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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS FÍSICAS E MATEMÁTICAS CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO CURSO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA RICARDO AVELAR SOTOMAIOR KARAM RELATIVIDADE RESTRITA NO INÍCIO DO ENSINO MÉDIO: ELABORAÇÃO E ANÁLISE DE UMA PROPOSTA Orientadora: Profa. Dra. Sonia Maria Silva Corrêa de Souza Cruz Florianópolis 2005 Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação Científica e Tecnológica.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA · Mortimer (1994), o qual defende que o ensino de ciências deva promover a evolução de um perfil conceitual, através da construção de

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

    CENTRO DE CIÊNCIAS FÍSICAS E MATEMÁTICAS CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS

    CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO CURSO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

    RICARDO AVELAR SOTOMAIOR KARAM RELATIVIDADE RESTRITA NO INÍCIO DO ENSINO MÉDIO: ELABORAÇÃO E ANÁLISE DE UMA PROPOSTA

    Orientadora: Profa. Dra. Sonia Maria Silva Corrêa de Souza Cruz

    Florianópolis 2005

    Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação Científica e Tecnológica.

  • 1

  • 2

    E quando eu tiver saído Para fora do teu círculo

    Tempo tempo tempo tempo Não serei nem terá sido

    Caetano Veloso

    “O tempo e o espaço são modos pelos quais pensamos e não condições nas quais vivemos”.

    Albert Einstein

    “Eu entendi, mas eu ainda não acredito”.

    Manifestação de um aluno

  • 3

    AGRADECIMENTOS

    À professora orientadora Dra. Sônia Maria Souza Cruz pela sua colaboração e pela confiança em mim depositada desde o início; À minha família, especialmente mãe, pai e irmã, pela constante torcida e apoio e ao Mário, meu segundo pai e um grande exemplo; À professora Dra. Débora Coimbra por sua imensa dedicação, paciência e amizade, fundamentais para o desenvolvimento deste trabalho; Ao professor Dr. Luiz O. Q. Peduzzi, pelas preciosas contribuições e sugestões; Ao professor Dr. Arden Zylberztajn, pela apresentação inicial do programa; Aos professores do programa, pelos inspiradores momentos de convivência; À professora Dra. Ana Maria Petraits Liblik, pelo companheirismo e pelo constante incentivo a seguir uma carreira acadêmica; À professora Beatriz Alvarenga pelos importantes artigos gentilmente cedidos; Ao amigo Gustavo Moraes pela colaboração e a seus alunos pela participação entusiasmada nas aulas e atividades propostas; Ao super amigo Wilson Jr, por todos os galhos quebrados; Ao diretor Carlos, pelo inigualável empenho garantindo o bom andamento das atividades em sala de aula; À professora Renata pela colaboração e a seus alunos pelos preciosos momentos de convivência e pela intensa participação nos debates propostos durante as aulas; A todos os alunos que já tive nesses oito anos de profissão; Aos colegas do curso, pela amizade e troca de experiências; E a todos que contribuíram de alguma forma para a realização deste trabalho, o meu muito obrigado.

  • 4

    RESUMO............................................................................................................................................... 6 APRESENTAÇÃO............................................................................................................................... 8 1. TEORIA DA RELATIVIDADE NO ENSINO MÉDIO............................................................... 13 1.1 Atualização do Ensino de Física.......................................................................................... 13 1.2 Por que Relatividade no Ensino Médio?............................................................................ 22 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA PARA ELABORAÇÃO DA PROPOSTA............................ 29 2.1 Construtivismo, Mudança Conceitual e Perfil Conceitual............................................... 29 2.2 Abordagem Sócio-Interacionista e Momentos Pedagógicos............................................. 39 2.3 Física Moderna e Relatividade Restrita: Breve Histórico e Noções Epistemológicas.... 46 2.3.1 Descrição do Cenário............................................................................................... 47 2.3.2 O Surgimento da Relatividade................................................................................. 55 2.4 Revisão da Literatura: Propostas e Alternativas Didáticas.............................................. 70 3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS................................................................................... 80 3.1 Pesquisas Qualitativas em Educação – Estudo de Caso.................................................... 80 3.2 A Intervenção Piloto............................................................................................................. 84 3.2.1 A Seqüência Didática.............................................................................................. 85 3.2.2 Resultados: Categorias de Análise e Fatores para a Reestruturação.................. 95 3.3 O Estudo Final...................................................................................................................... 116 4. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS.......................................................................... 121 4.1 Levantando os Posicionamentos Iniciais dos Estudantes.................................................. 121 4.2 Sistematizando e Estruturando os Postulados da Relatividade Restrita......................... 140 4.3 Dilatação Temporal e Contração do Comprimento: Aplicações e Resistências............. 151 4.4 Interpretação dos Efeitos Relativísticos e Metacognição.................................................. 171 5. CONCLUSÕES E PERSPECTIVAS.............................................................................................. 177 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................................ 187 ANEXOS................................................................................................................................................ 195

    SUMÁRIO

  • 5

    Dedico este trabalho:

    Aos meus pais, pela dedicação e pelas oportunidades que me

    proporcionaram.

    Ao “baixo” clero, pelo convívio e pelas discussões sobre educação.

  • 6

    RESUMO

    Com base na idéia de que as teorias modernas devam ser incorporadas ao conteúdo clássico no ensino de Física, este trabalho tem como objetivo a elaboração e análise de uma proposta para discutir tópicos da Teoria da Relatividade Restrita, com estudantes do primeiro ano do Ensino Médio, a partir de conceitos da Mecânica. A avaliação da pertinência de estratégias didáticas para essa discussão, bem como a análise da evolução conceitual dos estudantes promovida pela mesma, são, dessa forma, os focos principais deste estudo. Partindo dos conceitos de referencial e tempo, normalmente negligenciados no ensino da Cinemática, uma seqüência didática, embasada na metodologia dos três momentos pedagógicos (DELIZOICOV e ANGOTTI, 1991), foi elaborada e testada em caráter exploratório. Os resultados do estudo piloto indicaram fatores potenciais para a reestruturação da proposta, a qual foi novamente aplicada, em outra turma, com um olhar mais aprimorado e consciente do pesquisador sobre a situação. A gravação das aulas em vídeo permitiu acompanhar o processo de ensino. O comportamento dos estudantes frente a situações de conflito confirmou o previsto pela teoria da equilibração de Piaget, e as discussões recortadas de episódios de ensino evidenciaram o papel dos mediadores na construção do conhecimento, fundamental segundo a teoria sócio-interacionista de Vygotsky. Em relação à concepção de aprendizagem, trabalhou-se em concordância com o modelo de Mortimer (1994), o qual defende que o ensino de ciências deva promover a evolução de um perfil conceitual, através da construção de novas áreas desse perfil e da tomada de consciência, pelo educando, do contexto onde cada área é aplicável. Dessa forma, pôde ser verificada, especificamente, a ampliação do perfil conceitual de tempo dos estudantes, promovida pela construção da noção relativística.

  • 7

    ABSTRACT

    Regarding the idea that modern theories ought to be incorporated in the classic syllabus of Physics teaching, this research is elaborated with the goal of compounding and analyzing a proposal to discuss topics of the Special Theory of Relativity, with High School students (15-17 years old), within the concepts of the Mechanics. The evaluation of how pertinent the didactic strategies were, as well as the analysis of the conceptual evolution of the students towards it are the main streams in the present work. Taking as a starting point the concepts of reference of frame and time, somewhat neglected in the studies of Kinematics, a didactic sequence was elaborated and tested within the method of the three pedagogic moments (DELIZOICOV e ANGOTTI, 1991). The strategies were tested and the results of the pilot program indicated potential factors for a remodeling of the proposal, which was applied for a second time with other students, upon a close watch, more perfect and conscient from the researcher. Tape recordings in video of the lectures allowed a steady follow of the teaching procedure. Students’ behavior when faced with a situation of conflict, confirmed the predicted in Piaget’s equilibration theory, and dialogues extracted from these recordings, pointed out the role of mediation and the importance of students’ interaction in the social process of constructing knowledge, as defended by Vygotsky. In harmony with Mortimer’s (1994) model, which upholds that the objective of science teaching is to promote the evolution of a conceptual profile, through the construction of new zones of the profile and the students’ consciousness of the process, the broadening of the students’ conceptual profile of time, promoted by the relativistic notion, is analyzed.

  • 8

    APRESENTAÇÃO

    Desde o ano 2000, atuando como professor de Física do Ensino Médio, constatei

    que, de uma maneira geral, esta disciplina, ao meu ver tão fascinante e presente no dia-

    a-dia, era tida pelos estudantes como umas das mais difíceis e entediantes.

    Refletindo sobre a prática docente, questões como indisciplina, falta de

    compreensão dos conteúdos por parte dos alunos, entre outras, geravam vários

    questionamentos: como motivar os alunos para o aprendizado da Física? Que

    metodologias utilizar para aproximá-los do conhecimento científico? O que significa

    avaliar? Para que ensinar este ou aquele conteúdo?

    Buscando aprimorar as reflexões teóricas sobre práticas didáticas mais

    adequadas, passei a me dedicar ao ingresso em um curso de Mestrado. No XV Simpósio

    Nacional de Ensino de Física, ocorrido em Curitiba, 2003, obtive informações sobre

    alguns programas de pós-graduação e me identifiquei com o Programa de Educação

    Científica e Tecnológica da UFSC, por reunir as duas áreas: a Educação e o Ensino de

    Ciências, mais particularmente, de Física.

    Procurando um tema para o pré-projeto, analisei os meus três anos de

    experiência com o ensino da Física. Recordei-me de perguntas constantes dos alunos

    sobre temas da Física Moderna, como a Relatividade e a Física Quântica. Eles entravam

    em contato com estes temas através dos meios de comunicação e de divulgação

    científica, mas nunca em sala de aula, pois o currículo de Física vigente aborda somente

    a chamada Física Clássica.

