovação política.
Se, no passado, houve movimentos de resistências indígenas e negras, como a
Confederação dos Tamoios e os Quilombos, nos anos 70 e 80, os Sindicatos, os grupos
alternativos e a própria Igreja articularam-se na luta pelos direitos coletivos, reivindicados
especialmente pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Para a conscientização da
realidade, essas Comunidades utilizavam diferentes ‘ferramentas’. Por sua identificação com
as classes populares, pela possibilidade de utilização do linguajar dessas classes, pela
facilidade de assimilação do conteúdo em decorrência do aprendizado proporcionado pelo
ouvir e repetir a letra, pelo ritmo, muitas vezes já conhecido e contagiante, entre essas
ferramentas destaca-se a “canção popular”.
71
Os Movimentos das CEBs buscam vincular as canções às determinações da história
das comunidades nas quais atuam. Nas comunidades de Lages isso acontece quando os
participantes dos diferentes grupos mais diretamente ligados à animação, procuram situar-se
nas manifestações do meio e trazem as canções que mais se identificam com os
acontecimentos daquela sociedade. Letras que abordam questões polêmicas, fazendo críticas
às ações políticas dos governantes que priorizam os ‘grandes’ e aumentam as desigualdades
sociais, são subsídios para a tomada de consciência daqueles que têm acesso a elas.
Influenciando-se pela canção, as comunidades buscam favorecer mudanças que melhorem a
vida das pessoas que nela vivem e promovem a formação da criticidade e da tomada de
decisão em alterar a realidade, tornando-se pertencentes a esta.
Cada Movimento Popular direciona suas atividades a determinado objetivo,
reunindo, principalmente, as pessoas que se preocupam com uma mesma situação, Assim, por
exemplo, o Movimento dos Sem Terra (MST) reúne aqueles que lutam pela posse de um
pedaço de chão que possam chamar de seu e onde possam plantar, colher e sustentar suas
famílias. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) é, como o próprio nome indica,
um grupo marcado pela resistência daqueles que têm suas terras ameaçadas pela inundação
das barragens. Luta pela preservação do meio ambiente e pela elaboração de políticas
democráticas que atendam os anseios daquelas comunidades que perdem suas propriedades
em função de projetos voltados à geração de energia, especialmente para as grandes indústrias
e para servir de apoio à crescente economia nacional.
Como em Lages não houve lutas de grupos por posse de terras, nem, tampouco,
construção de barragens, esses dois grupos não chegaram a se instalar na região. Eles, porém,
contaram com o apoio e a solidariedade dos demais participantes das CEBs de Lages e do
Brasil. Além desse apoio, não se pode esquecer que todos os grupos ligados às Comunidades
Eclesiais de Base, têm encontro marcado na “Romaria da Terra” na qual se reúnem para
celebrar a vida, orar, comungar das mesmas idéias e reivindicar direitos comuns a todos,
sempre por meio das muitas canções compostas, ouvidas e/ou cantadas nesses encontros.
Entre os grupos populares instalados em Lages pode-se citar a Comissão Pastoral da Terra
(CPT), o Movimento de Mulheres Agricultoras (MMA), as Pastorais da Juventude (PJ) e a
Pastoral Operária(PO), juntamente com o Centro Vianei de Educação Popular e o Núcleo
Alternativo de Educação Popular (NAEP). Esses grupos, vindos de uma teologia libertadora60,
serviam de inspiração para seus participantes escreverem letras de canções que refletiam a
60 Teologia: TEO=Deus, LOGIA=Conhecimento. Fazer teologia é usar a cabeça para entender melhor as coisas
de Deus (Caderno de Educação Popular, FREI BETTO, 1968, p. 3-4).
72
realidade concreta do grupo e da comunidade na qual estavam inseridos pois toda canção é
influenciada pelos hábitos, costumes e crenças e está sempre ligada à realidade em que se
constrói, não podendo existir isolada dela.
Os grupos são formados por pessoas que residem no centro ou nos bairros da cidade,
pertencem às mais diversas idades e classes sociais, executam variadas atividades, são
profissionais liberais, patrões, empregados, comerciários, educadores, trabalhadores rurais,
que, motivados pela busca de uma nova sociedade, com mais igualdade, participam como
lideranças de Comunidades Eclesiais de Base.
Reportando-se às especificidades de cada um desses movimentos de base, em Lages,
no período pesquisado, pode-se enfocar as características predominantes de cada frente de
trabalho que se aglutina em benefício coletivo. Os movimentos e seus integrantes são vistos
como sujeitos da história, formadores de opiniões que aprendem a ter confiança na força do
grupo e acreditam que, como conhecedores de seus direitos, podem e devem reivindicá-los.
Dentro desses movimentos, a Comissão Pastoral da Terra61 presta um serviço de
defesa aos anseios dos trabalhadores rurais, sendo presença solidária, fraterna e afetiva,
estimulando estes trabalhadores a se tornarem protagonistas conscientes num contexto de
lutas do meio rural.
A CPT assessora não só os trabalhadores rurais, mas também entidades diversas,
auxiliando-os nos aspectos teológicos, metodológicos, políticos, sindicais e sociológicos,
respeitando a experiência daqueles que trabalham com a terra, a sua religiosidade e cultura,
incentivando-os a construir a própria história.
Por meio de reuniões que reforçavam o fortalecimento dessa classe de trabalhadores,
destaca-se um evento, já mencionado, muito importante - a Romaria da Terra - que une, além
dos integrantes da CPT, lideranças de outras organizações de CEBs da região. Uma canção
que pode ser mostrada como símbolo da CPT é “O Bendito dos Romeiros”, em que os
trabalhadores rurais sentem-se confiantes durante a Romaria, pois confiam que estão sendo
guiados por Cristo: Bendita e louvada seja / Esta Santa Romaria / Bendito o povo que marcha
/ Tendo Cristo como Guia.
Nessa mesma canção eles se comparam a Moisés na luta contra a opressão, “[...]
Para a ‘Terra Prometida’/ O povo de Deus marchou / Moisés andava na frente / Hoje Moisés
é a gente / Quando enfrenta a Opressão.”
61 O grupo de CPT teve início em Lages quando da reunião de lideranças do Centro de Educação Popular
Vianei com um de seus jovens agricultores que estavam em luta pela preservação de suas terras, ameaçadas de desapropriação.
73
Lembram ainda que apenas a união entres os companheiros é capaz de levá-los à
vitória. “[...] A quem é fraco, Deus dá a força / Quem tem medo sofre mais / Quem se une ao
companheiro / Vence todo cativeiro / É feliz e tem a paz. [...] Mãos ao alto, voz unida, nosso
canto se ouvirá / Nos caminhos do sertão / Clamando por terra e pão / Ninguém mais nos
calará.”
Semelhante a esta frente de trabalho encontra-se o Movimento das Mulheres
Agricultoras que lutam pela igualdade de direitos na vida camponesa. Na perspectiva de
somar forças essas mulheres unem-se às demais organizações ligadas à terra com o objetivo
de alcançar sua identidade e pertencimento social, buscando passar de uma realidade de
submissão na vida doméstica e na sociedade, para um exercício mais pleno de sua cidadania.
Na letra da canção “Baião das Comunidades” a mulher é convidada a fazer parte da
celebração e da luta na conquista de seus direitos: “Vou convidar Oneide, Rosa, Ana Maria, a
mulher que noite e dia, luta e faz nascer o amor”. Esta canção ressalta que para se alcançar a
vitória, é importante que haja união e perseverança nas lutas, celebrando e participando com
alegria acreditando e cantando forte para não desanimar na caminhada: “E reunidos no altar
da liberdade, vamos cantar de verdade, vamos pisar sobre a dor, ê, ê.” O refrão desta canção
reforça que somos comunidade, povo de Deus que constrói uma nova sociedade: “somos
gente nova vivendo a união, somos povo semente de nova nação, ê, ê. Somos gente nova
vivendo o amor, somos comunidade, povo do Senhor, ê, ê.”
No período histórico abrangido por esta pesquisa pôde-se perceber, em Lages, os
Movimentos de Juventude numa posição de destaque. Diversos Grupos de Jovens nas décadas
de 70 e 80, nas comunidades dessa cidade, exerciam um posicionamento social relevante
frente às diferentes situações surgidas na sociedade. De forma organizada, solidária e
reivindicativa, eram vistos como protagonistas, principalmente das lutas pela educação,
moradia, saneamento, entre outras. Os jovens de Lages participavam de vários trabalhos
dentro da Diocese, como Equipes de Liturgia, preparando leituras e “cantos’ para as
celebrações, atuavam como catequistas de crianças e organizavam diversos movimentos,
podendo-se citar, daquele período, o Movimento de Jornada, que era uma ‘parada’ de um final
de semana no Centro de Formação Diocesana. Durante esse encontro, os jovens refletiam
sobre suas diversas atitudes, principalmente as relacionada à família e aos hábitos
comportamentais, assumindo um compromisso de mudança, quando necessário.
Nessa época, como possível reflexo das orientações recebidas dentro das CEBs, os
jovens tinham participação mais atuante no que se relacionava aos problemas comunitários,
envolvendo-se diretamente em várias campanhas direcionadas à ajuda ao próximo,
74
mostrando-se bastante solidários em casos de calamidade pública, ocasiões essas em que eles
próprios organizavam-se em grupos, arrecadando o que faltava às famílias atingidas. Várias
canções ganharam visibilidade nos encontros da juventude de Lages, sendo possível destacar
uma letra bastante entoada nos diversos momentos de reuniões, assembléias e mobilizações:
“Deixa-me ser Jovem / Não me impeça de lutar / Pois a vida me convida / A uma missão
realizar.” Cantando forte este refrão, os jovens colocavam-se em oposição ao mundo adulto,
querendo demonstrar que o jovem deve perseguir seus sonhos até que estes se tornem
realidade. “Deixa-me ser Jovem / Ser livre pra sonhar / Não reprima, não reprove / O meu
jeito de amar.” Os jovens, tanto no seu próprio grupo, como também fazendo parte de
Associações de moradores e em outros grupos de CEBs, produzem sua história e a de sua
comunidade: “Fazer também a história / E não ser ignorado / Preservar os meus valores / E
não ser massificado.” O jovem justifica suas atitudes atribuindo-as à sua vontade de lutar
contra a exploração dos menos favorecidos: “Não me sinto revoltado / Mas quero me explicar
/ De tanto ser explorado / Eu me pus a protestar.”
A Pastoral Operária surgiu como um serviço organizado da classe trabalhadora, na
conquista de seus direitos. Ao contrário da CPT, a pastoral operária é eminentemente urbana,
vinculando os operários à igreja na procura de respostas aos desafios gerados nos grandes
centros industriais. Berço de centrais sindicais, serviu também como instrumento nas greves,
ponto forte nos anos 80. Em Lages, nessa época, fortaleceu a candidatura, pelo Partido dos
Trabalhadores (PT), de um integrante dessa pastoral. Durante a campanha política, a canção
popular criada tanto por este grupo quanto por integrantes de outros grupos de CEBs foi a
principal ferramenta de campanha, contribuindo para a eleição deste candidato ao cargo de
vereador. “Apresento um candidato/ da nossa comunidade/ . Sua luta e sua vida/ conhecemos
de verdade/Agora é a nossa vez/ com Sauro Tadeu dos Reis/.” Sauro foi eleito e, embora,
como oposição, não tenha tido a maior parte de seus projetos atendidos, teve, pelo menos, a
oportunidade de apresentar na Câmara, as reivindicações do Bairro que o elegeu.
Dessa forma, a canção popular e as CEBs, juntas, desempenharam, e continuam
desempenhando, importante papel no despertar da conscientização dos integrantes das
comunidades em geral e no incentivo à luta pelos direitos sociais, pela cidadania, pela
liberdade e pela justiça.
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3 O PAPEL SÓCIO-POLÍTICO-PEDAGÓGICO DA CANÇÃO POPULAR NAS CEBS
DE LAGES
Amadurece a cada instante uma esperança De um mundo novo povoado de irmãos Se você pode acreditar, comece agora Não tenha medo de ser livre até o fim
[...] Não haverá mais compradores de justiça, E a liberdade não será mais ilusão
Só a verdade será fonte de notícias, E poderemos crer no homem outra vez
(Caminhando e Cantando, 1997 – Diocese de Lages)
Nesta pesquisa são tratados assuntos relacionados à “canção popular” e, neste
capítulo em que se aborda a função educativa da canção não só no aspecto pedagógico mas
também no social e no político. Para ampliar a compreensão de “canção popular”, é
importante relembrar: Canção é qualquer de vários tipos de composição musical popular ou
erudita, para ser cantada.
Depreende-se também que muito vasto é o campo em que a ‘canção popular’ tem
possibilidade de agir, já que “popular” pode abranger não apenas o que é comum a pessoas
que convivem em pequenas ou grandes extensões territoriais, mas, até mesmo, apenas referir-
se a um conjunto de pessoas que, não residindo em um determinado lugar geográfico, estejam
unidas por algum elemento, ou por vários, que sirva/sirvam como ligação entre essas pessoas.
Como exemplo, pode-se citar os povos que, não habitando um determinado país, são
identificados pelas idéias e costumes que comungam, tais como os nômades, as tribos ciganas
que, onde quer que estejam, cultivam os mesmos hábitos e cantam as mesmas canções.
Da mesma forma, os vários conceitos que se conhecem lembram que, ao lado da
musicalidade que envolve e eleva o espírito, a canção pode também prestar-se a outros fins,
como, por exemplo, a canção satírica que, na distante Idade Média, já dizia verdades de forma
nem sempre entendida por todos.
Assim, fácil entender-se a diversidade de ritmos considerados populares, os quais
podem ser oriundos das mais diversas etnias que convivem no território brasileiro. Igualmente
76
fácil compreender-se a diversidade do conteúdo das letras que, criadas pelos mais diversos
indivíduos, correspondem aos anseios do compositor ou do grupo que ele representa e
procuram disseminar idéias que levem à modificação do momento histórico-socio-político-
econômico em que a canção é criada.
Conhecido o significado de duas palavras-chave deste trabalho de pesquisa, pode-se
entender por ‘canção popular’ aquela elaborada por pessoa de qualquer nível social, de
qualquer grau de escolaridade, de uma determinada comunidade, e cujo teor caia no agrado de
um relevante número de cidadãos, independente da função a que essa canção se destine:
enlevar, orar, divertir, zombar, informar, sugestionar, reivindicar, sugerir soluções. Em Lages,
limite geográfico desta pesquisa, e nos Movimentos Eclesiais de Base dessa cidade, ambiente
do trabalho de campo desta pesquisa, há compositores com nível superior de escolaridade ao
lado de outros com nível médio e, mesmo de alguns com escolaridade mínima, o que justifica
a presença da norma menos culta do Português nas letras de algumas canções.
Na história do Brasil a música popular esteve sempre muito presente, manifestando-
se por meio dos mais diversos ritmos, legitimamente brasileiros ou importados: moda de
viola, sertaneja, samba, rock, choro, bossa-nova e tantos outros, tocados e cantados nas rádios
de todo o país. Isso sem falar da música de natureza religiosa, como, por exemplo, o canto
gregoriano. De acordo com Mariz (2002, p. 25):
a Canção Popular, talvez por seu ritmo, era mais fácil de reter na memória do que o canto gregoriano. Até o século XI, compunha-se a canção popular de um só verso e de uma única melodia, repetida várias vezes e, esporadicamente, de um estribilho. Nos séculos seguintes, duplicaram-se os versos e as frases, firmando-se o emprego do estribilho.
