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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS Idir Canzi A PRODUÇÃO DO ESPAÇO JURÍDICO-POLÍTICO DOS MUNICÍPIOS NO DIREITO INTERNACIONAL: A PRÁXIS DO CONSÓRCIO INTERMUNICIPAL DA FRONTEIRA(CIF). Tese submetida ao Programa de Doutorado em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Doutor em Direito. Orientador: Prof. Dr. Arno Dal Ri Júnior Florianópolis 2016

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA · El marco teórico se sedimentó de Fustel de Coulanges, Pietro Costa, Henri Lefebvre, Ding, Dallier y Pellet, Dominique Carreau, Jean

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO

    CENTRO DE CINCIAS JURDICAS

    Idir Canzi

    A PRODUO DO ESPAO JURDICO-POLTICO DOS

    MUNICPIOS NO DIREITO INTERNACIONAL: A PRXIS DO

    CONSRCIO INTERMUNICIPAL DA FRONTEIRA(CIF).

    Tese submetida ao Programa de

    Doutorado em Direito da Universidade

    Federal de Santa Catarina para a obteno

    do Grau de Doutor em Direito.

    Orientador: Prof. Dr. Arno Dal Ri Jnior

    Florianpolis

    2016

  • Ficha de identificao da obra elaborada pelo autor,

    atravs do Programa de Gerao Automtica da Biblioteca Universitria

    da UFSC.

  • Este trabalho dedicado a todos

    aqueles que acreditam na produo do

    espao local e global que torna a vida

    mais interessante em tempos de

    grandes mudanas de paradigmas.

  • AGRADECIMENTOS

    Universidade Federal de Santa Catarina pela expanso do

    Curso do Doutorado em Direito, via convnio firmado com a

    Universidade Comunitria da Regio de Chapec (UNOCHAPEC),

    Chapec-SC (Dinter 2012/2016).

    Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Direito

    (CPPGD) da Universidade Federal de Santa Catarina.

    CAPES, avaliadora da qualidade do Programa de Ps-

    Graduao em Direito.

    Ao professor orientador Dr. Arno Dal Ri Jnior, referncia

    profissional para a pesquisa, amizade e saber jurdico-poltico decisrio.

    Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Direito

    (PPGD) da UFSC pelas aulas ministradas, incentivos e contribuies

    tericas.

    Aos professores membros da banca examinadora, pelas sugestes,

    crticas e incentivos.

    UNOCHAPEC, instituio de ensino superior que

    possibilitou o espao da minha experincia docente/profissional.

    A todos os professores do Curso de Direito da UNOCHAPEC e

    colegas da turma do Dinter pela trajetria de vida, trabalho, estudo,

    pesquisa e vivncias.

    Aos dirigentes, integrantes e funcionrios do Consrcio

    Intermunicipal da Fronteira (CIF), pela indispensvel contribuio em

    material e base do objeto do estudo e pesquisa.

    Aos professores Arno Dal Ri Jnior, Altamir Dutra, Celso

    Zarpelon, Maria Aparecida Lucca Caovilla, Marcelo Markus Teixeira,

    Reginaldo Pereira e Silvana Winkler pela parceria de vivncias, amizade

    e trabalho, para alm da produo de um mundo de coisas boas.

    Aos acadmicos da graduao em Direito da UNOCHAPEC

    pela histria de vida compartilhada.

    Ao amigo Victor Rojas, pelas conversas sobre utopia e realidade

    da cidade educadora, perspectiva e futuro de todos ns.

    Ao amigo, do bom dia da bicicleta, Sr. Lima, e aos jardineiros,

    Ademir e Roseli, da Rua Servido Oliveira, Rio Vermelho

    Florianpolis-SC.

    Aos familiares pelo amor e carinho recebidos, em especial Iraci,

    Eduarda, Daniel, Maria e Tarcsio. Famlia da alegria e do vinho

    famlia Canzi, obrigado!

    vida e sua produo cotidiana.

  • A cidade deveria ser bem mais interessante

    do que (Eduarda Andrade Canzi, 2016).

  • RESUMO

    A tese versa sobre a produo do espao jurdico-poltico dos

    municpios no direito internacional, tomando por base a prxis dos

    municpios de Dionsio Cerqueira (SC), Bernardo de Irigoyen (Provncia

    de Misiones), Barraco (PR) e Bom Jesus do Sul (PR), integrantes do

    Consrcio Intermunicipal da Fronteira (CIF). O problema central de

    pesquisa indaga sobre a seguinte questo: os municpios do Consrcio

    Intermunicipal da Fronteira (CIF), ao produzirem o espao social,

    poltico, econmico e cultural a partir da prxis do local e seu entorno,

    com atividades nas relaes internacionais, se tornam ou no sujeitos

    jurdicos de direito internacional? O desenvolvimento da tese estruturou-

    se em trs captulos, com densidade temtica aprofundada na doutrina,

    legislao e documentos de fonte primria, primeiramente com destaque

    sobre a produo do espao como dimensionalidade jurdico-poltica da

    cidade, seguido da abordagem da produo do espao jurdico-poltico

    dos municpios no direito internacional e fechando com a anlise da

    prxis dos municpios integrantes do Consrcio intermunicipal da

    Fronteira (CIF). O aporte terico foi sedimentado a partir de Fustel de

    Coulanges, Pietro Costa, Henri Lefebvre, Ding, Dallier e Pellet,

    Dominique Carreau, Jean Touscouz, Paolo Grossi, Santi Romano, Arno

    Dal Ri Junior, jurisprudncia da Corte Internacional de justia (CIJ)

    remissiva deciso do caso Folke Bernadotte, legislao e fontes

    primrias vinculadas a documentos e leis originrias produzidas pelos

    municpios do Consrcio Intermunicipal da Fronteira. A pesquisa

    utilizou-se do mtodo analtico-crtico de abordagem e de procedimento

    monogrfico. A hiptese no se confirmou, pois os municpios do

    Consrcio Intermunicipal da Fronteira (CIF), ao produzirem o espao

    social, poltico, econmico e cultural, a partir da prxis do local e seu

    entorno, com atividades nas relaes internacionais, criam uma

    juridicidade especfica, relacional e prpria dos espaos de

    representao glocalizada, caracterizada por um sistema consuetudinrio

    de direito internacional margem do direito oficial.

    Palavras-chave: 1. Produo do espao jurdico-poltico. 2. Municpios.

    3. Sujeitos de Direito Internacional.

  • ABSTRACT

    The thesis deals with the production of the legal and political space of

    the municipalities in international law, based on the practice of Dionsio

    Cerqueira (SC), Bernardo de Irigoyen (Misiones Province), Barraco

    (PR) and Bom Jesus do Sul (PR), members of the Consrcio

    Intermunicipal da Fronteira (CIF). The main problem of research asks

    the following question: the municipalities of the Consrcio

    Intermunicipal da Fronteira (CIF), to produce the social space, political,

    economic and cultural from the local practice, with activities in

    international relations, become or not legal subjects of international law

    or deals with the production of a specific, relational and own legality of

    representation spaces, not responding to national or international

    definitions? The development of the thesis was structured into three

    chapters, with thematic density in the doctrine, legislation and primary

    source documents, first with emphasis on the production of space as a

    legal-political dimensionality of the city, followed by the approach to

    the production of juridical space political municipalities in international

    law and closing with the analysis of praxis of the municipalities of the

    Consrcio Intermunicipal da Fronteira (CIF). The theoretical framework

    was pelleted from Fustel de Coulanges, Pietro Costa, Henri Lefebvre,

    Ding, Dallier and Pellet, Dominique Carreau, Jean Touscouz, Paolo

    Grossi, Santi Romano, Arno Dal Ri Junior, jurisprudence of the

    International Court of Justice (ICJ) remitting the decision of the case

    Folke Bernadotte, legislation and primary sources related to documents

    originating and laws enacted by the municipalities of the Consrcio

    Intermunicipal da Fronteira. The research used the analytical-critical

    method of approach and monographic procedure. The hypothesis has not

    been confirmed, since the municipalities of the Consrcio

    Intermunicipal da Fronteira (CIF) to produce social space, political,

    economic and cultural, from the local practice, with activities in

    international relations, create a specific, relational juridicity, particular

    from the spaces with a glocalizaded representation, characterized by a

    consuetudinary system of international law on the margins of official

    law.

    Keywords: 1. Production of the legal and political space. 2.

    Municipalities. 3. International Law Subject.

  • RESUMEN

    La tesis aborda la produccin del espacio legal y poltico de los

    municipios en el derecho internacional, basado en la prctica de

    municipios Dionisio Cerqueira (SC), Bernardo de Irigoyen (provincia de

    Misiones), Barraco (PR) y Bom Jesus do Sul (PR), los miembros del

    Consrcio Intermunicipal de Fronteira (CIF). El problema central de la

    investigacin pide a la siguiente pregunta: los municipios del

    Consrcio Intermunicipal de Fronteira (CIF), para producir el espacio

    social, poltico, econmico y cultural del lugar y sus alrededores

    prctica, con actividades en las relaciones internacionales, hacer o no

    sujetos jurdicos de derecho internacional, o se trata de la produccin de

    una legalidad especfica, relacional y propia de los espacios de

    representacin, que no responden a las etiquetas nacionales o

    internacionales? El desarrollo de la tesis se estructura en tres captulos,

    en profundidad la densidad temtica en la doctrina, la legislacin y las

    fuentes primarias de documentos, primero con nfasis en la produccin

    del espacio como una dimensin jurdico-poltico de la ciudad, seguido

    de la aproximacin a la produccin del espacio jurdico-poltico de los

    municipios en el derecho internacional y se cierre con el anlisis de la

    praxis de los municipios del Consrcio Intermunicipal da Fronteira

    (CIF). El marco terico se sediment de Fustel de Coulanges, Pietro

    Costa, Henri Lefebvre, Ding, Dallier y Pellet, Dominique Carreau, Jean

    Touscouz, Paolo Grossi, Santi Romano, Arno Dal Ri Junior, la

    jurisprudencia de la Corte Internacional de Justicia (CIJ) remitiendo la

    decisin del caso Folke Bernadotte, la legislacin y las fuentes primarias

    relacionadas con los documentos originarios y las leyes promulgadas

    por los municipios del Consrcio Intermunicipal da Fronteira. La

    investigacin utiliz el mtodo analtico-crtica del procedimiento de

    aproximacin y monogrfico. La hiptesis no fue confirmada debido los

    municipios del Consrcio Intermunicipal de la Frontera (CIF),

    produciren el espacio social, poltico, econmico y cultural, desde el

    punto de prctica y su entorno, con actividades en las relaciones

    internacionales, creando una juridicidad especfica, relacional y

    particular de la representacin glocalizada del espacio, que se

    caracteriza por un sistema de derecho internacional consuetudinario en

    los mrgenes del derecho oficial.

