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Caminhadas de universitários de origem popular UNIFAP Universidade Federal do Amapá UNIFAP

Universidade Federal do Amapá · Universidade Federal do Amapá 11 As dificuldades são sempre as mesmas, o que muda é o modo como as encaramos Adilson Lima de Souza * Quando escrevemos

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UNIFAP

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Caminhadas de universitários de origem popular : UNIFAP / organizado por Ana Inês Souza,Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federaldo Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009.92 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular)

Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade eas Comunidades Populares.

Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.ISBN: 978-85-89669-47-4

1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integraçãouniversitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I.Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI.Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares.V. Universidade Federal do Amapá. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII.Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.

CDD: 378.81

Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.

Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e SilvaJorge Luiz BarbosaAna Inês Sousa

Organização da Coleção: Monique Batista CarvalhoFrancisco Marcelo da SilvaDalcio Marinho GonçalvesAline Pacheco Santana

Programação Visual: Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ

Coordenação: Claudio BastosAnna Paula Felix anniniThiago Maioli Azevedo

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Ministério da Educação

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares

Organ i z ado resJailson de Souza e Silva

Jorge Luiz BarbosaAna Inês Sousa

Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ

Rio de Janeiro - 2009

UNIFAP

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Adilson Lima de SouzaAna Cláudia Oliveira SoaresAndréia do Socorro Nunes MoreiraBenedito do Socorro Fernandes PastanaBruna Michelle Andrade SouzaEdelson Oliveira PachecoElielbem Pantoza DiasElizeu Souza FilhoFrancisco Alves Cordovil NetoHugo de Souza Lopes Josilene Balieiro PinheiroJucivaldo Santana LasdislauMarilia Gabriela Silva LobatoMarileuza Souza de CarvalhoNádia dos Passos SeriqueRafael Fonseca MarquesRafael de Brito ReisRoberta Santos do NascimentoRosa Emília dos Santos OliveiraRosivaldo Carvalho Gama JuniorRuticleia Ferreira Gama ValenteUéliton Nogueira da SilvaVera Lúcia Vieira CardosoWesley Furtado Lopes

Coleção

AutoresPresidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da Silva

Ministério da EducaçãoFernando HaddadMinistro

Secretaria de Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade – SECAD

André Luiz de Figueiredo LázaroSecretário

Armênio Bello SchmidtDiretoria de Educação para a Diversidade - DEDI

Leonor Franco de AraújoCoordenação Geral de Diversidade – CGD

Programa Conexões de Saberes:diálogos entre a universidade eas comunidades populares

Jorge Luiz BarbosaJailson de Souza e SilvaCoordenação Geral

Romualdo Rodrigues PalhanoCoordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UNIFAP

Sílvia Carla Marques CostaCoordenação Adjunta

Walter Da Silveira Souza FilhoTécnico Administrativo

José Carlos Tavares CarvalhoReitor

José Alberto TostesVice-Reitor

Steve Wanderson Calheiros De AraújoPró-Reitor de Extensão

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Prefácio

A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permi-tam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econô-mica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.

A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo impli-ca uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efeti-vamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pelamelhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de formaintensa e sistemática esses objetivos.

Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a lutacontra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por umlado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes univer-sitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-gradu-ação nas universidades públicas.

Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir daSecretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e repre-senta a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, nacidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de InteressePúblico Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede deUniversitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimen-to em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou,inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais, distri-buídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamoso Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS,UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos osestados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC,UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar,UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB.

Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma,ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação comopesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógi-cas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais emcomunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de

1 A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, aomenos 35 bolsistas.

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práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origempopular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição,ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais.

Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos doPrograma: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Cone-xões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantese ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esseslivros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, quecontrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes dascamadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para oscursos com menor prestígio social.

Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela constru-ção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira maisjusta e uma humanidade cada dia mais plena.

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Ministério da Educação

Observatório de Favelas do Rio de Janeiro

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Sumário

ApresentaçãoAdelma das Neves Barros MendesJoão Beneilson Maia Gatinho 09

As dificuldades são sempre as mesmas, o que muda éo modo como as encaramosAdilson Lima de Souza 11

Vida: reflexo de pequenos gestos e ações contínuasAna Cláudia oliveira Soares 15

Minha vida, minha históriaAndréia do Socorro Nunes Moreira 18

O meu viverBenedito do Socorro Fernandes Pastana 20

Minha identidadeBruna Michelle Andrade Souza 23

Uma história como muitas... de um jovem brasileiroEdelson Oliveira Pacheco 28

A vida vale! Vale mais do que imaginamosElielbem Pantoza Dias 32

Enfrentar dificuldades, sim! Desistir, jamaisElizeu Souza Filho 35

Saudosos momentosFrancisco Alves Cordovil Neto 38

Quando acreditei que tudo estava perdido...era o início de minha melhoraHugo de Souza Lopes 43

Memórias de uma vencedoraJosilene Balieiro Pinheiro 45

Sonho e realidade: paradoxos da vidaJucivaldo Santana Ladislau 49

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MemorialMarília Gabriela Silva Lobato 52

Obstáculos existem para serem enfrentados,não para serem lamentados!Marileuza Souza de Carvalho 56

Um pouco de mim...Nádia dos Passos Serique 59

Um sonho percorrido...Rafael Fonseca Marques 63

Direito e educação físicaRafael de Brito Reis 65

Retalhos de uma históriaRoberta Santos do Nascimento 69

Os espinhos são frágeis diante do perfume das rosasRosa Emília dos Santos Oliveira 72

MemorialRosivaldo Carvalho Gama Junior 76

MemorialRuticleia Ferreira Gama Valente 79

Uma luta, uma história que continua...Uéliton Nogueira da Silva 82

Memórias de minha vidaVera Lúcia Vieira Cardoso 86

Mais que um relatoWesley Furtado Lopes 89○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

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Apresentação

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“Para entender um trabalho tão moderno,é preciso ler um segundo caderno; calcularo produto bruto interno, multiplicar pelovalor das contas de água, luz e telefone;rodopiando na fúria do ciclone, reinvento océu e o inferno; [...] misturarei anáguas deviúva, com tampinhas de Fanta Uva, um pi-nico com água da última chuva, ampolas deinjeção de penicilina. Esmaterializando amatéria com a arte pulsando na artéria, botofogo no gelo da Sibéria, faço até cair neveem Teresina; com um clarão do raio daCerebrina, desintegro o poder da bactéria”.

Zé Ramalho & Zeca Baleiro

A singularidade é uma característica dos seres humanos. É o resultado de um processosócio-historicamente construído e situado. No entanto, o percurso de construção desseprocesso é atravessado por muitas outras singularidades, o que nos transforma num “eu”plural, cindido e marcado por eventos situacionais resultantes das relações que travamosnos contextos por onde circulamos. Os memoriais aqui apresentados são, pois, exemplosdessas singularidades marcadas ora por momentos tristes, ora por momentos cheios dealegria, mas todos dignos de serem (re)visitados na memória de cada um de seusexperenciadores. Isto porque se hoje são o que são e estão onde estão é porque (re)alinharamesses momentos de modo a transformar seus sonhos em realidade.

E para alcançarem esse “resultado estético bacana”, sugerido na epígrafe de Ramalhoe Baleiro em suas vidas, os locutores desmaterializam a arte de viver e (re)inventam novoscaminhos, muitas vezes fazendo convergir para eles elementos que, do ponto de vistasocioeconômico, seriam quase impossíveis. Muitas foram as barreiras sociais que precisa-ram ultrapassar e para tanto tiveram de buscar inspiração em coisas simples do ponto vistamaterial, mas extremamente significativas do ponto de vista humano. É por isso que seusdizeres são recheados de apaixonadas digressões que nos convidam a misturar sentimen-tos aparentemente tão díspares para compreender a força e a grandeza de suas histórias devidas.

Ainda que pretendêssemos apresentar cada um dos memoriais aqui escritos, temos acerteza de que jamais conseguiríamos reconstruir a beleza, a simplicidade e a sensibilidadeque deles brotam. Por isso, deixamos que eles o façam por si no momento em que forem

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lidos, permitindo ao leitor compartilhar dessas fontes inspiradoras de novos modos de vere viver o mundo.

Adelma das Neves Barros MendesCoordenadora Geral

João Beneilson Maia GatinhoOrientador dos memoriais

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Universidade Federal do Amapá 11

As dificuldades são sempre as mesmas,o que muda é o modo como as encaramos

Adilson Lima de Souza*

Quando escrevemos nossa própria história tentamos, por inúmeras vezes, poupar nos-sos corações de duplos sofrimentos, pois é como se fosse uma navalha poder contar nossasexperiências para outros. Mesmo sabendo que as dificuldades são sempre as mesmas, o quemuda é o fato como a encaramos.

Assim, quando mexemos em nossas lembranças, nos deparamos com momentos tris-tes e alegres. Momentos construídos nas relações com os outros, principalmente no meiofamiliar. É nesse meio familiar, nas brincadeiras de criança, que involuntariamente deci-dimos o que queremos ser. É assim, que os sonhos tomam forma.

O momento mais alegre que podemos considerar é o nascimento, pois ganhamos avida de presente de alguém, e esse ser tem o poder de fazer nossas escolhas a princípio.Assim, de todos os dias ele preferiu escolher a sexta-feira, de todas as horas que o relógiopoderia marcar ele preferiu marcar às dez, e de todas as mães ele preferiu uma humildemoradora das redondezas de Chaves.

O hoje...Não sei por que, as melhores coisas são aquelas pelas quais derramamos muita lágrima

e suor para conseguir, talvez esteja aí o fato de serem tão especiais. Mas mesmo as coisassendo aparentemente inatingíveis não há motivo para não querê-las, pois, que tristes seriamos caminhos, se não fosse a presença distante das estrelas.

O caminho é acessível a todos e se uns vencem e alcançam o que querem não é porquesejam predestinados, mas porque enfrentaram os obstáculos com arrojo e tenacidade.

Assim, sob esse mosaico de fatores: sofrimento, perseverança entrei na Universidade,um sonho acalentado há muitos anos; realizado. Devo confessar, num primeiro momentosenti-me um “estranho no ninho”, conteúdos muito além da minha realidade parecia quenão me ouviam ou quando ouviam não respondiam.

Contudo, logo me adaptei à Universidade e passei a desfrutar dos conhecimentos queela podia me proporcionar, isso teve reflexo no modo como passei a relacionar-me com arealidade vendo as coisas de forma crítica. Essa minha criticidade, junto com meus colegasnos levou a concorrermos à candidatura do centro acadêmico, ganhando as eleições.

* Graduando em Ciências Sociais pela UNIFAP.

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12 Caminhadas de universitários de origem popular

Nossa primeira medida foi tentar trazer o encontro nacional de estudantes de pedago-gia para Macapá. Não foi fácil, pois tínhamos concorrentes fortes como o Estado do Paraná,vencemos não porque éramos melhores, mas nossa maneira peculiar de viver pode ter sidoo fator fundamental. Fizemos o encontro no mês de julho. Vieram muitos estudantes deoutros estados, e o que ficou foi a certeza de uma educação melhor e mais forte.

Após esse encontro, passei por dificuldades principalmente financeiras, já não tinhacomo manter meus estudos e cheguei a pensar em desistir. Desistir é o que fazem muitosalunos em todos os níveis da educação. Por felicidade consegui uma bolsa do Conexões deSaberes. A princípio o dinheiro foi mais forte. Mas quando passei a conviver com meuscolegas, vi que temos as mesmas histórias, as mesmas dificuldades e, principalmente, a mesmavitória, como afirmei no início o que muda é nosso jeito de contar e encarar essas dificuldades.

Posso falar com certeza que através do Conexões achei algo adormecido em mim, quepoderia a qualquer momento esquecer: de onde vim, como cheguei aqui e o que quero. E oprincipal, somos muitos estudantes, fatalmente condenados à exclusão, nós chegamos aqui,mas, e os outros? Assim essa concepção de lutar e pensar por uma educação para todosganhei aqui, é fruto daqui.

Agora vou contar um pouco de como cheguei aqui, minha cultura, minha gente, isso erao que já estava adormecido e, através deste memorial pretendo resgatá-los. Pois a partir domomento em que aceitamos nossa própria cultura passamos a aceitar a cultura dos outros.

Eu lembro...Numa rápida retrospectiva, vejo as lembranças mais marcantes de minha primeira

infância, a natureza com suas grandes árvores, a água anunciando de longe a sua chegada,a chuva no final da tarde tornando a noite gélida ou então o silêncio interrompido apenaspelo coaxar dos sapos.

Parece que consigo rever, ou até mesmo tocar. As casas ficavam longe uma das outras,televisões ninguém tinha, por isso a visita de alguém era como se fosse uma festa.

Aproveitando para tomar banho, nossa casa tinha uma grande ponte, levando até amargem do rio corríamos essa passarela e pulávamos como se quiséssemos voar. Ou então,pegávamos uma embarcação remando em busca de alguma novidade, um cacho de açaí ouqualquer outra fruta que pudéssemos avistar.

Uma mudança...Não é sem profunda emoção a experiência de deixar pela primeira vez a casa onde fora

tão feliz. Na minha cabeça de menino achava ser apenas uma viagem passageira, e nãocompreendia a despedida ofegante de meus pais.

Não-alfabetizados foi como chegamos, e já se passara a hora de estar na escola, masnão menos despercebido foi o impacto ao ver a cidade das bacabeiras, pois parecia ser amaior cidade do mundo, pelo menos em relação à pequena ilha deixada para trás. Os riosforam trocados por ruas, do mesmo jeito que as canoas por carros.

Minhas escolas...A primeir escola que estudei era simples, dois andares, porém aconchegante. Na hora

do recreio quando íamos merendar, a farofa sempre causava um fervor entre nós, talvez omodo como recebíamos em forma de cone.

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Também tínhamos uma sala de leitura onde ia, não como castigo, mas como o apren-dizado.

Como chegar à escola, todo dia? Essa pergunta era lançada sem ter alguém pararesponder. Não era longe, mas como se trata de uma cidade amazônica, os meses de chuvasão constantes e as suas conseqüências eram as poças de lama . Vi muitos de meus colegasdeslizando e perdendo um dia de aula.

O primeiro dia de aula me causou profunda impressão, o súbito silêncio dos alunos,talvez pelo fato de ainda não nos conhecermos, todavia conforme as horas corriam meuscolegas falavam e brincavam tanto a ponto da professora intervir para dar aula.

A volta da aula me traz também recordação, parávamos em um córrego e admirávamosas criaturas, quando o rio secava, não conseguiam achar o caminho da volta. Assim, peixes,siris e até cobras se tornavam brinquedos de nossa curiosidade.

Não compreendia o significado de estudar e sim de voltar, pois as voltas para casaeram sempre recheadas com novas aventuras, com isso, além dos bichos, pipas e petecas seincorporaram à minha “vida escolar”.

Concluindo o ensino fundamental, fui para outra escola, maior e também com umaestrutura melhor. Lá tinha um campo de futebol de terra enorme, onde fazíamos educaçãofísica. O professor fazia duas filas e começávamos a correr até o final do muro, um a um, ogrupo perdedor tinha uma missão extra: pagar apoio. Também relembro as aulas de Técni-cas Agrícolas, todos queriam fazer, principalmente os meninos, já a Educação para o Lar eravista como aula de menina, por tratar-se de costura e bordado. Metade da turma começavacom Técnicas Agrícolas, enquanto a outra fazia Educação para o Lar, após as férias erainvertido. Passado esse primeiro impasse, todos plantavam, colhiam, bordavam e tricotavam.

Já se aproximava a hora de decidir qual caminho percorrer para a entrada no ensinomédio. Escolhi o curso Técnico de Eletrotécnica, paixão à primeira vista, fiz o teste deseleção, mas tudo caminhava para minha derrota, contudo meu pessimismo inicial deulugar à alegria da aprovação.

Pegava o ônibus próximo de casa, sempre lotado, era bom ver muitos alunos conversan-do sobre diferentes assuntos, quase nunca sobre escola, quando era um grupo de estudantes ealguém tinha a felicidade de conseguir um lugar vazio, levava o material dos colegas.

Um ônibus está sempre em várias direções, uma hora faz uma curva para norte depoispara o sul. Assim aconteceu com minha família, não quiseram olhar o sol na mesma direção.Meu pai, homem quieto, simples, trabalhador, buscando o melhor para sua família tinha comoconcepção promover a educação dos filhos, mesmo apenas com o ensino fundamental.

Fomos para um quarto alugado, era o perfeito-imperfeito, mas a mudança maior foi naeducação, as viagens de ônibus ficaram reduzidas a uma bicicleta, percorrendo quase setequilômetros e enfrentando um sol altíssimo de trinta graus. Minha turma era composta commais 90% de meninos julgando ser homens, assim pensávamos somente em duas coisas:futebol e bebida, chegamos a montar um time e fazíamos jogos com outros cursos, namaioria das vezes ganhávamos, enquanto a bebida, vinha em decorrência das vitórias. Eraa iniciação ao mundo etílico para todos.

Portanto, vexames explícitos eram comuns, uns pegando o ônibus errado, outros dor-mindo no banco da praça ou então entre as árvores. Essas informações eram expostas àtodos através de um jornal feito por nossa turma. Infelizmente nosso jornal sobreviveu,apenas por três edições, não por falta de notícias, e sim de pessoas especializadas em

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computação. Mas o tempo de sua circulação foi o suficiente para unir muitos casais edivulgar muitas fofocas.

Não só disso vivíamos, também tínhamos a nossa feira de ciências, acontecendo emsetembro. Uma vez desenvolvemos um guindaste movido à eletricidade com recursos bemsimples de automação. No último ano consegui um estágio remunerado numa companhiade eletricidade, pela manhã e a tarde estudava, as viagens de bicicleta ficaram reduzidas.

Fora da escola...Saí formado com um diploma técnico sob os braços. Não conseguindo emprego na

minha área, devido as crescentes dificuldades, aceitei um em uma loja que consumia todoo meu tempo. Fiquei por um ano, depois procurei novamente na área técnica e não conse-gui. Numa bela manhã, acordo desesperado e atrasado, por alguns momentos penso ser umpesadelo, mas não era, estava novamente em uma loja repondo mercadoria, a cada produtocolocado uma parte do sonho era tirado.

Mesmo acordando cedo, trabalhando o dia todo, de súbito uma força maior reduzia ocansaço à nada. Encontrando-a no momento onde mais precisei, voltei a estudar, fazendoum cursinho após o horário de trabalho, complementava com as horas sobradas do almoçoe de madrugada. Durante um ano me preparei dessa forma.

No cursinho quando não dormia, aprendia alguma coisa.Fiz inscrição para Geografia e na véspera não consegui dormir. No dia “D” entrei na

sala e sentia como se estivesse em um local à espera da morte, esse clima exalava pela saladeixando a todos nervosos, uns tomando água ou comendo antes da hora, por sorte nãoaconteceu comigo. Acabei a prova consumindo até o último minuto, classificando-me entreos sessentas primeiros na segunda fase. O nervosismo veio e não foi embora, quando oresultado saiu estava trabalhando, apenas ouvi o suficiente para saber que meu nome nãosaiu, entrei em depressão.

Passada a tristeza dessa experiência, comecei a preparar-me para a segunda tentativa,corrigindo os erros.

O resto nada mudou, dessa vez, tudo deu certo. A primeira fase sem nervosismo,apenas classifiquei-me muito atrás. Na segunda consegui superar tudo.

No dia do resultado fui almoçar e não voltei, quando meu nome saiu não acreditava,por alguns momentos sentia-me nas nuvens depois percebi que era verdade.

Fui ao curso pré-vestibular em que estudei e tanto me ajudou, através de apoio afetivo,fiquei até tarde e quando cheguei em casa recebi um forte abraço de meu pai.

No domingo fizemos uma pequena festa, guardei o álbum com as fotos, são as fotosque mais gosto e as que mais me fazem feliz.

“Vai ter uma festaque eu vou dançaraté o sapato pedir prapararaí eu parotiro o sapatoe danço o resto da vida”. Chacal

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Universidade Federal do Amapá 15

Ana Cláudia Oliveira Soares*

Vida: reflexo de pequenos gestose ações contínuas

A vida... qual o real sentido da vida? Para mim, a vida é refletida através de pequenosgestos e ações contínuas do nosso dia-a-dia, os momentos simples e bobos são os maisalegres, e não há momentos tão marcantes como os vividos na infância.

Como é bom lembrar das cantigas de rodas, pira esconde, bandeirinha, caí no poço...Essa é uma época de muita felicidade, não temos responsabilidades, problemas para

serem resolvidos, preocupações. Que época boa hein?Infelizmente ou felizmente, a vida é feita de etapas; infelizmente, pois quem não

gostaria de viver eternamente feito criança, na terra do nunca, tendo o Peter Pan comoherói? Ou, felizmente, visto que, novas etapas proporcionam novos sentimentos, paixões,sonhos e aventuras nunca experimentadas antes. Entretanto, essa etapa requer algumasresponsabilidades, principalmente relacionadas ao estudo. Não é fácil freqüentar escolaspúblicas de bairros periféricos com a "qualidade" de ensino que conhecemos. Nessa fasevocê é obrigado a amadurecer e passar por algumas privações.

Tenho muitas recordações do meu ensino médio, nessa época fiz vários amigos e viviexperiências inesquecíveis, algumas alegres outras traumatizantes. Adoro recordar-me dasgincanas que ocorriam na escola com intuito de ajudar a comunidade e os próprios alunos;dos professores mais divertidos e compreensivos, sempre dispostos a ajudar; dos pseudôni-mos atribuídos aos professores mais extravagantes ou recatados; das brincadeiras e estóriasinventadas (por adolescentes que só queriam curtir a vida) para que não houvesse aula.

Essa foi uma época muito boa. Contudo, vivi algo que não desejo a ninguém.Morava a dois quarteirões da escola, mas como a casa não era nossa, fomos obrigados

a mudar para outro bairro e por não ter dinheiro para ir à escola de ônibus, comecei a ir debicicleta com meu irmão, pois estudávamos juntos. Em período de festa junina, meu irmãoficava na escola até mais tarde para ensaiar quadrilha, e em uma dessas noites eu resolvivoltar para casa sozinha.

O caminho da escola até minha casa era escuro, uma rua sem iluminação pública,propícia para bandidos, no horário de 22: 30 na frente de um batalhão de polícia fui paradapor um "cidadão" que portava uma faca e "gentilmente" pediu que eu o acompanhasse semfazer escândalo, ao contrário ele poderia me ferir; eu segui todas as instruções do bandidoaté o momento em que ele disse que não queria me assaltar, a partir deste momento comecei

* Graduanda em Letras pela UNIFAP.

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a me desesperar e ao mesmo tempo com uma retórica e poder de convicção nunca vistaantes, consegui fazer aquela pessoa entender que seu plano não daria certo. Após uns quinzeminutos de ameaças e insistência para eu entrar no mato com ele, Deus foi misericordioso etocou no coração daquela criatura para me deixar ir sem um arranhão, porém ele deixou umafrase que nunca esqueci: "dessa vez passa morena!".

Todavia, este período também me proporcionou muitas recordações agradáveis. Sem-pre fui uma aluna aplicada, tentava arrancar o máximo de conhecimento que os professorespoderiam oferecer-me, afinal, essa era a única forma de tentar construir um futuro no qual,eu não tivesse que passar ou deixar minha família reviver os momentos mais difíceis econturbados de nossas vidas.

Foi em nome dessa dedicação que fui escolhida para estudar no Centro de Ensino eCultura Francesa Danielle Miterrand, o qual concluí com muita luta. E foi um dos fatoresdesencadeadores pela escolha do curso de Letras.

Após o ensino médio a próxima etapa é a mais almejada por todos. Para conseguir esse“pódium” necessita-se abrir mão de algumas regalias e confortos, logo a dedicação e oesforço tornam-se os maiores responsáveis por mais essa conquista. Conquista que devo aDeus, aos amigos e a minha família que sempre me apoiaram. Uma vitória recheada desacrifícios, choros e, claro, muita alegria, pois mesmo nas maiores dificuldades, tendo quepegar o sol das doze horas da manhã todos os dias ao voltar do cursinho de bicicleta, apósuma aula estressante de história (um bicho de sete cabeças), ainda conseguia passar a noiteem claro na igreja “Rainha da Paz”, nos corujões, encontros descontraídos e cheios de fé eesperança, promovidos por um grupo de amigos.

Ao chegar no degrau mais alto e ao olhar para trás e avaliar todos os momentos quepassei até aqui, nenhum se compara com a alegria que senti ao vê as lágrimas de satisfaçãodeslizarem pela face cansada de minha mãe, que sacrificou toda sua vida pelos filhos, essaé a melhor recompensa que uma garota pobre de bairro periférico, proveniente de escolapública e cursinho pré-vestibular gratuito pode pedir a DEUS.

Como é bom chegar numa universidade depois de tantos obstáculos com a certeza deser um orgulho para todos e principalmente para a mãe que perdeu toda sua juventudetrabalhando em casa de família para não deixar faltar nada as suas crianças. O prazer quesinto é saber que a minha vitória é o reflexo dos esforços de minha mãe, que sofreu e nuncadesistiu de lutar por mim.

Toda esta felicidade e entusiasmo só são abalados quando me deparo com a verdadeiraUniversidade Federal do Amapá, é revoltante você chegar numa universidade e perceber queo nível superior está tão esquecido como toda educação brasileira. O que acontece com todasas pesquisas no campo da educação? As novas teorias e práticas de ensino voltadas para umaeducação de “qualidade”? São apenas teorias e assim vão permanecer, sem grandes êxitos?

Vamos continuar num faz de contas, onde os professores fingem que ensinam e osalunos fingem que aprendem, e ninguém se importa com os futuros "profissionais" que irãoensinar os seus filhos, os seus netos, os filhos de seus amigos etc...?

Esse prazer só revigora-se, quando temos pelo menos um professor comprometidoverdadeiramente com a educação, professores que lutaram e lutam por projetos de pesquisae extensão dentro da universidade, mestres apaixonados pelo ensino, que nos contagiam apercorrer o caminho árduo e gratificante do conhecimento. Assim como a nossa coordena-

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dora local do Programa Conexões de Saberes, a Adelma Barros-Mendes, sem esquecer, éclaro, das amigas de graduação que se tornaram verdadeiras irmãs e que prometem sergrandes profissionais, como é o caso da Cris Évelin, Maressa Mara, Roberta e eu, um quar-teto fantástico.

Sendo assim, creio que já deu para perceber que mesmo diante de todos os problemasdo mundo, eu fui educada para tirar boas lições dessas dificuldades, nunca fui de fugir asituações.

Minha mãe me ensinou que para sobrevivermos precisamos sorrir para vida, semdeixarmos de questionar essas injustiças e arbitrariedades desse nosso país “cidadão”. Por-tanto, chego à conclusão que sou uma pessoa agraciada por Deus, pois diante de todos essesproblemas sempre fui vitoriosa; por quê? Talvez, por persistência, fé, coragem... Não sei aocerto, a única certeza que tenho é que: “tudo posso naquele que me fortalece”!

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Bem, antes de falar de mim vou contar sobre os primeiros passos de meus pais, quecomo muitas outras pessoas, vieram para Macapá em busca de melhor qualidade de vida.Porém, como a maioria dessas pessoas, descobriram que a vida em uma cidade maior não eratão fácil como pensavam, e por isto passaram por muitas dificuldades.

Em 1986 nasci, a sexta filha do casal, mas como já haviam perdido o primeiro, éramoscinco irmãos. Minha mãe não trabalhava e o único dinheiro para sustentar a casa vinha domeu pai que vivia de "bicos". Com as dificuldades da família, não pude fazer o pré-escolar.Aos sete anos entrei para a escola, tudo era muito difícil, pois a maioria dos outros alunossabiam bem mais que eu, por esse motivo sempre ficava para trás nos assuntos.

Em 1994 meu pai faleceu em conseqüência de um ataque cardíaco, era como se a baseda nossa família tivesse sido desestruturada. A partir deste fato, minha mãe deu-me umalição de vida, pois apesar de ser uma mulher sozinha, sem escolaridade e com cinco filhospara criar, não baixou a cabeça, encarou a realidade, começou a trabalhar e nunca deixoufaltar nada a seus filhos. Neste período a renda da família passou a ser aposentadoria deviuvez (pensão) que meu pai havia deixado, além dos trabalhos temporários que minha mãefazia. Passamos por um período bem difícil, mas graças a Deus tudo foi voltando ao “nor-mal”. Na escola tudo ia correndo bem, mas na quinta série eu quase fui reprovada, fiqueimuito preocupada. Como seria a reação da mamãe se eu fosse reprovada? Já que ela sempreachou o estudo essencial para o futuro de seus filhos, essa interrogação me perturboudurante muito tempo. No ano seguinte muita coisa mudou, primeiro de casa, depois decolégio, passei a estudar no Carmelita, onde passei 6 anos maravilhosos.