Muitos compositores62 com postura revolucionária participaram, ativamente, no
Brasil, de movimentos em favor de mudanças na sociedade. Nos idos de 1964, repertórios de
vários artistas apresentavam temas preferenciais da arte engajada, procurando fazer oposição
ao regime. De acordo com os autores Worms e Costa (2002, p. 89), compunham-se, e
executavam-se, músicas com letras de protesto, músicas exclusivamente brasileiras, unindo
bossa nova e samba tradicional numa guerra contra as guitarras elétricas que eram símbolo do
imperialismo norte americano.
Mariz, (2002, p. 199) diz: “é importante que o compositor participe das preocupações
e reivindicações dos demais cidadãos, [...] demonstrar preocupação social”, a qual pode, ainda
62 Chiquinha Gonzaga foi um exemplo dessa postura revolucionária, tanto em estética como em política. Foi a
primeira mulher a compor músicas para ópera e a reger uma orquestra no Brasil (WORMS; COSTA, 2002, p. 111).
77
segundo Mariz (2002, p. 201), expressar-se por meio de canções: “A canção de protesto ou o
samba de participação, passou até a ter objetivos patrióticos na luta pela preservação do meio
ambiente, da ecologia, pela garantia de melhores condições de trabalho para o operário
brasileiro [...]”.
Entre os anos de 1969 a 1974, assume o governo do Brasil, o General Emílio
Garrastazu Médici. Historicamente, no Brasil, em questões de repressão, nenhum governo
supera o do General Médici, durante o qual a imprensa era censurada de forma rigorosa,
impedida de dar visibilidade aos porões da ditadura. As letras das canções, porém, não se
furtavam a revelar a dor daqueles que, devido à censura desse regime político, se viam
afastados da pátria-mãe, exilados, apenas com a esperança de um dia poder rever seu lar,
família e amigos. Mas, procurando evitar represálias, a denúncia desses fatos era feita pelos
compositores e poetas de forma velada. O conteúdo da letra das canções, revelando a
inteligência de seus autores, muitas vezes, era dificilmente compreendido a não ser que sobre
essa letra se lançasse olhar bastante perspicaz. É o caso, por exemplo, de uma canção que só
depois de premiada em um festival, foi percebida como protesto aos inúmeros casos de exílio:
Vou voltar / Sei que ainda vou voltar / Vou deitar à sombra de uma palmeira / Que já não há. / Colher a flor que já não dá / E algum amor, talvez, possa espantar / As noites que eu não queria / E anunciar o dia (WORMS; COSTA, 2002, p. 104).
Por outro lado, com um crescimento acelerado, o país, naquela época, era visto como
uma das maiores economias do mundo, embora sem distribuição de renda, o que acarretava
dificuldades sócio-político-econômicas, vivenciadas pela população. No entanto, apesar
dessas dificuldades, diversos slogans se criavam, justificando o “Milagre Brasileiro”. Entre
eles: “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”, “Ninguém segura este País” ou “Este é um País que vai pra
frente” (WORMS, COSTA, 2002, p.111 e 112):
Eu te amo, meu Brasil, eu te amo Meu coração é verde, amarelo, branco, azul-anil Eu te amo, meu Brasil, eu te amo Ninguém segura a juventude do Brasil”. (DOM, 1970).
É a canção como forma de despertar o civismo, de mostrar ao povo o valor da sua
pátria. Nessa época, porém, muitas das letras dessas canções, em suas entrelinhas, incitavam
as pessoas a se tornarem reflexivas, a perceberem as reais condições de opressão e a lutarem
por dias melhores em que houvesse mais liberdade e justiça. É o que se pode perceber na
forma irônica com que a letra da canção aconselha a ‘chamar o ladrão [...]’:
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Acorda, amor / Eu tive um pesadelo agora Sonhei que tinha gente lá fora / Batendo no portão / Que aflição! Era a dura / Numa muito escura viatura Minha nossa santa criatura! / Chame, chame, chame lá Chame, chame o ladrão, chame o ladrão [...] (WORMS, COSTA, 2002, p 116/117)
Algumas canções dessa época lembram aos oprimidos que a repressão ‘não pode
tudo’. Há muitas coisas, como o ‘cantar do galo’ e o ‘raiar de um novo dia’ - bênçãos da vida
livre e cotidiana - que, felizmente, não podem ser proibidas nem, tampouco, impostas por um
regime governamental opressivo:
Hoje você é quem manda / Falou tá falado / Não tem discussão não A minha gente hoje anda / Falando de lado / E olhando pro chão, viu? [...] Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia [...] [...] Como vai proibir / Quando o galo insistir / Em cantar [...] Você vai se amargar / Vendo o dia raiar / Sem lhe pedir licença Eu vou morrer de rir / que esse dia há de vir / Antes do que você pensa (WORMS; COSTA, 2002, p. 116-117).
Dessa forma, as letras das canções de protesto desempenhavam seu papel político-
pedagógico não só denunciando a situação, mas lembrando que esta mesma situação,
certamente, logo chegaria ao fim.
3.1 A Canção Popular de protesto nas CEBs de Lages
Essa mesma opressão governamental era, como em todo o Brasil, sentida também em
Lages onde se organizavam Movimentos Populares cujos integrantes reuniam-se em
assembléias, em grupos de reflexão, com diferentes segmentos da sociedade. Esses membros
da comunidade reagiam a essa ação opressiva e buscavam alternativas para reverter esse
quadro.
Os grupos de Base constituíram uma forma de resistência coletiva, procurando
derrubar a opressão na reconquista da liberdade que, junto com a igualdade, busca trilhar
caminhos em que os valores humanos sejam vistos de forma prioritária, social e
culturalmente.
Em Lages, nas diversas pastorais que faziam parte das CEBs, uma preocupação das
lideranças era estimular ações concretas para atingir a realidade do momento. Para tal fim
utilizavam-se da canção popular que trazia em seus versos uma forma didática e pedagógica
de conscientização. Uma dessas canções encontrada no livreto “Caminhando e Cantando”,
79
livro de cantos da diocese de Lages, com outras palavras mas da mesma forma que a canção
conhecida em nível nacional, diz, também, sutilmente, que a opressão não pode tudo:
“Ninguém pára esse vento passando. / Ninguém vê e Ele sopra onde quer./ Força igual tem o
Espírito (Santo) quando / Faz a igreja de Cristo crescer. / [...] Sua imagem são línguas
ardentes, / Pois amor é comunicação./ E é preciso que todas as gentes / Saibam quanto felizes
serão. (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).
No Brasil, durante a década de 60 do século XX, o campo musical destacava-se
como alvo da vigilância. Diversos compositores, especialmente artistas ligados à MPB,
trouxeram mostras de músicas com cunho de protestos, o que os levou à prisão ou ao exílio.
Já entre o período de 1971 e 1974, essa vigilância estava mais direcionada aos movimentos
estudantis. A ‘canção da juventude’ era objeto de atenção redobrada, sendo que espetáculos
organizados pelos grupos estudantis eram constantemente vigiados. Uma dessas canções é
“Alegria, Alegria”, que se transformou em ‘hino’ da juventude brasileira e embalou os
protestos contra a ditadura.
Na Diocese de Lages (Livro - Caminhando e Cantando, 3. ed. 1994), uma das
canções muito presente nos encontros dos Grupos de Jovens CEBs, convidava não só a
juventude para cantar, mas também homens e mulheres de várias idades, incentivando-os a
reunirem-se por meio dos ‘cantos’ e celebrações, independente de posses ou identidades,
mostrando ainda a importância de se dar as mãos, cultivando a espiritualidade, aliando-a às
ações comunitárias, e, desse modo, fortalecendo e/ou criando novas possibilidades para a
transformação coletiva. O convite estava explícito na letra que motivava as comunidades
envolvidas no projeto das CEBs: “Deus chama a gente / pra um momento novo / De caminhar
junto com seu povo / E convidava acima de tudo, a participar, coletivamente, das tomadas de
decisões: “ É hora de transformar / O que não dá mais / Sozinho, isolado, / Ninguém é capaz.
Essa canção anima o grupo quando lembra da importância de cada integrante, na promoção da
vida: “Por isso vem, / entra na roda com a gente também /Você é muito importante / Vem!...”.
Lembra também das dificuldades que encontrarão no caminho, que mais facilmente serão
vencidas por meio da união: “Não é possível crer / Que tudo é fácil. / Há muita coisa / Que
produz a morte / Gerando dor, tristeza e desolação / É necessário unir o cordão”.
Como sujeitos históricos, os membros da comunidade são chamados a assumir um
compromisso com a vida, reinventando um ambiente em que todos sejam vistos como ‘Filhos
de Deus’, construtores da justiça, da igualdade e da solidariedade. A letra desta canção leva a
refletir que todos são importantes para combater todo o tipo de divisão e exclusão,
80
enfatizando a unidade como um elemento importante para garantir subjetivamente a auto-
estima das comunidades engajadas por um objetivo comum.
A canção torna-se também um forte instrumento de formação do sentimento de
brasilidade ao destacar, de forma especial, o futebol e a música que foram - e da mesma forma
continuam sendo até os dias de hoje - símbolos de exportação da imagem do país. Tanto o
futebol quanto a música tiveram estreita ligação com governos dentro do regime militar, como
no de Médici, servindo como propaganda de um ‘Brasil Ideal’: “Noventa milhões em ação/
Pra frente, Brasil do meu coração/ Todos juntos vamos/ Pra frente Brasil/ Salve a Seleção!”
Os dribles e a ginga do futebol podem ser comparados à solução que a música brasileira
encontrou para conseguir expressar-se e, ao mesmo tempo, fugir à censura e incitar à
formação comunitária por um mesmo ideal: “De repente é aquela corrente pra frente.../
Parece que todo o Brasil deu as mãos”. 63
Na voz de quem canta está uma identidade que determina o presente pela sua
memória. O eco dos anseios da comunidade se ouve na voz do artista que valoriza a “arte
participante”. Desta forma, a canção popular carrega traços da sociedade em que está inserida
e pode ser vista como meio de compreensão de um determinado período da história e do local
em que surge. É através da linguagem musical que ocorre uma comunicação influenciada pela
cultura de determinada sociedade, de seus hábitos, costumes e crenças.
A música, a menos que não passe de rabiscos casuais, em sons, tem o seu lugar na história geral das idéias, pois sendo, de algum modo, intelectual e expressiva, é influenciada pelo que se faz no mundo, pelas crenças políticas e religiosas, pelos hábitos e costumes ou pela decadência deles; tem sua influência, talvez velada e sutil, no desenvolvimento das idéias fora da música (RAYNOR, 1981, p. 14).
Partindo do pressuposto de que a canção não surge do nada, de que sua temática é
determinada pelos acontecimentos históricos aos quais está intimamente ligada, de que o
compositor se identifica com as manifestações do meio, e que a canção sofre a influência da
sociedade e vice-versa, conclui-se que esta canção tem a ‘fala’ do meio onde é construída.
Muitas vezes com um limitado preparo musical, expressando os sentimentos da comunidade
que a criou, ela não existe isolada da história, nem da vida de quem a cria. Quem compõe ou
interpreta uma canção o faz contextualizando o seu tempo, influenciado pela sociedade e para
ela direcionando a sua composição.
Assim, a Canção Popular exerce um importante papel no sentido de levar seus
ouvintes a refletirem sobre opiniões e expectativas desta sociedade que possui uma
63 Música de Miguel Gustavo, 1970 – Copa do Mundo de Futebol – México.
81
apropriação desigual do capital cultural e que vive relativamente à margem dos grupos
hegemônicos. A canção, entre outras formas de mobilizar e resistir aos modelos dominantes, é
um subsídio interessante que acompanha as transformações históricas da sociedade.
Este tipo de canção, tal qual a literatura em países mais desenvolvidos, é que, no
Brasil, assume grande importância, fazendo a mediação com os diferentes meios sociais,
expressando idéias e sentimentos das comunidades, ‘falando’ por elas, expondo seus
diferentes anseios que, muitas vezes, por diferentes motivos - e, nessa época, devido,
principalmente, ao repressivo sistema de governo - sem a canção, permaneceriam emudecidos
na sua individualidade.
Algumas canções da época do regime militar brasileiro deixavam transparecer em
suas palavras a forçada submissão a um governo autoritário e opressivo. Contrapondo-se a
essa forma de opressão, em algumas canções dos Movimentos Populares em Lages observa-se
outro tipo de submissão, totalmente voluntária e que invoca bens e valores que o
autoritarismo não pode conceder: “Senhor, que queres que eu faça? / Senhor, que queres de
mim? /Mostra-me os teus caminhos / Senhor, que queres de mim?” Essa canção demonstrava
claramente o exemplo de fé engajada das comunidades eclesiais: “[...] Eu quero justiça,
bondade, amor / Igualdade, paz e comunhão./ Eu quero meu povo eleito / Buscando seu jeito
de libertação. (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).
Pode-se perceber que as CEBs vão construindo a identidade coletiva, apontando para
uma sociedade diferente, bastante marcada pela fé em um Deus que ‘guia o filho’ e que nada
lhe deixará faltar, principalmente a libertação que resulta da luta pela dignidade e igualdade
de valores. Assim, com caráter democrático e participativo, a canção popular busca ainda dar
significado à criatividade comunitária em que os participantes dos grupos populares trocam
conhecimentos, expressam suas lutas, e constroem suas identidades. As letras dessas canções,
trazem à tona uma diversidade de temas como justiça, igualdade, paz, comunhão. Um
imaginário religioso e ecumênico que enfoca a utopia do ‘povo de Deus’ em busca da ‘Terra
Prometida’, o que corresponde à dignidade para todos.
82
3.2 O movimento da Canção Popular na década de 70 e 80
Nos anos 70/80, diversas canções se faziam ouvir, trazendo mensagens
reivindicativas, protestando contra o descaso dos poderosos e o desamparo aos menos
favorecidos. Essas canções tanto eram produzidas por membros das Comunidades Eclesiais
de Base quanto por outras pessoas envolvidas no setor musical, muitas delas integrantes da
MPB:
A MPB exerceu uma influência decisiva na linguagem e no comportamento de amplos setores da juventude urbana. Nas décadas de 60 e 70 talvez tenha sido, dentre as manifestações artísticas, o domínio no qual as contradições sociais da sociedade brasileira tenham penetrado de maneira mais violenta. Inclusive a presença da censura não agiu apenas enquanto ingerência exterior à produção musical; ela interferiu na sintaxe mesma do discurso da canção (VASCONCELLOS, 1977, p. 38).
Nos anos 60 e 70, o engajamento político estava explícito na temática da canção e a
estética, muitas vezes, era deixada em segundo plano. O conteúdo das canções manifestava
um poder revolucionário visando mudar as estruturas sócio-político-culturais. Muitas canções
com letras mais críticas denunciavam a opressão e encorajavam as comunidades a combatê-
las. Assim, eram vistas como agentes de transformação histórica, sendo que muitas vezes era
necessário desvendar o sentido exato das palavras. Nas entrelinhas estava o verdadeiro
significado da mensagem poética e musical de cunho participante.
No contexto político brasileiro dentro do período pesquisado, a liberdade de
expressão era restrita e, conforme acima mencionado, de acordo com Vasconcellos (1977, p.
38), isso se refletiu na forma como as letras das canções passaram a ser elaboradas.
