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Anais do º . Encontro Nacional de Cognição e Artes Musicais

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Anais do º. Encontro Nacional de Cognição e

Artes Musicais

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Universidade Federal do ParanáReitor

Carlos Augusto Moreira Junior

Vice-reitora

Márcia Helena Mendonça

Diretor do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes

José Borges Neto

Chefe do Departamento de Artes

Maurício Dottori

Coordenador do Curso de Música

Indioney Rodrigues

Coordenador do Programa de Mestrado em Música

Rogério Budasz

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Anais do º. Encontro Nacional de Cognição e

Artes Musicais

Maurício Dottori & Beatriz Ilarieditores

DeArtesCuritiba,

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© Os contribuidores listados da página viii à xiii.Anais do Primeiro Simpósio de Cognição e Artes Musicais

Direitos reservados à

Editora do Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná

Rua Coronel Dulcídio 63880420-170 Curitiba PR

Tel. e Fax (0xx41) 3222-6568www.artes.ufpr.br

Printed in Brazil 2006

Dottori, Maurício e Ilari, Beatriz (eds.)

Anais do Primeiro Encontro Nacional de Cognição e Artes Musicais.

Curitiba : Deartes–UFPR, 2006.

296 p. : il. ; 14,9 x 21 cm.

ISBN 85-98826-08-1

1. Música – Cognição. 2. Psicologia – Processos mentais – Cognição

da Música. I. DOTTORI, Maurício; ILARI, Beatriz (ed.). II. Título

CDD — 781-15— 153-4

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Curitiba, 20 e 21 de maio de 2006

Departamento de Artes – Universidade Federal do Paraná –Programa de Pós-Graduação em Música

Comissão Organizadora:Beatriz Ilari

Mauricio Dottori

Zélia Chueke

Comitê Científico e Editorial:

Agradecimentos:Fundação Araucária

DeArtes – UFPR

Auditório Brasílio Itiberê, Secretaria de Cultura do Estado do Paraná

Quarteto de Violões da Escola de Música e Belas Artes do Paraná

Dirce Freire-Maia – web master

Alunos monitores:

Charlene Neotti Gouveia (coordenação), Ana Paula Moreno, Angelita Broock,Auro Moura, Cíntia Effting, Felipe Hickmann, Fernanda Adamowski, JoanaMarini, João Pedro Caserta, Judson de Lima, Juliana Clara Bastos, LuísBourscheidt, Rodrigo Agostini, Samantha Batista, Tadeu Moreno, VivianDell’Agnolo Barbosa.

Acácio Piedade – UDESC

Afonso Galvão – Universidade Católicade Brasília

Beatriz Raposo de Medeiros – USP

Claudiney Carrasco – Unicamp

Diana Santiago – UFBA

José Zula de Oliveira – USP

Maria Ignês Mello – UDESC

Mônica Duarte – UniRio

Rodolfo Coelho de Souza – USP

Rosane Cardoso Araújo – UFPR

Thelma Sydenstricker álvares – UFES

Zélia Chueke – UFPR

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Apresentação

Ao fim do evento de enorme sucesso que foi o 1º SimpósioInternacional de Cognição e Artes Musicais, realizado peloDepartamento de Artes da Universidade Federal do Paraná

em abril de 2005, havia no ar a vontade de todos os participantes delevarmos adiante o projeto de estruturarmos uma Associação Nacionalque abrigasse os estudos em Cognição e Artes Musicais. Realizada umaAssembléia, decidiu-se que faríamos mais um evento, um encontro decaráter menos grandioso este ano, para que tivéssemos o tempo deorganizar a Associação. Marcando um importante momento para nossoDepartamento, no qual começamos nosso programa de mestrado – queinclui a Cognição da Música como uma de suas Linhas de Pesquisa –este evento, o Primeiro Encontro Nacional de Cognição e ArtesMusicais, é menor, mas não diminuiu a qualidade dos trabalhosapresentados. Ao contrário, o nível se mantém e, aos poucos, a seleçãodos trabalhos vai-se estreitando à área de Cognição propriamente dita,tendo funcionado a estratégia de, com uma abertura maior, vermosatraídos pequisadores de áreas limítrofes.

O Encontro, a publicação destes Anais – juntamente com o lançamen-to da Revista Internacional de Cognição e Artes Musicais, editada pelaProfª Beatriz Ilari – e a institucionalização de nossa Associação pare-cem-nos etapas importantes para que já no Segundo SimpósioInternacional, ano próximo em Salvador, organizado pela UniversidadeFederal da Bahia, tenhamos uma área de pesquisa dinâmica eflorescente em Cognição e Música.

Curitiba, 20 de maio de 2006

Maurício Dottori

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Programa do evento:

SÁBADO 20/05/06 DOMINGO 21/05/06(DeArtes) (DeArtes)

8-9:30 Credenciamento Assembléia da CAM(hall de entrada) (auditório)

9:30 Abertura e Concerto com o Quarteto de Violões da EMBAP (auditório)

10:30 Sessões temáticas Sessões temáticasparalelas I paralelas III(auditório e sala 103) (auditório e sala 103)

12:30-14:00 Pausa para almoço Almoço por adesão (informações na recepção – hall de entrada)

14-16:00 Sessões temáticas Sessões temáticasparalelas II paralelas IV(auditório e sala 103) (auditório e sala 103)

16-16:15 Coffee-break

16:15- 17:30 Sessão de pôsteres Sessões de demonstração (corredor); (auditório)Simpósio de alunos de graduação (auditório)

17:30- 18:30 Lançamento de livros e Deslocamento para o Auditóriomateriais (sala 101) Brasílio Itiberê

18-19:30 Sessão plenária: Concerto final e encerramentoDr. Afonso Galvão (UCB), (Auditório Brasílio ItiberêAspectos psicológicos R. Ébano Pereira 240,do trabalho orquestral esq. R. Cruz Machado(auditório) – Centro – entrada pela Cruz

Machado

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Índice

Sessões Temáticas

1. A Mente e a Percepção das Artes Musicais

A re-afinação neural a que induz à prática musical

José Zula de Oliveira 3

A inteligência musical na ótica dos desafinados

Luiz Vieira 12

Curvas de dissonância para sistemas de afinação alternativos

Alexandre Torres Porres & Jonatas Mânzolli 20

A percepção na música

Valéria Gobbi & Valéria da Cruz Machado 26

2. A Mente e a Produção das Artes Musicais

Pianista e Professor: questões básicas de ensino de prática instrumental

Zélia Chueke 39

Um estudo de desenvolvimento de corte transversal sobre saberes docentes de professores de piano

Rosane Cardoso de Araújo 46

Processos composicionais em um ritual musical indígena

Maria Ignês Cruz Mello 52

Movimento, coordenação e desempenho músico-instrumental:conexões interdisciplinares

Maria Bernadete Castelán Póvoas,Elian Dirce Colombi & Ester Bencke 59

Marcação de arcadas: carga cognitiva e estratégias de regulação na atividade de violistas de orquestra

Cristina Porto Costa 65

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Concerto para piano e orquestra de José Alberto Kaplan,um exemplo de intertextualidade em música

Tarcísio Gomes Filho 72

Aspectos psicológicos na preparação para a performance musical

Vivian Deotti Carvalho & Sonia Ray 78

O pianista e a psicologia da música: um diálogo necessário

Diana Santiago 84

3. Artes Musicais, Lingüística, Semiótica e Cognição

Estudos comparativos entre fala e canto

Beatriz Raposo de Medeiros 93

Contornos melódicos do canto e da fala em bebês de 12 a 24 meses

Esther Beyer & Cláudia Braga 100

Música e linguagem verbal: distanciamentos e aproximações

Silvia Cordeiro Nassif Schroeder 106

Parabolicamará: a construção de um objeto complexo

Wanderson Bersani & Peter Dietrich 114

Os conceitos de ritmo na música e na poesia

Judson Gonçalves de Lima 120

Preciso me encontrar: o intérprete como produtor de sentido

Andréa Picon & Peter Dietrich 125

O estatuto do timbre no modelo semiótico

Peter Dietrich 130

Aprendizagem musical e aquisição lingüística: um paralelo possível?

Valentina Daldegan 136

4. Tecnologia, Artes Musicais e a Mente

Do “quanto” ao “quando”: novos estudos sobre cognição do ritmo e a experiência de um seqüenciador posicional

Darcy Alcântara Neto 145

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Modelagem da variação do timbre musical utilizando modelos auditivos e mapas de Kohonen

Mauricio Loureiro, Hugo Bastos de Paula & Tairone N. Magalhães 156

5. Artes Musicais e Cognição Social

Mídia, gosto musical e a construção social da noção de infância

Maria José Dozza Subtil 165

Relações estéticas, programação e “Do belo na música hoje”

Isaac Chueke 171

O ouvido popular: notas sobre o relativismo da musicalidade

Acácio Tadeu Piedade 177

Música para consumir

Irídio Magaldi Johansen de Moura 183

6. O Desenvolvimento Paralelo da Mente e das Artes Musicais

Construção inacabada, aberta e em constante movimento:Sobre a constituição do sujeito - Analogia com a obra musical “Canon em Ré” de Pachelbel

Patrícia Wazlawicz, Kátia Maheirie & Glauber Benetti Carvalho 190

Tabus, mitos e preconceitos: o talento sob diferentes perspectivas

Graziela Bortz 197

Musicoterapia na educação musical do portador de atraso do desenvolvimento: período crítico e plasticidade cerebral

Cybelle Maria Veiga Loureiro, Leonor Bezerra Guerra& Maria Cecília Cavalieri França 203

Discutindo o talento musical a partir da visão de estudantes de música

Sérgio Figueiredo & Luciana Schmidt 209

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Sessões de Demonstração

Interação e cognição no processo de interpretação mediada da marimba

Cesar Traldi & Jônatas Manzolli 216

Preparação para a performance de Now Here is Nowhere para contrabaixoe suporte fixo: considerações sobre percepção timbrística e rítmica

Sonia Ray 222

O conceito de modulação métrica e sua aplicabilidade em exercícios daCartilha rítmica para piano de Almeida Prado

Sara Cohen & Salomea Gandelman 227

Considerações sobre aspectos neurológicos na preparação para uma performance musical

Sonia Ray 234

Simpósio de Alunos de Graduação

Técnicas de ensaios gerais para a performance musical em grupos de câmara

Thiago Cazarim & Sonia Ray 239

Etnomusicologia Aplicada:metodologias de pesquisa e ação em contextos musicais tradicionais

Júlia Zanlorenzi Tygel 244

O papel dos efeitos sonoros na significação em jogos eletrônicos

Felipe Hickmann 251

Construção da performance por um aluno de graduação em piano:um estudo de caso

Estevam Brito Meireles Dantas 256

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Posters

A análise da utilização da música funcional em supermercados na cidade de Curitiba

Eduardo F. Frigatti, Mariane N. Oselame,& Thomas R. Brenner 258

Ponteio 36 de Guarnieri: Linguagem Nacional e Abstrações

Ester Bencke 259

Beethoven e Brahms na Sonata Op.9 de Alberto Nepomuceno

Igor Correia 260

Intencionalidade e criação em música

Caio M. Nocko 261

Pesquisas no campo das neurociências cognitivas e na Psicologia da Música

Patrícia Lima Martins Pederiva 263

Música, cognição e educação: um estudo comparativo sobre as diferenças cognitivas entre músicos e leigos

Melody Lynn Falco Raby 264

Música como ferramenta nos processos clínicos em fonoaudiologia

Lênia Luz Nogueira 264

Quinteto de Metais: aspectos acústicos como ferramenta de composição

Felipe de Almeida Ribeiro 265

Complexidade e Controle: projetando interações musicais em rede

Fábio Furlanete 266

A Física-Matemática e a Neurociência na Música

Washington Roberto Lerias 267

Interação e Cognição no Processo de Interpretação Mediada da Marimba

Cesar Adriano Traldi 268

A Música o Sagrado e o Imaginário

Maria Ignês Scavone de Mello Teixeira 269

xiii

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Narrativa musical de história de vida: a música na velhice

Rosemyriam Cunha 271

A música como ferramenta de inserção social do deficiente mental

Carmen Lígia Barboza Gruner 273

O ensino de piano nas escolas de Curitiba.

Carolina Melo das Chagas Lima 273

Musicalizando bebês

Celina Maydana & Maria de Fátima Machado Brasil 274

Autismo Infantil: como a Educação Musical pode ajudar na integração social dessas crianças?

Giovana Moreira Di Bernardo 275

Coleta de Ferramentas Musicais Avaliativas para a Cognição

Leonardo da Silveira Borne, Patrícia Danieli Schulz & Esther Sulzacher Wondracek Beyer 276

Atenção visual em músicos e não-músicos: um estudo comparativo

Ana Carolina Rodrigues, Leonor Bezerra Guerra e Maurício Alves Loureiro 277

Significados e Sentidos da Música: “Re-criando” e “compondo”entre a Psicologia Histórico-Cultural, Música e Musicoterapia

Patrícia Wazlawick 278

O Canto Coral no Contexto Escolar

Jucélia Cristina Ribeiro 280

O desenvolvimento vocal de crianças de 2 a 6 anos de idade

Vivian Dell’Agnolo Barbosa 281

xiv

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Sessões Temáticas

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1. A Mente e a Percepção das Artes Musicais

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A Re-afinação Neural a que Induz a Prática Musical

José Zula

Universidade de São Paulo

Os estímulos sonoros são captados no córtex auditivo através dosistema auditivo periférico, com papel de destaque para acóclea onde a energia mecânica do som é convertida em

energia elétrica.

O papel da audição consiste em analisar e organizar os eventos sonorosrecebidos de fontes e localizações diferentes, dispondo-os em gruposseparados e estabelecendo (ou não) ligações entre eles. Esse trabalhoefetua-se segundo as dimensões dos elementos musicais (freqüência,amplitude, posição temporal, localização espacial, propriedades multi-dimensionais, como por exemplo, o timbre), um processamento que éfunção da vida pregressa do indivíduo sedimentada em sua cultura, emsua época, em seu estilo de vida individual, entre outros aspectos.

Uma das principais características dos sons musicais é a freqüênciapara cuja captação existe um grande número de mapas tonotópicos1,entre os quais existem múltiplas relações.

Durante muito tempo a organização tonotópica foi considerada fixa.Hoje é admitido que esta organização efetua-se de maneira plástica,modificando-se de acordo com características pessoais de quem ouve,geralmente sob as insinuações do meio ambiente. Trata-se de umahabilidade de o sistema nervoso adaptar-se às necessidades exigidaspelo meio ambiente. Vários experimentos realizados por Christo Panteve seus colegas Bernard Ross, Takako Fujioka, Michael Schulte, MathiasSchultz2, Laurel J. Trainor3 e outros têm demonstrado uma incrível plas-ticidade de adaptação do cérebro vinculada, sobretudo à prática cons-tante de uma atividade, por exemplo, estudar um instrumento musical.

Para quem não tem “presente” na memória o percurso da audiçãohumana vamos acrescentar aqui algumas notas a respeito daneuroanatomia da audição, seguindo de perto as informaçõesfornecidas por Norman M. Weinberger, ao qual pedimos vênia parausar os diagramas por nós numerados como 1 e 2.

1 A “tonotopia” é uma organização sistemática pela qual freqüências contíguas são processadaspor estruturas anatomicamente contíguas, em várias instâncias do percurso auditivo desde acóclea e até o córtex auditivo primário, fenômeno comparável a um grande piano fixado nacóclea e no córtex auditivo primário, em que a cada freqüência corresponde uma corda. Essefenômeno evidencia-se em vários níveis do percurso pelos quais passam os estímulos auditivos até o córtex primário no lobo temporal do cérebro.

2 Os cincodo Institutode Pesquisasde Rotman eCentro deTratamentoGeriátrico deBaycrest emToronto,Ontário,Canadá. 3 Este últimodo departa-mento dePsicologia,Mc MásterUniversity,Hamilton,Ontário,Canadá.

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Diagrama 1: Percurso da audição de sons segundo as instânciasde transmissão das freqüências.

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1. Quando alguém presta atenção a uma música, as respostascerebrais envolvem um número de regiões não só do córtexauditivo, mas também de outras regiões do cérebro, inclusive deáreas normalmente compromissadas com outros tipos deatividades, por exemplo, experiências visuais, táteis e emocionais,que por sua vez em conjunto, também afetam a localização nocérebro onde é processada a música.

2. As ondas sonoras, ondas formadas por oscilações de pressão noar que são captadas pelo pavilhão da orelha, são convertidas peloouvido externo e ouvido médio em ondas fluidas no ouvido inter-no. Um ossículo chamado estribo, as empurra para dentro dacóclea, criando variações de pressão no líquido que preenche acóclea.

3. Vibrações sucessivas na membrana basilar da cóclea movimen-tam as células ciliadas, os receptores sensoriais, que geram sinaiselétricos que são encaminhados, via nervo auditivo ao cérebro.Inicialmente cada célula é afinada com uma vibração de determi-nada freqüência.

4. O cérebro processa música ao mesmo tempo de maneirahierárquica e distribuída.

4. 1 De todo o córtex auditivo, o córtex auditivo primário, que é oprimeiro a receber os impulsos transmitidos pelo ouvido e pelosistema auditivo inferior4 via tálamo, é que está compromissa-do com os primeiros estágios da percepção musical, tais comoo faz com a altura (a freqüência do som) e delineamentosmelódicos (padrões de mudanças na altura), que são ofundamento para a melodia.

4. 2 Estudos recentes têm demonstrado que o córtex auditivoprimário, dada a sua plasticidade, é re-afinado, a partir daexperiência do ouvinte, de tal forma que muitas célulastornam-se responsivas aos mesmos sons e freqüências (sons)musicais importantes para o ouvinte, afastando-se do princípioda tonotopia.

4. 3 Esta re-afinação, induzida pela aprendizagem, afeta, sobretudoo processamento cortical em áreas como a) os campos corti-cais secundários da audição e as b) regiões associativas, queestão envolvidas com o processamento de padrões musicaismais complexos, por exemplo, de harmonia, de melodia e de

4 Relembrando as instâncias que compõem esta fase da audição: (a) orelha externa, média einterna; b) cóclea com suas membranas e órgão de Corti; c) nervos vestíbulococlear e núcleocolear; d) sistema de fibras auditivas que através de sinapses se comunicam: as primárias comas secundárias e estas com as terciárias; e) complexo olivar superior; f) corpo trapezóide; g)lemnisco lateral; h) colículo inferior; i) corpo geniculado medial e finalmente j) áreas cerebraisda audição: A-I e A-II.

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ritmo.

4. 4 Quando um músico está tocando uma música em uminstrumento, também estão ativas outras áreas como as docórtex motor e do cerebelo que estão envolvidas com oplanejamento e a execução de movimentos específicos eprecisos ligados aotocar (ou cantar) arespectiva música.

