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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO CANÇÃO POPULAR NAS COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE: ANÁLISE DO PAPEL EDUCATIVO E SOCIAL NAS DÉCADAS DE 70/80 EM LAGES/SC LÚCIA DENISE DE SOUZA COSTA Orientadora: Cristiana de Azevedo Tramonte Florianópolis 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

CANÇÃO POPULAR NAS COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE:

ANÁLISE DO PAPEL EDUCATIVO E SOCIAL NAS DÉCADAS

DE 70/80 EM LAGES/SC

LÚCIA DENISE DE SOUZA COSTA

Orientadora: Cristiana de Azevedo Tramonte

Florianópolis

2008

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LÚCIA DENISE DE SOUZA COSTA

CANÇÃO POPULAR NAS COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE: ANÁLISE DO

PAPEL EDUCATIVO E SOCIAL NAS DÉCADAS

DE 70/80 EM LAGES/SC

Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do grau de Mestre, no Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientação da Professora Cristiana de Azevedo Tramonte.

Florianópolis

2008

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DEDICATÓRIA

Ao meu esposo Francisco e aos meus filhos

Guilherme, Mayara , Maurício e Gyovanna,

com amor, admiração e gratidão por toda

compreensão, carinho, presença e incansável

apoio ao longo do período de elaboração deste

trabalho.

Aos meus pais José (in memorian) e Gessy,

pelo incentivo, pelas orações e pelo exemplo

de fé e de coragem.

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EU SOU TRABALHADOR / SOU

COMPANHEIRÃO / MAS DE PROMESSAS

COMIGO NÃO.

Estamos em tempo de eleição / promessas não

faltam na televisão / Só promessa engana /

engana o peão / tudo acaba no dia que

termina a eleição... /

Quem votou se arrependeu / Pois o cruzado

desapareceu / foi mentira, mentira / que os

home elegeu / E o povo comendo / O pão que

o diabo não comeu..

Nosso voto é uma arma / Pra lutar com o

tubarão / Não troque sua consciência por um

pedaço de pão / Mas comigo não!

(NAEP, Lages, anos 80)

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo dom da vida e pela oportunidade de haver realizado esta pesquisa.

À Dra. Cristiana de Azevedo Tramonte, pela atenção e apoio durante o processo de

definição e orientação deste trabalho de pesquisa. Como orientadora e amiga, soube cobrar,

mas também não mediu esforços em oferecer todas as condições necessárias à realização do

presente trabalho.

Aos Professores da linha de pesquisa EMS (Educação e Movimentos Sociais),

UFSC, que muito contribuíram para meu crescimento científico e intelectual.

À Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC - e ao Programa de Pós

Graduação em Educação – PPGE - pela realização do presente trabalho.

Ao CNPq, pela bolsa de estudo concedida.

A Dom Oneres Marchiori, Bispo da Diocese de Lages, pela disponibilidade e

colaboração. Todas as vezes em que foi procurado ele prontificou-se a ir além da simples

resposta à informação que lhe era solicitada.

Ao Monsenhor Andréas Wiggers, pelo carisma, dedicação e conhecimento

transmitido todas as vezes em que foi solicitado.

À Profª Elza Marina Moretto, secretária da Educação do Município de Lages no ano

de 2006, pelo apoio a esta pesquisadora durante a realização do Curso e a elaboração da

Pesquisa.

À Doutora Neide Catarina Turra, mediadora e amiga, pelo conhecimento, pelo apoio

técnico e moral e pelo incentivo, desde o início do desenvolvimento desse trabalho. “Obrigada

por tudo!”.

À Antonia Salete, irmã e amiga, pela acolhida em sua casa, semanalmente, em cada

viagem minha a Florianópolis durante esses dois anos de Curso.

À Teresa Setti de Liz, pelo carinho, competência e dedicação quando da revisão do

texto. “Muito aprendi contigo!”

Aos colegas de trabalho, em especial, à Marilda, por acreditar e ‘dar força’ nos

momentos mais difíceis desta trajetória.

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Aos entrevistados, que muito contribuíram no resgate da história da Canção Popular

nas CEBs de Lages. Sua colaboração foi de grande importância para a realização deste

trabalho.

Aos amigos de Lages que viram na minha ausência um motivo para que eu

alcançasse a realização pessoal e profissional.

À minha família: minha mãe, minhas irmãs, meus irmãos por todo o carinho e afeto.

Ao meu esposo e aos meus filhos. Este é um agradecimento especial por haverem

entendido as muitas vezes em que foram deixados de lado até à conclusão deste trabalho.

Às amizades conquistadas durante os dois anos de curso, especialmente Rosimeri,

Karina e Dione, “amigas, irmãs, camaradas”.

A todas as pessoas que, mesmo não estando aqui citadas, estiveram ao meu lado

durante esta jornada tão importante.

“Graças a Deus que a gente ainda canta!”

(Dom Oneres Marchiori/Bispo da Diocese de Lages – Pixirum das CEBs julho 2007)

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RESUMO

Neste trabalho de pesquisa buscou-se apresentar a Canção Popular traçando o resgate do papel social e educativo desempenhado por essa canção nos movimentos sociais denominados Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), em Lages, Santa Catarina, nos anos 70 e 80 do século XX. Fez-se a apresentação dos Movimentos Sociais mais significativos e de suas atividades, desenvolvidas sempre ao som das canções, criadas ou adaptadas, com finalidade específica, por esses movimentos, dentre os quais foram citados neste trabalho, com maior destaque, o Vianei (Centro de Educação Popular Vianei) e o NAEP (Núcleo Alternativo de Educação Popular), dois importantes segmentos participantes das CEBs de Lages. Entrevistas, recortes de canções, buscas em cartilhas e documentos permitiram verificar a utilização da Canção Popular, no período pesquisado, como uma forma alternativa para os participantes de CEBs se pronunciarem, em um momento histórico em que a liberdade de expressão era restringida pelo regime político vigente. Em Lages, nos diversos movimentos destacados nesta pesquisa, percebe-se a Canção Popular dando visibilidade às reivindicações, denunciando e promovendo ações que levam à mudança da realidade e sugerindo reflexões sobre sentimentos e atitudes de um coletivo que se une contra injustiças e exclusões.

Palavras-chave: Canção Popular. Canções. CEBs. Participação. Movimentos Sociais.

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ABSTRACT

In this research work it was looked for to present the Popular Song drawing the rescue of the social and educational paper carried out by that song in the social movements denominated Comunidades Eclesiais of Base (CEBs), in the city of Lages, Santa Catarina, in the years 70 and 80 of the century XX. It was did the presentation of the most significant Social movements and of their activities, always developed to the sound of the songs created or adapted, with specific purpose, by these movements, among which were mentioned in this work, with larger prominence, Vianei (Center of Popular Education Vianei) and NAEP (Alternative Nucleus of Popular Education), two important participant segments of CEBs of Lages. Interviews, cuttings of songs, searches in spelling books and documents allowed to verify the use of the Popular Song, in the researched period, as an alternative way for the participants of CEBs pronounce them selves, within a historical moment in that the freedom of expression was restricted by the effective political system. In Lages, in the several outstanding movements in this research, it is noticed the popular song giving visibility to the claims, denouncing and promoting actions that take to the change of the reality and suggesting reflections about feelings and attitudes of a collectivity that he/she joins against injustices and exclusions.

Key-words: Popular Song. Songs. CBEs. Participation. Social Moviments.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Mapa do município de Lages, SC. ........................................................................ 15

Figura 2 Mapa do bairro Habitação do município de Lages, SC ........................................ 39

Figura 3 Mapa da Região Serrana do Estado de Santa Catarina ......................................... 53

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LISTA DE ANEXOS

Anexo A Romaria da Terra ................................................................................................. 123

Anexo B Comissão Pastoral da Terra e a luta pela reforma agrária.................................... 124

Anexo C Reunião de conscientização na comunidade ........................................................ 125

Anexo D Conscientização: dinâmica do tubarão e os peixinhos......................................... 126

Anexo E Conscientização: dinâmica dos burrinhos ............................................................ 127

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SUMÁRIO

RESUMO............................................................................................................................ 7

ABSTRACT ....................................................................................................................... 8

LISTA DE ILUSTRAÇÕES ............................................................................................. 9

LISTA DE ANEXOS ......................................................................................................... 10

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 13

Origens históricas da pesquisadora. Universo da pesquisa. Percurso metodológico .......... 13

1 ASPECTOS SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAIS DO MUNICÍPIO DE LAGES ..... 19

1.1 Compondo o cenário de Lages: das fazendas à cidade dos coronéis............................. 19

1.2 Diversidade cultural da população de Lages ................................................................. 26

1.3 “A força do povo” – Integração comunitária para construir cidadania ......................... 32

1.4 Participação popular: espaço de convivência e identidade coletiva .............................. 41

2 A CANÇÃO POPULAR E A CANÇÃO DAS CEBs EM LAGES ............................ 43

2.1 CEBs: significados e sentidos ....................................................................................... 43

2.2 O Catolicismo Caboclo e as CEBs de Lages................................................................. 47

2.3 A Canção Popular como arte nos movimentos sociais – CEBs .................................... 54

2.4 A Canção Popular na CEBs: o sentimento, as pulsações e o sonho de vencer de homens e mulheres em ação ................................................................................................ 60

2.5 Em ritmo de memória: a Canção Popular como parte integrante do Processo Histórico Brasileiro ............................................................................................................. 64

2.6 A Canção Popular como marco das CEBs de Lages ..................................................... 67

2.7 A influência das Canções das CEBs no contexto sócio-político-cultural ..................... 68

2.8 Descrevendo a contribuição sócio-educativa da Canção Popular nas CEBs de Lages. 70

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3 O PAPEL SÓCIO-POLÍTICO-PEDAGÓGICO DA CANÇÃO POPULAR NAS CEBS DE LAGES.............................................................................................................. 75

3.1 A Canção Popular de protesto nas CEBs de Lages ....................................................... 78

3.2 O movimento da Canção Popular em Lages nas décadas de 70 e 80............................ 82

3.3 Os movimentos que forjavam a luta das comunidades em Lages nos anos 70/80 ........ 84

3.4 Centro Vianei de Educação Popular e a Comissão Pastoral da Terra – CPT: A Canção na formação de consciência política....................................................................... 87

3.5 Núcleo alternativo de Educação Popular – NAEP – Suas lutas e canções.................... 100

CONCLUSÃO.................................................................................................................... 113

REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 117

ANEXOS ............................................................................................................................ 122

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INTRODUÇÃO

Se calarem a voz dos profetas As pedras falarão [...]

Muito tempo não dura a verdade Nestas margens estreitas demais

Deus criou o infinito Pra vida ser sempre mais

É Jesus este Pão de igualdade Viemos pra comungar

Com a luta sofrida do povo Que quer ter voz, ter vez, lugar

Comungar é tornar-se um perigo Viemos pra incomodar

Com a fé e a união Nossos passos

um dia vão chegar... (Autor desconhecido)

Origens históricas da pesquisadora. Universo da pesquisa. Percurso metodológico.

Nasci em Lages, em uma família de sete irmãos. Meu pai trabalhava em serraria e

minha mãe contribuía para as despesas da casa como costureira. Ainda criança, desenvolvi o

gosto pela música e, assim, procurei educar a voz. Sempre muito presente nas atividades

sociais da comunidade, mesmo antes da conclusão da oitava série do ensino fundamental eu já

organizava grupos de reflexões, e novenas de Natal, nas casas dos colegas de trabalho de meu

pai. Gostava de organizar encenações natalinas, a partir de textos bíblicos, utilizando as pilhas

de madeira da serraria para o cenário e a serragem, como elemento decorativo.

Por incentivo de algumas senhoras integrantes do Grupo “Legião de Maria1”,

comecei a participar deste Grupo e do Grupo de Jovens da Paróquia, o que proporcionou

maior entrosamento com diversos outros grupos pastorais, entre eles, Equipes de Liturgia e

1 Mulheres missionárias de Maria, que rezam o terço diariamente, reúnem-se uma vez na semana, visitam os

enfermos da comunidade, acolhem os novos moradores e levam a palavra de Deus às famílias. Celebram anualmente a Festa da Ácies, com a participação das atuais e antigas participantes da Legião de Maria.

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Movimentos de “Jornada2”. Em todos esses grupos, minha função principal era a de

“animadora”, a de “puxar o canto3”, acompanhada por instrumentistas. Nos anos 80, formei

um “Coral” infantil na igreja matriz do Bairro Guarujá, e dei a ele o nome de “Coral Galileu”.

Com a ajuda dos pais das crianças, foi adquirido tecido e confeccionada uma roupa especial

para ser usada durante as apresentações deste “Coral” que reunia aproximadamente trinta

crianças do bairro. Realizavam-se ensaios semanais e apresentações, aos domingos, nas

missas, na matriz ou em capelas do interior.

Mesmo continuando a participar dos movimentos da Diocese, passei a trabalhar na

Rede Municipal de Educação de Lages, coordenando atividades culturais ligadas a crianças,

ensaiando canções regionais com o grupo, trabalho que resultou na formação (mais uma vez)

de um “Coral”, com 52 (cinqüenta e duas) crianças que integravam o Programa de

Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), ligado à Secretaria de Promoção Social da Prefeitura

de Lages e que faziam parte de uma realidade muito carente. Com aquele grupo desenvolvi

não só o trabalho musical mas uma relação de amizade, e tive a oportunidade de trabalhar

conteúdos como higiene e auto-estima, tornando o trabalho mais completo e realizador.

Com os filhos já crescidos, voltei a estudar e tive a oportunidade de, pela FACVEST

– Faculdades Integradas da Rede de Ensino UNIVEST - graduar-me em Pedagogia, um Curso

direcionado à Educação Infantil e às Séries Iniciais. Para o Trabalho de Conclusão de Curso –

TCC - escolhi como tema: “A Música e o Processo Educativo: Possibilidades Pedagógicas”,

buscando atingir a interdisciplinaridade por meio das letras das canções.

O trabalho realizado na conclusão de curso despertou o interesse em dar

continuidade a essa linha de pesquisa. Portanto, no ano de 2005, quando tive a oportunidade

de concretizar meu sonho de cursar Mestrado, não poderia ter sido outro o objeto de pesquisa

que não este, tão presente em minhas raízes. Encaminhei um projeto de pesquisa para o

programa de Educação e Movimentos Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina,

tendo, como foco, a Canção Popular, à qual sempre estive ligada, no dia a dia. Com o tema

“Canção Popular nas Comunidades Eclesiais de Base: Análise do Papel Educativo e Social

nas Décadas de 70/80 em Lages/SC”, inicia-se uma nova trajetória em minha vida.

Esta pesquisa foi realizada em Lages, cidade em que resido. Com uma área territorial

de 2.644.313 km², (IBGE, 2002), Lages está situada na Região do Planalto Serrano, a 223

2 Retiros de Jovens, que se realizavam durante um final de semana no Centro de formação Católica da

Diocese de Lages, com palestras, reflexões, discussões em grupos, fazendo o jovem rever atitudes e posturas relacionadas à família.

3 Função desempenhada por alguém com um bom grau de afinação vocal, encarregado de preparar e ensaiar as canções da celebração ou evento e segurar a tonalidade musical junto ao instrumento.

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quilômetros de Florianópolis, no entroncamento das BRs 116 e 282. Foi fundada em 22 de

maio de 1771 e colonizada por italianos, portugueses, espanhóis e alemães, tendo, conforme o

Senso de 2000, uma população de 157.682 habitantes (IBGE 2000). Atualmente faz limites,

ao Norte, com Correia Pinto; ao Sul, com o Estado do Rio Grande do Sul; ao Leste, com

Bocaina do Sul, Palmeira e São Joaquim e, a Oeste, com Campo Belo do Sul e Capão Alto.

Possui clima subtropical e sua temperatura média é de 16ºC, alcançando, no inverno,

temperaturas inferiores a 0º Com freqüência, ocorrem geadas e nevascas.

Conhecida como “Princesa da Serra”, Lages orgulha-se dos ilustres filhos, entre eles

sete governadores do Estado, um dos quais, Nereu Ramos, chegou à presidência da República.

Lages foi fundada pelo desembargador Antônio Correia Pinto de Macedo, tropeiro

que conduzia gado dos “campos das Lagens”4 para São Paulo.

O povoado foi criado em 22 de novembro de 1776 e, em 1820, desanexado da

Província de São Paulo e incorporado ao estado de Santa Catarina. Em maio de 1860, Lages

foi elevada à categoria de cidade e reconhecida como município.

Fonte: LS Publicidade Lages (2007).

Figura 1 Mapa do município de Lages, SC.

4 Inicialmente, Lages era grafada com ‘g’. Na década de 40 do século XX, esse topônimo passou a ser grafado

ora com a letra ‘j’, ora com a letra ‘g’. Vinte anos depois, na década de 60, foi aprovada a grafia definitiva, com a letra ‘g’.

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De acordo com o objetivo escolhido, buscou-se, nesta pesquisa, analisar a canção

popular e sua função social e educativa nos movimentos sociais e nas CEB’s (Comunidades

Eclesiais de Base) nas décadas de 70/80, na cidade de Lages. Tornou-se importante avaliar se,

naquele contexto histórico, a partir da letra das canções, houve, de alguma maneira, promoção

do sentimento de auto-estima nas realidades comunitárias e, ainda, se essas canções

colaboraram para uma prática solidária e libertadora dos sujeitos que nela interagiam.

Para o desenvolvimento deste trabalho de pesquisa e, na coleta de material, deu-se

ênfase ao trabalho de campo, estabelecendo contatos diretos, nos encontros de CEB’s, com as

lideranças envolvidas, por meio de observação participante.

A fim de descortinar o cenário destas comunidades e qual a influência da canção

popular como elemento marcante de um contexto histórico cultural, foram utilizadas técnicas

ligadas à pesquisa qualitativa como: entrevistas abertas buscando histórias de vida, análise de

materiais e letras de músicas cantadas na época, considerando-se também importante a

pesquisa em documentos.

Na pesquisa qualitativa:

A realidade é uma construção social da qual o investigador participa e, portanto, os fenômenos só podem ser compreendidos dentro de uma perspectiva holística, que leve em consideração os componentes de uma dada situação em suas interações e influências recíprocas, o que exclui a possibilidade de se identificar relações lineares de causa e efeito e de se fazer generalizações de tipo estatístico [...], para os qualitativos, conhecedor e conhecido estão sempre em interação e a influência dos valores é inerente ao processo de pesquisa. (ALVES, 1991, p.55).

Para os autores Bogdan e Biklen (1994, p. 47):

Na pesquisa qualitativa, a fonte direta de dados é o ambiente natural e o investigador qualitativo é seu instrumento principal, ou seja, o investigador “freqüenta o local de estudo”, porque entende que as ações podem ser mais bem compreendidas quando observadas no ambiente habitual.

Entrevistaram-se pessoas que participavam de grupos populares ligados às

Comunidades Eclesiais de Base, nas décadas de 70/80, em Lages, militantes leigos ou

consagrados, lideranças dos diferentes segmentos das CEB’s que fizeram parte daquele

contexto histórico, procurando levantar dados referentes à participação da Canção Popular nos

referidos movimentos.

Durante os meses de maio a novembro de 2007 efetivaram-se diversas entrevistas

individuais e com grupos, várias até de maneira informal, nas quais se procurou observar

diferentes pontos de vista, por meio da flexibilidade do questionário que permitiu tanto

modificar perguntas quanto acrescentar questões que pudessem surgir durante o processo.

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A pesquisa foi realizada com diferentes atores e seus grupos, em ambientes diversos,

como festas comunitárias, reuniões de Associações de Moradores, Grupos de Famílias (GF)5,

celebrações religiosas, Romaria da Terra e Pixirum das CEB’s (Encontro Diocesano/Julho

2007 – Lages), buscando relacionar as informações atuais com o período histórico proposto

neste trabalho de pesquisa. Procurou-se observar atentamente documentos como “Cartilhas”

com letras de músicas, cantadas naquela década e que pudessem caracterizar um conteúdo

politizado, além de registros e/ou fotos das equipes participantes.

Como ex-agente de animação6, esta pesquisadora buscou investigar, no trabalho de

campo, uma (des)construção de pressupostos. Tendo participado por longo período nos

processos sócio-religiosos dos quais a música era parte integrante, realizaram-se contatos

interpessoais, familiares, comunitários, através de relações objetivas e subjetivas dentro do

cotidiano dessas comunidades.

Durante o trajeto de pesquisa, alguns obstáculos surgiram, como a dificuldade em

recuperar documentos, dificuldade ou impedimento de acesso a arquivos, pessoas que se

negaram a participar das entrevistas, ou, até mesmo, a falta de interesse de alguns grupos. A

pesquisa se desenvolveu não só com as pessoas que ‘pensavam’ as CEB’s, mas também com

os sujeitos integrantes dos grupos, visando encontrar pontos em comum, explorando suas

participações efetivas dentro do contexto das comunidades e, mais especificamente, nas letras

das Canções Populares.

Conforme José Geraldo Vinci de Moraes7, a canção popular8 ainda não aparece em

primeiro plano como fonte histórica. De acordo com este autor, pesquisas anteriores

“demonstram que o trabalho investigativo nessa área social e cultural, tendo a música como

eixo, é bastante tímido e, com poucos avanços, continua sendo muito restrita e tímida sua

atuação”.

5 Cf. Plano e Diretrizes Pastorais – Diocese de Lages- SC 1995, p.25 Grupos de Famílias – “A vida da

Comunidade Eclesial de Base caracteriza-se pela comunhão e participação – a) Reflexão da Palavra de Deus e da Realidade. A Bíblia está sempre presente e ilumina a vida da comunidade; b) Todos partilham aquilo que sabem, as experiências e os bens que possuem; c) A celebração da palavra e da Eucaristia é feita nos pequenos grupos, levando ao compromisso com a comunidade. Celebração também de aniversários, festas e outras datas significativas; d) compromisso com as lutas do povo, participando das organizações e movimentos populares: saúde, associações, sindicatos, partidos políticos populares, luta pela terra, moradia, direitos da criança e adolescente, juventude, mulheres...”

6 Atuava nos movimentos de Liturgia, Grupos de Jovens, Equipes de Jornada e de CEB’s como ‘puxadora’ de cantos, ou seja, da canção popular.

7 Revista Brasileira de História, vol. 20, n0 39, São Paulo, 2000, em pt MORAES, José Geraldo Vinci de. 8 Ver Vasconcellos (1977); Bezerra (1985); Aguiar (1986); Andrade (2004); Carvalho (2004).

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Outro fator relevante que contribuiu para dificultar a pesquisa foi a falta de acesso a

espaços e materiais que pudessem revelar com maior clareza a presença e o desempenho da

canção dentro dos movimentos populares de Lages.

Ao realizar entrevistas e observação de campo, buscou-se ir ao encontro dos atores

sociais em seu próprio universo de atuação, procurando compreender sua cultura, como se

utilizava a canção nestas reuniões de CEBs, seu surgimento e qual função as mesmas

exerciam nos encontros das comunidades e além deles. Isso se torna importante para que o

resultado da pesquisa venha a contribuir para a mudança de práticas nas diversas áreas do

conhecimento e sirva como documento histórico na Diocese e cidade de Lages.

No primeiro capítulo foi feita uma contextualização histórica da cidade de Lages: sua

colonização e formação, suas lideranças políticas e eclesiais e o processo de constituição das

comunidades.

No segundo capítulo fala-se sobre a importância da canção popular como canção

engajada, mostrando que, especialmente durante os anos da ditadura militar, essa canção

serviu tanto como veículo de denúncia da opressão quanto como instrumento de reivindicação

de direitos além de, por sua oralidade e facilidade de assimilação, ser excelente meio para

incentivar a luta pela igualdade social e para despertar a esperança da conquista de dias

melhores. Neste capítulo procurou-se também dar visibilidade aos movimentos denominados

CEBs, quais desses Movimentos eram atuantes em Lages e como se serviam da Canção

Popular na identificação coletiva das Comunidades em que a Canção Popular era utilizada.

No terceiro capítulo encontra-se o foco principal desta pesquisa, o papel sócio-

político e pedagógico da canção popular nos movimentos de CEBs em Lages. Priorizaram-se

canções utilizadas nos diversos grupos,destacando-se, especialmente aquelas cantadas pelo

Vianei (Centro Vianei de Educação Popular) e pelo NAEP (Núcleo Alternativo de Educação

Popular), canções que foram adaptadas ou criadas pelos participantes, ou canções das quais os

grupos se apropriaram, tomando-as como suas.

Pôde-se perceber a partir das ‘falas’ dos entrevistados, a força que a canção

desempenha nas diversas questões trabalhadas pelo grupo. Além de animar, elas também

surgem com mensagens capazes tanto de alertar para as formas de opressão, quanto de, por

suas letras, conscientizar sobre o poder do grupo quando passa a ‘ler o mundo’ coletivamente

e assumir o compromisso da ação, depois do ‘ver’ e do ‘julgar’.

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1 ASPECTOS SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAIS DO MUNICÍPIO DE LAGES

Caminhando levo apenas a esperança De algum dia a liberdade encontrar.

É a esperança que dá força ao caminheiro De ir seguindo pela vida a caminhar.

A liberdade é só certeza na esperança

E a encontra quem na vida se arriscar. E no risco posso ser crucificado

Mas cantando a liberdade vou viver (Fonte: Livro de Cantos “Caminhando e

Cantando”da Diocese de Lages)

1.1 Compondo o cenário de Lages: da fazenda à cidade dos coronéis

Vários trabalhos acadêmicos já foram desenvolvidos a respeito da região de Lages9,

retratando sua conjuntura política e econômica e estrutura social e geográfica desde a

fundação, em 1766, até aos dias de hoje. No entanto, na contextualização da Região Serrana e,

mais propriamente, da cidade de Lages, trazendo elementos de sua história, para melhor

encaminhar a discussão sobre o tema a que se propõe esta pesquisa, torna-se fundamental que

se faça um resgate da história da cidade e de sua organização sócio-político-cultural,

chegando-se, assim, ao objetivo principal de analisar a função social e educativa da Canção

Popular dentro dos movimentos de CEBs, no período histórico de 1970/1980.

Conforme Munarim (1990), o Planalto Serrano de Santa Catarina, intimamente

ligado à pecuária extensiva, com seus campos nativos, já no século XVII se constituía num

pouso ideal para as tropas de gado bovino que eram levadas do Rio Grande do Sul para a

Feira de Sorocaba, no estado de São Paulo.

Esse gado era conduzido pelos campos e, muitas vezes, extraviavam-se algumas

reses que se misturavam ao gado alçado ou ao de outras tropas. Para evitar esses

contratempos, que acarretavam prejuízos econômicos, foram demarcadas áreas, ao longo do

caminho. A demarcação de uma estrada para a condução desse gado através dos campos foi

feita com pedras, catadas10 por escravos, nos próprios campos, e engenhosamente empilhadas,

9 Mais pesquisas sobre Lages, ver: Caon (1978); Alves (1980); Martendal (1980); Costa (1982); Calazans

(1988); Munarim (1990); Peixer (2002) entre outros. 10 Ainda hoje, as pedras com que se fazem as taipas são ‘catadas’, uma a uma, nas proximidades do local onde

a taipa é construída. Atualmente, são raros os ‘fazedores’de taipas.

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formando muros de ambos os lados do caminho escolhido. Nasceram assim os ‘corredores de

taipas’. Alguns daqueles primeiros tropeiros que passaram por esses campos, e depois, pelos

corredores de taipas, fixaram-se na região, transformando-se em fazendeiros criadores desse

gado. Nos dias de hoje, a passagem dos tropeiros por Lages é lembrada por monumentos

construídos em pontos que marcam este trajeto e na reconstrução da praça do Mercado

Velho11, ao lado do Terminal Urbano de ônibus e onde, naquela época, os tropeiros exerciam

seu comércio, trocando gado e mantimentos. Mais tarde, esse comércio passou a ser realizado

em outro local, que, pela atividade ali desenvolvida, foi - muito adequadamente - apelidado de

‘Conta Dinheiro’, dando origem ao atual bairro do mesmo nome. Esse local, hoje, é o “Parque

Conta Dinheiro” e nele acontece, anualmente a “Festa Nacional do Pinhão” que tem como

atrativo principal a diversidade musical, com destaque para a música nativista, resgatando, nas

letras de suas canções, os hábitos e costumes do serrano.

O gosto musical do lageano é bastante diversificado. São apreciados os mais diversos

ritmos, sobressaindo-se, porém o gosto pelas canções sertanejas e pela canção de estilo

nativista, ambas predominantes na região. Esses dois estilos de canções conquistam com

maior facilidade a admiração popular principalmente por terem, duas importantes funções: a

de retratar, em seus versos, a vida , os amores, as desilusões e esperanças das pessoas mais

simples - e que, na realidade, são os mesmos em todas as classes sociais, o que acaba por

granjear a simpatia da população em nível nacional - e a de descrever os costumes campeiros

regionais. Assim, muitas delas exercem uma função pedagógica, pois, guardam para as

gerações futuras a descrição de atividades que o tempo e as novas tecnologias vão fazendo

desaparecer. Além disso, ao mesmo tempo em que engrandecem o torrão natal e suas belezas,

alertam, por meio de suas letras, para a posse indevida da terra, para as implicações

decorrentes de seu uso inadequado e para a desilusão que pode resultar do êxodo rural cuja

principal conseqüência é o aumento da pobreza nas periferias da cidade grande.

Devido a essas características, muitas vezes os Movimentos Sociais (CEBs)

apropriam-se do ritmo e da mensagem veiculada nos diversos estilos de canções que, por seu

conteúdo, sirvam aos interesses desses movimentos que algumas vezes as usam na íntegra e

outras vezes, apenas parodiando-lhes12 a letra. Como exemplo citam-se as canções “Eta,

espinheira danada” e “Massa falida”, comentadas no Capítulo III, das quais os grupos se

apropriaram na íntegra, sem alterar-lhes a letra.

11 Espaço popular, de vendas de produtos alimentícios, principalmente agrícolas, vindos de outros municípios

(PEIXER, 2002, p. 85) 12 Paródia: Segundo o Dicionário Aurélio: Imitação Cômica de uma composição literária.

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A respeito dessas apropriações, Piana (2001, p. 31) diz que, apesar de ser a letra o

fator mais importante dessas canções:

[...] percebe-se uma preocupação significativa com o ritmo, uma vez que, às vezes, é este que vai determinar a aceitação da música ou não. Quando a letra é significativa e o ritmo está em desacordo com o gosto das pessoas envolvidas, facilmente se muda o ritmo, mantendo a mesma letra; por outro lado, se o ritmo agrada e é bastante conhecido, mas a letra não é significativa, muda-se a letra.

A memória de Lages reflete uma rede de poder que surge da estruturação de uma

sociedade baseada nos interesses de um determinado grupo econômico, os fazendeiros, que

detêm a posse da terra, do gado, a concentração do poder político em níveis de município e

estado e o controle militar, desde o início da fundação.

Quando da fundação de Lages, em 1766, então denominada Vila Nossa Senhora dos Prazeres das Lagens, tendo à frente Antônio Correia Pinto de Macedo, a mando do português dom Luiz Antônio de Souza Botelho e Mourão, viu-se a necessidade de se instalar na região13 um posto militar avançado para prevenir-se contra possíveis avanços dos castelhanos. (MUNARIM, 1990, p. 47).

As relações de poder dos fazendeiros foram marcadas pelo coronelismo14 e pela

relação patriarcal clientelista15 com os grupos populares. Nelas, o dono da fazenda tinha a

autoridade maior, solidificando o papel dos coronéis como ‘dominadores’, fenômeno que

perdurou até depois de 1930, dando mostras desta cultura16 do coronelismo, presente até os

dias de hoje nos resultados culturais desta relação na região serrana de Santa Catarina. Nesta

prática, em que permanecia a exclusão das classes populares enquanto o fazendeiro era

beneficiado em seus interesses particulares, e nos daqueles que o sustentavam no poder,

resultou o que veio a chamar-se “compadrio”17.

13 Numa estratégia para ocupação e povoação a mando da capitania de São Paulo, Lages era o local exato para

servir como ponto de defesa do território em relação aos espanhóis e, além de favorecer o mercado consumidor na região sudeste e nordeste, Lages serviria, também, de apoio a esse mercado.

14 Se, de um lado, o coronelismo se caracteriza pela relação de compromissos num sistema de reciprocidade entre coronéis e chefes políticos do Estado, por outro, caracteriza-se também pelas relações dos coronéis com a sua base social local; a população rural.[...] aparecia como um protetor natural à classe rural quando de suas necessidades não atendidas pelos poderes públicos [...] era o mais forte, o mais rico, aos olhos da população rural (MUNARIM, 1990, p. 26/27).

15 Fase final do Coronelismo, na qual a máquina pública é o principal instrumento do “coronel” na prestação de favores à “clientela” – base social de sua sustentação no poder. (MUNARIM, 1990, p. 58).

16 Cultura do coronelismo: “A participação com os representantes políticos fortalecia a dominação e a área de abrangência do coronel”. (MUNARIM, 1990, p. 23).

17 “O agregado convidava o dono das terras ocupadas por ele e por sua família para batizar seus filhos, o que o ligava a diversos chefes de maior ou menor proporção”. (LOCKS, 1998, p. 38). A relação de compadrio era outra forma de suavizar as diferenças sociais e econômicas e de legitimar a autoridade do coronel. O coronel, padrinho, tem o compromisso de dar proteção aos afilhados; os afilhados têm obrigação de respeitar e de seguir os padrinhos. Entre os compadres, a relação é de receber e transmitir

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Essa forma de exclusão vivida desde muito tempo pelas classes populares de Lages,

pode ser percebida nas letras das canções das quais os grupos vão se apropriando. É a música

- que unida à letra, forma a canção - utilizada como estratégia de luta que visa resgatar valores

e princípios na construção de uma sociedade que se baseie na igualdade. Essa história de

exclusão, permeada de lutas, é traduzida nos versos das canções, os quais, enquanto vão sendo

cantados, vão preservando a memória e construindo a identidade e a cultura, de forma

pedagógica, ao mesmo tempo em que aqueles que os cantam vão procurando formas de livrar-

se dos laços do compadrio que os subjugam pela força do coronelismo.

Uma característica forte do coronelismo é a intensa ligação dos coronéis com os

chefes políticos do Estado e o ‘apoio’ da população do meio rural, os ‘caboclos-peões’18 que

moravam e trabalhavam nas fazendas e os caboclo-roceiros19 que produziam e praticavam

uma agricultura de subsistência, fiéis, segundo Munarim (1990, p. 27), “porque, uma vez

abandonados pelo poder público, no que se refere à saúde, justiça e instrução, acreditavam na

pessoa do coronel, um protetor natural”. A respeito dessa situação, os versos da canção “A

Classe Roceira” traduzem, cantando, o pensamento e o grito preso na garganta desses

caboclos, sejam eles peões ou roceiros. Essa canção, também comentada no Capítulo III,

traduz igualmente o desejo de muitos outros operários, e, muitas vezes era cantada nas

Romarias da Terra e em celebrações comemorativas do “Dia do Trabalhador” e do “Dia do

Agricultor“.

