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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA DOUTORADO EM SAÚDE COLETIVA HELETÍCIA SCABELO GALAVOTE A GESTÃO DO TRABALHO NA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA: O GOVERNO DE SI E DO OUTRO SOB A ÓTICA DO GESTOR Vitória 2016

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE COLETIVA

    DOUTORADO EM SADE COLETIVA

    HELETCIA SCABELO GALAVOTE

    A GESTO DO TRABALHO NA ESTRATGIA SADE DA FAMLIA:

    O GOVERNO DE SI E DO OUTRO SOB A TICA DO GESTOR

    Vitria

    2016

  • HELETCIA SCABELO GALAVOTE

    A GESTO DO TRABALHO NA ESTRATGIA SADE DA FAMLIA:

    O GOVERNO DE SI E DO OUTRO SOB A TICA DO GESTOR

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva da Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito final para a obteno do ttulo de doutor em Sade Coletiva. Orientadora: Rita de Cssia Duarte Lima.

    Vitria

    2016

  • Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP) (Biblioteca Setorial do Centro de Cincias da Sade da Universidade

    Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)

    Galavote, Heletcia Scabelo, 1985 - G146g A gesto do trabalho na Estratgia Sade da Famlia: o

    governo de si e do outro sob a tica do gestor / Heletcia Scabelo Galavote 2016.

    152 f. Orientador: Rita de Cssia Duarte Lima.

    Tese (Doutorado em Sade Coletiva) Universidade Federal

    do Esprito Santo, Centro de Cincias da Sade. 1. Sade da Famlia. 2. Trabalhadores. 3. Gestor de Sade.

    I. Lima, Rita de Cssia Duarte. II. Universidade Federal do Esprito Santo. Centro de Cincias da Sade. III. Ttulo.

    CDU: 614

  • A Deus, pela vida. A Maria Ines e Arlindo pelo amor sem limites e por serem parte de mim.

  • AGRADECIMENTOS

    Este estudo foi feito por muitas mos. Mos que acariciam, que sonham, que

    apoiam e que se unem em orao e se estendem em gestos de solidariedade e

    amor. A produo do texto solitria, mas a produo de vida se d na relao com

    o outro, enquanto potncia de ao. Foram muitos encontros alegres e muitos

    encontros tristes. Eis que agradeo queles que foram geradores de paixes alegres

    e potncia de vida nesta produo.

    A Deus, em sua infinita bondade, por ter me propiciado a oportunidade de viver e por

    ter me agraciado em meio a tantas conquistas.

    Maria Ines, minha querida me, por ser fonte de vida, amor, cuidado e proteo.

    Sempre foi colo afvel nos momentos de dor e reduto de felicidade em momentos de

    conquistas. Devo-lhe a vida e tudo que eu sou. Alegra-se com minhas vitrias, e

    revive em mim a alegria de oportunidades que a vida no lhe deu. Mulher inteligente,

    sbia, forte e talentosa. Mame que uma artista, musicista. Sempre me diz: Ah, se

    eu tivesse a oportunidade de ter estudado!. Ento, me, esta vitria nossa, eu

    consegui. Te amo.

    A Arlindo, pai querido, dedicado, zeloso, amvel e dengoso. Homem de f, que se

    orgulha da sua dignidade e honestidade. Luta com o poder da orao e se orgulha

    de ter ofertado a oportunidade de estudo s suas filhas, mesmo em meio a

    dificuldades e renncias. Papai que se orgulha da famlia, que ama

    incondicionalmente e que no se cansa de dizer que era um dos melhores alunos da

    turma da escola da zona rural onde cresceu, mas sempre lembra que mame era a

    mais inteligente. Lamenta no ter estudado, mas sente orgulho do sucesso das

    filhas. Pai, sempre digo que a sua sabedoria transcende a de muitos doutores. Te

    amo.

    Silvia Amlia, minha irm, pelo apoio e por ter me incentivado a estudar. Voc

    renunciou a conquistas em prol das minhas. Trabalhou muito para que eu tivesse o

    melhor e comemorou como se fosse sua a minha aprovao no penltimo lugar no

    vestibular da UFES para o curso de Enfermagem. Quando papai teve medo se

    teramos condies financeiras de me manter fora de casa, foi a primeira a dizer:

  • Ela vai. Obrigada, pois se no fosse por voc eu no estaria aqui. Obrigada por ter

    me dado a oportunidade de conhecer um amor que eu nunca imaginava ao me

    conceder meus dois sobrinhos queridos. Tudo que sou devo a voc. Te amo.

    Luisa, minha sobrinha linda, carinhosa e amvel. Minha amiga de todas as horas,

    que me ensina a cada dia o sentido de amar sem pedir nada em troca. Nininha te

    ama e ser sua fada madrinha por toda a vida.

    A Luis Otvio, meu sobrinho e beb muito amado, o mais novo homem da casa.

    Veio para apoiar o vov que era sempre minoria. A madrinha te ama muito e sente

    muita saudade. Que voc tenha sempre amor e alegria.

    Ao meu cunhado Jos Ronim pelo carinho e amizade.

    A toda minha famlia, por ser meu porto seguro e por compreender os momentos de

    ausncia.

    querida professora Rita de Cssia, minha orientadora de doutorado. Como o

    tempo passa rpido, professora, parece que foi ontem que te procurei para seleo

    da bolsa de iniciao cientfica e hoje estamos aqui, juntas, comemorando a minha

    defesa de doutorado. Foram mais de dez anos, de grandes conquistas e muitas

    vitrias. Obrigada por acreditar em mim e por compreender as minhas fraquezas e

    ausncias. Concedeu-me tantas oportunidades e soube despertar, em mim, saberes

    que conformam a pesquisadora e professora que me tornei. Voc sempre foi a

    minha referncia, e construmos uma relao de respeito e confiana que se findou

    em uma amizade. Voc ser sempre a minha professora Rita.

    Ao professor Tlio Franco, por sua solidariedade, dedicao e exmio saber. Sempre

    presente e disposto a ajudar e contribuir na construo do conhecimento. Obrigada

    por acreditar em mim e pelo apoio de sempre.

    professora Eliane de Ftima, pelo apoio e amizade. Obrigada pela confiana,

    carinho e dedicao. Sempre digo que voc foi um presente de Deus e que nossa

    amizade comeou no dia que nos conhecemos; foi amor primeira vista. Admiro sua

    bondade e saiba que seus ensinamentos sero sempre lembrados por onde eu for.

    professora Maria Anglica, pela partilha de conhecimento e pelo apoio e carinho.

  • Ao meu namorado, Cleocir, que viveu cada momento destes ltimos dois anos de

    doutorado, ao meu lado, compartilhando alegrias e tristezas. Obrigada por ter me

    amparado no momento em que eu mais precisava e por ter sido perseverante e

    compreensivo. Perdoe-me pelos erros que cometi no turbilho de emoes que se

    firmaram nessa reta final e saiba que essa vitria eu dedico tambm a voc. Voc

    me ensinou que o amor supera tudo. Te amo.

    s amigas e colegas de trabalho, Leticia Molino e Leticya Negri, pelo apoio e

    compreenso. Em dias felizes e dias de luta construmos nossa histria na sala das

    Letcias.

    amiga Flvia Portugal, pelo prazer da convivncia e da amizade. Admiro sua fora

    e determinao.

    amiga Paula, por estar sempre presente e ao meu lado. Obrigada pelas palavras

    de carinho e motivao. Obrigada pelo prazer da amizade.

    amiga Luandra, por me reerguer no momento em que eu mais precisava e por

    ofertar tanta alegria aos meus dias. Perdoe-me pela ausncia e saiba que muito

    especial.

    querida Cinara, que sempre me recebeu na secretaria do PPGSC com um sorriso

    repleto de alegria. Dividiu momentos difceis e comemorou comigo as pequenas

    vitrias. Voc umas das amizades que levo com carinho deste doutorado.

    Obrigada por tudo.

    s minhas colegas de doutorado, Carolina, Cludia, Geisa e Kallen, pela

    convivncia durante esses quatro anos e pelo apoio.

    Aos professores do doutorado em Sade Coletiva do PPGSC, pelos ensinamentos.

    Aos alunos do curso de Enfermagem do CEUNES/UFES, pela oportunidade de

    compartilhamento de saberes e pelo carinho. Em especial, aos meus orientandos de

    extenso e iniciao cientfica, Thais Sossai, Rafaela Lirio e Nilo, que compartilham

    comigo o amor e a dedicao ao trabalho na Ateno Bsica. Obrigada por

    acreditarem no meu trabalho e pela relao de amizade que construmos.

  • A Maiza Bonfim, amiga sempre presente, que admiro pela competncia e dedicao

    ao trabalho. Obrigada pela dedicao a nossa amizade e pelas oportunidades que

    me propiciou desde que nos conhecemos.

    Aos queridos amigos do Nupgasc, Priscilla, Ana Cludia, Bruna, Rafael, rika,

    Pablo, Flvio, Renata, Paula, Adriana, Thiago Sarti e tantos outros que foram

    sempre presena amiga e que dividiram o trabalho e as alegrias.

    s amigas Mariana Botelho e Dayana Justiniano pela ajuda na realizao e

    transcrio das entrevistas e pela dedicao e empenho ao meu trabalho.

    Aos amigos Thiago Prado e Joo Paulo, sempre presentes em todos os momentos e

    grandes parceiros na vida e no trabalho.

    Ao amigo Wellington Prado pelo carinho e ateno.

    Ao amigo Humberto Rocha pela amizade, apoio e presena.

    Aos colegas de trabalho da Estratgia Sade da Famlia Honorio Piassi, que me

    acolheram com tanto carinho e me ajudaram no desenvolvimento do meu doutorado.

    Foi um prazer trabalhar com vocs. Em especial, a amiga Zlia, que assumiu minhas

    tarefas para que eu pudesse estar presente nas aulas do doutorado.

    Aos gestores entrevistados pela oportunidade de desenvolvimento da pesquisa e

    pela disponibilidade em acolher-me e partilhar o cotidiano de trabalho.

    Minha eterna gratido a todos que fazem parte da minha vida!

  • H um tempo em que preciso abandonar as roupas usadas, que j tm a forma de nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. o tempo da travessia: e, se no ousarmos faz-la, teremos ficado, para sempre, margem de ns mesmos.