A música vinha com uma função importante também dentro da igreja progressista e
dos movimentos populares, com letras que incentivavam à luta pela liberdade e vida dos mais
empobrecidos. A canção popular veiculada como elemento participativo nos grupos de base
aparece como uma forma de idealizar o semblante da comunidade, que luta em busca de
mudanças que beneficiem a todos, assumindo-se como sujeitos organizados que constroem,
juntos, uma relação solidária e criam expressões recíprocas de aprendizados.
De acordo com Zitkoski, (2000, p. 328),
[...] a esperança de libertação não pode ser alimentada a partir de processos socioculturais totalizados em si mesmos, [...] o sonho possível somente pode vir da organização dos oprimidos em suas marchas por justiça, liberdade, direitos, participação, enfim, pela recriação da história, [...]. É por mediação das lutas concretas dos excluídos do sistema opressor que será possível transformar as
83
sociedades, rompendo a lógica da razão instrumental, funcionalista, sistêmica, reprodutora do economicismo e da dominação de alguns sobre a maioria.
Na diocese de Lages, no período escolhido para esta pesquisa, 70/80, diversas
organizações, em comunhão marcada pela amizade, solidariedade e pela troca recíproca,
realizavam atividades de grupo, discussões e elaboração de projetos que vinham contribuir
para que as comunidades pudessem participar dignamente das transformações sócio-político-
culturais da sociedade, em benefício da maioria da população, procurando acabar com
atitudes de exclusão e buscando as que possibilitassem a reconquista da cidadania para todos.
De acordo com Fleury (1998, p.46):
O Brasil se configura como um povo64 que constrói um projeto de sociedade e de cidadania, que amadurece uma identidade nacional a partir da simbiose entre múltiplos sujeitos e movimentos sociais, étnicos e culturais em processo de integração e conflitos profundos.
Em função do sistema capitalista opressor, diversas lideranças de CEBs de Lages
sofreram represálias por parte de alguns setores dominantes. Na letra de muitas canções
podia-se perceber a denúncia dessa forma de exclusão daqueles trabalhadores conscientes,
que participavam à frente de algum movimento das classes populares: “Oferta pequena de
pouco salário / luta de operário, trazemos também / Todo o sacrifício das mãos que suaram /
E este pão assaram para o nosso bem.” Ou “Enfrentei o dia inteiro, trabalhando a plantação
/ semeando e cultivando / Meu suor merece o pão[...].”
No depoimento de Eroni, pode-se perceber a presença da exclusão daqueles que
buscavam promover a formação da consciência nos grupos populares, desenvolvendo o senso
crítico dos companheiros de luta: “Nosso grupo era de resistência e luta. Não agíamos no
individual, nosso propósito era sempre o coletivo. Tudo pelo bem de todos. Eu trabalhava
naquela época em uma grande madeireira do bairro, lá eu fui perseguido, principalmente por
ser uma liderança que procurava falar de consciência. Em muitos momentos estivemos
presentes nos embates, dentro dos grupos de movimentos populares, levando cartazes, mas
principalmente com músicas que falavam por nós o que queríamos dizer. Geralmente nos
apropriávamos de alguma melodia e mudávamos a letra, ou então utilizávamos alguma letra
da igreja que tivesse uma mensagem contra a opressão e a favor da libertação do povo”.
64 Costuma-se considerar como povo não só o operariado urbano e rural, os assalariados dos serviços, os restos
do colonato, mas, ainda, as várias camadas que constituem a pequena burguesia, não sendo possível agrupar em um todo homogêneo as manifestações culturais de todas essas esferas da sociedade.(CHAUÍ, 1989, p.43).
84
Percebe-se, a partir dos relatos das experiências de pessoas ligadas aos diversos
movimentos de CEBs de Lages, desejos e vontades partilhadas, necessidades comuns,
desafios a superar. De forma significativa dava-se importância à participação comunitária. A
canção popular era suporte para as reuniões, com a temática de acordo com a reflexão do
momento. Conforme recorda Eroni: “ Tínhamos o hábito de criar letras de músicas dentro do
próprio grupo [...] Quando marcávamos uma reunião para debater sobre um determinado
assunto, eu já passava na casa do violeiro [...] e pedia para ele fazer uns versos que se
relacionassem com o assunto [...] Mais tarde, na reunião lá estava ele com o seu violão nas
costas, trazendo uma música, que passava para todo o grupo. Geralmente ele se apropriava
de uma melodia já conhecida, trocando apenas a letra, conforme a reivindicação que
queríamos fazer.”
O Movimento torna-se assim, uma ‘escola’ para seus integrantes. A partir do
momento em que cada participante vai se envolvendo nas atividades, torna-se mais forte e,
conseqüentemente, fortalece o grupo. É uma reciprocidade de aprendizagem na construção de
um mundo mais justo e igualitário para todos.
3.3 Os movimentos que forjavam a luta das comunidades em Lages nos anos 70/80
Em Lages, a música ocupou um lugar privilegiado no cenário das organizações e
movimentos populares, na década de 70/80, expressando e configurando as lutas das
comunidades, tornando-se uma forma de “cantar e contar a luta”.
Nesse período, algumas organizações comunitárias de Lages procuravam vincular as
canções às ações dos grupos integrantes das CEBs, identificando-se através dos conteúdos
expressos nas letras como forma de superar limites na sua subjetividade, tornando-se mais
fortes. Como exemplo, a letra da música :“Igreja é povo que se organiza. / Gente oprimida
buscando libertação”. As diferentes classes de trabalhadores que se unem num só ideal de
liberdade e conquista para todos: “O operário lutando pelo direito / De reaver a direção do
sindicato / O pescador vendo a morte dos seus rios / Já se levanta contra esse desacato/[...]
Se libertando das garras do seu patrão.” Homens e mulheres combatendo as dificuldades do
dia a dia, na esperança de vencer os obstáculos: “A lavadeira, mulher forte, destemida, / Lava
sujeira, injustiça e opressão. / Posseiro unido que fica na sua terra / E desafia a força do
invasor.” Cantando o que não consegue falar: as dores, as lutas em busca da libertação; “Índio
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poeta que pega sua viola / Que canta a vida, a saudade e a dor. / É gente humilde, é gente
pobre, mas é forte / [...]Em Jesus Cristo a ressurreição / pra ser um povo feliz e libertado.”
(CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).
Esta letra surge incentivando as comunidades a se organizarem para atingir seus
direitos e seus objetivos. A ressurreição tem o significado de uma ‘nova vida’, do povo liberto
da opressão dos poderosos e com possibilidades de superação das desigualdades sociais.
Mesmo que algumas frases de uma determinada canção refiram-se a situações de outras
regiões brasileiras, os grupos entendem que basta interpretar conforme as necessidades
próprias do lugar. É gente oprimida, mas que busca a libertação e que a alcança quando se
está reivindicando junto com outras pessoas que têm o mesmo ideal, o que as torna mais
fortes.
Em entrevista a esta pesquisadora, Teonilda65, que concorreu a vereadora pelo
Partido dos Trabalhadores de Lages, no período a que esta pesquisa enfoca, ressalta a
importância da Canção Popular nos movimentos de CEBs em Lages: “ Com certeza as
canções tinham um cunho social e transformador, as letras dessas canções são de
resistência.[...] os anos 70 e 80 foram o auge dos grupos, até a minha própria candidatura
veio a partir das pastorais sociais e a maioria das lideranças saíram dos grupos de família,
da base. Na diocese de Lages a gente sonha e luta para que sempre mais essa vivência dos
grupos de família seja forte para o caminho das CEBs. A canção influencia sim, porque é a
partir da luta que nascem essas canções [...] com certeza esses cantos que nascem da luta,
são ferramenta de transformação, [...] são letras de esperança, de ‘pôr a mão na massa’,
essa mistura de fé e vida... a gente sabe,tem que haver ação e oração. E se você analisar a
letra das canções, são mistura de fé e vida, são letras de resistência mesmo[...]ferramenta de
transformação, mesmo!”.
Referindo-se às diferentes maneiras de engajamento naquele período, Locks (1998,
p.3) salienta que Lages tinha, nos anos 70/80, diversas formas de engajar-se nas lutas
populares. Mesmo tendo características diferentes, estavam centradas na afirmação da
democracia e no direito à cidadania.
Sobre a elaboração da consciência e da construção de identidades pessoais e
coletivas, Fleury (1998, p. 47) diz:
permitiria ir além dos particularismos e criar condições para resgatar e integrar as dimensões mais originais e essenciais, capazes de sustentar a construção e gestão
65 Teonilda de Fátima da Silva, 50 anos, líder da Equipe Diocesana de CEBs de Lages, Ministra da Eucaristia,
do Matrimônio e da Palavra.
86
compartilhada de projetos criativos e, ao mesmo tempo, mais consistentes e de grande alcance.
Entre os grupos engajados almejando construir cidadania, pode-se salientar a
Comissão Pastoral da Terra (CPT), Movimento das Mulheres Agricultoras (MMA),
Associações de Moradores (AM), Pastoral Operária (PO), Núcleo alternativo de Educação
Popular (NAEP), Sindicatos, Associações de Pais e Professores (APP’s), Pastoral Social (PS)
e Pastoral da Criança (PC), além de Grupos de Famílias (GF), todos, atuando através de
processos formais e não formais de educação em forma de assembléias e reuniões.
Dessa forma se percebe como os Movimentos Sociais, em sua prática, projetam uma
identidade como expressão da comunidade em que está inserida, entrando em conflito com
estruturas vigentes na sociedade. Segundo Melucci, (1989, p. 57), Movimento Social é “uma
forma de ação coletiva, baseada na solidariedade, desenvolvendo um conflito e rompendo
com os limites em que ocorre a ação”.
Movimento Social é um conjunto mais abrangente de práticas sócio-político-culturais que visam à realização de um projeto de mudança (social, sistêmica ou civilizatória), resultante de múltiplas redes de relações sociais entre sujeitos e associações civis. É o entrelaçamento da utopia com o acontecimento, dos valores e representações simbólicas com o fazer político, ou com múltiplas práticas efetivas. [...] é a síntese de múltiplas práticas, produto das articulações de sujeitos e associações civis (SCHERER-WARREN, 1999, p. 15-16).
A dimensão educativa presente nos Movimentos Sociais, aqui especialmente as
CEBs, é revelada por meio da canção popular que possui caráter pedagógico no conteúdo de
suas letras, tecendo a memória das diversas experiências do grupo, atingindo corpo, mente,
sentimento e emoções, além de contribuir para formar consciência crítica. A canção quando
elaborada para o movimento, motiva o grupo a compreender a realidade num todo,
sustentados pela fé, comprometendo-se com a participação aliada à espiritualidade.
Formando uma consciência voltada para a construção da cidadania e do respeito para
todos, o grupo adquire força para continuar atuando nos diversos segmentos da comunidade,
sem medo de enfrentar os obstáculos que possam surgir, pois sabe que, unidos, é mais fácil
encontrar as respostas necessárias para solucionar os problemas do dia-a-dia.
Teonilda complementa: “A canção favorece também, quando te incomoda, porque
ela mexe com você e te dá essa garra, esse ânimo, eu me sinto assim. [...] a partir de uma
celebração com músicas e letras de mensagem de luta, participação, motivação, volto para
casa, acredito mais ainda que o homem e a mulher são seres muito amados, imagem e
semelhança de um DEUS muito humano. A canção mexe com você, não deixa mais você de
braços cruzados, te motiva a participar, abre teu senso crítico, e também te leva à
87
espiritualidade. E esta espiritualidade perpassa o teu dia-a-dia [...] porque a natureza fala
que a vida está na árvore, na água, na mulher e homem, na criança, e as letras das canções
celebram tudo isso”.
A canção popular intervinha nas reuniões dos diferentes movimentos de base, com
uma intencionalidade pedagógica de transformar determinada ação em aprendizagem coletiva,
percebendo-se através dos gestos e atitudes de seus participantes que estes iam se tornando
sujeitos comprometidos nesse processo formativo.
No período pesquisado, as CEBs de Lages podem ser vislumbradas como
participantes ativas de um processo de transição sócio-politico-cultural, conforme relatórios
apresentados pela coletânea “Pixurum”(1989/2000), elaborada pelo Centro Vianei de
Educação Popular, nos quais são mostradas diversas ações realizadas pelas várias Pastorais
que trabalhavam à luz da solidariedade pela integração entre os membros do grupo e na deste
com os demais.
Eroni acrescenta: “As pessoas da comunidade de base, nos anos 70 e 80 eram muito
assíduas, desde a reunião até aquele movimento em prol de melhorias no bairro. As mulheres
se reuniam na pastoral social, faziam biscoitos, acolchoados e outros artesanatos que vinham
a ajudar as famílias mais pobres. Fazíamos reivindicações em prol de melhorias na questão
de saúde, alimentação, educação e tudo mais que o povo precisasse para ter dignidade”.
Dessa forma, percebe-se a importância da união dos grupos para o fortalecimento das
organizações que atuam em favor dos trabalhadores explorados e oprimidos da sociedade e
que buscam dignidade para homens e mulheres que sonham com igualdade de direitos para
todos.
3.4 Centro Vianei de Educação Popular e a Comissão Pastoral da Terra – CPT: A
Canção na formação de consciência política
De 1976 a 1982, a Prefeitura de Lages esteve sob a administração do Prefeito Dirceu
Carneiro. Foi um período em que as ações governamentais do Município estiveram voltadas
para as classes menos favorecidas da população local. Diversas lideranças surgiram naquele
período político administrativo em Lages, incentivadas pelos projetos de ‘mutirão’ nos quais a
própria comunidade é chamada a assumir responsabilidades que dêem melhores condições de
vida a todos os munícipes.
88
Com o fim dessa administração pública, alguns representantes que faziam parte da
equipe de Dirceu buscam parcerias na Igreja para constituir o que veio a se tornar mais tarde
uma organização não governamental: o Centro Vianei de Educação Popular.
Em 1953 foi inaugurado o Seminário Diocesano de Lages, ao qual foi dado o nome
de São João Maria Batista Vianei, considerado o santo padroeiro dos padres diocesanos. Esse
santo nasceu na cidade de Ars, França, em 1786.
No ano de 1983 uma equipe de Educação Popular, juntamente com trabalhadores
rurais, inicia o Projeto Vianei de Educação, atual Centro Vianei de Educação Popular.
(PIXURUM, 2004, p. 48-49). Este Centro de Educação exercia papel de destaque junto aos
pequenos agricultores no movimento de luta contra a construção das barragens. O Vianei
também chama a atenção para a questão da reforma agrária e a “Romaria da Terra” por meio
da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Une toda uma mística em torno da produção do
alimento, da terra que é direito de todos, apoiando o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
(MST). Muitas canções populares contam a história destas Romarias, canções estas de
embates, de denúncias e de projetos de mudança.