Mas o ‘coronelismo’ não foi a única forma de dominação social em Lages, segundo

Lima (in MUNARIM, 1990, p. 36):

A Igreja Católica teve papel de destaque no que diz respeito à dominação. De certa forma, Igreja e Estado praticamente se confundiam, tendo a partir da Proclamação da República, o desmembramento destes dois segmentos, passando à Igreja Católica a tarefa da romanização20, passando a seguir as regras impostas por Roma. A Igreja se adapta a essas mudanças e procura se manter ligada às oligarquias, ligada às classes médias na cidade, enquanto que as classes dominadas (caboclos do campo e trabalhadores da cidade) sofriam a religião oficial.

homenagens. A relação é de igual para igual, forma requintada de exercício de dominação. (MUNARIM, 1990, p. 28).

18 Caboclo-Peão: acostumado às lides da fazenda e conseqüentemente influenciado por hábitos gauchescos. (MARTENDAL, 1980, p.39).

19 Caboclo-Roceiro: embrenhado em regiões mais íngremes, acostumado à simples necessidade de subsistir, avesso ao expansionismo econômico e ao progresso. Conformado com a realidade. (MARTENDAL, 1980, p. 39).

20 “Roma tratou de promover a desnacionalização do clero brasileiro, enviando ao Brasil padres de formação européia; a orientação ideológica era no sentido de anticomunismo e do antisocialismo”. (LIMA in MUNARIM, 1990, p. 37).

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Esse processo de romanização da Igreja Católica “na região serrana catarinense

esteve a cargo da congregação dos padres franciscanos, em que se destaca Frei Rogério,

ordenado na Alemanha no ano de 1891, e que veio, em seguida, fazer pregações no Brasil”

(MUNARIM 1990, p.37).

Em Lages, nesse período, as canções eram mais voltadas para a religiosidade, com

temáticas diversas enfatizando fé, vocação e fortalecimento da espiritualidade dos integrantes

dos grupos. Os versos das canções levavam à meditação sobre o poder de Deus. Livros de

cantos como “O Povo Canta” das Edições Paulinas, assim como outros utilizados na

Diocese21, além desse convite a uma religiosidade mais forte, incentivavam também a

execução de um instrumento musical, pois era comum em suas páginas a cifragem de acordes

básicos nas letras das canções.

As CEBs de Lages engajaram-se no desafio às diversas formas de dominação, às

estruturas injustas e excludentes. Os diferentes grupos que se aglutinam, por meio de letras de

canções revelam seu cotidiano, trazendo, para as reuniões desses grupos, canções com

mensagens que contribuem na formação de sujeitos mais críticos e conscientes, motivando-os

a construir uma nova realidade.

É, assim, de grande importância a canção popular dentro desses Movimentos Sociais.

É por meio dela, pela diversidade e abrangência dos seus temas, que se torna possível a

criação de novas identidades, a divulgação de valores, não só religiosos mas também sociais e

políticos e a construção de novos significados pela compreensão de determinados aspectos

sócio-históricos que a canção popular desvela nos encontros desses grupos. É importante

salientar que as letras dessas canções eram, em sua maioria, criadas pelo grupo ou por algum

de seus integrantes. Mas, ainda que fosse um só o compositor, a letra revelava os anseios e

vontades coletivos, os quais, ao se transformarem em ações capazes de modificar a situação

existente, transformava cada integrante em ‘ator social’, ou seja, “[...] aquele que modifica o

meio ambiente material e sobretudo social no qual está colocado, modificando a divisão do

trabalho, as formas de decisão, as relações de dominação ou as orientações culturais”

(PIANA, 2001, p. 15).

A respeito da identificação de autoria dessas composições, as quais, na maior parte

das vezes, não se sabe se foram criadas individual ou coletivamente, Piana (2001) diz ser

comum que o nome do autor não apareça nas canções:

21 Os livros de cânticos - “O povo Canta” e “Caminhando e Cantando” - citados nesta pesquisa, compilados a

partir de informações orais ou de folhas escritas a mão, datilografadas ou mimeografadas, contêm canções

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a influência da Igreja Católica que, na (grande)maioria de seus livros de cantos, não destaca nenhuma autoria, numa ênfase da supremacia do comunitário sobre o individual. A partir do momento em que alguém compôs uma música, esta já não mais lhe pertence, faz parte da comunidade. [...] Permanece aí a grande dificuldade de interpretar quem são estes compositores e a partir de que situação social específica estão falando. (PIANA, 2001, p. 74).

A educação escolar também tinha seu papel de dominação, o que podia ser visto por

meio da imprensa e de outros bens culturais da época:

Sendo que, na Educação era especial para os filhos dos fazendeiros; primeiro um “professor de fazenda”, com aulas particulares, que para suprir a demanda, ia de fazenda em fazenda ensinando a ler e a realizar as quatro operações da matemática. De 1882 a 1910, os filhos dos fazendeiros mais abastados iam estudar em colégios dirigidos por padres Jesuítas em São Leopoldo – RS - ou no Ginásio Catarinense em Florianópolis.

Com a fundação, em 1901, do Colégio Santa Rosa de Lima, coordenado pelas Irmãs da Divina Providência, e do Colégio Diocesano, em 1932, pelos padres Franciscanos, os filhos e filhas dos fazendeiros, mais abastados, mantinham-se isolados dos setores subalternos da população.

A Imprensa também era um meio de predileção à elite dominante da época: desde 1883, mais de uma dezena de jornais em Lages, todos, sem exceção, ligados a interesses de grupos dominantes da sociedade local, veículos de informação de partidos políticos, tendo como articuladores alunos e ex-alunos dos colégios de São Leopoldo – RS - e de Florianópolis.

E com relação aos bens culturais como Música, Teatro e Cinema, também eram reservados ao consumo dos mais abastados. Eram seletivos devido ao custo. Para as classes subalternas restavam os fandangos, bailes populares à base de sanfona, mas sempre com restrições: Não poderiam se realizar sem a licença das autoridades policiais (MUNARIM, 1990, p. 38-40).

Partindo-se deste contexto de dominação, percebe-se uma cultura de submissão nas

classes populares na região de Lages. Uma postura, muitas vezes, passiva dos trabalhadores

que estiveram expostos às relações de poderes políticos e econômicos, o que Gramsci

classifica como “conjunto de organismos, vulgarmente dito privados, que correspondem à

função de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade” (MUNARIM,

1990, p. 54, In: PORTELLI, 1983, p. 22).

Essa postura submissa dos trabalhadores de Lages, modifica-se quando os grupos

começam a se organizar e passam a reagir. Ao compreender o seu papel na sociedade

passaram a utilizar, nas celebrações, estratégias como a canção popular que lhes servia, e

existentes desde o início do movimento, mas só foram editados em datas posteriores ao período aqui pesquisado, tendo sido mencionados para facilitar o acesso a consultas.

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ainda serve, de instrumento para discutir as necessidades e problemas dos grupos, enquanto

denunciavam as diversas formas de opressão contra as quais protestavam. Debater assuntos

relacionados à política, à economia, à saúde tornava-se mais fácil quando existia a mediação

da canção popular. Os debates a respeito desses ou de outros temas fluíam melhor por meio

das letras que “falavam” fazendo com que as comunidades interagissem sobre assuntos com

os quais muitos não gostavam de se envolver mas a respeito dos quais era necessário entrar

em discussão para que a comunidade deles tomasse consciência. Esses debates, certamente,

eram facilitados pela música.

Assim, a canção popular era, na época, uma forma encontrada pelos participantes

desses movimentos sociais para se colocar em oposição, fazer resistência às diferentes formas

de dominação. Por meio da canção popular se fazia contraponto às classes dominantes,

enquanto essa mesma canção motivava as classes populares a assumir posicionamentos frente

às diferentes adversidades em uma forma de participação coletiva.

A participação de um número significativo de pessoas em um determinado evento ou

movimentação ideológica, com certeza os fortalece já que, ainda que a adesão seja de um

único indivíduo, ele só pode aderir a algo que já existe. Assim, na realidade, toda participação

tem cunho coletivo já que, normalmente, indica a reunião de várias pessoas em torno de uma

idéia, um assunto, uma ação, um ideal. Segundo Fantin (1998, p. 182) “a noção de

participação ganha novos elementos à medida que ela deixa de ter autonomia, de ser isolada

do conjunto das relações sociais e se articula a uma abordagem que contempla as formas de

inserção dos indivíduos na sociedade”.

Essa tomada de consciência, nas camadas populares que se organizam, resulta em

reivindicações e luta pela conquista de direitos para todos. Os grupos assumem o

compromisso de resolução dos problemas que afligem a comunidade e também procuram

garantir que cada integrante consiga, além de moradia, educação, alimentação e saúde,

também o atendimento de outros direitos como dignidade, respeito, bem estar, afetividade e

participação. A esperada concretização desse ideal é proclamada na letra da canção: “Irá

chegar um novo dia, um novo céu, / Uma nova terra, um novo mar / E neste dia os oprimidos/

Numa só voz a liberdade irão cantar. / Na nova terra, o negro não vai ter corrente, / E o

nosso índio vai ser visto como gente. / Na nova terra, o negro, o índio e o mulato, / O branco

e todos vão comer do mesmo prato”. (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).

Desta forma a música, em especial a canção popular, é utilizada pelos movimentos

sociais como instrumento pedagógico na divulgação de valores e dos objetivos de luta..

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1.2 Diversidade cultural da população de Lages

Na região serrana catarinense, grande parte da população é de origem “cabocla”, ou,

quando não é cabocla, compartilha diversos níveis de sua cultura, seu modo de vida e de

expressão22. Considerando esta diversidade, abrem-se parênteses para explicar o ‘caboclo’,

conforme Ribeiro (1988, p. 21):

São restos de nossa gente que ainda não queremos conhecer. Mas cuja presença não se pode ignorar no planalto, médio e extremo-oeste. [...] São descendentes de índios mansos, negros e paulistas que se foram cruzando por aqui certamente com outros índios, negros, portugueses desconhecidos... e esses se constituem num bloco de gente que não se enquadra nos quadros oficiais, por não se adaptar aos nossos esquemas do sistema econômico, político, social, cultural e religioso. O caboclo é a “não gente”, o “não homem”, senhor-de-valores-outros.

A partir de relatos de outros autores sobre Lages23, vislumbrou-se uma realidade

bastante difícil do peão de fazenda que começava suas ‘lidas’ de campo ainda antes de o sol

nascer e só as concluía bem depois de o mesmo ter desaparecido, sendo que seu salário era a

roupa que vestia, a alimentação que ele mesmo produzia e a casa ou galpão onde morava, não

tendo nenhuma estabilidade no trabalho, explorado pelo patrão, dono da fazenda, que deixava

para o empregado apenas o necessário para sua subsistência24.

Cansados dessa vida de miséria e exploração, principalmente em épocas que, devido

a condições climáticas desfavoráveis, tornavam-se mais difíceis, alguns desses caboclos peões

migravam para as cidades buscando realizar o sonho de uma vida melhor, sonho esse que

dificilmente se concretizava. A vida repleta de dificuldades tanto na roça quanto na cidade,

convertia-se, muitas vezes, em letras de canções: “Quando não chove a gente muda pra

cidade./ Procura emprego, emprego não tem./ A filharada passa fome de verdade;/ Não tem

dinheiro, dinheiro não vem./ O caboclo não tem mais seu rancho na fazenda e também, sem

emprego, não consegue viver na cidade com a pretendida dignidade: “A gente esconde então

numa periferia,/ e pede justiça, mas ela não vem./ A gente cansa de esperar um novo dia;/

persegue a chance e se sente ninguém./ Assim, essas pessoas acabam por constatar que sua

22 Peixer (2002, p. 42). 23 Caon (1978); Martendal (1980); Alves (1982); Costa (1982); Calazans (1988); Munarim (1990); Peixer

(2002), entre outros. 24 Até a década de 40, a cidade de Lages, sede religiosa e administrativa, estruturava seu cotidiano e sua

economia numa relação de estreita vinculação com as atividades da pecuária extensiva. Nesta década, inicia-se um período de transição econômica e social para a cidade, passando de residencial, nas lidas de campo, para fornecedora de bens e serviços para a indústria madeireira. (PEIXER, 2002, p.86).

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vida, após a mudança tão sonhada, na realidade mudou para pior. Na fazenda, ao menos

contavam com o pouco que conseguissem colher do solo ressequido ou, em última instância,

do que recebessem como ‘dádiva’ dos seus “compadres”, dádiva que seria depois duramente

cobrada. Na cidade, “A gente grande não tem nada pra fazer,/ A criançada não tem nada pra

comer,/Se esta vida não mata,/ machuca demais, machuca demais25”. Por essa e outras

canções pode-se perceber que as vivências do caboclo fazem parte das temáticas de várias

letras cantadas nas CEBs de Lages.

Não só o caboclo, mas vários outros personagens participam desse cenário de

dificuldades diversas. No entanto, nem todos se acomodam. Muitos reagem e começam a

procurar meios que lhes permitam reverter a situação em que se encontram. Discutem seus

problemas e procuram alternativas que garantam as mudanças desejadas pelo grupo. Esses

conteúdos que vêm do imaginário das comunidades, com as aspirações que traduzem o dia-a-

dia do peão, do operário, as suas lidas e esperanças ‘falando’ de projetos comunitários para

uma vida nova transformam-se em letras de canções. Muitas dessas canções revelam um

sentimento de protesto pela situação vivida, sendo utilizadas nas celebrações dos diversos

movimentos que formam as CEBs como meio para mostrar a realidade das classes populares,

permitindo também a percepção de que é possível se construir espaços com maior igualdade e

solidariedade para todos.

Entre as décadas de 1940 a 1960, com o início da exploração da madeira, houve

grande circulação de pessoas, mercadoria, dinheiro e expansão dos limites da cidade de

Lages. Mas vale salientar que, segundo Peixer (2002, p.111), este período próspero não foi

comum a todos os moradores, sendo que operários, agregados e trabalhadores não tiveram o

mesmo retorno financeiro obtido pelos grandes madeireiros. Muitos jovens, agregados ou

peões de fazendas sonhavam transformar a dura faina com gado ou plantações em uma

realidade do passado buscando no trabalho em serrarias um ideal de sobrevivência.

Assim, o caboclo, que por sua vez se constitui no peão de fazenda e no operário

ligado à extração da madeira, com a decadência do ciclo madeireiro vem para a cidade em

busca de emprego e oportunidade. Se antes tinha uma relação direta de ‘amizade’ com o

coronel, passa a ter uma relação trabalhista, formal e distante com o patrão das serrarias,

quando nelas vem trabalhar. As dificuldades começam a surgir. Vai perdendo muitos de seus

costumes, seus valores e crenças vão ficando em segundo plano. Ao contrário da vida do

campo, não tem mais a costumeira estabilidade. Ao vir para a cidade o peão de fazenda se

25 Oração dos pobres sem voz nem vez. Composição de P. Zezinho,scj. LP: Oferenda . Livro “O Povo Canta”-

Ed. Paulinas.

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transforma em ‘bóia-fria’, situação historicizada pela canção. Todos os dias, “Em cima de um

caminhão, bem cedinho ele vai, / sem nenhuma garantia / pro seu pão de cada dia / ele vai

tentar ganhar.” Essa situação é bem diferente da que ele vivia na roça onde, muito ou pouco,

sempre havia um ‘sustento’ a tirar do chão. Iludido, “Ele tentou melhorar pra sua família /

Pra cidade, certo dia, / com muita fé foi morar, / mas continuou sua fome de alegria / e o

sustento da família / ele tenta assim ganhar”. Antes da mudança para a cidade essas pessoas,

apesar das dificuldades vividas, sabiam quem eram: caboclos-peões ou caboclos-roceiros.

Com a vinda para a cidade, já não se conhecem, perdem suas identidades: “Ele não é roceiro,

nem operário, / ganha um mísero salário, / seu riso alegre não sai / seu dinheirinho, ele

nunca tem de sobra, / ele é ‘pau pra toda obra’, / ele ri pra não chorar.” E sente saudades da

“sua terra que tanto ama / e não pode cultivar26.”

A dificuldade econômica dessas pessoas faz com que elas, ao se encontrarem na

cidade, procurem se aproximar umas das outras, buscando convívio e auxílio mútuo. Assim,

os bairros, especialmente os da periferia da cidade, vão se constituindo, em grande parte com

a vinda dessa população que traz consigo sua cultura, seus costumes e tradições. Essas

famílias provenientes das comunidades do meio rural, unidas por meio de vizinhança com

outras famílias, criam laços de amizade e se organizam em grupos. Nesses grupos, diversas

culturas iam se agregando. As pessoas se encontravam para conversar, cantar e rezar juntas.

Eram os costumes que tinham no meio rural, que agora, nos bairros da cidade, vão se

constituindo no germe das Comunidades Eclesiais de Base: grupos de pessoas que se reúnem

pela espiritualidade e amizade para conversar enquanto refletem sobre assuntos que as

preocupam e que precisam de soluções.

Essas famílias passam a formar, em suas casas ou em algum local da comunidade, os,

depois chamados, ‘Grupos de Reflexão’, principalmente nos finais de ano com as ‘Novenas

de Natal’. A música era, e continua sendo, o elemento que reúne e sustenta esses encontros. A

canção das CEBs nasce dessa população, do sentimento dessas pessoas que sonham e que

querem fazer desse sonho, verdade. São canções voltadas para a mudança da realidade. Na

natureza, à qual essas comunidades estavam integradas, há um ciclo constante, imutável. As

estações do ano, assim como as atividades próprias a cada uma, se sucedem invariavelmente.

Na cidade a relação com a natureza se transforma e o homem tem que se transformar também.

Se na natureza, a cada ciclo todos recebem as dádivas da terra, que costumam repartir entre si,

na cidade tudo é diferente. Nas elites dominantes prevalece o individualismo, bem diferente

26 “Em cima de um caminhão”. Livro ‘Caminhando e Cantando’. 2. Ed. Diocese de Lages.

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do compartilhamento comum às pessoas habituadas ao convívio com a natureza. Daí, na nova

situação em que essas pessoas se encontram, o surgimento das canções que protestam, criando

expectativas de mudanças.

No contexto social em que as canções das CEBs de Lages se inserem, é possível

perceber as diversas influências recebidas de pessoas que vieram de vários lugares,

procurando uma vida melhor, trazendo culturas próprias por meio de ritmos e de canções

cujas letras abordam temas diversos, compondo simbologias que criam identidades coletivas,

divulgando valores e construindo esperança, muitas vezes, sem saber que estavam

fortalecendo o Movimento.

A partir do século XIX, por quarenta e dois anos, o poder esteve na mão dos

coronéis. A família Ramos, proprietária de muitos milhões de hectares de terras, ocupou um

importante lugar na política da região, ao lado dos ‘Costa’, com quem, alternadamente,

dividiu o poder público em Lages desde a Proclamação da República até o ano de 1973,

assumindo sempre postos de liderança nos partidos conservadores (MUNARIM, 1990, p. 50).

“Oligarquia forte, muitos membros destacaram-se, sendo que o mais bem sucedido

foi Nereu Ramos27, chegando ao cargo de Presidente da República, em função de um golpe

militar, afastando Carlos Luz, para que se efetivasse a eleição de Juscelino Kubitschek”

(ALVES, 1980, p. 22). Vidal Ramos28, (Tio Vida), ocupou o cargo de Prefeito de Lages por

duas vezes, chegando a este número também no governo do Estado, (1902/1905 e

1910/1914).

O coronel, o chefe político e os cabos eleitorais, num sistema de troca de favores ou de mera identificação pessoal, faziam o eleitor sentir-se aparentemente co-responsáveis pela administração da coisa pública, sempre tão negligenciada pelos adversários, ‘esses inimigos fidalgais’. A pertença a uma agremiação política partidária, ‘igualava’ os desiguais que se sentiam importantes por estarem ao lado dos mandatários (RIBEIRO, 1988, p. 57)

Com o tempo, os Ramos foram alçando vôos maiores e ocupando cargos a níveis

estadual e federal, quando da instalação da Câmara Federal no Rio de Janeiro. À medida que

o tempo passava e que se fortalecia a industrialização da madeira, a oligarquia Ramos foi

perdendo sua força, sendo que logo imigrantes italianos e alemães ascendiam na vida pública,

27 Em sua homenagem, hoje Lages contempla uma estátua sua, construída no calçadão central, e também um

memorial ao lado do Colégio Vidal Ramos, também chamado de Colégio Rosa, tombado pelo Patrimônio Público Municipal.

28 Em Lages, enquanto prefeito, sua característica principal era a ‘caridade’ com os mais empobrecidos, abrindo diariamente as portas de sua cozinha, principalmente aos moradores do Bairro da Brusque, onde se concentrava grande número de afro-descendentes, servindo-lhes marmitas, ganhando a fidelidade de muitos ‘assistidos’ ao Partido da Renovação Nacional - ARENA.

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30

chegando a assumir o poder local. (Alves, 1980, p. 22). Com o fim da oligarquia dos Ramos,

acaba também o coronelismo enquanto força política.

Com o desaparecimento dos pinheiros Araucárias, diminui consideravelmente o

número de serrarias e o domínio econômico dos madeireiros vai enfraquecendo29. Esses

empresários do ramo da madeira, que tinham como principal característica o espírito

empreendedor, eram os maiores detentores de negócios lucrativos. Considerados os ricos que

vinham substituir os fazendeiros, não mediam esforços no sentido de suplantar os políticos

tradicionais, visando à ocupação dos cargos. Alves (1980) dá ênfase aos conflitos que passam

a se estabelecer quando os novos ricos acusam os senhores da terra de insensibilidade ao

progresso, enquanto estes alegavam grosseria no relacionamento social e na política por parte

dos primeiros.

No início dos anos 70, em contínua decadência devido ao esgotamento proporcional

das reservas nativas e à crise econômica no país, a crise no setor madeireiro resulta numa fase

de reestruturação e busca de alternativas, principalmente econômicas. As reservas de

araucária chegam ao fim, ocasionando o fechamento de muitas madeireiras e com isso o

aumento significativo da população urbana, gerando um grande número de desempregados,

desqualificados, com um conhecimento restrito ao trabalho em madeireiras, resultando num

número considerável de pobres, ocasionando o aumento das populações das periferias30.

As famílias que chegam a Lages vêem suas oportunidades de trabalho se tornarem

cada vez mais escassas. Deixando as fazendas e serrarias, são desconhecidas na cidade, onde

essa falta de identidade se manifesta nas canções: “Eu venho de longe,/ eu sou do sertão./ Sou

Pedro, sou Paulo, / Maria e João.” Aumentando o número de desempregados, as condições

de vida tornam-se insustentáveis pela falta de oportunidades. Trabalhando em serviços nunca

dantes por elas executados, essas pessoas não conseguem obter recursos para atender suas

necessidades básicas mínimas: “Eu faço a cidade e não moro;/ Me arranjo! / Plantei e colhi, /

mas não como; / Sou anjo.../ Eu venho da terra sem distribuição, / Eu sou do cansaço, sem

compensação.” Muita gente vai embora em busca de melhores condições, sendo que o

contingente de pessoas que permanece apóia a iniciativa da administração municipal de

29 Para saber mais a respeito do fim das serrarias, consultar SILVEIRA, 2005 “História da Indústria da

Madeira”. 30 “[...] um momento de busca de alternativas num contexto de crise econômica aguda. Foi também quando

ocorreu o esgotamento de reservas de araucárias, o que resultou no fechamento de grande parte das madeireiras e no aumento considerável da população urbana”. (PEIXER 2002, p.171).

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Dirceu Carneiro, líder envolvido com a comunidade, fazendo frente a um projeto que

priorizava o atendimento das necessidades mais urgentes das camadas populares31.

Os campos de Lages se caracterizam por três pontos: a pobreza dos solos, raros e

arenosos, o clima com fortes geadas e nevascas e a concentração da terra. Além dos

tradicionais latifúndios nas mãos dos fazendeiros, agora também há as reflorestadoras

multinacionais. O sistema capitalista de exploração do trabalhador do campo se impôs, ainda,

por meio dos cultivos empresariais da maçã, alho e fumo, o que provoca um grande número

de trabalhadores rurais ‘sem terra’. Estes, quando podem produzir, o fazem, por exemplo, nas

beiras das rodovias. Passam a ser trabalhadores volantes, assalariados temporários.

Inconformados com essa nova situação, identificam-se nos versos: “Amigo trabalhador, veja

a nossa situação, / Nós queremos trabalhar e não temos condição. / E a terra que era nossa,

hoje é toda do patrão”. Sabem, também, que não adianta fugir do campo, pois, nos centros

urbanos, sem as habilitações necessárias, a vida será, talvez, até mais difícil: “Desemprego na

cidade, / virou uma maldição.” Mas, como já disse alguém, ‘o sertanejo é antes de tudo, um

forte’; assim, mesmo diante das dificuldades ele não esmorece e convida os irmãos a terem

esperança e a persistirem na luta por melhores condições: “Precisamos resistir e nós vamos

conseguir, / pôr a terra em nossas mãos.”

A situação do pequeno produtor rural, pressionado pelos grandes pecuaristas e

industriais, explorado pelo sistema integrado de produção como o caso do fumo, leva-o a

perder suas terras, sua independência e sua autonomia. Sem crédito e preço adequado para

produção é afastado do comércio direto pelos atravessadores. Estes são os sintomas do

capitalismo no campo, onde, aliada à eletrificação, vem a exploração e enquanto se condenam

as queimadas, abandonam-se os rios à poluição pelas fábricas de celulose. Os agrotóxicos que

vieram salvar vidas, diminuindo perdas, na verdade, matam e criam escravos da produção.

Lages foi sede do engajamento de jovens, mulheres e homens numa diversidade de

movimentos de Base. Algumas Pastorais, por meio de suas lideranças, tomavam iniciativas e

contribuíam para humanizar as comunidades, fazendo uso de ferramentas como a Canção

Popular que nasce a partir da realidade de seus participantes, e é capaz de abranger uma

variedade de temáticas: diferentes situações que oprimem as classes populares, como

desemprego, falta de atendimentos médicos, falta de escolas. A resolução desses problemas

certamente passa pelo engajamento de todos nas lutas necessárias, ainda que sem armas, para

31 Classes populares, ou massas populares, expressão utilizada para captar a possível homogeneidade do

grande conjunto de pessoas que ocupam os escalões sociais e econômicos inferiores nas diversas áreas do sistema capitalista vigente no Brasil. (WEFFORT, in WANDERLEY, 1984).

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obter as reivindicações da comunidade e se expressa nos versos: “Vem, me dá a mão/ e uma

canção vamos cantar, / Vem que a vida é bela, / juntos com ela vamos lutar./ Unidos vamos

em frente / e esta corrente vamos levar, / E cantando esta canção, / De coração, vamos

lutar.” É por meio desse tipo de canção que vão se apontando caminhos para a resolução

desses problemas, pois a canção desperta a reflexão, coletiva, quando cantada nas reuniões

dos grupos e a reflexão, por sua vez, impulsiona a ação. A canção das CEBs em Lages

contribuiu para a formação de sujeitos mais atuantes, pois, como expressão de cultura possui

poder aglutinador e serve de linguagem que pode ser entendida por todos. Seu conteúdo

sócio-político ou cultural engloba formas de contestação, alegria, revolta, entre outras. Se as

CEBs, como uma igreja que tem a opção primeira pelos pobres e pequenos, a canção das

CEBs é oposição às iniciativas de exclusão e tem capacidade de organização. A música, nesse

contexto, convida à luta, animando o grupo a unir-se e a superar as dificuldades comunitárias.

Tem-se assim, com a utilização da canção popular como ferramenta de transformação, o

desencadear de uma seqüência imprescindível à realização das mudanças: realidade-reflexão-

canção-reflexão-ação.

1.3 “A força do povo” – Integração comunitária para construir cidadania

O processo de dominação nas relações políticas, sociais e religiosas na região de

Lages persistiu até o início da década de 70 do século XX, quando as decisões de interesses

coletivos passam a ter a participação das comunidades por meio de uma administração pública

que expressa uma política denominada ‘Lages, a força do povo’32. Ocorre a integração de

alguns setores da população nas diferentes decisões administrativas, buscando a elaboração de

um regime democrático e participativo. No final dessa década de 70, e início dos anos 80,

mudanças significativas ocorrem na vida política da cidade de Lages.

É o que assegura Peixer (2002, p.170):

A década de 70 foi marcante na história Política e Social de Lages. Foi uma década em que se quebrou a hegemonia política dos tradicionais mandatários locais e iniciou-se uma experiência mais voltada para os grupos populares, com os governos de Juarez Furtado (1973-1976) e Dirceu Carneiro (1977-1982).

32 Alves, (1980): Democracia Participativa em Lages.

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Almejava-se a mudança e a possibilidade de se construir uma sociedade

fundamentada principalmente na participação coletiva. Nas eleições de 1972, acaba a

hegemonia dos Ramos, que perdem as eleições para Juarez Furtado33, político dinâmico,

bacharel formado na cidade de Curitiba, numa administração moderna e criativa, com projetos

mais voltados à área urbana, beneficiando a maior concentração eleitoral.

Para a gestão de 1977/1982, foi eleito Dirceu Carneiro que teve uma votação maior

do que a atingida por seus quatro adversários juntos. Antigo líder secundarista e ex-presidente

do Centro Acadêmico da Faculdade de Arquitetura de Porto Alegre, nascido na cidade de

Caçador, filho de fazendeiros, aliou-se, segundo Alves (1980, p. 27), a uma análise técnica da

crise da indústria madeireira, o que resultou no fortalecimento de uma opção agrícola nos

projetos de sua administração. Naquela administração priorizou-se a agricultura e teve-se

dedicação particular na utilização de recursos locais e no respeito ao equilíbrio ecológico.

Conforme Alves (1980, p. 27):

Dirceu articulava uma equipe cheia de idéias para elaborar um programa e lia desabridamente relatórios da ONU e da FAO sobre a carência de habitações no Terceiro Mundo, sobre a crise de energia, os debates dos ecologistas franceses e americanos, as alternativas para a agricultura fora do esquema das variedades de arroz e de trigo ‘milagrosas’, que as multinacionais inventaram para vender os seus adubos e concentrar a propriedade da terra.

A administração de Dirceu Carneiro tinha uma proposta voltada para a animação

popular34, dialogando com os moradores, procurando recuperar o entusiasmo de trabalhar

comunitariamente e aumentando a crença nas suas capacidades de tomar decisões e atitudes

sem esperar pelo poder público. A partir de reuniões, promovia-se um alto grau de

organização da população, o que se constituía num processo educativo e dialético.

Através do MDB de Dirceu Carneiro, segundo Alves (1980, p.30), criaram-se

núcleos e sub-núcleos nos bairros e nos distritos, passando a se promover associativismo e o

incentivo à criação de Associações de Moradores nos bairros da cidade e nos distritos,

discutindo com a população a importância da organização, considerando-se que, para acessar

os serviços da municipalidade era necessário que os grupos estivessem envolvidos. É neste

espírito de co-participação que surge o lema “Lages, a Força do Povo”, com a criação das

33 Assíduo freqüentador de bailes e batizados, com uma administração aberta à comunidade, considerado,

pessoalmente, um ótimo prefeito para Lages naquele período. (ALVES, 1980, p. 25). 34 “A animação popular é uma tarefa da comunidade. [...] Tem que ser objetiva, ter atuação visível, com

repercussão e conseqüências sensíveis [...] se insere como ponto de reflexão e ação no contexto da luta pela transformação de estruturas, elaboração de esquemas mais humanos, sem o que seu sentido se esvazia”. (MEB Nacional, “Animação Popular – ANPO: Tentativa de Definição”, in MEB em cinco anos –Primeira Parte).

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Associações de Moradores, nos bairros da cidade, e de Postos de Saúde, que eram

reivindicações de muitos, tornados possíveis por meio do trabalho “de mutirão” em que os

habitantes fornecem a mão-de-obra e o material é repassado pela Prefeitura.

Segundo Alves (1980, p.63), naquela administração, a educação em Lages ia muito

além dos livros e do quadro-negro, uma vez que todo membro da comunidade tinha algo a

ensinar e a aprender, inclusive ensinar profissões como pedreiro, cesteiro, agricultor ou

aprender noções preventivas de doenças. Uma escola que vai além do âmbito educativo, com

técnicas pedagógicas que se fundamentam em teorias que discernem sua função na sociedade

inclusiva, em outras palavras, faz com que o aluno realize uma verdadeira ‘leitura de mundo’.

Freire (1983, p. 46) diz que Educação libertadora é fundamentalmente:

Uma situação na qual tanto os professores como os alunos devem ser os que aprendem; devem ser os sujeitos cognitivos, apesar de serem diferentes. Este é, para mim, o primeiro teste da educação libertadora: que tanto os professores como os alunos sejam agentes críticos do ato de conhecer.

Mutirão era a palavra chave dessa administração. Juntos, poder público e

comunidade, discutiam propostas e soluções, faziam avaliações da disponibilidade ou não de

recursos para determinar sua execução, demonstrando a capacidade que o ser humano tem

para viver em comunidade e ainda a busca da solidariedade entre vizinhos tentando reverter

uma sociedade desagregada e excludente. Os moradores sabiam que muita coisa precisava ser

feita e que, como eles mesmos é que seriam os maiores beneficiados pela mudança, não

deveriam esperar de braços cruzados. Deviam unir-se e colaborar com a administração

pública: “Queridos amigos, eu peço licença, / Com sua presença eu quero contar. / A

empreitada é dura e está chegando a hora / De fazer a história e o rumo trilhar. / Até as

mulheres, se organizando, / É mais uma força a se mobilizar”. (CAMINHANDO E

CANTANDO, 1994).

A nova sociedade, em crescente conscientização e organização, mostrava que era

possível superar antigas concepções de auto-suficiência e individualismo. Nos seus encontros,

cantavam a força da união e o resultado das ações que vinham realizando, visível na

construção de suas próprias habitações, fruto do seu trabalho conjunto e do auxílio do poder

público local: “[...] O Santo Evangelho é uma semente / Que a classe roceira cultiva no chão

/ se organizando em grupos pequenos, / ganhando o terreno para o mutirão.” Essa canção

reforça uma realidade existente naquele momento, nesses grupos: Bíblia e ação política juntas

- quando os grupos estudavam o evangelho, refletiam a respeito de suas mensagens e

discutiam a realidade local - desencadeavam ações e celebravam vitórias.

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Sobre a importância da presença da canção na vida das comunidades, Dom Oneres

Marchiori, Bispo Diocesano de Lages, diz:

Em nossas celebrações, o cântico ocupa um lugar especialíssimo. Ele é um meio para viver o mistério que está sendo celebrado [...] deve ser a expressão da caminhada do povo, de suas aspirações, de suas lutas e conquistas. Graças a Deus, nossas comunidades descobrem sempre mais essa realidade e cantam. Cantam com alegria, com entusiasmo, com vigor. Cantam a esperança, a fé em Deus, a prece suplicante, a história sofrida. [...] No canto, a verdade está presente de forma aguda, poeticamente denunciadora. (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).

Com esse projeto de mutirão as comunidades de Lages vão conquistando dignidade

porque percebem que é possível por meio do envolvimento, do trabalho em grupo, conquistar

direitos que anteriormente pareciam distantes. As CEBs já davam sinal, na prática, de que era

preciso organização e consciência política. O que se debatia nas reuniões de CEBs, nesse

projeto de construção a muitas mãos da administração popular de Lages saía do papel e se

tornava realidade. Uma vez que a canção estava presente nas iniciativas e ações desses

grupos, era a letra da canção que trazia uma nova esperança: “Caminhando levo apenas a

esperança / de um dia a liberdade encontrar. / É a esperança que dá força ao caminheiro / de

ir seguindo pela vida, a procurar [...]”.

