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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA INSTITUCIONAL BEATRIZ CYSNE COIMBRA RELAÇÕES DE TRABALHO EM UMA UNIVERSIDADE: ATIVIDADE DOS SERVIDORES TÉCNICO-ADMINISTRATIVOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO VITÓRIA 2014

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE ...repositorio.ufes.br/bitstream/10/2945/1/tese_7859_Beariz Cysne.pdf · Ufes. AGRADECIMENTOS A realização deste sonho foi percorrida

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA INSTITUCIONAL

    BEATRIZ CYSNE COIMBRA

    RELAES DE TRABALHO EM UMA UNIVERSIDADE: ATIVIDADE DOS SERVIDORES TCNICO-ADMINISTRATIVOS DA

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO

    VITRIA 2014

  • BEATRIZ CYSNE COIMBRA

    RELAES DE TRABALHO EM UMA UNIVERSIDADE: ATIVIDADE DOS SERVIDORES TCNICO-ADMINISTRATIVOS DA

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Psicologia Institucional

    do Centro de Cincias Humanas e Naturais

    da Universidade Federal do Esprito Santo

    como requisito parcial para a obteno do

    Grau de Mestre em Psicologia Institucional,

    na rea Subjetividade e Clnica.

    Orientadora: Profa. Dr. Maria Elizabeth

    Barros de Barros.

    VITRIA 2014

  • BEATRIZ CYSNE COIMBRA

    RELAES DE TRABALHO EM UMA UNIVERSIDADE: ATIVIDADE DOS SERVIDORES TCNICO-ADMINISTRATIVOS DA

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia

    Institucional do Centro de Cincias Humanas e Naturais da Universidade Federal

    do Esprito Santo como requisito parcial para a obteno do Grau de Mestre em

    Psicologia Institucional, na rea Subjetividade e Clnica.

    Vitria, 1 de julho de 2014.

    BANCA EXAMINADORA

    _________________________________________________ PROFESSORA DOUTORA MARIA ELIZABETH BARROS DE BARROS

    Universidade Federal do Esprito Santo Orientadora

    _________________________________________________ PROFESSORA DOUTORA DULCINEA SARMENTO ROSEMBERG

    Universidade Federal do Esprito Santo

    _________________________________________________ PROFESSOR DOUTOR RAFAEL DA SILVEIRA GOMES

    Universidade Federal do Esprito Santo

  • Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)

    Coimbra, Beatriz Cysne, 1965- C679r Relaes de trabalho em uma universidade : atividade dos

    servidores tcnico-administrativos da Universidade Federal do Esprito Santo / Beatriz Cysne Coimbra. 2014.

    110 f. : il. Orientador: Maria Elizabeth Barros de Barros. Dissertao (Mestrado em Psicologia Institucional)

    Universidade Federal do Esprito Santo, Centro de Cincias Humanas e Naturais.

    1. Trabalho - Anlise. 2. Clnica da atividade. I. Barros, Maria

    Elizabeth Barros de, 1951-. II. Universidade Federal do Esprito Santo. Centro de Cincias Humanas e Naturais. III. Ttulo.

    CDU: 159.9

  • Fonte: Foto produzida por Roberto

    1

    1 Todas as fotos nesta dissertao foram produzidas pelos servidores tcnico-administrativos

    participantes da pesquisa e foram utilizados nomes fictcios para denomin-los, por motivo de sigilo.

    Vis

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  • Da a tripla definio de escrever: escrever lutar, resistir; escrever vir-a-ser; escrever cartografar, eu sou um cartgrafo (DELEUZE, 2005, p. 53).

  • Fonte: Foto produzida por Eurico Quero-quero ( Vanellus chilensis;Aves; Charadriidae) espdriidaehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Ch.

    Aos servidores tcnico-administrativos da Universidade Federal do Esprito Santo.

    Quero

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    fes

  • AGRADECIMENTOS

    A realizao deste sonho foi percorrida pelo carinho e apoio de muitos coraes,

    fortalecendo-me e tornando mais leve e alegre a composio desta pesquisa.

    queles que foram parte sensvel desse trajeto, meus singelos agradecimentos.

    A Deus por ter iluminado meu caminho durante essa trajetria acadmica no me

    deixando desistir, apesar dos percalos inerentes ao processo de pesquisa.

    querida orientadora prof. Dr. Maria Elizabeth Barros de Barros pela confiana

    em mim depositada e por caminhar ao meu lado semeando conhecimentos e

    experincias inesquecveis com sua alegria e energia contagiante. Sem suas

    intervenes, seria impossvel a concluso desta pesquisa.

    Querida Josy Campos por sua contribuio e acompanhamento durante a

    realizao deste trabalho. Sem voc eu no teria conseguido.

    Aos queridos professores Dr. Rafael Gomes e Dr. Dulcina Rosemberg por

    fazerem parte desta Banca e por seus ensinamentos.

    Aos meus queridos filhos, Thiago e Yasmin, minha inspirao de vida, minha

    fora, que me apresentaram a existncia do mais puro amor que pode haver na

    vida.

    A minha querida me Lda, um exemplo de fora, coragem e determinao, que

    sempre me incentivou e no me deixou desistir deste sonho, mesmo quando

    parecia ser quase impossvel realiz-lo. Ao meu querido pai Norberto (in

    memoriam), pelos seus ensinamentos de vida.

    Ao meu amor, Luiz Guilherme, pela fora, incentivo e pacincia com minhas

    ausncias durante este percurso e por ter me mostrado a beleza das pequenas

    coisas da vida.

    querida Prof. Antnia Celeste pelo encontro de almas entre me e filha, por

    seu enorme corao, onde sempre cabe mais um, por seu carinho e amizade e

    pela acolhida durante todos esses anos de uma adorvel convivncia.

  • querida tia do corao,Prof. Inocncia Barcellos pelo carinho e pelas

    importantes intervenes em minha vida.

    Aos meus queridos irmos, Norberto e Gisele, pelo amor, companheirismo e

    incentivo nesta jornada. s irms do corao, mbar e Carmem Jlia, pelo

    carinho e amizade sincera durante esta convergncia de vidas.

    s filhas do corao, Gabriela, Iang Sol e Lidiane, um amor singelo e sincero em

    um adorvel encontro de almas.

    Ao meu querido amigo de f e irmo camarada, Antnio Srgio, por ter me

    sussurrado ao p do ouvido que possvel sonhar e me incentivado a ir ao

    encontro deste sonho.

    Ao querido amigo Ueberson, por ter entrelaado minhas mos e me apresentado

    o caminho da pesquisa.

    Aos queridos companheiros do PFIST/Nepesp, Luzimar Luciano, Ueberson

    Ribeiro, Jsio Zamboni, Janana Mariano, Janana Brito, Fbio Hebert, Danielle

    Vasconcellos, Cynthia Perovano, Juliana Valado, Clver Manolo, Ozilene, Jlia

    Alano, Tatiane Aguiar, Roberta Gaier, Martha Reisen, Amanda, Geane e

    Fernanda pelos ensinamentos, pelos adorveis encontros e pelas mediaes na

    minha vida durante esta jornada.

    Aos queridos colegas, Jsio Zamboni e Tatiane Aguiar Francisco, parceiros que

    me acompanharam durante o trabalho de campo produzindo um olhar

    estrangeiro, auxiliando-me a desvencilhar da pele de tcnico-administrativa

    durante a pesquisa.

    Aos professores do Mestrado, Maria Elizabeth Barros de Barros, Ana Lcia

    Coelho Heckert, Ana Paula Figueiredo Louzada, Rafael da Silveira Gomes,

    Heliana de Barros Conde Rodrigues, Gilead Marchezi Tavares, Leila Aparecida

    Domingues Machado, Maria Cristina Campello Lavrador e Luciana Vieira Caliman

    pelos ensinamentos.

    s queridas amigas, Ana Paula Mattedi e Luzimar Luciano, que, com um jeitinho

    meigo e determinado, sempre me incentivaram.

  • Aos queridos colegas do Mestrado, Ellen Honorato, Joo Jos Gomes, Paula

    Maria Valdetaro, Ivana Carneiro, Ana Cristina Segatto, Fernando Pinheiro,

    Anselmo Clemente, Rafaela Gomes, Janice do Carmo, Myrian Santiago, Lvia

    Pignaton, Ricardo Meneses, Thalita Calmon, Valeska Campos, Nathlia

    Domitrovic, Luiz Emil Theodor Wentz Neto (Teo) e Renata Junger, companheiros

    de jornada que me proporcionaram um grande aprendizado.

    Ao querido professor Valter Bracht, pelo incentivo ao estudo acadmico e por ter

    possibilitado a minha insero no grupo de estudos PFIST/Nepesp,liberando-me

    todas as segundas-feiras para participar dos encontros do grupo, os quais

    alimentaram minha alma e me proporcionaram muitos conhecimentos.

    querida professora Zenlia Figueiredo, Diretora do Centro de Educao Fsica e

    Desportos, pelo carinho e incentivo na realizao deste trabalho.

    Ao querido professor Amarlio Ferreira Neto, pelo incentivo ao estudo acadmico

    desde o incio da minha carreira administrativa na Ufes.

    companheira Marlene Ramos, colega querida, que muito me auxiliou no

    percurso preparatrio para a entrada no Mestrado, sempre com um sorriso no

    rosto.

    s queridas Snia Fernanda e Slvia, secretrias do Programa de Ps-Graduao

    em Psicologia Institucional, pelo carinho e amizade.

    Aos queridos amigos professores Rosely Pires, Sandra Soares e Felipe Quinto

    pelo carinho e incentivo.

    Universidade Federal do Esprito Santo pela oportunidade da realizao deste

    estudo.

    Aos servidores tcnico-administrativos da Universidade Federal do Esprito Santo

    e, em especial, aos sujeitos que participaram da minha pesquisa e auxiliaram na

    composio deste trabalho.

    Aos colegas do Centro de Educao Fsica e Desportos pelo carinho e torcida.

  • RESUMO

    Trata-se esta de uma pesquisa de interveno realizada com servidores tcnico-

    administrativos, da Universidade Federal do Esprito Santo, ocupantes do cargo

    de assistente em administrao, cujo objetivo principal foi analisar o trabalho sob

    o ponto de vista da atividade. A metodologia utilizada se baseou no referencial

    terico-metodolgico da Clnica da atividade, proposta por Yves Clot e seus

    colaboradores. Nesse percurso, a oficina de fotos foi utilizada como um

    procedimento de anlise da atividade. Para esse estudo foram tambm utilizados,

    como referncia de pesquisa, autores que postulam esse mesmo enfoque terico

    metodolgico. Articulando-se a estes, foram alados estudos de pesquisadores

    brasileiros que trabalham com a temtica nos campos da psicologia, da sade, da

    educao, das clnicas do trabalho, dentre outros. O grupo associado foi

    composto por 10 funcionrios de diferentes setores da Universidade, entre os

    quais, trs se dispuseram a fotografar cenas do cotidiano do trabalho. Tais fotos

    foram escolhidas, confrontadas e analisadas pelo grupo de trabalhadores. Os

    trabalhadores ao se confrontarem com as situaes de trabalho fotografadas

    viabilizaram um debate profcuo, conduzindo o grupo a pensar criticamente as

    atividades e os processos de trabalho que desenvolvem. A pesquisa indica que os

    trabalhadores procuram se reinventar e elaborar maneiras outras para enfrentar

    situaes de trabalho que os desafiam, buscando modos diversos de atuar, o que

    se faz a partir da ampliao do poder de agir.