Até hoje (2007), esse Centro “realiza um serviço de assessoria técnica e política
orientada pelos princípios da agroecologia, voltada aos agricultores e seus familiares na Serra
Catarinense [...] desenvolvendo um projeto de sociedade concebido e protagonizado por esse
Centro Vianei e seus aliados, particularmente, os Movimentos e Organizações Populares da
Região. O agricultor é o sujeito principal de suas ações.” (PIXURUM, 2004. Prefácio)
Geraldo Augusto Locks66, em entrevista, acrescenta: “impregnados de um ideal
alimentado e orientado pela Teologia da Libertação, trabalhávamos com a formação de
padres no antigo seminário de Lages, numa propriedade de aproximadamente 15 hectares,
numa casa de 5500 metros quadrados e nela habitavam apenas trinta alunos. Então nós
tínhamos condições materiais, sonhos, projetos, mas nos faltavam idéias mais concretas e
sobretudo experiências de se aventurar organizações não governamentais e buscar recursos
para tal. E foi quando, de um lado, esse grupo que se originara da “Força do Povo”, de
outro, o grupo da Teologia da Libertação, nos juntamos para constituir o Vianei. Em 1983,
inicialmente para assessorar jovens agricultores, foi se desdobrando em projetos e continua
até hoje, como uma entidade, sociedade civil sem fins lucrativos, cuja missão é assessorar
economicamente grupos de agricultura familiar aqui da região da serra”.
66 Agente de pastoral, exerceu o ministério de 1981 a 2003, 54 anos, hoje professor na UNIPLAC, Mestre em
antropologia social UFSC, doutorando em antropologia Social PPGAS – UFSC. Essas considerações foram feitas por Geraldo Locks durante entrevista, concedida a esta pesquisadora, no mês de novembro de 2007.
89
O Vianei era formado, na época, por uma equipe multidisciplinar, líderes com
formação em História, Pedagogia, Administração, Comunicação, Economia, Agronomia,
combinando, de certa forma, estes aspectos curriculares à mística, agregando-os às lutas em
benefício da comunidade.
Geraldo continua: Em 1984, um grupo de agricultores das proximidades dos rios
Pelotas e Canoas chamou a equipe para uma reunião. Eles estavam com medo de uma
notícia que estava se espalhando pela região: Iriam se construir grandes barragens aqui na
região e estes agricultores, então ameaçados, chamaram a gente lá para conversar e
encontrar alternativas sobre suas propriedades. Lá estava o Bispo Dom Honorato Piazera, o
Padre Andréas, nós do Vianei e os agricultores. E naquele dia nasceu a CPT – Comissão
Pastoral da Terra.
Um dos principais objetivos da CPT, segundo Locks, foi contribuir na organização e
na defesa dos direitos dos agricultores e agricultoras. Falava-se de saúde, comercialização da
semente, da falta de política agrária. Tudo isso foi se inserindo no processo e na vida dos
agricultores, como uma presença solidária da Igreja. A Comissão Pastoral da Terra
incentivava na formação da consciência crítica dos pequenos agricultores, nos aspectos de
organização e mobilização buscando conquistas que iriam garantir melhorias na qualidade de
vida (Anexo A).
Com o objetivo de resgatar a cidadania daqueles que estão à margem da sociedade e
desafiar estruturas de classe que, por leis injustas resultam nas desigualdades sócio-
econômico-culturais, a canção popular surge como expressão de mudança a partir das
necessidades do grupo, na tomada de consciência sobre sua situação, criando estratégias
coletivas de transformação. Conforme a letra dessa canção muito entoada nos movimentos de
CEBs daquele período histórico: “Povo que luta, cansado da mentira, / Cansado de sofrer,
cansado de esperar./ Povo que luta, cansado de esperar, / Procura a redenção./ [...]Povo
que luta, por terra onde há fartura, / Por paz sem fingimento, / Por vida partilhada / Procura
a redenção. Essa cação manifesta a presença das classes populares que, embora sentindo-se
oprimidas, reconhecem que é preciso combater a opressão e o sofrimento, acreditando na
libertação: “Povo que espera, colheitas mais serenas, / verdades mais profundas, / Caminhos
mais fraternos, / Povo que espera caminhos mais fraternos,/ Proclama a redenção.
Esta canção expressa ainda, a importância da luta das comunidades em favor da
verdade que liberta, da união do grupo que pode ajudar a transformar o mundo, lançando mão
da criatividade e da consciência de construção de um mundo melhor. A canção é um meio
90
possível de ‘ensinar’ atos políticos de participação e mudanças de si mesmos e do meio onde
vivem.
Em entrevista, Locks lembra que quando os participantes se reuniam: “A gente
sempre levava junto o violão, então a reflexão era sempre regada de muita música, mística,
religiosa e política. Eu defino a mística como uma força que se desenvolve no interior das
pessoas e com a qual elas lutam apesar de tudo, sem desanimar, persistem na luta, se armam
de coragem, se organizam e lutam na defesa de seus direitos. A mística religiosa, entendo ser
aquela que vem mais da fé e a mística política, aquela da organização social, econômica,
política, cultural dos trabalhadores. Nós levávamos o violão e a música fazia parte desse
processo. Sempre, no início, no meio do debate e quando se encerrava, a música era
ferramenta indispensável”.
Na tomada de consciência, os participantes dos diferentes movimentos de CEBs
inspiravam-se nas vivências diárias para compor letras comprometidas com a causa coletiva.
Eram canções que instrumentalizavam a luta nos diferentes contextos e realidades da
comunidade. Assim se reproduzem canções de protesto e de busca pelo engajamento e
compromisso às causas que defendem a sociedade como um todo. As reuniões desses grupos
eram, assim, um momento onde as pessoas podiam expressar sentimentos comuns
favorecendo, pela canção, a necessária tomada de consciência.
Na medida em que as pessoas compõem letras politizantes ou se apropriam de outros
ritmos criando a paródia, elas surgem como instrumentos que são possíveis para a
transformação de determinada realidade. Estas canções estarão se adaptando ao próprio
contexto, sendo que uma mesma canção pode ser usada em diferentes encontros,
Simplesmente ela é reformulada e adaptada à situação vivida pelos integrantes do Movimento.
Cada acontecimento no grupo é inspiração para uma nova letra. Da tomada de
consciência ao ato de protestar, brotam canções que vêm dessa reflexão, dando força no
momento de expressar o sentimento que vem da realidade vivida individual e coletivamente,
traduzindo-se em versos e refletindo em novas experiências. O que antes era sonho, no
imaginário dos participantes vai se tornando fruto, conquista de todos.
Assim, a canção é vista pedagogicamente como uma ferramenta capaz de diminuir
distâncias entre a utopia e o real. Aquele que canta passa a ser um educador, que através da
voz faz a mediação ao senso crítico, desde que utilize uma letra fortalecida pela realidade e
traga possibilidades de renovação. Campbel (2001, p.120) diz que ‘cantar é hoje mais do que
nunca uma arte viva’. Quando as pessoas cantam juntas, uma sintonia se cria neste grupo,
unificando desejos, principalmente quando a letra tem um conteúdo de interesse comum.
91
Torna-se fácil projetar um ideal a ser atingido. A comunicação que se faz pela linguagem
aumenta a possibilidade de sintonia do grupo.
Na continuidade da entrevista, Locks comenta que “Dentre as canções que eram
cantadas pelos agricultores organizados pode-se citar A Nossa Luta é na Roça e na cidade,
canção trazida da região oeste do estado de Santa Catarina, que trazia a realidade das
pessoas do campo e da cidade que acreditavam na fé como condição para se chegar à
liberdade. A canção convocava essas pessoas para que não desanimassem da luta.” A letra
da canção dizia: “A nossa luta é no campo e na cidade / prá construir uma nova sociedade /
Quem rouba a terra, rouba a vida do pobre / que necessita da terra para viver, / a terra é
vida para quem trabalha nela. / Negar a terra é fazer o pobre morrer.” A canção continua
afirmando que não é apenas no trabalho rural que existe a exploração, mas em qualquer
atividade: “Sempre somos explorados nos empregos, / da nossa força sai o lucro do patrão, /
e para casa vai o decreto de morte, / salário baixo e pouca alimentação.” Da solidariedade
advinda da vivência de injustiças sociais semelhantes é que brotam os Movimentos Sociais e
as canções denunciadoras dessa situação. “Mas é nas CEBs que os pobres se organizam /
acreditando uns nos outros e na união. / [...] Unidos vamos conquistar nossos direitos, / com
fé na luta buscamos a liberdade /[...].”
Não eram apenas os pequenos agricultores e agricultoras que, reunidos, tornavam-se
mais fortes na perspectiva da construção de uma nova sociedade. Os representantes de vários
outros segmentos da classe trabalhadora também se organizavam para alcançar seus direitos,
juntando-se a movimentos já existentes, entre os quais, os da Pastoral da Saúde, da Terra e da
Juventude, acreditando que através da união seria mais fácil a formação política, o
desenvolvimento da criticidade diante das diferentes situações que poderiam surgir.
Nessa entrevista, Locks lembra ainda que “Nos encontros realizados pelo Vianei com
os grupos populares, se traziam músicas de várias regiões. Músicas com uma abertura ao
desenvolvimento da criticidade, que tivesse uma mensagem politizante e que ao mesmo
tempo, convidasse as pessoas para cantar. Então, muitas músicas também emergiram aqui, a
partir da história do Contestado. Por exemplo ‘Chica Pelega’ e ‘Maria Rosa’, eram músicas
surgidas no Contestado, compostas por Vicente Teles, da cidade de Irani-SC”. A canção
Chica Pelega: A Guerreira de Taquaruçu67, qualifica a presença da mulher como parte
integrante nos diferentes movimentos, valorizando-a na sua coragem e persistência de luta. A
67 Nascida em Joaçaba SC, Chica Pelega ficou conhecida por liderar o grupo que liqüidou os agentes do
Exército Nacional na localidade de Taquaruçu, em Curitibanos. "Ela não tinha medo de morrer. Ela era o
92
mulher que não teme a morte em favor dos seus. E as comunidades se identificam com a letra
da canção. É também por meio da linguagem dessa canção que os trabalhos comunitários são
fortalecidos. Chica Pelega, na sua época, tinha fé no que dizia o ‘Monge’ e organizava seus
companheiros para a luta: “Crente na fala do Monge, Chica Pelega bradou: Monte compadre,
traga o afilhado, que o tempo de briga é chegado./ Que o tempo de briga é chegado / Na
cidade Santa de Taquaruçú/ ‘Chica’ não convidava apenas os homens mas também as
mulheres para se engajarem no Movimento: “[...] Monte comadre, traga o facão / Que é pra
defender nosso chão / Na cidade santa de Taquaruçú / Monte, comadre, que importa a morte,
/ Se o amor que vier for mais forte.”
Outra canção muito conhecida e cantada dentro dos movimentos de agricultores e
agricultoras da região serrana é ‘Maria Rosa’ também lembrada por Locks como um dos
‘hinos’ entoados nos encontros, resgatando mais uma vez a força da mulher que não foge à
luta: “Maria Rosa entrou na guerra / na Terra do Contestado / Levando flores no cabelo / ela
guiou um povo armado.” No restante da letra a canção enaltecia a aparência física, o modo de
se vestir e, principalmente, os feitos de Maria Rosa no Contestado os quais servem de
inspiração para a mulher serrana em suas lutas diárias. “Galopeava em seu cavalo / num celim
de montaria, / O seu vestido era branco / e com a espada combatia / José Maria fez fanáticos
/ na guerra em oração / Maria Rosa também foi / a Joana D’Arc do sertão.” Maria Rosa
combatia com a espada. A mulher serrana, com sua força e coragem e, muitas vezes, na luta
exaustiva com a enxada na mão integrando os grupos na defesa do seu lar e do seu chão.
As mulheres agricultoras eram assistidas pela equipe do Vianei, por meio de
trabalhos de conscientização sobre seu papel no processo de construção de novas perspectivas
e conquistas. Assuntos como sexualidade humana, metodologia e classes sociais eram
ferramentas de luta além de reflexão teórica e política nas diferentes pastorais. As mulheres
avançavam assumindo o compromisso de organização e formação de lideranças.
Entre os Movimentos apoiados pelo Vianei estava o das Romarias da Terra que
surgiram a partir da CPT (Comissão Pastoral da Terra), que se organiza com o apoio da
diocese, através de encontros paroquiais com os agricultores, lideranças e agentes de
pastorais. A primeira Romaria da Terra, segundo Locks, que fazia parte da equipe de
organização, “nasceu em 1986, na cidade de Taquaruçú, SC. Emblemática, por ser a
primeira, evidentemente e por acontecer no espaço simbólico da irmandade de caboclos que
espírito dos injustiçados. (Aulo Sanford de Vasconcellos, autor de: "Chica Pelega: A Guerreira de Taquaruçu: Tragédia Heróica”).
93
foi completamente destruída pelas forças do Exercito Nacional. A Romaria aconteceu lá
nesse espaço onde tombaram muitos caboclos resistentes”.
Uma letra muito cantada em todas as Romarias e principalmente pelos grupos de
Lages nos encontros, veio do Rio Grande do Sul, mas enfoca uma realidade vivida também
em Lages, pelas classes populares que não têm acesso à terra para morar e produzir. Enquanto
poucos têm muito, grande parte da população (sobre)vive à margem da sociedade. Esse ‘hino’
da Romaria, já citado no Capítulo I, fala que a terra é de todos e que a população precisa lutar
para ter sua parte, para morar e produzir, garantindo dignidade para si e para sua família,
sempre por meio da união: “Romaria da Terra, faz o Povo Reunir / Numa luta sem guerra,
nós lutaremos por ti.” As comunidades, inspiradas pela fé, e conscientes do compromisso
coletivo, sabem que é preciso participar da reconquista do espaço a que têm direito: “A terra é
sagrada, feita por Nosso Senhor. / Ele fez e deu ao homem e também nos ensinou. / Que é
nela que vivemos e a ela abençoou. / Como é linda a natureza, é obra do criador. / Deus deu
a inspiração, o homem fez a plantação e foi assim que começou.” A partir dos encontros e
celebrações dos quais esses grupos participam, as comunidades vão tomando conhecimento
de sua realidade. O trabalhador, obrigado a desfazer-se da terra, vem para a cidade e encontra
dificuldades ainda maiores, tornando sua vida mais difícil. Nesse contexto, unindo-se à classe,
assume o compromisso de mudança dessa realidade.
Esta canção que contempla a realidade de muitas comunidades da região serrana,
mostra o lamento dos trabalhadores que lutam pela sobrevivência e pela permanência na terra
e que, unindo-se, resistem para conquistar melhores condições de vida e direitos de cidadania,
ao processo de exclusão que o capitalismo impõe.
Segundo estudos sociológicos recentes, de acordo com Maristela Fantin, grande parte
da população não está integrada à sociedade, uma vez que, devido ao avanço do processo
capitalista, um contingente de pessoas não tem acesso à bens prioritários, tais como saúde,
moradia, escola, saneamento básico: “A sociedade capitalista desenraiza e exclui indivíduos e
grupos, para incluí-los de outro modo, segundo sua própria lógica: inclui do ponto de vista
econômico e exclui do ponto de vista social, moral e político”.(FANTIN, 1998, p. 23).
A canção popular contribuiu, e contribui, nesses movimentos dando visibilidade às
reivindicações. Por meio de suas letras e ritmos, não só denuncia mas promove ações para que
as mudanças ocorram. É utilizada especialmente em caminhadas, assembléias ou celebrações,
além de exercitar a formação de consciência das lideranças para que exerçam o papel de
animação nos grupos, divulgando os valores almejados para uma sociedade diferente.
94
A letra musical apresentava, na maioria das vezes, um conteúdo que, descrevendo
problemas, sugeria reflexão sobre os sentimentos, as situações e as atitudes de um coletivo
que se reúne em busca de forjar situações de mudanças frente a uma realidade injusta.