O projeto de democracia experimental em Lages, na busca de obter respostas

coerentes às necessidades, de fazer o trabalho avançar, realizava dias de estudo, cursos,

treinamentos e debates com a perspectiva de que a população ensina e aprende, desde o

incentivo do plantio de legumes e frutas no quintal, produzindo mudas e sementes, até a

utilização do adubo orgânico, e, ainda, a elaboração de outras modalidades de cultura, como a

fruticultura, o cultivo da maçã, a criação de trutas, carpas, tilápias e rãs e também a criação de

coelhos, dando, assim, condições econômicas para a sua permanência no campo.

A respeito da valorização dos conhecimentos que cada integrante da comunidade tem

sobre determinado assunto e da utilização da experiência desses integrantes na obtenção de

mudanças significativas no processo histórico comunitário, em Lages, no período pesquisado,

enfatiza-se: “a necessidade de considerar a experiência humana como parte fundamental do

processo histórico e, portanto, de qualquer leitura que dele se faça.” (CALDART, 2000, In

PIANA, 2001, p. 22)

Wanderley (1984, p. 112), também observa:

A mudança de atitudes, intimamente ligada à conscientização, representa disposição para a ação consciente e livre, a partir da compreensão e da crítica das situações concretas. Pode-se sintetizar, mostrando que a motivação de atitudes encaminha-se em quatro direções: atitude crítica, atitude de valorização, atitude de mudança e atitude de cooperação.

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Na verdade, uma prática de Educação popular que tem como principal objetivo

produzir o conhecimento, dando condições para uma vida mais digna, gerando consciência

crítica da realidade, integra-se a suas culturas, no sentido de obter, conjuntamente, condições

de transformar esta realidade, buscando outras práticas sociais em que todos participem como

protagonistas, conforme a letra da canção: “Pra conquistar os direitos no campo e na cidade,

/ Povo unido é semente para a nova sociedade”.

Para Alves (1980, p. 49) um grande problema enfrentado pela população de Lages,

naquele período era a questão habitacional: “A ponta envenenada do êxodo rural é a favela”,

considerando-se, então, duas situações: as famílias com renda maior que três salários mínimos

podiam aderir aos financiamentos habitacionais da COHAB; já as famílias com renda inferior,

inseriam-se no “Projeto Lageano de Habitação”, da equipe de Dirceu Carneiro, mais

conhecido pela comunidade como “Projeto Mutirão”.

De acordo com entrevista concedida por Nilza35, “o projeto nasce, a partir de um

sonho, um bairro construído em mutirão, acreditando na força do povo, e na capacidade de

construir sua própria moradia. Para possibilitar a concretização desse projeto, foi

construído um ‘Banco de Materiais’ constituídos de telhas, tijolos e madeiras oriundas de

demolições urbanas, não reaproveitadas. É no ‘Mutirão’ que se concentram amostras de

quase todas as experiências inovadoras em curso no município. A idéia de um mutirão

vastíssimo - 690 casas, em um terreno de 287 mil metros quadrados, com uma população

prevista de 4.000 pessoas - nasceu da crença do arquiteto Dirceu Carneiro o qual acreditava

que qualquer grupo de pessoas, com um mínimo de assistência técnica, é capaz de erguer a

sua própria casa. Como faziam antigamente”.

Alzira36, também por meio de entrevista, lembra que, no contexto de organização do

Bairro Mutirão, as irmãs religiosas contribuíram desde o início para a organização do bairro e

na formação das lideranças: “Irmã Jandira dava curso de Bíblia para as lideranças, Ir. Hilda

trabalhava com as equipes de liturgia e dava aula de violão e as jovens que moravam com as

irmãs organizavam os Grupos de Famílias e os de Juventude”.

Esse projeto da Equipe Dirceu Carneiro, por meio do qual as famílias puderam

construir suas casas a partir de materiais alternativos e com auxílio da comunidade e dos

órgãos públicos, é percebido como um momento democrático e participativo, ao qual se pode

chamar de Educação de Base.

35 Nilza Aparecida Camargo, 52 anos, Agente de Pastoral da congregação das Irmãs Franciscanas do

Apostolado Paroquial do Bairro Habitação. 36 Alzira Gomes Machado, 49 anos, vida Religiosa Consagrada. Educadora Popular MMC/SC.

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Segundo Wanderley (1984, p.109):

Entende-se como Educação de Base o processo de auto-conscientização das massas, para uma valorização plena do homem e uma consciência crítica da realidade. [...] deverá partir das necessidades e dos meios populares de libertação, integrados em uma autêntica cultura popular que leve a uma ação transformadora. Concomitantemente, propiciar todos os elementos necessários para capacitar cada homem a participar do desenvolvimento integral de suas comunidades [...].

De acordo com Alves (1980), visando a economia e o entrosamento da comunidade,

passaram a acontecer diversas alternativas em mutirão, como no caso do calçamento feito de

lajotas de cimento, beneficiando seu acesso pelas camadas populares. As lideranças dos

diferentes bairros reuniam-se, discutiam estratégias e votavam para escolher a rua a ser

contemplada, sendo que a participação de todos os envolvidos refletia-se no

comprometimento com os encargos da melhoria, o que levou ao desenvolvimento do

sentimento de comunidade.

Sobre a forma como se desenvolveu o Projeto Mutirão, Nilza acrescenta: “As casas

foram construídas em mutirão. Foram usados os materiais de forma mais alternativa

possível, como troncos de árvores, resto de material de outras construções demolidas, barro

para usar como massa corrida. É a partir do Mutirão que nasce o bairro Habitação. No ano

de 1978, durante a administração do então Prefeito Dirceu Carneiro, nasce de um sonho e

também da necessidade de abrigar pessoas carentes, sem condições de ter casa própria. O

projeto foi intitulado de “Mutirão de construções de casas populares”. Foram beneficiadas,

inicialmente, 700 famílias. Os terrenos onde atualmente está situado o bairro, pertenciam à

Associação Hípica e à Cúria Diocesana”.

A participação social é valorizada e, apoiada pelo poder público, que garante

autonomia aos grupos, tornando-os responsáveis e comprometidos com a causa do coletivo. A

população passa a assumir uma atitude diante da realidade, partindo da tomada de consciência

sobre a importância da colaboração de todos. Se de algum modo esta participação popular foi

ou não induzida, certamente contribuiu como um instrumento de democracia participativa.

Em entrevista, o senhor Martin Joel Cardoso37 relata: “No final de 1978, iniciamos a

construção de nossa casa. Para ter direito, o interessado deveria ajudar na construção de

outras casas. Como éramos quatro irmãos, um ajudava o outro. Moramos todos, até hoje, no

bairro, com exceção de um que foi embora para Caxias do Sul depois de alguns anos”.

37 Vigilante, 53 anos, morador na Rua das Magnólias do Bairro Habitação, Liderança do Conselho Paroquial

Pastoral da Paróquia Nossa Senhora das Graças daquele bairro, participa ainda hoje como Ministro do Sacramento do Batismo, naquela comunidade.

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Nilza relata os critérios para que o morador pudesse ser contemplado com um espaço

no bairro, para a construção de sua casa. Segundo ela, “era necessário ter uma renda familiar

baixa, não possuir nenhum imóvel e estar residindo em Lages há mais de cinco anos. O

número de filhos era também considerado como critério e quem tivesse mais filhos era

atendido primeiro. O coração do Mutirão era um depósito chamado “Banco de Materiais”.

Para esse local eram encaminhados os tijolos, a madeira, as telhas oriundas de demolições

feitas na cidade. Para isso, Dirceu Carneiro fez um decreto facilitando os alvarás de

demolições e permitindo que os funcionários municipais auxiliassem e que os materiais

fossem transportados em caminhões da Prefeitura, desde que fosse tudo doado ao Mutirão”.

Recordando daqueles anos 70/80 na comunidade do Bairro Habitação, Nilza

continua, lembrando que, com a vinda das Irmãs Franciscanas para o bairro, elas organizaram

os moradores, formando equipes de estudo. “Nos reuníamos na escola, onde fazíamos estudos

e nos organizávamos para resolver os problemas do bairro. Lembro-me que um dos maiores

problemas era o esgoto, porque o bairro não tinha nenhuma infra-estrutura. Então era

urgente que os moradores se organizassem e tomassem algumas decisões sem esperar pelo

executivo. Então surgiu a idéia de que a Igreja também ajudasse nesse trabalho, já iniciado

pela associação de moradores, mas que não andava”. Ainda acrescenta: “Então compramos

manilhas, e conseguimos uma doação, da CASAN, (Companhia de Águas e Saneamento de

Lages), de alguns canos, e, em mutirão, construímos, nas divisas dos lotes um encanamento,

que ficou por muitos anos de forma precária, devido à demanda e os canos, muito finos, que

entupiam freqüentemente, mas foi um trabalho realizado pela Igreja e pelos moradores”.

Descrevendo um pouco o bairro Habitação, todas as ruas estão direcionadas à escola

e todas têm nome de árvores frutíferas ou de flores. Como por exemplo: Rua das Camélias, da

Pitangueira, dos Pessegueiros, das Acácias etc... A sua organização geográfica é de forma

circular. A escola Mutirão fica no coração do Bairro e também foi construído pela

coletividade. Possui uma estrutura que na época foi pensada a partir do espírito comunitário:

na medida em que surgiam as necessidades, as salas eram edificadas, até fechar o círculo, ao

redor do pátio, no centro. Pensando assim, também se pensaria uma outra educação possível,

diferente, sem um aluno atrás do outro, para que dessa forma se possibilitasse a participação

de todos.

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Fonte: LS Publicidade Lages (2007).

Figura 2 Mapa do bairro Habitação do município de Lages, SC.

Continuando o relato sobre o Bairro Habitação, Nilza lembra que: “as celebrações

religiosas eram feitas no colégio, depois na sede da Associação. Então resolvemos adquirir

um lote e construir uma capela (que hoje é o centro da Pastoral da Criança), neste local

foram feitas festas e celebrações, até que sentiu-se a necessidade de construir uma capela

maior, num local mais central. Conseguimos dois terrenos e começamos a idealizar esta

construção. Parecia uma utopia, mas com coragem e determinação começamos essa

construção. Com o dinheiro das festas fizemos a parte de baixo da capela, e como a “força”

era pouca pedimos ajuda no exterior. [...] lembro que a comunidade da Alemanha, numa

arrecadação e através de um projeto feito pelas irmãs, doou para a comunidade São

Francisco essa coleta, que foi de muita ajuda. A Igreja também foi construída em mutirão”.

Relativamente à questão cultural, naquela gestão administrativa de Dirceu Carneiro

os artistas plásticos tornaram-se conhecidos, expondo seus materiais periodicamente. O

mesmo ocorreu com os artesãos, os contadores de “causos” e os trovadores do interior,

despertando o interesse dos moradores. Destacava-se, nessa época, o teatro de bonecos

“Gralha Azul”38 utilizado como ferramenta nas campanhas educativas nas escolas, tais como

‘escovação dos dentes’, ‘vacinação’ e outras. Uma forma lúdica de ‘ensinar’.

38 Criado pelo Argentino Fernando de Fierro que escolheu como estratégia de trabalho a linguagem de

bonecos. Peças como: ‘Lages lá, lá Lages lê, lê’; ‘No planalto sul tropical do sol’; e ‘E a gralha falou’ (Caderno Especial ‘O Estado’, 16.09.79, p. 12) . “Deveu-se a ter buscado um repertório nas velhas tradições

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Por meio de seminários e discussões freqüentes, o conjunto de atividades

desenvolvido nas séries iniciais se faz através do conhecimento da realidade do dia-a-dia e

com a participação de pais, alunos, professores e membros da comunidade. A horta também

estava presente na escola, os alunos ajudavam na sua preparação, plantio e conservação, e

dela se enriquecia a merenda. Cada pessoa passava a sentir-se importante dentro do processo

de construção de uma nova escola, despertando um espírito de solidariedade e força

homogênea.

O objetivo da ação dos rapazes e moças da Secretaria de Cultura de Lages é precisamente esse: fazer com que renasçam os valores locais, valorizar as tradições do povo, fazer com que até os mais humildes compreendam que cultura é tudo o que o cérebro e a mão do homem produzem, e não apenas a erudição dos letrados da classe dominante. É, também, utilizar os métodos da expressão cultural para promover o desenvolvimento, quer isso signifique a abertura de novas possibilidades de trabalho material, quer queira dizer aprender noções de higiene ou de medicina preventiva (ALVES, 1980, p. 103).

O projeto ‘Lages: A Força do Povo’ aponta perspectivas multiplicadoras. A

democracia participativa vivida em Lages é um progresso, talvez decisivo para ampliar a

solidariedade e combater o individualismo, buscando fazer a integração do conhecimento com

a prática, valorizar o ser humano e sua dignidade, procurando eliminar relações opressivas, no

sentido de tornar todos iguais nas oportunidades que têm, e que devem ser para todos. O

projeto de Lages incentiva os valores locais através das tradições da população, valorizando

sua cultura, abrindo novas possibilidades, dando espaço para a libertação pessoal e coletiva,

em que cada pessoa assume suas relações sociais.

Cada um descobre sua liberdade através das aptidões que possui, seja pela música,

pelo teatro, nas artes plásticas ou exercendo uma função, principalmente através da mediação

dos diferentes profissionais capacitados que faziam parte da equipe de Dirceu Carneiro

contribuindo na construção do conhecimento e na formação da cidadania39.

Esta administração fez investimentos no processo de democratização e

descentralização social, estimulando a população para o envolvimento e para a formação do

conhecimento da realidade, incentivando-a a intervir e agir para alcançar melhorias que

beneficiariam a todos. A cidade de Lages visualizava um palco de novas perspectivas contra

os sistemas autoritários e grande número da população protagonizava esta ação.

lageanas e nos ‘causos’ recolhidos no interior, onde ainda é forte a tradição da literatura oral, comum a todos os povos em que são altos os índices de analfabetismo. [...] O teatro de bonecos “Gralha Azul” foi vítima de seu próprio sucesso. Ganhou fama, foi convidado para se apresentar em outros Estados, acabou indo fazer uma tournée na Europa e só três dos seus componentes voltaram para Lages”. (ALVES, 1988, p. 106).

39 Faziam parte da equipe de Cultura e Educação desta gestão os professores do PPGE – UFSC, Dr. Antônio Munarin e Drª. Sônia Beltrame (ALVES, 1980).

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41

No pleito de 1982 o projeto democrático é interrompido com a vitória, nas urnas, do

PDS, (Partido Democrático Social), que vem com ‘grandes realizações’ privilegiando os

centros urbanos.

1.4 Participação popular: espaço de convivência e identidade coletiva

Este foi um período da história de Lages durante o qual se destacou o caráter

pioneiro da participação popular na administração pública. Quando, no Brasil, atingia-se o

auge do regime militar, essa cidade caracteriza-se como agente de desenvolvimento. No

entanto, depara-se com adversários fortes, representantes de elites econômicas nos segmentos

locais, regionais e até estaduais, que lhe impõem limites, interrompendo o processo

organizativo e colocando um ponto final à gestão da equipe Dirceu Carneiro.

Priorizando as classes empobrecidas e conjugando a política a outras dimensões

como cultura e religiosidade, fortalecendo a luta de movimentos populares em favor de

mudanças qualitativas, passa a acontecer, nesse período, após a vitória do PDS, uma nova

etapa administrativa.

Considerável número da população integra-se à participação nos programas da

administração pública, entre os quais a criação de Associações de Moradores, Horta

Comunitária, Projeto Habitação, Medicina Preventiva, Associação de Pequenos e Médios

Comerciantes, Associação de Pais e Professores, Educação Popular e outros. A cultura da

população é valorizada por meio do teatro e da educação informal que partem da realidade e,

por sua vez, valorizam a experiência do aluno, contextualizando a participação de pais e

comunidade no processo de ensino-aprendizagem, favorecendo o surgimento das atividades

em grupos e a integração das comunidades do meio rural.

Ao se referir à nova administração, Peixer (2002, p.167) enfatiza:

Está presente nos debates sobre democratização da sociedade, da participação popular e sobre processos de globalização. O espaço local é um espaço de convivência, conflitos, identidades, culturas e singularidades; espaços múltiplos e diversos, específicos e interligados; espaço de histórias, identidades e práticas políticas, tradicionais ou inovadoras. Vê-se um processo de valorização dos canais e formas concretas e efetivas de participação dos grupos populares, principalmente os grupos organizados, percebendo a descentralização como forma efetiva de democratização do poder político.

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Em entrevista com o senhor José Eroni de Medeiros40 sobre aquele período histórico

em Lages, ele diz: “As pessoas se reuniam e pensavam o que poderia ser feito para

transformar a realidade da comunidade [...] a partir dos grupos de reflexão, organizavam-se

em atividades sociais, convidavam outras famílias para que também se engajassem [...]

chegando até aos dirigentes da prefeitura para que se organizasse uma Associação dos

Moradores no seu bairro, para que a partir dali, fossem buscar melhorias para a

comunidade, e para que dali saíssem líderes que se candidatariam à presidência do bairro e,

mais tarde, a vereadores”.

Percebe-se que com o apoio do poder público e a participação efetiva da

comunidade, os grupos passam a se organizar e a criar alternativas de mudanças, numa

educação permanente. Refletindo sobre sua prática, constroem memória e protagonizam sua

própria história.

O período histórico escolhido demonstra a existência, em Lages, de traços de

parceria entre o poder público e a população integrando-se em uma ação comum de

desenvolvimento coletivo, protagonizando um processo de mudança, favorecendo a

transmissão de conhecimento e o incentivo à consciência crítica, autonomia e reflexão.

40 Atualmente (2007) com 51 anos de idade, Eroni é liderança desde os anos 70/80 até os dias atuais na

Comunidade do Bairro Guarujá, em Lages. É ministro de Sacramentos, da Eucaristia e da palavra, membro da Cáritas Diocesana e da equipe de Pastoral de Lages. Formador de opiniões e líder de Associações de Moradores e Grupos de Famílias.

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2 A CANÇÃO POPULAR E A CANÇÃO DAS CEBS EM LAGES

2.1 CEBs: significados e sentidos

Também sou teu povo Senhor E estou nessa estrada

Perdoa se, às vezes, Não creio em mais nada

A partir do Concílio Vaticano II e de Medellín (1962-1965), e de Puebla (1979),

surge, na América Latina, a idéia de uma “Igreja do Povo de Deus” que vem para evangelizar

e ser evangelizada, considerando-se sua cultura e realidade, tendo uma ‘opção preferencial

pelos pobres e pelos jovens’. Novas diretrizes teológico-pastorais se formam e as

comunidades são vistas como “Povo de Deus” sentindo-se parte ativa na construção do Reino.

Segundo vasta literatura sobre CEBs41, nesse contexto se pretendia mudar o estilo

piramidal da Igreja, vislumbrando um maior engajamento dos leigos42 e maior participação

nas tomadas de decisões. Cria-se um grau de afetividade e partilha entre os participantes do

grupo, um sentimento de auto-identificação coletiva.

Inspiradas no método Paulo Freire de alfabetização de adultos, trabalhando da

conscientização à ação, gerando uma nova consciência nas camadas populares e priorizando o

processo de libertação dos pobres, as CEBs tiveram que repensar a sua identidade ao final da

Ditadura Militar. A Igreja passa a participar da realidade de sua comunidade buscando

encontrar novos caminhos, que abram espaço para a elaboração coletiva e crítica da vida

individual e social das classes populares, constituindo formas de aquisição de conhecimento,

elaboração de projetos e transformações sociais que levem atores antes excluídos da

sociedade a se tornarem membros ativos em crescimento.

41 Boff (1978); Alves (1979); Betto (1981); Ribeiro (1982); Boff (1984); Gutierrez (1984); Wanderley (1984). 42 Nos papiros e nas inscrições do culto grego anterior a Cristo, laós queria dizer povo não iniciado, ou seja,

não especialmente consagrado a Deus. O Novo Testamento não lhe deu foros de cidadania. Mesmo assim, no século II da Era Cristã, leigo já passa a designar, na Igreja, o não clérigo (ARNS, 1985, p. 58).

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Boff (2005, p.10) diz que “a fé é um dom politicamente encarnado, que tem razão de

ser nesta conflitividade histórica, na qual somos chamados, pela graça, a distinguir o projeto

salvífico de Deus”. Com a Teologia da Libertação, nos anos 70, é fortalecida a ligação da fé e

da política, considerando-se que espiritualidade e ação não podem mais estar desvinculadas43,

como seres sociais que somos. As CEBs, segundo Betto (1981, p.16):

São pequenos grupos organizados em torno da paróquia (Urbana) ou da capela (Rural), por iniciativa de leigos, padres ou bispos. As primeiras surgiram por volta de 1960, de natureza religiosa e caráter pastoral, podem ter dez, vinte ou cinqüenta membros. Nas paróquias de periferia, as comunidades podem estar distribuídas em pequenos grupos ou formar um único grupão.

Vistas como um “novo jeito de ser igreja”, organizadas na base, partindo dos

princípios da Educação Popular de Paulo Freire e formadas por pequenos grupos, geralmente

de vizinhos que compartilhavam das mesmas idéias, as CEBs são ligadas principalmente à

Igreja Católica, mas agem de forma ecumênica. Espalharam-se nos anos 70 e 80 do século

XX, lutando contra a ditadura militar no Brasil, buscando conscientizar para o processo de

democratização do país, e abrindo caminhos para formar uma nova sociedade.

Conforme Boff (1995, p.17): “na medida em que as igrejas se engajarem na missão

pastoral dos pobres, dos desempregados, drogados, idosos, trabalhadores, estrangeiros, nesta

mesma medida, as igrejas terão sentido e futuro”.

A Igreja Povo de Deus aparece, neste contexto de CEBs, em favor do oprimido,

criando condições para o exercício da democracia, na luta pelos direitos dos empobrecidos,

com uma proposta de libertação autêntica dos homens, ou seja, um processo de humanização,

onde o ser humano não seja visto apenas pela lógica do capital e pela da submissão ao Estado.

As CEBs não se fecham em si mesmas. As questões levantadas nas reuniões raramente deixam de ser questões sociais, ligadas à sobrevivência das classes populares. O abaixo-assinado à prefeitura pedindo água para o bairro, não interessa apenas aos cristãos, é uma questão de interesse geral. A luta contra a expulsão de posseiros mobiliza todos que não se identificam com os interesses dos açambarcadores de terras. Assim, a comunidade eclesial de base abre-se ao movimento popular, ajudando a criar ou a fortalecer formas de organização popular autônomas, desvinculadas do Estado e da Igreja (BETTO, 1981, p. 24).

Desta forma, as CEBs realizam um trabalho educativo, formando lideranças críticas e

que procuram vivenciar uma nova realidade, abrindo possibilidades para que todos possam

exercer com dignidade seus direitos e deveres. Assim, as comunidades saem da igreja e

reivindicam um desejo comum, em uma identidade elaborada coletivamente.

43 Boff (2005, p.10).

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As palavras da Bíblia tornam-se ação, por meio de gestos concretos, e partem para o

“ver, julgar e agir”, dando início à intervenção coletiva através dos temas das Campanhas de

Fraternidade, que, também sob a influência do Concilio Vaticano II, tiveram início,

nacionalmente, no ano de 1963.

Quando o grupo passa a agir coletivamente, o que antes era considerado sonho pode

mais facilmente tornar-se realidade. Adotando uma visão religiosa, social e politicamente

engajada, partilhando as dificuldades comuns, reúnem-se em assembléias onde são discutidos

os problemas e encontrados os encaminhamentos adequados, encerrando-se, essas

assembléias, com um compromisso concreto que é assumido por todos. As comunidades

aprendem a questionar propostas que antes eram impostas.

Conforme Locks (2006, mimeo), as CEBs incentivam os participantes do grupo ao

engajamento em sindicatos, partidos políticos com ideologias semelhantes à sua doutrina e os

estimula a sensibilizarem-se com os problemas de interesse comunitário, reforçando, nos

pequenos grupos, o atendimento aos anseios das camadas populares na conquista da sua

dignidade.

Segundo Wanderley (1984, p. 252):

Nesse processo de ascensão coletiva de uma comunidade de base, o essencial é ajudar a comunidade a ajudar-se. Ela deve saber aproveitar todos os recursos próprios. Deve ser educada para assumir seus problemas e procurar solucioná-los. Muito importante aqui, são os treinamentos de líderes que, aos poucos, vão capacitando o homem para assumir responsabilidades, ao mesmo tempo em que levam para a formação de consciência crítica.

Com isso, percebe-se a Educação Popular profundamente imbricada aos métodos de

vinculação das CEBs e à ação político-social, organizada para comunicar e formar lideranças

capazes de participar da transformação social, tornando possível a inserção de todos neste

processo. Constata-se, então, que estas Comunidades Eclesiais buscam desenvolver ações

político-transformadoras, relacionando fé e vida.

Sobre essa forma de educação:

Através da educação libertadora, não propomos meras técnicas para se chegar à alfabetização, à especialização, para se conseguir qualificação, ou pensamento crítico. Os métodos de educação dialógica nos trazem à intimidade da sociedade, à razão de ser de cada objeto de estudo. Através do diálogo crítico sobre um texto ou um momento da sociedade, tentamos penetrá-lo, desvendá-lo, ver as razões pelas quais ele é como é, e o contexto político e histórico em que se insere (FREIRE, 1987, p. 4)

Dessa forma, os sujeitos que participam desses grupos passam a escrever sua própria

história, tornando-se responsáveis por melhorias que irão beneficiar a coletividade.

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Do ponto de vista dos setores progressistas, a participação facilita o crescimento da consciência crítica da população, fortalece seu poder de reivindicação e a prepara para adquirir mais poder na sociedade. Além disso, por meio da participação, consegue-se resolver problemas que ao indivíduo parecem insolúveis, se contar só com as próprias forças (BORDENAVE, 1983, p. 12).

Essa educação tem o dever de libertar e levar os indivíduos à organização, avaliando

criticamente a sua prática e tendo condições de atuar com maior segurança, dando um novo

sentido à sua práxis e percebendo o poder da ação que desenvolve a partir da tomada de

consciência da realidade.

Boff (2005, p. 25) justifica que: “assim, a teologia na América Latina, liberta-se do

limbo das categorias acadêmicas e, de novo, encarna-se na vida e na luta de inúmeros crentes

e oprimidos que já não podem separar fé e vida, pastoral e política, salvação e libertação”.

Portanto, a CEB é formada por três ou mais grupos que se integram, articulados por um

mesmo objetivo. É uma comunidade44 de base e é eclesial pela comunhão que forma com seus

pastores em sintonia com a igreja.

Dessa forma, surgem ministérios leigos que, devido à demanda, foram se

multiplicando. Mulheres e homens passam a desenvolver diversos Ministérios como: da

Eucaristia, da Palavra, da Moradia, da Saúde, da Criança, do Menor, do Trabalho, sendo

outros como organizações para hortas comunitárias, clubes de mães, alfabetização de adultos

ou grupos de sustentação dos movimentos populares, mostrando claramente o compromisso -

profundamente ativo no campo social - das CEBs com os mais pobres.

Segundo Ribeiro (1988, p.169):

Quando o tema CEBs começou a ser abordado em Santa Catarina, um zeloso vigário comentava estar sua paróquia, sobretudo a matriz, organizada em CEBs, pois as “Capelinhas de Nossa Senhora”, nada mais eram do que estas comunidades, organizadas por zeladoras que afixam na capelinha uma lista indicando a data da visita a cada família, além de levar os comunicados paroquiais àquele grupo de 30 famílias aproximadamente.

Com o trabalho dos Grupos reunidos para refletir sobre tema específico, “o sal, o

fermento e a luz45”, vão atuando. Com um encontro geral dos ‘Grupos de Reflexão’ de uma

determinada comunidade, ações e respostas do grupo são colocadas em comum, favorecendo

o amadurecimento da fé, da consciência política, e o despertar para as causas públicas numa

ampla visão social, que se estabelece na crença religiosa e filosófica.

44 Comunidade, porque reúnem pessoas que têm a mesma fé, pertencem à mesma igreja e moram na mesma

região (BETTO, 1981, p. 17). 45 Concepções Bíblicas que indicam participação, crescimento do grupo e discernimento para comunidade.

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Um exemplo típico da ligação ‘fé e vida’ colhido nas reuniões de CEBs, presenciado

por esta pesquisadora quando da sua atuação como liderança, pode ser caracterizado pela

encenação do Nascimento de Jesus, em que a “Família Santa”, na manjedoura pobre, rodeada

de pastores e animaizinhos, é substituída por um presépio onde se vê a realidade das famílias

mais carentes, do desempregado, do doente, do menino de rua, chamando a atenção para as

desigualdades sociais existentes.

Assim, nas CEBs são utilizados termos como Justiça, Fraternidade, Solidariedade,

Compromisso e Caminhada, destacando a vontade de implantar o Reino de Deus no meio da

sociedade mais empobrecida. Acima de tudo, na questão pastoral, elas continuam tendo forte

vínculo com as lutas populares, com as ONGs, com os grupos de mulheres etc. qualificando

uma nova estrutura para a igreja, de forma ministerial e missionária.

2.2 O Catolicismo caboclo e as CEBs de Lages

Segundo o Plano de Diretrizes da Diocese de Lages, buscando um pouco sobre as

tradições religiosas dessa cidade, percebe-se as fortes raízes e influências deixadas pelo negro

e pelo caboclo. A evangelização sempre esteve presente, porém muitas vezes aparece como

experiências de violência com a população. Sobre a evangelização, destaca-se que o próprio

fundador da cidade de Lages, Antonio Correia Pinto de Macedo, no ano de 1766, trazia

consigo a devoção àquela que viria a ser padroeira, madrinha e protetora do povoado, Nossa

Senhora dos Prazeres.

O caboclo é o não-descendente de italianos, alemães ou poloneses etc. Ele é o ‘brasileiro’ como pejorativamente é qualificado. Descendente de europeu cruzado com bugres e alguns negros, e depois casando entre si, [...] é um quase-escravo branco hoje. Explorado nas lavouras, peão nas fazendas, bóia-fria nos cinturões verdes das cidades, desempregados nas periferias urbanas: é um enjeitado social (RIBEIRO, 1988, p. 91)

No ano de 1768, a cidade de Lages é elevada a Paróquia, sob o patrocínio da Santa

Padroeira Nossa Senhora dos Prazeres e confiada aos padres diocesanos, até o ano de 1891

quando a paróquia passou a ser atendida pelos padres Franciscanos que, mais tarde, foram

responsáveis pela organização da Diocese de Lages.

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Conforme o Plano de Diretrizes e Bases da Diocese de Lages, a Igreja, em Santa

Catarina, estava organizada em uma única diocese até o ano de 1926, tendo sua sede em

Florianópolis.

Por necessidades pastorais e devido à extensão geográfica, desmembraram-se, em

1927, a Diocese de Lages e a de Joinville. No processo de instalação da Diocese em Lages,

processou-se a romanização da igreja, configurada no Concílio Vaticano II (1875), ou seja,

um modelo de “Igreja Romana”, na qual a principal preocupação da ação pastoral era a

celebração de sacramentos, disciplina, catequese, procurando fortalecer os conteúdos e as

verdades da fé católica. Foi o tempo do Catecismo, uma igreja hierárquica, juridicista e

doutrinal.

A Diocese de Lages estendia-se desde o Planalto indo pelo centro até o oeste do

Estado de Santa Catarina (1920-1964). Funda-se o Seminário Diocesano, com o intuito de

formar padres, e, em 1959 desmembra-se a Diocese de Chapecó, em 1969, a de Caçador e em

1975, a Diocese de Joaçaba. Naquele período era intenso o serviço de religiosos e religiosas

em funções de saúde, educação, catequese, apostolado, obras sociais ou missionárias.

Uma igreja que durante a Primeira República, segundo Munarim, (1990, p.73-74):

Agia no sentido de ‘domesticar’ um povo anti-clerical, que lutava contra o catolicismo popular e que implantava a reforma tridentina, [...] já em 1929 tinha nomeado seu primeiro Bispo: Dom Daniel Hostin46, dando um novo impulso à romanização da Igreja na região e ao fortalecimento do catolicismo. Além de impor o centralismo administrativo e a defesa do clericalismo, suas opções político-partidárias e poder de persuadir, o aproxima das oligarquias politicamente dominantes, fazendo alianças.

Segundo o Plano de Diretrizes e Bases da Diocese de Lages, (2005-2009, p.11):

“Desde a fundação de Lages até os dias atuais, a história da evangelização da igreja presente

nesta Diocese foi marcada por diversas formas de ser, nos diversos contextos vividos pelo

povo serrano, sendo que no início, (1766-1920) apresentava-se como uma ‘Igreja Cabocla’47,

cuja religiosidade era oriunda das tradições religiosas indígena, africana e católica portuguesa.

Em relação a essa última são citadas como principais manifestações religiosas, naquele

tempo, a festa do Divino Espírito Santo, a de Nossa Senhora dos Prazeres, as de Santa Cruz,

do Senhor Bom Jesus e de Nossa Senhora do Rosário. A população cabocla traz em sua vida

46 O primeiro bispo que esteve à frente da diocese de Lages foi Dom Daniel Henrique Hostin (1927-1973),

seguido por Dom Honorato Piazera (1973-1987) e, em 1987, por Dom Oneres Marchiori, ainda até hoje (2007), à frente dos trabalhos diocesanos.

47 As expressões religiosas, cultos e crenças partiam da crença afro-luso-brasileira, ou ‘cabocla’, obedientes a uma cultura própria da região, bem como à resistência daqueles mais empobrecidos. De tempo em tempo o povo recebia a presença de padres, que vinham ao povoado para a realização dos sacramentos. (PDB Diocese de Lages).

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religiosa, como forte característica, muitas devoções. Nesta religião de poucos padres, eram

comuns diversos ministérios como parteiras, benzedeiras, puxadoras de rezas, festeiros,

curandeiros e curandeiras, penitentes, cantadores, cuidadores de capelas e de cemitérios. Em

Lages, a Igreja “Povo de Deus” contou, desde o início com o engajamento feminino. A

mulher foi presença marcante, ao lado do homem, nas construção dessa Igreja que lutava

contra as diversas formas de opressão, tendo papel de destaque nesses Ministérios. A

participação da mulher, voltada sempre para a obtenção de melhorias para a vida de sua

família e, para isso, executando as mais variadas atividades, dentro do lar, na roça, na beira do

rio. Em casa, naquela época, como ainda hoje, a mulher tinha sob sua responsabilidade as

mais variadas tarefas e, muitas vezes, enquanto as executavam encontravam tempo para

‘benzer’, fazer remédios caseiros, e realizar partos. “É mulher, dona de casa, / sem tempo pra

descansar, / Faz o almoço, faz a janta, / E, à noite, lá pras tantas, ela ainda sem deitar.”

Quando precisa auxiliar economicamente no sustento da família, não hesita em, além das

tarefas domésticas, trabalhar para outras pessoas: “Vai pra beira do riacho, / com a trouxa na

cabeça, / pra ganhar uma mixaria, / lava roupa todo dia, / se resfria e não se queixa.” Dentro

de casa, no riacho, na roça ou em qualquer outro lugar e trabalho, a mulher se apercebe de

que, para realmente melhorar sua vida, precisa engajar-se na luta comunitária : “É a mulher

que se organiza / E ao homem dá a mão, / Duas forças bem unidas, / Pra fechar esta ferida, /

e acabar com a opressão.”