    Palavras-Chave: Anlise do trabalho. Clnica da atividade. Poder de agir.

  • ABSTRACT

    This work is an interventional research conducted with the technical and the

    administrative staff of the Federal University of Espirito Santo who work as

    administrative assistants. The research aims at analyzing the work from the point

    of view of the activity. The methodology was based on the theoretical and

    methodological framework of the Clinic of Activity, proposed by Yves Clot and his

    collaborators. Along the way, a photo workshop was used as a procedure for

    analyzing their working activity. As a reference for this research, authors that

    postulate the same theoretical and methodological approach were also used.

    Furthermore, studies of Brazilian researchers working on the theme in the fields of

    psychology, health, education, clinical work, among others were articulated here.

    The associated group was composed of 10 workers from different sectors of the

    University, and three of them were willing to shoot scenes from their daily work.

    Photos were chosen, confronted and analyzed by these group of workers. When

    they were faced with the work situations photographed, they promoted a fruitful

    debate, leading the group to think critically about the activities and work processes

    that they perform. The research indicates that workers seek to reinvent and

    develop other ways to cope with work situations and that challenge them to search

    different ways of working, which is based on their expanding power of action.

    Keywords: Work analysis. Activity clinical. Power to act.

  • RSUM

    Il sagit dune recherche intervention ralise auprs des employs Techniciens en

    gestion de lUniversit Fdrale de lEsprito Santo qui occupent le poste

    dAssistants en Gestion. Le but principal de la prsente tude est danalyser le

    travail sous le point de vue de lactivit. La mthodologie utilise sest base sur le

    rfrentiel thorique/mthodologique de la Clinique de lActivit propose par

    Yves Clot et ses collaborateurs. Dans ce parcours lAtelier de Photos a t utilis

    comme un procd danalyse de lactivit. cette fin, ont t, galement utiliss,

    en tant que rfrence de recherche, des auteurs qui postulent cette mme

    focalisation thorique/mthodologique. En rapport avec ces derniers, on a exploit

    des tudes de chercheurs brsiliens qui travaillent la thmatique dans le champs

    de la psychologie, de la sant, de lducation, des cliniques du travail, parmi

    dautres. Le groupe associ tait compos de dix fonctionnaires de diffrents

    secteurs de lUniversit dont trois se sont disposs photographier des scnes du

    quotidien du travail. Telles photos ont t choisies, confrontes et analyses par le

    groupe de travailleurs. Les situations de travail photographies, a rendu possible

    un dbat profitable, menant le groupe penser, de faon critique, aux activits et

    aux procds de travail quils dveloppent. La recherche indique que les

    travailleurs essaient de se rinventer et de trouver dautres moyens de faire face

    aux situations de travail qui les dfient, cherchant de divers moyens de se

    comporter ce qui est fait partir de laugmentation de leur pouvoir dagir.

    Mot-Cl: Analyse de travail. Clinique de activit. Pouvoir dagir.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ................................................................................................. 16

    2 CAMPO PROBLEMTICO DA PESQUISA .................................................... 21

    2.1 DE QUE ATIVIDADE FALAMOS? ....................................................................... 24

    2.2 UM S FUNCIONRIO E MUITAS PRESCRIES ................................................. 29

    2.3 TORNAR-SE-SER FUNCIONRIO PBLICO ........................................................ 37

    3 UM ENCONTRO: TRAANDO ALGUMAS PISTAS ....................................... 43

    3.1 OFICINA DE FOTOS ........................................................................................ 49

    3.2 FOTOS: UM DISPOSITIVO PARA AN LISE DA ATIVIDADE .................................... 52

    3.3 OLHARES EM FOCO: ANALISANDO A ATIVIDADE ............................................... 56

    3.4 FOTOGRAFIAS: PRODUZINDO RESSONNCIAS ................................................. 62

    3.5 O PODER DE AGIR DOS TRABALHADORES O PROBLEMA DA UNIVERSIDADE O

    TCNICO-ADMINISTRATIVO? .......................................................................... 75

    4 UMA OUTRA FASE DA DEVOLUTIVA E VALIDAO DA PESQUISA ....... 83

    4.1 O REENCONTRO COM O GRUPO ASSOCIADO .................................................... 83

    4.2 UM REENCONTRO PRODUZINDO RESSONNCIA ................................................ 87

    4.3 NOVAS PICADAS SENDO DELINEADAS ............................................................. 91

    5 CONSIDERAES FINAIS ............................................................................. 94

    6 REFERNCIAS ................................................................................................ 98

    APNDICE A TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO .... 103

    ANEXO A DESCRIO DOS CARGOS DO PCCTAE .................................. 104

    ANEXO B DESCRIO DE ATIVIDADES TPICAS DO CARGO DE

    ASSISTENTE EM ADMINISTRAO .......................................... 108

    ANEXO C REIVINDICAES CONQUISTADAS APS GREVES NOS

    LTIMOS DEZ ANOS ................................................................... 109

  • Fonte: Foto produzida por Eurico A maior riqueza de um homem sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou eu no aceito. No agento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa vlvulas, que olha o relgio, que compra po s 6 horas da tarde, que vai l fora, que aponta lpis, que v a uva etc. etc. Perdoai. Eu penso renovar o homem usando borboletas (BARROS, 2010a, p. 374).

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  • 16

    1 INTRODUO

    Em um outono com um intenso cu azul, ventos fortes, mais aquecidos pela

    despedida do vero, promoviam uma dana frentica entre as rvores e seu

    assobio, que se misturava ao canto dos pssaros no CampusUniversitrio de

    Goiabeiras. Em meio a esse cenrio buclico uma pesquisa foi sendo delineada:

    Edna: Arquivo um negcio muito srio. Voc no pode descartar nada

    pela sua cabea como se fosse uma folha qualquer. Aquela folha

    assinada faz parte da histria do setor. Ento, teria que fazer uma

    classificao, criar uma tabela de temporalidade, selecionar permanente,

    temporrio e corrente todos os anos para no acumular.

    Selma: Na realidade, falta um funcionrio exclusivo para trabalhar no

    arquivo, ento, no tendo outra opo, tem que dar uma aspirada para

    voc entrar.

    Sumara: D-me vontade de chorar.

    Roberto: Primeiro vai ficar chateado porque no consegue encontrar

    nada. A, pega uma pasta e outra, porque no condiz com a realidade

    das caixas.Quando voc chega l, j est toda pinicando, pega a pasta e

    a deixa sobre a mesa e fala assim: um dia desses, tarde, eu vou dar

    uma olhada para ver se acho o documento. Ou seja, vai ser uma caixa

    de quinze em quinze dias.

    Edna: Para economizar trabalho l na frente, voc tem que se dispor a

    arrumar aquilo ali e ficar um tempo alm do seu horrio de trabalho. Foi

    o que eu fiz. Foram duas semanas saindo alm do meu horrio para

    poder organizar aquilo ali. O que facilitou para todo mundo.

    Selma: Ou ir diretamente chefia e dizer: Olha eu preciso de algum.

    Estes so excertos de dilogos dos trabalhadores tcnico-administrativos da Ufes,

    durante a anlise dos seus processos de trabalho, a partir de um olhar para uma

    foto. Uma tarefa de arquivamento de um documento gerou uma controvrsia

    demonstrando que cada trabalhador tem um jeito singular de exercer sua

    atividade, que no gesto mecnico, tambm criao, e cada sujeito imprime

    sua marca ao exerc-la. Seguindo os preceitos de Clot (2008), o coletivo de

    trabalhadores na clnica da atividade criado a partir do debate de opinies, das

    polmicas. Para o autor [...] a controvrsia a fonte do coletivo, no o contrrio.

  • 17

    No o coletivo sendo a fonte, mas a controvrsia sendo a fonte do coletivo

    (CLOT, 2008, p. 66).

    Esta pesquisa foi proposta no intuito de analisar o trabalho de servidores pblicos

    tcnico-administrativos da Universidade Federal do Esprito Santo (Ufes),

    ocupantes do cargo de assistente em administrao, sob o ponto de vista da

    atividade. Teve como propsito avaliar quais alianas foram entrelaadas por

    esses trabalhadores para lidar com imprevistos que se apresentam no mundo do

    trabalho diante do prescrito2 e as relaes compartilhadas no percurso do labor

    com vistas ampliao do poder de agir 3 , promovendo transformao no

    institudo em ambientes laborais. Para tanto, aliei-me ao aporte terico-

    metodolgico da clnica da atividade, proposta por Yves Clot e seus

    colaboradores, por acreditar que tal abordagem pudesse dar visibilidade ao liame

    inventivo do trabalhador. Empreguei o dispositivo imagtico recorrendo

    fotografia apresentada por Cludia Osrio e seu grupo de pesquisa para disparar

    a anlise coletiva das atividades dos trabalhadores, sob o ponto de vista da

    atividade.

    O primeiro captulo, inicialmente, discorre sobre minha trajetria como tcnico-

    administrativa na Ufes, desvendando como foi realizada a primeira insero no

    campo investigativo da pesquisa por meio da qual foi traado um panorama da

    situao dos tcnico-administrativos da Universidade. Em seguida, ressalta outro

    procedimento investigativo realizado por meio de conversas com os servidores e

    em seguida, salienta algumas questes referentes ao servidor pblico no Brasil.

    2Prescrio no trabalho um conceito da ergonomia criado por Alain Wisner (1994) considerado

    como tarefa, ou seja, o que definido pelas organizaes de trabalho para ser realizado pelo trabalhador. Para Telles e Alvarez (2004, p. 67) O trabalho prescrito inclui, portanto, dois componentes bsicos: as condies determinadas de uma situao de trabalho (as caractersticas do dispositivo tcnico, o ambiente fsico, a matria-prima utilizada, as condies socioeconmicas etc.) e as prescries (normas, ordens, procedimentos, resultados a serem obtidos etc.). 3[...] o conceito dePoder de Agir diz respeito atividade. A tarefa, por si s, no suficiente. At

    mesmo sob coao externa, o poder de agir se desenvolve ou se atrofia na caixa preta da atividade de trabalho. Ele avalia o raio de ao efetivo do sujeito ou dos sujeitos em sua esfera profissional habitual, o que se pode tambm designar por irradiao da atividade, seu poder de recriao (CLOT, 2010, p. 15).

