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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA MESTRADO EM FILOSOFIA NÍVEL MESTRADO Vagner Gomes Ramalho O DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA SEGUNDO THOMAS S. KUHN: ANÁLISE E CRÍTICA DO MODELO PROPOSTO NA ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS São Cristóvão 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

MESTRADO EM FILOSOFIA

NÍVEL MESTRADO

Vagner Gomes Ramalho

O DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA SEGUNDO THOMAS S. KUHN: ANÁLISE

E CRÍTICA DO MODELO PROPOSTO NA ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES

CIENTÍFICAS

São Cristóvão

2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

MESTRADO EM FILOSOFIA

NÍVEL MESTRADO

Vagner Gomes Ramalho

O DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA SEGUNDO THOMAS S. KUHN: ANÁLISE

E CRÍTICA DO MODELO PROPOSTO NA ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES

CIENTÍFICAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Filosofia da Universidade

Federal de Sergipe como pré-requisito para a

obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Sergio Hugo Menna

São Cristóvão

2014

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

R165d

Ramalho, Vagner Gomes O desenvolvimento da ciência segundo Thomas S. Kuhn : análise e crítica do modelo proposto na estrutura das revoluções científicas / Vagner Gomes Ramalho ; orientador Sérgio Hugo Menna. – São Cristóvão, 2014.

90 f.

Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade Federal de Sergipe, 2014.

1. Ciência - filosofia. 2. Ciência - desenvolvimento. I. Menna, Sérgio Hugo, orient. II. Kuhn, Thomas S. - 1922-1996 III. Título

CDU 50:101.1

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Mário, Van e Demir (in memorian)

Dedico-lhes.

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Agradecimentos

Ao Prof. Dr. Sergio Hugo Menna que, insistentemente, acreditou que este trabalho seria

possível e não mediu esforços para me orientar pela direção correta. Professor, os créditos pela

realização desta Dissertação também são seus. Seus questionamentos sempre abriram portas

em minha mente, me fazendo perceber além do que havia escrito. Seu exemplo de

comprometimento com o orientando perdurará durante minha carreira acadêmica.

Ao Prof. Dr. Adilson Koslowski, pelas generosas contribuições, dadas na minha banca

de qualificação e defesa, em conferências e seminários ao longo do curso. Ao Prof. Dr. Aldo

Dinucci, que colaborou com o crescimento do texto, por meio de suas críticas em minha banca

de qualificação. Ao Prof. Dr. Pedro Leite de Santana, pela leitura atenta e contribuições

generosas durante a defesa. Agradeço ainda aos meus professores durante o Mestrado, os quais

sempre contribuíram de forma muito significativa para o desenvolvimento de minha pesquisa.

Tive contato com profissionais singulares, os quais tornaram possível o título de Mestre.

Agradeço à minha família por compreender as minhas ausências, em especial minha

esposa, Ellen Maianne Santos Melo Ramalho, pelas sugestões, correções e críticas. Agradeço

por ter acompanhado meu trabalho desde o início. Meu filho, Alef Melo Ramalho. Somente

quando crescer ele entenderá que cada vez que entrava em minha sala, durante a produção desta

Dissertação, enchia o ambiente com seu sorriso e sua doçura. Além disso, foi o que mais torceu

para que eu terminasse logo.

Aos meus amigos pessoais e do trabalho, por estarem sempre próximos e dividindo

comigo as angústias do processo de desenvolvimento desta Dissertação. A generosidade em

lidar com minhas ausências foi muito importante durante minha trajetória no mestrado. Sem

essa compreensão, produzir esta Dissertação teria sido bem mais difícil.

Agradeço também aos colegas do mestrado, que me ajudaram com vários

questionamentos durante a produção do projeto.

Ao coordenador do PPGF/UFS, Prof. Dr. Antônio Carlos, e ao secretário do PPGF/UFS,

Alam Fabiano. Ambos sempre estiveram prontos para dirimir dúvidas de ordem administrativa.

Meus agradecimentos não estariam completos se não os estendesse aos meus antigos

professores na Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC. Em especial ao Prof. Dr. Paulo

Tadeu da Silva, que trouxe um texto de Kuhn nas aulas de Teoria do Conhecimento, sem saber

ele que despertaria em mim uma grande vontade pelas questões que trabalhamos naquele

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semestre; a Profa. Dra. Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli, as aulas sobre Descartes

foram inspiradoras; não posso esquecer também do Prof. Dr. Walter Matias, na Universidade

Federal de Alagoas – UFAL, por seus comentários sempre pertinentes sobre problemas

metafísicos.

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Se a História fosse vista como um repositório para algo mais do que anedotas ou

cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de ciência que

atualmente nos domina.

Kuhn, Thomas, [1969],

The Structure of Scientific Revolutions.

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O DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA SEGUNDO THOMAS S. KUHN: ANÁLISE E

CRÍTICA DO MODELO PROPOSTO NA ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES

CIENTÍFICAS

RESUMO

O livro de Thomas S. Kuhn, A Estrutura das revoluções científicas (1962), foi recebido pela

comunidade filosófica e científica como um texto revolucionário. Nele, Kuhn propõe uma nova

forma de compreender o desenvolvimento científico. Diferentemente dos filósofos da ciência

de sua época, que viam o desenvolvimento científico como um largo processo de acumulação,

Kuhn propôs que o desenvolvimento científico está marcado por processos de ruptura

denominados “revoluções científicas”. Em ocasião da edição japonesa da Estrutura, em 1969,

Kuhn introduziu um Posfácio, que considero parte integrante de sua noção de desenvolvimento

científico, pois é complementar ao seu modelo e traz esclarecimentos sobre as questões tratadas

na obra de 1962. Conforme o modelo inicial de desenvolvimento presente no conjunto

Estrutura/Posfácio, as rupturas no processo de desenvolvimento científico são marcadas pela

sucessão de paradigmas. Os paradigmas, para Kuhn, são uma espécie de arcabouço teórico-

metodológico. Eles direcionam a atividade científica para a compreensão dos fenômenos

estudados por uma comunidade científica. Com esta Dissertação pretendo analisar de forma

crítica o modelo de desenvolvimento científico presente na Estrutura, discorrendo sobre os

conceitos-chave necessários para o entendimento do modelo.

PALAVRAS-CHAVE: T. S. Kuhn; paradigma; desenvolvimento científico.

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THE DEVELOPMENT OF SCIENCE ACCORDING TO THOMAS S. KUHN: ANALYSIS

AND CRITIQUE OF THE MODEL PROPOSED IN THE STRUCTURE OF SCIENTIFIC

REVOLUTIONS

ABSTRACT

Thomas S. Kuhn's book, The Structure of Scientific Revolutions (1962), was received by the

philosophical and scientific community as a revolutionary text. In it, Kuhn proposed a new way

of comprehending scientific development. Unlike other philosophers of science of his day, who

saw scientific development as a long, accumulative process, Kuhn proposed that scientific

development is marked by disruptive processes called "scientific revolutions". With the release

of the Japanese edition of Structure, in 1969, Kuhn introduced an Afterword, which I consider

to be an integral part of his concept of scientific development, as it's complementary to his

model and clarifies issues addressed in the 1962 work. According to the initial development

model proposed in this Structure/Afterword set, disruptions in the scientific development

process are marked by a succession of paradigms. These paradigms, for Kuhn, are a type of

theoretical-methodological framework. They direct scientific activity towards the

comprehension of phenomena studied by a scientific community. With this Dissertation I intend

to critically analyse the scientific development model proposed in Structure, discussing the key

concepts necessary for understanding this model.

KEYWORDS: T. S. Kuhn; paradigm; scientific development.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 2.1 – Períodos do desenvolvimento da ciência.......................................................... 33

FIGURA 2.2 – Focos normais para a investigação científica.................................................... 42

FIGURA 2.3 – Cenários possíveis para o desenvolvimento da crise........................................ 55

FIGURA 2.4 – Tratamento de uma anomalia reconhecidamente fundamental......................... 57

FIGURA 3.1 – Conceitos atrelados à matriz disciplinar........................................................... 72

FIGURA 3.2 – O desenvolvimento da ciência segundo o Posfácio de 1969............................ 75

FIGURA 3.3 – Matriz disciplinar ampliada.............................................................................. 79

FIGURA 3.4 – Exemplares no aprendizado do paradigma.......................................................81

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 13

1. A FILOSOFIA DE THOMAS S. KUHN E A CONCEPÇÃO HERDADA DA

CIÊNCIA................................................................................................................................. 17

1.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS......................................................................................... 17

1.2. A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE T. S. KUHN NA ESTRUTURA................................... 18

1.3. KUHN E A CONCEPÇÃO HERDADA SOBRE AS TEORIAS CIENTÍFICAS............ 24

1.4. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 28

2. O MODELO DE CIÊNCIA PROPOSTO POR KUHN NA ESTRUTURA.................. 31

2.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS......................................................................................... 31

2.2. CONCEITOS-CHAVE DO MODELO KUHNIANO....................................................... 32

2.2.1. Paradigma........................................................................................................... 32

2.2.2. Ciência normal.................................................................................................... 38

2.2.3. Anomalia............................................................................................................. 47

2.2.4. Revolução científica............................................................................................ 54

2.3. CONSIDERAÇÕES SOBRE O MODELO KUHNIANO................................................. 58

2.3.1. Desenvolvimento científico................................................................................ 59

2.3.2. O uso de manuais na projeção do paradigma....................................................... 61

2.3.3. História e filosofia da ciência.............................................................................. 64

2.4. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 66

3. O POSFÁCIO DE 1969 COMO PARTE DA ESTRUTURA........................................... 69

3.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS......................................................................................... 69

3.2. OS PARADIGMAS COMO COMPROMISSOS DE GRUPO.......................................... 71

3.3. OS PARADIGMAS COMO EXEMPLOS COMPARTILHADOS................................... 79

3.4. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 82

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................. 83

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................. 89

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INTRODUÇÃO

Esta Dissertação é o resultado de uma tentativa de compreender e avaliar o modelo de

desenvolvimento da ciência presente no livro de Thomas S. Kuhn, A estrutura das revoluções

científicas1, publicado originalmente em 1962. Minha pretensão não foi elucidar todos os

pontos problemáticos dessa obra ou trazer um novo e revolucionário entendimento sobre o

tema, mas contribuir com as discussões travadas sobre um aspecto bastante específico da

filosofia da ciência de Kuhn: o modelo de desenvolvimento da ciência contido na Estrutura.

Embora o texto tenha sido publicado em 1962, ainda suscita muitas discussões. Alguns

pontos, como o “caráter paradigmático da ciência”, se mostraram bastante influentes nas

explicações sobre como se desenvolve a ciência; outros, como a questão da

“incomensurabilidade”, permanecem em aberto e agregam tanto defensores quanto opositores2.

Em virtude da pluralidade de questões que têm sido discutidas a partir da Estrutura, o

texto tornou-se um dos mais citados no século XX. Segundo Khalidi (2000: 172), os termos

“paradigma”, “revolução científica” e “incomensurabilidade” estão entre as mais influentes

expressões da filosofia da ciência. Isso equivale a dizer que têm sido muito usadas e isso implica

numa gama variada de análises da obra de Kuhn, pois a partir das questões tratadas no texto,

são possíveis enfoques em questões metodológicas, sociológicas, políticas, etc.

Em razão dessas diferentes leituras, penso que trabalhar todas as questões colocadas no

texto só seria possível ao longo de uma vida, não de um Mestrado, exceto, é claro, se uma vida

fosse dedicada ao Mestrado. Por isso me aterei somente a um aspecto do texto, o modelo de

desenvolvimento científico que está sendo considerado por Kuhn.

Sob o título “O desenvolvimento da ciência segundo Thomas S. Kuhn: análise e crítica

do modelo proposto na Estrutura das revoluções científicas”, pretendo discutir o modelo

esboçado por Kuhn em seu livro como uma forma possível de compreender o desenvolvimento

científico que, em linhas gerais, deve ser abordado como intrinsecamente relacionado à ideia

kuhniana de “paradigma”.

1 Na sequência, utilizarei somente Estrutura. 2 A ideia de Kuhn sobre a incomensurabilidade tem sido considerada como polêmica desde sua anunciação. Ainda

hoje essa ideia está entre as principais discussões que giram em torno da filosofia de Kuhn, Cf. LORENZANO &

NUDLER (Eds.), 2012. Ainda que a discussão seja interessante, não considero que seja imprescindível para

alcançar o objetivo desta Dissertação, por isso não a desenvolverei aqui. Sobre o caráter polêmico da ideia

kuhniana de incomensurabilidade confronte GUTIERRE, 1998.

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Na primeira versão da Estrutura, as questões fundamentais para a correta compreensão

da junção entre “desenvolvimento científico” e “paradigma” foram postas, mas, motivado pelas

críticas recebidas de seus leitores, em 1969 Kuhn acrescentou ao texto original um Posfácio,

no qual os elementos anteriormente colocados – sobretudo a ideia de paradigma – foram

aprofundados e melhor esclarecidos.

Não considerarei o Posfácio como um texto à parte da Estrutura, porque desde 1969 as

publicações do livro têm sido acompanhadas dele. Além disso, não identifico nenhum conceito

no Posfácio que Kuhn já não tenha aludido no texto de 1962. Por isso, quando me refiro ao

“modelo proposto na Estrutura das revoluções científicas”, estou pensando na conjunção entre

os dois textos, isto é, a obra de 1962 acompanhada do Posfácio de 1969.

Estou considerando outros aspectos para justificar essa conjunção. Como o texto foi

publicado em 1962 e recebeu o Posfácio em 1969, alguns pesquisadores poderão compreender

que, como são de períodos distintos, tratam-se de textos com objetivos diferentes e, portanto,

suscetíveis de aproximações e distanciamentos, o que justificaria uma análise no sentido de

diferenciá-los e considerá-los como textos diferentes. Sem embargo, como já explicitado,

considero que a Estrutura de Kuhn é o conjunto entre o texto de 1962 e o Posfácio de 1969,

pois, como pode ser observado, este não foi publicado de forma independente.

Não terem sido publicados como textos diferentes fundamenta a ideia de que Kuhn

compreendia os dois textos como um conjunto. Nesse conjunto, o conceito de “estrutura” estaria

exposto, sendo o Posfácio um agrupamento de notas esclarecedoras sobre o texto original. Essa

concepção, impossibilitaria que os dois textos fossem distanciados em publicações distintas.

Utilizo a expressão “modelo”, ao invés de “teoria”, por considerar que aplica-se de

forma mais adequada à construção de Kuhn. Na Estrutura, o desenvolvimento da ciência é

tratado por meio de um esquema de seu funcionamento. Ao final da leitura da Estrutura, é

possível observar um esquema conceitual, composto de etapas que se sucedem. Com base em

tal constatação, acredito que a ideia de modelo é mais apropriada do que a de teoria, pois ilustra

melhor o funcionamento da ciência de Kuhn3.

É possível que o termo “modelo” traga alguns problemas, pois pode denotar “imitação”,

ou “padrão imitável”, o que implicaria em uma análise de que as definições de Kuhn servem de

regra para o trabalho científico. Por essa razão, convém ressaltar que essa não é minha intenção.

3 Obviamente, ainda assim o termo “teoria” poderia ser aplicado. Mas penso que “modelo” está melhor colocado,

pois remete-se diretamente ao que está exposto na Estrutura: um esquema conceitual das etapas que compreendem

o desenvolvimento da ciência.

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Entendo modelo como um esquema pretendido do desenvolvimento científico, que serve de

esboço de como a ciência se constrói ao longo de períodos que se sucedem.

Quanto à expressão “desenvolvimento”, largamente utilizada nesta Dissertação, a

entendo como a dinâmica da ciência, e não deve ser diretamente relacionada à ideia de

“progresso”. Ou seja, não estou atribuindo à ideia de “desenvolvimento” nenhuma relação

positiva ou negativa de acúmulo de conhecimento, mas tão somente a dinâmica temporal e

conceitual trilhada pelo fazer científico. Porquanto, julgo que a análise do desenvolvimento

científico é a maneira mais adequada de esboçar o modelo proposto na Estrutura.

Para cumprir com o objetivo de explicitar o modelo presente na Estrutura, esta

Dissertação está composta por três capítulos e uma seção para Considerações Finais, além desta

Introdução.

No primeiro Capítulo, “A filosofia de Thomas S. Kuhn e a concepção herdada da

ciência”, farei uma contextualização histórica das discussões feitas por Kuhn. De forma

introdutória, apresentarei a relação dos conceitos atrelados ao modelo kuhniano e como eles

contribuíram para a análise kuhniana do desenvolvimento da ciência. Neste capítulo, a proposta

kuhniana será apresentada como contraposição à denominada “concepção herdada da ciência”.

O segundo capítulo, “O modelo de ciência proposto por Kuhn na Estrutura” apresenta

uma descrição pormenorizada dos conceitos atrelados ao modelo de desenvolvimento da

ciência proposto por Kuhn, descrevendo como funciona um paradigma e como se dá sua

substituição. Tal desenvolvimento poderia ser descrito como o funcionamento da ciência

enquanto uma constante intercalação de períodos de estabilidade e instabilidade. É nesse

capítulo que o modelo de Kuhn será descrito, pois é nele que estou tratando diretamente dos

conceitos abarcados pelo modelo.

A continuidade da discussão sobre o modelo está colocada no terceiro capítulo – “O

Posfácio de 1969 como parte da Estrutura”. Neste momento, serão discutidos os aclaramentos

dos conceitos tratados na obra de 1962, situando o Posfácio como parte do modelo proposto na

Estrutura, por tratar-se de um conjunto de esclarecimentos e não de uma adição de novos

conceitos.

Nas “Considerações Finais”, procurarei esboçar a contribuição dada por Kuhn para a

nova imagem da ciência e sua influência na segunda metade do século XX. Destacarei alguns

problemas em seu modelo de compreensão da natureza da atividade científica, ressaltando que,

embora problemático em alguns aspectos, foi imprescindível para considerar como

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fundamental, mais do que o produto da ciência, a análise do caminho trilhado pelo cientista

para construir esse tipo específico de conhecimento.

Por meio desta Dissertação, espero poder esclarecer o modelo de desenvolvimento

apresentado por T. S. Kuhn em sua Estrutura, considerando ainda que o trabalho ora

desenvolvido não chegará à elucidação definitiva da temática.

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1. A FILOSOFIA DE THOMAS S. KUHN E A

CONCEPÇÃO HERDADA DA CIÊNCIA

1.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Neste capítulo, num primeiro momento, farei uma breve apresentação das ideias de

Thomas S. Kuhn presentes na Estrutura, a partir de uma análise do que pode ser considerado

como um “giro historicista” da filosofia da ciência, bem como apresentarei as principais

hipóteses relacionadas ao que estou chamando de “modelo kuhniano” de desenvolvimento

científico.

Na sequência, com o intuito de situar historicamente a filosofia de Kuhn no contexto

das investigações relacionadas à filosofia da ciência, analisarei de forma breve algumas ideias

vinculadas à chamada “concepção herdada da ciência”, isto é, da concepção de ciência

dominante na 1ª metade do século XX.

Este capítulo também tem a função de mostrar como as concepções trazidas na Estrutura

colaboraram para uma visão mais social e política da ciência, se contrapondo, na segunda

metade do século XX, às ideias do positivismo lógico, que definiam – grosso modo – a

possibilidade de uma sustentação científica unicamente com base na lógica e na experiência.

Convém alertar que nas linhas a seguir proponho-me a uma análise crítica da concepção

herdada da ciência com base na defesa de que o modelo kuhniano constitui um contraponto a

tais ideias, embora esse modelo não seja completamente elucidativo sobre o funcionamento da

atividade científica.

O modelo de desenvolvimento da ciência proposto por Kuhn também possui suas

contradições. Entretanto, não procurarei me ater a tais contradições existentes, mas tão somente

ao que considero inovador em relação à concepção herdada.

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1.2. A FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE T. S. KUHN NA ESTRUTURA

Pensar as questões filosóficas da Estrutura é pensar também os possíveis caminhos

percorridos por Kuhn até a publicação da obra, em 1962. Gostaria de iniciar esta reflexão

analisando a composição do título de seu livro.

O termo “estrutura” tem sido largamente utilizado em diferentes disciplinas e áreas de

estudo, como, por exemplo, na antropologia de Lévi-Strauss e na economia de Marx. O termo

também tem sido utilizado em ciências, como na designação das funções e movimentos dos

átomos e nas mais diversas engenharias, sempre com o sentido de “disposição”, “constituição”

e “organização”.

Em filosofia, o termo pode ter diversos sentidos, mas há especial destaque entre os

filósofos do empirismo lógico, no enunciado de suas teorias. A expressão “a estrutura das

teorias científicas” é frequente na literatura desse movimento.

Ao utilizar o termo “estrutura” no título de seu livro, Kuhn parece estar se

comprometendo com a construção de uma nova definição para o uso do termo em relação à

atividade científica. Como uma tentativa de redefinir o uso corriqueiro da expressão, “estrutura”

agora é empregado numa análise que criticará a concepção de que o fazer científico se desdobra

num ambiente completamente neutro, o que confere ao termo um sentido menos impositivo em

relação ao funcionamento da ciência.

A Estrutura é, assim, um livro de história e filosofia da ciência, não um manual de como

a ciência deveria funcionar. Tal concepção estará clara para o leitor que se propuser a fazer a

leitura do livro de Kuhn, pois a compreensão descrita em suas páginas tende a explicar como a

ciência tem funcionado e não como ela deveria funcionar, o que, por si só, já implica em uma

grande mudança de visão em relação à tradição da filosofia da ciência entre Guerras.

A tentativa de superar as descrições comumente utilizadas para o processo de

desenvolvimento da atividade científica, proposta por Kuhn, pode ser compreendida como um

“giro historicista” da filosofia da ciência (ECHEVERRÍA, 1997: 7), no qual os elementos

históricos da ciência são tratados como fundamentais para o entendimento de seu

funcionamento.

Esse giro representa uma ruptura com o contexto de sua época, pois ao apresentar o

desenvolvimento da ciência como um processo que pressupõe “revoluções científicas”, Kuhn

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enuncia sua proposta de romper com a tradição positivista, também denominada de “filosofia

empirista do conhecimento científico4”. Segundo esta tradição:

está fora de discussão que a ciência progride sem cessar, entendendo-se o

progresso científico como um avanço ininterrupto em direção a uma

compreensão cada vez melhor da realidade. A ciência não é apenas verdadeira

– em contraposição a outros pretensos saberes que são falsos – senão que os

resultados da ciência são cada vez mais verdadeiros, no sentido de serem

paulatinamente mais adequados à realidade, seja por extensão, seja por

aprofundamento, seja por crítica de resultados anteriores (CUPANI, 1985: 67).