Pode-se citar como fortes expressões de liderança política e espiritual nesta igreja

cabocla de Lages, no período de 1870 a 1916, João Maria de Agostinho, João Maria de Jesus

e José Maria48. Como orientadores de condutas e estilos de vida, foram líderes que mostravam

a realidade no contexto de um ambiente rústico, pobre, sem escola, nos quais os próprios

valores culturais são ensinados e perpetuados pela tradição oral. Foram monges profetas,

aglutinadores de homens e mulheres, como, por exemplo, Maria Rosa, fortalecendo o espírito

de cooperação e solidariedade em seus grupos, na Guerra do Contestado49 (1911-1916). Por

certo esses monges ainda habitam o imaginário individual e coletivo de muita gente do

Planalto Serrano. Lembrados até os dias de hoje, em devoção aos monges, em diversas

comunidades, grutas recebem grandes romarias, relembrando a fé e a forma religiosa.

48 Denominados pelo povo como Monges ou Profetas, foram de grande influência nesse jeito de igreja popular,

iam de casa em casa abençoando, curando, profetizando, plantando cruzes próximas às fontes de água, nas grutas e fazendo convites para que o povo rezasse e lutasse contra a fome, a peste e a guerra.

49 Movimento Messiânico, fenômeno religioso que moveu milhares de caboclos – diretamente envolvidos ultrapassou os 20 mil que se puseram em luta de vida ou morte liderados pelo Monge José Maria, numa “Guerra Santa”. O misticismo é que foi o espaço de unidade e de coesão militar interna dos caboclos em guerra. Ver mais em Derengoski (2000), Cabral (2000), Auras (1984), Thomé (2002), Valentini (1998).

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Também as ‘virgens’ do Contestado ainda são lembradas na região de Lages, durante reuniões

ou em Romarias, em versos cantados que exaltam os feitos de ‘Chica Pelega’ e de ‘Maria

Rosa’, relembrando a bravura da mulher serrana.

Em pesquisa realizada em documentos no Centro Diocesano de Pastoral,

acompanhada pelo Monsenhor Andréas Wiggers50, pôde-se constatar que a partir de 1980

surgiram, na diocese de Lages, diversos segmentos pastorais, entre eles, Pastoral da Saúde, da

Terra, da Criança, Operária, da Juventude.

Cresce o trabalho da Cáritas Diocesana, dos Centros Sociais, que conjuntamente

formam a Pastoral Social. Renovam-se as Liturgias e diversificam-se os ministérios leigos,

sendo que novos processos são estimulados pelo Instituto de Teologia Pastoral da Diocese de

Lages, incentivando o leigo como protagonista, no sentido de se criar uma igreja participativa,

ministerial, celebrativa, missionária, ecumênica e transformadora. Essas ações foram

favorecidas com o nascimento do Jornal ‘A Caminhada’ que, tendo como conteúdos a

realidade social, política, econômica, cultural e religiosa da Diocese de Lages, produz

subsídios para realização de catequese e Grupos de Famílias.

Os encontros dos Grupos de Famílias, nas comunidades de Lages, são realizados de

forma circular, a cada semana na residência de uma das famílias que compõem o grupo. Essas

reuniões têm como base, o Jornal ‘A Caminhada’ e os livrinhos das novenas, com letras de

canções em que se relacionam fé e vida. A leitura da “Palavra de Deus” e as leituras das

“Palavras da Vida”, trazem a realidade da comunidade local, e são sempre intercaladas por

canções populares, conduzidas ou não pelo toque de um instrumento musical, geralmente o

violão. O “Grupo de família CEBs” é uma ação evangelizadora em que as pessoas se

encontram para estudos, leituras, meditações e trocas de idéias. Fazendo a partilha, o Grupo

de Famílias dá sustentação às Comunidades Eclesiais de Base. Uma caminhada

evangelizadora, sempre com a intercessão da padroeira da Diocese, Nossa Senhora dos

Prazeres, Companheira de Caminhada.

50 Vigário Geral da Diocese de Lages, recebeu o título de Monsenhor, concedido pelo Papa João Paulo II, no

ano de 2003. Ordenado Padre aos 28 anos, desempenhou com fidelidade os cargos a ele confiados. Sempre presente na Comissão Pastoral da Terra, destacando-se na luta em favor dos agricultores, na defesa dos trabalhadores sem-terra e na conscientização em torno dos problemas das Barragens, além do trabalho ecumênico e do ensino religioso. Coordenador Diocesano de Pastoral, responsável pelos arquivos do Centro Diocesano de Pastoral.Recebeu na assembléia Legislativa de SC a medalha Dom José Gomes em 20 de Novembro de 2006. (Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina – sessão solene de Outorga).

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Em entrevista cedida a esta pesquisadora, Padre Henrique51 comenta como foi o

surgimento do jornal ‘A Caminhada’que veio para embasar os encontros dos grupos e da

catequese na Diocese de Lages: “naquele período de 77/78 ainda não se falava em CEB’s, em

Lages. A partir das capelinhas de Nossa Senhora, que passavam de casa em casa,

coordenadas por uma senhora que era a zeladora, lideranças da igreja tomaram a iniciativa

de criar a ‘Folha do Mês’, onde se expunha um tema para se pensar e se convidavam as

famílias para, durante o mês, debater sobre aquela realidade. As pessoas passaram a se

reunir nas residências, refletindo sobre o determinado tema”.

Passam a se firmar movimentos eclesiais52, que surgem na busca da espiritualidade

sustentadora da missão das famílias: a Legião de Maria, o Apostolado da Oração, Encontro de

Casais, Lareira, Grupos de Jovens, Equipes de Nossa Senhora.

Ainda na década de 80 emergem, na Região Serrana diversas Organizações e

Movimentos Populares, como: MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens)53, em 1984,

novo sindicalismo e implantação de novos sindicatos de trabalhadores rurais e urbanos em

1984), e MMA (Movimento das Mulheres Agricultoras) em 1985.

Abre-se espaço para a participação de líderes de diversos segmentos, não sendo mais

o espaço geográfico, ou o grupo que freqüenta, um determinante no relacionamento pessoal.

A igreja católica assume e apóia diversas reivindicações.

Conforme salienta Padre Andréas Wiggers: “uma das tônicas pós-Conciliares da

Evangelização é a preocupação com o ser humano por inteiro. A Igreja assume e apóia

diversas reivindicações de ordem econômica, social e política que se apresentam como

resultado, nas grandes cidades, dos conflitos sociais exacerbados. Surgem os agentes de

pastorais que absorvem-se destas tarefas em que predominam a inquietação e o

questionamento de que a Igreja esteja se afastando da sua função específica. A instituição

que antes era vista apenas como celebrativa, naquele momento revestia-se de força para

assumir um compromisso com ‘o mais pobre e pequeno’, com o oprimido”.

Relacionando CEBs com as lutas populares, a alfabetização de adultos, as

celebrações e as conquistas da população, conclui-se que elas têm por meta incentivar as

51 Padre na Catedral de Lages no período pesquisado, fundador da Escola de Teologia na cidade, atua hoje na

Paróquia Nossa Senhora das Graças à qual pertence o Bairro Habitação, formado no processo de mutirão no período da administração de Dirceu Carneiro.

52 Grupos de cristãos e cristãs que vivem no seguimento de Jesus, na comunhão com seus pastores e acreditando na Ressurreição de Jesus, que faz ‘acontecer a Igreja’, a prática das primeiras comunidades contidas na Bíblia.

53 Em Lages não houve construção de barragens, mas os lageanos engajados nos Movimentos Sociais, apoiavam os que, em outras regiões, eram atingidos por elas.

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camadas populares para que não desistam de seus sonhos, fortalecendo a esperança de

concretizá-los e promovendo a formação de consciência crítica num sentido mais amplo.

Com as CEBs desafia-se a comunidade que se organiza nas diversas frentes de

trabalho não só a buscar uma convivência pacífica nas diferentes estruturas, mas a procurar

uma articulação funcional e uma cooperação mútua e fecunda na busca de novas estruturas.

De acordo com Locks (2006)54, depois de meados da década de 80 ocorrem

mudanças sociais, políticas, econômicas e religiosas em âmbito nacional e internacional,

produzindo alterações no modo de ser das CEBs. É a partir do esgotamento do regime militar,

quando do processo de democratização da sociedade, que surgem outros atores sociais, então

chamados de Novos Movimentos Sociais, Organizações Não Governamentais (ONGs) e

conselhos gestores de políticas públicas e de controle social em todas as esferas do Estado.

Desta forma surge um conjunto de novas e diversas organizações sociais atuando ao lado das

CEBs.

Continuando a pesquisa em materiais do arquivo da diocese de Lages, em 1989 as

comunidades cristãs celebravam 60 anos de instalação desta Diocese, acontecimento este que

denominou-se ‘Ano Mariano’, com o lema: “Maria, Companheira de Caminhada”. Naquele

ano, se fez levantamento de dados e análise da realidade além de encaminhamentos do novo

Plano Diocesano de Pastoral. Foi um ano de peregrinação da imagem da Padroeira, Nossa

Senhora dos Prazeres por todas as comunidades paroquiais da Diocese. Nessa época, algumas

das canções em louvor à Maria, não deixavam esquecer da necessidade da luta em favor dos

oprimidos: “Intercessora Maria, / Perfeita harmonia, / Entre nós e o Pai. / Justiça dos

explorados, / Combate o pecado, / Torna os homens iguais”. Outros versos imploravam que

ela, Maria, fosse a intermediária entre os homens e a sonhada liberdade: “Ave, Maria dos

oprimidos, / abre a nós teu coração / bendito é o fruto do teu ventre / Que é semente de

libertação.”

Hoje a Diocese de Lages compreende 16 municípios do Planalto Serrano

Catarinense: Lages, Anita Garibaldi, Bocaina do Sul, Bom Retiro, Bom Jardim da Serra,

Campo Belo do Sul, Celso Ramos, Correia Pinto, Curitibanos, Otacílio Costa, Painel, Ponte

Alta, São Cristóvão do Sul, São Joaquim, São José do Cerrito e Urubici.

54 Projeto de Doutorado: “As Cebs não morreram: Grupos de Família na contemporaneidade em Lages/SC”,

2006, (mimeo).

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Fonte: LS Publicidade Lages (2007).

Figura 3 Mapa da Região Serrana do Estado de Santa Catarina

Nos anos 80 esta Diocese era composta por três Comarcas e 21 Paróquias além de ser

a maior do Estado em área geográfica. Naquele período, a população de 350.000 (Trezentos e

Cinqüenta mil) habitantes55 desta diocese apresentava características mais ou menos

semelhantes, isto porque a origem de todos estava ligada à história de Lages. À medida que as

localidades alcançaram a autonomia administrativa, foram se desmembrando de Lages.

Alguns ‘Movimentos Populares’ que deram abertura ao processo participativo das

Comunidades podem ser citados:

A partir dos movimentos dos atingidos pelas barragens, o trabalhador rural começou a sentir sua força. Manifestações surgem como a ‘Caminhada do dia 1º de Maio’ e a ‘Romaria do Trabalhador’. Reuniões são realizadas onde se discute o saber popular e as lutas imediatas do trabalhador, como ‘Constituinte’ e ‘Reforma Agrária’. O saber popular é valorizado nas ‘Mostras do Campo’. As associações de produtores rurais se organizam articuladas aos trabalhadores urbanos. A prática assistencialista das diretorias dos Sindicatos são questionadas. O sindicato de Curitibanos, combativo, é fortalecido pelos movimentos dos Sem Terra e as Mulheres Agricultoras também se unem e se organizam no seu sindicato. O trabalhador rural sabe que não deve plantar em tempo de queimada. Reforma Agrária é a nossa bandeira, sindicalismo é prioritário, mas nosso propósito é nos firmarmos na terra. (CEBs, Secretariado Diocesano de Pastoral, Projeto Vianei de Educação Popular, tecnologias Alternativas – Anos 80).

55 Arquivo Secretariado Diocesano de Pastoral, Plano de Diretrizes da Diocese de Lages, 2005.

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As CEBs constituíram-se em espaços de sociabilidade e de educação para um grande

número de moradores de áreas rurais e urbanas de Lages, sendo que, nos dias atuais, a maioria

daqueles que na década de 80 participavam ativamente destes grupos, estão ligados a

Sindicatos de trabalhadores, Rádios Comunitárias, Cooperativas, Associações, ou migraram

para partidos políticos, exercendo funções na esfera do Poder Executivo ou Legislativo em

alguns municípios da região (LOCKS, 2006, mimeo).

2.3 A Canção Popular como arte nos movimentos sociais – CEBs

A música sempre se apresenta na vida de todos os seres humanos como expressiva

manifestação cultural, e, dependendo do momento sócio-histórico em que é produzida, a

música é não apenas fonte de alegria e enlevo espiritual mas também, como retrato da

situação vivida no momento de sua produção, excelente meio de denúncias e/ou de incentivo

a determinadas ações, promovendo ou sendo fator de demarcação das posturas ideológicas, de

forma individual ou coletiva, nas mais diferentes atividades e nos mais diversos grupos

sociais, entre eles as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

Dentre as diversas formas de manifestações culturais, a canção popular, tem

inestimável valor como veículo de transmissão de conhecimentos, nas mais diversas áreas,

podendo, também, em algumas situações socioeconômicas ou em determinados períodos

históricos, ser transformadas em grito de protesto pelo desamparo e pelo descaso que, muitas

vezes, as classes menos favorecidas sofrem. O vigor que emana das letras das canções

populares parece expressar a luta dos grupos pela reconquista da sua identidade e

pertencimento a uma determinada sociedade. Com essa diretriz, manifesta-se de forma mais

intensa nos grupos mais diretamente envolvidos com a ideologia das lutas das comunidades

de base.

O atributo democrático da canção busca significar a criatividade comunitária, sendo

elemento participativo pelo qual o grupo se identifica e se caracteriza. É pela canção, ao

identificar-se com o conteúdo das letras, que os integrantes do grupo constroem o seu

convívio, tecem as suas expressões e participam da construção de uma nova realidade.

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Numa grande diversidade de modos e gêneros, a música faz parte do dia-a-dia da

população, principalmente a canção popular, também chamada de ‘arte do povo’56, em que se

caracteriza a expressão da comunidade, seus valores e culturas, moldados a partir das

necessidades coletivas e no modo de resolverem seus problemas.

A canção popular está presente na maioria das atividades humanas, de forma mais

relevante e próxima nas atividades daqueles que, tanto como criadores, quanto como

receptores, tiveram menor acesso à escolaridade. Além disso, a canção popular tem um forte

poder comunicador, difundindo-se rapidamente e atingindo, de uma ou de outra forma, todas

as classes sociais.

Se a canção popular pode constituir um verdadeiro acervo de informações para se

conhecer melhor os espaços ainda desconhecidos da história destas comunidades e de suas

crenças e valores, torna-se importante levar em consideração que esse gênero musical pode

descortinar certas realidades da cultura desta comunidade e ser encarada como uma rica fonte

de informações, ainda pouco valorizada pela historiografia.

A canção, vista apenas como arte, é voltada para o individual, onde quem cria é o

gênio, o realizador. Já a canção popular é direcionada ao coletivo, dialoga com outras áreas do

conhecimento, é expressão viva das comunidades, da sua cultura, contém suas alegrias,

angústias e esperanças.

Para Fischer (1987, p.13), “o homem anseia por unir na arte o seu ‘eu’ limitado com

uma existência humana coletiva e por tornar social a sua individualidade”.

A canção popular, especialmente a das CEBs, pode ser considerada uma arte

“engajada”, que se envolve não somente na questão da alfabetização, mas, como Arte

transformadora e libertadora, capaz de oferecer incentivo às mudanças qualitativas e às

reformas estruturais, além de ser anti-autoritária, anti-massificadora e anti-elitista, já que,

resultante do interesse mútuo das classes populares, une coerentemente a teoria com a prática.

Assim, a canção popular aparece não só como arte e cultura de um povo, mas como

instrumento de integração das camadas populares, por meio de mensagens que traduzem o

sentimento de uma classe em sua busca por mudanças significativas da realidade e na sua luta

pela igualdade e pela promoção da cidadania.

É desta forma que Fischer (1987, p. 20) acrescenta: “é verdade que a função

essencial da arte, para uma classe destinada a transformar o mundo não é a de fazer mágica,

mas de esclarecer e incitar à ação”. O mesmo autor diz (1987, p. 57-58): “A arte capacita o

56 A arte do povo era considerada prova de ter sido espontaneamente criada por uma misteriosa comunidade

não-individualizada e sem consciência (FISCHER, 1987).

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homem para compreender a realidade e o ajuda não só a suportá-la como a transformá-la. [...]

A arte precisa mostrar o mundo como possível de ser mudado e ajudar a mudá-lo”.

Com isso, a poesia, que antes encantava, agora vinha com uma qualidade nova: a de

impor-se como canção de protesto contra o autoritarismo e a desigualdade social. Conforme

Fischer (1987, p. 8):

à medida que a vida do homem se torna mais complexa e mecanizada, mais dividida em interesses de classes, menos interessada no espírito coletivo, a função da arte é refundir esse homem, torná-lo de novo são e incitá-lo à permanente escalada de si mesmo.

Quando utilizada como instrumento de construção e transformação social, uma vez

produzida em determinada comunidade e para as pessoas que nela moram, a canção popular

retrata essa sociedade reconstituindo, de forma musical, sua fala, sua ginga, seus anseios, toda

a sua vivência, mesmo que, por essa razão, muitas vezes seja censurada.

A canção popular cria a possibilidade de levar o indivíduo ao próprio encontro, ao

fortalecimento de sua identidade, ao conhecimento de sua história e de sua cidade, estado,

país. Nas CEBs, a canção popular, intencionalmente dirigida, muitas vezes apresenta letras de

conteúdo político e social, tornando-se instrumento de conscientização57 das classes

empobrecidas. Desta forma, o artista/compositor/cantor torna-se capaz de criar uma nova

realidade social no sentido coletivo, expressando em suas letras os anseios da comunidade.

Nas décadas de 60 e 70 do século XX, houve mudanças consideráveis no

comportamento da sociedade. Os Movimentos Eclesiais de Base foram fortes aliados nessa

tomada de consciência de valores que possibilitava maior reflexão sobre uma nova realidade

histórica. Segundo Brandão (1954, p. 6), “a canção popular é vista como expressão cultural,

podendo servir tanto para representar os anseios de liberdade, amor, solidariedade, como

também para reforçar a dominação ou formas de resistência a essa dominação”.

Assim, o engajamento político explícito na letra das canções, preocupa-se com um

novo dia, acreditando que as coisas podem melhorar. O poeta/compositor, inconformado com

o seu tempo, faz com que a música apareça com dupla função: encantar como poesia

sentimental e se impor, com o poder de convencer.

Conforme Aguiar (1996, p. 45), em cada momento histórico a música se fez presente,

reunindo cultura e política nos movimentos sociais, “mas como os versos não explicam o

57 Conscientização: Pensar as relações entre si e o significado próprio da existência humana e a circunstância

histórica que determina alguns aspectos mais importantes dessa existência (WANDERLEY, 1987).

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significado dos tempos, cabe-nos contextualizá-los conforme a época da composição”,

codificando e fazendo uma leitura do período a que se refere.

Todas as Artes são influenciadas pelas características do período histórico em que as

mesmas se manifestam, o qual, por sua vez, é também influenciado pelas Artes. Daí a

necessidade de vincular o estudo das mesmas à história econômica, política e social dentro do

respectivo contexto. A música popular brasileira não foge a essa regra havendo, portanto, no

seu estudo, necessidade de relacioná-la aos momentos históricos que influenciou e dos quais

resulta.

É o que salienta Vasconcellos (1977, p. 81):

no limiar dos anos 60, época em que os intelectuais do Brasil depositavam uma confiança inocente no poder da cultura em transformar a realidade, a canção popular foi concebida enquanto instrumento privilegiado de catalisação política de alguns setores da população.

De acordo com Bastide, (1979, p. 3), “a arte não é um simples jogo individual, sem

conseqüência; pelo contrário, agindo sobre a vida coletiva, pode transformar o destino das

sociedades”. Assim, a música é vista como um instrumento essencial e possível de ser

utilizado com eficácia nos diversos movimentos de diferentes áreas, preocupados com a

mudança social.

Ainda segundo Bastide (1057, p. 57):

[...] compreende-se que a palavra apareça como tendo um poder mágico considerável, pois que basta falar para que no mesmo instante se dê toda uma série de mecanismos motores: é a voz que cria. Chegaremos então forçosamente à idéia que a magia da palavra é primitivamente uma magia de música.

A música popular brasileira exerceu uma forte influência na linguagem e no

comportamento de amplos setores da juventude, sendo que, nas décadas de 60 e 70, a questão

política incorporou-se a ela de tal forma que esta, escancaradamente, mostrava-se como uma

canção de protesto. Um exemplo muito forte de como a canção expressa os dilemas de uma

geração, encontra-se na música “Pra não dizer que não falei das flores”, composta por

Geraldo Vandré em 1968, período da ditadura militar. É uma letra que denuncia a situação

dos oprimidos: “Pelos campos a fome em grandes plantações”, e a situação daqueles que,

embora fazendo “[...] da flor seu mais forte refrão” por acreditarem “[...] nas flores

vencendo o canhão” continuam “perdidos de armas nas mãos” pois “Nos quartéis lhes

ensinam antigas lições/ De morrer pela Pátria e viver sem razão.” A Diocese de Lages,

apropriou-se da letra desta Canção, copiando-a, na íntegra, na contracapa de seu livreto de

‘Cantos’ utilizado pelos diversos grupos de CEBs, em todas as paróquias locais, urbanas e/ou

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rurais. Este livreto (2ª Edição) traz na capa o título: “Caminhando e Cantando”, ou seja, as

duas palavras iniciais da canção de Vandré, as quais resumem o trabalho realizado pelas

CEBs de Lages que, enquanto cantam com alegria, procuram mostrar a seus integrantes que

ninguém deve se sentir inferior, sendo, às vezes, necessário lutar, mesmo sem armas, pela

igualdade entre todos: “Nas escolas, nas ruas, campos e construções/ Somos todos soldados,

armados ou não/ Caminhando e cantando e seguindo a canção/Somos todos iguais/ braços

dados ou não”. As últimas palavras da canção indicam que todos podem mudar a realidade

“Aprendendo e ensinando uma nova lição”.

No contexto histórico dos anos 60/70 a música popular procurava passar uma

mensagem de protesto, deixando em segundo plano a dimensão estética, que, anteriormente,

seria fundamental colocar-se acima de qualquer outro aspecto. Fischer (1987, p.58), lembra

que a Arte não se limita a apenas agradar seu público, “a arte precisa mostrar o mundo como

passível de ser mudado e ajudar a mudá-lo”. Este conceito é bastante difundido dentro das

CEBS, as quais procuram concretizá-lo por meio das letras de suas canções que incentivam os

integrantes desses movimentos a lutarem pelas mudanças necessárias. A respeito do

importante papel desempenhado pelas Comunidades Eclesiais de Base e de suas canções

pode-se lembrar que a música, como Arte, sempre fez parte das celebrações religiosas, nas

quais há cantos específicos para cada ocasião. A esse respeito, Bastide (1979, p. 11) relata:

As principais formas de arte parecem ter nascido da religião [...] O estado efervescente em que se encontram os fiéis reunidos se traduzem no exterior por movimentos exuberantes [...] desdobram-se, pelo simples prazer de se desdobrar numa espécie de jogo.

A partir desta constatação, percebe-se que no rito religioso também aparece o espaço

para a recreação, ou seja, para a Arte. Daí as cerimônias religiosas revestidas de ar festivo,

enquanto que algumas festas populares, mesmo leigas revestem-se de caráter religioso. Para

Canclini (1982, p. 52):

[...] esta arte para as massas, ou folclore, presente nas festas populares ou nas festas religiosas, sintetiza a totalidade da vida de cada comunidade. Mais diretamente as festas religiosas surgem como movimentos de unificação da comunidade que se reúne para celebrar os acontecimentos ou as crenças populares que vêm das experiências do dia-a-dia, com a natureza e com os outros homens ou que são impostas pela igreja ou também pelo poder cultural, estando assim vinculada a festa à vida em comunidade do povo. [...] por outro lado reafirma as diferenças sociais, beneficiando os que já possuem muito e promovendo a exploração sobre o povo. (CANCLINI, 1982, p. 52).

Assim, ainda de acordo com Canclini, as festas populares e/ou religiosas, que

sintetizam os diversos aspectos da vida comunitária em que se realizam, podem, sob um outro

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olhar, ser consideradas como denunciadoras da situação de desigualdade social, tornando-se,

por isso, capazes de evidenciar o distanciamento entre as camadas populares e as elites.

Dessa forma, em toda e qualquer manifestação de uma coletividade, diante da

presença da Arte, em especial, da música, considera-se importante a presença do artista que,

por meio de suas aptidões, coloca-se a serviço da comunidade onde vive, sendo um

representante na concretização de anseios coletivos, utilizando a Arte que realiza como

instrumento de transformação social. Bastide (1979, p.144) complementa:

[...] a arte pode se apresentar como oposição, como reação contra a sociedade, como crítica do Estado, da religião, que o artista surge freqüentemente como um refratário, um herético, um não conformista ou um desadaptado. Mas tal observação só tem valor para uma sociedade homogênea, uma comunidade sem diferenciação; então, seria realmente curioso que o artista não fosse o eco de seu ambiente, o cantor dos sentimentos coletivos.

Portanto, a arte pode ser uma oposição à vida social, ou até mesmo uma fuga ao real.

Também pode ser vista, especialmente no caso das CEBs e dependendo das circunstâncias,

como forma de oposição ou de apoio às instituições sociais, como família, escola e meios de

comunicação, criticando-as ou abatendo-as, mas podendo, da mesma forma, incentivá-las

quando o seu caminho é o da construção de um mundo melhor. Assim, Por meio de seu

criador, a Arte se compromete com a vida humana, sem distinção de cor, raça, religião. “Eu

te faço meu profeta/ Para arrancar e destruir / Sobre reinos e nações, / Pra plantar e

construir [...]” (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994)

2.4 A Canção Popular nas CEBs: o sentimento, as pulsações e o sonho de vencer de

homens e mulheres em ação.

Uma vez que a sociedade é bastante heterogênea, tendo diferentes práticas culturais,

que se submetem à divisão do trabalho, e diferentes grupos, hierarquias e classes, esta

sociedade se traduz por meio de diversas representações coletivas.

De acordo com Semeraro (2001, p. 236):

A sociedade civil, hoje, tornou-se mais complexa e diferenciada, mais volátil e contraditória. Possuímos maiores e melhores instrumentos de informação e expressão: ao mesmo tempo, porém, o poder da mídia, da produção simbólica e da manipulação do imaginário se expandiram de maneira incontrolável. Cresceu espaço para as diferenças, a pluralidade dos grupos e o reconhecimento das minorias, mas ficaram afetados o sentido do conjunto e as dimensões públicas.

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Essas diferenças refletiram-se, principalmente nas camadas populares que foram

vendo suas oportunidades diminuírem. Mesmo com o aumento do número de empresas, a

tecnologia fez com que o trabalhador necessitasse cada vez mais de qualificação, ao mesmo

tempo em que era, na maioria das vezes, substituído por máquinas.

Ainda de acordo com Semeraro (2001, p. 236):

Nas fábricas foi reduzido o número de trabalhadores, enquanto despontavam novos setores de produção, aumentou o desemprego, difundiram-se práticas de trabalho autônomo e informal. Os partidos se multiplicaram, surgiram movimentos e organizações nacionais e internacionais em defesa dos mais diferentes direitos humanos e da natureza. A sociedade, que parece se segmentar em incontáveis formas de vida localizada, vive o fenômeno da globalização, assim como paralelamente à exaltação da subjetividade e da singularidade, formam-se imensas massas de excluídos e de desenraizados. [...] Não é mais a pátria, [...] a ideologia, o progresso que movimentam as paixões e fazem apelo aos sentimentos populares. Existem interesses e preocupações bem diferentes que se relacionam mais com as questões da ecologia, da violência, da saturação das cidades, do desemprego, das migrações, dos poderes paralelos, da apatia política e do indiferentismo social.

Pelo que diz Semeraro (2001) a respeito dos escritos de Gramsci, pode-se concluir

que o homem tem condições de reinventar a sociedade, partindo de iniciativas livres e

responsáveis e, dessa forma, traçar os rumos da própria história. Dentro dessa concepção tem

início a organização de grupos que entendem a ação política não como função apenas de

pessoas que possuem um ‘cargo’ público, mas como um ‘ato criador e socializador de toda a

população’.

Surgem, assim, novas relações sociais de solidariedade que, por meio da animação

popular auxiliam no processo de promoção do ser humano pela própria ação do grupo, cujos

integrantes pensam, planejam e agem em comum, sabendo que é essencial partir da reflexão

para a ação “ Formamos a Igreja Viva / Que caminha para o reino do Senhor. / Vivendo em

comunidade / Nós faremos este mundo ser melhor. // Vamos juntos construir fraternidade /

Trabalhando pela Paz universal. / Ser sementes de uma nova sociedade / gente unida para

combater o mal.” (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).

Com o engajamento político explícito na temática da canção, o que confirmava o

poder revolucionário que a arte possui, defrontando-se com a força castradora da censura e da

repressão no período da ditadura militar, momento triste da história para o país onde as

liberdades democráticas estavam suspensas, várias canções foram proibidas e os

compositores, presos ou exilados. Nesse período, em alguns Movimentos Populares de Lages

já se cantavam muitas canções que clamavam por justiça e liberdade das camadas populares.

As letras eram criadas a partir da vivência dessas comunidades diante da opressão em que

viviam. Abre ,Senhor, os meus lábios / Pois quero entoar a canção, / Que vem da fonte da

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vida / e toma o meu coração. / [...] Quando a vida se torna / Deserto de dura aflição, / Que

nós possamos ouvir-te, / mostrando-nos a direção. //(CAMINHANDO E CANTANDO,

1994).

A canção de protesto aparece como agente de transformação histórica com seu tempo

verbal indicando sempre o futuro, “o que há de vir”. E com a presença castradora da censura e

da ameaça, são suspensas as liberdades democráticas no plano cultural com a expressa

proibição de canções e espetáculos, surgindo a necessidade de decodificar as letras dessas

canções conforme o contexto histórico da época em que são produzidas. “Vendo no mundo

tanta coisa errada / A gente pensa em desanimar. / Mas quem tem fé sabe que está com

Cristo/ Tem esperança e força pra lutar. // Não diga não que Deus é culpado / Quando na

vida o sofrimento vem. / Vamos lutar que o sofrimento passa / Pois Jesus Cristo já sofreu

também. / Libertação se alcança no trabalho. / Mas há dois modos de trabalhar: / Há quem

trabalha escravo do dinheiro / Há quem procura o mundo melhorar. // E pouco a pouco o

tempo vai passando... / A gente espera a libertação. / Se a gente luta ela vai chegando. / Se a

gente pára, ela não chega não!” (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994)

O engajamento político surgia explícito na letra da canção, a partir de uma exigência

exterior. Nessa época, de acordo com Vasconcellos, (1977), anteriormente citado,

ideologicamente, a música passa a realizar uma função revolucionária, tornando visíveis as

diferenças sociais e o autoritarismo e vindo a ser instrumento catalisador político de alguns

setores populacionais.

Com essa mesma intenção, a produção musical dentro das comunidades eclesiais de

base é feita pelo próprio grupo, por agentes de pastoral que se identificam com a questão do

movimento. Pode ocorrer que esta canção seja adaptada de outra situação e que, por responder

ao problema da comunidade, o grupo dela se aproprie, como no caso já citado neste capítulo,

da apropriação, pela Diocese de Lages, da canção de Vandré. Pode também ocorrer somente a

utilização do ritmo de outra canção com apenas a mudança da letra que reflita a realidade

local.

As letras de canções populares criadas pelos próprios participantes das CEBs, ou

adaptadas pelo grupo, com conteúdos que enfatizam as necessidades comuns e a realidade

vivida, induzem à resistência contra a violação da liberdade ou protestam contra tudo o que

oprime e desagrega o ser humano numa sociedade controlada pelo capitalismo. Surge, nessas

canções, um processo de busca pela construção da cidadania, uma forma coletiva de reflexão

e de ação sobre os processos de emancipação e seus desafios.

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Percebe-se nessas canções o reflexo do processo de mudança iniciado com o

Concílio Vaticano II e que resulta em atitudes de inconformismo e críticas, propiciando

diversas expressões pastorais. O contato com os outros, no trabalho profissional, no lazer, nas

atividades culturais e/ou sociais, abre maiores possibilidades de convivência. Paralelamente às

estruturas eclesiásticas tradicionais surgem instituições tais como as Comunidades Eclesiais

de Base, e outras, as quais buscam respostas às novas formas de convivência urbana,

É principalmente nessas comunidades que se almeja ver um modelo de sociedade

que, caracterizado pelo ideal de cooperação, solidariedade e companheirismo, seja capaz de

modificar uma sociedade marcada por desigualdades e exclusão social. A canção popular,

dentro dos movimentos, geralmente, é a forma encontrada pelos participantes para dizer o que

sentem, para denunciar o que está errado e para provocar uma formação de consciência a

partir da realidade do grupo, expressando o sentimento coletivo e abrindo possibilidades para

a ação transformadora. “Transforma, Senhor, pão e vinho: / São frutos do nosso labor; / A

nossa palavra em ação, / Transforma, transforma, Senhor. / Transforma, Senhor, nossa vida,

/ Em novos critérios de amor. / A nossa fraqueza em perdão. / Transforma, transforma,

Senhor. / Transforma, Senhor, a injustiça, / o ódio, a inveja, a dor. / A nossa pobreza, em

união, / Transforma, transforma, Senhor.” (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).

Assim, quando se produz e/ou se utiliza a canção dentro do movimento ela ocupa um

espaço significativo, produzindo novos saberes, fazendo acontecer aprendizagem desde as

relações do dia-a-dia até o processo de luta pelas conquistas. A canção aparece como um

instrumento pedagógico auxiliando na construção do conhecimento e no discernimento de

atitudes.

Quando o grupo presta atenção às letras das canções que são escolhidas para os

encontros, despertam-se sentimentos e emoções que não seriam percebidos a não ser através

delas. Esta canção permite compreender as transformações que ocorrem no movimento e

impulsiona seus participantes a fazerem parte deste processo como sujeitos que se organizam,

que aprendem e que se põem a serviço da comunidade.

A canção popular presente nas dificuldades e obstáculos enfrentados pelo grupo

também aparece nos momentos de vitória, caracterizando-se conforme o gosto predominante

na região. Em Lages, como citado anteriormente, na preferência da população, existe mistura

de gêneros musicais com destaque para o popular e o nativista. Dessa forma, a canção popular

aponta elementos de identidade dos envolvidos nos Movimentos Sociais e sugere uma

perspectiva de alteração da realidade a partir do momento em que, no sentido coletivo, se

forma uma nova consciência crítica.