Diagrama 2: Re-afinação neu-ral de células receptoras defreqüências.

5. Re-afinando o cérebro:

5. 1 a) O princípio funda-mental para a cap-tação das freqüênciasé que cada célula docérebro individual-mente responde me-lhor a uma determina-da freqüência;

b) Todavia este princí-pio pode mudar, e defato mudam, de modoque a afinação originaldas células se ajustamà captação de outrasfreqüências. Isto se dáquando um animal ouo ser humano aprendeque um determinadosom é importante paraele, seja por que razãofor;

c) Trata-se de um ajus-tamento celular quemodifica o mapa defreqüências (fato evi-denciado em experi-mentos em cérebrosde ratos), de tal formaque a área do córtexauditivo responsável

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pela audição de um determinado som se torna maior, sendocapaz de processar os “sons importantes” de forma mais intensa,chegando este ajustamento (re-afinação) a expandir o mapa,aumentando a intensidade da audição em até 8 kiloHertz quan-do se trata de uma freqüência importante para o ouvinte;

d) em humanos foram encontradas alterações semelhantes nocórtex auditivo que, ao mesmo tempo em que amplia seus mapasde audição, especializa e refina as respostas a determinados estí-mulos musicais. Possivelmente seja isto que diferencia, porexemplo, um bom instrumentista de um que não é tanto. Porexemplo, em um violinista a posição e a pressão dos dedos nobraço do violino, o tempo absolutamente preciso para a efeti-vação do ataque (onset) e sua retirada (offset) para a notaseguinte, fazem a diferença, e tudo isto, constitui a sensibilidadeque se espelha na musicalidade do instrumentista. O que seinsinua aqui é que um “mapa maior” de neurônios pode captar eefetuar respostas mais precisas de forma a atender a todas asexigências que se faz de um bom instrumentista.

Os experimentos

Pesquisas têm sido feitas tanto em cérebros de animais (a exemplo dasde Frances H Rauscher, K. D. Robinson, . & J. J Jens5), como emcérebros humanos. Christo Pantev, um dos pesquisadores maisconceituados na área de cognição musical e especializado em magne-toencefalografia, juntamente com outros pesquisadores, em váriosexperimentos neurológicos estudaram o impacto da música e do treinomusical na organização funcional e na representação auditiva e senso-riomotora em músicos. Como técnica para a realização de seus estudosusaram a magnetoencefalografia (MEG)6, uma técnica não invasiva,que com precisão e confiabilidade registra as mudanças que ocorremno córtex humano quando uma habilidade está em ação, por exemplo,aprender a tocar um instrumento musical. Christo Pantev e seus colegasA. Engelien, V. Candia e T. Elbert7 estudaram em músicos profissionaisa representação cortical de sons musicais comparados com a represen-tação de sons puros. Para os sons puros, ou seja: aqueles nos quais esta-

5 do Departamento de Psicologia da Universidade de Wisconsin, Oshkosh. 6 A magnetoencefalografia é feita medindo-se nas imediações do crânio do paciente o campo mag-nético gerado pelas correntes elétricas circulantes no cérebro. Um craque desta técnica para estudosrelacionados com a percepção musical e Christo Pantev. 7 (na época, os dois primeiros do Instituto de Audiologia Experimental da Universidade de Münsterna Alemanaha, e os dois últimos do Departamento de Psicologia da Universidade de Konstanz,Konstanz, Alemanha).

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va presente apenas uma freqüência, foram encontrados efeitos tran-sitórios (de curta duração) nas respostas neurais no córtex auditivo, aopasso que para sons musicais, de timbre complexo, com múltiplas fre-qüências simultaneamente presentes, foi encontrado um aumento sig-nificativo de atividade cortical. O aumento estava relacionado com otempo e a idade em que os músicos efetuaram seus estudos, apresen-tando-se maior quando o estudo havia sido iniciado na infância. A plas-ticidade, ou seja, a re-organização do tecido nervoso, foi observadaespecificamente no córtex sensoriomotor, e no estudo com violinistas,principalmente na área que controla os dedos usados com freqüênciana prática musical. A mudança não foi verificada nas áreas que con-trolam os dedos e mão direita que são pouco usados na atividade musi-cal por estes instrumentistas Estudo referente à plasticidade de curtaduração, para sons puros também foi efetuado por Christo Pantev,Andréas Wollbrink, Larry E. Roberts, Almut Engelien e BerndLütkenhöner8 em “Short-term Plasticity of the Human Auditory Cortex”.Neste experimento os autores encontraram que mudanças rápidaspodem ocorrer na afinação neural no córtex auditivo de humanosadultos. Alguma forma de dinâmica poderia estar subjacente ao que foiobservado no experimento em questão, sobre a qual não se tem aindaclaro sua origem.

O fundamento para o julgamento através da percepção musical daimportância de um som para a vida do ouvinte foi estudado através docondicionamento clássico, por Jonathan S. Bakin, David A. South eNorman Weinberger9 em um estudo com pombos, sugerindo que,mesmo estímulos aversivos (por exemplo, choques elétricos) não con-seguem inibir a plasticidade no campo responsivo aos estímulos.

Ao lado de outros experimentos neurológicos, Christo Pantev, junta-mente com seus colegas E. Larry Roberts, Matthias Schulz, AlmutEngelien e Bernard Ross, desenvolveram um experimento em que estu-daram representações corticais para a percepção de timbres diferentes,por exemplo os timbres de violino e de trompete. Foi encontrado que arepresentação era aumentada de acordo com a habilidade dos instru-mentistas: nos violinistas para a nota com o timbre de violino e para ostrompetistas para a nota com timbre de trompete. Problemas como seos atributos cerebrais relacionados com a música são atributos incenti-vadores para a prática musical ou se a hereditariedade influencia adecisão de dedicação de uma pessoa à música, ainda são objeto decontrovérsias, tidos como pertencentes mais à área pedagógica. Dequalquer forma as solicitações do ambiente podem interferir na incli-

8 os doisprimeiros e oúltimo doCentro deBiomagnetismo doInstituto deAudiologiaExperimentalda Univer-sidade deMünster,Alemanha, oterceiro doDepartamen-to de Psico-logia daUniversidadedeMcMaster,Hamilton,Ontário,Canadá e oquarto,AlmutEngelien,Laboratóriode Neuro-imagemFuncional doDepartamento de Psiquia-tria daUniversidadede Cornell,New York,USA.

9 da Univer-sidade daCalifórnia,Irvine, USA.

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nação de um determinado indivíduo, como é o caso de pessoas queficaram cegas precocemente. As bases neurais para a freqüente musi-calidade em cegos têm sido pouco estudadas. Um destes estudos é ode David A. Ross10, Ingrid R. Olson11 e John C. Gore12, que estudam aplasticidade cortical em uma musicista cega desde a infância. Os testespreliminares revelaram que ela tinha ouvido absoluto, da mesma formaque algumas pessoas com visão normal. Os estudos com a pacientedemonstraram que áreas semelhantes às encontradas em estudos comliteratura, estavam ativadas e que isto poderia ser estendido como ademonstração da plasticidade cortical subjacente à prática musical emusicalidade como por exemplo, a demonstrada por Ray Charles,Stevie Wonder, Andrea Bocelli e outros músicos cegos de menor sig-nificância para a literatura. Josef P. Rauschecker13 em seu trabalho“Cortical Plasticity and Music” também se refere a esta musicalidadeem cegos e a atribui ao aumento de áreas compromissadas com aaudição. Segundo este autor, da mesma maneira que em animais, ocórtex auditivo de pessoas cegas é afetado por dramática reorganiza-ção: por exemplo, o córtex occipital, normalmente compromissadocom a visão em pessoas normais, inicia-se no recebimento de estímu-los auditivos, o mesmo acontecendo com o córtex parietal, geralmentecompromissado com o processo da audição espacial. Processo seme-lhante, porém em menor intensidade, acontece com pessoas que setornaram cegas depois de adultas. Franco Lepore14 mostrou que cegossão melhores na localização dos sons do que as pessoas normais e queisto poderia ser reflexo da atuação do córtex occipital exercendofunção de córtex auditivo. Robert Zatorre15 sugeriu que o contrárioacontece com os surdos precocemente, em que o córtex auditivoassume funções de córtex visual. Do exposto dá para expressar ahipótese de que com um “cérebro auditivo expandido” ter-se-ia umaaudição mais intensa e refinada que parece ser a chave para amusicalidade.

Atividades musicais como tocar uminstrumento demanda procedimentosprolongados e aprendizagem motorade tal forma que disto resulta umareorganização do cérebro da pessoa.Trata-se de mudanças plásticas queparecem envolver um rápido desmas-caramento de conecções existentes e oestabelecimento de novas. ÁlvaroPascual-Leone em um experimento,

10 Do Departamento de Radiologia Diagnóstica, daEscola de Medicina doYale, New Haven, C, USA.

11 Departamento de Psicologia da Universidade daPensilvânia, Philadelphia, PA, USA.

12 Departamento de Radiologia e CiênciasRadiológicas, Venderbilt, escola da Universidade demedicina, Nashville, Tn, USA.

13 da Universidade de Georgetown, USA.

14 da Universidade de Montreal, Canadá.

15 na época da Universidade de McGill, Canadá.

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intitulado “o cérebro que toca música, se modifica com isto”, afirmaque as mudanças, tanto funcionais como estruturais têm lugar nocérebro de instrumentistas como subsídio para as exigências de suaatividade. Isto tem sido demonstrado através de técnicas de neuro-imagem. Mas determinadas mudanças podem constituir um risco parao desenvolvimento de disfunções do controle motor, constituindo sín-dromes de distonia focal de mãos e dedos para tarefas específicas,decorrentes de prática musical geralmente mal orientada.

Também se faz necessário para o estudo de um instrumento a repetiçãoe a memória. A repetição que emoldura a experiência influencia asfunções de sensibilidade e da emoção e de modo especial as funçõescognitivas, particularmente a memória. A partir deste fato pode serespeculado a respeito do aprendizado em recém-nascidos. Será que aausência de experiência facilitaria a prontidão para entradas decisivasno sistema nervoso que eventualmente “vazio”, poderia estar prontopara memorizar e relembrar informações, cuja memória perduraria portoda a vida? Mesmo admitindo que aprendizagem e memória são fun-damentais em termos adaptativos em nossa espécie, tais potenciais dosistema nervoso que permitem a codificação e retenção de nova infor-mação, são marcadamente maleáveis e sujeitos à extinção, a exemplodo que ocorre em traumas. Esta flexibilidade para receber e ao mesmotempo para esquecer, é retida por muitos anos, tanto quanto forsolicitado do sistema nervoso, um assunto pertinente ao estudo daduração dos sistemas de memória.

Os estudos neuropsicológicos cada vez mais sugerem que a músicanão é função de apenas um hemisfério cerebral. Estudos através detomografia por emissão de pósitrons (PET), ressonância magnética (RM)e outros recursos indicaram que a percepção musical não é dependenteapenas do hemisfério direito, mas de uma rede neural distribuída porvárias instâncias do cérebro em ambos os hemisférios, aparelhada paraa percepção dos diferentes componentes da música e provocação deseus efeitos. E. Baeck em um trabalho sobre redes neurais em música,referenda que músicos têm características neurais, anatômicas e fun-cionais, que estão relacionadas com a idade em que começaram seusestudos musicais. Isto poderia explicar uma organização típica eespecificação como resultado dos estudos musicais. Se apenascaracterísticas decorrentes da idade podem explicar a plasticidade ouse propriedades estruturais inatas, ou se ambas, é ainda uma questãoem aberto. No mesmo estudo E. Baeck refere-se a aberraçõescromossômicas, anormalidade bioquímicas e artefatos morfológicosdecorrentes de doenças cerebrais congênitas e degenerativas que

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poderiam impulsionar entradas especiais da musicalidade emsubstratos neurais.

O capítulo da plasticidade neural ou re-organização neural é um assun-to em crescimento nas pesquisas, que no presente tem demonstrado,sobretudo três encaminhamentos:

Primeiro: mostrando-nos a confiabilidade do uso da MEG para medir,em laboratórios os efeitos do treino relativo a curto e longo prazo e queo segredo para a percepção da altura se manifesta na amplitude da“banda neural” que percebe a freqüência.

Segundo: a plasticidade do córtex auditivo estende-se a outros ter-ritórios corticais (occipital, frontal, p. ex.) e podem ativar outras áreascomo é demonstrado isto no exemplo do comportamento dos lábiosdos trompetistas que são estimulados da mesma forma como ao exe-cutar na realidade o som em um trompete, ativando com este compor-tamento o córtex somatosensório, de forma mais acentuada do queacontece no estado em que os lábios permanecem inativos. 16

Terceiro: mostrou-se que a codificação automática e a discriminaçãode contornos de altura e a informação dos intervalos no contextomelódico são especificamente mais aumentados nos músicos do queem não-músicos e que os músicos mostram bem mais respostas coer-entes com o sentido musical em contornos melódicos ou de intervalos,mas que os dois grupos exibem respostas similares a mudanças de fre-qüências de sons puros.

Referências Bibliográficas

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PANTEV, C., ROBERTS, L. E., SCHULZ, M. ENGELIEN, A 2, ROSS, B. (2001). Timbre-

16 Ostrompetistasdemonstram,à audição demúsica exe-cutada aotrompete,uma ativaçãode áreas cor-ticais ligadasaos lábioscomo seestivessemtocando defato o instru-mento.

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A Inteligência Musical na Ótica dos Desafinados

Luiz Vieira

Este trabalho não tem a pretensão de ser conclusivo e sim, um rela-to dos achados, durante os trabalhos de pesquisa. Teve origem nanecessidade de respostas a uma gama de questionamentos que no

decorrer dos ensaios de coros ficavam truncados, prejudicando a qua-lidade da performance. Por não ter respostas adequadas para a falta de“afinação” dos naipes do coro ou de alguns que “desafinam” indivi-dualmente. Esses integrantes com problemas ou eram convidados a seretirarem do coro ou camuflados como contralto, no caso de vozesagudas, e como baixo, no caso de vozes graves.

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Qual fosse a solução adotada, sempre seria inadequada. A primeira,provocaria uma violenta experiência exclusiva, cuja frustração deixariamarcas profundas no indivíduo bem como o constrangimento sofridopelo regente. A segunda, mais amena, comprometeria a performancedo grupo, o que seria injusto, e incoerente.

A falta de conhecimento dos padrões sonoros musicais, tidos comofalta de percepção, abrange uma camada da população, maior do quese possa imaginar. Vasculhando uma vasta literatura pertinente aoassunto, foi encontrada muito pouca especificidade em entendimentomental da organização dos materiais sonoros musicais, e raríssimas asque abordassem diretamente a inteligência musical dos “desafinados”.

Dada a abundância de material humano com esse enorme potencial,um verdadeiro banco de informações disponíveis em nosso meio,optou-se por “ir direto à fonte”, ou seja, buscar as informações diretasin loco, sem ignorar obviamente, a literatura já existente nesta área.

Quanto mais se perscruta, mais claro e evidente vão se tornando asrespostas. É surpreendente e até, de certo modo, irônico a simplicidadedos materiais que os desafinados utilizam para metaforizar. Eles têmdificuldade em estabelecer relações entre materiais ou sensações,como, por exemplo, relação de intensidade, forte-fraco ou, de agudo-grave ou ainda, os termos grosso x fino, usados ainda que incorreta-mente, mas necessários para melhor compreeção. Os desafinados dãoa impressão de que o entendimento se dá, esclarecendo detalhes tãomínimos, que do ponto de vista de quem tem percepção, são insignifi-cantes e às vezes, até inadmissíveis.

Para quem não é desafinado, entender algo que não tem necessidadede ser entendido, por ser óbvio como o é o som e seus padrões, é difícilrefletir sobre a possibilidade de alguém não conseguir entendê-los. Essapode ser uma das causas que levam algumas pessoas a considerarem o“desafinado” como um deficiente ou, não querer pesquisar esse campotão promissor, já que está em voga prática de idéias que envolvem“inclusão social”. Integrar um “desafinado” ao meio artístico, éinclusão social.

Entrar nesse mundo é tão ou até mais difícil do que sair dele. Seria omesmo que ter que aprender a “desaprender” para poder entender. Issotalvez justifique a carência de pesquisa nessa área.

Para quem já vivenciou problemas com a percepção e conseguiusuperá-los, fica menos complicado vasculhar esse terreno que lhe é

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familiar, podendo apontar alguns caminhos que levem ao desvelo demuitas incógnitas.

O som chega à mente de muitos “desafinados”, arrebatando, extasian-do e, muitas vezes, decepcionando. Nisso, divergem pouco de quem éafinado (estão sendo usados os termos: desafinado e afinado, apesar decontestá-los, para facilitar a compreensão). É como (já introduzindoaqui uma metáfora) receber um objeto artisticamente acabado, porémconfeccionado de materiais cujas propriedades lhe são desconhecidas,não sendo possível a sua reconstrução. O objeto pode ser bonito,porém, estranho. Por outro lado, para quem conhece os materiais e areceita, esse objeto é muito familiar e é passível de reconstrução.Nesses dois casos o diferencial é a cognição.

Serafine (1988, cap. I), define música como cognição, tendo em seuteor: “a universalidade, a diversidade, as variações e as aquisições”. Otópico que é pertinente a esta pesquisa é o da universalidade, por dizero conceito de que todos são musicais.

“Em um grau mais simples, qualquer pessoa pode, facilmente distinguiruma música de outros sons e pode identificar sua própria música comodistinta entre outras internacionais. Pode identificar um estilo musicalcomo: folclore, clássico, jazz (talvez fazer até distinções melhores) edecidir sua preferência” (Serafine, 1988, cap. I: 3). E complementando,nas palavras de Salt (1987), que qualquer pessoa sem anomalias neu-rológicas ou fisiológicas dos aparelhos e órgãos pertinentes a per-cepção e reprodução dos sons pode adquirir habilidades de reproduzirmúsica e canto.

Serafine (1988), defende a idéia de música como “uma forma depensamento”, e assim sendo, o pensamento é uma forma de organizaridéias, e isso somente é possível através de um processo mental, ouseja, uma habilidade inteligente. Para ela, a “cognição musical” recebea denominação de “pensamento musical” ou seja, música, como formade pensar o som.

Música como cognição pré-supõe, entre outras, o resultado do conhe-cimento dos materiais, o potencial de cada um deles, o experienciar, afim de gerar resultados que possam ser apreciados e recriados, quandonecessários, para melhorar sua qualidade de apreciação.

Na atividade musical cada uma das partes é cognitivamente diferentedas outras e cada uma usa seu próprio esquema de processamento; oritmo, a leitura, a reprodução vocal e a instrumental, etc…

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A cognição implica todo um processo ativo, construtivo. Daí, o ato deperceber reivindica um prévio conhecimento do material a serpercebido; enquanto que a memória, pré-supõe um evento percebidoanteriormente para ser lembrado. Se não há memória, não poderáhaver reconhecimento.