A produção de Kuhn teve um brilhante início e causou grande impacto com a publicação

de A revolução copernicana, em 1957. Nesse livro, discute-se a transição da cosmovisão

provocada pelas descobertas científicas do século XVII. É por meio dessa discussão que ele

apresenta alguns conceitos que mais tarde serão discutidos na Estrutura.

Embora haja alguma originalidade nas discussões provocadas por Kuhn em 1962, é

verdade que a iniciativa de se contrapor ao positivismo lógico já havia sido lograda. Como

indica Rorty,

Escritores como Michael Polanyi, Imre Lakatos, Stephen Toulmin, Paul

Feyerabend e Norwood Russel Hanson tinham começado a desafiar a imagem

da investigação científica que havia sido esboçada por Rudolph Carnap, Karl

Popper, Carl Hempel e outros associados ao positivismo lógico (RORTY, 2000:

203).

A influência de Kuhn no período pós-publicação da Estrutura se deu em virtude da

análise feita ali. Segundo tal análise, a ciência acontece por processos de ruptura – indicado na

ideia de revolução – e não por acumulação5, como defendido de forma vigorosa pela tradição

que lhe foi anterior.

Com respeito a essa ideia – desenvolvimento por processos de ruptura – não há um

elemento totalmente original nas ideias de Kuhn, pois se aproxima das teses de Koyré, na

4 Ou “positivismo lógico”, ou ainda “empirismo lógico”, levando em conta que cada uma das denominações possui

certas particularidades. Mas entre elas, é comum a rejeição das especulações metafísicas e a insistência de um

empirismo epistemológico. Dentre os diversos aspectos do positivismo lógico, a principal contra argumentação de

Kuhn se dá em direção à ideia de conhecimento por acumulação e a possibilidade de conhecimento empírico

irrevogável. 5 Voltarei a discutir de forma mais extensa sobre esta temática no capítulo 2, item 2.3.1 “Desenvolvimento

científico”.

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medida em que este “considerava que a ciência não evoluía de modo contínuo, mas via sua

história cindida por rupturas no plano conceitual” (SHINN & RAGOUET, 2008: 48). De fato,

na Introdução da Estrutura, Kuhn indica a influência recebida de Koyré em suas ideias (KUHN,

1992: 22). O caráter inovador da contribuição dada por Kuhn subjaz na defesa de que o

relacionamento dos membros em uma comunidade científica tem papel fundamental no

desenvolvimento da ciência.

Além disso, a crítica radical à possibilidade de uma “neutralidade científica”, defendida

pelo positivismo lógico, encontrou na Estrutura um contraponto à altura. Por isso, “seu repúdio

radical e profundo à ideia de tal lógica e de uma linguagem observacional neutra, fez da

Estrutura um dos mais lidos e influentes trabalhos de filosofia escrito em inglês, desde a

Segunda Guerra Mundial” (RORTY, 2000: 204).

Segundo a visão kuhniana, a ciência se desenvolve no seio de comunidades que definem

o trabalho científico numa constante ampliação de um paradigma. Esse trabalho, que congrega

diferentes pessoas, por vezes com opiniões também diferentes, não poderia ser considerado

como completamente neutro, pois o processo de escolhas entre teorias deve levar em

consideração aspectos subjetivos, como a formação acadêmica do cientista e as considerações

comuns da comunidade na qual ele está inserido.

Ao propor a existência de aspectos subjetivos na produção científica – espaço concebido

majoritariamente como “hermético” e isolado de influências externas – o livro de 1962 passou

a aglutinar, ao longo da segunda metade do século XX, defensores e opositores, reservando a

alguns capítulos da história da filosofia da ciência constantes debates que levam em

consideração – para defender ou refutar – conceitos contidos em suas páginas6.

Nas páginas da Estrutura, encontram-se diversas inovações em relação à abordagem

dos problemas da ciência. Talvez a principal constatação tenha sido a observação de uma

dimensão social do trabalho científico: o cientista desenvolve seu trabalho de pesquisa no seio

de comunidades.

Tais comunidades compartilham um paradigma que orienta as práticas comuns do

grupo. As escolhas que são feitas no processo de desenvolvimento de ideias (conclusões acerca

de observações, etc.) são o resultado direto dessas escolhas. A comunidade, ao trabalhar com o

6 Exemplo do contexto que foi gerado pela publicação da Estrutura, o International Colloquium in the Philosophy

of Science, Londres, 1965, colocou em discussão as questões suscitadas por Kuhn na Estrutura. O resultado dessa

discussão foi publicado posteriormente por Imre Lakatos e Alan Musgrave, sob o título Criticism and the Growth

of Knowledge (1970).

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paradigma por meio de escolhas, estabelece em sua prática critérios para orientar a pesquisa,

num constante processo de promover as ideias consensuais e refutar os dissensos. Esse processo

de escolha, que está, obviamente, amparado em metodologias fundamentadas e orientadas

segundo os critérios racionais e objetivos compartilhados pela comunidade, também deve ser

analisado segundo sua dimensão social.

A ideia de comunidade, em relação à de revolução, remonta ao aspecto sociológico da

análise presente na Estrutura. Mas a filosofia de Kuhn não deve ser tratada como um conjunto

de termos emprestados das teorias políticas e econômicas do marxismo, pois, independente

destas, na transição de teorias por intermédio de uma revolução científica, há que se considerar

o aspecto político (MENDONÇA, 2012: 542).

Ao empregar o termo “revolução” em sua descrição acerca do desenvolvimento da

ciência, Kuhn adquiriu para sua perspectiva um grande problema de ordem conceitual. O termo

“revolução” tem sido indiscriminadamente utilizado, ao longo da história recente, como a

caracterização de um desencadeamento socioeconômico que deveria culminar com uma grande

transformação social (MARX, 1973: 28), o que deveria se dar em virtude de uma “luta de

classes” (QUINTANEIRO, 1996: 81). Embora as definições de “revolução” e “luta de classes”

nas acepções aqui apresentadas e na história recente como um todo sejam pouco precisas,

marcam um caráter puramente ideológico e político dos termos que lhes são subjacentes7.

A utilização do termo “revolução” na Estrutura pode permitir – para o leitor mais

inexperiente – a sugestão de alguma identificação da perspectiva kuhniana de desenvolvimento

da ciência como afim às teorias políticas dos integrantes da tradição marxista. Tal leitura

tenderia para a aceitação de uma dimensão “puramente ideológica” da empreitada científica.

Esse tipo de aproximação deve ser desconsiderado com uma leitura mais apurada, tendo em

vista que isso não pode ser sustentado com base nas questões tratadas na Estrutura8, tampouco

no conjunto da obra de Kuhn.

7 Entendo aqui como “caráter puramente ideológico” uma empreitada política que possui a única finalidade de

propor uma mudança social, pois parte do pressuposto que há uma constante luta de interesses entre classes sociais

distintas. As construções científicas não devem ser consideradas por meio destes aspectos, pois, segundo Rorty,

“os cientistas naturais têm sido frequentemente exemplares conspícuos de certas virtudes morais. Os cientistas são

merecidamente famosos por apoiarem-se antes na persuasão do que na força, pela (relativa) incorruptibilidade,

pela paciência e caráter razoável” (apud MENDONÇA, 2012: 542). A ciência se desenvolve independentemente

de possíveis relações com “causas sociais” e a análise de Kuhn não parece ir em sentido contrário a este

entendimento. 8 Defendo que há no modelo kuhniano a aceitação de uma dimensão política na produção cientifica, entretanto, a

imagem de desenvolvimento científico que pode ser atribuída à ideia de “revolução científica” não deverá ser

considerada conforme a imagem tipicamente sociológica. Outrossim, a dimensão política que pode ser suscitada

na leitura da Estrutura, consiste no embate de ideias rivais, comuns no espaço de argumentação científica, mas

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Embora não haja uma identificação direta com uma natureza ideológica, o emprego do

termo “revolução” foi bastante caro para Kuhn. Se o termo escolhido para denominar o período

de transição de paradigmas tivesse sido outro, o caminho teria sido menos tortuoso durante o

período pós-Estrutura. Entretanto, se Kuhn houvesse escolhido outro termo, talvez suas ideias

sobre o desenvolvimento da ciência não existisse de forma tão singular, outrossim, nos pouparia

de confusões a esse respeito. Parece-me que a definição de “revolução” na Estrutura deve ser

considerada de maneira mais conservadora e menos ideológica, pois serve unicamente de

definição para os processos de mudança paradigmática, embora também não esteja tão

claramente colocada.

Não há como dissociar o modelo de Kuhn de uma descrição que apresenta os

desdobramentos científicos como intrinsecamente relacionados ao desenvolvimento das

comunidades que são agrupadas por um paradigma. Essa junção é a questão central do modelo

proposto por Kuhn e é o aspecto que considero mais característico em suas explicações

filosóficas. Para pensar a estrutura do desenvolvimento científico com base na Estrutura, é

necessária a análise a partir da relação entre paradigma e comunidade.

Os debates suscitados pela abordagem de Kuhn tem sido bastante profícuos desde suas

colocações, porém, conforme Mendonça, em relação à Estrutura,

O êxito editorial e acadêmico dessa obra impôs-lhe (...) um preço a pagar. No

âmbito da filosofia, Kuhn não produziu praticamente nada de novo desde então,

uma vez que se sentiu obrigado a dispender grande parte de seu tempo tentando,

por um lado, amainar as críticas que lhe foram endereçadas e, por outro lado,

rechaçar grande parte das recepções laudatórias. Para ser mais correto, Kuhn

reformulou alguns pontos de sua explanação original, alterando a forma de

argumentação, mas sem deixar de tratar e de defender suas velhas teses. Sendo

assim, não é muito difícil inteirar-se do seu pensamento filosófico acerca da

ciência, pelo menos no que tange aos problemas aqui em questão; embora tais

problemas em si, ainda que poucos, levem-nos a enveredar por caminhos

bastante espinhosos (MENDONÇA, 2012: 535-536).

Como bem asseverado na citação anterior, os caminhos trilhados na Estrutura não são

dos mais simples de discutir. A postura de Kuhn em relação aos seus críticos e defensores se

revelou como um capítulo à parte e requer atenção especial (OLIVEIRA, 2004: 74). Decerto a

não numa orientação voltada à mudança de consciência humana ou estrutural da economia, assim como defendido

pela ideologia marxista.

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questão política colocada na Estrutura é uma dessas questões que requer atenção especial.

Segundo Mendonça, ela não foi bem aceita pela comunidade contemporânea de Kuhn, pois

como os filósofos analíticos da ciência poderiam admitir que o seu objeto de

estudo fosse igualado à política e à religião, esferas tidas como do domínio da

decisão e da crença respectivamente, e não da evidência e/ou da demonstração

(peculiaridades do conhecimento científico)? (MENDONÇA, 2012: 542).

Na formulação e proposição de um paradigma, o consenso deve se fazer presente como

elemento da discussão. Não é necessário que haja unanimidade, mas um entendimento geral de

que um conjunto de explicações e regras metodológicas é melhor e mais apropriado do que

outro serve como um seguro de que a comunidade está bem direcionada. Levando em

consideração a imaturidade dos concorrentes à paradigma, é necessário que haja certo poder de

convencimento entre seus defensores, repousando na escolha do paradigma elementos mais

políticos e menos racionais, pois, afirma Kuhn,

Na escolha de um paradigma – como nas revoluções políticas – não existe

critério superior ao consentimento da comunidade relevante. Para descobrir

como as revoluções científicas são produzidas, teremos, portanto, que examinar

não apenas o impacto da natureza e da Lógica, mas igualmente as técnicas de

argumentação persuasiva que são eficazes no interior dos grupos muito

especiais que constituem a comunidade dos cientistas (KUHN, 1992: 128).

Me parece claro que há uma utilização política na ideia de “revolução científica”9,

embora não esteja explícita a relação mantida com o paradigma na citação em tela. No entanto,

há que se considerar a relação indireta estabelecida, pois, considerando que o resultado direto

de uma revolução científica é a eleição de um novo paradigma, há na escolha desse novo

paradigma uma implicação política.

Na sequência, analisarei a contraposição de ideias empreendida por Kuhn à concepção

herdada da ciência.

9 Muito embora não esteja relacionada diretamente à acepção usual do termo, comum entre alguns membros da

tradição filosófica e sociológica, como já indiquei.

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1.3. KUHN E A CONCEPÇÃO HERDADA SOBRE AS TEORIAS CIENTÍFICAS

Por “concepção herdada”, entende-se a concepção acerca da ciência proveniente do

Círculo de Viena (PALMA, 1998: 54), bem como sua influência, comumente chamada de

“positivismo lógico” (SUPPE, 1979: 21)10. Esta concepção filosófica

define taxativamente a ciência, sujeita a especulação à observação e ao

experimento, [que] faz da ciência o principal motor do progresso humano, etc.

Ela se aproxima, ademais, do Neopositivismo, ao privilegiar o modelo das

ciências naturais, ao defender a unidade metodológica da pesquisa, ao

propender para uma linguagem científica única (CUPANI, 1985: 13).

Delimitar exatamente os limites do positivismo lógico, por meio de uma definição

completa e fidedigna, não é uma tarefa fácil. Alguns dos filósofos que costumeiramente são

reconhecidos como participantes dessa linha de pensamento por vezes discordaram da filiação

que lhes foi atribuída, manifestando-se contrários tanto à filiação quanto às definições sobre o

que seria “positivismo lógico”. Mas, que escolha tenho eu a não ser propor uma caracterização

possível?

A compreensão denominada de “concepção herdada” foi comum entre os filósofos

anglo-americanos do pós Segunda Guerra. Essa visão também pode ser definida como a crença

de que “as teorias científicas são construídas e fundamentadas a partir dos dados sensoriais

imediatos. Os sentidos são a base irrevogável do conhecimento científico legítimo” (HANDS,

2003: 169).

De forma geral, o positivismo lógico pode ser compreendido como uma forma

específica de conceber o conhecimento empírico, o qual é construído por meio de uma

metodologia científica que procura eliminar qualquer traço de subjetividade.

Essa metodologia científica pretendia solucionar qualquer tipo de problema na

resolução de questões empíricas, pautando-se por critérios de objetividade e racionalidade. Por

conta desses critérios, a metodologia científica deveria ser alçada a todas as formas de

construção de conhecimento, restando apenas à ciência o estatuto de conhecimento válido. Para

10 Sobre a chamada “concepção herdada”, Suppe (1979) nos fornece diversas explicações pertinentes, as quais

apontam que a “concepção herdada” deve ser compreendida como fruto do positivismo lógico. Em seu livro, ele

discute de forma bastante profunda os caminhos percorridos pela filosofia alemã a partir da segunda metade do

século XIX, desembocando no positivismo lógico, bem como muitas das possíveis acepções de “concepção

herdada” e seu desenvolvimento histórico. Quanto a esta Dissertação, pretendo apenas uma noção geral para

embasar as discussões propostas por Kuhn em seu contexto histórico.

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tanto, a ciência deve desprezar qualquer vinculação não objetiva com a realidade, empenhando-

se na direção das chamadas “ciências duras”, em especial a Física, como padrão a ser seguido.

A noção de “concepção herdada” congrega também a linha de pensamento chamada de

“empirismo lógico”. O principal fundamento do empirismo lógico “é a ideia de que todo

conhecimento científico repousa sobre a evidência empírica” (SALMON, 2000: 233), o que

demonstra que há relação com os aspectos defendidos pelos positivistas lógicos.

O empirismo lógico é, por vezes, confundido com o positivismo lógico. Fato

compreensível, uma vez que defendem ideias comuns. Tentar distinguir estas escolas seria atrair

a esta Dissertação uma dificuldade adicional que me furtarei neste momento11. Acredito que

demonstrar o que elas possuem em comum, além de ser uma tarefa mais fácil, será também

mais interessante para o caminho que estou tentando seguir. Tal demonstração se concentra nas

ideias que foram alvo de superação na Estrutura.

Em ambos os casos – empirismo e positivismo lógico – há uma junção entre “evidência

empírica” e “lógica”. A evidência empírica é aquilo que se apresenta aos sentidos e serve como

conexão entre o cientista e a pesquisa que ele desenvolve com base nas observações. Nesse

caso, a principal forma de desenvolver uma teoria seria por meio da relação empírica

estabelecida na observação e o peso recai sobre este aspecto, pois “evidência” será equivalente

à constatação empírica.

Para garantir que a constatação empírica seja considerada correta, a concepção herdada

considera que a lógica serve a um propósito bastante importante. Ficam a cargo da lógica os

processos de indução e dedução das teorias desenvolvidas com base nas constatações empíricas.

Os sentidos, portanto, deveriam estar corroborados pela lógica de tal forma que esta lhes

garantisse o sucesso da empreitada científica. Contudo, a garantia pretendida com o uso da

lógica desafia a percepção como garantidora da análise, pois em um processo de indução, o

caráter universal de uma teoria é pretendido sem que se leve em consideração o “todo”, mas,

pelo contrário, utiliza-se apenas de uma amostragem.

A utilização do termo “constatação” conforme o empirismo lógico parece ser bastante

complexa e problemática. “Constatar” significaria determinar que uma coisa é exatamente

conforme a descrição que está sendo dada. Ao analisar a ideia de constatação por meio da noção

de paradigma, a descrição dada ao objeto passa para um campo distinto do anterior, pois a

11 Compreendo que a distinção entre estas duas perspectivas não é fundamental para esta Dissertação. Na sequência

aponto o que elas compartilham, contribuindo para a análise das questões que motivaram Kuhn a construir um

contraponto.

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descrição agora é validada por meio de consensos do grupo aglutinado pelo paradigma.

Segundo o modelo kuhniano, nas ciências amadurecidas os fenômenos têm sido explicados

dessa forma, ainda que não haja uma plena consciência deste aspecto entre os membros do

grupo.

Com respeito à possibilidade de conhecer de forma objetiva por meio de um “empirismo

epistemológico”, Kuhn afirma que “a escolha entre teorias científicas depende de considerações

que vão além da observação e da lógica, mesmo quando a lógica é interpretada de forma a

incluir a confirmação” (SALMON, 2000: 233).

Isso equivale a dizer que o caráter objetivo consiste em seguir o direcionamento de um

paradigma, ao passo que o caminho percorrido por um grupo na escolha de um paradigma pode

ser distinto de outros. A construção de um paradigma não deve ser considerada como arbitrária,

mas há que se perceber uma dimensão subjetiva nos processos de escolha, que levam em

consideração a produção histórica e os valores que são compartilhados pelos membros de uma

comunidade científica.

Para a concepção herdada, a ciência é tomada como empreendimento completamente

objetivo. Não se considera que o empreendimento científico possa sofrer algum tipo de

influência externa. O empreendimento científico é considerado como estando ligado apenas aos

padrões metodológicos, os quais são aperfeiçoados ao longo do tempo e são considerados como

seguros na sustentação das conclusões que deles possam ser consideradas12. Dessa maneira, o

empreendimento científico seria objetivo.

Sobre a noção de objetividade da ciência, devemos considerar que

é possível porque a pesquisa supõe sempre procedimentos definidos, de

comprovada eficácia, para se atingir o conhecimento almejado. A ciência é

metódica, e isto num duplo sentido. Por um lado, porque existe um método geral

da ciência, uma maneira de proceder que caracteriza uma pesquisa como

“científica” independentemente do tema. Por outro lado, porque cada etapa de

uma pesquisa, e de acordo com a natureza do tema, exige diferentes técnicas

que dizem respeito à identificação dos problemas, à sua adequada formulação e

resolução, e à avaliação do resultado obtido (CUPANI, 1985: 15).

Quanto aos aspectos da ciência descritos na citação anterior, Kuhn discordará da

possibilidade de existir alguma definição que possa ser tomada como “cabal” ou “incorrigível”,

12 Abordarei de forma mais ampla a relação entre “alargamento da ciência” e “ciência normal” na sequência, mais

especificamente no segundo capítulo, seção 2.2.2. Ciência normal.

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pois o conhecimento científico está sendo constantemente alterado. Estas alterações são

resultantes do trabalho de forçar constantemente o paradigma em direção de seu alargamento13

por meio de pesquisas que corrigem anomalias.

A correção de anomalias desemboca na construção de novas definições, o que impediria

a consideração de que as definições fornecidas pela ciência são objetivas conforme o que até

então se compreendia por “objetividade”. No contexto da concepção herdada, “objetivo” seria

todo o trabalho científico que se utiliza de uma metodologia que elimine a subjetividade

metafísica e valide, segundo os princípios lógicos para induzir e confirmar, o conhecimento

produzido. Seguindo esse princípio, a máxima positivista acredita que o resultado seria sempre

uma conclusão válida.

De forma geral, as questões tratadas na Estrutura indicam que a objetividade da ciência

baseia-se no fato de ser regulada por um paradigma. A objetividade consistiria em seguir de

forma adequada o paradigma. A grande mudança introduzida pelo modelo de Kuhn em relação

à concepção herdada é o fato de que a escolha de um paradigma se dá em virtude de questões

não objetivas, como a política.

Segundo a perspectiva kuhniana, não é possível a escolha de uma metodologia que seja

capaz de suprimir totalmente elementos subjetivos, incorporados nos processos de escolhas, nas

discussões sobre valores, na ética da pesquisa científica etc., comuns no desenvolvimento da

ciência. A concepção herdada, por sua vez, aponta como sendo possível a subtração dos

elementos subjetivos da produção científica uma vez que as disciplinas científicas adotem um

padrão de objetividade.

Não estou dizendo que não há possibilidade de conhecimento, segundo o modelo

kuhniano. Mas, considero que na Estrutura, conhecimento equivale ao resultado do consenso

de um grupo em relação às conclusões provenientes de uma observação. É difícil sustentar a

noção de objetividade da concepção herdada no modelo de Kuhn. Mas não estou defendendo

que não haja objetividade no modelo kuhniano. Há, mas deve ser compreendida dentro de sua

especificidade, conforme o que procurei descrever até então.

Para a concepção herdada, a produção científica pode ser neutra, ou seja, existe a

possibilidade de que as conclusões oriundas do trabalho de investigação sejam resultantes

13 Tendo em vista que “um paradigma pode ser muito limitado, tanto no âmbito como na precisão, quando de sua

primeira aparição” (KUHN, 1992: 44), considero que há no período de ciência normal – período o qual identifico

como posterior ao de revolução científica – uma ampliação das possibilidades do paradigma, o que aqui e alhures

também chamo de “alargamento do paradigma”.