Segundo Locks, outra letra muito cantada, naquele período, pelos Agricultores
organizados, era: A Classe Roceira e a Classe Operária68, que mesmo não tendo sido
composta em Lages, retratava a situação do Brasil. O grupo entendia estar inserido nessa
realidade e desejava a concretização da Reforma Agrária (Anexo B).
Locks enfatiza esta canção, caracterizando-a como um verdadeiro ‘hino’, repetido
diversas vezes nos encontros, cantado com entusiasmo, com gritos e palavras de ‘ordem’, em
que: “A Classe roceira e a Classe Operária / ansiosas esperam a reforma agrária / Sabendo
que ela trará solução / para a situação que está precária./ Saindo o projeto do chão
brasileiro / de cada roceiro plantar sua área / Sei que na miséria ninguém viveria / E a
produção já aumentaria / quinhentos por cento até na pecuária”.
Esta é uma letra que fala da realidade dos agricultores. Estes vivem o reflexo da
realidade nacional que apresenta falta de proposta de uma política agrária que assegure
melhores condições para os trabalhadores considerados pequenos e médios proprietários
rurais. A organização desse e de outros grupos é que vai protegê-los do autoritarismo da
classe dominante e de seus representantes. Assim, a música pode constituir-se num
instrumento que fortalece as organizações populares. Basta prestar atenção nas canções
utilizadas nas CEBs, nas Romarias da Terra, nos encontros dos Movimentos. São ‘cantos’ que
denunciam as situações opressivas e que, mais uma vez, vão forjando a luta: “ Senhor, tende
pena deste povo sofredor, / Tem gente que ainda aumenta a sua dor”.Essa letra enfatiza que,
muitas vezes, aqueles que exploram, são os que se dizem ‘representantes’ da população:
“Quem devia socorrer, enriqueceu, / Quem devia ajudar, o explorou / Quem devia anunciar,
emudeceu / Quem devia libertar, o escravizou”. E, com fé, clamam: “Senhor, tende pena
deste povo sofredor!”. (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).
As canções utilizadas pela CPT, criadas nas comunidades de Lages ou, adaptadas
nessa cidade, mostram elementos de conjuntura nacional, especialmente relacionados a
acontecimentos de luta pela conquista da terra, deixando entrever em suas letras uma rede de
significados criados pela própria identidade do grupo.
A Canção Popular, com suas letras críticas, possibilita implantar uma linguagem de
protestos e anunciar o sonho de uma comunidade que quer soluções para seus problemas. A
68 Autores: Francisco Lázaro e Goiá
95
Canção Popular torna-se a voz da comunidade que está à margem da sociedade e teima em
cantar, acreditando na possibilidade de tornar melhor o mundo para as gerações seguintes.
As letras dessas Canções explicitam a ideologia da organização e expressam uma
compreensão de mundo, de sociedade. Estabelecem um processo comunicativo que permite
que as informações circulem, criando identidades e tornando eficaz a ação do movimento nas
diversas modalidades que se manifestam, adaptando sua letra às necessidades do processo
onde estão inseridas. Se, por exemplo, o grupo assume um compromisso com a reforma
agrária, é nesta temática que o conteúdo da canção vai se manifestar. Por meio dela, o grupo
canta sua história e seus desejos.
Alzira recorda: “Havia uma canção muito presente na década de 80, quando nos
movimentos populares, nas Romarias da Terra, nos Movimentos de Mulheres Agricultoras e
no próprio partido político (PT) se ensaiavam “análises de conjuntura”69 a partir da canção
popular”: “Na terra dos homens pensada em pirâmide/ há poucos em cima e muitos na base
/Na terra dos homens pensada em pirâmide.” Letras como as dessa canção popular, reforçam
a idéia de que os grupos ‘da base’, as comunidades, se unidos, são muito mais fortes e que é
preciso ligar fé à ação: “Os poucos de cima esmagam a base./ Oh! Povo dos pobres / Povo
dominado / Que fazes aí com ar tão parado?/ O mundo dos homens tem que ser mudado /
Levanta-te, povo, não fiques parado70.
Letras assim cumprem a tarefa pedagógica de “estudar de forma lúdica” as
necessidades da comunidade. A partir dessa canção torna-se acessível o entendimento de
como funciona a sociedade. Nos grupos populares de Lages, a canção popular podia ser
compreendida como forma de resistência e de luta das classes empobrecidas, de soltar o grito
de indignação ou socorro e também de expressar sonhos.
As canções populares eram utilizadas como instrumento pedagógico, divulgando
valores e objetivos de luta das comunidades em que se inserem, presentes no imaginário dos
participantes, como expressão de elementos novos que auxiliam para a formação de novas
consciências.
Dentro dos movimentos é possível perceber-se a utilização das letras das canções na
abordagem de questões que caracterizam a identidade subjetiva do grupo, tornando visíveis
69 Análise de Conjuntura: aborda temas complexos como guerra, convulsão social e embate eleitoral. Em todos
eles procuramos ver a realidade a partir do agredido, do oprimido que luta por seus direitos mais fundamentais, e não como se fossem disputas entre atores iguais em direitos. Isso não significa dar a priori razão ao oprimido, nem avalizar seus métodos de ação social e política, mas sim a predisposição do analista a solidarizar-se com quem tem sua vida mais ameaçada e assim abrir pistas para uma ação capaz de superar aquela iniqüidade. (Conselho Episcopal de Pastoral – 23ª Reunião Brasília - DF, 22 a 24 de agosto de 2006).
70 Autor desconhecido.
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valores construídos coletivamente, podendo, assim, a Canção Popular contribuir no processo
de emancipação das classes menos favorecidas.
De acordo com Alzira, naquele período histórico de 70/80, as comunidades
‘organizadas’ em Lages cantavam com toda a força: “Eta, espinheira danada71 que o pobre
atravessa pra sobreviver.” A letra lembra os sacrifícios que a população mais carente tem que
superar para sobreviver e dos sonhos que almeja realizar: “Vive com a carga nas costas e as
dores que sente não pode dizer./ Sonha com belas promessas de gente importante que tem ao
redor.” No entanto, essa gente mantém a esperança de que quando mudar o ‘governo’ as
coisas podem melhorar: “Quando entrar o fulano e sair o sicrano será bem melhor./ Mas
entra ano e sai ano e o tal de fulano ainda é pior”. A fé, porém, é grande e essas pessoas
continuam a acreditar: “É este o meu cotidiano, mas eu não me engano, pois Deus é maior”.
É um ‘canto’ que expressa indignação e, ao mesmo tempo, o sonho de dias melhores.
Dessa forma, as parcelas mais empobrecidas da população alimentam suas esperanças e
convicções. Assim, a canção popular desempenha a função de elevar o nível de discernimento
nas questões sociais, possibilitando um olhar mais crítico sobre a realidade, protestando
contra tudo o que oprime, reagindo às diversas formas de exclusão.
Considerando-se o grande potencial que as canções populares exerceram e exercem
nos movimentos e organizações populares, numa mescla de indignação e sonho, cantando, as
comunidades que participavam, contavam a sua história e alimentavam a sua fé. A Canção
Popular, juntamente com a mística, exercia um papel significativo dentro dos movimentos dos
agricultores levando-os a acreditar que era possível transformar realidades e pela criatividade
em compor ou reproduzir canções de conteúdos politizantes, se permitia sair do imaginário e
buscar significados concretos que iam se constituindo coletivamente.
Uma melodia sertaneja, com forte conteúdo de denúncia da situação dos menos
favorecidos, que incentiva ações que contribuem na tomada de consciência da realidade,
auxiliando na mudança, presente e bastante difundida nos encontros de trabalhadores e
trabalhadoras de Lages, especialmente na década de 80, era, conforme Alzira: “Eu confesso,
já estou cansado de ser enganado com tanto cinismo. Não sou parte integrante do crime e o
próprio regime nos leva ao abismo. Se alcançamos as margens do incerto foram os decretos
da incompetência. Falam tanto sem nada de novo e levam o povo à grande falência”. Aos
poucos, as comunidades começam a tomar consciência da sua realidade, e proclamam: “Não
71 “Espinheira” - Duduca e Dalvan, Composição: Manoelito Nunes e Dalvan, produzido em 1987 pela
Chantecler Wheaton do Brasil, S/A.
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aborte os seus ideais, no ventre da covardia / vá à luta empunhando a verdade que a
liberdade não é utopia”.72
Nessa letra percebe-se um curso de conjuntura e estrutura social transformado em
canção. É, ao mesmo tempo, uma mística que alimenta a esperança, que aponta para um novo
horizonte, que acredita que ainda tem jeito. Uma utopia que aponta para o possível.
Alzira lembra do jeito como as mulheres contavam a sua vida cantando, na década de
80, quando se iniciava o Movimento de Mulheres Agricultoras na Região Serrana. Elas se
enxergavam nesta canção73: “Ela desperta antes de clarear o dia, acende o fogo, tira o leite
pro café, atende os filhos, ajuda a tratar os bichos, tudo ela faz com amor e muita fé”.
Presença forte da mulher serrana, guerreira que não abandona a luta em favor dos seus: “Vai
pra roça, ao meio dia faz o almoço, lava os pratos enquanto o pessoal sesteia, limpa a
cozinha, amassa o pão, estende a roupa, a sua vida de serviço é sempre cheia [...]. (Autor
desconhecido).
Dentro do processo histórico em que as comunidades estavam envolvidas, as canções
constituíam-se numa identidade coletiva. Os integrantes partem do princípio instituído por
Paulo Freire - ver, julgar e agir - para conhecer as necessidades do grupo. Da reflexão dos
anseios e necessidades, suas dificuldades e metas, passam a definir as estratégias de luta,
injetados de uma força que se manifesta nas expressões do coletivo, constituindo-se em atores
que se inserem nas relações sociais, transformando-as.
Juntos, homens e mulheres cantavam os contos do seu cotidiano, estudavam e
descobriam a exploração da mulher que acumulava dupla ou tripla jornada de trabalho.
Através da canção, descobriam que isso não é “natural”, mas construção de uma sociedade
patriarcal e capitalista. Se antes a mulher era subjugada como sexo frágil, nos movimentos de
base ela passa a ser vista com igualdade de direitos e valores. Criando consciência, mulheres e
homens vão contando e cantando esse processo, demonstrando a força do engajamento por
meio da canção popular: “Entrei na luta, da luta eu não fujo./ Pelos direitos, da luta eu não
fujo./ Pela igualdade, da luta eu não fujo./ Pra construir uma nova sociedade”.(Autor
desconhecido).
As tradições musicais das comunidades lageanas guardam heranças que permanecem
geração após geração. Conforme Alzira: A mística é a “alma”, o sonho, a motivação que
congrega pessoas em torno de uma mesma luta. A mística é pessoal, mas se soma ao coletivo.
E a canção popular tem o poder de aglutinar sonhos e desejos, fazendo com que uma multidão
72 “Massa Falida” Duduca e Dalvan, 1986 73 Composição de Antonio Gringo (s/d).
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se entusiasme junto, pela mesma motivação. Por isso a música cumpre o papel de animação,
criando movimento – ação, a partir de uma inspiração que o canto evoca.
Combinando gesto, voz e forma como é executada ou cantada, a música contribui
para desenvolver um melhor senso de observação e crítica dos fatos quando relacionada com
a realidade. É capaz de estreitar relações e possibilitar estratégias para sair de impasses ou
melhorar a capacidade de analisar criticamente as situações do dia-a-dia, pois pela letra da
canção se canta inclusive o que não se pode falar. Quando o cantor lança mão desses recursos
ocorre uma situação comunicativa, onde o emissor necessita da resposta do receptor.
A enunciação da palavra ganha, em si mesma, valor de ato simbólico: graças à voz ela é exibição e dom, agressão, conquista e esperança de consumação do outro; interioridade manifesta, livre da necessidade de invadir fisicamente o objeto de seu desejo: o som vocalizado vai de interior a interior e liga sem outra mediação, duas existências (ZUNTHOR, 1997, p. 15).
Uma vez que a canção popular é produzida pelas comunidades, é vista como sua
própria linguagem. Nela se insere o jeito próprio das lideranças, seus códigos repassam falas e
ritmos comuns a todos, e cuja facilidade de assimilação independe do grau de escolaridade,
podendo ser apropriado às diversas camadas da sociedade.
As características culturais que possibilitam a luta pelas questões sociais do grupo
refletem-se na forma como este se articula. Elas são identificadas por meio das suas
manifestações, produzindo uma aprendizagem coletiva, articulada desde a formação bíblica,
unindo espiritualidade e celebração às ações das diversas Pastorais, buscando a construção de
um projeto político solidário e de um ‘novo jeito de ser igreja’, de forma alegre e
comprometida.
Utilizando a canção como mediadora é possível fazer um resgate histórico do
movimento, enquanto reformulação de atitudes, valores e formas de relacionamentos sociais
que refletirão coletivamente na produção de sujeitos autônomos e na formação de uma
consciência crítica das pessoas envolvidas, dando novo significado à luta e às conquistas do
grupo.
Conforme a coletânea “Pixurum” (2004, p. 36), editada pela equipe do Centro
Vianei, na diocese de Lages, 50% da força de trabalho era representada pela mulher urbana e
rural. No entanto, ela não é reconhecida como trabalhadora, sofrendo discriminação no
mercado de trabalho e sem direitos sociais. O boletim ressalta a cidade de Lages como uma
cidade historicamente marcada pela prostituição. Mulheres vítimas do machismo e com pouco
acesso à escolarização.
99
A coletânea expressa dados levantados pela diocese de Lages no ano de 1989, em
que se percebe a situação de empobrecimento da população, vinculada ao processo de
dominação e submissão resultado de uma inversão de valores que tornam as famílias vítimas
do alcoolismo, drogas, injustiças, machismo, corrupção.
Mas a mulher, em Lages, também se organiza nos grupos populares, buscando
consciência que a leve à mudança desta realidade sofrida. É pelas comunidades eclesiais de
base que a mulher se faz presente no mundo social, envolvida em inúmeras pastorais sociais,
o que a torna presença de esperança.
Uma canção que se cantava nos Encontros das Mulheres em Lages e que sintetizava
o dia-a-dia da guerreira que tem, quase sempre uma tripla carga horária pra ganhar a vida,
proteger os filhos e ainda achar tempo de ser Mulher-Esposa é o canto: “Mulher é gente que
se organiza / gente oprimida buscando a libertação / luta com garra e decisão”. Esta canção
demonstra, em sua letra, a força da mulher que resiste às adversidades do seu cotidiano e que
não tem medo de ir à luta para conquistar seus direitos e os daqueles a quem ama. “Ela é
apoio, é presença sem descanso / enfrenta a barra, se enfeita, é charmosa / Resiste á luta,
cada dia é a mesma coisa / dizem que é fraca, mas é forte e corajosa. Mulheres que ‘dão a
vida’ e que muitas vezes, não têm onde deixar seus filhos para poder trabalhar.”Anda daqui,
vai dali o dia inteiro / volta do tanque, já é hora da comida / Um vai e vem que nem sempre
tem valor / Uma missão tão sublime e escondida. A lavradora entende o mistério / Da terra-
mãe que a vida faz brotar / É operária e luta no sindicato / Não se acomoda, quer o mundo
transformar. Políticas de saúde indefinidas não lhes garantem dignidade. Na canção, a mulher
encontrava a força que se abre para os grupos expressarem seus anseios e reivindicarem seus
direitos, a partir das reflexões que caminham para realidades melhores. “É professora e se
dedica o ano inteiro/ Pra construir o futuro da nação/ Mas o governo não entende o seu valor
/ E seu salário é sinal de exploração.
