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1 Universidade Federal de São Carlos Centro de Educação e Ciências Humanas Departamento de Psicologia Departamento de Filosofia A abnegação de instintos humanos, a origem da consciência da culpa e suas implicações nas teorias de Nietzsche e Freud Conclusão de Monografia da graduação em Psicologia Orientadora: Thelma Lessa- Departamento de Filosofia Orientanda: Marina Bellissimo Rodrigues-215899 São Carlos, 2004

Universidade Federal de São Carlos Centro de …bdsepsi/169a.pdf3 Paul-Laurent Assoun questiona-se em “Freud e Nietzsche” (1989) a respeito do grau de parentesco que possuem Nietzsche

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Universidade Federal de São Carlos Centro de Educação e Ciências Humanas

Departamento de Psicologia Departamento de Filosofia

A abnegação de instintos humanos, a origem da consciência da culpa e suas implicações nas teorias de Nietzsche e Freud

Conclusão de Monografia da graduação em Psicologia Orientadora: Thelma Lessa- Departamento de Filosofia

Orientanda: Marina Bellissimo Rodrigues-215899

São Carlos, 2004

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A moral e o mal estar

Em “Ecce Homo” (1888), Friedrich Nietzsche caracterizou sua obra de 1887,

“Genealogia da moral”, como um conjunto dos três principais trabalhos de um psicólogo a

uma tresvaloração de todos os valores existentes.

De acordo com Paulo César de Souza (1998), na primeira dissertação da genealogia

nietzschiana, encontra-se uma “psicologia do cristianismo”, pois trata-se de uma análise do

cristianismo sob uma perspectiva psicológica; uma espécie de análise sobre as possíveis

influências da religião ao comportamento e pensamento humano. O termo é coerentemente

utilizado, uma vez que Nietzsche não realiza uma investigação sobre pressupostos e fatos

históricos da religião cristã, mas indaga-se a partir de outra perspectiva: ele realiza uma

investigação não do cristianismo em si, mas uma investigação do homem que reflete a

internalização dessa religião. Nesse sentido, Nietzsche realiza uma refutação psicológica a

respeito do cristianismo, sobre a origem dos valores e do espírito do ressentimento,

baseando-se na oposição entre uma moral nobre e uma moral escrava, a partir de um

contraste entre força e fraqueza.

Na sua segunda dissertação, Paulo César de Souza (1998) sugere encontrar uma

“psicologia da consciência: esta não é, como se crê, a voz de Deus no homem ─ é o

instinto de crueldade que se volta para trás, quando já não pode se descarregar para fora”.1

O termo utilizado reflete o fato de que Nietzsche não atribui à consciência um caráter

sobrenatural ou divino e, a confere substancialmente ao homem e aos seus instintos, por

isso, é possível se falar em uma psicologia da consciência. Encontra-se, aqui, uma análise

da transformação do indivíduo e das suas relações com o mundo, a partir da origem da

consciência moral e uma análise das possíveis relações entre a abnegação dos instintos

humanos e o surgimento da idéia de culpa e punição.

Por fim, em sua última e terceira dissertação, Nietzsche propõe uma reflexão sobre

o surgimento, o estabelecimento e a verdadeira representação do poder do ideal

ascético2para a humanidade.

1 de Souza, P.C., 1998; 2 de Souza, P.C., 1998;

3

Como um filósofo antiidealista, Nietzsche procura converter um problema

epistemológico em um problema existencial.Para isso, encontrou-se na necessidade de

utilizar dados concretos e científicos, mesmo que esporádicos, para não cair na

generalidade por considerá-la inautêntica. Não lhe foi necessário um curso de história,

sociologia ou biologia para que pudesse filosofar sobre a natureza moral do homem, negar

os valores por ele estabelecidos, admitir sua decadência e propor-lhe uma nova e

revolucionária moral. Por trás desta análise pessimista, encontra-se uma abordagem trágica

de duas forças que se opõem através dos tempos, a força da criação e da destruição, na

medida em que tudo deve ser destruído para que haja lugar às novas invenções, o que pode

ser equiparado com o que, posteriormente, Freud vai analisar em “Além do princípio do

prazer” e “O Mal-estar na cultura”, sob a forma da luta de Eros contra a morte.

Em “O Mal-estar na cultura”, Freud considera as possíveis relações entre o

sofrimento humano, a busca da felicidade e o surgimento da cultura. Segundo o fundador

da psicanálise, o sofrimento humano é proveniente de três direções: da própria natureza do

corpo, condenado à decadência e dissolução; do mundo externo, como possível fonte de

destruição e finalmente, daquele considerado como o mais penoso: o relacionamento com

os outros seres humanos. Dessa forma, considera a vida como sendo uma tarefa

insuportável para os homens sem a criação de algumas medidas paliativas capazes de

amenizá-la. Essas medidas dividiram-se em três grupos: os derivativos poderosos, “que

fazem extrair a luz da desgraça”; as satisfações substitutivas, tal como a arte, e as

substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a qualquer tipo de sofrimento.

Enquanto o sofrimento provém de três direções, as possibilidades de felicidade, de

acordo com Freud, são restringidas pela própria constituição humana. Ela “provém de

necessidades represadas, sendo possível apenas como uma manifestação episódica”, o que

significa que ser feliz passou a representar escapar da infelicidade, na medida em que se

tem uma idéia negativa de satisfação, que corresponde à ausência de dor. Dessa forma, o

autor enumera algumas das maneiras com que os homens adaptam-se a isto: isolam-se do

mundo e das pessoas e buscam a “felicidade da quietude”; tornam-se membros integrantes

da comunidade, trabalhando com todos, para o bem de todos; controlam seus impulsos

instintivos ou os reorientam na forma de uma sublimação; constróem um outro mundo,

onde seus impulsos e desejos sejam permitidos, dentre muitos outros.

4

A questão é que as formas de amenizar o sofrimento são muitas e todo homem

deveria descobrir em si próprio aquela que deve adaptá-lo a esta vida, sem que ele necessite

sacrificar-se a favor de uma outra (vida). No entanto, isto geralmente não acontece. Os

homens estabeleceram regras a uma sociedade, mas não a um indivíduo, o que implica que

a busca da felicidade deve ser comum a todos os integrantes daquela sociedade. Assim, a

civilização só pode ser desenvolvida a partir da renúncia do poder do indivíduo sob o poder

da comunidade. Neste conflito entre a renúncia aos instintos humanos e a formação da

civilização, o pessimismo de Freud se assemelha ao de Nietzsche, na medida em que ambos

os autores discorrem sobre a submissão do homem à sua cultura –– o homem, aprisionado

pelas leis que ele mesmo se estabeleceu. Se não o homem, quem foi que inventou os

instrumentos da cultura?

Segundo Paulo César de Souza (1998), “Genealogia da moral” é o livro mais

“psicanalítico” de Nietzsche (se é que se podem encontrar tendências antecipatórias da

psicanálise no filósofo niilista)3, pois o sacerdote ascético é um especialista em sofrimento,

assim como o psicanalista. Uma análise sobre a origem, as causas, o sentido e a importância

do sofrimento humano é construída nas obras de Nietzsche e do precursor da psicanálise;

mais diretamente nos livros “Genealogia da moral” e “O Mal-estar na cultura”. Embora

analisem de forma singular o assunto, encontra-se nas duas obras, por detrás de algumas

problemáticas, uma reflexão em tom pessimista sobre o sofrimento humano – seja sob a

forma de desprazer no seu sentido econômico utilizado pelo Dr. Freud ou sob a forma de

dor existencial encontrada nas reflexões de Nietzsche.

Encontra-se em ambas as obras uma reflexão sobre o significado que os valores da

vida apresentam ao homem, sobre as origens do sentimento de culpa e sobre os

instrumentos utilizados pelos indivíduos na luta contra o seu sofrimento, tais como a

religião, o entorpecimento e o trabalho.O ponto de contato fundamental das obras estaria

nas relações entre a abnegação de instintos humanos e o surgimento da cultura, em que

foram originariamente estabelecidos muitos desses valores.

3 Paul-Laurent Assoun questiona-se em “Freud e Nietzsche” (1989) a respeito do grau de parentesco que possuem Nietzsche e Freud. Apesar do caráter controverso da questão, o autor traz relatos e cartas de Freud, cujo conteúdo sugere que embora suas teorias possam se assemelhar, Nietzsche não influenciou os trabalhos da psicanálise. Freud relata em 1908 não conhecer a obra do filósofo e mais adiante, em 1925, afirma que a evitou durante muito tempo, declarando um “excesso de interesse” pelas suas questões. No entanto, a questão relativa a esse parentesco é uma questão controversa, na medida em que não há subsídios teóricos para concluir a seu respeito.

5

Segundo Nietzsche, “(...) nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de

nós mesmos somos desconhecidos; e não sem motivo. Nunca nos procuramos”.4 Trata-se

de uma refutação sobre a relação entre a verdadeira natureza do homem, no que diz respeito

ao homem isento de valores morais e, aquilo que lhe foi imposto como sendo verdadeiro.

Nesse sentido, o homem talvez acredite que seus valores sejam inerentes a sua realidade,

não os contestando. Nesse trecho, Freud se aproxima de Nietzsche, uma vez que por detrás

de suas problemáticas, encontra-se, de uma maneira geral, a noção de inconsciente. Embora

Nietzsche não defina esse conceito de forma minuciosa como a psicanálise, a noção de que

há uma realidade do homem da qual ele desconhece e de que essa realidade pode ser a

responsável pelos seus conflitos internos, é totalmente coerente com a noção freudiana do

inconsciente. Além disso, na citação de Nietzsche está implícita a noção de mecanismo de

defesa proposta pela psicanálise, pois pode-se inferir que o homem nietzschiano defende-se

de seus conflitos internos, não procurando e não contestando a sua parte desconhecida que

pode trazê-los à tona.

Não obstante, Nietzsche propõe uma discussão sobre a necessidade de uma crítica

aos valores morais, analisando a sua origem, o seu desenvolvimento e as suas modificações.