    Fernando Pessoa

  • RESUMO

    O processo de gesto do trabalho em sade no cenrio da Estratgia Sade da

    Famlia (ESF) surge como uma inteno analtica fundamentada nos conceitos

    propostos por Foucault acerca dos dispositivos de poder e das tcnicas do cuidado

    de si e dos outros como fundamento de um exerccio de um poder poltico. A

    unidade de anlise transita entre o espao da macropoltica e da micropoltica da

    gesto do trabalho em sade que permeia o territrio de imanncia entre o que

    tido como norma e a renormalizao. O objetivo analisar a gesto do trabalho na

    ESF no estado do Esprito Santo, a partir do discurso dos gestores, assim como

    identificar as prticas desenvolvidas pelos gestores na constituio do governo de si

    e dos outros. Trata-se de um estudo do tipo descritivo, exploratrio, com abordagem

    qualitativa. Para o alcance dos objetivos, foram convidados a participarem os

    gestores de 36 municpios do ES: secretrio municipal de Sade; coordenador

    municipal da Estratgia Sade da Famlia e coordenador municipal da Ateno

    Primria Sade. Para a coleta dos dados foi utilizada a entrevista semiestruturada

    e a observao participante. A anlise de discurso foi a base da anlise dos dados e

    a cartografia foi utilizada como mtodo complementar de pesquisa. Destacam-se,

    nos discursos, elementos que sinalizam uma prtica de gesto por disciplinamento e

    controle dos trabalhadores, atravs da obteno de resultados, fundamentada em

    atos mandatrios e normalizadores do trabalho dito prescrito, trabalho morto, que

    amputa o trabalhador da sua autonomia e inventividade. Inovar para os gestores, em

    estudo, representa mobilizar os trabalhadores com base em um centralismo poltico

    que garante ao gestor formal a deciso final e definio dos rumos, j que as

    equipes detm pouca governabilidade em relao definio de metas e

    indicadores. Os gestores produzem prticas de si, no entanto, esto aprisionados

    pelas normatizaes da prpria organizao de sade, atravs de marcas inscritas

    em seu corpo e que determinam um ser gestor de sade com discursos e aes

    serializados. So gestores stultus, j que no exercem o cuidado de si enquanto

    liberdade e albergam uma vontade subordinada, que no livre.

    Palavras-chave: Gesto do Trabalho. Sade da Famlia. Trabalhadores. Gestor de

    Sade.

  • ABSTRACT

    The process of healthcare work management in the scenario of the Family Health

    Strategy is highlighted as an analytical intention founded on the concepts proposed

    by Foucault about the apparatuses of power and the techniques for the care of self

    and others as the foundtion of a political power exercise. The analysis unity transits

    between the space of macro-politics and that of the micro-politics of the management

    of work in healthcare, which permeated the teritory of imanence between what is

    taken as the norm and re-normalization. The objective it to analize the management

    of work in the Family Health Strategy in the state of Espirito Santo, starting from the

    discourse of the managers, as well as identifying the pratices involved by the

    managers in the constitution of the government of self and others. This is a

    descriptive and exploratory study, with a qualitative approach. To achieve this

    objectives, managers from 36 municipalities of the state of Espirito Santo were

    invited to participate: the Municipal Health Secretary; the Municipal Coordinator for

    the Family Health Strategy; and the Municipal Coordinator for Primary Health Care. A

    semi-structured interview and participant observation were used for the collection of

    data. The discourse analysis was the basis for data analysis, and the cartography

    was used as a complementary method of research. There are elements in the

    discourse that are highlighted for signaling to a practice of management through

    discipline and control over the workers, through the attainement of results, founded in

    mandatory acts and in the normalization of the work, which is called prescribed,

    dead, amputating the autonomy and creativity of the worker. For the managers, to

    innovate means to mobilize the workers based on a political centralization that

    warrants for the manager the final decision and the definition of the directions, once

    the teams have little governability relating to the definition of goals and indicators.

    The managers produce self practices, but are inprisoned by the normalizations of the

    healthcare organiztion itself through the marks that are inscribed on their bodies and

    that determine a healthcare manager with serialized discourses and actions. They

    are stultus managers, since they don't exercize the self care as freedom, and bare a

    subordinate will, which is not free.

    Keywords: Work management. Family Health. Workers. Healthcare Manager.

  • LISTA DE SIGLAS

    AB Ateno Bsica

    ACS Agente Comunitrio de Sade

    APS Ateno Primria Sade

    CCS Centro de Cincias da Sade

    CEP Comit de tica em Pesquisa

    ES Esprito Santo

    ESF Estratgia Sade da Famlia

    MS Ministrio da Sade

    PPGSC Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva

    TCC Trabalho de Concluso de Curso

    UFF Universidade Federal Fluminense

    RJ Rio de Janeiro

    PSF Programa Sade da Famlia

    SUS Sistema nico de Sade

    UFES Universidade Federal do Esprito Santo

    USF Unidades de Sade da Famlia

  • SUMRIO

    1 APRESENTAO .................................................................................... 13

    2 INTRODUO .......................................................................................... 17

    3 OBJETIVOS .............................................................................................. 26

    3.1 OBJETIVO GERAL ................................................................................... 26

    3.2 OBJETIVOS ESPECFICOS ..................................................................... 26

    4 ENSAIOS SOBRE A GESTO DO TRABALHO EM SADE NO GOVERNO DE SI E DO OUTRO ..............................................................

    27

    5 ASPECTOS METODOLGICOS ............................................................. 49

    5.1 DELINEAMENTO ...................................................................................... 50

    5.2 CENRIO .................................................................................................. 51

    5.3 PARTICIPANTES DA PESQUISA ............................................................ 53

    5.4 COLETA DOS DADOS ............................................................................. 53

    5.5 ANLISE DOS DADOS ............................................................................. 55

    5.6 ASPECTOS TICOS ................................................................................ 56

    6 RESULTADOS E DISCUSSO ........................................................... 58

    6.1 PERFIL SOCIODEMOGRFICO E PROFISSIONAL DOS GESTORES . 58

    6.2 ARTIGO 1 - A GESTO DO TRABALHO NA ESTRATGIA SADE DA FAMLIA: (DES)POTENCIALIDADES NO COTIDIANO DO TRABALHO EM SADE ................................................................................................

    62

    6.3 ARTIGO 2 - O GOVERNO DE SI E DOS OUTROS TECENDO MODELAGENS DE GESTO DO TRABALHO NA ESTRATGIA SADE DA FAMLIA .................................................................................

    87

    7 CONSIDERAES FINAIS ...................................................................... 115

    REFERNCIAS ......................................................................................... 121

    APNDICES ............................................................................................. 134

    ANEXOS ................................................................................................... 145

  • 14

    1 APRESENTAO

    Vim, tanta areia andei Da lua cheia eu sei

    Uma saudade imensa Vagando em verso eu vim

    Vestido de cetim Na mo direita, rosas

    Vou levar

    Paulo Tapajs Gomes Filho

    Por onde andei traduz a travessia que fiz at a concepo deste estudo.

    Desde a graduao em Enfermagem, a Sade Coletiva enquanto campo de saberes

    e prticas foi uma escolha para a aquisio de conhecimentos. Iniciei a pesquisa na

    rea com enfoque na anlise dos processos de trabalho em sade, na tica da

    micropoltica, com a releitura do trabalho do agente comunitrio de sade (ACS) na

    Estratgia Sade da Famlia (ESF). O trabalho de concluso de curso (TCC) tinha

    como objetivo desvendar o processo de trabalho do ACS no municpio de Vitria/ES

    e identificou que existe uma idealizao das competncias referentes ao trabalho, o

    que gera um sentimento de impotncia e limitao em face dos desafios impostos.

    Conclumos que o ACS necessita de ferramentas e habilidades que superem o

    conhecimento tcnico, permitindo-lhe atuar no mbito social de cada famlia,

    considerando o campo das necessidades de sade de cada usurio. O estudo foi

    aprovado para a publicao e constitui uma das produes mais citadas, dentre as

    de minha autoria.

    Fui inundada pelo desejo de pesquisar e aprofundar meus conhecimentos sobre o

    trabalho do ACS, o que me deu potncia para a busca do ingresso no mestrado. A

    professora Rita Lima, minha orientadora da iniciao cientfica, em minha defesa do

    TCC, sugeriu que eu ousasse outros voos, novos horizontes, e eu resolvi me lanar

    ao desafio de deixar o conforto da minha Universidade de formao para ingressar

    no mestrado em Sade Coletiva na Universidade Federal Fluminense (UFF). L tive

    a oportunidade de conhecer o professor Tlio Franco, que me proporcionou infinitas

    possibilidades no campo da filosofia aplicada compreenso da micropoltica dos

    processos de trabalho em sade. Debrucei-me no estudo aprofundado de autores de

  • 15

    escrita complexa, mas que me permitiram ressignificar o objeto em estudo, e ento

    decidi abordar as alegrias e tristezas no cotidiano de trabalho do ACS com base no

    dilogo entre a teoria das afeces de Espinosa e a Psicodinmica do Trabalho de

    Dejours. No primeiro ano do mestrado houve um grande investimento na construo

    do marco terico que se constituiria como a base da anlise dos dados obtidos por

    meio de entrevistas com os ACS no municpio de So Gonalo/RJ. Aps a

    qualificao tive um grande desejo em atuar na prtica cotidiana como enfermeira, o

    que teve como resultado a aprovao no concurso pblico para a ESF do municpio

    de Angra dos Reis. Professor Tulio me incentivou a assumir o cargo e me alertou

    sobre como a prtica de trabalho reordenaria minha concepo, ainda ingnua,

    sobre a prtica do ACS. Eis que, aps seis meses de trabalho, a minha anlise dos

    dados sofreu uma profunda reestruturao e a pesquisadora, em mim, abandonou a

    viso ingnua do ACS como o elo entre a equipe e a comunidade e se abriu

    evidncia dos limites e das potencialidades do trabalho deste ator em seu cenrio

    real de prticas. O desvendamento do trabalho do ACS revelou um trabalhador que

    opera na molaridade e pluralidade, um hbrido que permeia territrios distintos da

    trade poder, saber e subjetividade. Estar em situao real de trabalho me permitiu

    olhar para este trabalhador como produo e reproduo, como potncia de vida e

    de morte, como promoo de aes de cuidado ou descuidado. Eu tinha a plena

    certeza de que tinha sido inundada pelo meu objeto e pelas concepes tericas de

    que me apropriei, de tal forma que a separao entre a teoria e a prtica era

    impossvel ou invivel.

    Permaneci por trs anos na ESF em Angra dos Reis e senti saudades de casa. Da

    casa em seu sentido de convvio familiar e enquanto unidade de formao

    acadmica. Era a hora de voltar! Mas, para uma enfermeira que no opera em

    territrios de incerteza, ingressei na ESF no municpio de Castelo/ES, ao mesmo

    tempo em que fui aprovada na seleo para o doutorado em Sade Coletiva da

    Universidade Federal do Esprito Santo (UFES). Era a hora de viver um conflito entre

    o abandono do cargo ou a vivncia conjunta das duas novas possibilidades. E viver

    tudo junto foi a minha opo, nada fcil, mas fundamental para alimentar a

    pesquisadora, em mim, e a enfermeira afoita por cuidar e estar em encontro com o

    outro. Eu no sobreviveria sem estar em encontro de cuidado com o outro, era o que

    me dava foras para superar o cansao da produo intelectual do doutorado.