A manipulação dos materiais pertinente à música: escrita, leitura,execução instrumental, ritmo, pulso, dinâmica, etc…, parece fazerparte do mesmo processo mental de esquematização e preensão, comoo são os esquemas e processamentos usado na matemática, na gramáti-ca e sintaxe da linguagem falada e escrita, que pouco envolvem aemoção e o sentimento. A pessoa pode ler e escrever correta e fluente-mente num determinado idioma, porém, se não entender sua semânti-ca, isso não terá o menor significado. É, portanto, a compreensão dosignificado que fará o intelecto estabelecer a racionalidade, contida ounão, naquilo que foi lido, ouvido, cujo significado, irá produzir oconhecimento.

Segundo Swanwik (2003), material enquanto material, ainda não émúsica. Ela só acontece quando os recursos oferecidos pelos materiaissão selecionados e organizados por um processo inteligente, tornando-se sensação, procedimento este, que só uma mente é capaz. Aassimilação dos procedimentos desse processo mental irá gerar oconhecimento, que será quantitativa e qualitativamente proporcional àquantidade e à qualidade daquelas experiências vivenciadas. Entende-se por materiais, tudo o que é usado para a produção das vibrações,bem como as próprias vibrações e os seus condutores físicos. O som,já é vibração mentalmente elaborada em sensação e, portanto, nãofísica, mas ainda material. A qualidade do som depende da qualidadede seus emissores, dos condutores e dos receptores e ainda, da menteque o recebe.

Da mesma forma que a constituição física difere de indivíduo paraindivíduo, assim também os processos mentais que induzem ao conhe-cimento, e a criação de esquemas resolutivos, também diferem deindivíduo para indivíduo em quantidade e qualidade. Assim sendo, aaptidão para a cognição musical é desproporcional entre os indivíduos,se estendendo da mínima à máxima, da única à múltiplas, etc…, issose aplica tanto a habilidades quanto à dificuldades.

Tendo, como pressuposto, a constatação de Cuddy & Upitis (1992), deque “cada caso é um caso, e existe diferença entre indivíduos e nosindivíduos”, deduz-se que cada indivíduo, além de ser diferente dos

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outros no contexto, tem as diferenças nele próprio, e são essas diferen-ças que determinarão seu modo específico de ação – reação face àsexperiências a que for exposto, evidenciando sua individualidade.Neste aspecto, generalizações são pouco adequadas.

“É claramente importante, entretanto, identificar a fonte da dificuldadepara que se providenciem experiências educacionais apropriadas queajudem a superar o problema …, poucas investigações tem sido dire-cionadas para a questão da desafinação envolver dificuldades percep-tivas”. (Cuddy & Upitis, 1992: 338). Grande parte das literaturas queabordam a percepção, alegam carência de pesquisa nessa área.

Para ficar mais esclarecido o que foi apurado durante as investigações,veremos alguns casos, de dificuldades detectadas:

Na média de 10 encontros individuais de duas horas cada, foi possíveldetectar as dificuldades maiores, em cada um dos pesquisadoscumpriu-se a maior parte do objetivo que havia sido proposto: co-nhecer um som, ouvi-lo, reconhecê-lo e finalmente reproduzi-lo.Depois, reconhecê-lo num acorde seqüencial com até 3 notas, re-conhecê-lo num acorde harmônico simultâneo. Em seguida, cantarnotas de acordes propostos para reconhecer e estabelecer uma ordemseqüencial de tons e assimilá-los para, somente depois, experimentaruma pequena linha melódica com dois ou três tons, para aos poucosampliar a extensão da percepção. Na maior parte desse aprendizado,necessita-se que as práticas de ensino sejam aplicadas em “câmeralenta”, devido a lentidão com que esses dados são sendo processados.Neste ponto do aprendizado, ele já é capaz de conhecer e reconheceros sons trabalhados, porque tem memória deles, e como os assimilouexperienciando-os vocalmente, resolveu a falta de percepção para comaquelas notas apreendidas, assimiladas e reconhecidas, podendo agorareproduzi-las com consciência e consonância.

Uma boa performance, tem consonância. “Quando ocorre o fenômenobatimento o som se torna incômodo ao ouvido”, Mantras, (1991: 13),seja na produção vocal ou instrumental.

Em 100 amostras, durante dois anos, foram encontrados inúmeroscasos, que pudessem ter sido a causa da incompetência das aptidõespara com a música. Dentre elas serão citadas a seguir, algumas, para seter idéia de como, no início da pesquisa, cada um desses indivíduosestava envolvido em dificuldades perceptivas e o variado grau deenvolvimento:

– Não demonstram indício claro de a mente ter desenvolvido

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algum esquema ou aptidão de identificar e diferenciar as alturastonais.

– A ausência do uso de metáforas, para entender os sons por meioda audição.

– A ausência do hábito da apreciação crítica.

– A estrutura do som é uma incógnita.

– Cantar mais forte do que o modelo proposto.

– Ausência de esquemas motores no aparelho fonador, direciona-dos à reprodução das alturas tonais.

– A necessidade de monitoramento continuado enquanto estiveremproduzindo o som.

– Quando cantam, não o fazem pela percepção e sim através deum esquema decorativo, em que a letra serve como referência demudanças tonais.

– Incapacidade de retomar o canto, partindo de qualquer ponto.

– Memória tonal de curto prazo não desenvolvida, a de médio elongo prazo é um pouco desenvolvida, porém, atrelada à letra esua métrica.

– Reproduzem o que ficou na memória de médio e longo prazo,não fazendo comparações eqüitativas com o modelo proposto,por não estarem ouvindo enquanto cantam.

– Dificuldade de entender os três tons acordes de uma tonalidade.

– Dificuldade de iniciar um canto, partindo de um acorde.

– Não conseguem entender quando o tom está na tônica, na sub-dominante ou na dominante.

– Grande dificuldade em sustentar o tom.

– Resistência de alguns em admitir que não têm percepção musical.

Para resolver cada uma dessas situações, foram sugeridas muitas alter-nativas de resoluções de esquemas mentais, porém tendo consciênciade que cada esquema é exclusivo e somente quem o montou sabe seusegredo. Portanto, dizer ao indivíduo, que se deve proceder dessa oudaquela maneira, será inútil, pois é necessário dar inúmeras pistas, paraque em uma delas, ele encontre o esquema requisitado, e quando issoirá acontecer, não se tem previsibilidade. Às vezes ocorre através deuma palavra ou gesto, aleatório ao que se está trabalhando. É nessescasos que o uso de metáforas se torna eficiente.

Dos procedimentos didáticos aplicados, os mais eficientes, foram os da

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descontração, controle da ansiedade que é muito forte, por estar revol-vendo sua intimidade, a educação da respiração, conhecer e sentir aanatomia do aparelho fonador es seus pertinentes; muito diálogo, prin-cipalmente ao que diz respeito de se conhecer melhor; saber queninguém é igual, as diferenças são salutares; que as inabilidades podemser resolvidas; que o cantar se faz primeiramente, para si mesmo,depois para os outros, a fim de que possam apreciar uma boa perfor-mance; isso deve acontecer assim que conseguirem um bom desem-penho; nem que seja uma única música a ser mostrada para lhe darcerteza de superação, e uma fortíssima sensação de prazer por experi-mentar, naquilo que lhe era privado, e agora poder se sentir incluso norol dos músicos cantores ou instrumentistas.

Outra observação importante também detectada: os instrumentistasque não conseguiam tocar seu instrumento favorito apenas de ouvido,o conseguiram depois que aprenderam cantar “afinadamente”. Issosugere que as dificuldades, tanto cognitivas quanto perceptivas, encon-tradas em quem não consegue cantar “afinadamente” e em quem nãoconsegue tocar um instrumento sem qualquer notação, se assemelham.Deduzindo: quem “desafina” ao cantar, não toca instrumentos semnotação musical, e para isso deve passar pelo mesmo processo deaprendizado que é aplicado para o canto, além, é claro, do aprendiza-do das técnicas pertinentes aquele instrumento, tendo, porém, jádesenvolvido a percepção rítmica; isso demonstra que o processamen-to rítmico é processado no cérebro em área diferente da que processao som; não foram encontradas evidências de que as dificuldades per-ceptivas sonoras de um “desafiado” estejam relacionadas diretamentecom a falta de percepção rítmica no mesmo indivíduo; muitos que nãotem dificuldades perceptivas sonoras as tem na percepção rítmica;também, podem ocorrer simultaneamente no mesmo indivíduo.

Resumindo:

– A mente elabora, organiza e processa dados que lhe chegamcomo informações, pelos canais neurológicos.

– Sem experimentação não existem dados a serem analisados.

– A experiência é conhecimento, somente depois de resolvida eassimilada.

– O conhecimento, pode ser lembrado por estar no lastro de expe-riências assimiladas e acomodadas.

– A percepção “de”, só é possível se a mente tiver dele(de) algumconhecimento (referência).

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– Para reconhecer, é indispensável ter ocorrido anteriormente, oconhecimento “de”.

– Inteligência, pode ser entendida como aptidão da mente naapreensão, respostas a estímulos, resolução e organização dosmateriais experimentados.

– A qualidade da inteligência musical, pode estar diretamente vinculada à capacidade de resposta aos estímulos aos quais oindivíduo é exposto.

Ficam as questões: Aquele que não conhece o sistema tonal pode serconsiderado, musicalmente não inteligente? É correto usar o termo“falta de percepção” para designar um desconhecedor do sistematonal? Até que ponto alguém pode ser considerado desafinado?

Referências bibliográficas

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Curvas de dissonância para sistemas de afinação alternativa

Alexandre Torres Porres Jônatas Manzolli

Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP

Oconceito que existe sobre consonância/dissonância poderia serdescrito, do ponto de vista do senso comum, da seguinte forma:dois tons simultâneos são ditos dissonantes se o resultado for

desagradável para o ouvido e consonantes se o resultado for agradável.Apesar da aparente simplicidade, esta definição carrega um alto graude complexidade que perpassa estudos voltados à Psicoacústica (Plomp& Levelt, 1965).

O estudo aqui apresentado é um recorte de pesquisa em andamento noprograma de Mestrado em Música no Núcleo Interdisciplinar deComunicação Sonora (NICS) da UNICAMP, na qual investigamos o usode microtons por compositores do século XX no sentido de subsidiar odesenvolvimento de novos modelos para composição musical. O estu-do de curvas de dissonância sensorial fundamenta o desenvolvimentode um processo composicional próprio, o qual explora a relação entreafinações alternativas e espectro sonoro no que diz respeito ao controlede dissonância sensorial.

Referencial teórico

Na literatura fundamental da área, as medidas de dissonância sãogeralmente associadas às interações entre os componentes espectraisou parciais de um som. A pesquisa de Plomp & Levelt (1965) provê osfundamentos para a construção das Curvas de Dissonância Sensorial.Utilizando-se deste estudo, William Sethares (2005) desenvolveu ummodelo que relaciona o timbre de um instrumento musical (i.e. re-presentado pelo espectro sonoro) com a construção de uma escala.Sethares relaciona a distribuição espectral com uma dada escala/afi-nação com o objetivo de obter níveis mínimos de dissonância nosintervalos musicais da escala. Em paralelo, o compositor ClarenceBarlow (1980) expande os conceitos de Plomp & Levelt (1965) aoincluir no cálculo das Curvas de Dissonância Sensorial as Curvas deFletcher & Munson (1933) que relacionam a percepção de intensidadesonora e distribuição de freqüência a um conjunto de curvas não-linea-res denominadas de Curvas de Iso-Loudness.

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1. Afinação Justa e TemperamentoAs definições fundamentais relacionadas ao nosso trabalho podem serresumidas da seguinte forma: Intervalos justos são aqueles que podemser representados por proporções de números inteiros, ou seja, fraçõesracionais. Ex: [2:1] (oitava), [3:2] (quinta). Já intervalos temperados nãopodem ser representados por proporções de números inteiros, pois sãodescritos por relações de números irracionais. Ex: [2½:1] = 1.4142…(trítono temperado). A afinação justa possui apenas intervalos justos,enquanto o temperamento, além de intervalos temperados, podetambém conter intervalos justos. Intervalos justos possuem relaçõesharmônicas e são periódicos. Intervalos temperados são inarmônicos eaperiódicos.

Todavia, alguns autores consideram como harmônicos os intervalosrepresentados por frações racionais associadas aos primeiros termos dasérie harmônica e inarmônicos as razões associadas aos termos deordem superior. Intervalos inarmônicos são, desta forma, aproximadosaos termos superiores da série harmônica. Ex: [1.414:1] ao invés de[2½:1] para representar o trítono temperado.

2. DissonânciaTenney (1988) destaca cinco noções distintas de dissonância nodecorrer da história: melódica, polifônica, funcional, contrapontística,e psicoacústica. A noção mais recente é a psicoacústica, focada emmecanismos perceptuais do sistema auditivo, o termo dissonância sen-sorial está sob esta ótica e é geralmente creditado à Helmholtz (1954),apesar de ter sido significativamente refinado por Plomp e Levelt(1965). Este estudo contemporâneo da dissonância sensorial évinculado à Banda Crítica e ao Mapeamento Espectral da Dissonância,apresentados a seguir.

2. 1 Banda Crítica e Percepção de DissonânciaSegundo Helmholtz (1954), a percepção de dissonância ocorre quandohá a presença de batimentos1. Helmholtz partiu de três princípiosbásicos para elaborar Curvas2 de Dissonância Sensorial: “a) o espectrode tons complexos contém parciais harmônicos3, b) a sensação de

1 Dois tons puros (ondas senoidais) de freqüências muito próximas interagem no mecanismo do ouvidogerando a percepção de batimentos. Batimentos lentos produzem a sensação de trêmolo na taxa da dife-rença entre as freqüências, enquanto batimentos rápidos tendem a ser rugosos e incômodos. 2 Os gráficos se encontram na página 193 em Helmholtz (1954), um gráfico semelhante é fornecido naFigura 1. 3 Portanto podem ser representados racionalmente, como os intervalos justos, e são periódicos.

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rugosidade mais intensa ocorre nos batimentos rápidos de 32hz e c) arugosidade dos componentes espectrais pode ser somada”. Por causado primeiro princípio, o gráfico resultante aponta níveis mínimos dedissonância em intervalos justos4.

O termo consonância tonal foi cunhado por Plomp & Levelt (1965)para distinguí-lo da Teoria de Batimentos de Helmholtz e também doconceito de consonância da Teoria Musical. Nos seus experimentos,Plomp & Levelt pediram que voluntários sem treinamento musicalavaliassem a consonância entre dois tons puros através da resposta aestímulos senoidais. Foi encontrada uma tendência clara: no uníssonoa dissonância sensorial é zero, e aumenta rapidamente até umdeterminado ponto na medida em que o intervalo entre os dois tons seafasta do uníssono, decaindo até se estabilizar em um nível baixo dedissonância. O ponto máximo de dissonância, independentemente doregistro, está em torno de um quinto da banda crítica5 e decai consi-deravelmente até a passagem do limite da banda crítica, após o qual onível baixo de dissonância se estabiliza. Plomp & Levelt concluíramque as curvas de dissonância sensorial extraídas dos seus experimentosapontam para a relação entre dissonância e banda crítica.

2. 2 Mapeamento Espectral da DissonânciaSethares (2005), baseado no modelo de Plomp & Levelt (1965), forneceum algoritmo para calcular e gerar curvas de dissonância de um dadoespectro partindo de uma lista de freqüências e suas amplitudesrelativas. A curva de dissonância abaixo (Fig. 1)6 é de um espectroharmônico com sete parciais, cujas amplitudes relativas decaem nataxa de 88%.

Figura 1 - Curva dedissonância com níveis mínimos de dissonância emintervalos justos, repre-sentados pelas razões denúmeros inteiros na parteinferior, estes intervalos sãocomparados com os dosistema igualmente tempe-rado na parte superior.

frequency ratio

sens

ory

diss

onan

ce

12-tet scale steps

1/1 6/5 5/4 4/3 3/2 5/3 2/1

unison m3 M3 fourth fifth M6 octave

4 Os níveis mínimos de dissonância dependem das relações entre os parciais do espectro sonoro. 5 A diferença em freqüência entre dois tons puros onde a sensação de rugosidade desaparece. Abanda crítica varia em torno de uma segunda maior e uma terça menor de acordo com o registro. Nograve a banda crítica é maior que uma terça maior. 6 Elaborada por Sethares, disponível em: <http://eceserv0. ece. wisc. edu/~sethares/consemi. html>

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Sethares analisou também espectros inarmônicos e encontrou níveismínimos de dissonância que correspondem às relações inarmônicasdos componentes espectrais. Sua conclusão se posiciona na direçãooposta do que se poderia pensar originalmente. Pois ele demonstrouque determinados intervalos justos são percebidos como maisdissonantes que outros intervalos inarmônicos. Um exemplo éfornecido por Sethares onde o intervalo de uma oitava [2:1] é mais dis-sonante que o intervalo em torno de uma sétima maior [1.86:1]7 (Fig.2). Neste exemplo, o espectro é formado apenas por dois parciais queestão na relação de [1.86:1]. Outro exemplo (Fig. 3) mostra doisparciais na relação [1.15:1].

Figura 2 - Verifica-se que, ao con-trário da Figura 1, o valor 1.86 (emtorno de uma sétima maior) tem seuvale na curva antes do valor 2.0(oitava). Tal comportamentodemonstra como o nível de dis-sonância de um intervalo musicaldepende dos componentes espec-trais dos tons envolvidos.

Figura 3 – Diferentemente da figura1, com níveis mínimos em [6:5] e[5:4] (primeiros termos da série har-mônica), encontramos um nívelmínimo de dissonância no intervalo[1.15:1].

Barlow (1980) ampliou o modelo de dissonância sensorial de Plomp &Levelt (1965), incluindo no cálculo do mesmo as curvas de iso-loud-ness8 de Fletcher e Munson (1933), que influem no peso de amplitudede cada parcial. Barlow também mede a relação entre todos os com-ponentes espectrais, e não somente aos pares adjacentes comoSethares.

Discussão & conclusão

Ainda são poucos os estudos focados na medida de dissonância senso-rial como apresentados neste trabalho. Os modelos e métodosdisponíveis são, inevitavelmente, simples para tratar de um objeto com-plexo como o timbre de instrumentos. Barlow também aponta paraalgumas melhorias em seu modelo, como a inclusão do fenômeno demascaramento. Nós apontamos que estes métodos podem ser amplia-

1. 0 2. 0

Dis

sonâ

ncia

1. 0 2. 0

Dis

sonâ

ncia

7 Setharesadotaaproxima-ções racio-nais, comodescritona seção 2.1, paradescreverrelaçõesinarmôni-cas.

8 Tal comoo experi-mento dePlomp eLevelt,Fletcher eMunsonmediram apercepçãode intensi-dadesonora deum somcom inten-sidade fixade acordocom a fre-qüência.