É nesse momento que Freud e Nietzsche ilustrarão, embora de maneiras distintas, os

mecanismos culturais criados pelo homem a partir do avanço da civilização, que afastaram-

no da sua “realidade primitiva”.

Não se pretende a partir dessas análises, aproximar a teoria psicanalítica de Freud ao

niilismo de Nietzsche. O objetivo é realizar um estudo comparativo entre as obras “O mal-

estar na cultura” de Freud e “Genealogia da moral” de Nietzsche, descrevendo,

principalmente, como a agressão moral aos instintos se combina à domesticação das

pulsões humanas impostas pela vida em sociedade e como o sofrimento humano é

analisado pelos dois autores.

4 Nietzsche, F., Genealogia da moral, prólogo;

6

O valor dos valores

(Se é que os valores, se realmente existirem, possuam algum valor)

A problemática do valor da vida seria muito bem clarificada se não houvesse tanta

diversidade no mundo. Apesar da diversidade de espécies ser um fato totalmente

compreensível aos seres humanos, no que diz respeito à vida mental as coisas não tem uma

dimensão tão simples assim. Se assim o fosse, certamente seria muito mais simples explicar

o que possui verdadeiramente valor na vida. Mas, os homens são, em sua realidade

intrínseca, tão diferentes e seus impulsos plenos de desejo tão diversos, que formular

qualquer juízo a respeito disso, não se torna uma tarefa fácil.

“(...) O programa de tornar-se feliz, que o princípio do prazer nos impõe não pode

ser realizado; contudo não devemos – na verdade, não podemos – abandonar nossos

esforços de aproximá-lo da consecução, de uma maneira ou de outra.(...) A felicidade, no

reduzido sentido em que a reconhecemos como possível, constitui um problema da

economia da libido do indivíduo. Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo

homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo (...)”.5

Nessa passagem, Freud transfere a problemática do valor da vida ao âmbito do

indivíduo no momento em que reconhece a possibilidade de felicidade como um problema

de investimento da libido. Existem duas metas a serem cumpridas no suposto propósito da

vida de um indivíduo: uma meta negativa de evitar o sofrimento e o desprazer, e uma meta

positiva de obtenção do prazer. No entanto, diante das ameaças provenientes das três

inevitáveis fontes de sofrimento ─ o próprio corpo humano, as exigências do mundo

externo e os relacionamentos sociais ─ o princípio do prazer transforma-se em princípio da

realidade: ser feliz significa escapar à infelicidade ou sobreviver ao sofrimento, o que deixa

a meta positiva em um segundo plano.

5 Freud, S., O mal-estar na cultura, cap. 02, p.33;

7

Nesse sentido, Freud conclui que cada indivíduo possui expectativas e diferenças

relacionadas à satisfação real proveniente do mundo externo, às possibilidades de

independência em relação a ele e de adaptações vinculadas aos seus desejos. Dessa forma,

se cada indivíduo possui uma realidade interna distinta, formular valores e construir-lhes

uma realidade comum encontra-se longe de ser uma questão facilmente analisada.

De acordo com Nietzsche, “(...) somos influenciados sem ter em nós a força para

uma ação contrária, sem nem mesmo perceber que somos influenciados. É uma sensação

dolorosa, haver cedido a própria independência numa aceitação inconsciente das

impressões exteriores, haver sufocado faculdades da alma pelo poder do hábito (...). (...) é

algo restritivo, querer impor a toda a humanidade alguma forma especial de Estado ou de

sociedade, como esteriótipos; todas as idéias sociais e comunistas sofrem desse erro. Pois o

homem nunca é o mesmo novamente (...)”.6

Pode-se inferir que assim como Freud, Nietzsche defende que a imposição de

valores sociais deva ser a priori contraditória, uma vez que estabelece preceitos comuns a

indivíduos distintos, tendo como conseqüência imediata a necessária adaptação dos desejos

individuais ao mundo social. No entanto, de acordo com ambos os autores, a aceitação

desses valores, muitas vezes, não é contestada pelo indivíduo, pois trata-se de uma

aceitação inconsciente. A questão encontra-se no fato de que essa aceitação inconsciente e

adaptação do indivíduo ao mundo social, ignoram uma certa independência e liberdade do

indivíduo de escolher um caminho adverso.

Se o homem nunca é o mesmo, não conhece a si próprio e não procura o

autoconhecimento, como sugere Nietzsche no prólogo da sua genealogia, então se torna

uma tarefa ainda mais fácil construir uma fórmula social que o afaste da sua dor e,

conseqüentemente, a problemática inicial sobre o valor da vida torna-se também mais fácil

de ser interpretada. O homem não é capaz de construir para si mesmo uma fórmula única de

felicidade e, em uma aceitação inconsciente das imposições externas, adapta-se ao mundo

social e à luz dessa interpretação, aprende a atribuir um sentido à vida; sentido este, que o

vincule ao mundo e o afaste de seus anseios.

6 Nietzsche, F., Fado e História, 1862;

8

Mas, os homens não seriam capazes de contestar tal aceitação inconsciente e

reavaliarem-se na busca do seu próprio valor? “E se a moral for a culpada de que jamais se

alcançasse o supremo brilho e potência do tipo homem?”7

Para essa questão, os autores compartilham da idéia de que não há uma fórmula

única de bem-estar social e que muitos desses valores foram estabelecidos,

necessariamente, a partir de uma renúncia aos instintos humanos, retornando à antiga luta

entre natureza e cultura. Dessa forma, sugerem que os valores foram introjetados nos

indivíduos em decorrência do processo de desenvolvimento cultural e, que são de certa

maneira, dificilmente removidos. De acordo com Nietzsche: “(...) E mesmo demolir parece

mais fácil do que é; somos tão intimamente condicionados pelas impressões de nossa

infância, as influências de nossos pais, nossa educação, que esses preconceitos

profundamente enraizados não podem ser facilmente removidos por argumentos racionais

ou por simples vontade”.8 Aqui, novamente encontra-se a argumentação nietzschiana a

respeito da noção freudiana de inconsciente: o peso que as influências passadas têm sobre o

indivíduo e o pouco que eles conseguem perceber tais influências, as tornam quase

inerentes ao ser humano.

É possível realizar uma análise de como o propósito da vida e os valores morais se

apresentam ao homem na “Genealogia da moral”, bem como em “O mal estar na

cultura” . Através de coleções esporádicas de dados, Nietzsche procura analisar de onde

verdadeiramente se originaram “o bem e o mal”, sob que condições o homem criou para si

tais valores e, qual é o valor que esses valores possuem. Freud, por sua vez, relaciona a

questão do propósito da vida ao princípio da realidade, enfatizando a constituição interna e

econômica de investimento de libido do indivíduo, além de analisar os fatores implicados

na construção desses valores.

Nietzsche afirma que “não é a potência, mas a duração de um sentimento elevado

que forma os homens superiores”.9 A partir de uma análise sobre a experiência humana e os

valores moralmente aceitos pela humanidade, Nietzsche, em “Genealogia da moral”,

revela-se cansado do homem. Para uma convincente argumentação a favor do seu niilismo,

descreve esse homem a que se refere e as causas que, em seu ponto de vista, o tornam

7 Nietzsche, F., Genealogia da moral, prólogo; 8 Nietzsche, F., Fado e História, 1862; 9 Nietzsche, Além do bem e do mal, 1886;

9

cansativo, repetitivo e domesticado e, consequentemente, dificultam a expressão da sua real

potência humana. A “domesticação” do homem é interpretada pelo autor como uma forma

de negação da vida, de decadência, desespero e cansaço e, contrapõe-se ao princípio

fundamental de sua filosofia: o princípio essencial de todo o ser; o impulso que impõe a

direção e um propósito à vida e à expressão plena da potência humana.

Essa aceitação plena das exigências da vida, questionada por Nietzsche, representa o

impulso responsável pela motivação humana e pela criação de novos valores. O

representante dessa força é uma “espécie elevada de homem”, uma espécie ideal e a única

capaz de salvá-lo do cansaço, o “Super-Homem”.

Mas, o que seria essa espécie elevada de homem? Como seria uma sociedade com

essa espécie proposta por Nietzsche? Quais são os fatores que impedem o seu

desenvolvimento? Quais são os novos valores e a reavaliação destinada a conduzir a eles?

A partir da análise das descrições do “homem da moral aristocrática”, do “homem da moral

escrava” (o bom e o mau, não necessariamente nessa ordem, descritos em “Genealogia da

moral” ), Nietzsche chega ao homem ideal.

O homem a que se refere Nietzsche, como pertencente à moral aristocrática, é um

“homem ativo”; vive e tem a virtude na sua força e no seu poder, “o guerreiro belo e bom,

amado pelos deuses”. Este homem toma para si o direito de criar valores, é violento,

excessivo, possui um olhar livre e a consciência baseada em um “sim à vida” e fundada

somente na capacidade de criação e potência. Em contraposição, o homem pertencente à

moral escrava é o “homem reativo”: aquele que não é franco, nem honesto consigo mesmo,

que carrega em sua consciência a invenção da “má-consciência”, pois desconfia dos seus

próprios instintos e não respeita a sua natureza. Este é repetitivo, previsível, não se adapta

às acidentalidades da vida e finge contentar-se com o mínimo de metabolismo vital, uma

vez que se sacrifica por um “além da vida”.

Nietzsche, em “Genealogia da moral”, analisa alguns dos possíveis responsáveis

pelo empobrecimento da vida e pela domesticação da espécie: “... o sentido de toda cultura

é amestrar o animal de rapina “homem”(o nobre), reduzi-lo a um animal manso e

civilizado, doméstico, então deveríamos sem dúvida tomar aqueles instintos de reação e

ressentimento, com cujo auxílio foram finalmente liquidadas e vencidas as estirpes nobres e

10

os seus ideais, como os autênticos instrumentos da cultura...”10 Nesse sentido, a cultura

enquanto instrumento de domesticação torna o homem escravo de si mesmo, pois

estabelece regulamentos que nem ele é capaz de seguir. Nietzsche se questiona como pode

um homem se garantir tão previsível se o verdadeiro valor da vida está na acidentalidade e

na indeterminabilidade de tudo o que é excepcional? De acordo com o autor, o erro e o

engano são as condições para a vida, enquanto que a ciência e o ideal ascético são aliados

no empobrecimento da mesma: “... emoções frias, ritmo lento, superestimação da verdade,

dialética no lugar do instinto...”. Nietzsche sugere que a moral outorgada pelo homem não

passa de um instinto de negar a vida.