    Palabras-clave: 1. La Produccin del Espacio Legal y Poltico. 2. Los

    Municipios. 3. Sujeto de Derecho Internacional.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1 Croqui Parque Turstico Ambiental de Integrao............. 164

    Foto 1 Memorial de inaugurao da Escuela n 604 ........................ 178

    Foto 2 No quadro da escola Argentina, palavras escritas pelo

    professor brasileiro ................................................................ 179

    Tabela 1 Total de Alunos estrangeiros nas escolas do municpio de

    Dionsio Cerqueira ............................................................ 180

  • LISTA DE SIGLAS

    ABNT Associao Brasileira de Normas Tcnicas

    AFEPA Assessoria para Assuntos Federativos Parlamentares

    AID Associao Internacional para o Desenvolvimento

    AIEA Agncia Internacional de Energia Atmica

    ALCA rea de Livre Comrcio das Amricas

    AM Amazonas

    ASN Sociedade de Naes

    BIRD Banco Internacional para a Reconstruo e o Desenvolvimento

    BIS Bank for International Settlements CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel

    Superior

    CAT Centro de Atendimento ao Turista

    CDIF Comisso Permanente para o Desenvolvimento e a Integrao

    da Faixa de Fronteira

    CEE Comunidade Econmica Europeia

    CIJ Tribunal Internacional de Justia

    CNM Confederao Nacional dos Municpios

    CIF Consrcio Intermunicipal da Fronteira

    CF/88 Constituio Federal de 1988

    CPPGD Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Direito

    CPPLR Conselho Popular Para Ligas das Regies

    CREAS Centro de Referncia Especializada da Assistncia Social

    CRAS Centro de Referncia da Assistncia Social.

    DINTER Doutorado em Direito

    DIP- Direito Internacional Pblico

    FAO Food and Agriculture Organization Organizao das Naes

    Unidas para a Alimentao e Agricultura

    FARBOM Cooperativa de Laticnios Farbom de Bom Jesus do Sul-SC

    FIDA Fundo Internacional do Desenvolvimento Agrcola

    FMI Fundo Monetrio Internacional

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IFPR Instituto Federal do Paran

    INDEC Instituto Nacional de Desenvolvimento Econmico

    INSS Instituto Nacional de Seguro Social

    FMS Frum Social Mundial

    GGI Gabinete de Gesto Integrada

    MG Minas Gerais

    MERCOSUL Mercado Comum do Sul

    MMM Organizao Metereolgica Mundial

  • MRE Ministrio das Relaes Exteriores

    NFPR Ncleo Regional para o Desenvolvimento e Integrao da Faixa

    de Fronteira do Estado do Paran

    NAFTA North American Free Trade Agreement

    NFSC Ncleo Estadual de Integrao da Faixa de Fronteira do Estado

    de Santa Catarina

    OAA Organizao para a Alimentao e Agricultura

    OACI Organizao da Aviao Civil Internacional

    OCDE - Organizao de Cooperao de Desenvolvimento Econmico

    OEA Organizao dos Estados Americanos

    OIs Organizaes Internacionais

    OIT Organizao Internacional do Trabalho

    OMC Organizao Mundial do Comrcio

    OMCI Organizao Intergovernamental Consultiva da Navegao

    Martima

    OMI Organizao Martima Internacional

    OMPI Organizao Mundial da Propriedade Intelectual

    OMS Organizao Mundial da Sade

    OMT Organizao Mundial do Turismo

    ONU Organizao das Naes Unidas

    ONUDI Organizao das Naes Unidas para o Desenvolvimento

    Industrial

    ONGs Organizaes No Governamentais

    OP Oramento Participativo

    OTAN Organizao do Tratado do Atlntico Norte

    PB Pernambuco

    PDT Partido Democrtico Trabalhista

    PEC Projeto de emenda Constituio

    PIB Produto Interno Bruto

    PF Polcia Federal

    PM Polcia Militar

    PIDIF/SC Plano de Desenvolvimento e Integrao Fronteirio do

    Estado de Santa Catarina

    PPGD Programa de Ps-Graduao em Direito

    PR Paran

    PTI Parque Tecnolgico Itaipu

    RI Relaes Internacionais

    RS Rio Grande do Sul

    RJ Rio de Janeiro

    SDN Sociedade de Naes

  • SEBRAE Servio de Apoio s Micro e Pequenas Empresas de Santa

    Catarina

    SFI Sociedade Financeira Internacional

    SC Santa Catarina

    SDR Secretaria de Desenvolvimento Regional

    SP So Paulo

    SDN Sociedade das Naes

    TFUE Tribunal Federal da Unio Europeia

    TPI Tribunal Penal Internacional

    UE Unio Europeia

    UFSC Universidade Federal do Estado Santa Catarina

    UIT Unio Internacional das Telecomunicaes

    UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia

    e a Cultura

    UNOCHAPEC Universidade Comunitria da Regio de Chapec

    UPU Unio Postal Universal

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ................................................................................27

    2 A PRODUO DO ESPAO COMO DIMENSIONALIDADE

    JURDICO-POLTICA DA CIDADE, RELACIONADA AO

    MUNICPIO .....................................................................................33 2.1 ESTUDO DAS INSTITUIES NA EXPERINCIA JURDICA

    DAS CIDADES GREGAS, DE ROMA E DAS CIDADES

    MEDIEVAIS ...................................................................................36

    2.1.1 A origem da cidade e do regime municipal na teoria de

    Coulanges ....................................................................................36

    2.1.2 As cidades-Estado e a fundamental contribuio vida

    jurdico-poltica ..........................................................................41

    2.1.2.1 Cidades-Estado gregas ..............................................................42

    2.1.2.2 A cidade-Estado jurdica e a virtude cvica como ideal de

    cidado em Atenas e Esparta .....................................................44

    2.1.2.3 As cidades-Estado de Roma ......................................................48

    2.2 A CIDADE NA IDADE MDIA ENQUANTO ENTE POLTICO

    PRINCIPAL DOTADO DE IURISDICTIO E DE AUTOGOVERNO PELO EFETIVO EXERCCIO DE FATO DE SUA IURISDICTIO

    DE CITT .......................................................................................50

    2.3 A TEORIA DA PRODUO DO ESPAO DE HENRI

    LEFEBVRE: A PRODUO DA CIDADE POLTICA, DA

    CIDADE COMERCIAL E DO VALOR DE USO, DA CIDADE

    INDUSTRIAL E DA URBANIZAO ENQUANTO ESPAO

    SOCIALMENTE PRODUZIDO .....................................................55

    2.3.1 A produo do espao ................................................................59 2.3.1.1 A cidade poltica ........................................................................62

    2.3.1.2 A cidade comercial e do valor de uso ........................................65

    2.3.1.3 A cidade industrial e da urbanizao .........................................72

    2.4 A RECONFIGURAO DA PRODUO DO ESPAO

    JURDICO-POLTICO A PARTIR DO ESTADO MODERNO ....77

    3 A PRODUO DO ESPAO JURDICO-POLTICO DOS

    MUNICPIOS COMO SUJEITOS DO DIREITO

    INTERNACIONAL .........................................................................89

    3.1 O DIREITO INTERNACIONAL APLICADO SOCIEDADE

    INTERNACIONAL ........................................................................90

    3.2 O CASO BERNADOTTE COMO MARCO JURDICO INICIAL

    DA REVISO DO CONCEITO DE SUJEITO DE DIREITO

    INTERNACIONAL PBLICO ......................................................93

  • 3.3 AS PRINCIPAIS CONTRIBUIES DAS TEORIAS DE

    PAOLO GROSSI E SANTI ROMANO PARA UMA POSSVEL

    REVISO DO CONCEITO DE SUJEITO DE DIREITO

    INTERNACIONAL ........................................................................ 96

    3.4 AVANOS NO DEBATE SOBRE A NATUREZA E ALCANCE

    DE DIREITOS DAS COLETIVIDADES PBLICAS

    TERRITORIAIS ........................................................................... 103

    3.5 CONCEITO E CLASSIFICAO DE SUJEITO DE DIREITO

    INTERNACIONAL DE JEAN TOUSCOZ .................................. 105

    3.6 PRINCIPAIS SUJEITOS TRADICIONAIS ................................. 107

    3.6.1 O Estado .................................................................................... 108

    3.6.2 As organizaes internacionais ............................................... 112

    3.7 AS PESSOAS COLETIVAS NO ESTATAIS SUJEITOS

    EMERGENTES ............................................................................ 116

    3.7.1 As organizaes internacionais no-governamentais ............ 117

    3.7.2 As sociedades transnacionais .................................................. 119

    3.7.3 Os governos no-centrais ......................................................... 121

    3.7.3.1 Os Estados federados e comunidades no estatais nos

    ordenamentos europeus ........................................................... 122

    3.7.3.1.1 Os Lnder da Repblica Federativa da Alemanha ............... 124

    3.7.3.1.2 As comunidades e regies da Blgica .................................. 126

    3.7.3.1.3 A cooperao descentralizada e acordos pelas comunidades

    territoriais da Frana ........................................................... 129

    3.7.3.1.4 As iniciativas das comunas e governos infraestatais da

    Itlia ..................................................................................... 133

    3.7.3.1.5 Outras ordenaes Europeias ustria, Finlndia,

    Luxemburgo, Portugal, Sucia, Sua .................................. 136

    3.7.3.1.6 Os Municpios brasileiros .................................................... 138

    3.7.3.1.6.1 A ampliao da atuao internacional dos municpios

    brasileiros .......................................................................... 143

    3.7.3.1.6.2 O parecer da proposta de Emenda Constitucional PEC

    475/2005 da paradiplomacia ............................................. 148

    3.7.3.1.7 Consideraes ao compartilhamento de competncias dos

    governos no centrais, situados na dimenso subnacional dos

    Estados ................................................................................. 151

    4 A PRXIS DA PRODUO DO ESPAO GLOCAL PELOS

    MUNICPIOS DO CONSRCIO INTERMUNICIPAL DA

    FRONTEIRA(CIF) COMO DIMENSIONALIDADE AO

    RECONHECIMENTO OU NO DA CONDIO DE SUJEITOS

    DE DIREITO INTERNACIONAL .............................................. 153

  • 4.1 OS CONSRCIOS PBLICOS INTERMUNICIPAIS NA

    LEGISLAO BRASILEIRA ..................................................... 155

    4.2 OS NCLEOS ESTADUAIS DE SANTA CATARINA E

    PARAN DE INTEGRAO DA FAIXA DE FRONTEIRA .... 158

    4.3 CARACTERIZAO DO ESPAO GLOCAL DOS MUNICPIOS

    INTEGRANTES DO CONSRCIO INTERMUNICIPAL DA

    FRONTEIRA (CIF)....................................................................... 161

    4.4 MECANISMOS E INSTRUMENTOS DE ATUAO DOS

    MUNICPIOS DO CONSRCIO INTERMUNICIPAL DA

    FRONTEIRA (CIF)....................................................................... 169

    4.4.1 O Consrcio Intermunicipal da Fronteira ............................. 169

    4.4.2 O protocolo entre os municpios do CIF e entes subnacionais

    e estatais .................................................................................... 173

    4.4.3 Aes planejadas, realizadas e em execuo no mbito de

    atuao do CIF ......................................................................... 175

    4.4.4 A integrao intercultural bilngue ......................................... 177 4.5 A PRODUO DE UMA JURIDICIDADE ESPECFICA,

    RELACIONAL E PRPRIA DOS ESPAOS DE

    REPRESENTAO GLOCALIZADA ........................................ 181

    CONCLUSO ................................................................................... 187

    REFERNCIAS ................................................................................ 193

  • 1 INTRODUO

    O objetivo central da pesquisa da tese o de analisar a produo

    do espao jurdico-poltico dos municpios no direito internacional,

    tomando por base a prxis dos municpios de Dionsio Cerqueira (SC),

    Bernardo de Irigoyen (Provncia de Misiones), Barraco (PR) e Bom

    Jesus do Sul (PR), integrantes do Consrcio Intermunicipal da Fronteira

    (CIF).