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dos com o procedimento de subdividir o espectro temporal em janelasde tempo. Todavia, tanto Sethares quanto Barlow atestaram seus mode-los como suficientes em seus respectivos objetivos composicionais.Sethares (2005) elaborou afinações alternativas que possuem baixonível de dissonância a partir de um espectro inarmônico, utilizandotécnicas de síntese sonora digital. Barlow (1980) comparou os interva-los de um piano em todo o registro para gerar uma tabela de intervalosem ordem crescente de dissonância, organizada por oitavas9.

Afinações justas buscam minimizar a dissonância de intervalos musi-cais. Pelo exposto neste artigo, podemos verificar que níveis mínimosde dissonância dependem dos componentes espectrais dos sons. Destaforma, o uso de afinações justas se baseia em um conceito que consi-dera o comportamento espectral dos instrumentos musicais comosendo idealmente harmônico e estático. Todavia, quando se trata deinstrumentos musicais acústicos, há sempre um índice de inarmonici-dade associado, principalmente em instrumentos de percussão comosinos e de barras de metais. Instrumentos de corda e sopro são os quepossuem o menor índice de inarmonicidade, e de fato um nível maisbaixo de dissonância pode ser obtido no uso de sistemas de afinaçãojusta nestes instrumentos. Todavia, há um limiar de percepção onde asvantagens de uma afinação justa não prevalecem sobre o uso de inter-valos temperados, especialmente em relações onde se constroem estru-turas formadas por termos superiores da série harmônica. Por isso,intervalos temperados são usados como uma solução mais prática ealternativa ao ideal de afinação justa, ou ainda o contrário (comoadotado por Sethares).

Esta pesquisa não visa avaliar empiricamente as curvas de dissonânciasensorial, nem propor incrementos aos modelos existentes.Pretendemos discutir sua aplicação em processos composicionais,especialmente baseados em afinações alternativas. As curvas de dis-sonância sensorial subsidiam uma abordagem que vincula intervalosmusicais ao comportamento espectral dos sons, numa aplicação, por-tanto, similar à da música espectral, que adota o uso de microinterval-os para interferir no comportamento espectral de uma massa sonora.Neste sentido, estamos trabalhando num software escrito em Pd10 paracomposição musical interativa onde o compositor poderá manipularafinações e dissonância sensorial como fator de interação com o intér-prete. Com o objetivo de avaliar a interação entre afinações alternativase as curvas de dissonância, desenvolveremos um estudo de caso paraavaliar como as mesmas variam para diferentes escalas. O experimen-

9 Barlowencontroudiferentesgraus dedissonân-cia para osmesmosintervalosem dife-rentesoitavas.Assim,cada oita-va natabela pos-sui umaordemdiferentede interva-los.

10 PureData, soft-ware livredisponívelem:http://puredata. info/

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to será realizado por meio de um programa escrito em Pd que utilizaráa formulação de Sethares. Os resultados encontrados serão utilizadosna formulação de um conjunto de estratégias composicionais.

Agradecimentos

A implementação em Pd está sendo realizada com a essencial ajuda dodoutorando Fábio Furlanete. O projeto de pesquisa é apoiado pelaFAPESP com a concessão de bolsa de mestrado e pelo CNPq com aconcessão de bolsa Pq.

Referências bibliográficas

Tenney, J. (1988). A History of “Consonance” and “Dissonance. ” WhitePlains, NY: Excelsior, 1988; New York: Gordon and Breach.

Helmholtz, Hermann L. F. von. (1954) On the Sensations of Tone as aPsychological basis for the Theory of Music 1877. Dover Publications. 2nd

edition.

PLOMP, Renier and LEVELT, Willem J. M. (1965). Tonal consonance and criti-cal bandwidth, Journal of the Acoustical Society of America vol. 38, pp. 548-568.

SETHARES, William A. (2005) Tuning, Timbre, Spectrum, Scale. Springer-Verlag, London, 1998, 345 pages. With CD. 2nd editition.

BARLOW, Clarence (1980). Bus journey to Parametron. Feedback Papers vol.21-23, Feedback Studio Verlag, Köln.

FLETCHER, H and MUNSON, W A (1933), Loudness, its definition, measurementand calculation in Journal of the Acoustical Society of America 5, 82-108.

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A percepção na músicaValeria Gobbi

Raquel da Cruz Machado

Universidade de Passo Fundo

“Só existem três espécies de mecanismos figurativos poroposição aos mecanismos operativos das funções cognitivas: apercepção, a imitação e a imagem”. (Piaget, 1977:493). Se

nossa relação com o mundo inicia através da experiência quetemos com ele e esta relação seria responsável pela construção de co-nhecimentos, a percepção seria o primeiro encontro com a realidade.

Partindo da idéia de que outras teorias como o behaviorismo e a gestaltnão responde o que há entre o sujeito e o meio, Piaget avança em seusestudos dos mecanismos do desenvolvimento cognitivo ao se apartardos mecanismos perceptivos que a cultura fornece. Estudando o cami-nho da percepção e sua evolução constata-se que seus efeitos primáriosou de campo só se modificam com a idade e alguns esboços de está-gios que aparecem e se transformam, não podem ser comparados como desenvolvimento das operações. Não existe autonomia nestaevolução das percepções, por que ela precisa da intervenção demecanismos que vão além da percepção e, justamente, estes mecanis-mos exteriores vão contribuir para o aparecimento de novos efeitos per-ceptivos.

Em princípio, pode-se mencionar que a percepção é influenciada pelamaneira como os corpos estão estruturados para receber e elaborar osestímulos do meio, porém tudo inicia pela refutação da hipótese de queo conhecimento é uma cópia do real e da afirmação da hipótese de quese trata de uma assimilação.

Partindo da questão de que a imagem constitui a fonte das operaçõesintelectuais ou se, ao contrário, ela interfere no desenvolvimento destasoperações, trata-se de buscar origem a propósito da percepção incidin-do sobre as relações entre os aspectos figurativos e operativos dasfunções cognitivas, nos domínio visuais e por vezes tátil-sinestésicos.Piaget relaciona a imagem e a percepção, analisa as transformações daimagem e as antecipações da mesma realizada pelo sujeito. Observa asantecipações nas relações topológicas mais gerais, tais como avizinhança e o envolvimento, questiona se a imagem depende da ação

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do sujeito e qual sua relação com o pensamento operatório paraalcançar, finalmente, compreender a relação entre a intuição geométri-ca, as imagens e as relações de natureza imagética ou operatória.

Constituindo-se como funções figurativas do pensamento, as imagensde reconstituição e antecipação – próprias da representação imagética– apresentam um problema similar à percepção, que é outra parte dasfunções figurativas, as relações entre os efeitos de campo e asatividades perceptivas. Se não existe autonomia na evolução daspercepções, tal não acontece com as operações da inteligência cujodesenvolvimento apresenta as características de desenrolarem-sesegundo estágios bem definidos e segundo um processo autônomo. Deacordo com Piaget (1977:483):

“Uma tal evolução é, por outro lado, autónoma pois as estruturasassim construídas engendram-se umas a partir das outras em virtude derazões que só dependem da inteligência (acordo com a experiência,coerência interna, etc. ), podendo os factores afectivos, por exemplo,acelerar ou retardar a formação duma estrutura, mas não modifica-laenquanto estrutura (autónoma não significa portanto isolável, mas quese desenrola segundo filiações contínuas)”.

Examinar as questões do significado de estágios ou da sua própriaexistência e, antes de tudo, o mecanismo de sua evolução contribuipara esclarecer sobre as relações da imagem com a percepção e com ainteligência. O aparecimento da imagem coincide com o provávelmomento da constituição simbólica, ou seja, entre um e meio a doisanos e não apresenta dinamismo de contínuo, quer se trate da con-tinuidade de movimento ou de modificação. A percepção, por sua vez,é centrada e contenta-se com algumas amostras de informação forneci-das por centrações e encontros em parte aleatórios do objeto, cujoresultado é uma probabilidade de acertos uma vez que atinge somenteuma parte dos elementos percepcionados ou das relações em questão.A imagem, pelo contrário, busca uma figuração esquematizada, sim-bólica. As deformações observadas são próprias desta figuração e o seucaráter estático se deve a impossibilidade de captar o contínuo cujosimbolismo vem para suprir aquilo que não foi possível representar.“(…) Da mesma maneira, se a imagem é simbólica, a percepção não oé certamente no sentido que tomamos do termo de símbolo”. (idem:495). A sensação, por sua vez, é um símbolo entendido como umíndice ou sinal e não como semelhança, portanto, ela não se constituicomo cópia fiel do estímulo.

Quando Guillièron (1979) demonstra que as crianças pequenas estão

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mais sujeitas aos “efeitos de campo” no desenvolvimento das per-cepções, são mais sensíveis às ilusões perceptivas primárias, não estáeliminando a possibilidade de que isso aconteça também no adulto.Devido possuir poucas atividades perceptivas, a criança, até aos seisanos, é muito sensível a estas ilusões. Elas apresentam “grandes difi-culdades na decomposição de uma figura complexa em unidades quenão sejam ‘naturais’, ‘primárias’, isto é, em unidades simples organi-zadas segundo as leis da Gestalt” (p. 155).1 Mesmo que a figura sejaorganizada segundo essas leis, porém complexa e o desenho não cor-responder a uma unidade simples, a criança conseguirá reconhece-losomente após os seis anos. Outra característica consiste em que suaspercepções são sincréticas, sem relações entre as diversas partes de umtodo. Tem uma visão global do conjunto sem apresentar a análise e sín-tese das partes, nem tampouco atividades exploratórias e, se por acaso,aparecer uma visão de detalhes, estes serão isolados, em justaposição.

Quando chegam a fase pré-operatória e as primeiras operações, entreseis e oito anos, aparece uma nova forma de organização. Assim, pode-se “entender a evolução das percepções como uma assimilação pro-gressiva da percepção por parte das funções cognitivas superiores”(idem: 157). Piaget, com seus estudos, esclarece que a reversibilidade,como capacidade de executar a mesma ação nos dois sentidos do per-curso com consciência de que se trata da mesma ação, para a qual ascomparações e transposições se encaminham das regulações percepti-vas, é a grande responsável pelo início das operações. A percepção,portanto evolui sem que seu nível de organização primária desapareça.Egocêntrica, sempre está centrada num objeto presente, em função daprópria perspectiva do sujeito, por isso só tem satisfação prática. Nãobusca a explicação, a classificação, a comprovação por si mesma e nãorelaciona causalmente. Não é reflexiva.

1 A psicologia de Gestalt ou psicologia da forma foi uma corrente que muito sededicou ao estudo e experimentação no campo da percepção. De acordo comseus psicólogos, que introduziram a distinção Figura x Fundo, a figura é o foco deinteresse, diz respeito àquela percepção elaborada numa forma plena, pregnante,sobre a qual se focaliza nossa atenção. O fundo é o suporte neutro dessa figura, éo espaço em volta, percebido de maneira vaga, podendo-se chamá-lo de cenárioou contexto. Mais tarde foi acrescentado um terceiro termo, Campo, significandoo lugar onde ocorreu a observação. A fenomenologia apontou para o fato de opercebido como figura ou fundo é, também, determinado principalmente pelocampo e pelas relações que o sujeito mantém com esse campo. Os termos figura,fundo e campo, fornecem uma estrutura para organizar a experiência. Elespróprios são produtos de um conjunto de hábitos culturais e perspectivos em quea experiência tende a se organizar ao longo de linhas perspectivas com frente,fundo e horizonte distante. Defende, portanto, a idéia do conhecimento-cópia.

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Muitos fatores possuem efeito sobre a percepção, referindo-se àmúsica, pode-se dizer que ela desperta emoções, evoca lembranças emanifestações físicas. A emoção musical é um diálogo, umacomunicação não-verbal e o prazer que ela provoca regula oscomportamentos afetivos.

Pesquisas recentes, no entanto, indicam que as avaliações emocionaisde diferentes ouvintes, incluindo aquelas que se baseiam em históriapessoal e na própria sensibilidade estética, não dependem totalmentede fatores individuais. De acordo com os resultados obtidos nessaspesquisas, as reações emocionais de músicos e sujeitos sem formaçãomusical são bastante parecidas, o que comprova que a percepção dasemoções musicais é muito estável, tanto no plano individual comoentre diferentes ouvintes, o que leva a crer que as emoções musicaisgarantem uma coesão social numa dada cultura. Exerce grande podersobre o comportamento e ativa zonas cerebrais que participam doprocessamento das emoções, assim comprova-se que a música nãoevoca emoções subjetivas somente, mas que ela de fato as provoca.

O estudo das emoções musicais requer algo que torne possível o con-trole de um pequeno número de fatores musicais supostamente impor-tantes na expressão e na percepção dessas emoções. Algumas teoriasprocuram mostrar que as emoções nascem das expectativas musicaisdeterminadas pelos momentos de tensão e repouso que se sucedem naspeças de música erudita ocidental, esta que produz a impressão de ummovimento progressivo, de um caminhar que vai evoluindo para novasregiões, onde cada tensão se constrói buscando o horizonte de suaresolução. Nesse movimento de tensões e repousos, que se desenrolacom uma nova organização do campo das alturas sonoras coloca emcena uma procura permanente, uma demanda que só se reencontrarácom seu próprio fundamento à custa de um percurso muitas vezeslongo. Tensão e repouso aparecem tanto na frase melódica como naestrutura harmônica da música tonal.

De acordo com estudos de Peretz (2003), as crianças identificam bemmais cedo os índices emocionais na estrutura musical e sua percepçãodesses índices aumenta durante o desenvolvimento. Os parâmetros deandamento e de modo, de acordo com dados experimentais, represen-tam um índice perceptivo que provoca uma resposta emocional, ouseja, processos cognitivos específicos da música provocam emoções2.

A percepção da música implica processamentos cognitivos complexosao seguir o desenvolvimento temático de uma sonata ou perceber li-

2 Pesqui-sas reali-zadas peloLabora-tório deNeuro-psicologiada Músicae daCogniçãoAuditiva,dirigidoporIsabellePeretz, daUniversidade deMontreal.

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gações entre um tema e suas variações. Esse processo requer operaçõescognitivas abstratas que colocam em atividade capacidades de atençãoe memória, e operações de categorização e raciocínio.

Bruner escreveu em 1960, que qualquer tema podia ser eficazmenteensinado de alguma maneira intelectualmente honesta em qualqueretapa de desenvolvimento de qualquer criança, já sua versão destahipótese do ano de 1966 se concentra nas formas pré-verbais de conhe-cimento da criança pequena. À medida que a criança forma conceitosatravés da manipulação dirigida aos elementos da música, podecomeçar a praticar a audição, o movimento, o canto, a execuçãoinstrumental e a criação, descobrindo seus próprios sentimentos a par-tir de suas percepções. Sua percepção e compreensão virão provavel-mente facilitadas, pois tanto a criança como o artista (…) “encontramum estímulo espontâneo nas qualidades dinâmicas ou expressivas… asqualidades mais fortes e imediatas da percepção” (Aronoff, 1974). Aintuição e a fantasia da criança pequena e a representação direta doseu mundo através da ação e da manipulação parecem ser os ver-dadeiros ingredientes da expressão estética. A liberdade para reagir afe-tivamente pode aguçar a criança porque sua percepção nos primeirosanos se caracteriza, como já foi citado, por ser autista, ou seja, centra-da no seu afeto, egocêntrica, no sentido de que tem como referência asi própria, e também dinâmica, por estar estritamente vinculada a ação.

Segundo enfoque de Bruner (1966), o conhecimento mediante o movi-mento e a percepção de imagens auditivas constituem as bases daexpressão musical não só em nível cognitivo, mas também no afetivo.

Dalcroze,3 a partir da mais simples resposta individual aos sons damúsica, desenvolveu uma prática de educação musical, que se con-figura tão positiva para o desenvolvimento do crescimento musical naatualidade, assim como foi na sua época. Ele propôs uma educaçãomusical baseada na audição (escuta consciente), entendendo-se queesta acontece através da participação de todo o corpo, da ativação dosistema nervoso, num cultivo de sensações táteis e auditivascombinadas. Dalcroze lançou as bases de uma educação musical ativa,baseada na sensorialidade e na sensibilidade de todo o corpo comouma unidade, conduzindo a uma consciência auditiva. A música setransforma num meio de incitar o movimento. Quando a criançaescuta, tende a organizar suas percepções e a traduzir essas experiên-cias musicais a seu próprio movimento. Aprende a ficar tenso e arelaxar quando deseja e conhece a satisfação da espontaneidade e docontrole. Podem ser dadas oportunidades de responder as questões

3 JacquesEmileDalcroze(1865-1950)vienense,considera-do ocriador darítmica.

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musicais e/ou de tomar decisões independentes.

“O maior benefício na criança gerado pelas experiências musicaisguiadas por sons e movimentos vem da percepção sensitiva da músicautilizada. A música por si só, pode constituir um importante estímulopara o movimento. Também pode introduzir o elemento daautodisciplina que tem importantes ramificações no desenvolvimentocom gratificações tanto cognitivas como físicas e afetivas” (Aronoff,1974: 51).

Dalcroze especificava que, a música lida com a emoção, e responde adiferentes necessidades do indivíduo, seja como vibração sonora que é(agindo fisiologicamente), seja como experiência estética (agindo psi-cologicamente), seja como expressão, facilitadora de desenvolvimentoe socialização, prazer e gozo estético, seja, ainda, como auxiliar dobem-estar, colaborando na formação plena da personalidade e na rein-tegração do infradotado à sociedade. Refletindo em relação à educaçãoformal e atentando para as considerações da psicologia genética –quando nos informa que a organização do pensamento e a estruturaçãodo saber advêm fundamentalmente da atividade do sujeito –, concluí-se que a prática musical constitui significativa ferramenta no processoeducacional, visto ser uma atividade (construção, performance e/ouescuta), animada pela afetividade, que, nascendo do homem, atinge ohomem no seu todo (Sekeff, 2002).

Segundo Piaget (1962), a unidade básica de pensamento é qualitativa-mente diferente em cada estágio do desenvolvimento de um sujeito. Noprocesso de crescimento, a criança demonstra a habilidade pararepresentar um objeto através de outro objeto. Esta habilidade é resul-tado da construção de esquemas representativos desenvolvidos atravésde imagens, da linguagem ou de símbolos. O pensamento representa-tivo manifesta-se como uma característica física da função simbólica.