  • 18

    O segundo captulo descreve a terceira insero no campo emprico efetivada por

    meio de cinco encontros com o grupo associado 4 , este formado por dez

    servidores tcnico-administrativos ocupantes do cargo de assistente em

    administrao da Ufes. No primeiro desses encontros foi feita a apresentao da

    pesquisa e escolhidos, pelo prprio grupo, quais trabalhadores iriam produzir as

    fotografias. No segundo encontro o grupo selecionou as fotografias que seriam

    utilizadas para a anlise. Nos demais encontros, foi realizada a anlise do

    trabalho por meio da atividade dialgica, mediante a oficina de fotos que, no

    decorrer deste trabalho, foi feita por todo o grupo recorrendo ao olhar para a

    fotografia em foco. Esse movimento permitiu que os trabalhadores discutissem os

    processos de trabalho, as relaes efetivadas no desenvolvimento da atividade,

    os modos de fazer a atividade laboriosa e de ser servidor pblico, antepondo o

    gnero a servio da ao, revelando a recriao estilstica do trabalhador. [...] o

    estilo participa da renovao do gnero, o qual, no limite, nunca se pode dar por

    acabado (CLOT, 2007, p. 40). Durante esse percurso, muitas histrias foram

    vivenciadas, produzindo outros modos de pensar a relao com o trabalho.

    Algumas sugestes foram suscitadas pelos trabalhadores e promoveram um

    fortalecimento do gnero profissional, evocando transformaes no trabalho que

    desenvolvem.

    O terceiro captulo refere-se a um momento de devolutiva e validao da

    pesquisa junto com o grupo associado, o que aconteceu quatro meses aps o

    ltimo encontro. Os sujeitos da pesquisa sabiam desse tempo que seria

    empregado para a anlise e a escrita da pesquisa porm, s vezes, quando me

    deparava com alguns deles no campus universitrio, eles verbalizavam que

    sentiam falta das nossas conversas. Esclarece, primeiramente, como a devolutiva

    da pesquisa foi desenvolvida junto com os trabalhadores em cada um dos

    encontros com um olhar para as fotografias produzidas, o que gerava debates

    que geravam controvrsias sobre o viver-trabalhar. Em seguida, por meio de

    4 Grupo Associado Grupo de trabalhadores que participaram da pesquisa. Clot (2007, p. 136)

    denomina de [...] meio associado que o coletivo que remete ao trabalho de anlise e de co-nalise.No caso desta pesquisa o grupo associado foi formado por dez servidores tcnico-administrativos.

  • 19

    relatos dos trabalhadores sobre as formas de enfrentar os desafios que lhes so

    impostos, evidencia sinais da ampliao do poder de agir desses trabalhadores, o

    sentido que o trabalho tem para cada um deles e as formas engendradas para

    lidar com o imprevisto que se anuncia no dia a dia do labor.

    Este estudo foi marcado por dilogos entre pesquisador e os servidores que se

    dedicaram a conversar sobre o trabalho dos servidores tcnico-administrativos da

    Ufes. A direo metodolgica escolhida possibilitou analisar o trabalho

    considerando o modo singular como o trabalhador atualiza a atividade em uma

    experincia. Como indicam Barros, Passos e Eirado (2014), tomar o trabalho

    como atividade obriga a uma aposta metodolgica em que a pesquisa e a

    interveno no se separam. Ao retomarmos a mxima socioanaltica no

    conhecer para transformar, mas transformar para conhecer a realidade

    entendemos que investigar a experincia em sua potncia ontogentica (criao e

    modificao da realidade) desafia o pensamento a superar o modelo da

    representao, apostando no carter criador de uma pesquisa. Conhecer no

    representar a realidade de dado objeto, mas lanar-se em uma experincia de

    criao de si e do mundo. Nesse sentido, conhecer a experincia do trabalho,

    requer que se faa do trabalho de pesquisa uma escuta da experincia do

    trabalho, uma pesquisa pensada no a partir do modelo da representao

    (BARROS; PASSOS; EIRADO, 2014).

  • 20

    Fonte: Foto produzida por Eurico

    da vida que se trata, do arrepio que percorre a pele, do olhar que vagueia por outros sons, do ouvido que escreve outras palavras, das mos que sentem a textura de outras paisagens (LEILA DOMINGUES, 2010).

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  • 21

    2 CAMPO PROBLEMTICO DA PESQUISA

    A proposta desta pesquisa emerge de minha atividade profissional como

    servidora tcnico-administrativa da Ufes, ocupando cargo de administradora

    porm, exercendo por vinte anos a funo de secretria administrativa do Centro

    de Educao Fsica e Desportos (CEFD) da supracitada Universidade.

    Ao longo desses anos como servidora federal, recordo de muitas histrias que

    podem ser contadas: conflitos polticos ocorridos na Universidade, amizades

    duradouras, casamentos desfeitos, vidas reconstrudas, colegas que se

    aposentaram, colegas que chegaram, passagem de cinco diretores pelo CEFD,

    enfim, uma vivncia construda a partir das situaes mais comezinhas aos

    eventos pungentes. Entretanto, h um fato que tem se tornado marcante e

    recorrente: a insatisfao e o desnimo de vrios colegas tcnico-administrativos

    em suas diferentes funes, sobretudo, os servidores com mais tempo de servio

    na Ufes. comum esses servidores comentarem que no se importam com o que

    se passa na instituio, que a eles o que realmente interessa o salrio no final

    do ms e, ainda, criticarem aqueles que trabalham com maior dedicao.Diante

    desse cenrio, fui convocada a pensar como tais relaes tm se produzido e o

    que tem contribudo para o desinvestimento dos servidores tcnico-

    administrativos no trabalho. Encontrei nesse panorama o elemento propulsor para

    o desenvolvimento desta pesquisa afinal, no so casos pontuais e particulares

    de servidores, mas uma tendncia marcante de uma parcela significativa da

    categoria. Assim, ciente de minha preocupao com as condies de trabalho e

    sade do funcionrio tcnico-administrativo da Ufes, um amigo e ex-aluno do

    curso de Educao Fsica da Ufes, convidou-me para participar do Programa de

    Formao e Investigao sobre a Sade do Trabalhador (PFIST) do Ncleo de

    Estudos e Pesquisas em Subjetividade e Poltica (Nepesp) ligado ao Curso de

    Psicologia da Ufes e coordenado pela prof. Dr. Maria Elizabeth Barros de

    Barros.

  • 22

    Ingressei no PFIST/Nepesp no primeiro semestre de 2009, a princpio fazendo

    parte de um grupo de estudos sobre a obra de Michel Foucault. No segundo

    semestre do mesmo ano juntei-me, de fato, ao grupo de pesquisa. Fiquei muito

    entusiasmada, pois se tratava de um grupo potente marcado pela diversidade,

    composto por profissionais de diferentes reas, estudantes de iniciao cientfica,

    mestrandos e doutorandos e, ainda, por outros pesquisadores que j haviam

    passado por ali e voltavam para dar continuidade s pesquisas.

    Celebramos bons encontros todas s segundas-feiras, sempre preenchidos pelo

    nimo das conversas e o cheirinho do caf da manh. Os lanches compartilhados

    eram um mote-contnuo de estmulos pesquisa. Como prazeroso rememorar

    as aulas da Heliana Conde sobre O careca ( como ela apelida Michel

    Foucault), realizadas na Associao de Docentes da (Adufes), mas s vezes

    tambm na casa da Juliana Valado e Ana Segatto, as laranjas do quintal da

    Jana Brito, descascadas pelo Jsio (o nico que conseguia descasc-las sem as

    ferir), enquanto discutamos o trabalho a partir da clnica da atividade

    protagonizada por Clot e colaboradores do seu grupo de pesquisa no

    Conservatoire Nationale des Arts et Mtiers de Paris (CNAM)

    Eram encontros permeados pelas intervenes sempre bem vindas de Jana

    Mariano e Jsio Zamboni, pela serenidade de Luzimar e de Dulci, pelo estilo zen

    de Fbio Hebert, pela quiche de Ana Paula Mattedi e pelas panquecas de Rafael.

    Tambm no posso deixar de mencionar os encontros na casa de Jair para

    estudar a obra de Spinoza com Ricardo Teixeira, os cheiros e sabores

    maravilhosos dos almoos regados pluralidade das conversas engenhosas.

    Registro, ainda, o aprendizado que se podia capturar durante as qualificaes e

    defesas de mestrado e doutorado dos colegas e a fora e a sagacidade de Beth

    Barros que transformava uma simples interveno em uma notvel aula,

    deixando-me ainda mais entusiasmada. As idas Serra com o meu amigo

    Ueberson, com sua alegria e senso crtico, visitando as escolas para a entrega

    dos questionrios com o intuito de viabilizar a investigao sobre a sade dos

    docentes do municpio da Serra, o tema principal das nossas pesquisas no

  • 23

    PFIST. Tais caminhos percorridos contriburam sobremaneira no desenvolvimento

    deste trabalho de pesquisa.

    O meu primeiro encontro com a Ergonomia Francofnica e a Ergologia aconteceu

    quando assistia a uma aula ministrada pelos professores Beth Barros e Rafael

    Gomes para alunos do mestrado em Psicologia Institucional e para doutorandos

    em Educao. Foi nessa ocasio que me encantei com a abordagem de Yves

    Clot, psiclogo do trabalho e pesquisador do Conservatoire Nationale des Arts et

    Mtiers de Paris (CNAM) e Daniel Faita, a abordagem terico- metodolgica

    denominada Clnica da atividade, uma das clnicas do trabalho de linhagem

    francesa. Essa abordagem me indicava um caminho interessante para pensar as

    questes relativas ao trabalho que desenvolvamos na Ufes.

    A experincia adquirida diariamente com o grupo PFIST/Nepesp foi salutar ideia

    que se esboava em meus pensamentos. Ao estudar autores que at ento me

    eram desconhecidos, abriram-se novos espaos para o desenrolar desta

    pesquisa. Conhecer tericos como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Yves

    Schwartz, Georges Canguilhem, Baruch de Spinoza e, alm disso, conhecer as

    pesquisas na rea de sade do trabalhador desenvolvidas pelo referido grupo,

    influenciaram o percurso deste estudo.

    O objetivo posto foi, portanto, promover a anlise coletiva do trabalho sob o ponto

    de vista dos servidores tcnico-administrativos da Ufes, buscando conhecer as

    alianas tecidas por esses servidores ao enfrentarem os imprevistos que

    constituem qualquer realidade de trabalho; conhecer as formas de organizao e

    gesto do trabalho; analisar as relaes que se efetivam no desempenho das

    funes de servidores tcnico-administrativos, possibilitando a ampliao da

    potncia de agir dos trabalhadores com vistas transformao do seu trabalho.