    Segundo Schwartz (1992), assim como as sinfonias de Beethoven e os quadros

    de Monet, a Teoria da Relatividade é um dos marcos culturais mais significativos do

    Ocidente (SCHWARTZ, 1992, p. 19). Questões como É possível viajar no tempo? O

    que é a quarta dimensão? Quem foi Einstein e qual sua contribuição para a Física? A

  • 9

    equação da bomba atômica é E = mc2? apreendem o encanto dos estudantes em relação

    à ciência do século XX e me motivaram a trazer a discussão de fundamentos da Teoria

    da Relatividade para as minhas aulas. Mas como? Em que momento? Com que

    profundidade?

    Entre tantas dúvidas, trabalhando com a Física no primeiro ano do Ensino

    Médio, pude identificar um erro de abordagem logo no início. A maioria dos livros

    didáticos inicia pelo tratamento da Cinemática Clássica, partindo da definição de seus

    conceitos básicos.

    Habitualmente, destina-se uma aula introdutória para os conceitos de trajetória,

    ponto material, referencial, espaço, distância, deslocamento, tempo e implementa-se,

    então, o tratamento matemático envolvendo o cálculo de velocidade média e a aplicação

    das equações dos movimentos, bem como suas representações gráficas. Esta patente

    disparidade entre o tempo destinado às questões de ordem conceitual e o dedicado à

    abordagem matemática, além de contribuir para um distanciamento das discussões

    teóricas mais importantes, tem suprimido o interesse dos estudantes pela Física.

    Tradicionalmente, a necessidade da determinação de um referencial para a

    descrição dos movimentos é rapidamente abordada nas aulas introdutórias do primeiro

    ano do Ensino Médio. Entretanto, essa discussão não é retomada na seqüência, como

    evidenciado na observação contida em um dos livros-texto mais utilizados neste nível:

    Quase sempre nossos estudos de movimentos são feitos supondo o referencial na Terra (o observador parado na superfície da Terra). Toda vez que estivermos usando outro referencial, isto será dito explicitamente (MÁXIMO e ALVARENGA, 2000, p. 46).

    Dessa forma, os alunos não se dão conta da importância do conceito de

    referencial e das diferentes possibilidades de descrição do movimento por diferentes

    observadores, o que, certamente, configura um obstáculo para o entendimento dos

    pressupostos da Teoria da Relatividade.

  • 10

    Outro conceito da cinemática que não o tem o devido tratamento nas aulas de

    Física é o tempo, conforme aponta Martins (2004). A ausência de uma discussão mais

    detalhada sobre o mesmo também é facilmente constatada nos livros didáticos. Alguns

    não apresentam explicitamente o conceito de tempo (Máximo e Alvarenga, 2000;

    Gonçalves Filho e Toscano, 2002), enquanto outros destacam que o mesmo não tem

    definição: Tempo é uma noção primitiva e fundamental na descrição de qualquer

    movimento (RAMALHO JR et al., 1993, p.21) ou Estamos admitindo intervalo de

    tempo como noção intuitiva – que dispensa definição – obtida pela diferença entre dois

    instantes determinados (GASPAR, 2000, p. 40). Assim, o movimento é descrito como

    uma variação da posição ao longo do tempo e, sem nenhuma reflexão sobre seus

    aspectos, ele passa a ser utilizado como parâmetro para as equações da cinemática. Essa

    prática contribui para referendar, na melhor das hipóteses, a noção de tempo absoluto

    (quando a Dinâmica é adequadamente trabalhada), o que também figura como um

    obstáculo para a compreensão da interpretação relativística do mesmo. Dessa forma,

    distingui esses dois conceitos como possíveis portas de entrada para tratar tópicos da

    Relatividade Restrita a partir da Mecânica, logo no primeiro ano do Ensino Médio.

    Acredito que os princípios teóricos e as principais conseqüências da Teoria da

    Relatividade devam fazer parte do currículo formal de Física no Ensino Médio, não

    apenas como curiosidade ou apêndice, mas como forma de mostrar o caráter desafiador

    e interessante da ciência aos estudantes, aproximando-os das fronteiras dessa área de

    conhecimento.

    Meses após a entrega do pré-projeto, tomei conhecimento de que o ano de 2005

    foi escolhido como Ano Mundial da Física, em virtude da comemoração do centenário

    da publicação dos principais artigos de Einstein, dentre eles, o intitulado “Sobre a

    Eletrodinâmica dos Corpos em Movimento”, no qual o autor enuncia os princípios da

  • 11

    Teoria da Relatividade Restrita. Essa foi uma motivação adicional para o

    desenvolvimento de nossa pesquisa.

    A falta de plausibilidade desta teoria, evidenciada no postulado da constância da

    velocidade da luz e na necessidade do abandono de noções intuitivas como as de tempo

    e espaço absolutos, fundamentou uma reflexão sobre as estratégias mais pertinentes para

    a sua abordagem neste nível de ensino, bem como as maneiras de se constatar a

    evolução conceitual dos estudantes promovida por essa inserção. Assim, seguindo esse

    objetivo, estruturei uma seqüência didática para trabalhar tópicos da Relatividade

    Restrita, especialmente a noção de tempo relativístico, com estudantes do primeiro ano

    do Ensino Médio, e analisei sua eficácia.

    Essa dissertação está organizada em cinco capítulos. No primeiro, apresento uma

    breve contextualização dos principais problemas do ensino de Física nas escolas

    brasileiras de nível médio e a proposta de inserção de tópicos de Física Moderna e

    Contemporânea para o mesmo. Exponho algumas justificativas para a inserção da

    Teoria da Relatividade e pontuo os objetivos específicos deste trabalho.

    A fundamentação teórica para a construção da proposta é descrita no segundo

    capítulo. Os pressupostos do construtivismo piagetiano, o modelo de mudança

    conceitual (Posner et al., 1982), o conceito de perfil conceitual (Mortimer, 1994), a

    abordagem sócio-interacionista de Vygotsky e os momentos pedagógicos (Delizoicov e

    Angotti, 1991) são detalhados, por serem fundamentais para a análise e elaboração da

    intervenção. Um breve histórico do surgimento da relatividade, enfatizando os aspectos

    abordados em sala, também é apresentado no mesmo. Através de uma revisão na

    literatura específica, analiso, na última seção, propostas encontradas na literatura

    corrente.

  • 12

    No capítulo 3, a opção metodológica desta pesquisa é apresentada e descrevo a

    aplicação e os resultados da seqüência didática em um estudo piloto, a análise desses

    resultados, sua relevância à reestruturação da seqüência para uma nova aplicação. Os

    resultados desta segunda intervenção, denominada estudo final, são comentados e

    analisados no capítulo seguinte, sendo as conclusões e perspectivas futuras delineadas

    no último.

  • 13

    1. A TEORIA DA RELATIVIDADE NO ENSINO MÉDIO

    1.1 Atualização do Ensino de Física

    A forma como a Física vem sendo ensinada, na grande maioria das escolas

    brasileiras de Ensino Médio, tem sido alvo de muitas críticas. A ênfase na memorização

    e aplicação direta de fórmulas, bem como a descontextualização do desenvolvimento

    desta ciência, têm contribuído fortemente para distanciá-la da preferência dos estudantes

    e torná-la quase um mito. Depoimentos como Eu odeio Física são muito comuns entre

    os alunos desta faixa etária. Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio

    (PCNEM) apontam essa situação

    O ensino de Física tem sido realizado freqüentemente mediante a apresentação de conceitos, leis e fórmulas, de forma desarticulada, distanciados do mundo vivido pelos alunos e professores e não só, mas também por isso, vazio de significados. Privilegia a abstração, desde o primeiro momento, em detrimento de um desenvolvimento gradual de abstração que, pelo menos, parta da prática e de exemplos concretos (PCNEM, 1999, p.229).

    Além da metodologia de ensino, a seleção dos conteúdos também tem sido

    criticada em virtude da grande ênfase dada à Física Clássica, principalmente a

    desenvolvida entre 1600 e 1850. A seqüência dos conteúdos tratados no Ensino Médio

    tende a seguir os clássicos manuais didáticos. Inicia-se tradicionalmente pela Mecânica,

    abordada no primeiro ano, deixando a Física Térmica, a Óptica e a Ondulatória para o

    segundo e a Eletricidade e o Magnetismo para serem estudados no terceiro e último ano

    deste ciclo. Essa escolha exclui tanto os primórdios da ciência (a partir da Grécia

    antiga), como as grandes mudanças no pensamento científico, ocorridas no início do

    século XX (TERRAZ ZAN, 1992), além de apresentar a Física como blocos estanques e

    independentes entre si.

  • 14

    Dessa forma, a maneira como a Física Clássica vem sendo ensinada tem

    contribuído, em geral, para gerar nos educandos a falsa idéia de que as teorias

    científicas são constituídas de verdades absolutas e imutáveis, provenientes da mente de

    alguns gênios infalíveis (PCNEM, 1999). A grande maioria dos livros didáticos

    disponíveis para os alunos do Ensino Médio está imbuída dessa noção:

    Salvo raríssimas exceções, os livros didáticos de física são extremamente semelhantes em termos de estrutura, de seqüência, de forma de apresentação dos conteúdos e até de tipos de exercícios resolvidos e propostos. Por isso, acompanhando-se a forma de desenvolvimento dos conteúdos nesses livros, tem-se uma boa aproximação do que ocorre em média nas aulas de física nas escolas (TERRAZZAN, 1994, p.108).

    Moreira também aponta que,

    Por falar em livros, é claro que eles sempre existiram e cabe

    destacar, entre os atuais, pela ótima qualidade, o Curso de Física, de Alvarenga e Máximo (1997) e o Física do GREF (Grupo de Reelaboração do Ensino de Física, 1993). [...] muito do ensino de Física em nossas escolas secundárias está, atualmente, outra vez referenciado por livros, porém de má qualidade – com muitas cores, figuras e fórmulas – e distorcido pelos programas de vestibular; ensina-se o que cai no vestibular e adota-se o livro com menos texto para ler (MOREIRA, 2000, p.95).