    O estudo, objeto da tese, se justifica pelo forte despertar de

    interesse na ampliao de sua abordagem por parte de professores,

    estudantes e pesquisadores ante o complexo processo da globalizao, o

    qual abriu novas perspectivas para a atuao dos novos sujeitos de

    direito internacional. Os novos sujeitos de direito internacional,

    incluindo os governos no centrais, vm gradualmente disputando e

    conquistando espaos na agenda internacional com os governos centrais

    e se consolidando como sujeitos emergentes da dinmica internacional.

    O desenvolvimento da tese estruturou-se em trs captulos, com

    densidade temtica aprofundada na doutrina, legislao e documentos de

    fonte primria, primeiramente com destaque sobre a produo do espao

    como dimensionalidade jurdico-poltica da cidade, seguido da

    abordagem da produo do espao jurdico-poltico dos municpios no

    direito internacional e fechando com a anlise da prxis dos municpios

    integrantes do Consrcio intermunicipal da Fronteira (CIF).

    A questo indagativa para o problema de pesquisa foi formulado

    da seguinte forma: os municpios do Consrcio Intermunicipal da

    Fronteira, ao produzirem o espao social, poltico, econmico e cultural,

    a partir da prxis do local e seu entorno, com atividades nas relaes

    internacionais, se tornam ou no sujeitos jurdicos de direito

    internacional? A hiptese, resposta provisria inicial atribuda, era

    afirmativa possibilidade indicada no problema de pesquisa. Entretanto,

    no decorrer do desenvolvimento dos contedos da tese, delinearam-se

    limitaes impostas pelo direito internacional oficial, motivadora da

    apresentao de uma concluso dissonante da resposta provisria inicial,

    objeto de abordagem resguardada para apresentao no final da

    pesquisa.

    A opo terica em priorizar a abordagem sobre a produo do

    espao como dimensionalidade jurdico-poltica na constituio dos

    sujeitos de direito internacional, implica tambm no mtodo no

    separado da anlise. A anlise expressa o mtodo que se est a usar:

    analtico-crtico de abordagem e de procedimento monogrfico. Alis, a

    anlise, a partir da produo do espao, no exclui a diversidade terica

  • 28

    dos paradigmas na abordagem da insero e atuao dos sujeitos

    emergentes, includos os governos no centrais, no Direito e Relaes

    Internacionais. Entretanto, adverte-se que a produo do espao conjuga

    o espao terico e o espao concreto respectivamente.

    A pesquisa utilizou-se de referenciais bibliogrficos1, com

    assento terico sedimentado a partir de Fustel de Coulanges, Pietro

    Costa, Henri Lefebvre, Ding, Dallier e Pellet, Dominique Carreau, Jean

    Touscouz, Paolo Grossi, Santi Romano, Arno Dal Ri Junior,

    jurisprudncia da Corte Internacional de justia (CIJ) remissiva

    deciso do caso Folke Bernadotte, legislao e fontes primrias

    vinculadas a documentos e leis originrias produzidas pelos municpios

    do Consrcio Intermunicipal da Fronteira.

    A abordagem inicial da presente tese encontra-se delineada pela

    busca da reconstituio de elementos da cidade antiga, medieval e

    moderna que assumem dimensionalidades diferentes e complementares,

    para repensar o compartilhamento de sentidos e formas de ordenao da

    cidade no tempo presente, relacionada ao municpio, ente jurdico-

    poltico e administrativo responsvel pelo autogoverno local.

    Em Cidade Antiga, Fustel de Coulanges tece contribuies

    indispensveis para a compreenso da experincia expressa pelo modo

    de vida greco-romana, com suas crenas, costumes, religio e direito. A

    origem da cidade e do regime municipal teria marcado profundamente o

    modo de ordenao da cidade antiga.

    O resgate da abordagem sobre as cidades-Estado gregas e de

    Roma aponta para a interdependncia e autossustentabilidade das

    referidas cidades. A ordenao da cidade no se encontrava sob o jugo

    do Estado soberano como conhecido e ordenado pelos modernos. O

    mesmo se pode dizer em referncia s cidades medievais, cuja

    reflexividade da teoria de Pietro Costa remete a um mergulho

    literatura historiogrfica e jurdico-poltica, na detida busca da

    compreenso da riqueza de elementos e interaes sobre a ordenao da

    cidade, vinculada concepo e viso de mundo expressa no contexto

    medieval. Costa persiste na busca de estabelecer os contrapontos da

    forma de ordenao da cidade medieval, sem que isso incorresse na

    afirmao da existncia da centralidade de um poder soberano, diverso

    daquele assumido com o surgimento do Estado moderno.

    1 Para fins de exposio, o autor deste trabalho, sob orientao do Prof.

    orientador, escolheu utilizar o sistema de referncias numrico de chamadas, em

    conformidade s normas da ABNT no formato, com a inteno de facilitar ao

    leitor a compreenso da obra.

  • 29

    Em prosseguimento, a teoria da produo do espao de Henri

    Lefebvre estabelece uma ligao fundamental da dimenso da ordenao

    poltica da cidade antiga, o modo equilibrado do valor de uso com o

    valor de troca que alimentou e tornou interessante a vida das cidades

    comerciais medievais na Europa, sem perder o assento sobre a

    abordagem da cidade moderna, imersa no contexto industrial e da

    urbanizao. O nascimento e expanso da indstria, que se conecta com

    o modo de desenvolvimento da vida urbana, fez implodir o centro de

    referncia poltico da cidade antiga e desequilibrou o modo de produo

    do espao das cidades medievais, em que tudo circulava e se voltava ao

    desenvolvimento local da prpria cidade e seu entorno.

    Henri Lefebvre, em sua teoria dialtica tridimensional da

    produo do espao, liga a prtica das atividades humanas (prtica

    espacial), representao do espao e espaos de representao. O espao

    sempre produzido socialmente. No existe o espao em si mesmo.

    Espao e tempo so relacionais. O espao representa simultaneidade, a

    ordem sincrnica da realidade social. O tempo corresponde ao processo

    histrico da produo social. Espao e tempo so entendidos como

    produtos da prtica social, resultado e pr-condio da produo da

    sociedade (relao entre os seres humanos por meio de suas atividades

    prticas). Por decorrncia, como espao e tempo so produzidos

    socialmente, s podem ser compreendidos no contexto de uma

    sociedade especfica (cidade poltica grega, cidade comercial medieval,

    cidade industrial e da urbanizao na modernidade). Tal assertiva

    implica que o espao e tempo so relacionais e histricos, no separados

    da experincia vivida.

    A juridicidade integra a prpria concepo de produo do espao

    de Lefebvre, presente nas atividades da prtica social, representaes do

    espao e espaos de representao, diretamente interconectados na

    produo do espao. A normatividade ao mesmo tempo constitutiva e

    resultante do ambiente produzido, da organizao, da orientao e da co-

    determinao das atividades. A juridicidade integra a ordem espacial das

    relaes sociais de produo e concorre para o controle das

    contradies, em benefcio dos interesses predominantes na sociedade e

    seu modo de produo. O direito cidade, vida urbana, diferente da

    urbanizao, assume uma condio de humanismo e de democracia

    renovados. O direito cidade possui relao direta com o acesso e o

    valor de uso da cidade. A urbanizao no processo industrial da

    sociedade capitalista privilegia o valor de troca em descaracterizao ao

    urbano, reunio, convergncia, dos encontros. A produo do espao

    social. O jurdico integra e emerge do social. Neste particular, em

  • 30

    sentido similar, concorrem tambm os referenciais tericos de Santi

    Romano e Paolo Grossi de que o direito ordenamento do social.

    A segunda parte do texto, referente produo jurdico-poltica

    dos municpios como sujeitos do direito internacional, remete

    preliminarmente ao fato de a ordenao poltico-jurdica dos Estados

    nacionais ter fortalecido centralmente o Estado como sujeito de direito e

    as organizaes internacionais que constituem e de que so membros.

    Entretanto, as transformaes processadas ao longo do sculo XX, com

    as Conferncias de Paz de Haia, a experincia das duas guerras

    mundiais, a Liga das Naes e a criao da ONU, as Conferncias de

    Viena, a guerra fria e a dinmica imposta pela globalizao econmica,

    influram decisivamente para fazer ressurgir o debate sobre os sujeitos

    emergentes da sociedade internacional contempornea, incluindo

    aqueles situados na dimenso subnacional e local governos no

    centrais (Estados, municpios e comunidades territoriais no estatais).

    Ainda, com a devida ateno, o texto remete para a definio do prprio

    direito internacional e sua vinculada aplicao sociedade internacional

    contempornea, alm da definio de sujeito de direito internacional e

    classificao dos referidos sujeitos em suas especificidades. O referido

    captulo da tese assumiu o desafio terico edificao vinculada ao

    direito internacional de uma fundamentao consistente que configura a

    produo jurdico-poltica dos municpios como sujeitos jurdicos, a

    partir de suas atividades emergentes e que so objeto de uma

    regulamentao internacional.