    Foi empregada a fotografia, como dispositivo imagtico, para disparar o processo

    dialgico

    O momento de explorao, de sobrevoar o campo de pesquisa se efetivou a partir

    de uma conversa com a orientadora do trabalho, a qual sugeriu que a

    investigao fosse realizada em apenas um dos setores da Universidade, que foi

  • 24

    o Departamento de Ateno Sade. Era um momento de muita dvida, no incio

    da pesquisa, quando eu me perguntava a todo instante: qual caminho a ser

    trilhado? Como trabalham os funcionrios tcnico-administrativos da Ufes? Quais

    so os modos de gesto que esto em curso na instituio? Essas questes nos

    conduziram a alguns caminhos que relato a seguir.

    2.1 DE QUE ATIVIDADE FALAMOS?

    A Ufes possui um setor denominado: Departamento de Ateno Sade

    anteriormente denominado Secretria de Assuntos Comunitrios (SAC). Esse

    setor responsvel pelos servios de assistncia sade, nas reas de ateno

    e vigilncia sade e servio mdico e abriga tambm o centro de recreao. O

    servio de ateno em sade mental surgiu na SAC em 2006, quando duas

    psiclogas e uma psiquiatra foram contratadas via concurso. O servio social j

    existia anteriormente e o trabalho dessas psiclogas era de acolhimento e

    orientao a servidores e estudantes, bem como acompanhamento dos

    servidores afastados em licenas mdicas, atendimento individual e em grupo,

    controle dos exames peridicos e organizao de campanhas de sade.

    Entretanto, com o pagamento da sade suplementar pelo Governo Federal e a

    criao do Subsistema Integrado a Sade do Servidor (SIASS), os rumos do

    trabalho desse setor mudaram um pouco. A Ufes passou a ser unidade de

    referncia no Estado do Esprito Santo para os rgos federais em percia e, a

    partir disso, comeou a dar apoio aos peritos (orientaes, avaliaes e alguns

    acompanhamentos). Alm disso, foi instituda uma norma operacional em sade

    mental, que orientou a equipe a deixar de exercer o papel de assistncia, de

    atendimento propriamente dito, visto que o Governo Federal passou a pagar uma

    parte do plano de sade. Assim, assistncia sade dos servidores passou a ser

    realizada por meio do plano de sade, uma vez que estes so obrigados por lei a

    oferecerem 40 sesses anuais de psicoterapia.

    Aps a criao da Pr-Reitoria de Gesto de Pessoas e Assistncia Estudantil

    (Progepaes) e as mudanas na antiga SAC que, como j dito, passou a se

  • 25

    denominar Departamento de Assistncia Sade, duas psiclogas foram

    convidadas para assumirem cargos de chefia em outros setores e uma assistente

    social se afastou para licena mdica. Tais mudanas foram feitas de forma

    repentina e o servio hoje tem seu foco na promoo, preveno e apoio

    percia.

    A entrada no campo aconteceu a partir de uma conversa com as psiclogas e a

    assistente social do servio mencionado, dando incio primeira fase do processo

    investigativo. Tais profissionais, por pertencerem ao quadro da instituio locus da

    pesquisa, seriam informanteschave para que as questes relacionadas situao

    dos trabalhadores pudessem ser pesquisadas no sentido de transformar para

    compreender o atual estado de coisas na Universidade. Qual o estado da arte? O

    intento foi a aproximao com questes disparadoras que pudessemlevar

    anlise do trabalho pelos prprios servidores tcnico-administrativos em seu

    ambiente laboral.

    Essa conversa serviu de disparador e foi usada como orientao na construo

    do caminho da pesquisa. Os depoimentos das profissionais, ressaltados a seguir,

    foram, naquele momento, basilares, uma vez que levantaram questes-diretrizes

    importantes que se sobrepuseram a algumas inquietaes que me levaram ao

    mestrado,quais sejam: Como andam os processos de trabalho na Universidade?

    Que efeitos tm produzido? Como anda a sade5 dos servidores da Ufes ? Quais

    so suas demandas? Que estratgias tm sido criadas para lidar com as

    adversidades do trabalho nessa Instituio Federal de Ensino Superior?

    A Psicloga A, no dia 2 de outubro de 2014, concedeu o seguinte depoimento:

    No incio, os servidores tinham resistncia, vinham com certa

    desconfiana por conta da presena da junta mdica e por ser psicloga

    da Universidade, para no serem prejudicados. Depois, houve aumento

    da demanda, s que no uma coisa especfica, uma queixa do

    5[...] a sade um poder de ao sobre si e sobre o mundo, adquirido junto dos outros. Ela est

    ligada atividade vital de um sujeito, quilo que ele consegue, ou no, mobilizar de sua atividade pessoal no universo das atividades do outro; e, inversamente, quilo que ele chega, ou no, a utilizar das atividades do outro em seu prprio mundo. Portanto, se a sade encontra sua origem na preservao do que o sujeito se tornou, ela descobre seus recursos naquilo que ele poderia ter sido (CLOT, 2010, p. 111).

  • 26

    trabalho, so queixas diversas, inclusive do trabalho, que denominamos

    de poliqueixosos. s vezes o paciente vem com encaminhamento do

    mdico. [No meio da conversa ela comentou sobre sua sala mofada].

    Muitas vezes, reclamam pela falta de sentido no trabalho. Um exemplo

    so os funcionrios novos admitidos na Ufes para o cargo de auxiliar

    administrativo ou assistente em administrao, que um cargo de nvel

    fundamental e o servidor possui especializao. Isso para a

    Universidade muito bom por sua competncia e o mesmo consegue ter

    um bom salrio equiparado com o mercado, com estabilidade, mas com

    o tempo vai se cansar do trabalho que est fazendo, um trabalho

    repetitivo, burocrtico para uma pessoa que tem uma formao a mais.

    Alm disso, o quanto que a gente estimular ou permitir para ele daquilo

    poder haver desvio de funo, que outra complicao para a

    Instituio. A pessoa tem uma super qualificao para o trabalho que

    no exige aquilo dela, e se acomoda e, por outro lado, h uma

    insatisfao com a atividade que desenvolve. Ainda no conseguimos

    direcionar os cargos de nvel superior com as atividades. Estou numa

    funo temporria, tentando dar conta, e se pensar que ser

    permanente, tambm adoeo. Outra coisa que ouo dos servidores

    antigos que o que os mantm na Universidade so os colegas, eles

    conseguem fazer boas relaes, so poucos amigos que podem contar,

    mas tm uma relao bacana.

    A Psicloga B, no dia 24 de outubro de 2013, relatou:

    O servidor procura o servio psicolgico com reclamaes de

    adoecimento no trabalho relacionado chefia, que no deixa de ser

    tambm um processo relacionado ao trabalho. Entretanto, quando o

    servidor chega ao nosso servio porque j foi esgotada a questo com

    a chefia. No meu olhar, entendo que o trabalho fundamental nesse

    processo deles estarem falando do adoecimento. Lgico que muitas

    vezes enxergamos que h morbidade, questes familiares, ou individuais

    que influenciam tambm, mas o trabalho est intrnseco, faz parte desse

    sujeito e ele adoece. At na relao que constri com o trabalho, apesar

    de no considerar que seja somente o trabalho. Entretanto, existem

    muitos servidores que superam esse adoecimento e percebem que a

    melhora imediata quando muda de setor. Quando a pessoa tem que

    estar no setor, se reinventar, mudar a forma dela enxergar e lidar com a

    relao no trabalho, a o processo costuma ser mais longo. No meu olhar

    de psicloga, sinto que na Universidade o trabalho no tem sentido para

    muitas pessoas, e a falta de sentido no trabalho que traz o

    adoecimento. Muitas vezes as pessoas ficam aqui trabalhando por oito

    horas, e esse trabalho no tem sentido para ela e ela vai adoecendo.

    Discuto muito e falo: que trabalho esse que adoece, em vez de falar

    que a pessoa n cego... Ser que a gente no pode fazer uma anlise

    de outra maneira? Acho que a maioria das pessoas adoece porque o

    trabalho vazio de sentido. O funcionrio no tem a noo do papel dele

    ali, lgico, isso muito mais grave no tcnico-administrativo, mas

    vemos no docente tambm. s vezes o docente nos procura com

    problemas de relacionamento com os pares e chefias. muito distante

    para o tcnico, qual o valor do trabalho dele diante desta lgica da

  • 27

    Universidade, que tem uma desqualificao, sobretudo diante do

    docente. Somos todos servidores, mas acho que essa uma relao

    que foi criada l atrs, acho que no tem a ver com o hoje, pois os

    tcnicos que entram atravs de concurso pblico possuem uma outra

    postura e esto trazendo um outro tipo de problema. Voc tem um

    funcionrio super qualificado para um cargo de auxiliar em

    administrao, voc pega essa pessoa que possui doutorado e a funo

    tirar cpias xerogrficas, fazer memorando e quem produziu isso foi a

    lgica da sociedade, a lgica do trabalho. As pessoas esto fazendo

    qualquer concurso para garantir estar nesse local, ter um meio de vida.

    Elas entram felizes da vida, mas o dia a dia fica sem sentido e no

    permitido o desvio de funo na Universidade. No ltimo concurso

    passou um candidato psiclogo para trabalhar na creche, falamos: timo,

    a creche precisa de um psiclogo, mas ele passou para o cargo de

    assistente de creche, cuja funo trocar fralda, dar banho em criana e

    com o tempo ser da mesma forma. Sou crtica ao atendimento

    individualizado, que muito bom para o servidor que consegue ser

    atendido, mas pssimo para a Instituio como um todo. No momento o

    Servio possui trs psiclogos e se todo mundo atendesse 40 horas por

    dia, o que impossvel, atenderamos somente 40 servidores. O

    universo da Universidade abrange servidores tcnico-administrativos,

    docentes e discentes. Acredito que enquanto psicloga da Diviso a

    gente deveria fazer um trabalho preventivo nos setores, com outro tipo

    de abordagem. Sempre fui defensora do planto a semana toda, pois

    caso acontecesse alguma coisa pontual o planto ajudaria. Atualmente,

    os plantes ocorrem nas teras-feiras. Entretanto, a Universidade ainda

    possui um bom atendimento. Somente o Ministrio da Sade, o INSS e

    as Universidades possuem um atendimento psicolgico como o nosso.

    As profissionais mostraram um quadro preocupante apresentado pelos

    funcionrios tcnico-administrativos da Ufes. Mesmo tendo algum conhecimento

    da realidade vivida na Universidade, a conversa me deixou mais inquietada ainda

    pelos seguintes problemas destacados: adoecimento no trabalho por conta de

    chefia; sensao de falta de sentido no trabalho; no compreenso do seu papel

    em meio lgica da Universidade e a individualizao dos problemas. Que

    trabalho esse que adoece tanto? Um aspecto importante destacado foi que a

    maioria dos tcnicos de nvel mdio, contratados a partir de concurso pblico,

    possui qualificao superior ao exigido para cargo que ocupam o que provoca

    descontentamento. Ento, como reinventar-se diante desse embarao que se

    anuncia?