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Nesse contexto, durante os períodos eleitorais, muitas vezes a canção popular se fez

presente e até ajudou a eleger alguns políticos. Em Lages, a campanha do candidato Fernando

“Coruja”, que o elegeu como prefeito, teve como “mote” de campanha uma “quadrinha”

ouvida dia e noite, cantada inclusive por crianças cujos pais eram adversários políticos, mas

que não conseguiam proibir os filhos de repetir a fácil e agradável canção popular. Apesar de

alguns dos candidatos haverem sido eleitos com o apoio de muitos integrantes de CEBs

muitas lideranças das ‘organizações populares’ - o trabalho de base, considerado como

‘responsável’ pela mobilização e formação permanente dos sujeitos como protagonistas do

processo de mudança social- lideranças essas com importante desempenho na formação da

consciência crítica individual e/ou coletiva, acabaram afastando-se da liderança das CEBs,

desiludidos em decorrência da falta de atendimento dos projetos sociais apresentados às

autoridades políticas competentes para torná-los realidade.

A partir dos problemas vividos pela comunidade da Diocese de Lages, quando frente

a desafios e exigências do clamor dos trabalhadores, os grupos se desenvolvem articulando

espiritualidade e ação no novo jeito de ‘ser Igreja’ (CEBs) e a formação dos trabalhadores

visa à construção de um projeto político onde todos possam ter vez e voz.

Nas diferentes necessidades que vão desde a luta pela terra, a busca pela reforma

agrária, a preservação do meio ambiente, o saneamento, a moradia digna e a qualidade de

vida, busca-se fortalecer a organização criando-se estratégias que venham contemplar a

conquista desses direitos. Por meio da canção popular, que serve de animação e divulgação de

valores dos próprios participantes do grupo, as classes populares passam a compreender-se

num constante processo de construção. Manifestando, pela música, sua própria história,

traduzida em versos, conseguem perceber que são sujeitos capazes de construir uma sociedade

mais justa, especialmente se estiverem unidos. A percepção de que todos são capazes de

alguma ação pode ser percebida nesta letra: “Pelas estradas da vida / Nunca sozinho estás[...]

/ Mesmo que digam os homens: / ‘Tu nada podes mudar’. / Luta por um mundo novo / De

unidade e paz. // Se pelo mundo os homens / sem conhecer-se vão, / não negues nunca a tua

mão / A quem te encontrar. // Se parecer tua vida / um inútil caminhar, / Pensa que abres

caminho / e outros te seguirão. //” (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).

É o caso de se dizer, com Fisher, que “a arte não só precisa derivar de uma intensa

experiência da realidade, como precisa ser construída, precisa tomar forma através da

objetividade” (FISCHER, 1987, p. 14).

Num processo histórico mais amplo pôde-se visualizar como a canção popular

contribuiu para que os integrantes das comunidades de base e a população, de modo geral,

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percebessem os vários momentos político-sociais e culturais vividos e que, por fazerem parte

desse processo, tinham o direito de modificá-lo para melhor e a isso eram incentivados, por

diversas formas, especialmente pelo chamado contido nas letras das canções.

2.5 Em ritmo de memória: a Canção Popular como parte integrante do Processo

Histórico Brasileiro

Sendo a canção um dos principais veículos de transmissão cultural em todas as

classes sociais, a canção popular parte das vivências e subjetividades, da realidade e do

simbolismo, faz parte do cotidiano do grupo que lhe serve de berço e que, ao mesmo tempo, a

torna conhecida. Nela são cantadas as condições de vida com seus sonhos, notícias,

reivindicações, refletindo um momento histórico. A canção popular difunde processos de

aprendizagem, imaginação, criação e é por meio dela que os grupos se definem, se organizam

e se identificam.

Para melhor compreensão da necessidade de os Movimentos Sociais realizarem

ações educativas por meio de diversas mobilizações e utilização de diferentes ferramentas, se

faz necessário revisar a história de dominação, desde o início da colonização brasileira na qual

se efetivam processos discriminatórios, seja por etnia, nível social, econômico, cultural e/ou

religioso. De acordo com Fleuri (1998, p.45), como todos sabem,

O Brasil é um ‘país-continente’ [...] que se estende entre a longa costa atlântica e a imensa floresta amazônica, com regiões muito férteis e grandes reservas minerais e ecológicas. Uma terra que, justamente pelas suas vastas riquezas, atraiu durante os últimos cinco séculos conquistadores ávidos e enriquecimento rápido [...] extraindo ouro e pedras preciosas, ou implantando monoculturas de cana de açúcar e depois de café. [...] Esta produção foi desenvolvida durante durante quatro séculos graças aos latifúndios e ao trabalho escravo. Num primeiro momento, os colonizadores tentaram, submeter índios à escravidão [...] Mas os índios não se deixaram escravizar e foram sendo pouco a pouco exterminados. [...] Em seu lugar foram trazidos à força, como escravos, grupos de diferentes etnias de origem africana. [...] a partir da segunda metade do século XIX, foi incentivada a maciça imigração de europeus, árabes, japoneses, chineses e outros, que se dirigiram principalmente ao sul do país, contribuindo para promover a industrialização e o desenvolvimento agrícola da região, com tudo o que este fenômeno significa de enriquecimento e, ao mesmo tempo, de novos conflitos e desafios.

Pode-se, então, dizer que o Brasil é um país com uma tradição autoritária e

excludente. A colônia portuguesa excluiu os indígenas, que foram escravizados. Escravizou

os negros que, assim, também foram excluídos. E os próprios brancos dominadores excluíram

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seus irmãos de raça que se encontravam em situação social menos favorecida: uma forma

disfarçada de escravidão.

A cultura de índios, negros ou brancos imigrantes, incorporada à cultura local,

mantém-se viva e expressa-se nas letras das canções populares, contando seus sonhos,

cantando suas lidas, clamando por justiça, igualdade e dignidade. São canções ouvidas nas

festas populares, nas manifestações políticas, nos grupos liderados pela Igreja. São canções

que preservam as tradições culturais e veiculam valores para a formação de uma sociedade

melhor e, dependendo do momento sócio-histórico vivido, denunciam situações opressoras.

Refletindo-se a respeito da canção popular percebe-se que muitas vezes, esta é

inferiorizada em relação à erudita. Talvez porque, no sentido que lhe é comumente atribuído,

“popular” está relacionado ao que é feito ou que é aprovado pelas pessoas simples, sem muita

instrução. Chauí (1994, p.124) considera existir “ambigüidade ao se tratar de popular, ‘tecido

de ignorância e de saber, de atraso e de desejo de emancipação, capaz de conformismo ao

resistir, capaz de resistência ao se conformar.”

De acordo com Chauí, (1989, p.43),

considerar a cultura como sendo do povo, permitiria assinalar mais claramente que ela não está simplesmente no povo, mas que é produzida por ele, enquanto a noção de ‘popular’ é totalmente ambígua para levar à suposição de que representações, normas e práticas porque são encontradas nas classes dominadas são, ipso, facto, do povo. Em suma, não é porque algo está no povo que é do povo

Assim, “popular” pode significar tudo que está relacionado às pessoas que habitam

em um país, especialmente aos cidadãos qualificados para participar de uma eleição,

(exemplo: voto popular, eleição popular). Entre os votantes e os candidatos, com certeza,

além das pessoas com escolaridade mínima, encontram-se os mais ilustres membros da

sociedade, com os mais altos graus de escolaridade.

Observada sob esse prisma, torna-se mais fácil entender a canção popular como

veículo de expressão de sentimentos, aspirações e afetos, transformando-se em documento de

vida de uma comunidade. Assim compreendida, mais do que qualquer outra manifestação do

temperamento, da cultura ou das capacidades criadoras de uma determinada comunidade, a

canção popular é um dos elementos que define a realidade psicológica e social dessa

comunidade, além de, como outras formas de Arte, ser retrato poético-musical, talvez o

melhor, da situação política, econômica e cultural do momento em que é criada. Portanto,

naturalmente, sua maior expressividade se dá na representação dos hábitos mais comuns às

pessoas da comunidade em que surge ou na descrição, em linguagem poética, dos sentimentos

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e desejos dessa comunidade, em relação aos seus costumes e ao momento sócio-histórico da

criação desse gênero de canção.

Concorda-se com Sakai (2004)58, quando diz que em qualquer circunstância da vida

pode-se cantar, pois as canções são companheiras que podem sempre estar ao lado das

pessoas, interferindo no seu comportamento, de forma consciente ou não, enquanto a memória

grava as experiências da relação entre a vida e a canção, influenciando o próprio ritmo

evolutivo de cada um.

Para corroborar essa assertiva, novamente concorda-se com Sakai (2004) convidando

a relembrar que a canção está presente não apenas desde a infância, mas até mesmo antes

dela, desde o período embrionário quando o feto já está exposto ao ritmo cadenciado dos

batimentos cardíacos dele próprio e de sua mãe. Logo ao nascer, e até mesmo antes de seu

nascimento, a criança, além dos outros sons, ouve canções de ninar, as quais começa a repetir

logo que aprende a falar, passando, depois, para as primeiras cantigas de roda e, em seguida,

sucessivamente, por vários ritmos e letras. Depois de adultas, as pessoas têm outras

necessidades musicais relacionadas não só à recreação e ao prazer, mas utilizando as letras

das canções como suporte psicológico e, algumas vezes, como instrumento de denúncia de

atos repressivos ou de reivindicação de seus direitos. O modo como uma pessoa canta, ouve

ou escolhe uma canção é uma manifestação singular da sua identidade como ser humano.

2.6 A Canção Popular como marco das CEBs de Lages

A riqueza e a versatilidade da canção popular está presente também nos movimentos

religiosos, tanto nos católicos apostólicos romanos como nos de outras denominações, pois

música é linguagem universal.

A Canção Popular dentro das Comunidades Eclesiais de Base da cidade de Lages,

pode ser vista como herança histórica de luta política, como identificação coletiva na qual se

manifestam sentimentos semelhantes, refletindo a mesma ideologia em uma cultura em que as

pessoas comungam do mesmo ideal.

Em Lages, a canção popular que fala dos preconceitos e das resistências, da

fatalidade da vida, do trabalho árduo e mal remunerado das classes mais empobrecidas,

manifesta-se, principalmente, dentro dos movimentos sociais conhecidos como Comunidades

58 SAKAI, F.A. Cantando as histórias que corporificamos. 2004.

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Eclesiais de Base (CEBs). As canções criadas dentro desses movimentos refletem o

imaginário das pessoas que deles participam, e que procuram, por meio das letras dessas

canções, contribuir no processo de mudança em um período político repressivo.

Considerando a pluralidade lingüística musical e levando-se em conta o sincretismo

cultural que marcou a colonização brasileira e, dentro dela, a serrana, poder-se-ia questionar

quais são as características brasileiras a que se pode relacionar a canção popular em Lages.

As três principais vertentes culturais formadoras da cultura brasileira – africana,

indígena e européia também estão presentes na região de Lages. Essas três culturas, aliadas à

influência de outras também presentes na região, podem ser percebidas, de modo geral, em

muitos aspectos da vida cotidiana e também em algumas manifestações como nas brincadeiras

e canções infantis, nas festas e danças populares, na gastronomia, nos fatores sócio-culturais e

religiosos, determinantes nos costumes da sociedade lageana, nas suas lendas, crendices e

mitos, seus hábitos, valores humanos e morais, suas diversões e Arte.

Durante a administração de Dirceu Carneiro e de sua fiel e atuante Equipe, no

período de 1976 a 1982 - uma administração eminentemente participativa - aconteciam

reuniões que ensejavam o entrosamento entre pais e filhos, professores e alunos, lideranças

políticas e religiosas, resultando na integração com a comunidade em geral. Estas reuniões

eram denominadas ‘Mostra do Campo’59. Realizavam-se como uma festa popular,

valorizando o saber popular das comunidades e reunindo os mais variados segmentos da

população, propiciando-lhes a venda de produtos de origem agrícola ou pecuária e de

artesanato.

Nessas ‘Mostras de Campo’ a música e a canção popular estavam sempre presentes.

Nelas se ouvia a voz dos cantores acompanhada pelo som das gaitas e dos violões. Algumas

das canções ouvidas nessas ‘Mostras’ utilizavam letras de reivindicação e de formação de

consciência, uma vez que tanto alguns dos cantores e compositores quanto muitos outros

participantes dessas ‘Mostras’, entre eles pais, professores e lideranças diversas, eram

integrantes das CEBs.

A letra de uma dessas canções, de origem portuguesa e da qual as CEBs se

apropriaram, dizia: “Uma gaivota voava, voava/ Asas de vento, coração de mar/ Como ela

somos livres/ Somos livres pra voar/. // [...] Uma criança dizia, dizia / ‘Quando for grande /

59 Mostra do Campo, uma espécie de grande feira-festa que se realizava uma vez por ano em cada um dos

distritos do município. É a ampliação de um trabalho desenvolvido a partir das escolas rurais. A participação da comunidade foi intensa valorizando as pequenas coisas. Uma manifestação cultural da comunidade: artes, músicas e danças etc... Nos dias de hoje a mostra continua acontecendo somente em Bocaina do Sul. A

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Não vou combater.’ / Como ela, somos livres, / Somos livres pra dizer. // Somos um povo que

cerra fileiras, / Parte em conquista do pão e da paz. / Somos livres, somos livres. / Não

voltaremos atrás.” Essa canção procurava mostrar que todos aqueles que possuem,

metaforicamente, ‘coração grande e aberto’, têm liberdade para ‘voar’ em busca dos seus

ideais.

2.7 A Influência das Canções das CEBs no contexto sócio-político-cultural

Além dos usos e costumes de cada época e da experiência histórica e política dos

atores protagonistas, a maior ou menor abertura dos governantes ao diálogo e à negociação,

definem as mobilizações e as diferentes formas de participação popular, nos vários

movimentos sociais, na busca por suas reivindicações.

Quando, nos anos 70 e 80 do século XX, os artistas, preocupados com as questões

sociais e com as classes empobrecidas passam a ver o ‘público’ como fonte e razão de sua

música, fazendo desta um instrumento engajado e comprometido com as classes populares por

meio de um conteúdo político e revolucionário, Lages também demonstrava, por meio de seus

Movimentos Populares, a forte presença da canção como catalisadora dos problemas sociais.

Em Lages, a presença da diversidade musical tinha, nos diferentes ritmos , letras de conteúdo

participante, nos quais eram mostrados as lutas, os costumes, as lidas, as tradições, dores e

amores do lageano.

A partir dos problemas vividos pelos moradores da Diocese de Lages, quando frente

aos desafios e exigências do clamor dos trabalhadores, vários grupos se desenvolvem,

articulando espiritualidade e ação no ‘novo jeito de ser Igreja’ (CEBs) e a formação dos

trabalhadores visa à construção de um projeto político onde todos possam ter vez e voz.

Nas diferentes necessidades que vão desde a luta pela terra, a busca pela reforma

agrária e a preservação do meio ambiente, até a reivindicação dos mais diferentes direitos da

cidadania, busca-se fortalecer a organização criando-se estratégias que venham contemplar a

conquista desses direitos. Uma das estratégias utilizadas pelos grupos é a canção popular, que

serve de animação e divulgação de valores dos próprios participantes do grupo. As classes

populares passam a compreender-se num constante processo de construção vendo-se como

“Mostra do Campo” teve sucesso instantâneo. É que correspondia, mais uma vez, à experiência histórica da população (ALVES, 1988, p. 106).

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sujeitos excluídos. No entanto, manifestando, pela música, sua própria história, traduzida em

versos, conseguem perceber que, apesar de excluídos, são, também, sujeitos que podem

mudar ou construir uma nova realidade.

É o caso de se dizer, com Fisher (1987, p.14), que “a arte não só precisa derivar de

uma intensa experiência da realidade, como precisa ser construída, precisa tomar forma

através da objetividade”.

Ampliando-se o círculo de visão histórica, pode-se perceber como a canção popular

contribuiu nos processos político-sociais e culturais das comunidades, auxiliando seus

integrantes no aprendizado e na tomada de consciência diante das injustiças, assumindo

sempre o compromisso com a vida dos que se encontram à margem da sociedade.

Partindo dessa realidade, incentivados por um discurso religioso e/ou político, os

Movimentos Populares de Lages começam a criar suas letras de canções, ampliando o

repertório que animaria os encontros e serviria para reflexões com o grupo, para as

celebrações, mas principalmente para a formação de consciência crítica e comprometimento

com as mudanças que beneficiariam a maioria da população.

A canção nos movimentos de Lages esteve sempre ligada ao curso normal da

história. Compartilhando das necessidades, angústias e vitórias, as diferentes letras e ritmos

eram uma forma alternativa de a população reivindicar melhorias e proclamar conquistas. As

canções nesses grupos deixam de ser apenas símbolos escritos e passam a dar voz àqueles que

as compõem, ou que delas se apropriam, e a aqueles que as assimilam enquanto as cantam,

caracterizando-as como uma forma de resgatar a identidade comunitária. Com respeito à

apropriação de ritmos e letras canções, Piana (2001, p. 73) diz:

É importante destacar que, das muitas composições, ainda que se saiba quem são os seus autores, os seus nomes nem sempre são colocados nas folhas de cantos e/ou em pequenas coletâneas que são utilizadas [...] em celebrações diversas. É dado um destaque no título do folheto [...] mas poucas são as letras que trazem o nome do seu compositor. Parece que o “eu” individual deve ser absorvido pelo coletivo. Porém, quando é uma paródia, geralmente aparece, no início ou no final da letra, qual é o ritmo em que deve ser cantada, indicando, nesse sentido, o nome da música conhecida.

Nas CEBs de Lages, era cantada uma paródia da música “Pinga ‘ni’mim”, de autoria

do cantor Sérgio Reis, cuja letra foi adaptada para despertar a consciência política em relação

ao repasse das verbas governamentais para os Serviços de Saúde “/Se a Saúde está precária/

Veja por quê:/ Chegam as verbas/ Mas ninguém vê.”

A exemplo do que se via em nível de Brasil, quando jovens, artistas e intelectuais

assumiam a causa dos empobrecidos nas letras de suas canções, os grupos populares de Lages

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também viam despertar a sensibilidade às causas sociais. Percebiam que tanto denúncias

quanto respostas e/ou incentivos poderiam ser transportados para as letras das canções das

quais se apropriavam, ou que transformavam em paródias nos ritmos já conhecidos ou ainda,

que se criavam coletivamente, e que eram vivificadas na poesia cantada por todos aqueles que

estavam na luta por uma nova realidade. A oralidade presente nessas canções, além de

facilitar a assimilação dos conteúdos pelos participantes, refletia o momento histórico em que

viviam as comunidades.

Sendo a canção popular um instrumento que reflete o imaginário de seus

participantes, ao mencionar as situações de desigualdades e injustiças sociais, partindo-se do

‘ver, julgar e agir’, unem-se a reflexão, a celebração e a luta em favor daqueles que estão à

margem da sociedade. Assim, com fé e política interligadas, as possibilidades de combater

essas injustiças e exploração se ampliam, uma vez que, com as letras dessas canções, as

classes populares têm um maior esclarecimento da realidade, acessam mais facilmente uma

outra ‘leitura do mundo’ em que vivem, tornando-se protagonistas do processo.

2.8 Descrevendo a contribuição sócio-educativa da Canção Popular nas CEBs de Lages

Em Lages, as CEBs, com alguns setores da Igreja Católica, ganham força e passam a

constituir-se espaços de defesa dos direitos humanos, incentivando a população na busca de

melhores condições de vida. Nas décadas de 70/80, diversos movimentos populares se

organizaram, gerando novas mentalidades e novas práticas sociais, fundamentais para a

formação dos indivíduos enquanto cidadãos, utilizando a fé como instrumento de

conscientização e renovação política.

Se, no passado, houve movimentos de resistências indígenas e negras, como a

Confederação dos Tamoios e os Quilombos, nos anos 70 e 80, os Sindicatos, os grupos

alternativos e a própria Igreja articularam-se na luta pelos direitos coletivos, reivindicados

especialmente pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Para a conscientização da

realidade, essas Comunidades utilizavam diferentes ‘ferramentas’. Por sua identificação com

as classes populares, pela possibilidade de utilização do linguajar dessas classes, pela

facilidade de assimilação do conteúdo em decorrência do aprendizado proporcionado pelo

ouvir e repetir a letra, pelo ritmo, muitas vezes já conhecido e contagiante, entre essas

ferramentas destaca-se a “canção popular”.

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Os Movimentos das CEBs buscam vincular as canções às determinações da história

das comunidades nas quais atuam. Nas comunidades de Lages isso acontece quando os

participantes dos diferentes grupos mais diretamente ligados à animação, procuram situar-se

nas manifestações do meio e trazem as canções que mais se identificam com os

acontecimentos daquela sociedade. Letras que abordam questões polêmicas, fazendo críticas

às ações políticas dos governantes que priorizam os ‘grandes’ e aumentam as desigualdades

sociais, são subsídios para a tomada de consciência daqueles que têm acesso a elas.

Influenciando-se pela canção, as comunidades buscam favorecer mudanças que melhorem a

vida das pessoas que nela vivem e promovem a formação da criticidade e da tomada de

decisão em alterar a realidade, tornando-se pertencentes a esta.

Cada Movimento Popular direciona suas atividades a determinado objetivo,

reunindo, principalmente, as pessoas que se preocupam com uma mesma situação, Assim, por

exemplo, o Movimento dos Sem Terra (MST) reúne aqueles que lutam pela posse de um

pedaço de chão que possam chamar de seu e onde possam plantar, colher e sustentar suas

famílias. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) é, como o próprio nome indica,

um grupo marcado pela resistência daqueles que têm suas terras ameaçadas pela inundação

das barragens. Luta pela preservação do meio ambiente e pela elaboração de políticas

democráticas que atendam os anseios daquelas comunidades que perdem suas propriedades

em função de projetos voltados à geração de energia, especialmente para as grandes indústrias

e para servir de apoio à crescente economia nacional.

Como em Lages não houve lutas de grupos por posse de terras, nem, tampouco,

construção de barragens, esses dois grupos não chegaram a se instalar na região. Eles, porém,

contaram com o apoio e a solidariedade dos demais participantes das CEBs de Lages e do

Brasil. Além desse apoio, não se pode esquecer que todos os grupos ligados às Comunidades

Eclesiais de Base, têm encontro marcado na “Romaria da Terra” na qual se reúnem para

celebrar a vida, orar, comungar das mesmas idéias e reivindicar direitos comuns a todos,

sempre por meio das muitas canções compostas, ouvidas e/ou cantadas nesses encontros.

Entre os grupos populares instalados em Lages pode-se citar a Comissão Pastoral da Terra

(CPT), o Movimento de Mulheres Agricultoras (MMA), as Pastorais da Juventude (PJ) e a

Pastoral Operária(PO), juntamente com o Centro Vianei de Educação Popular e o Núcleo

Alternativo de Educação Popular (NAEP). Esses grupos, vindos de uma teologia libertadora60,

serviam de inspiração para seus participantes escreverem letras de canções que refletiam a

60 Teologia: TEO=Deus, LOGIA=Conhecimento. Fazer teologia é usar a cabeça para entender melhor as coisas

de Deus (Caderno de Educação Popular, FREI BETTO, 1968, p. 3-4).

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realidade concreta do grupo e da comunidade na qual estavam inseridos pois toda canção é

influenciada pelos hábitos, costumes e crenças e está sempre ligada à realidade em que se

constrói, não podendo existir isolada dela.

Os grupos são formados por pessoas que residem no centro ou nos bairros da cidade,

pertencem às mais diversas idades e classes sociais, executam variadas atividades, são

profissionais liberais, patrões, empregados, comerciários, educadores, trabalhadores rurais,

que, motivados pela busca de uma nova sociedade, com mais igualdade, participam como

lideranças de Comunidades Eclesiais de Base.

Reportando-se às especificidades de cada um desses movimentos de base, em Lages,

no período pesquisado, pode-se enfocar as características predominantes de cada frente de

trabalho que se aglutina em benefício coletivo. Os movimentos e seus integrantes são vistos

como sujeitos da história, formadores de opiniões que aprendem a ter confiança na força do

grupo e acreditam que, como conhecedores de seus direitos, podem e devem reivindicá-los.

Dentro desses movimentos, a Comissão Pastoral da Terra61 presta um serviço de

defesa aos anseios dos trabalhadores rurais, sendo presença solidária, fraterna e afetiva,

estimulando estes trabalhadores a se tornarem protagonistas conscientes num contexto de

lutas do meio rural.

A CPT assessora não só os trabalhadores rurais, mas também entidades diversas,

auxiliando-os nos aspectos teológicos, metodológicos, políticos, sindicais e sociológicos,

respeitando a experiência daqueles que trabalham com a terra, a sua religiosidade e cultura,

incentivando-os a construir a própria história.

Por meio de reuniões que reforçavam o fortalecimento dessa classe de trabalhadores,

destaca-se um evento, já mencionado, muito importante - a Romaria da Terra - que une, além

dos integrantes da CPT, lideranças de outras organizações de CEBs da região. Uma canção

que pode ser mostrada como símbolo da CPT é “O Bendito dos Romeiros”, em que os

trabalhadores rurais sentem-se confiantes durante a Romaria, pois confiam que estão sendo

guiados por Cristo: Bendita e louvada seja / Esta Santa Romaria / Bendito o povo que marcha

/ Tendo Cristo como Guia.

Nessa mesma canção eles se comparam a Moisés na luta contra a opressão, “[...]

Para a ‘Terra Prometida’/ O povo de Deus marchou / Moisés andava na frente / Hoje Moisés

é a gente / Quando enfrenta a Opressão.”

61 O grupo de CPT teve início em Lages quando da reunião de lideranças do Centro de Educação Popular

Vianei com um de seus jovens agricultores que estavam em luta pela preservação de suas terras, ameaçadas de desapropriação.

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Lembram ainda que apenas a união entres os companheiros é capaz de levá-los à

vitória. “[...] A quem é fraco, Deus dá a força / Quem tem medo sofre mais / Quem se une ao

companheiro / Vence todo cativeiro / É feliz e tem a paz. [...] Mãos ao alto, voz unida, nosso

canto se ouvirá / Nos caminhos do sertão / Clamando por terra e pão / Ninguém mais nos

calará.”

Semelhante a esta frente de trabalho encontra-se o Movimento das Mulheres

Agricultoras que lutam pela igualdade de direitos na vida camponesa. Na perspectiva de

somar forças essas mulheres unem-se às demais organizações ligadas à terra com o objetivo

de alcançar sua identidade e pertencimento social, buscando passar de uma realidade de

submissão na vida doméstica e na sociedade, para um exercício mais pleno de sua cidadania.

Na letra da canção “Baião das Comunidades” a mulher é convidada a fazer parte da

celebração e da luta na conquista de seus direitos: “Vou convidar Oneide, Rosa, Ana Maria, a

mulher que noite e dia, luta e faz nascer o amor”. Esta canção ressalta que para se alcançar a

vitória, é importante que haja união e perseverança nas lutas, celebrando e participando com

alegria acreditando e cantando forte para não desanimar na caminhada: “E reunidos no altar

da liberdade, vamos cantar de verdade, vamos pisar sobre a dor, ê, ê.” O refrão desta canção

reforça que somos comunidade, povo de Deus que constrói uma nova sociedade: “somos

gente nova vivendo a união, somos povo semente de nova nação, ê, ê. Somos gente nova

vivendo o amor, somos comunidade, povo do Senhor, ê, ê.”

No período histórico abrangido por esta pesquisa pôde-se perceber, em Lages, os

Movimentos de Juventude numa posição de destaque. Diversos Grupos de Jovens nas décadas

de 70 e 80, nas comunidades dessa cidade, exerciam um posicionamento social relevante

frente às diferentes situações surgidas na sociedade. De forma organizada, solidária e

reivindicativa, eram vistos como protagonistas, principalmente das lutas pela educação,

moradia, saneamento, entre outras. Os jovens de Lages participavam de vários trabalhos

dentro da Diocese, como Equipes de Liturgia, preparando leituras e “cantos’ para as

celebrações, atuavam como catequistas de crianças e organizavam diversos movimentos,

podendo-se citar, daquele período, o Movimento de Jornada, que era uma ‘parada’ de um final

de semana no Centro de Formação Diocesana. Durante esse encontro, os jovens refletiam

sobre suas diversas atitudes, principalmente as relacionada à família e aos hábitos

comportamentais, assumindo um compromisso de mudança, quando necessário.

Nessa época, como possível reflexo das orientações recebidas dentro das CEBs, os

jovens tinham participação mais atuante no que se relacionava aos problemas comunitários,

envolvendo-se diretamente em várias campanhas direcionadas à ajuda ao próximo,

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mostrando-se bastante solidários em casos de calamidade pública, ocasiões essas em que eles

próprios organizavam-se em grupos, arrecadando o que faltava às famílias atingidas. Várias

canções ganharam visibilidade nos encontros da juventude de Lages, sendo possível destacar

uma letra bastante entoada nos diversos momentos de reuniões, assembléias e mobilizações:

“Deixa-me ser Jovem / Não me impeça de lutar / Pois a vida me convida / A uma missão

realizar.” Cantando forte este refrão, os jovens colocavam-se em oposição ao mundo adulto,

querendo demonstrar que o jovem deve perseguir seus sonhos até que estes se tornem

realidade. “Deixa-me ser Jovem / Ser livre pra sonhar / Não reprima, não reprove / O meu

jeito de amar.” Os jovens, tanto no seu próprio grupo, como também fazendo parte de

Associações de moradores e em outros grupos de CEBs, produzem sua história e a de sua

comunidade: “Fazer também a história / E não ser ignorado / Preservar os meus valores / E

não ser massificado.” O jovem justifica suas atitudes atribuindo-as à sua vontade de lutar

contra a exploração dos menos favorecidos: “Não me sinto revoltado / Mas quero me explicar

/ De tanto ser explorado / Eu me pus a protestar.”

A Pastoral Operária surgiu como um serviço organizado da classe trabalhadora, na

conquista de seus direitos. Ao contrário da CPT, a pastoral operária é eminentemente urbana,

vinculando os operários à igreja na procura de respostas aos desafios gerados nos grandes

centros industriais. Berço de centrais sindicais, serviu também como instrumento nas greves,

ponto forte nos anos 80. Em Lages, nessa época, fortaleceu a candidatura, pelo Partido dos

Trabalhadores (PT), de um integrante dessa pastoral. Durante a campanha política, a canção

popular criada tanto por este grupo quanto por integrantes de outros grupos de CEBs foi a

principal ferramenta de campanha, contribuindo para a eleição deste candidato ao cargo de

vereador. “Apresento um candidato/ da nossa comunidade/ . Sua luta e sua vida/ conhecemos

de verdade/Agora é a nossa vez/ com Sauro Tadeu dos Reis/.” Sauro foi eleito e, embora,

como oposição, não tenha tido a maior parte de seus projetos atendidos, teve, pelo menos, a

oportunidade de apresentar na Câmara, as reivindicações do Bairro que o elegeu.

Dessa forma, a canção popular e as CEBs, juntas, desempenharam, e continuam

desempenhando, importante papel no despertar da conscientização dos integrantes das

comunidades em geral e no incentivo à luta pelos direitos sociais, pela cidadania, pela

liberdade e pela justiça.

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3 O PAPEL SÓCIO-POLÍTICO-PEDAGÓGICO DA CANÇÃO POPULAR NAS CEBS

DE LAGES

Amadurece a cada instante uma esperança De um mundo novo povoado de irmãos Se você pode acreditar, comece agora Não tenha medo de ser livre até o fim

[...] Não haverá mais compradores de justiça, E a liberdade não será mais ilusão

Só a verdade será fonte de notícias, E poderemos crer no homem outra vez

(Caminhando e Cantando, 1997 – Diocese de Lages)

Nesta pesquisa são tratados assuntos relacionados à “canção popular” e, neste

capítulo em que se aborda a função educativa da canção não só no aspecto pedagógico mas

também no social e no político. Para ampliar a compreensão de “canção popular”, é

importante relembrar: Canção é qualquer de vários tipos de composição musical popular ou

erudita, para ser cantada.

Depreende-se também que muito vasto é o campo em que a ‘canção popular’ tem

possibilidade de agir, já que “popular” pode abranger não apenas o que é comum a pessoas

que convivem em pequenas ou grandes extensões territoriais, mas, até mesmo, apenas referir-

se a um conjunto de pessoas que, não residindo em um determinado lugar geográfico, estejam

unidas por algum elemento, ou por vários, que sirva/sirvam como ligação entre essas pessoas.

Como exemplo, pode-se citar os povos que, não habitando um determinado país, são

identificados pelas idéias e costumes que comungam, tais como os nômades, as tribos ciganas

que, onde quer que estejam, cultivam os mesmos hábitos e cantam as mesmas canções.

Da mesma forma, os vários conceitos que se conhecem lembram que, ao lado da

musicalidade que envolve e eleva o espírito, a canção pode também prestar-se a outros fins,

como, por exemplo, a canção satírica que, na distante Idade Média, já dizia verdades de forma

nem sempre entendida por todos.

Assim, fácil entender-se a diversidade de ritmos considerados populares, os quais

podem ser oriundos das mais diversas etnias que convivem no território brasileiro. Igualmente

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fácil compreender-se a diversidade do conteúdo das letras que, criadas pelos mais diversos

indivíduos, correspondem aos anseios do compositor ou do grupo que ele representa e

procuram disseminar idéias que levem à modificação do momento histórico-socio-político-

econômico em que a canção é criada.

Conhecido o significado de duas palavras-chave deste trabalho de pesquisa, pode-se

entender por ‘canção popular’ aquela elaborada por pessoa de qualquer nível social, de

qualquer grau de escolaridade, de uma determinada comunidade, e cujo teor caia no agrado de

um relevante número de cidadãos, independente da função a que essa canção se destine:

enlevar, orar, divertir, zombar, informar, sugestionar, reivindicar, sugerir soluções. Em Lages,

limite geográfico desta pesquisa, e nos Movimentos Eclesiais de Base dessa cidade, ambiente

do trabalho de campo desta pesquisa, há compositores com nível superior de escolaridade ao

lado de outros com nível médio e, mesmo de alguns com escolaridade mínima, o que justifica

a presença da norma menos culta do Português nas letras de algumas canções.

Na história do Brasil a música popular esteve sempre muito presente, manifestando-

se por meio dos mais diversos ritmos, legitimamente brasileiros ou importados: moda de

viola, sertaneja, samba, rock, choro, bossa-nova e tantos outros, tocados e cantados nas rádios

de todo o país. Isso sem falar da música de natureza religiosa, como, por exemplo, o canto

gregoriano. De acordo com Mariz (2002, p. 25):

a Canção Popular, talvez por seu ritmo, era mais fácil de reter na memória do que o canto gregoriano. Até o século XI, compunha-se a canção popular de um só verso e de uma única melodia, repetida várias vezes e, esporadicamente, de um estribilho. Nos séculos seguintes, duplicaram-se os versos e as frases, firmando-se o emprego do estribilho.

Muitos compositores62 com postura revolucionária participaram, ativamente, no

Brasil, de movimentos em favor de mudanças na sociedade. Nos idos de 1964, repertórios de

vários artistas apresentavam temas preferenciais da arte engajada, procurando fazer oposição

ao regime. De acordo com os autores Worms e Costa (2002, p. 89), compunham-se, e

executavam-se, músicas com letras de protesto, músicas exclusivamente brasileiras, unindo

bossa nova e samba tradicional numa guerra contra as guitarras elétricas que eram símbolo do

imperialismo norte americano.