Assim, a exteriorização de uma proposição musical, a representação demúsica em movimento, a representação de música através de símbolos,são evidências crescentes da função simbólica. São também asprimeiras indicações de que a expressão musical consiste de um esque-ma representativo no seu processo efetivo. A música como produtodesse processo, é uma forma de representação sonora da experiênciasensível interior da criança. Há uma forma complexa como a atividademental desempenha a transformação de uma sensação em umaimagem ou representação. No estágio da representação o sujeito con-segue projetar mentalmente o discurso musical, seguindo ou acom-panhando a trajetória do discurso sem precisar da ação concreta do

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real. A percepção que até então era analítica linear, torna-se progressi-vamente analítica estrutural, comportando explorações no sentidovertical. A compreensão da relação antecedente-conseqüente nas fras-es musicais é uma demonstração clara do pensamento proposicional eda capacidade hipotético-dedutiva da cognição. As estruturas deoperações combinatórias, de proporções de probabilidade e previsão,passam a ser uma capacidade implícita neste estágio dodesenvolvimento. (Martins, 1993).

Piaget e Inhelder dedicam grande importância a representação daimagem no desenvolvimento de processos de pensamento: “… umaimagem motora é muito mais que uma percepção esvaecida… elaconsiste de uma imitação internalizada… O mesmo é verdade em setratando de imagens visuais” (Piaget e Inhelder, 1971: 17). Elesclassificam as imagens em termos de conteúdo (auditivo, visual, motor)e em termos de estrutura.

(…) “As imagens reprodutivas evocam objetos ou eventos conhecidos;as imagens de antecipação (expectativa, antevisão), projetadas pelaimaginação figurativa, representam eventos não percebidos previa-mente. De acordo com esta visão a imagem mental é uma imitaçãointernalizada e ativa resultado de uma imagem gráfica, de um produtovisível; o gesto imitativo é o fator motriz que possibilita a produção deuma imagem gráfica” (…) (1971: 349-350).

Dois períodos são propostos como importantes para o desenvolvimen-to da imagem: o pré-operacional – antes dos sete ou oito anos – ondeas imagens são essencialmente estáticas e o operacional, onde as ima-gens podem ser antecipatórias e podem reconstituir processossinestésicos, de transformação. A percepção não vem acompanhada desímbolo, assim como a negação e a afirmação seriam desprovidas detal. Também a sensação é só um índice ou um sinal que também não éum símbolo e é isso exatamente o que as diferencia. A imagem é sim-bólica por se caracterizar como instrumento semiótico necessário paraevocar e para pensar aquilo que é percebido. É possível constatar quea imagem é essencial para a construção do esquema representativo. Osistema sensorial funciona como base sobre a qual a imagem se proces-sa. É importante salientar que a música, assim como outras artes, é umsistema de representação e “a origem do nível perceptivo e do nívellógico é a mesma nas atividades desenvolvidas pela criança no períodosensório-motor”. (Martins, 1993).

As investigações e estudos realizados por Piaget (1971), vêm reforçar aimportância da imagem e da representação na aprendizagem musical,

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das artes e da aprendizagem de uma maneira geral. As sensações tor-nam-se percepções quando formamos imagens ou esquemas represen-tativos convertidos mais tarde em conceitos. A percepção humana e odesenvolvimento dos sistemas representativos envolvem todo o aparatosensorial numa complexa rede de interações físicas que possibilita oprocesso cognitivo do significado, assim como a experiência estéticaque aparecerá mais tarde. A memória musical depende de modalidadesespecíficas de representação e internalização, de abstração esimbolização, para construir o sentido da música como discurso ecomo conhecimento.

A impressão é uma das metades da percepção. A outra metade é aexpressão. Na sua ligação está a inteligência – o conhecimento acura-do das observações perceptuais. Pela impressão conciliamos a infor-mação que recebemos do ambiente. Ela atrai e ordena; a expressãoafasta e projeta. Juntas, essas atividades e talvez algumas outras, fazemo que foi descrito por Schafer (2001) como “competência sonológica”,4declarando que a mesma não resulta da mera recepção de informaçãosensorial.

Piaget (1962), distinguiu com clareza dois elementos específicos paraos quais voltou sua atenção neste estudo: a teoria da percepção e a teo-ria sobre a percepção. Martins (1993) explica que na teoria da per-cepção, Piaget descreve o funcionamento do aparelho perceptivo e,basicamente, os estudos feitos sobre a percepção usam como base osestímulos visuais. Na teoria sobre a percepção, Piaget estabelece umparalelo entre a cognição e a percepção esclarecendo que, apercepção, assim como a inteligência é um tipo de adaptação.

Desde o primeiro instante, acontece o desenvolvimento de uma cons-trução dual com o intelecto e a subjetividade levando o sujeito a umadimensão maior, abrangendo a intuição, a imaginação e o pensamentológico. A percepção engloba poucos comportamentos, ficando a cargoda cognição uma série de ações – como julgar, classificar, reorganizar– anteriormente concebidos como atos perceptivos.

A percepção e a memória são faculdades solidárias. O grau e o perío-do de persistência é o que as difere. A percepção se dá, quando a cons-ciência das impressões colhidas pelos sentidos é imediata. Já na açãoda memória, ela é mediada. Quase todas as memórias são feitas demuitos padrões diferentes de conexão de neurônios, uns destinados aossons, outros à visão, outros a texturas, e a combinação de todos eles éque vai nos dar a percepção completa. Enquanto a persistência dos

4 A com-petênciasonológicauneimpressãoe conheci-mento etorna pos-sível for-mular eexpressarper-cepçõessônicas.

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padrões absorvidos transforma a percepção ocorrida em memória, bi-lhões de neurônios transformam as memórias armazenadas em ima-gens, frases, sons, vozes que emergem. Mas, então não será simples-mente percepção.

Ehrenzweig (1977), elaborou um estudo da dimensão estética humana,sustentado por descobertas da psicologia ligadas particularmente aotema da percepção. Relativizando os conceitos Figura x Fundo, eledemonstrou a existência de outra percepção que vai além dessa, con-sciente: é a percepção inconsciente, que não segue as leis formuladaspela Gestalt. Para ele, a atividade de nosso campo perceptual apresen-ta, ao lado da percepção consciente, outro tipo de movimento, a per-cepção inconsciente, diferente e desarticulada em relação à primeira.A percepção inconsciente resulta sincrética e “mais emocional”, porémpropicia aos elementos do campo total apreensão no mesmo plano deimportância, ou seja, sem a hierarquização imposta pela Figura xFundo.

Nesse processo, o autor procura mostrar que a percepção conscienteobjetiva sempre elaborar o campo, juntando seus elementos em formasperfeitas, reconhecíveis, reprimindo aquelas outras formas inarticu-ladas, representações de formas emocionais do inconsciente e objetoda mente profunda (percepção inconsciente), a fim de organizar figurae fundo. O mesmo acontece na escuta musical, onde as duaspercepções trabalham juntas, embora nem sempre se considere issoconscientemente.

Sendo a música uma linguagem perceptiva por excelência, entendê-lae exercitá-la equivale aos conceitos de compreender e falar.Compreender a linguagem que se lê e se escuta, vivenciar seus múlti-plos sentidos, integrar seus aspectos sensoriais, afetivos, intelectuais,estéticos e contraponteá-los com outras matrizes de conhecimento, é oobjetivo da música como ferramenta auxiliar da educação, pois suavivência é atributo essencialmente humano. (Sekef, 2002).

Percepção e imaginação são, caminhos recortados no processo educa-cional, objetivando produzir no educando essa particular espécie deaptidão que é a emocional. Sugerir música na educação é comprovar aimportância da percepção, cuja atividade tem muito em comum com ainteligência, já que envolvem mecanismos similares; é incursionar nacompreensão de faculdades como a aural, a memória, a inteligência; épenetrar no mundo da materialidade sonora, porquanto o som, ao con-trário da vibração, “é algo que uma mente faz”, assinala Jourdain

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(1998: 21); é penetrar no universo da psicoacústica, que investiga comopercebemos o som.

Em resumo, não se pode considerar o que é posterior a gênese, e, destaforma, volta-se ao início. Piaget concluiu que “a representação do dadopercepcionado ou perceptível não constitui só por si um conhecimen-to, e só se torna um conhecimento quando se apóia sobre a com-preensão operatória das transformações” (1977: 525). Somente a per-cepção e a motricidade efetiva seguirão exercitando-se tal qual são,sem carregar-se de significações novas nem se entregar em novos sis-temas de compreensão. Caberia ainda perguntar: por que a psicologiada inteligência se preocupa com o problema perceptivo?Provavelmente, porque envolve o “saber construir” através de oper-ações apropriadas uma figura não dada e semelhante a um modelodado (1993: 339), porque, a partir da percepção, inúmeros sistemas sedesenvolvem pela experiência e interação entre sujeito e objeto, enten-dendo como “experiência não o que se fez, mas o que se faz com o quese fez”. Em outras palavras, “… é que uma percepção nunca se apóiasenão em campos restritos, ao passo que um sistema de coordenadassupõe, ao contrário, a coordenação operatória de todos os camposentre si”. (1993: 435). A partir da percepção de um dado específico,existe uma verdadeira engenharia de construções internas do sujeitopermitindo evoluir com esse dado em níveis superiores do conheci-mento, mas a percepção estará lá, a serviço do “saber construir”. Osom é sensação, a música é um deslocamento no tempo e esse deslo-camento ocorre no espaço, com o contato pedagógico entre a músicae o sujeito, este só expandirá o suporte para as operações lógicas.

Sendo assim, permitir que a educação musical fique fora da formaçãodo sujeito é o mesmo que lhe negar a educação como um todo, érenegá-lo a condição de indiscriminação sonora devido à estatizaçãoperceptiva do objeto quando se deveria privilegiar a evolução dapercepção auditiva. Sendo esta, portanto, uma construção.

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2. A Mente e a Produção das Artes Musicais

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Pianista e professor:questões básicas de ensino de prática instrumental

Zélia Chueke

Universidade Federal do Paraná

Questões de ensino

“T eachers come in different shapes and sizes.” Assim começa oartigo de Bernard Holland no New York Times de 7 de setem-

bro de 1998. Apesar dos “diferentes tamanhos e formas” de professorese alunos, existem certas condições básicas para que o processo ensino-aprendizado tenha êxito:

1. Educar é um ato de generosidade; o educador deve estar dispos-to a transmitir informação e orientar o aprendiz na busca de seupróprio caminho.

2. O estudante precisa estar aberto a receber informação, escutan-do e ponderando sobre a orientação do professor para no tempodevido, ajustá-la a seus próprios ideais.

3. Ambos devem estar movidos pelo mesmo ideal: cultivar epartilhar para crescer.

Seja qual for a disciplina, se o professor retém a informação ou a fazparecer inatingível, após algum tempo o aluno abandona sua busca,desacreditando em sua capacidade de aprender assim como na dis-posição de ensinar dos professores. No entanto, a função do professoré justamente desmitificar o assunto abordado, facilitando o acesso àinformação e incentivando a curiosidade do aluno. Infelizmente não éesta a realidade na maioria das situações de ensino-aprendizado,incluindo o ensino de prática instrumental em todos os níveis.

A função do professor

O papel do professor está implícito na função do instrumento musical.Tomando como exemplo o piano, verificamos que sua evolução – domonocórdio ao piano moderno – deu-se essencialmente em função deexigências musicais. Esta constatação origina outra, que caracteriza amúsica como arte performática. “Estritamente falando, a música é pro-duzida unicamente através da execução, e o sentido a ela atribuídodepende de cada indivíduo” (Blacking, 1979: 3). Fica assim definida afunção do professor: orientar o aluno para que este possa descobrir seuspróprios meios de transformar idéias musicais em som.

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Professor ou pianista?

Um aspecto que tem sido freqüentemente abordado em se tratando doensino de piano é a necessidade da experiência do professor comointérprete profissional.

Na opinião de Georgy Sandor (1995: 200) “os intérpretes devemaprender de outros intérpretes”. Curiosamente, seu enfoque recai sobreas vantagens do professor que pode demonstrar o que ensina.Consideremos este enfoque juntamente com o testemunho de LeonFleisher (apud Mach, 1988: 106): devido a problemas nas mãos, que oimpediram de executar muito do que ensinava, Fleisher viu-se forçadoa se tornar mais verbal, criando imagens que procurava associar àexperiência de cada aluno. Reconhecendo ser muito mais simplessentar-se ao piano e tocar uma certa passagem, o pianista acredita quea imitação no início do aprendizado é importante, pois “existemaspectos que apesar de copiar satisfatoriamente, o aluno só virá acompreender um pouco mais tarde”.

Estes dois pianistas valorizam as habilidades performáticas do professorde instrumento sob um ângulo deveras inconveniente, sendo a imitaçãogeralmente desprovida de escuta e reflexão, o que pode facilmenteimpedir o auto-conhecimento, objetivo importantíssimo no processo deaprendizado. Além disto, qual seria a finalidade de se sugerir ao alunoa cópia da execução de um material sonoro que ele não pode aindacompreender? Afinal, contamos com opções de repertório as maisdiversas, acessíveis às diferentes condições emocionais, culturais etécnicas, possibilitando o desenvolvimento individual e paulatino dacompreensão musical e sua relação íntima com a técnica.

Esta é a postura de pianistas como Rudolf Buchbinder (apud Chueke,2000: 38) que acredita ser atribuição do professor encorajar e patroci-nar a individualidade de cada estudante. O pianista austríaco afirmaque o professor deve ter o cuidado de não impor sua própria persona-lidade ao aluno. Rudolf Firkursnik (apud Mach, 1980: 84) declara igual-mente que “tenta ajudar seus alunos a desenvolver sua própria indivi-dualidade, principalmente no que diz respeito à expressão musical”.

Respondendo à nossa questão, não restam dúvidas quanto às vantagensda experiência do professor enquanto intérprete profissional; porémestas se manifestam não na demonstração pura e simples de suaspróprias idéias, mas no acompanhamento do processo do aluno, queinicia com a escolha de uma obra a ser incluída no repertório, seguidado primeiro contato com a partitura, a compreensão e absorção do

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texto musical, a preparação da execução e o momento mágico dacomunicação entre o artista e o ouvinte. Uma grande e real vantagem,é que o profissional poderá orientar o aluno a tirar o melhor proveitodo tipo de experiência que só pode ser vivida no palco, como porexemplo, a adaptação à acústica da sala, sua relação com oinstrumento, com possíveis microfones e com a presença do público,entre outros aspectos.

Como resultado de um ensino apropriado, o jovem instrumentista: (a)torna-se capaz de usar sua bagagem musical e técnica para trazerconsistência à sua interpretação, (b) adquire auto-confiança, que iraguiá-lo em sua busca de individualidade na execução, (c) aprende amonitorar conscientemente seu trabalho de preparação e a execuçãopropriamente dita, vivenciando-a com prazer.

Os mitos, suas origens e conseqüências

Os testemunhos de grandes pianistas e igualmente de jovens intérpretesa respeito de suas experiências enquanto aprendizes, fazem menção acertos mitos que podem desencorajar o futuro intérprete em suasaspirações profissionais. Estes refletem geralmente uma atitude de auto-proteção da parte dos professores, que se sentem ameaçados pelospossíveis questionamentos que possam abalar os alicerces já poucosólidos de sua formação, cujos pontos fracos residem em sua maioriano campo da leitura/escuta e compreensão do texto musical.Consideraremos a seguir os mais comuns destes mitos e suasconseqüências.

O mito do inalcançável

A função primordial do intérprete é “esclarecer” (Schoenberg, 1984:347) para os ouvintes as idéias musicais que extraiu da partitura. Noentanto, ele só será capaz de esclarecer algo que tenha compreendido.

Usando o texto musical como referência, o professor certamentepoderá ajudar o jovem intérprete que tenha manifestado alguma difi-culdade de compreensão. Infelizmente, inseguros em relação ao usodevido da notação, professores tentam descrever o discurso musicalcom imagens extra-musicais muitas vezes inconsistentes, distantes darealidade do aluno e do próprio contexto da obra, gerando apenas maisinsegurança. Estabelece-se assim o mito do inatingível e com este, umaeterna relação de dependência. O aluno não se sente capaz de decifraruma partitura, muito menos de formar uma imagem sonora a partir dela

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uma partitura, muito menos de formar uma imagem sonora a partir delae nem mesmo de escolher o que tocar sem pedir “permissão” ao pro-fessor. O professor, por sua vez, baseia sua orientação no que ouviu deseus antigos professores ou copiou de outras interpretações e, sobretu-do, na famosa “tradição”. Criticando os vícios da tradição, AndrasSchiff (apud Chueke, 2000: 36) fala de seu trabalho de “resgate” deobras, como a Apassionata de Beethoven. O pianista se dispôs a explo-rar a partitura, liberto de todas as famosas “tradições”, constatando queestas não correspondem em absoluto ao que Beethoven escreveu.

O relacionamento com a obra

A falta de acuidade na leitura de toda uma geração de professorestornou o ensino de prática instrumental limitativo, uma vez que só seensina o que se tocou e como tocou. Logicamente a escolha de umaobra inédita exigirá igualmente do professor e do aluno um trabalho deleitura – e não de “surda” re-leitura – que pode se revelar estimulantepara ambas as partes, dependendo da motivação. Este tem se reveladoum dos caminhos mais consistentes para tornar o aluno capaz demoldar a partir do texto notado, a sua própria concepção – original epertinente – de uma determinada obra, por mais numerosas que sejamas interpretações já existentes; cabe ao professor orientá-lo no sentidode trazer consistência à sua execução. Obviamente, trata-se aqui dainterpretação do aluno e não do professor.

Exploremos esta idéia na prática: Lerdhal (1983: 63) sugere que o intér-prete, “ao escolher uma determinada interpretação escolhe na verdadecomo escutar a obra, e como quer que outros a escutem”, concluindoque “a percepção do agrupamento é uma das variáveis mais impor-tantes manipuladas pelo intérprete ao projetar uma determinada con-cepção de uma certa obra”. A abordagem de Lester (apud Rink, 1995:199) exemplifica esta afirmação: são consideradas duas interpretaçõesdistintas do Minuetto da Sonata para piano KV 331 de Mozart, uma deVladimir Horowitz, outra de Lili Kraus. Segundo Lester, na gravação deum concerto de Lili Kraus por volta do ano de 1996, ouvimos o acordede dominante no compasso n° 40 resolvendo na tônica do compasson° 41, finalizando o primeiro tema no primeiro tempo deste compassoonde se inicia concomitantemente o segundo tema. Horowitz por suavez, em seu recital do Carnegie Hall também em 1996, faz uma meia-cadência no compasso n°40, ao invés de continuar a frase até oprimeiro tempo do compasso n° 41, fazendo um ritardando e umdiminuendo e respirando notadamente antes de começar uma novafrase no compasso 41. Examinando a partitura, verificamos que ambas

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O mito da técnica

Como se a riqueza do repertório não fornecesse material suficiente paraocupar o aluno em sua formação, criou-se outro mito: a técnica, quedeveria servir à música, ocupa seu lugar, distanciando mais uma vez oaluno de seus objetivos musicais.