    Alguns estudiosos da temtica pontuam que estar em atividade de trabalho

    estar em um campo de permanente conflito. Para cada viela escolhida existem

    outras tantas que foram abandonadas. Tais autores foram, ento,importantes

  • 28

    parceiros na tarefa de analisar as situaes que os depoimentos das profissionais

    indicavam e se articularam s questes disparadoras da pesquisa: Como

    transformar-compreender os processos de trabalho na Ufes? Dentre esses

    autores, destacamos: Amador (2007), Barros (2011), Brito (2004), Clot (2010),

    Louzada (2007), Oddone (1981), Osrio (2007), Ronchi (2011) e Schwartz (2007),

    que so alguns dos pesquisadores para os quais o sentido do trabalho exerce

    uma funo importante no quadro da sade dos humanos, pois define a forma

    como os trabalhadores lutam contra os agravos e infidelidades do meio. Indicam

    que o combate aos agravos sade ocorre por meio de transformaes dos

    processos de trabalho e nas relaes sociais que o enredam.

    Como os trabalhadores pesquisados normatizam6 em situao de trabalho para

    lidar com o que enfraquece e produz adoecimento? Que alianas so tecidas por

    esses servidores? Esses questionamentos me conduziram ao longo da pesquisa

    reafirmando as formulaes de Clot (2010, p. 121-122), para o qual o sofrimento

    patognico7 provoca amputao do poder de agir e causa um enfraquecimento do

    gnero profissional, entendido pelo autor como sendo:

    [...] a parte subentendida da atividade e que os trabalhadores de

    diversos meio conhecem e observam, esperam e reconhecem apreciam

    ou temem; o que lhes comum reunindo-os, sob condies reais de

    vida; o que sabem que devem fazer, graas a uma comunidade de

    avaliaes pressupostas, sem que seja necessrio re-especificar a tarefa

    a cada vez que ela se apresenta. como uma senha conhecida apenas

    por aqueles que pertencem ao mesmo horizonte profissional.

    Os servidores tcnico-administrativos, ao realizarem as prescries para eles

    definidas, tais como redigir atas, arquivar documentos, fazer matrcula de alunos,

    boletim de frequncia, marcao de frias, dentre outras, participam dos saberes

    acumulados e conduzidos pelo gnero profissional, que se estilizam em cada

    movimento realizado pelo trabalhador. Ao se falar de gnero profissional, no

    6Achamos [...] que a vida no indiferente s condies nas quais ela possvel, que a vida

    polaridade [...] que a vida , de fato, uma atividade normativa [...]. No pleno sentido da palavra normativo o que institui normas (CANGUILHEM, 2011, p. 80). 7Sofrimento patognico: a saber, o sofrimento que emerge quando todas as possibilidades de

    adaptao ou de ajustamento organizao do trabalho pelo sujeito, para coloc-la em concordncia com seu desejo, foram utilizadas, e a relao subjetiva com a organizao do trabalho est bloqueada (DEJOURS, 1994, p.127).

  • 29

    entanto, necessrio falar do estilo, pois so dimenses indissociveis. Na

    concepo de Clot (2010) os gneros permanecem vivos devido a criaes

    estilsticas.Entretanto, o mesmo no se deve dizer do estilo, uma vez que quando

    no h dominao do gnero, no h criao de estilo. Podemos dizer que o

    estilo o retrabalho do gnero e sua transformao no momento da ao. O autor

    defende a idia de que os trabalhadores, a partir de suas atividades, podem criar

    outros possveis, promovendo outros modos de existncia capazes de aumentar a

    potncia de agir e enfrentar os desafios que os processos de trabalho colocam.

    A partir das pistas que Yves Clot (2010) nos coloca, reafirmamos um dos

    principais objetivos deste trabalho de pesquisa: quais so os instrumentos de luta

    utilizados por esses servidores para ampliar seu poder de agir? Como enfrentam

    as adversidades? Que modos inventam para driblar essas prticas com

    premncias?Essas eram questes que orientariam as conversas sobre o trabalho

    desses tcnicos na Ufes.

    Ento, foi a partir desse primeiro contato com as profissionais do Departamento

    de Assistncia Sade da Ufes, que fomos conversar com alguns servidores

    tcnico-administrativos ocupantes do cargo de assistente em administrao,

    tendo em vista o objetivo da pesquisa e, assim, delinear de forma mais precisa os

    caminhos da investigao.

    2.2 UM S FUNCIONRIO E MUITAS PRESCRIES

    Em uma conversa com a servidora tcnico-administrativa da Ufes, Shirlei,8 fui

    surpreendida por uma indagao:

    Voc j olhou as atribuies desse cargo de assistente em

    administrao? No queira olhar, porque triste... o faz-tudo. As

    atividades dos tcnicos so atividades amplas, eles fazem muito. Est

    na hora da gente brigar e exigir para nos encaixarmos melhor, porque a

    lista de atribuio do tcnico covardia, faz tudo e exige-se tudo. E o

    8 Por motivo de sigilo foram utilizados no decorrer do texto nomes fictcios.

  • 30

    chefe est l. Se restringir isso a... a nossa proposta que isso

    funcionasse.

    At ento, no havia pensado nas questes colocadas pela servidora. Em seu

    depoimento destaca-se a diversidade de atribuies para esses trabalhadores de

    acordo com a descrio de cargos do Plano de Carreira do Cargo dos servidores

    Tcnico-Administrativos em Educao (PCCTAE), 9 dentre as quais esto:

    secretariar reunies; redigir atas, memorandos, portarias, ofcios e outros

    documentos utilizando redao oficial; participar da elaborao de projetos

    referentes a melhorias dos servios da instituio; executar rotinas de apoio na

    rea oramentria e financeira; executar rotinas de apoio na rea de materiais,

    patrimnio e logstica; acompanhar processos administrativos; tratar

    adequadamente os documentos, procedendo ao registro de entrada e sada de

    documentos no Sistema de Protocolo, bem como a triagem, distribuio e

    arquivamento de documentos conforme procedimentos; digitar textos e planilhas;

    preparar relatrios, formulrio e planilhas.10

    Iniciei, ento, a segunda etapa do processo investigativo dando prosseguimento

    s conversas com outros servidores interessados em participar da pesquisa,

    alguns conhecidos, outros no. Quatro setores da Ufes foram visitados para

    divulgao da pesquisa com o objetivo de viabilizar um encontro com um grupo

    de servidores ocupantes do cargo de assistente em administrao dispostos a

    falar sobre sua atividade laboral na Universidade. Foram agendados encontros

    individuais com cada um dos servidores tcnico-administrativos que se

    dispuseram a colaborar. A princpio, o servidor discorria livremente sobre o seu

    dia a dia no trabalho, mas s vezes era necessrio aquecer o dilogo com

    algumas questes de forma a dinamizar a conversa.

    Em entrevista, no dia 11 de outubro de 2013, uma Assistente em Administrao,

    com 22 anos de servio prestados Ufes, fez o seguinte relato:

    9 Descrio dos cargos do PCCTAE, cdigo CBO-4110-10, encontrado no Portal da Ufes.

    Disponvel em: . Acesso em:17 ago. 2013 (Ver Anexo A). 10

    Maiores detalhes das atribuies dos tcnicos encontram-se no Anexo B.

  • 31

    Venho para c sem preocupao e no tenho problemas com chefias.

    um trabalho como outro qualquer, no desgosto, mas tambm no morro

    de amores por ele. Trabalho bem e no sinto presso. O servio

    intelectual tranquilo. A internet educou as pessoas a terem retorno

    imediato como, por exemplo, acertar um computador, e na poca no

    tinha estrutura nenhuma... Nunca tive problema de depresso, somente

    quando fui trabalhar em outro campus da Universidade, localizado no

    interior do Estado (para acompanhamento de cnjuge). Somente nos

    trs dias que fiquei l, pois aquele lugar, sinceramente, tem que ter

    interveno. Agora deve estar pior e a Ufes sabendo que aquilo uma

    porcaria faz o que? Transforma as pessoas em servos. a caracterstica

    da servido, ou seja, a mentalidade da Ufes ainda medieval. Eu falo e

    provo. Em vez de resolver o problema l, eles vinculam o cidado

    concursado a ficar no local por dez anos. Eu j no estava conseguindo

    sair da cama para ir para o servio. Na verdade o que me segurava l

    era minha cnjuge, por causa da retaliao que poderia haver com ela.

    Eles no sabem a diferena entre um ser humano e uma vassoura velha

    e isso aconteceu comigo. Isso com todas as chefias. E a vassoura

    velha tem utilidade, mas no pode ser trocada com facilidade. Aquele

    troo l est horrvel porque a Ufes daquele jeito, pois se fosse

    diferente eles estariam intervindo l e negociando, organizando. Sou feliz

    aqui onde estou hoje (aps retorno ao antigo local de trabalho no

    campus de Goiabeiras). Basicamente, aqui h tranquilidade nos

    relacionamentos humanos, compreendendo que aqui trabalho. Todo

    mundo se respeita, embora tenha alguma dificuldade. A desvantagem de

    lidar com o professor achar que todo mundo aluno, mas por outro

    lado d para negociar, porque ele acredita que liberal, s chegar e

    pressionar nesse sentido que fica mais flexvel. Nesse jogo democrtico,

    eles ficam de trs a quatro anos na chefia, isso faz com que tenham que

    tomar decises mais flexveis.

    O relato expressa o conflito enfrentado pelo servidor ao ser confrontado com uma

    situao, quando no foi dada a ele outra escolha. No entanto, a partir do

    momento em que foi possvel mudar de setor e que a vassoura velha pode varrer

    em outro domnio escolhido por ela, a possibilidade de mudana se anunciou

    diante do que enfraquece, transformando o vivido.

    A Assistente em Administrao, com 27 anos de servios prestados Ufes, em

    entrevista realizada no dia 15 de outubro de 2013, relata:

    Sinto-me muito sobrecarregada, mas em qualquer setor da Ufes que eu

    v, porque j passei por vrios, vou continuar sobrecarregada. Porque

    acho que o meu jeito de ser. Eu no saberia dormir sem ter produzido

    nada. A minha cabea funciona assim, infelizmente. Perco o sono, lembro

    de alguma coisa e tenho que escrever, porque no dia seguinte tenho que

    lembrar. Isso quando durmo, preocupada com o servio. Isso tem afetado

    muito minha sade. J passei por psiclogo, psiquiatra da Ufes, por conta

  • 32

    de sobrecarga de trabalho. J mudei de setores vrias vezes e no fui feliz

    em todos. Aqui, fao o que gosto, porm, por fazer o que gosto estou

    sendo muito sobrecarregada, porque as pessoas ficam esperando que eu

    faa. A no pode adoecer, pois tenho que estar sempre atenta a tudo,

    porque as pessoas deixam mesmo. J adoeci por conta de chefia e quase

    cometi suicdio. Por muito pouco, eu no via alternativa nenhuma, ou saia

    da Ufes e no teria dinheiro para criar minha filha, porque sou separada.