Outra coisa que mudou foi minha forma de aprendizagem, pois apesar de ser muitobagunceira meus horários de aula eram sagrados. Prestava muita atenção, minhas notassubiram bastante. O meu erro foi achar que estava preparada para o vestibular, sem cursinhoe sem estudar, pois me achava capaz de passar sem preparação, somente com o que eu sabiaatravés do ensino médio, grande engano, em meu primeiro vestibular “levei pau”, nãopassei nem na primeira fase.

Em 2004 comecei a estudar para o vestibular no Desafio, pois não tinha condições depagar um outro cursinho. No começo eu estudava a tarde, com uma amiga, às vezes o solestava “matando", mas a gente ia assim mesmo. No entanto, com a falta de alunos no turnoda tarde, fecharam a turma, e eu passei a estudar no turno da manhã, pois à noite era muito

Minha vida, minha história

Andréia do Socorro Nunes Moreira*

* Graduanda em Geografia pela UNIFAP.

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perigoso de voltar. Passei a acordar mais cedo para ir as aulas, pois com a distância eu tinhaque ir bem cedo.

A estrutura do cursinho não era a das melhores, tinha muita gente e por isso ficavamuito quente, mas os professores por outro lado eram excelentes. Bem, com todas as dificul-dades chega a primeira fase do vestibular, fui cedo para a escola que iria fazer a prova, muitoaflita, mas graças a Deus tudo correu muito bem, contei o gabarito e tirei a conclusão quehavia passado. Voltei para o cursinho, tinha um mês para me preparar, mas justamente nesteperíodo peguei dengue, passei mais de uma semana para poder voltar a estudar, nesta épocasaiu o resultado da primeira fase, meu nome saiu em sétimo lugar. Minha mãe ficou muitofeliz, mas preocupada, pois sabia que todos os outros alunos estavam estudando, e eu alisobre a cama. Ainda fraca por causa da doença voltei para o cursinho, faltava pouco mais deuma semana para a fase final.

Chega o começo da grande batalha, nos três dias de prova eu fui a primeira a chegar,como se isso mudasse minha aflição, estava muito nervosa. Quando acabaram as provasachei que não tinha passado. Já estava até me preparando para voltar para o cursinho.Finalmente chegou o dia do resultado, eu até que não estava nervosa, mas quando MarcoAntônio (um dos professores do Desafio) começou a falar o nome dos aprovados em Geogra-fia 2º semestre, fiquei apavorada, meu nome foi o décimo, mas parecia já ter saído uns cemnomes na minha frente. Na hora em que ele falou o meu quase não acreditei. Comecei achorar, a minha família deu pulos de felicidade. Minha mãe ficou muito feliz por mim. Ehoje, se devo agradecer a alguém a minha aprovação, esse alguém é ela, que me deu forçaa cada momento e quando todos me cobravam ela sempre estava do meu lado, sempreacreditou em mim, até quando nem eu acreditava.

Logo nos primeiros dias de aula eu descobri que entrar na UNIFAP era apenas umpequeno passo. Na instituição que eu soube como é difícil a permanência no curso, se vocênão tiver uma renda que possibilite a continuação do aluno na universidade. Algumas vezeseu não tinha dinheiro nem mesmo para condução. Outro problema era conseguir as apostilas.

Apesar de todas essas problemáticas continuei na universidade, quebrando barreiras acada dia. Um dia soube através de uma amiga sobre o Programa Conexões de Saberes.Adorei a forma apresentada pelo Programa de poder pensar sobre o acesso e permanência naUniversidade, assim me candidatei para pleitear uma vaga no Programa.

Após minha entrada no Conexões de Saberes muita coisa mudou na minha vida, poisas aulas me ajudaram, não só para as atividades do Programa, mas também para meustrabalhos acadêmicos, e a bolsa me possibilitou a permanência na universidade e faz comque eu ajude, financeiramente, minha família.

Hoje posso dizer que o Programa Conexões de Saberes não é apenas um estágio ouuma bolsa para mim, atualmente, o Conexões é uma grande família, que deve estar sempreunida, no intuito de enfrentar juntos as barreiras que surgirem em nosso caminho. E agrade-ço a Deus e a grande família Conexões pelos últimos meses que estão sendo uma benção emminha vida.

Agora quero falar com você que esta lendo um pouco sobre minha vida. Se você éassim como eu, uma pessoa sem recursos financeiros, mas que tem um objetivo de vida,LUTE, corra atrás, enfrente a barreiras que estiverem a sua frente, pois quando a vitória vemdessa forma, cheia de sacrifícios, ela é bem mais vitoriosa. E que Deus ilumine o teu cami-nho, assim como fez com o meu.

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Um casal de jovens oriundos do interior do estado do Pará idealizou desfrutar de umamelhor qualidade de vida e, por esse motivo, imigraram para Macapá, atual capital doestado do Amapá, onde o jovem conseguiu o emprego de vigilante no hospital São Camiloe a moça obteve um contrato temporário no Banco do Brasil e tiveram três filhos. Depois devinte anos de estada em Macapá foram iludidos pela história de que em Santana, cidadepróxima a capital, usufruiriam prosperidade.

Como todo o brasileiro recorre a formulações imediatistas resolveram ir residir noreferido lugar, mas ao conhecê-lo veio a desilusão, pois a localidade não ofertava ummínimo de condições para a melhoria de vida.

Apesar das dificuldades, como por exemplo, a falta de recursos financeiros o casalteve como resultado de seu esforço condicionamento para habitabilidade naquele lugar,decidindo reiniciarem juntos a caminhada. O modo de agir daquele casal, ao meu ver, foidigno de aprovação principalmente porque se tornaram meus genitores.

Nasci aos 15 dias do mês de outubro de mil novecentos e oitenta e cinco exatamenteàs 12:35 no Hospital Geral de Santana. Foram instantes de dores, contrações, angústia eansiedade que aos poucos se transformavam em intensas lágrimas de felicidade, seguida dademonstração de afeto, amor e carinho. Sempre vivi em uma única comunidade popular,onde durante a minha infância pensava somente em brincar e me divertir juntamente commeus amigos, além disso, nossos pais tomavam conta de um pequeno campo que distan-ciava aproximadamente três quilômetros de nossa residência e em decorrência de sermoscrianças eram obrigados a nos levar, o que era bom, porque brincávamos o dia inteiro.

No entanto, a partir de determinado período tive que me deparar com uma novarealidade: a escola. Esse lugar que me parecia exótico e horrível, no qual ficava aos prantos,tentando fugir .

Durante a 2ª série, revoltado com a atitude da professora que gritava conosco em salade aula, também gritei com ela. O resultado para o ato foi a reprovação, mesmo injusta, hajavista ter adquirido a pontuação necessária para a aprovação.

Com o passar do tempo fui aprendendo a gostar da escola por coisas que pareciamdivertidas como escrever, desenhar, ler, dinâmica e gincanas. No decorrer das séries, osprofessores por observarem meus esforços me dispensaram especial atenção: compravam

O meu viver

Benedito do Socorro Fernandes Pastana*

* Graduando em Ciências Sociais pela UNIFAP.

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medicamentos e em nossos diálogos me aconselhavam para que eu estivesse apto a enfren-tar as surpresas que o caminho da vida nos apresenta. Isso me proporcionou segurança.

Na sua maioria, os professores me elogiavam, uma vez que tirava sempre boas notas,entretanto não fazia porque queria me mostrar ou ser o melhor, o que me interessava sim-plesmente era passar no final do ano letivo, além disso, meus irmãos me ajudavam bastante,contribuindo para as notas serem azuis. Meus pais não mediam esforços para juntar recursosfinanceiros a fim de dar continuidades nos meus estudos.

O curso da 5ª e 8ª série coincidiu com meu engajamento na Comunidade Eclesiásticade Base (CEB) promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) daIgreja Católica, onde fazíamos a campanha da fraternidade em família, em diversas residên-cias. Isso possibilitou que eu conhecesse e interagisse com outras pessoas me proporcio-nando um aprendizado por meio das experiências vivenciadas por elas.

Também fui militante da pastoral da juventude, onde aprendi lições de como medistanciar da marginalização e das drogas.

Na época natalina era feita a campanha NATAL SEM FOME destinada a arrecadaralimentos, brinquedos, roupas para as famílias mais pobres. E quão alegria observava noambiente daqueles pais de famílias que se sentiam amparadas em meio às dificuldades pelasquais passavam.

Durante o Ensino Médio houve uma inscrição para o Programa Bolsa Trabalho, umaespécie de estágio remunerado destinados a estudantes da rede pública estadual que fossempobres. Fui contemplado e o Programa foi indubitavelmente imprescindível para a conti-nuidade e conclusão dos meus estudos, além de ter sido de significativa ajuda na rendafamiliar e ainda proporcionando capacitação para atuar no mercado de trabalho.

Contudo apareceu um grande problema: não poderia estudar no cursinho pré-vestibu-lar Desafio, o qual pretendia em virtude de ser gratuito, pois estagiava pela manhã e estuda-va no ensino regular à noite.

Na época de prestar o exame vestibular não demonstrava nenhuma motivação, pois oprocesso ensino-aprendizagem da rede pública é deficiente, principalmente se comparar-mos às escolas e cursinhos particulares, mas estava num impasse porque meus familiares eprofessores confiavam em mim e não poderia, ou melhor, não queria decepcioná-los.

No momento da escolha do curso estava perplexo ante a disponibilidade dos cursosporque desejava fazer Engenharia Química. Como não era ofertado escolhi o curso deCiências Sociais, pois era um curso interessante.

Passado aproximadamente um mês da prova do vestibular esperava o resultado atra-vés dos meios de comunicação. Quando mencionaram meu nome, o rosto daquelas pessoasque confiavam em mim manifestava a felicidade que o presente fato ocasionara. A confian-ça e a perseverança dos meus pais, familiares, amigos e professores foram o subsídio paraaquela conquista.

E mais uma vez me deparo com uma nova realidade: a universidade. Um ambiente demultiplicidades de ideologias, costumes e culturas que a cada dia se solidificavam ou seadaptavam as teorias abordadas, no entanto, um universo que desperta o senso críticoobjetivando extirpar a alienação.

Mas o que na verdade causou-me admiração foi a oportunidade que tive ao participardo Programa Conexões de Saberes o qual torna viável o diálogo entre as comunidadespopulares e a universidade, aproximando os saberes populares, baseados na vivência. Tam-

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bém acredito que todas as pessoas deveriam fazer sua autobiografia, uma vez que é uminstrumento indispensável para conhecer-se e deixar outrem conhecê-lo. Além do mais, apartir do momento em que as pessoas provindas das camadas populares tiverem acessibili-dade a esses livros, tornar-se-á perceptível a conquista dos seus sonhos e desejos.

Ao resgatar às memórias alusivas ao meu passado recordo os momentos árduos pelosquais passei como, por exemplo, a ausência de recursos financeiros, desilusões, desânimos.Senti inúmeras vezes meu espírito desvanecer, mas Deus me ofertava o seu próprio espíritopara continuar a caminhar e Nossa Senhora me confortava nos momentos de aflição sentin-do-me realmente renovado e pronto a dessaraigar os obstáculos do egoísmo, da opressão, daexclusão social e das injustiças.

Diante disso, quero dizer a você leitor que jamais desista de seus sonhos, desejos,aspirações, vontades.

Então, que as marcas do seu passado sejam de conquistas e de glórias, mas não seesqueça que é preciso construí-lo e solidificá-lo por meio da esperança e pela “luta” poraquilo que acreditamos e chamamos de ide.

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Minha identidadeBruna Michelle Andrade Souza*

Sou filha de Dona Rener do Socorro Andrade e Nazareno dos Reis Souza, irmã deSarah, Jonh Ruan e Bruno Gabriel, sou morena, de olhos castanhos e cabelos pretos, amiga,carinhosa, meiga, chorona, determinada e muito sonhadora.

No dia vinte de junho de mil oitocentos e sessenta e três nasce no interior do Pará umamulher muito batalhadora, digna de muita admiração, que passou por muitas dificuldadespara criar seus três filhos sozinha.

Meu nascimento foi um quanto problemático, desde o início da sua gravidez, poisnesse tempo se eu não muito me engano meu pai era garimpeiro e vivia viajando e mamãeficava sozinha em casa. Ela precisava de alguém que estivesse ao seu lado caso ocorressealguma emergência. Mamãe já não agüentava toda essa situação de abandono pelo meupai, pois ele era a única família que ela tinha.

As coisas pioravam com o passar do tempo, mamãe já grávida da segunda filha eprestes a colocá-la ao mundo decidiu se separar do meu pai. Nesse tempo eu tinha quatroanos, na época senti muito a separação dos meus pais, mas hoje sei que foi melhor paragente. Daí em diante mamãe virou nosso pai, sem deixar de ser mãe. Na medida que fomoscrescendo as dificuldades também cresciam, fomos morar de aluguel, em Macapá, por quefoi em Macapá que mamãe conseguiu um emprego para poder sustentar a gente. Lembro-memuito bem desse tempo, pois mamãe chorava todos os dias ao sair para trabalhar por quetinha de nos deixar sozinhas. Foi também nessa mudança para Macapá que mamãe conhe-ceu um novo “amor” e teve outro filho. Por ironia ou provação do destino após um anomamãe acabou tendo outro filho novamente.

Crescemos com toda essa agitação. Não tínhamos muitos amigos como qualquer outracriança e por esta razão não brincávamos as brincadeiras propriamente ditas de criança.Nossa maior diversão era sair com a mamãe e com os amigos dela nos finais de semana parachurrascos.

Mamãe sempre nos dizia que só trabalhava muito porque não queria que passássemospelo que ela estava passando e já havia passado, por essa razão sempre nos incentivou aestudar, pois sabia que só assim poderíamos ter um futuro diferente do dela.

Meu primeiro contato com a escola foi uma comédia, porque chorava, gritava,esperneava para não ficar na escola, mas logo isso passou, pois era lá que eu tinha ummomento de brincadeira e comecei a traçar meus objetivos.Um deles foi que estudaria obastante para poder conquistar tudo que mamãe sempre desejou para nós, um outro, não

* Graduanda em Secretariado Executivo pela UNIFAP.

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muito diferente das outras criança da minha época, o de ser uma grande advogada. Acreditoeu, que quase todas as crianças que conhecia nessa época sonhava com isso. Quando estavana terceira série fui estudar em uma escola em Santana que ficava próximo da casa ondeiríamos morar; minha trajetória pelo ensino fundamental foi maravilhosa, pois foi um perí-odo de muitas brincadeiras e descobertas; digo descoberta, por que entrava na tão famosaadolescência em que todos sonhavam em chegar, e eu, com certeza não era diferente e foitambém nesse mesmo período que me descobri para o amor. Comecei a namorar um rapazque estudava em uma escola que ficava um quarteirão de onde eu estudava. No começomamãe não aceitou meu namoro e proibiu e foi nessa proibição que passei a amar e respeitá-lo. Hoje não sei dizer se ele foi uma coisa boa ou uma coisa ruim na minha vida, ainda existeuma grande interrogação em tudo isso; namoramos quatro anos.

Os dois primeiros anos foram maravilhosos, os dois últimos foram levados à força.Minha entrada no ensino médio foi também ímpar. Sempre sonhei em estudar em uma

escola que fica no centro de Santana, uma escola que tinha, ou melhor, tem um grandeprestígio (Augusto Antunes). Para conseguir uma vaga nessa escola tínhamos que ficar emuma fila durante três dias e como eu queria estudar lá, fiquei esses três dias; no dia damatrícula para minha surpresa o diretor falou que eu não poderia me matricular por quemeus pais não estavam presentes, abro uma interrogação: que pai? Pedia a ele que deixasseminha tia fazer minha matrícula, mas meu pedido foi inútil, pois ele me disse que minha tiasó poderia fazê-la se tivesse uma procuração assinada por meus pais; expliquei toda asituação , mas ele explicou que não poderia fazer o que eu pedia a ele. Querem sabe o quefiz? Chorei como uma criança, implorando, suplicando por tudo que deixasse minha tiafazer minha matrícula. Passaram se alguns minutos e continuei ao lado dele insistindo. Euacredito, que se sensibilizou com toda aquela situação e acabou deixando minha tia fazerminha matrícula. Senti-me a melhor pessoa, pois tinha acabado de realizar um dos meusmaiores desejos. Lembro-me que quando comecei a estudar nessa escola, tinha que ir an-dando às vezes, pois nem todo dia tinha dinheiro para pagar o transporte, mas mesmo assimnão desisti de estudar nessa escola.

A minha trajetória no ensino médio foi uma coisa de louco! Minha mãe teve que fazeruma viagem e deixou minha irmã e eu com uma mulher que nesse tempo morava em casa, oproblema de tudo isso foi que denunciaram minha mãe para o Conselho Tutelar, alegandoque ela tinha nos abandonado, coisa que nunca aconteceu... mamãe teve de voltar e expli-car o motivo da viagem. Foi nesse mesmo período que terminei meu namoro.

Toda essa situação me deixou muito mal e acabei tirando algumas notas vermelhas naescola, logo eu que sempre me esforcei para tirar boas notas.

Acabei deixando os estudos em último plano. Péssima escolha que fiz, hoje sei disso,não que eu tenha deixado de estudar, apenas andava desligada dos estudos. Até que meescrevi em um cursinho (Desafio) que por sinal é um ótimo cursinho, o único que poderiame escrever, pois esse cursinho até hoje é gratuito aqui na minha cidade. Acabei não fre-qüentando todas as aulas, já tinha até pensado para que prestaria vestibular, mas não conse-guia me concentrar nos estudos; apesar do meu desejo de cursar direito, não me sentiapreparada para prestar vestibular para essa área, como já tinha despertado a vontade decursar administração, pensava em cursar uma área que se aproximasse, uma vez que a UNIFAP(Universidade Federal do Amapá) não oferece esse curso, pensava em fazer Secretariado

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Executivo. Mas tudo isso ainda era coisa para pensar, pois não tinha certeza de nada,estranho para alguém que estava prestes a fazer vestibular.

Sempre quis terminar o Ensino Médio e passar no vestibular na primeira tentativa.Sabia que mamãe não tinha condição de pagar uma particular. Todo esse sonho estavapassando diante dos meus olhos e eu não via forças para encará-los de frente, pois eu andavacom a “cabeça nas nuvens”.

Resolvi reverter toda aquela situação; voltei ao cursinho que era pela parte da manhã,me inscrevi à tarde em um cursinho de informática e voltei às aulas com muita vontade derecuperar o tempo perdido, resolvi meter mesmo a cara nos estudos para esquecer todoaquele “sofrimento” que, no entanto, eu tinha criado.

No dia da inscrição para o vestibular optei em fazer Secretariado Executivo. Não queeu tenha desistido do meu curso de Direito é que não me sentia preparada realmente, comojá havia dito, para prestar vestibular para esse curso.

A prova do vestibular que eu iria fazer seria no final de novembro como houve umproblema na universidade que não sei dizer qual, o vestibular foi adiado para fevereiro doano seguinte e foi exatamente nesse intervalo que surgiu a oportunidade de ganhar umabolsa parcial em uma faculdade particular (FAMAP) no curso de Administração. Resolvifazer a prova para ganhar a bolsa e para minha surpresa passei na prova, para quem pensouque não ocuparia uma carteira em uma faculdade particular, já era uma grande conquista.Comecei a estudar na faculdade de Administração em fevereiro de 2005, o mesmo mês queseria o vestibular da UNIFAP e por esse motivo minha carga horária de estudo mudou muito.Pela manhã estudava em casa para o vestibular e realizava os trabalhos da minha novafaculdade, à tarde ia a faculdade e à noite ia ao cursinho, resolvi estudar bastante, pois todosdiziam que a prova das Universidades Federais são muito difíceis e isso faz com que osvestibulandos criem um certo receio da prova.

Enfim chega o tão esperado dia! No término da prova da primeira fase, ao chegar emcasa comecei a escutar no rádio o gabarito da prova. Ao começar a conferir, achava que tinhame saído mal, mas esperei o resultado oficial e quando saiu o meu nome estava lá na lista dosaprovados para segunda fase. Na segunda fase tinha um pressentimento que não seria daquelavez, pois tinha achado a prova difícil. Liguei para um amigo meu e comecei a chorar dizendoque não seria daquela vez, mas que tinha feito o possível. Esse meu amigo era companheiro decursinho, junto com mais outro e de escola também, pois terminamos juntos o ensino médio,sentávamos sempre juntos no cursinho e sempre quando conversamos a respeito do vestibularfalávamos que os três passariam, já sabíamos até a colocação de cada um.

Continuei estudando na Famap e esperando ansiosa o resultado final da UNIFAP quesairia no dia sete de março de 2005. Nesse dia estava tão nervosa para ver ou ouvir oresultado, que não conseguia fazer nada, lembro-me também que nesse dia eu tinha aula nafaculdade de Administração. Só sei que nem consegui assistir aula e acabei saindo nametade da explicação do professor. Fiquei no carro de um amigo de uma amiga minhaescutando o resultado e para minha felicidade meu nome saiu na lista dos aprovados, porémnão tinha acreditado que tinha passado e fui tirar a prova real na página da internet e foi lá quetive certeza que eu era a nova acadêmica do curso de Secretariado Executivo. Imprimi a folhaque estava meu nome e saí mostrando para todos que eu tinha passado. Meu nome estava alimesmo (BRUNA MICHELLE ANDRADE SOUZA), a felicidade era tanta só pra mim, poistinha vencido as barreiras que tinham sido colocadas na minha vida. Depois de algum tempo

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reagi com choro, toda aquela felicidade, mas não sabia se chorava, abraçando meus amigos ouse chorava ao telefone ouvindo a mamãe dizer que se orgulhava muito de mim, que sempresoube que eu era capaz de passar no vestibular, afinal é o vestibular mais esperado do Estado.

Não posso esquecer que meus dois amigos do cursinho que tinha falado acima tam-bém passaram e nossa felicidade foi completa. Sei que Deus foi o responsável por essavitória, pois me iluminou na hora certa, agradeço todos os dias por ter deixado eu percebera tempo que o caminho que seguia não me levaria à lugar nenhum.

Quando comecei a fazer meu curso na UNIFAP, percebi o quanto eu estava enganadanão querendo estudar, pois a Universidade nos abre uma ampla visão de conhecimento.Como tudo o que é bom dura pouco tive dificuldade em cursar as duas faculdades. NaUNIFAP meu curso era pela parte da manhã e na FAMAP era pela parte da tarde e faziacursinho à noite para o concurso para o IPEM (Instituto de Pesos e Medidas). O problemaem tudo isso não era minha disposição para ficar o dia todo em Macapá e a metade da noite,mas sim o dinheiro para minhas passagens, que eram quatro por dia, e para alimentação.Havia dias que eu ficava sem comer direito o dia todo, mamãe sentia muito por não terdinheiro todos os dias, eu não reclamava pois ela já pagava minha faculdade e minhaspassagens. O meu cursinho quem pagava era o seu Frazão, ele é como um pai para mim. Essarotina durou seis meses, pois acabou cursinho preparatório para o concurso e infelizmen-te não passei e continuei fazendo as duas faculdades apesar de ficar de amanhã e à tarde emMacapá, eu tinha o tempo livre à noite para descansar.

Em 2006 mamãe falou que não estava dando conta de pagar minha mensalidade naFAMAP, afinal tem meus dois irmãos que agora precisam também de assistência redobrada.Decidimos que eu ficaria apenas na UNIFAP e trancaria meu curso na FAMAP. A princípiofiquei muito triste e bastante chateada, pois todos perguntavam por estava trancando meucurso, confesso que tinha vergonha de dizer que eu estava saindo da faculdade por que nãotinha condições de pagar, mas depois acabei entendo tudo e percebi que DEUS tinha mepresenteado com um curso na Universidade Pública, daí comecei a andar atrás de um empre-go para me manter na UNIFAP. Porém minha busca estava sendo inútil, até que surgiu aoportunidade de ser bolsista no Programa Conexões de Saberes, um projeto de suma impor-tância, pois tem como objetivo proporcionar aos estudantes oriundos das comunidadespopulares a permanência na universidade e está dando a oportunidade de relatar nessememorial um pouco do que cada um de nós passou para conquistar um espaço nesse mundodeslumbrante chamado Universidade. Ainda estou conhecendo este novo mundo, as difi-culdades que enfrentamos ao ingressar na universidade pública são muito grandes, masprecisamos ser fortes para conseguir concluir um curso.

Sou grata por toda essa caminhada não tão longa, mas que me trouxe um pouco daexperiência de vida, hoje sou ciente de que, se não existisse “caminhos cruzados” a minhahistória seria outra, estaria em outro lugar talvez não tão deslumbrante como é este.

Só tenho a agradecer a minha querida mãe que nunca me abandonou e sempre me deuo maior apoio para não desistir no primeiro tropeço da vida, se hoje cheguei até aqui, foi porque você mamãe sempre me deu forças para vencer; mãe você é razão do meu viver, lutareitodos os dias para conquistar tudo que sempre desejou para nossa pequena família.

Agradeço muita a nossa Coordenadora Adelma Barros e ao Prof. João Maia pelo apoiodado durante a realização do nosso memorial e pelos conselhos para realização das nossasconquistas: vocês são super especiais para Família Conexões de Saberes.

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Não quero ter passado para vocês leitores de todo Brasil uma simples história de vidae sim uma história de muita luta e vitórias e que sirva de incentivo para muitas pessoas.Temos que saber que as barreiras aparecem em nossas vidas para serem quebradas a todo omomento, só assim nossos desejos são realizados de forma prazerosa e divertida em algunsmomentos.

Dedicatória especial: à você minha querida Mãe: Rener do Socorro. Se um dia eu forum terço do que você é, serei uma mulher realizada.

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Uma história como muitas...de um jovem brasileiro

Edelson Oliveira Pacheco *

* Graduando em Física pela UNIFAP.

Dia vinte e três de novembro de mil novecentos e oitenta e quatro nasce o sexto filhoda família que começa a se formar no interior do estado do Amapá que por motivos sociais,como a falta de emprego, desloca-se à procura das cidades em ascensão assim como milha-res de famílias que também estavam buscando novas oportunidades.

A cidade escolhida para o ingresso de nossa família foi Santana, pois, nesse períodoem que a cidade estava surgindo, várias pequenas e médias indústrias foram também apare-cendo, em razão do mercado que estava em eminência, e logo após nossa chegada meu paiconseguiu um emprego em uma fábrica o que nos manteve estável financeiramente durantealgum tempo. Por isso, a trajetória de nossa família se confunde com a história do municípiode Santana, pois grande parte das famílias santanenses surgiu de tal forma ajudando aconstruir o município.

Nessa época de transição do interior para cá, nossa família era composta de apenasquatro membros: pai, mãe e um casal de filhos, e certamente se os outros filhos, inclusive eu,já tivessem nascido dificilmente conseguiríamos chegar na cidade e nos manter.

Com o passar dos tempos, minha mãe também se empregou. Trabalhando como domés-tica ajudou em casa e, com o pouco que ganhava, auxiliava nos custos de roupas e materiaisescolares básicos. A tarefa de trabalhar e cuidar de casa e dos filhos foi bastante complicada,mas ela conseguiu em virtude da força que tinha e da ajuda recebida dos filhos mais velhos,pois esses se encarregavam de cuidar dos filhos menores nos momentos de sua ausência.

Minha infância, desde os primeiros passos foi marcada por inúmeras travessuras. Tan-to na rua como na escola acabei por me envolver em pequenas confusões, pois sempre tivea infelicidade de me colocarem nas turmas em que estavam os alunos mais bagunceiros.Lembro de uma vez no pré-escolar que a professora não agüentou as nossas travessuras echorando bastante escreveu um bilhete para os pais, convocando-os para uma reunião. Eusabia que o meu nome seria uns dos mais citados negativamente pela professora e, certa-mente iria levar umas boas palmadas de minha mãe e por isso tratei de por fim no aviso,enterrando-o no quintal de casa. A mamãe sequer ouviu falar na tal reunião.