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diretas das observações, sem a influência de condicionantes internos ou externos. Isso equivale

a dizer que se o rigor científico for empreendido, ou seja, se a metodologia aplicada no exame

de algum fenômeno for suficientemente clara e objetiva, haverá neutralidade da produção

científica. A aplicação correta do método cientifico pressupõe que este seja neutro em relação

aos condicionantes externos, como os fenômenos sociais e políticos, bem como questões

psicológicas, que são condicionantes internos.

Para Kuhn, os padrões fornecidos pelo paradigma pressupõem objetividade na escolha

e na eleição pelos membros da comunidade científica, o que implica dizer que o trabalho

científico possui sua própria lógica. Apesar disso, normatizar o trabalho de pesquisa científica

– como proposto pela concepção herdada – pode gerar incongruências, tendo em vista que, sob

uma norma corretamente estabelecida, o conhecimento científico deveria estar num constante

processo de acumulação (Cf. LAUDAN, 2011: 205).

Esta suposição – de que o conhecimento está em constante crescimento – é abalada pela

compreensão de paradigma, pois neste modelo há a supressão de ideias anteriores toda vez que

um paradigma se torna hegemônico. Não há acúmulo, pois as novas teorias desenvolvidas no

seio de um novo paradigma não precisam resolver todas as questões postas anteriormente. Tais

definições implicaram na necessidade de redefinir a ideia de desenvolvimento científico,

trabalho que persiste ainda em nossos dias.

1.4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Numa tentativa de explorar a proximidade entre o modelo de Kuhn e as concepções do

positivismo lógico, é possível perceber certa correlações entre elas, como, por exemplo, a

compreensão de que haja um conjunto metodológico que guia a atividade científica. Contudo,

meu objetivo com este capítulo não foi esse, motivo pelo qual não trato diretamente dessa

relação. Procurei somente explorar o que considero de maior distanciamento entre o modelo de

Kuhn e a concepção herdada. Embora as concepções kuhnianas não possam ser tomadas como

completamente esclarecedoras, em relação às outras, a ruptura é perceptível.

A ruptura com o modelo que, sobretudo, fundamentava a concepção cumulativa do

desenvolvimento científico, nomeado de concepção herdada, proposta com a noção de

paradigma é uma marca fundamental da filosofia de Kuhn. Na proposta kuhniana, a ciência é

considerada a partir de uma dinâmica metodológica racional e objetiva, que é influenciada pelas

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relações interpessoais. As implicações dessa maneira de perceber a dinâmica científica afetam

diretamente o conceito de objetividade e neutralidade, comuns da concepção herdada, forçando

uma nova abordagem do trabalho científico.

Na ruptura empreendida por Kuhn observa-se ainda o distanciamento da ideia de que

conhecimento científico é completamente objetivo, segundo a compreensão positivista da ideia

de objetividade. Pelo contrário, Kuhn propõe uma análise do desenvolvimento da ciência que

leve em consideração aspectos políticos e sociais, imprimindo uma reanálise do conceito de

objetividade na produção científica.

Considere-se ainda o fato de que os estudos históricos empreendidos por Kuhn

demonstraram que nenhuma construção científica poderia ser considerada como sendo

assentada incorrigivelmente sob uma base empírica (HANDS, 2003: 170). Embora as

construções científicas estivessem pautadas na observação, a análise proposta pela tradição

filosófica era contingente, pois não levava em consideração os aspectos sociais elencados por

Kuhn por meio de sua ideia de paradigma. Tais elementos sociais são demonstrados por Kuhn

como influência sistemática nas construções científicas.

Por meio de tais aspectos, posso concluir, desde já, que a Estrutura representa uma

ruptura direta com a concepção herdada, pois mostrou a limitação da análise positivista da

ciência, propondo uma análise histórica que leva em consideração a noção de paradigma.

Embora alguns teóricos possam demonstrar traços comuns entre a filosofia positivistas e a

filosofia kuhniana14, é verdade que esta não está diretamente relacionada àquela, pois Kuhn

procurou estabelecer uma nova maneira de analisar a construção científica.

Kuhn minou o conceito de uma base empírica incorrigível. Os estudos históricos

empreendidos por Kuhn demonstraram que nenhum evento científico esteve relacionado a

qualquer base empírica incorrigível (HANDS, 2003: 170). As construções científicas, embora

estivessem pautadas pelos princípios empíricos de observação, também eram contingentes, pois

desprezavam sistematicamente os aspectos sociais que influenciavam diretamente as teorias

científicas. A mesma análise histórica empreendida mostrou que pouco a pouco as proposições

científicas mais bem embasadas e construídas tiveram seus momentos de revisão e derrocada,

demonstrando certa incapacidade da ciência em construir um conhecimento irrefutável.

14 Como, por exemplo, a relação entre a filosofia de Carnap e Kuhn, apontadas por George Reisch (Cf.

FRIEDMAN, 2003: 19).

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Sem dúvida podemos falar de um legado kuhniano que, embora acusado algumas vezes

de irracionalista, contribuiu decisivamente para a visão de ciência que temos hoje e para as

discussões da filosofia analítica pós-positivista (Cf. RORTY, 2000: 204). A ideia positivista de

tomar as ciências “duras” – em especial a física – como modelo para as outras disciplinas

científicas foi aos poucos cedendo lugar para uma análise menos “dura” e mais “política”.

É importante notar que a perspectiva de Kuhn se direciona a considerar como elemento

principal as relações estabelecidas no seio de uma comunidade, a formação do cientista e

também os processos de escolhas envolvidos nas definições de novas teorias. A observação

direta e a análise algorítmica não poderiam, segundo a perspectiva kuhniana, dar conta da

dimensão social da produção científica, a qual, conforme essa mesma perspectiva, é

determinante na construção do conhecimento científico tido como válido.

A diferença qualitativa do modelo de Kuhn, em relação à concepção herdada, consiste

em considerar os aspectos que foram julgados como “subjetivos” pela tradição e, por isso,

descritos como metafísicos e, consequentemente, rejeitados. Kuhn aponta que tais elementos

devem ser considerados como importantes, pois são eles que guiam a atividade científica e

determinam o que virá a ser considerado como objetivo.

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2. O MODELO DE CIÊNCIA PROPOSTO POR

KUHN NA ESTRUTURA

2.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Existem diversas questões que têm sido discutidas com base nos problemas advindos

das ideias expostas por Kuhn em sua Estrutura. Muitas dessas questões têm recebido enfoques

bastante diversos, havendo registros da utilização da ideia de paradigma, por exemplo, em áreas

bastante diversas, como na enfermagem e na administração15.

A relevância das contribuições dadas por Kuhn na discussão de algumas ideias não está

refletida somente na vasta utilização de termos de seu vocabulário pela tradição posterior ou na

ampliação das citações de sua obra, mas porque ele tratou de forma objetiva aspectos do

desenvolvimento da ciência, como a relação entre paradigmas e comunidades científicas.

Por conta de suas contribuições nas discussões referentes à história e filosofia da ciência,

Kuhn é considerado como importante autor da história da filosofia da ciência. Além disso, a

noção de paradigma representa uma contribuição extremamente genuína às discussões sobre

ciência do século XX.

Em meio a tantas considerações sobre aspectos tão diversos da obra de Kuhn, o objetivo

desde capítulo é discorrer somente sobre as questões que considero fundamentais para elucidar

o modelo de desenvolvimento científico que consta na Estrutura.

Embora algumas das ideias expostas na Estrutura possam ser tomadas como obsoletas

e/ou incorretas, dada a diversidade de modelos e pressupostos sobre o desenvolvimento da

ciência16, seu caráter explicativo da atividade científica por meio do desenvolvimento de

comunidades foi bastante pertinente para as discussões filosóficas contemporâneas e suscita

ainda muitas discussões na atualidade. Este capítulo discutirá o modelo de Kuhn por meio da

relação entre comunidade científica e paradigma.

15 No site www.periodicos.capes.gov.br, portal de referência para publicações de artigos acadêmicos no Brasil, em

uma busca com o termo “paradigma” foi possível observar mais de 16.000 resultados. 16 Segundo Laudan, “Desde a publicação do Esboço de um quadro histórico do progresso do espírito humana, de

Condorcet, muitos filósofos e historiadores da ciência desenvolveram, pelo menos como esboço, teorias do

progresso cognitivo. De Whewell, Peirce e Duhem até Collingwood, Popper, Reichenbach, Lakatos, Stregmüller

e Kuhn, a busca de modelos adequados de progresso cognitivo tem sido, se não banal, pelo menos não rara”

(LAUDAN, 2011: 205).

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Explicitarei na sequência os conceitos-chave do modelo kuhniano, fundamentais para a

compreensão de como ele funciona.

2.2. CONCEITOS-CHAVE DO MODELO KUHNIANO

A seguir, estão elencadas as principais características do programa empreendido por

Kuhn, segundo os conceitos-chave desenvolvidos na Estrutura. Por uma questão expositiva,

optei por tratar de forma individual cada termo chave que considero parte do modelo de Kuhn.

Ainda que esteja organizado dessa forma, me permitirei fazer inter-relações entre os conceitos

sempre que considerar pertinente.

2.2.1. Paradigma

No seu uso estabelecido, um paradigma é um modelo ou padrão aceitos. Este

aspecto de seu significado permitiu-me, na falta de termo melhor, servir-me dele

aqui. Mas dentro em pouco ficará claro que o sentido “modelo” ou “padrão”

não é o mesmo que o habitualmente empregado na definição de “paradigma”

(KUHN, 1992: 43-44).

O programa defendido por Thomas S. Kuhn apresenta a ciência como uma atividade

pautada no consenso de comunidades, que se desenvolvem juntamente com “um paradigma”

através de períodos de estabilidade e instabilidade.17 Em sua produção, Kuhn desconsidera a

possibilidade de um caráter cumulativo da produção científica e forja de forma apropriada um

novo entendimento a respeito da ciência, centralizado em sua noção de “paradigma”. Segundo

esse entendimento, a ciência se desenrola por processos de ruptura, os quais Kuhn chama de

“revoluções científicas” (KUHN, 1992).

A noção de paradigma foi inicialmente desenvolvida quando da publicação de The

Structure of Scientific Revolutions (1962), mas já desde The Copernican Revolution (1957) as

17É importante, desde já, definir os termos “estabilidade” e “instabilidade”, os quais são imprescindíveis para a

compreensão dos momentos da ciência segundo o modelo em análise. Entenda-se por “estabilidade” o período no

qual a ciência é guiada por um paradigma e este não está ameaçado por um conjunto de anomalias, ou seja, durante

um período no qual não há crises que possam prejudicar o caráter estável do paradigma. Um período de

“instabilidade” pode ser identificado como aquele no qual o paradigma está sofrendo consequências graves por

conta de um acúmulo de anomalias, o que faz com que ele seja repensado, podendo, provavelmente, ser substituído

por outro. Estes dois termos estarão mais claros ao longo deste capítulo.

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ideias sobre mudança científica de Kuhn vem sendo desenvolvidas. Neste último livro, a

discussão permanece sobretudo no âmbito histórico (BIRD, 2000: 29), ao passo que no

segundo, um modelo de desenvolvimento da ciência é considerado de forma direta. Essa noção

é central no modelo de desenvolvimento da ciência proposto por Kuhn e serviu de contribuição

significativa para as discussões dos problemas comuns à filosofia da ciência de seu contexto

histórico.

Segundo o modelo, observam-se períodos distintos ao longo do desenvolvimento da

ciência, os quais são complementares e possuem especificidade quanto ao que representam no

desenvolvimento científico. Na figura a seguir, apresento o desenvolvimento da ciência ao

longo dos períodos previstos na Estrutura.

FIGURA 2.1 – Períodos do desenvolvimento da ciência

O esquema apresentado anteriormente mostra os períodos do desenrolar da ciência

segundo o modelo de Kuhn. Cada período enumerado pode ser melhor compreendido da

seguinte forma:

a) Período de estabilidade – é caracterizado pela ciência normal; durante este período, não se

busca a descoberta de novos elementos – embora isso possa ocorrer – pois volta-se para o

paradigma que gerou a estabilidade, quando de sua eleição. A estabilidade é alcançada porque

o paradigma fornece o direcionamento da pesquisa e as expectativas que a comunidade

científica deve esperar.

b) Crise – gerada a partir de problemas residuais que o paradigma não conseguiu resolver. Ou

seja, quando a expectativa fornecida pelo paradigma é frustrada, ele passa a ser considerado

como inapropriado, o que contribui para um estado de crise, no qual procura-se uma nova

perspectiva para solucionar os problemas. Essa busca culmina no próximo estágio.

Período de estabilidade

Crise RevoluçãoEleição de um

novo paradigma

Períodos do desenvolvimento da ciência

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c) Revolução – resultante de uma crise que não foi estabilizada, acontece quando novos

candidatos a paradigma surgem na esperança de resolver os problemas residuais que não foram

resolvidos pelo paradigma vigente; o processo revolucionário desemboca na eleição de um novo

paradigma.

d) Eleição de um novo paradigma – instaura um novo momento de estabilidade, pois elege um

novo paradigma que é acompanhado de novas perspectivas na resolução dos problemas do

paradigma anterior.

Os períodos do desenvolvimento apresentam uma espécie de desenrolar da ciência no

qual o pano de fundo é a capacidade que o cientista tem em articular o paradigma. O paradigma

é a peça central no desenvolvimento da ciência.

A constante observação de fenômenos que acontecem com regularidade na natureza

permitirão aos cientistas dois propósitos. Inicialmente, a perspectiva científica visará

explicações dos mais diversos fenômenos, tentando ser o mais próximo possível de como as

coisas são. Em segundo lugar, esse trabalho acabará delimitando cada vez mais o objeto de

estudo, estabelecendo limites e definindo o que importa ser analisado18.

Esse processo, que ajuda a estabelecer um paradigma, corrobora as análises agrupadas

em disciplinas científicas, que, por sua vez, contribuirão para a determinação de comunidades.

Dessa forma, o paradigma é uma compreensão generalizada entre os membros de uma

comunidade científica, os quais passam a adotá-lo em sua prática cotidiana. Tal compreensão

engendra uma cadeia de relações tão ampla que engloba os processos metodológicos e as

perspectivas da comunidade científica.

A adoção de um paradigma se dá em virtude da necessidade que temos em responder as

questões obscuras e problemáticas com relação às observações feitas. As respostas dadas às

observações, estarão em conformidade com o paradigma que orienta as atividades científicas e,

por isso, são compreendidas como elucidativas dos fenômenos naturais.

Toda vez que algum fenômeno for observado sem que haja uma explicação plausível

para sua causa, ele será considerado como problemático. Faz-se necessário, portanto, um

elemento que permita o consenso entre indivíduos diferentes, haja vista que diversas

18 É certo que algumas “regularidades” não são passíveis de observação direta, como o alcance universal de “leis”

científicas ou as construções científicas que tomam por base a aceitação de desenvolvimentos em escalas de

milhões de anos. Ainda assim, é uma característica primordial do trabalho científico, considerar uma teoria

relevante tanto quanto ela possa ser tomada como universal. Quanto à escolha de teorias, diversos filósofos da

ciência dedicaram-se a esse ponto, sempre considerando como regra elementar a ideia de que as hipóteses mais

plausíveis serão tomadas como padrão e ponto de partida.

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explicações podem vir à tona. Este elemento deverá servir de padrão para que olhares diferentes

sobre o fenômeno possam ser traduzidos em teorias consistentes, fundamentadas e,

principalmente, compartilhadas19. Esse elemento consensual é o paradigma.

A força que um paradigma possui subsiste em sua capacidade de reunir seguidores que

o compartilham. Dessa forma, a noção de paradigma é extremamente relacionada à sua

compreensão kuhniana de comunidade científica. É a comunidade, que aceitou o paradigma,

que dá forças a ele. Obviamente, o paradigma só pode ser aceito por sua capacidade de

solucionar problemas, o que é avaliado por meio de elementos lógicos e racionais, determinados

pela comunidade em que ele se insere e sob sua influência20.

O paradigma se comporta como uma espécie de sucessor de um outro paradigma que

faliu, pois no modelo de Kuhn os paradigmas se substituem. Embora as explicações científicas

estejam continuamente se renovando, a maneira como esse quadro se desenvolve tem sido

constante desde o surgimento de ciências amadurecidas. Ou seja, o contexto que torna possível

o desdobramento de um novo paradigma é a forte crise que tornou seu antecessor incapaz de

solucionar problemas conforme surgiram anomalias. Isso mostra o caráter cíclico do

desenvolvimento das explicações científicas, e também a relação direta entre períodos estáveis

e instáveis.

No entanto, o caráter cíclico apontado, não pode ser considerado como uma roda, que

volta sempre ao mesmo lugar, motivo pelo qual a figura apontada como caracterizadora dos

períodos do desenvolvimento da ciência apresenta-se como uma linha de sucessão. Os períodos

se substituem sem que haja algo que possamos chamar acumulação, pois o paradigma é uma

“promessa de sucesso” (KUHN, 1992: 44) que surge na esperança de resolver problemas

conjunturais, indispensáveis para o avanço das explicações pretendidas.

19 Compreendendo aqui “compartilhadas” em sua acepção ampla, ou seja, algo que também é aceito. 20 A ideia de consenso sem racionalidade seria mais um argumento para os acusadores de que o modelo de Kuhn

pressupõe irracionalidade científica, ou um subjetivismo relativista. O paradigma ganha seu status por ser aceito

por uma comunidade significativamente influente no meio científico, mas isso só ocorre pelas características

racionais explícitas do paradigma, as quais permitem um grau de plausibilidade tal que garanta a expectativa do

sucesso na tentativa de explicar os fenômenos por ele abordados. No entanto, há que se considerar outra

compreensão possível. No modelo proposto por Kuhn a crença de que o paradigma pode fornecer respostas é

bastante importante. Essa crença poderia ser considerada como a fé de uma comunidade em relação ao paradigma,

o que coloca o modelo kuhniano como defensor de certo irracionalismo científico. Segundo Lakatos (apud

OLIVEIRA, 2004: 75), “se a metodologia de um historiador fornece uma reconstrução racional pobre, ele pode

ou interpretar mal a história, de tal modo que esta coincida com a reconstrução racional, ou decidir que a história

da ciência é muito irracional”. Parece-me que a perspectiva kuhniana se alinha melhor, nesse caso, com a segunda

possibilidade apontada.

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Nesse contexto, o objetivo das explicações científicas com base em um paradigma

possui certa simplicidade: estas procuram ser úteis na descrição dos fenômenos e capazes de

gerar uma compreensão de como as coisas são, resolvendo questões que colocaram o paradigma

anterior em crise, sempre objetivando a estabilidade do conhecimento científico.

Na sucessão de períodos, há um caracterizado pela estabilidade. Esse período é nomeado

por Kuhn de “ciência normal”. O trabalho do período de ciência normal pretende alargar o

paradigma eleito, segundo as expectativas geradas em seu surgimento. Trata-se de um momento

no qual a pesquisa científica está voltada para a resolução das questões que geraram a crise no

paradigma antecedente e, por conseguinte, possibilitaram conjecturas acerca da necessidade de

um novo padrão.

Como não há uma metodologia capaz de gerar teorias conclusivas sobre as coisas21,

carecemos constantemente de aceitação mútua de nossas próprias ideias. Essa circunstância está

subscrita na própria noção de “teoria”. Se entendermos por “teoria” um conjunto de

generalizações indiretamente resultantes de escolhas metodológicas do cientista, perceberemos

a possibilidade de existência de uma natureza intersubjetiva nas construções científicas.

A natureza intersubjetiva à qual me refiro relaciona-se ao processo de escolhas que o

cientista está submetido desde sua formação inicial e que, continuamente, é avaliada pela

comunidade toda vez em que uma definição é fornecida por ele. Tal definição é o resultado de

suas investigações em consonância com suas escolhas, e o processo de divulgação de tal

definição – que pode também ser compreendida como o resultado de uma investigação – a

coloca em um ambiente de julgamento; esse ambiente é necessariamente coletivo e os juízos

que dali sairão também carregarão o peso das escolhas internas dos indivíduos que estão

envolvidos em tal processo.

Ao iniciar uma pesquisa científica, o cientista disporá de diversos pressupostos. As

razões pelas quais ele prefere um em detrimento de outro pode variar entre cientistas diferentes.

Tal escolha relaciona-se ao paradigma, o que implica dizer que um paradigma diferente

ocasionará uma escolha provavelmente diferente.

Há que se considerar que ao propor a existência de certa subjetividade nas construções

científicas não estou me referindo ao encadeamento de ideias que conduzem a uma conclusão,

mas tão somente ao processo de escolhas teóricas relacionadas ao fazer cientifico quando da

21 Muito embora quando há aceitação de uma teoria isso acontece por considerar, entre outros elementos, que ela

tem alcance universal. A esse respeito Popper parece ter trazido problemas extremamente relevantes para as

discussões da filosofia da ciência (Cf. POPPER, 2005).

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aproximação que um cientista faz de um paradigma. Quanto à produção científica, por si

mesma, não pode ser considerada como subjetiva porque se dá de forma coletiva.

O empreendimento científico se dá pela substituição de períodos de estabilidade e

instabilidade em virtude do caráter falível da atividade científica. Ou seja, não há como fornecer

uma certeza última sobre o que se investiga, mas tão somente aproximações apropriadas em

relação ao consenso que há na comunidade científica agregada pelo paradigma. A força do

paradigma encontra-se também nesse elemento social, pois as explicações emanadas das

generalizações do paradigma devem ser consideradas por critérios de plausibilidade, mas

também são aceitas em virtude de critérios políticos22.

A composição de uma comunidade se dá principalmente pelos instrumentos de

divulgação científica – como manuais, conferências e exercícios de laboratório (KUHN, 1992:

67) – os quais promovem o paradigma por meio da exposição de suas perspectivas na

investigação científica. Tais instrumentos divulgam desde pesquisas iniciais até resultados

obtidos ao longo de muito tempo de investigação. Em ambos os casos, os instrumentos de

divulgação permitem que cientistas simpatizantes dos elementos emanados do paradigma se

tornem novos membros, passando a partilhar os mesmos interesses e maneiras comuns em seus

trabalhos cotidianos.

Os instrumentos mencionados permitem o compartilhamento do paradigma e a

ampliação de regras que deles são emanadas. É possível que os cientistas não enxerguem

exatamente dessa maneira, embora as regras compartilhadas norteiem o estudo e a produção

científica23.