É o despertar da consciência crítica de muitas mulheres serranas para o valor de ser
mulher e trabalhadora, com confiança na força que obtêm nas lutas populares, sabendo que
são reconhecidas em seus valores, recuperando seu direito de expressar-se, de reconquistar
sua dignidade e auto-estima.
O Centro Vianei de Educação continua ativo (2007), incentivando e apoiando os
Sindicatos Rurais, as Associações de Moradores, e todos os Grupos voltados à melhoria da
condições de vida dos menos favorecidos, à defesa do meio-ambiente, lutando contra as
tecnologias que escravizam homens e mulheres que lutam por uma sociedade melhor.
100
3.5 Núcleo alternativo de Educação Popular – NAEP – Suas lutas e canções
O NAEP surgiu, paralelamente à campanha eleitoral de 1988, da necessidade de
trabalhar a conscientização nas camadas populares com líderes que faziam parte de vários
grupos de Pastoral, uma equipe não vinculada à igreja, formada por lideranças de diferentes
grupos. Por meio de um projeto, esse grupo(NAEP) organizou-se, com registro no CNPJ. Sua
sede ficava na Rua Café Filho, no bairro Popular, em Lages. Seus integrantes reuniam-se para
estudar diversos assuntos referentes à comunidade, como a Lei Orgânica do Município, IPTU,
Plano Diretor, Associação de Moradores, APPs de escolas públicas e outros. Periodicamente,
os grupos se reuniam para estudar diversos assuntos de interesse da Comunidade. Dentre eles,
um assunto muito importante era o entendimento da função do vereador e a sua importância,
junto ao Legislativo, na reivindicação das necessidades dos bairros.
A partir dos estudos realizados, o grupo voltava para atuar na comunidade onde
estava inserido, promovendo reuniões para reflexão e conscientização, enfatizando temas do
interesse de todos.
Segundo Thompson citado por Piana (2001, p. 21), “as classes surgem porque
homens e mulheres, em relações produtivas determinadas, identificam seus interesses
antagônicos e passam a lutar, a pensar e valorar em termos de classe”. Assim, percebe-se que
onde há exploração, miséria ou injustiça, os sujeitos sociais se manifestam permanecendo
como ‘agentes’ edificadores de uma consciência de classe que pressupõe possibilidades de se
criar uma sociedade melhor.
Na fala de um dos principais integrantes do NAEP, Vilson Laudelino Pedrosa,74
encontra-se a essência dos objetivos do núcleo: “Foi no Centro Vianei de Educação Popular
que realizei o curso de Técnico em Serviços Comunitários e adquiri ferramentas e aprendi
que esse profissional não pode se sobrepor à comunidade, mas sim auxiliá-la a vislumbrar os
caminhos que vai percorrer. As pessoas achavam que eu era seminarista, mas era o meu
perfil trabalhar para a comunidade. No Vianei tive professores como Antônio Munarim, Ari
Martendal, Geraldo Locks, Celso Lorascki, Sérgio Sartori e Jandira Bettoni e refletíamos a
questão social.”
74 Formado pelo Centro Vianei de Educação Popular no final dos anos 70, como Técnico em Serviços
Comunitários. Liderança nos Bairros Popular e Habitação no período pesquisado. Hoje, aos 43 anos, Advogado Previdenciarista. Compositor de grande número de letras das canções utilizadas nos Movimentos Populares de Lages.
101
O que se percebeu no resgate da história desse núcleo, feita por Pedrosa, é que o
NAEP foi um movimento popular que utilizou muito a canção na sua metodologia de
trabalho. A produção musical pensada no interior do movimento refletia a intencionalidade
dos participantes em atingir suas metas. Os mesmos faziam a leitura da realidade onde
estavam inseridos e por meio das letras das músicas buscavam projetar uma outra história,
onde a inclusão fosse possível.
Essas lideranças, imbuídas por uma força que emergia da realidade vivenciada pelo
grupo, constituíram-se em sujeitos da luta e atingiram dimensões que se estenderam além do
grupo e da comunidade local, ultrapassando fronteiras de tempo e espaço, ou seja, formaram
outros grupos, em outras realidades, que se inseriam na mesma busca de organização para
uma vida melhor. As várias canções que foram criadas ou adaptadas de outras letras levavam
os participantes a contar suas vidas e lutas, cantando.
Essa metodologia era contagiante, considerando que muitos integrantes do grupo ou
pessoas que participavam dos encontros promovidos pelo núcleo identificavam-se com a
linguagem da música e passavam a refletir sobre a falta de saneamento, saúde pública,
educação de qualidade, assuntos que faziam parte do cotidiano da maioria dos moradores dos
bairros onde o núcleo atuava.
Pedrosa, que, além de músico, tinha facilidade em escrever letras ou adaptar letras
prontas ao contexto vivido pelas comunidades, relata: “A canção popular é um recurso
didático/pedagógico que possibilita fazer a leitura da realidade, para a pessoa se
conscientizar, para levar a refletir e chegar a um determinado objetivo. Às vezes a mesma
música, o mesmo objeto varia conforme o grupo, adaptando-se a cada realidade – num
determinado grupo mais do meio rural, você se adapta ao perfil; com os jovens, um
sambinha, cai bem”.
As lutas sociais vão constituindo sujeitos que apresentam um conjunto de práticas e
comportamentos sócio-culturais, valores e convicções que projetam uma realidade possível de
se viver sem exclusões ou divisões. Noções como estas podem ser contempladas em letras de
canções que, assumindo a defesa dos mais fracos da sociedade, relacionam-se à educação, à
saúde, à moradia, ao meio ambiente entre outros.
Quando a população passa a ser esclarecida sobre os problemas que a sociedade está
enfrentando, é mais fácil concretizar desejos de igualdade e de projetar um futuro melhor para
as gerações futuras.
A canção popular abre a possibilidade, como recurso didático, de complementar os
debates sobre determinado tema de maneira a atingir aspirações e compromissos do grupo, a
102
partir de suas necessidades, que vão desde a melhoria do bairro até à eleição de uma liderança
que possa representá-los nos seus anseios comuns. É o clamor das comunidades, seus sonhos
que, à medida que se sonha comunitariamente, vai se tornando realidade, conforme a letra
dessa canção que animava a continuação das lutas dos grupos de CEBs de Lages, no período
histórico pesquisado e, ainda nos dias atuais, ecoa nas comunidades: “Ninguém pode prender
um sonho, / E impedir alguém de sonhar. / Ninguém pode cortar a esperança / de um povo
sofrido a lutar./ Ninguém pode abafar o grito do oprimido, / Clamando por Javé “. É a fé e a
ação que tornam o sonho possível: “Deus que salva e liberta seu povo / quer erguer o caído e
alimenta a sua fé./ Todo sonho alimenta a história / E a vitória do povo a chegar. /[...] É a
vida que é proclamada no grito em favor de todos aqueles que lutam pela conquista do pão e
da dignidade: “É preciso cuidar bem da vida, / Que vida sofrida se eleva em clamor./(...)
Ninguém pode abafar o grito / De quem sofre a suar pelo pão / Pela paz, pela justiça / E
anda à procura de um mundo melhor. (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).
O NAEP germinou e nasceu no período eleitoral. Iniciou-se com as campanhas dos
candidatos a prefeito e vereadores do município. Especificamente no bairro “Popular”, as
lideranças da Pastoral Operária (PO) resolveram apoiar candidatos que fossem
comprometidos com as lutas populares, preferencialmente se os mesmos fizessem parte
daquela comunidade. Alguns integrantes da PO e da PJ - Pastoral da Juventude - optaram em
apoiar uma liderança que se identificava com os anseios da comunidade.
O candidato a Prefeito, pelo PT, foi Francisco Kuster, e o representante da
comunidade, lançado e apoiado pelo Grupo, para vereador, foi Sauro Tadeu dos Reis75.
Pedrosa salienta a importância de se ter, como candidato, uma liderança envolvida
nas lutas comunitárias. Sobre Sauro, ele comenta: “Sauro aprendeu a falar na frente das
câmeras – era muito didático, a linguagem dele muito popular. Fazíamos filmagens,
desenhos e música como recursos pedagógicos. Isso fazia o pessoal refletir a realidade e
conscientizar sobre o voto – que é uma alternativa, uma arma – para fazer uma revolução.
Dessa forma eram organizadas as reuniões que nós fazíamos na cidade toda. Pessoal de
igreja católica, evangélica, associação de moradores, escolas e outros. Os cantos
ultrapassavam os limites do grupo. Nós fazíamos muitas reuniões.” E aos poucos, as letras
das canções foram confundindo-se à realidade das comunidades, que tomavam consciência e
que buscavam soluções para os problemas comuns: “De repente nossa vista clareou, clareou,
75 Integrante da Pastoral Operária, Sauro, hoje com 52 anos, naquela época era funcionário da CELUCAT –
empresa multinacional de papel e papelão, hoje denominada KLABIN.
103
clareou / E descobrimos que o pobre tem valor, tem valor, tem valor./ Nós descobrimos o
valor da união, / Que é arma poderosa e derruba até dragão”. Os grupos de base passavam a
perceber que sustentavam os poderosos no poder, enquanto trabalhavam em troca de tostões,
sem reconhecimento: “E já sabemos que a riqueza do patrão / e o poder dos governantes,
passam pela nossa mão./ [...]A grande culpa é de quem manda no país, / Fazendo o pobre
infeliz.”As diferenças sociais são percebidas pelas comunidades e, muitas vezes, a canção
popular era a forma utilizada para salientá-las: “ O que vemos é deputado e senador / Militar e
jogador recebendo os seus milhões. / Enquanto isso o povo trabalhador, / derramando seu
suor, tem que viver de tostões. [...]. (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).
A canção popular nascida da realidade dos diferentes movimentos demonstra uma
função pedagógica que se relaciona às ações dos grupos, alcançando os diferentes segmentos
da sociedade. A letra desse tipo de canção interage nas atividades, nos processos coletivos e
possibilita a tomada de consciência das comunidades.
Pedrosa lembra também fatos da época de sua participação no grupo: “Participando
da Pastoral da Juventude, nós procurávamos conscientizar as pessoas da comunidade.
Queríamos que tivessem discernimento na hora do voto, por exemplo. Buscávamos eleger
uma liderança simples da comunidade, que estivesse envolvida nas pastorais.
Desenvolvíamos dinâmicas com esses grupos. A gente fazia filmagens e entrevistas. Dávamos
o exemplo do ‘tubarão e dos peixinhos’: - Quem é o Tubarão? - Em época de eleição,
aparece muito Tubarão por aqui? – E os peixinhos, quem são? – E se eles se juntarem?”
Mas não é apenas na hora do voto que os ‘peixinhos’ devem se unir. É comum
surgirem problemas na comunidade, percebidos, inicialmente, às vezes, por apenas uma ou
por poucas pessoas. Se essas pessoas apenas tecerem comentários ou procurarem,
isoladamente, resolver s situação, cada uma a seu modo, dificilmente chegarão a um ponto
comum. Devem unir-se e, juntas, debater o assunto e encontrar os meios para solucionar o
problema.
Para fixar melhor esses conhecimentos, muitas vezes utilizavam-se cartazes ou folhas
com desenhos mimeografados que ajudavam a entender melhor aquilo que era dito. O cartaz
em que apareciam os peixinhos, por exemplo, mostrava o poder da união dos mais fracos no
combate aos mais fortes. Muitos peixinhos, miúdos, unidos ficavam maiores que o tubarão
(Anexo D).
Outro cartaz utilizado para reforçar a idéia da importância da união era o que
apresentava o desenho de dois burrinhos amarrados um ao outro por um pedaço de corda.
Enquanto cada um puxava para o seu ‘monte’ de comida, nenhum conseguia alcançá-la. A
104
partir do momento em que um respeitou a vez do outro e juntos, agiram para conseguir o que
desejavam, tudo se tornou mais fácil e ambos atingiram seus objetivos (Anexo E).
A reflexão sobre os problemas da comunidade era feita a partir da apresentação das
filmagens, da explanação do significado do desenho, da ligação com a realidade e da
dinâmica apresentada. A música era elaborada a partir dessa realidade, e assim se dava a
formação da consciência crítica dos participantes. Trabalhava-se o papel do vereador, suas
funções políticas e o que dele se poderia cobrar/esperar em favor da Comunidade que o
elegera.
Algumas músicas feitas pelo NAEP naquele período que antecedia as eleições
municipais em Lages, estão bem relacionadas com a dinâmica dos peixinhos e do tubarão76:
“A classe Trabalhadora ta vivendo sufocada / Pois os grandes estão mandando e a pobreza é
explorada.” Essa canção ressalta o grito de indignação dos trabalhadores sufocados: “Como
poderei viver / como poderei viver/ dia e noite / noite e dia com a barriga vazia.” Enquanto
aqueles que foram votados pela sociedade enriquecem, o trabalhador fica cada vez mais
oprimido, humilhado: “Os tubarões estão mandando prá ainda mais se enriquecer / vão
pisando na pobreza não deixando ela viver./ A classe trabalhadora sofre muita humilhação /
trabalha o mês inteiro e o salário não compra um pão”. E também, nessa letra, o trabalhador
é chamado à conscientização da realidade e da importância de saber votar: “Abra o olho
minha gente, não confie no doutor / quem defende a nossa pele / É o próprio trabalhador./
Nosso voto é uma arma pra lutar com o tubarão”. Lembrando que o voto é uma forma
inteligente de mudar a situação e que não se pode vendê-lo ou trocá-lo: “Não se deixe
enganar por um pedaço de pão. minha gente fique atenta no que vou apresentar / O Sauro é
companheiro, é nele que eu vou votar.
Essas canções são importantes para mostrar que é apenas por meio do esclarecimento
proporcionado pela educação que as oligarquias podem ser combatidas. O chamado “voto de
cabresto” não é conseguido do eleitor que conhece a verdade e sabe o que quer.
A canção popular aparece nas tradições, resgatando uma memória coletiva
constituída de imagens e símbolos que refletem o imaginário de seus participantes
interpretando e re-significando situações do contexto sócio-histórico do grupo. Ela auxilia no
‘fazer movimento’, pensando a realidade e assumindo o papel político no debate por meio de
suas letras que demonstram possibilidades de melhorias. Percebeu-se o que acima se
argumentou nas canções daquela campanha eleitoral, quando as comunidades elegeram um
76 Adaptação da Música de Luiz Gonzaga: “Peixe Vivo”.
105
representante do bairro, participante de pastoral e que partilhava dos mesmos anseios: “Eu sou
trabalhador / sou companheirão / mas de promessas comigo não./ Estamos em tempo de
eleição / promessas não faltam na televisão / Só promessa engana / engana o peão / tudo
acaba no dia que termina a eleição.../ ”. As comunidades se conscientizam de que é preciso
eleger alguém que conheça os anseios e necessidades dos seus eleitores e que busque
soluções: “Quem votou se arrependeu / Pois o cruzado desapareceu / foi mentira, mentira /
que os “home” elegeu / E o povo comendo / O pão que o diabo não comeu / Nosso voto é
uma arma / Pra lutar com o tubarão / Não troque sua consciência por um pedaço de pão /
Mas comigo não!