Enquanto minha mãe demonstrava grande interesse pelos filhos, meu pai foi bastantediferente: nunca, mais nunca mesmo, foi à escola saber como estava meu rendimento, pois suaobrigação era trabalhar para cobrir a maior parte dos gastos. Eu creio também que a relaçãocom minha mãe foi sempre mais aberta, até mesmo pelo fato de ela saber o que realmenteacontecia tanto dentro como fora de casa e de estar maior parte do tempo junto aos filhos.

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A mamãe foi bastante ativa no sentido de incentivar os filhos nos estudos e vez ououtra ia à escola de surpresa, e em muitos casos, chamou minha atenção na frente de todos,pois quase sempre eu estava conversando em classe.

Durante o tempo que antecedeu meu ingresso no pré-escolar ficava contando os diasque faltavam para o início dos estudos, morria de curiosidade de saber quem seria minhaprofessora e, principalmente, ficava na ânsia de conhecer meus novos colegas.

Apesar de ser um pouco encrenqueiro na escola, eu procurava fazer minhas atividadessem que minha mãe chamasse minha atenção. O comportamento de implicar com os meuscolegas de classe se dava porque eu os via com boas roupas, bons materiais escolares ebrinquedos; e eu não tinha nada disso e tinha de me contentar com um brinquedo de alguémou material emprestado na maioria dos casos. Uma das coisas que eu mais odiava na escolaera a hora do lanche. Todos levavam dinheiro para ir à lanchonete ou levavam um bomlanche de casa, mas eu quando levava era um desastre. Ficava com muita raiva por ter emminha lancheira pão ao invés de biscoito e refrigerante.

Ao chegar à quinta série do ensino fundamental, meu rendimento caiu bastante emvirtude das várias disciplinas que agora faziam parte do meu dia a dia e, também por meenvolver com outros tipos de comportamentos piores dos que eu tinha até então.

O resultado de tudo isso foi a reprovação na sexta série, fiquei em três matérias ematemática era uma delas. Ficava desesperado com as equações dadas pelo professor edepois de ter duas chances na recuperação, eu consegui passar para a série seguinte.

Entretanto, o que me venceu foi a disciplina História, pois essa era o meu pior pesadelo.Minha relação na escola assim como em casa era estável, mesmo não sendo um aluno

exemplar dificilmente faltava a não ser por problemas de saúde. Apesar disso construí algu-mas amizades junto aos meus colegas de classe os quais visitavam a minha casa sempre quepossível. As maiores e mais duradouras amizades estavam realmente na rua de casa, poiscom estas eu passava a maior parte do tempo brincando, conversando; enfim, tínhamos amaior parte do tempo ocupado.

O final do ensino fundamental foi mais tranqüilo, mesmo não sendo um aluno exem-plar consegui melhorar um pouco as notas em algumas disciplinas e, a Matemática passoua ser a minha disciplina favorita, mas em Física permeava o medo.

Lembro-me de uma vez que paguei um aluno para fazer uma atividade de Física,nunca pensei fazer o curso de Física.

Lembro ainda que o meu interesse por essa disciplina começou pelo cálculo de áreasgeométricas; tínhamos um professor considerado carrasco por todos e mesmo não gostandode mim por eu ser bagunceiro ele teve que aceitar as minhas boas notas, pois estudava nacasa de um amigo que já fazia faculdade por isso eu achava desnecessário aprender adisciplina ministrada pelo professor.

Já no ensino médio, alguns colegas me achavam inteligente. Não sei o porquê, masencarei essa responsabilidade e consegui melhorar bastante nas disciplinas, principalmenteem Matemática e Física. A segunda que antes era um terror, agora nesse período, passou aser uma companheira nos momentos mais felizes.

Nesse período havia uma espécie de disputa entre meus colegas e eu para ver quemtirava a maior média nas disciplinas de Cálculo e eu quase sempre não tirava a nota máximae tinha que me contentar com as notas inferiores. Estudávamos por diversão, não visandoobter futuramente um bom emprego ou mudar de vida e nem sequer havia a pretensão de

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fazer o vestibular. Achávamos que o ensino médio era suficiente para obter novas oportuni-dades.

Nesse momento surgiram várias amizades, alguma das quais nos conheciam somenteno dia das avaliações. Praticamente eu só fazia os trabalhos com uma amiga. Ela me espera-va na sala nos dias de avaliações e eu quase sempre chegava atrasado propositalmente paravê-la desesperada a minha espera. O mais curioso de tudo isso era o fato de que essa meninamostrava os trabalhos para a mãe, exibindo-os, em alguns casos, as boas notas, como se elativesse se esforçado para consegui-las. Apesar disso, conheci pessoas sinceras que só queri-am o afeto e o companheirismo e o mais importante para mim foi a questão do aprendizado,eu nunca dei importância às pessoas que crescem à custa de outras.

Durante quase todo ensino médio a relação do meu grupo de estudo foi boa, apesar deexistir grupos isolados, sempre procurei ter um bom relacionamento com todos, inclusivecom os professores, pois estes depositaram votos de confiança em minha pessoa, mesmonão merecendo por ser, às vezes, desinteressado.

No último ano, começaram as discussões entre professores e aluno a respeito do vesti-bular e todos se perguntavam o curso que cada um iria escolher e eu, na maioria dos casos,não respondia, haja vista a grande indecisão por que passava naquele momento e tambémpor evitar expectativas sobre mim.

Como todos sabem o ensino médio, principalmente na escola pública, não se preparaos alunos adequadamente para os vestibulares e na maioria dos casos é necessário fazer umacomplementação nos cursinhos pré-vestibulares. Graças à ajuda de minha família conseguifazer a preparação em um que dava uma bolsa parcial àqueles que tirassem boas notas emum teste.

A minha rotina mudou bastante, pois agora eu estudava em dois horários: de manhãfreqüentava o cursinho e à noite, a escola regular, o que não adiantou muito, pois o meurendimento escolar caiu e eu quase desisti de enfrentar as duas responsabilidades aomesmo tempo.

Apesar do esforço, a aprovação no vestibular não veio, mesmo tendo passado noitese noites estudando em casa e no cursinho, eu não obtive a nota mínima para passar àsegunda fase.

No ano seguinte, depois de ter superado o trauma da derrota, comecei tudo de novo.Mesmo não tendo a oportunidade de estudar no cursinho novamente consegui compraralguns livros e me preparar sem o auxílio de ninguém. Decidi optar pelo curso que realmen-te mais me identificava e neste mesmo ano houve a criação do curso de Física e eu nãopensei duas vezes e logo optei em fazê-lo. Algumas pessoas me perguntavam o porquê denão fazer o vestibular nas áreas exatas, pois o primeiro foi para Enfermagem em virtude dosonho que tinha em cuidar da saúde das pessoas.

Lembro-me de como foi natural, de certa forma, a aprovação nesse curso. Se no anoanterior fiquei com total sentimento de derrota, no ano seguinte tentei tratar a vitória deforma normal, mas não esquecendo de como foi difícil chegar até ela.

O início das aulas na universidade foi a maior decepção tanto para mim quanto para amaioria dos calouros em razão da falta de estrutura e de incentivo de toda UNIFAP hajavista o desinteresse de alguns docentes para conosco, falta de laboratórios para pesquisa eprincipalmente, a expectativa que criamos ao redor dos cursos no que tange sua qualidade.A ânsia de freqüentar um curso superior foi sucumbida pela falta de um aparato educacional

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adequado às nossas expectativas e pelo sentimento de derrota após uma excepcional vitó-ria que foi o vestibular.

Estou no curso de licenciatura em Física não por interesses financeiros, mas por umarealização pessoal. Creio que o emprego de professor será futuramente importante para mime minha família, mas a satisfação de estar em sala de aula aprendendo as leis físicas é o querealmente dá apoio para continuar nesta árdua caminhada.

Desde o ensino médio sempre quis ganhar uma bolsa de estudo para arcar com minhaspróprias despesas, mas nunca tive a sorte de consegui-la. O Programa Conexões de Saberesestá dando uma oportunidade para nós estudantes de camadas populares, menos favorecidas,que almejam fazer um curso de formação, tendo acesso e permanência com qualidade nauniversidade.

Meu ingresso nesse programa foi bastante inesperado, pois muitos são os estudantesque precisam desse incentivo, eu através das condições socioeconômicas correspondi aoscritérios estabelecidos e hoje estou no Programa Conexões de Saberes tentando aproveitarao máximo essa oportunidade surgida em minha vida.

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Elielbem Pantoza Dias*

A vida vale! Vale mais do que imaginamos

* Graduando em Letras pela UNIFAP.

Bem, os versos acima se imbricam com a minha vida, pois somente minha alma sabeos caminhos que percorri. Desses caminhos o mais difícil de ser transitado foi, sem dúvidaalguma, o momento da perda de papai. Pois a partir daí enfrentamos ( minha família e eu)muitas dificuldades, como relatarei mais à frente.

Todavia a fé em dias melhores foi e é maior do que qualquer obstáculo que possaaparecer. Por isso os dois últimos versos acima, também, se entrelaçam com minha trajetóriade vida.

A perdaUm pouco antes de completar dez anos papai falece. Naquela época, já tinha a noção

da perda de uma pessoa tão próxima. Choramos muito. Lembro-me como se fosse hoje.Mamãe costurava. Fazia um dia lindo. Brincava próximo a ela quando ouvimos palmas emfrente a nossa casa. Fui atender. A pessoa que batia perguntou:

- A tua mãe está?- Sim, respondi.- Vá chamá-la, disse.Mamãe veio, conversou com o rapaz e eu, perto escutei tudo. Não podia acreditar. Na

verdade havia uma esperança de que ele pudesse estar vivo, posto que a notícia a princípionão era de sua morte, mas de seu desaparecimento em alto-mar.

Equipes de busca saíram em sua procura e ao final de uma semana encontraram seucorpo em uma praia. Até hoje não acredito em tal fato, talvez porque não vimos o corpo.Não pudemos ao menos lhe dar um sepultamento digno. Moradores da região o sepultaramem uma “ribanceira da praia”, pois nossa comunidade ficava longe de onde ele foi encon-trado, por isso se tornou difícil o translado. No dia seguinte a sua última partida para otrabalho, perguntei a minha mãe:

- Mãe, onde está o papai?- Ele foi trabalhar, disse ela.Continuou dizendo:- Antes de sair se despediu de cada um de vocês com um beijo e saiu pela madrugada!Este fato é um marco em nossas vidas, visto que, a partir de então, começam grandes

mudanças. Como eu sou o mais velho dos filhos, assumi responsabilidades de adulto muitocedo.

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Mudanças drásticasMorávamos, nessa ocasião, em Macedônia, interior do Estado. Devido a morte de

papai e por eu ter concluído a quarta série viemos morar definitivamente na capital Macapá,visto que em Macedônia, ou em qualquer outra vila do arquipélago, não havia as sériesseguintes. Chegando em Macapá fomos morar em vários lugares (casa de meus avós, minhabisavó, uma tia de mamãe e minha tia) antes de nos estabelecermos em nossa própria casa.Por isso perdi um ano de meus estudos.

No ano seguinte voltei a estudar a quinta série na Escola Estadual de 1º grau EdgarLino da Silva. Após essas mudanças fomos morar em uma casa localizada em uma área deinvasão - conhecida como Baixada do Japonês.

O dinheiro de que dispúnhamos era pouco, mal dava para nos alimentar. A vida eradifícil. Não esquecerei jamais dos dias em que meu irmão e eu íamos para a escola com fomee quando voltávamos continuávamos sem ter algo para nos alimentar, então, “corríamos”para casa de minha tia (citada anteriormente). Lá, sempre fomos recebidos de braços aber-tos.

Nesta época já era adolescente e estava exposto às drogas, às bebidas, às gangues,dentre outros tipos de violências. Tinha a liberdade que todo adolescente sempre quis, masdevido à educação que meu pai soube me transmitir, jamais me deixei contaminar comessas “porcarias”. Tenho orgulho em dizer: - “Jamais pus um cigarro na boca, assim como,também, jamais vi papai praticar tal ato e com toda certeza meu filho jamais me verápraticando-o”.

Atualmente moramos no bairro Jardim Felicidade 1, periferia de Macapá. Somos ounão somos nômades?

O legadoPapai e sua irmã também haviam perdido o pai muito cedo. Sua mãe os criou à mão de

ferro. Trabalhou duro para sustentá-los. Fomos criados da mesma forma, contudo “soubenos educar para a vida” deixando, com isso, um legado de princípios. Jamais tivemos algo(material) valioso, por isso nos ensinou o valor que tem a educação. Devido a sua rigidezapanhávamos muito. Lembro-me bem das “surras” que peguei, todavia lembro-me, ainda,com mais intensidade de seus conselhos e seus carinhos.

A conquistaApós alguns anos do término do meu ensino médio voltei a estudar. Fui fazer cursinho

preparatório para o vestibular. Tive, como não poderia ser diferente, muita dificuldade nasprimeiras semanas e, conseqüentemente, nos primeiros meses.Tive, ainda, de correr contrao tempo, superar obstáculos impostos pelo tempo e, principalmente por um sistema cujameta é o lucro. Esse sistema leva as pessoas (principalmente as menos favorecidas economi-camente) a se verem em uma situação cruel: ter que optar entre os estudos ou o trabalho (etodos sabemos qual opção nos resta, ou não sabemos?). É inconcebível saber que um paíspossa fazer isso com seu povo, logo o Brasil, que se diz um país do futuro.

Mas voltando ao memorial. Dizia eu sobre as dificuldades encontradas ao retornar asala de aula. Então, superadas as dificuldades me dediquei, estudei, passei. Hoje sou osegundo da família (dentre várias gerações) a ingressar em uma Universidade Federal. É porisso que chamo de “a conquista”.

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O retorno a sociedadeQuando ingressei na universidade as expectativas eram altíssimas. Portanto, pensei:

“agora tudo será mais fácil”. No entanto não é. Não é porque, já no início do meu curso,quase tive que desistir, pois não tinha recursos financeiros para chegar à universidade, parapagar fotocópias de capítulos de livros, muito menos para comprar livros, dentre outrasdificuldades. Porém minha vida acadêmica, apesar de alguns contratempos, tem me propor-cionado muitas alegrias, dentre elas destaco: trabalhar como voluntário na redação doprimeiro programa de televisão da UNIFAP, ser selecionado para apresentar voluntariamen-te um programa de rádio desta Instituição, ser monitor voluntário de Língua Portuguesa noCursinho Pré-Vestibular, também, desta Universidade.

Destaco, ainda mais, essa última, visto que nela me realizo como futuro profissionalda área e principalmente por ter a oportunidade de devolver (ainda que de forma minimizada)à minha sociedade o que ela tem me proporcionado. Há um ditado popular que diz: umaandorinha apenas não faz verão. Entretanto, por contribuir para uma sociedade mais justa,mais digna, enfim mais humana, como em um futuro melhor, tendo a certeza de que meusesforços não serão em vão.

O saltoPara alguém que veio de uma região ribeirinha, dos rios da Amazônia e agora cursa

uma Universidade Federal (o que para algumas pessoas não significa muita coisa já que setrata de uma universidade amapaense, fora do eixo sul-sudeste, porém para mim é “mais umobstáculo” transposto) posso dizer que já sou um vitorioso, contudo não é o bastante emuito menos o fim.

Antes de terminar este memorial gostaria de lembrar da história de uma pessoa quetambém teve origem nas regiões ribeirinhas dos rios da Amazônia, sempre estudou emescolas públicas e hoje é doutora pela PUC/SP e pela Universidade de Genebra. Tenho omaior orgulho em saber que uma pessoa (principalmente sendo conterrânea) chegou tãolonge e, o que é mais importante, não deixou que seu título fosse maior do que ela, pelocontrário ele a fez enxergar o mundo sob um novo ângulo e a conservou com a humildadede sempre, tornando-a ainda mais inteligente e especial. Seu nome: Dra. Adelma BarrosMendes, coordenadora do Programa Conexões de Saberes na Universidade Federal doAmapá - UNIFAP, além de professora desta mesma instituição.

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Enfrentar dificuldades, sim! Desistir, jamaisElizeu Souza Filho*

Na universidade...Universidade meio no qual estou inserido, como integrante da comunidade acadêmi-

ca da UNIFAP, tenho a oportunidade de adquirir conhecimento e também produzi-lo, prin-cipalmente com o auxílio do Programa Conexões de Saberes.

O ambiente universitário representa um espaço de produção de conhecimento, tro-cas de experiências e aprimoramento intelectual. Além de ser um local de lutas políticase ideológicas. Nesse contexto é preciso estar atento às transformações decorrente dessaslutas. Com isso o Conexões de Saberes oferece a chance de lutarmos por melhorias naeducação nas universidades públicas, principalmente para as pessoas de origem popular,a qual pertenço.

Para chegar ate aqui não foi fácil, tive que passar por cima de todas as dificuldades queencontrei; principalmente a financeira e a familiar, por isso convido você a conhecer minhahistória.

O começoMuitos jovens de origem popular sonham com uma vida melhor que a de seus pais.

Devido aos problemas: financeiros, familiares, educacionais e religiosos, pensam que ja-mais conseguirão realizar seus objetivos. Porém, para outros não importa as dificuldadesque irão enfrentar pelo caminho, sempre têm a certeza de que um dia alcançarão suas metas.

Faço parte do segundo grupo, minha família é composta por seis pessoas. Meus paissão de origem nordestina. Meu pai sempre esteve à procura de melhores oportunidades detrabalho para oferecer uma melhor qualidade de vida à família, mas sem uma profissãodefinida e sem muito estudo teve muitas dificuldades de encontrar trabalho fixo e satisfatório.Já trabalhou como garimpeiro, pedreiro, carpinteiro e, atualmente, é agricultor. Essa procu-ra deve ser a explicação do porquê a nossa família constantemente mudar de cidade.

Com isso na maioria das vezes meu pai esteve ausente fisicamente. Eu e meus irmãosestivemos sempre junto com a nossa mãe, ela é quem segurou a barra durante os períodosque meu pai estava ausente, e além de assumir a liderança do lar, ainda tinha que cuidar domeu irmão mais velho, que é portador de necessidades especiais.

Desde pequeno sempre levei o estudo a sério, pois acreditava que através da educa-ção, poderia ter um futuro melhor, podendo assim ajudar minha família.

* Graduando em Geografia pela UNIFAP.

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Aos sete anos de idade comecei a estudar em uma escola do interior do município deMonte Alegre no Estado do Pará, onde cursei até a quarta série. Nesse período estudava pelamanhã e à tarde tinha que ajudar meu pai na roça, coisa que eu não gostava muito.

Na localidade em que eu estava o ensino era só até a quarta série. Por isso fui fazer aquinta série na cidade próxima e morar com meus avós maternos. Nessa época eu trabalhavacomo vendedor de lanche nas escolas, para poder comprar o material escolar.

Quando passei para a sexta série, minha família mudou-se para a cidade de Macapá. Nesseperíodo, meus pais me matricularam para fazer a 3ª etapa da Educação de Jovens e Adultos-EJA,em uma escola longe da casa que morávamos, só no ano posterior é que mudei para uma escolamais próxima, onde cursei a 4ª etapa, concluindo assim o ensino fundamental.

Para fazer o primeiro ano do ensino médio, tive que esperar inaugurar uma escolapública de ensino médio no bairro, passando assim um ano sem estudar. Nessa escolaconclui o ensino médio, depois de muita luta tendo que trabalhar em qualquer tipo deserviços para poder me manter nos estudos.

Nessa época passei a analisar o estado da minha família, meu pai agricultor, o que eleproduzia e produz ainda mal dá para o sustento dele. Minha mãe, dona de casa, meusirmãos, dois só estudaram até a 8ª série do ensino fundamental e trabalham de vez emquando. A renda familiar basicamente era constituída da aposentadoria do meu irmão defi-ciente, o “inválido” era quem sustentava todos nós.

Vendo tudo isso decidi fazer um curso superior para, futuramente através dele, conse-guir um bom emprego e poder proporcionar uma vida melhor para minha família.

Então comecei a jornada rumo à universidade. Sem condições para pagar uma facul-dade particular, a solução era a pública. Mas para chegar lá passei por situações boas e ruins.

Após ter fracassado no vestibular que fiz no ano em que concluí o ensino médio, nãodesisti e como boa parte dos ingressantes na universidade eram de escola particular, decidime matricular em um pré-vestibular gratuito, mantido pela Fundação Desafio, idealizadopor um deputado estadual, o qual muitos dizem que o objetivo do referido curso é político,mas para mim foi muito importante, pois através dele consegui muitos conhecimentos,além de conviver com pessoas que enfrentavam situações parecidas com as minhas.

Foi muito gratificante ver que todos estavam à procura da ascensão social, através daeducação e não de outros meios.

Nesse ano minha mãe e meus irmãos voltaram para a cidade de onde tínhamos vindo,já que meu pai morava ainda no interior e vinha em casa de vez em quando, com isso apressão aumentou, pois tive que morar sozinho, trabalhando e estudando para o vestibulare sob a hipótese de que caso não passasse no vestibular teria que vender a casa e ir emboratambém, coisa que eu não queria, pois para onde eu iria não teria possibilidade de continuaros estudos.

Os últimos três meses que antecederam o resultado final do vestibular foram os maisangustiantes que já passei, pois, cada dia que passava, o meu sonho poderia se realizar outornar-se um pesadelo.

Após ter passado todas as etapas do processo seletivo da UNIFAP, finalmente chegouo dia do resultado. Estava sozinho em casa, esperava impacientemente ouvir o meu nomeatravés do rádio, e quando o locutor começou a anunciar o nome dos aprovados do curso deGeografia e não dizia o meu, começou a me dar um frio, uma tontura e um aceleramento nosbatimentos cardíaco, me deitei na cama e estava quase perdendo a esperança quando final-

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mente ouvi o meu nome, aí tudo mudou no mesmo instante, eu pulava, gritava os vizinhosachavam que eu estava ficando louco. Logo após chegou um amigo meu e me parabenizoue disse que não havia passado.

Assim, não sabia se lamentava por ele ou comemorava a vitória, ele já tinha feitovestibular quatro vezes e essa era a quinta, mas posteriormente ele foi chamado para fazer asua matrícula devido à desistência de alguns aprovados.

Passei em vigésimo quinto lugar no curso de Geografia no ano de 2004. A minhafamília voltou e meus avós também. Agora tenho a oportunidade de participar do ProgramaConexões de Saberes e compartilhar com você que está lendo este memorial as minhasexperiências durante a minha vida estudantil que ainda não acabou. Assim, espero quevocê, como eu, nunca desista dos seus sonhos e lembre-se sempre que um dos segredos davitória é a persistência.

Mas em todas estas coisas somosmais do que vencedores... Rm. 8;37

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* Graduando em Geografia pela UNIFAP.

Francisco Alves Cordovil Neto*

Saudosos momentos

Na década de 80, o atual estado do Amapá, que na época era território federal, passavapor um intenso processo de transformações estruturais e funcionais, fruto de um estimadofluxo migratório de pessoas em busca de emprego e melhores condições de vida para suasfamílias. Havia aqui empresas de grande porte e suas subsidiárias.

A cidade de Macapá caminhava para o progresso a passos lentos. Sua dinâmicapopulacional era desproporcional ao espaço ofertado, uma vez que os grandes projetosaqui instalados se assentavam em locais distante da cidade, como por exemplo; ICOMI, emSerra do Navio e em Santana, o projeto JARI, em Laranjal do Jari. A fonte de renda esubsistência era primária e o comércio era pouco desenvolvido. Não havia grandes cidadese sim pequenos povoados e vilarejos. A infra-estrutura hospitalar, os núcleos de ensino, asentidades assistenciais e comerciárias eram escassas, quase não havia nos pequenos nú-cleos urbanos e distritais. A vida era difícil pra quem morava distante da cidade, longe dasescolas, hospitais e serviços, principalmente dos centros de saúde. Quando alguém adoeciatinha de se deslocar dezenas de quilômetros em busca de atendimento, algumas chegavamaté a morrer no caminho em busca de socorro. Enfim, era muito difícil morar nos povoadose vilarejos.

Foi nesse contexto que eu entrei no cenário da existência humana. Nasci prematura-mente aos 7 meses, na cidade de Macapá, na tarde de domingo do dia 1º de outubro de 1981.Minha família morava numa Gleba, pedaço de terra destinado ao plantio, chamado popular-mente de “Pau Furado” (expressão utilizada até hoje) localizado a 5km de distância dopovoado de Santana.

Não nasci em berço de ouro, meus pais eram daqueles imigrantes vindos do interior doestado do Pará em busca de emprego e melhores condições de vida para nossa família. Meupai é natural do município de Anajás e minha mãe de Breves. Éramos, na época , uma famíliade 5 pessoas e quando aqui chegamos, trataram logo de procurar emprego numa daquelasempresas de grande porte, todavia, não logrando êxito nas primeiras tentativas. Dessa for-ma, passamos a viver dos árduos trabalhos que meu pai prestava nos grandes latifúndios daregião, mas nunca chegamos a passar fome.

Poucos dias depois meu pai, por intermédio de um amigo, passou a trabalhar de braçalem uma empresa subsidiária da ICOMI chamada BRUMASA, enquanto minha mãe cuidavadas prendas do lar e meus irmãos dos afazeres do campo. Meus pais não tiveram a oportu-

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nidade de estudar, contudo, sempre nos ensinaram o caminho a ser trilhado, o caminho daeducação, do conhecimento.

Com meu pai, trabalhando em uma empresa, passamos a usufruir de uma certa “tran-qüilidade”, uma vez que a referida empresa promovia eventos cuja ações eram voltadospara o bem estar da família do empregado. Migramos em seguida para o pequeno povoadode Santana, onde já havia pouca infra-estrutura como hospitais, escolas e postos de saúde.O progresso caminhava a passos de tartaruga no até então povoado, mas tudo que meus paisqueriam ver eram seus filhos na escola, torná-los cidadãos para o pleno exercício da cidada-nia futura.

Começamos uma nova vida em Santana, no bairro Nova Brasília, onde vivi todaminha infância e como toda criança, sempre gostei de brincar, jogar futebol era meu passatempo preferido. Sempre brincava só e não era do tipo de ficar o dia todo na rua e quandoultrapassava o limite de estar fora de casa, era submetido a um castigo sem igual; surras degalho de goiabeira nas costas que me faziam sambar de tanta dor. Meus pais tinham razão,afinal, era para o meu próprio bem. O caro leitor deve está se perguntando e não havia outraalternativa de repreensão menos dolorosa que essa. Com certeza meus pais responderiamque “não”, às vezes era necessário.

Fui criado sob o jugo da disciplina e orientado desde o princípio para uma vidavoltada aos estudos. Fui preparado desde a infância para enfrentar a dura realidade da vidasocial, contra as mazelas das relações entre as pessoas e contra as grandes dores da nossacondição. Meus pais não tiveram a oportunidade de estudar nem por isso deixaram decuidar da educação dos filhos, pois acreditavam que uma vida digna de ser vivida sópoderia ser almejada por intermédio da educação, do conhecimento.

Comecei minha vida estudantil aos sete anos de idade, no maternal da escolaElizabeth Picanço Esteves, localizada a algumas dezenas de quilômetros de casa e meumaior problema era ter de acordar cedo e às vezes sem tomar café e caminhar tamanhadistância rumo ao colégio.Tive dificuldade de adaptação nos primeiros dias de contatocom a escola, chorava muito em sala de aula; era zombado pelos coleguinhas de classe, naverdade, o novo me impressionava e fazia com que eu esboçasse tal comportamento. Nãogostava de estudar e mais uma vez o samba da surra me achou, mas tudo bem, era preciso,era para o meu próprio bem.

O tempo foi passando na pacata cidade de Santana. Certo dia, meu pai teve umaconversa comigo, dissera que estava desempregado e que deveria fazer uma viagem paraGuiana Francesa a serviço, me deu alguns conselhos, um deles era para que eu estudassepara não sofrer na vida. Sofrer! Desde quando quem tem estudo não sofre, pensava eu. Naverdade, meu pai se referia a uma profissão digna, proporcionada por uma escolaridadeavançada. Uma pessoa instruída e graduada dificilmente teria de se submeter aos árduostrabalhos braçais no qual meu pai estava associado.

Meu pai foi embora trabalhar distante e sentimos a dificuldade das coisas dia após dia.Minha mãe foi trabalhar como vendedora de pescados em uma feira perto de casa, atividadeessa exercida por muito tempo. Ela foi uma guerreira!

O tempo foi passando e eu fui crescendo na pacata cidade de Santana. Agora numaoutra fase da vida, a adolescência. Tive de fazer algumas escolhas, uma delas seria nocampo da profissão. Meu pai queria que eu fosse médico, minha mãe, soldado do exército.