Como seria então, a espécie elevada, não passível de escravização?

O “Super-Homem”, o projeto de “Assim falou Zaratustra”, foi criado como

expressão da preocupação de Nietzsche com o homem total, pleno, cujo inimigo é a

fragmentação do conhecimento e a petrificação da experiência. Fiel ao seu próprio eu, que

se expande além dos seus próprios limites, faz uma reavaliação de todos os valores à luz da

“vontade de potência”, transformando a ocasião em intenção. Ele é aberto para o mundo,

confia nos outros e na sorte, transforma em valores positivos os vícios do desejo, do poder

e do egoísmo; é apaixonado pela vida e pelo seu próprio destino; tem o espírito livre,

independente e sacrifica-se por tudo aquilo que representa um meio para a elevação do

homem e por aqueles que da mesma forma, se sacrificariam. De acordo com Nietzsche, o

único imperativo absoluto a que o homem deve obedecer é o do seu potencial interior. E

como se fundamentaria uma sociedade onde cada um obedecesse apenas ao seu potencial

interior?

De acordo com Freud, os homens não reconhecem a “fonte social” como sendo uma

das fontes geradoras de sofrimento os homens não percebem que os regulamentos

estabelecidos por eles próprios não representam nenhuma “proteção e benefício” à sua

realidade. E, que ao contrário disso, a existência de uma cultura implica, necessariamente,

na renúncia ao instinto do amor e ao instinto da agressividade. Nesse momento, pode-se

voltar à reflexão nietzschiana de que o homem possui uma “aceitação inconsciente de

impressões anteriores” e que, essa aceitação representa, assim como em Nietzsche, também

para Freud, uma submissão do homem aos valores morais estabelecidos pela sociedade.

10 Nietzsche, F., A genealogia da moral, Af. 11, Primeira dissertação, p.33;

11

Essa submissão e o não reconhecimento desta como uma fonte geradora de sofrimento é um

aspecto característico do mecanismo de defesa inconsciente definido pela psicanálise.

Com o objetivo de “proteger o homem contra a natureza e de ajustar os seus

relacionamentos mútuos”11 a cultura regula esses relacionamentos no que diz respeito ao

amor e à agressividade,através de leis pré-estabelecidas, ilustrando como um exemplo o

incesto. Nesse sentido, se fosse possível uma sociedade onde cada indivíduo obedecesse

apenas o seu potencial interior, como a “idealizou” Nietzsche, uma sociedade em que

instintos poderosos não fossem abnegados, como discute Freud em seu “mal estar”, como

seria essa sociedade?

Pode-se arriscar em definir esse “lugar” como um agrupamento de pessoas cuja

regra preponderante é o não estabelecimento de regras, ou seja, total liberdade, tal como é

analisada, em seus aspectos positivos e negativos — a variável incompatível com o

desenvolvimento da cultura: “... O impulso de liberdade é dirigido contra formas e

exigências específicas da civilização ou contra a civilização em geral”.12

Freud analisa o desenvolvimento da cultura como uma das fontes de sofrimento

humano, o que pode ser encontrado nas reflexões pessimistas de Nietzsche sobre a origem e

a evolução da moral. O ponto de contato aqui encontra-se nas refutações acerca da

incompatibilidade entre a liberdade do homem e as regras construídas (ou melhor,

impostas) no processo cultural.

Freud, em “O mal estar na cultura”, analisa alguns aspectos do processo

civilizatório. São apontados fatores como o desenvolvimento de atividades e recursos úteis

ao homem; a proteção contra a violência das forças da natureza; a valorização da beleza, da

limpeza e da ordem, no que diz respeito a uma melhor utilização do espaço e do tempo; a

ampliação dos órgãos humanos e seus limites de funcionamento com o desenvolvimento da

tecnologia (aviões, telefone, câmara fotográfica, navios, microscópios, etc.); o

estabelecimento de atividades intelectuais, científicas e artísticas; os sistemas religiosos, a

filosofia e os “ideais de perfeição da humanidade”.

Ao apontar tais fatores, Freud não parece fazer uma reflexão positiva a respeito das

conseqüências implicadas nesse processo. Pelo contrário, parece estar mais próximo do

11 Freud, S., O mal estar na cultura, cap. 03, p.42; 12 Freud, S., O mal estar na cultura, cap. 04, p. 50;

12

pessimismo de Nietzsche ao considerar todo esse “avanço técnico” um “modelo do prazer

barato”13— como se a civilização trouxesse resoluções apenas para os problemas que ela

mesma criou, pois Freud não reconhece o processo de desenvolvimento da cultura como

sinônimo de aperfeiçoamento e felicidade.

O fundador da psicanálise não responde se os homens eram mais satisfeitos em suas

condições primitivas, por reconhecer a felicidade como subjetiva e não mensurável, mas

não exclui o processo civilizatório das fontes responsáveis pelo sofrimento humano, pois

tudo o que buscamos no intuito de proteção e luta contra as ameaças de sofrimento fazem

parte da própria cultura.

De acordo com Freud, a civilização tem como pressuposto básico a tentativa de

regular os relacionamentos sociais. Contrário fosse, os relacionamentos estariam sujeitos à

vontade arbitrária do indivíduo e naturalmente, o fisicamente mais forte decidiria pela

maioria, no sentido de satisfazer seus interesses e desejos próprios. Dessa forma, a vida em

comum só pode ser estabelecida no momento em que a força da maioria prevalece sobre a

força do indivíduo isolado, o que traz como conseqüência a exigência da justiça e a

conclusão de que a liberdade de qualquer indivíduo deve ter sido maior antes do

desenvolvimento cultural. Aqui, aparece um outro ponto de contato entre as duas obras,

uma vez que a temática encontrada por detrás da reflexão de Nietzsche é a decadência do

homem, em geral, dos primórdios da cultura à sua condição atual; o detrimento da

“potência humana” diante da evolução geral da espécie.

Freud revela-se hostil à “domesticação” imposta pela vida em sociedade e à tarefa

social de aumentar os anos de vida sem levar em consideração a qualidade dos mesmos: “...

e que nos vale uma vida longa se ela se revela difícil e estéril em alegrias, e tão cheia de

desgraças que só a morte é por nós recebida como uma libertação?”.14

Pode-se aproximar as duas teorias no sentido de ambas refutarem a concepção de

que apenas a morte é concebida como uma libertação aos homens. Os dois autores

questionam-se a respeito da ética imposta pela religião católica de que os homens devem

renunciar aos seus instintos e viver com um mínimo de metabolismo vital a favor de um

além da vida. É a premissa de que as pessoas só irão ser plenamente satisfeitas após a sua

13 Freud, S.,O mal estar na cultura, cap .03, p; 40; 14 Freud, S., O mal estar na cultura, cap. 03, p. 40;

13

morte. Em “O mal estar na cultura”, Freud faz referência a essa questão ao definir o

sistema religioso: “(...) o sistema de doutrinas e promessas que, por um lado, lhe explicam

os enigmas deste mundo com perfeição invejável, e que, por outro, lhe garantem que uma

Providência cuidadosa velará por sua vida e o compensará, numa existência futura, de

quaisquer frustrações que tenha experimentado aqui”.15

Nesse momento, uma reflexão pertinente é se existem, realmente, alternativas

específicas de adaptação da liberdade individual à vontade do grupo ou, se é irreconciliável

o processo cultural e a liberdade de cada indivíduo.

“A vontade livre aparece como aquilo sem vínculos, arbitrário: é o infinitamente

livre e errante, o espírito. O fado, porém, é uma necessidade se não quisermos acreditar que

a história do mundo é um sonho incerto, as indivisíveis dores da humanidade são

invenções, e nós mesmos joguetes de nossas fantasias. Fado é a infindável força de

resistência contra a livre vontade; livre vontade sem fado é tão pouco concebível como

espírito real, bem sem mal. Pois só a oposição cria o atributo...”.16 Nesse ensaio de 1862,

Nietzsche distingue o fado da livre vontade. Ambos são conceitos abstratos e se fundem na

idéia de formação da individualidade. No entanto, a livre vontade significa a capacidade do

indivíduo de agir conscientemente, de separar-se do todo em um processo de

singularização; enquanto que, o fado corresponde a uma cadeia de acontecimentos, em que

o homem atua criando a sua própria história, mas de acordo com o princípio que o conduz a

uma ação inconsciente, pois “o fado torna a colocar o homem em ligação orgânica com a

evolução geral...”.17

Nietzsche distingue os dois conceitos, fundamentalmente através da idéia da ação

consciente e inconsciente, ou seja, se não houvesse a ação inconsciente no fado, não

haveria distinção entre os conceitos. Ele utiliza-se de ambos para realizar uma refutação

sobre a influência que as impressões anteriores e inconscientes exercem sobre a livre

vontade do indivíduo. Levando-se em conta a dominância das impressões de infância, dos

pais, da educação e de outros valores enraizados com o processo cultural, Nietzsche discute

sobre a capacidade de agir livre e conscientemente sobre as exigências do mundo externo.

Pode-se concluir que, adaptar essa livre vontade individual à evolução geral é,

15 Freud, S., O mal estar na cultura, cap. 02, p. 21; 16 Nietzsche, F., Fado e História,1862; 17 Nietzsche, F., Fado e História,1862;

14

definitivamente, menos trabalhoso ao homem do que revolucionar todo o passado do

mundo — uma explicação plausível para o fato de que os valores profundamente

enraizados não foram facilmente removidos por argumentos racionais ou simples vontade.

15

O sofrimento humano e suas implicações

“Aquele que tem ciência e arte, tem também religião: o que não tem nenhuma delas,

que tenha religião!”18

Nesses dois versos, Goethe apresenta uma relação entre a religião e as duas mais

altas realizações do homem: a arte e a ciência. Por um lado, traça uma antítese entre a

religião e as outras duas realizações e por outro, sugere que elas podem representar-se ou

substituir-se mutuamente. Freud cita os versos para iniciar sua análise a respeito da

construção de medidas paliativas destinadas ao sofrimento humano ou simplesmente às

exigências do mundo externo.