A produção realizada – e divulgada – por meio de instrumentos de divulgação, contribui

para o sentimento de pertencimento de grupo. Esse sentimento é possível porque um paradigma

é o elemento na produção científica que fornece na prática e na teoria os elementos norteadores

da atividade científica que são compartilhados pela comunidade ao mesmo passo que são

constantemente legitimados.

Para que as teorias que são justificadas pelo processo científico se deem

satisfatoriamente, ocorre, por vezes, a especialização. Esse fenômeno consiste no

22 Por critérios políticos entenda-se que é mais fácil aceitar uma padronização proposta por uma comunidade bem

articulada, que tem empreendido teorias já aceitas, do que por uma comunidade pouco articulada, que tenha

apontado, por vezes, em direções equivocadas. Em ambos os casos os critérios de racionalidade devem ser

considerados como elementos primordiais. 23 É aceitável que existam regras metodológicas para guiar o trabalho de investigação. Ainda que as regras possam

ser questionadas, não pode haver trabalho científico completamente aleatório.

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aprofundamento em um conjunto de aspectos – ou único aspecto, dependendo do grau de

especialização – de uma ciência. No período de ciência normal, o qual discutirei na sequência,

isso acontece com bastante regularidade, pois para que as delimitações acerca do objeto sejam

tomadas com maior precisão, é inevitável que a superficialidade da pesquisa inicial seja

amenizada por meio do aprofundamento na temática, o que geralmente ocorre por meio da

especialização.

A especialização deve permitir que o cientista contribua para que a comunidade

científica perceba elementos que não foram previstos pelo escopo do paradigma. Quando esses

elementos não conseguem ser incorporados no paradigma, estamos diante de uma anomalia.

Falarei adiante sobre as anomalias, agora me aterei ao espaço capaz de causar esse tipo de

acontecimento, o qual Kuhn chama de “ciência normal”.

2.2.2. Ciência normal

No modelo kuhniano, diversos conceitos são atrelados e complementares uns aos outros,

como, por exemplo, sua ideia de ciência normal que é complementar à de paradigma. Minha

opção em iniciar a exposição dos conceitos-chave pela noção de paradigma justifica-se por ser

imprescindível para a compreensão da ideia de ciência normal. Vejamos, então, a análise desse

ponto.

Como já foi explanado anteriormente, o paradigma agrega uma comunidade científica

que em suas atividades cotidianas utiliza os consensos do grupo como princípios metodológicos

e pressupostos teóricos. Em tal contexto, o paradigma é aquilo que a comunidade compartilha,

um espaço das entidades teóricas no qual há o registro de como aquela comunidade pensa o

objeto de investigação comum.

Vejamos o caso dos climatologistas, indivíduos que estão agregados por um paradigma

bastante contemporâneo que agrega um consenso sobre a ideia de aquecimento global. O

paradigma vigente aponta que o aquecimento global estaria alterando de forma bastante rápida

o clima em todo o globo por conta de um aquecimento geral do planeta provocado pela ação

humana (COMISSÃO EUROPEIA, 2009). O consenso geral da comunidade se dá em torno

dos fenômenos climáticos que só podem, segundo eles, ser compreendidos pela ideia de que a

sociedade pós-industrial tem acelerado o processo de modificação do clima, superaquecendo o

planeta.

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No exemplo anterior – sobre as mudanças climáticas – e na forma geral de

funcionamento da ciência normal, a comunidade trabalha no sentido de alargar o paradigma

vigente. A existência de uma comunidade só é possível por haver consenso entre os membros

do grupo sobre os pontos mais basilares. Os pontos basilares emanados do paradigma

representam o entendimento da comunidade e é com base no entendimento mútuo que os

membros podem ser aglutinados em interesses comuns.

A orientação da pesquisa realizada no interior da comunidade e, principalmente, pelos

membros da comunidade, é feita pelo paradigma, que só pode ser compreendido como tal por

ter sido aceito mediante análise de seu potencial em dissolver questões obscuras, existentes

desde seu antecessor. A promessa que surge com o paradigma deve ser desenvolvida ao longo

do processo de alargamento proposto pelo período de ciência normal.

A ciência normal consiste na atualização dessa promessa, atualização que se

obtém ampliando-se o conhecimento daqueles fatos que o paradigma apresenta

como particularmente relevantes, aumentando-se a correlação entre esses fatos

e as predições do paradigma e articulando-se ainda mais o próprio paradigma

(KUHN, 1992: 44).

Os cientistas envolvidos no trabalho de atualização do paradigma acreditam que se a

“promessa de sucesso” for suficientemente bem articulada, todas as questões que colocaram o

paradigma anterior em crise poderão ser resolvidas. Para tanto, a atualização da promessa de

sucesso deve ser constante, o que só pode ocorrer se os envolvidos no trabalho de ciência normal

forem habilidosos o suficiente para perpetuar a ideia de que o paradigma é capaz de cumprir

com o seu objetivo.

O processo de atualização do paradigma está concatenado com o de alargamento da

ciência proposto durante o período de ciência normal, pois essa atualização consiste na

constante tentativa de manter o paradigma como a “promessa de sucesso” que ele representa.

Destarte, durante o período de ciência normal o paradigma terá sua “promessa de sucesso”

atualizada de forma constante, o que implicará em um “alargamento” (ou mesmo “ampliação”)

dos limites pré-estabelecidos do paradigma quando de seu surgimento.

Dos períodos destacados ao longo do desenvolvimento da ciência, o período de ciência

normal é o que tem perdurado por mais tempo, sobretudo por tratar-se de um trabalho que visa

alargar o paradigma em relação às predições quando de seu surgimento. Segundo Kuhn,

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A maioria dos cientistas, durante toda sua carreira, ocupa-se com operações de

limpeza. Elas constituem o que chamo de ciência normal. (...) esse

empreendimento parece ser uma tentativa de forçar a natureza a encaixar-se

dentro dos limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidos pelo

paradigma (KUHN, 1992: 44-45).

O período de ciência normal é agora definido por Kuhn como um “trabalho de limpeza”

(KUHN, 1992: 44)24. Como o paradigma se estabelece graças às dificuldades encontradas na

maneira que os fenômenos eram explicados anteriormente, surge de forma rápida e pouco

detalhado, o que pode gerar algumas incongruências ou pequenas anomalias. O “trabalho de

limpeza” será empreendido na constante busca de resoluções dos problemas que colocaram o

paradigma anterior em crise e como medida preventiva para que o atual não chegue ao ponto

de entrar em crise também.

Além disso, o processo de alargamento desenvolvido no período de ciência normal

tentará atenuar a limitação inicial do paradigma, forçando seus limites ao máximo. O objetivo,

constantemente perseguido pelos cientistas desse período, é que o paradigma seja bem

articulado, a fim de ser mais capaz de resolver problemas que seu antecessor.

É de responsabilidade do cientista, durante o período de ciência normal, mais do que em

qualquer outro período, fazer com que a “promessa de sucesso” transforme-se em sucesso

efetivo. Aquilo que surgiu como uma perspectiva plausível na resolução de problemas até então

sem respostas, deverá, ao longo do período de ciência normal, ser efetivado como solução

concreta.

Importante notar que esse trabalho “parece ser uma tentativa de forçar a natureza a

encaixar-se dentro dos limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidos pelo

paradigma” (KUHN, 1992: 45). Conforme essa perspectiva, o empreendimento realizado

durante o período de ciência normal consiste em fazer com que os diferentes aspectos

constituintes do paradigma estejam em consonância com aquilo que é observado. Não estou

falando de “realidade” – expressão notadamente evitada por Kuhn – mas de compor uma

compreensão dos fenômenos que uma disciplina científica observa como dotados de sentido.

24 Kuhn afirma que poucas vezes o “trabalho de limpeza” é percebido quanto a sua qualidade e quantidade. Esse

trabalho se faz necessário graças às limitações do novo paradigma que nasceu com a perspectiva de resolver aquilo

que seu antecessor não conseguiu, mas também na constante tarefa de resolver anomalias. Discutirei as anomalias

em seguida, no item 2.2.3.

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O largo processo de especialização que se observa durante o período de ciência normal

também serve ao propósito de fazer a natureza se encaixar nas teorias, o que é traduzido como

uma maior familiarização com os elementos oriundos do paradigma.

O trabalho desenvolvido durante a ciência normal é definido pela perspectiva lançada

em relação ao paradigma, isto é, os problemas que o paradigma deve responder servirão de

orientação para os trabalhos desenvolvidos ao longo do período de ciência normal.

A especialização característica do trabalho de ciência normal possibilita a observação

de anomalias. Isso ocorre pela profundidade que um trabalho de pesquisa pode adquirir ao longo

de uma vida de trabalho especializado, mas também pela imprecisão não aparente do próprio

paradigma, que carece de um constante trabalho em prol de sua delimitação, o que força um

processo de especialização para lidar com questões cada vez mais específicas do paradigma.

A delimitação pretendida pela ciência normal nunca ocorre, pois o paradigma é algo que

está em constante construção e ampliação. A etapa posterior à de ciência normal não é algo que

se dê em direção de uma conclusão de trabalho, mas um período crítico que segue na direção

de uma supressão do paradigma vigente e eleição de um novo, pois ao longo do período de

ciência normal os cientistas se depararão com diversos problemas na articulação do paradigma

e sua capacidade real de fornecer respostas.

Parece ser contraditório dizer que o trabalho de ciência normal é orientado pelo

paradigma ao mesmo tempo em que esse trabalho tenta delimitar seus limites. Isso ocorre por

conta de um princípio pautado na ideia de complementariedade: o paradigma dita o trabalho de

ciência normal, mas é este trabalho que consegue construir uma imagem clara do paradigma.

Isso acontece por conta da limitação inicial do paradigma que deve ser contornada com o

trabalho específico do período de ciência normal. Mas mesmo sendo limitado, ele agrega um

conjunto de interesses, o que possibilita a manutenção de uma comunidade que lida com ele.

Estamos falando de um desenvolvimento complementar. O paradigma é limitado em

seu surgimento, uma promessa de sucesso, como já discutido anteriormente. Em sua predição

inicial constam de forma muito generalizada as resoluções pretendidas e é justamente no

trabalho de ciência normal que tais pretensões serão alargadas e clarificadas, tornando

operacional aquilo que surgiu como promessa.

A expectativa criada em relação à promessa emanada da eleição de um paradigma é

altíssima, pois espera-se que ele faça o que – em tese – nenhum outro paradigma foi capaz: ser

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coeso a ponto de possibilitar um sistema de entendimento tão universal e seguro que forneça

uma compreensão real sobre o mundo.

O grande problema que se observa é que todo paradigma é proposto enquanto tal – e

durante o período de ciência normal se comporta como tal – mas quando surgem perguntas que

não podem ser respondidas, constata-se a existência de anomalias, as quais desembocam em

uma crise, forçando a necessidade de outro paradigma. O problema em não resolver as questões

é tanto do paradigma quanto também do cientista que é incapaz de fazer conforme a expectativa

gerada.

Com base nessa explanação inicial, considerarei agora as formas pelas quais o trabalho

de ciência normal se articula. São três os focos, que além de articularem o período, também

demonstram as considerações dadas ao paradigma. São eles:

FIGURA 2.2 – Focos normais para a investigação científica

Até agora estive considerando especialmente dois destes aspectos, “b” e “c”. Ainda

discorrerei mais, mas agora com destaque para o ponto “a”, que é aquilo que mais se espera que

um paradigma seja capaz: de demonstrar como de fato as coisas são.

O primeiro foco apontado demonstra um trabalho no qual há precisão científica de tal

modo que o consenso toma os fatos como base, mesmo sendo fruto de redeterminação de fatos

anteriormente conhecidos. Isso ocorre porque o conhecimento científico é capaz de determinar

as causas de fenômenos25. Tais fatos podem ser observados em ciências como a astronomia, a

25 Não estou dizendo que é capaz de revelar o que vulgarmente entendemos por “realidade”, mas que pode fornecer

uma explicação que perdure.

FOCOS NORMAIS PARA A INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA

a) O paradigma como revelador da natureza das

coisas

b) Fatos que podem ser relacionados com as

predições do paradigma

c) Trabalho empírico para articular o paradigma

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física e a química, nas quais as predições são consideradas como fatos, embora isso não seja

exclusividade dessas ciências.

Segundo Kuhn,

Numa época ou noutra, essas determinações significativas de fatos incluíram:

na Astronomia – a posição e magnitude das estrelas, os períodos das eclipses

das estrelas duplas e dos planetas; na Física – as gravidades e as

compressibilidades específicas dos materiais, comprimentos de onda e

intensidades espectrais, condutividades elétricas e potenciais de contato; na

Química – os pesos de composição e combinação, pontos de ebulição e a acidez

das soluções, as fórmulas estruturais e as atividades ópticas (KUHN, 1992: 46).

Neste ponto observa-se a necessidade de executar cálculos e mecanismos de precisão, o

que torna esse foco centrado na execução de atividades que tenham como pano de fundo a

tentativa de compreender o funcionamento da natureza de forma ampla. Tal funcionamento

implica a observação de regularidades. O trabalho de ciência normal aqui não está definindo o

“que” são as coisas, mas “como” são conforme seu funcionamento.

A construção de um entendimento que perdure por muito tempo e implique uma

aceitação ampla de alguma definição nomeadamente “reveladora da natureza das coisas”, deve

ser o resultado de uma construção bem articulada do paradigma. A ciência normal é capaz de

nomear tais questões e justificá-las pelo seu uso prático, ou seja, dentro de um mecanismo em

que a definição funcione plenamente não há razão para questionar a definição dada,

entendendo-se que naquela utilização o paradigma funcionou plenamente.

O que perdurará, porém, será o conhecimento adquirido e não necessariamente o

paradigma que possibilitou tal feito. Nesse caso, a utilização do paradigma é feita diretamente

com a finalidade de explicar fenômenos e o mesmo é utilizado como forma de chegar às

explicações. Não se está aqui tentando alargar as possibilidades do uso do paradigma, mas

utilizando na prática o paradigma como meio até as definições. Considero que a capacidade de

fornecer respostas está intimamente ligada a esse primeiro foco, pois o que se espera de um

paradigma é que ele seja capaz de solucionar problemas. A solução implica necessariamente a

descrição de como algo funciona.

As expectativas do paradigma podem ser definitivamente maiores do que suas

possibilidades reais de fornecer respostas. De qualquer modo, ainda que o problema seja

observado no interior do paradigma, ele sempre deverá ser considerado como um problema do

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paradigma levando em conta a articulação que esse sofreu, o que implica que a crise está

relacionada também à expectativa gerada e ao trabalho de articulação do período de ciência

normal.

O segundo foco apontado, “fatos que podem ser relacionados com predições do

paradigma” (KUHN, 1992: 46), é expresso no resultado de atividades predominantemente

marcadas pelas simbolizações matemáticas, que implicam aproximações da natureza. Tais

aproximações se referem às simbolizações de observações empreendidas. Cada novo ciclo de

observações deve ser significado, contribuindo para construções gerais caracterizadas em

teorias.

Essas simbolizações são formulações teóricas em linguagem própria. Cada disciplina

possui seu próprio vocabulário. As expressões que compõem o vocabulário da disciplina são o

resultado das ponderações que a atividade científica exige, servindo para designar os objetos

como são em seu estado natural. Por serem representações dos resultados do trabalho científico,

devem ser consideradas como aproximações26.

Embora o resultado científico das observações sejam apenas aproximações, elas são

consideradas como satisfatórias. As predições do paradigma em sua relação com a comunidade

estabelecem quais as regras para que uma aproximação teórica seja considera satisfatória. O

trabalho de ciência normal tem aqui a responsabilidade de demonstrar a viabilidade da tese. No

entanto,

raramente encontramos áreas nas quais uma teoria científica pode ser

diretamente comparada com a natureza, especialmente se é expressa numa

forma predominantemente matemática. (...) Além disso, mesmo áreas onde a

aplicação é possível, frequentemente requer aproximações teóricas e

instrumentais que limitam severamente a concordância a ser esperada (KUHN,

1992: 47).

A forma predominantemente matemática de algumas demonstrações implica na criação

de um sistema de compreensão, que generalizado e compartilhado pela comunidade científica

terá força e legitimidade tanto mais seja discutido e aceito entre os membros. A tese aqui afirma

que as descrições científicas são frutos do consenso de grupo.

26 A discussão sobre uma filosofia da linguagem na construção científica me parece bastante pertinente, mas não

pode ser considerada de forma ampla nesta Dissertação. A análise desse aspecto na Estrutura demandaria um

trabalho de pesquisa direcionado especificamente para esse foco, e seria bastante diverso do objetivo que me

propus desenvolver. Em outra ocasião me debruçarei na questão, mas não nesse trabalho.

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Isso não quer dizer – e Kuhn não afirma isso – que não haja entre os membros da

comunidade o rigor necessário para justificar suas teorias. Mas é uma decisão do grupo

articulado pelo paradigma determinar o que será e o que não será aceito enquanto consideração

válida27.

O terceiro foco de investigação integrante da ciência normal, “trabalho empírico para

articular o paradigma”, procura resolver algumas ambiguidades residuais na predição do

paradigma. Este foco compreende um esforço para solucionar os problemas para os quais

anteriormente o paradigma só havia chamado atenção.

Aqui temos o foco de investigação que consiste em tentar fazer uma conjunção entre o

trabalho empírico e as predições do paradigma. Consiste em uma aproximação do paradigma

com os fatos coletados no cotidiano da pesquisa. Serve também para testar ainda mais os limites

do paradigma, na verificação das predições deste com as aproximações pretendidas. Os limites

testados correspondem ao constante esforço de responder às questões que estão em aberto desde

seu antecessor.

Quando este foco não consegue cumprir conforme sua especificidade, acaba por gerar

crises no interior do paradigma, perceptíveis pela quantidade de anomalias que são geradas

quando de seu insucesso. As anomalias, que são aqueles pontos do paradigma que não

conseguem se harmonizar com o todo, surgem de forma ocasional ao longo do trabalho

científico.

Com base nos três focos apresentados e a descrição anterior, a ciência normal, portanto,

consiste em solucionar quebra-cabeças, é um empreendimento altamente

cumulativo, extremamente bem sucedido no que toca ao seu objetivo, a

ampliação contínua do alcance e da precisão do conhecimento científico

(KUHN, 1992: 77).

Certamente isso não equivale a dizer que toda a ciência é um processo cumulativo, mas

sendo o período de ciência normal algo que comporta também um aspecto de aprendizado dos

meandros do próprio paradigma, o período em destaque possui a capacidade de acumular

27 Afirmar que não há racionalidade nisso seria leviano e tendencioso, pois se estaria dizendo que as construções

teóricas da ciência se firmam unicamente pela força das autoridades. Não estou afirmando isso. Mas, ao que parece,

o modelo de Kuhn aponta para a compreensão de que a autoridade de uma comunidade científica tem peso

considerável nas escolhas metodológicas que são feitas, o que, de forma indireta, contribuiria para algumas

compreensões em detrimento de outras, revelando um certo caráter subjetivo da produção científica.

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conhecimento em relação aos caminhos que o paradigma pode percorrer quanto à investigação

científica, ou seja, como funciona o paradigma e quais respostas ele pode fornecer.

O acúmulo apontado refere-se à capacidade adquirida de lidar com a constante

ampliação do paradigma, que exigirá do cientista condições teóricas e metodológicas de superar

percalços e dificuldades para a execução de seu trabalho. O acúmulo é metodológico e está

estritamente relacionado à resolução de quebra-cabeças. Não se trata, portanto, de um acúmulo

que se dá ao longo dos paradigmas, o que pode ser considerado como um acúmulo local do

período de ciência normal.

Na superação de um paradigma, o acúmulo realizado durante o período de ciência

normal pode não representar nada além de algumas páginas da história da ciência, i. e., pode

não servir na resolução de quebra-cabeças de um período posterior, gerido por um paradigma

também posterior, sendo contrário, portanto, à ideia de acumulação da chamada concepção

herdada da ciência.

A ideia de solucionar quebra-cabeças parece bem colocada e é fundamental para o

desenvolvimento da ciência nesse modelo. Por meio dessa preocupação e aliados ao alto grau

de especialização do período de ciência normal, os cientistas poderão perceber se o paradigma

é ou não capaz de cumprir com sua promessa inicial.

Já apontei a possibilidade de um paradigma estável desembocar em crise por falta de

respostas às investigações em curso. Certamente o trabalho de ciência normal visa à constatação

de que o paradigma atual fará o que nenhum outro fez: responder às questões mais complexas

de forma mais simples e objetiva possível, estabelecendo um conhecimento duradouro.

O paradigma não cumpre com esse objetivo quando não consegue manter as

expectativas da comunidade. Nesse caso, observam-se o crescimento de anomalias, as quais

contribuirão para o insucesso do paradigma e a necessidade de uma nova perspectiva para o

trabalho de investigação científica.

os cientistas nunca aprendem conceitos, leis e teorias de uma forma abstrata e

isoladamente. Em lugar disso, esses instrumentos intelectuais são, desde o

início, encontrados numa unidade histórica e pedagogicamente anterior, onde

são apresentados juntamente com suas aplicações e através delas. Uma nova

teoria é sempre anunciada juntamente com suas aplicações e uma determinada

gama concreta de fenômenos naturais; sem elas não poderia nem mesmo

candidatar-se à aceitação científica (KUHN, 1992: 71).

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Disso, pode-se deduzir que os paradigmas operam por meio de duas naturezas: a)

enquanto composição de regras; e b) por meio de sua natureza educacional. Em ambos os casos,

o paradigma é desenvolvido pela comunidade que o agrega. Nessa divisão, também observam-

se as duas vias complementares pelas quais o paradigma opera.

Enquanto composição de regras, ele fornece as bases para o desenrolar do trabalho

científico, estabelecendo os padrões aceitos, os métodos de pesquisa empreendidos, as maneiras

de catalogar observações e quantidades padrão de repetições para os processos de indução

serem considerados. Esse aspecto congrega o resultado de diferentes práticas de pesquisa. As

que obtiverem melhores resultados na conjugação “objetivos versus resultados”, poderão ser

tomadas como exemplos a serem seguidos.

A natureza pedagógica do paradigma consiste em reproduzir o conhecimento admitido

e ensinar aos novos cientistas as regras estabelecidas. Os novos cientistas em processo de

formação profissional terão contato com professores mais experientes – os quais já fizeram suas

escolhas profissionais, pautadas em um paradigma – que reproduzirão a escola que tiveram.