    Portanto, faz-se necessário propor alternativas para melhorar esse quadro,

    mostrando aos educandos que a Física é uma ciência que está em constante

    transformação, além de aproximá-los do desenvolvimento desta ciência, destacando-a

    como uma construção da mente humana (ARONS, 1997). A atualização dos PCNEM

    preconiza mudanças nessa direção:

    Ao mesmo tempo, a Física deve vir a ser reconhecida como um

    processo, cuja construção ocorreu ao longo da história da humanidade, impregnado de contribuições culturais, econômicas e sociais, que vem resultando no desenvolvimento de diferentes tecnologias e, por sua vez, por elas sendo impulsionado (PCNEM+, 2002, p 59).

  • 15

    Por acreditarmos que a ciência é dinâmica, pensamos que os currículos escolares

    também precisam ser atualizados continuamente, para atenderem aos avanços obtidos

    pela mesma. Muito tem se discutido sobre a necessidade de uma reformulação no

    currículo de Física do Ensino Médio, a fim de acrescentar os avanços obtidos pela

    ciência do século XX. Diversos autores brasileiros (OSTERMANN, 1999; ARRUDA e

    VILLANI, 1998, TERRAZAN, 1994, dentre eles) abordam estas questões e propõem

    uma reestruturação curricular visando à inserção de tópicos de Física Moderna e

    Contemporânea. Apenas para esclarecer a terminologia utilizada doravante, estamos

    adotando a divisão cronológica da Física em três períodos, de acordo com Rezende JR

    (2001):

    1. CLÁSSICO, que compreende o período que vai desde o estabelecimento da

    Mecânica Newtoniana até o desenvolvimento do Eletromagnetismo Clássico de

    Maxwell, no final do século XIX.

    2. MODERNO, que se estabeleceu entre o final do século XIX até a década de

    40 do século XX (início da Segunda Guerra Mundial).

    3. CONTEMPORÂNEO, após o início da Segunda Guerra Mundial

    (aproximadamente na década de 40), até os dias de hoje.

    Tópicos como hidrostática, hidrodinâmica e acústica, reformulados à luz do

    paradigma newtoniano e das formulações devido a Euler, Lagrange e Hamilton, são

    englobados na divisão Física Clássica. Outros, como a teoria cinética dos gases, teorias

    da matéria, termodinâmica e a mecânica estatística clássica, são considerados na mesma

    divisão em função da concomitância cronológica. Neste sentido, a Física abordada no

    Ensino Médio não engloba nem a totalidade dos conteúdos da Física Clássica.

  • 16

    Dentre as razões apontadas para a reformulação curricular pretendida, Terrazzan

    defende que

    [...] conteúdos de Física Moderna e Contemporânea correspondem a uma necessidade vital de nossos currículos de Física escolar. A própria importância dos temas de Física Moderna e Contemporânea na constituição da Física, enquanto área do conhecimento científico, exige sua inclusão nos currículos escolares (TERRAZZAN, 1994, p.34).

    Ainda, segundo Ostermann,

    Estudar problemas conceituais existentes na Física Moderna e Contemporânea envolve os estudantes nos desafios filosóficos de alguns aspectos da Física. O fato de que nem tudo, no mundo científico, é sabido ou entendido, modifica a idéia que os estudantes em geral têm de Física – um assunto que é uma “massa” de conhecimentos e fatos, um livro fechado. Ou são mostrados aos alunos os desafios a serem enfrentados pela Física no futuro, ou eles não serão encorajados a seguirem carreiras científicas (OSTERMANN, 1999, p 12).

    No mesmo trabalho, a autora menciona a Conferência Interamericana sobre

    Educação em Física, na qual foi organizado um grupo de trabalho para discutir o ensino

    de Física Moderna. Na discussão, foram levantadas inúmeras razões para a introdução

    de tópicos contemporâneos no Ensino Médio. Dentre elas:

    despertar a curiosidade dos estudantes e ajudá-los a reconhecer a Física como

    um empreendimento humano e, portanto, mais próxima a eles;

    os estudantes não têm contato com o excitante mundo da pesquisa atual em

    Física, pois não vêem nenhuma Física além de 1900. Esta situação é inaceitável,

    em um século no qual as idéias revolucionárias mudaram a ciência totalmente;

    é do maior interesse atrair jovens para a carreira científica. Serão eles os futuros

    pesquisadores e professores de Física;

    Física Moderna é considerada conceitualmente difícil e abstrata, mas resultados

    de pesquisa em ensino de Física têm mostrado que, além de Física Clássica ser

  • 17

    também abstrata, os estudantes apresentam sérias dificuldades conceituais para

    compreendê-la (BAROJAS, apud OSTERMANN, 1999, p. 9).

    Apesar de concordarmos que a abordagem de Física Moderna no Ensino Médio

    seja capaz de despertar vocações e incentivar aos jovens a seguirem carreiras científicas,

    como defende Ostermann, pensamos que este não deva ser o objetivo principal da

    inserção de temas modernos neste nível de ensino, devido ao caráter terminal evocado

    ao mesmo na atual Lei de Diretrizes e Bases. Distinguindo-se de um ensino voltado

    predominantemente para formar cientistas, hoje é imperativo ter como pressuposto a

    meta de uma ciência para todos (DELIZOICOV et. al. , 2002). Dessa forma, devemos

    pensar em um ensino de Física cuja perspectiva seja possibilitar que nossos estudantes

    tenham contato com uma outra forma de cultura: a cultura científica. Mortimer (1994)

    justifica a inserção de conceitos da Física Moderna associando-a a um processo de

    ampliação da cultura do educando,

    Aprender ciências está muito mais relacionado a se entrar em um mundo que é ontologicamente e epistemologicamente diferente do mundo cotidiano. Esse processo de enculturação1 pode ocorrer, também, quando se tem que aprender teorias mais avançadas. Aprender mecânica quântica para quem tem uma visão clássica do mundo tem essa mesma característica de enculturação (MORTIMER, 1994, p 31).

    Os estudos de Zanetic (1989) foram pioneiros, na busca por uma relação mais

    próxima entre o conhecimento científico, particularmente a Física, e a manifestação

    cultural. Em sua tese de doutorado, o autor defende a necessidade de considerar a

    Física, além de todos os seus aspectos formativos e instrumentais, como parte integrante

    do caldo cultural da cidadania:

    1 O significado da palavra “enculturação”, derivada do neologismo inglês enculturation, é atribuído ao processo pelo qual uma pessoa entra numa cultura diferente da sua, adquirindo conceitos, linguagem e certas práticas da cultura científica (MORTIMER, 1994, p.2).

  • 18

    [...] o conhecimento científico é um produto da vida social e como tal leva a marca da cultura da época, da qual é parte integrante, influenciando e sendo influenciado por outros ramos do conhecimento, sendo o relacionamento da física com a filosofia um dos melhores exemplos (ZANETIC, 1989, p 23).

    Especificamente em relação à necessidade de inserção de Física Moderna e

    Contemporânea no Ensino Médio, Zanetic recomenda:

    Ofereça aos alunos uma visão da física que aproxime a “física

    escolar” dos mais recentes avanços construídos pelos físicos contemporâneos. Isto significa que o conteúdo da Física a ser trabalhada no segundo grau não pode ficar restrito apenas à física conhecida até fins do século XIX, sob pena de dar uma impressão totalmente falsa e incompleta da perspectiva de mundo oferecida atualmente. Isto porque no final do século passado e início deste a física conheceu um desenvolvimento de tal monta que toda a concepção de mundo que se tinha teve de ser repensada [...] Muitos fenômenos só têm uma explicação razoável quando apelamos para essas duas teorias2 do século XX, totalmente ausentes nas aulas do segundo grau (ZANETIC, 1989, p. 23).

    Entre tantas justificativas, podemos dizer que já não há mais dúvida sobre a

    necessidade de uma mudança no currículo de Física do Ensino Médio a fim de

    acrescentar temas de Física Moderna e Contemporânea. Entretanto, apesar de ser

    praticamente um consenso dentro da academia, a realidade das salas de aula é bem

    diferente. Em virtude de inúmeros problemas, como a precariedade das condições de

    trabalho do professor, a falta de uma formação específica ou a ênfase dada aos

    programas de vestibular que, em geral, não cobram temas modernos, podemos afirmar

    que a Física Moderna ainda está muito distante dos alunos do Ensino Médio.

    Dessa forma, acreditamos que, para contribuir de uma maneira mais significativa

    para a atualização do currículo de Física, devemos transcender o campo das

    justificativas e direcionar nossos esforços para questões de ordem prática. Alguns

    questionamentos devem ser levantados para nortear a pesquisa nessa área

    (OSTERMANN e MOREIRA, 2001): Quais tópicos devem ser ensinados? Em que 2 As duas teorias referidas são a Teoria da Relatividade e a Mecânica Quântica.

  • 19

    nível de profundidade devemos trabalhar? Quais metodologias adotar para alcançar uma

    aprendizagem significativa? A introdução dos conceitos de Física Moderna e

    Contemporânea deve ser ao final do curso (após o Eletromagnetismo) como discussão

    dos limites da Física Clássica ou articulada com os conteúdos clássicos numa

    reestruturação completa? Quais tópicos da Física Clássica, como o excesso da

    cinemática e de circuitos elétricos, podem ser menos enfatizados disponibilizando o

    tempo necessário para as inclusões? Que materiais didáticos devem ser produzidos?

    Certamente, não é possível responder exaustivamente a nenhuma destas questões

    em um único trabalho. Sobre uma das questões levantadas anteriormente, Terrazzan

    defende que

    Do ponto de vista estrutural, a temática de Física Moderna e Contemporânea deve estar organicamente incorporada à apresentação e ao desenvolvimento das teorias clássicas. Assim, possibilita-se aos alunos perceberem a física como um ‘corpo unitário’ de conhecimentos, com ramificações internas que desenvolveram muitas vezes de forma autônoma, ora aglutinando-se, ora incorporando-se umas às outras, enfim, formando os grandes sistemas conceituais que hoje se estabeleceram (TERRAZZAN, 1994, p.71).

    A proposição de Terrazzan é coerente com a posição de Arons (1990), o qual

    sustenta restringir a listagem de tópicos passíveis de discussão na escola média, e

    excluir parte dos temas usualmente trabalhados na física escolar (ARONS, 1990).