Freud subdividiu em três grupos as chamadas medidas paliativas: “... os derivativos

poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a

diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela”.19 Nos derivativos

poderosos está incluída a atividade científica; nas satisfações substitutivas, a arte e, nas

substâncias tóxicas, aquelas substâncias que influenciam a química e o corpo humano.

A seguir, Freud descreve como os homens procuram evitar o desprazer. O

sofrimento proveniente das relações sociais pode ser evitado através do isolamento

voluntário, de tal forma que o indivíduo distante dos demais busca a “felicidade da

quietude”. O sofrimento advindo do mundo externo pode ser amenizado através de algum

tipo de afastamento dele ou através da completa adaptação a ele, por exemplo, tornando-se

membro de alguma comunidade humana, trabalhando-se coletivamente para o bem de

todos. Por fim, os métodos mais interessantes para Freud são aqueles que procuram

influenciar o organismo humano, como por exemplo, o método da intoxicação, responsável

pela produção imediata de prazer, bem como da independência em relação ao mundo

externo: “... com o auxílio desse amortecedor de preocupações, é possível, em qualquer

18 Goethe, Zahme Xenien IX, citado por Freud, O mal estar na cultura, cap. 02, p. 22; 19 Freud, S., O mal estar na cultura, cap. 02, p. 22;

16

ocasião, afastar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com

melhores condições de sensibilidade”20.

Freud dá continuidade à sua análise descrevendo o tipo de defesa contra o

sofrimento que se aplica mais ao aparelho sensorial humano, ou seja, o controle ou a

dominação total de impulsos instintivos ou de fontes internas das necessidades humanas.

Para ilustrar, cita as técnicas orientais de aniquilamento dos instintos, como por exemplo, a

ioga, em que o indivíduo bem sucedido atinge “a felicidade da quietude”.

Uma outra técnica analisada é a técnica da sublimação, que consiste na reorientação

dos impulsos instintivos com o objetivo de evitar o desprazer. Aqui, o indivíduo bem

sucedido intensifica a produção do sentimento de prazer a partir das fontes do trabalho

psíquico e intelectual — a arte e a ciência encontram-se aliadas nessa reorientação. No

entanto, o método não é completamente eficaz; primeiramente, porque não é acessível a

todos por exigir disposições especiais e, também por não proporcionar completa proteção

contra o sofrimento, por exemplo, em situações em que este é advindo do próprio corpo

humano.

“... Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão

firmemente à realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos,

fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana (...). (...) A

atividade profissional constitui fonte de satisfação especial, se for livremente escolhida, isto

é, por meio de sublimação, tornar possível o uso de inclinações existentes, de impulsos

instintivos persistentes ou constitucionalmente reforçados. No entanto, como caminho para

a felicidade, o trabalho não é altamente prezado pelos homens”.21 Encontra-se aqui, uma

reflexão freudiana a respeito do trabalho enquanto método de sublimação; a técnica aparece

como efetiva na luta contra o sofrimento somente quando é livremente escolhida, nunca

quando o homem trabalha sob a pressão de necessidades.

A busca pela satisfação em processos psíquicos internos também pode ser

encontrada de forma mais intensa naqueles indivíduos que, de certa forma, desvinculam-se

da realidade e com as satisfações obtidas através das fantasias, criam obras de arte. No

entanto, a arte só é capaz de afastar de forma efêmera as exigências da realidade.

20 Freud, S.,O mal estar na cultura, cap. 02, p. 21; 21 Freud, S.,O mal estar na cultura, cap. 02, p. 29;

17

Um outro método citado por Freud com o objetivo de afastar o sofrimento é o de

romper qualquer vínculo com o mundo externo e negar completamente a realidade imposta

ao ser humano. Nesse sentido, é possível que o indivíduo rejeite o mundo ou tente recriá-lo,

de forma que suas necessidades sejam suficientemente atendidas. Contudo, o indivíduo

pode desprender-se da realidade e não conseguir tornar real o seu delírio, tornando-se um

paranóico.

Nesse momento, Freud conclui que todo ser humano se comporta, em determinado

aspecto, como um paranóico, uma vez que “(...) corrige algum aspecto do mundo que lhe é

insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade (...). (...) As

religiões da humanidade devem ser classificadas entre os delírios de massa desse tipo. É

desnecessário dizer que todo aquele que partilha um delírio jamais o reconhece como tal”.22

A partir dessa passagem, pode-se inferir que o autor classifica a religião como um método

de negação da realidade e reconstrução da mesma, depreciando o valor da vida e

deformando o mundo real em delirante, uma vez que impõe a todos os homens, o seu

caminho na busca da felicidade e na proteção contra o sofrimento. Aqui, talvez o único

aspecto positivo, dessa técnica seria o de que o indivíduo compartilha o seu delírio com os

seus correligionários, o que não acontece quando o indivíduo delira isoladamente. Mas,

positivo somente na medida em que o indivíduo consegue se comunicar.

Uma outra técnica citada e que, talvez se aproxime mais da meta de obtenção de

felicidade é a técnica da arte de viver, em que o indivíduo localiza a satisfação em

processos mentais internos, prendendo-se aos objetos do mundo externo; é a técnica cujo

centro é o amor, a satisfação de amar e ser amado. Embora seja talvez a mais eficaz na

opinião do autor, essa técnica também possui aspectos negativos, uma vez que a possível

perda do objeto externo amado pode causar sérias frustrações psíquicas.

Além disso, aquele homem que não encontrar satisfação em nenhuma das técnicas

citadas acima, segundo Freud, ainda possui a opção de desvincular-se completamente das

relações exteriores através da intoxicação crônica ou da psicose.

O ponto de contato entre as duas obras em análise é que, assim como Freud,

Nietzsche sintetiza algumas formas encontradas pelo homem de fugir do desprazer e de se

aproximar da consecução da felicidade.

22 Freud, S., O mal estar na cultura,cap. 02, p. 31;

18

Nietzsche possui uma maneira excêntrica de abordar o sofrimento humano.

Considera a dor algo inevitável, que deve ser aceita por quem busca a felicidade como um

desafio a ser vencido. Nesse sentido, o sofrimento deixa de ser interpretado a partir de uma

perspectiva negativa, na medida em que é pré-requisito para que a felicidade aconteça —

como se a quantidade de sofrimento de um indivíduo fosse diretamente proporcional à sua

obtenção de felicidade. Dessa forma, Nietzsche atribui maior autonomia ao homem ao

desconsiderar qualquer talento, felicidade ou virtude que não provenha de muito esforço. E,

ao contrário disso, aqueles que não reconhecem de alguma forma, o sofrimento ou o

esforço como partes inevitáveis do percurso, não alcançam também o mérito da felicidade.

“(...) Hoje em dia, quando o sofrimento é sempre lembrado como o primeiro

argumento contra a existência, como o seu maior ponto de interrogação, é bom recordar as

épocas em que se julgava o contrário, porque não se prescindia do fazer-sofrer, e via-se

nele um encanto de primeira ordem, um verdadeiro chamariz à vida. Talvez então ─ direi

para consolo dos fracotes ─ a dor não doesse como hoje.”23 Nessa passagem, Nietzsche

torna explícita a sua repugnância pela reinterpretação do sofrimento à luz da moralização,

que fez que o homem se envergonhasse dos seus instintos. O autor remete às épocas

passadas, em que a crueldade e o sofrimento não necessitavam de um sentido para existir e,

o homem, ao invés de negá-los, os aceitavam como uma potência vital.

Mas, em que consistiria não reconhecer ou não aceitar o próprio sofrimento?

Em “Genealogia da moral”, Nietzsche define algumas “instâncias” propulsoras da

negação desse sentimento e atribui ao intitulado “sacerdote ascético”, a função

manipuladora.

23 Nietzsche, F., A genealogia da moral, Af. 07, segunda dissertação, p. 57;

19

“(...) Uma grande luta contra o sentimento de desprazer é tentada a cada vez;

informemo-nos brevemente sobre as mais importantes formas e práticas. (Deixo aqui de

lado, como é natural, a luta dos filósofos contra o sentimento de desprazer, que costuma se

dar simultaneamente — ela é interessante, mas demasiado ociosa e artificiosa, quando, por

exemplo, pretende-se demonstrar que a dor é um erro, na pressuposição ingênua de que a

dor deve desaparecer assim que o erro foi reconhecido — mas vejam! Ela se recusa a

desaparecer...) Esse desprazer dominante é combatido, primeiro, através de meios que

reduzem ao nível mais baixo o sentimento vital...”24

Nesse parágrafo, Nietzsche inicia sua crítica incisiva àqueles que não reconhecem o

caráter inevitável do sentimento de desprazer e àqueles cuja preocupação é criar um

“training” com o objetivo de colocar em prática a luta contra o desprazer dominante. Nesse

momento, inicia sua crítica àquele training que reduz toda a potência humana ao mínimo

metabolismo vital — a renúncia do querer, do desejar, do amar, do odiar, do produzir afeto

ou sangue, enfim, na renúncia a todo e qualquer instinto humano. Essa primeira prática é

atribuída às religiões, em que o hipnótico sentimento do nada ou a ausência de sofrimento

representa o seu bem supremo, e chama-se ao nada Deus. Diante disso, não se torna difícil

compreender a repugnância do filósofo a essa primeira prática religiosa, pois aqui, a

negação do sofrimento pressupõe inevitavelmente a negação da felicidade.

Enquanto essa prática, de acordo com Nietzsche, tem o intuito de impedir que o

sentimento de desprazer (assim como outros sentimentos) chegue à consciência do homem,

uma segunda prática propõe um desvio desse sentimento, preenchendo seu espaço na

consciência com outros elementos, por exemplo, com a “benção do trabalho”.