Observa-se, portanto, que o paradigma enquanto instrumento pedagógico executa o papel de

convencer o cientista novato de quais caminhos deve seguir em sua pesquisa.

Passemos agora à análise das anomalias.

2.2.3. Anomalia

Uma anomalia é algo que foge às regras do paradigma, tornando-o irregular ou

deformado. A anomalia é aquilo que não foi previsto e não pode ser compreendido com base

no atual estado do paradigma. É como se uma predição fosse desenvolvida no período de ciência

normal sem que houvesse constatação conforme o esperado, gerando a quebra da expectativa

inicial. Toda vez que uma expectativa é quebrada, adiciona-se mais um elemento causador de

dúvida no caminho empreendido até então.

Talvez o aspecto mais interessante da ciência normal seja sua preocupação em resolver

quebra-cabeças. Como a ciência normal “(...) não se propõe descobrir novidades no terreno dos

fatos ou na teoria”, pois, “(...) quando é bem sucedida, não os encontra” (KUHN, 1992: 77),

sua forma operacional básica resulta na observação de anomalias para que possam ser

resolvidas. O êxito da ciência normal seria, em tese, resolver todas as anomalias. No entanto, a

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ciência normal enquanto empreendimento voltado para resolver quebra-cabeças não tem

conseguido um êxito duradouro, haja vista o constante surgimento de anomalias e, por

conseguinte, a substituição de paradigmas.

A resolução de quebra-cabeças é o constante trabalho de forçar o paradigma na

elucidação de anomalias. A analogia de Kuhn ao quebra-cabeças parece bastante pertinente,

pois a compreensão que é pretendida está num plano macro, no qual diversas especializações

se fazem necessárias para corroborar uma teoria. Assim, cada ponto trabalhado por uma

comunidade será como uma peça de quebra-cabeças, que devem ser articuladas e

meticulosamente montadas para mostrar uma imagem. Essa imagem seria uma teoria capaz de

explicitar uma conceituação bem articulada, como um quebra-cabeças que está completamente

encaixado.

O paradigma em sua proposição inicial é apresentado como norteador da compreensão

geral sobre a investigação científica e, de forma mais atenuada nas primeiras anomalias

constatadas, o paradigma será questionado. Às vezes as anomalias são resolvidas com pequenos

ajustes da teoria geral do paradigma, outras vezes são tomadas como erros metodológicos do

cientista, o que implica em novas tentativas de resolvê-las.

Porém, às vezes as anomalias tomam proporções elevadas, colocando em dificuldade a

continuidade do paradigma. Resolver quebra-cabeças é a habilidade do cientista normal que é

cobrada quando do surgimento delas e sua competência (tanto do cientista quanto do

paradigma) estará à prova toda vez que uma anomalia for observada.

A anomalia não deve ser considerada como estando na natureza. O esforço em

caracterizar a natureza é um empreendimento humano, que necessita das aproximações

propostas pelo paradigma para ser compreendido dentro da linguagem de uma disciplina

científica. O surgimento das anomalias é, portanto, erros de percurso na tentativa de

compreender a natureza dentro de uma teoria.

A consciência da anomalia não é tarefa simples para o cientista normal. Pelo contrário,

exige dele um domínio elevado dos padrões emanados do paradigma para a constatação de que

alguma coisa deu errado. Por conta da hegemonia do paradigma, quando uma anomalia é

observada, o cientista inicialmente suspeita de si mesmo, imaginando que foi incapaz de

articular bem o paradigma. Se por meio de novas articulações do paradigma a anomalia for

superada, estará claro que a falha foi do cientista; quando não, as condições iniciais para

questionar o paradigma estarão dadas.

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Na sequência do trabalho de articular o paradigma, após a descoberta da anomalia, segue

a exploração das áreas onde ela aconteceu, visando um ajuste que a resolva. Quando o ajuste

for possível, a anomalia será tomada como um dado novo e o equívoco será compreendido

como de responsabilidade do pesquisador. No tempo em que o contrário ocorrer, ou seja,

quando não houver ajuste, a anomalia se confirmará e terá outros desdobramentos. A

constatação da anomalia é o reconhecimento de que a natureza violou as expectativas

paradigmáticas.

Durante o trabalho de ciência normal, a constatação de anomalias pode acontecer em

pequeno ou grande número. Quanto maior a quantidade de anomalias, maior será a quantidade

de iniciativas para salvaguardar o paradigma, o que só se efetivará mediante a solução das

anomalias observadas. Menor quantidade de anomalias representa um maior domínio do

paradigma pela comunidade, bem como uma boa articulação dos aspectos do paradigma com o

que tem sido observado nas análises empíricas. Neste último caso, o paradigma continua

exercendo, sem questionamentos, sua hegemonia.

O grande problema não é necessariamente a existência de anomalias, pois tal aspecto é

comum até mesmo na mais articulada investigação. O que realmente implica problemas para o

paradigma é a não resolução das anomalias. Quando as anomalias não conseguem ser resolvidas

segundo as predições do paradigma, elas se acumulam e passam a representar um empecilho

para a realização da promessa de sucesso estabelecida pelo paradigma.

O acúmulo de problemas sem resposta gera a crise do paradigma. Tais anomalias, que

inicialmente podiam conviver com o desenvolvimento do paradigma nascente, tornar-se-ão,

com o tempo, incômodos, pois vão crescendo em número e em importância. Em referência à

constatação de anomalias, Kuhn aponta que tal estágio da pesquisa científica possibilita

descobertas.

A descoberta começa com a consciência da anomalia, isto é, com o

reconhecimento de que, de alguma maneira, a natureza violou as expectativas

paradigmáticas que governam a ciência normal. Segue-se então uma exploração

mais ou menos ampla da área onde ocorreu a anomalia. Esse trabalho somente

se encerra quando a teoria do paradigma for ajustada, de tal forma que o

anômalo se tenha convertido no esperado. A assimilação de um novo tipo de

fato exige mais do que um ajustamento aditivo da teoria. Até que tal ajustamento

tenha sido completado – até que o cientista tenha aprendido a ver a natureza de

um modo diferente – o novo fato não será considerado completamente científico

(KUHN, 1992: 78).

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O que devemos esperar, em se tratando de um entendimento específico para fornecer

uma definição mais próxima do fenômeno estudado, é a compreensão do ponto que torna a

teoria problemática, pois o desenvolvimento da ciência pressupõe a compreensão de anomalias

para que elas possam ser superadas. É esse o ponto crucial que tornará o paradigma mais

adequado. Quando o cientista percebe a anomalia, seu trabalho volta-se a esse ponto em

específico, seus esforços se voltarão para superar a anomalia e perpetuar a fonte norteadora de

suas ações: o paradigma.

Quando há persistência da anomalia, como já explicitei antes, o cientista desconfiará de

si mesmo, supondo que algo deu errado em algum passo que deveria ter sido tomado, ou que

ele não foi capaz de compreender o fenômeno, ou algum aspecto dele, o que permitiu a

anomalia. Nesse caso, a anomalia é considerada enquanto elemento equivocado na

compreensão do cientista.

Outra possibilidade, essa mais grave, se torna efetiva quando a ciência normal não

consegue cumprir conforme o esperado, ou seja, não consegue resolver os quebra-cabeças

oriundos do trabalho de atualização do paradigma. Agora, superado o estigma de que o erro foi

no desenvolvimento da metodologia empreendida, ou aconteceu por conta de alguma

incapacidade do cientista, a dúvida se voltará contra o paradigma. Este, por sua vez, será

considerado como ineficiente ou incapaz, caso a anomalia não consiga ser resolvida.

Ambos os casos são aceitáveis ao longo do período de ciência normal. Todavia, o

segundo caso é bem menos comum que o primeiro, pois a quantidade de anomalias superadas

é proporcionalmente maior que as não superadas. Essa proporcionalidade garante o sucesso da

ciência normal enquanto empreendimento altamente qualificado.

A perspectiva kuhniana de ciência normal como resolução de quebra-cabeças apresenta

a pesquisa científica como passível de fracasso. De certa forma, o fracasso na construção

científica com base em um paradigma específico não é de todo ruim, pois esse fracasso do

paradigma é a fonte de diversas anomalias (KUHN, 1992: 88) que permitirão um trabalho mais

aprimorado da ciência.

Embora toda vez que se constate algum tipo de incongruência na relação entre teoria e

observação a culpa recaia sobre o cientista28, a mudança de paradigma só ocorre quando todas

28 Isso acontece porque a comunidade científica tende a reconhecer que antes do paradigma ser falível, o cientista

é falível. Dessa forma, como já foi anteriormente apresentado, anomalias são consideradas inicialmente como

resultados da incapacidade do cientista em lidar com o paradigma e não uma discrepância do próprio paradigma.

Nesse ponto há que se levar em consideração que dependendo de qual cientista observou o paradigma, haverá a

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as soluções possíveis, imaginadas pelos membros da comunidade científica, tiverem sido

empreendidas sem sucesso, pois é nesse ponto que se conclui que não há erro metodológico,

mas que as expectativas geradas não poderão ser supridas pelo paradigma. Mas não porque as

expectativas são demasiadamente altas, e sim porque o paradigma é incapaz de fornecer as

soluções almejadas.

Ao final do período de ciência normal, o cientista terá adquirido uma capacidade maior

de enxergar anomalias e uma maior familiaridade com os fenômenos observados, com maior

capacidade intelectual de fornecer dados para a construção de um próximo paradigma. Além

disso, observar a anomalia é a constatação de que alguma coisa não foi bem, o que gerou

frustração das expectativas. Estas frustrações poderão ser tomadas como exemplos em

pesquisas futuras, pois representam alguns caminhos que não devem ser tomados.

Reafirmando a importância da especialização no período de ciência normal, observa-se

que

uma maior familiaridade dá origem à consciência de uma anomalia ou permite

relacionar o fato a algo que anteriormente não ocorreu conforme previsto. Essa

consciência da anomalia inaugura um período no qual as categorias conceituais

são adaptadas até que o que inicialmente era considerado anômalo se converta

no previsto. Nesse momento completa-se a descoberta (KUHN, 1992: 91).

Percebemos que Kuhn admite a descoberta a partir de um processo que se inicia com

uma anomalia que, numa proporção pequena, é como uma crise no interior do paradigma

vigente. As anomalias constituem-se enquanto alerta para a comunidade científica – ou para o

cientista que as observa. É quando de sua observação que inevitavelmente o cientista procurará

resolvê-las com o próprio paradigma vigente. Entretanto, uma vez que não se consiga resolver

essas anomalias – e essa tentativa de resolução também é uma tentativa de forçar a natureza a

encaixar-se no molde do paradigma – a emergência de um novo paradigma não poderá ser

evitada.

Segundo Kuhn (KUHN, 1992: 81), existem duas possibilidade para a descoberta. A

primeira possibilidade é por assimilação conceitual e a segunda forma é acidental, a qual,

segundo Kuhn, “(...) ocorre mais frequentemente do que os padrões impessoais dos relatórios

científicos nos permitem perceber” (KUHN, 1992: 83).

consideração de sua possível incompetência em maior ou menor escala, pois aqui também considera-se o peso da

autoridade.

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O primeiro caso, Kuhn exemplifica com a teoria de Lavoisier sobre a combustão pelo

oxigênio. Segundo Kuhn, a descoberta do oxigênio foi o resultado de um trabalho realizado ao

longo de muito tempo, mais especificamente entre 1772 e 1777. O período de tempo foi

suficiente para que diversas verificações e conclusões colaborassem para uma teoria

fundamentada. O tempo é um aliado importante nesse tipo de descoberta, pois possibilita que o

cientista se aprofunde em cada aspecto necessário para a correta compreensão do fenômeno.

Para o segundo caso, descoberta acidental, é necessário que o cientista tenha certa

sensibilidade para perceber que houve uma descoberta. Com um resultado não esperado, o

cientista pode considerar que houve um erro na experimentação e acabar descartando o

resultado obtido. No entanto, se ele conseguir fazer uma análise do que foi observado como um

novo fato, que embora não se encaixe nas descrições correntes, possa ser tomado como uma

nova espécie de fenômeno, a descoberta acidental terá ocorrido.

Em ambas as possibilidades, a descoberta está relacionada com a observação de

anomalias (em maior ou menor grau). No primeiro caso – descoberta por assimilação conceitual

– há algo como uma elucidação de pontos observados, como se a teoria resultante fosse o fim

de toda a construção teórica empreendida, algo como uma conclusão das pesquisas. No segundo

caso – descoberta acidental – há algo como um “deparar-se”, o que ocorre de forma bem mais

imediata e não programada.29

É importante observar que no primeiro caso a descoberta está acompanhada de um

planejamento minucioso e o resultado, em algum momento do planejamento, já pode ter sido

previsto. No segundo caso, não há planejamento para a descoberta, o fenômeno se apresenta e

cabe ao cientista classificá-lo como nova descoberta.

De acordo com Kuhn, “(...) Quanto maiores forem a precisão e o alcance de um

paradigma, tanto mais sensível este será como indicador de anomalias e, consequentemente, de

uma ocasião para a mudança de paradigma” (KUHN, 1992: 92). Certamente não será a

existência de uma ou outra anomalia que inviabilizará todo o trabalho de pesquisa do cientista,

pois este estará pronto para defender seu trabalho, mostrando inclusive certa resistência em

admitir algo novo. Contudo, quando um conjunto suficientemente grande de anomalias se

29 Convém salientar que nos dois casos a descoberta só é possível pelo esforço empreendido com uma metodologia

utilizada pelo cientista. Ainda que a descoberta, no segundo caso, seja compreendida como “acidental”, não seria

interessante observá-la como “ocasional”, i.e., não é fruto do mero acaso, mas sim de uma série de ponderações

realizadas ao longo do trabalho científico. Na descoberta acidental, o acidente está em não esperar exatamente

aquele resultado, como se o cientista estivesse atento para outros resultados pretendidos; não se trata, portanto, de

uma descoberta completamente despropositada ou alheia aos procedimentos científicos (Cf. BAILIN, 1990).

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tornarem visivelmente sem respostas, o paradigma entrará em crise e deverá ser substituído por

outro, mais completo, mais abrangente e, principalmente, capaz de resolver as anomalias

suscitadas.

O trabalho da ciência normal é uma constante limpeza e revisão de anomalias – tanto as

que surgem no processo de ciência normal, quanto as que colocaram o paradigma anterior em

crise – o que atrela o desenvolvimento da ciência à capacidade de observar a existência de

anomalias na teoria e, sobretudo, resolvê-las.

No final de todo esse processo teremos uma cultura científica própria, dotada de

linguagem específica e capaz de propor teorias válidas sobre os fenômenos da natureza. A

capacidade de solucionar esses problemas pode ser considerada como o resultado do

desenvolvimento científico. Ainda assim, nos caberia perguntar sobre as razões do cientista em

continuar seu trabalho, uma vez que o modelo de Kuhn aparenta defender que as conclusões

científicas são apenas provisórias.

Segundo Kuhn, “(...) o que o incita ao trabalho é a convicção de que, se for

suficientemente habilidoso, conseguirá solucionar um quebra-cabeça que ninguém até então

resolveu ou, pelo menos, não resolveu tão bem” (KUHN, 1992: 61). Além disso,

o cientista deve preocupar-se em compreender o mundo e ampliar a precisão e

o alcance da ordem que lhe foi imposta. (...) Esse compromisso, por sua vez,

deve levá-lo a perscrutar com grande minúcia empírica (...) algum aspecto da

natureza. (...) Se esse escrutínio revela bolsões de aparente desordem, esses

devem desafiá-lo a um novo refinamento de suas técnicas de observação ou a

uma maior articulação de suas teorias (KUHN, 1992: 65).

O que impulsiona o cientista é a esperança de ser capaz de solucionar os problemas que

ninguém, até então, resolveu e outros mais que apareçam ao longo do processo. Não se trata de

uma busca pela descoberta, mas de alargar o paradigma com as soluções das anomalias

observadas. Esse processo de observar a anomalia e resolvê-la é o que pode ser compreendido

no modelo de Kuhn como descoberta30.

30 Outrossim, posso concordar que nem sempre o cientista tenha claro para si mesmo que sua rotina é orientada

por um paradigma. No entanto, o modelo que tem na ideia de paradigma seu núcleo demonstra que a prática

científica funciona mesmo sem que o cientista possua de forma clara e evidente a influência que um paradigma

exerce sobre sua pesquisa. Com base nisso é possível supor que entre os elementos que constituem sua

“motivação”, também deve ser considerado que a aplicação de um método, na crença de que chegará às conclusões

almejadas no desenvolvimento de sua pesquisa, também possui grande relevância.

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Onde estaria, então, o sucesso das investigações científicas? Embora seja cedo para

concluir essa pergunta, posso apontar para o desenvolvimento da capacidade que a comunidade

científica tem adquirido em perceber com mais clareza ou resolver com mais propriedade os

enigmas fornecidos ao longo do trabalho de ciência normal.

Na sequência, analisarei o funcionamento das revoluções científicas como proposição

do estado de crise e resultado do acúmulo de anomalias sem respostas.

2.2.4. Revolução científica

Consoante o modelo em análise, as revoluções científicas compõem a maneira pela qual

a ciência se desenvolve. São processos de ruptura com o padrão anterior, no qual há a abertura

de novas perspectivas para a compreensão científica, sobretudo nos pontos que se tornaram

inconsistentes e confusos em relação ao paradigma anterior por conta da quantidade agravante

de anomalias. Discutirei na sequência as implicações das revoluções científicas em sua estreita

relação com a crise do paradigma.

Uma revolução científica é o resultado imediato de uma crise sem precedentes. A crise

é o resultado do insucesso dos esforços empreendidos durante o período de ciência normal para

resolver as anomalias. Tais esforços foram lançados inicialmente com o objetivo de alargar o

paradigma. No entanto, durante esse processo, diversas anomalias foram observadas e, com o

acúmulo delas, os esforços passaram a ser empreendidos para tentar evitar a falência do

paradigma.

Durante o processo de crise do paradigma, existem cenários diferentes quanto à forma

pela qual os cientistas tentam impedir o colapso do paradigma. A imagem a seguir é um esboço

dessas possibilidades, que mostra três situações possíveis, segundo o que consta na Estrutura

(KUHN, 1992: 115-116).

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FIGURA 2.3 – Cenários possíveis para o desenvolvimento da crise

A crise encontra soluções diferentes em cada um dos três cenários. Nos dois primeiros

é possível a hegemonia do paradigma, pois as soluções encontradas contemplam a continuidade

dele, considerando-se que a ciência normal encontra resposta para conter a crise com base nas

predições do próprio paradigma.

No segundo caso, nenhuma solução é considerada como possível no contexto em que a

crise é desencadeada, e por isso considera-se que não há resolução naquela geração31. Aqui, a

solução para o problema é apenas vislumbrada, pois requererá uma construção a longo prazo

para comprovar a efetivação da proposta. O problema é contido, mas de forma provisória.

No terceiro cenário, a solução é bem diferente dos outros dois, pois somente com a

superação do paradigma haverá uma resposta satisfatória à crise. Tal solução só será buscada

diante da constatação de que o paradigma vigente é incapaz de fornecer resposta à crise. Nesse

caso, o quadro de ciência normal cede espaço ao de ciência revolucionária, a qual construirá a

31 Quanto a esse último aspecto, a opção por esperar pelo futuro da pesquisa relaciona-se com planos de construção

de novos instrumentos que permitam o aprofundamento da questão, como, por exemplo, a construção do Large

Hadron Collider (LHC) que, dentre outras perspectivas, serve como desenvolvimento do estudo da hipótese do

átomo unificado, de Lemaître (OOSTENS, 2010), e a evolução desse pensamento até uma teoria mais geral sobre

o big bang. Além disso, há uma questão financeira de fundo; segundo dados do CERN, experimentos como o

ATLAS e CMS custaram aproximadamente 4,6 bilhões de dólares (CERN Bulletin, 2010 [3]).

Crise

1

A ciência normal (CN) consegue

tratar dos problemas

A CN mostra-se capaz de resolver a crise

2

Os problemas persistem mediante novas abordagens

Conclusão de que nenhuma solução

poderá ser proposta no nível atual de

desenvolvimento do paradigma

O problema é posto de lado para que seja

empreendida uma solução pela próxima

geração

3

Emergência de um novo

candidato a paradigma

Esforços constantes para a sua aceitação

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transição entre o paradigma que entrou em falência e o novo que será eleito com a perspectiva

de resolver aquilo que não foi possível até então.

A transição de um paradigma em crise para um novo, do qual pode surgir uma

nova tradição de ciência normal, está longe de ser um processo cumulativo

obtido através de uma articulação do velho paradigma. É antes uma

reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios, reconstrução que

altera algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma, bem

como muitos de seus métodos e aplicações (KUHN, 1992: 116).

A transição entre paradigmas é o elemento mais característico do modelo de Kuhn. É

por meio desta característica primordial que seu modelo defende o desenvolvimento da ciência

através de processos não cumulativos e de ruptura. Quando há uma modificação de paradigma,

há também a modificação dos pressupostos que foram empreendidos ao longo do paradigma

que faliu, os quais deverão ser atualizados (ou suprimidos) com base no paradigma vigente.

A transição entre paradigmas não pode ser considerada como um processo cumulativo,

pois essa transição pressupõe modificações consideráveis na linguagem utilizada pela

comunidade científica. A transição é um processo traumático que, embora os resultados sejam

positivos, ao longo de sua duração, os defensores do novo paradigma terão que empreender

constantes esforços para a implantação e aceitação da nova matriz.

Os que propõem as mudanças terão suas intenções corroboradas nos contraexemplos

provocados pelas anomalias não resolvidas, e não exatamente por uma nova abordagem. A nova

abordagem do paradigma só poderá ser amplamente conhecida pelo trabalho de ciência normal,

posterior à fase de transição.

Se for possível a permanência do mesmo paradigma, isso ocorrerá. Mas caso não seja

possível, a superação do paradigma será inevitável. Durante o próximo período de ciência

normal, o novo processo de alargamento modificará a linguagem existente para uma que se

adeque ao novo paradigma que estará em desenvolvimento.

É exatamente porque a emergência de uma nova teoria rompe com uma tradição

da prática científica e introduz uma nova dirigida por regras diferentes, situada

no interior de um universo de discurso também diferente, que tal emergência só

tem probabilidades de ocorrer quando se percebe que a tradição anterior

equivocou-se gravemente. Contudo, essa observação não é mais que um

prelúdio à investigação do estado de crise e, infelizmente, as perguntas às quais

ela conduz requerem a competência do psicólogo, ainda mais do que o

historiador (KUHN, 1992: 117).