    Atenta ainda para a unidade necessária nessas inserções, preconizando a necessidade de

    critérios claros, explícitos e conscientes, de modo a priorizar o processo da produção

    científica, a sua evolução histórica, em detrimento dos produtos, os seus resultados

    finais (TERRAZZAN, 1994).

    Nesse sentido, os livros-texto têm sido produzidos na contramão desta análise.

    Cavalcante (1999) aponta os esforços despendidos por autores de livros didáticos para

    inserir assuntos relativos à Física do século XX nesses materiais. Destaca que, na

    maioria dos casos, esses temas são apresentados no final do terceiro volume das obras, o

  • 20

    que acaba fazendo com que estes não sejam sequer cogitados nos planos de ensino,

    muito menos na sala de aula. Cabe ressaltar as exceções, como os livros de Alvarenga e

    Máximo e do GREF, que realizam essa inserção de modo diferenciado, sendo que, no

    primeiro, é feita em tópicos suplementares ao final de determinados capítulos e no

    segundo, concomitantemente e de forma complementar à teoria clássica. Porém, tratar a

    Física Moderna por meio de temas complementares implica amenizar sua importância

    para os estudantes. Rezende Jr (2001) faz uma análise dos principais livros didáticos de

    Física do Ensino Médio, quanto à presença de conteúdos de Física Moderna e

    Contemporânea, e constata que esses temas, quando abordados, ainda são vistos como

    secundários:

    Podemos notar que a maioria dos livros que trazem elementos

    de Física Moderna e Contemporânea tem esses conteúdos separados em seções especiais, em apêndices ou pequenas inserções informativas no decorrer dos capítulos. O fato de esses conteúdos aparecerem como um tópico complementar acaba caracterizando-os diferentemente do restante do conteúdo, primeiramente pelo fato de ser uma leitura complementar e, com isso, não ser avaliado pelo professor; por ter uma linguagem informativa e não estar disposto na seqüência tradicional; não conter exercícios operacionáveis, desvinculando-se do ferramental matemático (REZENDE JR, 2001, p. 57).

    Diante dos problemas enfrentados para a inserção de Física Moderna e

    Contemporânea, Resnick (1987) propõe que a mesma deve estar fundamentada em três

    pilares:

    1. Overview – Análise prévia da relevância do ensino de determinados conceitos

    para promover uma redução da quantidade de conteúdos clássicos abordados, assim

    como de detalhamentos matemáticos exaustivos e da repetição de exercícios-padrão.

    2. Sprinkle – Pulverização dos temas modernos tratados paralelamente à

    concepção clássica de determinados conceitos.

  • 21

    3. Broaden – Ampliar as fontes dos estudantes para que os mesmos não se

    restrinjam ao aprendizado dentro do ambiente de sala de aula. Indicar livros e artigos

    sobre temas modernos e incentivar atividades extracurriculares como clubes de ciência

    (RESNICK, 1987).

    Assim, como uma forma de contribuir para a inserção de temas modernos no

    currículo de Física em nível médio, focalizamos nossa pesquisa na elaboração e teste de

    uma proposta para abordar alguns conceitos da Teoria da Relatividade Restrita no

    primeiro ano do Ensino Médio, de acordo com o segundo pilar proposto por Resnick e

    com as ressalvas enfatizadas por Terrazzan e Arons. Acreditamos que certos conceitos

    da Relatividade podem ser abordados logo no primeiro ano, justamente por

    questionarem várias definições tradicionalmente abordadas nesta etapa do ensino.

    Partindo de um levantamento dos tópicos habitualmente tratados no primeiro

    ano (overview), selecionamos a noção de tempo relativístico que, para sua inserção,

    requer a elucidação dos dois postulados da teoria da relatividade restrita. Edificamos

    uma seqüência didática para abordá-los em sala de aula. Dessa forma, nosso problema

    de pesquisa constituiu-se na busca por estratégias de ensino que visassem a uma

    aprendizagem significativa desse conceito, associado aos de espaço e velocidade, e no

    estudo da evolução conceitual dos estudantes decorrente desta abordagem.

    Formulamos e aplicamos um questionário inicial (pré-teste), com o intuito de

    levantar as concepções dos alunos acerca dos conceitos a serem trabalhados e de

    direcionar a escolha dos procedimentos metodológicos da intervenção. A gravação das

    aulas em vídeo possibilitou-nos o registro e o acompanhamento do processo. A análise

    de episódios de ensino, recortados dessas gravações, evidenciou os conflitos dos

    estudantes em relação às idéias contra-intuitivas da relatividade. A aplicação de um

    outro questionário (pós-teste), contemplando situações-problema nas quais os

  • 22

    estudantes deveriam fazer uso de explicações relativísticas para resolvê-las, e questões

    de natureza metacognitiva, procurando evidenciar a consciência dos sujeitos ante ao

    processo vivenciado, constituem, juntamente com os episódios analisados, a

    matéria-prima dessa investigação.

    Na próxima seção, relatamos justificativas para o ensino da Teoria da

    Relatividade presentes na literatura específica e complementamos com nossos

    argumentos a favor desta inserção.

    1.2 Por que Relatividade no Ensino Médio?

    Apesar de considerarmos essencial a reformulação do currículo de Física em

    nível médio, acreditamos que a escolha dos temas a serem abordados é de grande

    importância. O ensino de Física para a escola média não tem como fim principal a

    formação de cientistas e de futuros pesquisadores, mas sim, dar condições ao estudante

    para compreender melhor a sua realidade e participar ativamente das transformações de

    sua sociedade, isto é, ser capaz de exercer sua cidadania (CAVALCANTE, 1999).

    Citando mais uma vez a atualização dos PCNEM:

    A presença do conhecimento de Física na escola média ganhou um novo sentido a partir das diretrizes apresentadas nos PCNEM. Trata-se de construir uma visão da Física voltada para a formação de um cidadão contemporâneo, atuante e solidário, com instrumentos para compreender, intervir e participar na realidade. Nesse sentido, mesmo os jovens que, após a conclusão do ensino médio, não venham a ter mais qualquer contato escolar com o conhecimento em Física, em outras instâncias profissionais ou universitárias, ainda terão adquirido a formação necessária para compreender e participar do mundo em que vivem (PCNEM+, 2002, p. 59).

    Nessa perspectiva, faz-se necessária uma análise cuidadosa de quais conteúdos

    de Física Moderna e Contemporânea poderiam ser inseridos no Ensino Médio. Essa

    inserção não pode ser justificada simplesmente pela necessidade de uma atualização

    curricular, mas sim, legitimada através de uma apreciação da relação custo-benefício

  • 23

    engendrada pela inclusão deste ou daquele tópico em um dado momento do

    planejamento (overview).

    Com o intuito de fazer um levantamento sobre quais conteúdos seriam mais

    relevantes e, portanto, deveriam integrar o currículo do Ensino Médio, Ostermann

    (1999) realizou um estudo com vinte e dois professores de Física, vinte e dois

    pesquisadores em Ensino de Física e cinqüenta e quatro físicos, através de uma técnica

    de pesquisa denominada Delphi3. Os participantes da pesquisa responderam a três

    questionários, sendo que no primeiro solicitou-se, através de uma pergunta aberta, quais

    seriam os tópicos de Física Moderna e Contemporânea que deveriam ser ensinados na

    escola média. Num total de vinte temas, o mais sugerido foi a Mecânica Quântica

    (63%), seguida da Relatividade (50%). Em uma outra etapa, partindo dos temas listados

    no primeiro momento, os participantes foram questionados sobre a importância de

    ensinar os diversos tópicos: 61,8% concordam que relatividade restrita deva ser

    ensinada, 18,4% não opinaram e 19,8% discordam. Em um terceiro questionário, os

    entrevistados tiveram a oportunidade de rever suas opiniões, contrastando-as com os

    resultados apresentados nas etapas anteriores. Essa pesquisa mostra que a comunidade

    científica espera que os temas em foco façam parte do currículo de Física do Ensino

    Médio; mostra também que a Teoria da Relatividade Restrita, em particular, aparece

    com uma das áreas mais importantes a serem abordadas.

    Borghi, De Ambrosis e Ghisolfi (1993) acreditam que conceitos da relatividade

    devam fazer parte do Ensino Médio pelas seguintes razões:

    valor cultural desta teoria;

    possibilidade de lidar com seus conceitos básicos sem a necessidade de

    um tratamento matemático sofisticado;

    3 Esta técnica pode ser caracterizada como um método para estruturar um processo de comunicação grupal a fim de que seja efetivo em permitir que um grupo de indivíduos, como um todo, enfrente um problema complexo (LINSTONE e TUROFF apud OSTERMANN, 1999, p. 41).

  • 24

    promover um intenso envolvimento dos estudantes;

    reconhecimento dos processos que envolvem a passagem de uma teoria

    científica para outra;

    importância de constatar como uma teoria física pode estar desvinculada

    do senso comum e de experiências cotidianas.

    Para Villani e Arruda (1998), a inserção da Relatividade Especial no Ensino

    Médio não deve ter como objetivo provocar uma mudança conceitual nos estudantes, no

    sentido de fazer com que os mesmos alterem sistematicamente sua maneira de analisar

    fenômenos físicos. Com esta inserção, os autores esperam que

    os alunos percebam a existência e os aspectos essenciais de uma

    mudança conceitual na história da ciência para que os mesmos compreendam que esta mudança permitiu avanços na tecnologia moderna [...] e que uma grande importância seja dada às discussões das diferenças entre as idéias clássicas, de um lado, e as modernas provenientes da relatividade, do outro (VILLANI e ARRUDA, 1998, p. 94).

    Rodrigues (2001) aponta que a justificativa para essa inserção não permeia o

    apelo para a compreensão de avanços tecnológicos presentes em nossa sociedade, como

    no caso da Física Quântica. O autor elenca três principais objetivos:

    1. a mudança de padrão de raciocínio e interpretação da realidade aliada à abstração e sofisticação do pensamento, graças à concepção de tempo como uma quarta dimensão;

    2. a possibilidade de essa teoria servir de porta de entrada para outros tópicos da Física Moderna e Contemporânea;

    3. a necessidade de abordagem de um tema tão presente na sociedade através da divulgação científica (RODRIGUES, 2001, p. 22).