  • 16

    No doutorado, o objeto de estudo escolhido foi a anlise da gesto do trabalho na

    ESF, a partir do discurso do gestor, o que me gerou desconforto, visto que imperava

    em mim, como trabalhadora da ESF, os conflitos e resistncias estabelecidas com a

    gesto formal no decorrer da minha trajetria de trabalho. Para mim, o gestor era

    tido como o ditador, normatizador, alienado e que prescrevia prticas e condutas

    inaplicveis realidade das equipes. Era a figura, em meu imaginrio, do alheio ao

    cotidiano de trabalho e mantedor de hierarquias fundadas no medo e represses.

    Foi necessria a ruptura com meus conceitos pr-fabricados, para que eu

    conseguisse analisar o trabalho do gestor, enquanto um trabalhador que est em

    cargo formal de gesto e que, tambm, est exposto a processos de captura e

    servido. Eu precisava olhar para ele com o olhar de pesquisadora em investigao

    de seus campos de prticas, e como a pesquisadora e a enfermeira so

    inseparveis, o processo foi rduo e doloroso.

    Eis que entre as andanas ocorreram rupturas, contratos e descontratos, o que me

    incentivou a trilhar novos caminhos e que me desterritorializaram. Assumi um novo

    cargo pblico como docente do curso de Enfermagem da UFES, campus de So

    Mateus/ES. Um novo trabalho, uma nova cidade, um objeto de estudo em

    construo e outras possibilidades: novos territrios foram sendo produzidos em

    mim e nos outros. Como afirma Viviane Mos (informao verbal) ao citar Espinosa,

    se eu sou uma poro finita do que o infinito da vida eu sou movida por foras que

    eu no posso controlar.

    Superei os conflitos, em mim, e descobri nas entrevistas e observaes em campo

    que mais uma vez a minha postura foi ingnua; havia muito mais a ser desvendando

    alm do que eu imaginava. Ativei o meu olhar vibrtil para ver alm do que eu

    concebia como sendo o gestor formal de uma organizao de sade e eis que o que

    descobri est descrito nas pginas que seguem.

    A construo do marco terico deste estudo foi desenvolvida no escopo descritivo

    dos artigos produzidos com base nos resultados analisados, com nfase na anlise

    da imanncia entre a macro e a micropoltica da gesto em sade, atentando para a

    aplicabilidade da teoria do cuidado de si e do outro, desenvolvida por Foucault

    (2010; 2011), como uma possibilidade terica de disparar olhares mais

    aprofundados sobre o tema no mbito das prticas de sade. Assim, o presente

  • 17

    estudo se constitui na anlise dos discursos dos gestores do trabalho da ESF na

    constituio de prticas que desvendam a arte de governar a si e aos outros no

    cotidiano do trabalho em sade.

    O Artigo 1 compreende os objetivos especficos de analisar os limites e as

    potencialidades da gesto do trabalho na ESF no estado do ES e identificar as

    prticas desenvolvidas pelos gestores na constituio do governo de si e dos outros.

    Com base nas categorias analticas empricas propostas, so apresentados os

    limites e as potencialidades da gesto do trabalho na ESF, com sinalizao de

    prticas de gesto por disciplinamento e controle dos trabalhadores, atravs de

    normatizaes dos diferentes processos de trabalho.

    O Artigo 2 tem como objetivo identificar as tcnicas de governo e procedimentos

    utilizados na produo de prticas de controle das condutas, no mbito da gesto do

    trabalho, e descrever as modalidades de gesto do trabalho na ESF no ES. So

    propostas categorias analticas que conceituam as modelagens de gesto a partir do

    discurso dos gestores, como: improviso, compartilhada e do poder disciplinar. Esse

    artigo aprofunda o referencial terico do governo de si e dos outros, proposto por

    Foucault (2010; 2011), aplicado gesto do trabalho em sade, com destaque para

    a compreenso das relaes de poder circunscritas nas relaes estabelecidas

    pelos diferentes atores no bojo das prticas de gesto.

    Convido voc leitura do que produzi em minhas andanas.

  • 18

    2 INTRODUO

    O encontro do pesquisador com o seu objeto de anlise se produziu na leitura

    extenuante de diferentes concepes tericas acerca da gesto dos processos de

    trabalho em sade no corpo de um projeto sentinela, intitulado anlise das principais

    modalidades de gesto da ESF no estado do ES. O projeto foi desenvolvido por

    docentes, pesquisadores e discentes inseridos na linha de pesquisa: Poltica,

    Gesto e Avaliao em Sade, do Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva

    da Universidade Federal do Esprito Santo (PPGSC/UFES). Nessa linha, temas

    como polticas de sade e os diferentes formatos de gesto e avaliao tm sido

    privilegiados com diferentes recortes de cenrios e abordagens conceituais.

    O processo de gesto do trabalho na ESF surge como uma inteno analtica; e a

    busca de conceitos que instrumentalizem o pesquisador na compreenso da

    produo das tcnicas de governo nos apresentam as proposies de Foucault a

    respeito dos dispositivos de poder e das tcnicas do cuidado de si e dos outros,

    como fundamento de um exerccio de um poder poltico. Existe o desejo de

    compreender a construo do agir do gestor para alm das regulamentaes

    formais das diferentes esferas de governo, ou seja, o trabalho dito prescrito, o que

    possvel atravs de conceitos que permitam um novo olhar capaz de desnudar este

    ator que constitui um trabalhador da sade ao mesmo tempo em que ocupa um

    espao de constituio de um poder que tangencia o saber-fazer de outros atores

    em ao.

    A gesto em sade no fim em si mesma, se materializada na rede de sade e

    os gestores so os operadores dessa rede, estabelecendo contato direto com a

    organizao dos processos de trabalho em sade. Para Barros e Barros (2007) ela

    no representa apenas a organizao do trabalho, mas sim o que se passa entre os

    vetores-dobras que o constituem, que se configuram como dobras de um plano de

    produo, de forma que o trabalho em sade visto como um espao de produo

    de saberes, no qual planejar, decidir, executar e avaliar no se separam, estando a

    gesto da atividade vinculada prtica nos servios (BARROS; BARROS, 2007, p.

    62).

  • 19

    O gestor formal da organizao de sade aquele que ocupa um cargo de

    autodireo do governo, tambm conceituado por Matus (1993) como um agente da

    organizao representado pela letra g em grafia maiscula (G). De acordo com o

    autor, os trabalhadores tambm so agentes da organizao e so simbolizados

    pela letra g em grafia minscula (g). Todos governam, mesmo que caiba ao G a

    incumbncia formalizada de governar.

    Merhy (2015) indaga sobre qual o conceito de organizao de sade que opera no

    entendimento dos seus agentes, salientando que a mesma, em sua essncia,

    aquela construda pela ao dos diferentes atores que nela governam, em

    movimento de encontros e atos de fala. H uma dobra entre o formal e o informal,

    uma disputa entre a norma e a liberdade, uma tenso entre o trabalho morto,

    representado pelas normas, equipamentos e saberes institudos; e o trabalho vivo

    enquanto aquele realizado em ato no encontro trabalhador-usurio. A organizao

    existe e no existe, de forma que permanentemente atualizada pelas aes de

    seus prprios coletivos, que tambm esto em intenso processo de

    institucionalizao, em um campo de disputa de mundos com implicaes ticas e

    polticas chaves para o processamento dos atos produtivos (MERHY, 2015, p. 5).

    A unidade de anlise transita entre o espao da macropoltica e da micropoltica, que

    em seu conjunto constituem o campo da biopoltica como o lugar real de produo

    do trabalho, repleto de micropoderes e biopotncias. A potncia da vida, enquanto

    sinergia ou desconstruo coletiva no trabalho, se conforma nos afetos e desejos

    dos sujeitos operantes que vivem a sua singularidade na relao imanente com os

    outros. Assim, a biopotncia representa a potncia do trabalhador que luta para

    fazer valer a sua liberdade na relao de si e na constituio da relao com os

    outros, j que o trabalho em sade em sua essncia um trabalho relacional.

    O trabalhador gestor em sade, ento, um personagem social do campo da

    micropoltica, que segundo Rolnik (2006) envolve processos de subjetivao

    relacionados s esferas poltica, social e cultural, atravs dos quais se configuram os

    contornos da realidade em seu movimento contnuo de criao coletiva. O espao

    micro constitui o componente poltico no qual no existem unidades e sim

    intensidades, imersas em um plano de afetos no subjetivados, determinados pelos

    agenciamentos que o corpo faz em sua relao imanente com o mundo. No espao

  • 20

    da micropoltica, espao de multiplicidade, se inscrevem relaes permeadas pelo

    poder, mais precisamente pelos micropoderes produzidos na confluncia entre os

    corpos, o que desmistifica a ideia de um corpo social construdo por unidades

    (ROLNIK, 2006, p.11).

    O estudo do espao da macropoltica se fundamenta nas normalizaes constitudas

    como um direcionador para a prtica da gesto do trabalho em sade que, nesse

    contexto, podem significar a mediao poltica e tcnica entre os objetivos ticos e

    polticos na misso do Sistema nico de Sade (SUS) e os objetivos de

    gerenciamento da fora de trabalho disponvel, tornando-se dessa forma uma funo

    poltica, que deve ser desempenhada com competncia e efetividade (NOGUEIRA;

    SANTANA, 2001). Tambm, como reconhece Santana (2001), essa uma rea

    crtica para a renovao das concepes e das prticas gerenciais. Alm disso,

    existe amplo consenso de que no existe organizao eficaz sem uma gesto

    eficaz, sem um trabalho hbil de prever, organizar e avaliar os trabalhadores e os

    recursos materiais e financeiros para atingir os objetivos organizacionais com a

    populao a ser atendida (JUNQUEIRA, 1990).

    Amaral (2011), ao deter-se na compreenso das aes dos gestores, identifica uma

    vertente que denomina como psicossocial, relacionada aos fenmenos

    organizacionais que comtemplam a singularidade dos trabalhadores com suas

    motivaes, desejos e prticas de poder. Ressalta tambm que a gerncia envolve o

    alcance de metas e objetivos estabelecidos e que o gestor desenvolve habilidades

    que garantem o exerccio da liderana com base em relaes de: coero, que

    envolve a ameaa ou aplicao de punies sobre os liderados; recompensa, com a

    garantia de vantagens ou benefcios; referncia, relacionada ao respeito, empatia e

    justia; e competncia, com o desenvolvimento da criatividade, autonomia, eficcia e

    eficincia.