Mariz, (2002, p. 199) diz: “é importante que o compositor participe das preocupações

e reivindicações dos demais cidadãos, [...] demonstrar preocupação social”, a qual pode, ainda

62 Chiquinha Gonzaga foi um exemplo dessa postura revolucionária, tanto em estética como em política. Foi a

primeira mulher a compor músicas para ópera e a reger uma orquestra no Brasil (WORMS; COSTA, 2002, p. 111).

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segundo Mariz (2002, p. 201), expressar-se por meio de canções: “A canção de protesto ou o

samba de participação, passou até a ter objetivos patrióticos na luta pela preservação do meio

ambiente, da ecologia, pela garantia de melhores condições de trabalho para o operário

brasileiro [...]”.

Entre os anos de 1969 a 1974, assume o governo do Brasil, o General Emílio

Garrastazu Médici. Historicamente, no Brasil, em questões de repressão, nenhum governo

supera o do General Médici, durante o qual a imprensa era censurada de forma rigorosa,

impedida de dar visibilidade aos porões da ditadura. As letras das canções, porém, não se

furtavam a revelar a dor daqueles que, devido à censura desse regime político, se viam

afastados da pátria-mãe, exilados, apenas com a esperança de um dia poder rever seu lar,

família e amigos. Mas, procurando evitar represálias, a denúncia desses fatos era feita pelos

compositores e poetas de forma velada. O conteúdo da letra das canções, revelando a

inteligência de seus autores, muitas vezes, era dificilmente compreendido a não ser que sobre

essa letra se lançasse olhar bastante perspicaz. É o caso, por exemplo, de uma canção que só

depois de premiada em um festival, foi percebida como protesto aos inúmeros casos de exílio:

Vou voltar / Sei que ainda vou voltar / Vou deitar à sombra de uma palmeira / Que já não há. / Colher a flor que já não dá / E algum amor, talvez, possa espantar / As noites que eu não queria / E anunciar o dia (WORMS; COSTA, 2002, p. 104).

Por outro lado, com um crescimento acelerado, o país, naquela época, era visto como

uma das maiores economias do mundo, embora sem distribuição de renda, o que acarretava

dificuldades sócio-político-econômicas, vivenciadas pela população. No entanto, apesar

dessas dificuldades, diversos slogans se criavam, justificando o “Milagre Brasileiro”. Entre

eles: “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”, “Ninguém segura este País” ou “Este é um País que vai pra

frente” (WORMS, COSTA, 2002, p.111 e 112):

Eu te amo, meu Brasil, eu te amo Meu coração é verde, amarelo, branco, azul-anil Eu te amo, meu Brasil, eu te amo Ninguém segura a juventude do Brasil”. (DOM, 1970).

É a canção como forma de despertar o civismo, de mostrar ao povo o valor da sua

pátria. Nessa época, porém, muitas das letras dessas canções, em suas entrelinhas, incitavam

as pessoas a se tornarem reflexivas, a perceberem as reais condições de opressão e a lutarem

por dias melhores em que houvesse mais liberdade e justiça. É o que se pode perceber na

forma irônica com que a letra da canção aconselha a ‘chamar o ladrão [...]’:

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Acorda, amor / Eu tive um pesadelo agora Sonhei que tinha gente lá fora / Batendo no portão / Que aflição! Era a dura / Numa muito escura viatura Minha nossa santa criatura! / Chame, chame, chame lá Chame, chame o ladrão, chame o ladrão [...] (WORMS, COSTA, 2002, p 116/117)

Algumas canções dessa época lembram aos oprimidos que a repressão ‘não pode

tudo’. Há muitas coisas, como o ‘cantar do galo’ e o ‘raiar de um novo dia’ - bênçãos da vida

livre e cotidiana - que, felizmente, não podem ser proibidas nem, tampouco, impostas por um

regime governamental opressivo:

Hoje você é quem manda / Falou tá falado / Não tem discussão não A minha gente hoje anda / Falando de lado / E olhando pro chão, viu? [...] Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia [...] [...] Como vai proibir / Quando o galo insistir / Em cantar [...] Você vai se amargar / Vendo o dia raiar / Sem lhe pedir licença Eu vou morrer de rir / que esse dia há de vir / Antes do que você pensa (WORMS; COSTA, 2002, p. 116-117).

Dessa forma, as letras das canções de protesto desempenhavam seu papel político-

pedagógico não só denunciando a situação, mas lembrando que esta mesma situação,

certamente, logo chegaria ao fim.

3.1 A Canção Popular de protesto nas CEBs de Lages

Essa mesma opressão governamental era, como em todo o Brasil, sentida também em

Lages onde se organizavam Movimentos Populares cujos integrantes reuniam-se em

assembléias, em grupos de reflexão, com diferentes segmentos da sociedade. Esses membros

da comunidade reagiam a essa ação opressiva e buscavam alternativas para reverter esse

quadro.

Os grupos de Base constituíram uma forma de resistência coletiva, procurando

derrubar a opressão na reconquista da liberdade que, junto com a igualdade, busca trilhar

caminhos em que os valores humanos sejam vistos de forma prioritária, social e

culturalmente.

Em Lages, nas diversas pastorais que faziam parte das CEBs, uma preocupação das

lideranças era estimular ações concretas para atingir a realidade do momento. Para tal fim

utilizavam-se da canção popular que trazia em seus versos uma forma didática e pedagógica

de conscientização. Uma dessas canções encontrada no livreto “Caminhando e Cantando”,

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livro de cantos da diocese de Lages, com outras palavras mas da mesma forma que a canção

conhecida em nível nacional, diz, também, sutilmente, que a opressão não pode tudo:

“Ninguém pára esse vento passando. / Ninguém vê e Ele sopra onde quer./ Força igual tem o

Espírito (Santo) quando / Faz a igreja de Cristo crescer. / [...] Sua imagem são línguas

ardentes, / Pois amor é comunicação./ E é preciso que todas as gentes / Saibam quanto felizes

serão. (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).

No Brasil, durante a década de 60 do século XX, o campo musical destacava-se

como alvo da vigilância. Diversos compositores, especialmente artistas ligados à MPB,

trouxeram mostras de músicas com cunho de protestos, o que os levou à prisão ou ao exílio.

Já entre o período de 1971 e 1974, essa vigilância estava mais direcionada aos movimentos

estudantis. A ‘canção da juventude’ era objeto de atenção redobrada, sendo que espetáculos

organizados pelos grupos estudantis eram constantemente vigiados. Uma dessas canções é

“Alegria, Alegria”, que se transformou em ‘hino’ da juventude brasileira e embalou os

protestos contra a ditadura.

Na Diocese de Lages (Livro - Caminhando e Cantando, 3. ed. 1994), uma das

canções muito presente nos encontros dos Grupos de Jovens CEBs, convidava não só a

juventude para cantar, mas também homens e mulheres de várias idades, incentivando-os a

reunirem-se por meio dos ‘cantos’ e celebrações, independente de posses ou identidades,

mostrando ainda a importância de se dar as mãos, cultivando a espiritualidade, aliando-a às

ações comunitárias, e, desse modo, fortalecendo e/ou criando novas possibilidades para a

transformação coletiva. O convite estava explícito na letra que motivava as comunidades

envolvidas no projeto das CEBs: “Deus chama a gente / pra um momento novo / De caminhar

junto com seu povo / E convidava acima de tudo, a participar, coletivamente, das tomadas de

decisões: “ É hora de transformar / O que não dá mais / Sozinho, isolado, / Ninguém é capaz.

Essa canção anima o grupo quando lembra da importância de cada integrante, na promoção da

vida: “Por isso vem, / entra na roda com a gente também /Você é muito importante / Vem!...”.

Lembra também das dificuldades que encontrarão no caminho, que mais facilmente serão

vencidas por meio da união: “Não é possível crer / Que tudo é fácil. / Há muita coisa / Que

produz a morte / Gerando dor, tristeza e desolação / É necessário unir o cordão”.

Como sujeitos históricos, os membros da comunidade são chamados a assumir um

compromisso com a vida, reinventando um ambiente em que todos sejam vistos como ‘Filhos

de Deus’, construtores da justiça, da igualdade e da solidariedade. A letra desta canção leva a

refletir que todos são importantes para combater todo o tipo de divisão e exclusão,

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enfatizando a unidade como um elemento importante para garantir subjetivamente a auto-

estima das comunidades engajadas por um objetivo comum.

A canção torna-se também um forte instrumento de formação do sentimento de

brasilidade ao destacar, de forma especial, o futebol e a música que foram - e da mesma forma

continuam sendo até os dias de hoje - símbolos de exportação da imagem do país. Tanto o

futebol quanto a música tiveram estreita ligação com governos dentro do regime militar, como

no de Médici, servindo como propaganda de um ‘Brasil Ideal’: “Noventa milhões em ação/

Pra frente, Brasil do meu coração/ Todos juntos vamos/ Pra frente Brasil/ Salve a Seleção!”

Os dribles e a ginga do futebol podem ser comparados à solução que a música brasileira

encontrou para conseguir expressar-se e, ao mesmo tempo, fugir à censura e incitar à

formação comunitária por um mesmo ideal: “De repente é aquela corrente pra frente.../

Parece que todo o Brasil deu as mãos”. 63

Na voz de quem canta está uma identidade que determina o presente pela sua

memória. O eco dos anseios da comunidade se ouve na voz do artista que valoriza a “arte

participante”. Desta forma, a canção popular carrega traços da sociedade em que está inserida

e pode ser vista como meio de compreensão de um determinado período da história e do local

em que surge. É através da linguagem musical que ocorre uma comunicação influenciada pela

cultura de determinada sociedade, de seus hábitos, costumes e crenças.

A música, a menos que não passe de rabiscos casuais, em sons, tem o seu lugar na história geral das idéias, pois sendo, de algum modo, intelectual e expressiva, é influenciada pelo que se faz no mundo, pelas crenças políticas e religiosas, pelos hábitos e costumes ou pela decadência deles; tem sua influência, talvez velada e sutil, no desenvolvimento das idéias fora da música (RAYNOR, 1981, p. 14).

Partindo do pressuposto de que a canção não surge do nada, de que sua temática é

determinada pelos acontecimentos históricos aos quais está intimamente ligada, de que o

compositor se identifica com as manifestações do meio, e que a canção sofre a influência da

sociedade e vice-versa, conclui-se que esta canção tem a ‘fala’ do meio onde é construída.

Muitas vezes com um limitado preparo musical, expressando os sentimentos da comunidade

que a criou, ela não existe isolada da história, nem da vida de quem a cria. Quem compõe ou

interpreta uma canção o faz contextualizando o seu tempo, influenciado pela sociedade e para

ela direcionando a sua composição.

Assim, a Canção Popular exerce um importante papel no sentido de levar seus

ouvintes a refletirem sobre opiniões e expectativas desta sociedade que possui uma

63 Música de Miguel Gustavo, 1970 – Copa do Mundo de Futebol – México.

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apropriação desigual do capital cultural e que vive relativamente à margem dos grupos

hegemônicos. A canção, entre outras formas de mobilizar e resistir aos modelos dominantes, é

um subsídio interessante que acompanha as transformações históricas da sociedade.

Este tipo de canção, tal qual a literatura em países mais desenvolvidos, é que, no

Brasil, assume grande importância, fazendo a mediação com os diferentes meios sociais,

expressando idéias e sentimentos das comunidades, ‘falando’ por elas, expondo seus

diferentes anseios que, muitas vezes, por diferentes motivos - e, nessa época, devido,

principalmente, ao repressivo sistema de governo - sem a canção, permaneceriam emudecidos

na sua individualidade.

Algumas canções da época do regime militar brasileiro deixavam transparecer em

suas palavras a forçada submissão a um governo autoritário e opressivo. Contrapondo-se a

essa forma de opressão, em algumas canções dos Movimentos Populares em Lages observa-se

outro tipo de submissão, totalmente voluntária e que invoca bens e valores que o

autoritarismo não pode conceder: “Senhor, que queres que eu faça? / Senhor, que queres de

mim? /Mostra-me os teus caminhos / Senhor, que queres de mim?” Essa canção demonstrava

claramente o exemplo de fé engajada das comunidades eclesiais: “[...] Eu quero justiça,

bondade, amor / Igualdade, paz e comunhão./ Eu quero meu povo eleito / Buscando seu jeito

de libertação. (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).

Pode-se perceber que as CEBs vão construindo a identidade coletiva, apontando para

uma sociedade diferente, bastante marcada pela fé em um Deus que ‘guia o filho’ e que nada

lhe deixará faltar, principalmente a libertação que resulta da luta pela dignidade e igualdade

de valores. Assim, com caráter democrático e participativo, a canção popular busca ainda dar

significado à criatividade comunitária em que os participantes dos grupos populares trocam

conhecimentos, expressam suas lutas, e constroem suas identidades. As letras dessas canções,

trazem à tona uma diversidade de temas como justiça, igualdade, paz, comunhão. Um

imaginário religioso e ecumênico que enfoca a utopia do ‘povo de Deus’ em busca da ‘Terra

Prometida’, o que corresponde à dignidade para todos.

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3.2 O movimento da Canção Popular na década de 70 e 80

Nos anos 70/80, diversas canções se faziam ouvir, trazendo mensagens

reivindicativas, protestando contra o descaso dos poderosos e o desamparo aos menos

favorecidos. Essas canções tanto eram produzidas por membros das Comunidades Eclesiais

de Base quanto por outras pessoas envolvidas no setor musical, muitas delas integrantes da

MPB:

A MPB exerceu uma influência decisiva na linguagem e no comportamento de amplos setores da juventude urbana. Nas décadas de 60 e 70 talvez tenha sido, dentre as manifestações artísticas, o domínio no qual as contradições sociais da sociedade brasileira tenham penetrado de maneira mais violenta. Inclusive a presença da censura não agiu apenas enquanto ingerência exterior à produção musical; ela interferiu na sintaxe mesma do discurso da canção (VASCONCELLOS, 1977, p. 38).

Nos anos 60 e 70, o engajamento político estava explícito na temática da canção e a

estética, muitas vezes, era deixada em segundo plano. O conteúdo das canções manifestava

um poder revolucionário visando mudar as estruturas sócio-político-culturais. Muitas canções

com letras mais críticas denunciavam a opressão e encorajavam as comunidades a combatê-

las. Assim, eram vistas como agentes de transformação histórica, sendo que muitas vezes era

necessário desvendar o sentido exato das palavras. Nas entrelinhas estava o verdadeiro

significado da mensagem poética e musical de cunho participante.

No contexto político brasileiro dentro do período pesquisado, a liberdade de

expressão era restrita e, conforme acima mencionado, de acordo com Vasconcellos (1977, p.

38), isso se refletiu na forma como as letras das canções passaram a ser elaboradas.

A música vinha com uma função importante também dentro da igreja progressista e

dos movimentos populares, com letras que incentivavam à luta pela liberdade e vida dos mais

empobrecidos. A canção popular veiculada como elemento participativo nos grupos de base

aparece como uma forma de idealizar o semblante da comunidade, que luta em busca de

mudanças que beneficiem a todos, assumindo-se como sujeitos organizados que constroem,

juntos, uma relação solidária e criam expressões recíprocas de aprendizados.

De acordo com Zitkoski, (2000, p. 328),

[...] a esperança de libertação não pode ser alimentada a partir de processos socioculturais totalizados em si mesmos, [...] o sonho possível somente pode vir da organização dos oprimidos em suas marchas por justiça, liberdade, direitos, participação, enfim, pela recriação da história, [...]. É por mediação das lutas concretas dos excluídos do sistema opressor que será possível transformar as

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sociedades, rompendo a lógica da razão instrumental, funcionalista, sistêmica, reprodutora do economicismo e da dominação de alguns sobre a maioria.

Na diocese de Lages, no período escolhido para esta pesquisa, 70/80, diversas

organizações, em comunhão marcada pela amizade, solidariedade e pela troca recíproca,

realizavam atividades de grupo, discussões e elaboração de projetos que vinham contribuir

para que as comunidades pudessem participar dignamente das transformações sócio-político-

culturais da sociedade, em benefício da maioria da população, procurando acabar com

atitudes de exclusão e buscando as que possibilitassem a reconquista da cidadania para todos.

De acordo com Fleury (1998, p.46):

O Brasil se configura como um povo64 que constrói um projeto de sociedade e de cidadania, que amadurece uma identidade nacional a partir da simbiose entre múltiplos sujeitos e movimentos sociais, étnicos e culturais em processo de integração e conflitos profundos.

Em função do sistema capitalista opressor, diversas lideranças de CEBs de Lages

sofreram represálias por parte de alguns setores dominantes. Na letra de muitas canções

podia-se perceber a denúncia dessa forma de exclusão daqueles trabalhadores conscientes,

que participavam à frente de algum movimento das classes populares: “Oferta pequena de

pouco salário / luta de operário, trazemos também / Todo o sacrifício das mãos que suaram /

E este pão assaram para o nosso bem.” Ou “Enfrentei o dia inteiro, trabalhando a plantação

/ semeando e cultivando / Meu suor merece o pão[...].”

No depoimento de Eroni, pode-se perceber a presença da exclusão daqueles que

buscavam promover a formação da consciência nos grupos populares, desenvolvendo o senso

crítico dos companheiros de luta: “Nosso grupo era de resistência e luta. Não agíamos no

individual, nosso propósito era sempre o coletivo. Tudo pelo bem de todos. Eu trabalhava

naquela época em uma grande madeireira do bairro, lá eu fui perseguido, principalmente por

ser uma liderança que procurava falar de consciência. Em muitos momentos estivemos

presentes nos embates, dentro dos grupos de movimentos populares, levando cartazes, mas

principalmente com músicas que falavam por nós o que queríamos dizer. Geralmente nos

apropriávamos de alguma melodia e mudávamos a letra, ou então utilizávamos alguma letra

da igreja que tivesse uma mensagem contra a opressão e a favor da libertação do povo”.

64 Costuma-se considerar como povo não só o operariado urbano e rural, os assalariados dos serviços, os restos

do colonato, mas, ainda, as várias camadas que constituem a pequena burguesia, não sendo possível agrupar em um todo homogêneo as manifestações culturais de todas essas esferas da sociedade.(CHAUÍ, 1989, p.43).

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Percebe-se, a partir dos relatos das experiências de pessoas ligadas aos diversos

movimentos de CEBs de Lages, desejos e vontades partilhadas, necessidades comuns,

desafios a superar. De forma significativa dava-se importância à participação comunitária. A

canção popular era suporte para as reuniões, com a temática de acordo com a reflexão do

momento. Conforme recorda Eroni: “ Tínhamos o hábito de criar letras de músicas dentro do

próprio grupo [...] Quando marcávamos uma reunião para debater sobre um determinado

assunto, eu já passava na casa do violeiro [...] e pedia para ele fazer uns versos que se

relacionassem com o assunto [...] Mais tarde, na reunião lá estava ele com o seu violão nas

costas, trazendo uma música, que passava para todo o grupo. Geralmente ele se apropriava

de uma melodia já conhecida, trocando apenas a letra, conforme a reivindicação que

queríamos fazer.”

O Movimento torna-se assim, uma ‘escola’ para seus integrantes. A partir do

momento em que cada participante vai se envolvendo nas atividades, torna-se mais forte e,

conseqüentemente, fortalece o grupo. É uma reciprocidade de aprendizagem na construção de

um mundo mais justo e igualitário para todos.

3.3 Os movimentos que forjavam a luta das comunidades em Lages nos anos 70/80

Em Lages, a música ocupou um lugar privilegiado no cenário das organizações e

movimentos populares, na década de 70/80, expressando e configurando as lutas das

comunidades, tornando-se uma forma de “cantar e contar a luta”.

Nesse período, algumas organizações comunitárias de Lages procuravam vincular as

canções às ações dos grupos integrantes das CEBs, identificando-se através dos conteúdos

expressos nas letras como forma de superar limites na sua subjetividade, tornando-se mais

fortes. Como exemplo, a letra da música :“Igreja é povo que se organiza. / Gente oprimida

buscando libertação”. As diferentes classes de trabalhadores que se unem num só ideal de

liberdade e conquista para todos: “O operário lutando pelo direito / De reaver a direção do

sindicato / O pescador vendo a morte dos seus rios / Já se levanta contra esse desacato/[...]

Se libertando das garras do seu patrão.” Homens e mulheres combatendo as dificuldades do

dia a dia, na esperança de vencer os obstáculos: “A lavadeira, mulher forte, destemida, / Lava

sujeira, injustiça e opressão. / Posseiro unido que fica na sua terra / E desafia a força do

invasor.” Cantando o que não consegue falar: as dores, as lutas em busca da libertação; “Índio

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poeta que pega sua viola / Que canta a vida, a saudade e a dor. / É gente humilde, é gente

pobre, mas é forte / [...]Em Jesus Cristo a ressurreição / pra ser um povo feliz e libertado.”

(CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).

Esta letra surge incentivando as comunidades a se organizarem para atingir seus

direitos e seus objetivos. A ressurreição tem o significado de uma ‘nova vida’, do povo liberto

da opressão dos poderosos e com possibilidades de superação das desigualdades sociais.

Mesmo que algumas frases de uma determinada canção refiram-se a situações de outras

regiões brasileiras, os grupos entendem que basta interpretar conforme as necessidades

próprias do lugar. É gente oprimida, mas que busca a libertação e que a alcança quando se

está reivindicando junto com outras pessoas que têm o mesmo ideal, o que as torna mais

fortes.

Em entrevista a esta pesquisadora, Teonilda65, que concorreu a vereadora pelo

Partido dos Trabalhadores de Lages, no período a que esta pesquisa enfoca, ressalta a

importância da Canção Popular nos movimentos de CEBs em Lages: “ Com certeza as

canções tinham um cunho social e transformador, as letras dessas canções são de

resistência.[...] os anos 70 e 80 foram o auge dos grupos, até a minha própria candidatura

veio a partir das pastorais sociais e a maioria das lideranças saíram dos grupos de família,

da base. Na diocese de Lages a gente sonha e luta para que sempre mais essa vivência dos

grupos de família seja forte para o caminho das CEBs. A canção influencia sim, porque é a

partir da luta que nascem essas canções [...] com certeza esses cantos que nascem da luta,

são ferramenta de transformação, [...] são letras de esperança, de ‘pôr a mão na massa’,

essa mistura de fé e vida... a gente sabe,tem que haver ação e oração. E se você analisar a

letra das canções, são mistura de fé e vida, são letras de resistência mesmo[...]ferramenta de

transformação, mesmo!”.

Referindo-se às diferentes maneiras de engajamento naquele período, Locks (1998,

p.3) salienta que Lages tinha, nos anos 70/80, diversas formas de engajar-se nas lutas

populares. Mesmo tendo características diferentes, estavam centradas na afirmação da

democracia e no direito à cidadania.

Sobre a elaboração da consciência e da construção de identidades pessoais e

coletivas, Fleury (1998, p. 47) diz:

permitiria ir além dos particularismos e criar condições para resgatar e integrar as dimensões mais originais e essenciais, capazes de sustentar a construção e gestão

65 Teonilda de Fátima da Silva, 50 anos, líder da Equipe Diocesana de CEBs de Lages, Ministra da Eucaristia,

do Matrimônio e da Palavra.

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compartilhada de projetos criativos e, ao mesmo tempo, mais consistentes e de grande alcance.

Entre os grupos engajados almejando construir cidadania, pode-se salientar a

Comissão Pastoral da Terra (CPT), Movimento das Mulheres Agricultoras (MMA),

Associações de Moradores (AM), Pastoral Operária (PO), Núcleo alternativo de Educação

Popular (NAEP), Sindicatos, Associações de Pais e Professores (APP’s), Pastoral Social (PS)

e Pastoral da Criança (PC), além de Grupos de Famílias (GF), todos, atuando através de

processos formais e não formais de educação em forma de assembléias e reuniões.

Dessa forma se percebe como os Movimentos Sociais, em sua prática, projetam uma

identidade como expressão da comunidade em que está inserida, entrando em conflito com

estruturas vigentes na sociedade. Segundo Melucci, (1989, p. 57), Movimento Social é “uma

forma de ação coletiva, baseada na solidariedade, desenvolvendo um conflito e rompendo

com os limites em que ocorre a ação”.

Movimento Social é um conjunto mais abrangente de práticas sócio-político-culturais que visam à realização de um projeto de mudança (social, sistêmica ou civilizatória), resultante de múltiplas redes de relações sociais entre sujeitos e associações civis. É o entrelaçamento da utopia com o acontecimento, dos valores e representações simbólicas com o fazer político, ou com múltiplas práticas efetivas. [...] é a síntese de múltiplas práticas, produto das articulações de sujeitos e associações civis (SCHERER-WARREN, 1999, p. 15-16).

A dimensão educativa presente nos Movimentos Sociais, aqui especialmente as

CEBs, é revelada por meio da canção popular que possui caráter pedagógico no conteúdo de

suas letras, tecendo a memória das diversas experiências do grupo, atingindo corpo, mente,

sentimento e emoções, além de contribuir para formar consciência crítica. A canção quando

elaborada para o movimento, motiva o grupo a compreender a realidade num todo,

sustentados pela fé, comprometendo-se com a participação aliada à espiritualidade.

Formando uma consciência voltada para a construção da cidadania e do respeito para

todos, o grupo adquire força para continuar atuando nos diversos segmentos da comunidade,

sem medo de enfrentar os obstáculos que possam surgir, pois sabe que, unidos, é mais fácil

encontrar as respostas necessárias para solucionar os problemas do dia-a-dia.

Teonilda complementa: “A canção favorece também, quando te incomoda, porque

ela mexe com você e te dá essa garra, esse ânimo, eu me sinto assim. [...] a partir de uma

celebração com músicas e letras de mensagem de luta, participação, motivação, volto para

casa, acredito mais ainda que o homem e a mulher são seres muito amados, imagem e

semelhança de um DEUS muito humano. A canção mexe com você, não deixa mais você de

braços cruzados, te motiva a participar, abre teu senso crítico, e também te leva à

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espiritualidade. E esta espiritualidade perpassa o teu dia-a-dia [...] porque a natureza fala

que a vida está na árvore, na água, na mulher e homem, na criança, e as letras das canções

celebram tudo isso”.

A canção popular intervinha nas reuniões dos diferentes movimentos de base, com

uma intencionalidade pedagógica de transformar determinada ação em aprendizagem coletiva,

percebendo-se através dos gestos e atitudes de seus participantes que estes iam se tornando

sujeitos comprometidos nesse processo formativo.

No período pesquisado, as CEBs de Lages podem ser vislumbradas como

participantes ativas de um processo de transição sócio-politico-cultural, conforme relatórios

apresentados pela coletânea “Pixurum”(1989/2000), elaborada pelo Centro Vianei de

Educação Popular, nos quais são mostradas diversas ações realizadas pelas várias Pastorais

que trabalhavam à luz da solidariedade pela integração entre os membros do grupo e na deste

com os demais.

Eroni acrescenta: “As pessoas da comunidade de base, nos anos 70 e 80 eram muito

assíduas, desde a reunião até aquele movimento em prol de melhorias no bairro. As mulheres

se reuniam na pastoral social, faziam biscoitos, acolchoados e outros artesanatos que vinham

a ajudar as famílias mais pobres. Fazíamos reivindicações em prol de melhorias na questão

de saúde, alimentação, educação e tudo mais que o povo precisasse para ter dignidade”.

Dessa forma, percebe-se a importância da união dos grupos para o fortalecimento das

organizações que atuam em favor dos trabalhadores explorados e oprimidos da sociedade e

que buscam dignidade para homens e mulheres que sonham com igualdade de direitos para

todos.

3.4 Centro Vianei de Educação Popular e a Comissão Pastoral da Terra – CPT: A

Canção na formação de consciência política

De 1976 a 1982, a Prefeitura de Lages esteve sob a administração do Prefeito Dirceu

Carneiro. Foi um período em que as ações governamentais do Município estiveram voltadas

para as classes menos favorecidas da população local. Diversas lideranças surgiram naquele

período político administrativo em Lages, incentivadas pelos projetos de ‘mutirão’ nos quais a

própria comunidade é chamada a assumir responsabilidades que dêem melhores condições de

vida a todos os munícipes.

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Com o fim dessa administração pública, alguns representantes que faziam parte da

equipe de Dirceu buscam parcerias na Igreja para constituir o que veio a se tornar mais tarde

uma organização não governamental: o Centro Vianei de Educação Popular.

Em 1953 foi inaugurado o Seminário Diocesano de Lages, ao qual foi dado o nome

de São João Maria Batista Vianei, considerado o santo padroeiro dos padres diocesanos. Esse

santo nasceu na cidade de Ars, França, em 1786.

No ano de 1983 uma equipe de Educação Popular, juntamente com trabalhadores

rurais, inicia o Projeto Vianei de Educação, atual Centro Vianei de Educação Popular.

(PIXURUM, 2004, p. 48-49). Este Centro de Educação exercia papel de destaque junto aos

pequenos agricultores no movimento de luta contra a construção das barragens. O Vianei

também chama a atenção para a questão da reforma agrária e a “Romaria da Terra” por meio

da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Une toda uma mística em torno da produção do

alimento, da terra que é direito de todos, apoiando o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

(MST). Muitas canções populares contam a história destas Romarias, canções estas de

embates, de denúncias e de projetos de mudança.

Até hoje (2007), esse Centro “realiza um serviço de assessoria técnica e política

orientada pelos princípios da agroecologia, voltada aos agricultores e seus familiares na Serra

Catarinense [...] desenvolvendo um projeto de sociedade concebido e protagonizado por esse

Centro Vianei e seus aliados, particularmente, os Movimentos e Organizações Populares da

Região. O agricultor é o sujeito principal de suas ações.” (PIXURUM, 2004. Prefácio)

Geraldo Augusto Locks66, em entrevista, acrescenta: “impregnados de um ideal

alimentado e orientado pela Teologia da Libertação, trabalhávamos com a formação de

padres no antigo seminário de Lages, numa propriedade de aproximadamente 15 hectares,

numa casa de 5500 metros quadrados e nela habitavam apenas trinta alunos. Então nós

tínhamos condições materiais, sonhos, projetos, mas nos faltavam idéias mais concretas e

sobretudo experiências de se aventurar organizações não governamentais e buscar recursos

para tal. E foi quando, de um lado, esse grupo que se originara da “Força do Povo”, de

outro, o grupo da Teologia da Libertação, nos juntamos para constituir o Vianei. Em 1983,

inicialmente para assessorar jovens agricultores, foi se desdobrando em projetos e continua

até hoje, como uma entidade, sociedade civil sem fins lucrativos, cuja missão é assessorar

economicamente grupos de agricultura familiar aqui da região da serra”.

66 Agente de pastoral, exerceu o ministério de 1981 a 2003, 54 anos, hoje professor na UNIPLAC, Mestre em

antropologia social UFSC, doutorando em antropologia Social PPGAS – UFSC. Essas considerações foram feitas por Geraldo Locks durante entrevista, concedida a esta pesquisadora, no mês de novembro de 2007.

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O Vianei era formado, na época, por uma equipe multidisciplinar, líderes com

formação em História, Pedagogia, Administração, Comunicação, Economia, Agronomia,

combinando, de certa forma, estes aspectos curriculares à mística, agregando-os às lutas em

benefício da comunidade.

Geraldo continua: Em 1984, um grupo de agricultores das proximidades dos rios

Pelotas e Canoas chamou a equipe para uma reunião. Eles estavam com medo de uma

notícia que estava se espalhando pela região: Iriam se construir grandes barragens aqui na

região e estes agricultores, então ameaçados, chamaram a gente lá para conversar e

encontrar alternativas sobre suas propriedades. Lá estava o Bispo Dom Honorato Piazera, o

Padre Andréas, nós do Vianei e os agricultores. E naquele dia nasceu a CPT – Comissão

Pastoral da Terra.

Um dos principais objetivos da CPT, segundo Locks, foi contribuir na organização e

na defesa dos direitos dos agricultores e agricultoras. Falava-se de saúde, comercialização da

semente, da falta de política agrária. Tudo isso foi se inserindo no processo e na vida dos

agricultores, como uma presença solidária da Igreja. A Comissão Pastoral da Terra

incentivava na formação da consciência crítica dos pequenos agricultores, nos aspectos de

organização e mobilização buscando conquistas que iriam garantir melhorias na qualidade de

vida (Anexo A).

Com o objetivo de resgatar a cidadania daqueles que estão à margem da sociedade e

desafiar estruturas de classe que, por leis injustas resultam nas desigualdades sócio-

econômico-culturais, a canção popular surge como expressão de mudança a partir das

necessidades do grupo, na tomada de consciência sobre sua situação, criando estratégias

coletivas de transformação. Conforme a letra dessa canção muito entoada nos movimentos de

CEBs daquele período histórico: “Povo que luta, cansado da mentira, / Cansado de sofrer,

cansado de esperar./ Povo que luta, cansado de esperar, / Procura a redenção./ [...]Povo

que luta, por terra onde há fartura, / Por paz sem fingimento, / Por vida partilhada / Procura

a redenção. Essa cação manifesta a presença das classes populares que, embora sentindo-se

oprimidas, reconhecem que é preciso combater a opressão e o sofrimento, acreditando na

libertação: “Povo que espera, colheitas mais serenas, / verdades mais profundas, / Caminhos

mais fraternos, / Povo que espera caminhos mais fraternos,/ Proclama a redenção.

Esta canção expressa ainda, a importância da luta das comunidades em favor da

verdade que liberta, da união do grupo que pode ajudar a transformar o mundo, lançando mão

da criatividade e da consciência de construção de um mundo melhor. A canção é um meio

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possível de ‘ensinar’ atos políticos de participação e mudanças de si mesmos e do meio onde

vivem.

Em entrevista, Locks lembra que quando os participantes se reuniam: “A gente

sempre levava junto o violão, então a reflexão era sempre regada de muita música, mística,

religiosa e política. Eu defino a mística como uma força que se desenvolve no interior das

pessoas e com a qual elas lutam apesar de tudo, sem desanimar, persistem na luta, se armam

de coragem, se organizam e lutam na defesa de seus direitos. A mística religiosa, entendo ser

aquela que vem mais da fé e a mística política, aquela da organização social, econômica,

política, cultural dos trabalhadores. Nós levávamos o violão e a música fazia parte desse

processo. Sempre, no início, no meio do debate e quando se encerrava, a música era

ferramenta indispensável”.

Na tomada de consciência, os participantes dos diferentes movimentos de CEBs

inspiravam-se nas vivências diárias para compor letras comprometidas com a causa coletiva.

Eram canções que instrumentalizavam a luta nos diferentes contextos e realidades da

comunidade. Assim se reproduzem canções de protesto e de busca pelo engajamento e

compromisso às causas que defendem a sociedade como um todo. As reuniões desses grupos

eram, assim, um momento onde as pessoas podiam expressar sentimentos comuns

favorecendo, pela canção, a necessária tomada de consciência.

Na medida em que as pessoas compõem letras politizantes ou se apropriam de outros

ritmos criando a paródia, elas surgem como instrumentos que são possíveis para a

transformação de determinada realidade. Estas canções estarão se adaptando ao próprio

contexto, sendo que uma mesma canção pode ser usada em diferentes encontros,

Simplesmente ela é reformulada e adaptada à situação vivida pelos integrantes do Movimento.

Cada acontecimento no grupo é inspiração para uma nova letra. Da tomada de

consciência ao ato de protestar, brotam canções que vêm dessa reflexão, dando força no

momento de expressar o sentimento que vem da realidade vivida individual e coletivamente,

traduzindo-se em versos e refletindo em novas experiências. O que antes era sonho, no

imaginário dos participantes vai se tornando fruto, conquista de todos.