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Eu, particularmente, pensava em ser professor de uma tal ciência chamada Biologia, voca-ção essa revelada nas boas notas da disciplina Ciências, nas séries do ensino fundamental.Na verdade, pensar é fácil, difícil mesmo é ter que trilhar caminhos pedregosos rumo arealizações dos nossos objetivos.

Muitas foram as minhas dificuldades; a falta de recursos financeiros, falta de apoiomaterial, doenças, problemas na família, tive de suportar a separação dos meus pais, enfim,todo e qualquer empecilho que eu poderia muito bem usar como desculpa para ficar nocaminho, abandonar os estudos, desistir dos meus ideais. Foi assim minha trajetória de estu-dante durante todo ensino fundamental, permeado de contrastes. Mesmo com tantos proble-mas, era assíduo às aulas, participativo, atencioso e dedicado. Com todas essas características,jamais repeti uma série do ensino fundamental, nem um ano foi perdido naquela ocasião.

No ano de 1997, dei início a uma fase dos estudos (1 ano do ensino médio na área deCiências Biológicas) era o começo de uma longa batalha rumo a universidade. Fui estudarna escola Almirante Barroso (antigo Aníbal Barcelos) que fica próximo de casa. As dificul-dades eram as mesmas, até piores, agora, parece que os problemas se avolumaram de uma talforma, que meu sonho havia se comprometido com tantas coisas ruins acontecendo. Todojovem precisa de emprego, eu não era diferente, todo jovem precisa e carece das coisas.Naquela ocasião, parecia que me faltava tudo.

A vontade de ter e não poder me angustiava, me deixava depressivo, mas nuncadescarreguei a raiva em outrem; procurava emprego e não encontrava, fiz tantas entrevistas,mas todas sem sucesso, ninguém queria oportunizar um jovem sem experiência profissio-nal, isso me deixava muito triste e sem auto-estima, porém, jamais perdi a esperança, adignidade, o respeito ao próximo. Sempre mantive uma excelente conduta moral e éticapostulada nos princípios doutrinários do evangelho.

Nesse momento, somente a esperança de dias melhores me consolava. Não tive muitosamigos, não costumava sair muito de casa, sofria calado as duras realidades da vida, masjamais reclamei dela. Tinha sonhos (como ainda tenho) e não poderia andar de cabeça baixapelo fato de não ter as coisas que sempre sonhei, confesso que fiquei triste em algunsmomentos da vida, como é normal, afinal, a tristeza faz parte da vida assim como a felicida-de, mas jamais deixei de acreditar em mim.

E por fim, no dia 06 de agosto de 1999, eu e meus irmãos estávamos em casa reunidospara o café da manhã, quando fomos surpreendidos por uma notícia muito triste. Meu paiacabara de falecer na Guiana Francesa, no garimpo de Regina a 30 km da capital Caiena,vítima de disparo de arma de fogo. Foi um choque para todos nós, afinal, havia perdido umpai, um amigo.

Como o caro leitor pode ver, os problemas descritos acima foram uma constante emminha vida que se perdurou durante todo o ensino médio.

No final de dezembro de 1999, estava concluindo o ensino médio, não havia repetidouma só série, julgava eu estar “preparado” para o vestibular. Não fiz cursinho preparatório,somente estudava em casa. Fui fazer a primeira fase e para minha surpresa, passei. O entusi-asmo tomou conta de mim, estudei mais ainda, os professores me ajudavam bastante, afamília me dava força, os amigos também. E para surpresa de todos veio o resultado. Não fuiaprovado. Fiquei bastante triste. Amortizei minha dor, me convencendo de que era a primei-ra vez. Pedi desculpa para a família, os professores e os amigos. Disse que da próxima veziria dar tudo certo.

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No ano 2000, comecei tudo de novo, passei a freqüentar um cursinho preparatóriochamado “Desafio” que fica próximo de casa. Desta vez ia dar tudo certo, me organizei,comprei livros, formei equipe de estudos, estudava em casa, a família via tudo de perto,minha irmã chegou até a dizer que desta vez eu passaria, pelo grande esforço que eu estavafazendo. Os amigos acreditaram mais ainda, os vizinhos criavam uma expectativa tamanhaque eu me via na obrigação de passar.

Afinal, agora estava realmente preparado. A primeira fase foi tranqüila, outra vez osânimos tomaram conta de mim e me encheram de entusiasmo, fui fazer a segunda, e parasurpresa de todos; não passei, zerei em matemática.

A dor de não ser aprovado mais uma vez no vestibular foi tão forte que me davavontade de fugir de tudo e de todos. Foi vergonhoso para mim, tive de suportar críticas,humilhações, deboches. Vi as pessoas comemorando, e eu me enchia de desgosto por nãoter sido aprovado, mas não abaixei a cabeça, disse para mim mesmo que iria dar a voltacima, agora corrigindo os erros. Estudei mais a disciplina de pouco rendimento, a matemá-tica. Tornei a efetuar minha matrícula no Desafio.

Fiz tudo direito, agora não tinha como não passar. Era o vestibular de 2001, o climaera de euforia total.

Desta vez, não criei nenhuma expectativa. Parecia que tudo daria certo desta vez.Mais uma vez fui aprovado na primeira fase. E agora fui com força para a segunda fase. Fizuma ótima prova, estava crente da minha aprovação. E no final veio a decepção. Nãoconsegui passar. Não acreditei no que estava acontecendo, desta vez, não zerei em nenhu-ma, mas a pontuação foi insuficiente. Foi um dia de trevas para mim. Jamais pensei que iriapassar por tudo aquilo outra vez. Era o ano de 2002, estava desempregado e me achava nodever de trabalhar, mas onde? Se ninguém me oportunizava. Fiz alguns concursos públicos,mas sem êxito de aprovação. Fiquei triste, depressivo em alguns momentos, mas jamaisperdi a cabeça e fiz coisas erradas. Não fiz o vestibular deste ano, em virtude de problemasdiversos, mas eu sabia que minha hora chegaria, tinha certeza disso.

No ano de 2003, conheci pessoas maravilhosas que fizeram a diferença na minha vida.Ouvi falar de um processo seletivo que disponibilizava vagas para o ensino profissional,essa escola profissionalizante chamava-se CEPA (Centro de Educação Profissional do Amapá)onde realizei o processo e fui aprovado no curso de turismo. Foi nessa escola que conheciuma pessoa muito “especial” que mais tarde me inspiraria a passar no vestibular. Foi DEUS!Não tinha vocação para o Turismo, não era o que eu queria, pensei em desistir logo nosprimeiros meses, estava ciente da minha desistência. Mas com o passar do tempo fui gostan-do, não do curso, mas de uma pessoa que me chamou bastante atenção. Ela foi me envolven-do aos poucos e quando me percebi estava perdidamente apaixonado por ela. Nunca sentialgo tão forte por alguém como senti por essa doce jovem.

Terminou o ano de 2003 e eu não fiz o vestibular. Entramos no ano de 2004 e eucontinuei a estudar no CEPA. Fiz projetos, decidir fazer o vestibular desse ano, mais umavez fui para o cursinho Desafio, afinal, o desejo de passar no vestibular ainda permeavaminha mente. Estudava pela manhã no cursinho, à tarde ia para o CEPA e à noite voltava air para o cursinho. Me esforcei bastante, dobrei as horas de estudo, agora entrava pelamadrugada. No final de tudo veio a decepção. Fracassei.

Via todo mundo passar no vestibular, menos eu. O desânimo foi total! Estava abatido,apático, sem saber o que fazer. O desespero foi maior quando minha adorável menina havia

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cancelado o curso no CEPA, em virtude de um outro curso de formação de soldado da PolíciaMilitar, e se não bastasse, ela também havia passado no vestibular daquele ano. Senti umatamanha amargura, uma solidão tomou conta de mim. A pessoa a quem eu tanto gostava haviame abandonado, apesar de não tê-la namorado, sentia algo muito forte por ela, foi quandoresolvi lutar por dois motivos; o de passar no vestibular e reencontrar meu amor.

Cancelei os estudos no CEPA e partir em busca dos meus objetivos.Vou passar novestibular de 2005, me determinei, estudava com afinco, agora já experiente em provas devestibular resolvi sistematizar as coisas. Estudava no Desafio pela manhã, tarde e noite.Resultado: passei na primeira fase. Fiquei tranqüilo, fui em busca da segunda. Resultado,fui aprovado no 15º lugar do curso de Geografia.

Minha vida como acadêmico não é nada fácil, as responsabilidades são muitas.Meu primeiro contato com a universidade demorou um pouco em virtude de uma

greve que assolava a universidade naquele momento. Minhas expectativas foram frustra-das, uma vez que, a falta de organização e o descaso pela coisa pública é uma realidadenesta instituição de ensino superior. Mas, mesmo assim, existem aqui pessoas sérias, res-ponsáveis, comprometidas com um ensino superior de qualidade.

Eu, na qualidade de universitário oriundo das camadas populares, participo do Pro-grama Conexões de Saberes que além de fornecer uma bolsa de estudos, também desenvol-ve pesquisas junto a comunidades tradicionais da região. Sinto-me feliz por fazer parte deuma equipe de universitários e professores empenhados na busca do conhecimento cientí-fico.

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* Graduando em Física pela UNIFAP.

Quando acreditei que tudo estava perdido...era o início de minha melhora

Hugo de Souza Lopes*

Era o dia 7 de março de 2005, às 16h, eu estava reunido com mais quatro amigos,ouvindo o resultado da segunda fase do vestibular transmitido via rádio.

Todos estávamos apreensivos, aflitos e perturbados pela incerteza de não conseguir-mos ser aprovados. Apenas cinqüenta pessoas estariam habilitadas para freqüentar o ensinosuperior. O clima estava ficando cada vez mais tenso naquela sala, pois estava aproximandoo resultado do curso no qual havia me alistado, quando de repente ouvi meu nome. Eu erao quadragésimo nono colocado e estava com uma felicidade indescritível: não sabia sepulava ou me arrastava no chão; se chorava ou se sorria, apenas confesso que foi o dia maisfeliz da minha vida e, representar esse contentamento por meio de palavras torna-se impos-sível, apenas quem viveu este momento é capaz de entendê-lo. Nesse dia aprendi que afelicidade e o bom êxito é fruto da perseverança e, portanto, vale a pena insistir na realiza-ção dos seus sonhos.

Na Universidade, encontrei um novo mundo. As pessoas me respeitavam mais queoutrora, e para mim, isso foi um prêmio. No Conjunto de Jovens, meus amigos me honra-vam; no bairro, todos os conhecidos me cumprimentavam e comecei a receber mais visitasem casa para dar aulas de reforço na matéria de Física, de forma que isso se tornou estímulopara a minha progressão no curso de Física.

Por outro lado, nos primeiros meses, senti o impacto do peso das matérias de cálculo.Eram combinações numéricas que eu nunca tinha estudado e, portanto, não era de fácilinterpretação, de modo que confesso meu desalento quanto a escolha do curso de Física.Nesse período, houve uma longa greve que proporcionou a mim uma oportunidade paraestudar as matérias de cálculo, e dessa forma, entender a idéia daqueles ajustes quantitati-vos. Foi superado mais um obstáculo.

Havia ainda mais um estorvo que deixava vulnerável o meu progresso no ensinosuperior, pois moro cerca de 13 km da Universidade Federal e minha locomoção, todos osdias, sobrecarregava no orçamento da casa. Nessa ocasião, eu recebi uma informação que oPrograma Conexões de Saberes estava abrindo um processo seletivo. Me inscrevi e fuiselecionado para participar.

Isso foi muito bom, porque além de contribuir na minha renda mensal, ajudou-me noaprendizado de elaboração textual, artigos e projetos que até então eram obscuros em meuconhecimento.

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Atualmente, estou no quarto semestre do curso de Física. Sinto-me radiante em conhe-cer assuntos tão belos.

Adoro este curso ao quadrado da velocidade da luz, traçando aosabor do momento e da paixão, retas e curvas nos jardins daquarta dimensão, nas mesmas razões do intervalo aberto da vida. Autor desconhecido

Sofreu muito nesse período? Foi aprendizado. Minha inserção no ensino superior nãofoi desprovida de dificuldades.

Foram três tentativas, sendo que as duas primeiras foram frustradas. Senti que meusesforços foram iludidos no momento em que estava fazendo a prova do primeiro vestibular,pois havia questões naquela prova que eu nunca estudara no decorrer do ensino médio, demodo que fiquei sem ação diante daquele exame e, dessa forma, eu estava inabilitado paraexecutar aquela prova.

Perante essa situação, tomei a decisão de matricular-me em um curso pré-vestibulargratuito com o objetivo de aumentar meus conhecimentos e, por fim, conseguir estudar naUniversidade pública. Foi mais um ano de labor. Durante esse período eu estava limitadoapenas ao estudo, de forma que todos os meus momentos de diversão tornaram-se escassos.

Mais um ano se passa, e é chegada a hora da realização do meu segundo vestibular.Sem dúvida, eu estava mais preparado intelectualmente que no ano anterior, e a minhaesperança crescia exponencialmente, juntamente com a certeza da aprovação.

Ao contrário das minhas expectativas, não consegui aprovação no exame da segundafase do vestibular, o que me deixou profundamente triste por vários meses. Quando avistavaalguém de cabeça raspada e ouvia anúncios nos meios de comunicação sobre os alunosaprovados, imediatamente eu era persuadido pela tristeza. Foram várias semanas de decepção.

Em meio a tanta melancolia, cogitei tentar pela última vez. Foi mais um ano de totalesforço na conquista de minha ascensão social e profissional. Era muito difícil estudardentro de casa, pois ela é pequena demais para nove pessoas. Logo, comecei a estudar demadrugada e foram muitos os dias amanhecidos estudando. A vontade de vencer era tãogrande que comecei a ignorar as reações que o meu corpo apresentava: eventuais dores decabeça, fraqueza, esporadicamente a vista escurecia e eu imaginava que com uma noite desono isso amenizaria. Foi totalmente o contrário.

Estava chegando o dia da primeira fase do vestibular, onde fui muito feliz por ter umbom aproveitamento neste exame e, por conseguinte, aprovado para a segunda fase. Próximodo dia da segunda fase comecei a sentir fortes dores de cabeça, febre, vontade constante devomitar, e mesmo assim, continuava revisando os assuntos para a prova. Minha mãe ficavamuito preocupada comigo, mas era inconcebível a idéia de reprovar mais uma vez no exame.

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* Graduanda em Pedagogia pela UNIFAP.

Josilene Balieiro Pinheiro*

Memórias de uma vencedora

A vida é uma estrada que às vezes está coberta de flores e outrora de espinhos.Essa estrada é percorrida por todos os seres humanos, mas infelizmente nem todos

conseguem finalizá-la, pois muitos frente aos primeiros obstáculos se acovardam, seja porfalta de vontade ou por falta de coragem, a verdade é que só conseguem chegar ao finalàqueles que não temem as dificuldades, as barreiras ou qualquer outro espinho que possaatrapalhar sua caminhada.

No entanto, todos têm capacidade de concluir seu percurso e realizar seus objetivos,basta ter persistência e força de vontade. Mesmo assim, chegando ou não ao final da estrada,cada ser humano tem uma história para contar e experiência para compartilhar e, nessemomento, quero compartilhar, dividir a minha história com você.

A princípio quero vos dizer que não se trata de um romance ou tão pouco de umacomédia, quiçá de uma epopéia, pois apesar de não ser poema retrata um fato importantís-simo da minha vida que considero heróico, o meu ingresso na Universidade Federal doAmapá (UNIFAP).

Para conseguir tal façanha tive que vencer muitas barreiras e algumas delas quase mefizeram desistir, entretanto, quando estava desanimada, cansada de “dar murro em ponta defaca”, buscava o apoio da minha família que me acolhia e me motivava a prosseguir, afinaldepositava em mim a esperança de um futuro melhor e por isso, em hipótese alguma, eu nãopoderia desistir.

Carregava comigo não apenas o meu sonho, mas o da minha família, tudo isso tornavao meu fardo ainda mais pesado e ao mesmo tempo tornava-se o motivo da minha persistência.

Sempre fiz o melhor que pude para prosseguir a caminhada sem desanimar, das minhasderrotas eu procurava tirar algumas lições, e por isso vivia um constante aprendizado, eessas lições muitas vezes me reerguiam e me faziam acreditar que eu era capaz de conquistarmeus objetivos. Além disso, sempre tive consciência da minha responsabilidade, vivia opresente com o pensamento no passado, lembrando-me de todas as dificuldades que meuspais haviam passado para que eu pudesse estudar. Essas recordações pairavam em minhamente como um estímulo motivador, evocando a minha auto-estima e fortalecendo a minhavontade de prosseguir a caminhada.

Não sei por que, mas neste momento, subitamente, surgiu em minha memória a ima-gem do meu pai me ensinando a ler, talvez seja pelo fato de estar recordando e comentando

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o meu passado, afinal a época que aprendi a ler foi um momento marcante na minha vida, paranão dizer torturante. Sabemos que a mulher sempre leva mais jeito para resolver situações querequer paciência, no entanto, como minha mãe era analfabeta só restava meu pai com suapouca leitura (estudou apenas a 1ª série do ensino fundamental) para me ensinar a ler.

Lembro-me que o método que ele utilizava, era parecido com a antiga sabatina, ondeele me ensinava todas as famílias do alfabeto, dava-me um tempo para decorar e depois dealgumas horas perguntava-me o nome de cada uma das famílias. Cada erro eu era punidacom uma lapada de cinto na costa, e assim eu aprendi a ler, ou melhor, a decodificar. Apesarde ter odiado quando criança, hoje sei que, de certa forma, aprender a ler foi o primeiropasso que dei em direção à Universidade, passo que dedico ao meu pai.

Hoje aos 21 anos de idade reconheço que a participação dos meus pais foi importan-tíssima para me ajudar a chegar aonde cheguei, afinal eles sempre foram muito presentes emminha vida escolar, sempre exigiram o máximo de mim, não admitiam nota baixa e muitomenos vermelha, caso tal fato ocorresse era castigo na certa. Ao lembrar da minha infânciameu pai sempre diz que o cinturão era um santo remédio para melhorar o meu rendimentoescolar, pois toda vez que eu estava com dificuldade em alguma disciplina ele me castigavae rapidamente eu melhorava.

Toda essa exigência e o medo que tinha de ser castigada fizeram com que eu me tornassemuito estudiosa, tanto é que com o passar do tempo a exigência passou dos meus pais paramim, pois eu mesma passei a me cobrar, exigindo sempre o melhor que poderia dar de mim,afinal tinha compreendido o porquê da exigência ferrenha deles. E a resposta é porque elessempre trabalhavam muito, com muita dificuldade, encarando qualquer trabalho para podernos sustentar (eu e meus seis irmãos), além disso tinham que fazer o possível e o impossívelpara manter-me na escola, isso fez com que eu passasse a dar mais valor aos meus estudos e ameus pais tornando-me uma menina responsável e compromissada com os estudos.

Graças a Deus e a meus pais sempre fui uma boa aluna, por isso meus amigos e parentesviviam “enchendo a minha bola” dizendo que eu era CDF, mas a verdade é que eu não meconsiderava, como não me considero, merecedora desse título, afinal o meu bom rendimen-to escolar era fruto do meu empenho para aprender. Devido a minha fama de CDF muitaspessoas sempre me procuravam pedindo para que eu ensinasse alguns assuntos das maisvariadas disciplinas, com desejo em ajudá-las, por mais que não compreendesse o assunto,eu procurava aprender para poder ensiná-las, e apesar de muitas vezes ter requerido muitosesforços meus, posso dizer com a consciência limpa que nunca me recusei ou cobrei alguémpelo fato de ensiná-las, pois eu não tinha nada a perder e só a ganhar, ganhar mais conheci-mentos, carinho e respeito das pessoas que precisavam de mim.

E assim os anos foram se passando até chegar o tão sonhado vestibular . Todos apos-tavam na minha vitória, era um momento inebriante que misturava minha expectativa eansiedade, era a hora da verdade. Agora saberia se todos aqueles meus esforços tinhamvalido à pena, enfim fiz a primeira fase e passei, a expectativa aumentou, tinha certeza quepassaria na segunda fase também, era só uma questão de tempo, no entanto quando saiu oresultado da segunda fase tive minhas certezas e expectativas frustradas, não havia passadopelo simples motivo de ter zerado a matéria de física e como zerar era um requisito deeliminação, estava eliminada.

Meu mundo desabou e meu sonho por vários segundos se desfez, restara apenas um nóem minha garganta como se toda tristeza do mundo calasse dentro do meu peito, foi a

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primeira vez que me senti sem chão, sem direção, não sabia o que fazer, não tinha coragempara encarar meus pais e, nem as pessoas que estavam torcendo por mim, foi um sofrimentototal, parecia que a angustia ia me sufocar, por alguns meses amargurei um sentimento defracasso que por pouco não destruiu a minha esperança e confiança.

Para que eu pudesse me restabelecer tive o apoio incondicional da minha família queapesar de decepcionada me apoiou e me ajudou a sair do buraco. Depois de um certo tempocoloquei a cabeça no lugar, meditei e tirei uma lição dessa inesperada derrota, afinal haviaperdido a batalha mas não a guerra. Deixei meus amigos e namorado de lado e resolvimergulhar de corpo e alma nos estudos, me doei o máximo que pude e por pouco nãocheguei ao meu limite, foi um ano de intensa atividade, afinal não queria decepcionar denovo as pessoas que me amavam.

Fiz o vestibular pela segunda vez, passei de novo na primeira fase, e na segunda faseprocurei me acalmar e ter cautela, pois não queria me frustrar de novo. Esperei o resultadocom um pouco de receio, já não estava tão confiante como da primeira vez, mas graças aDeus consegui aprovação. Ufa! Foi um alívio, estava realizada.

Lembro-me como se fosse hoje, foi um dia mágico, ao ouvir o meu nome no rádioparecia que o meu coração iria saltar pela boca e então pude soltar aquele nó que estavapreso na minha garganta há mais de um ano, a felicidade eclodiu como fogos dentro demim e da minha família, enfim havia tirado uma carga dos meus ombros e minha felicida-de estava completa, pois tinha realizado o maior sonho dos meus pais, ou seja, iria estudarna UNIFAP.

Hoje estou muito feliz cursando Pedagogia na Universidade Federal do Amapá, poisa cada dia tenho acumulado mais conhecimentos e crescido muito enquanto pessoa, entre-tanto sei que minha caminhada está longe de acabar, afinal quando um estudante de origempopular entra numa Universidade ele tem de pisar em muitos espinhos ainda mais quando aUniversidade não oferece condições de permanência para esses acadêmicos. Mas graças aDeus entrei no Programa Conexões de Saberes que muito tem contribuído para minhapermanência na Universidade.

Esse programa tem me ajudado não só em termos financeiros mas também em termosde conhecimentos, afinal ele oferece cursos importantíssimos e indispensáveis para umbom aproveitamento e rendimento nas atividades acadêmicas. Nesse programa conhecipessoas maravilhosas, desde os bolsistas aos professores, que são exemplos de vida e, assimcomo eu estão batalhando para conquistar seus objetivos. Sinto-me felizarda por fazer partedesse programa, nele encontrei uma segunda família, e quem nos dera se todos os estudan-tes pudessem ter a mesma oportunidade que estou tendo, pois acredito que assim a evasãode acadêmicos seria bem menor.

Para finalizar minha história quero vos deixar um texto de reflexão que ganhei de umaamiga quando eu estava prestes a desistir de tudo, ele foi muito importante para mim eespero que seja para você também, o único problema é que eu desconheço o autor dessamensagem, mas o que importa é que, com sua mensagem, ele, mesmo sem saber ajudou paraque eu pudesse superar alguns problemas. Aí vai o texto para você, faça bom aproveito.

Mensagem“Havia uma gota em uma nascente do rio. Era uma simples gota, nada mais do que isso.

Mas, na sua insignificância, tinha um sonho. Sonhava em após vencer a correnteza virar mar.

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Ora, quanta pretensão! Uma gota, uma simples gota, virar mar? Era difícil, sabia ela,porém não impossível. E agarrando-se a esse fio de esperança, seguiu o seu curso natural derio, sempre pensando no dia em que certamente encontraria o oceano. Desafios foram sur-gindo. Pedras, evaporação, galhos... mas ela nunca desistia. Outras gotas que partiram comela não chegaram ao fim, ficaram pelo caminho. Esta, porém, talvez pela sua persistência,pela fé que tinha, de uma forma ou de outra sabia que um dia chegaria lá. E de fato chegou.

Venceu todos os obstáculos, chegou ao encontro das águas e finalmente realizou oseu grande sonho. Hoje aquela gota é mar! Graças a sua persistência, conseguiu o que eraconsiderada uma utopia, uma pretensão!

Não importa, hoje aquela gota é mar. Imagine você como uma gotinha. Você podeser como aquelas gotas que ficaram pelo caminho ou como a gota dessa historia. Sódepende de você!”

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* Graduando em Matemática pela UNIFAP.

Sonho e realidade: paradoxos da vidaJucivaldo Santana Lasdislau*

Sonhar não é fechar os olhos eVer as coisas bonitas!Sonhar não é imaginar umMundo mágico cheio de fantasias,Onde todos são felizes!Sonhar é necessidade, é comoRespirar; não apenas para sentirO ar penetrar em seus pulmões ePercorrer o sangue, mas para suaVida ter sentido!Sonhar não é acordar e verQue tudo não passou de um sonho!É lutar sem cansar desprezandoDores e desilusões.É viver e sentir o indolente coração.É vencer as mágoas sentidas comFortes emoções.É lutar, é viver, é vencer comoOs que vencem no CONEXÕES!

Sou Jucivaldo Santana LasdilauVinte e dois anos de idadePequena cidade de Portel-ParáÉ minha naturalidadeMunicípio jogado ao esquecimentoOnde aos jovens, só resta o lamento!

Meu pai morreu na labutação da vidaEu tinha apenas dois anos de idadeMinha mãe interiorana sofridaTeve que se desdobrarPara seus cinco filhos criar.E ainda tentar nos educar.

Dona Maria de Nazaré é minha mãeMulhercorajosa, persistente emaravilhosa!Que pouco freqüentou a escolaMas de sabedoria infinitaPai e mãe ao mesmo tempoQue por muitas vezes ficou ausente.

Não tínhamos nada!A situação a se complicar,A mãe tomou uma decisão;- Vamos nos mudar!Por falta de oportunidade aqui,Vamos para Macapá-AP.

Aqui chegando fomos acolhidosEm lar de bons e velhos amigosMinha mãe e meus irmãosComeçaram logo a trabalharPois à vontade de vencer era tão grandeQue nada e ninguém iriam atrapalhar.

Era o ano de 1995E em uma escola pública fui estudarPra escola ia todo dia sem faltarTinha apenas uma calçaQue durou dois anos, e uma sandália.Quando ganhei uma calça novaAh! Foi aquela alegria.

Com muito esforço compramosUma pequena casa

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50 Caminhadas de universitários de origem popular

Em uma área de periferiaA vida lá era muito complicadaDrogas violência ali eram comuns

E como viver em um meioSem estar no meio?!Foi complicado, mas conseguimosCom muito esforço e perseverança,Driblar a violência e as drogas.E continuar com esperança.

Com dezesseis anosComecei a trabalharMas, sem o estudo largar.Porém, sabia que só trabalharNão iria nos ajudarA uma vida digna levarTrabalhava o dia inteiroE a noite a estudar,Isso durante quase quatro anos.

Terminei o terceiro anoE fui prestar o vestibularNem passei da primeira faseEntão, passando o pano na lojaOnde trabalhava, parei a pensar.Estando aqui onde vou chegar?!

Tomei uma decisãoE eu pedi as contas pro meu patrãoExpliquei que queria estudarE ele resolveu a indenização me darQueria apenas uma chance de estudarCom o dinheiro que recebiPaguei um cursinho pré-vestibular.

Passei mais de um anoPreparando-me para o vestibular,Era manhã, tarde e noite estudandosem cansar,Pois, tinha um objetivo a alcançar!

No meio do ano, fiz meu primeiroconcurso público.Para meus conhecimentos testar.Passei em ótimo lugar, porém, nãocomemorei.Não era meu intuito ainda trabalhar,Queria mesmo era passar no vestibular.

No fim de 2004 andava estranhoMeio depressivo andava meio assimsei lá!Nem ligava pra mim... era como se tudoNo mundo fosse inútil, sem sentido.E comecei a escreverVersos e poemas tristes.