    Campos (1992), ao analisar o tema, adverte sobre a impossibilidade da

    consolidao do SUS sem que os trabalhadores de sade sejam um dos principais

    protagonistas no processo de construo dessa poltica pblica. De acordo com o

    autor, no ser possvel fazer avanar o sistema sem a integrao e esforo da

    maioria dos trabalhadores de sade. Assim, tem insistido na necessidade de se

    incluir, em qualquer projeto de mudana, as demandas e necessidades dos

  • 21

    profissionais de sade, de forma que h que se criar uma dinmica e

    funcionamento do sistema de tal maneira que os denominados recursos humanos

    sejam um dos principais sujeitos do processo de mudana (CAMPOS, 1992, p.

    138).

    A gesto do trabalho em sade permeia o territrio de imanncia entre o que tido

    como norma e a renormalizao, que consiste na recriao do que proposto por

    leis e formulaes da gesto engessada, o que evidencia a impossibilidade de

    controle das aes e agires dos diferentes atores, por parte do gestor formal. Esse

    deve reconhecer o espao do trabalho em sade como um ambiente de

    questionamento do que prescrito atravs da produo e reproduo de relaes

    de poder, que circulam entre o prescrito e o real (HENNINGTON, 2008). Merhy

    (1999) apresenta a tenso inscrita no exerccio da gesto em sade devido ao

    conflito entre a autonomia e o controle dos trabalhadores, o que dificulta a conduo

    de um dado modelo tecnoassistencial pautado em metas rgidas pactuadas pela

    gesto formal.

    Neste estudo, o campo da micropoltica da gesto do trabalho na ESF analisado

    sob o olhar das formulaes tericas de Foucault na determinao do cuidado de si

    e dos outros, na vertente da produo do governo de si e dos outros, com referncia

    aos conceitos de poder e governo.

    O poder para Foucault (2010) se produz e se processa em rede, sendo mais bem

    designado como relao de poder, j que circular e inscrito como presente em

    todas as relaes humanas. Todos os indivduos exercem o poder, j que no uma

    exclusividade de alguns. No entanto, a posio que ocupam na sociedade pode

    determinar maior ou menor controle de uns sobre os outros, no sentido de alguns

    instrumentos tcnicos serem mais acessveis aos ocupantes de cargos de

    autodireo, como o exerccio da disciplina sobre os corpos, para o controle dos

    gestos e condutas, ou mesmo como forma de produo, induo do saber e

    construo do discurso.

    O autor introduz a ideia de anatomia poltica ao pensar nas formas invisveis de um

    poder disciplinar que cria corpos teis, tambm denominados como corpos dceis:

    dcil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser

  • 22

    transformado e aperfeioado (FOUCAULT, 2010, p. 132). Trata-se de um controle

    dos corpos sem a imposio de fora ou coero, mas sim do controle de gestos,

    atitudes e operaes de forma que o mesmo seja til, ou seja, o poder disciplinar

    tido como uma aptido, algo que possa ser praticado e exercido por todos os

    indivduos sob a forma de um olhar calculado (FOUCAULT, 2013). Fazendo uma

    analogia ao conceito de poder disciplinar, encontramos o exerccio do mesmo em

    diferentes formas no bojo da gesto dos processos de trabalho em sade. Est

    inscrito em um espao no qual todos os atores produzem e exercem micropoderes.

    A gesto formal conflui entre esses e o poder disciplinar institudo pelas normas de

    conduta das aes, com a finalidade de produzir atos em sade mais prximos do

    que estabelecido pelo trabalho prescrito e pelas metas pactuadas com instncias,

    muitas vezes, distantes do trabalho real.

    O conceito de governo proposto por Foucault (2011) como um conjunto de

    tcnicas e procedimentos que direcionam a conduta dos homens. O cuidado de si

    apresenta uma conotao tica e corresponde ao modo como o sujeito conduz a si e

    aos outros, assim como um desejo de governar os outros atravs de saberes e

    prticas que so exercidas pelo eu. O cuidado de si surge como um primeiro

    despertar, uma agitao, movimento e inquietude, e est atrelado prtica do

    exerccio do poder, de forma que:

    Como vemos, ocupar-se consigo est, porm implicado na vontade do indivduo de exercer o poder poltico sobre os outros e dela decorre. No se pode governar os outros, no se pode bem governar os outros, no se pode transformar os prprios privilgios em ao poltica sobre os outros, em ao racional, se no est ocupado consigo mesmo (FOUCAULT, 2011, p. 35).

    Grabois (2011) aponta que atravs do controle das prprias paixes e das

    atribuies individuais os outros tero plena certeza de que o governante saber

    limitar o poder que exercer sobre os outros e ter ferramentas teis para a gerncia

    das condutas. O cuidado de si envolve o desenvolvimento de prticas que

    instrumentalizam o indivduo na conduo de outros e representa tambm uma

    estratgia de autoconhecimento que busca a produo de verdades e resistncia ao

    poder que lhe exterior.

    A governamentalidade apresentada por Foucault (2011) como um campo

    estratgico de relaes de poder e compreende uma trama em torno do governo de

  • 23

    si e dos outros, o que confere ao conceito uma conotao tambm poltica. Assim,

    para fins de anlise da gesto do trabalho em sade, o conceito de cuidado de si

    est vinculado ao movimento de recriao, inventividade e desenvolvimento de

    prticas e instrumentos que conduzam o gestor na produo do seu trabalho e que o

    permitam gerir o trabalho e as condutas dos outros, buscando apreender as linhas

    de resistncia que surgem no espao da governamentalidade, j que todo

    trabalhador da sade tambm gestor do seu prprio trabalho e capaz de exercer o

    cuidado de si e de produzir prticas de poder.

    Campos (2007a) alerta que o comando e situaes de organizao do processo de

    trabalho autoritrias impedem o exerccio da liberdade dos trabalhadores, criando

    profissionais alienados e descomprometidos. Para o autor, os trabalhadores passam

    a ser movidos apenas por recompensas financeiras e/ou vigilncia constante, o que

    precariza as prticas de trabalho, sinalizando o insucesso desses instrumentos de

    gesto. Assim, a gesto em sade no Brasil se apresentaria com fortes tendncias

    tayloristas, normatizao burocrtica, superviso e controle de horrio e

    produtividade, mostrando-se ineficaz em sua totalidade quando consideramos o

    protagonismo dos trabalhadores na conduo das suas prticas cotidianas de

    trabalho. O que existe um distanciamento entre os executores (G) das funes

    formais de gesto e os agentes (g) operadores das atividades finalsticas.

    Franco (2013) reconhece que o trabalhador da sade livre na organizao do seu

    processo produtivo, porm, ressalta que a gesto tem potncia para disciplin-los

    atravs de normas, regras e protocolos de condutas que visam padronizar os atos,

    muitas vezes, por meio do consentimento dos prprios trabalhadores, que se deixam

    aprisionar e capturar em seus modos de agir. Para Foucault (2008) a disciplina um

    dos instrumentos que o poder exerce sobre os corpos e gera como controle das

    condutas as normatizaes, de forma que o soberano compreendido enquanto o

    sujeito ocupante de cargo de direo do governo capaz de dizer no ao desejo do

    indivduo de uma forma legtima e fundada na prpria vontade do governado.

    O artifcio seria reconduzir a vontade do outro, no contexto das relaes de poder,

    de acordo com os instrumentos de persuaso empregados no bojo da organizao.

    Tcnicas e habilidades de governo seriam esses instrumentos de disciplinamento

    dos trabalhadores, sendo hipottico afirmar que estariam, frequentemente,

  • 24

    relacionadas s prticas de coero, ameaa, medo e punies. O gestor formal do

    trabalho, pela posio que ocupa na organizao, teria estratgias de poder que

    poderiam subjugar os trabalhadores a prticas diretivas, considerando a

    possibilidade de sanes como a demisso ou retirada de incentivos financeiros.

    Os modelos de gesto e modos de subjetivao apresentam-se como processos

    contguos, que se entrelaam em um movimento circular de mudana e produo de

    novos territrios no campo da gesto em sade (COLHO, 2015). Neste estudo, o

    gestor tem a possibilidade de expressar por meio do discurso, como constituio

    scio-histrica, a sua vivncia na gesto do trabalho por meio da anlise e reflexo

    das prticas de si que influenciam diretamente a forma como ele agencia as prticas

    do outro. um olhar para si mesmo e suas condutas na gesto dos diferentes

    trabalhos. O que se busca so as tcnicas e habilidades utilizadas nesse contexto

    de ao, com o objetivo de identificar a multiplicidade das formas de fazer a gesto

    em sade.

    Um modelo de ateno sade deve ter seu foco no contedo do sistema de sade,

    representado pelas prticas, e no apenas no continente, enquanto infraestrutura,

    gesto e financiamento. Essa designao refere-se essencialmente s formas de

    organizao dos servios, com base em tecnologias estruturadas para a resoluo

    de problemas e atendimento das necessidades de sade. Paim (2012), ao

    apresentar os diferentes modelos tecnoassistenciais vivenciados no pas, destaca: o

    modelo mdico, hegemnico, com medicalizao dos problemas e privilgio da

    dualidade sade/doena; o Programa Sade da Famlia (PSF), com interveno

    focada em pobres e excludos, tecnologia da programao em sade, aes

    territorializadas, preveno de riscos e agravos; e a ESF, com interface entre as

    combinaes tecnolgicas da oferta organizada, distritalizao, vigilncia sade e

    reorganizao dos processos de trabalho.

    O PSF surge, em 1994, como um modelo de ateno sade de carter

    verticalizado e prescritivo, no contexto da Ateno Primria Seletiva, constituda por

    programas focalizados e diretivos, com uma cesta restrita de servios direcionados

    s populaes pobres e vulnerveis. Essa concepo de Ateno Primria Sade

    (APS) difere daquela proposta na Conferncia de Alma Ata, em 1978, que tinha o

    propsito de instituir uma ateno abrangente ou integral, a partir da necessidade de

  • 25

    enfrentar os determinantes sociais de sade, com carter universal. Giovanella e

    Mendona (2012) associam o surgimento da APS seletiva ao contexto mundial

    adverso de baixo crescimento econmico, considerando a perspectiva de reduo

    de custos das agncias internacionais de financiamento, como, por exemplo, o

    Banco Mundial. A proposio da lgica de conteno dos gastos foi designar um

    pacote de intervenes de baixo custo para combater as doenas em pases em

    desenvolvimento.