    Esse autor enfatiza, particularmente, o terceiro item, defendendo que devido ao

    fato de o ícone Einstein estar freqüentemente presente na mídia, no marketing e nos

    artigos de divulgação, existe um interesse natural despertado nos alunos. Moreira e

    Studart (2005) apontam que o misticismo em torno do carismático cientista deve-se, em

    parte, a sua atuação pessoal na popularização de suas idéias por meio de seus ensaios,

    artigos de revisão e palestras de divulgação científica. Em outra parte, deve-se à

  • 25

    contestação, de comentários a críticas, à complexidade dos conceitos físicos, filosóficos

    e matemáticos de suas obras (MOREIRA e STUDART, 2005).

    Uma justificativa interessante para a inserção da Teoria da Relatividade Restrita

    é que, através dela, o aluno poderá ter uma visão mais abrangente do dinamismo da

    ciência. Köhnlein e Peduzzi (2005) aplicaram um módulo didático em uma turma de

    segundo ano do Ensino Médio, tendo essa teoria como pano de fundo para discutir com

    os alunos a natureza da ciência e as características do fazer científico. Em uma primeira

    etapa, foi aplicado um questionário que constatou que as idéias dos alunos estavam

    inspiradas na visão empirista-indutivista. Segundo os autores, após as atividades

    desenvolvidas, as respostas dos alunos ao instrumento apresentaram, de forma geral,

    uma diferença considerável. Especificamente sobre o uso da Relatividade Restrita como

    conteúdo norteador da discussão, os mesmos justificam sua inserção no nível médio:

    Esta proposta sugere igualmente que introduzir a Teoria da Relatividade Restrita no Ensino Médio pode ser uma alternativa para quem deseja ir além do mero algoritmo e de alguns experimentos, ou seja, para quem busca tornar a Física mais interessante para o aluno. Cabe ressaltar a importância e a riqueza do tema para explorar períodos de crises e revoluções científicas, para discutir o papel da comunidade científica na construção das teorias e para mostrar que o conhecimento científico não é imutável, e sim uma construção humana que está sujeita a contestações e modificações (KÖHNLEIN e PEDUZZI, 2005, p. 64).

    Conforme mencionado anteriormente, a inserção da relatividade restrita no

    Ensino Médio não pode ser diretamente justificada com base na sua associação com os

    principais avanços tecnológicos ocorridos no século XX. Os efeitos da dilatação

    temporal e da contração das distâncias, por exemplo, podem ser seguramente

    desprezados no cotidiano. Entretanto, justamente por transcender a realidade sensorial

    imediata, acreditamos que a relatividade possa contribuir para ampliar a visão de mundo

    dos estudantes. Nesse sentido, concordamos com Moreira ao afirmar:

  • 26

    [...] é um erro ensinar Física sob um único enfoque, por mais atraente e moderno que seja. Por exemplo, ensinar Física somente sob a ótica da Física do cotidiano é uma distorção porque, em boa medida, aprender Física é, justamente, libertar-se do dia-a-dia (MOREIRA, 2000, p. 95).

    Helm e Gilbert (1985) defendem que as experiências de pensamento, ou

    Gedankenexperimente, têm desempenhado um importante papel na história da Física e

    que por incentivarem a imaginação, são essenciais para o ensino de Física.

    Especificamente para o caso da relatividade, estas são fundamentais para a base da

    teoria, devido à impossibilidade de realizar experiências com velocidades próximas à da

    luz. Einstein propôs uma série de experiências pensadas, dentre elas, trens se

    deslocando em altas velocidades, definição de simultaneidade baseada na

    emissão/recepção de raios de luz, perseguição de um raio de luz. Portanto, visando a um

    ensino que seja capaz de promover uma ampliação da capacidade de abstração dos

    estudantes do Ensino Médio, a relevância da abordagem dos conceitos essenciais da

    teoria da relatividade é evidente.

    A preocupação com o ensino da Teoria da Relatividade Restrita também está

    presente no ensino superior. Diversos autores já relataram dificuldades enfrentadas ao

    tratar o tema. Arruda (1994) discute a questão da plausibilidade da teoria,

    especificamente do postulado da constância da velocidade da luz, para os alunos. A

    aceitação de algumas idéias centrais da teoria se dá devido à autoridade dos livros, dos

    professores ou mesmo da comunidade física, e não porque as mesmas são significativas

    para os estudantes. Nas palavras do autor:

    [...] podemos dizer que a teoria como um todo (postulados e principais conseqüências) não é inicialmente plausível devido principalmente às suas características contra-intuitivas, ou seja, por divergir da visão do senso comum, não encontrando suporte na ecologia conceitual do aluno. Isso pode ocorrer devido ao comprometimento do aluno com as noções absolutas de espaço e tempo ou, no caso dos paradoxos (dilatação/contração), à compreensão insuficiente dos mesmos, considerados às vezes como tendo realidade apenas aparente (ARRUDA, 1994, p. 18).

  • 27

    Pietrocola e Zylbertsztajn (1999) constataram deficiências semelhantes no que

    diz respeito à compreensão da Teoria da Relatividade Restrita. Com o objetivo de

    verificar a utilização do Princípio de Relatividade por alunos de um curso de graduação

    em Física, os autores propuseram diversas situações idealizadas. Os estudantes

    deveriam se imaginar no interior de um trem que andava ora rápida, ora lentamente, e

    responder sobre as eventuais mudanças no comportamento dos fenômenos em virtude

    do movimento do trem. As situações propostas envolviam dinâmica dos corpos,

    hidrostática, termologia, eletricidade, magnetismo, óptica e som. Segundo os autores,

    [...] o resultado que mais surpreendeu nessa pesquisa foi a

    ausência de menção explícita ao Princípio de Relatividade nas respostas. Não foi possível detectar em nenhuma delas argumentos relativísticos que explicassem a inexistência de mudanças nos fenômenos apresentados (PIETROCOLA e ZYLBERTSZTAJN, 1999, p. 274).

    Ainda na mesma pesquisa, algumas respostas mostraram que certos alunos

    utilizaram conceitos relativísticos como dilatação do tempo, contração do comprimento

    e aumento de massa inercial de forma bastante equivocada.

    Esses alunos demonstraram ter um conhecimento superficial da

    teoria, e ao incorporarem alguns conceitos da mesma à sua estrutura interpretativa chegaram a conclusões contrárias daquelas preditas pela Teoria da Relatividade (PIETROCOLA e ZYLBERTSZTAJN, 1999, p. 272).

    Estudos desenvolvidos por Santos (1986) e Villani e Pacca (1990) constatam

    que os alunos acreditam haver um tempo real e tempos aparentes, evidenciando assim,

    a crença na existência de um referencial privilegiado para a marcação do tempo. Na

    reinterpretação dos conceitos de tempo e espaço, concordamos com Rodrigues, quando

    o mesmo assegura que

  • 28

    A Teoria da Relatividade altera substancialmente a nossa percepção de espaço e tempo, adentrando em terrenos e previsões até então exploradas apenas de forma fictícia. Os fenômenos presentes no cotidiano passam a possuir um status diferenciado, uma vez que se tornam apenas particularidades frente ao universo das velocidades. Por outro lado, o leque de fenômenos que se abre rumo às velocidades mais altas amplia a visão e a compreensão do universo (RODRIGUES, 2001, p. 21).

    Experiências, como as descritas anteriormente, mostram que ainda existe um

    campo vasto a ser explorado. Acreditamos que, ao incorporar conceitos, conseqüências

    e interpretações da Teoria da Relatividade no currículo de Física do Ensino Médio,

    podemos contribuir para uma ampliação da percepção de mundo dos estudantes,

    mostrando que a Física Moderna trata de fenômenos que, muitas vezes, fogem da nossa

    experiência imediata e também para desmistificar esta ciência, caracterizando-a como

    construída historicamente por seres humanos. Além disso, pensamos que essa inserção

    contribua para melhorar a assimilação e compreensão da Teoria da Relatividade para os

    futuros graduandos em ciências exatas.

    No próximo capítulo, delineamos a fundamentação teórica para a concepção de

    nossa seqüência didática apresentando nossa concepção sobre o processo de ensino-

    aprendizagem, fundamentando histórica e epistemologicamente o surgimento da Teoria

    da Relatividade e sintetizando algumas propostas para o ensino da mesma, presentes na

    literatura específica.

  • 29

    2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA PARA A ELABORAÇÃO DA SEQÜÊNCIA DIDÁTICA

    2.1 Construtivismo, Mudança Conceitual e Perfil Conceitual

    Vários pesquisadores e educadores têm direcionado seus esforços na tentativa de

    identificar as complexas variáveis que envolvem a aprendizagem dos conceitos

    científicos. Está bem estabelecido que as estratégias de ensino devam levar em conta o

    que os alunos pensam e que ensinar não é transmitir conhecimento, mas criar as

    possibilidades para a sua produção ou sua construção (FREIRE, 1996).

    No intuito de implementar essas estratégias, é imperativo considerar como o

    conhecimento é construído pelo indivíduo. Os estudos de Jean Piaget foram pioneiros

    nessa área. Partindo de uma analogia com o processo de adaptação dos organismos

    biológicos ao meio ambiente, Piaget defende que o desenvolvimento intelectual se dá

    através de um processo de adaptação da estrutura cognitiva do indivíduo aos novos

    fenômenos e conceitos, com os quais o mesmo tem contato ao longo de seu

    desenvolvimento. Esta adaptação é, então, realizada sob duas operações: assimilação e

    acomodação.

    A assimilação é o processo cognitivo pelo qual um indivíduo incorpora um novo

    dado às suas estruturas cognitivas prévias (LIMA, 1998). Assim, quando a criança

    vivencia novas experiências, tenta adaptar esses novos estímulos às estruturas

    cognitivas que já possui. Piaget define a assimilação como:

    [...] uma integração à estruturas prévias, que podem permanecer

    invariáveis ou são mais ou menos modificadas por esta própria integração, mas sem descontinuidade com o estado precedente, isto é, sem serem destruídas (PIAGET, 1996, p. 13).