    No que tange classificao dos sujeitos do direito internacional,

    a pesquisa adotou por base quela apresentada pelo jurista Jean

    Touscoz. Para referido internacionalista, um sujeito de Direito, numa

    determinada ordem jurdica, uma entidade que detm direitos e

    suporta obrigaes nessa ordem jurdica. Por outro lado, a qualidade de

    sujeito de Direito no depende da quantidade de direitos e de obrigaes

    de que uma entidade titular. Estas duas afirmaes permitem sustentar

    que no s os Estados e as Organizaes interestatais, mas tambm as

    pessoas singulares e coletivas so sujeitos de direito internacional (estas

    ltimas so ligadas a uma ordem jurdica nacional). Do conceito emerge

    a seguinte classificao dos sujeitos de direito internacional: o Estado,

    as Organizaes Internacionais e as pessoas coletivas no estatais que

    abrangem as sociedades transnacionais, as Organizaes no

    governamentais (ONGs) e aquelas pessoas coletivas, pessoas jurdicas

    com ligao a uma ordem jurdica nacional, no regidas por um

    conjunto coerente e preciso de regras jurdicas internacionais que

    determine o seu estatuto internacional e regulamente a sua atividade.

  • 31

    Portanto, incluiu-se tambm aquelas pessoas coletivas, sujeitos situados

    na dimenso subnacional e local governos no centrais (Estados

    federados, municpios e comunidades territoriais no estatais.

    A abordagem sobre os denominados governos no centrais

    remete ao estudo da doutrina internacionalista quanto sedimentao ou

    no de uma resposta adequada para a imputao de direitos e obrigaes

    s comunidades territoriais no estatais, considerados os elementos que

    determinam a condio de reconhecimento da personalidade jurdica

    internacional. Trilha em apontar o reconhecimento de direitos e a

    dificuldade de reconhecimento de obrigaes, notadamente no que versa

    assinatura de tratados internacionais. Tambm, aponta para o

    compartilhamento de competncias entre Estado e entidades territoriais

    de carter pblico no equilbrio interno dos Estados, com flexibilizao

    da soberania Estatal centralizada. A insero dos municpios brasileiros,

    com destaque para aqueles situados em faixa de fronteira ou que

    mantm algum tipo de atividade(s) nas relaes e no direito

    internacional, vincula-se ao cenrio das mudanas provocadas pela

    globalizao jurdico-poltica e econmica.

    A terceira parte do texto versa em especfico sobre a prxis da

    produo do espao glocal pelos municpios integrantes do Consrcio

    Intermunicipal da Fronteira (CIF), objetivando evidenciar a experincia

    da ordenao poltico-jurdica e administrativa dos municpios de

    Dionsio Cerqueira (SC), Bom Jesus do Sul e Barraco (PR), situados

    em territrio brasileiro e de Bernardo de Irigoyen, Provncia de

    Missiones Repblica da Argentina. O complexo que envolve o local e

    seu entorno insere a produo do espao vivido pelo cidado e os

    sujeitos no territrio. O local serve de referncia para o global,

    transpondo a anlise de ser apenas determinado pelo global. A

    experincia dos municpios integrantes do Consrcio Intermunicipal da

    Fronteira (CIF), com suas aes, passam a ser referncia de uma prxis

    importante de contraste em relao aos impactos do Estado moderno e

    da Federao sobre os governos locais e seu entorno.

    Os municpios do Consrcio Intermunicipal da Fronteira (CIF)

    constituem-se em institucionalidades jurdico-polticas e administrativas

    responsveis pelo autogoverno local e seu entorno, com atuao no

    Direito e Relaes Internacionais, destacadamente por suas aes e

    localizao em faixa de fronteira entre a Repblica Federativa do Brasil

    e a Repblica Federativa da Argentina.

    A peculiaridade da prxis dos municpios integrantes do

    Consrcio Intermunicipal da Fronteira (CIF) permite responder ao

    problema de pesquisa, objeto da presente tese, ou seja: a prxis dos

  • 32

    referidos municpios possibilita ou no o reconhecimento da condio

    de sujeito(s) jurdico(s) de direito internacional?

    O conjunto de aes executadas, em execuo e planejadas pelos

    municpios integrantes do CIF, nominadas em especfico no texto,

    aponta para a prxis existente que pode ou no conferir legitimidade e

    normatividade condio de sujeitos jurdicos aos referidos municpios.

    O texto delineado insere abordagem legislao brasileira e da

    Argentina sobre Consrcios de Municpios; poltica adotada pelo

    Ncleo da Fronteira no Estado de Santa Catarina e Paran, Brasil. Na

    sequncia, o desenvolvimento temtico adentra em especfico na

    descrio e anlise da produo do espao glocal pelos municpios

    integrantes do CIF, com seus mecanismos e instrumentos de atuao,

    desafios e perspectivas em ampliar sua capacidade, habilidade,

    influncia e autonomia no direito e relaes internacionais.

  • 2 A PRODUO DO ESPAO COMO DIMENSIONALIDADE

    JURDICO-POLTICA DA CIDADE, RELACIONADA AO

    MUNICPIO

    A premissa basilar deste captulo a evidenciao terico-prtica

    da produo do espao, a partir da experincia jurdico-poltica,

    inicialmente das cidades-Estado Gregas e de Roma, seguida do contexto

    das cidades medievais e da reconfigurao do espao com o surgimento

    do Estado moderno, da industrializao e urbanizao. A teoria de

    contedos pauta-se destacadamente em Fustel de Coulanges, Pietro

    Costa e Henri Lefebvre. Serve de base fundamentadora para analisar a

    produo do espao e da experincia de atuao dos municpios

    integrantes do Consrcio da Fronteira2, delineados na presente tese.

    O estudo do tema que versa sobre o municpio tem privilegiado a

    construo de abordagens restritivas, principalmente ao limitar a

    vinculao do referido ente pblico estrutura formal da organizao

    poltico-administrativa dos Estados, com dimensionalidade, via de regra,

    adstrita ao direito administrativo. Os poucos escritos nacionais com

    anlises mais extensivas sobre os municpios tm desafiado novos

    estudos para reestabelecer o desenvolvimento de abordagens que

    recuperem os aspectos construtivos de uma teoria que ligue a produo

    do espao como dimensionalidade jurdico-poltica da cidade,

    relacionada ao municpio, ente jurdico-poltico responsvel pelo

    autogoverno local e, muitas vezes, com atuao no Direito e Relaes

    Internacionais, a exemplo dos municpios de Fronteira. Fronteiras de

    papel, criadas pelos polticos, e quase inexistentes nas relaes da vida

    das pessoas e das cidades.

    A problematizao do debate, com a glocalizao do espao, a

    partir do complexo que envolve o local e seu entorno, retoma a

    importncia e fora que adquire o local, feito de carne e osso, onde o

    cidado mora e produz seu cotidiano, que serve de referncia para o

    global, transpondo a anlise de ser apenas determinado pelo global. A

    lgica da relao local-global acabou resultando no glocal. A origem do

    conceito de glocal geralmente atribuindo ao socilogo ingls

    2 O Consrcio da Fronteira (CIF) integrado pelos Municpios de Dionsio

    Cerqueira (SC), Bom Jesus do Sul e Barraco (PR), situados em territrio

    brasileiro e de Bernardo de Irigoyen, Provncina de Missiones Repblica

    Federativa da Argentina.

  • 34

    Robertson3, primeiro terico a tratar sobre glocalizao no ocidente, o

    qual props uma atualizao de paradigma, ao sugerir a troca do

    conceito de globalizao por glocalizao, ao aproximar, tambm, a

    perspectiva conceitual de global-local de universal e particular.

    O estudo das instituies na experincia jurdica das cidades

    Gregas, de Roma e medievais concorre para a evidenciao da forma de

    ordenao da cidade e da vida local, servindo como referencial

    importante de contraste em relao aos impactos do Estado moderno e

    da Federao sobre os governos locais e seu entorno.

    Destaca-se aqui a importncia, no caso de Fustel de Coulanges,

    do enfoque composio das instituies da cidade antiga (famlia,

    fratria, tribo e cidade). O regime municipal da cidade antiga encontra-se

    entre as referncias que pode ter contribudo na gradual e progressiva

    formao da base originria para a criao durante a Repblica Romana

    do municpio (municipium) enquanto unidade poltico-administrativa.

    Ato contnuo, o texto sobre as cidades-Estado concorre no sentido

    de situar a fundamental contribuio vida jurdico-poltica na

    ordenao das cidades autogovernadas na experincia das cidades-

    Estados Gregas e de Roma. Trata-se de uma contribuio complementar

    e ao mesmo tempo diferente do estudo de Coulanges. Complementar

    porque no desconecta a anlise com as regras e cultura das

    comunidades locais. Diferente porque o destaque conferido anlise

    jurdico-poltica, com nfase para as cidades de Atenas, Esparta e Roma,

    intrigantes no tocante ao Direito.

    Pietro Costa, com sua pesquisa elaborada dentro do rigor

    acadmico e cientfico, historia, problematiza e questiona os conceitos

    de soberania, democracia e representao, no contexto da Idade Mdia,

    situando a cidade enquanto ente poltico principal dotado de iusdictio

    (jurisdio) e de autogoverno pelo efetivo exerccio de fato de sua

    iurisdictio de citt. A rica experincia plural medieval, principalmente

    das cidades comerciais, congrega um direito pautado no fazer cotidiano,

    amparado nos costumes locais e de uma lex no desvinculada da realidade dos fatos, caracterizada pela vinculao do direito ao

    autogoverno da cidade. A referida experincia medieval possibilita

    entender o vnculo de continuidade gradual para a edificao do Estado

    moderno, sem deixar de perceber a diferenciao existente no que tange

    a centralidade do governo e poder no comando da cidade.

    A teoria da produo do espao de Henri Lefebvre constitui um

    3 ROBERTSON, Roland. Globalizao: teoria social e cultura global.

    Petrpolis, RJ: Vozes, 1999.

  • 35

    marco referencial estruturante para situar a cidade poltica, a cidade

    comercial, a cidade industrial e da urbanizao enquanto espao

    socialmente produzido. A produo jurdico-poltica no se processa de

    modo separada dos aspectos da vida social, econmica e cultural. As

    condies sociais contemporneas, ligadas aos processos de urbanizao

    e globalizao tm provocado o ressurgimento da teoria da produo do

    espao de Lefebvre, rica em uma epistemologia de fundamento que

    contempla os contextos espaciais em diferentes nveis, incluindo o

    jurdico-poltico. O local a realidade onde se produz o espao

    cotidiano e assume uma dimensionalidade da produo material da vida

    mediada pela ordenao jurdico-poltica da economia, do social e da

    cultura.

    A diviso da histria ocidental em trs pocas a antiga, a

    medieval e a moderna, atribuda Renascena4, no afasta a divergncia

    para afirmar a continuidade e maturidade dos tempos5, quanto

    experincia jurdico-poltica. A reconfigurao da produo do espao a

    partir do estado moderno implica uma anlise no desvinculada das

    relaes de produo e reproduo imersas no contexto do surgimento

    da sociedade industrial e capitalista. A centralidade do poder ante a

    soberania dos Estados-Naes incide significativamente sobre a vida e

    ordenao das cidades e seus municpios e/ou comunidades territoriais.