Trazendo situações de grande número da população que se encontra à margem da
sociedade, no resgate de seus sonhos, utilizando uma linguagem com características próprias,
constituída por valores e costumes, reinventando formas de participação popular que tornam
possível transformar utopias em realidades, o grupo vai adaptando letras e esta mesma
comunidade vai ajudando a cantar sua história. Canções como esta que falava dos anseios da
comunidade em eleger um de seus líderes: “Nossos direitos vêm/ nossos direitos vêm/ se não
‘vir’ nossos direitos o Brasil perde também.” E da percepção de que estão sendo enganados
por aqueles que vêm ao bairro só em tempo de eleição: “Os grandes só oferecem coisa pra
nos enganar / chegam aqui em nosso bairro só na hora de votar / esse ano em nossos planos /
Os tubarões entram nos canos e nossos direitos vêm.”Cantando, os grupos passam juntos a
ensinar a aprender sobre o papel de cada um no momento de escolher os seus representantes
políticos: “Tem gente que só acredita no homem que tem dinheiro / Vende o voto por um
rancho, elegendo o fazendeiro / Não sabe o desgraçado / que quem vai ser explorado / Vai
ser ele por primeiro”. E apresentam a sugestão: “Já chega de esperar a mudança que não
vem / Só promessa e conversa já não serve pra ninguém / Vamos votar pra mudar / Nossa
vida transformar / E os nossos direitos vêm./ Apresento um candidato da nossa comunidade /
Sua luta e sua vida conhecemos de verdade / Agora é a nossa vez / com Sauro Tadeu dos Reis
/ Os nossos direitos vêm.
Esta letra mostra a realidade no tempo de eleições, onde, por um rancho se compra o
voto daqueles que não têm consciência. A canção incita a comunidade a fazer distinção entre
o candidato que só aparece no bairro em período eleitoral, cheio de grandes promessas e
aquele que é da comunidade, que está sempre envolvido nas lutas em favor dos pequenos.
106
Outra letra77 que reforça a importância de se eleger um trabalhador comprometido
com as causas das comunidades mais carentes: “Hei, hei PT / eis aqui o grande feito / Jari
para vice e o Kuster prá prefeito. / Eu queria nesta minha terra / ter o meu pequeno eito / Isto
vai acontecer/ Se o PT eleger o prefeito”, salienta, ainda, que essas classes são exploradas
constantemente, com baixos salários, condições precárias de sobrevivência, alto custo de vida
enquanto o poder público prioriza empresários que possuem o monopólio: “E hoje nesta
cidade / O prefeito diz que ta tudo azul / Mas o transporte Coletivo / Só dá LUCRO pra (...)./
E a questão da habitação / É um caso mais urgente / Neste grande chão da gente / Há tanta
gente sem chão”. Assuntos sociais dos quais as classes populares estão carentes também são
lembrados: “Saúde popular / É um caso muito sério / Se continuar assim / O endereço é o
cemitério./ Ai, ai Jesus / Veja só que pesada cruz / Não agüentamos pagar a água / E
cortaram nossa luz.” E sugere a solução: “Vamos todos companheiros / Se lançar nesta
disputa / O PT é a alternativa / Pra quem quer entrar na luta”.
O trabalhador está cansado de promessas. E, a partir das reuniões que o NAEP
desenvolveu nos bairros mais carentes de Lages no período pesquisado, fazendo e ensinando a
fazer uma leitura mais crítica da realidade, parte dos moradores passam a falar sobre o
‘sufoco’ da classe trabalhadora para sobreviver. Percebem que não é só um problema pessoal,
restrito ao bairro em que vivem, mas é uma situação de todos os trabalhadores da Região e do
Brasil.
Assim, cantando, os integrantes do NAEP ensinam o povo a pensar e, como afirmou
Pedrosa, os moradores das periferias da cidade de Lages assumem uma nova forma de
contemplar as promessas daqueles que se apresentam como candidatos a cargos públicos. As
comunidades passam a analisar as propostas e a refletir a respeito do que seria melhor para o
coletivo. É o que se percebe nesta letra feita pelos integrantes do NAEP, adaptada, com ritmo
de samba, que expressa uma realidade visível: “No bairro ninguém vive de ilusão / são
trabalhadores que vivem na exploração / Cansados dessa exploração, muitos trabalhadores
buscam na bebida, afogar as suas mágoas: “ A chegada no Bairro / quando chega de noitinha
/ Muita gente chegando / tomando uma cachacinha / são operários, distintos trabalhadores /
Estão todos cansados / Cansados de favores / Favores que não pagam as suas contas, que
continuam a crescer: “Mas no Bairro... / Assalariados que só dão produção / Chega o fim do
mês / Vejam a situação / Paga o aluguel, água, luz e condução / No final das contas / Não
sobra nem pro seu pão / Não agüento isso... O operário convence-se de que é preciso mudar e
77 Paródia feita a partir de uma das músicas de Kleiton e Kledir.
107
de que sua melhor arma é o voto: “Mas agora é hora / do nosso trabalhador / começar a lutar
/ Por uma transformação / votar em branco não é a melhor solução / Votar pra valer / É
votar no PT / Mas no Bairro...
A luta em defesa das mulheres esteve também muito presente no processo de ensino-
aprendizagem do NAEP.
A partir das canções criadas ou das quais o grupo se apropriou, houve um grande
incentivo para que essas mulheres se conscientizassem de seus direitos e tivessem consciência
de que, na roça ou na cidade, é possível mudar a realidade. Para isso é preciso participar,
conhecer os problemas existentes e buscar, juntas, com o movimento, forças para transformar
a situação que oprime.
O convite à mulher que vai à luta na busca por garantia de seus direitos é tema de
uma canção adaptada por Pedrosa, e que o NAEP apresentava sempre nas suas reuniões com a
comunidade, como forma de mostrar que a força da mulher está na sua participação, que ela
pode, e deve, organizar-se e lutar por seus direitos: “A companheira anunciou / e a vitória não
tardou / o povo não cochilou / e a luta continuou!”. O convite se espalhava entre as
companheiras de luta: “Comadre não vá simbora / Não vá simbora / Fica mais um bocadinho
/ Um bocadinho / se você for o grupo chora / O grupo chora / Vamos agüentar mais um
tiquinho / Mais um tiquinho.../ Vamos entrando nessa luta / Não corremos dela não / Pois o
povo tem direitos / Vamos fazer transformação! Conhecem a sua realidade e sabem que é
preciso mudá-la: “Na comunidade é só desgosto / É só desgosto / Tá no abandono e sem ação
/ E sem ação / falta luz, saúde e posto / Saúde e posto.” Engajadas, as mulheres têm um
mesmo ideal: “ Vamos buscar a solução / A solução. / Vamos lutar organizados / Pra buscar
nossos direitos / Passo a passo nessa luta / Nossa força tem efeito.
Denunciando o machismo e a opressão dos poderosos, e propondo uma nova
consciência de luta e transformação, uma canção trazida pelo NAEP nos encontros com a
comunidade, mostrava duas realidades a serem escolhidas pelos participantes, pessoas que
acalentam sonhos e esperanças de uma sociedade mais igualitária para todos:”Eu vou ficar é
do lado de cá / é do lado de cá que eu vou ficar (Bis)”. As comunidades, especialmente asa
mulheres, passam a perceber as desvantagens do machismo: “Quem é a favor do machismo /
Vai ficar é do lado de lá / Mas quem é a favor da mulher, vai ficar é do lado de cá!”. Elas
traçam um paralelo entre o machismo que sofrem em casa e na sociedade e o machismo
político, que não lembra dos direitos da mulher: “No governo dos grandão / Não vou mais
acreditar / Somente em quem é pobre é que eu agora vou confiar / Com o salário de fome /
108
Não dá pra ninguém passar / Meio dia só merendo, à noite fico sem jantar”.As mulheres
precisam se unir, buscar forças e agir politicamente em favor da sua comunidade: “As
medrosas e acomodadas vão ficar é pro lado de lá / Quem luta e tem coragem, vai ficar é do
lado de cá”. Mas o sucesso depende de participação e organização: “Nossa luta é bonita /
Vamos é PARTICIPAR / Nada de se dividir, vamos é se ORGANIZAR”.
A canção reforça a importância da organização e participação para que ocorra a
mudança de situações que oprimem e escravizam homens e mulheres que vivem sem
dignidade e respeito, mas que encontram forças nesta forma alternativa de expressão que é a
canção popular, lutando de diversas maneiras para resistir e manter a chama da esperança e da
fé na construção de um mundo melhor e com mais justiça.
A partir da letra ‘Olê, Mulher Rendeira’, o NAEP criou uma paródia que vem trazer
à tona os problemas enfrentados pela mulher e as formas em que pode se organizar para
denunciar essa opressão: “OLÊ MULHER RENDEIRA / OLÊ MULHER RENDÁ / Tu me
ensina a fazer renda / que eu te ensino a reclamar (Bis). É o convite para a mulher entrar na
luta: “Mulher abandonada sai do canto e vem pra cá / Pra ver nossos direitos / Para a vida
melhorar”. É um chamado para a mulher se libertar da escravidão que lhe é imposta por sua
condição feminina: “A mulher desde criança já começa a acreditar / que só deve obedecer /
como escrava sem falar”. Enfatiza a discriminação salarial: “Sua jornada é pesada / seu
salário bem menor / sua jornada é dobrada / seu trabalho bem maior.” Mesmo assim, sem
dar atenção ao que dela falam, ela vai à luta, pois sabe que: “Só o trabalho do marido / Sua
família passa fome / Mas o povo ainda condena / diz que está atrás do homem”. Ela encontra
forças ao lembrar que: “Na coragem da mulher / Jesus Cristo acreditou / condenando as
diferenças / A mulher valorizou”.
A canção popular pode apresentar-se com diferentes roupagens. Ela fortalece o
grupo. Em Lages se fazia um trabalho didático-pedagógico, no qual a música vinha fortalecer
aquilo que não tinha sido explicitado de outra forma. Um determinado grupo entende o
problema que está enfrentando e consegue se organizar. Esse é o principio de todo o processo
de organização, toda a metodologia de Paulo Freire. Decodificar uma situação, entender e
depois passar a ler a realidade em que vive. No caso específico da mulher que se organiza,
mais uma canção aparece nos documentos recolhidos no NAEP e que enfatiza seu papel na
transformação por dias melhores: “A nossa vida, Mulher, é um sofrer / Vamos lutar para um
dia nós vencer (Bis)”. A mulher toma consciência da força da união: “Todas as mulheres já
estão se organizando / todo dia trabalhando por um futuro melhor / sempre lutando por uma
comunidade / Pra falar com mais verdade / Ninguém pode viver só”. A canção lembra
109
também as dificuldades que a mulher sempre enfrentou: “Antigamente a mulher não
desenvolvia / sequer sabia fazer uma oração / E nem sabia assinar seu próprio nome /
Passava o dia com fome / ‘escorada’ no fogão.
Essa letra lembra como era a mulher de antigamente, que não participava nem
mesmo das decisões dentro da própria casa. Suas funções iam do tanque ao fogão e quem
‘mandava’ era o marido. Saía dos mandos do pai e passava aos mandos daquele que ia viver
ao seu lado ‘até que Deus os separe’.
Agora, a mulher é chamada a ‘fazer parte’ de tudo, da sua residência até as decisões
da comunidade e também do país. Grande número de mulheres sustenta a casa, estuda, e
participa das decisões políticas na sociedade. Uma nova sociedade onde homens e mulheres
têm direitos e deveres iguais. Direitos esses muitas vezes conquistados nas lutas iniciadas nos
movimentos de base.
Segundo Neide Catarina Turra78: importa destacar que, em nível de Brasil o PT
tentava projetar-se como a melhor opção para a classe trabalhadora. Lula ganhava visibilidade
e conquistava espaço, mesmo não se elegendo em nível nacional. Em Lages Kuster e Jari
também não se elegeram, mas Sauro Tadeu dos Reis é eleito com votos de todos os Bairros da
cidade de Lages e inclusive do meio rural. Até o próprio partido se surpreendeu, ou melhor,
não acreditava muito na força do NAEP e já tinha projetado o perfil de vereador desejável
para o partido.
Ainda segundo Turra, a canção popular ocupava um papel importante no processo de
conscientização e organização das comunidades, e também nas lutas sindicais. Em certas
realidades a canção popular é transmitida muitas vezes por meio da cultura oral, ocasionada
pela falta de acesso a níveis de escolaridade pelas classes populares brasileiras, pela
linguagem oral, com letras repetidas e cantadas e conteúdos metodologicamente assimilados
pelo grupo.
Considerando-se o duplo papel da Canção Popular desempenhado neste processo que
vai da animação mística ao conteúdo propriamente dito, a Canção Popular incita a refletir
sobre opiniões e expectativas desta sociedade que possui uma apropriação desigual do capital
cultural e que vive, relativamente, à margem dos grupos hegemônicos.
78 Doutora em Ciências Sociais pela PUC/SP. Integrante do NAEP. Na época, professora da Rede Estadual de
Ensino e Secretária Executiva do SINTE – Sindicato dos Trabalhadores da Rede Pública de Ensino do Estado de Santa Catarina. Na atualidade é diretora do VENCER – Instituto de Pesquisa e Educação Sócio-Jurtídico-Cultural – Lages/SC. Entrevista concedida na data de: 15/11/2007.
110
Turra afirma ainda que na canção popular o ritmo da música é bastante valorizado,
tem que ser algo alegre, dinâmico, dando ênfase à composição escrita, onde a realidade de
quem compõe, de quem interpreta e de quem ouve se contextualizam numa realidade histórica
e cultural comum. Dessa forma, a palavra dita através da canção popular é o instrumento do
compositor. Este se torna um mediador entre o contexto que se quer refletir pela letra da
canção e o entendimento que o grupo tem e pode refletir a partir do que canta. Quem produz
ou adapta a letra precisa, em primeiro lugar, reconhecer o objetivo que tem através deste meio
comunicativo e significativamente metodológico.
Exemplo disso é a Canção Popular apresentada por Pedrosa e cuja letra foi composta
por ele e pelo grupo dos Bairros Popular e Habitação, sugerindo aos participantes das
comunidades, que se inserissem no processo de mudança: “Eu quero ver se você não se mexe
/ Eu quero ver quem se mexe por você./ Tem muita gente que não entra nessa luta / fica
esperando o doutor vir melhorar / Mas é engano, ele entra pelos canos / O danado do fulano
ta querendo é enganar”, e lembram mais uma vez da valorização do voto e na importância de
eleger uma liderança de pastoral: “Não se leve pela força do dinheiro / Meu amigo, meu
irmão seja ligeiro / Se oferecerem pra pegar seja o primeiro / E na hora de votar, vote no seu
companheiro”.
É possível perceber-se que a letra desta canção aparece auxiliando na educação das
lideranças no que se refere à defesa de seus direitos, neste caso, o direito do voto que não
pode ser trocado por nada. É pelo direito do voto que o cidadão tem a oportunidade de buscar
alternativas de mudanças.