  • 30

    Por outro lado, a nova informação pode não ser adaptável à estrutura existente, e

    sua integração leva, neste caso, a um rearranjo na estrutura cognitiva. Piaget define esse

    processo por acomodação

    Chamaremos acomodação (por analogia com o acomodatos biológico) toda modificação dos esquemas de assimilação sob a influência de situações exteriores (meio) aos quais se aplicam (PIAGET, 1996, p. 13).

    Estes dois processos estão intimamente relacionados. Enquanto a assimilação é

    sempre feita a partir da adaptação a esquemas acomodados anteriormente, sedimentados

    nos constructos cognitivos do sujeito, a acomodação se dá contra esses esquemas, pela

    assimilação da informação nova que os perturba. A nova estrutura é vista como superior

    à antiga, promovendo o progresso da construção do conhecimento. No momento em que

    um fato novo provoca uma perturbação, três tipos de comportamento são

    desencadeados: alfa, beta e gama.

    O primeiro deles constitui a conduta inicial frente à perturbação, consistindo na

    tentativa de neutralização da mesma, negligenciando-a ou afastando-a. Entretanto, o

    equilíbrio resultante desse comportamento é instável. O comportamento beta inicia-se

    pelo reconhecimento da perturbação como tal, implicando na busca por alterações no

    esquema prévio pela formulação de explicações específicas. Assim, o elemento

    perturbador passa a incorporar uma nova estrutura reorganizada. A reestruturação

    iniciada em beta é consolidada no comportamento gama, à medida que esta nova

    estrutura é utilizada para fazer previsões e interpretar outros fenômenos. O equilíbrio é

    restabelecido e o que anteriormente era visto como uma perturbação passa a ser parte

    integrante do esquema atual.

    Na primeira fase, a alfa, o indivíduo prefere negar a perturbação, ou seja,

    procura argumentos incipientes para o seu acontecimento, mas não abandona a teoria

    anterior. Na fase seguinte, percebe que não é mais possível ignorar a perturbação e

  • 31

    passa a criar novas estruturas de raciocínio para explicá-la. Quando a nova teoria é

    utilizada para prever e antecipar possíveis variações, a reorganização está completa

    (fase gama), dispondo a reequilibração da estrutura cognitiva.

    Apesar de objetivar o alcance das fases beta e gama, algumas vezes uma

    perturbação suficientemente grande não possibilita ao indivíduo superar a fase alfa, em

    função da resistência natural à mudança. Deve-se, portanto, considerar um outro tipo de

    perturbação além da conflitiva, a perturbação lacunar. Esta perturbação ocorre quando o

    sujeito nota que faltam objetos, condições ou informações para realizar uma ação. Neste

    caso, a reformulação da teoria se dá por complementações e reforços, não por correções.

    É importante ressaltar que a teoria de Piaget é uma teoria de aprendizagem e não

    de ensino-aprendizagem. Seus esforços foram destinados à análise do processo de

    evolução do conhecimento do indivíduo a partir da interação do mesmo com o objeto

    em si e não especificamente pelo processo de ensino. Em outras palavras, essa teoria

    não se constitui num método de atuação para a sala de aula, mas o seu conhecimento

    permite repensar a investigação pedagógica e oferecer princípios estruturadores para a

    intervenção didática.

    Posner et al. (1982) propõem, no início da década de 80, um modelo de ensino

    visando incorporar a aprendizagem piagetiana, o denominado Modelo de Mudança

    Conceitual. Os autores procuraram analogias entre o processo de mudança de uma

    teoria científica para outra, ao longo da história da ciência, e a forma como as

    concepções prévias dos estudantes são substituídas pelo conhecimento científico

    durante o processo educacional (POSNER et al., 1982). Utilizando a mesma

    terminologia da teoria piagetiana, o processo de mudança conceitual apresenta duas

    fases: a primeira, denominada assimilação, ocorre quando os alunos utilizam suas idéias

    prévias para interpretar os novos fenômenos propostos, enquanto a segunda,

  • 32

    denominada acomodação, ocorre quando os mesmos percebem que suas concepções

    iniciais são insuficientes e inadequadas para interpretar o fenômeno novo,

    reorganizando ou substituindo seus conceitos centrais (POSNER et al., 1982). Existem

    quatro condições básicas para que ocorra a acomodação:

    1 - Insatisfação: os cientistas e os estudantes tendem, provavelmente, a não fazer grandes mudanças em seus conceitos, enquanto estiverem satisfeitos com as suas concepções prévias. 2 - Inteligibilidade: o indivíduo precisa compreender a sintaxe, o modo de expressão, o significado, o sentido, os termos e os símbolos utilizados pela nova concepção. O uso de analogias e metáforas pode auxiliar nesse processo. 3 - Plausibilidade: os novos conceitos adotados devem, pelo menos, ser capazes de resolver os problemas gerados pela concepção predecessora. Caso contrário, não parecerá uma escolha plausível. 4 - Frutificação: a nova teoria deve abrir a possibilidade de que novos conceitos sejam estendidos a outros domínios, revelando novas áreas de questionamento (POSNER et al., 1982, p. 214).

    Além dessas quatro condições, este trabalho estabelece que a aprendizagem

    envolva um elemento adicional. Tendo em vista que o processo de questionamento e

    aprendizagem ocorre contra a base de fundo dos conceitos correntes do indivíduo, os

    mesmos não têm a possibilidade de existir isoladamente, mas, tão somente, inseridos

    numa estrutura conceitual, que lhes dá sustentação (AGUIAR JR, 1998). De maneira

    particular, naquilo que se refere à reorganização ou mudança conceitual, devem também

    ser consideradas, nesse processo, as características da ecologia conceitual dos

    estudantes, a saber:

    1. Anomalia: o caráter específico das falhas de uma dada idéia é uma importante parte da ecologia que faz com que se selecione uma nova idéia sucessora. 2. Analogias e Metáforas: servem para sugerir novas idéias e torná-las inteligíveis. 3. Compromissos Epistemológicos: a) Ideais Explanatórios: a maioria dos campos de estudo tem pontos de vista específicos do conteúdo que deve ser considerado como explicação e como padrão de julgamento no campo. b) Visão Geral sobre o Caráter do Conhecimento: alguns padrões que são levados em conta para que um assunto tenha sucesso – a elegância, a economia, a parcimônia, não ser ad hoc e parecer neutro. 4. Crenças e conceitos metafísicos: crenças a respeito de um ordenamento, simetria, não aleatoriedade do universo, podem resultar

  • 33

    numa visão epistemológica e podem vir a selecionar ou rejeitar tipos particulares de explicações. Os conceitos científicos apresentam uma qualidade metafísica, isto é, podem fazer acreditar que eles representam a natureza última do universo e, por conseqüência, seriam imunes às refutações. 5. Outros conhecimentos: conhecimentos em outros campos podem influenciar a escolha de fenômeno para estudo ou, um conceito que compete com um outro, pode vir a ser selecionado em razão de ser mais promissor do que os seus competidores (POSNER et al., 1982, p. 214-215).

    Assim, segundo este modelo, as quatro condições anteriores acrescidas da

    caracterização da ecologia conceitual dos indivíduos tendem a assegurar o sucesso da

    ocorrência de uma mudança conceitual nos estudantes. Nesse sentido, mudança

    conceitual virou sinônimo de aprender ciência (MORTIMER, 1996).

    Por outro lado, muitos pesquisadores já apontam críticas e desvantagens do

    mesmo, algumas das quais abordamos na seqüência.

    Uma das premissas desta metodologia consiste em, no início de uma aula, ou de

    uma seqüência didática, gerar um conflito cognitivo para provocar uma perturbação,

    conflitiva ou lacunar, nas estruturas cognitivas dos estudantes, objetivando desencadear

    o processo de reequilibração. Porém, muitas vezes, esses conflitos não são reconhecidos

    pelos alunos, uma vez que os mesmos precisariam dominar aspectos da nova teoria para

    que pudessem identificar essas anomalias e contra-exemplos. Exemplos disso podem ser

    encontrados na própria história da ciência. De acordo com o epistemólogo Imre

    Lakatos, uma determinada anomalia só é reconhecida como tal, após uma nova teoria

    ter sido estabelecida, ou seja, um experimento não é considerado como crucial no

    momento em que ele ocorre, mas sim, retrospectivamente. O resultado negativo da

    experiência de Michelson-Morley, por exemplo, seria reconhecido como um

    experimento crucial a favor da teoria de Einstein, anos depois do desenvolvimento da

    mesma.

  • 34

    Outros autores apontam para o caráter gradual e evolucionário das mudanças

    conceituais. Villani (1992) destaca elementos reveladores das resistências dos alunos à

    mudança e conclui que a aprendizagem efetiva em Ciências não envolve apenas

    mudanças nos conceitos, mas na natureza das questões formuladas, nas entidades

    básicas envolvidas, nos métodos e na direção a ser perseguida na aprendizagem.

    Preconiza, também, o não-abandono das idéias prévias, mas sim, um processo lento de

    mudanças tanto para novos modos de raciocínio quanto para demandas epistemológicas

    e valores cognitivos (VILLANI, 1992). Nesse sentido, não se deveria esperar que os

    estudantes considerassem necessária uma reestruturação de suas concepções, a partir de

    uma situação conflitiva, uma vez que os mesmos não teriam condições de reconhecê-la

    como tal. Discussões improdutivas ante a uma situação aparentemente perturbadora

    seriam reflexo desta não-identificação.

    Considerando a dificuldade de usar uma estratégia de conflito desde o início de

    uma seqüência, Rowell e Dawson (1984) optam por começar construindo a melhor

    teoria para que, depois, o estudante perceba a necessidade de substituir suas concepções

    prévias. Segundo os autores, dessa forma, a substituição das mesmas pareceria mais

    plausível para os estudantes.