O fato é que todas os instrumentistas – compositores, intérpretes, estu-dantes de música, profissionais ou amadores – possuem algo emcomum: para fazerem música através do instrumento de sua escolha,precisaram antes aprender a tocá-lo e para tanto, tiveram que adquirira técnica apropriada. Após algum tempo de treinamento, tornaram-secapazes de exercer a atividade, cada um dentro de suas possibilidades.

No entanto, universalmente, o termo “práticas instrumentais” per-manece associado à formação de um único tipo de instrumentista: ovencedor de concursos, que deslumbrará platéias com suas exibiçõesde bravura.

Temos aqui duas questões a serem resolvidas:

1. A visão estreita de uma formação elitista que encaminha o alunopara uma única possibilidade de carreira, numa perspectivaextremamente limitada e cada vez mais em desacordo com omercado atual.

2. A negligência do aspecto mais essencial de qualquer atividademusical, que é a experiência com o material sonoro.

Examinando o primeiro ponto, constatamos que este tipo de formaçãoelitista é limitativa pois afasta inúmeras opções que poderiam ser vis-lumbradas pelo estudante através de uma relação saudável com seuinstrumento, desde o simples prazer de fazer música confortavelmente(este é afinal o objetivo da técnica) até os inúmeros tipos de atividadedentro da área, seja como artista, produtor de eventos, professor, críti-co de arte, administrador de salas de concertos ou qualquer outra ativi-dade que tenha como objetivo tornar a música acessível ao público emgeral. Quanto ao segundo item, a ênfase desmedida sobre a técnicacomo um fim em si mesma limita igualmente a formação do músico –amador ou profissional – que antes de tudo precisa estar familiarizadocom a linguagem musical, ser capaz de decifrá-la e compreendê-la, pormais simples que ela possa parecer, para poder dela usufruir, transmitire/ou partilhar. Segundo Suzanne Langer (apud Chueke, 2000: 85) osdedos seguem a escuta. Em resumo, temos que ouvir o que lemos etocar o que ouvimos.

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Individualidade

Ora, se a técnica serve à escuta, está também subordinada ao intér-prete, adaptando-se respectivamente à imagem sonora formada a partirdo texto musical e ao seu tipo físico. Este trabalho de adequação, nãopode se limitar ao empirismo: “um método racional deve englobar todoo conhecimento disponível e aplicável na realização de um objetivo. Opropósito da pedagogia do piano é treinar o corpo para ser capaz demanipular o mecanismo do piano adequadamente para expressar Arte,composta de idéias, sentimentos e estética. (Schmitz, 1935: 1). Estaconcepção é sustentada pelas de Singer (1980: 591) e as de Radocy &Boyle (1997: 374). O primeiro nos alerta: «os indivíduos desenvolvema capacidade de execução na medida em que começam a adequardiferentes estratégias à determinadas situações, ao invés de aplicaraquelas que lhes foram impostas» e os segundos declaram que a teoriade Howard Gardner sobre os diversos tipos de inteligência aplica-seperfeitamente aos alunos dotados de habilidade musical. Retomando oartigo de Holland, fica claro que não importando os tipos ou formasdos personagens envolvidos no processo de ensino do instrumento, ojovem intérprete deve ser encorajado, em todas as etapas deste proces-so, a realizar algo único.

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Um estudo de desenvolvimento de corte transversal sobre saberes docentes de professores de piano

Rosane Cardoso de Araújo

Universidade Federal do Paraná – UFPR

Os estudos sobre os saberes são estudos que se voltam para osprocessos de construção e aquisição de conhecimentos e têmsua origem na área da Educação. Tais estudos têm orientado

investigações voltadas para formação de professores e para as pesquisassobre profissionalidade. Dentre os autores que discutem esta temática,encontram-se Gauthier (1998), Tardif (2002), Pimenta (1999), Ramalho,Nuñes e Gauthier (2005), entre outros. O escopo neste enfoque é a dis-cussão do repertório de conhecimentos que norteiam a práticapedagógica do professor, considerando sua formação acadêmica, suasexperiências acumuladas ao longo da carreira, bem como os contatossociais com os pares e alunos, além de nortear a discussão sobre carac-terização da função laboral do professor. Este trabalho, portanto, tevecomo objetivo investigar os processos de mobilização e aquisição dossaberes que norteiam a prática pedagógica de professores de piano, aolongo do desenvolvimento de suas carreiras docentes.

A linha discursiva desta pesquisa foi a fenomenologia focalizada nopensamento de Heidegger (2002), e o referencial teórico para discussãodos dados teve como base os estudos de Tardif (2002), sobre saberesdocentes e de Huberman (1995), sobre etapas da carreira. Em comum,entre estes três autores, encontra-se a alusão à temporalidade.

No pensamento fenomenológico de Heidegger (2002), o homem é umser situado num contexto histórico, que possui um passado e dirige-separa um futuro. Neste sentido, a historicidade é um componentenecessário para o enfoque do fenômeno focado no presente. Assim,esta pesquisa interrogou o fenômeno – a docência de professoras depiano – dirigindo-se para a busca da essência – seus saberes – comuni-cados por meio do discurso e da prática de cada docente participantedesta investigação, considerando-se suas histórias de vida.

Para tratar dos saberes docentes, foram consideradas as pesquisas deTardif (2002), que cita quatro grupos de saberes: disciplinares, curricu-lares, da formação profissional e experienciais. Segundo o autor são ossaberes experienciais que assumem uma posição privilegiada em

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relação aos demais grupos, uma vez que é por meio deste, que o sujeitotransforma suas certezas subjetivas em conhecimentos práticos e validaos demais grupos de saberes. Para Tardif, os saberes experienciais sãointerativos, mobilizados e modelados por meio das interfaces que seapresentam entre o professor e outros atores educativos, destacando,portanto, a temporalidade como fator de construção e aquisição daexperiência.

A contribuição de Huberman (1995), nesta pesquisa deu-se no diálogoentre os dados encontrados e a discussão da construção da carreiradocente. Neste processo, a temporalidade também foi um fatorrelevado. Huberman destaca uma série de etapas – não necessaria-mente lineares – que atravessam a carreira do professor. Suaclassificação foi um ponto de partida para discutir as distintas fases dacarreira que os professores, participantes desta pesquisa, atravessavam.

Metodologia

O método da pesquisa foi o estudo multicasos, orientado por um estu-do de desenvolvimento de corte transversal, ou seja, a observação, emum determinado espaço de tempo, da prática docente de professoresem períodos distintos de suas carreira. Participaram deste estudo, trêsprofessoras de piano, bacharéis em música, localizadas num períodoinicial, intermediário e de final da carreira. A coleta de dados foirealizada por meio de entrevistas e observações de aulas, de cadaparticipante.

A primeira professora – Rita – encontrava-se numa fase de início de car-reira, com três anos e meio de atuação profissional. Suas dificuldades econflitos eram características de duas fases iniciais da carreira queHuberman (1995) descreve como fase de entrada na carreira e fase daestabilização. A primeira fase – entrada na carreira – é uma fase dedescoberta, caracterizado por um entusiasmo inicial advindo da expe-rimentação e exaltação que o professor vivencia por estar, finalmente,numa situação de responsabilidade perante os alunos e colegas. Asegunda fase, da estabilização, seria característica como uma fase detomada de responsabilidades e de aquisição da identidade profissional.Esta professora, portanto, se encontrava num período transitório entreestas duas fases, apresentando, em seu discurso, momentos defragilidade característicos de uma entrada na carreira e momentos querevelavam já um comprometimento maior com sua escolhaprofissional, característico da fase de estabilização.

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O segundo caso foi conduzido com a professora Maria, de 19 anos deatuação profissional. Sua determinação e dinamismo observados noseu discurso e na condução de suas atividades coincidiram com a fase,descrita por Hubeman como a maior etapa vivida por docentes nodesenvolvimento de suas carreiras – a fase da experimentação e dadiversificação. Para o autor é nesta fase que o professor busca alcançarmaior respeito e prestígio diante dos colegas, bem como procuradesenvolver seu trabalho de forma mais dinâmica.

Por fim, o terceiro caso foi conduzido por meio do estudo da carreira,da prática profissional e do discurso da professora Tereza. Esta profes-sora, com 43 anos de atividade docente, revelou-se como uma docenteparticularmente tranqüila e segura tanto na condução de sua atividadede ensino quanto no seu discurso. De acordo com Huberman, é numafase de final de carreira que a serenidade torna-se um elemento mar-cante, no qual o professor praticamente não se depara com situaçõesconflitantes com as quais já não possua certa intimidade.

Estes três casos, por sua vez, foram analisados por meio do estudo dedesenvolvimento de corte transversal, ou seja, foram considerados nadiferentes etapas da carreira – início, meio e final – trazendo, por meioda transversalização, elementos para discutir os saberes docentes quenorteavam a prática docente das professoras, a aquisição da experiên-cia e as peculiaridades da construção de suas carreiras.

Resultados

Como resultado, foi especificada uma tipologia de saberes, observadasa partir do elemento temporal, isto é, pela observação dos aspectoshistóricos/pessoais e de formação profissional de cada participante.Para este fim foi considerada a mobilização dos saberes por meio dodiscurso – observados durante as entrevistas e durante as aulas – e daprática de ensino das professoras, verificadas por meio das observaçõese do registro das aulas ministradas.

Assim, foi estabelecida uma tipologia de saberes própria para os dadosencontrados nesta pesquisa. Tal tipologia, embora vinculada a este estu-do, pode servir para nortear outros trabalhos sobre o enfoque dossaberes docentes de professores de instrumento. Nesta tipologia foramidentificados, como norteadores da função docente das professoras depiano, os saberes disciplinares – adquiridos na formação inicial, ouemergentes – os saberes curriculares; os saberes da função educativa; eos saberes experienciais.

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Os saberes disciplinares – da formação inicial ou emergentes – foramconsiderados os conhecimentos relativos às diferentes disciplinas damúsica, que as professoras utilizavam em suas práticas. Tais saberes,oriundos de suas formações, eram relativos aos conhecimentos deharmonia, contraponto, o estudo do piano, história da música, entreoutras.

Os saberes curriculares, por sua vez, foram considerados como oconjunto de conhecimentos que as professoras dominavam, relaciona-dos ao programa de ensino, ao planejamento de suas atividades, da sis-tematização, da progressividade das etapas do ensino, contemplandodiferentes possibilidades de repertório e de uso de métodos.

Já os saberes da função educativa, foram considerados como osconhecimentos mobilizados pelas professoras referentes ao uso dadidática, da motivação e de recursos educativos. Neste grupo tambémforam considerados os critérios de avaliação e o uso de metodologiasde ensino.

Por fim o grupo dos saberes experienciais foi o grupo que teve comofoco tanto os processos de condução da atividade docente, referentesao contato entre alunos e professoras, quanto ao discurso das mesmasem relação às suas impressões e interações com a profissão, seusalunos e pares. Neste sentido, foi considerado, neste grupo, a flexibili-dade das professoras diante das situações vivenciadas em sala de aula,a forma como estas conduziam suas atividades, seus relacionamentoscom os alunos, suas formas de ensinar e conduzir o estudo dorepertório, bem como suas opiniões em relação à carreira.

Analisando estes grupos de saberes observou-se que, dentre todos osgrupos, os saberes experiencias assumem uma função de destaque emrelação aos demais, pois é a partir deste que os outros grupos sãovalidados e mobilizados na prática cotidiana. Além disso, os saberesexperienciais, que têm sua origem no exercício cotidiano da profissão,estão vinculados, de forma particular à temporalidade. Neste sentido,eles adquirem uma personalização em cada caso, de acordo com acarreira particular de cada docente. Assim os saberes experienciaisforam discutidos por meio do fator temporal, por meio de trêspossibilidades discursivas: a mobilização dos saberes experienciais esua relação temporal com o domínio da situação pedagógica; ossaberes experienciais e sua relação com os contatos sociais do profes-sor; e os saberes experienciais como um fator de validação dos demaissaberes que norteiam a prática docente.

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Ao analisar o primeiro elemento discursivo – a mobilização dos saberesexperienciais e sua relação temporal com o domínio da situaçãopedagógica – pôde-se verificar que cada caso, conforme o período dacarreira docente, vislumbrava certas características próprias. Oprimeiro caso, por se tratar de um início de carreira demonstrava, emrelação aos outros dois casos – vinculados aos períodos intermediárioe de final de carreira – um postura profissional mais latejante, emrelação à sua forma de agir e tomar decisões em sala de aula. Tal inse-gurança, associada a pouca experiência docente, lhe proporcionavamomento de instabilidade verificada tanto em sua prática quanto emseu discurso. Fato que nos outros dois casos, não foram observados.

O segundo elemento de discussão da experiência foi sua relação comos contatos sociais do professores – os alunos e os pares. Nesteelemento, pôde-se verificar que, a medida que o professor adquireexperiência em seu trabalho, maiores são suas convicções e maior suaconfiança diante da diversidade de sujeitos que este orienta. Noentanto, ao abordar a relação do professor com seus pares, observa-seque é no final da carreira que o distanciamento torna-se mais significa-tivo. Em parte porque o professor, por apresentar uma postura deconfiança em seu desempenho, torna-se cada vez mais auto-suficienteem seu trabalho. Ao mesmo tempo, como define Huberman (1995) emseus estudos sobre a carreira, o docente freqüentemente tende a sermais individualista, liberando-se do investimento nas situações dotrabalho, para dedicar um tempo maior a si próprio.

Por fim o último elemento verificado sobre a aquisição da experiênciae a temporalidade diz respeito aos saberes exeperienciais como umfator de validação dos demais saberes que norteiam a prática docente.Ao observar a mobilização dos saberes, na prática docente das profes-soras, pôde-se concluir que os saberes experienciais adquirem umacerta objetividade me relação aos demais saberes, observando-se umarelação crítica-avaliativa, retaduzindo-os de acordo com as condiçõeslimitadoras da experiência. Na observação dos casos, portanto, perce-beu-se, por meio do estudo de desenvolvimento de corte transversal,que o grupo de saberes experienciais, especialmente no último caso, daprofessora com 43 anos de atividade, impregnavam de tal forma seudiscurso e sua prática que se tornava particularmente difícil a tarefa devisualizar as outras categorias específicas de saberes. Além disso,também pôde-se perceber que os saberes experienciais não apenasvalidam os demais saberes, mas também são fonte de aquisição dosmesmos. Neste sentido exemplifica-se observando que, as professoras

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participantes deste estudo, por não possuírem uma graduação em cursode formação de professores, mas no bacharelado em instrumento,utilizaram-se dos saberes experienciais para consolidar seus saberes dafunção educativa. De acordo com seus relatos, pôde-se verificar quemuitos conhecimentos relativos ao uso da didática, utilização demetodologias, processos de avaliação, entre outros, foram configuradosem saberes da função educativa, a partir da experiência cotidiana.

Concluindo este estudo, pode-se afirmar que esta investigação,conduzida por meio do estudo de desenvolvimento de corte transversal– no qual foram observadas professoras em diferentes etapas da carreira– pôde revelar alguns elementos novos para os estudos sobre saberesdocentes de professores de instrumento a partir do enfoque daexperiência e da temporalidade. Tal enfoque, traz contribuições quantoao reconhecimento dos processos de aquisição e formatação deconhecimentos que orientam a prática docente de professores de pianoe abre possibilidades para subsidiar novos enfoques vinculados à estatemática.

Referências Bibliográficas

GAUTHIER, C. (et. alii) (1998). Por uma teoria da pedagogia: Pesquisas con-temporâneas sobre o Saber Docente. Ijuí: UNIJUÍ.

HEIDEGGER, M. (2002). Ser e Tempo. Parte I. (12 ed.). Tradução de Márcia deSá Cavalcante Schumbak. Petrópolis: Editora Vozes.

HUBERMAN, M. (1997). O Ciclo de vida profissional dos professores. InNóvoa, A. (org). Profissão professor (pp. 31-62). Porto: Porto Editora.

PIMENTA, S. (1999). Saberes pedagógicos e atividade docente. São Paulo:Cortez.

RAMALHO, B. ; NUNES, I & GAUTHIER, C. (2003). Formar o professor, profis-sionalizar o ensino. Porto Alegre: Sulita.

TARDIF, M. (2002). Saberes docentes e formação profissional (2. ed.)Petrópolis: Editora Vozes.

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Processos Composicionais em um Ritual Musical Indígena.

Maria Ignez Cruz Mello

Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC

Neste texto pretendo apresentar algumas operaçõescomposicionais empregadas pelos Wauja1 em um ritualespecífico, o iamurikuma, e comentar a ligação deste

ritual com outro, conhecido como ritual das flautaskawoká. Em outra oportunidade2 apresentei aqui em Curitiba umresumo de minha tese de doutorado em Antropologia Social (Mello2005) onde procurei mostrar em linhas gerais as implicações sociais eos nexos com a mitologia local a que se reportava este ritual. Tambémapresentei um resumo das operações composicionais que pude cons-tatar nas análises desenvolvidas. Pretendo agora, portanto, aprofundaros comentários sobre as análises dos cantos femininos deste ritualtrazendo mais um exemplo das transcrições efetuadas.

Estes dois rituais podem ser considerados “rituais de gênero”, entendi-dos como rituais nos quais questões relativas às relações de gênero sãoenfatizadas. É importante destacar que os rituais de kawoká e iamuriku-ma, principalmente em suas versões intratribais, estão relacionados aoxamanismo, e desta forma, à cura de doenças cuja causa é a ação dosseres apapaatai, “espíritos”3.

Iamurikuma é um ritual que atualiza o mito cuja temática é a transfor-mação das mulheres em apapaatai poderosos e perigosos chamadosiamurikuma. As mulheres, no mito, se transformam nestes seres apósserem enganadas pelos homens. É um ritual intertribal feito apenas por

1 Os índios Wauja são hoje cerca de trezentas pessoas, vivendo em uma aldeia circular com dezoitocasas, próxima à lagoa Piulaga, na região dos formadores do rio Xingu. Os Wauja são um dos dezgrupos indígenas que fazem parte do que se conhece na literatura etnológica como povos xingüanos,aqueles que habitam a região sul da Terra Indígena do Xingu (TIX) no estado do Mato Grosso.2 Mello, M. I. C. Iamurikuma: música, mito e ritual In: Anais do Simpósio de Pesquisa em Música,Curitiba: Editora DeArtes/UFPR, 2005. pp.118-130.3 A categoria apapaatai pode ser traduzida muito aproximadamente por “espíritos”. Estes seres sobre-naturais habitam o cosmos Wauja, podendo provocar doenças e mortes, ou se tornarem aliados doshumanos, desde que estes últimos realizem os rituais apropriados para cada caso. Os apapaatai têm acapacidade de ouvir os pensamentos e desejos dos humanos e podem detectar insatisfações e desejosnão realizados pelas pessoas. O estado de insatisfação torna possível que estes seres penetrem noscorpos dos humanos na tentativa de roubar suas almas.