A tristeza é inconstantePermanente e incessanteA tristeza é companheiraIrrestrita e certeira

Vem como um ardorMatando mente e corpoFerindo a tudo e a todosEmbriagando a alma

Numa imensa desilusãoSufocando a vidaTorturando o coração

Desfazendo a sortePreparando a idaE atraindo a morte.

Em, 09/09/2004

Só pensava na prova a se aproximarFinalmente chegou o grande diaFiz uma boa provaE passei em 10º lugar.

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Percebi que as pessoas,Amigos, e família torciam por mim.Enfim chegou a última faseE fiz a prova consciente,Pois, sabia que estava preparado.

Quando passava no meio das pessoasTodos me perguntavam:- Como foi a prova?!Tive certeza que todos estavamTorcendo por mim.

Não lembro a data exataEram cinco horas da tarde,Escutava no rádio o resultado finalE por incrível que pareçaEstava tranqüilo.O radialista não demorou muitoPara meu curso (Matemática) chamarE meu nome pronunciarEntão, pude comemorar...Finalmente havia passado no vestibular.Todos me abraçavam,Jogando na minha cabeça:Trigo, café, coloral, ovo, etc.Foi uma imensa alegriaEsse momento irá ficarEm minha lembrança pro restoDos meus dias.

Hoje, sinto que tudo,Todo meu esforço esta sendo gratificadoFiz novos amigos, ganhei uma novaFamília, onde a cada diaA alegria se renova.Com muito esforço e humildade no coraçãoVou seguindo a luta com a famíliaConexões.

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52 Caminhadas de universitários de origem popular

Inicio minhas memórias com grande alegria, pois posso compartilhar com a famíliaConexões minha história de vida.

Espero que, através deste memorial, possa mostrar que todas as tristezas e desilusõespelas quais passamos, devem servir de aprendizado para a nossa vida e nos ensinar a admitirque nossas dúvidas podem ser traidoras e nos fazem perder o que com freqüência, podería-mos ganhar, se não tivéssemos tanto medo de arriscar.

E é por causa desse aprendizado, que se transforma em sabedoria, que adquirimos odiscernimento de saber o que realmente é mais importante. Uma vida sem lutas ou uma vidacom lutas, porém com muitas vitórias.

Agora quero partilhar um pouco da minha vivência no ensino superior com vocês.Acredito que comecei a viver verdadeiramente a universidade quando ingressei no

Conexões. Mas esta entrada não foi tão simples assim.Sabem aquelas poucas certezas da vida de que algo realmente dará certo? Foi como

me senti quando fiz minha inscrição para ser bolsista no Conexões de Saberes.Agora pensem na desilusão quando o meu nome não saiu na lista dos selecionados.Tinha tanta certeza porque me encaixava em todos os critérios que o programa exigia

para o aluno ser bolsista, e um dos mais marcantes era a questão sócio-econômica. Naquelemomento meu marido e eu não tínhamos renda própria e vivíamos de pequenos “bicos”. Eufazia faxinas nas casas das vizinhas e ele, algumas diárias nos açougues.

No dia em que saiu a listagem, fui rapidamente à sala da Pró-Reitoria de Extensãotentar conversar com a coordenadora do programa e falar um pouco sobre o empenho queteria se fizesse parte do Conexões, mas ao chegar lá, mal conseguia falar, só chorava muito,e pensava: “Se não conseguir esta bolsa o que vai ser da minha filha?” Naquele mesmo diahavia me pedido comida e eu não tinha o quê dar a ela.

Nessa fase da minha vida era muito difícil conseguir trabalho, pois estudava pelamanhã e todos os empregos e estágios que encontrava eram no mesmo turno.

Por isso não fosse a bolsa do Conexões, sairia da universidade para poder trabalhar.Nesse momento a minha permanência na universidade era quase insustentável ficava cadavez mais difícil comprar as apostilas, livros, e, é claro quase todo material necessário paraprosseguir com meus estudos, estava prestes a trancar minha matrícula, quando soube que umdos bolsistas havia desistido da bolsa e graças a Deus fui inserida.

Nesse momento era só trabalhar com muito afinco, para agradecer a oportunidadeque me foi dada.

Marília Gabriela Silva Lobato*

Memorial

* Graduanda em Secretariado Executivo pela UNIFAP.

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Lembro-me de umas das primeiras conversas que tive com alguns bolsistas, a respeitoda impressão ao chegarmos à universidade. Nesta conversa pude desabafar:

- Logo que entrei senti uma grande satisfação em poder dar esta alegria a meus pais, jáque sou a primeira universitária na família.

- No curso de Secretariado Executivo, começamos a fazer projetos, através da EmpresaJunior criada por alunos do curso. Nessa nova empreitada podemos praticar muito da teoriaque nos é ensinada em sala, como formular projetos arquivísticos a departamentos da institui-ção, organizar eventos, dos mais variados possíveis (colação de grau, palestras, seminários,congressos...).

Porém, mesmo estudando e me dedicando à UNIFAP a minha permanência ia além dasminhas dificuldades financeiras, pois o que vi, e acredito que todos vocês também tiraram amesma conclusão, foi de uma universidade sucateada, sem o número de professores suficien-tes para atender a toda demanda, sem tinta, papel, material básico para o ensino, sem umalojamento, sem um laboratório de informática adequado. Meu Deus! Os computadores maltinham manutenção. E enquanto a pesquisa e a extensão, todos os cursos oferecem? É claroque não.

Por tudo isso, a chance de fazermos alguma coisa por uma universidade pública e dequalidade está nas nossas mãos enquanto acadêmicos; precisamos nos unir com o Diretóriodos estudantes com os Centros Acadêmicos, para juntos levarmos as demandas de todos osalunos aos departamentos responsáveis por tanto “descaso”.

Apesar de toda essa problemática, acredito que a universidade ainda é o início de umacaminhada exaustiva, mas que tem grande possibilidade de superação e alcance de “vôosmuito altos”, acho que por isso nunca deixei de gostar do meu curso. Sabem, me formar emsecretariado executivo é mais um desafio para mim.

É terrível como muitas pessoas menosprezam o curso, há sempre comentários do tipo:“Você está cursando uma universidade para atender telefone? Ou até “Está estudando parasentar no colo do chefe?” Isso acontece porque as pessoas não conhecem o curso, nãosabem que temos disciplinas como administração, contabilidade, estatística, economia,cerimonial, e tantas outras que nos capacitam não para sermos comandados, mas para po-dermos exercer nossas funções como executivos conceituados e profissionais atuantes emdiferentes áreas, como recursos humanos, administrativos, financeiros, podendo atuar tam-bém em organizações de eventos.

Para muitos alunos era difícil agüentar tantos insultos, por isso criamos rodas deconversas para que pudéssemos nos conhecer melhor e, talvez, nos ajudar um pouco. Inici-ávamos freqüentemente com a história de vida de cada um. Em um desses encontros relateiparte do que passei durante um dos momentos mais marcantes da minha vida.

“Foi devido a muita persistência que ultrapassei tantos obstáculos para ter a oportu-nidade de acesso à universidade, entre eles havia dificuldade no transporte até ao cursinhopreparatório. Às vezes, dias inteiros sem alimentação, mas superava tudo, pois havia al-guém dentro de mim que me dava muita força, a minha pequena Carol, que antes de eu fazera primeira fase do vestibular nascera.

Naquela circunstância, dois pilares sustentavam a minha vida, meu marido e meubebê. E precisava de muita força, porque fui reprovada no vestibular por duas vezes, pormais que me esforçasse para entender todos os assuntos de biologia, química, física, muitos

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não haviam sido ministrados pelos professores do ensino médio. Talvez esses professoresnão imaginavam o mal que faziam a seus alunos.

E mesmo com toda dificuldade em aprendizagem, não podia desistir. No segundo anoque prestei o vestibular, voltei a estudar no preparatório, a Fundação Desafio Amazônico,graças a Deus é totalmente gratuito, podia estudar sem pagar taxas e ainda assim passar novestibular, não naquele ano, porque dificilmente assistia uma aula até o final, minha filhachorava e tinha que sair da sala para cuidar dela. Entre as trocas de fraldas e as mamadas,podia estudar um pouco.

Uma das situações mais complicadas nesse período era entrar no ônibus, com a minhafilha em um dos braços e no outro o carrinho de bebê. Sempre escutava piadas de pessoasinsensíveis, que não entendiam a situação; é difícil não ter ninguém para te ajudar quandovocê mais precisa. Meu marido fazia o máximo que podia, às vezes ele fugia do trabalhopara lavar a roupa, fazer o almoço e em seguida voltava para uma diária de treze horas detrabalho.

No final de cada reunião tudo era relaxante, pois todos se abraçavam para acalmaraqueles que se emocionavam com a sua própria história. Na verdade éramos um pouco depsicólogos e terapeutas ao mesmo tempo. Quando voltávamos às aulas íamos com outroânimo, conseguindo entender melhor a maioria das aulas, menos parte de psicologia, comoa psicanálise, que era um pouco complicado de assimilar. Enquanto as outras disciplinaseram mais fáceis, sempre me esforcei para tirar as melhores notas. Gostei muito das aulasministradas pelo professor de filosofia, as reflexões eram tantas que às vezes nos transformá-vamos em verdadeiros filósofos.

Recordo de uma aula em especial referente aos maiores poetas da nossa história. Oprofessor nos fez escrever poemas que expressasse a solidão, achei um pouco complicado,mas assim mesmo o fiz.

“No seu íntimo, um vazio dentro do seu coração.

Procurando um amigo, mas sem encontrar

O cerco está se fechando, parece que não tem fim.

As palavras estão caladas e a sua voz não quer sair

E você está cheio de toda essa gente

Quer um amigo

Quer verdadeiros pais

Mas na sua vida não tem mais

Você quer paz, mas só tem escuridão.

Quer uma vida, mas só tem destruição.

Você só tem ódio dentro do seu coração

Porque na sua vida está sozinho

Seu coração está quebrado

Em toda a sua vida a morte está ao seu lado”.Quando escrevia o poema lembrei da minha adolescência conturbada, brigas intensas

com minhas irmãs. Meus pais com cinco filhos para criar sem condições financeiras demantê-los, mas tentavam dar o melhor que podiam, e realmente nos deram, nos ensinaram ater bom caráter, um dos maiores bens da humanidade.

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Infelizmente não pude continuar na pequena e humilde casa em que morávamos nacidade de Breves, pois precisava desesperadamente de um lugar que tivesse melhores recur-sos médicos, pois tinha que salvar a vida do bebê que esperava.

Não sabia o que havia de errado comigo, nem os próprios médicos do hospital públicode Breves podiam me dizer o que tinha, uma vez que eles não possuíam recursos para fazero diagnóstico final. No hospital era terrível, não havia sequer um aparelho de ultra-sonografia. Os médicos só me diziam que eu podia perder o bebê.

Depois disso, viajei para Macapá, ao chegar procurei rapidamente o Hospital SãoCamilo e São Luiz. No dia da consulta disse ao médico o que estava acontecendo, ele mepassou alguns exames e foi constatado uma fragilidade no útero que poderia provocaraborto espontâneo. O médico disse: “Não posso te dar certeza que a gravidez vai até o finalse costurarmos a abertura que localizamos no seu colo-uterino, agora só podemos aguardarse o seu útero vai suportar o peso da sua filha”.

Fiquei desesperada, só me acalmei quando meu marido chegou em casa naquele dia,quando escutava todos aquelas palavras de conforto e carinho.

Depois de algumas semanas tinha tanta certeza que tudo iria dar certo, que já havianomeado o meu bebê, eu já falei dela, a minha pequena Carol.

Hoje luto por um lugar melhor para minha família. Espero sair o mais rapidamentepossível daquele terreno de várzea, onde centenas de casas são construídas nos arredores depontes, como as palafitas dos ribeirinhos.

Na verdade nunca foi a nossa intenção morar num lugar onde crianças morrem afoga-das todos os anos, onde policiais saem atirando nos possíveis criminosos, sem se preocupa-rem com os inocentes que só estão chegando em casa do trabalho ou da escola. Contudo, asnecessidades financeiras são maiores que a condição econômica.

Recordo de um episódio em particular, no qual tive certeza que minha permanência naUNIFAP ia além da falta de transporte ou de alimentação. Era uma questão de vida ou de morte.

Num determinado dia, havia saído da universidade e ido buscar minha filha na creche,alguns policiais entraram arrombando a casa de uma das minhas vizinhas, com o pretexto derevistarem a casa em busca de drogas, o seu filho mais velho fugiu pela janela, começou a correrpela ponte. Nesse momento estava chegando com a minha filha. A única coisa que vi foram ospoliciais perseguindo o rapaz, já atirando nele. Minha filha e eu estávamos na direção dostiros, me agachei para protegê-la, e graças a Deus os tiros só pegaram ao nosso lado.

Depois de todo o episódio, os policiais foram embora, sem acharem nenhum entorpe-cente. Souberam-se dias depois, que o rapaz havia sido encontrado morto nas proximidadesde nossa casa em um terreno baldio.

Por tudo isso, minhas expectativas vão além de um simples sonho de chegar à univer-sidade, usando os pensamentos de Drummond, quero ser um ser humano singular, quepossui a capacidade de mudança e de construção de sua própria história.

Encerro minhas memórias, com uma reflexão para todos vocês que pertencem a minhafamília Conexões: “O que somos e o que nos tornaremos somente dependerá da escolha quefazemos”.

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* Graduanda em Secretariado Executivo pela UNIFAP.

Obstáculos existem para serem enfrentados,não para serem lamentados!

Marileuza Souza de Carvalho*

Neste momento, em uma monótona tarde de quinta-feira, portando de papel e caneta,começo a escrever as memórias de minha vida. Estou vivendo há dezenove anos comalegrias, tristezas, desafios e conquistas. Minha tarde começa agora a perder a monotonia.

Na cidade de Belém-PA, cheguei ao mundo. Foi realmente uma honra, pois já encon-trei uma família grande e maravilhosa ao meu redor. Com cinco irmãs e dois irmãos, todosfilhos de uma mesma mãe e de um mesmo pai, Maria e Olivar. Eu fui a última a nascer e soumuito feliz por ter meus pais sempre presentes em minha vida, junto com meus irmãos.

O desenrolar de minha vida sempre teve como cenário a região norte do Brasil. Estivepassando por Pará, Tocantins, mas no estado do Amapá que cresci e vivi até aqui.

No município de Vitória do Jarí-AP, cheguei ainda pequena. Trata-se de um lugarpequeno comparado a capital Macapá. Meu pai sempre trabalhou em firmas que ficam emMunguba no estado do Pará, fazendo divisa com o Amapá por meio do rio Jarí. Atualmenteele trabalha na CADAM, produtora e exportadora de caulim para revestimento de papéis ecartões do Brasil. Já minha mãe sempre lidou com vendas, antes vendia roupas, depois,passou a revender cosméticos e perfumes e há muitos anos, desde que eu era pequena, elarevende produtos da Avon.

Meus irmãos, com o passar do tempo foram construindo suas próprias famílias. Saiamde casa, mas, sempre moraram por perto. Hoje em casa moram ainda minha irmã Oneide, seuesposo, sua filha Taíssa e meus pais.

Minha trajetória escolar começou quando eu tinha sete anos, pelo esforço dos meuspais que sempre lutaram para dar estudo aos filhos. Apesar de nunca terem tido a oportuni-dade de estudar (mas hoje sabem ler e escrever pelo próprio esforço) sempre acreditaram queo estudo nos daria um futuro melhor.

Escola Estadual Munguba do Jarí, é o nome da escola pública na qual estudei desde aprimeira série do ensino fundamental até o ultimo ano do ensino médio.

Resumindo, sempre fui bastante estudiosa, fazia minhas lições e tirava boas notas.Claro que também me divertia. Em casa brincava com minha irmã Sandra quase da minhaidade, com a Oneide, minha irmã adolescente e, às vezes, com as crianças vizinhas. Ouíamos para Munguba, na casa de minha irmã Elci e lá passávamos o dia. Na hora do recreiono colégio também era legal, uma correria só.

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Foi com essa fórmula que terminei o ensino fundamental, ingressando, depois, noensino médio. Continuei com a velha fórmula, mas claro que já não corria na hora dorecreio. Adorava estar em casa, para mim era divertido, mas também saía de vez em quando.

Fiquei bastante contente ao terminar o ensino médio em 2004. No dia da festa dacolação de grau meu pai estava trabalhando e minha mãe foi minha paraninfa.

Nessa festa foi a última vez que vi meus colegas de uma vida, todos juntos, felizes,mas, também ansiosos. Era como se estivéssemos festejando, pelo início de uma nova fasede nossas vidas, se seria boa ou ruim, ninguém poderia saber. Ali terminava uma fase deminha vida para dar início à outra.

A essa altura já tinha feito minha inscrição para o vestibular da Unifap (UniversidadeFederal do Amapá). Morava em um lugar onde a maioria das pessoas terminava o ensinomédio e continuavam lá, trabalhando, aqui ou ali, ou mesmo desempregadas e, claro quenão temos ensino superior em instituição pública no local. Acho que por isso nunca mechamou tanta atenção sair para estudar fora. Logicamente que até aquele dia em que todosos meus colegas estavam fazendo a inscrição para o vestibular. A inscrição era gratuita paraalunos da rede pública e se sobrassem vagas seriam abertas para o restante da população.Inclusive, minha irmã mais velha, Ivaneide, que já tinha terminado, também se inscreveu.

Ah! A escolha do curso? Bem, foi um problema...qual escolher? Na verdade meucritério de escolha não foi pelo curso ser mais ou menos concorrido; queria fazer o que meinteressava.

Nunca soube realmente o que me interessava de verdade, mas claro que me interessopor algumas coisas. E se tivesse a oportunidade de escolher algo para fazer no futuro, fariaadministração de empresas. Bem, não tive essa oportunidade.

A UNIFAP não tem o curso. Logo percebi que tinha um curso que tem tudo a ver coma área de administração que é o de bacharel em Secretariado Executivo. Foi esse curso queescolhi e por agora é isso que eu quero. Se não for isso espero que no futuro descubra o querealmente me atrai enquanto profissão e espero ter a oportunidade de pôr em prática.

Com relação à realização da prova, a dificuldade que eu e meus colegas de escolativemos era de que a prova seria feita na capital Macapá. Então, alguns desistiram de fazera inscrição. Eu, também fiquei desanimada, mas me inscrevi mesmo assim. E a minha prima,que também ia fazer a prova, tinha parentes em Macapá e ficaríamos na casa deles. Porém,para nossa surpresa e felicidade a realização da prova foi transferida para Laranjal do Jarí.

Eu não estava muito confiante ao fazer a prova, pois eu não havia planejado fazer ovestibular, nem mesmo cursinho preparatório tinha na cidade. Mas para minha surpresapassei na primeira fase. Senti-me feliz, mas, também triste pois muitos de meus colegas nãotinham passado. Da minha turma só havia passado eu, minha prima e meu colega. Prasegunda fase peguei meus livros e ainda tentei relembrar alguns assuntos já vistos na escolae fui tentar passar pela famosa prova do vestibular. Passado o tempo, quando saiu a lista dosaprovados, nem procurei saber do resultado. A única coisa que passava pela minha cabeçaera estudar e me preparar melhor para a prova do ano seguinte.

Foi uma conhecida minha quem me ligou dizendo que tinha visto meu nome na listade aprovados. De Vitória do Jarí somente havia passado ela e eu.

Sinceramente nem acreditei e fui procurar me informar pela Internet. Ao invés de pularde alegria como todos fazem, fiquei muito confusa, o coração bateu forte e me perguntava:“e agora, o que faço? Como vou estudar em lugar onde não conheço nada e ninguém”.

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A minha mãe e todo mundo ficaram surpresos, pois eu mesma dava a certeza de que nãopassaria. Fiquei pensando se valeria a pena.

Quando tive de mudar, pensamos na casa que o meu irmão, Cleuson, comprou emSantana, junto com sua esposa por ela ter sua família toda lá. Foi complicado, mas, tive demudar pra Santana. A minha irmã que já conhecia um pouco da cidade me acompanhouna mudança; pelo menos até eu aprender a ir para a Unifap sozinha. Não sei bem o quesenti, se foi alegria, tristeza, medo; muitas emoções me deixaram insegura, mas vim.Fiquei um pouco perdida no começo, mas, hoje estou me acostumando, pois fiz tudopelos meus estudos.

Hoje ouvindo a história de tanta gente sobre a dificuldade em passar no vestibular;que alguns passam e outros tentam, mas não conseguem, percebo que muitos gostariam deter a mesma oportunidade que eu estou tendo. E não é tão ruim assim. De vez em quandoaparece alguém da família por aqui, para resolver algum problema ou coisa assim em Macapá.Já vieram meu irmão Odinelson, a minha irmã Rosa e também recebi a visita de meus pais.

Ao ingressar na universidade pude observar muitas diferenças em relação ao ensinomédio. Na universidade nos tornamos mais livres e está em nossas mãos obter todo o conhe-cimento possível durante nossa passagem por ela. Eu mesma mudei bastante, aprendi aconviver melhor com as pessoas me sentindo com mais capacidade para conseguir meusobjetivos. Uma universidade federal, principalmente aqui no Amapá, pode até não sermuito desenvolvida para suprir várias necessidades dos cursos, mas, com certeza, pode nosproporcionar muitas oportunidades.

Uma das boas oportunidades que tive foi de participar do Programa Conexões de Saberes.Achei bastante interessante, pois além de auxiliar acadêmicos de origem popular na universida-de ainda temos o privilégio de estudar algumas disciplinas muito importantes para o nossodesenvolvimento. E percebemos com as pesquisas feitas pelo programa, como tem aumenta-do o número de alunos que estudaram em escolas públicas nas universidades do Brasil.

Achei o curso de Secretariado Executivo bastante interessante, pois tem um conteúdobem amplo; com noções de disciplinas como: Contabilidade, Estatística, Direito etc. Éprodutivo, apesar de todas suas deficiências, contém todos os cursos.

Enfim, meu ingresso na universidade foi a melhor coisa que já me aconteceu na vidae pretendo seguir adiante para alcançar minhas metas sempre com coragem, humildade ehonestidade.

Memórias de minha vida, por meus dezenove anos termina aqui. Estou feliz por mi-nhas novas conquistas, amizades e meu novo aprendizado. E esta fase ainda tem muitocaminho pela frente. Só quero que quem leia este memorial saiba que nunca devemosdesistir de nossos sonhos. Fico triste quando escuto pessoas dizer que não fazem o vestibu-lar da Unifap porque é muito difícil e não passariam, mas o que não é difícil nesta vida? Oque diferencia é tentarmos. Se você não tenta andar você não sai do lugar. É preciso primei-ro ter coragem, depois tentar para assim, conseguir. Agradeço a Deus que é a maior forçapara tudo que faço nesta vida, a meu pai e a minha mãe, que é a mulher mais forte e guerreiraque já conheci, e a mais amada também, por mim, pois:

“Nossas dádivas são traidoras e nos fazem perder o bem quepoderíamos conquistar se não fosse o medo de tentar”. William Shakespeare

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* Graduanda em Ciências Sociais pela UNIFAP.

Acredito que a grande mudança da minha vida aconteceu quando perdi o meu amadoe querido pai Epitácio Israel Serique. Esse momento de perda além de representar dor esofrimento também foi o ponto decisivo que fez a minha família mudar de cidade. Até entãomorávamos em Santarém, cidade localizada no interior do Pará. Atualmente moro emMacapá, um lugar hospitaleiro que nos ofereceu grandes oportunidades.

Quando surgiu a oportunidade de escrever este memorial, pensei que seria fácil relatarum pouco sobre a minha trajetória estudantil até chegar a UNIFAP, mas no momento derelembrar sobre os fatos mais marcantes da minha vida, por diversas vezes chorei ao lembrardo meu pai, o grande mestre da escola da minha vida a quem eu dedico este momento. Sintoque em algum lugar deste universo ele está feliz por eu ter aprendido os seus ensinamentose isso me dá certeza de que tudo foi válido. Terei o maior orgulho de apresentar a vocêsum pedaçinho da família Serique, os verdadeiros alicerces da minha existência e fontesde inspiração.

A minha trajetória estudantil desde as séries iniciais até chegar ao nível médio foibem tranqüila. Recordo-me com saudades dos bons e inesquecíveis momentos que os meusprofessores, colegas e a escola, de uma forma geral, me proporcionaram. Sempre fui estudan-te de escola pública, mas nunca medi esforços para tornar o meu ensino de qualidade. Algoque sempre lembro é que a aprendizagem não se restringe apenas à sala de aula, pelocontrário, temos que buscá-la dentro do nosso cotidiano, fazê-la acontecer através daspesquisas em bibliotecas públicas, nas dúvidas tiradas na sala de aula e no papel da famíliana construção do conhecimento.

A minha mãe, Amadir dos Passos Serique e as minhas irmãs, exerceram um papelimportante no que diz respeito a minha paixão pela leitura. Eram elas que me incentiva-vam a ler e escrever, assim como me ajudavam nas tarefas da escola.

Sem dúvida, a união e a simplicidade da minha família foram primordiais para a mi-nha formação.

Resolvi contar a minha história de uma forma diferente, ou seja, a partir da minha lutapara ingressar numa universidade pública. Sabemos que trilhar esse caminho é muito difí-cil, cheio de incertezas e vários obstáculos. Lembro-me que todos os meus dias eram dedi-cados exclusivamente às aulas no cursinho pré-vestibular, houve um momento em que eunão sabia mais o que era passar os sábados, domingos e feriados em família. Agradeço a

Um pouco de mim...Nádia dos Passos Serique*

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minha mãe por ter sido tão compreensiva neste momento, às minhas irmãs por terem sidosolidárias a mim e ao meu irmão por ter lutado junto comigo pelo mesmo objetivo.

A primeira vez que resolvi fazer vestibular foi por pura curiosidade, acabara de sair doensino médio. As minhas duas irmãs já haviam se formado no ensino superior e isso dealguma forma me impulsionou para ingressar na universidade.

Quando cheguei à Macapá fiz cursinho por um curto período de tempo e no final do anotentei vestibular para o curso de Ciências Sociais, consequentemente veio a minha primeirareprovação. Confesso que fiquei bastante decepcionada, triste e desacreditada, mas aprendique nunca se deve desistir antes do final de uma batalha. Ao mesmo tempo percebi que oensino público no Brasil é bastante defasado, grande parte dos professores são desinteressa-dos e isso é reflexo da falta de reconhecimento do trabalho e dos baixos salários.

No ano seguinte eu e meu irmão fizemos cursinho o ano inteiro. No início, as aulaseram apenas pela manhã, mas na metade do ano o ensino se intensificou e então tivemosque freqüentar os dois turnos. Era bastante cansativo e desgastante, porém, tínhamos umobjetivo que superava qualquer obstáculo. Nessa época até a minha família passou a abrirmão de algumas coisas em solidariedade a nós.

Novamente me inscrevi para o Curso de Ciências Sociais, algumas pessoas falavamque esse curso poderia fazer com que eu me tornasse partidária e utópica.

O meu irmão se inscreveu para Arquitetura e Urbanismo, daí já se percebe a disparidadedos nossos objetivos. Lembro-me que o nervosismo e a expectativa da nossa aprovação eramotivo de muita “reza” em minha casa. A minha mãe juntamente com as minhas irmãssempre acreditaram na nossa aprovação e estiveram do nosso lado em todos os momentos,principalmente naqueles mais difíceis.

O resultado da primeira fase foi positivo e agora mais do que nunca precisávamos nospreparar para as próximas provas. Nessa época tivemos uma notícia muito triste que nosabalou psicologicamente. No dia da primeira prova da segunda fase do vestibular, o meusobrinho Tiago de apenas dois anos que estava internado vítima de uma grave pneumoniateve que realizar uma cirurgia no pulmão, às pressas. Foi horrível ver o sofrimento dele, piorainda era que não podíamos fazer nada, apenas rezar para que ele melhorasse.

No dia do resultado final do vestibular fiquei muito nervosa, porque não queriarepetir mais um ano de cursinho e também as pessoas estavam cheias de expectativascom relação a minha aprovação, o incrível era que todos acreditavam, menos eu.Então, por volta das 14 horas era chegada à hora da verdade, a famosa musiquinha dovestibular já estava tocando. O primeiro curso a ser divulgado na rádio foi justamenteArquitetura e Urbanismo. Recordo-me que o meu irmão estava um pouco desacredita-do, pensava que seria reprovado, no entanto, a felicidade foi imensa quando ouvimoso seu nome.