“(...) Emprega-se contra estados de depressão um outro training, de todo modo mais

fácil: a atividade maquinal. Está fora de dúvida que através dela uma existência sofredora é

aliviada num grau considerável (...)”.25

O trabalho é um dos aliados no combate ao sofrimento, na medida em que suas

exigências — regularidade, pontualidade, obediência, preenchimento do tempo e um

esquecimento de si — podem ocupar o espaço na consciência destinado ao sentimento de

24 Nietszche, F., Genealogia da moral, Af. 17, Terceira dissertação, p.121; 25 Nietzsche, F., Genealogia da moral, Af. 18, Terceira dissertação, p. 123;

20

desprazer. Nietzsche complementa que, o indivíduo nessas condições, encontra benefício e

relativa felicidade em coisas até então odiadas.

Uma terceira prática encontra-se, geralmente associada à anterior:

“(...) Um meio ainda mais apreciado na luta contra a depressão é a prescrição de

uma pequena alegria que seja de fácil obtenção e possa ser tornada regra (...). (...) A forma

mais freqüente em que a alegria é assim prescrita como meio de cura é a alegria de causar

alegria (...)”.26Essa prescrição de “amor ao próximo”, da pequena alegria da beneficiência

mútua, do beneficiar, do ajudar, do presentear, de acordo com Nietzsche, tem por detrás o

interesse do homem em associar-se a outros e formar uma organização gregária, que

desperte um sentimento de poder da comunidade e, consequentemente, encubra a

impotência do indivíduo isolado.

As práticas citadas acima foram por Nietzsche consideradas como “meios

inocentes” no combate ao sentimento de desprazer. Em seguida, Nietzsche analisa “o mais

efetivo meio de anestesia”: o excesso de sentimento, uma reinterpretação do sofrer como

sentimento de culpa, medo e castigo, o que será analisado posteriormente.

Esses “meios inocentes” de afastar a dor – a religião ou outras práticas que tendem a

reduzir o metabolismo vital, o trabalho e a alegria da beneficiência mútua – encontram-se

na reflexão freudiana. É comum entre os dois autores o fato de que a religião tem como

pressuposto a negação da potência humana, na medida em que reconhecem a proposta de

inibição de instintos humanos poderosos. Assim, com a proposta de impedir que o

sentimento de desprazer chegue à consciência, a religião tende a evitar, da mesma forma,

outros sentimentos importantes da realidade humana. O homem, compartilhando desse

“delírio de massa”, como o definiu Freud, não o percebe como tal e, torna-se um indivíduo

domesticado: aprende a sobreviver e adaptar-se à realidade com o mínimo de realizações

vitais.

Nesse momento, o quadro delirante definido por Freud poderia encontrar alguma

correspondência na definição de domesticação de Nietzsche, pois a religião enquanto

delírio de massa ou adestramento da espécie tem como pressuposto incomum o fato de que,

tanto o indivíduo delirante como o domesticado não reconhecem conscientemente a sua

participação dentro desse quadro. Além disso, compartilham do objetivo último de

26 Nietzsche, F., A genealogia da moral, Af. 18, Terceira dissertação, p.124;

21

alienação e negação da vida e, de unirem-se contra a fraqueza e impotência do indivíduo

isolado.

E o trabalho? O trabalho foi também abordado em ambas as obras como um meio

efetivo nessa luta. Embora Nietzsche, não utilize as definições à cerca do fenômeno de

sublimação, sua reflexão quase romântica chega muito próxima à definição realista e

econômica freudiana. Considera que o trabalho é capaz de desviar o sentimento de

desprazer da consciência, uma vez que preenche esse espaço com as suas exigências

cotidianas. Estas, por sua vez, podem tornar-se sinônimo de felicidade, apenas pelo fato de

substituírem os sentimentos desprazerosos. A reorientação ou desvio desses sentimentos a

partir das fontes psíquico-intelectuais, não obstante, deve ser considerada uma técnica de

sublimação, como analisada em “O mal estar na cultura”.

Por fim, pode-se inferir algumas semelhanças entre a “técnica da arte de viver” de

Freud e a “técnica da pequena alegria” do filósofo. Se a primeira é a técnica cujo centro é o

amor e a segunda é a prescrição do “amor ao próximo”, as duas têm em comum aquela

maneira muito peculiar ao ser humano, de associar-se e agrupar-se, prendendo-se aos

objetos externos, no intuito de livrar-se do seu sentimento desprazeroso. A respeito dessa

técnica, os autores possuem um tom pessimista. Freud antecede um sofrimento talvez mais

desprazeroso advindo da dependência do sujeito em relação ao objeto externo amado e,

Nietzsche reconhece nela, a tendência do homem a esconder-se atras de outros homens no

intuito de disfarce da fraqueza e impotência do indivíduo à distância do grupo.

A semelhança encontrada nas duas obras seria a prescrição das maneiras pela qual

os indivíduos lidam com o sentimento e como o conduzem, ou seja, quais são os

instrumentos amenizadores criados pela cultura e, de que forma são eles utilizados pelo

homem. No entanto, Freud talvez não compartilhe da idéia de Nietzsche sobre a aceitação

total do sentimento de desprazer e da sua negação e repugnância em relação às técnicas

utilizadas contra o sentimento, pois Freud as define como medidas paliativas inevitáveis à

sobrevivência do ser humano. Nesse sentido, a discordância encontra-se na atribuição do

adjetivo inevitável, pois se Freud atribui o adjetivo às medidas paliativas, então

imediatamente, discorda de Nietzsche que considera o sofrimento um fenômeno

inevitável. Se as medidas paliativas são inevitáveis pelo seu único objetivo de amenizar o

sofrimento e adaptar o indivíduo à tarefa árdua da vida, então o sofrimento pode ser evitado

22

e é onde os dois autores discordam. Nas obras em análise, essa discordância parece

encontrar-se no momento de atribuir um significado à tais medidas.

Se por um lado, não possuem uma visão semelhante a respeito do significado que o

sofrimento deveria ter ao homem, por outro, os autores assemelham-se em suas definições

sobre as interpretações que o homem faz do seu sofrimento. Os autores concordam sobre o

mecanismo inconsciente que encontra-se por trás de todos os disfarces e métodos utilizados

no combate ao desprazer e, a fuga a esse sentimento é refletida no não descobrimento de si

mesmo. Dessa forma, é necessário ao homem preencher esse espaço desconhecido de sua

consciência, com outras invenções com outra atribuição de sentido, que não façam parte da

sua realidade interna e não coloquem em risco a sua integridade.

23

O sentimento de culpa e suas possíveis origens

Nesse momento, pretende-se analisar de onde vem o “mais efetivo meio de

anestesia” o sentimento de culpa. Freud e Nietzsche refutam sobre as possíveis origens

do sentimento de culpa e as suas relações com o sofrimento humano.

Nietzsche inicia sua reflexão, fundamentando-se na antiga discussão entre cultura e

natureza. Procura responder e refutar a respeito das origens do sentimento de culpa. Esse

sentimento possui uma origem externa ou interna? É um sentimento inventado pelo homem

ou inerente a ele? Quais são as suas relações com o sofrimento?

Para isso, Nietzsche refuta a tarefa paradoxal que a natureza impôs ao homem: criar

um animal que pode fazer promessas. Na medida em que o homem possui a tarefa de

“prometer”, ele possui a tarefa mais imediata de tornar-se previsível e confiável. Daí

decorrem duas forças de ação contrária: a força do esquecimento e a força da memória.

A força do esquecimento, de acordo com o autor, é uma força ativa, pois age contra

a força da memória; positiva, uma vez que aquilo que pelo homem é experimentado pode

ser excluído da sua consciência e, inovadora, pois sem o esquecimento de experiências

anteriores, não haveria espaço para o novo. Já se pôde definir o esquecimento, no entanto,

não é e essa força que possui relações diretas com o sentimento de culpa. Por quê, então,

Nietzsche inicia sua reflexão a respeito desse sentimento definindo a força do

esquecimento? A força do esquecimento nada tem haver com o sentimento de culpa, mas a

sua força contrária, ela sim, não só tem haver com ele como deve fundamentar-se nela a sua

origem. Essa faculdade oposta, que o homem desenvolveu em si, é a memória e possui o

objetivo último de torna-lo confiável e adestrado, de tal forma que a sua vontade de hoje

seja a mesma de amanhã.

A memória desenvolve no homem a capacidade de prometer e o “... orgulhoso

conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência dessa rara

liberdade, desse pode sobre si mesmo e o destino, desceu nele até sua mais íntima

profundeza e tornou-se instinto, instinto dominante como chamará ele a esse instinto

24

dominante, supondo que necessidade de uma palavra para ele? Mas não há dúvida: este

homem soberano o chama de sua consciência...”.27

Para Nietzsche, a tarefa de tornar-se confiável, previsível e responsável fundamenta

a origem da consciência moral. Mas, de onde se origina a memória?Essa força contrária ao

esquecimento possui relações intrínsecas com o sofrimento, pois de acordo com o filósofo,

apenas o que não cessa de causar dor permanece na memória. Ela está relacionada ao

conservadorismo e é diretamente proporcional aos aspectos dos costumes de uma

sociedade: “(...) Quanto pior de memória a humanidade, tanto mais terrível o aspecto de

seus costumes; em especial a dureza das leis penais nos dá uma medida do esforço que lhe

custou vencer o esquecimento e manter presentes, nesses escravos momentâneos do afeto e

da cobiça, algumas elementares exigências do convívio social”.28 Nesse sentido, com as

experiências de sofrimento passadas, o homem pode reter na memória aquilo que não lhe

agrada e fazer promessas em benefício da sociedade. Concluindo, com a memória chegou-

se à razão, à seriedade e ao domínio sobre os afetos.

Nesse momento, é possível, mais uma vez, aproximar as definições à cerca da força

do esquecimento e da memória aos mecanismos de defesa inconsciente da teoria

psicanalítica. Se a memória retém aquilo que traz sofrimento ao ser humano e é o

mecanismo responsável pelo domínio dos seus instintos e, o esquecimento é a força

contrária a essa faculdade, então pode-se relacionar a força do esquecimento de Nietzsche

ao mecanismo de defesa freudiano. O indivíduo utiliza-se inconscientemente da força do

esquecimento na tentativa, muitas vezes bem-sucedida, de livrar-se da sua dor.