    Foi uma situao muito grave, eu no via nenhuma soluo para o caso e

    eles no queriam me liberar do setor. Depois consegui liberao e

    infelizmente adoeci. Atualmente minha imunidade abaixa por conta de

    condicionador de ar, tenho laudo da junta mdica pericial. J ouvi at que,

    onde vou estrago os aparelhos de ar! Sei que brincadeira mas chato,

    pois no m vontade minha. Gosto do que fao e quando me defronto

    com o problema de ter que trabalhar em ambientes muito gelados penso

    muito antes de deixar o setor. Estou lutando contra o que me incomoda,

    mas tambm no fao nada para melhorar, porque onde eu for eu vou

    querer abraar o mundo. Fico no setor at o meu limite, quando comeo

    adoecer o final e j estou em alerta. O que estou fazendo... estou

    procurando no me envolver na medida do possvel, tentando amenizar o

    trabalho. Vou voltar para a psiquiatra, vou voltar a pedir ajuda mdica.

    Esse depoimento vai ao encontro do que foi relatado pelas psiclogas: o

    adoecimento11 provocado pelo modo como o trabalho est organizado na Ufes.

    Quais os processos de trabalho esto sendo produzidos na Universidade que

    provocam adoecimento? Como desmanchar estratgias verticalizadas de gesto?

    Em 15 de outubro de 2013, na entrevista, a Assistente em Administrao, com 31

    anos de servios prestados Ufes, exps:

    Dei a sorte de estar sempre trabalhando com pessoas boas, honestas,

    principalmente as chefias imediatas que sempre me incentivaram e

    deram oportunidade de desenvolvimento, alm do bom relacionamento

    que sempre tive com os colegas. Sinto falta quando no venho trabalhar.

    No adoeci por conta de trabalho. s vezes, a gente sofre algum

    desapontamento com o colega de trabalho, e s vezes fica de cabea

    baixa, so coisas que depois, com o passar do tempo, vai absorvendo e

    tirando proveito tambm e sabendo que existem as diferenas, que cada

    pessoa pensa de uma maneira e voc no deve e nem pode querer

    mudar o pensamento de cada um. Trabalhei em outros setores com

    servio puramente administrativo e, no setor atual, envolvi-me mais com

    11A doena ainda uma forma de vida, mas uma norma inferior, no sentido que no tolera

    nenhum desvio das condies em que vlida, por ser incapaz de se transformar em outra norma. O ser vivo doente est normalizado em condies bem definidas, e perdeu a capacidade normativa, a capacidade de instituir normas diferentes em condies diferentes (CANGUILHEM, 2011, p. 127).

  • 33

    a parte acadmica, diretamente com o exerccio fim da Universidade que

    a educao. Trabalhar com professor e aluno foi uma experincia

    diferente e eu soube me dar bem com essa transio do servio

    meramente tcnico para passar para o servio ligado educao. Minha

    qualificao acadmica me fez superar algum desentendimento de uma

    forma positiva, achando que todos ns somos funcionrios pblicos e

    cada um tem uma funo. A funo do professor dar aula, o servidor

    tcnico-administrativo tem que trabalhar na atividade meio, mas somos

    todos funcionrios pblicos. Minha qualificao educacional me faz ter

    esse conhecimento. S porque o professor professor ele no melhor

    que oservidor tcnico-administrativo, cada um tem sua funo e isso no

    me deixa abalar. Eu no permito ser pau mandado. Desenvolvo minha

    atividade bem, com folga.No entanto, a dificuldade maior que no de

    minha responsabilidade falta de responsabilidade de alguns colegas do

    mesmo setor, porque a partir do momento que voc tem que

    desenvolver suas atividades e contribuir com as atividades dos outros

    colegas, a voc se sobrecarrega. Fora isso, meu servio no de

    grande volume,no me atrapalha, fao-o com maior tranquilidade. Se

    todo mundo fizesse o mnimo de sua jornada de trabalho, de seu servio,

    no sobrecarregaria ningum e nem prejudicaria o atendimento ao

    pblico, que quem realmente paga o nosso salrio.

    Percebe-se, nessa fala, a insatisfao que acomete alguns servidores tcnico-

    administrativos no que diz respeito relao de trabalho com os docentes.

    Entretanto, afirma que o trabalho tambm funciona como produtor de sade: No

    adoeci por conta do trabalho. De acordo com o relato de uma das psiclogas do

    DAS, muito difcilpara o tcnico perceber qual o seu valor na Universidade onde

    o servidor vive, de acordo com eles, uma desqualificao por parte dos docentes.

    Aliada a essa questo, existe ainda um certo modo viver o trabalho por parte de

    alguns servidoresque causa, segundo os tcnicos, um sobretrabalho 12 para

    outros que se sentem prejudicados nessas relaes. Por outro lado, o relato

    demonstra ainda um servidor que no se deixa imobilizar pelas adversidades

    enfrentadas.

    Uma Assistente em Administrao, com 3 anos e 8 meses de servios prestados

    Ufes, em entrevista no dia 24 de outubro de 2013, narrou:

    12

    Sobretrabalho conceito criado por Marx (1994) a fora de trabalho retirada do trabalhador. Podendo tambm ser definido como [...] explorao da fora de trabalho humana por uma determinada classe social (forando o sobretrabalho e gerando a mais valia) (BOTECHIA; ATHAYDE, 2008, p. 46).

  • 34

    Gosto do que fao e, apesar de no ser na minha rea de formao, o

    ambiente de trabalho nesse setor muito bom. Eu acordo pensando: Ai

    que bom que vou sair de casa para estar algumas horas no Centro! J

    fiquei mal no trabalho, mas se passasse do estgio que estava eu diria

    que adoeceria, mas conversei com a chefia e resolvi o problema. No

    deixei a doena tomar conta de mim. No me sinto sobrecarregada no

    trabalho, mas, s vezes, eu gostaria de ter algum para dividir a tarefa,

    mas acho que dou conta bem, pois no gosto de ficar parada. Nesse

    momento, estou sozinha no setor e estou conseguindo dar conta do

    recado por enquanto.Considero-me uma boa funcionria, pois no tenho

    cara de dar n cego e isso faz parte de mim. Vejo que as pessoas que

    no cumprem com suas obrigaes e s querem o bnus da situao

    no so prejudicadas, entendeu? Ento, na verdade, isso acaba quando

    se uma boa funcionria, como tenho visto no dia a dia da correria em

    geral, as pessoas querem minimizar as dores de cabea; isso j

    aconteceu at comigo; tambm, com o prprio colega de trabalho. Tem

    tanta coisa para pensar: por exemplo, se um funcionrio comea a

    recusar a fazer as coisas, questionar tudo, sempre querendo arranjar

    problemas em fazer as coisas e, para no se estressar, voc acaba

    isolando aquela pessoa. Foi o que aconteceu comigo, tambm. Eu

    percebo, tambm, que os professores, que so as pessoas que esto na

    chefia, acabam deixando de lado aquele funcionrio ao qual eles j

    recorreram inmeras vezes e no tiveram os problemas solucionados,

    no tiveram retorno como eles gostariam que tivessem, e caem em cima

    daquele que ele sabe que vai resolver. Hoje, estou sozinha no setor,

    houve at uma tentativa de dividir as tarefas e aconteceu isso. A pessoa

    sempre ficava enrolando... Enfim criou uma srie de questes, que eu

    preferi no pedir mais nada, nem o coordenador. Ento preferi deixar,

    seno eu ia adoecer, mesmo.

    Nota-se, nesse depoimento, uma tentativa da servidora de no se deixar paralisar

    diante dos imprevistos que se apresentavam durante a realizao das prescries

    da sua rotina de trabalho, apesar de salientar as dificuldades encontradas no

    coletivo de trabalhadores para a realizao das atividades.

    A Assistente em Administrao, com 3 anos e 2 meses de servios prestados

    Ufes, fez o seguinte relato na entrevista concedida no dia 28 de outubro de 2013:

    Sinto-me realizada no servio pblico. o que sempre quis fazer. Nem

    me vejo hoje em outra profisso que no seja aqui. Formei-me em

    histria e no me vejo hoje em sala de aula. Sou mais realizada aqui no

    servio administrativo. Nunca adoeci e no tive nenhum problema

    profissional de relacionamento no setor at hoje, graas a Deus! H

    perodos que a gente tem muito trabalho. No final do ano passado a

    gente ficou muito sobrecarregada, uma doideira. sazonal, depende

    do perodo do ano, s vezes fica sobrecarregado, s vezes fica tranquilo

    e depende do setor em que voc est.

  • 35

    possvel perceber por esse depoimento que a servidora se sente potencializada

    e satisfeita em seu setor de trabalho e com seus pares, que mostra ter habilidade

    em transitar com o coletivo de trabalhadores e que procura criar possveis no

    trabalho, modos outros de trabalhar.

    A Assistente em Administrao, com 31 anos de servios prestados Ufes, na

    entrevista realizada no dia 23 de outubro de 2013, explicou:

    Gosto do tipo de servio que eu fao, gosto de atender as pessoas, de

    lidar com o ser humano. No adoeci no servio, porque sou uma pessoa

    tranquila, procuro tirar por menos: Mas, quando eu entrei na

    Universidade, tive uma chefe de Departamento e no sei porque ela agia

    dessa forma comigo, no sei...ela tinha cime da antiga chefe que foi

    chefe do Departamento por cinco anos, porque at ento, enquanto ela

    era professora a gente se dava super bem. No final do ano, dava

    presente, elogiava meu trabalho, mas, quando foi chefe comeou a gritar

    comigo, com as pessoas que estavam no Departamento. At que um dia

    eu no aguentei e falei que ela no poderia gritar comigo, e que eu no

    era sua empregada, que era empregada do Governo Federal como ela.

    Nesse momento, no houve discusso, mas eu no aguentava mais o

    que ela estava fazendo; inclusive, eu j havia avisado na secretaria geral

    o que ela estava fazendo comigo e com a outra funcionria. Eu me

    coloquei disposio e fui para outro Centro Acadmico. No setor atual,

    sou muito feliz. J trabalhei em outro setor muitos anos e tenho certeza

    da minha importncia na rea, porque peguei chefias que no sabiam o

    andamento do setor. Ento, abracei o meu setor, no sentido de fazer o

    meu trabalho e o trabalho do Chefe. Muitas vezes, o funcionrio na

    Universidade no valorizado, mas a maioria dos funcionrios da

    Universidade faz o papel dele e de Chefe de Departamento, de um

    Coordenador de um Colegiado; por ele estar ali e saber o dia a dia, o

    trmite dos processos. Ele entende muito mais que um Chefe de

    Departamento que entra para ficar numa chefia por dois anos. Eu sinto

    que, na Universidade, poderia ter curso para orientar um Chefe de

    Departamento, um Coordenador de Colegiado, de como ele pode ser um

    bom gestor. Porque, s vezes, um bom professor, mas, na

    administrao, pssimo, no entende nada, e, s vezes, atrapalha o

    servio do funcionrio, que j sabe a tramitao de tudo, e fica no p do

    funcionrio deixando-o estressado, principalmente os funcionrios novos

    que esto em estgio probatrio, com medo e se sentindo meio

    constrangido diante da atitude de algumas chefias. Quando eu era

    secretria de um setor, me sentia muito sobrecarregada, tanto que eu

    sa porque estava cansada. Foram anos e anos trabalhando sozinha,

    pois as chefias eram s de fachada. S tinha o nome de Coordenador,

    pois eu fazia toda a tramitao, inclusive de processos, coisas que o

    coordenador tinha que fazer junto a Pr-Reitoria de Graduao e que

    no me competia como secretria, sem contar a desvalorizao do

    funcionrio. Eu tinha um cargo de secretria s no nome, nunca recebi

    gratificao e isso desmotiva o funcionrio. Mas, como eu gostava muito

  • 36

    do meu servio eu passava por cima disso a e me sentia muito

    gratificada pelos alunos. A minha clientela que eu atendia me valorizava.