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mulheres, sendo que o chefe da aldeia muitas vezes toma parteconduzindo os cantos. Acompanhei um destes rituais em sua versãointratribal, que ocorreu entre agosto e novembro de 2001. Neste perío-do, as mulheres se reuniram no centro da aldeia para cantar e dançardurante muitos finais de tarde. Algumas madrugadas também forampreenchidas pelos cantos femininos que se estendiam até o amanhecer.A temática dos cantos femininos girou em torno das relações afetivas,do ciúme, inveja, namoro, sexo, além de muitos cantos fazeremreferências diretas ao mito de origem da festa. Também foi comum veras mulheres usarem deste espaço ritual para reclamarem de atitudesdos homens através de canções especialmente compostas por elas. Aolongo de todo o período, foram executados cerca de duzentos cantosdiferentes, organizados em quatro sub-repertórios, dos quais, pode-sedestacar o de iamurikuma propriamente (aqueles cantos que se referemao mito), e o de kawokakuma (cuja referência das canções são asflautas kawoká) como os principais sub-repertórios.

Com base nas análises de mitos e em análises musicológicas busqueicompreender a ligação entre a música vocal do ritual de iamurikuma ea música instrumental das flautas kawoká, pois as mulheres afirmavamque “música de iamurikuma é música de flauta”. No entanto, pelo fatodelas serem proibidas de ver as flautas, esta afirmação parecia um con-tra-senso4. Através da análise de uma parcela deste repertório, nota-seque ele está ancorado em operações musicais complexas, que exigemum alto grau de conhecimento por parte das mulheres cantoras, princi-palmente da cantora-compositora central. Estes cantos podem ou nãoter letra, mas em todos os casos estão relacionados aos sentimentos eemoções experimentados pelos Wauja ao londo de suas vidas.

Kalupuku, a cantora principal deste ritual, aprendeu muitos dos cantoscom o mestre de flautas da aldeia. Pude observar durante as friasmadrugadas xinguanas os ensinamentos do mestre Kaomo para a can-tora Kalupuku. O mestre cantava muito baixinho, quase num sussurro,uma pequena sequência de notas que Kalupuku prontamente repetia,também em volume muito baixo. Kaomo não repetia muitas vezes osensinamentos, sempre se detendo em uma pequena frase, imediata-mente reproduzida por Kalupuku. Logo após sua breve aula, Kalupukuse dirigia a um grupo de mulheres que aguardavam, e repassava osnovos cantos que então eram executados em voz alta juntamente commovimentos coreográficos. Isto ocorreu durante toda a madrugada atéo amanhecer. Reparei que o que as mulheres cantavam era muito maiordo que aquilo que o mestre havia ensinado e, em alguns casos, as mu-

4 Caso acon-teça de algu-ma mulherver as taisflautaskawoká –tanto emrepousoquanto aoseremtocadas –,ela seráestupradapor todos oshomens daaldeia, nãoimportandose elainfringiu aregraproposital-mente ouinvoluntaria-mente.Contudo,não se temregistro deque tenhaocorrido talfato nos últi-mosquarenta oucinqüentaanos.

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lheres cantavam uma letra que o mestre não havia pronunciado. Ocanto do mestre era sempre entoado utilizando algumas sílabas, taiscomo né-ri- pé-ri, da mesma forma como ele costumava ensinar osaprendizes de flauta.

Em outra oportunidade, ao mostrar as gravações para Kalupuku, tantoaquelas dos “ensaio” quanto as das “apresentações”, pude começar acompreender como as coisas se passavam: nos cantos de kawokakumacada peça é constituída por um conjunto de temas e motivos.Dependendo da peça, cada motivo pode ser curto, com poucas notas,ou não tão curto, quase uma frase, [sendo designados por letras (a), (b),(c), etc. nas trancrições que se seguem]. Estes motivos podem ter umaou mais variações cada um [designadas então por (a’), (a’’), etc]. Asvariações são entendidas como aplicações de princípios fundamentaisde diferenciação no interior dos motivos, operações tais como trans-posição, pequena alteração intervalar ou rítmica no início ou no finaldo motivo, adição ou exclusão de uma nota, entre outras. Obviamente,Kalupuku não expos o processo de constituição do material temáticonestes termos, o que apresento aqui é uma síntese de minhas análisesa partir das transcrições musicais, das entrevistas e de observações decampo. Seguindo as explicações, pode-se dizer que as variações emconjuntos de motivos, entendidos como frases que constituem ostemas, podem ser pensadas como transformações, que ocorrem pormecanismos de inclusão e exclusão de motivos, ou através de variaçõesnos seus motivos constituintes. A diferença entre uma variação e ummotivo novo é a resposta estrutural da seqüência de notas organizadano interior da peça. Os motivos, portanto, são as partes constitutivasdos temas a que chamei de e . Há também uma frase, chamadana análise de , que surge geralmente no início das peças, comoseparação dos temas e , e ainda no final, correspondendo sempreao centro tonal das canções.

Desta forma, conclui-se que o que Kaomo cantava para Kalupuku eraapenas o motivo central do tema , deste derivando o , e todo orestante seria como uma consequência desta escolha temática.Resumidamente, a relação entre os temas e é dialógica e dialéti-ca, o primeiro tema constituindo o material básico da peça, e o segun-do configurando uma elaboração deste material em uma camada supe-rior (em termos de alturas), geralmente atingindo a nota mais aguda daescala. Nesta espécie de transposição, muitas vezes ocorre uma sériede transformações, que variam de peça para peça. Um outro fato obser-vado é o englobamento de por , ou seja: a antítese elabora a teseBA

BA

BA

BA

K

BA

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de forma a incluí-la em sua terminação, às vezes integralmente.Observa-se também que o motivo funciona como âncora, indicador ereforço do centro tonal, vinheta de separação entre temas e entrecanções. Um outro ponto importante é o tema , que é o tema comletra adicionada pelas mulheres.

Segue um exemplo de canto de kawokakuma:

Explicação da cantora com nota do tradutor:

Kanumana piyawiu

Nataki, Nataki

Turista hayá eheje

Eheje natuwiu kata

Omapai Nataki

Onde você foi, Nataki?

Turista escondeu você?

Ele me escondeu,

falou Nataki

BBL

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[Nota do Tradutor: Kalupuku diz que fez esta música para Nataki, outro nomede Araku, filho de Kaomo quando ele foi trabalhar para os turistas na fazendado Estênio]. “Sempre que as mulheres cantavam, Nataki emprestava colar,cocar, guizos, tudo que a gente precisava. Ele gostava muito das cantoras.Então, quando ele foi para a fazenda, elas fizeram a música dizendo que oturista escondeu Nataki”.

Quadro da seqüência dos temas e motivos

O início desta peça é uma afirmação do centro tonal com , seguin-do-se o tema , composto por 4 motivos: a, b, c, d. O motivo (a) ter-mina em um intervalo de 3a m (terça menor) acima do centro tonal,enquanto os demais motivos de reforçam este centro, terminandosempre em sol. As terminações dos motivos são ponto fundamentalneste repertório: muitas vezes é ali que a diferença se coloca de formarelacional aos motivos antecedentes, ou seja, é onde se dá o jogomotívico. Como afirmei que os motivos constituem a unidade mínimado estrato sintático, esta sua fração final deve ser entendida como umaoscilação de sua curva, um diferencial em seu desenho como um todo,portanto sem pertinência fora do motivo5. Além disso, as terminaçõesde motivos são, na maioria das vezes, aquilo que antecede a respi-ração, portanto um ponto de articulação, e parece sempre girar emtorno do centro tonal, como que se dirigindo a ele. Nos motivos (c) e(d) surge o fá, breve oscilação inferior do centro tonal, característica demuitas peças, ocorrendo geralmente nas terminações de motivos. Estetipo de motivo, que elabora uma oscilação entre centro tonal e notaadjacente, geralmente inferior, pode ser chamado de bordadura.6 Após

, uma re-exposição de e um novo , inicia-se o tema , ondeocorre uma elevação da 3a m no motivo (e), alcançando o si, nota mais

BKAK

A

A

KK

5 Ou seja,não vale apenadestacar estaunidade domotivo eentendê-lacomo umacélula inde-pendente.Vale muitomaisentendê-lacomo umasaliência dodesenhomotívico.

6 Este termoaqui nãocorrespondeexatamenteao seu usona músicaocidental emgeral.

a b c d

a b c d a b c d

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e f e f c' f c'' c''' e f e f c' f c'' c''' b' c d

e f e f c' f c'' c''' e f e f c' f c'' c''' b' c d

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aguda da escala. O motivo seguinte, (f), inicia na 3a M (terça maior) eretorna à 3a m, repetindo o segmento final de (a), parte do jogo das ter-minações. Segue-se uma repetição de (e, f) e então o motivo que em era (c), reaparece em como (c’), variado em sua primeira nota: aoinvés de ser a tônica (sol), é a 3a M. Trata-se aqui de uma variação quese instaura na cabeça do motivo, uma variação tética. O (f) volta a in-sistir na 3a m, articulando-se com (c”), que insiste no sol e que diferedo original quanto à última nota: a 3a m e não a tônica, nota quecorresponde ao centro tonal. Podermos dizer que se trata de uma varia-ção sufixal, atingindo a parcela final do motivo. Ocorre então umaespécie de flashback de todos os (c): um retorno a (c’) e ao (c) originalseguido de (d), assim como o final do tema . Voltamos ao começo dapeça: novamente e e . Então, toda a seqüência de érepetida com letra em , e no entanto, após (c”), ao invés de haver aretroação a (c’), como ocorrera em , surge uma nova operação quefunde a primeira metade de (c’) à segunda metade de (c”), gerando (a’),variação por fusão do motivo inaugural da peça. Este (a’) é seguido de (b’ c d), franca retomada de dentro de . A partir daí a peça repeteduas vezes a estrutura , finalizando com .

Tanto os cantos kawokakuma quanto a música das flautas kawoká apre-sentam uma classificação nativa semelhante, correspondendo a gruposde cantos que apresentam coerência temática e formam unidadesnomeadas, como por exemplo, kisoagakipitsana, sapalá, mututute,entre outras, as quais Piedade (2004) identifica como suítes (cf.Menezes Bastos, 1990). Portanto, quando as mulheres dizem que seuscantos são “música de flauta”, elas não estão se referindo a algo genéri-co, como se tudo que elas cantassem pudesse ser “música de flauta”.Há uma série de cantos, mesmo no ritual de iamurikuma que não sãoconsiderados “música de flauta”. Desta forma, as mulheres estão tratan-do de conjuntos específicos de cantos, todos considerados kawokaku-ma, mas subdivididos de acordo com uma tipologia que mantémrelação com aquela das flautas. Estes diferentes tipos de cantos seguemprescrições em relação à topologia e cronologia, o que significa quedeterminados cantos só poderão ser executados em determinadosespaços (centro da aldeia, dentro das casas, etc.) e em partes específi-cas do dia. Kalupuku descreveu-me como havia aprendido uma novamúsica através de um sonho, e que, ao relembrá-lo ao acordar, reco-nhecia esta nova música como estando “dentro” de sapalá. Era, por-tanto, uma nova música a ser incluída na suíte sapalá. Ao expressar estaidéia de inclusão, de pertencimento e, portanto, de identidade entrediferentes cantos, Kalupuku deixa claro que está consciente das

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sutilezas que diferenciam e aproximam uma suíte de outra, o que tornasapalá diferente de mututute, por exemplo. Tal relato é ainda mais sig-nificativo se observamos que nele está presente um dos processos com-posicionais amplamente aceitos: as músicas vêm dos sonhos. Diz-seque qualquer um pode sonhar uma nova música, no entanto, somenteos mestres de música, os apaiwekeho, têm capacidade de memorizá-las. Esta informação de Kalupuku complexifica um pouco mais o cicloem que os processos de significação das peças de kawoká e dekawokakuma estão inseridos, pois, ao executarem os cantos dekawokakuma no ritual de iamurikuma elas estariam agregando umaoutra camada de significação dada pela letra do canto ao repertórioinstrumental das flautas. Este significado passa a fazer parte tambémdas músicas instrumentais, a ponto de emergir quando os homensvoltam a tocá-las. No entanto, o fato das mulheres também comporem,trazendo novos cantos para o repertório, faz com que este círculo seabra tanto para homens como para mulheres no que tange à produçãomusical.

Referências bibliográficas:

MELLO, Maria Ignez C. (2005) Iamurikuma: Música, Mito e Ritual entre osWauja do Alto Xingu. Tese de Doutorado em Antropologia Social.PPGAS/UFSC, Tese disponível em pdf no site www. musa. ufsc. br

MENEZES BASTOS, Rafael José de. (1990) A Festa da Jaguatirica: uma partituracrítico-interpretativa. Dissertação de Doutorado, USP, 1990.

Piedade, Acácio Tadeu de C. (2004). O Canto do Kawoká: música, cos-mologia e filosofia entre os Wauja do Alto Xingu. Tese de Doutorado,PPGAS/UFSC, Tese disponível em pdf no site www. musa. ufsc. br

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Movimento, coordenação e desempenho músico-instrumental– conexões interdisciplinares

Maria Bernardete Castelan PóvoasElian Dirce Colombi

Ester Bencke

Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC

Apesquisa “Ação pianística e coordenação motora –relações interdisciplinares” tem como objeto de estudoinvestigar sobre a coordenação motora e estabelecer

conexões com a atividade pianística. Tem por referencial o pressupos-to de Rasch sobre o desempenho humano, este entendido como “aexpressão de vários componentes denominados fatores do desempe-nho” (Rasch, 1991: 183). O movimento é considerado o elemento-meio da ação pianística. Sabe-se que o desempenho desta ação físico-motora está sujeita à intervenção de vários fatores como coordenação,flexibilidade, rapidez de movimento, força e fadiga e que aspectos aeles relacionados interagem, sobremaneira, na prática pianística, desdeo início do treinamento até seus resultados no desempenho. Nestapesquisa optou-se por investigar a coordenação motora, estabelecen-do-se inter-relações com a ação pianística, ação esta “construídaatravés do processamento das questões envolvidas na música selecio-nando, coordenando e realizando tanto os elementos da construçãomusical que constituem e caracterizam cada obra quanto os movimen-tos que possibilitam esta ação” (Póvoas, 1999: 80).

Em investigações anteriores a esta proposta, constatou-se que a lite-ratura que trata especificamente sobre coordenação motora é vasta, noentanto, pouco se refere à ação pianística. Por outro lado, a literaturana área da técnica instrumental raramente se refere à coordenaçãomotora em suas particularidades enquanto fator de primordial relevân-cia para a área do desempenho musical ou mesmo a ela associada. Estaliteratura também não apresenta orientações sobre maneiras mais ade-quadas de tratar questões da técnico-instrumentais cuja otimizaçãodependeria da consideração de aspectos relativos à coordenação, taiscomo a adequação de movimentos coordenados ao design de umaobra musical, de parte dela ou à velocidade de execução pretendida.

Uma prática instrumental que desconsidere tais matérias quando daescolha e utilização de técnicas de treinamento e execução instrumen-

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tal pode resultar, muitas vezes, em conseqüências indesejáveis para oaprendiz ou pianista profissional. Estas conseqüências seriam desdeineficiência no desempenho, fadiga e mesmo danos fisiológicos senãoirreversíveis, de difícil recuperação. Tais argumentos indicam para umarevisão de conceitos da área da técnica pianística e de áreas que tratamde questões referentes ao movimento humano, associados ao trabalhoinstrumental e ao fator do desempenho coordenação motora dentro deuma visão científico-fisiológica, portanto, interdisciplinar. Vêm sendopercorridos trabalhos de autores que apresentam pressupostos sobre atécnica pianística e abordagens teórico-científicas que dão suporte paraesta investigação. Pressupõe-se que a consideração de aspectos ine-rentes à coordenação motora em conexão com opções técnico-instru-mentais específicas durante a prática, em suas fases de treinamento ede desempenho, possa influir no desenvolvimento, manutenção e/ouotimização do nível de eficiência da ação pianística.

Aprofundar o estudo sobre a coordenação motora; levantar conceitos eprincípios que regem as classificações de habilidades motoras, tipos deprática e de feedback, relacionando-os à ação pianística e estabelecerconexões inter áreas (perspectiva interdisciplinar) estão entre osobjetivos desta proposta de pesquisa. Ao término deste estudo,pretende-se verificar em que aspectos o recurso técnico-pianístico deflexibilização do movimento ciclos de movimento (Póvoas, 1999)evidenciaria a utilização de conceitos e princípios relacionados àcoordenação motora e se o nível de relação entre os ciclos e autilização de argumentos inter áreas o classificaria como um recursotécnico-instrumental interdisciplinar.

Entre as ações propostas para a realização desta investigação está arevisão bibliográfica que vem sendo articulada em dois eixos: oprimeiro percorre abordagens técnico-teóricas da área pianística que serefiram ao tema proposto, desde o final do século XIX até contribuiçõesmais recentes; o segundo eixo consiste de pressupostos interdiscipli-nares de áreas como ergonomia, cinesiologia e biomecânica cujasinferências à ação físico-muscular e/ou pianística dão suporte para oestudo aqui proposto.

Conceitualizações preliminares

Segundo Rasch (1991: 183), “todo desempenho humano pode ser vistocomo a expressão de vários componentes denominados fatores dodesempenho”. Tanto esta afirmação quanto os estudos e observaçõesrealizadas em investigações anteriores a esta proposta indicaram para o

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aprofundamento das relações entre questões técnico-instrumentais, oestudo do movimento humano e aspectos mais específicos aos fatoresdo desempenho, entre eles a coordenação motora.

Durante o desempenho músico-instrumental o executante deverealizar, coordenadamente, uma série de movimentos de grandeprecisão, refinamento e diferentes graus de rapidez e força em funçãoda compreensão e realização do texto musical. Muitas vezes, para ainterpretação de uma obra ou parte dela, faz-se necessária uma práticaminuciosa com treinamento dos segmentos direito e esquerdoseparadamente, para melhor consciência das diferenças entremovimentos necessários para a execução de linhas musicais com suasparticularidades de articulação, fraseado, agógica e planos sonoros.Observe-se que movimentos treinados e automatizados, uma veztornados conscientes são transferíveis para situações equivalentes e queum padrão de movimento quando mal organizado refletirá, direta edesfavoravelmente, na execução de uma tarefa.