    Portanto, a linha de raciocnio subsequente encontra-se articulada

    de modo a explicitar e problematizar sobre o desenvolvimento pontual

    dos diferentes tpicos da temtica anunciada, sem perder de vista que a

    produo jurdico-poltica do espao encontra forte imbricao entre a

    cidade, o municpio e o Estado em suas mltiplas dimensionalidades.

    4 KUMAR, Krishan. Da sociedade ps-industrial ps-moderno: novas teorias

    sobre o mundo contemporneo. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge

    Zahar Ed., 1997. p. 85. 5 GROSSI, Paolo. A ordem jurdica medieval. Trad. de Denise Rossato

    Agostinetti. So Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 157-247.

  • 36

    2.1 ESTUDO DAS INSTITUIES NA EXPERINCIA JURDICA

    DAS CIDADES GREGAS, DE ROMA E DAS CIDADES

    MEDIEVAIS

    2.1.1 A origem da cidade e do regime municipal na teoria de

    Coulanges

    Fustel de Coulanges6 foi um dos mais importantes historiadores

    franceses do sculo XIX. Sua obra mais conhecida La Cit Antique

    tude sur Le Culte. Le Droit, Les institutions de La Grce et de Rome7,

    publicada em 1864 considerada um clssico da investigao histrica

    sobre o panorama do funcionamento das cidades gregas e romanas

    poca das gens, tribos e cidades-Estado.

    A obra Cidade Antiga8, sob o encadeamento de uma lgica

    cultural de abordagem, encontra-se dividida em cinco livros, versando o

    primeiro sobre as antigas crenas, o segundo dedicado famlia, o

    terceiro cidade, o quarto s revolues e o quinto ao desaparecimento

    do regime municipal. Prioriza-se aqui uma abordagem da obra de

    Coulanges com destaque para a cidade e o regime municipal.

    Para Coulanges a famlia recebeu suas leis da religio e no da

    cidade. O direito privado teria existido antes da cidade. A lei imperativa

    era aquela originada na famlia onde o esposo possua o poder de senhor

    do lar, de rei, de magistrado. As famlias se agrupavam em genos (gens

    em latim) que formavam um grupo com descendncia comum e origem

    pura, com seus deuses comuns:

    6 Numa Denis Fustel de Coulanges nasceu em Paris em 18 de maro de 1830 e

    faleceu em Massy em 12 de setembro de 1889. Clebre historiador Francs do

    sculo XIX. Sua obra mais conhecida A Cidade Antiga (La Cit Antique),

    publicada em 1864. Coulanges tambm o autor de LHistoire des institutions

    politiques de lancienne France que influenciou vrias geraes de historiadores

    inclusive March Bloch. Diretor de lcole Normale Superieure e titular da

    primeira cadeira de Histria Medieval na Sorbonne. 7 COULANGES, Numa Denis Fustel de. La cit antique tude sur le culte: le

    droit, les institutions de la Grce et de Rome. Paris: Libraire Hachette, 1900. 8 COULANGES, Numa Denis Fustel de. A cidade antiga: estudo sobre o culto,

    o direito e as instituies da Grcia e Roma. Trad. de Roberto Leal Ferreira. So

    Paulo: Martin Claret, 2009.

  • 37

    A famlia (gens) foi inicialmente a nica forma de

    sociedade. O que vimos da famlia, com a sua

    religio domstica, os deuses que criara, as leis

    que se impusera, o direito de primogenitura sobre

    o qual se fundamentara, a unidade, o

    desenvolvimento de sculo em sculo at formar a

    gens, a justia, o sacerdcio, o governo interior,

    tudo isso leva inexoravelmente o nosso

    pensamento para uma poca primitiva, em que a

    famlia era independente de todo poder superior e

    a cidade nem sequer existia.9

    Com o agrupamento das famlias foi necessrio conceber uma

    divindade superior aos deuses domsticos que fosse comum e velasse

    pela fratria como um todo.

    Vrias famlias formavam a fratria; vrias fratrias,

    a tribo; vrias tribos, a cidade. Famlia, fratria,

    tribo, cidade so, de resto, sociedades exatamente

    semelhantes entre si, nascidas umas das outras por

    uma srie de federaes.10

    O engrandecimento das fratrias potencializou a gerao da tribo

    com seus altares aos deuses e heris e, por consequncia, um direito

    mais complexo. As cidades se caracterizavam por serem reunies de

    tribos que se submetiam ao deus das famlias mais fortes e numerosas. O

    lar tambm passou a ser o altar de um deus maior. Assim, verifica-se a

    passagem de estado de fratria ou cria (latina) para o estado de cidade.

    A cidade foi o advento de associaes de tribos, guardando seus

    ritos, segredos e identidades. O dia em que se fez essa aliana, a cidade

    passou a existir11

    . Cada pessoa, a exemplo de Atenas, era ligada a uma

    famlia, a uma fratria, a uma tribo e cidade. Famlia, Fratria, tribo e

    cidade eram instncias que no necessariamente se comunicavam

    simultaneamente, uma vez que um homem quando criana pertence

    famlia, depois fratria e assim sucessivamente, at que vinha a ser

    iniciado no culto pblico, tornando-se cidado. Todavia, cada famlia

    mantinha seus cultos, seu altar, seus chefes, juzes e leis prprias.

    9 COULANGES, A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as

    instituies da Grcia e Roma, p. 123. 10

    Idem, ibidem, p. 143. 11

    Idem, ibidem, p. 143.

  • 38

    A cidade era uma confederao. Por isso foi

    obrigada, pelo menos durante vrios sculos, a

    respeitar a independncia religiosa e civil das

    tribos, das crias e das famlias, e no teve a

    princpio, o direito de intervir nos negcios

    particulares de cada um desses pequenos grupos.

    Assim, a cidade no uma reunio de indivduos:

    uma confederao de vrios grupos que j

    estavam constitudos antes dela e que ela deixa

    subsistirem.12

    Quanto a civitas e a urbe, Coulanges registra: A civitas e urbs no

    eram palavras sinnimas entre os antigos. Civitas era a associao

    religiosa e poltica das famlias e das tribos; a urbe, o lugar de reunio, o

    domiclio e, sobretudo, o santurio desta sociedade13

    . Quando as

    famlias, as fratrias e as tribos convencionaram unir-se e terem o mesmo

    culto comum, era fundada a urbe, para representar o santurio desse

    culto. Desta forma, a fundao da urbe foi sempre um ato religioso, com

    rituais que a assentavam a partir de uma cidade. Tudo era presidido pelo

    fundador, o homem que realizava os ritos religiosos, sem o qual no se

    estabeleceria a urbe. Este era considerado o pai da cidade e acabava por

    ser um deus-lar para a cidade, sendo perpetuado pelo fogo e sacrifcios

    anuais das vtimas cerimoniais. O comando poltico ou governo da

    cidade estava sob a autoridade religiosa do rei-sacerdote, tambm seu

    chefe poltico. A autoridade poltica estava legitimada pelo ser sagrado,

    motivo que lhe conferia, por extenso, o poder de magistrado. O rei era

    escolhido entre os pater famlias os senhores do lar que reinavam

    absolutos nos tempos das famlias e que, na cidade, representavam a

    aristocracia.

    Os pontfices eram considerados os nicos jurisconsultos

    competentes para estabelecerem a lei em razo de sua origem religiosa.

    Em virtude das leis advirem dos deuses, natural que o direito fosse

    exercido pelo rei-pontfice. No era suficiente habitar a urbe para estar

    submetido e protegido pelas leis do pontfice, sendo necessrio ser

    cidado. A lei no beneficiava o escravo e o estrangeiro, estes estavam

    excludos tambm das coisas sagradas. A naturalizao em uma cidade

    vinculava o pertencimento urbe terra ptria. Cada cidade, por exigncia da sua prpria religio devia ser absolutamente

    12

    COULANGES, A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as

    instituies da Grcia e Roma, p. 144. 13

    Idem, ibidem, p. 150.

  • 39

    independente14

    , motivando o isolamento comum entre cidades e

    preservando a sua autonomia poltica, jurdica, governamental, religiosa

    e moral. Entretanto, tal regime municipal15

    sempre esteve ameaado

    pela resistncia interna de clientes, escravos e oposio de outras

    cidades. A confederao de cidades surgiu para conformar as novas

    reivindicaes polticas, jurdicas e mediar avenas e a prpria expanso

    do poder das cidades, a exemplo de Atenas, Esparta e Roma.

    Cada cidade tinha no s a sua independncia poltica, mas

    tambm o seu culto e o seu cdigo. A religio, o direito, o governo, tudo

    era municipal. A cidade era a nica fora viva; nada acima, nada abaixo

    dela; nem unidade nacional nem liberdade individual16

    . O progressivo

    desmonte do regime municipal se processou por diversos fatores, entre

    estes Coulanges incluiu: as revolues pela retirada da autoridade

    poltica dos reis, com apoio da Aristocracia e chefes de famlia;

    alteraes na constituio da famlia, com a supresso da primogenitura,

    desagregando as gens; pela libertao dos clientes com direito posse

    de terras, sem ttulo de propriedade; pela participao da plebe17

    no

    regime da cidade, provocando a incluso no poder dos tiranos, chefes

    que no podiam ser reis, por faltar-lhes os segredos religiosos,

    inaugurando o poder do homem sobre o homem, com a misso central

    de proteger a plebe contra os ricos.

    A aristocracia, com dificuldades de retornar ao poder, concorria

    fortemente para instalar regimes monrquicos, organizados em um

    corpo semelhante aristocracia, com disseminao extensiva a toda

    Grcia e Itlia, notadamente no sculo VII ao V a.C. As classes

    passaram a distinguir-se basicamente pela quantidade de posses e

    propriedade de bens e riqueza. No dimensionamento conferido ao novo

    regime, cada cidado podia exercer temporariamente o sacerdcio, sem

    privilgios de nascimento, de religio ou poltica. Roma foi exceo,

    onde o patriciado manteve o poder, criando-se o tribunado da plebe18

    o

    14

    COULANGES, A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as

    instituies da Grcia e Roma, p. 218. 15

    Regime Municipal caracterizado pela constituio de uma religio

    antiqussima que fundara primeiro a famlia, depois a cidade; que estabelecera

    primeiro o direito domstico e o governo das gens, depois as leis civis e o

    governo municipal. In: Idem, ibidem, p. 367. 16

    Idem, ibidem, p. 218. 17

    A plebe uma populao desprezada e abjeta, fora de religio, fora da lei,

    fora da sociedade, fora da famlia. In: Idem, ibidem, p. 253. 18

    O tratado de aliana entre patrcios e plebeus deu origem ao tribunado da

    plebe, instituio completamente nova e que em nada se assemelhava ao que as

  • 40

    plebeu tornava-se ele mesmo sagrado para que pudesse legislar sobre a

    plebe. A sacralidade era transmitida de tribuno a tribuno, por doao dos

    religiosos do patriciado que eram os criadores da sacralidade doravante

    transmitida.