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Uma transição de caráter revolucionário só ocorrerá quando uma anomalia

reconhecidamente fundamental for considerada. Tal anomalia deve ser capaz de abalar

profundamente o paradigma vigente, permanecendo mesmo depois de todo esforço em

salvaguardar o paradigma. Todas as soluções empreendidas devem ter sido fracassadas, dando

mais vazão à crescente de dúvidas. Dessa maneira, a estrutura do paradigma terá sido abalada,

restando apenas as especulações em torno da necessidade de um outro modelo que seja capaz

de trazer novamente uma compreensão comum à comunidade científica.

No esquema a seguir, apresento as maneiras pelas quais uma anomalia

reconhecidamente fundamental é tratada.

FIGURA 2.4 – Tratamento de uma anomalia reconhecidamente fundamental

Quando uma anomalia for reconhecida como fundamental há implicação de que a teoria

geral do paradigma não foi tão bem articulada o quanto se esperava. Já não se compreende que

a anomalia seja resultante de erros metodológicos empreendidos pelo pesquisador; seu caráter

fundamental denota o descarte dessa possibilidade. A hipótese levantada é que o paradigma não

conseguirá resolver a questão suscitada pela anomalia.

Anomalia reconhecidamente

fundamental

A anomalia é isolada com

maior precisão

Aplicam-se as regras da ciência

normal com maior ênfase

Implementação de modos de realçar

a dificuldade

Tentativas de gerar teorias especulativas

Novo paradigma

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As implicações dessa hipótese serão desoladoras, mas não haverá constatação do novo

quadro do paradigma sem antes tentar-se novamente uma série de novas articulações para evitar

a queda do paradigma. Mas agora, não haverá a possibilidade de deixar a anomalia para que

seja resolvida em uma próxima geração, pois o momento no qual um resultado claro para o

problema deve ser dado é no contexto da anomalia fundamental. Quando a hipótese de que não

é possível prosseguir com o paradigma for generalizada, a crise também será generalizada e a

ideia de supressão do paradigma passará a ter maior força entre os membros do grupo.

A anomalia, inicialmente, será isolada com maior precisão e deverá ser analisada

profundamente em todo seu alcance. Nesse estudo altamente especializado, as regras da ciência

normal são aplicadas com maior ênfase, visando a menor margem de erro. Se estas duas etapas

não surtirem um efeito positivo, ou seja, se não for possível resolver o problema estabelecido

pela anomalia, duas outras atitudes serão tomadas, mas agora diretamente vinculadas à certeza

de que o paradigma frustrou as expectativas.

Serão empreendidos modos de realçar as dificuldades que o paradigma enfrenta por

conta da anomalia, ao mesmo tempo em que teorias especulativas serão desenvolvidas. O

resultado dessa movimentação é o estudo aprofundado do modelo em crise (KUHN, 1992: 117),

mas acabará gerando a necessidade de uma nova forma de compreender o mundo, uma nova

tentativa de significar elementos observados pela comunidade: um novo paradigma que seja

articulado conforme a nova linguagem que a anomalia fundamental precisa para ser superada.

O reconhecimento de uma anomalia fundamental traz consigo a necessidade de um novo

paradigma, pois sua existência só é possível porque o paradigma vigente falhou em sua

incumbência de fornecer respostas.

2.3. CONSIDERAÇÕES SOBRE O MODELO KUHNIANO

Depois das considerações que fiz anteriormente, cabem algumas perguntas sobre o

modelo de desenvolvimento da ciência kuhniano, principalmente como a ciência se desenvolve

e por quais meios acontece a divulgação científica. Para complementar minha exposição sobre

o modelo, considerarei mais três questões ainda neste capítulo.

Na primeira questão, discorro sobre como pode ser concebido o desenvolvimento da

ciência segundo o modelo kuhniano e a noção de desenvolvimento científico por processos de

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ruptura. Em seguida, discuto o uso de manuais na projeção de um paradigma, como eles podem

influenciar as escolhas de um cientista em formação e como servem para difundir regras

oriundas do paradigma. Por último, trago a discussão da relação entre história e filosofia na

Estrutura e como Kuhn utiliza os exemplos históricos para corroborar sua filosofia da ciência.

2.3.1. Desenvolvimento científico

A ideia de progresso científico é um tema recorrente entre os filósofos da ciência. É a

discussão de fundo na construção de modelos de entendimento do funcionamento da ciência

que tentam responder como a ciência evolui e em que situação pode ser compreendida como

avançada em relação a um momento histórico anterior.

Discutir o conceito de “progresso” científico a partir da Estrutura é pensar como a

ciência acontece de acordo com o modelo proposto por Kuhn. Segundo ele, como vimos, a

ciência se desenvolve por meio de processos de ruptura, nos quais se fazem presentes os

períodos de ciência normal, crise, revolução e eleição de um novo paradigma.

A compreensão de desenvolvimento da ciência por meio de processos de ruptura se

contrapõe à tradição da filosofia da ciência, que em geral aponta para um processo cumulativo

do progresso científico. A definição de Laudan (2011: 205) parece bastante pertinente e é dela

que compartilho para me referir a ideia de acumulação. Segundo essa visão:

Por “teorias puramente cumulativas” entendo aquelas que aumentam o número

de problemas resolvidos e nunca deixam de resolver todos os problemas

resolvidos com sucesso pelas predecessoras. Em outras palavras, tais

pensadores argumentam que uma condição necessária para que uma teoria, T2,

represente um progresso em relação a outra teoria, T1, é que T2 deve resolver

todos os problemas resolvidos por T1 (LAUDAN, 2011: 205).

A posição kuhniana é sobretudo contra esse tipo de visão. Mas cabe salientar que a ideia

de progresso em Kuhn está em nível de compreensão diferente quando relacionada às de

filósofos como Popper e Lakatos. Embora a posição de Kuhn pareça ambivalente, como aponta

Laudan (2011: 205), é necessário perceber que o progresso científico em Kuhn se dá mediante

a superação de um paradigma.

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A questão da ambivalência levantada por Laudan é pertinente, pois em sua Estrutura

Kuhn defende a ideia de desenvolvimento científico por processos de ruptura (KUHN, 1992:

21; 138) e na sequência, diz que um paradigma deve ter condições de resolver os problemas

que geraram a crise de seu antecessor (KUHN, 1992: 38; 44; 116).

Pois bem, há que se observar que o surgimento de um paradigma está relacionado, de

forma geral, a apenas duas possibilidades: a) Quando do amadurecimento de uma ciência32 e b)

Quando um paradigma entra em crise. Em nenhum caso está sendo considerado que o

paradigma deveria resolver todos os problemas anteriores da história da ciência. Não pode ser

considerado como objetivo do paradigma ser tão amplo ao ponto de ser capaz de dar conta de

todos os problemas históricos de uma disciplina científica.

Isso acontece porque o paradigma está imbuído num conjunto de compreensões que são

construídas ao longo do período de ciência normal, sendo o resultado do contexto da pesquisa

em que está inserido. O paradigma serve para resolver os problemas que lhes são

contemporâneos, pois somente estes são considerados problemas legítimos da ciência. As

demais questões não são consideradas problemas e sim capítulos da história da ciência.

De qualquer sorte, tais questões foram superadas por perceber que o problema não havia

sido colocado de forma adequada, i. e., o desenvolvimento da ciência implica numa constante

colocação de problemas pelos cientistas que, na articulação de um paradigma, vislumbram

superar as anomalias não resolvidas. O paradigma é, assim, parte integrante do problema que é

colocado, sendo esta colocação determinante para os caminhos percorridos pelo paradigma na

tentativa de resolver os problemas colocados.

A questão do desenvolvimento da ciência em Kuhn suscita outro questionamento. Kuhn

defenderia uma circularidade do desenvolvimento científico? Se em cada novo paradigma

percebe-se o desenrolar das mesmas etapas, não seria seu modelo algo circular? Aparentemente

haveria circularidade; mas por meio de uma análise mais apropriada, percebe-se que há um

engano na afirmação dessa aparência.

O modelo proposto, apresenta o desenvolvimento da ciência por processos de

estabilidade e instabilidade, nos quais os elementos apresentados pelo modelo são o resultado

da tentativa de tornar o instável em estável. O paradigma e o trabalho de ciência normal são os

momentos de estabilidade, ao passo que a crise do paradigma e a ciência revolucionária

compõem o período de instabilidade.

32 Discutirei essa questão mais à frente, pois trata-se de uma definição melhor esclarecida no Posfácio de 1969.

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Parece que delinear o modelo em um círculo seria bastante estranho, pois o círculo volta

sempre ao mesmo lugar. Uma linha de sucessão seria mais adequada, na qual, até então, os

períodos de estabilidade e instabilidade têm se substituído. Afirmar que sempre será assim seria

exagero e não há como sustentar essa afirmação. Mas se analisarmos a história da ciência,

perceberemos que o modelo de Kuhn é bastante aceitável e se sustenta com os exemplos dados

por ele.

O desenvolvimento da ciência seria essa linha de acontecimentos que, em sua relação

com o contexto histórico, fornece por meio de um paradigma respostas às perguntas que lhe são

feitas. O sucesso ou insucesso do paradigma pode estar relacionado a como essas perguntas são

articuladas. O progresso da ciência, portanto, consistiria no desenvolvimento da capacidade de

relacionar estes aspectos, o que é desdobrado na capacidade de solucionar problemas.

Se houver algum tipo de acúmulo, seria somente na capacidade de resolver problemas

que são ligados ao paradigma. Não há necessidade de um paradigma resolver todos os

problemas de todos os paradigmas anteriores, pois, muitas vezes, falam de coisas bastante

diferentes, o que indica que a linha de acontecimentos é uma sucessão de fatos no tempo, e não

uma sucessão lógica de problemas que estão todos conectados entre si. A linha, portanto, seria

apenas temporal, pois dessa forma não há implicação de que todos os problemas estejam

conectados, o que denotaria um acúmulo aos moldes discutidos no início desta secção.

2.3.2. O uso de manuais na projeção do paradigma

A discussão proposta sobre os problemas relacionados aos manuais científicos33 tem

relevante destaque na Estrutura. A questão do uso de manuais na produção científica pode ser

tratada a partir de dois enfoques: a) os manuais são registros do paradigma e servem de escola

para as gerações que estão inseridas em suas investigações; b) os registros articulados pelos

manuais representam preferências de grupo e o paradigma será alargado com base nessas

preferências.

Ora, é óbvio que quando alguma proposta de explicação de algum fenômeno é

formulada, ela deverá ser corroborada por meio de estratégias que a assegurem como plausível

e aceitável. Tais estratégias devem, antes de mais nada, ser pautadas em princípios

33 Entenda-se pela expressão, todo e qualquer meio de divulgação cientifica impressos ou, em nosso dias, virtuais,

tais com artigos, boletins, informativos, revistas, etc.

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metodológicos válidos, com grau de precisão considerável, a fim de atingir o objetivo proposto.

Estes princípios e a própria descrição dos fenômenos pautada no paradigma estão veiculados

em manuais científicos que, nesse sentido, servem como instrumentos contextualizadores.

A contextualização da pesquisa é necessária pela amplitude que possui uma comunidade

científica. Por sua extensão, é imprescindível que haja um mecanismo capaz de divulgar e tornar

conhecidos os rumos que a pesquisa está tomando. Dessa maneira há continuidade das

discussões e os membros da comunidade podem se posicionar com base nos argumentos

registrados nos mecanismos de divulgação.

Os manuais científicos são, atualmente, categorizados por meio de escalas de indexação,

as quais apontam a quantidade de referências feitas a cada texto contido em tais manuais, o que

em tese deveria assegurar o grau de confiabilidade. Nesse caso, percebe-se que o grau de

confiabilidade está relacionado à aceitação da comunidade, na proporção de enquanto mais

citada, mais seguro é o conhecimento ali discutido.

Parece bastante claro que os manuais representam opiniões gerais dos grupos aos quais

eles pertencem, pois certamente um artigo que representa certa posição não será publicado em

uma revista de um grupo que tenha posição contrária. Não estou dizendo que os manuais são

meros instrumentos de um jogo político, mas que servem para sustentar com maior autoridade

a posição de um grupo, numa relação que dá força a uma posição, tanto quanto ela seja mais

divulgada e, por conseguinte, conhecida.

A força da argumentação está referida por sua divulgação, além das questões racionais

que orientam o trabalho científico. O que quero dizer é que se uma teoria muito bem articulada

não conseguir ser divulgada, de nada terá adiantado o trabalho de pesquisa, pois para que possa

ser comparada a outras teorias, deve ter obtido o reconhecimento da comunidade de que está

em condições de concorrer, o que somente poderá acontecer mediante respaldo dos membros

da própria comunidade.

Os manuais científicos, além de servirem como instrumentos contextualizadores,

servem também como registro histórico da produção científica. Esse registro serve como pano

de fundo na análise da sucessão de fatos que marcam a história da ciência, mas não segundo a

ideia de “acumulação”, conforme já explicado anteriormente.

A importância dos manuais para manter a coerência na compreensão geral da ciência é

perceptível, embora, segundo Kuhn, “esses livros nos têm enganado em aspectos fundamentais.

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Seu objetivo é esboçar um conceito de ciência bastante diverso que pode emergir dos registros

históricos da própria atividade de pesquisa” (KUHN, 1992: 20).

A implicação direta do que disse Kuhn (1992: 20) é de que os manuais seriam utilizados

para explicar um conhecimento verdadeiro, divulgando as pesquisas realizadas, quando, no

entanto, pelas mudanças paradigmáticas, a maior parte das questões registradas nos manuais

seriam ou revistas ou suprimidas.

A respeito da prática científica e a relação mantida com os meios de divulgação, é

necessário compreender os manuais como espaços de reprodução do paradigma, tanto do ponto

de vista técnico quanto do político. Isto é, os manuais trazem em suas páginas o registro das

técnicas empreendidas em certos experimentos, os resultados obtidos, as esperanças

relacionadas às próximas articulações dos experimentos, etc., o que compõe um quadro técnico-

metodológico do trabalho científico. Mas em seu aspecto político, há o registro subjetivo e

implícito das escolhas feitas ao longo do trabalho, as opções relacionadas às técnicas

anteriormente expostas em outros manuais e as linhas de raciocínio que foram preferidas34.

Os manuais científicos são responsáveis pela cristalização de ideias como partes

fundamentais do paradigma em processo de alargamento no interior da ciência normal. Mas o

trabalho científico não pode ser restrito unicamente aos manuais. Eles são apenas um aspecto

do trabalho.

No entanto,

esses textos frequentemente parecem implicar que o conteúdo da ciência é

exemplificado de maneira ímpar pelas observações, leis e teorias discutidas em

suas páginas. Com quase igual regularidade, os mesmos livros têm sido

interpretados como se afirmassem que os métodos científicos são simplesmente

aqueles ilustrados pelas técnicas de manipulação empregados na coleta de dados

de manuais, juntamente com as operações lógicas utilizadas ao relacionar esses

dados às generalizações teóricas desses manuais (KUHN, 1992: 20).

Embora os manuais componham o espaço pelo qual a ciência é divulgada, é apontada

agora sua fragilidade. As descrições dos manuais devem ser consideradas somente como

possibilidades, e não como a totalidade das observações possíveis. Mesmo tendo o objetivo de

34 Em ambos os casos, pode-se dizer que o único critério realmente válido para as escolhas feitas seria o de

racionalidade, o que implicaria numa supressão do caráter político. No entanto, se o paradigma serve como escola

para os cientistas iniciantes, este contato sem precedentes com um paradigma marcará as futuras escolhas do

cientista, o que compreende a existência de um caráter político da produção científica.

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padronizar algum aspecto da compreensão que um ou outro artigo trate, não pode ser aceito

como a compreensão final do aspecto que está discutindo, pois deve ser levado em conta que

supor essa unificação como caminho para a compreensão final seria reduzir ao absurdo a

produção científica.

2.3.3. História e filosofia da ciência

A filosofia da ciência de Kuhn não poderia prescindir de uma história da ciência, sendo

esta o pano de fundo para suas conjecturas acerca do trabalho científico. A insistência de

filósofos como Kuhn na análise histórica pode ser caracterizada na tradição da filosofia da

ciência como “giro histórico” (ECHEVERRÍA, 1997: 7). Isso pode ser observado na análise

kuhniana, sobretudo pela importância dada às reconstruções históricas, as quais têm seu ponto

forte na identificação de paradigmas.

Segundo Kuhn, “Se a História fosse vista como um repositório para algo mais do que

anedotas ou cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de ciência

que atualmente nos domina” (KUHN, 1992: 19). A proposição de Kuhn nos inclina a pensar a

ciência como um espaço que deve ser continuamente analisado, o que não é novidade na

filosofia da ciência, mas com a contribuição da análise histórica de diferentes períodos. Esse

tipo de análise histórica colabora com a compreensão de que a ciência se desenvolve por

processos de ruptura. Em cada momento histórico, a ciência estaria atrelada a diversos aspectos

contextuais.

A história da ciência não pode ser considerada como algo novo, pois a utilização de

exemplos científicos na literatura acadêmica é uma antiga tradição entre filósofos. Entretanto,

a história da ciência foi amplamente utilizada até Kuhn sobretudo para indicação de datas de

feitos científicos, entre outros elementos de menor impacto para o exame do funcionamento da

ciência. A diferença estabelecida é que a partir da contribuição dada na Estrutura, a história da

ciência passou a ser utilizada de forma mais qualitativa, como instrumento para a análise

filosófica da ciência.

Na antiga tradição, os elementos da história da ciência servem para garantir a

compreensão comum de que a ciência é desenvolvida por processos de acumulação. Como já

vimos até então, para Kuhn, a ciência se desenvolve por processos de ruptura e a história da

ciência tem fundamental importância na justificação dessa ideia.

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Os exemplos históricos são abundantes na Estrutura, principalmente os da história da

física, não por acaso, já que é a área de formação inicial do filósofo. A quantidade de exemplos

é tão grande, que a caracterização da filosofia de Kuhn como sendo um giro histórico deve ser

considerada como pertinente.

A utilização dos exemplos históricos deve ser compreendida como a principal maneira

de analisar o desenvolvimento da ciência por meio de processos de ruptura. É por meio da

investigação de diversos períodos da ciência que Kuhn fundamenta sua ideia de

desenvolvimento científico, de forma que sua filosofia da ciência não pode ser sustentada sem

o levantamento histórico desenvolvido.

Segundo Laudan,

Os que mantêm a concepção de a filosofia ser um empreendimento inteiramente

normativo podem contestar a afirmação de que uma disciplina descritiva como

a história possa ter algum impacto significativo na filosofia (LAUDAN et al.,

1993: 12).

Muito mais do que a obra de Kuhn, o entendimento que temos da ciência seria

drasticamente reduzido não fosse a capacidade filosófica de lançar mão dos aspectos

importantes dos capítulos históricos. Conforme a célebre frase de Lakatos (1983: 107) “a

filosofia da ciência sem a história da ciência é vazia”.

Ainda que a intenção não seja alinhar Kuhn a uma escola, a relação que ele mantém com

os exemplos históricos da produção científica traria um sentimento de pertencimento maior à

análise histórica do que qualquer outra análise que se possa inferir. No entanto, há que se

reconhecer as críticas vigentes sobre a maneira como se utilizam esses exemplos históricos,

pois

Qualquer filosofia da ciência, especialmente aquelas que reclamam garantia

empírica, deve submeter-se a testes muito mais sofisticados e elaborados do que

qualquer um que se tenha empreendido. Impressões pessoais de que um modelo

particular "adequa-se" a um certo domínio de casos, confiança em estudos

históricos secundários ou terciários de informações sobre os casos em questão,

fracasso em formular hipóteses sob teste com precisão detalhada, relutância em

comparar as capacidades relativas das teorias rivais no trato do mesmo domínio

de casos, restrição do domínio de casos considerados a um punhado de cinco ou

seis revoluções preferidas (comumente aquelas associadas a Copérnico,

Galileo, Newton, Lavoisier, Darwin e Einstein), insistência na avaliação

holística de modelos inteiros ao invés da análise pormenorizada de suas

afirmações componentes — essas e muitas outras falhas epistêmicas devem

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levantar dúvidas sobre o compromisso sincero e pleno da escola histórica em

testar suas teorias frente aos relatos empíricos (LAUDAN et al., 1993: 14).

Embora a crítica nos pareça pesada em demasia, há que se aceitar como válida,

principalmente se for tomada como alerta, pois da mesma armadilha que sofre o cientista

quando tenta “encaixar” a natureza em suas teorias, também pode padecer o filósofo da ciência,

procurando os exemplos que se adequam à suas ideias. Mas, se assim for, não teria o exemplo

cumprido seu papel e a explicação não seria aceitável, uma vez que o exemplo se encaixou com

primazia na ideia defendida? Assim sendo, continuaremos defendendo a utilização do exemplo

histórico, mas levando em consideração que o trabalho da filosofia da ciência vai além da

pesquisa filosófica comum, pois há que se considerar um método para que a validade do que se

é dito também possa ser aferida.

Dessa forma, os problemas implicados pela citação acima nos parecem menos

problemáticos do que numa primeira leitura, posto que a escolha dos exemplos é salutar, já que

sua função primeira é servir como ilustração da ideia defendida. Além disso, qualquer exemplo

que possa ser tratado pode e deve ser tomado como histórico, não sendo possível para nós

escapar da historicidade dos fatos científicos.

2.4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na Estrutura, encontram-se os principais elementos para compreender o modelo de

desenvolvimento da ciência que Kuhn trabalhou ao longo de sua vida acadêmica. Embora

questões adicionais tenham sido tratadas por ele35, é possível compreender o modelo com base

na leitura da Estrutura. As adições empreendidas por Kuhn nos textos posteriores à Estrutura,

devem ser compreendidas como ampliação do modelo original, e por isso não estão sendo

consideradas aqui.

Com relação ao funcionamento do modelo de Kuhn e o impacto que pode causar no

trabalho científico, é importante destacar que não há nenhuma intenção explícita de tornar o

modelo como normatizador da atividade científica. A filosofia empreendida por Kuhn se dá no

sentido de compreender o funcionamento da ciência, e não de determinar como a ciência

deveria funcionar.