    Uma outra questão bastante polêmica do construtivismo é a crença de que, a

    partir das idéias de senso comum dos estudantes, poder-se-ia dar um salto rumo ao

    conhecimento científico. Esta postura encara o aluno já como um cientista e

    supervaloriza suas explicações e idéias prévias (SOLOMON apud MORTIMER, 1996,

    p. 23). Scott (1993) constata que as explicações dos alunos a fenômenos relacionados

    com a pressão atmosférica não auxiliam a construção de uma explicação científica, pelo

    contrário, dificultam a sistematização por noções apriorísticas, como a idéia de vácuo e

    a ação humana de sugar.

  • 35

    Apesar de termos apresentado, sinteticamente, algumas das críticas ao ensino

    construtivista segundo o Modelo de Mudança Conceitual de Posner, defendemos que as

    explicações dos estudantes desempenham sim, um papel fundamental no processo de

    ensino e são essenciais para o desenvolvimento e análise dos resultados de nossa

    seqüência didática, direcionando o constante replanejamento da mesma. Entretanto,

    pensamos que alguns aspectos desse modelo de mudança conceitual precisam ser

    repensados. Será que, por melhor que seja conduzido o processo educacional, os alunos

    realmente abandonam suas concepções prévias e as substituem pelas idéias científicas?

    Este deve ser o objetivo do ensino de ciências?

    Não se constitui em novidade o fato de que as pessoas possam exibir diferentes

    formas de representar a realidade à sua volta (MORTIMER, 1996, p. 32). Terrazzan

    aventa que a proposição de troca de conceitos ou significados deveria ser substituída

    pela coexistência dos mesmos:

    Para o avanço das pesquisas sobre processos cognitivos,

    considero imprescindível que se estabeleçam paralelos entre as idéias, imagens e modelos [...] utilizando a idéia de discriminação de significados e a noção de patamares de concretude apontada por Machado (TERRAZZAN, 1994, P. 134).

    Dependendo da situação, o indivíduo pode utilizar diferentes concepções e

    representações para interpretar os fenômenos. Essa noção de diversidade de

    conceituações para a realidade é proposta por Bachelard (1990). Traçando um paralelo

    entre as visões de ciência, a partir de uma análise histórica e epistemológica da evolução

    da mesma, este autor propõe a noção de perfil epistemológico. Nesta perspectiva, o

    progresso epistemológico e a superação de um conhecimento anterior não implicam o

    abandono completo daquilo que foi superado em relação a cada conceito científico.

    Uma pessoa apresenta um perfil, o qual caracterizará o pensar sobre o referido conceito.

    Numa escala crescente de abstração, os níveis do perfil são:

  • 36

    i) realismo ingênuo (animismo) – é o pensamento de senso comum; associado à realidade sensorial imediata;

    ii) empirismo – está associado à utilização de instrumentos para esta medida;

    iii) racionalismo clássico – neste, os conceitos se relacionam de uma forma mais racional, não estando mais tão vinculados a experiências sensoriais;

    iv) racionalismo completo – em que as relações entre grandezas se tornariam ainda mais complexas e

    v) racionalismo discursivo – trazendo os avanços mais recentes da ciência como estudos sobre sistemas não-lineares, fractais e caos (BACHELARD, 1990, p. 25).

    Desta forma, cada filosofia fornece apenas uma banda do espectro nocional, e é

    necessário agrupar todas as filosofias para termos o espectro nocional completo de um

    conhecimento particular (BACHELARD, 1990, p. 66). Bachelard (1990) designa,

    também, a constituição de obstáculos epistemológicos, afirmando

    O nosso racionalismo simples entrava o nosso racionalismo

    completo e, sobretudo, o nosso racionalismo dialético. Eis uma prova de como as filosofias mais sãs como o racionalismo newtoniano e kanteano podem, em determinadas circunstâncias constituir um obstáculo ao progresso da cultura (BACHELARD, 1990, p. 59).

    Em outras palavras, o empirismo das primeiras impressões é contraditório com o

    conhecimento científico e a necessidade de valorização da abstração aponta a

    experiência imediata como um obstáculo ao desenvolvimento da mesma (LOPES,

    1996). Bachelard complementa ainda

    Não se trata de considerar os obstáculos externos, como a complexidade ou a fugacidade dos fenômenos, nem de incriminar a debilidade dos sentidos ou do espírito humano: é no ato mesmo de conhecer, intimamente, onde aparecem por uma espécie de necessidade funcional, os entorpecimentos e as confusões. É aí onde mostramos as causas do estancamento e até do retrocesso, é aí onde discerniremos causas de inércia que chamaremos obstáculos epistemológicos (BACHELARD, 1996, p. 15).

    Inspirado nas implicações da interpretação dessas contribuições à luz do

    processo de ensino-aprendizagem, preconizadas pelo próprio Bachelard, Mortimer

    (1996) defende que a aprendizagem de ciências deve promover uma ampliação na forma

  • 37

    como os estudantes interpretam essa realidade. Com o objetivo de construir um modelo

    para descrever a evolução das idéias dos estudantes, tanto em nível individual como no

    espaço da sala de aula, em decorrência do processo de ensino, Mortimer propõe a noção

    de perfil conceitual (MORTIMER, 1994). Segundo este autor, este conceito seria mais

    adequado para estudar a dinâmica da aprendizagem em ciências devido aos seus

    compromissos didáticos. As zonas do perfil poderiam variar de um conceito para outro.

    A noção de perfil conceitual é reexaminada por Mortimer (2001), a partir de estudos de

    sociolingüística. Segundo essa interpretação, os conceitos emergem da comunicação

    humana, sendo inevitavelmente impregnados por múltiplas perspectivas.

    Martins (2004) contesta as diferenças entre o perfil conceitual proposto por

    Mortimer e o epistemológico de Bachelard. Segundo este autor, não existem motivos

    concretos para se adotar uma terminologia diferente, uma vez que se trataria da mesma

    noção. Ferreira (1999) aponta semelhanças entre as duas terminologias, como a

    hierarquia entre as diferentes zonas, mas distingue diferenças como, no caso do perfil

    conceitual, privilegiar determinados mediadores e linguagens sociais enquanto mais

    adequados a determinados contextos. Não objetivando discutir mais profundamente

    estas diferenças, decidimos adotar a noção de perfil conceitual principalmente por seus

    compromissos pedagógicos e pela possibilidade de uma maior flexibilização das

    categorias do perfil.

    Dessa forma, adotamos a concepção de aprendizagem como sendo a evolução

    das zonas de um perfil conceitual e a construção de novas zonas, quando pertinente,

    estabelecendo uma coexistência de noções, aplicáveis em diferentes contextos, de

    acordo com a proposta de Mortimer (1994).

    Um outro aspecto muito importante a acrescentar é que a tomada de consciência

    pelo estudante, de seu próprio perfil, é fundamental no processo de ensino-

  • 38

    aprendizagem, pois oportuniza privilegiar determinados mediadores e linguagens

    sociais, como aqueles mais adequados a determinados contextos (MORTIMER, 1994).

    Em outras palavras, queremos que um aluno perceba que determinadas concepções e

    conceitos são diferentes cientificamente e que seja capaz de usar as diferentes noções

    em situações convenientes.

    A tomada de consciência referida propugna um acompanhamento crítico, pelo

    próprio aprendiz, do processo de assimilação das concepções, modelos e teorias,

    apontando para o desenvolvimento da metacognição. Num modelo que conceba a

    coexistência de diferentes formas de organização do concreto a partir de diferentes

    sistemas de abstração mediadores (MACHADO apud TERRAZZAN, 1994, p. 135)

    num mesmo nível, a metacognição privilegia a ativação e a recuperação de conteúdos e

    significados, de forma autônoma e consistente (TERRAZZAN, 1994).

    Nesse trabalho, adotamos elementos desta abordagem, nos propondo, entre

    outros objetivos, a analisar a ampliação das zonas do perfil conceitual de tempo dos

    estudantes, através do contato com a noção de tempo relativístico. Diante do exposto,

    não almejamos, naturalmente, que os estudantes abandonem suas concepções prévias

    acerca do conceito de tempo, mas, sim, que os mesmos ampliem essas concepções e que

    sejam capazes de utilizar, conscientemente, as diversas noções em contextos

    apropriados. Partimos agora para busca por estratégias de ensino que estejam de acordo

    com a nossa concepção de ensino-aprendizagem. Assim, na seção seguinte, discutimos

    sobre o papel do professor no processo de ensino, analisamos as influências das

    interações sociais entre os pares na aprendizagem do indivíduo e detalhamos uma

    abordagem de ensino que julgamos essencial para o desenvolvimento de nossas

    atividades em sala de aula.

  • 39

    2.2 Abordagem Sócio-Interacionista e Momentos Pedagógicos

    Na seção anterior, sintetizamos a teoria da reequilibração de Piaget, a qual se

    destina a analisar o processo da construção do conhecimento através de processos

    desencadeados nas estruturas cognitivas do sujeito. Entretanto, ao analisar a dinâmica

    desta construção no ambiente escolar, é essencial considerar a importância da interação

    do aluno com seus pares e do papel do professor neste processo (GARRIDO, 1996).

    A escola é, certamente, uma experiência organizadora central na vida do

    indivíduo. O caráter polissêmico da educação escolar é evidenciado desde a aquisição

    de informações, o domínio de novas habilidades, o aperfeiçoamento das já adquiridas,

    até a exploração de opções, do trato social, assim como da oportunidade de convivência

    com pessoas cuja experiência vai além da de seu grupo de pertença. Nesta perspectiva, a

    escola é um dos agentes que amplia horizontes intelectuais e sociais do cidadão.

    A concepção da escola como um contexto propício para a construção e a

    apropriação de conhecimentos e, conseqüentemente, da cidadania, segundo Bolzan

    (2002), leva à suposição da relevância da aprendizagem mediada para a construção dos

    saberes de professores e dos alunos, favorecendo a consolidação dos processos

    cognitivos de ambos.