    Destaca-se que o direito tornou-se pblico, passando a ser do

    povo a emanao do poder de promulgar leis que o legislador antes

    possua. As leis deixam de ser patrimnio das famlias sagradas. Por

    consequncia, tornou-se extensivo a qualquer cidado, em tese, ser

    magistrado e/ou alcanar a hierarquia social de cargos e funes

    indiferente de ser euptrida(s) ou patrcio(s). As guerras forjaram as

    classes superiores concesso de armas e ttulos s classes inferiores,

    ampliando a participao do povo.

    Na viso de Coulanges, entre outros fatores que influram para o

    enfraquecimento do regime municipal, pode-se registrar a unificao das

    cidades-Estado, das crticas dos sofistas e dos filsofos como Pitgoras,

    Anaxgoras, Scrates, Plato, Aristteles, Zeno e os estoicistas.

    Referidos crticos passaram a falar de uma nova justia, a combater as

    leis da cidade e da tradio, a contrariar o regime da cidade, a defender a

    emancipao do indivduo, rejeitando a religio da cidade, desdenhando

    da servido do cidado ao Estado, libertando sua conscincia, incitando-

    o a participar da poltica.

    Coulanges precisa ser interpretado na estreita ligao de seu

    tempo e busca de referncias na constituio das cidades Greco-

    Romanas. Percebe-se que muitas das questes presentes na obra de

    Coulanges refletem a ligao com o contexto do sculo XVIII, com

    destaque para a estratificao e hierarquizao da sociedade francesa19

    , a

    cidades tinham conhecido antes. Entretanto, o tratado limitava-se que no futuro

    a plebe, constituda como uma sociedade quase regular, teria chefes tirados do

    seu prprio seio. No houve reconhecimento pelo patriciado da participao

    religiosa e poltica da vida da cidade. In: COULANGES, A cidade antiga:

    estudo sobre o culto, o direito e as instituies da Grcia e Roma, p. 309. 19

    A situao da Frana no sculo XVIII era de extrema injustia social na poca

    do Antigo Regime. Os impostos eram pagos somente pelos trabalhadores

    urbanos, camponeses e a pequena burguesia comercial, para manter os luxos da

    nobreza. O regime do pas era absolutista, com controle da economia, justia,

    poltica e religio dos sditos. O clero estava no topo da pirmide, seguido na

    hierarquia pela nobreza, formada pelo rei, sua famlia, condes, duques,

    marqueses e outros nobres que viviam de banquetes e muito luxo na corte. A

    base da sociedade era formada por trabalhadores, camponeses e burguesia

    (terceiro estado) que desejavam melhorias na qualidade de vida e de trabalho,

    condio social melhor, participao poltica e mais liberdade econmica. O

  • 41

    busca de novos territrios, ascenso do poder poltico da Burguesia, o

    nacionalismo e tambm as reformas da Cidade (Paris). A cultura poca

    de Coulanges teve o espao urbano como lugar central da representao

    da nao, com participao do indivduo na construo da cidade e suas

    instituies.

    A obra de Coulanges reflete um estudo da histria civil do mundo

    Greco-Romano, alm de deixar transparecer a todo o tempo que o

    territrio antigo foi constitudo por modelos morais pelas instituies

    das cidades Greco-Romana. Durkheim afirma que Fustel de Coulanges

    insistiu justamente sobre o carter religioso da sociedade romana; mas,

    comparado com os povos anteriores, o Estado Romano era muito menos

    penetrado de religiosidade20

    .

    A origem da cidade e do regime municipal a partir da teoria de

    Fustel de Coulanges so fundamentais para entender a composio das

    instituies da cidade Greco-Romana que gradativa e progressivamente

    contriburam na formao da base originria para a criao do

    municipium21

    durante a Repblica Romana.

    2.1.2 As cidades-Estado e a fundamental contribuio vida

    jurdico-poltica

    Coulanges atesta que a origem da cidade foi o advento de

    associaes de tribos, guardando seus ritos, segredos e identidades. A

    contribuio da teoria de Coulanges foi fundamental para entender a

    histria civil do mundo Greco-Romano, ainda que marcada por modelos

    de ordem moral das instituies das cidades, presente nas regras e

    cultura envolvidas.

    A cidade era a nica fora viva, motivo fortalecedor da

    continuidade do estudo sobre o autogoverno das cidades-Estados.

    Martin afirma que s nas cidades autogovernadas que, os

    chamado terceiro estado foi o protagonista da Revoluo Francesa, com marco

    inicial a partir da queda da Bastilha (priso poltica) em 1789. 20

    DURKHEIM, mile. Da diviso do trabalho social. Traduo de Eduardo

    Brando. So Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 143. 21

    Na Repblica Romana, os Municpios eram constitudos de agrupamentos de

    famlias, reunidas em uma circunscrio territorial, que gozavam de direito de

    cidadania romana, tendo em troca, a obrigao de pagar a Roma certos Tributos

    e a servir a seus exrcitos. In: FERREIRA, Wolfran Junqueira. O Municpio

    luz da Constituio Federal de 1988. So Paulo: Edipro, 1993. p. 12.

  • 42

    gregos, os romanos e talvez tambm os etruscos e os fencios22

    (Cartago) puderam criar um novo princpio de governo. Ainda, que s

    nestas cidades houve uma forma de governo que perdurou durante

    sculos e que constituiu o mundo clssico23

    . Martin denuncia que muito

    pouco se sabe da cidade Estado-Cartago porque Roma fez um servio

    minucioso de destruio, no s da cidade, mas dos registros que

    poderiam lanar alguma luz sobre a histria e governo de Cartago24

    .

    Cartago a nova cidade, na lngua Fencia, teria sido fundada na Costa

    do Mediterrneo, um pouco antes de Roma25

    .

    Por conseguinte, o estudo desta sesso prossegue sobre as cidades

    Gregas e de Roma, com destaque conferido anlise das contribuies

    jurdico-polticas, notadamente de Atenas, Esparta e Roma.

    2.1.2.1 Cidades-Estado gregas

    A civilizao helnica26

    teve seu marco inicial no ano de 800

    a.C., estendendo-se at o ano de 322 a.C., com a morte de Alexandre

    Magno27

    . Esse perodo possibilitou a verificao de caractersticas

    comuns a todas as cidades-Estado28

    que floresceram entre os povos

    22

    LEICK, Gwendolyn. Mesopotmia: a inveno da cidade. Rio de Janeiro:

    Imago Editora, 2003. 365 p. 23

    MARTIN, Van Creveld. Ascenso e declnio do Estado. Trad. Jussara

    Simes. So Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 31. 24

    Idem, ibidem, p. 31. 25

    O duelo entre Roma e Cartago retrata bem a ao de Roma contra Cartago. In:

    GRIMAL, Pierre. Histria de Roma. Trad. Marias Leonor Loureiro. So Paulo:

    Unesp, 2011. p. 59-76. 26

    Os habitantes da Grcia intitulavam-se helenos e dividiam-se em quatro

    grupos jnios, drios, aqueus, que dominaram o Peloponeso em tempos pr-

    histricos e predominaram entre as tribos gregas, e elios, dos quais se pode

    dizer um tanto vagamente que so os que no pertencem a nenhuma das outras

    divises. Na Hlade floresceu por excelncia a civilizao jnica e no

    Peloponeso a civilizao drica, representadas uma por Atenas e outra por

    Esparta, sem que isso signifique que cada um desses centros absorvesse os

    demais, apenas que num dado momento imps sua hegemonia. In:

    VICENTINHO, Cludio. Histria geral. So Paulo: Scipione, 1997. p. 60-81. 27

    OLIVEIRA, Odete Maria de. Teorias globais e suas revolues: elementos e

    estrutura. Iju: Ed. Uniju, 2004. v. 1. p. 39. 28

    Entre as cidades-Estados gregas de maior relevo pode-se citar Atenas,

    Esparta, Tebas e Corinto. Entretanto, havia centenas de pequenas cidades-

    Estado Gregas, inclusive muitas delas mantinham sua ligao com os Persas e a

    sia Menor, exemplificadas na Liga de Delos. O sculo V a.C. representou o

  • 43

    helnicos. A caracterstica fundamental foi a cidade-Estado, ou seja, a

    plis, a sociedade poltica de maior expresso29

    . A plis tornou-se o

    centro da vida poltica e a identidade do indivduo era levada em grande

    considerao. A plis era vista para os Gregos como a nica forma de

    vida associada admissvel30

    .

    Embora houvesse diferenas profundas entre os costumes de

    Atenas e Esparta, duas das principais cidades-Estado Gregas, a

    concepo de ambas como sociedade poltica era bem semelhante, o que

    permite a generalizao31

    .

    O ideal visado pela cidade-Estado era a auto-suficincia, de tal

    forma que, quando determinada cidade efetuasse conquista dominando

    outros povos, no se efetuasse a expanso territorial e no se procurasse

    a integrao de vencedores e vencidos numa ordem comum32

    .

    Ainda, Dallari destaca que na cidade-Estado grega o indivduo

    possua uma posio peculiar. Havia uma elite da classe poltica com

    intensa participao nas decises da cidade, a respeito dos assuntos de

    carter pblico. Entretanto, nas relaes de carter privado a autonomia

    de vontade individual era bastante restrita. Os assuntos do governo eram

    conduzidos e decididos apenas por uma faixa restrita da populao os

    cidados33

    . Tal caracterstica influiu para a manuteno das cidades-

    Estado, sob o controle por um pequeno nmero34

    .

    apogeu econmico e poltico de Atenas. Aps a vitria sobre os persas, Atenas,

    por meio da Liga de Delos, se consolida como a maior potncia do Mar Egeu

    sob o governo de Pricles que faz as reformas necessrias para dar a democracia

    ateniense um carter de massas. In: WATSON, Adam. A evoluo da sociedade

    internacional: uma anlise histrica comparativa. Trad. Ren Loncan. Braslia:

    UnB, 2004. p. 72-99. 29

    DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 19. ed.

    So Paulo: Saraiva, 1995. p. 63. 30

    DAL RI JNIOR; OLIVEIRA, op. cit., p. 26. Neste sentido vide tambm:

    CAMASSA, G. Le instituzioni politiche greche: in storia dele idee politche

    economiche e sociali. Torino: UTET, 1982. p. 03. 31

    DALLARI, op. cit., p. 63. 32

    Idem, ibidem, p. 63. 33

    Idem, ibidem, p. 64. 34

    Os escravos, estrangeiros, mulheres e crianas no participavam das decises

    pblicas na plis.