    As conversas indicam um cenrio de satisfao de alguns servidores, mas

    tambm de insatisfao por parte de outros que, por no se sentirem satisfeitos,

    procuram um modo de driblar o enfraquecimento produzido nas situaes de

    trabalho que poderia acarretar em adoecimento, seja por meio da mudana de

    setor ou por meio de uma conversa com a chefia ou, ainda, por meio do desabafo

    com o colega. So tentativas, de um modo ou de outro, no gesto de encontrar um

    caminho que lhes proporcione prazer ao exercerem suas atividades. Criam

    mecanismos pelos quais possam dissolver a nuvem de insatisfao que acomete

    muitas vezes os servidores pblicos ao exercerem suas funes. Sobre esse

    enfoque, Clot (2007, p. 14) confere o seguinte argumento:

    Ningum tem o poder de aniquilar a atividade pessoal do trabalhador. Na

    melhor das hipteses ela deslocada ou alienada. Mas possui sua

    autonomia e nunca a simples medida das aes exteriores que hoje se

    exercem sobre ela. A atividade a apropriao das aes passadas e

    presentes de sua histria pelo sujeito.

    Clot (2007) afirma que a anlise da atividade, na perspectiva aqui tambm

    defendida, ocorre por meio de encontro de experincias compartilhadas entre os

    sujeitos que, ao exercerem suas atividades fazem escolhas, improvisam e tomam

    decises para viabilizar a tarefa prescrita. Clot (2010) estabelece a necessidade

    de ir alm nesses conceitos com a definio de real da atividade como o que se

    tenta fazer, o que no foi feito, o que se busca fazer sem conseguir os fracassos

    , o que se pensou em fazer. O sonho tambm faz parte dessa atividade, o real

    ultrapassa a prpria atividade e o [...] realizado no tem monoplio sobre o real

    (CLOT, 2010, p. 104).

    Clot (2011) argumenta, ainda, que o trabalho o vis que permitir driblar as

    adversidades do trabalho no capitalismo, uma vez que a aposta diante do real, no

    domnio do trabalho, no poder ser apreendida. Entretanto, indica que [...] a

    perda pelo trabalhador do poder de agir em sua atividade igualmente uma

    inatividade (CLOT, 2011, p. 73). Tambm Schwartz (2004) nos ajuda nessa

    alegao quando pontua que trabalhar gerir as infidelidades do meio, fazendo

    escolhas, correndo riscos.

  • 37

    2.3 TORNAR-SE-SER FUNCIONRIO PBLICO

    A deciso de colocar algumas questes para servidores tcnico-administrativos

    visou principalmente um movimento de aproximao com esses trabalhadores.

    Afinal, como pensam aqueles que tm essa profisso? Tornar-se, ser servidor

    pblico, do que se trata?

    Ser funcionrio pblico ter responsabilidade, mas acho que eu,

    particularmente, escolhi ser funcionria pblica principalmente por causa

    da estabilidade, de saber que eu vou poder ser gente, ou seja, que eu vou

    estar num lugar em que vou poder pelos menos me defender dos

    problemas que vo acontecer, ter voz e ter vez. Porque muitas vezes numa

    empresa privada isso no acontece. Um funcionrio numa empresa privada

    tratado como objeto, nem ser humano, uma mquina, que nunca

    pode adoecer, nunca pode ter voz, nunca pode ter vez. E, pelo menos aqui,

    no servio pblico, eu acho que posso driblar um pouco isso, tornar as

    coisas mais leves, assumindo responsabilidades, o dever, e tambm tendo

    retorno. Ter uma vida mais leve, sabe... E que as consequncias tambm

    no sejam danosas para mim, porque viver para mim no s trabalhar...

    trabalhar tambm. Acho que estar num ambiente de trabalho saudvel

    melhor ainda, porque ningum quer trabalhar e ficar doente. Eu acho que o

    que adoece as pessoas no trabalho so as relaes humanas, porque

    trabalhar estar com pessoas, a no ser que voc fique isolado numa sala

    (ASSISTENTE EM ADMINISTRAO, 3 anos e 8 meses como servidor

    pblico).

    Ser funcionrio pblico servir a sociedade, a gente nunca pode perder

    isso de linha. s vezes, voc acha que s um emprego e vai l e

    trabalha. Mas voc serve a comunidade, a sociedade... o principal isso,

    tem que primar pelo atendimento de excelncia, pela boa educao. Tem

    que atender as pessoas com ateno, educao e respeito, porque para

    elas que a gente trabalha. Elas so nossos chefes acima de tudo, de

    chefias, de Reitor. Acho que tem que ter excelncia no atendimento, o

    objetivo no servio pblico. Eu me realizo sendo funcionrio pblico

    (ASSISTENTE EM ADMINISTRAO, 3 anos e 2 meses como servidora

    pblica).

    Emprego pblico voc atender o pblico, a comunidade de Vitria [...].

    Logo de cara eu gostei do que estava fazendo, eu gosto de lidar com o ser

    humano, gosto de atender as pessoas. Coloco-me muito na situao de

    uma pessoa que vai atrs, pedindo informaes. Ento, como a

    Universidade muito grande as pessoas que no conhecem ficam muito

    perdidas aqui dentro. Ento, eu procuro tratar da melhor forma possvel, e

    quando chega uma pessoa que s vezes no tem nada a ver com meu

    setor, eu procuro orient-la, pois me vejo na situao de ficar perdida

    numa cidade que voc no fala o idioma. Ento muito complicado...

  • 38

    quando no sei, procuro ligar para o setor para orientar, porque gosto de

    ser bem atendida aonde eu vou. Ento, eu atendo muito bem os alunos do

    Curso, porque sem o pblico, tanto interno quanto externo, eu no teria

    trabalho, eu no estaria na Universidade. Ento, meu papel, meu dever,

    atender da melhor forma possvel. Eu gosto de ser funcionria pblica, eu

    fao jus a minha profisso. s vezes, me envergonho quando vejo algum

    falar que foi mal atendido por funcionrio. Isso me deixa extremamente

    aborrecida (ASSISTENTE EM ADMINISTRAO, 31 anos como servidor

    pblico).

    Meu ingresso no servio pblico no foi via concurso, nem tampouco foi

    uma atividade planejada, foi questo de oportunidade de emprego. No

    entanto, a partir do momento em que assumi essa funo, no me recordo

    de ter me arrependido em algum momento. Financeiramente deu-me

    respaldo para planejar e concluir diversas etapas de minha vida

    profissional e particular. Assim, ser servidor pblico, bem mais que obter

    vantagens,ensinou-me a gostar do que fao, ser responsvel e

    corresponsvel pelo servio prestado a aqueles que geram os recursos

    dessa mquina administrativa. Ser servidor pblico se sentir numa

    vitrine, em exposio. ser responsvel pelo errio pblico, pelo

    patrimnio pblico. se sentir morador de um condomnio, todos so

    responsveis pelos direitos, deveres e bem estar dos demais condminos.

    ter em mente: quando voc no trabalha algum est trabalhando para

    voc, quando voc desvia uma verba, algum ir pagar por voc. Ser

    servidor pblico prestar servio (de qualidade) ao pblico (ASSISTENTE

    EM ADMINISTRAO, 31 anos como servidor pblico).

    O artigo Servidor pblico: um enfoque para a atualidade, de Eliane Boscardin

    (2010), apresenta um prisma histrico de relevncia inegvel, que aqui retomo

    brevemente. Sua pesquisa indica que os servidores do Estado na Roma antiga

    eram investidos de autoridade e representavam a polis (cidade-estado). Ainda

    nessa linha de pensamento, porm num salto histrico e geogrfico, sabido que

    com a chegada de Dom Joo VI e a famlia real ao Brasil, em 1808, foi criado o

    servio pblico atravs de assessores e pessoas ligadas corte instalada no Rio

    de Janeiro. Todavia, antes disso, ainda no Brasil a partir do seu descobrimento, o

    funcionrio pblico se fez presente na figura de Pero Vaz de Caminha e dos

    Governadores Gerais. O desenvolvimento do Brasil Colonial conferiu importncia

    ao trabalho administrativo e, ao longo da histria poltica do Pas, o funcionrio

    pblico sempre esteve presente, contribuindo para o avano da mquina

    administrativa e o desenvolvimento da nao Brasileira. A denominao

    Funcionrio Pblico abrange os servidores do Municpio, do Estado e do

    Governo Federal.

  • 39

    O Decreto nmero 1.713, de 28 de outubro de 1939, foi um dos primeiros

    documentos que concretizou as normas referentes aos funcionrios pblicos. Em

    1943, o Presidente Getlio Vargas instituiu em 28 de outubro a data para celebrar

    o dia do Funcionrio Pblico. No dia 11 de dezembro de 1990, foi designada a Lei

    nmero 8.112, responsvel pela alterao do Decreto-Lei 1.713/39, atravs da

    qual foi substitudo o termo funcionrio pblico para servidor pblico. A referida

    Lei provocou uma inovao por ter aglutinado os servidores pblicos civis das

    Autarquias e os das Fundaes Pblicas Federais, pertencentes Administrao

    Pblica Indireta, realizando atividades tpicas da administrao como prestao

    de servios pblicos. A Constituio Federal de 1988, por meio do artigo 39,

    estabelece e define os direitos e deveres dos servidores pblicos.

    A implantao de polticas de ajuste e reestruturao do setor pblico teve incio a

    partir de 1990 e culminou em medidas restritivas no emprego pblico, sobretudo

    em nvel federal, tais como: demisses de funcionrios pblicos no estveis,

    incentivo aposentadoria, limitao de novas contrataes, terceirizao de

    servios e o plano de demisso voluntria. Tais medidas intencionavam a

    conteno de despesas, entretanto, esse corte de pessoal afetou a realizao das

    atividades-fim, como a educao e a sade, prejudicando seriamente a qualidade

    dos servios pblicos essenciais oferecidos populao brasileira.