Assim, a canção é vista pedagogicamente como uma ferramenta capaz de diminuir

distâncias entre a utopia e o real. Aquele que canta passa a ser um educador, que através da

voz faz a mediação ao senso crítico, desde que utilize uma letra fortalecida pela realidade e

traga possibilidades de renovação. Campbel (2001, p.120) diz que ‘cantar é hoje mais do que

nunca uma arte viva’. Quando as pessoas cantam juntas, uma sintonia se cria neste grupo,

unificando desejos, principalmente quando a letra tem um conteúdo de interesse comum.

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Torna-se fácil projetar um ideal a ser atingido. A comunicação que se faz pela linguagem

aumenta a possibilidade de sintonia do grupo.

Na continuidade da entrevista, Locks comenta que “Dentre as canções que eram

cantadas pelos agricultores organizados pode-se citar A Nossa Luta é na Roça e na cidade,

canção trazida da região oeste do estado de Santa Catarina, que trazia a realidade das

pessoas do campo e da cidade que acreditavam na fé como condição para se chegar à

liberdade. A canção convocava essas pessoas para que não desanimassem da luta.” A letra

da canção dizia: “A nossa luta é no campo e na cidade / prá construir uma nova sociedade /

Quem rouba a terra, rouba a vida do pobre / que necessita da terra para viver, / a terra é

vida para quem trabalha nela. / Negar a terra é fazer o pobre morrer.” A canção continua

afirmando que não é apenas no trabalho rural que existe a exploração, mas em qualquer

atividade: “Sempre somos explorados nos empregos, / da nossa força sai o lucro do patrão, /

e para casa vai o decreto de morte, / salário baixo e pouca alimentação.” Da solidariedade

advinda da vivência de injustiças sociais semelhantes é que brotam os Movimentos Sociais e

as canções denunciadoras dessa situação. “Mas é nas CEBs que os pobres se organizam /

acreditando uns nos outros e na união. / [...] Unidos vamos conquistar nossos direitos, / com

fé na luta buscamos a liberdade /[...].”

Não eram apenas os pequenos agricultores e agricultoras que, reunidos, tornavam-se

mais fortes na perspectiva da construção de uma nova sociedade. Os representantes de vários

outros segmentos da classe trabalhadora também se organizavam para alcançar seus direitos,

juntando-se a movimentos já existentes, entre os quais, os da Pastoral da Saúde, da Terra e da

Juventude, acreditando que através da união seria mais fácil a formação política, o

desenvolvimento da criticidade diante das diferentes situações que poderiam surgir.

Nessa entrevista, Locks lembra ainda que “Nos encontros realizados pelo Vianei com

os grupos populares, se traziam músicas de várias regiões. Músicas com uma abertura ao

desenvolvimento da criticidade, que tivesse uma mensagem politizante e que ao mesmo

tempo, convidasse as pessoas para cantar. Então, muitas músicas também emergiram aqui, a

partir da história do Contestado. Por exemplo ‘Chica Pelega’ e ‘Maria Rosa’, eram músicas

surgidas no Contestado, compostas por Vicente Teles, da cidade de Irani-SC”. A canção

Chica Pelega: A Guerreira de Taquaruçu67, qualifica a presença da mulher como parte

integrante nos diferentes movimentos, valorizando-a na sua coragem e persistência de luta. A

67 Nascida em Joaçaba SC, Chica Pelega ficou conhecida por liderar o grupo que liqüidou os agentes do

Exército Nacional na localidade de Taquaruçu, em Curitibanos. "Ela não tinha medo de morrer. Ela era o

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mulher que não teme a morte em favor dos seus. E as comunidades se identificam com a letra

da canção. É também por meio da linguagem dessa canção que os trabalhos comunitários são

fortalecidos. Chica Pelega, na sua época, tinha fé no que dizia o ‘Monge’ e organizava seus

companheiros para a luta: “Crente na fala do Monge, Chica Pelega bradou: Monte compadre,

traga o afilhado, que o tempo de briga é chegado./ Que o tempo de briga é chegado / Na

cidade Santa de Taquaruçú/ ‘Chica’ não convidava apenas os homens mas também as

mulheres para se engajarem no Movimento: “[...] Monte comadre, traga o facão / Que é pra

defender nosso chão / Na cidade santa de Taquaruçú / Monte, comadre, que importa a morte,

/ Se o amor que vier for mais forte.”

Outra canção muito conhecida e cantada dentro dos movimentos de agricultores e

agricultoras da região serrana é ‘Maria Rosa’ também lembrada por Locks como um dos

‘hinos’ entoados nos encontros, resgatando mais uma vez a força da mulher que não foge à

luta: “Maria Rosa entrou na guerra / na Terra do Contestado / Levando flores no cabelo / ela

guiou um povo armado.” No restante da letra a canção enaltecia a aparência física, o modo de

se vestir e, principalmente, os feitos de Maria Rosa no Contestado os quais servem de

inspiração para a mulher serrana em suas lutas diárias. “Galopeava em seu cavalo / num celim

de montaria, / O seu vestido era branco / e com a espada combatia / José Maria fez fanáticos

/ na guerra em oração / Maria Rosa também foi / a Joana D’Arc do sertão.” Maria Rosa

combatia com a espada. A mulher serrana, com sua força e coragem e, muitas vezes, na luta

exaustiva com a enxada na mão integrando os grupos na defesa do seu lar e do seu chão.

As mulheres agricultoras eram assistidas pela equipe do Vianei, por meio de

trabalhos de conscientização sobre seu papel no processo de construção de novas perspectivas

e conquistas. Assuntos como sexualidade humana, metodologia e classes sociais eram

ferramentas de luta além de reflexão teórica e política nas diferentes pastorais. As mulheres

avançavam assumindo o compromisso de organização e formação de lideranças.

Entre os Movimentos apoiados pelo Vianei estava o das Romarias da Terra que

surgiram a partir da CPT (Comissão Pastoral da Terra), que se organiza com o apoio da

diocese, através de encontros paroquiais com os agricultores, lideranças e agentes de

pastorais. A primeira Romaria da Terra, segundo Locks, que fazia parte da equipe de

organização, “nasceu em 1986, na cidade de Taquaruçú, SC. Emblemática, por ser a

primeira, evidentemente e por acontecer no espaço simbólico da irmandade de caboclos que

espírito dos injustiçados. (Aulo Sanford de Vasconcellos, autor de: "Chica Pelega: A Guerreira de Taquaruçu: Tragédia Heróica”).

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foi completamente destruída pelas forças do Exercito Nacional. A Romaria aconteceu lá

nesse espaço onde tombaram muitos caboclos resistentes”.

Uma letra muito cantada em todas as Romarias e principalmente pelos grupos de

Lages nos encontros, veio do Rio Grande do Sul, mas enfoca uma realidade vivida também

em Lages, pelas classes populares que não têm acesso à terra para morar e produzir. Enquanto

poucos têm muito, grande parte da população (sobre)vive à margem da sociedade. Esse ‘hino’

da Romaria, já citado no Capítulo I, fala que a terra é de todos e que a população precisa lutar

para ter sua parte, para morar e produzir, garantindo dignidade para si e para sua família,

sempre por meio da união: “Romaria da Terra, faz o Povo Reunir / Numa luta sem guerra,

nós lutaremos por ti.” As comunidades, inspiradas pela fé, e conscientes do compromisso

coletivo, sabem que é preciso participar da reconquista do espaço a que têm direito: “A terra é

sagrada, feita por Nosso Senhor. / Ele fez e deu ao homem e também nos ensinou. / Que é

nela que vivemos e a ela abençoou. / Como é linda a natureza, é obra do criador. / Deus deu

a inspiração, o homem fez a plantação e foi assim que começou.” A partir dos encontros e

celebrações dos quais esses grupos participam, as comunidades vão tomando conhecimento

de sua realidade. O trabalhador, obrigado a desfazer-se da terra, vem para a cidade e encontra

dificuldades ainda maiores, tornando sua vida mais difícil. Nesse contexto, unindo-se à classe,

assume o compromisso de mudança dessa realidade.

Esta canção que contempla a realidade de muitas comunidades da região serrana,

mostra o lamento dos trabalhadores que lutam pela sobrevivência e pela permanência na terra

e que, unindo-se, resistem para conquistar melhores condições de vida e direitos de cidadania,

ao processo de exclusão que o capitalismo impõe.

Segundo estudos sociológicos recentes, de acordo com Maristela Fantin, grande parte

da população não está integrada à sociedade, uma vez que, devido ao avanço do processo

capitalista, um contingente de pessoas não tem acesso à bens prioritários, tais como saúde,

moradia, escola, saneamento básico: “A sociedade capitalista desenraiza e exclui indivíduos e

grupos, para incluí-los de outro modo, segundo sua própria lógica: inclui do ponto de vista

econômico e exclui do ponto de vista social, moral e político”.(FANTIN, 1998, p. 23).

A canção popular contribuiu, e contribui, nesses movimentos dando visibilidade às

reivindicações. Por meio de suas letras e ritmos, não só denuncia mas promove ações para que

as mudanças ocorram. É utilizada especialmente em caminhadas, assembléias ou celebrações,

além de exercitar a formação de consciência das lideranças para que exerçam o papel de

animação nos grupos, divulgando os valores almejados para uma sociedade diferente.

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A letra musical apresentava, na maioria das vezes, um conteúdo que, descrevendo

problemas, sugeria reflexão sobre os sentimentos, as situações e as atitudes de um coletivo

que se reúne em busca de forjar situações de mudanças frente a uma realidade injusta.

Segundo Locks, outra letra muito cantada, naquele período, pelos Agricultores

organizados, era: A Classe Roceira e a Classe Operária68, que mesmo não tendo sido

composta em Lages, retratava a situação do Brasil. O grupo entendia estar inserido nessa

realidade e desejava a concretização da Reforma Agrária (Anexo B).

Locks enfatiza esta canção, caracterizando-a como um verdadeiro ‘hino’, repetido

diversas vezes nos encontros, cantado com entusiasmo, com gritos e palavras de ‘ordem’, em

que: “A Classe roceira e a Classe Operária / ansiosas esperam a reforma agrária / Sabendo

que ela trará solução / para a situação que está precária./ Saindo o projeto do chão

brasileiro / de cada roceiro plantar sua área / Sei que na miséria ninguém viveria / E a

produção já aumentaria / quinhentos por cento até na pecuária”.

Esta é uma letra que fala da realidade dos agricultores. Estes vivem o reflexo da

realidade nacional que apresenta falta de proposta de uma política agrária que assegure

melhores condições para os trabalhadores considerados pequenos e médios proprietários

rurais. A organização desse e de outros grupos é que vai protegê-los do autoritarismo da

classe dominante e de seus representantes. Assim, a música pode constituir-se num

instrumento que fortalece as organizações populares. Basta prestar atenção nas canções

utilizadas nas CEBs, nas Romarias da Terra, nos encontros dos Movimentos. São ‘cantos’ que

denunciam as situações opressivas e que, mais uma vez, vão forjando a luta: “ Senhor, tende

pena deste povo sofredor, / Tem gente que ainda aumenta a sua dor”.Essa letra enfatiza que,

muitas vezes, aqueles que exploram, são os que se dizem ‘representantes’ da população:

“Quem devia socorrer, enriqueceu, / Quem devia ajudar, o explorou / Quem devia anunciar,

emudeceu / Quem devia libertar, o escravizou”. E, com fé, clamam: “Senhor, tende pena

deste povo sofredor!”. (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).

As canções utilizadas pela CPT, criadas nas comunidades de Lages ou, adaptadas

nessa cidade, mostram elementos de conjuntura nacional, especialmente relacionados a

acontecimentos de luta pela conquista da terra, deixando entrever em suas letras uma rede de

significados criados pela própria identidade do grupo.

A Canção Popular, com suas letras críticas, possibilita implantar uma linguagem de

protestos e anunciar o sonho de uma comunidade que quer soluções para seus problemas. A

68 Autores: Francisco Lázaro e Goiá

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Canção Popular torna-se a voz da comunidade que está à margem da sociedade e teima em

cantar, acreditando na possibilidade de tornar melhor o mundo para as gerações seguintes.

As letras dessas Canções explicitam a ideologia da organização e expressam uma

compreensão de mundo, de sociedade. Estabelecem um processo comunicativo que permite

que as informações circulem, criando identidades e tornando eficaz a ação do movimento nas

diversas modalidades que se manifestam, adaptando sua letra às necessidades do processo

onde estão inseridas. Se, por exemplo, o grupo assume um compromisso com a reforma

agrária, é nesta temática que o conteúdo da canção vai se manifestar. Por meio dela, o grupo

canta sua história e seus desejos.

Alzira recorda: “Havia uma canção muito presente na década de 80, quando nos

movimentos populares, nas Romarias da Terra, nos Movimentos de Mulheres Agricultoras e

no próprio partido político (PT) se ensaiavam “análises de conjuntura”69 a partir da canção

popular”: “Na terra dos homens pensada em pirâmide/ há poucos em cima e muitos na base

/Na terra dos homens pensada em pirâmide.” Letras como as dessa canção popular, reforçam

a idéia de que os grupos ‘da base’, as comunidades, se unidos, são muito mais fortes e que é

preciso ligar fé à ação: “Os poucos de cima esmagam a base./ Oh! Povo dos pobres / Povo

dominado / Que fazes aí com ar tão parado?/ O mundo dos homens tem que ser mudado /

Levanta-te, povo, não fiques parado70.

Letras assim cumprem a tarefa pedagógica de “estudar de forma lúdica” as

necessidades da comunidade. A partir dessa canção torna-se acessível o entendimento de

como funciona a sociedade. Nos grupos populares de Lages, a canção popular podia ser

compreendida como forma de resistência e de luta das classes empobrecidas, de soltar o grito

de indignação ou socorro e também de expressar sonhos.

As canções populares eram utilizadas como instrumento pedagógico, divulgando

valores e objetivos de luta das comunidades em que se inserem, presentes no imaginário dos

participantes, como expressão de elementos novos que auxiliam para a formação de novas

consciências.

Dentro dos movimentos é possível perceber-se a utilização das letras das canções na

abordagem de questões que caracterizam a identidade subjetiva do grupo, tornando visíveis

69 Análise de Conjuntura: aborda temas complexos como guerra, convulsão social e embate eleitoral. Em todos

eles procuramos ver a realidade a partir do agredido, do oprimido que luta por seus direitos mais fundamentais, e não como se fossem disputas entre atores iguais em direitos. Isso não significa dar a priori razão ao oprimido, nem avalizar seus métodos de ação social e política, mas sim a predisposição do analista a solidarizar-se com quem tem sua vida mais ameaçada e assim abrir pistas para uma ação capaz de superar aquela iniqüidade. (Conselho Episcopal de Pastoral – 23ª Reunião Brasília - DF, 22 a 24 de agosto de 2006).

70 Autor desconhecido.

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valores construídos coletivamente, podendo, assim, a Canção Popular contribuir no processo

de emancipação das classes menos favorecidas.

De acordo com Alzira, naquele período histórico de 70/80, as comunidades

‘organizadas’ em Lages cantavam com toda a força: “Eta, espinheira danada71 que o pobre

atravessa pra sobreviver.” A letra lembra os sacrifícios que a população mais carente tem que

superar para sobreviver e dos sonhos que almeja realizar: “Vive com a carga nas costas e as

dores que sente não pode dizer./ Sonha com belas promessas de gente importante que tem ao

redor.” No entanto, essa gente mantém a esperança de que quando mudar o ‘governo’ as

coisas podem melhorar: “Quando entrar o fulano e sair o sicrano será bem melhor./ Mas

entra ano e sai ano e o tal de fulano ainda é pior”. A fé, porém, é grande e essas pessoas

continuam a acreditar: “É este o meu cotidiano, mas eu não me engano, pois Deus é maior”.

É um ‘canto’ que expressa indignação e, ao mesmo tempo, o sonho de dias melhores.

Dessa forma, as parcelas mais empobrecidas da população alimentam suas esperanças e

convicções. Assim, a canção popular desempenha a função de elevar o nível de discernimento

nas questões sociais, possibilitando um olhar mais crítico sobre a realidade, protestando

contra tudo o que oprime, reagindo às diversas formas de exclusão.

Considerando-se o grande potencial que as canções populares exerceram e exercem

nos movimentos e organizações populares, numa mescla de indignação e sonho, cantando, as

comunidades que participavam, contavam a sua história e alimentavam a sua fé. A Canção

Popular, juntamente com a mística, exercia um papel significativo dentro dos movimentos dos

agricultores levando-os a acreditar que era possível transformar realidades e pela criatividade

em compor ou reproduzir canções de conteúdos politizantes, se permitia sair do imaginário e

buscar significados concretos que iam se constituindo coletivamente.

Uma melodia sertaneja, com forte conteúdo de denúncia da situação dos menos

favorecidos, que incentiva ações que contribuem na tomada de consciência da realidade,

auxiliando na mudança, presente e bastante difundida nos encontros de trabalhadores e

trabalhadoras de Lages, especialmente na década de 80, era, conforme Alzira: “Eu confesso,

já estou cansado de ser enganado com tanto cinismo. Não sou parte integrante do crime e o

próprio regime nos leva ao abismo. Se alcançamos as margens do incerto foram os decretos

da incompetência. Falam tanto sem nada de novo e levam o povo à grande falência”. Aos

poucos, as comunidades começam a tomar consciência da sua realidade, e proclamam: “Não

71 “Espinheira” - Duduca e Dalvan, Composição: Manoelito Nunes e Dalvan, produzido em 1987 pela

Chantecler Wheaton do Brasil, S/A.

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aborte os seus ideais, no ventre da covardia / vá à luta empunhando a verdade que a

liberdade não é utopia”.72

Nessa letra percebe-se um curso de conjuntura e estrutura social transformado em

canção. É, ao mesmo tempo, uma mística que alimenta a esperança, que aponta para um novo

horizonte, que acredita que ainda tem jeito. Uma utopia que aponta para o possível.

Alzira lembra do jeito como as mulheres contavam a sua vida cantando, na década de

80, quando se iniciava o Movimento de Mulheres Agricultoras na Região Serrana. Elas se

enxergavam nesta canção73: “Ela desperta antes de clarear o dia, acende o fogo, tira o leite

pro café, atende os filhos, ajuda a tratar os bichos, tudo ela faz com amor e muita fé”.

Presença forte da mulher serrana, guerreira que não abandona a luta em favor dos seus: “Vai

pra roça, ao meio dia faz o almoço, lava os pratos enquanto o pessoal sesteia, limpa a

cozinha, amassa o pão, estende a roupa, a sua vida de serviço é sempre cheia [...]. (Autor

desconhecido).

Dentro do processo histórico em que as comunidades estavam envolvidas, as canções

constituíam-se numa identidade coletiva. Os integrantes partem do princípio instituído por

Paulo Freire - ver, julgar e agir - para conhecer as necessidades do grupo. Da reflexão dos

anseios e necessidades, suas dificuldades e metas, passam a definir as estratégias de luta,

injetados de uma força que se manifesta nas expressões do coletivo, constituindo-se em atores

que se inserem nas relações sociais, transformando-as.

Juntos, homens e mulheres cantavam os contos do seu cotidiano, estudavam e

descobriam a exploração da mulher que acumulava dupla ou tripla jornada de trabalho.

Através da canção, descobriam que isso não é “natural”, mas construção de uma sociedade

patriarcal e capitalista. Se antes a mulher era subjugada como sexo frágil, nos movimentos de

base ela passa a ser vista com igualdade de direitos e valores. Criando consciência, mulheres e

homens vão contando e cantando esse processo, demonstrando a força do engajamento por

meio da canção popular: “Entrei na luta, da luta eu não fujo./ Pelos direitos, da luta eu não

fujo./ Pela igualdade, da luta eu não fujo./ Pra construir uma nova sociedade”.(Autor

desconhecido).

As tradições musicais das comunidades lageanas guardam heranças que permanecem

geração após geração. Conforme Alzira: A mística é a “alma”, o sonho, a motivação que

congrega pessoas em torno de uma mesma luta. A mística é pessoal, mas se soma ao coletivo.

E a canção popular tem o poder de aglutinar sonhos e desejos, fazendo com que uma multidão

72 “Massa Falida” Duduca e Dalvan, 1986 73 Composição de Antonio Gringo (s/d).

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se entusiasme junto, pela mesma motivação. Por isso a música cumpre o papel de animação,

criando movimento – ação, a partir de uma inspiração que o canto evoca.

Combinando gesto, voz e forma como é executada ou cantada, a música contribui

para desenvolver um melhor senso de observação e crítica dos fatos quando relacionada com

a realidade. É capaz de estreitar relações e possibilitar estratégias para sair de impasses ou

melhorar a capacidade de analisar criticamente as situações do dia-a-dia, pois pela letra da

canção se canta inclusive o que não se pode falar. Quando o cantor lança mão desses recursos

ocorre uma situação comunicativa, onde o emissor necessita da resposta do receptor.

A enunciação da palavra ganha, em si mesma, valor de ato simbólico: graças à voz ela é exibição e dom, agressão, conquista e esperança de consumação do outro; interioridade manifesta, livre da necessidade de invadir fisicamente o objeto de seu desejo: o som vocalizado vai de interior a interior e liga sem outra mediação, duas existências (ZUNTHOR, 1997, p. 15).

Uma vez que a canção popular é produzida pelas comunidades, é vista como sua

própria linguagem. Nela se insere o jeito próprio das lideranças, seus códigos repassam falas e

ritmos comuns a todos, e cuja facilidade de assimilação independe do grau de escolaridade,

podendo ser apropriado às diversas camadas da sociedade.

As características culturais que possibilitam a luta pelas questões sociais do grupo

refletem-se na forma como este se articula. Elas são identificadas por meio das suas

manifestações, produzindo uma aprendizagem coletiva, articulada desde a formação bíblica,

unindo espiritualidade e celebração às ações das diversas Pastorais, buscando a construção de

um projeto político solidário e de um ‘novo jeito de ser igreja’, de forma alegre e

comprometida.

Utilizando a canção como mediadora é possível fazer um resgate histórico do

movimento, enquanto reformulação de atitudes, valores e formas de relacionamentos sociais

que refletirão coletivamente na produção de sujeitos autônomos e na formação de uma

consciência crítica das pessoas envolvidas, dando novo significado à luta e às conquistas do

grupo.

Conforme a coletânea “Pixurum” (2004, p. 36), editada pela equipe do Centro

Vianei, na diocese de Lages, 50% da força de trabalho era representada pela mulher urbana e

rural. No entanto, ela não é reconhecida como trabalhadora, sofrendo discriminação no

mercado de trabalho e sem direitos sociais. O boletim ressalta a cidade de Lages como uma

cidade historicamente marcada pela prostituição. Mulheres vítimas do machismo e com pouco

acesso à escolarização.

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A coletânea expressa dados levantados pela diocese de Lages no ano de 1989, em

que se percebe a situação de empobrecimento da população, vinculada ao processo de

dominação e submissão resultado de uma inversão de valores que tornam as famílias vítimas

do alcoolismo, drogas, injustiças, machismo, corrupção.

Mas a mulher, em Lages, também se organiza nos grupos populares, buscando

consciência que a leve à mudança desta realidade sofrida. É pelas comunidades eclesiais de

base que a mulher se faz presente no mundo social, envolvida em inúmeras pastorais sociais,

o que a torna presença de esperança.

Uma canção que se cantava nos Encontros das Mulheres em Lages e que sintetizava

o dia-a-dia da guerreira que tem, quase sempre uma tripla carga horária pra ganhar a vida,

proteger os filhos e ainda achar tempo de ser Mulher-Esposa é o canto: “Mulher é gente que

se organiza / gente oprimida buscando a libertação / luta com garra e decisão”. Esta canção

demonstra, em sua letra, a força da mulher que resiste às adversidades do seu cotidiano e que

não tem medo de ir à luta para conquistar seus direitos e os daqueles a quem ama. “Ela é

apoio, é presença sem descanso / enfrenta a barra, se enfeita, é charmosa / Resiste á luta,

cada dia é a mesma coisa / dizem que é fraca, mas é forte e corajosa. Mulheres que ‘dão a

vida’ e que muitas vezes, não têm onde deixar seus filhos para poder trabalhar.”Anda daqui,

vai dali o dia inteiro / volta do tanque, já é hora da comida / Um vai e vem que nem sempre

tem valor / Uma missão tão sublime e escondida. A lavradora entende o mistério / Da terra-

mãe que a vida faz brotar / É operária e luta no sindicato / Não se acomoda, quer o mundo

transformar. Políticas de saúde indefinidas não lhes garantem dignidade. Na canção, a mulher

encontrava a força que se abre para os grupos expressarem seus anseios e reivindicarem seus

direitos, a partir das reflexões que caminham para realidades melhores. “É professora e se

dedica o ano inteiro/ Pra construir o futuro da nação/ Mas o governo não entende o seu valor

/ E seu salário é sinal de exploração.

É o despertar da consciência crítica de muitas mulheres serranas para o valor de ser

mulher e trabalhadora, com confiança na força que obtêm nas lutas populares, sabendo que

são reconhecidas em seus valores, recuperando seu direito de expressar-se, de reconquistar

sua dignidade e auto-estima.

O Centro Vianei de Educação continua ativo (2007), incentivando e apoiando os

Sindicatos Rurais, as Associações de Moradores, e todos os Grupos voltados à melhoria da

condições de vida dos menos favorecidos, à defesa do meio-ambiente, lutando contra as

tecnologias que escravizam homens e mulheres que lutam por uma sociedade melhor.

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3.5 Núcleo alternativo de Educação Popular – NAEP – Suas lutas e canções

O NAEP surgiu, paralelamente à campanha eleitoral de 1988, da necessidade de

trabalhar a conscientização nas camadas populares com líderes que faziam parte de vários

grupos de Pastoral, uma equipe não vinculada à igreja, formada por lideranças de diferentes

grupos. Por meio de um projeto, esse grupo(NAEP) organizou-se, com registro no CNPJ. Sua

sede ficava na Rua Café Filho, no bairro Popular, em Lages. Seus integrantes reuniam-se para

estudar diversos assuntos referentes à comunidade, como a Lei Orgânica do Município, IPTU,

Plano Diretor, Associação de Moradores, APPs de escolas públicas e outros. Periodicamente,

os grupos se reuniam para estudar diversos assuntos de interesse da Comunidade. Dentre eles,

um assunto muito importante era o entendimento da função do vereador e a sua importância,

junto ao Legislativo, na reivindicação das necessidades dos bairros.

A partir dos estudos realizados, o grupo voltava para atuar na comunidade onde

estava inserido, promovendo reuniões para reflexão e conscientização, enfatizando temas do

interesse de todos.

Segundo Thompson citado por Piana (2001, p. 21), “as classes surgem porque

homens e mulheres, em relações produtivas determinadas, identificam seus interesses

antagônicos e passam a lutar, a pensar e valorar em termos de classe”. Assim, percebe-se que

onde há exploração, miséria ou injustiça, os sujeitos sociais se manifestam permanecendo

como ‘agentes’ edificadores de uma consciência de classe que pressupõe possibilidades de se

criar uma sociedade melhor.

Na fala de um dos principais integrantes do NAEP, Vilson Laudelino Pedrosa,74

encontra-se a essência dos objetivos do núcleo: “Foi no Centro Vianei de Educação Popular

que realizei o curso de Técnico em Serviços Comunitários e adquiri ferramentas e aprendi

que esse profissional não pode se sobrepor à comunidade, mas sim auxiliá-la a vislumbrar os

caminhos que vai percorrer. As pessoas achavam que eu era seminarista, mas era o meu

perfil trabalhar para a comunidade. No Vianei tive professores como Antônio Munarim, Ari

Martendal, Geraldo Locks, Celso Lorascki, Sérgio Sartori e Jandira Bettoni e refletíamos a

questão social.”

74 Formado pelo Centro Vianei de Educação Popular no final dos anos 70, como Técnico em Serviços

Comunitários. Liderança nos Bairros Popular e Habitação no período pesquisado. Hoje, aos 43 anos, Advogado Previdenciarista. Compositor de grande número de letras das canções utilizadas nos Movimentos Populares de Lages.

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O que se percebeu no resgate da história desse núcleo, feita por Pedrosa, é que o

NAEP foi um movimento popular que utilizou muito a canção na sua metodologia de

trabalho. A produção musical pensada no interior do movimento refletia a intencionalidade

dos participantes em atingir suas metas. Os mesmos faziam a leitura da realidade onde

estavam inseridos e por meio das letras das músicas buscavam projetar uma outra história,

onde a inclusão fosse possível.

Essas lideranças, imbuídas por uma força que emergia da realidade vivenciada pelo

grupo, constituíram-se em sujeitos da luta e atingiram dimensões que se estenderam além do

grupo e da comunidade local, ultrapassando fronteiras de tempo e espaço, ou seja, formaram

outros grupos, em outras realidades, que se inseriam na mesma busca de organização para

uma vida melhor. As várias canções que foram criadas ou adaptadas de outras letras levavam

os participantes a contar suas vidas e lutas, cantando.

Essa metodologia era contagiante, considerando que muitos integrantes do grupo ou

pessoas que participavam dos encontros promovidos pelo núcleo identificavam-se com a

linguagem da música e passavam a refletir sobre a falta de saneamento, saúde pública,

educação de qualidade, assuntos que faziam parte do cotidiano da maioria dos moradores dos

bairros onde o núcleo atuava.

Pedrosa, que, além de músico, tinha facilidade em escrever letras ou adaptar letras

prontas ao contexto vivido pelas comunidades, relata: “A canção popular é um recurso

didático/pedagógico que possibilita fazer a leitura da realidade, para a pessoa se

conscientizar, para levar a refletir e chegar a um determinado objetivo. Às vezes a mesma

música, o mesmo objeto varia conforme o grupo, adaptando-se a cada realidade – num

determinado grupo mais do meio rural, você se adapta ao perfil; com os jovens, um

sambinha, cai bem”.

As lutas sociais vão constituindo sujeitos que apresentam um conjunto de práticas e

comportamentos sócio-culturais, valores e convicções que projetam uma realidade possível de

se viver sem exclusões ou divisões. Noções como estas podem ser contempladas em letras de

canções que, assumindo a defesa dos mais fracos da sociedade, relacionam-se à educação, à

saúde, à moradia, ao meio ambiente entre outros.

Quando a população passa a ser esclarecida sobre os problemas que a sociedade está

enfrentando, é mais fácil concretizar desejos de igualdade e de projetar um futuro melhor para

as gerações futuras.

A canção popular abre a possibilidade, como recurso didático, de complementar os

debates sobre determinado tema de maneira a atingir aspirações e compromissos do grupo, a

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partir de suas necessidades, que vão desde a melhoria do bairro até à eleição de uma liderança

que possa representá-los nos seus anseios comuns. É o clamor das comunidades, seus sonhos

que, à medida que se sonha comunitariamente, vai se tornando realidade, conforme a letra

dessa canção que animava a continuação das lutas dos grupos de CEBs de Lages, no período

histórico pesquisado e, ainda nos dias atuais, ecoa nas comunidades: “Ninguém pode prender

um sonho, / E impedir alguém de sonhar. / Ninguém pode cortar a esperança / de um povo

sofrido a lutar./ Ninguém pode abafar o grito do oprimido, / Clamando por Javé “. É a fé e a

ação que tornam o sonho possível: “Deus que salva e liberta seu povo / quer erguer o caído e

alimenta a sua fé./ Todo sonho alimenta a história / E a vitória do povo a chegar. /[...] É a

vida que é proclamada no grito em favor de todos aqueles que lutam pela conquista do pão e

da dignidade: “É preciso cuidar bem da vida, / Que vida sofrida se eleva em clamor./(...)

Ninguém pode abafar o grito / De quem sofre a suar pelo pão / Pela paz, pela justiça / E

anda à procura de um mundo melhor. (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).

O NAEP germinou e nasceu no período eleitoral. Iniciou-se com as campanhas dos

candidatos a prefeito e vereadores do município. Especificamente no bairro “Popular”, as

lideranças da Pastoral Operária (PO) resolveram apoiar candidatos que fossem

comprometidos com as lutas populares, preferencialmente se os mesmos fizessem parte

daquela comunidade. Alguns integrantes da PO e da PJ - Pastoral da Juventude - optaram em

apoiar uma liderança que se identificava com os anseios da comunidade.

O candidato a Prefeito, pelo PT, foi Francisco Kuster, e o representante da

comunidade, lançado e apoiado pelo Grupo, para vereador, foi Sauro Tadeu dos Reis75.

Pedrosa salienta a importância de se ter, como candidato, uma liderança envolvida

nas lutas comunitárias. Sobre Sauro, ele comenta: “Sauro aprendeu a falar na frente das

câmeras – era muito didático, a linguagem dele muito popular. Fazíamos filmagens,

desenhos e música como recursos pedagógicos. Isso fazia o pessoal refletir a realidade e

conscientizar sobre o voto – que é uma alternativa, uma arma – para fazer uma revolução.

Dessa forma eram organizadas as reuniões que nós fazíamos na cidade toda. Pessoal de

igreja católica, evangélica, associação de moradores, escolas e outros. Os cantos

ultrapassavam os limites do grupo. Nós fazíamos muitas reuniões.” E aos poucos, as letras

das canções foram confundindo-se à realidade das comunidades, que tomavam consciência e

que buscavam soluções para os problemas comuns: “De repente nossa vista clareou, clareou,

75 Integrante da Pastoral Operária, Sauro, hoje com 52 anos, naquela época era funcionário da CELUCAT –

empresa multinacional de papel e papelão, hoje denominada KLABIN.

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clareou / E descobrimos que o pobre tem valor, tem valor, tem valor./ Nós descobrimos o

valor da união, / Que é arma poderosa e derruba até dragão”. Os grupos de base passavam a

perceber que sustentavam os poderosos no poder, enquanto trabalhavam em troca de tostões,

sem reconhecimento: “E já sabemos que a riqueza do patrão / e o poder dos governantes,

passam pela nossa mão./ [...]A grande culpa é de quem manda no país, / Fazendo o pobre

infeliz.”As diferenças sociais são percebidas pelas comunidades e, muitas vezes, a canção

popular era a forma utilizada para salientá-las: “ O que vemos é deputado e senador / Militar e

jogador recebendo os seus milhões. / Enquanto isso o povo trabalhador, / derramando seu

suor, tem que viver de tostões. [...]. (CAMINHANDO E CANTANDO, 1994).

A canção popular nascida da realidade dos diferentes movimentos demonstra uma

função pedagógica que se relaciona às ações dos grupos, alcançando os diferentes segmentos

da sociedade. A letra desse tipo de canção interage nas atividades, nos processos coletivos e

possibilita a tomada de consciência das comunidades.

Pedrosa lembra também fatos da época de sua participação no grupo: “Participando

da Pastoral da Juventude, nós procurávamos conscientizar as pessoas da comunidade.

Queríamos que tivessem discernimento na hora do voto, por exemplo. Buscávamos eleger

uma liderança simples da comunidade, que estivesse envolvida nas pastorais.

Desenvolvíamos dinâmicas com esses grupos. A gente fazia filmagens e entrevistas. Dávamos

o exemplo do ‘tubarão e dos peixinhos’: - Quem é o Tubarão? - Em época de eleição,

aparece muito Tubarão por aqui? – E os peixinhos, quem são? – E se eles se juntarem?”