  • 44

    2.1.2.2 A cidade-Estado jurdica35

    e a virtude cvica como ideal de

    cidado em Atenas e Esparta

    A cidade-Estado no era para os Jnios, como para todos os

    Gregos da sia Menor o fim ltimo, como em Esparta e Atenas36

    . No

    entanto, no se pode negar o papel dos Jnios no desenvolvimento da

    histria do esprito Grego, incluindo o campo poltico. Entre outros, os

    reflexos da vida da plis Jnica encontra evidncia nas narrativas da famosa guerra dos Gregos contra os Troianos em que Heitor aparece

    como defensor e libertador da Ptria.

    No caso de Atenas, a evoluo da vida da plis resta mais bem evidenciada com a suplantao da Monarquia dos Cdridas pela

    Aristocracia constituda ao tempo de Slon37

    .

    Drcon (621 a.C.), vinculado Oligarquia, tornou-se referncia

    entre os legisladores em Atenas pela severidade de suas leis,

    conservadoras de todos os sentimentos da sua casta e instrudas no

    direito religioso. As leis de Drcon reconheceram a existncia legal dos

    cidados e indicaram o caminho da responsabilidade individual38

    .

    Slon, como novo legislador (em 594 a.C.), ligado aristocracia

    e ao comrcio, influenciou a reforma de toda a estrutura da cidade-

    Estado Ateniense, no que diz respeito economia, sociedade e

    poltica39

    .

    Coulanges atesta que foi o povo que investiu Slon do direito de

    fazer leis; que a lei tem como princpio o direito dos homens e como

    fundamento o assentimento do maior nmero; que a Lei das Doze

    Tbuas passou a considerar que a propriedade pertena no mais gens,

    mas ao indivduo que pode dispor por testamento; que o Cdigo de

    Slon correspondeu a uma grande revoluo social.40

    A amplitude do

    Cdigo de Slon para um novo estado social, pode ser exemplificada no

    fato de que as leis passaram a no estabelecer distino entre euptrida,

    35

    A nomenclatura aqui adotada tomou por referncia O Estado Jurdico e seu

    ideal de cidado inserido na Paidia. In: JAEGER, Werner Wilhem. Paidia: a

    formao do homem grego. Trad. Arthur M. Parreira. 3. ed. So Paulo: Martins

    Fontes, 1994. 36

    Idem, ibidem, p. 131. 37

    Idem, ibidem, p. 132. 38

    CASTRO, Flvia Lages de. Histria do direito geral e do Brasil. 10. ed. Rio

    de Janeiro: Lumen Jurs, 2014. p. 73. 39

    Idem, ibidem, p. 74. 40

    COULANGES, A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as

    instituies da Grcia e Roma, p. 323-329.

  • 45

    o mero homem livre e o tetra. Tambm foram inovaes da legislao

    ao tempo de Slon, o testamento e a concesso do direito a todo cidado

    de processar judicialmente um crime41

    .

    A elevada estima pelo Direito aparece no apenas nos

    testemunhos que exaltam a justia como fundamento da sociedade

    humana. Aparece tanto na literatura jnica, desde os tempos primitivos

    da epopeia at Herclito. A importncia fundamental estava ligada aos

    progressos que o Direito implicava para a vida pblica daqueles tempos

    (sculo VIII at o incio do sculo VI). A administrao abusiva da

    justia pelos nobres e a consequente restrio s manifestaes do

    Direito, levou o povo a exigir leis escritas42

    . Nesse sentido:

    As censuras de Hesodo contra os senhores venais

    que na sua funo judicial atropelavam direito,

    eram o antecedente necessrio para esta

    reclamao universal. por ele que a palavra

    direito, dike, se converte no lema da luta de

    classes. A histria da codificao do direito nas

    diversas cidades processa-se por vrios sculos e

    sabemos muito pouco sobre ela. Mas aqui que

    encontramos o princpio que a inspirava. Direito

    escrito era direito igual para todos, grandes e

    pequenos.43

    Enquanto Themis refere-se principalmente autoridade do

    direito, a sua validade, dike significa cumprimento da justia (dar a cada um o que lhe devido). Curioso que, poca, procurava-se uma

    medida justa para a atribuio do direito e foi na exigncia da

    igualdade, implcita no conceito de dike que se encontrou essa medida44

    .

    Em tal contexto que a dike constituiu-se em plataforma da vida pblica

    para o homem Grego.

    Progressivamente a lei escrita passou a se constituir para os

    gregos como critrio infalvel do justo. Por decorrncia da fixao

    escrita do nomos, do direito consuetudinrio vlido para todas as

    situaes, o conceito de justia ganhou contedo palpvel. Consistia na

    41

    COULANGES, A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as

    instituies da Grcia e Roma, p. 330-331. 42

    JAEGER, op. cit., p. 133-134. 43

    Idem, ibidem, p. 133-134. 44

    Idem, ibidem, p. 135-136.

  • 46

    obedincia s leis do Estado45

    .

    A vontade de justia que se desenvolveu na vida comunitria da

    plis converteu-se numa nova fora formadora do homem e no rigoroso

    dever para com a cidade-Estado:

    A valentia perante o inimigo at o ponto de dar a

    vida pela ptria uma exigncia imposta aos

    cidados pela lei, e a sua violao acarretava

    penas graves. Mas no passa de uma exigncia

    entre outras. O homem justo, no sentido concreto

    que desde ento esta palavra adquiriu no

    pensamento grego, aquele que obedece lei e se

    regula pelas disposies dela, tambm cumpre na

    guerra o seu dever.46

    Referido ideal foi aceito com maior intensidade pela cidade-

    Estado de Esparta e elevado categoria de virtude cvica47

    em geral.

    O conceito de justia, tido como forma de aret48

    , que engloba e

    45

    JAEGER, op. cit., p. 137-138. 46

    Idem, ibidem, p. 138. 47

    Dal Ri Jnior e Oliveira ao discorrerem em seus escritos sobre cidadania e

    Nacionalidade, manifesta que no estudo das esferas-jurdicas das vrias cidades-

    Estados que constituam a Ellade, em particular Atenas e Esparta, possvel

    reconhecer na noo de virtude cvica, um elemento com contedo

    semelhante ao da moderna cidadania. Tal virtude cvica no se originava do

    reconhecimento de um status pessoal, mas de uma condio objetiva. Na

    concepo dos Gregos antigos, trazia a ideia de homem livre, intimamente

    comprometida com a defesa dos interesses da Cidade-Estado. Tal concepo se

    fundamentava numa antiqussima tradio ateniense, pela qual eram

    considerados cidados todos os homens adultos, aptos a defender os interesses

    da cidade, atravs das armas. In: DAL RI JNIOR, Arno; OLIVEIRA, Odete

    Maria de (org.). Cidadania e nacionalidade: evoluo histrica e fundamentos

    poltico jurdicos de cidadania. Iju: Uniju, 2002. p. 28. 48

    Aret entendida como virtude teve uma longa histria evolutiva na cultura

    grega antes de ser incorporada na problemtica da filosofia. Os Pr-socrticos

    Herclito e Demcrito fazem simples referncia a aret. Todavia, a partir da

    gerao de Scrates que a aret passou a ter verdadeira ateno. A prpria

    identificao Socrtica da virtude e do conhecimento foi um lugar-comum para

    os seus sucessores (Aristteles), e os dilogos socrticos de Plato dirigem-se

    no sentido das definies das vrias virtudes; e provavelmente uma

    hipostasiao destas definies que culmina na teoria platnica das formas. Para

    Plato h um eidos de aret (Menon 72c) e das vrias espcies de aretai (Parm.

    130b; na Rep.442-b-d) descreve quatro virtudes cardeais desejveis do estado

  • 47

    satisfaz todas as exigncias do perfeito homem cidado evidencia-se

    claramente nos escritos de Plato, notadamente ao versar sobre o

    homem virtuoso na Repblica49

    . Ainda, Plato prope um conceito de

    cidade ideal em Critias; em A Repblica e as Leis, a utopia platnica

    temperada com anlises muito concretas. O mesmo acontece, em

    Aristteles, com os escritos polticos que estudam as constituies das

    cidades gregas e particularmente Atenas50

    . A tica a Nicmaco de

    Aristteles e sua obra A Poltica, livro terceiro, tambm referendam as normas morais e polticas na formao do cidado e vnculo com a

    cidade51

    .

    O pertencimento cidade pode ser assim sintetizado:

    Pertencer a uma cidade tinha para os Gregos um

    valor ideal igual, anlogo ao sentimento nacional

    para os modernos. [...]. A Antiga cidade-estado

    era para os cidados a garantia de todos os

    princpios ideiais da vida. [...]. Em tempo algum a

    cidade-Estado se identificou tanto com a

    dignidade e o valor do homem. Aristteles

    designa o homem como ser poltico e, assim,

    distingue-o do animal pela sua qualidade de

    cidado.52

    Por conseguinte, a antiga cidade-Estado grega, com destaque para

    Atenas e Esparta, esteve fortemente inclinada a promover a formao

    contnua de seus dirigentes, com educao tica e poltico-jurdica,

    fundamentais para sua autossuficincia e preservao da identidade dos

    ideal, uma dos homens ( no estado) e as divises da alma. Para Aristteles um

    meio (Meson, q.v), e ele distingue entre virtudes morais e intelectuais (eth,

    Nich, II 1103-ab). A aproximao socrtica intelectualizada da virtude ainda

    visvel em Aristteles, mas temperada tambm pelo reconhecimento dos

    elementos volitivos. Para os esticos a essncia da virtude estava em viver em

    harmonia com a natureza. In: PETERS, F. E. Termos filosficos gregos: um

    lxico histrico. Trad. Beatriz Rodrigues Barbosa. 2. ed. Lisboa: Fundao

    Coloutre Gulbenkian, 1974. 49

    PLATO. A Repblica. Trad. Anna Amaral Del Almeida Prado. 2. ed. So

    Paulo: Martins Fontes, 2014. 50

    LEFEBVRE, Henri. O direito cidade. Trad. Rubens Eduardo Frias. So

    Paulo: Centauro, 2001. 51

    ARISTTELES. A Poltica. Trad. Nestor Silveira Chaves. 2. ed. Bauru, SP:

    Edipro, 2009. 52

    JAEGER, op. cit., p. 146.

  • 48

    indivduos vinculados plis.

    2.1.2.3 As cidades-Estado de Roma

    Roma sempre manteve as caractersticas bsicas de cidade-

    Estado, desde sua fundao em 754 a.C., at 565 da era crist53

    .

    O expansionismo territorial54

    , o cristianismo e a superao da

    cidade-Estado provocaram o advento de novas formas de ordenao de

    sociedade poltica, inserta no contexto medieval.

    Uma das caractersticas centrais das cidades-Estado de Roma foi

    a base familiar de organizao. Alis, a literatura aponta que da antiga

    Civitas, da qual teria resultado a unio de grupos de famlias, sempre

    houve a concesso de privilgios s famlias dos patrcios, fundadora da

    Cidade-Estado.