Até agora, refletiu-se sobre a força do esquecimento, a força da memória e a

consciência moral. Mas e a origem da consciência da culpa, em Nietzsche, a “má-

consciência?”

O conceito moral de culpa, de acordo com Nietzsche, teve sua origem no conceito

material de dívida, nas relações contratuais entre e credor e devedor, pois são nessas

relações que é preciso construir uma memória naquele que promete. No caso do devedor

não cumprir sua promessa e não pagar sua dívida, o castigo é diretamente proporcional ao

27 Nietzsche, F., A genealogia da moral, Af. 3, Segunda dissertação, p.50; 28 Nietzsche, F., A genealogia da moral, Af. 3, Segunda dissertação, p.51;

25

dano causado pelo devedor e, a punição a este, oferece ao credor um “direito dos senhores”;

a compensação oferece um direito à crueldade.

Na antiguidade, a crueldade constituía um grande prazer da humanidade, pois era

reconhecida como um atributo natural do homem. No entanto, nas relações contratuais

estabeleceu-se, progressivamente, uma relação intrínseca entre a culpa e o sofrimento e na

medida em que o “fazer-sofrer” tornou-se significante, a compensação para a dívida

passou a ser o sofrimento. Nesse sentido, a comunidade também mantém com seus

membros tais relações contratuais, na medida em que o indivíduo desfruta de suas

vantagens e em troca, se empenha e se compromete com ela. Não obstante, se não cumprir

as suas promessas, o “credor” o devolve às suas condições primitivas e o castiga.

“(...)Vejo a má consciência como a profunda doença que o homem teve de contrair

sob a pressão da mais radical das mudanças que viveu ─ a mudança que sobreveio quando

ele se viu definitivamente encerrado no âmbito da sociedade e da paz(...).”29Nietzsche

atribui a origem desse sentimento às exigências da vida civilizada, uma vez que tais

exigências implicam na quase suspensão de instintos humanos. Mas, como exatamente,

essa suspensão deve estar relacionada à origem do sentimento de culpa?

A teoria nietzschiana sugere que diante da sociedade, os instintos necessariamente

ficam sem valor e suspensos, mas eles não cessam de fazer suas exigências e procuram

novas formas de satisfação. Uma vez que não se descarregam para fora, voltam-se para

dentro contra o próprio homem.Em suma, esta é a origem da má consciência nietzschiana:

os instintos humanos ─ a hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na

mudança, na destruição ─ que não podem ser vivenciados voltam-se contra o próprio

homem e introduzem o sofrimento do homem consigo mesmo. E o sentimento de culpa não

reflete exatamente uma luta interna do homem para com ele mesmo?

“(...) Com a má consciência, porém, foi introduzida a maior e mais sinistra doença,

da qual até hoje não se curou a humanidade, o sofrimento do homem com o homem,

consigo: como resultado de uma violenta separação de seu passado animal, como que um

salto e uma queda em novas situações e condições de existência, resultado de uma

declaração de guerra aos velhos instintos nos quais até então se baseava sua força, seu

29 Nietzsche, F., A genealogia da moral, Af. 16, Segunda dissertação, p.72;

26

prazer e o temor que inspirava.”30 Nietzsche define a má consciência como um “instinto de

liberdade reprimido” e pressupõe que a sua origem não tenha sido estabelecida

gradualmente, mas com uma ruptura entre o que o homem era antes e após o

desenvolvimento da civilização. Nesse sentido, refere-se à má consciência da cultura, que

renega a expressão e a liberdade do homem primitivo.

Estendendo a sua reflexão a respeito das origens da culpa, Nietzsche atribui

principalmente ao cristianismo a difamação desse sentimento e, faz à religião sua crítica

incisiva:

“(...) existem maneiras mais nobres de se utilizar a invenção de deuses, que não seja

para essa violação e autocrucificação do homem, na qual os últimos milênios europeus

demonstraram sua mestria ─ isto se pode felizmente concluir, a todo olhar lançado aos

deuses gregos, esses reflexos de homens nobres e senhores de si, nos quais o animal no

homem se sentia divinizado e não se dilacerava, não se enraivecia consigo mesmo! Por

muito e muito tempo, esses gregos se utilizaram dos seus deuses precisamente para manter

afastada a má consciência, para poder continuar gozando a liberdade da alma: uso

contrário, portanto, ao que o cristianismo fez do seu Deus.”31 Nietzsche faz uma

comparação dos ideais que os homens possuíam em relação aos deuses gregos aos ideais

relacionados aos deuses cristãos, que na sua opinião, inverteram o sentido da crença e do

respeito da divindade. Enquanto os deuses gregos mantinham afastada a culpa da

consciência humana, os deuses cristãos, por sua vez, teimaram em instalá-la

definitivamente no homem. O Deus do cristianismo prega o automartírio e Nietzsche

analisa como sendo um “golpe de gênio” do cristianismo: o próprio Deus (credor) se

sacrificando pela culpa dos homens (devedor). O homem da má consciência, então,

apoderou-se da suposição religiosa para levar seu automartírio à culminância e pagar sua

dívida para com Deus.

O primeiro aspecto em comum entre as duas obras em questão neste capítulo, é que

assim como Nietzsche, Freud identifica e analisa algumas possíveis origens ao sentimento e

à consciência da culpa. Um segundo ponto em comum entre os dois autores é que Freud, de

30 Nietzsche, F., A genealogia da moral, Af. 16, Segunda dissertação, p. 73; 31 Nietzsche, F., A genealogia da moral, Af. 23, Segunda dissertação, p. 82;

27

forma semelhante a Nietzsche, reflete sobre essas origens a partir dos sintomas da

agressividade humana.

Em “O mal estar na cultura”, Freud concorda com Nietzsche a respeito da inibição

da agressividade humana em decorrência do processo do desenvolvimento cultural. Freud,

de forma semelhante, indica que a agressividade é introjetada ou internalizada no

indivíduo; isso significa que ela é enviada de volta ao lugar de onde proveio ─ no sentido

do seu próprio ego. Dessa forma, a agressividade é assumida por uma parte do ego, que se

coloca contra o ego ─ o superego─ e que sob a forma de “consciência”, põe em ação contra

o ego a mesma agressividade que ele teria gostado de satisfazer sobre os outros indivíduos.

Mas, onde e de que forma o sentimento em questão participa dessa análise?

O que Freud denomina sentimento de culpa é a tensão entre o ego e o superego e

expressa-se como uma necessidade de punição. Assim, a sociedade consegue dominar o

perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o e estabelecendo um “agente”

para cuidar do mesmo. Mas, qual é a sua origem?

Primeiramente, uma pessoa sente-se culpada quando fez algo que sabe ser “mau”,

mas isso diz pouco, uma vez que mesmo quando a pessoa não faz tal coisa e apenas teve a

intenção de fazê-la, ela tende a sentir-se culpada. Mas, o que seria considerado “mau”? De

acordo com este autor, “mau é tudo aquilo que com a perda do amor, nos faz sentir

ameaçados e por medo dessa perda, deve-se evitá-lo”.32 Essa perda a que se refere Freud,

diz respeito ao desamparo do indivíduo em relação às outras pessoas ─ ele pode perder o

amor de outra pessoa de quem é dependente e deixar de ser protegido de uma série de

perigos e acima de tudo, pode estar sujeito ao perigo de que tal pessoa seja mais forte e

mostre a sua superioridade sob a forma de punição. Dessa forma, é indiferente o fato de o

indivíduo ter realizado algo mau ou apenas ter tido a intenção de fazê-lo, pois em ambos os

casos, a autoridade pode se instaurar. Esse estado mental foi chamado por Freud de “má

consciência” e representa uma “ansiedade social” ou um medo de que a autoridade

descubra e culpe o indivíduo por ter realizado algo não aprovado pela sociedade.

Em um estágio mais elevado dos fenômenos da consciência, Freud descreve o

sentimento de culpa: ele acontece no momento em que a autoridade é internalizada através

do estabelecimento de um superego.

32 Freud, S., O mal estar na cultura, cap. 07, p. 85;

28

Nesse estágio mais elevado definido por Freud, o medo de ser descoberto não existe

mais, bem como a distinção entre o fazer e a simples intenção de fazer, pois nem mesmo os

pensamentos podem ser escondidos do superego. Não obstante, o superego atormenta o ego

pecador com o mesmo sentimento de ansiedade e fica esperando para fazê-lo ser punido

pelo mundo externo. Dessa forma, uma consciência rigorosa e vigilante representa a marca

de um homem moral.

Em suma, existem para Freud duas origens do sentimento de culpa: a primeira

provém da renúncia às satisfações substitutivas decorrente do medo da autoridade externa

e, a segunda provém da renúncia decorrente do medo da autoridade interna e da exigência

de punição, uma vez que nada mais pode ser escondido do superego. Nesse sentido, na

primeira situação renuncia-se ao instinto para não perder o amor da autoridade e não

possuir nenhum sentimento de culpa. No entanto, na segunda situação a renúncia não é

suficiente, pois o desejo não pode ser escondido do superego e instala-se de qualquer

forma, o sentimento:

“Aqui, a renúncia instintiva não possui mais um efeito completamente liberador; a

continência virtuosa não é mais recompensada com a certeza do amor. Uma ameaça de

infelicidade externa ─ perda de amor e castigo por parte da autoridade externa ─ foi

permutada por uma permanente infelicidade interna, pela tensão do sentimento de culpa”.33

Freud propõe assim, uma seqüência cronológica: em primeiro lugar, encontra-se a

renúncia ao instinto, devido ao medo da autoridade externa e em seguida, vem a

organização de uma autoridade interna e a renúncia instintiva devido ao medo desta,

acompanhados, fundamentalmente do sentimento de culpa e da necessidade de punição.