    No Brasil, os esforos para a superao dessa herana da APS seletiva tiveram

    como proposta a mudana do termo APS por Ateno Bsica, enquanto um nvel de

    ateno do SUS, essencial, fundamental e primordial, diferencia-se do conceito

    seletivo restrito de primitivo e simples. Assim, o PSF enquanto programa vertical e

    restrito da APS seletiva experiencia uma reformulao para um modelo de ateno

    da APS integral, admitindo o carter de uma estratgia de substituio do modelo de

    ateno sade, com a organizao do SUS em processo de municipalizao,

    integralidade do cuidado, participao da comunidade e reorganizao das prticas

    de trabalho (Giovanella; Mendona, 2012). Em 1997, o Ministrio da Sade (MS)

    atribui Sade da Famlia o escopo de estratgia para a reorientao do modelo

    assistencial, com um enfoque na proposta de ao no contexto da ateno bsica e

    como porta de entrada do sistema (Brasil, 1997).

    Franco e Merhy (2003) referem que a matriz terica do PSF est circunscrita ao

    campo da vigilncia em sade de territrios, centrando o processo de trabalho s

    normas e prescries de carter higienista, constituindo uma linha paralela ao

    modelo mdico hegemnico. Para os autores, para alm da proposio de uma

    conceituao de estratgia, o PSF cometeu um erro de sada, aliado herana de

    uma proposta da APS seletiva e desvinculada da potncia de transformao que se

    refere reestruturao dos processos de trabalho em sade. A despotencializao

    da proposta como um novo modelo assistencial est contida na nfase da mudana

    de estrutura, sem que haja ressignificaes concisas nos microprocessos do

    trabalho em sade.

    Gil (2006) reconhece o crescimento da ESF no Brasil, mas ressalta que ela

    apresenta desafios para sua viabilizao, enquanto estratgia estruturante de

    sistemas municipais, no que se refere s prticas profissionais que deveriam estar

  • 26

    centradas no vnculo, responsabilizao, integralidade e trabalho em equipe e a

    gesto burocratizada do sistema, com normatizaes, lgica quantitativa de

    produo de procedimentos, baixa capacidade de inovao gerencial e

    desarticulao com os demais pontos de ateno da rede de servios.

    Nesse cenrio, os trabalhadores da sade constituem um dos desafios

    implementao dos modelos de ateno sade no mbito do SUS, especialmente

    na ateno bsica, especificamente na ESF, visto que a reorientao dos modelos

    vigentes ser possvel a partir da organizao das prticas em sade no espao da

    micropoltica. Fortuna (2002, p. 273) aponta que os trabalhadores da sade so o

    alvo das discusses de inovaes no SUS no que se refere organizao do

    trabalho. Prope um distanciamento do termo recursos humanos em sade,

    proposto por alguns autores e polticas ministeriais, reconhecendo que o trabalhador

    um sujeito social em processo de relao e no pode ser equiparado a um mero

    recurso da instituio, em semelhana a recursos materiais e fsicos.

    Dessa maneira, esta proposta parte do princpio de que os responsveis pela gesto

    do trabalho da ESF so protagonistas essenciais para a implementao das polticas

    pblicas de sade e por isso o seu agir cotidiano deve ser conhecido, no intuito de

    gerar conhecimento para a tomada de deciso. Justifica-se pela constatao de que

    a anlise dos componentes da macropoltica e da micropoltica da gesto do

    trabalho na ESF permite a compreenso do trabalho real desenvolvido pelo gestor

    na conduo do governo de si e dos outros, o que pode evidenciar as linhas de

    ruptura e de resistncia que desenham a trama das relaes de produo de poder,

    assim como as falhas entre o que est prescrito por normas e o que constitui o

    trabalho real desses atores. Busca-se o desvendamento do campo real e processual

    das prticas de gesto em sade, com especial interesse nas ferramentas de gesto

    utilizadas no cotidiano e o seu efeito na conformao das diferentes modelagens de

    gesto em sade, no contexto do trabalho. A inteno analtica consiste no olhar de

    um sujeito implicado com a realidade em estudo, para o cenrio da gesto do

    trabalho, com o intuito de apreender linhas de fugas, fluxos, afetos, relaes de

    poder e discursos ancorados em diferentes pontos de vistas (MERHY, 2014).

  • 27

    3 OBJETIVOS

    3.1 OBJETIVO GERAL

    Analisar a gesto do trabalho na ESF no ES, a partir do discurso dos gestores.

    3.2 OBJETIVOS ESPECFICOS

    Analisar os limites e as potencialidades da gesto do trabalho na ESF no

    estado do ES;

    Investigar as prticas desenvolvidas pelos gestores na constituio do

    governo de si e dos outros;

    Identificar as tcnicas de governo e procedimentos utilizados na produo de

    prticas de controle das condutas no mbito da gesto do trabalho; e

    Descrever as modalidades de gesto do trabalho na ESF no ES.

  • 28

    4 ENSAIOS SOBRE A GESTO DO TRABALHO EM SADE NO GOVERNO DE

    SI E DO OUTRO

    A calibrao dos gestos uma amputao dos movimentos (CLOT, 2006, p. 14).

    O trabalho em sade se processa como produo de vida e subjetividade (LIMA,

    2001). Santos e Barros (2012), ao apresentar os desafios e contextos do trabalho

    em sade, desde a dcada de 90, referem que as prticas precrias de gesto esto

    sendo acentuadas e marcadas pelo autoritarismo e excluso dos trabalhadores dos

    espaos de deciso e concepo, o que gera marcas nas relaes sociais de

    trabalho, por meio da insatisfao do trabalhador com a cobrana de produtividade,

    sobrecarga de trabalho, falta de apoio da gesto formal e trabalho parcelar,

    fragmentado e solitrio. O ato de planejar e o de executar so separados, o que

    diminui a autonomia e protagonismo das equipes. Para os autores, a prpria

    institucionalizao do SUS e de seus modelos de ateno favorece prticas de

    padronizao das condutas e fragmentao do trabalho. Consideram que o trabalho

    nunca neutro ou assptico e que sempre h usos de si e no somente execuo

    mecnica de procedimentos, de forma que o controle absoluto e a obedincia cega

    s prescries no trabalho em sade so algo invivvel e impossvel (SANTOS;

    BARROS, p. 107).

    A gesto do trabalho pode ser compreendida apenas sob o formato administrativo,

    pautado em situaes de mando e no controle prescritivo da organizao dos

    processos de trabalho, no campo da macropoltica, mas tambm ser uma ao

    cotidiana do trabalhador, no espao da micropoltica, a partir do reconhecimento de

    que todos os trabalhadores so gestores do seu prprio trabalho, exercendo graus

    de liberdade na organizao e execuo de suas prticas. O territrio da gesto do

    trabalho constitudo pela imanncia entre a macro e a micropoltica, de forma que

    alguns trabalhadores ocupam cargos de autodireo do governo municipal e esto

    situados em um espao de produo de um poder que tangencia o saber-fazer de

    outros atores em ao (FRANCO, 2013).

  • 29

    Enquanto prtica de governo produo e reproduo, uma dobra que permeada

    pelo institudo e pelo instituinte, pelo formal e informal, em espao de disputa de

    micropoderes e tenses constitutivas entre o que impera enquanto trabalho morto e

    a potncia do trabalho vivo (CRUZ, 2016). Barros e Barros (2007, p. 62) destacam

    que a gesto no apenas organizao do processo de trabalho, mas o que se

    passa entre os vetores-dobras que o constituem e que os trabalhadores so

    desejos, necessidades, interesses em conjugao e conflito (BARROS; BARROS,

    2016, p. 64).

    Os gestores do trabalho albergam em sua prtica de governo a definio de limites

    precisos para o exerccio do poder e ditam normas e prescrevem prticas com o

    intuito de garantir que os projetos da organizao se viabilizem, o que gera

    trabalhadores repetidores de velhas prticas. Em resposta ao centralismo do poder

    do gestor formal, o trabalhador opera novos dispositivos e aciona novos modos de

    produzir o cuidado se isto fizer parte dele, tanto do seu aprendizado tcnico, quanto

    do seu desejo de fazer (FRANCO, 2013, p. 247). Assim, mesmo comparado pela

    gesto como um mero recurso humano, o trabalhador o maior protagonista da

    produo do cuidado, sujeito ativo que opera com seus saberes, desejante, tem

    projetos, expectativas e atua no mundo do trabalho com suas caixas de ferramentas

    (FRANCO, 2013, p. 250). Existe uma tenso cotidiana entre liberdade e captura, que

    iro imprimir efeitos na formao da subjetividade do trabalhador, que pode ser

    nmade, enquanto movimento e agir libertrio, ou aprisionada, que tende a

    reproduzir prticas serializadas e burocratizadas, gerando um cuidado protocolar.

    O gestor formal da organizao de sade aquele que ocupa um cargo de

    autodireo do governo, tambm conceituado por Matus (1993) como um agente da

    organizao (G) em cargo formal de gesto, sendo que todos os agentes, sejam

    eles gestores (G) ou trabalhadores (g), governam, mesmo que caiba ao G a

    incumbncia formal de exercer tal atividade, sendo que na organizao operam

    todos os atores com diferentes graus de autonomia e governabilidade, representada

    pela capacidade de tomada de deciso com base nos recursos disponveis.

    A compreenso da gesto com base nas implicaes normativas da atividade parte

    do pressuposto de que a gesto produzida por todos os atores, sendo uma

    responsabilidade tica, j que mesmo sob os maiores cerceamentos, a realidade

  • 30

    institucional coproduo e agir compartilhado. O funcionamento institucional opera

    em suas inrcias e enclausuramentos, com o objetivo de conter os fluxos sociais, o

    que vai de encontro impossibilidade real de concretizar em absoluto a separao

    entre concepo e execuo no agir humano (GUIZARDI; CAVALCANTI, 2010, p.

    640).

    Franco (2013, p. 249) afirma que necessrio que os trabalhadores produzam

    encontros alegres e potentes, entre si e com a gesto, que representam um corpo

    concreto e simblico, que pode operar em um polo paranoide, criando um ambiente

    persecutrio nas relaes de trabalho, ou em um polo esquizo, o da criao,

    inveno, lugar dos processos instituintes e ricos em subjetivaes. Esses

    movimentos instituintes na composio dos encontros que se produzem no agir

    cotidiano dos sujeitos so vistos enquanto processo, com um dinamismo que os

    permite transformar as instituies, constituindo cdigos e signos que ressignificam

    a relao entre o sujeito e o espao de prticas no qual ele se situa (BAREMBLITT,

    1996).