35 Os textos publicados em O caminho desde A estrutura são exemplos disso.

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O modelo de desenvolvimento da ciência de Kuhn gira em torno de um paradigma que

envolve a comunidade científica e a impulsiona em busca da compreensão do mundo. Durante

o período anterior ao de ciência normal, o paradigma foi eleito como legítimo representante das

intenções de solucionar o conjunto de anomalias observadas durante o período de crise. Nesse

caso, a função do paradigma é fornecer respostas plausíveis às perguntas que são feitas ao longo

do processo científico.

Há que se considerar que, se ciência “é a reunião de fatos, teorias e métodos reunidos

nos textos atuais”, então os cientistas são “homens que, com ou sem sucesso, empenharam-se

em contribuir com um ou outro elemento para essa constelação específica”. O desenvolvimento

científico “torna-se o processo qualitativo do qual esses itens foram adicionados, isoladamente

ou em combinação, ao estoque sempre crescente que constitui o conhecimento e a técnica

científicos” (KUHN, 1992: 20).

Numa imagem ideal do processo de descoberta científica, seria oportuno que o cientista

registrasse seu trabalho com um caráter filosófico, ou seja, pensando o limite e o

desenvolvimento do método empregado. Parece que Kuhn quer mostrar que isso não ocorre na

produção do conhecimento científico e propõe a tomada mais enfática da história da ciência.

Esta, por sua vez, seria responsável por relatar e resguardar o desenvolvimento da ciência, assim

como responsável por citar os erros, equívocos e omissões do processo científico, pois o

historiador da ciência,

De um lado deve determinar quando e por quem cada fato, teoria ou lei

científica contemporânea foi descoberta. De outro lado deve descrever e

explicar os amontoados de erros, mitos e superstições que inibiram a

acumulação mais rápida dos elementos constituintes do moderno texto

científico (KUHN, 1992: 20).

O papel do historiador da ciência não seria um dos mais fáceis, pois lidar com uma

quantidade tão surpreendentemente grande de dados, que é a produção científica, com o

objetivo de perceber as falhas dos mais diversos caminhos percorridos pelo cientista em seu

trabalho, parece-nos ser bastante importante para o filósofo.

Além disso, o trabalho histórico na concepção em tela demandaria também uma

constante análise filosófica, na medida em que seria necessário determinar os erros atrelados às

escolhas metodológicas e/ou limitações da época.

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Quanto aos manuais, não se está propondo uma supressão deles, pois há neles muita

utilidade para a coesão do paradigma. No entanto, uma melhoria na relação que o cientista

estabelece com eles e, sobretudo, na perspectiva que eles são construídos seria um passo

importante a ser dado.

Conforme Laudan,

Inúmeros e veementes tributos verbais têm sido prestados à idéia de que a

história da ciência e a filosofia da ciência dependem totalmente uma da outra.

Apesar disso, o casamento entre as duas disciplinas, sancionado e perpetuado

pela existência de dezenas de departamentos acadêmicos consagrados à questão

parece, muitas vezes, mais imaginário do que real e mais forçado do que natural.

É evidente que a presença de departamentos e cadeiras universitárias com

nomes híbridos não é suficiente, por si mesma, para demonstrar uma afinidade

real entre os dois tópicos. Além disso, na prática efetiva, os dois são, com

freqüência, inteiramente irrelevantes um para o outro (LAUDAN, 2000: 9).

A contradição em relação ao pensamento de Kuhn é aparente. A tentativa de relacionar

saberes tão distintos – e por vezes tão complementares – é entendida por Laudan como

problemático, sobretudo porque, como bem assevera, os departamentos continuam sendo

bastante distintos – e também distantes. Propor um conhecimento pautado na relação entre

filosofia, história e ciência não nos parece algo fácil.

Mas, se por um lado as divergências entre os departamentos de filosofia da ciência e da

história da ciência são aparentes, por outro o trabalho fundido entre esses dois tópicos se faz

necessário. A constatação apresentada por Laudan (2000) não nos parece suficiente para refutar

as ideias de Kuhn, pelo contrário, reforçam ainda mais a crítica kuhniana em relação ao trabalho

científico.

Não há dúvidas de que o modelo pretendido por Kuhn está sujeito a muitas críticas,

sobretudo pela forma que ele pode ser delineado. Não é um ciclo, pois se assim fosse, teria que

ser possível considerar que vez ou outra a ciência volta ao mesmo estágio. Mas também não é

uma linha completamente conectada de fatos que se relacionam em grau de especificidade cada

vez maiores, pois teria que ser considerada a ideia de acúmulo e de progresso, essa última

completamente avessa às ideias kuhnianas.

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3. O POSFÁCIO DE 1969 COMO PARTE DA ESTRUTURA

3.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A partir de agora discutirei o Posfácio introduzido na Estrutura em 1969. Como já

indiquei, considero a abordagem feita por Kuhn no Posfácio como complemento da Estrutura,

uma vez que nenhum tema novo foi tratado ali. Alguns autores referendam essa ideia e

concordam com o que aqui está sendo defendido. Como indica Marcum,

O evento de publicação da Estrutura não pode ser considerada como um evento

único de 1962, mas como a extensão entre 1962 a 1970. Após a publicação

original da Estrutura, Kuhn se ocupou durante o resto dos anos 60 com as

críticas dirigidas às ideias contidas no livro, especialmente com a ideia de

paradigma. Durante esse tempo, ele continuou a desenvolver e refinar a imagem

de ciência desenvolvida por ele. O ponto final foi a segunda edição da

Estrutura (...). O texto da edição revisada, no entanto, permaneceu

essencialmente inalterado e apenas um Posfácio foi adicionado, no qual Kuhn

se dirige aos seus críticos (MARCUM, 2005: 57).

O que se percebe no Posfácio é a elucidação de alguns conceitos discutidos em 1962 e

tomados como pouco claros e confusos pelos críticos de Kuhn36. A tarefa empreendida por ele

– de resolver as questões apontadas por seus críticos – se revelou bastante complexa, posto que

somente no final da década de 60 havia sido acabada. A Estrutura é, sem dúvida, uma obra

memorável, mas careceu de clareza em suas páginas, sobretudo nas definições possíveis da

ideia de paradigma. Kuhn, acredito, pretendeu torná-las mais claras em seu Posfácio de 1969,

embora não tenha deixado essa intenção explicitada37.

A ampliação proposta por Kuhn no Posfácio poderia ser tomada como uma modificação

do modelo original; não seguirei em defesa dessa direção. Considero complementar porque

36 A esse respeito Mendonça (2012) faz um levantamento dos principais argumentos que defendem que há pouca

clareza nas ideias apresentada por Kuhn na Estrutura. Segundo Mendonça (2012: 537), o texto de Kuhn sofreu

acusações de polissemia e equivocidade, empreendidas, respectivamente por Masterman (1970) e Shapere (1984). 37 Segundo Kuhn (1992: 217), em uma nota de rodapé, a motivação da publicação do Posfácio junto à edição da

Estrutura de 1969 se deu em virtude de uma sugestão de um antigo aluno, Dr. Shigeru Nakayama, quando da

tradução da obra para o japonês. Posteriormente, o Posfácio foi incluído na versão inglesa e vem sendo incorporado

nas edições desde então. Kuhn nunca se opôs e nunca o tratou como uma nova conceituação dos problemas

presentes no texto de 1962.

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Kuhn não deixou expressa a ideia de que o Posfácio seria uma parte adicional de seu modelo.

Além do mais, é de se esperar, dada a complexidade da nova imagem de ciência apontada por

Kuhn, que tenha demorado a segunda edição do texto de 1962.

O Posfácio representa para a filosofia da ciência e para todo o conjunto da obra de Kuhn

uma contribuição bastante relevante. Nele é apresentado um aclaramento necessário para a

compreensão correta da noção de paradigma. Kuhn discute de forma mais detalhada alguns

pontos considerados pela crítica como obscuros no texto de 1962. Sou levado a imaginar, de

forma contrafactual, que se o teor do Posfácio já tivesse sido introduzido na primeira edição do

livro, talvez tivesse diminuído a quantidade de críticas que sua obra sofreu e vem sofrendo

ainda hoje.

Embora Kuhn tenha levado em consideração a crítica empreendida por Masterman

(197038) – na qual ela apresenta pouco mais de duas dezenas de conceitos atrelados à ideia de

paradigma – ele defende a plena concentração do conceito em somente duas áreas

complementares: a) os paradigmas como compromissos de grupo; e b) os paradigmas como

exemplos compartilhados.

No texto de 1970, Masterman aponta vinte e um usos distintos para a utilização do termo

paradigma, que foram por ele divididos em três grupos: 1) Paradigmas metafísicos; 2)

Paradigmas sociológicos; e 3) Paradigmas artefatos (MASTERMAN, 1970: 65). À primeira

vista, a importância dada por Kuhn à crítica de Masterman parece ser pouca, haja vista que

propôs uma divisão bem mais simplificada na utilização do termo, considerando somente em

parte a crítica empreendida por ela. No entanto, o Posfácio se revela como construído para lidar

com as dificuldades apresentadas pela quantidade de definições possíveis do termo

“paradigma” no texto de Masterman.

Uma leitora simpatizante, que partilha de minha convicção de que o

“paradigma” nomeia os elementos filosóficos centrais deste livro, preparou um

índice analítico parcial e concluiu que o termo é utilizado em pelo menos vinte

e duas maneiras diferentes. Atualmente penso que a maioria dessas diferenças

é devida a incongruências estilísticas (...) e podem ser eliminadas com relativa

facilidade. Feito esse trabalho editorial, permaneceriam dois usos muito

distintos do termo, que devem ser distinguidos (KUHN, 1992: 226).

38 Registrado originalmente em 1965, como registros dos anais do International Colloquium in the Philosophy of

Science, ocorrido em Londres e somente publicado em 1970.

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71

Não considero que a empreitada de Masterman fosse a de denunciar a obra de Kuhn

como inconclusiva ou pouco esclarecedora, mas como uma contribuição à nova imagem de

ciência forjada por Kuhn, que, segundo afirma Marcum,

propôs na Estrutura uma nova imagem da ciência, especialmente em relação ao

processo de desenvolvimento da ciência ao invés de seu produto. Esta imagem,

afirmou Kuhn, difere radicalmente da imagem tradicional da ciência. Essa

imagem dependia de uma mudança da análise lógica que explicava o

conhecimento científico como um produto acabado para uma descrição

histórica das práticas científicas e dos processos pelos quais o conhecimento

científico é produzido por uma comunidade de praticantes (MARCUM, 2005:

57).

Independente de Kuhn estar ou não preocupado com a crítica, o Posfácio nos traz uma

complementação ao conceito de paradigma, e deve ser considerado como importante por isso.

Julguei necessário fazer nesta Dissertação uma discussão sobre o Posfácio e seu caráter

complementar, por considerar que o modelo só pode ser considerado como completo quando

levado em consideração os dois usos mencionados.

3.2. OS PARADIGMAS COMO COMPROMISSOS DE GRUPO

O aspecto que tratarei a partir de agora é o que recebe maior ênfase por Kuhn em seu

Posfácio. Nele, as áreas complementares abarcadas pelo paradigma revelam-se em uma noção

mais madura em relação ao texto original, na qual, para designar paradigma, Kuhn utiliza o

termo “matriz disciplinar” (KUHN, 1992: 226). Esse termo serve para designar a finalidade da

utilização do paradigma no contexto da produção científica, que é de servir como uma espécie

de fonte da qual emanam as diretrizes da atividade científica.

Em sua relação com a comunidade da qual faz parte, o paradigma enquanto matriz

disciplinar é como uma “posse comum aos praticantes de uma disciplina particular” (KUHN,

1992: 226).

Segundo o Posfácio, as diretrizes emanadas do paradigma enquanto matriz disciplinar

são aqueles descritos na figura seguintes:

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FIGURA 3.1 – Conceitos atrelados à matriz disciplinar

Cada conceito atrelado à matriz disciplinar compreende um espaço no qual o fazer

científico está concentrado em regras gerais de caráter metodológico, que orientam a ação das

comunidades científicas em sua prática e também nas delimitações disciplinares.

Segundo Kuhn, “um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham

e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma”

(KUHN, 1992: 219). A definição do paradigma agora é apresentada por Kuhn a partir de uma

relação de complementaridade, a qual relaciona o trabalho da comunidade científica com o

desenvolvimento do paradigma. Dessa forma, uma comunidade não pode existir sem um

paradigma que a congregue e um paradigma não pode existir sem uma comunidade que o

compartilhe.

Fica mais simples compreender essa noção se observarmos a importância do trabalho

empreendido no período de ciência normal para o conjunto do paradigma. Uma vez que o

paradigma é limitado quando de seu surgimento, o trabalho de ciência normal consiste em

alargá-lo, o que implica, necessariamente, em um sucessivo conjunto de testes com essa

finalidade. Complementar a isso, o que guia o trabalho da ciência normal é o paradigma que

está sendo alargado, ao mesmo tempo que fornece condições metodológicas para o trabalho de

ser continuamente inspecionado.

Nesse elemento, subjaz um provável problema: as condições para que possam ocorrer

testes são fornecidas pelo paradigma que está em uso. Mas é nesse processo de caráter duplo

que o paradigma é desenvolvido, tornando-se o elemento que traduz as expectativas científicas

na descrição do trabalho empírico empreendido pela ciência. A duplicidade empreendida é uma

construção contínua do próprio paradigma com base nele mesmo.

MATRIZ DISCIPLINAR

Generalizações simbólicas

Crenças em determinados modelos

Valores

Exemplares

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As implicações diretas dessa metodologia encontram dificuldades quando analisadas

sob a ótica de que deveria haver um método externo para averiguar a validade do que está sendo

proposto – conforme o método popperiano, por exemplo. No entanto, aí haveria uma

circularidade ao infinito, pois seria necessário um “método verificador do método”, por assim

dizer, e na sequência, um outro método e assim sucessivamente. No caso do paradigma, ele por

si só, já é tomado como suficiente, o que também gera seus problemas, como observam bem os

críticos do modelo kuhniano.

Quanto à relação da comunidade com um paradigma, a duplicidade mostra que no

mesmo instante em que um paradigma é definido pelo uso que uma comunidade científica faz

dele, a comunidade científica também é definida pelo paradigma que é compartilhado.

Quando falamos em comunidade, compreendemos uma parcela do grupo de humanos

que estão numa relação de proximidade por possuírem algo em comum. Essas pessoas estão

agrupadas por razões que as fazem compartilhar expectativas e entendimentos que, comuns,

estão sendo alterados conforme regras que são criadas em seu interior. As comunidades

científicas apontadas por Kuhn não são diferentes, compartilham informações, perspectivas e

criam suas próprias regras. O desenvolvimento da ciência em comunidades implica o

agrupamento de indivíduos pelo compartilhamento de ideias, de expectativas e interesse.

Para Kuhn, uma comunidade científica é formada por participantes de uma

especialidade científica, que foram submetidos a uma iniciação profissional numa extensão sem

precedentes em uma determinada área. A formação de uma comunidade é um processo amplo,

que implica a vinculação com uma disciplina específica capaz de agregar interessados em

discutir as questões que são suscitadas por ela.

A comunidade possui um objeto de estudo próprio, ainda que este também possa ser

considerado por outras comunidades, que podem trabalhá-lo com um enfoque diferente. Nesse

caso, o que dá a característica de comunidade é a abordagem empreendida. Isso quer dizer que

se cada abordagem pode significar um grupo, a noção de paradigma presente no Posfácio revela

um entendimento de que podem existir diversos paradigmas ao mesmo tempo, o que não esteve

claro na edição de 1962.

Como existem formas diversas de discutir o mesmo aspecto de um objeto de

investigação científica, a determinação de uma disciplina de interesse por parte do cientista

implica uma série de fatores, aos quais o cientista foi submetido por longo tempo. A submissão

do cientista em uma determinada área de interesse é como um processo educacional, no qual

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um paradigma servirá de escola. Tal aspecto da formação do cientista geralmente ocorre em seu

processo de formação profissional.

As características que marcam o surgimento e o desenvolvimento de um paradigma

estão relacionadas ao amadurecimento de uma ciência, i.e., as condições fundamentais para a

existência de um paradigma relacionam-se à capacidade que uma comunidade tem em lidar

com ele, fazendo dele um elemento necessário para aglutinar os direcionamentos necessários

para o contínuo desenvolvimento dessa ciência. Dessa forma, a ciência sem um paradigma é

considerada como imatura.

Inclua-se na ideia de ciência amadurecida a capacidade que os cientistas têm em lidar

com a existência de paradigmas e sua função no desenvolvimento da ciência. A duplicidade

proposta pela existência de um paradigma pode confundir o cientista em seu fazer habitual,

principalmente por representar, de alguma forma, que o trabalho que ele desenvolve poderá ser

suprimido quando da maturidade de uma disciplina científica.

Essa maturidade implica: a) a capacidade de uma ciência desenvolver um paradigma; e

b) o contínuo esforço de relacionar-se com o paradigma - ainda que de forma não consciente -

na tentativa de esclarecer os problemas que surgem ao longo da pesquisa científica.

A ampliação do modelo predito por Kuhn agora conta com uma divisão da história da

ciência sob a ótica da maturidade e da imaturidade. Essa ideia está explicitada a partir de duas

definições de ciência: ciência pré-paradigmática e ciência pós-paradigmática. Entre os dois

períodos encontra-se o paradigma que é complementar às duas fases. Seu surgimento se dá no

instante em que o período pré-paradigmático focaliza o trabalho na eleição de um paradigma,

o qual passará a caracterizar o fazer científico em um período seguinte superior.

Em linhas gerais, poderemos observar esse desenvolvimento a partir do esquema

indicado na figura que segue.

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FIGURA 3.2 – O desenvolvimento da ciência segundo o Posfácio de 1969

No esquema apresentado, a ciência é demonstrada como uma atividade constante, na

qual etapas se substituem em direção ao desenvolvimento de um paradigma. A ciência pós-

paradigmática desenvolve-se por meio de um paradigma e seu trabalho consiste em explorar os

limites dele. Embora na forma inicial a ciência pré-paradigmática não possua um paradigma,

segundo a compreensão de Kuhn, sua organização desemboca na construção de um.

Importante notar que mesmo na ciência pós-paradigmática o paradigma continua tendo

papel de destaque. No entanto, o esquema não pode estar completo, tendo em vista que ele

retrata a ciência de forma geral a partir de sua divisão entre imatura e madura, e não da sucessão

de paradigmas, como acontece no período de ciência pós-paradigmática.

O que viria depois da ciência amadurecida é algo que não pode ser previsto segundo o

modelo. Qualquer previsão nesse sentido acarretaria numa tentativa de defender que a ciência

em algum momento ou seria substituída por outro tipo de conhecimento ou o que achamos ser

uma ciência madura na verdade seria considerada no futuro como imatura.

A ciência pré-paradigmática se organiza numa tentativa de estabelecer limites em uma

disciplina, determinando seu objeto de estudos. Esse caminho acaba permitindo a existência de

algo que perpassa toda essa organização, que é o paradigma. Este, por sua vez, fornecerá as

diretrizes para que tenhamos uma “ciência paradigmática” ou “amadurecida”.

CIÊNCIA PRÉ-PARADIGMÁTICA

FORMA INICIAL

Diversas escolas competem pelo domínio de um campo de estudos

determinado

TRANSIÇÃO

Redução do número de escolas (em geral para

uma única)

Prática científica esotérica e orientada

para a solução de quebra-cabeças

PARADIGMA

CIÊNCIA PÓS-PARADIGMÁTICA

Natureza do paradigma alterada em relação ao

momento inicial

Pesquisa normal orientada para a

resolução de quebra-cabeças

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A ideia de matriz disciplinar parece completar a noção de ciência amadurecida, que

agora conta com um elemento capaz de fornecer expectativas para o trabalho de investigação

científica, normatizando metodologicamente essa atividade e agrupando sujeitos em

comunidades que partilham as mesmas perspectivas de trabalho. A maturidade, portanto,

consiste em ter um paradigma como orientador.

Embora a ideia de matriz disciplinar denote a intenção de Kuhn em mostrar que a

comunidade é aglutinada de forma especializada em uma disciplina, o caráter disciplinar

também deve ser definido como o conjunto de regras que são utilizadas pela comunidade e

norteiam as atividades desta, sejam eles de caráter metodológico ou de valores compartilhados.

Todos ou quase todos os objetos de compromisso grupal que meu texto original

designa como paradigmas, partes de paradigmas ou paradigmáticos, constituem

essa matriz disciplinar e como tais formam um todo, funcionando em conjunto

(KUHN, 1992: 227).

Sobre as partes integrantes da matriz disciplinar (“generalizações simbólicas”, “crenças

em determinados modelos”, “valores” e “exemplares”) deve-se destacar, em primeiro lugar,

que as “generalizações simbólicas” constituem elementos comuns no interior do paradigma e

são complementares a ele. Tais generalizações possibilitam pontos de apoio para os membros

do grupo, tanto de caráter técnico, i.e., aquele caráter que permite manipulações da teoria,

quanto de caráter matemático, que permite a construção de equações que possam ser

compartilhadas.

Cada membro de uma comunidade organizada por meio de uma disciplina pode ter

ideias particulares sobre o objeto de estudo. Todavia, cada ideia nova deve estar de acordo com

as generalizações simbólicas compartilhadas pelo grupo, sob pena de serem consideradas como

uma abordagem diversa, o que implica no não pertencimento daquela disciplina. Tais

generalizações podem sofrer alterações com o tempo, todavia, seu caráter legislativo e definidor

continua, sendo de extrema importância para a identidade de uma comunidade.

As “crenças em determinados modelos” são comuns ao paradigma. Fornecer modelos é

uma das funções básicas do paradigma. Tais modelos servem de base para a investigação

científica e podem variar de intensidade quanto a sua aplicabilidade. Embora possam variar de

intensidade, os modelos fornecem uma série de compromissos teóricos, aos quais os membros

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que compartilham o paradigma se submetem, orientando-se por meio deles para a construção

de definições sobre as observações realizadas.

Quando surgem problemas que possam ser identificados como pequenas anomalias, os

membros da comunidade, entretanto, não precisam compartilhar modelos heurísticos de

resolução, o que acarreta a busca por soluções de formas e em níveis variados. Neste instante

pode ocorrer que alguns modelos heurísticos não consigam resolver os problemas oriundos do

alargamento do paradigma, o que não implica necessariamente na iminência de sua superação.

Via de regra, haverá uma superação do paradigma somente quando esgotadas as possibilidades

empreendidas pela comunidade na resolução de anomalias.