Mas não é apenas na hora do voto que os ‘peixinhos’ devem se unir. É comum

surgirem problemas na comunidade, percebidos, inicialmente, às vezes, por apenas uma ou

por poucas pessoas. Se essas pessoas apenas tecerem comentários ou procurarem,

isoladamente, resolver s situação, cada uma a seu modo, dificilmente chegarão a um ponto

comum. Devem unir-se e, juntas, debater o assunto e encontrar os meios para solucionar o

problema.

Para fixar melhor esses conhecimentos, muitas vezes utilizavam-se cartazes ou folhas

com desenhos mimeografados que ajudavam a entender melhor aquilo que era dito. O cartaz

em que apareciam os peixinhos, por exemplo, mostrava o poder da união dos mais fracos no

combate aos mais fortes. Muitos peixinhos, miúdos, unidos ficavam maiores que o tubarão

(Anexo D).

Outro cartaz utilizado para reforçar a idéia da importância da união era o que

apresentava o desenho de dois burrinhos amarrados um ao outro por um pedaço de corda.

Enquanto cada um puxava para o seu ‘monte’ de comida, nenhum conseguia alcançá-la. A

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partir do momento em que um respeitou a vez do outro e juntos, agiram para conseguir o que

desejavam, tudo se tornou mais fácil e ambos atingiram seus objetivos (Anexo E).

A reflexão sobre os problemas da comunidade era feita a partir da apresentação das

filmagens, da explanação do significado do desenho, da ligação com a realidade e da

dinâmica apresentada. A música era elaborada a partir dessa realidade, e assim se dava a

formação da consciência crítica dos participantes. Trabalhava-se o papel do vereador, suas

funções políticas e o que dele se poderia cobrar/esperar em favor da Comunidade que o

elegera.

Algumas músicas feitas pelo NAEP naquele período que antecedia as eleições

municipais em Lages, estão bem relacionadas com a dinâmica dos peixinhos e do tubarão76:

“A classe Trabalhadora ta vivendo sufocada / Pois os grandes estão mandando e a pobreza é

explorada.” Essa canção ressalta o grito de indignação dos trabalhadores sufocados: “Como

poderei viver / como poderei viver/ dia e noite / noite e dia com a barriga vazia.” Enquanto

aqueles que foram votados pela sociedade enriquecem, o trabalhador fica cada vez mais

oprimido, humilhado: “Os tubarões estão mandando prá ainda mais se enriquecer / vão

pisando na pobreza não deixando ela viver./ A classe trabalhadora sofre muita humilhação /

trabalha o mês inteiro e o salário não compra um pão”. E também, nessa letra, o trabalhador

é chamado à conscientização da realidade e da importância de saber votar: “Abra o olho

minha gente, não confie no doutor / quem defende a nossa pele / É o próprio trabalhador./

Nosso voto é uma arma pra lutar com o tubarão”. Lembrando que o voto é uma forma

inteligente de mudar a situação e que não se pode vendê-lo ou trocá-lo: “Não se deixe

enganar por um pedaço de pão. minha gente fique atenta no que vou apresentar / O Sauro é

companheiro, é nele que eu vou votar.

Essas canções são importantes para mostrar que é apenas por meio do esclarecimento

proporcionado pela educação que as oligarquias podem ser combatidas. O chamado “voto de

cabresto” não é conseguido do eleitor que conhece a verdade e sabe o que quer.

A canção popular aparece nas tradições, resgatando uma memória coletiva

constituída de imagens e símbolos que refletem o imaginário de seus participantes

interpretando e re-significando situações do contexto sócio-histórico do grupo. Ela auxilia no

‘fazer movimento’, pensando a realidade e assumindo o papel político no debate por meio de

suas letras que demonstram possibilidades de melhorias. Percebeu-se o que acima se

argumentou nas canções daquela campanha eleitoral, quando as comunidades elegeram um

76 Adaptação da Música de Luiz Gonzaga: “Peixe Vivo”.

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representante do bairro, participante de pastoral e que partilhava dos mesmos anseios: “Eu sou

trabalhador / sou companheirão / mas de promessas comigo não./ Estamos em tempo de

eleição / promessas não faltam na televisão / Só promessa engana / engana o peão / tudo

acaba no dia que termina a eleição.../ ”. As comunidades se conscientizam de que é preciso

eleger alguém que conheça os anseios e necessidades dos seus eleitores e que busque

soluções: “Quem votou se arrependeu / Pois o cruzado desapareceu / foi mentira, mentira /

que os “home” elegeu / E o povo comendo / O pão que o diabo não comeu / Nosso voto é

uma arma / Pra lutar com o tubarão / Não troque sua consciência por um pedaço de pão /

Mas comigo não!

Trazendo situações de grande número da população que se encontra à margem da

sociedade, no resgate de seus sonhos, utilizando uma linguagem com características próprias,

constituída por valores e costumes, reinventando formas de participação popular que tornam

possível transformar utopias em realidades, o grupo vai adaptando letras e esta mesma

comunidade vai ajudando a cantar sua história. Canções como esta que falava dos anseios da

comunidade em eleger um de seus líderes: “Nossos direitos vêm/ nossos direitos vêm/ se não

‘vir’ nossos direitos o Brasil perde também.” E da percepção de que estão sendo enganados

por aqueles que vêm ao bairro só em tempo de eleição: “Os grandes só oferecem coisa pra

nos enganar / chegam aqui em nosso bairro só na hora de votar / esse ano em nossos planos /

Os tubarões entram nos canos e nossos direitos vêm.”Cantando, os grupos passam juntos a

ensinar a aprender sobre o papel de cada um no momento de escolher os seus representantes

políticos: “Tem gente que só acredita no homem que tem dinheiro / Vende o voto por um

rancho, elegendo o fazendeiro / Não sabe o desgraçado / que quem vai ser explorado / Vai

ser ele por primeiro”. E apresentam a sugestão: “Já chega de esperar a mudança que não

vem / Só promessa e conversa já não serve pra ninguém / Vamos votar pra mudar / Nossa

vida transformar / E os nossos direitos vêm./ Apresento um candidato da nossa comunidade /

Sua luta e sua vida conhecemos de verdade / Agora é a nossa vez / com Sauro Tadeu dos Reis

/ Os nossos direitos vêm.

Esta letra mostra a realidade no tempo de eleições, onde, por um rancho se compra o

voto daqueles que não têm consciência. A canção incita a comunidade a fazer distinção entre

o candidato que só aparece no bairro em período eleitoral, cheio de grandes promessas e

aquele que é da comunidade, que está sempre envolvido nas lutas em favor dos pequenos.

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Outra letra77 que reforça a importância de se eleger um trabalhador comprometido

com as causas das comunidades mais carentes: “Hei, hei PT / eis aqui o grande feito / Jari

para vice e o Kuster prá prefeito. / Eu queria nesta minha terra / ter o meu pequeno eito / Isto

vai acontecer/ Se o PT eleger o prefeito”, salienta, ainda, que essas classes são exploradas

constantemente, com baixos salários, condições precárias de sobrevivência, alto custo de vida

enquanto o poder público prioriza empresários que possuem o monopólio: “E hoje nesta

cidade / O prefeito diz que ta tudo azul / Mas o transporte Coletivo / Só dá LUCRO pra (...)./

E a questão da habitação / É um caso mais urgente / Neste grande chão da gente / Há tanta

gente sem chão”. Assuntos sociais dos quais as classes populares estão carentes também são

lembrados: “Saúde popular / É um caso muito sério / Se continuar assim / O endereço é o

cemitério./ Ai, ai Jesus / Veja só que pesada cruz / Não agüentamos pagar a água / E

cortaram nossa luz.” E sugere a solução: “Vamos todos companheiros / Se lançar nesta

disputa / O PT é a alternativa / Pra quem quer entrar na luta”.

O trabalhador está cansado de promessas. E, a partir das reuniões que o NAEP

desenvolveu nos bairros mais carentes de Lages no período pesquisado, fazendo e ensinando a

fazer uma leitura mais crítica da realidade, parte dos moradores passam a falar sobre o

‘sufoco’ da classe trabalhadora para sobreviver. Percebem que não é só um problema pessoal,

restrito ao bairro em que vivem, mas é uma situação de todos os trabalhadores da Região e do

Brasil.

Assim, cantando, os integrantes do NAEP ensinam o povo a pensar e, como afirmou

Pedrosa, os moradores das periferias da cidade de Lages assumem uma nova forma de

contemplar as promessas daqueles que se apresentam como candidatos a cargos públicos. As

comunidades passam a analisar as propostas e a refletir a respeito do que seria melhor para o

coletivo. É o que se percebe nesta letra feita pelos integrantes do NAEP, adaptada, com ritmo

de samba, que expressa uma realidade visível: “No bairro ninguém vive de ilusão / são

trabalhadores que vivem na exploração / Cansados dessa exploração, muitos trabalhadores

buscam na bebida, afogar as suas mágoas: “ A chegada no Bairro / quando chega de noitinha

/ Muita gente chegando / tomando uma cachacinha / são operários, distintos trabalhadores /

Estão todos cansados / Cansados de favores / Favores que não pagam as suas contas, que

continuam a crescer: “Mas no Bairro... / Assalariados que só dão produção / Chega o fim do

mês / Vejam a situação / Paga o aluguel, água, luz e condução / No final das contas / Não

sobra nem pro seu pão / Não agüento isso... O operário convence-se de que é preciso mudar e

77 Paródia feita a partir de uma das músicas de Kleiton e Kledir.

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de que sua melhor arma é o voto: “Mas agora é hora / do nosso trabalhador / começar a lutar

/ Por uma transformação / votar em branco não é a melhor solução / Votar pra valer / É

votar no PT / Mas no Bairro...

A luta em defesa das mulheres esteve também muito presente no processo de ensino-

aprendizagem do NAEP.

A partir das canções criadas ou das quais o grupo se apropriou, houve um grande

incentivo para que essas mulheres se conscientizassem de seus direitos e tivessem consciência

de que, na roça ou na cidade, é possível mudar a realidade. Para isso é preciso participar,

conhecer os problemas existentes e buscar, juntas, com o movimento, forças para transformar

a situação que oprime.

O convite à mulher que vai à luta na busca por garantia de seus direitos é tema de

uma canção adaptada por Pedrosa, e que o NAEP apresentava sempre nas suas reuniões com a

comunidade, como forma de mostrar que a força da mulher está na sua participação, que ela

pode, e deve, organizar-se e lutar por seus direitos: “A companheira anunciou / e a vitória não

tardou / o povo não cochilou / e a luta continuou!”. O convite se espalhava entre as

companheiras de luta: “Comadre não vá simbora / Não vá simbora / Fica mais um bocadinho

/ Um bocadinho / se você for o grupo chora / O grupo chora / Vamos agüentar mais um

tiquinho / Mais um tiquinho.../ Vamos entrando nessa luta / Não corremos dela não / Pois o

povo tem direitos / Vamos fazer transformação! Conhecem a sua realidade e sabem que é

preciso mudá-la: “Na comunidade é só desgosto / É só desgosto / Tá no abandono e sem ação

/ E sem ação / falta luz, saúde e posto / Saúde e posto.” Engajadas, as mulheres têm um

mesmo ideal: “ Vamos buscar a solução / A solução. / Vamos lutar organizados / Pra buscar

nossos direitos / Passo a passo nessa luta / Nossa força tem efeito.

Denunciando o machismo e a opressão dos poderosos, e propondo uma nova

consciência de luta e transformação, uma canção trazida pelo NAEP nos encontros com a

comunidade, mostrava duas realidades a serem escolhidas pelos participantes, pessoas que

acalentam sonhos e esperanças de uma sociedade mais igualitária para todos:”Eu vou ficar é

do lado de cá / é do lado de cá que eu vou ficar (Bis)”. As comunidades, especialmente asa

mulheres, passam a perceber as desvantagens do machismo: “Quem é a favor do machismo /

Vai ficar é do lado de lá / Mas quem é a favor da mulher, vai ficar é do lado de cá!”. Elas

traçam um paralelo entre o machismo que sofrem em casa e na sociedade e o machismo

político, que não lembra dos direitos da mulher: “No governo dos grandão / Não vou mais

acreditar / Somente em quem é pobre é que eu agora vou confiar / Com o salário de fome /

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Não dá pra ninguém passar / Meio dia só merendo, à noite fico sem jantar”.As mulheres

precisam se unir, buscar forças e agir politicamente em favor da sua comunidade: “As

medrosas e acomodadas vão ficar é pro lado de lá / Quem luta e tem coragem, vai ficar é do

lado de cá”. Mas o sucesso depende de participação e organização: “Nossa luta é bonita /

Vamos é PARTICIPAR / Nada de se dividir, vamos é se ORGANIZAR”.

A canção reforça a importância da organização e participação para que ocorra a

mudança de situações que oprimem e escravizam homens e mulheres que vivem sem

dignidade e respeito, mas que encontram forças nesta forma alternativa de expressão que é a

canção popular, lutando de diversas maneiras para resistir e manter a chama da esperança e da

fé na construção de um mundo melhor e com mais justiça.

A partir da letra ‘Olê, Mulher Rendeira’, o NAEP criou uma paródia que vem trazer

à tona os problemas enfrentados pela mulher e as formas em que pode se organizar para

denunciar essa opressão: “OLÊ MULHER RENDEIRA / OLÊ MULHER RENDÁ / Tu me

ensina a fazer renda / que eu te ensino a reclamar (Bis). É o convite para a mulher entrar na

luta: “Mulher abandonada sai do canto e vem pra cá / Pra ver nossos direitos / Para a vida

melhorar”. É um chamado para a mulher se libertar da escravidão que lhe é imposta por sua

condição feminina: “A mulher desde criança já começa a acreditar / que só deve obedecer /

como escrava sem falar”. Enfatiza a discriminação salarial: “Sua jornada é pesada / seu

salário bem menor / sua jornada é dobrada / seu trabalho bem maior.” Mesmo assim, sem

dar atenção ao que dela falam, ela vai à luta, pois sabe que: “Só o trabalho do marido / Sua

família passa fome / Mas o povo ainda condena / diz que está atrás do homem”. Ela encontra

forças ao lembrar que: “Na coragem da mulher / Jesus Cristo acreditou / condenando as

diferenças / A mulher valorizou”.

A canção popular pode apresentar-se com diferentes roupagens. Ela fortalece o

grupo. Em Lages se fazia um trabalho didático-pedagógico, no qual a música vinha fortalecer

aquilo que não tinha sido explicitado de outra forma. Um determinado grupo entende o

problema que está enfrentando e consegue se organizar. Esse é o principio de todo o processo

de organização, toda a metodologia de Paulo Freire. Decodificar uma situação, entender e

depois passar a ler a realidade em que vive. No caso específico da mulher que se organiza,

mais uma canção aparece nos documentos recolhidos no NAEP e que enfatiza seu papel na

transformação por dias melhores: “A nossa vida, Mulher, é um sofrer / Vamos lutar para um

dia nós vencer (Bis)”. A mulher toma consciência da força da união: “Todas as mulheres já

estão se organizando / todo dia trabalhando por um futuro melhor / sempre lutando por uma

comunidade / Pra falar com mais verdade / Ninguém pode viver só”. A canção lembra

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também as dificuldades que a mulher sempre enfrentou: “Antigamente a mulher não

desenvolvia / sequer sabia fazer uma oração / E nem sabia assinar seu próprio nome /

Passava o dia com fome / ‘escorada’ no fogão.

Essa letra lembra como era a mulher de antigamente, que não participava nem

mesmo das decisões dentro da própria casa. Suas funções iam do tanque ao fogão e quem

‘mandava’ era o marido. Saía dos mandos do pai e passava aos mandos daquele que ia viver

ao seu lado ‘até que Deus os separe’.

Agora, a mulher é chamada a ‘fazer parte’ de tudo, da sua residência até as decisões

da comunidade e também do país. Grande número de mulheres sustenta a casa, estuda, e

participa das decisões políticas na sociedade. Uma nova sociedade onde homens e mulheres

têm direitos e deveres iguais. Direitos esses muitas vezes conquistados nas lutas iniciadas nos

movimentos de base.

Segundo Neide Catarina Turra78: importa destacar que, em nível de Brasil o PT

tentava projetar-se como a melhor opção para a classe trabalhadora. Lula ganhava visibilidade

e conquistava espaço, mesmo não se elegendo em nível nacional. Em Lages Kuster e Jari

também não se elegeram, mas Sauro Tadeu dos Reis é eleito com votos de todos os Bairros da

cidade de Lages e inclusive do meio rural. Até o próprio partido se surpreendeu, ou melhor,

não acreditava muito na força do NAEP e já tinha projetado o perfil de vereador desejável

para o partido.

Ainda segundo Turra, a canção popular ocupava um papel importante no processo de

conscientização e organização das comunidades, e também nas lutas sindicais. Em certas

realidades a canção popular é transmitida muitas vezes por meio da cultura oral, ocasionada

pela falta de acesso a níveis de escolaridade pelas classes populares brasileiras, pela

linguagem oral, com letras repetidas e cantadas e conteúdos metodologicamente assimilados

pelo grupo.

Considerando-se o duplo papel da Canção Popular desempenhado neste processo que

vai da animação mística ao conteúdo propriamente dito, a Canção Popular incita a refletir

sobre opiniões e expectativas desta sociedade que possui uma apropriação desigual do capital

cultural e que vive, relativamente, à margem dos grupos hegemônicos.

78 Doutora em Ciências Sociais pela PUC/SP. Integrante do NAEP. Na época, professora da Rede Estadual de

Ensino e Secretária Executiva do SINTE – Sindicato dos Trabalhadores da Rede Pública de Ensino do Estado de Santa Catarina. Na atualidade é diretora do VENCER – Instituto de Pesquisa e Educação Sócio-Jurtídico-Cultural – Lages/SC. Entrevista concedida na data de: 15/11/2007.

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Turra afirma ainda que na canção popular o ritmo da música é bastante valorizado,

tem que ser algo alegre, dinâmico, dando ênfase à composição escrita, onde a realidade de

quem compõe, de quem interpreta e de quem ouve se contextualizam numa realidade histórica

e cultural comum. Dessa forma, a palavra dita através da canção popular é o instrumento do

compositor. Este se torna um mediador entre o contexto que se quer refletir pela letra da

canção e o entendimento que o grupo tem e pode refletir a partir do que canta. Quem produz

ou adapta a letra precisa, em primeiro lugar, reconhecer o objetivo que tem através deste meio

comunicativo e significativamente metodológico.

Exemplo disso é a Canção Popular apresentada por Pedrosa e cuja letra foi composta

por ele e pelo grupo dos Bairros Popular e Habitação, sugerindo aos participantes das

comunidades, que se inserissem no processo de mudança: “Eu quero ver se você não se mexe

/ Eu quero ver quem se mexe por você./ Tem muita gente que não entra nessa luta / fica

esperando o doutor vir melhorar / Mas é engano, ele entra pelos canos / O danado do fulano

ta querendo é enganar”, e lembram mais uma vez da valorização do voto e na importância de

eleger uma liderança de pastoral: “Não se leve pela força do dinheiro / Meu amigo, meu

irmão seja ligeiro / Se oferecerem pra pegar seja o primeiro / E na hora de votar, vote no seu

companheiro”.

É possível perceber-se que a letra desta canção aparece auxiliando na educação das

lideranças no que se refere à defesa de seus direitos, neste caso, o direito do voto que não

pode ser trocado por nada. É pelo direito do voto que o cidadão tem a oportunidade de buscar

alternativas de mudanças.

Numa Paródia feita por Pedrosa com a participação dos integrantes do grupo,

partindo da música “Pinga Ni Mim” do Cantor Sérgio Reis é retratada a situação da saúde nas

comunidades. Aproveitando o ano eleitoral, quando as pessoas se tornam mais atentas para

saber qual o melhor candidato, a letra faz um questionamento com relação às verbas que vêm

com o objetivo de dar qualidade no atendimento em Postos de Saúde e Hospitais, chamando a

atenção para a realidade que é muito diferente da esperada: “Se a saúde está precária / veja

por que / chegam as verbas, mas ninguém vê.” A letra lembra aos participantes das reuniões a

realidade cruel enfrentada pelas classes populares: “Nosso povo está doente, mas que coisa

indecente / Não dá mais para agüentar / Os impostos são cobrados / Só que não são

repassados / Para a gente se tratar”. Através desta letra, os moradores dos bairros, que se

reúnem com o NAEP, tomam consciência dessa situação, o que passa a interferir no

momento de eleger um novo representante nos diversos segmentos políticos: “O povão

sentindo isto, assumiu o compromisso / Para a vida defender / Viu que a luta não se finda /

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Mas que pra morrer à mingua / Bem melhor é combater”. Em favor de igualdade para todos,

as CEBs passam a assumir o compromisso: “Já é hora companheiro / Vamos se ‘juntá’

ligeiro / Somos força pra lutar / com aqueles que exigem: igualdade, casa e pão / E terra pra

trabalhar/ Convocar grande platéia / Lá na base assembléia / E o prefeito pressionar /

Assinar então o projeto / pra deliberar as verbas pra saúde melhorar.

Segundo Turra, a história do NAEP tornou-se ímpar e imortal. Conforme afirma

Habermas (in: ZITKOSKI, 2000, p. 14): “o cultivo da razão comunicativa em seus processos

de elaboração de novos sentidos da vida humana, emergem das ações comunicativas

compartilhadas no Mundo da Vida”. Assim, a emancipação de pessoas e de grupos que

cultivam experiências de processos de libertação está diretamente relacionada com a

capacidade humana de reconstruir os processos socioculturais, que estão na raiz das estruturas

sociais alienantes e opressoras. É ainda segundo a concepção habermasiana “a ação

comunicativa” que efetivamente se desenvolve na argumentação crítica, no debate e na

produção de novos consensos sobre o mundo social, que as sociedades atuais poderão superar

as conseqüências desumanas de um poder institucional voltado para os fins de controle e

dominação social.

Ainda segundo Turra, a Canção Popular, nos moldes que o NAEP adotou em sua

metodologia de trabalho, possibilitou desenhar propostas e assumir desafios de construir

novas alternativas que transcendessem as formas ou modelos tradicionais, a partir dos quais a

Canção Popular fundamentava sua ação prática de intervenção na realidade. Foi norteado por

esse espírito de transformar modelos opressores e de conscientizar grupos a buscarem seus

direitos enquanto cidadãos, que várias lideranças foram sendo forjadas no bojo do núcleo.

Mesmo que o grupo, com o passar do tempo tenha se diluído, essas lideranças continuaram a

construir espaços de ação comunicativa e emancipatória por onde passaram, e a constituir

suas vidas e espaços de trabalho sempre em prol da Comunidade.

Turra afirma que, “se olharmos, numa perspectiva histórica, para o nosso passado,

veremos que o trabalho realizado por meio da Canção Popular existiu bem antes da

existência do NAEP, pois na história dos movimentos sociais progressistas, principalmente

na Região Nordestina, a Canção Popular fez parte da luta pela libertação de setores

oprimidos, marginalizados e injustiçados em nossa sociedade. Mas, sem sombra de dúvidas,

a Canção Popular no NAEP tem uma história exemplar e o desafio que se impõe a nós, hoje,

é o de resgatar essa bagagem histórico-cultural – efetivada ao longo dessas décadas em que

a Canção Popular proporcionou e continua proporcionando, a quem a ela recorrer,

fortalecimento de laços e valores culturais, através da recriação e reinvenção das mesmas,

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inspirando-se no nosso “Mundo da Vida” original e próprio de pessoas e grupos que

almejam por meio de processos sociais coletivos mudar situações da realidade que

desqualificam a vida humana.”

Neste sentido, Turra continua: “embora não tenhamos ainda efetivado grandes

processos de transformações históricas e sociais a partir do NAEP e das ricas experiências

efetivadas pela Canção Popular por nós já vivenciadas, as raízes de um processo cultural

autêntico estão muito vivas entre nós e, portanto, podemos afirmar que o legado, hoje, dessa

utopia, continuará nos impulsionando para o sonho e a esperança em nosso futuro. Através

de nossas ações contribuiremos na construção de um mundo mais humanizado, belo e feliz.”

Na atualidade, segundo Pedrosa: “continuo cantando em minhas práticas

advocatícias junto aos moradores de diversos Bairros da cidade de Lages. Canções

Populares que enfocam a questão da exploração às classes subalternas, aqui refletidas,

planos governamentais que prejudicaram ainda mais a vida das comunidades, desemprego,

saúde precária, questão ambiental, planos previdenciários ineficientes e muitos outros

problemas que afetam a vida dos cidadãos.” E relembrando, mais uma canção daquele

contexto que marcou os movimentos em favor da vida para todas as classes populares de

Lages, Pedrosa cita: “Nossa vida ta virada, ta virada nossa vida / De um jeito que não se viu /

O governo apareceu, muita coisa prometeu / Veja só o que saiu / Fez do povo um otário /

congelou nosso salário / Montando muita trama / Foi na GLOBO que passou / Todo o plano

que enrolou / mas a nós ninguém engana...” O grupo cantava com fé, buscando combater a

exploração que se apresentava de diversas formas: “E com chimarrão e fé / todos vão firmar o

pé / prá lutar e transformar / abra o olho companheiro / o banqueiro é um vespeiro /

querendo te pinicar”. O convite era para todos aqueles que se mostrassem insatisfeitos e que

acreditassem que era possível transformar: “Seu Chico avise a comadre, dá um toque no

compadre / Que a inflação disparou / O Palloci só mentiu, pois o povo nunca viu / A inflação

que controlou / Os planos que já passaram, pode crer que retornam / Olha, olha minha gente

/ Desemprego e recessão, mentira e EXPLORAÇÃO / Não vai ter ninguém que agüente”. E o

grupo adquiria força para vencer: “Não tem outra, pode crer, ta na cara é só ver / Pra que

lado coloriu / Pra empresário e banqueiro / rico, grande fazendeiro / O plano “ele” pariu /

Só por ser um ALIENADO”.

Analisando-se as várias letras apresentadas neste Capítulo, é possível perceber-se que,

de forma lúdica, as Canções Populares, realmente, exercem um importante papel sócio-

político-pedagógico, constituindo-se em instrumento de luta e transformação para as

comunidades organizadas que buscam um amanhã melhor.

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CONCLUSÃO

Após o desdobramento do objeto de estudo dessa pesquisa, a canção popular nas

CEBs de Lages, nas décadas de 70 e 80 do século XX, convém retomar o problema central da

mesma, tendo em vista uma reflexão mais atenta às conquistas e aos resultados que foram

possíveis perceber pelas análises, bem como sobre o sentido histórico que caracteriza as

reflexões explicitadas por meio das canções populares descritas neste trabalho.

A pesquisa não pode ser desarticulada do contexto histórico das pessoas que

participaram do cenário pesquisado, no qual a canção popular teve um papel importante,

sendo vista como uma forma de compreensão daquele período histórico e do local em que se

apresentou, refletindo a cultura das comunidades, seus hábitos, costumes e crenças e também,

considerando as potencialidades do tempo presente e a riqueza intrínseca às contradições

sociais e culturais que o constituem.

Partindo-se das letras das canções produzidas e/ou adaptadas pelos participantes dos

diferentes grupos de CEBs, pôde-se perceber a construção de uma identidade coletiva que

busca reivindicar, denunciar, promover ou proclamar o dia-a-dia de uma sociedade que se une

pelos mesmos objetivos, em benefício de todos.

Lages, local limite desta pesquisa, é uma cidade marcada pelas relações de poder que

submetiam os grupos populares ao coronelismo patriarcal e clientelista em um período

histórico em que a autoridade maior, nesse determinado espaço geográfico, estava com o dono

das fazendas, o que fortalecia o papel dos coronéis como ‘dominadores’. Assim, mesmo de

forma velada, abrandada pelo “compadrio” existente nessas relações, os menos favorecidos

economicamente sempre viveram em um regime de opressão, embora sem a censura político-

militar do regime ditatorial.

A Igreja Católica e a educação escolar também tiveram papel de destaque quanto à

dominação, pois a educação estava a cargo da Igreja e esta se mantinha ligada às oligarquias e

às classes médias na cidade. Também a imprensa tinha predileção pelas classes dominantes da

época, priorizando assuntos de interesse de grupos da sociedade da elite local e de partidos

políticos aos quais essa sociedade era ligada. A partir desse contexto de dominação, percebeu-

se uma cultura de submissão nas classes populares de Lages. Uma postura submissa, muitas

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vezes passiva, dos trabalhadores que estiveram expostos por muito tempo às relações de

poderes políticos e econômicos.

A Canção Popular dentro das CEBs, no período histórico das décadas de 70 e 80 do

século XX, foi o foco principal desta pesquisa que procurou mostrar como a Canção Popular,

de forma bem direcionada, revela a situação das pessoas, especialmente das classes menos

favorecidas, mostrando-lhes a possibilidade de luta pacífica por seus direitos de cidadãos e

incentivando-as a clamar por liberdade e justiça.

Vista por esse foco, a Canção Popular pôde ser compreendida como veículo de

expressão dos sentimentos, aspirações e afetos, sendo compreendida como documento de vida

de uma comunidade, definindo a realidade psicológica e social de seus moradores. Sua maior

expressividade está na representação da realidade em que é criada e na sua linguagem própria,

herança histórica de luta política, como identificação coletiva na qual se manifestavam

sentimentos semelhantes, refletindo a mesma ideologia em uma cultura em que as pessoas

comungavam do mesmo ideal. Essa canção que parte das vivências e subjetividades, da

realidade e do imaginário dos integrantes das Comunidades.

A Canção Popular nos Movimentos de Base de Lages era vista como uma expressão

do cotidiano do grupo que lhe serve de berço e que, ao mesmo tempo, a torna conhecida pela

maioria das pessoas. Essa Canção não surge de forma aleatória, sem objetivos: ela difunde

processos de aprendizagem, imaginação e criação. Sua temática é determinada pelos

acontecimentos históricos aos quais está intimamente ligada e seu compositor se identifica

com as manifestações do meio em que vive. Dessa forma, a canção popular não existe isolada

da história, nem da vida de quem a cria. Quem compõe ou interpreta a canção o faz

contextualizando o seu tempo, influenciado pela sociedade e para ela direcionando a sua

composição. Assim, a canção sofre a influência da sociedade e vice-versa.

Partindo do problema central proposto nesse trabalho, foi possível constatar um

permanente olhar em duas dimensões básicas que constituem o fenômeno da Canção Popular

nas CEBs. Ou seja, por um lado, buscou-se problematizar os atuais desafios que os atores e

autores da canção popular do período pesquisado enfrentaram para manter viva a utopia da

construção de uma sociedade emancipada diante da contemporaneidade política, econômica,

cultural e social da sociedade, que se caracteriza pela exclusão de muitos seres humanos do

processo educativo e social. Mas, por outro lado, também procurou-se avaliar de forma

dinâmica a contribuição sócio-cultural desse paradigma educativo.

Percebeu-se, na trajetória desta pesquisa, que a Canção Popular exerce um

importante papel na reflexão sobre opiniões e expectativas das sociedades que convivem com

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situações desiguais de apropriação do capital cultural e que vivem relativamente à margem

dos grupos hegemônicos.

Esse tipo de canção assume um papel importante na mediação entre os diferentes

meios sociais, como forma de expressar idéias e sentimentos dos diversos participantes das

comunidades, ‘falando’ por eles, dando visibilidade aos seus diferentes anseios. Muitas vezes,

por diferentes motivos — e, principalmente no período pesquisado, época de regime militar

— a canção ‘falava’ pelas pessoas, podendo ser entendida como uma forma alternativa de elas

se pronunciarem diante das manifestações de opressão. Por meio da Canção Popular, os

diferentes Movimentos de Base se definem, se organizam e se identificam.

Essa canção teve, e continua tendo, uma função importante nos diferentes contextos

da sociedade, principalmente dentro da igreja progressista e dos movimentos populares, com

letras de incentivo à luta pela liberdade e vida dos mais empobrecidos. Veiculada como

elemento participativo nesses grupos, a Canção Popular assume um papel de idealizadora do

semblante da comunidade que busca uma nova realidade em que todos sejam vistos como

sujeitos que se organizam e constroem coletivamente uma relação solidária de aprendizagem.

Na organização das CEBs de Lages, com suas diferentes frentes de trabalhos

pastorais, a presença da Canção Popular é vista como um instrumento no qual se inserem

sentimentos, valores e vivências da comunidade onde surge como documento da vida, das

aspirações e dos afetos destes participantes que têm interesses comuns. No conteúdo de suas

letras, temas como afetividade e partilha, cooperação e companheirismo identificam-se com

os compromissos assumidos pelo grupo no Movimento.

Por meio desse tipo de canção, feita a partir da criatividade e das vivências desse

grupo que comunga uma história de lutas, a canção pode ser vista como um fenômeno social

no qual participam diferentes atores da sociedade, com suas peculiaridades interagindo com o

meio, num diálogo que, comunicando o passado, procura reinventar o presente na expectativa

de criar uma nova realidade mais justa, solidária e melhor de se viver.

Mas o desafio ainda é enorme, se as pessoas que participaram dessa pesquisa

considerarem os entraves concretos da realidade social que precisam transpor para

efetivamente se constituírem pessoas livres e emancipadas em suas realidades atuais. O que

ficou evidente na contribuição, por meio da fala principalmente dos integrantes do NAEP é

que a experiência vivida no período em que o núcleo coletivamente pensou maneiras

alternativas de sobreviver e cantar suas lutas e vitórias ainda hoje perpassa suas vidas,

tornando-os inseridos em contextos sociais e culturais que têm como prioridade o ser humano,

ou seja, como diz Pedrosa: “nós hoje vivenciamos um horizonte humano-social que faz parte

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de nossa história de NAEP onde o nosso ‘jeito de ser’ traz uma memória histórica (símbolos

e referências culturais próprias) que onde quer que estejamos temos sempre presente a

‘Canção Popular’ como ferramenta de trabalho e sempre estamos apostando que nossa

história servirá de ponto de partida para outras lutas futuras onde o sonho e a esperança de

um mundo mais humanizado, belo e feliz nunca acabe e cada vez mais se torne realidade

para muitas pessoas”.

Pelo que se pôde, durante este trabalho, compreender a respeito da Canção Popular,

conforme os próprios integrantes dos Movimentos puderam enfatizar, “era necessário que se

utilizasse uma forma alternativa de falar com as camadas populares da população.” Um

instrumento que fosse capaz de transmitir que a mudança se fazia necessária. E, de acordo

com esses integrantes de CEBs: “a Canção Popular foi eficaz na transmissão de

esclarecimentos a essas classes.”

Espera-se que os resultados aqui apresentados possam ser o ponto de partida para

futuros trabalhos que venham a pesquisar qual instrumento, nos dias de hoje, mais de vinte

anos passados, seria possível utilizar, de forma tão eficiente quanto a Canção Popular, como

se demonstrou nesta pesquisa, nas diferentes buscas para que as comunidades atinjam a

concretização dos ideais almejados.

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ANEXOS

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ANEXO A ROMARIA DA TERRA

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Anexo B Comissão Pastoral da Terra e a luta pela reforma agrária

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Anexo C Reunião de conscientização na comunidade

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Anexo D Conscientização: dinâmica do tubarão e os peixinhos

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Anexo E Conscientização: dinâmica dos burrinhos.