    Os encontros que se produzem no espao molecular so mediados por afetos e

    intensidades, no sentido de que cada corpo, seja o trabalhador ou o gestor,

    representa uma essncia, um grau de potncia que permite a este corpo afetar ou

    ser afetado. Para a Teoria das Afeces, quando encontramos um corpo exterior ao

    nosso e que nos convm, ou seja, que capaz de aumentar a nossa potncia para

    agir medida que as relaes se compem, as paixes que nos afetam so de

    alegria, satisfao. Ao contrrio, quando nosso corpo se encontra com um corpo que

    no nos convm, sua potncia se ope nossa, operando uma subtrao ou

    anulao, sendo diminuda ou eliminada a nossa potncia para agir, surgindo as

    paixes tristes; sentimo-nos impotentes j que as paixes tristes so sempre

    impotncia (DELEUZE, 2002). O Estado regulador no seu ato de governar os

    servios e os trabalhadores produz um modo de fazer a gesto em sade que no

    garante condies adequadas de trabalho, segurana, liberdade e valorizao dos

    diferentes saberes, o que no encontro com as equipes gera paixes tristes, de

    impotncia e de diminuio da potncia de ao dos trabalhadores.

    necessrio manter os trabalhadores com alta potncia para agir no mundo do

    cuidado em sade, atravs da produo de bons encontros e produo ilimitada de

  • 31

    subjetividades nmades e libertrias. A subjetividade para Guatarri (2005) inerente

    ideia de outro, de um individuo enquanto um processo e um produto, um campo

    processual de formas moventes. No campo da micropoltica os indivduos so

    fabricadores e fabricados nos modos de agir e nos processos relacionais (FRANCO,

    2013, p. 340).

    Merhy (2014) conceitua a organizao de sade como uma arena onde operam

    distintos agentes institucionais com interesses convergentes e divergentes. Assim, a

    gesto seria o espao de disputa dos diferentes atores, assim como a revelao dos

    processos de tenso e das contratualidades que estabelecem entre si. Para o autor,

    pensar a organizao de sade como espao de existncia da gesto remete

    constatao de que a primeira no existe enquanto um espao formal, fisicamente

    representado por um prdio ou repartio, mas sim como uma instncia construda

    pela ao dos diferentes atores que nela governam, por meio de uma dobra do

    formal e informal, uma disputa entre a norma e liberdade, um campo de produo de

    mundos e pontos de vista.

    O cenrio dos servios de sade no somente material, normativo e poltico, mas

    intersubjetivo e interpsquico, o que gera um universo simblico e imaginrio

    compartilhado pelos atores e inscrito em conflitos (S; AZEVEDO, 2010). Os

    conflitos so tidos como analisadores das prticas de trabalho na promoo de

    corresponsabilidade no planejar, fazer e avaliar, rumo consolidao de mudanas

    nas formas de gesto dos servios. Ceclio (2005), ao considerar o conflito como a

    matria-prima da gesto em sade, alerta que alguns deles so produzidos como

    rudos no interior da organizao de sade e que os gestores no escutam ou no

    querem escutar em virtude do seu potencial de reproduo ou produo de

    territrios de poder. So comparados ao conceito de superfcie, que revela uma

    tenso sob a qual est a espessura, enquanto saberes, poderes, o institudo e

    malhas de captura que se interpenetram produzindo deslocamentos e rupturas. O

    autor afirma que o conflito pode ser desvelado como um potente dispositivo no bojo

    da gesto, por meio da viabilizao de novos arranjos e contratos pactuados pelo

    coletivo do trabalho, com a emerso de rudos invisveis aos olhos dos gestores.

    Um dos grandes desafios gesto do trabalho em sade conduzir a potncia

    andante enquanto estmulo liberdade de ao e criao de cada trabalhador, no

  • 32

    sentido de que o projeto tcnico-tico e poltico a servio do cuidado deva ser

    tambm um projeto do trabalhador operante, constituindo sua subjetividade na

    proposio de novos dispositivos nos servios de sade, em contraposio

    serializao de prticas rudimentares. Assim, possvel na gesto do trabalho em

    sade manter o trabalhador com alta potncia para agir no mundo do cuidado, que

    tambm um mundo social e afetivo, e possibilitar que o trabalhador produza no outro

    [...] alta potncia vital (FRANCO, 2013, p. 250).

    Existe uma constante tenso entre a autonomia e o controle no mundo das

    organizaes de sade, que considerado um territrio tensional em si, j que

    opera com alto grau de incerteza, marcado pelas subjetividades dos atores em cena,

    sendo um espao de interveno de sujeitos coletivos inscritos a partir de suas

    capacidades de se autogovernarem, disputando o caminhar do dia a dia, com as

    normas e regras institudas para o controle organizacional (MERHY, 1999, p. 309).

    A gesto do trabalho opera com o imaginrio de um trabalhador ideal, fabricado, que

    seja assujeitado ao plano de governo definido por meio de uma normatividade

    pretendida, sem reconhecer a presena do trabalhador real, imerso em um plano de

    subjetividades que o compem e que opera com gradientes de autonomia, e define

    a partir da sua intencionalidade a forma e direo do fazer em sade (CECILIO,

    2014).

    Campos (2009) discute o conceito de autonomia como a capacidade de lidar com a

    dependncia, de identificar as normas, compreender as relaes, tomar decises e

    agir sobre elas. No um conceito absoluto e deve ser apresentado em coeficientes

    ou graus e requer o exerccio do conhecimento de si e do contexto relacional ao qual

    o indivduo est inserido.

    Ceclio (BARROS, 2007) alerta sobre a constituio de uma gesto pautada em

    princpios funcionalistas, que, aliados a uma ideia de gestor moralmente

    comprometido com a construo do SUS, produzem o gestor funcional/moral, que

    em sua essncia reconhece o trabalhador apenas pelas funes que executa no

    servio, agindo de forma a expropri-lo do seu trabalho vivo atravs de uma

    racionalidade nica nos modos de organizar o cuidado e a gesto em sade. Assim,

    a gesto tem sido a disciplina do controle por excelncia, com enfoque na

    produtividade e reproduo do institudo, por meio de relaes interpessoais

  • 33

    marcadas pela ameaa que o outro e o seu saber-fazer representam. s vezes, na

    gesto, fora-se o rumo, coloca-se todo mundo no mesmo caminho, antes de saber

    para onde (e por que) querem uns e outros ir (CAMPOS, 2007b, p. 139).

    Feuerwerker aponta que,

    Do mesmo modo como ocorre com trabalhadores e usurios, os gestores em suas diferentes esferas de atuao so atravessados tambm por uma multiplicidade de planos, linhas, vetores, potencializados por alguns encontros, despotencializados por outros. A poltica, nos espaos de governo, tambm fabricada micropoliticamente. E tambm atravessada molarmente e molecularmente por diferentes linhas (FEUERWERKER, 2014, p. 68).

    A quimera da ateno bsica, enquanto imagem objetivo no campo do sonho ou

    fantasia, prev uma rede de servios universal, resolutiva, cuidadora e integral, sem

    frequentemente levar em considerao os atravessamentos reais no cotidiano, como

    a produo de redes alternativas e operantes, pelos trabalhadores, usurios,

    gestores e tantos outros autores, que nem sempre convergem para os mesmos

    interesses (CECLIO, 2012, p. 284). Nesse processo, os gestores experienciam um

    tempo das possibilidades, atravs da busca permanente da adequada relao

    entre a oferta e a demanda, buscando a racionalizao do uso dos tempos de

    acesso e consumo dos servios. Os profissionais de sade esto situados no tempo

    de cuidado e os usurios no tempo das necessidades, marcado, principalmente,

    pela experincia individual da doena. Assim, esses diferentes tempos, em geral,

    so dspares e geram rudos na operacionalizao do sistema de sade, de forma

    que os gestores esto atentos a uma demanda que parece estar equivocada, visto a

    inoperncia da rede de servios; os trabalhadores culpabilizam os gestores pela

    demora na disponibilizao dos servios; e os usurios pelas fragilidades e

    imprevisibilidades com que norteiam o processo sade-doena-cuidado advindos de

    suas demandas ao determinarem suas necessidades como imperativas.

    O gestor est imerso em um regime de regulao governamental que vivencia a

    demanda crescente pelo consumo dos servios de sade e uma rede de ateno

    sade que no cresce na mesma velocidade, especialmente, por aspectos

    financeiros e poltico-administrativos. Ao mesmo tempo, se distancia do espao da

    micropoltica do processo de trabalho em sade, o que torna invisveis as redes e

    fluxos produzidos por trabalhadores e usurios e que, em essncia, tem grande

  • 34

    potncia na organizao das redes vivas em sade. Magalhes (2014) afirma que as

    redes de ateno sade sofrem grande impacto pelo acesso ampliado na ateno

    bsica sade sem clareza dos fluxos entre os servios, principalmente, com a

    expanso da ESF a partir da dcada de 90.

    Merhy e colaboradores (2014, p. 154) ampliam a anlise das redes de ateno

    sade para alm da previsibilidade racional proposta pela Constituio Federal de

    88 e pelas leis orgnicas do SUS, propondo a ideia das redes vivas, que

    contemplam as diferentes subjetividades dos atores envolvidos na produo do

    cuidado, reconhecendo que a rede de servios de sade no nica em seu regime

    regulatrio governamental. Ao contrrio, opera em diferentes fluxos, como redes

    vivas em produo, j que produzida por todos os atores em cena, o que dificulta

    o controle regulatrio proposto pela gesto em seu carter meramente

    macropoltico. Assim, a discusso de redes de cuidado em sade, olhada a partir da

    macropoltica, tem baixa potncia, por no abarcar a dimenso micropoltica das

    experincias cotidianas (MERHY et al., 2014, p. 156).

    Pierantoni e colaboradores (2004), em um estudo sobre a capacidade gestora em

    instncias locais de sade, afirmam que a avaliao da autonomia de gesto dos

    gestores do trabalho nos municpios revela ser muito baixa ou inexistente, visto que

    a tomada de deciso sobre elementos do trabalho das equipes, como, por exemplo,

    contratao e utilizao de recursos financeiros, est condicionada s burocracias

    internas, alheias governabilidade do gestor. Os gestores em cargos de autodireo

    nas instncias locais de sade no dispem de instrumentos e tcnicas de

    negociao no interior da instituio que sejam capazes de sobrepor s estruturas

    de mando dos demais dirigentes municipais da sade.