    De forma semelhante ordenao das cidades-Estado gregas, nas

    cidades-Estado de Roma os cidados participavam do governo.

    Roma sempre procurou manter o ncleo de poder poltico que a

    colocasse em situao de ascendncia em relao s demais cidades-

    Estado de Roma, considerada a composio da populao da cidade,

    exrcito, finanas e seus grupos sociais (patrcios, clientes, plebeus e

    escravos).

    Os Patrcios eram considerados os cidados romanos e donos de

    grandes propriedades de terras, rebanhos e escravos. Gozavam de

    direitos polticos destacados no campo da justia, administrao pblica

    e exrcito, alm das funes vinculadas religio. Os clientes eram

    homens livres associados aos patrcios que, em troca de seus servios

    53

    DALLARI, op. cit., p. 64. 54

    Graas as suas conquistas no Oriente, Roma atraiu milhares de intelectuais e

    mercadores gregos; tambm foram trazidos para Roma escravos gregos. Esse

    influxo acelerou o processo de helenizao j iniciado quando do contato com a

    experincia de Roma com as cidades gregas da Itlia meridional. Uma

    consequncia fundamental da expanso foi o contato com a experincia jurdica

    de outros povos, entre estes os gregos. Os juristas romanos, demonstrando as

    virtudes romanas do pragmatismo e do senso comum, fizeram uma incorporao

    seletiva dos elementos dos cdigos de leis e tradies dessas naes ao direito

    romano. Assim, os juristas romanos de modo gradativo e emprico, elaboraram

    os jus gentium com o direito natural (ius naturale) dos estoicos. Afirmaram os

    juristas que o direito devia estar de acordo com os princpios racionais inerentes

    natureza normas universais capazes de serem compreendidas por indivduos

    racionais. In: PERRY, Marvin. Civilizao ocidental: uma histria concisa.

    So Paulo: Martins Fontes, 1985. p. 144.

  • 49

    recebiam auxlio econmico e proteo social. Os plebeus constituam o

    grupo de homens e mulheres que se dedicavam ao comrcio, ao

    artesanato e agricultura. Os escravos constituam a base do sistema de

    trabalho e produo de Roma e eram considerados uma propriedade,

    desta forma estavam subordinados e sujeitos a castigos e podiam ser

    alugados ou vendidos55

    .

    Roma cercou-se, progressivamente, de cidades-satlites,

    buscando manter sempre sua unidade e ascendncia56

    . Entretanto, a

    pretenso de integrao jurdica dos povos das cidades-Estados de

    Roma, via extenso da civitas, primeiro aos Itlicos e aps aos sditos,

    se processou apenas com a Constitutio Antoniana em 212 d.C., que concedeu a naturalizao de todos os cidados dos territrios invadidos

    por Roma57

    . Referido Edito teve objetivo poltico, religioso, social e

    fiscal58

    .

    Entre as contribuies jurdico-polticas das cidades-Estado de

    Roma, durante o perodo Pr-clssico (sculo VIII a.C. at sculo II

    a.C.), encontram-se as normas relacionadas famlia e religio, com

    especial destaque para a Lei das XII Tbuas de 450 a.C., em resposta a

    uma das revoltas da plebe romana. A Lei Licnia sextia no sculo IV

    a.C. que proibia a escravido por dvidas e o Tribunato da Plebe

    tambm constituram marcos normativos referenciais do perodo59

    .

    Respectivamente ao perodo clssico (sculo II a.C. at o sculo

    III d.C.), o desenvolvimento do Direito Romano concentrou-se no poder

    da cidade-Estado, com destaque para as funes exercidas pelos Pretores

    (responsveis diretamente pela Justia) e Jurisconsultos (estudiosos do

    Direito e sistematizadores das formas dos atos processuais aos

    magistrados e s partes)60

    .

    Referente ao perodo ps-clssico da periodizao do Direito

    55

    Com a expulso dos Reis, fora decidido que os Cnsules seriam escolhidos

    entre os patrcios, nas famlias em que se recrutavam os senadores. As outras

    categorias de cidados no tinham direitos. Todavia, devido ao tratamento

    desumano aos plebeus, a discrdia instalada nas cidades-Estado de Roma,

    provocou a secesso dos plebeus, via greve geral, retirando-se estes da

    participao da vida das cidades. Tal fato levou os patrcios a criarem uma

    magistratura unicamente plebeia chamada tribunato da plebe que teria o

    poder de proteger os pobres dos ricos. In: GRIMAL, op. cit., p. 38-41. 56

    Idem, ibidem, p. 39. 57

    DAL RI JNIOR; OLIVEIRA, op. cit., p. 36. 58

    DALLARI, op. cit., p. 64. 59

    CASTRO, op. cit., p. 84-85. 60

    Idem, ibidem, p. 86-90.

  • 50

    Romano (sculo III at o sculo VI d.C.), recebeu destaque a

    codificao justianeia, chamada de Corpus iusris civilis61

    , com

    significativo reflexo para os cdigos modernos62

    .

    Em sntese, o legado jurdico-poltico deixado pelas cidades-

    Estado de Roma e pelo Direito Romano foi significativo, uma vez que

    inclui o costume, leis, plebiscitos, editos dos magistrados,

    jurisprudncia, resolues senatoriais, constituies, entre outros.

    2.2 A CIDADE NA IDADE MDIA ENQUANTO ENTE POLTICO

    PRINCIPAL DOTADO DE IURISDICTIO E DE

    AUTOGOVERNO PELO EFETIVO EXERCCIO DE FATO DE

    SUA IURISDICTIO DE CITT

    Pietro Costa, na qualidade de professor de histria do Direito e do

    pensamento jurdico moderno, problematiza em torno do conceito de

    soberania na idade mdia, partindo da indagao acerca da existncia ou

    no de uma soberania medieval. Simultaneamente, insere a abordagem

    da cidade na Idade Mdia como ente poltico principal dotado de

    iurisdictio63

    (jurisdio) e de autogoverno pelo efetivo exerccio de fato

    61

    Conjunto de livros e textos jurdicos reunidos nos meados do sculo VI por

    ordem do Imperador Justiniano, em uma compilao (Digesto ou Pandectas,

    legislao imperial, manual de introduo as Instituies, as Novelas, as

    constituies novas promulgadas por Justiniano) a que, a partir do sculo

    XVI, se d o nome de Corpus Iuris Civilis - que vai constituir a memria

    medieval e moderna do direito romano. In: HESPANHA, Antnio Manuel.

    Cultura jurdica europia. sntese de um milnio. Florianpolis: Boiteux, 2005.

    p. 126-127. 62

    Idem, ibidem, p. 86-87. 63

    Iurisdictio, em sentido estrito, a funo de julgar prpria do juiz ordinrio,

    mas tambm e sobretudo algo maior e mais complexo: o poder daquele,

    pessoa fsica ou jurdica que ocupa uma posio de autonomia diante dos

    outros investidos de poder e de superioridade diante dos sditos; e no este ou

    aquele poder (numa viso espasmodicamente fragmentria que prpria de ns

    modernos, mas no foi dos medievais), mas sim uma sntese de poderes que no

    se teme ver condensada um nico sujeito. Nessa sntese de poderes, a funo

    emergente e caracterstica a de julgar: algum prncipe por ser juiz, juiz

    supremo. Se h um conceito logicamente estranho iurisdictio a criao do

    Direito: dizer o direito significa pressup-lo j criado e formado; significa

    explicit-lo, torn-lo manifesto, aplic-lo no significa cri-lo. In: GROSSI, A

    ordem jurdica medieval, p. 162.

  • 51

    de sua iurisdictio de citt64

    .

    A abordagem de Costa no desconsidera o longo tempo de

    acontecimentos e histria da Idade Mdia, com abrangncia entre o

    sculo V d.C. e o sculo XV. Sua anlise se dirige com maior

    abrangncia ao perodo da Chamada Idade Mdia65

    Central, em que

    persiste o Direito Comum (unidade entre os direitos existentes no

    perodo, a saber, romano, cannico e local)66

    , tecendo sempre sua

    diferenciao com a ordem poltico-jurdica moderna.

    Costa afirma que uma distoro da histria atestar a existncia

    de uma soberania propriamente dita no perodo medieval. Na Idade

    Mdia havia uma ordem poltica hierarquicamente ordenada em seus

    diferentes status de sujeitos, com o fechamento de seu vrtice na

    64

    COSTA, Pietro. Soberania, representao, democracia: ensaios de histria

    do pensamento jurdico. Trad. de Alexandre Rodrigues de Castro, Angela Couto

    Machado Fonseca, rica Hartamnn, Ricardo Marcelo Fonseca, Ricardo Sontag,

    Sergio Said Staut Jr., Walter Guandalini Jr. Curitiba: Juru, 2010. 65

    O perodo histrico denominado Idade Mdia possui cinco caractersticas

    fundamentais: um perodo histrico bastante longo, pois envolve mais ou

    menos mil anos; um perodo histrico de transio entre o mundo antigo e o

    moderno; um perodo marcado por formas de sociabilidade

    predominantemente rurais ou agrrias; um perodo histrico sob o domnio do

    poder da Igreja; um perodo histrico muito complexo, que pode ser

    subdividido em vrios perodos de menor durao, que possuem pressupostos e

    formas de articulao de poder prprios. In: BEDIN, Gilmar Antnio. A Idade

    Mdia e o nascimento do Estado Moderno: aspectos histricos e tericos. 2. ed.

    Iju: Uniju, 2014. p. 15.

    A retrica ideologicamente imbuda do humanismo renascentista, ao rotular

    com Idade Mdia media aetas o perodo que lhe anterior, aquele que se

    estende por quase um milnio do sculo V d.C. ao sculo XV, pretendeu indicar

    caracterizando-a maliciosamente como poca transitria sua no autonomia,

    sua fragilidade como momento histrico. uma viso distorcida, que h tempos

    a historiografia procura eliminar e o historiador do direito pode, com plena

    conscincia unir sua voz para contestar semelhante distoro: a construo

    medieval de uma ordem jurdica prpria est de acordo com uma intensa

    originalidade decorrente de sua intensa historicidade; um conjunto harmnico

    de construes tpicas, por serem adequadas e inerentes s exigncias histricas,

    fundadas nos novos valores emergentes e, como tais, reflexos na sociedade nas

    suas razes mais remotas. In: GROSSI, A ordem jurdica medieval, p. 10-11. 66

    Hespanha ressalta a adequao da expresso direito comum medieval por

    designar a unidade do direito que se constri, quer seja entendida como unidade

    entre os direitos existentes no perodo, a saber, romano, cannico e local, quer

    para designar a unidade da forma de construo do conhecimento jurdico. In:

    HESPANHA, op. cit., p. 121.

  • 52

    representao do imperador que possua o seu poder legitimado pelo

    poder