Ocorre uma inversão: inicialmente, a consciência é a causa da renúncia instintiva,

posteriormente, o relacionamento se inverte. Nesse momento, Freud sugere que a

consciência, de certa forma, surge da renúncia instintiva, sendo subseqüentemente

reforçada por novas repressões de mesma ordem, sendo independente da severidade que do

objeto se experimentou ou que lhe atribuiu. No entanto, admite tanto influências do

ambiente externo como fatores constitucionais inatos e modelos filogenéticos na formação

da consciência e do superego. Em suas conclusões, Freud identifica o sentimento de culpa a

33 Freud, S., O mal estar na cultura, cap. 07, p. 89;

29

uma variedade topográfica da ansiedade e em suas fases posteriores, coincide

completamente com o medo do superego.

Freud atribui à sua obra uma importância fundamental a esse sentimento e não

mediu páginas para falar a seu respeito: “... à minha intenção de representar o sentimento de

culpa como o mais importante problema no desenvolvimento da civilização, e de

demonstrar que o preço que pagamos por nosso avanço em termos de civilização é uma

perda de felicidade pela intensificação do sentimento de culpa”.34 Esse sentimento não é

interpretado pelas pessoas como um problema decorrente do processo cultural e, em geral,

permanece de forma inconsciente como uma espécie de mal estar ou uma insatisfação para

qual as pessoas buscam outras motivações.

Identificou-se até aqui, os principais aspectos envolvidos na origem do sentimento

de culpa, fundamentando-se nas teorias de Nietzsche e de Freud. Pretende-se nesse

momento, identificar e analisar possíveis semelhanças, bem como diferenças a respeito

deste sentimento entre as duas teorias.

Através de uma análise superficial sobre o tema em questão, infere-se que as duas

teorias possuem pouco em comum a respeito da consciência da culpa. Para Nietzsche, a

culpa é originada das relações contratuais entre credor e devedor, enquanto que para Freud,

ela advém da tensão entre os seus conceitos de ego e superego. Definindo assim, as teorias

não parecem em nada se assemelhar, entretanto, se houver uma análise mais detalhada

sobre o assunto, é possível encontrar aspectos em comum entre elas, pois o pressuposto que

se encontra por detrás de ambas as conclusões é fundamentalmente, o mesmo. Os dois

autores, embora não utilizem os mesmos conceitos, concordam com o fato de que a

consciência da culpa origina-se e se estabelece com o processo de desenvolvimento cultura.

Apesar do filósofo analisar as relações contratuais entre os indivíduos e Freud

definir os mecanismos psicológicos envolvidos no processo individual e cultural, ambos

definem a origem do sentimento de culpa a partir da renúncia instintiva. Além desse fato,

reconhecem tal renúncia como conseqüência do processo cultural e em última análise,

ainda concordam a respeito da relação diretamente proporcional entre a renúncia instintiva

e o sofrimento humano.

34 Freud, S., O mal estar na cultura, cap. 08, p. 97;

30

Nietzsche sugere que a consciência da culpa origina-se da abnegação dos instintos

humanos, que por não encontrarem sua satisfação, voltam-se contra o homem e travam um

sofrimento deste consigo próprio. Freud, por sua vez, indica que o instinto,

fundamentalmente o da agressividade, quando reprimido, tende a retornar ao lugar de onde

proveio, ou seja, em direção ao ego do indivíduo e, esta agressividade introjetada é

responsável pela tensão interna no indivíduo, ou seja, pela origem da consciência da culpa.

Tendo em vista ambas as definições, pode-se concluir que neste ponto, as teorias muito se

assemelham: um dos fatores implicados na origem da culpa é a abnegação instintiva e a

conseqüente luta interna do ser humano.

Os seres humanos renunciam aos seus instintos. Isso é um fato. No entanto, por quê

o fazem? Nesse momento, se a questão for analisada superficialmente, a tendência será

admitir que Freud e Nietzsche também concordam a respeito dessa resposta, o que é real:

ambos os autores concordam em última instância, com o fato de que o grande “vilão”

responsável pela abnegação de instintos humanos é o processo do desenvolvimento sócio-

cultural. Entretanto, em uma análise mais detalhada sobre o assunto, pode-se encontrar

alguns fatores dentro desse processo, que são definidos de maneira distinta nas duas teorias.

Assim como Freud, Nietzsche sugere que em certa medida, a renúncia instintiva é

provocada pelo medo de uma autoridade externa. Esse medo provém da superioridade

desse agente externo e pode ser representado por um credor, como nas relações contratuais

analisadas na genealogia nietzschiana ou como qualquer outra figura de poder ilimitado

sobre o indivíduo. No entanto, Freud define também a renúncia instintiva motivada pelo

medo de uma autoridade interna, da qual Nietzsche não analisa. O filósofo admite que as

relações externas ao homem travam um conflito interno, mas não define minuciosamente

como Freud, de que forma as instâncias internas e externas ao indivíduo interagem na

abnegação de seus instintos.

De uma forma geral, os autores assemelham-se em suas definições sobre a origem

do sentimento de culpa, fundamentando-se suas teorias na abnegação dos instintos humanos

em decorrência da formação da vida em sociedade.

31

Discussão

Propositalmente, os três subitens discutidos anteriormente, foram os valores morais

que os homens apresentam, o sofrimento humano e as origens da consciência e do

sentimento de culpa. Naturalmente, não foram analisadas todas as possíveis relações entre

tais aspectos. No entanto, pretendeu-se relacioná-los a um preceito em comum ─ o

desenvolvimento da cultura e os mecanismos inconscientes dos indivíduos ─ à luz das

teorias de Freud e Nietzsche. A questão analisada, fundamentada em ambas as teorias, foi

em que medida o processo cultural, os valores morais, o sofrimento humano e o sentimento

de culpa estão relacionados e quais as conseqüências para o indivíduo, implicadas nessa

relação.

Em suma, pode-se inferir uma relação de causa e efeito entre tais aspectos.

Simultaneamente ao processo do desenvolvimento individual, ocorre o desenvolvimento

cultural. Este último processo implica, necessariamente na adaptação das exigências do

indivíduo às exigências do convívio social, o que traz como conseqüência o

estabelecimento de regras e valores destinados ao “bem estar” social. Entretanto, a lacuna

existente entre a realidade interna do indivíduo (o que ele naturalmente é) e as exigências

externas (o que ele deve ser) é em certa medida, responsável pelo “mal estar” inerente ao

ser humano ─ o sentimento de desprazer, muitas vezes sob a forma de sentimento de culpa.

De acordo com Freud, o processo cultural da espécie humana é uma abstração de

ordem mais elevada do que a do processo de desenvolvimento individual. Contudo, diante

dos objetivos semelhantes entre os processos ─ a integração de um indivíduo isolado num

grupo ou a criação de um grupo unificado a partir de muitos indivíduos ─ pode-se concluir

sobre a similaridade entre os meios empregados e os fenômenos resultantes entre os dois

processos.

No processo de desenvolvimento do indivíduo, de acordo com Freud, o objetivo

principal corresponde ao princípio do prazer, que consiste na obtenção individual de

felicidade. Sendo assim, a adaptação e a integração social encontram-se como o objetivo

secundário. No processo civilizatório, os objetivos são invertidos: antes da obtenção de

32

felicidade, a intenção é criar uma unidade a partir dos seres humanos isolados. Nesse

momento, Freud em tom pessimista, sugere que o desenvolvimento cultural seria, em certa

medida, mais bem sucedido se não relevasse o seu segundo objetivo, referindo-se à quase

despreocupação do processo cultural em relação à satisfação do indivíduo.

Nesse sentido, o indivíduo possui a necessidade de adaptar o seu desenvolvimento

ao desenvolvimento cultural. Isso significa que, além das exigências internas do indivíduo e

o desenvolvimento do seu superego, existe o superego referente à época de uma civilização

baseado na impressão deixada por personalidades de grandes líderes e que, assim como o

superego individual, estabelece exigências ideais e rigorosas, cuja desobediência é punida

pela “consciência da culpa”.

O grande problema encontrado por Freud, nesse momento, é que os seres humanos,

muitas vezes, não são psicologicamente capazes de cumprir as exigências impostas por

esses “agentes fiscalizadores”, pois não dispõem de um domínio ilimitado sobre suas

exigências instintivas. Além disso, o desenvolvimento sócio-cultural oculta o papel que os

instintos referentes à sexualidade e à agressividade, por exemplo, desempenharão no

desenvolvimento do indivíduo, por isso os homens são destinados a cumprir algumas

exigências éticas que nem sequer contestam pelo simples fato de acreditarem que todos os

outros homens cumprem tais exigências e que por isso, tornam-se virtuosos.

Não obstante, dizer que os indivíduos não possuem um domínio completo sobre as

suas exigências instintivas, significa também dizer que o ser humano possui uma parte do

seu funcionamento que ele desconhece e por isso, não possui o seu controle pleno. Essa

“parte” em questão corresponde ao que intitulou-se inconsciente e encontra-se implícita no

decorrer deste texto por dois motivos. Primeiramente, porque tanto Freud como Nietzsche,

admitem a sua relevância na constituição do ser humano e, além disso, reconhecem que é a

“instância” que, por estar distante do completo domínio do ser humano, encontra-se

também distante do controle da sociedade, e por isso constitui a sua maior ameaça de

desintegração. Se por um lado, o inconsciente pode ser muitas vezes, “adestrado” pelas

exigências da civilização, por outro pode também escapar das suas fiscalizações e ameaçar

suas regras sociais.

Freud, em suas conclusões, questiona-se sobre o valor dos esforços implicados no

processo cultural, uma vez que a defesa contra a agressividade humana postulada nesse

33

processo está sujeita a causar tanta infelicidade como a própria agressividade. Além disso,

considera que as exigências éticas implicadas aqui, não oferecem mais do que a satisfação

narcísica do indivíduo poder pensar que é melhor do que os outros.

“A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto,

seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal

causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição”.35 A análise freudiana parece

ser em certa medida pessimista, exatamente por admitir a incompatibilidade entre o

desenvolvimento cultural e os instintos humanos. Mas, então o quê sustentaria o processo

cultural?

O autor atribui um fundamento duplo para a vida em sociedade: a compulsão para o

trabalho, criada pela necessidade externa e o poder atribuído ao amor, que faz o homem

relutar em privar-se de seu objeto sexual (neste caso, a mulher) e ela, em privar-se de uma

parte de si própria que dela fora separada (o filho). Dentro desse raciocínio, Freud

considera “Eros e Ananke” (amor e necessidade) os pais da civilização.