    Um dos desafios da gesto do trabalho, segundo Franco (2013), envolver o

    trabalhador em um projeto comum tcnico-poltico-tico, j que existem sujeitos

    plenos e singulares, e considerando que, geralmente, os gestores do trabalho

    exercem uma gesto normativa de mando que garante apenas a formao de

    trabalhadores serializados que repetem prticas legitimadas e ultrapassadas. Assim,

    Os trabalhadores so equiparados a um insumo para o funcionamento dos servios de sade, quando na verdade ele o maior protagonista da produo do cuidado, sujeito ativo que opera com seus saberes, desejante, tem projetos, expectativas e atua no mundo do trabalho e

  • 35

    cuidado com suas caixas de ferramentas adquiridas na formao, e sobretudo na experimentao do mundo do trabalho e da vida, e isso que vai marcando sua atividade (FRANCO, 2013, p. 250).

    Os gestores caricaturam a ao dos trabalhadores no cenrio real de prticas, caso

    a mesma esteja contrria s normatizaes e disciplinamento que regem o trabalho

    em sade, nos municpios, como sendo um perfil inadequado de trabalho para a

    ESF. Feuerwerker (2014, p. 103) ressalta que preciso problematizar a questo de

    que o complexo mundo do trabalho no um lugar do igual, mas da multiplicidade,

    do diverso e da diferena, da tenso e da disputa. A autora afirma que

    necessrio, no bojo das organizaes e dos processos decisrios, reconhecer a

    diversidade, os processos de formao de subjetividades, a forma singular de

    produo do cuidado e a potncia inscrita na dinmica da prxis.

    Para Ceclio (2014), a gesto e o funcionamento do SUS se configuram menos

    como um desdobramento de uma ao tcnica-administrativa-gerencial e mais como

    o resultado da ao dos diferentes atores, que regulam o acesso e o consumo dos

    servios e reconfiguram as prticas de cuidado com base em subjetividades

    libertrias e nmades. Participar da gesto faz parte do campo de responsabilidade

    de todos os envolvidos em um processo de trabalho, por meio da criao de

    espaos coletivos que propiciem a interao intersujeitos (CAMPOS, 2007b).

    Lins e Ceclio (2007) propem campos de intervenes organizacionais como um

    esquema analtico capaz de revelar as intencionalidades inscritas nos projetos de

    interveno organizacional, operado por gestores e avaliadores, considerando que a

    operacionalizao dos mesmos no definida com base em um corpo terico

    conhecido e as mudanas almejadas ao nvel do discurso no se consolidam no

    cotidiano como ressignificao das prticas de gesto. Os autores alertam para o

    reducionismo proposto por anlises das organizaes de sade pautadas no

    referencial estrutural funcionalista, no qual no h reconhecimento dos conflitos de

    interesse e dos desejos e subjetividades dos trabalhadores. Apresentam a anlise

    institucional como uma ferramenta de compreenso da organizao como uma

    relao de produo, na qual os indivduos so desejantes, possuem autonomia e

    realizam aes concretas nos territrios definidos pelas normas. Assim, o sistema

    analtico proposto baseado nos campos de intervenes: universalistas,

    representado pelo eixo normativo de definio de regras, de forma que os projetos

  • 36

    individuais seriam condizentes com os objetivos organizacionais, em momentos de

    manuteno do controle e captura da criatividade e do desejo do trabalhador, que

    visto como um recurso humano; particularistas, no qual a ao e a liberdade do

    trabalhador podem definir ou redefinir a organizao de sade, de forma que a

    capacidade de governo est ancorada nas capacidades humanas coletivas, com

    espao de compartilhamento de projetos; e singulares, com a tenso constante entre

    norma e liberdade, objetivismo e subjetivismo, estando o projeto oficial do modelo de

    gesto vinculado aos objetivos da organizao com atravessamento por outros

    projetos que tencionam o institudo atravs de movimentos instituintes.

    Os gestores formais cumprem o papel de articulao entre as questes de governo,

    conduo da organizao e dos interesses dos trabalhadores, tendo o potencial de

    fortalecer a grupalidade, aumentando a governabilidade e autonomia das equipes e

    permitindo a construo de novos sentidos para o trabalho e de novos imaginrios

    na organizao (S; AZEVEDO, 2013, p. 42). No entanto, as autoras, apesar de

    compreenderem a potncia da prtica gerencial no embate entre as foras

    dominantes de manuteno do institudo, afirmam que os prprios gestores esto

    imersos e transitando entre territrios de um imaginrio de impotncia e descrena e

    outro de mudana e produo, que capaz de propor novas formas de organizao

    dos servios. H evidncia de uma baixa capacidade de governo dos gestores, com

    limites na gesto dos trabalhadores que demonstram resistncia s atividades a eles

    atribudas, sentimentos de impotncia que resultam em grande desgaste psquico e

    interferncia das secretarias de sade que impem limites para a interveno a nvel

    local e baixa governabilidade.

    S e Azevedo (2013, p. 355), ao proporem o laboratrio de prticas gerenciais como

    espao de formao na gesto hospitalar, identificam que o sentido de gesto para

    os gestores, em anlise, perpassa pela possibilidade de mobilizao do coletivo dos

    trabalhadores e pelo desgoverno, enquanto uma dificuldade em exercer a funo

    castradora estabelecimento de regras, regulao do trabalho e implementao de

    processos que aumentem a responsabilidade dos profissionais com seu trabalho.

    Para o gestor, a impotncia no cotidiano de trabalho est atrelada dificuldade de

    controlar o processo de trabalho das equipes, ao atravessamento das lideranas

    polticas que ditam normas e condutas e baixa capacidade de tomada de deciso.

  • 37

    A gesto do trabalho, nesse contexto, analisada com base na teoria do cuidado de

    si e dos outros, proposta por Foucault, em relao ao conceito de governo e poder.

    Para Foucault (2008) a disciplina um dos instrumentos que o poder exerce sobre

    os corpos e gera como controle das condutas as normatizaes, de forma que o

    soberano, compreendido enquanto o sujeito ocupante de cargo de direo do

    governo, capaz de dizer no ao desejo do indivduo de uma forma legtima e

    fundada na prpria vontade do governado.

    O poder para Foucault (2010) se produz e se processa em rede, sendo mais bem

    designado como relao de poder, j que circular e inscrito como presente em

    todas as relaes humanas. Todos os indivduos exercem o poder, j que no uma

    exclusividade de alguns. O conceito de governo proposto como um conjunto de

    tcnicas e procedimentos que direcionam a conduta dos homens (FOUCAULT,

    2011).

    O cuidado de si relacionado ao ocupar-se consigo mesmo, ao conhecimento de si

    mesmo, no sentido da gerao de uma atitude de refletir sobre as coisas e

    estabelecer relaes, uma forma de olhar na conduo de si e dos outros e uma

    ao de transformao e mudana com uma conotao tico-poltica. Desta forma,

    exercendo um poder sobre si ser possvel regular o poder que se exerce sobre o

    outro, de forma a no reproduzir prticas de tirania e comando, ou mesmo um

    governo que destitua o outro da sua liberdade de ser e fazer (FOUCAULT, 2011).

    Cuidar de si um pressuposto para o cuidado com os outros, e para Merhy (2014)

    esse exerccio d potncia ao trabalhador na sua ao cotidiana, reconhecendo

    esse cuidado como uma prtica de autoanlise de concepes e condutas, na busca

    da percepo de novos sentidos por meio do dilogo no espao do trabalho de

    forma a tornar o espao da gesto do trabalho, do sentido do seu fazer, um ato

    coletivo e implicado, a servio da produo de mais vida individual e coletiva

    (MERHY, 2014, p. 8).

    Todos ns fazemos prticas de si expressas no prprio cuidado de si e nas formas

    de produo da existncia. Tais prticas determinam a essncia dos encontros entre

    os corpos, a produo de potncia ou impotncia em si e no outro, que o

    trabalhador da sade, que atua na vida cotidiana dos servios e vive em outros

  • 38

    territrios construdos com seus pares, no habitados pelo gestor, e invisveis ao

    olho mquina produtiva, mquina econmica do gestor (CRUZ, 2016, p. 312).

    Assim, para fins de anlise da gesto do trabalho em sade, o conceito de cuidado

    de si est vinculado ao desenvolvimento de prticas e instrumentos que conduzam o

    gestor no governo de si e dos outros, em territrios de governo inscritos em linhas

    de resistncia e potncias, j que todo trabalhador da sade tambm gestor do

    seu prprio trabalho e capaz de exercer o cuidado de si e de produzir prticas de

    poder, no sentido de que

    Cuidar de si, no sentido de adquirir potncia de autoanlise, d ao sujeito do trabalho na sade a condio de operar seus processos de trabalho, por dentro das organizaes, na plataforma do instituinte, subvertendo as linhas delimitadoras e abrindo novas linhas de vida (FRANCO; MERHY, 2013, p. 356).

    O cuidado de si representa um primeiro despertar, um princpio de movimento e

    inquietude. Refere-se atividade de ocupar-se consigo mesmo na direo do

    autoconhecimento, o que envolve uma atitude de praticar aes e estabelecer

    relaes com o outro. Envolve uma forma de ateno e um desvio do olhar da

    experincia do outro para a sua prpria experincia. Assim, enquanto atividade e

    ateno, resulta em ao de mudana, transformao e transfigurao (FOUCAULT,

    2010). A necessidade de cuidar de si est vinculada ao exerccio do poder e

    representa um requisito para o governo dos outros, a fim de que o governante no

    exera uma ao leviana sobre o governado, de forma que ocupar-se consigo

    conhecer-se (FOUCAULT, 2010, p. 64).

    Foucault (2010, p. 118) apresenta o conceito de stultitia como um estado contrrio

    ao cuidado de si, sendo o stultus aquele que no tem cuidado consigo mesmo, que

    alberga uma vontade subordinada, que no livre e sim sujeitada. O stultus est

    aberto ao mundo exterior na medida em que deixa essas representaes de certo

    modo misturar-se no interior de seu prprio esprito, com suas paixes, seus

    desejos, sua ambio, seus hbitos de pensamento, estando a merc de todas as

    representaes exteriores e que no almeja metas precisas e bem determinadas. O

    stultus reside em sua menoridade, que significa a incapacidade de se servir do seu

    entendimento sem a direo de outrem, mas que no deve ser confundido com um

    estado de impotncia natural, e sim como um comportamento que permite ser

    direcionado por outro que detm ferramentas austeras (FOCUCAULT, 2011, p. 25).

  • 39

    O cuidar de si permite um agir livre e independente dos acontecimentos externos.