Os “valores” constituem a parte mais complexa da matriz disciplinar, pois são

compartilhados de forma mais ampla e por isso podem sofrer divergências quanto a sua

aplicação. Os valores contribuem de forma bastante impactante para o sentimento de

participação da comunidade e implicam em como o cientista deve desenvolver sua disciplina.

O foco principal para tal aspecto é sua utilização no julgamento de teorias completas.

Ou seja, é por meio desse aspecto da matriz disciplinar que as teorias são julgadas. Por conta

do sentimento de participação emanado dos valores, os cientistas têm uma forte tendência a

defende-los.

Os valores compartilhados podem ser determinados mesmo havendo divergências de

aplicação pelos membros do grupo, o que gera formas diversas de se relacionar com eles. O

valor em si é maior que sua utilização, o que garante sua aplicabilidade em processos nos quais

estão sendo julgadas teorias que explicam o mesmo fenômeno.

Para que uma teoria seja aceita, acontece no interior da comunidade um constante

processo de julgamento que leva em consideração elementos como: simplicidade, coerência

interna e plausibilidade. Para que julgamentos possam ser executados, é necessário que algo em

comum possa ser tomado como referência. Para que os julgamentos possam se dar de forma

satisfatória, é necessário a existência de outro elemento, que Kuhn chama de “exemplares”

(KUHN, 1992: 231-232).

Segundo Abrantes,

Por exemplares Kuhn entende um conjunto de problemas e de soluções-

padrão, que materializam o consenso da comunidade científica, guiando

sua prática num período de ciência normal e que são transmitidos pelos

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manuais durante a formação dos cientistas. Espera-se que, por

modelagem, o cientista em seu trabalho científico normal, consiga

resolver novos problemas, pautando-se pelas soluções já estudadas

anteriormente para problemas similares (ABRANTES, 1998: 63).

Os exemplares são soluções concretas encontradas pela comunidade desde o início do

trabalho empreendido. Máximas relacionadas à gravitação dos planetas, o ciclo das chuvas ou

regularidades climáticas em virtude de concentrações específicas de gases na atmosfera, podem

ser utilizados como exemplos que fornecerão dados relativamente seguros para a construção de

modelos de trabalho.

Os exemplares indicam como o trabalho científico deve ocorrer, definindo normas e

limites nas abordagens de uma comunidade. Sem tais exemplares, não poderia haver na ciência

uma espécie de compêndio ou jurisprudência sobre como os dados podem ser analisados em

situações corriqueiras.

À medida em que o treinamento do cientista acontece, as generalizações simbólicas são

mais especificadas por meio de conjunto de exemplares. Isso pode ser observado pela análise

do currículo de um cientista em formação. Prossegue-se didaticamente das questões mais

simples às questões com maior nível de complexidade. Se considerarmos que o cientista está

em constante formação, essa noção encontrará especial relevância na análise que já empreendi

sobre o uso de manuais na produção científica, posto que eles compõem uma forma bastante

eficaz na divulgação de exemplares. Em resumo, apresento na figura a seguir um esboço de

como se desenvolve a matriz disciplinar.

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FIGURA 3.3 – Matriz disciplinar ampliada

3.3. OS PARADIGMAS COMO EXEMPLOS COMPARTILHADOS

O conhecimento científico está fundado na teoria e nas regras; os problemas são

fornecidos para que se alcance destreza daquelas. Todavia, tentei argumentar

que esta localização do conteúdo cognitivo da ciência está errado. O estudante

que resolveu muitos problemas pode apenas ter ampliado sua facilidade para

resolver outros mais. Mas, no início e por algum tempo, resolver problemas é

aprender coisas relevantes a respeito da natureza. Na ausência de tais

exemplares, as leis e teorias anteriormente aprendidas teriam pouco conteúdo

empírico (KUHN, 1992: 232-233).

Ao dividir a utilização do paradigma em dois pontos principais, e discutir neste ponto a

importância dos exemplares no aprendizado do paradigma, Kuhn quer nos mostrar que nenhum

MAT

RIZ

DIS

CIP

LIN

AR

Generalizações simbólicas

Expressões geralmente aceitas pelo conjunto da comunidade

Assemelha-se à leis da natureza, mas também prestam-se à definição de símbolos comuns nas predições que esta subjaz.

Crenças em determinados

modelos

Abrange tanto modelos heurísticos quanto ontológicos

Fornecem ao grupo analogias ou metáforas (permissíveis)

Auxiliam a determinar o que será aceito como "explicação" ou como "solução de quebra-cabeças não solucionados", bem como avaliar sua importância

Valores

São mais amplamente compartilhados que as generalizações simbólicas e os modelos

Contribuem para o sentimento de pertencimento a uma comunidade global

Está relacionado às escolhas metodológicas, pois implicam em como o cientista deve praticar sua disciplina

São utilizadas para julgar teorias completas: precisam permitir a formulação e solução de quebra-cabeças

Podem ser compartilhadas por sujeitos que divergem de sua aplicação

São imprescindíveis no julgamento de simplicidade, coerência interna e plausibilidade de teorias (pode variar de indivíduo para indivíduo)

Exemplares

São as soluções concretas que são encontradas pelos estudantes desde o início de seu trabalho

Indicam como o trabalho científico deve ocorrer

Definem os limites das comunidades científicas

Tornam as generalizações simbólicas mais específicas

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paradigma poderia existir sem uma escola que o tornasse possível. A atenção especial que se

percebe, pode ser justificada pelos pontos que discuto a seguir.

O paradigma precisa ser compartilhado, ou seja, precisa ser fruto da interação de sujeitos

diferentes que visualizem nele uma promessa para resolver os problemas até agora sem solução.

Quanto mais houver iniciativas nesse sentido, o paradigma será fortalecido.

Existem entre comunidades diferentes uma disputa sobre o domínio de conhecimento,

que pode ser analisada também pelo aspecto político. A disputa entre comunidades pode se dar

a partir da análise que cada uma faz de certo objeto, o que gera uma disputa para que seja

definido quem consegue explicar esse objeto de forma mais apropriada. Essa disputa é resolvida

de forma científica, mas também de forma política, pois prevalecerá aquela explicação que tiver

mais aceitação.

A escola serve para alinhar pesquisadores iniciantes com os compromissos teóricos

oriundos do paradigma enquanto matriz disciplinar, fazendo com que os iniciantes,

dificilmente, rompam com sua formação inicial. Como eles tiveram um aprendizado com o

paradigma sem precedentes em relação a outros, o paradigma analisado foi sua escola e

compreenderá o conhecimento que o cientista tem como basilar.

Os exemplos compartilhados possuem uma natureza pedagógica, que além de servir

como parâmetro, pois implicam maneiras para encontrar resultados, fazem com que o cientista

acredite que não poderia ser de outra maneira. Os resultados obtidos em uma análise sempre

serão comparados aos exemplos compartilhados e a proximidade com eles servirá de parâmetro

para indicar se a pesquisa está indo na direção certa.

O processo de aprendizagem e compartilhamento de um paradigma inicia-se na

resolução de problemas exemplares e isso cria no cientista a noção de que, se ele for

devidamente treinado e inteligente, poderá resolver os mistérios ocultos na descrição dos

fenômenos em teorias corretas. As análises oriundas dessa empreitada se darão em virtude da

influência que o paradigma representa para o cientista, ou seja, conseguir resolver os problemas

que se apresentam ao longo de seu trabalho corresponde à construção da compreensão mais

pormenorizada possível do funcionamento do paradigma.

Parece que a conclusão evidente deste processo é que, ao final do aprendizado por meio

de exemplares, o cientista não conhecerá a natureza das coisas, mas sim o paradigma que foi

compartilhado e tomado como modelo. Os conjuntos de exemplares possibilitam os primeiros

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contatos do estudante com o paradigma. Esse contato é aprimorado por meio de sucessivos

testes. Kuhn chama isso de “aprender por meio de problemas” (KUHN, 1992: 236).

FIGURA 3.4 – Exemplares no aprendizado do paradigma

A utilização que Kuhn faz da ideia de exemplares não está completamente afastada da

forma usual como se utilizam os exemplos. Comumente utilizamos exemplos com a finalidade

de demonstrar alguma ideia de forma mais clara, por meio de uma aplicação prática de alguma

teoria. Exemplificamos todos os dias, em situações diversas. Quando alguma ideia que estamos

discutindo não fica clara para nossos ouvintes, utilizamos exemplos para clarificar a ideia.

Também utilizamos exemplos para sustentar uma ideia – aqui, o exemplo vem acompanhado

de uma aplicação.

Em Kuhn, os exemplares atuam de forma semelhante aos exemplos, pois também

servem para clarificar ideias e para sustentá-las. Entretanto, na utilização em relação ao

paradigma, possui certa especificidade. Na figura anterior, essa especificidade é demonstrada

por meio de três utilizações: a) aprendizado por meio de problemas; b) observação de situações

como “semelhantes”; e c) conhecimento da natureza aplicando a relação de semelhança entre

predições do paradigma.

Posso concluir que os exemplares no aprendizado do paradigma possuem uma função

importantíssima não só no aprendizado, mas colaborando como estímulo para o cientista. Toda

vez que a utilização de exemplares possibilita a constatação de algo novo, que pode ser

incorporado nas predições do paradigma como elemento que contribui para o alargamento dele,

o cientista se sente mais motivado para continuar suas investigações.

EXEMPLARES NO APRENDIZADO DO

PARADIGMA

Aprendizado por meio de problemas

Observação de situações como "semelhantes"

Conhecimento da natureza aplicando a relação de semelhança entre predições do paradigma

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Além disso, os exemplares são a forma mais explícita do funcionamento do paradigma,

pois representam sua utilização empírica. Na prática, os exemplares são seguidos como

parâmetros e isso faz com que a comunidade tenha objetivos em seu trabalho. Da mesma forma

que os exemplares implicam objetivos do grupo, possibilitam também que o grupo observe

realizações de fato na utilização do paradigma. É por meio da consideração desses exemplares

que a comunidade percebe que o caminho que tem sido percorrido está fluindo de forma

positiva.

3.4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sobre a ideia de comunidade presente no Posfácio, posso concluir que é composta pelos

participantes de uma especialidade científica, os quais são submetidos a uma iniciação

profissional numa extensão superior em comparação às outras disciplinas.

Uma comunidade científica possui seus próprios objetos de estudo, os quais podem ser

também objetos de outras escolas. Nesse caso, o que torna uma comunidade específica é a

abordagem que esta faz em relação ao objeto. O paradigma regula a atividade dessa comunidade

no trato teórico dado às observações provenientes do objeto em questão, o que permite

abordagens singulares.

Além disso, uma comunidade se organiza em níveis diferentes. Isso acontece por meio

de grupos e subgrupos que se destacam conforme o enfoque e a especialização em um aspecto

do objeto compartilhado. O compartilhamento de um paradigma é característica principal de

uma comunidade.

Os principais avanços contidos no Posfácio, em relação ao texto de 1962, é o

aclaramento dos usos do paradigma como compromissos de grupo e como exemplos

compartilhados. Ao dividir a ideia de paradigma em dois eixos principais, foi possível observar

sua atuação a partir de uma organização mais lógica.

A divisão pressupôs as utilizações mais fundamentais do paradigma, permitindo que os

outros aspectos do paradigma estivessem vinculados aos eixos mais amplos. Cada utilização

posterior ao eixo mais amplo pode ser compreendida como desdobramentos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se a História fosse vista como um repositório para algo mais do que anedotas

ou cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de

ciência que atualmente nos domina (KUHN, 1992: 19).

Inicio minhas Considerações Finais com esta citação, uma das primeiras passagens da

Estrutura e certamente uma das mais impactantes também. Esta citação resume a intenção de

Kuhn: construir uma nova imagem da ciência. Com a citação, Kuhn propõe uma análise sobre

a maneira corriqueira que se pensava a ciência. Do ponto de vista historiográfico, não se trata

de analisar “quem fez o que” e “quando”, mas de utilizar a história como auxiliar das reflexões

sobre o fazer científico em seu processo.

Ainda que a intenção de construir uma nova visão da ciência tenha sido válida, é certo

que a contribuição de Kuhn não se deu como uma espécie de “Revolução Copernicana”. Suas

ideias, embora sejam originais, se inserem no conjunto de tentativas registradas pela história da

filosofia da ciência em romper com o positivismo.

Talvez Kuhn não tenha almejado ser original ao ponto de fazer sua própria revolução,

mas fica evidente que ele esperava que seu modelo estivesse irretocável no final da década de

60. Contudo, a despeito dessa pretensão, algumas falhas em seu modelo são evidentes, como a

polissemia do termo paradigma.

Embora a Estrutura como produção que se estende durante toda a década de 60 possa

ser considerada como “demasiadamente demorada” – o que pode ter colaborado para Kuhn não

tratar de outras questões necessárias ao desenvolvimento de seu modelo – devo levar em

consideração que foi produzida com certo cuidado pelo autor e, no geral, representa um avanço

considerável para as discussões do contexto em que foi lançada.

As constantes defesas de sua teoria empreendidas por ele desde 1965, representam um

capítulo extra em sua biografia; o estudo detalhado desse caminho trilhado está registrado nos

anais da filosofia da ciência, inclusive com a colaboração do próprio autor. Talvez por conta do

constante empenho em se defender, Kuhn tenha deixado de trabalhar em outros aspectos

fundamentais para sua imagem da ciência na Estrutura, como o problema da linguagem nas

construções teóricas e as influências das questões psicológicas na produção científica, bem

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como ter colocado de forma mais clara os meandros políticos que envolvem os processos de

escolha na produção do conhecimento científico.

Talvez o grande erro de Kuhn tenha sido imaginar que as questões tratadas no texto de

1962 estivessem claras, pois, conforme indicou posteriormente, os problemas apontados por

seus críticos poderiam ter sido resolvidos com um “trabalho editorial” (KUHN, 1992: 226). Por

outro lado, assume no Posfácio que poderia ter escrito o livro de forma diferente, a fim de evitar

incongruências (KUHN, 1992: 217; 220).

A análise detalhada do texto mostra que seria necessário mais do que um trabalho

editorial para assegurar a correta colocação do problema. Se o texto não ajuda com a elucidação

dos conceitos, os exemplos – que são abundantes – auxiliam na compreensão das ideias ali

contidas, transformando a Estrutura em um livro de história e filosofia da ciência.

Quanto aos problemas do texto, os considero como, em certo ponto, naturais devido às

condições históricas em que ele foi escrito. O texto original não foi fruto de amplas discussões

em seminários ou reuniões acadêmicas – prática comum nos dias de hoje – mas resultado de

uma empreitada singular por parte de Kuhn. A originalidade da obra não consiste em tentar

superar a imagem de ciência do positivismo, mas em propor conceitos pertinentes para o

modelo que ele desenvolveu.

Ainda que Kuhn não tenha concluído um modelo estrutural da ciência, no qual tivesse

levado em consideração aspectos como os mencionados anteriormente, podemos falar de um

legado kuhniano. A contribuição dada na Estrutura fez com que a imagem de ciência da

concepção herdada tivesse de ser reconsiderada com base na nova argumentação proposta na

Estrutura, pois foi severamente abalada com as discussões kuhnianas e pós-kuhnianas.

Tais discussões permitiram a flexibilização das regras propostas pelo positivismo lógico

e passou a ser uma constante entre os filósofos da ciência a consideração de que o produto da

ciência, ou seja, seu resultado, deve importar menos que os caminhos percorridos até estes

resultados, o que Marcum denominaria de “uma mudança do sujeito (o produto) para o verbo

(o produzir)" (2005:57).

Segundo Marcum, na visão tradicional [concepção herdada], a ciência

é um repositório de fatos acumulados, descobertos por indivíduos em períodos

específicos da história. Dentre as tarefas centrais do historiador, conforme essa

visão tradicional da ciência, está a de responder a pergunta sobre quem

descobriu o quê, onde e quando. Embora a tarefa pareça simples, muitos

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historiadores acharam difícil responder a pergunta e duvidaram se esse é o tipo

certo de pergunta que se deve fazer sobre o registro da história da ciência"

(MARCUM, 2005: 57).

Com a perspectiva kuhniana, esse quadro terá uma alternativa a altura da historiografia

positivista – embora, como já disse, possa ser considerada incompleta – representando,

literalmente, além de uma nova abordagem em filosofia da ciência, um novo caminho para a

historiografia da ciência.

A perspectiva kuhniana tem contribuído em muitos aspectos com as discussões sobre o

desenvolvimento científico. Em seu modelo de desenvolvimento da ciência, Kuhn apresenta a

proposta de que o empreendimento científico é marcado por processos de ruptura, contrariando

a ideia comum de sua época, que defendia ser a ciência um empreendimento cumulativo.

Pensar a ciência a partir da perspectiva kuhniana é ter que repensar a ideia de

acumulação. A ideia de desenvolvimento científico por processos não cumulativos defendida,

contribuiu significativamente com a redução da influência do positivismo lógico na segunda

metade do século XX e implicou numa nova visão de ciência. As análises de Kuhn foram

tomadas como pertinentes e provocaram a necessidade de um novo entendimento sobre a

ciência.

Por conta de um modelo que tem em seu interior a noção de paradigma, que

continuamente é substituído, revela que a expectativa atrelada a ele é sempre muito maior do

que sua capacidade real de fornecer as respostas almejadas. Isso implica em um duplo

problema: ou há um grave equívoco na utilização de paradigmas para desenvolver a ciência ou

os cientistas estão sempre equivocados em criar expectativas. Mas, nesse último caso, como

poderia ser a atividade científica sem expectativas?

O modelo paradigmático revela certa incapacidade em gerar conhecimento permanente,

mas como o paradigma é fruto das interações de uma comunidade, o problema do paradigma é

também o problema da comunidade. Como sabemos, a filosofia de Kuhn não é proposta

enquanto normativa da atividade da ciência, mas tão somente como a análise dos fatos como

acontecem. Talvez por isso Kuhn não nos forneça uma tentativa de resolver esse problema.

A explicação do desenvolvimento da ciência por meio de processos de ruptura implica

a necessidade de repensar todo o fazer científico em suas possibilidades. Se há uma constante

substituição de paradigmas e o modelo kuhniano for tomado como plausível, a visão que se

tinha de ciência, capaz de responder a todas as questões, foi severamente modificada por essa

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compreensão. O entendimento que temos hoje refere-se à ciência enquanto explicações

plausíveis, não mais como explicações últimas.

Aparentemente, a perspectiva kuhniana representa uma visão negativa do

empreendimento científico, como se nada, ou quase nada de conhecimento pudesse ser

produzido. Essa visão está equivocada, pois embora não haja a defesa de um progresso da

ciência, observa-se a capacidade de resolver problemas como uma habilidade que fica para o

conjunto das descobertas científicas. Além disso, com o trabalho de pesquisa orientado por um

paradigma, conceitos vão sendo cristalizados como conhecimentos empíricos sobre a natureza.

O que não se deve esperar da análise kuhniana é a defesa de que, incondicionalmente, a

ciência progrida, tanto em sua metodologia como na descrição dos processos naturais. Também

não se deve esperar que haverá algum tipo de defesa sobre a construção de um conhecimento

científico infalível.

O conhecimento, segundo a perspectiva da Estrutura, é construído de forma coletiva e

baseado em consensos de grupo. Isso quer dizer que aquilo que é tomado como conhecimento,

só pode ser justificado como tal pela aceitação do grupo. Para tanto, a comunidade utiliza-se de

paradigmas que possibilitam a compreensão dos fatos. Kuhn defende que não pode haver

conhecimento produzido de forma neutra ou tão objetivo que prescinda as diferentes atuações

dos sujeitos que fazem a ciência, o que embasa a defesa de que a ciência não pode ser

considerada como infalível.

O desenvolvimento da ciência se dá por meio de entendimentos consensuais no interior

das comunidades científicas. O paradigma estabelece padrões que são seguidos. Estes padrões

são teóricos e metodológicos e orientam o trabalho de pesquisa dos cientistas. São construídos

coletivamente, garantindo, por conta disso, um conjunto de normas bastante forte e aceito.

Segundo o modelo kuhniano, a ciência tem se desenvolvido ao longo de sua história em

direção à sua maturidade. Para Kuhn, a maturidade científica significa o compartilhamento de

um paradigma.

Embora as questões tratadas por Kuhn possam ser revistas, é inegável a razão pela qual

seu livro está entre os livros de humanidades mais lidos do século XX. As provocações contidas

no modelo de Kuhn fizeram com que a ciência fosse repensada, pois colaborou com o

movimento de repensar o alcance do conhecimento científico. Talvez também tenha colaborado

com o relativismo das discussões pós-modernas, pois não há como evitar os desdobramentos

de uma teoria quando ela é lançada, mas certamente possibilitou uma análise mais próxima dos

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limites humanos, pois esteve considerando a empreitada científica como fundamentalmente

humana e, por isso, falível.

Num universo cultural e histórico, a ciência não pode ser considerada como originária

de um espaço hermético e imune às tendências, conceitos comuns, explicações generalizadas

mais aceitáveis. No espaço de produção da ciência, embora tenhamos que considerá-lo como

rigoroso, há que se aceitar que teorias são escolhidas em detrimento de outras, também por seu

aspecto político, o que tira da produção científica o aspecto da neutralidade tão defendido pela

tradição até meados do século XX.

Por diversas razões a Estrutura de Kuhn foi mal compreendida. Muitos críticos deram

mais atenção aos pontos menos claros do modelo, não observando a importância de outras

considerações. O trabalho de Kuhn vem gerando desde sua publicação posições favoráveis e

também contrárias, e é isso que se deve esperar de uma grande obra.

Sem dúvida, as discussões kuhnianas permanecerão causando análises diversas, pois os

problemas discutidos por Kuhn ainda não estão encerrados. Esta Dissertação teve a pretensão

de contribuir com algumas delas, mas não terá sido contribuição maior do que o próprio texto

de Kuhn, que foi capaz de sublinhar um novo tipo de relação com a ciência, na qual o fazer

científico está diretamente relacionado com a aceitação de que não somos capazes de fornecer

uma resposta final para as indagações que movem a ciência.

Embora o conhecimento produzido pela ciência possa ser considerado como seguro – e

não parece ter sido intenção de Kuhn modificar esse quadro –, não pode ser tomado como

definitivo. Se foi mérito dos positivistas lógicos denunciar a metafísica, a responsabilidade de

provocar uma revisão da objetividade proposta pelos positivistas deve ser atribuída em parte à

obra de Kuhn, pois configurou-se como um contraponto e alternativa à altura, não finalizada, é

certo, mas capaz de apontar o caminho em que estamos hoje.

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