Ficamos atentos para ouvir o meu curso, nesse momento nem sabia o que pensar, achoque o meu maior medo era ter zerado física. Pra minha surpresa fui aprovada em terceirolugar para Ciências Sociais. Nunca vou esquecer esse dia, a felicidade é indescritível, aspessoas elogiam, os telefonemas não param e toda a família chora junto. Poderia ter sidomelhor se o meu sobrinho já estivesse recuperado, infelizmente nesse dia ele teve uma crisede alergia que o fez ficar por mais alguns dias no hospital.

Duas semanas depois, pudemos comemorar três grandes vitórias: a minha, do meuirmão e do meu sobrinho. Cada uma com um valor diferente. Nessa conquista, senti a falta

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física do meu pai que sempre torceu pelos filhos, sempre acreditou que a educação transfor-ma a vida das pessoas e dá abertura para novos horizontes. Sei que espiritualmente eleestava presente do nosso lado e certamente feliz pelas nossas conquistas.

Atualmente, estou no quinto semestre de Ciências Sociais, na Universidade Federaldo Amapá e a cada dia vejo que a minha opção foi acertada. Acredito que esse curso abreuma gama de conhecimentos, nos remete para a realidade, seja através dos grandes clássicosda Sociologia, ou com aulas brilhantes de Antropologia e Ciência Política.

Os assuntos do passado podem ser relacionados com o conhecimento presente, assimcomo podemos transformar as utopias em realidade. Precisamos acabar com a imagem deque os cientistas sociais são sonhadores e idealistas ou que querem mudar o mundo, pelocontrário, queremos mostrar que temos senso crítico aguçado e podemos sim dar algumaresposta positiva para a sociedade.

Nessa minha pequena trajetória acadêmica, tenho vivido grandes experiências. Nofinal de julho do ano passado eu e um grupo de estudantes do curso, tivemos a iniciativa deviajarmos para Porto Alegre, a fim de participar do Encontro Nacional de Estudantes deCiências Sociais. Creio que foi um dos momentos mais marcantes da minha vida porquelutamos muito para chegarmos ao extremo do país. Por diversas vezes pensamos em desistir,estávamos cansados de ouvir NÃO de pessoas que supostamente podiam nos ajudar. Alémdisso, as nossas férias foram sacrificadas em busca de recursos para essa viagem. Na vésperade irmos para Belém, encontramos uma pessoa com um coração grandioso que decidiuacreditar nos nossos objetivos.

A maior recompensa de nossa luta foi termos sido muito bem recebidos pelos estudantesde Ciências Sociais da UFRGS e das demais universidades que admiraram a nossa coragem.Confesso que encontramos um grande obstáculo no sul, ou seja, o frio de zero grau.

Dessa viagem aprendi a ser mais independente, a confiar nas pessoas, a socializarconhecimentos, e sobretudo que a vida de estudante é bem mais difícil do que imagina-mos. Poucas pessoas investem nos projetos que são apresentados em encontros de estu-dantes, a grande maioria desses projetos são engavetados em algum lugar por falta deincentivo. Precisamos sair dos muros da universidade e expandir nossos conhecimen-tos, a socializar idéias, no entanto, a burocracia e a falta de oportunidade muitas vezesnos impedem.

O Conexões de Saberes apareceu num momento inesperado, mas é um programa queme mostra o quanto pessoas como eu podem vencer na vida e adquirir seu espaço comdignidade, sem precisar se desviar para outro caminho.

Os projetos que executamos no Conexões estão diretamente relacionados com o ladosocial, assim, posso obter mais conhecimento através da execução direta dos projetos nas comu-nidades. Essa oportunidade é abraçada por mim com muita responsabilidade e dedicação.

Para finalizar, gostaria de agradecer imensamente aos meus pais Epitácio IsraelSerique e Amadir dos Passos Serique que sempre me mostraram o melhor caminho. Aosmeus irmãos Ediléia, Eliene, Márcia e Israel Serique que são pessoas especiais, estudaramem escolas públicas e conseguiram ingressar no ensino superior. Aos meus sobrinhosSuzane, Alexandre, Tiago e Ana Beatriz que fazem parte da minha vida diária e que meproporcionam momentos hilários. Aos amigos que conquistei na UNIFAP e em especial aEmanuel Silas que é uma pessoa que sempre está ao meu lado e me incentiva em todos osprojetos que me proponho a participar.

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Obrigado imensamente ao Programa Conexões de Saberes pela oportunidade, princi-palmente à professora Adelma que sempre está disposta a nos ajudar e não mede esforçospara manter esse programa firme, apesar das dificuldades.

A vida é difícil para quem cai no primeiro obstáculo, as oportunidades são uma formade inclusão social, mas é preciso garra e coragem pra trilhar esse longo caminho.

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* Graduando em Matemática pela UNIFAP.

No dia 26 de maio de 1986, nasce em Macapá mais uma criança como tantas quenascem todos os dias, que veio a se chamar Rafael Fonseca Marques, filho de Nilcy FonsecaMarques, uma mãe abandonada pelo pai do seu filho durante a gravidez, uma mulherbatalhadora, que a partir daí, teria que cuidar dessa criança sozinha.

No passar dos anos, essa mãe foi superando todas as dificuldades, com muito esforçoe trabalho, foi dando uma boa educação para seu filho, e lembrando que ela já tinha passadopor isso quatro anos atrás, com seu primeiro filho.

Em 1992, o seu filho começou sua caminhada escolar, no chamado pré-escolar, logono início apresentou várias dificuldades, pois era seu primeiro contato com a escola. Como passar dos anos ele foi superando tudo com muito esforço, pois sofria com a falta de ter umpai do seu lado, mesmo tendo uma mãe maravilhosa. Ele foi crescendo e amadurecendo, atéque conseguiu entrar no ensino médio, conforme veremos abaixo, com ele.

Em 2001, entrei no ensino médio, fui estudar na Escola Estadual Professor Gabriel deAlmeida Café. Lá estudavam jovens de classe superior a minha, pois é uma escola no centroda cidade. Por eu ser de classe baixa, e além disso, negro, sofria muito preconceito por partedos outros colegas de sala e de funcionários da escola.

Foram três anos de muito sofrimento, me dedicando ao máximo para quando termi-nasse conseguisse logo passar no vestibular da Universidade Federal, pois é o mais concor-rido do estado.

Estava chegando a hora tão esperada, o “temido” vestibular, era a hora de decidir qualcurso prestar, depois de analisar bem todos, escolhi o de Licenciatura Plena em Matemática.

O que me levou a escolher foi a minha identificação com a matéria e a carência deprofessores no estado. É um dos cursos mais concorridos da Universidade, mas não tivemedo na hora da escolha e recebi total apoio da minha mãe, e principalmente, dos meusprofessores do ensino médio.

A partir de agosto de 2003, com intuito de ampliar e reforçar mais ainda meus conhe-cimentos, me matriculei em um cursinho pré-vestibular próximo de casa, chamado DesafioAmazônico (um cursinho gratuito do estado). Na prova, não tive êxito, passei apenas naprimeira fase, não consegui ficar entre os cinqüentas primeiros na segunda fase.

No ano seguinte, pensei em desistir, queria trabalhar e minha mãe não deixou.Matriculei-me novamente no Desafio. Em 10 de junho de 2004, no próprio cursinho,

conheci uma moça chamada Sâmara, foi uma ducha de água fria para mim, pois passei a me

Um sonho percorrido...Rafael Fonseca Marques*

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dedicar menos aos meus estudos, só queria saber de namorar, não via outra coisa melhor doque namorar, um defeito dos jovens, mas com muito esforço e apoio da mesma não desisti.

Em setembro do mesmo ano, recebemos a notícia de que o processo seletivo 2005 tinhasido adiado para o ano seguinte por motivo da greve que estava ocorrendo nas UniversidadesPúblicas em todo o Brasil, mas o bom de tudo isso foi a diminuição na concorrência.

Em janeiro de 2005 foi realizada a primeira fase, fiz uma prova razoável, consegui oscinqüenta por cento necessários para fazer a segunda fase, então fui estudar para a segundafase, já que restavam apenas trinta dias.

Em fevereiro do mesmo ano foi realizada a segunda fase, eram três dias de prova, umamaratona muito cansativa, no meu ponto de vista não teria chance de passar.

O resultado de todo esse esforço foi maravilhoso. Era terça-feira, 12 de abril de 2005,estava em casa deitado, sozinho em minha cama por volta das três horas da tarde, liguei oradinho de pilha, era o dia de ser divulgado o resultado do vestibular. Depois de algunsminutos o radialista começou a divulgar a lista dos aprovados, curso por curso, divulgaramArtes, Pedagogia, História... como sempre os mais esperados como Direito, Matemática eEnfermagem ficam por último. Com isso deu tempo de minha mãe chegar, ela estava traba-lhando, e a primeira coisa que me perguntou, foi: “já deu os nomes dos aprovados emMatemática?” E eu respondi: “não”. Passavam-se os cursos, até que chegou o de Matemá-tica, ficamos em silêncio total, escutei o nome de dois amigos meus entre os primeiros enada do meu, então, finalmente escutamos o meu nome, foi alegria total, sabia que tinhasido uns dos últimos, logo lembrei de uma frase dita por um professor do cursinho: “vesti-bular é igual ao sexo, não importa a posição e sim que esteja dentro”.

Depois de passar por todas essas dificuldades, você chega a pensar que a partir daí serátudo maravilha, ai que você se engana, é dentro da Universidade que as coisas se compli-cam, principalmente pelas condições oferecidas pela nossa Universidade, você não temuma biblioteca atualizada e nem informatizada, além de alguns professores sem compro-misso, mas você tem que ser forte e ter coragem para enfrentar tudo isso, porque vontade dedesistir nós temos toda hora.

Hoje, estou no quinto semestre, e adorando meu curso. Pretendo seguir meus estudosapós minha graduação, e estou tendo a oportunidade de ser bolsista do programa Conexõesde Saberes.

Eu queria deixar uma mensagem para os jovens de todo o Brasil: “se você tem umsonho, uma meta a alcançar, nunca desista, pois é só acreditar e lutar com unhas e dentes quevocê chega onde seus sonhos querem ir”.

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* Graduando em Direito e Educação Física pela UNIFAP.

Direito e educação físicaRafael de Brito Reis*

Sexta-feira, fim de expediente, e estava na pró-reitoria de extensão e ações comunitá-rias (PROEAC) da universidade para resolver questões referentes ao time de futsal femininoda unifap, do qual era o técnico voluntário. Poderia ter sido um dia como outro qualquer,não fosse a estagiária desse departamento ter me falado a respeito das inscrições para parti-cipar do processo seletivo de uma bolsa.

Era o último dia de inscrições e já estava próximo das 18 h. Do estado de entusiasmopassei ao de desânimo devido a não estar naquele momento com a documentação necessá-ria para concorrer a uma vaga. Não obstante a isso, preenchi o formulário de inscrição e pedipara entregar a documentação na segunda-feira, pedido aceito, e assim o fiz.

Dias depois, saiu a lista dos selecionados, fui contemplado graças a Deus! Era o únicoacadêmico do curso de Direito a ser contemplado com a vaga, era também o único dessecurso na universidade inscrito para concorrer a bolsa. Era o Conexões de Saberes entrandoem minha vida e oportunizando a minha permanência no ensino superior.

O primeiro impactoO primeiro dia de aula no curso de Direito lembro-me como se fosse hoje: eu não

acreditava que estava ali, sentado na cadeira de uma universidade, era um sonho que naque-le momento estava tornando-se real. Fiquei por alguns minutos extasiado, nesse períodopassou um filme em minha mente e um surto de recordações vieram a tona.

Lembrei de meu tio que teve sua vida ceifada no dia 6 de fevereiro de 2002 em suaprópria casa de maneira cruel, sem que os autores do delito lhe dessem chance de defesa esem que os culpados posteriormente fossem punidos.

De minha tia de malas prontas para viajar e atravessar a fronteira do Oiapoque (Brasil)com a Guianna Francesa (colônia francesa). Nessa viagem e nas demais que se sucederamminha mãe (solteira), além de cuidar de mim, de meu irmão e de meus três primos, trabalha-va como manicure e pedicure e minha tia em Cayenna com a venda de confecções, perfu-mes, além de outros para mandar algum dinheiro que auxiliasse no sustento de casa.

Não poderia aliás, deixar de mencionar minha mãe e a tia Leda que é como umasegunda mãe, ambas sempre exerceram papel fundamental sobre mim com palavras deincentivo, perseverança, confiança e determinação como algumas de suas contribuiçõestransmitidas de forma serena e tranqüila. A propósito, tia Leda junto a minha mãe (Carmem)

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são minhas verdadeiras heroínas e são primordiais em minha caminhada de luta, agradeçi aDeus naquele momento por tê-las em minha vida.

Lembrei de minha 5ª série na qual fiquei reprovado na disciplina de Língua Portugue-sa, o conteúdo era de “complicase sintática!”, com o tempo percebi que nem era tão compli-cada assim. Devido as circunstâncias eu até merecia a reprovação, pois fui flagrado porminha professora, num momento de desespero, tentando consultar a gramática na hora daprova final da recuperação.

Fui reprovadoMinha professora, no entanto, deveria ter agraciado com a mesma medida meu colega

impondo-lhe ao menos a recuperação, uma vez que o mesmo precisava de dois pontos parapassar, e eu apenas de meio. Pedi a esse colega que me ajudasse na matéria já que ele haviapassado sem fazer recuperação, fiquei surpreso ao descobrir que ele não sabia nada e temposdepois soube que a aprovação dele foi devido a amizade de sua família com a professora.

Hoje, agradeço a minha professora de português pela minha reprovação pois fazer a 5ªsérie novamente ainda que amargamente - foi necessário para que eu me fortalecesse eaprendesse a gostar dessa disciplina, lamentável é que o mesmo não pôde dizer meu colegaque naquela ocasião foi ajudado irresponsavelmente para se prejudicar mais adiante nasprovas da vida. Torço por ele e espero que possa dar importantes passos e tenha muitosucesso na caminhada da vida.

Caro leitor, discorrerei agora sobre minha caminhada até essa cadeira de onde tiveesse surto de memórias marcantes da minha vida.

Caí na real: vida escolarFrancamente, de meu pré-escolar lembro pouca coisa. Recordo-me de algumas músi-

cas que cantávamos na sala, de minha professora Antonia Mescouto e alguns colegas comoo Luciano meu amigo até hoje, lembro-me também vagamente das brincadeiras e dinâmicascom fundo didático com os quais dei os primeiros passos de minha caminhada.

Na 1ª série aprendi a ler e a escrever, não sem muito esforço e determinação de minhaprofessora Valdeia em me ensinar e do meu em aprender. Faço questão em mencionar osnomes desses profissionais de grande estima e relevância na minha vida escolar.

Era um bom aluno e minhas médias foram no geral boas durante todo o meu ensinofundamental e médio. Meu primeiro deslize ocorreu na 5ª série, como já citado. Essa foi aprimeira e última vez que fiquei em recuperação em uma disciplina. Gostava de, paralela-mente aos estudos, me dedicar às aulas de Educação Física, fui aos Jogos Estudantis Brasi-leiros em 2001 em Brasília representando o futsal do Amapá, e em 2002 para o Norte-Nordeste de Atletismo, era uma paixão e mais adiante vocês verão que ainda é.

Durante meu ensino médio, principalmente a partir do 2º ano, comecei a me preocuparcom o vestibular. Era uma preocupação pouco freqüente entre meus amigos de escola nesseano, alguns talvez devido a falta de incentivo ou por razões outras até achavam que eraperda de tempo estudar com dedicação. Um fato que aconteceu no decorrer do 2º ano,(assassinato de meu tio) foi decisivo para confirmar meu desejo de cursar Direito. Durante oterceiro ano, o ano do vestibular, estava confiante em minha aprovação, mas ao ver oconteúdo programático fiquei pasmo com tantos assuntos que eu nunca tinha visto e teriade estudá-los em pouco mais de seis meses, pois já estava no mês de março.

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A partir disso decidi que faria de tudo para me matricular em um curso pré-vestibular.Na minha cidade tem um cursinho que é “gratuito”, custeado com repasse do governo doestado, no entanto ele ficava muito distante de casa e como eu estudava à tarde (estavaterminando o ensino médio), seja qual fosse o horário que me matriculasse no pré-vestibu-lar chegaria atrasado em um dois locais: escola ou curso.

Pagar o ônibus até o local desse cursinho sairia praticamente o mesmo que mematricular no curso privado próximo da casa de minha tia, o qual tinha menos pessoas epor consegüinte era mais fácil para tirar minhas dúvidas, que não eram poucas, com osprofessores. Numa feliz oportunidade ganhei uma bolsa parcial nesse cursinho e semmuitas possibilidades de arranjar o dinheiro para segurar a vaga dentro do prazo dado medesesperei.

Minha mãe não tinha mesmo, minha tia até poderia ter mas até que chegasse o dinhei-ro aqui (ela estava em Cayenna) o prazo para matrícula já teria terminado. Pedi a um amigo,o Francisco (o Chico como o chamava na infância, um irmão que estimo bastante) que meajudasse e assim que o dinheiro que havia pedido a minha tia chegasse eu o pagaria, e assimfiz, depois de tentar tantas outras formas.

Nesse período já faltavam apenas seis meses para o vestibular e tive de conciliar aescola com o curso pré-vestibular. Foram meses de muito esforço e eu estava confiantemesmo diante das dificuldades em aprender determinados conteúdos que jamais haviavisto na escola pública. Minha vida transformou-se numa maratona: manhã, tarde e noite sóestudava. Amigos, professores e minha família realmente acreditavam no meu potencial.

Enfim, chegou o tão esperado dia: o da primeira fase do vestibular e para um princi-piante até que não fui tão mal, tive aproximadamente 74% de aproveitamento nessa prova.Continuei estudando para a segunda prova.

Na segunda fase, foram três dias de prova: no primeiro, eram as matérias de LínguaPortuguesa, Redação e Literatura; no segundo: História, Física e Biologia; no terceiro:Matemática, Química e Geografia (o chamado dia da morte).

Confesso que as matérias de exatas não eram minhas prediletas.Após sair do local daquela prova, fui desacreditado e no caminho de volta para casa

lembrei que havia estudado tanto que não existia possibilidade de eu não ser aprovado,porém ao me deparar com a realidade falei a um amigo que talvez não seria dessa vez.Prometi a mim mesmo que se não fosse desta seria da próxima e que eu não desistiria.

Chegou o dia “D”: o do listão dos aprovados e sai o primeiro nome, o segundo, oterceiro,[...] o trigésimo (todos narrados com bastante euforia pelo locutor). Saíram 50 no-mes: não passei. Chorei bastante e as lágrimas já não tinham mais sabor, eram contínuas edesoladoras, pois no fundo eu ainda acreditava ouvir meu nome naquela lista, era meufundo de poço de esperança.

Tente outra vezNesse momento, as únicas pessoas que realmente ficam ao seu lado são as que te amam

e nunca irão deixá-lo em hipótese alguma: a sua família e seus amigos. Minha mãe ligoupara mim e disse: “filho não chore que você será aprovado ano que vem” com isso meumundo desabou, mas decidi que iria recomeçar.

Dessa vez estudei mais as matérias de exatas, e acabei por gostar dessas da mesmaforma que as outras. Em meio a minha caminhada, fui “convidado” (para não dizer forçado)

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pela necessidade de recursos financeiros a estagiar em uma Organização Não Governamen-tal. Com isso, meu tempo para estudar ficou mais escasso e minhas chances de ser aprovadodiminuíram. Porém, minha vontade de cursar o ensino superior era o que me movia.

Após o segundo deslize em minha vida escolar tinha em mente que até poderia serreprovado novamente, mas que jamais desistiria (e não mediria esforços em busca de meuobjetivo). Ser aprovado seria motivo de orgulho e no fim, acabou sendo, no ano em queestudei pela segunda vez para o vestibular (2004), graças a Deus, foi o ano de minhaaprovação no curso de Direito. No ano de 2005 a UNIFAP trouxe o curso de EducaçãoFísica. Não pensei duas vezes, e mesmo sem estudar especificamente para aquele vestibularpor já está cursando Direito, o fiz e fui aprovado.

O significadoAtualmente o Conexões de Saberes, que como visto entrou em minha vida por acaso,

passa-me valores e lições de vida que aprendi a respeitar. Compreender diversos saberes éentender o mundo a nossa volta na sua imensidão de pensamentos, credos, etnias, culturas.

Hoje, curso o 5º semestre do curso de Direito e o 3º de Educação Física na Universida-de Federal do Amapá, e o caminho ainda está sendo feito.

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* Graduanda em Letras pela UNIFAP.

Como descrever uma vida? Principalmente quando a história de vida é a sua...Bem, minha vida, como de muitas outras pessoas, foi e é difícil, uma vez que sou de

família negra e pobre, mas também é maravilhosa em vários momentos.Meus pais sempre estiveram ao meu lado, me incentivando e acompanhando cada

momento vivido, vieram do interior do nosso estado do Amapá, em busca de uma vidamelhor, se conheceram aqui e em menos de um ano me tornava a primogênita do Seu Jorgee Dona Maria.

Minha infância foi bastante divertida junto com minhas irmãs Josi, Mara e meu irmãocaçula Tiago, brincávamos de tudo um pouco, apesar do meu pai ser rigoroso e raramentedeixar-nos ir à casa de nossas vizinhas.

Sou atrasada nos estudos, devido minha data de nascimento, lembro como era fanáticapara começar a estudar, mas infelizmente não comecei quando quis, e sim quando pude. Porisso fui muito cobrada por meus pais para sempre estar entre os melhores da classe sempoder contar com a ajuda deles, devido a falta de instrução, pois o meu pai nunca terminouo ensino fundamental e minha mãe depois de muito tempo sem estudar concluiu o EnsinoMédio em 2004, ou seja, depois de mim.

Sempre estudei nas escolas próximas a minha casa para economizar o dinheiro quenão tinha no orçamento da minha família. Entretanto, um fato que revolucionou minhavida, ocorreu quando ainda cursava a 7ª série, com apenas 13 anos. O governo do nossoEstado tinha inaugurado o Centro de Língua e Cultura Francesa Danielly Miterrand, dessemodo, começou a selecionar os alunos da rede pública, neste período eu estudava na EscolaAracy Miranda de Mont'Alverne, fui escolhida com meu colega Hilkias por termos as me-lhores notas da turma. Lembro a imensa dificuldade tanto de convencer meu pai a pagarminha condução, quanto de adaptar-me a nova língua, mas depois que comecei a me acos-tumar com o 'r' acentuado e com as demais diferenças, a paixão pela língua francesa aumen-tou e perpetuou enquanto acadêmica e futura educadora.

A Língua Francesa ajudou-me a pensar em meu futuro, como poderia usufruir meusnovos conhecimentos num curso superior? Qual curso eu poderia ter como profissão? Qualpoderia ser minha vocação e possibilidade de melhoria de vida para minha família? Tivedúvidas entre Secretariado Executivo, por ser um curso onde aprenderia a língua inglesa epelas afinidades com o mesmo, também com o curso de Letras, apesar da idéia de ser

Roberta Santos do Nascimento*

Retalhos de uma história

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professora, na época, não me agradar muito, mas foi o mais próximo da realidade do meuestado, pois professor sempre tem a quem educar e trabalho não falta.

No ano seguinte, fiz 15 anos, enquanto criança, sempre sonhei com aquela festatradicional e estupenda, entretanto, quando os completei, percebi que não teria possibi-lidades devido meu pai ser um simples e honroso pedreiro e minha mãe empregada do-méstica. Então pedi um curso de informática de presente, que também era um sonho enovidade para mim, nesta época fiquei muito ocupada com dois cursos à tarde e pelamanhã meus estudos regulares.

No ensino médio enfrentei o mundo complicado de exatas, fiquei perdida, e porconseguinte, tirei algumas notas vermelhas, mas não me deixei abater passando pelo 1ºe 2º ano com dificuldades. Já no último ano, estava determinada a não passar pelos mes-mos erros, me esforcei ao máximo no primeiro semestre, pois minha meta estava traçada:fazer cursinho preparatório para o vestibular a partir das férias mesmo que fosse preciso irandando ou vir de carona com uma de minhas colegas de bicicleta, como fiz muitas vezespor falta de dinheiro.

Algo que me ajudou bastante quando tentava entrar para esta instituição foi a IgrejaCristo Redentor, da qual participo, pois os membros tinham preocupação com o futurouniversitário dos estudantes daquela comunidade, por isso montaram um cursinho pré-vestibular voluntário para favorecer a inserção desses estudantes na UNIFAP. Desde o iní-cio de 2003, comecei a estudar nesse cursinho, onde conheci uma colega com as mesmaspretensões, cursar Licenciatura Plena em Letras; Maressa tornou-se um apoio, colega decursinho e de sonhos.

Então, aos poucos foi acontecendo o planejado, nas férias me inscrevi em outro cursi-nho, este gratuito, mas longe de casa, tive muitas dificuldades para freqüentar com assidui-dade, mas não desisti. Lembro que recebia muitas desmotivações como: “Filho de pobrenão entra na universidade federal” ou “Minha filha já tentou várias vezes e não conseguiupor que você conseguiria?” Em contrapartida, estas críticas só me faziam acreditar mais emmim, pois queria mostrar a todos, o quanto uma pessoa é capaz de acreditar em si mesmacom garra e muita determinação.

Ingressar na Universidade Federal do Amapá foi muito gratificante, foi um esforçoque valeu muito a pena, estava muito curiosa para conhecer a Academia, sempre penseicomo seria ser uma universitária, ter que estudar com mais afinco a área que escolhi paraminha vida.

No início, tudo foi maravilhoso, depois fui verificando as dificuldades, como algunsprofessores que não se preocupam com o ensino-aprendizado de seus alunos, ou seja empur-ram o conteúdo com “a barriga”, sendo que muitas vezes aceitei de qualquer forma, e porconseguinte, fiquei sem aprender realmente, me deparei com muitos professores “maniçoba”(prato típico da região Norte com muitas folhas picadas de maniva), ou seja, só ensinam comvárias folhas xerocadas, deixando seus alunos alienados e perdidos.

Hoje, posso dizer o quanto mudei, pois conheci o Programa Conexões de Saberes, queme favoreceu conhecimentos que passavam despercebidos em minha vida, principalmenteem relação à sociedade, pois quando se faz um curso restrito, como a ciência da Linguagem,você esquece um pouco das outras ciências.

Fazer parte do Conexões é muito gratificante, pois agora sei que não estou na univer-sidade em vão, só para ter um “canudo em baixo do braço”, mas para buscar uma vida

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melhor, sendo uma cidadã crítica e desprendida das convenções que alienam o mundo, comgarra, determinação e muito amor pelo meu curso e pelos conexistas deste programa e osespalhados por este Brasil tão maravilhoso, que se tornam meus irmãos pelas semelhançasde vivência.

Você tem sede de que?Você tem fome de que? A gente não quer só comida,A gente quer comida, diversão e arte.A gente não quer só comida,A gente quer saída para qualquer parte.A gente não quer só comida,A gente quer bebida, diversão, balé.A gente não quer só comida,A gente quer a vida como a vida quer.Arnaldo Antunes / Marcelo Fromer / Sérgio Britto

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* Graduanda em Matemática pela UNIFAP.

Quando fui contemplada com a bolsa do Conexões de Saberes fiquei muito feliz ecomecei recordar o tempo em que apanhava de minha mãe e ia chorar no fundo do quintalfalando sozinha, pedindo para Deus alguém que me pegasse no colo e me escutasse. Hoje,tenho certeza que Deus ouviu minhas palavras, pois agora vou contar para várias pessoas.

A lembrança mais remota que eu tenho de minha infância é uma mudança do bairroAparecida para o Caranazal, na cidade de Santarém-PA. Eu ia sentada na carroça de boi juntocom a mudança, e onde existia uma creche. Foi lá que começou minha história escolar, nacreche Casulo, foi só um ano, mas serviu muito, lá eu comia, dormia, brincava e estudava.

Durante minha morada no Caranazal ganhei admiração de várias pessoas, havia umavizinha que sempre que minha mãe me batia, dava algo para me agradar. Uma irmã dela foipassear em sua casa, gostou de mim e me convidou para morar com ela em Itaituba. Com apermissão de minha mãe passei um ano lá.

Nesse período ela me matriculou em uma escolinha de quintal, aprendi muito, depoisde um ano voltei para minha cidade.

Quando voltei, minha mãe me colocou para trabalhar na venda de flores e cocadas,junto com minha irmã Leuda. Passamos uns anos vendendo.