    Nesse sentido, Vygotsky (1994) aponta que o processo de desenvolvimento

    intelectual na instrução escolar não se define pelo estado de desenvolvimento atual do

    indivíduo, mas pela relação entre o desenvolvimento real e potencial. Desta forma, o

    conceito de zona de desenvolvimento proximal da teoria vygotskiana é fundamental. O

    autor identifica dois níveis de desenvolvimento cognitivo: o real, referente às conquistas

    já efetivadas pela criança, ou seja, aquilo que a mesma é capaz de fazer de forma

    autônoma; e o potencial, relacionado às capacidades em vias de serem construídas a

    partir da colaboração de outros elementos de seu grupo social, isto é, a capacidade de

  • 40

    aprender com outra pessoa. Dessa forma, a zona de desenvolvimento proximal é

    definida como a distância entre aquilo que a criança faz sozinha (nível de

    desenvolvimento real) e o que ela é capaz de fazer com a intervenção de um adulto

    (nível de desenvolvimento potencial). Segundo Vygotsky,

    a zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário. [...] O nível de desenvolvimento real caracteriza o desenvolvimento mental retrospectivamente, enquanto a zona de desenvolvimento proximal caracteriza o desenvolvimento mental prospectivamente (VYGOTSKY, 1994, p. 113).

    Aprendizado e desenvolvimento são indissociáveis, uma vez que a

    aprendizagem possibilita a construção do conhecimento, através da coordenação dos

    esquemas constituídos (BOLZAN, 2002). O conhecimento é gerado e co-construído

    coletivamente, na interatividade entre pessoas. Para Vygotsky (1995), as tarefas

    conjuntas provocam a necessidade de confrontar pontos de vista, oportunizando uma

    descentralização cognitiva e se traduzindo no conflito sócio-cognitivo, o qual mobiliza

    as estruturas intelectuais existentes, em prol de progresso intelectual via reestruturação

    das mesmas.

    A interação verbal firma-se na linguagem, entendida como um produto social

    resultante da cultura, concomitantemente à sua definição enquanto processo individual,

    servindo de instrumento para pensar e comunicar. A necessidade de comunicação

    durante uma atividade, de transmissão intencional de um pensamento ou experiência

    sociocultural entre indivíduos, designa a percepção da linguagem enquanto sistema

    mediatizador (BOLZAN, 2002).

    O conceito de mediação é central para a teoria vygotskiana, uma vez que o

    indivíduo não tem acesso direto aos objetos, mas acesso mediado, através de recortes do

    real, operados pelos sistemas simbólicos de que dispõe (REGO, 1995). A mediação é

  • 41

    um processo dinâmico, no qual se utilizam ferramentas culturais essenciais para

    modelar a atividade, e implica um processo de intervenção intencional de, pelo menos,

    um elemento em uma relação (BOLZAN, 2002). Segundo Vygotsky (1995), a

    apreensão das práticas culturais destaca-se pela análise das ações experienciadas no

    plano social (interpsicológico) e sua passagem para ações internalizadas

    (intrapsicológico).

    O contexto interativo e social é a fonte do desenvolvimento conceitual do

    indivíduo e caracteriza a organização da atividade comum e do aprendizado do sujeito.

    O papel do professor, no ensino construtivista baseado na teoria da aprendizagem de

    Piaget e complementado pela interpretação sócio-interacionista de Vygotsky, é o de

    promover as perturbações e guiar o processo de reequilibração através de aproximações

    sucessivas ao conhecimento social e historicamente construído e aceito, uma vez que,

    sem a sua intervenção, dificilmente os alunos alcançariam à formulações das teorias

    científicas. O professor é o responsável por introduzir os alunos na cultura escolar,

    servindo de suporte, estímulo auxiliar, e proporcionando seu avanço em relação às

    conquistas escolares, atuando, portanto, na zona de desenvolvimento proximal dos

    estudantes. Nessa perspectiva, Aguiar Jr e Mortimer destacam o papel da ação docente:

    [...] compreendemos os conflitos como um diálogo, nem sempre

    harmônico, entre diferentes perspectivas culturais que convivem no seio das sociedades contemporâneas. Nesse sentido, os conflitos não resultam simplesmente da interação entre sujeito e objeto do conhecimento, mas, sobretudo, da emergência de novas exigências epistemológicas introduzidas pelo discurso da ciência, por meio da ação docente. Nas aulas de ciências, freqüentemente, os conflitos emergem como resultado de uma longa e paciente intervenção do professor (AGUIAR JR e MORTIMER, 2005, p. 1).

  • 42

    A cultura epistemológica4 e o marco institucional dentro do qual se educam os

    indivíduos são os fatores, segundo Bolzan (2002), que distinguem o ensino de outros

    tipos de processos que envolvem a aprendizagem cultural. O sucesso de uma proposta

    abrangendo o trabalho em sala de aula depende do apoio de uma concepção de

    aprendizagem adequadamente utilizada e concretizada nas atividades específicas e na

    conduta do professor na sua interação com os estudantes (GARRIDO, 1996). Tendo

    isso em vista, a metodologia utilizada em nossa intervenção é influenciada pela proposta

    de Delizoicov e Angotti (1991). Segundo os autores, a prática docente deve permear três

    etapas, denominadas três momentos pedagógicos: problematização inicial, organização

    do conhecimento e aplicação do conhecimento. Na seqüência, caracterizamos cada uma

    dessas, detalhando elementos de sua base fundante, sem a intenção de apresentar um

    tratamento detalhado e exaustivo, uma vez que este modelo é amplamente analisado na

    literatura específica.

    1° Momento Pedagógico: Problematização Inicial

    Inspirado na concepção freireana de ensino-aprendizagem, o primeiro momento

    pedagógico corresponde a uma caracterização dos grupos com quem se trabalha.

    Segundo Mizukami,

    A busca do tema gerador objetiva explicitar o pensamento do homem sobre a realidade e sua ação sobre ela, o que caracteriza sua práxis. Na medida em que os homens participavam ativamente da exploração de suas temáticas, sua consciência crítica da realidade se aprofunda (MIZUKAMI, 1986, p. 100).

    4 A cultura epistemológica escolar é definida como a maneira própria de compreender e manifestar a teoria assumida em ação (BOLZAN, 2002, p. 26).

  • 43

    Dessa forma, no primeiro momento pedagógico, o professor apresenta

    questões e/ou situações-problema para a turma e busca as explicações formuladas

    pelos estudantes. Esta etapa tem, essencialmente, dois objetivos:

    1. Levantar as concepções dos alunos acerca do que vai ser trabalhado, em

    concordância com as idéias de Freire, que defende a necessidade de partir do saber de

    experiência feito, e de Snyders, que diz que toda ação pedagógica deve partir da cultura

    primeira5. Os problemas tratados precisam ser significativos para os estudantes, ou seja,

    o professor deve buscar problemas que partam de situações que sejam plausíveis para os

    mesmos. Nesse sentido, as perguntas formuladas pelos próprios alunos contribuem

    significativamente e devem ser incentivadas pelo professor, ao criar um ambiente

    favorável para o surgimento destes questionamentos.

    2. Fazer com que os educandos sintam a necessidade de adquirir outros

    conhecimentos para explicar as situações propostas. Isto possibilita motivá-los à

    construção do conhecimento científico sistematizado.

    Terrazzan e Auler destacam que:

    Neste primeiro momento, caracterizado pela compreensão e apreensão da posição dos alunos frente ao tópico, é desejável que a postura do professor se volte mais para questionar e lançar dúvidas sobre o assunto que para responder e fornecer explicações (TERRAZZAN e AULER, 1996, p. 29).

    Ainda, segundo Mizukami, educador e educando são co-participantes do

    processo educativo, cuja essência é a dialogicidade. A cooperação, a união, a

    organização e a solução em conjunto dos problemas devem constituir as premissas que

    regem a intencionalidade educativa (MIZUKAMI, 1986).

    5 Esta cultura primeira deve ser entendida como aquelas formas de cultura que são adquiridas fora da escola, fora de toda autoformação metódica e teorizada, que não são fruto do trabalho, do esforço, nem de nenhum plano: nascem da experiência direta da vida, nós a absorvemos sem perceber (SNYDERS apud TERRAZZAN e AULER, 1996, p. 215).

  • 44

    2° Momento Pedagógico: Organização do Conhecimento

    A sistematização dos conhecimentos de Física, através de definições, conceitos,

    relações e leis, é elaborada neste momento. Para concretizá-la, faz-se necessário um

    afastamento crítico para o estudo do saber já sistematizado. Este processo de

    continuidade/ruptura possibilita romper com os limites presentes na cultura primeira

    promovendo o reconhecimento da cultura elaborada (conhecimento historicamente

    construído e sistematizado) como mais eficaz para a solução das dúvidas, indagações e

    aspirações oriundas da primeira (TERRAZZAN e AULER, 1996).

    A efetuação deste afastamento ou distanciamento do objeto cognoscível permeia

    a elaboração de uma representação, pela utilização de técnicas como redução e

    codificação, implicando em análises num contexto diferente daquele no qual os

    educandos vivem (MIZUKAMI, 1986). Ainda, esse afastamento permite interpretar os

    aspectos de sua própria experiência existencial, pela retomada, no terceiro momento

    pedagógico, das situações geradoras deflagradas no primeiro.

    Estes conhecimentos selecionados, transformados em conteúdo

    escolar, devem permitir não só a compreensão das situações-problema, inicialmente escolhidas, como também daquelas situações emergentes durante o processo de ensino. Isto se torna possível mediante a (re)construção cognitiva, pelos alunos, dos conhecimentos pertinentes à temática em estudo (TERRAZZAN e AULER, 1996, p. 217).

    O contato com a cultura elaborada pode ser feito de várias formas: exposição

    dialogada dos conceitos pelo professor, leitura de textos previamente selecionados,

    trabalhos extraclasse realizado pelos alunos, apresentação de seminários pelos mesmos,

    exposição de vídeos didáticos, realização de experimentos, entre outras. Além do mais,

    a utilização de metodologias diferenciadas é extremamente motivadora para o

    dinamismo da prática docente e oportuniza um maior envolvimento dos alunos.

  • 45

    A educação é p