    Para Gasparini (2012, p. 224), servidor pblico pode ser cognominado como: [...]

    uma gama de pessoas fsicas que se ligam, sob regime de dependncia,

    administrao pblica direta, indireta, autarquia e fundacional pblica, mediante

    uma relao de trabalho de natureza profissional e perene para lhes prestar

    servios.

    O autor aponta que os servidores pblicos podem ser denominados estatutrios e

    celetistas. O regime estatutrio um regime de cargos atravs do qual os

    servidores esto ligados administrao pblica direta, autrquica e fundacional

    pblica de forma Institucional. Enquanto o regime celetista est ligado

    administrao pblica, direta, autrquica e fundacional por meio de um vnculo

    contratual. Os servidores pblicos, ao tomarem posse no servio pblico, ocupam

    um cargo que definido pela Lei Federal n.3.780/60, no artigo quarto, I como: O

  • 40

    conjunto de atribuies e responsabilidades cometidas a um funcionrio, mantidas

    as caractersticas de criao por lei, denominao prpria, nmero certo e

    pagamento pelos cofres pblicos da unio (GASPARINI, 2012, p. 319). Para o

    autor, o cargo no dever ser confundido com funo; contudo, todo cargo possui

    uma funo, sendo esta apenas uma concesso de atribuies atribuda ao

    servidor pblico.

    Pelo vis de Romano (2005), a idia de pblico surgiu no sculo XVIII, aps a

    Revoluo Americana e Francesa, quando foi outorgada ao poder do Estado a

    base para que lhe fosse permitido impor as polticas a serem implementadas e

    adotadas pela sociedade civil. A distino entre sociedade civil e Estado tambm

    se derivou no sculo XVIII. Para o autor, no sculo XX houve uma recuperao,

    por parte do Estado, da Universalidade, pois at ento esta era centrada na

    opinio pblica, nas instituies difundidas na sociedade civil, na imprensa e nas

    Universidades. No Brasil, o pblico surgiu para constituir uma tica poltica tpica

    uma vez que os municpios no possuam recursos para a construo de

    benfeitorias de uso comum como estradas, pontes e prdios. Os homens ricos,

    que geralmente exerciam a funo de vereadores ou prefeitos, disponibilizavam

    dinheiro e mo de obra, geralmente escrava, para a execuo das obras.

    Entretanto, uma boa parcela dessa classe social achava natural um emprstimo

    por parte dos municpios em caso de dificuldade e essa prtica foi aceita pela

    massa com excluso da igreja e dos servios pblicos a favor do Estado laico:

    [...] percebe-se um caroo que no se funde no pblico estatal. Em todas as

    prticas nacionais mdica, educacional, etc. encontra-se esta realidade da

    no-fuso plena entre pblico e estatal (ROMANO, 2005, p. 40).

    Sader (2005) aponta que a primazia do pblico assumiu inmeras formas, este

    muitas vezes sendo confundido com estatal. O pblico, a nao, a classe e a

    comunidade foram evocados para requerer a recusa ao plano individual, muitas

    vezes falando em nome do pblico quando na realidade se estava falando em

    nome do Estado.

    Associando vertente dialogada deste trabalho, o que foi brevemente traado at

    aqui a conversa com os servidores e uma breve reviso de literatura sobre a

  • 41

    constituio do servio pblico no Brasil , buscando ressaltar a importncia do

    desenvolvimento do trabalho dessa categoria na sociedade, lanaram-se as

    primeiras linhas para o desenvolvimento de uma pesquisa pautada nos princpios

    metodolgicos da clnica da atividade, qual seja, analisar coletivamente o trabalho

    desenvolvido por servidores tcnico-administrativos da Ufes. A partir desse

    objetivo, foi realizado um primeiro encontro com dez servidores tcnico-

    administrativos de diversos setores da Ufes, ocupantes do cargo de assistente em

    administrao, os quais constituram o grupo associado. Por insistncia e

    prudncia da orientadora do trabalho, com o propsito de produzir um olhar

    estrangeiro, tambm participaram dos encontros, em alguns momentos, uma

    aluna do Curso de Psicologia, bolsista de Iniciao Cientfica e companheira do

    PFIST/Nepesp, Tatiane Aguiar e um psiclogo, analista do trabalho e tambm

    companheiro do PFIST/Nepesp, Jsio Zamboni.

    Esta foi uma importante estratgia metodolgica por se tratar de um grupo de

    servidores tcnico-administrativos, que referenciava, reconduzia, ressignificava a

    atividade da pesquisa. O grupo se reunia regularmente sempre que era

    necessrio repensar os passos seguintes da pesquisa, de forma que as

    conversas alimentavam a produo de imagens do campo de trabalho. Tal

    estratgia produziu uma interessante aliana e grupalidade que imprimia desvios

    na conduo da pesquisa. A maior parte do grupo foi constituda pelos servidores

    com os quais mantive contato no primeiro momento da pesquisa, como j

    apresentado no incio deste captulo. Entretanto, outros servidores interessados

    em fazer parte do estudo juntaram-se ao grupo e os mesmos trabalhavam em

    secretarias de Centro, secretarias de Departamentos, setores responsveis por

    xerografia, chaves, manuteno de espaos, exames peridicos, aplicao de

    provas para concurso.

  • 42

    Fonte: Foto produzida por Roberto

    Acreditar, no mais em um outro mundo, mas na vinculao do homem e do mundo, no amor ou na vida, acreditar nisso como no impossvel, no impensvel que, no entanto, s pode ser pensado: algo possvel seno sufoco (DELEUZE, 1990, p. 205).

    Pr

    dio

    da R

    eitori

    a d

    a U

    fes

  • 43

    3 UM ENCONTRO: TRAANDO ALGUMAS PISTAS

    O primeiro encontro com o grupo associado, composto por trabalhadores tcnico-

    administrativos ocupantes do cargo de assistente em administrao da

    Universidade Federal do Esprito Santo, aconteceu em uma bela manh de

    outono do ms de maio, de sol brilhante e cu azul. Apesar de apreensiva, estava

    alegre, pois celebrava a terceira etapa da pesquisa. Esse dia foi muito esperado e

    idealizado e, sendo assim, tudo precisava sair a contento e cada detalhe foi

    pensado cuidadosamente. Os preparativos para o evento projetaram o

    compromisso dedicado a cada pormenor da pesquisa. Assim, uma toalha

    rendada, biscoitos sortidos, sucos, bolo, caf fumegante e flores de boas-vindas

    colhidas por uma querida amiga promoveram um ambiente de acolhimento e

    cordialidade quele momento.

    Aos poucos os trabalhadores foram chegando, olhando timidamente ao redor,

    surpresos com o panorama atrativo, cumprimentando-se e procurando um lugar

    onde pudessem se acomodar. O grupo associado foi constitudo de forma

    heterognea, alguns membros tinham longo tempo de servio, outros estavam

    beira da aposentadoria, e outros tinham acabado de adentrar a Universidade.

    Esses servidores se dispuseram a discutir suas atividades laborais e ali estavam

    tomados de muita inquietao.

    Ao iniciar o encontro, disse ao grupo o quanto aquele momento era importante

    para continuidade do trabalho. Em seguida, passei a palavra aos trabalhadores

    para as apresentaes iniciais e apresentei a aluna do Curso de

    Psicologia,Tatiane Aguiar, que participaria de alguns encontros a fim de

    acompanhar as atividades do grupo. Aps as apresentaes, iniciais o grupo

    questionou sobre a escolha dos tcnico-administrativos como foco de estudo, ao

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    que expliquei que a Ufes possui um quadro permanente de 2.22213 servidores

    tcnico-administrativos, do qual tambm fao parte, e que para o objetivo da

    pesquisa foi eleito o cargo de assistente em administrao por esse corresponder

    ao maior nmero de servidores, a saber, 488.

    Em seguida, apresentei a metodologia que seria utilizada e esclareci que a opo

    por trabalhar com a clnica da atividade se deu por acreditar que tal abordagem

    pudesse dar visibilidade relao inventiva do trabalhador no trabalho, de forma

    que sua relao com os processos laborais no estaria centrada apenas na luta

    contra o adoecimento, mas, principalmente, no carter inventivo de novas formas

    de vida. Esclareci, ainda, que escolhi utilizar a fotografia como dispositivo

    metodolgico e que a escolha desse mtodo, utilizado por Osrio (2011) e seu

    grupo de pesquisa prope um procedimento diferenciado quando a fotografia

    produzida pelo prprio trabalhador que passa a exercer o papel de protagonista

    no processo. Houve muito burburinho nessa hora; entretanto, aps uma

    cuidadosa explicao de que o servidor poderia fotografar cenas do seu cotidiano

    laboral que lhes parecesse mais interessante, sem nenhum critrio a priori por

    parte da pesquisadora, o grupo acolheu a proposta. Em meio a muitas conversas

    e inquietaes, aos poucos, o grupo foi entrando na discusso sobre o que

    fotografar:

    Eurico:14

    Tenho vrias fotos de obras do setor, para mostrar a evoluo

    das mesmas. Mas, nesse meio, s vezes, tiro fotos de outras coisas que

    fazem parte do setor e acho muito legal, tem uma paisagem bacana,

    passarinhos.

    Eunice: Eu posso tirar, mas no tenho mquina.

    Beatriz:Isso a gente arranja.

    Selma: Eu, por mim, deixaria livre para fotografar o que quiser.

    Sumara: Acho que deveria deixar aberto, cada um tira foto do que

    quiser, depois no segundo momento escolhemos e discutimos.

    13

    Dados retirados do Sistema Integrado de Administrao de Recursos Humanos (SIAPE). Maiores especificaes ver no Anexo A. 14

    Foram utilizados nome fictcios por motivo de sigilo.

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    Eunice: At porque quem for fotografar vai fotografar seu setor.

    Beatriz:No precisa ser o setor, pode fotografar livremente cenas do

    cotidiano de trabalho.

    Roberto: Acho interessante a pessoa fotografar aquilo que incomoda,

    no s do que incomode como tambmdo que tenha um valor positivo,

    mas so sempre muito bem-vindas as outras pessoas de fora, que

    naturalmente esto vendo uma coisa que bate em relao ao ambiente

    em que est.

    Beatriz: Vocs acham que a sugesto de Roberto de fotografar o que

    ajuda e o que atrapalha uma boa idia? O que voc acha disso

    Tatiane?

    Tatiane: Acho que a idia de generalizar a pesquisa, do que potencializa

    ou desgasta, no interessante. Se for focar nessa ideia, vai ficar

    tocando nisso todo o tempo.

    Beatriz: Prestem ateno, somos um grupo heterogneo, trabalhamos

    em setores heterogneos e podemos definir o que ser fotografado ou

    se vamos acatar a sugesto de Roberto de fotografar o que incomoda ou

    o que ajuda.

    Shirlei: O pessoal tem mania de ver o lado ruim das coisas, tem que