Numa Paródia feita por Pedrosa com a participação dos integrantes do grupo,
partindo da música “Pinga Ni Mim” do Cantor Sérgio Reis é retratada a situação da saúde nas
comunidades. Aproveitando o ano eleitoral, quando as pessoas se tornam mais atentas para
saber qual o melhor candidato, a letra faz um questionamento com relação às verbas que vêm
com o objetivo de dar qualidade no atendimento em Postos de Saúde e Hospitais, chamando a
atenção para a realidade que é muito diferente da esperada: “Se a saúde está precária / veja
por que / chegam as verbas, mas ninguém vê.” A letra lembra aos participantes das reuniões a
realidade cruel enfrentada pelas classes populares: “Nosso povo está doente, mas que coisa
indecente / Não dá mais para agüentar / Os impostos são cobrados / Só que não são
repassados / Para a gente se tratar”. Através desta letra, os moradores dos bairros, que se
reúnem com o NAEP, tomam consciência dessa situação, o que passa a interferir no
momento de eleger um novo representante nos diversos segmentos políticos: “O povão
sentindo isto, assumiu o compromisso / Para a vida defender / Viu que a luta não se finda /
111
Mas que pra morrer à mingua / Bem melhor é combater”. Em favor de igualdade para todos,
as CEBs passam a assumir o compromisso: “Já é hora companheiro / Vamos se ‘juntá’
ligeiro / Somos força pra lutar / com aqueles que exigem: igualdade, casa e pão / E terra pra
trabalhar/ Convocar grande platéia / Lá na base assembléia / E o prefeito pressionar /
Assinar então o projeto / pra deliberar as verbas pra saúde melhorar.
Segundo Turra, a história do NAEP tornou-se ímpar e imortal. Conforme afirma
Habermas (in: ZITKOSKI, 2000, p. 14): “o cultivo da razão comunicativa em seus processos
de elaboração de novos sentidos da vida humana, emergem das ações comunicativas
compartilhadas no Mundo da Vida”. Assim, a emancipação de pessoas e de grupos que
cultivam experiências de processos de libertação está diretamente relacionada com a
capacidade humana de reconstruir os processos socioculturais, que estão na raiz das estruturas
sociais alienantes e opressoras. É ainda segundo a concepção habermasiana “a ação
comunicativa” que efetivamente se desenvolve na argumentação crítica, no debate e na
produção de novos consensos sobre o mundo social, que as sociedades atuais poderão superar
as conseqüências desumanas de um poder institucional voltado para os fins de controle e
dominação social.
Ainda segundo Turra, a Canção Popular, nos moldes que o NAEP adotou em sua
metodologia de trabalho, possibilitou desenhar propostas e assumir desafios de construir
novas alternativas que transcendessem as formas ou modelos tradicionais, a partir dos quais a
Canção Popular fundamentava sua ação prática de intervenção na realidade. Foi norteado por
esse espírito de transformar modelos opressores e de conscientizar grupos a buscarem seus
direitos enquanto cidadãos, que várias lideranças foram sendo forjadas no bojo do núcleo.
Mesmo que o grupo, com o passar do tempo tenha se diluído, essas lideranças continuaram a
construir espaços de ação comunicativa e emancipatória por onde passaram, e a constituir
suas vidas e espaços de trabalho sempre em prol da Comunidade.
Turra afirma que, “se olharmos, numa perspectiva histórica, para o nosso passado,
veremos que o trabalho realizado por meio da Canção Popular existiu bem antes da
existência do NAEP, pois na história dos movimentos sociais progressistas, principalmente
na Região Nordestina, a Canção Popular fez parte da luta pela libertação de setores
oprimidos, marginalizados e injustiçados em nossa sociedade. Mas, sem sombra de dúvidas,
a Canção Popular no NAEP tem uma história exemplar e o desafio que se impõe a nós, hoje,
é o de resgatar essa bagagem histórico-cultural – efetivada ao longo dessas décadas em que
a Canção Popular proporcionou e continua proporcionando, a quem a ela recorrer,
fortalecimento de laços e valores culturais, através da recriação e reinvenção das mesmas,
112
inspirando-se no nosso “Mundo da Vida” original e próprio de pessoas e grupos que
almejam por meio de processos sociais coletivos mudar situações da realidade que
desqualificam a vida humana.”
Neste sentido, Turra continua: “embora não tenhamos ainda efetivado grandes
processos de transformações históricas e sociais a partir do NAEP e das ricas experiências
efetivadas pela Canção Popular por nós já vivenciadas, as raízes de um processo cultural
autêntico estão muito vivas entre nós e, portanto, podemos afirmar que o legado, hoje, dessa
utopia, continuará nos impulsionando para o sonho e a esperança em nosso futuro. Através
de nossas ações contribuiremos na construção de um mundo mais humanizado, belo e feliz.”
Na atualidade, segundo Pedrosa: “continuo cantando em minhas práticas
advocatícias junto aos moradores de diversos Bairros da cidade de Lages. Canções
Populares que enfocam a questão da exploração às classes subalternas, aqui refletidas,
planos governamentais que prejudicaram ainda mais a vida das comunidades, desemprego,
saúde precária, questão ambiental, planos previdenciários ineficientes e muitos outros
problemas que afetam a vida dos cidadãos.” E relembrando, mais uma canção daquele
contexto que marcou os movimentos em favor da vida para todas as classes populares de
Lages, Pedrosa cita: “Nossa vida ta virada, ta virada nossa vida / De um jeito que não se viu /
O governo apareceu, muita coisa prometeu / Veja só o que saiu / Fez do povo um otário /
congelou nosso salário / Montando muita trama / Foi na GLOBO que passou / Todo o plano
que enrolou / mas a nós ninguém engana...” O grupo cantava com fé, buscando combater a
exploração que se apresentava de diversas formas: “E com chimarrão e fé / todos vão firmar o
pé / prá lutar e transformar / abra o olho companheiro / o banqueiro é um vespeiro /
querendo te pinicar”. O convite era para todos aqueles que se mostrassem insatisfeitos e que
acreditassem que era possível transformar: “Seu Chico avise a comadre, dá um toque no
compadre / Que a inflação disparou / O Palloci só mentiu, pois o povo nunca viu / A inflação
que controlou / Os planos que já passaram, pode crer que retornam / Olha, olha minha gente
/ Desemprego e recessão, mentira e EXPLORAÇÃO / Não vai ter ninguém que agüente”. E o
grupo adquiria força para vencer: “Não tem outra, pode crer, ta na cara é só ver / Pra que
lado coloriu / Pra empresário e banqueiro / rico, grande fazendeiro / O plano “ele” pariu /
Só por ser um ALIENADO”.
Analisando-se as várias letras apresentadas neste Capítulo, é possível perceber-se que,
de forma lúdica, as Canções Populares, realmente, exercem um importante papel sócio-
político-pedagógico, constituindo-se em instrumento de luta e transformação para as
comunidades organizadas que buscam um amanhã melhor.
113
CONCLUSÃO
Após o desdobramento do objeto de estudo dessa pesquisa, a canção popular nas
CEBs de Lages, nas décadas de 70 e 80 do século XX, convém retomar o problema central da
mesma, tendo em vista uma reflexão mais atenta às conquistas e aos resultados que foram
possíveis perceber pelas análises, bem como sobre o sentido histórico que caracteriza as
reflexões explicitadas por meio das canções populares descritas neste trabalho.
A pesquisa não pode ser desarticulada do contexto histórico das pessoas que
participaram do cenário pesquisado, no qual a canção popular teve um papel importante,
sendo vista como uma forma de compreensão daquele período histórico e do local em que se
apresentou, refletindo a cultura das comunidades, seus hábitos, costumes e crenças e também,
considerando as potencialidades do tempo presente e a riqueza intrínseca às contradições
sociais e culturais que o constituem.
Partindo-se das letras das canções produzidas e/ou adaptadas pelos participantes dos
diferentes grupos de CEBs, pôde-se perceber a construção de uma identidade coletiva que
busca reivindicar, denunciar, promover ou proclamar o dia-a-dia de uma sociedade que se une
pelos mesmos objetivos, em benefício de todos.
Lages, local limite desta pesquisa, é uma cidade marcada pelas relações de poder que
submetiam os grupos populares ao coronelismo patriarcal e clientelista em um período
histórico em que a autoridade maior, nesse determinado espaço geográfico, estava com o dono
das fazendas, o que fortalecia o papel dos coronéis como ‘dominadores’. Assim, mesmo de
forma velada, abrandada pelo “compadrio” existente nessas relações, os menos favorecidos
economicamente sempre viveram em um regime de opressão, embora sem a censura político-
militar do regime ditatorial.
A Igreja Católica e a educação escolar também tiveram papel de destaque quanto à
dominação, pois a educação estava a cargo da Igreja e esta se mantinha ligada às oligarquias e
às classes médias na cidade. Também a imprensa tinha predileção pelas classes dominantes da
época, priorizando assuntos de interesse de grupos da sociedade da elite local e de partidos
políticos aos quais essa sociedade era ligada. A partir desse contexto de dominação, percebeu-
se uma cultura de submissão nas classes populares de Lages. Uma postura submissa, muitas
114
vezes passiva, dos trabalhadores que estiveram expostos por muito tempo às relações de
poderes políticos e econômicos.
A Canção Popular dentro das CEBs, no período histórico das décadas de 70 e 80 do
século XX, foi o foco principal desta pesquisa que procurou mostrar como a Canção Popular,
de forma bem direcionada, revela a situação das pessoas, especialmente das classes menos
favorecidas, mostrando-lhes a possibilidade de luta pacífica por seus direitos de cidadãos e
incentivando-as a clamar por liberdade e justiça.
Vista por esse foco, a Canção Popular pôde ser compreendida como veículo de
expressão dos sentimentos, aspirações e afetos, sendo compreendida como documento de vida
de uma comunidade, definindo a realidade psicológica e social de seus moradores. Sua maior
expressividade está na representação da realidade em que é criada e na sua linguagem própria,
herança histórica de luta política, como identificação coletiva na qual se manifestavam
sentimentos semelhantes, refletindo a mesma ideologia em uma cultura em que as pessoas
comungavam do mesmo ideal. Essa canção que parte das vivências e subjetividades, da
realidade e do imaginário dos integrantes das Comunidades.
A Canção Popular nos Movimentos de Base de Lages era vista como uma expressão
do cotidiano do grupo que lhe serve de berço e que, ao mesmo tempo, a torna conhecida pela
maioria das pessoas. Essa Canção não surge de forma aleatória, sem objetivos: ela difunde
processos de aprendizagem, imaginação e criação. Sua temática é determinada pelos
acontecimentos históricos aos quais está intimamente ligada e seu compositor se identifica
com as manifestações do meio em que vive. Dessa forma, a canção popular não existe isolada
da história, nem da vida de quem a cria. Quem compõe ou interpreta a canção o faz
contextualizando o seu tempo, influenciado pela sociedade e para ela direcionando a sua
composição. Assim, a canção sofre a influência da sociedade e vice-versa.
Partindo do problema central proposto nesse trabalho, foi possível constatar um
permanente olhar em duas dimensões básicas que constituem o fenômeno da Canção Popular
nas CEBs. Ou seja, por um lado, buscou-se problematizar os atuais desafios que os atores e
autores da canção popular do período pesquisado enfrentaram para manter viva a utopia da
construção de uma sociedade emancipada diante da contemporaneidade política, econômica,
cultural e social da sociedade, que se caracteriza pela exclusão de muitos seres humanos do
processo educativo e social. Mas, por outro lado, também procurou-se avaliar de forma
dinâmica a contribuição sócio-cultural desse paradigma educativo.
Percebeu-se, na trajetória desta pesquisa, que a Canção Popular exerce um
importante papel na reflexão sobre opiniões e expectativas das sociedades que convivem com
115
situações desiguais de apropriação do capital cultural e que vivem relativamente à margem
dos grupos hegemônicos.
Esse tipo de canção assume um papel importante na mediação entre os diferentes
meios sociais, como forma de expressar idéias e sentimentos dos diversos participantes das
comunidades, ‘falando’ por eles, dando visibilidade aos seus diferentes anseios. Muitas vezes,
por diferentes motivos — e, principalmente no período pesquisado, época de regime militar
— a canção ‘falava’ pelas pessoas, podendo ser entendida como uma forma alternativa de elas
se pronunciarem diante das manifestações de opressão. Por meio da Canção Popular, os
diferentes Movimentos de Base se definem, se organizam e se identificam.
Essa canção teve, e continua tendo, uma função importante nos diferentes contextos
da sociedade, principalmente dentro da igreja progressista e dos movimentos populares, com
letras de incentivo à luta pela liberdade e vida dos mais empobrecidos. Veiculada como
elemento participativo nesses grupos, a Canção Popular assume um papel de idealizadora do
semblante da comunidade que busca uma nova realidade em que todos sejam vistos como
sujeitos que se organizam e constroem coletivamente uma relação solidária de aprendizagem.
Na organização das CEBs de Lages, com suas diferentes frentes de trabalhos
pastorais, a presença da Canção Popular é vista como um instrumento no qual se inserem
sentimentos, valores e vivências da comunidade onde surge como documento da vida, das
aspirações e dos afetos destes participantes que têm interesses comuns. No conteúdo de suas
letras, temas como afetividade e partilha, cooperação e companheirismo identificam-se com
os compromissos assumidos pelo grupo no Movimento.
Por meio desse tipo de canção, feita a partir da criatividade e das vivências desse
grupo que comunga uma história de lutas, a canção pode ser vista como um fenômeno social
no qual participam diferentes atores da sociedade, com suas peculiaridades interagindo com o
meio, num diálogo que, comunicando o passado, procura reinventar o presente na expectativa
de criar uma nova realidade mais justa, solidária e melhor de se viver.
Mas o desafio ainda é enorme, se as pessoas que participaram dessa pesquisa
considerarem os entraves concretos da realidade social que precisam transpor para
efetivamente se constituírem pessoas livres e emancipadas em suas realidades atuais. O que
ficou evidente na contribuição, por meio da fala principalmente dos integrantes do NAEP é
que a experiência vivida no período em que o núcleo coletivamente pensou maneiras
alternativas de sobreviver e cantar suas lutas e vitórias ainda hoje perpassa suas vidas,
tornando-os inseridos em contextos sociais e culturais que têm como prioridade o ser humano,
ou seja, como diz Pedrosa: “nós hoje vivenciamos um horizonte humano-social que faz parte
116
de nossa história de NAEP onde o nosso ‘jeito de ser’ traz uma memória histórica (símbolos
e referências culturais próprias) que onde quer que estejamos temos sempre presente a
‘Canção Popular’ como ferramenta de trabalho e sempre estamos apostando que nossa
história servirá de ponto de partida para outras lutas futuras onde o sonho e a esperança de
um mundo mais humanizado, belo e feliz nunca acabe e cada vez mais se torne realidade
para muitas pessoas”.
Pelo que se pôde, durante este trabalho, compreender a respeito da Canção Popular,
conforme os próprios integrantes dos Movimentos puderam enfatizar, “era necessário que se
utilizasse uma forma alternativa de falar com as camadas populares da população.” Um
instrumento que fosse capaz de transmitir que a mudança se fazia necessária. E, de acordo
com esses integrantes de CEBs: “a Canção Popular foi eficaz na transmissão de
esclarecimentos a essas classes.”
Espera-se que os resultados aqui apresentados possam ser o ponto de partida para
futuros trabalhos que venham a pesquisar qual instrumento, nos dias de hoje, mais de vinte
anos passados, seria possível utilizar, de forma tão eficiente quanto a Canção Popular, como
se demonstrou nesta pesquisa, nas diferentes buscas para que as comunidades atinjam a
concretização dos ideais almejados.
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ANEXOS
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ANEXO A ROMARIA DA TERRA
124
Anexo B Comissão Pastoral da Terra e a luta pela reforma agrária
125
Anexo C Reunião de conscientização na comunidade
126
Anexo D Conscientização: dinâmica do tubarão e os peixinhos
127
Anexo E Conscientização: dinâmica dos burrinhos.