    Pode ser metaforicamente comparado navegao, de modo que implica um saber

    e uma tcnica que permite conduzir o barco em uma trajetria previamente definida

    e segura, resistindo aos perigos e riscos que podem comprometer o itinerrio. No

    barco o conhecimento da pilotagem parte de um saber conduzir a si do piloto que

    garante a segurana dos demais tripulantes. Em resumo, a metfora da navegao

    representa para Foucault (2010) a prpria arte de governar a si e aos outros, como

    um princpio regulador da atividade, de nossa relao com o mundo e com os

    outros (FOUCAULT, 2010, p. 486).

    A tica poltica do eu, apresentada pelo autor, se aplica ao governo poltico como um

    papel provisrio cumprido por um ocupante de um cargo formal de gesto, e no

    como uma identidade social, a partir do reconhecimento de que a nica possibilidade

    de comando se resume ao controle de si mesmo, reconhecendo os diferentes papis

    e protagonismos e lutando contra as sujeies e dominaes. As prticas de si so

    relacionais, transversais e exercem um efeito benfico ao outro: libertar-se dos

    medos, da arrogncia, do abuso do poder e, por isso, , ao mesmo tempo, salvar os

    outros, no produzindo sobre o outro um governo, uma ao que cerceie ou limite a

    sua liberdade de ser (CSAR, 2008, p. 63).

    Para Foucault (2011, p. 35), em uma atividade poltica os indivduos se posicionam

    como sujeitos que fazem uso de seus saberes e entendimentos, como peas de

    uma mquina, que assumem uma funo em um dado lugar, no qual outras peas

    esto operando ao mesmo tempo, o que configura um uso privado. O sujeito

    universal, ao contrrio, faz uso de seu entendimento em um territrio universal, com

    possibilidade de se posicionar sem nenhuma relao de obedincia e autoridade.

    Modos de fazer a gesto como a possibilidade de tomada de deciso coletiva, com

    base na constatao de que qualquer processo de mudana de prticas no se

    processa pelos projetos individuais e sim em espaos de valorizao do coletivo em

    momentos de negociao dialgica, representam a cogesto enquanto o pensar e o

    fazer coletivo visando democratizao das relaes no campo da sade

    (COLHO, 2015).

  • 40

    Campos (2007b), ao propor a gesto colegiada de equipes de sade, salienta que a

    grande utopia ou quimera seria a produo de equipes com capacidade de

    reorientar os saberes estruturados sem estarem aprisionadas em instncias

    funcionalistas, em processos permanentes de negociao e liberdade de governo de

    seus atos, de forma a constituir um trabalho interdisciplinar entre sujeitos livres e

    compromissados, com as reais necessidades de sade apresentadas pelos usurios

    dos servios. Assim, novos sentidos para as prticas devem ser conduzidos em

    momentos dialgicos de pactuao entre os trabalhadores, usurios e gestores

    formais da organizao. Nesse processo, a composio da equipe deve considerar

    a necessidade de compartilhar objetivos e objetos de trabalho, e ser orientada para

    a ampliao da capacidade de direo, por meio de relaes horizontais com

    democratizao e solidariedade nas relaes de trabalho (GUIZARDI;

    CALVALCANTI, 2010, p. 1249).

    Para Colho (2015, p. 53) a cogesto experimentada na ateno bsica, alm da

    necessidade de encontros coletivos, fundou-se na construo dos dispositivos e

    concretizao da clnica compartilhada, que pode ser compreendida como uma

    maneira de organizar os processos de trabalho com atuao abrangente e ampliada

    nos determinantes do processo sade-doena, com a elaborao de projetos

    teraputicos singulares. A cogesto apresenta-se como um modo de governar que

    envolve o pensar e o fazer coletivo visando democratizao das relaes no

    campo da sade (COELHO, 2015, p. 82).

    Cruz (2016, p. 141), ao cartografar a sua experincia como gestora formal de uma

    organizao de sade, alerta para a simulao de atos democrticos por parte da

    gesto formal, visto que, mesmo havendo uma boa interao entre gestores e

    trabalhadores, predomina o projeto e a intencionalidade do governante que busca a

    aproximao para capturar o trabalhador em seu cotidiano. Para a autora, o gestor,

    alm de buscar o amortecimento do gesto criador da equipe, no dispe de tempo

    para parar e ouvir, j que a unidade tempo representa um recurso escasso. Assim,

    apesar da busca da construo de espaos decisrios democrticos, existe um

    centralismo poltico que reconhece o trabalhador como um outro que deseja e tem

    autogoverno sobre os seus atos e [...] isso era o insuportvel para o delrio da a

    gesto, ou seja, de controlar a dimenso incontrolvel do agir do outro (CRUZ,

    2016, p. 141).

  • 41

    A proposio de novos modelos de gesto e ateno pautados na participao ativa

    dos trabalhadores no garante por si s o compartilhamento de decises e rumos,

    visto que as equipes detm pouca governabilidade em relao definio de metas

    e indicadores, o que reafirma a prevalncia de mtodos tradicionais de

    planejamento, conduo do trabalho e tomada de deciso (SANTOS, 2007). S e

    Azevedo (2013, p. 42), ao pensar a gesto pela tica de um trabalho vivo em ato

    que se efetua nas entrelinhas das relaes entre os agentes, afirmam que a gesto

    e os prprios gestores, na difcil posio de governar, cumpririam ento, em tese,

    essa funo de passagem e articulao entre as questes de governo, de conduo

    da organizao e interesses e desejos dos vrios grupos de trabalhadores. O gestor

    assumiria a posio de um mediador promovendo a grupalidade com estmulo

    autonomia das equipes, por meio da construo de novos sentidos para o trabalho.

    proposto um padro transversal de comunicao que se processa por meio de

    uma dinmica multivetorializada, na qual se expressam os processos de produo

    de sade e subjetividade. Rede que se tece com participao ativa e inventiva de

    atores, saberes e instituies, voltados para os desafios que emergem nos

    ambientes laborais. Esses mltiplos vetores envolvem saberes, relaes de poder e

    polticas pblicas (SANTOS; BARROS, 2012, p. 110). O trabalho como espao de

    reflexo das prticas se apresenta como um analisador da gesto em sade e

    considerar os analisadores implica em suportar o estranhamento causado pela

    perda dos contornos e territrios definidos e abrir-se para novas combinaes de

    foras que podem se articular de forma a nos tirar do plano do conhecido, plano das

    formas institudas (SANTOS; BARROS, 2012, p. 115).

    O gestor busca induzir comportamentos, capturar o trabalhador para o seu projeto

    de gesto definido como o melhor, mais apropriado para o servio. H a simulao

    de pactos e adeses, de forma que o gestor acredita estar exercendo processos

    decisrios coletivos ou mesmo mais apropriados e o trabalhador simula um fazer

    regido pelo regime de verdade do gestor. No entanto, Cruz (2016, p. 311) aponta

    que as foras de atrao no ditas, mas sabida por todos, e que so constitutivas e

    constituidoras deste territrio, so o fato do gestor ser o detentor da hora trabalhada,

    e o fato do trabalhador da sade ser o dono do resultado da hora trabalhada. O agir

    governo formal simula a dominao sobre o agir autogoverno. Todos so simtricos

    na maquinaria governo e gesto, pois todos governam.

  • 42

    Campos (2007b) reconhece a gesto compartilhada como um dispositivo

    desalienante a partir da constatao de que o trabalhador precisa estar envolvido

    na formulao de prticas que faam sentido para ele. Representa uma vertente do

    Mtodo Paideia que busca orientar a poltica e a gesto com o reconhecimento da

    existncia de conflitos de interesse e vises de mundo, com a construo de

    espaos coletivos para ampliao da capacidade de anlise, deciso e ao dos

    atores (COLHO, 2015).

    Franco (2013) afirma que a organizao da rede de ateno sade no SUS

    normatizada, complementando com a evidncia de que a prpria ESF se ancora em

    processos de ordenamento normativos, atravs da lgica de programas e aes

    padronizadas com horrios fixos, o que gera a captura da autonomia operante dos

    profissionais, que experienciam constrangimentos na produo do cuidado em

    sade. Para o autor estas regras, normas e protocolos so instrumentos usados

    para padronizar, mas que ao mesmo tempo capturam o trabalho vivo, ou seja,

    retiram a liberdade do trabalhador e aprisionam seus atos assistenciais e de cuidado

    em um padro previamente concebido (FRANCO, 2013, p. 245).

    Sulti et al. (2015), ao analisar a gesto formal do trabalho, revela que o modo de

    gesto operante o do disciplinamento, atravs da busca pelo cumprimento de

    metas e indicadores impelidos ao trabalho das equipes e da chamadinha, enquanto

    exerccio prtico do poder do gestor, caso o trabalhador no consiga atingir

    determinado resultado ou expectativa externa.

    A gesto disciplinar emerge nos modos de organizao do trabalho das equipes por

    meio do controle e disciplinamento dos trabalhadores. O gestor assume o papel de

    um eixo fixo regulador de uma espiral ascendente, ao redor da qual vagam os

    trabalhadores submetidos a linhas de mando verticais, que afirmam sua

    vulnerabilidade perante o gestor que busca a normatizao de prticas para a

    garantia de um dado projeto poltico construdo pela gesto em seu territrio

    macropoltico (ROLNIK, 2006). O poder centralizado no territrio da gesto formal

    configura o que Foucault (2011) denomina como panptico, que se refere a uma

    organizao no mbito da vigilncia na qual algum ocupa o lugar central na

    mquina de poder a fim de garantir que ningum escape aos olhos do governante.

  • 43

    Colho (2015, p. 23) afirma que a gesto ainda est ancorada na racionalidade

    gerencial hegemnica, com base na manuteno da disciplina e do controle dos

    trabalhadores, por meio da obteno e cobrana de metas e resultados, muitas

    vezes alheios ao processo de produo de sade.

    A disciplina se exerce sobre os indivduos, atravs da busca de uma distribuio

    hierrquica e funcional dos elementos, assumindo uma funcionalidade centrpeta

    que isola um espao para funcionamento pleno dos mecanismos de poder. Age em

    tempos, gestos, atos, classifica os elementos em funo de objetivos determinados

    por outros e requer o adestramento progressivo (FOUCAULT, 2008). Busca a

    normalizao atravs da construo de um modelo tido como ideal a ser seguido,

    com a finalidade de impedir o detalhe ou diferena.

    O disciplinamento dos profissionais referenciado como vivel por meio da

    execuo de penalidades, como uma possvel destituio do cargo e coero por

    parte do gerente e obedincia por parte do trabalhador. O que o gestor busca a

    amortizao do gesto criador e inventivo do trabalho vivo em ato, ou seja, o controle

    cria a emergncia de corpos docilizados e obedientes s normas impostas pelo

    trabalho prescrito da gesto. Trata-se de uma gesto do trabalho de carter

    eminentemente administrativa, pautada em relaes de mando e prescrio de