Minha mãe na época era lavadeira de roupas e criava os filhos só. Mesmo cansadaajudava-nos a confeccionar as flores e fazia as cocadas. Nessa época eu não estudava, asescolas não me aceitavam, devido ao meu tamanho, eu era pequena demais para a idade quetinha. Minha mãe contava que eu tinha nascido com um quilo e cem gramas e meu desen-volvimento foi muito lento, e só aos nove anos fui para a escola.

Fui matriculada no turno intermediário, era muito ruim esse período, entrava às 10:30he saía às 13:30h, o almoço nunca estava pronto antes de eu sair, sem contar que nós játínhamos mudado do Caranazal e nossa casa ficava longe da escola e eu ia andando no Solquente. Ao mesmo tempo em que comecei a estudar, fui trabalhar de babá em casa de família,mas passava o final de semana com a mamãe.

Não deu certo eu trabalhar, por faltar muito na escola, minha mãe trouxe-me de voltapara casa. Nesse período, passamos por várias dificuldades, meu irmão caçula adoeceu,minha mãe mandou-me para a casa da vovó, passei lá umas duas semanas, e veio a notíciaque ele tinha falecido, foi uma dor muito grande para mim.

Considero a minha mãe uma grande guerreira pela capacidade de superação e cora-gem. Logo após esta perda, passaram uns trinta dias, no final de março de 1984, o carro

Os espinhos são frágeis diantedo perfume das rosas

Rosa Emília dos Santos Oliveira*

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matou meu irmão de sete anos. Novamente minha mãe ficou arrasada e em estado de cho-que. Lembro-me de seus cabelos compridos que sempre amanheciam molhados de lágrimas.Vendo seu sofrimento e para amenizá-lo, deitava com ela à noitinha para lhe dar carinho.

Mudamos dessa casa e fomos morar em outra mais longe da minha escola. Isso meocasionou um mau desempenho na escola, ficando reprovada.

No ano de 1986, minha mãe trocou-me de escola, onde eu fui abençoada por Deus, queme deu umas professoras boas, carinhosas, pacientes como a professora Lúcia que me ensi-nou a gostar de estudar.

Quando aprendi a ler já estava com onze anos, recordo-me que queria ler tudo o quevia escrito em placas, jornais ou qualquer outro tipo de letreiro. Às vezes, ficava distraída narua e a minha mãe brigava comigo já que ficava para trás causando atrasos, principalmentequando íamos ao comércio. Nessa época, havíamos conseguido construir nossa casa.

Minha casa era toda colorida, devido a ser de tábuas usadas, cobertura de palhas e pisode chão de terra batida, mesmo assim, éramos felizes. Passei um bom tempo morando com amamãe e assim, consegui ingressar nas séries seguintes. No entanto, na 4ª série não sabiafazer divisão, pois achava complicado e difícil. Dona Lurdes me ensinou a divisão e passeipara a 5ª série. Já estava na adolescência, mas nunca fui de dar trabalho, sempre tive cons-ciência das minhas responsabilidades.

Na 6ª série, novamente senti dificuldades em relação à Matemática, então decidi pararde estudar e comecei a trabalhar como doméstica na casa de uma enfermeira, dona Elianaque me incentivou a voltar a estudar.

No ano seguinte, voltei a estudar à noite, fui cursar a terceira etapa do ensino supleti-vo fazendo a 5ª e 6ª séries simultaneamente. Não encontrei problemas em estudar e traba-lhar ao mesmo tempo. Quando terminei o ensino fundamental já me encontrava envolvidacom relacionamentos afetivos. Aos 18 anos engravidei de uma pessoa que dizia me amar,mesmo assim, o flagrei com outra, terminamos o namoro. No início da gravidez sentiavergonha da minha mãe, pois ela confiava em mim, deixava estudar à noite. Mas fiquei demãos atadas sem saber como contar a notícia da gravidez a ela.

No quarto mês de gestação, ainda sem aparecer a barriga, Deus me enviou novamenteuma pessoa para me ajudar (meu atual marido) que me assumiu mesmo sabendo da gravidez.Dessa forma, continuei a estudar fazendo agora o 1º ano do ensino médio, infelizmente tiveque parar novamente, visto que o Lennon nasceu no mês de agosto. Meu marido começoua mostrar a sua personalidade, através do ciúme, machismo e autoritarismo, pensei queisso não fosse para mim, porque fui criada na liberdade com minha mãe sempre confiandonas minhas atitudes.

Com essa situação, comecei a ficar constrangida diante da minha família, visto que,morávamos com minha mãe, além disso, eu já me encontrava grávida novamente do meusegundo filho. Vi que não era essa a vida que idealizei para mim, então, conversei commamãe e minha irmã Ivanilda sobre os meus estudos. Na verdade, sempre tive em menteque através da educação iria mudar minha realidade. Ambas decidiram me ajudar, sendoque minha irmã comprou os materiais escolares e mamãe ficava à noite com o Tácio e oLennon.

Lembro-me que ao retomar os estudos, voltei cheia de entusiasmo e coragem, dispostaa aprender. Nesse ano, para minha surpresa, fui a aluna honra ao mérito no mural da escola,consequentemente isso me deu uma alavancada nos estudos. No outro ano, mudei de escola

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devido ao “apagão”, o racionamento de energia. Por causa deste fato, passei a estudar àtarde e não encontrei dificuldades de encarar a realidade.

Ganhamos uma casa para tomar conta, ficava numa baixada e quando vinha a chuvaalagava tudo. Nesses alagamentos eu fazia muita força para salvar os móveis que erampoucos, às vezes os vizinhos ajudavam.

Nesse período eu estava com sete meses de grávida e eu havia feito um pacto com minhaturma de que quando o minha filha nascesse eu a levaria para a sala de aula, assim não parariade estudar. Infelizmente isso não se concretizou, ela faleceu doze dias após seu nascimento.

Minha turma foi de extrema importância neste momento tão difícil e doloroso, a turma303CB e minha família foram primordiais neste momento de tristeza.

Ganhei força nos estudos, ocupando a minha mente a cada dia, na verdade, era umaforma de fugir da dor. Pelo esforço fui presenteada com livros, pela professora Osalina eZacliz quem eu amo de paixão.

Fui contemplada com a isenção, para inscrição do vestibular Campus Santarém para ocurso de Licenciatura em Química. Com os livros comecei a me dedicar melhor aos estudos,estudava pela manhã no grupo de estudo, à tarde ia para a escola e à noite para o cursinhode amigos. Passei na 1ª fase do vestibular, foi uma felicidade imensa ver o meu nome nolistão dos aprovados.

Na segunda fase, adoeci uma semana antes do resultado, foi frustrante saber que nãohavia passado. Chorei muito e nesse momento de angústia lembrei da morte da minha filha.

Depois desses acontecimentos, resolvi dar aulas de reforço, fazer bordados, crochê.Deixei de lado os estudos, pois esta maratona me deixava desanimada. No ano de 2000 e2001 apenas trabalhei e em 2002 ganhei a isenção do vestibular, daí decidi me inscrever emlicenciatura em Matemática, porém, não estudei o suficiente e novamente fui reprovada.

No ano de 2003, em busca de melhores condições de vida, meu marido viajou para acidade de Macapá e cinco meses depois ele me mandou vir com as crianças.

Chegamos a Macapá no dia 9 de novembro de 2003. Para mim, era um lugar totalmen-te estranho, não conhecia praticamente ninguém, apenas meu irmão e a esposa dele. Choreialguns dias, mas depois me conformei.

Certo dia, descobri que havia um cursinho pré-vestibular gratuito, logo decidi con-versar com meu marido e expressar a minha vontade de estudar.

Todavia, ele impôs uma condição, disse que eu podia, sendo que estudaria pela ma-nhã. Pedi pra minha cunhada ficar com meus filhos mais novos, Thiago e Thaiane. A partirdo momento em que comecei a estudar, a minha rotinha não era fácil, pois tinha que acordarcedo, fazia o almoço, dava o banho nas crianças e as arrumava. Os meus dois filhos maisvelhos ficavam na escola. Geralmente, chegava no cursinho às 8h da manhã e saia às 12h,depois pegava os meninos na escola e ao chegar em casa fazia as tarefas domésticas.

O pouco tempo que me sobrava me dedicava aos estudos pra adquirir habilidade nosconteúdos passados em sala de aula. Durante três meses foi assim que se dava minha rotina,depois nós mudamos para uma invasão e por não ter com quem deixar meus filhos parei defreqüentar o cursinho. Já nas férias voltei novamente a minha antiga rotina e deixava o maisvelho cuidando do mais novo.

Voltei para o cursinho, no início do mês de agosto, como já tinha feito amizade coma vizinhança meu marido fez um esforço em pagar R$ 30,00 por mês para uma moça ficarcom eles pela manhã, assim, continuei aprimorando meus conhecimentos.

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Na véspera da prova da 1ª fase do vestibular o cursinho fez um momento ecumênico afim de preparar o espírito dos alunos para a prova. Foi um momento maravilhoso, mas paraminha surpresa, quando cheguei em casa me deparei com a desestrutura emocional do meumarido que me recebeu com brigas e discussões.

Decidi que não faria a prova na manhã seguinte, mas novamente Deus colocou aminha vizinha Dete na minha vida e através de seus conselhos, eu pude mudar de idéia.

Na manhã seguinte, com os olhos inchados fui fazer a prova, e no retorno para casa,vim rezando para conseguir tirar os 30 pontos. Ao chegar, conferi o gabarito junto com meumarido, para minha surpresa ele vibrava mais do que eu com a minha pontuação.

Na preparação para a segunda fase, tive o apoio do meu marido, acredito que esseapoio me deu forças para eu vencer esta batalha. A maratona de três dias de prova foicansativa, por isso adotei algumas estratégias. Peguei emprestado uma carteirinha de passeescolar da minha vizinha Marcelina. Ia para o Desafio Santa Inês pela manhã, à tarde assistiaao “Aprovar”, exibido pela Amazon Sat e à noite ia para o Desafio São Lázaro, fazia umaredação por noite. No dia da 1ª prova da segunda fase fiquei tranqüila; na 2ª prova foi umafelicidade e na 3ª houve um incidente muito engraçado; a prova começava às 8 h da manhãe saí de casa às 6:30 da manhã. O bairro da escola era longe uns 40 minutos de ônibus,quando eu o peguei e passei a carteira de passe escolar estava sem crédito. Desci do ônibus,pois não tinha dinheiro para continuar a viagem, então, andei seis quadras até a minha casa.Ao chegar lá, meu marido tomou um susto e perguntou o que havia acontecido, então,expliquei a situação e ele pediu ao meu vizinho para me levar na escola, cheguei 5 minutosantes de fechar o portão. Criei até um lema para não ficar nervosa demais que era: “eu nãoposso me desestruturar, recebi competência, estou habilitada e a palavra de Deus me diz quesou mais que vencedora”.

Estou aqui contando a minha história de vida, cursando o quinto semestre de Matemá-tica. As dificuldades ainda existem, mas eu espero a recompensa, afinal:

“tudo posso naquele que me fortalece”. Filipense, 4:13

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* Graduando em Física pela UNIFAP.

Calma, não dá para acreditar! Tudo tão de repente, parece um sonho! Nossa! É realida-de mesmo! Nunca imaginei que aos dezenove anos de idade iria fazer parte da construçãode um livro, com publicação nacional. Compartilhar do Programa Conexões é fruto de anosde paixão pelos estudos, apesar de haver alguns movimentos retrógrados. Ah! Isso a minhaquerida Física explica.

Sinto-me lisonjeado em ter nascido e tornar-me um divulgador de que o amor porDeus e o conhecimento serão os únicos bens preciosos que ninguém conseguirá roubar. Masfico triste, muito triste mesmo, quando ouço uma criança pedindo o que comer e não ter, issoé lamentável. É verdade, adoro a Física e entendo que a gravidade dessa cena se deu quandoa Geografia ou a História encarregou-se de explicar algo que odeio, o capitalismo.

É um velho ditado e que acredito, “colhemos o que plantamos”. Falo isso porque, da“safra” do capitalismo, colhemos, desde a era colonial até hoje, exploração do homem pelohomem, a individualidade, a propriedade privada, má distribuição de renda, e como conse-qüência, a violência, a corrupção, a FOME... enfim, não quero culpar ninguém, apenas umareflexão, a fim de que, possamos ser acelerados de forma conseqüente.

Penso que nós estudantes da rede pública e de classe popular, não somos inferioresaos “outros”, mas que através da escrita possamos mostrar nosso potencial, enquanto des-bravadores do conhecimento, seja ele qual for. Na verdade, não existe ninguém inferior ou“ burro”, nesse mundo, existem pessoas com conhecimentos diferentes. Eu sou uma delas.

Nasceu mais uma árvore, com galhos de diferentes objetivos na vida, eu, plantada porRosivaldo e Sônia, vivi minha infância em Breves, município ao norte do Pará, num bairroperiférico. Um município relativamente bom de se viver, mas que, infelizmente, por falta depolíticas públicas, não há, até hoje, muito desenvolvimento.

Lembro que minha única irmã e eu, sempre fomos tímidos e pacatos, em virtude daforte educação que meus pais nos deram. Para ter uma idéia, sabe-se que a maioria dascrianças tem a mania de querer pegar tudo o que vêem, conosco acontecia o contrário. Àsvezes quando estava na eminência de qualquer movimento, minha mãe dava aquela olhadi-nha e logo retrancava-me. Apesar disso, e posso dizer que bom, guardo boas lembranças,afinal meus pais estavam preocupados mesmo com meu comportamento social. Creio que, semuitos pais e muitas mães tivessem organizado a educação dos seus filhos, não sairiam tantaspessoas sem nenhum objetivo na vida, pois a educação familiar é refletida na sociedade.

Rosivaldo Carvalho Gama Junior*

Memorial

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Sempre fui muito teimoso com meus pais. Quando iam trabalhar, deixavam recomen-dações para que não saísse sem necessidade, mas de vez em quando eu acabava jogandofutebol com meus primos, aliás era o esporte que mais gostava.

Certa vez, nessa desobediência, por infelicidade, levei um corte profundo no pé, tentavaesconder de todas as maneiras, mas de costume minha mãe descobria, era surra na certa.

Minhas notas sempre foram boas. Assim, ficava livre dos sermões dos meus pais.Os elogios eram bem superficiais, parece que sempre faltava algo, pois conseguia oresultado positivo e, no final, eles falavam, estuda! estuda!..., tornava-se chato, mastudo bem, hoje eu entendo.

Confesso que, desde o início da vida escolar o desejo de aprender, o prazer pela buscado conhecimento foi um dom de extrema importância que Deus me deu.

Lembro que da 1ª a 3ª séries estudei no Santo Agostinho, um colégio com uma educa-ção boa, em nível de ensino e com normas rígidas. No entanto, durante esses primeirosperíodos não senti muita dificuldade na aprendizagem, afinal, cumpria as normas do colé-gio e estudava pra valer.

Digo com toda sinceridade e honestidade, crescer na vida através dos estudos é umabrilhante idéia. Quando ia a escola, estava também a propósito de relações interpessoais,brincar com os colegas, participar de eventos, pois tudo isso faz parte da educação.

Quando ainda criança, prestes a cursar a 4ª série, vim para Santana no Amapá.Estudando em escola pública, já havia a identificação com atual curso. Não perdendo

a humildade, mas a Matemática me fascina. Recordo como se fosse hoje, único aluno dasala a resolver uma expressão matemática nessa série. O gosto pelos números, por cálculo,estava e está no sangue, no final dos bimestres as maiores notas eram em exatas.

Agora, novo Estado, cultura nova, tudo bem diferente. Meu pai e eu viemos na buscade melhores condições de vida, com dificuldades, lutamos para construir nossa casa e aprincípio, já estudando, fiquei internado durante um mês com malária.

Ah, meu pai adoeceu também com a mesma doença... sem casa, morei durante um anonas casas de meus tios. Posteriormente, morando em casa própria, estudei da 5ª a 8ª séries emum colégio municipal, onde fiz amigos e se pudesse terminaria o ensino médio, mas era e éescola de nível fundamental.

Foi a melhor e a pior fase como estudante. Pior porque estudava no turno da tarde,logo, muito quente. E, minha sala, principalmente na 8ª série, a partir das quinze horas setornava uma sauna, às vezes estudávamos pelos corredores. Melhor porque fiz amigos, queme dão apoio até hoje na UNIFAP, quando foi a época do vestibular, provaram o que são,dizendo: “se preocupa com teus estudos” (Cherliany, Izael, Renan, Vilvane...).

Nessa época, muitas pessoas na sala não gostavam de mim, pelo fato de sempre tirarnotas altas, respondia quando professores perguntavam algo da área de Exatas. Sentia-memal, afinal, sempre fui muito solidário, talvez fosse falta de maturidade dos meus colegas.

Enfim, terminando o nível fundamental e como toda turma não tinha o mesmo objeti-vo que eu, dos quase quarenta alunos, apenas um encontra-se na universidade (UNIFAP) epor sinal cursando Física (Sandro), um grande irmão e que também adora um livro.

O ensino médio foi bem diferente, por causa do temido vestibular. A minha vida todapensava em fazer Direito, porém, não conseguia encontrar o verdadeiro motivo, talvez, porfalta de orientações, o interesse seria o dinheiro. Falava que iria ser um grande advogado,mas quando a ficha caiu, percebi que não tinha lógica nenhuma defender um indivíduo que

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mata, furta e estupra, isso é inadmissível. Daí a razão em cursar Física, hoje reflito, eu erafeliz e não sabia.

Logo no 1º ano do ensino médio, comecei a freqüentar o cursinho, pensando que, sepreparando cedo, quando chegasse o 3º ano para prestar vestibular, não iria sentir muitadificuldade em concorrer.

Então, estudando no pré-vestibular pela manhã das 8 às 12 h, comecei a caminhada.Seria injusto não comentar sobre o cursinho do qual fiz parte, o Desafio, um grandioso

projeto social, voltado não só para classe popular, mas que está de braços abertos para todasociedade.

O Desafio é um pré-vestibular gratuito, que contribui para que centenas de jovensingressem na universidade, visto que, não teria condições de pagar todo mês cento e vintereais, sem contar com os três reais para viajar 24 quilômetros num ônibus desconfortável emuito menos o do lanche.

Já no 2º ano do ensino médio e do cursinho, as coisas começaram a complicar, leveimais a sério os estudos.

Nesse período, durante uma aula, comecei a interrogar o professor de Física e lembroque ele falou: “passei no vestibular no 2º ano”. A partir disso, tive como até então, o maiordesafio de minha vida, passar no processo seletivo 2005 nessa série.

Com isso, fui ficando ausente de amigos, família, esporte, namorada e outras coisas,estudava pra valer, pois estava decidido de que esse era meu objetivo.

Então, prestei vestibular para Física na UNIFAP, passei na 1ª fase e mesmo muitoeufórico e nervoso fui fazer a 2ª e última fase (três dias cansativo de prova) a qual tive afelicidade também de passar.

Ouvir o nome sair no listão dos aprovados é uma das melhores sensações que se podesentir. Uma sensação permitida por Deus, que valeu a pena, de recompensa, de dever cum-prido, enfim, uma emoção indescritível.

É, mas essa emoção terminou muito antes do que eu esperava. Entrei na universidadee me deparei com uma situação totalmente diferente da qual eu sonhava. Veja: a universi-dade é pública de fato? Por exemplo, o meu curso quando entrei não tinha salas, muitomenos bloco (assistíamos aulas na sala da Matemática). Apenas dois professores faziamparte do nosso colegiado.

A instituição pública não oferece estrutura adequada, os poucos cursos têm laborató-rio, bolsas de iniciação científica com a lógica meritocrática, e as condições de acesso epermanência? Agradeço a Deus pela oportunidade de fazer parte do Conexões, pois a bolsame ajuda na compra de livros, na alimentação, no transporte, ou seja, isso que é permanência.

Apesar dessa situação, agradeço a Deus e aos meus pais por estar na universidade,afinal quantos jovens se inscrevem e não conseguem passar. É falta de capacidade? Não, éfalta de vagas.

Faz-se necessário lembrar que a instituição vem melhorando, a Física já tem blococom laboratórios e seis docentes compõem a equipe do curso. Fico feliz de poder contar omeu memorial, porém, ficarei mais feliz ainda, se você leitor, nesse momento tem uma metae esteja em repouso, em virtude de um ou de vários obstáculos, entre em movimento pro-gressivo e acelerado, que você consegue, aliás, eu passava em frente a UNIFAP e dizia: umdia estudo aí e consegui.

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* Graduanda em Pedagogia pela UNIFAP.

A minha vida e a caminhada como estudante começou no município de Breves noEstado do Pará. Esse caminho não foi fácil, são muitos problemas que às vezes nos fazempensar em desistir, e se não tivermos certeza do que queremos, corremos o risco de desistirde estudar e de lutar por um futuro melhor.

Minha família é constituída por 8 pessoas (papai, mamãe, 3 irmãos, 2 irmãs e eu)todos os seis filhos tiveram a chance de estudar, mas nem todos aproveitaram.

Comecei a estudar com 3 anos de idade em uma creche chamada Coelhinho Feliz,passava o dia todo na instituição, era tudo muito divertido. Quando passei para o ensinofundamental, fui estudar no Estevão Gomes, senti uma grande perda, pois tive que meseparar dos meus amigos e da minha primeira professora.

Nas primeiras séries do ensino fundamental não tive dificuldades, pois já sabia ler eescrever algumas palavras. A parti da 5ª série os professores ficaram mais exigentes, poisqueriam que os alunos fossem críticos e conscientes dos seus atos para que pudessemconquistar sua autonomia.

Foi com esses professores que percebi que a educação é um dos caminhos para mudaralguma coisa no mundo, por isso passei a valorizar cada segundo que passava na escola, poissempre pensei em dar aos meus pais uma condição de vida melhor. Quero ajudar meus irmãosincentivando-os a continuar estudando para que transformassem seus sonhos em realidade.

Meus pais sempre me incentivaram, principalmente minha mãe que me ensinou valo-res morais, que foram muito importantes para que eu pudesse vencer, sem dar passos maio-res que a perna, sendo sempre sincera, falando a verdade mesmo que magoasse algumaspessoas, com isso tenho a certeza que o melhor aprendizado tive com minha família.

Quando minha mãe fraturou a perna, fiquei muito abalada, parecia que o mundoestava desabando sobre minha cabeça, parecia que nossas vidas tinham acabado, não sabiao que pensar nem o que fazer. Tinha apenas oito anos, porém, percebi que precisava ajudarminha mãe e mostrar a ela que eu tinha forças para continuar estudando e cuidando dosmeus irmãos. Foram anos de tratamento e de sofrimento para todos da família.

Esse acontecimento afetou meu desempenho escolar, pois minha mãe passava a maio-ria do tempo no hospital e eu sentia saudades, pois era ela quem me ajudava com algunsproblemas escolares, apesar de nossa tia ter ajudado muito naquele momento tão difícil,sentíamos que não era o mesmo carinho e atenção, que uma mãe tem pelos seus filhos.

Ruticleia Ferreira Gama Valente*

Memorial

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Iniciei o ensino médio no colégio Maria Câmara Paes. Estudava no turno da tarde etinha que ir andando para a escola, que ficava um pouco longe da minha casa.

Dedicava-me aos meus estudos, entregava os trabalhos nos dias certos, participava dasreuniões estudantis e qualquer evento que pudesse enriquecer minha vida como estudante.

No final do segundo ano do ensino médio por motivo de problemas de saúde, nova-mente da minha mãe, tive que mudar de cidade e como conseqüência de escola também.

Cheguei em Macapá no ano de 1999, tive que começar logo a trabalhar para ajudarminha mãe. Trabalhava como empregada doméstica e à noite estudava no colégio. Comonunca tinha passado por essa experiência, no início parecia que estava carregando o mundonas minhas costas, mas consegui me acostumar e pude continuar lutando.

Após concluir o ensino médio, tive que me preparar para o tão disputado vestibular daúnica universidade federal pública do estado (UNIFAP). Comecei a estudar em um cursinhopré-vestibular gratuito. Nessa época, meu esforço era maior, pois minha filha estava muitopequena e tinha que me virar em três ao mesmo tempo: empregada doméstica, mãe e estu-dante para poder realizar meu sonho de cursar o ensino superior e poder dar uma melhorcondição de vida para minha filha e meus pais que tanto lutaram comigo.

Na primeira tentativa não fui selecionada, mas continuei freqüentando o cursinhopara me preparar para o vestibular. No processo seletivo do ano de 2004, me inscrevi parao curso de Pedagogia, realizei a prova com sucesso e felizmente consegui ser aprovada;fiquei muito feliz, agradeci a todos que me ajudaram, direta ou indiretamente, principal-mente a Deus, por ter me permitido desfrutar de tanta alegria e por ter me dado forças paracontinuar sonhando e saber que meu esforço não foi em vão. Mesmo sabendo que as maio-res dificuldades viriam no decorrer do curso para conseguir permanecer e concluir o ensinosuperior.

Sonhei tanto em cursar o ensino superior, pois sabia que teria um ensino de qualidade,para que pudesse ter uma profissão que realmente fizesse a diferença na sociedade buscandoa melhoria da mesma, porém, como toda instituição tem seus problemas, passei a perceberque na UNIFAP os problemas só faziam aumentar. No primeiro semestre estava tudo umamaravilha, professores alegres incentivavam os alunos, mas os semestres foram passando enesse momento me dei conta que a universidade era muito diferente daquela que eu imagi-nava, alguns professores apareciam para dar aula desmotivados e deixavam a turma triste equando brigávamos para ter aulas produtivas éramos simplesmente deixados de lado. Luta-mos contra alguns professores, mas a universidade que tem o título de pública e que deverialutar junto com o aluno, deixa-o sozinho.

Depois que consegui passar pelo funil do vestibular passei a ter cada vez menossonhos e decepções: um dos meus sonhos é ver a universidade pública sendo valorizadapelos governos, pela população, para que ainda seja o sonho de muitos jovens conseguirestudar nessa instituição e lutar por um futuro melhor tanto para si, quanto para os familia-res e para o país; uma das decepções é ver o descaso, tanto com os alunos, quanto com aestrutura da instituição e tanta burocracia para se conseguir alguma coisa que será para obenefício dos acadêmicos.

No ano passado, quando fiquei sabendo do Programa Conexões de Saberes: diálogosentre a universidade e as comunidades populares, sabia que seria minha oportunidade deouro, sendo uma bolsa que ajuda o acadêmico a permanecer estudando, tinha certeza quealém disso, teria outras oportunidades e experiências para minha vida acadêmica e profis-

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sional. Fiz minha inscrição, mas não fui contemplada na primeira seleção, fiquei triste, masdepois de um tempo minha colega falou que algumas pessoas tinham desistido do progra-ma por não se identificarem com a proposta, daí fui à luta novamente, procurei a coordena-dora e me informei sobre o assunto, ficaram de analisar meus dados e pediram para euesperar, algumas semanas depois, recebi um telefonema da psicóloga dizendo que eu tinhasido contemplada pelo programa, fiquei muito feliz.

Essa chance não poderia escapar da minha vida, por isso, procurei me informar com osbolsistas que estavam há mais tempo no programa sobre o que já tinha acontecido e o queestava por vir. Minha primeira tarefa, assim como dos outros bolsistas, era ajudar os coorde-nadores a organizar o evento do lançamento do Programa Conexões de Saberes no Amapá.Hoje, tenho a certeza que esse programa de incentivo à permanência na universidade estásendo muito importante para que eu conclua meu curso e sonhe com um futuro melhor.

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* Graduando em Matemática pela UNIFAP.

Uma luta, uma história que continua...Uéliton Nogueira da Silva*

Rádio ligado, a sala não cabia todos sentados, nome a nome sendo lido, então olocutor empolgado diz:

- Em décimo lugar: Uéliton Nogueira da Silva, aprovado no curso de Matemática daUniversidade Federal do Amapá.

A alegria contagiou todos em casa. O primeiro da família a sentar numa cadeira deuniversidade! Minha família vem das ilhas do Pará, assim como a maioria do que moramaqui no Amapá. Família que digo é minha mãe, meus irmãos e eu. Dos onze filhos queminha mãe teve, quatro deles nasceram no Pará, os outros já nasceram no Amapá, inclusi-ve eu. Dois deles morreram logo depois do parto. Quando minha mãe veio para Santanano Amapá ela acabara de perder o marido e tinha quatro filhos deste para criar; das muitascoisas que ela fez para sustentar a família, cito uma que é de mérito de uma guerreira,trabalhou na fabricação de tijolos. Isso mesmo, carregando tijolos! Essa é daquelas quepodemos dizer que “comeu a pão que o diabo amassou”. Por isso, quero deixar nesteparágrafo minha profunda admiração à minha mãe que, além de mãe, foi pai, amiga, e é aela a quem devo o que hoje eu sou.