Entretanto, o problema em questão é que “o seu próximo é para o homem, não

somente um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas alguém que ostenta a satisfazer

sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem nenhuma

compensação, a utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas

posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo”.36 Nesse sentido, Freud

conclui que, mesmo com a existência de um duplo fundamento para a vida em sociedade, a

existência da inclinação para a agressão perturba os relacionamentos sociais e força a

civilização a um desgaste elevado de energia, por isso ela encontra-se sempre ameaçada de

desintegração. E, desta ameaça decorrem os mecanismos para estabelecer limites aos

instintos agressivos do homem, os métodos destinados a incitar as pessoas a

relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade, a restrição à vida sexual, bem como

o mandamento de “amar ao próximo como a si mesmo”.

Diante de tantas restrições, não se torna incompreensível a existência de todo o

sofrimento implicado nas relações humanas. Para Freud, a civilização oferece ao indivíduo

35 Freud, S., O mal estar na cultura, cap. 08, p.111; 36 Freud, S., O mal estar na cultura, cap. 05, p. 67;

34

uma parcela de segurança em detrimento à uma parcela de felicidade, de tal forma que

ambas as parcelas, dificilmente serão compatíveis.

Assim como Freud, Nietzsche sugere que o “mal estar” da humanidade instala-se no

instrumento histórico de controle das exigências instintivas. Sim, os instintos, de uma

maneira geral, foram adestrados. No entanto, eles não cessam de fazer suas exigências, uma

vez que o indivíduo possui um domínio limitado sobre elas. É exatamente aí, onde se

instala o “mal estar”: entre o que o homem é e o que ele gostaria de ser. Se essa é a origem

da consciência da culpa, tanto para Freud como para Nietzsche, como foi analisado

anteriormente, então pode-se inferir que o “mal estar” da humanidade corresponde, em

certa medida, ao sentimento de culpa:

“(...) Nesse novo mundo não mais possuíam os seus velhos guias, os impulsos

reguladores e inconscientemente certeiros estavam reduzidos, os infelizes, a pensar,

inferir, calcular, combinar causas e efeitos, reduzidos à sua consciência, ao seu órgão mais

frágil e mais falível! Creio que jamais houve na terra um tal sentimento de desgraça, um

mal estar tão plúmbeo e além disso os velhos instintos não cessaram repentinamente de

fazer suas exigências! Mas era difícil, raramente possível, lhes dar satisfação: no essencial

tiveram de buscar gratificações novas e, digamos, subterrâneas. Todos os instintos que não

se descarregam para fora voltam-se para dentro isto é o que chamo de interiorização do

homem: é assim que no homem cresce o que depois denomina sua alma (...)”.37Nessa

passagem, Nietzsche refuta a prevalência da consciência moral sobre as exigências

instintivas e, de acordo com a sua visão, essa prevalência parece ser a causa maior do mal

estar internalizado pelo homem, pois para ele, a consciência moral representa um instinto

dominante que impõe a sua “autoridade” sobre os demais instintos.

Essa autoridade é atribuída por Nietzsche, fundamentalmente, ao “ideal ascético” e

encontra-se em sua obra o questionamento a respeito de uma contradição existente neste

instrumento histórico de domesticação humana. Pois, ao mesmo tempo em que ele é

considerado a maior instância negadora da vida, uma vez que fundamenta-se na quase

aniquilação dos instintos humanos, a sua teoria pressupõe um desejo de ser outro, de estar

além desta vida e de um dia conseguir a força e o controle sobre os seus instintos. Dentro

desta perspectiva, o poder deste desejo é exatamente o que o prende nesta vida, por isso o

37 Nietzsche, F., A genealogia da moral, Af. 16, Segunda dissertação, p. 72;

35

ideal ascético é também uma das grandes potências afirmadoras da vida. Mas, qual a

justificativa atribuída por Nietzsche ao fato do ideal ascético ter se tornado uma autoridade

para os seres humanos?

Além de nunca ter existido um outro ideal equiparável ao ascético, é na necessidade

intrínseca ao homem de encontrar uma causa ou um sentido ao seu sofrimento que esse

ideal se instala. Tornou-se uma autoridade na medida em que redirecionou o ressentimento

humano e proporcionou uma descarga para o seu afeto, mesmo que simbolicamente. No

entanto, se por um lado, essa descarga de afeto proporciona um alívio ao desprazer do

homem, por outro a sua causa não é, de forma alguma, combatida por esse ideal. Dessa

forma, a crítica nietzschiana ao ideal encontra-se nesse sentido: seus pressupostos e

técnicas possuem um caráter falso, pois resolvem apenas aparentemente os problemas

relacionados à vida em sociedade.

Aliados ao ideal ascético, Nietzsche aponta a filosofia e a ciência. Embora

aparentemente não possuam preceitos comuns, na análise nietzschiana, são

consistentemente ligados na tarefa de identificar e atribuir um sentido à existência humana,

na medida em que assim como o ideal ascético, superestimam o valor da verdade. De

acordo com Nietzsche, estão de certa forma, sempre procurando objetivamente qual é o

valor da verdade e atribuindo respostas às questões de natureza metafísica do homem.

Nietzsche, nesse momento se pergunta: “(...) O que significa toda a vontade de

verdade? (...).(...) Que sentido teria nosso ser, senão o de que em nós essa vontade de

verdade toma consciência de si mesma?”.38

O autor conclui que não existiria finalidade alguma para a existência humana se

não vigorasse o ideal ascético, uma vez que este é o único ideal que consegue satisfazer a

necessidade do homem de encontrar um sentido ao seu sofrimento e à sua existência. E, sua

crítica aqui se torna ainda mais incisiva, pois considera que este ideal trouxe

simultaneamente à interpretação desse sofrimento, um outro mal à sociedade ─ o

sentimento de culpa, que acordo com Nietzsche, deve ser um sentimento mais nocivo ao

homem do que a falta de um sentido para o seu sofrimento.

Embora o parentesco entre as idéias de Nietzsche e Freud seja um fato controverso

na literatura e, as influências do filósofo sobre o fundador da psicanálise não sejam,

38 Nietzsche, F., A genealogia da moral, Af. 27-28, p. 148;

36

naturalmente admitidas, não se pode desprezar as semelhanças encontradas entre os dois

autores.

A temática que está por detrás das teorias apresentadas em “O mal estar na

cultura” e “Genealogia da moral” parece ser a questão do indivíduo enquanto ser humano

primitivo em contraposição ao indivíduo enquanto ser humano social. A semelhança entre

as duas obras pode ser constatada no tom pessimista da análise de ambos os autores no que

diz respeito à incompatibilidade entre o inconsciente e a consciência moral, entre a vontade

e a necessidade, entre os instintos e os valores morais, entre o fado e a livre vontade, entre o

que o homem deve ser e o que ele gostaria de ser. Em última análise, a relevância da

temática encontra-se nas conseqüências que as exigências sociais, necessariamente trazem

ao indivíduo, como essas conseqüências são por ele elaboradas e, de que forma a

incompatibilidade em questão encontra-se relacionada aos sentimentos e valores

internalizados pelo homem. De acordo com essa análise, Freud e Nietzsche assemelham-se

em certa medida, à função do sacerdote ascético, pois buscam um sentido para o sofrimento

humano. No entanto, além de um sentido, procuram analisar as origens, causas e todos os

outros fatores que possam estar relacionados a esse mal estar, envolvendo o indivíduo e a

sociedade.

37

Referências Bibliográficas

ASSOUN, Paul- Laurent, Nietzsche e Freud, Brasiliense, São Paulo, 1980;

ASSOUN, Paul- Laurent, Freud, a filosofia e os filósofos, Francisco Alves, Rio de

Janeiro, 1978;

FREUD, Sigmund, O mal estar na cultura, Imago, Rio de Janeiro, 1929;

FREUD, Sigmund, O Ego e o Id, Imago, Rio de Janeiro, 1923;

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Além do bem e do mal, WVC, São Paulo, 1885;

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm, Genealogia da moral ─ uma polêmica, São Paulo,

Schwarcz, 1887;

MEZAN, Renato, “Freud, pensador da cultura”, Brasiliense, São Paulo, 1985;

38

Palavras-chave: moral-culpa-cultura-instinto-sofrimento-inconsciente

O presente trabalho apresenta uma comparação entre a obra de Friedrich Nietzsche

“Genealogia da moral” e “O mal estar na cultura” de Sigmund Freud. Embora analisem

de forma singular o assunto, encontra-se nas duas obras, por detrás de algumas

problemáticas, uma reflexão em tom pessimista sobre o sofrimento humano – seja sob a

forma de desprazer no seu sentido econômico utilizado por Freud ou sob a forma de dor

existencial encontrada nas reflexões de Nietzsche. Além disso, encontra-se em ambas as

obras uma análise sobre o significado que os valores da vida apresentam ao homem, sobre

as origens do sentimento de culpa e sobre os instrumentos utilizados pelos indivíduos na

luta contra o seu sofrimento, tais como a religião, o entorpecimento e o trabalho.O ponto de

contato fundamental entre as obras estaria nas relações entre a abnegação de instintos

humanos e o surgimento da cultura, em que foram originariamente estabelecidos muitos

desses valores.

O texto encontra-se dividido em subitens, que estão inter-relacionados em ambas as

teorias: os valores morais, o sofrimento humano e o sentimento de culpa. Não constatou-se

a partir dessas análises, uma aproximação da teoria psicanalítica de Freud ao niilismo de

Nietzsche, uma vez que o objetivo foi realizar um estudo comparativo entre as obras,

descrevendo, principalmente como a agressão moral aos instintos se combina à

domesticação das pulsões humanas impostas pela vida em sociedade e como o sofrimento

humano é analisado pelos dois autores. Embora o parentesco entre as idéias de Nietzsche e

Freud seja um fato controverso na literatura e, as influências do filósofo sobre o fundador

da psicanálise não sejam, naturalmente admitidas, não se pode desprezar as semelhanças

encontradas entre os dois.

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