Sempre fui de sonhar muito alto, mas sempre com os pés no chão, não um sonhador deilusões e personagens fantasiosos, mas um planejador (você pode entender também comoum otimista diante do quadro apresentado).

Já no ensino fundamental tinha enorme facilidade de aprender Matemática, aprendiabem o assunto, e nos dias que antecedecediam a prova, explicava para os meus colegas todoo assunto tirando dúvidas e até me arriscando a dizer o que poderia cair na prova. Fazia issopor alguns lanches durante a semana, mas esse não era objetivo principal, fazia aquiloporque eu gostava muito de explicar o que aprendia. Talvez daí tenha surgido minha voca-ção para a licenciatura.

Na escola tinha um prêmio para quem fosse o melhor durante o bimestre ou durante oano, um certificado personalizado de honra ao mérito. Hoje, sei que de pouco me serviu,mas sei também que na época era muito gratificante receber algo que lhe valorizasse ereconhecesse seu esforço.

Durante este período da minha vida, ajudava minha mãe com outras duas irmãs notrabalho de garçonete num balneário da cidade aos domingos; era uma mistura de lazere trabalho. Entre juntar as garrafas de uma mesa e outra eu ia mergulhar no rio Matapí.O melhor disso foi descobrir o quanto se trabalhava para conseguir o dinheiro do dia-a dia.

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Comecei a dar mais valor às coisas de casa. O interessante é que isso me fez ganhar respeitoe comecei a trabalhar paralelamente a minha mãe, no final da tarde havia renda dos quatroda casa. Na segunda-feira era melhor ainda, pois tinha dinheiro para gastar na escola.

Além disso, trabalhei ainda em açougue, numa olaria, em eventos como garçon, comovendedor de picolé no balneário e alguns outros poucos relevantes, o que me ajudou a obtermais responsabilidade.

Toda minha carreira estudantil foi em escola publica, e dos colegas, há alguns que agente nunca esquece. Na realidade, são os amigos de escola que lembramos com saudades.

Na 8ª série parece que tudo o que construímos é despedaçado, ficam apenas fragmentosde algumas coisas, nos sentimos meio perdidos, é o fim da primeira fase estudantil.

O que mais sinto é que aqueles colegas não deram continuidade ao estudo, logodepois que passaram para o ensino médio interromperam sua vida estudantil. Não os conde-no por isso, sei que cada um teve sua necessidade e motivos. O que eu não gostaria que umdia acontecesse fosse que eu dando aula os encontrasse como meus alunos, seria muitofrustrante e do contrário ficaria feliz poder um dia revê-los como amigos de trabalho.

No ensino médio continuei a me esforçar agora de olho no vestibular, não como algoobsessivo, mas como algo que já merecia consideração. No segundo ano, ganhei uma bolsa,bolsa trabalho, dessas que não desenvolve ninguém, digo os alunos, e servem como trunfopolítico. Eu trabalhava à noite e estudava à tarde. No meu caso, a bolsa conseguiu me desen-volver, não pelos méritos de seus idealizadores, mas pelo sucesso que tive de trabalhar nosegundo ano de bolsa numa biblioteca, já no terceiro ano de ensino médio, como eu estuda-va à noite e trabalhava à tarde, só tinha tempo de fazer os trabalhos de escola pela manhã,mas, visto o vestibular estar tão próximo, me matriculei num cursinho pré-vestibular gratui-to pela manhã. Minha jornada era tripla, estudar pela manhã, trabalhar à tarde e estudar ànoite. Era de matar. O cansaço mental era pior do que o físico, e meus trabalhos escolares eufazia na biblioteca quando o fluxo de pessoas era pequeno.

Ah! Conto-lhes, aos sábados e domingo ensino as pessoas sobre a bíblia de casa em casa,leio, pesquiso, assisto as reuniões das testemunhas de Jeová, isso é o que mais me alegra, égratificante poder chegar à casa de alguém e ensinar algo de grande valor, os princípios justosde Deus, de moral, de esperança, de paz e amor. Daí vem meu gosto pela leitura.

Minha mãe merecia que eu sentasse num banco de uma universidade. E mais do quenunca minha vontade aumentou quando meu professor de História pediu que meu grupofizesse uma pesquisa cujo assunto só acharíamos na Federal do Amapá, e quando pedimospara o rapaz responsável pelo assunto ele nos dirigiu para uma enorme prateleira de livrosnos perguntando se nós éramos da nova turma de História, respondemos apenas que não,nem citamos que éramos do ensino médio.

Aquela simples pergunta me motivou para um dia poder entrar ali e mostrar minhacarteira de acadêmico.

Dessa viagem à universidade, há uma história que merece entrar na minha biografia.Um colega e eu estávamos no ônibus com o destino a UNIFAP. Os ônibus daqui andam piorque pau-de-arara, e nesse dia pegamos o ônibus e fomos para frente com o intuito de não nosapertarmos tanto na saída, foi aí que um policial se levantou, meu colega não observou queuma senhora idosa estava embarcando, então, sentou no banco e olhou para mim comaquele ar de superioridade e fazendo gestos zombando por eu continuar em pé. Foi aí que opolicial pegou em seu ombro e levantou-o, dizendo que se levantou para ceder lugar para a

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senhora que estava entrando, então com aquele olhar sem sal e nem açúcar meu colega me viuexplodindo de riso que durou dias, sem contar no momento em que estava escrevendo essaestória sozinho. Como se não bastasse, chegando à universidade, ele em vez de andar pelacalçada e respeitar a placa “não pise na grama” foi se deslocar de um prédio para a bibliotecaque não sabíamos onde ficava, pisou na grama, mas não havia só grama havia uma poça delama. O nível da lama conseguiu alcançar seu calcanhar, foi o cúmulo para um dia.

A universidade já parecia tão perto, minha rotina continua, meus professores tanto docursinho como da escola estavam empenhados para ver-nos lá. Não posso deixar de dizerque fazia anos que nenhum aluno daquela escola passava no vestibular, mas tive a sorte depoder contar naquele ano com professores novos e que estavam dispostos a ajudar, meuprofessor de geografia estudava comigo no cursinho para fazer um concurso do governo, asaulas do cursinho eram discutidas na sala.

Um mês antes da primeira fase do vestibular, abriram-se vagas para cursos técnicosprofissionalizantes do Estado, era uma chance para ver como eu estava em termos de conhe-cimento, pois quem elaboraria as provas seria a UNIFAP, eu achava que faria a prova semchances, além do mais a concorrência era maior do que a do vestibular. Felizmente passei.

Nessa época, eu já tinha deixado a bolsa, pois terminei o ensino médio, e o vestibularatrasou como de costume. Matriculei-me no curso técnico e comecei a estudar pela manhã,escolhi para o curso de graduação o turno da tarde. A luta para passar continuava, só queagora eu estudava na capital pala manhã e fazia o cursinho à noite.

Fiz então a prova da primeira fase, não achava que passaria em décimo primeiro.Quando vi o resultado me animei e levei bem mais a sério o último mês de preparação paraa segunda fase.

Na primeira prova da segunda fase eu amanheci meio gripado, pois no sábado à noitetinha ido para uma brincadeira na casa de um irmão da congregação, e voltei debaixo dechuva, mas felizmente nada que me pudesse prejudicar. Então, fiz as duas outras provas nosdias seguintes.

Antes de sair o resultado da segunda fase, mencionado acima, consegui meu primeiroemprego de carteira assinada, monitor de alarmes de segurança.

Trabalhava uma noite e folgava outra, no dia de sair o resultado da prova eu estaria deplantão, pegaria o plantão às sete da noite e o resultado saíra alguns minutos para as seis datarde. Enquanto todos comemoravam em casa tive que pegar o ônibus e ir para Macapátrabalhar numa sala sozinho.

Meu sacrifício estava recompensado. No entanto, começava outro, tentar terminarmeus dois cursos e trabalhar, consegui por três meses trabalhar e estudar ocupando todos osturnos disponíveis.

O curso de Matemática sempre foi um sonho, mas depois de conhecer a estrutura docurso me desanimei um pouco principalmente por alguns professores sem responsabilidadecom a educação dos acadêmicos, no entanto nessa fase dos estudos fui selecionado para serbolsista do Conexões o que possibilitou conhecer melhor outros colegas de cursos possibi-litando uma outra visão de que não era só eu quem estava naquela situação.

Houve momento que eu passava três noites apenas em casa e o restante da semana naUNIFAP, no curso técnico ou no trabalho, a maior parte do tempo em Macapá. Se eupegasse plantão na segunda, só voltava para casa na terça à noite.

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Saía de casa na segunda de manhã e ia para o curso técnico, terminando, tinha quecaminhar meia hora até a casa da minha irmã para almoçar e uma e meia da tarde está naUNIFAP, às sete da noite estaria trabalhando de plantão, no dia seguinte meu patrão manda-va me levar para o curso técnico, para depois ir a UNIFAP e então voltar para casa paracompensar a noite de sono, porque no outro dia tinha de estar pronto para começar tudonovamente.

Não era nem um pouco fácil, havia além do cansaço, os trabalhos de ambos os cursospara fazer. Não foram poucas às vezes que pensei em desistir de algum deles.

Agradeço àqueles que estiveram do meu lado me apoiando e especialmente à minhaprincesa.

Hoje, como bolsista, posso ter um pouco mais de sossego no que diz respeito a preo-cupação de um novo emprego, pois o programa está cumprindo seu lado social de melhorara qualidade de vida dos estudantes por meio da possibilidade de auxiliar na permanênciadestes na universidade. Espero que os que darão continuidade ao programa possam desfrutá-lo como eu o desfruto.

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* Graduanda em Geografia pela UNIFAP.

Relembrar o passado não é tarefa muito simples, temos tantas lembranças arquivadasem nossas memórias que relatá-las torna-se algo surpreendente e enriquecedor.

Neste momento, estou sentada na cozinha de minha casa e pela primeira vez rabiscosobre as minhas memórias e penso nas experiências marcantes que jamais apagarei do meupensamento.

É com muita saudade que lembro de minha infância, uma etapa tão importante emnossas vidas, onde preocupamo-nos apenas com a alimentação e com as brincadeiras. Tudoparece tão simples, somos tão indefesos e ao mesmo tempo tão fortes, pois enfrentamosmuitas dificuldades junto de nossas famílias, mas sem compreendê-las muito, sei que nãonos parecem graves. Daí a importância familiar em repassar-nos segurança quando crianças.

A minha história de vida teve início em 1980 com o casamento dos meus pais nointerior do Pará. Apenas com a 3ª série do ensino fundamental, casaram-se novos e cheios desonhos, porém, com o nascimento de minha irmã começaram a surgir os obstáculos. Papai seencontrava desempregado, e o sustento da família somente foi possível com ajuda dosparentes e vizinhos. Depois de algum tempo vivendo assim, ele conseguiu trabalho comoextrativista, foi quando as coisas pareciam que começariam a melhorar.

Passaram-se 3 (três) anos e mamãe engravidou de mim, nossa condição econômica nãoera das melhores, pois o que papai recebia mal dava para cobrirmos as dívidas que tínhamoscom o dono da mercearia.

Devido a isto e a outros problemas, meus pais resolveram vender o pouco que adqui-riram no decorrer dos anos em Gurupá-PA, para tentarmos a “sorte” no Estado do Amapá. Aochegarem em Macapá, pensaram que nossas vidas iriam mudar rapidamente e que nãoteríamos de enfrentar tantos desafios. Foi somente com a ajuda da irmã de meu pai queconstruímos nossa casa em uma invasão, hoje conhecida como Bairro dos Congós.

Meus pais conseguiram emprego, papai como moveleiro e mamãe como lavadeira,minha irmã estava com 6 (seis) anos e começou a estudar na primeira escola construída nobairro, foi quando mamãe ficou grávida do meu irmão e o sonho do meu pai em ter um filhohomem acabara de torna-se concreto.

Meus irmãos e eu sempre estudamos em escolas da rede pública, nunca tivemos pla-nos de saúde e principalmente dinheiro para passearmos nos finais de semana.

Nossos brinquedos eram doados, mas isso nunca fez com que o sorriso desaparecessede nossas faces, éramos humildes, mas muito felizes.

Vera Lúcia Vieira Cardoso*

Memórias de minha vida

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Recordo-me das vezes em que minha irmã e eu ajudávamos nossa mãe a lavar roupase a servir de babá, para comprarmos os materiais pedidos na escola.Tantos foram os diasem que vi mamãe chorar por não ter condições de nos ajudar, isto me deixava muito triste,mas adquiri força para me dedicar aos estudos para, quem sabe um dia, modificar aquelecenário.

A situação ficou mais complicada quando minha irmã e eu tivemos que estudar nocentro da cidade, pois as escolas do bairro só atendiam até o Ensino Fundamental. Nãotínhamos como pagar as passagens de ônibus. Graças a Deus consegui uma bolsa trabalhoque me ajudou a resolver essa questão.

O ano 2004 significou muito para mim, eu estudava pela manhã, era bolsista à tarde eestudava à noite no único cursinho gratuito do Estado do Amapá, conhecido como Funda-ção Desafio Amazônico.

Neste ano eu queria alcançar um grande objetivo, vencer o fantasma do vestibular, e porvárias vezes pensei que não conseguiria realizar este sonho. Resolvi montar um grupo deestudo, composto por 5 (cinco) rapazes e 1 (uma) moça que era eu. Éramos bastantes distintos,tínhamos sonhos diferentes, no entanto com um objetivo em comum o de nos tornarmosacadêmicos da Universidade Federal do Amapá-UNIFAP.

Os meninos me ajudaram a compreender as inúmeras fórmulas de Matemática e Física,incentivavam-me a ler revistas, jornais e livros, a debater, a tirar dúvidas com os professorese a dialogar com minha família.

Foi nesta ocasião que fiz, no mês de novembro, o processo seletivo para Técnico emTurismo no Centro de Educação Profissional do Amapá-CEPA, quando o meu nome foidivulgado fiquei muito feliz, pois sabia que teria condições de passar no vestibular. Emdezembro concluí o 3º ano e o estágio do qual fazia parte, agora tinha todo tempo paraestudar apenas para a realização do meu sonho.

Em janeiro de 2005, fiz a 1ª fase do vestibular e passei em 30º lugar, no curso de Geografia,minha grande paixão, mas faltava ainda ultrapassar mais uma barreira, a conhecida 2ª fase.

Então, chegou o grande dia, fui fazer a prova muito nervosa e tensa, logo o medocomeçou a tomar conta de mim, mas fechei os olhos e comecei a rezar, neste momento Deusme iluminou e fiz uma ótima prova.

Quando o resultado foi divulgado, o meu coração parecia que iria saltar pela boca,minhas pernas tremiam e não conseguia parar de chorar. Essa emoção jamais será apagadade minha memória, pois pela primeira vez um membro da família Cardoso ingressara naUniversidade. Naquele momento, não pensei nas dificuldades que teria de enfrentar parapermanecer na mesma.

Hoje, com 20 anos, terminei o curso Técnico em Turismo e luto todos os dias parapermanecer na Academia, pois muitas são as barreiras que tenho de ultrapassar, não é fácilpermanecer na Universidade, mas não posso aumentar o índice de jovens de origem popularque não conseguem o diploma de nível superior por inúmeras razões. Quero mostrar-mecapaz de vencer e poder dizer para os meus futuros alunos, que todos somos capazes, desdeque tenhamos força e coragem para tentarmos melhorar a nossa realidade.

Estou cursando o 3º semestre e no começo senti muitas dificuldades, pois não meidentificava com nada, tudo era muito diferente, esperava algo parecido com as aulas dadasno ensino médio, só agora comecei a entender e a perceber a importância do curso deGeografia em minha vida.

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Neste momento, só penso em como vou permanecer até o final de meu curso naUNIFAP, pois mesmo com ajuda de minha família os obstáculos tendem a aumentar, devi-do a vários fatores.

Com o ingresso no Programa Conexões de Saberes, a situação na qual me encontravacomeçou a melhorar, pois além da bolsa que ajuda a custear os materiais também amplioumeu conhecimento e acredito que novas portas se abrirão para mim.

Só tenho que agradecer a Deus, por tudo que tem me proporcionado, pois no corre-corre de nossa vida diária, esquecemo-nos tantas vezes de agradecê-lo, aos meus pais queconfia-ram em mim, dando-me créditos para acertar ou errar e impulsionando-me a superartantos obstáculos, e aos que me deram a oportunidade de fazer parte da família Conexões deSaberes da UNIFAP, que está me possibilitando realizar o meu grande sonho, através deoportunidades que me pareciam impossíveis.

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* Graduando em Matemática pela UNIFAP.

Quem sou hojeSou universitário, faço o curso de Licenciatura Plena em Matemática, tenho 20 anos.

Estudo na UNIFAP, onde ingressei no ano de 2005. Mas para subir este degrau em minhavida tive que ultrapassar várias barreiras, preconceitos, humilhações (as quais assolam opsicológico de qualquer pessoa) e limites do corpo humano. Para conhecermos estes fatosvamos realizar um “flash back” da minha vida. Então vamos lá...

Ensino fundamentalO primeiro contato com o lápis e o caderno (de fato...).Bom... o contato de fato com a escola foi aos 6 ou 7 anos na 1ª série, neste período eu

não tinha a mentalidade de afirmar o que seria profissionalmente (assim como outras crian-ças). Com isso, o meu cotidiano era bem descontraído, pois durante esta fase escolar nãohavia muito com que preocupar-me, estava sempre divertindo-me com meus amigos, comopor exemplo, jogando bola, e até mesmo quebrando janela, mas era sem querer. E foi assimaté a 4ª série. Da 5ª em diante, só dor de cabeça com os estudos, a fase cheia de turbulências.

Neste período, meu pai cobrou-me pelos estudos, ou melhor, sempre exigia as melho-res notas da turma, devido a ele sempre querer meu bem. Com toda a franqueza, se não fossepor ele, receio que não estaria aqui hoje, não seria o que sou atualmente. Por esta razão,agradeço, primeiramente, a ele pela importância marcante em minha vida.

Sim... apesar de enfrentar inúmeras dificuldades consegui concluir a 4ª e 5ª séries.Com toda sinceridade, sentia dificuldade em compreender os assuntos principalmente osda 5ª série, suponho que o problema não era comigo, era na verdade com os professores,pois sabiam para eles, aliás, muitos não conseguiam repassar o conhecimento para o aluno,não davam aquele entusiasmo para estudar.

Quando cheguei à 7ª série, tive a honra de ser aluno do professor Francisco, o qualministrava aulas de Matemática. Foi ele que me incentivou a estudar a matéria de Cálculo;costumava dizer o seguinte: “se você não gosta de uma matéria, não adianta estudá-la porhoras e horas, basta estudá-la alguns minutos por dia”. A princípio, não acreditei muitonesta história. Mas com o passar do tempo fui refletindo sobre esta frase - eu não gostava deMatemática - e resolvi fazer este teste.

Mais que um relatoWesley Furtado Lopes*

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Todos os dias eu pegava o livro e estudava. No decorrer de um certo período, fuigostando da matéria, até que chegou um momento em que eu comecei a amar Matemática.Nas avaliações só tirava acima de 8 pontos. Passei com facilidade na 7ª e 8ª séries, poisnesta última, também, o Francisco foi meu professor, graças a Deus... e assim, conseguiconcluir o meu ensino fundamental com chave de ouro. Porém, ao chegar no ensinomédio foram só tristezas...

Ensino médioO momento de desespero... Acredito que este período tenha sido um dos mais difíceis de minha vida, pois passei

por “n” dificuldades as quais irei abordar no decorrer deste memorial.Ao concluir o ensino fundamental, fui tentar uma vaga no Colégio Amapaense, que

fica no centro da cidade. Recordo que para conseguir isto acabei dormindo no mesmo, poiseram muitas pessoas para poucas vagas. Mas tudo acabou dando certo.

No início das aulas estava entusiasmado para estudar, devido ao incentivo do profes-sor Francisco. No primeiro ano, porém, comecei a analisar a metodologia adotada pelosprofessores e me decepcionei. Eles eram apenas mais uns licenciados para dar aula. Comtoda franqueza, só queriam ganhar o seu dinheiro no final do mês.

Acabei deixando os estudos de lado (creio que não seja preciso dizer a razão), e quandochegava o dia das avaliações eu puxava do bolso um “lembrete”, se é que você me entende.

Além disso, tive de enfrentar um grande obstáculo - a distância. A distância entre aescola e a minha casa, pois no início do primeiro ano do ensino fundamental mudei decasa. Fui morar no bairro Jardim Felicidade I e a minha escola ficava no centro de Macapá.Com isso, pelo fato da minha família ser um pouquinho grande (8 pessoas), comecei a irpara a escola de bicicleta. O trânsito e o Sol escaldante eram grandes problemas. Certa vezestava descendo uma ladeira e bem no final havia um carro estacionado e quando passeibem ao lado (neste exato momento) o motorista resolve abrir a porta e a mesma mederruba no chão, fiquei com o rosto ensangüentado. Em suma, terminei com uma cicatrizem meu rosto. Mas eu não desisti, continuei indo de bicicleta para a escola.

Para concluir o ensino médio, “comi o pão que o diabo amassou” e um pouco mais.Contudo, passei no 1º, 2º e 3º anos com muito esforço e um pouco de suor.

Após ter concluído os meus estudos (ensino fundamental e médio), prestei vestibu-lar para a UNIFAP (Universidade Federal do Amapá). A inscrição no processo seletivo foide graça por ter sido aluno da rede pública. No momento da prova, senti que um ano deminha vida estava sendo perdido, devido não ter levado os estudos muito a sério. Apósalguns dias, o resultado da primeira fase saiu e... não passei... desconjuro!!!. Confesso quefiquei extremamente chateado. Mas... bola para frente como diz a música:

“toda pedra na caminhovocê pode retirar,numa flor que tem espinho você pode se arranhar...é preciso saber viver”.Roberto Carlos e Erasmo Carlos

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A vida de um vestibulando...Após alguns dias, escutei o meu cunhado falar que um cursinho aprovou mais de

300 calouros na UNIFAP em seu último vestibular (o qual eu havia feito), e ele ainda eragratuito. Sem pensar duas vezes falei: “é neste barco que vou”. Ele ficava próximo de casae eu nem sabia. Semanas depois fui fazer a minha matrícula (não me recordo o período). Asaulas iniciaram; é ótima a equipe de professores. Sempre estimulando os alunos a estudar.O nome deste cursinho tem muito a ver com o vestibulando, chama-se Desafio. Se nãocontasse com esta ajuda, talvez não estivesse onde estou. Sinceramente, logo no iníciodas aulas não estava muito entusiasmado para estudar. Porém, comecei a escutar os con-selhos dos professores. Havia um que dizia o seguinte: “você aceitaria fazer um curso denatação por correspondência? Lógico que não. O mesmo ocorre com os estudos, tem quepartir para a prática, não adianta ficar só observando. Havia momentos em que ficavarefletindo sobre isto, até que me perguntei “o que eu tenho a perder? Nada. Na verdade,teria muito a ganhar”. Então, comecei a devorar os livros, os cadernos que haviam em casa.No momento das aulas, ficava bastante concentrado, anotava tudo o que os professoresescreviam e falavam.

Com isso, fui adquirindo o domínio de observar, analisar, criticar os fatos, que ocorre-ram e ocorrem em nosso cotidiano.

Além disso, quando estudava até de madrugada, meu pai brigava comigo.Mas quem ficava realmente chateado era eu, pois queria que ele me estimulasse para

alcançar os meus objetivos. Certa vez, estava assistindo televisão na sala e de repente eleficou me olhando e perguntou-me: “Tu achas que tens alguma chance entre milhares depessoas?”. E então falei: “lógico”.

Imagine, você saber que nem seu próprio pai acredita em você.Só para mostrar a ele o contrário, dobrei, tripliquei o tempo e qualidade dos meus

estudos. Acredito que o que me fez tomar essa decisão foi aquela história: “Há certas críticasque em vez de te derrubarem, te dão mais força para continuar na batalha”.

Recordo-me que uma vez houve “corujão” no Desafio, cujo início seria às 21h e seestendeu até as 5h da manhã. E eu estava lá; fui para quebrar mais estes obstáculos: fome,cansaço e sono. Aliás, eu gosto disto, de ultrapassar as barreiras que me impedem de con-quistar o que almejo para meu futuro. Fiquei lá, firme, apesar de estar com os olhos secruzando de sono. Consegui chegar ao fim do “corujão” e fui para casa de madrugada. Otrecho era muito perigoso para aquele momento, mas cheguei em casa muito bem e caí nacama de cansaço.

Chega o momento de saber se estava preparado ou não; de saber quem me apoiava,quem estava ao meu lado. O meu pai não acreditava muito em mim, mas me desejou boasorte. O vestibular da UNIFAP tinha duas fases: a primeira era objetiva e a segunda discursiva.Fui fazer a primeira, consegui resolver todas as sessenta questões. Confesso que estava umpouco nervoso, mas deu tudo certo. Apesar do cansaço e da fome, terminei a prova com acerteza de que dei o meu melhor. Sem perder tempo, fui logo me preparando para a segundafase, continuando no mesmo ritmo de estudos. Abrindo um parênteses, acredito que a fasemais difícil do vestibular é a primeira, pois o aluno deve analisar questão por questão. Issonão ocorre na segunda fase. Nesta, ele dá a sua opinião sobre determinado assunto, mostrao seu modo de pensar.

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Algumas semanas depois, o resultado da primeira fase saiu e todo aquele esforço, todaaquela garra para estudar, toda aquela superação de limites: cansaço, fome etc. valeram apena, pois consegui passar para a segunda fase e esta já estava garantida, devido ao comen-tário que fiz anteriormente.

Agora, eu não poderia desistir, era seguir em frente sem olhar para trás, sem saber sepassaria ou não. Não demorou muito para chegar a segunda fase, mas estava preparadíssimopara o momento final. Ela, pelo menos eu acredito, foi a mais fácil. O que pesou um poucofoi o primeiro dia, pois tinha redação, língua portuguesa e literatura luso-brasileira e escrevimuito. Resolvi todas as questões da prova, não deixei uma em “branco”.

Cheguei em casa, descansei um pouco e fui estudar para o dia seguinte, por incrívelque pareça, “varei” a madrugada. No segundo dia de prova continha Biologia, História eQuímica. Confesso que estava um pouco cansado, porém analisei cada enunciado e deiaquela devida resposta, terminei com a certeza de vitória.

As horas se passaram e o terceiro dia de avaliação chega e desta vez Física, Matemáticae Geografia. Estavam um pouco difíceis, mas como disse anteriormente é só seguir o racio-cínio lógico e expor suas idéias e foi assim que eu analisei, observei os dados e responditodas as questões mesmo estando certas ou erradas.

Agora, era só esperar o momento da verdade. As horas se passavam e minha angústiaaumentava; foram dias e semanas de espera. Estava ansioso para saber o resultado dovestibular, se havia conseguido alcançar os objetivos aos quais almejava para minha vidaprofissional.

O dia “D” chegou; o listão do vestibular 2005 da UNIFAP sai. Eu vi o resultado pelatelevisão, mas estava sozinho em casa, a minha família estava trabalhando. No momentodo listão do curso de Matemática fiquei nervoso, pois era o momento de saber se ia chorarde alegria ou de tristeza, se havia escolhido bem as peças do xadrez. E a cada nome lidoas esperanças desapareciam, até que chama... Uellinton! Mas não era o meu nome; eraapenas um parecido. Alguns nomes depois deste... até que enfim saiu o meu: WESLEYLOPES! Fique muito feliz.

Em seguida, chegou a minha família para comemorar junto a mim. Sabem onde foia comemoração? Lá no cursinho, no Desafio. Aquela noite foi a mais feliz da minha vida.E ficará para sempre na memória.

E esta foi a minha história, minha batalha para chegar até aqui na universidade, aquina UNIFAP, onde ganhei uma bolsa para participar de um programa grandioso, o qual sechama Conexões de Saberes. Para mim, do fundo da alma é uma honra estar inserido nele,pois é isto que estou precisando: aumentar minha gama de conhecimentos, melhorar aforma de ver o mundo, as pessoas e os problemas que assolam a sociedade contemporânea!