A prática pianística é uma atividade que tem por meta a produçãosonora e por tal razão, torna-se essencial que o executante, além deadequar movimentos à resolução de situações técnico-musicaissegundo o texto, tenha o controle da potência do movimento a seraplicada. Esta potência seria o grau de entrada de força na execução demovimento e sua medida “o grau dos golpes de força desenvolvidos nodecurso do movimento, como pode ser determinado por métodosdinamográficos” (Meinel, 1987: 144) e/ou fisiológicos, como a eletro-miografia. A potência muscular é definida como o produto da força evelocidade (Nigg; Herzog, 1994), havendo uma relação de causa eefeito entre força e flexibilidade. Na biomecânica, “parâmetros co-determinantes do decurso do movimento [como] impulsos de força aserem coordenados na ação motora” (Meinel, 1987: 2) são consi-derados dentro do conceito de coordenação. Para Meinel (1987: 2),uma "coordenação na atividade do ser humano é a harmonização detodos os processos parciais do ato motor em vista do objetivo, da metaa ser alcançada pela execução do movimento” e que coordenação querdizer literalmente “ordenar junto”.

No esporte o conceito de coordenação se refere às fases do movimen-to ou aos movimentos parciais, operações, que aparecem na estruturabásica e no ritmo de movimentos (parciais e isolados) que devem sercoordenados e em outras formas de movimentos. Nas áreas da cine-siologia e anatomia funcional entende-se por coordenação as orde-nações próprias da atividade de cada músculo e de grupos musculares.

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Na biomecânica, dentro do conceito de coordenação, impulsos deforça a serem coordenados na ação motora são considerados comoparâmetros codeterminantes do decurso do movimento (Meinel, 1987).

Bernstein determina a “coordenação de movimento como a ‘superaçãode graus de liberdade supérfluos do órgão que se movimenta’, o que seassemelha à ‘organização da direcionalidade do aparelho locomotor”(Bernstein, apud Meinel, 1984: 24-25). Os graus de liberdaderepresentam a possibilidade de um determinado segmento corporalmover-se livremente em um espaço acessível. O corpo humano, porconstituição anatômica, tem muitos graus de liberdade e quantomaiores forem as proporções de movimentos de todo o corpo ounúmero de graus de liberdade que se necessite utilizar em umaatividade específica, aumenta a dificuldade de coordenação. Na açãopianística, um trabalho de coordenação motora refere-se à utilizaçãodos músculos necessariamente ativos durante a realização de cadasituação específica de desempenho, enquanto os demais músculosmantêm-se relaxados ao máximo possível para que, na seqüência daexecução, se evitem tensões. “A compreensão e a elaboração exatasdas informações sensoriais de movimento como base da uma direção eregulação corretas do decurso de movimento já nos são conhecidascomo processo parcial essencial da coordenação motora” (Meinel,1984: 153).

Coordenação e flexibilidade articulares são consideradas fatoresaltamente específicos para o desempenho e que variam de acordo comas características da atividade. Rasch (1991: 183) esclarece que “qual-quer desempenho pode ser formal ou informalmente analisado paradeterminar seus componentes em termos de fatores gerais ou específi-cos. Uma vez identificados tais fatores, pode-se formular programas dedesenvolvimento ou treinamento” de habilidades. Destaca-se o pressu-posto de que a "coordenação na atividade do ser humano é a harmo-nização de todos os processos parciais do ato motor em vista do obje-tivo, da meta a ser alcançada pela execução do movimento” (Meinel,1987: 2) em função da compreensão e realização do texto musical.

Quanto à orientação espacial de movimentos relacionada ao planeja-mento de distâncias é apontada como uma das estratégias mais impor-tantes a ser utilizada durante o treinamento pianístico. Kochevitsky(1967) refere-se à realização ao piano de “distâncias” entre eventosmusicais para as duas mãos como a questão mais difícil a ser resolvida,isto devido à conformação assimétrica do teclado. As mudanças deposições devem então ser previstas e mentalmente preparadas anterior-

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mente à realização durante o percurso do movimento e, quando for ocaso, em direção ao evento seguinte, fato este que, em princípio, exigedo pianista um planejamento do trabalho a ser realizado. Assim, quan-do do treinamento pianístico de um trecho musical em que as linhas aserem executadas são opostas e distantes entre si, muitas vezes, pelofato de o executante não conseguir visualizar os segmentos esquerdo edireto ao mesmo tempo devido à grande distância entre eles, hánecessidade de buscar movimentos mais objetivos e mais econômicos.

Torna-se essencial que sejam observados, pelo executante da tarefa,aspectos como a preparação dos saltos e a sensação corporal durante aexecução do movimento utilizado, aliados ao controle cinestésico. Taiscondições tornam possível, mais facilmente, a realização de movimen-tos mais ágeis, no andamento adequado, por exemplo, e a obtenção deuma sonoridade prevista. Há situações em que, para melhor consciên-cia das diferenças entre os movimentos essenciais para a execução dediferentes linhas musicais ao mesmo tempo, faz-se necessária umaprática minuciosa e organizada do movimento, com treinamento dossegmentos direito e esquerdo separadamente. A coordenação motoraengloba diferentes formas de manifestações, independentes entre si, etem uma influência preponderante na agilidade (Moreira, 2000). Destaforma, o conhecimento sobre os tipos de prática, segundo os princípiosda coordenação motora, entre outros aspectos desta matéria, são deextrema funcionalidade para o músico instrumentista.

Na ação pianística, a utilização de movimentos complexos exige doexecutante uma coordenação bastante elaborada e um alto nível dedissociação muscular. Para Kaplan (1987), “dissociação muscular” é odomínio das sensações de contração e de relaxamento e que além deum controle sobre as sensações, a dissociação possibilita desenvolver acapacidade de auto-observação e, igualmente, a controlar e a coor-denar conscientemente o próprio corpo em função do objetivo musicala ser atingido. Dissociar e coordenar movimentos que abrangem a mus-culatura dos membros superiores, sobretudo dos segmentos braços,antebraços, mãos e dedos, e o emprego dos pedais que exige o contro-le e a coordenação dos movimentos das pernas direita e esquerdaconstituem-se em tarefas bastante complexas. Somente através de umaprática planejada e consciente pode-se obter uma habilidade motoramais eficiente e otimizada.

O termo habilidade é uma palavra que serve para designar uma tarefacom uma finalidade específica a ser atingida, portanto, voluntária(Magill, 2000). A habilidade motora é parte integrante da prática pianís-

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tica uma vez que esta exige movimentos voluntários do corpo e/ou demembros para atingir o objetivo e pode ser adquirida por meio de umprocesso de aperfeiçoamento da coordenação dos diversos gruposmusculares que atuam, diretamente, em uma ação específica. A açãopianística utiliza-se, mais precisamente, da habilidade motora fina querequer o controle de músculos pequenos, tais como aqueles envolvidosno movimento das mãos e dedos e que exigem um alto grau de pre-cisão para tocar ou pressionar teclas, na seqüência certa e no tempocorreto. Embora os grandes músculos possam estar envolvidos nodesempenho de uma habilidade motora fina, os músculos pequenossão os mais acionados para atingir a meta de uma habilidade motorafina. Esta organização é que vai permitir que o indivíduo atinja a metada habilidade pretendida. Assim, o hábito é o produto final da apren-dizagem motora. “Do ponto de vista da execução instrumental, aaquisição e posterior reorganização dos hábitos constitui a base sobrea qual irá se construir a técnica” (Kaplan, 1987: 45).

Conclusões parciais

O procedimento essencial para a construção de uma técnica a serdesenvolvida adequadamente é estabelecer, inicialmente, hábitosmotores corretos, a partir da individualização dos movimentosprimários de maneira que possam, posteriormente, ser reorganizadosciclos de movimento, de acordo com as exigências de cada obra. Ofato de o movimento, um ato motor, ser o elemento meio da açãopianística, já tornaria essencial que aspectos inerentes à coordenaçãomotora fossem estudados e aplicados no processo de aprendizagem ena construção de uma realização músico-instrumental. A prevenção ea resolução de problemas que interferem no desempenho instrumentalencontram-se, em grande parte, em argumentos de áreas como fisiolo-gia, ergonomia, biomecânica. Este fato justifica a realização de estudosinterdisciplinares e procedimentos experimentais com utilização demétodos de análise biomecânicos, procedimentos possibilitammedições de parâmetros cinemáticos de movimentos executados porpianistas, cujos resultados podem ser essenciais no auxílio da prática edo desempenho nesta área de atuação.

Referências bibliográficas

KAPLAN, J. A. (1997). Teoria da aprendizagem pianística. Porto Alegre:Movimento.

KOCHEVITSKY, G. (1967). The Art of Piano Playing: A Cientific Approach. New

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York: Summy-Birchard.

MAGILL, Richard A. (2000). Aprendizagem motora – conceitos e aplicações.São Paulo: Edgard Blücher.

MEINEL, Curt. (1987). Motricidade I: Teoria da Motricidade Esportiva sob oAspecto Pedagógico. Tradução de Sonnhilde von der Heide. São Paulo: AoLivro Técnico.

MOREIRA, M. (2000). A coordenação. Revista Ludens, Ciências do Desporto,16, n. 4, 25-28.

NIGG, B. M., HERZOG W. (1994) Biomechanics of The Musclo-SkeletalSystem. Toronto: Wiley&Sons.

PÓVOAS, Maria B. C. (1999). Princípio da relação e regulação do impulso-movimento: possíveis relações com a otimização da ação pianística. Tese(Doutorado em Música). Universidade Federal do Rio Grande do Sul:Instituto de Artes.

RASCH: J. (1991). Cinesiologia e anatomia aplicada. Rio de Janeiro:Guanabara Koogan.

Marcação de arcadas:carga cognitiva e estratégias de regulação na atividade de

violistas de orquestra

Cristina Porto Costa

CEP – Escola de Música de Brasília

Oestudo da atividade dos músicos de orquestra tem possibilitadoa aproximação entre distintas áreas do conhecimento. Dequestões atinentes ao aprendizado psicomotor à saúde do músi-

co e considerações sobre riscos ocupacionais, o fazer musical apresen-ta um campo fértil para a interdisciplinaridade. Neste contexto, aergonomia pode contribuir para a investigação e o entendimento dasituação de trabalho, suas características e as relações que a permeiam

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(Costa & Abrahão, 2002).

O presente artigo originou-se em pesquisa acerca da ocorrência de dorrelacionada ao tocar em violistas de uma orquestra sinfônica.Evidenciou-se a presença de estratégias de regulação de cunho cogni-tivo, como a marcação de arcadas, objetivando dar conta das tarefasatribuídas e diminuir o Custo Humano do Trabalho. Observou-se que aalta demanda cognitiva característica desta atividade traz à bailaestratégias coletivas que envolvem comunicação e cooperação, media-das pela organização do trabalho (Costa, 2003).

1. Ergonomia da atividade: integrando as dimensões do trabalhoA atividade de trabalho, enquanto objeto de estudo e de aplicação daergonomia, pode ser entendida como um processo pessoal em perma-nente construção, resultado de uma interação inteligente entre o serhumano e as exigências de sua tarefa. Se, por um lado, a performancemusical é um produto, é no devir do próprio fazer, na sua dinâmica,que se acessam as representações dos que dela participam, suas con-seqüências para a saúde dos músicos e sobre a vida no trabalho.

A ergonomia, ciência que estuda as relações do homem e seu trabalho,tem por eixos o bem-estar, a segurança e a eficácia de quem trabalhaface às metas de produtividade, podendo ser aplicada a distintos cam-pos laborativos. Sua visão antropocêntrica propõe o entendimento dascaracterísticas e limites humanos, integrando diferentes dimensões dotrabalho em dado contexto sócio-técnico. Desta forma, a identificaçãode fatores de risco ocupacional se expande necessariamente a deman-das de natureza cognitiva e afetiva, bem como sua inter-relação comexigências físicas presentes.

Contribuições da biomecânica ocupacional e da antropometria propi-ciam a adequação de postos de trabalho, equipamentos e acessórios,visando reduzir o desgaste físico. Contudo, um aprofundamento naatividade do músico de orquestra sinalizará fortes solicitações mentaisque interagem no processo saúde-adoecimento. Posturas assumidas porlongos períodos sem o devido preparo muscular e a impossibilidade derealizar pausas quando necessário se aliam a cobranças de perfeiçãosob forte pressão temporal, exercidas por uma hierarquia nitidamenteestabelecida. Estas peculiaridades acentuam a procura por estratégiasque minimizem a possibilidade de ocorrência de dor ao tocar e dedisfuncionamentos na realização das performances em público (Costa,2003).

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O acima exposto explicita parte do Custo Humano do Trabalho,expressão do que é dispendido pelo músico em termos do seu agir,pensar e sentir para resolver dificuldades e contradições em sua ativi-dade. O gerenciamento dos constrangimentos impostos pela organiza-ção do trabalho se dá via estratégias de regulação, mediaçõesindividuais ou coletivas, que impactam sobre seu bem-estar. Estasestratégias objetivam reduzir o Custo Humano do Trabalho, propondoenfrentamentos que propiciem uma resultante satisfatória na conse-cução da atividade, reduzindo discrepâncias e se estruturando naprópria experiência de trabalho (Ferreira & Mendes, 2003).

2. Carga cognitiva na atividade do músico de orquestraO custo cognitivo no trabalho, entendido como o dispêndio mentalpresente na aprendizagem, na resolução de problemas e nas tomadasde decisão que caracterizam a tarefa do músico, manifesta-se tanto nouso dos processos de percepção, exemplificado na afinação do instru-mento, quanto na escolha de estratégias de estudo frente à exigüidadede tempo para preparar novas obras. As diferentes competências quepossibilitam ao músico de orquestra lidar com a variabilidade da situa-ção laboral também evidenciam o nível de expertise do instrumentista.O domínio técnico, o conhecimento do repertório e a experiência domúsico articulam-se na preparação da obra (Costa, 2003).

A marcação de arcadas apresenta-se como uma regulação do gestualinerente à produção sonora dos instrumentos de arco, conferindounidade à execução e mapeando a obra a ser realizada coletivamente.Tais antecipações espaciais e temporais implicam sincronia motora eatenção seletiva no preparo de reações baseadas em discriminaçõessensoriais, acarretando noções de localização, de distância e uso damemória.

Frente a estas especificidades, é pertinente ressaltar a premência porestratégias que viabilizem ler à frente do que estiver tocando, prevendoestruturas e padrões, propiciando uma leitura à primeira vistaconsistente e que conduza a uma performance confiante. Adecodificação dos signos musicais e sua tradução subjetiva, as possi-bilidades técnicas dos intérpretes e sua conseqüente habilidade dedesempenho convergem na execução, revelando a integração deprocessos automatizados e de outros mais sofisticados (Gardner, 1997).

3. Comunicação e cooperação: o fazer coletivoA sincronia e o uso de diferentes saberes em uma orquestra evidenciam

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a gestão e o repasse de dados necessários à seqüência das tarefas queconcretizam a concepção do compositor e a interpretação do maestro.Comunicação e cooperação promovem uma troca significativa,implicando uma coordenação dinâmica que visa objetivos comuns.

A coordenação é essencial às atividades conjuntas, assim como umapreparação da atividade que minimize dificuldades e estabeleça linhasgerais. O planejamento possibilita seqüenciar a ação considerando odesempenho coletivo e as formas de comunicação existentes, sejamregras, convenções ou hierarquia, pressupondo comunicação efetivaentre estratos e pares, trazendo em seu bojo questões sobre autonomia,referencial comum e cooperação. A atividade coletiva traz conseqüên-cias para o grupo tanto em termos de satisfação quanto em possibili-dade de conflitos (Decordis & Pavard, 1998). Neste contexto, osmúsicos articulam seus saberes cooperativamente e procuram, nodecorrer dos ensaios, resolver conjunta e dinamicamente os problemasque se apresentam.

O reconhecimento recíproco das intenções comunicadas, verbais ounão-verbais, faz-se necessário. A cognição é distribuída entre osmúsicos, resultando em conhecimento coletivo maior que a somaliteral dos conhecimentos individuais. Estas interações geramexpectativas compartilhadas que estruturam ações coordenadas,suportadas pela intersubjetividade. Dada a natureza da tarefa, a comu-nicação ocorre não apenas por meio de palavras, mas de gestos,olhares, posturas, respirações conjuntas, exemplificações ao instru-mento, manifestações que assumem caráter de comunicação funcional.

Objetivos

Pretende-se investigar e identificar estratégias de natureza cognitivapresentes na atividade de violistas de orquestra, considerando aarticulação entre as dimensões física, cognitiva e afetiva do trabalhosob a ótica da ergonomia. Busca-se entender as regulações feitas pelosmúsicos para diminuir o Custo Humano do Trabalho frente às tarefaspropostas.

Método

A Análise Ergonômica do Trabalho foi o suporte metodológico destapesquisa. Procedeu-se a duas observações globais em dois ensaios,perfazendo sete horas, e seis observações sistemáticas em quatroensaios regulares, um ensaio geral e um concerto, somando mais dez

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horas registradas cursivamente. Realizaram-se seis entrevistasindividuais semi-estruturadas e aplicação de questionário. A amostraconstituiu-se de seis violistas, com idade entre 22 e 47 anos, sexomasculino, experiência de um a 29 anos.

Resultados: o processo de marcação de arcadas e suas implicações

Os dados coletados evidenciam intensa solicitação de processos cog-nitivos no ciclo de trabalho e revelam acentuada ocorrência de estraté-gias de regulação de natureza cognitiva, permeadas por processos decomunicação coletivos que objetivam a realização da tarefa e a pre-venção de disfuncionamentos. A tabela abaixo expressa a freqüênciade comportamentos dos violistas em situação de ensaio, quando nãoestão tocando.

Freqüência de comportamentos durante as pausas do naipe em 7 horas de ensaio

Violista

Anos de experiência 29 27 16 13 11 1

Comportamento observado V1 V2 V3 V4 V5 V6Chefe naipe Concertino

Alongar pescoço, braços, mãos; massagear ombros 9 - - 15 3 -

Anotar arcadas 13 18 18 6 24 1

Conferir anotações com colega 11 2 5 3 8 1

Dedilhar viola 32 20 9 4 4 -

Tocar trechos 8 6 9 7 6 -

A procura por modos operatórios eficazes alia-se à gestão dasinstruções que são codificadas, repassadas aos colegas de naipe eatualizadas a cada ensaio. Tais informações orientam ações imediatas,suas conseqüências no gestual e no uso do tempo para preparar a obra,regulando coletivamente o enfrentamento das exigências cognitivas dotrabalho. O papel da marcação de arcadas, entendidas como osgrafismos indicadores do manejo dos arcos na execução das partes,consideradas as exigências das frases e as articulações propostas pelocompositor, é fundamental neste contexto, o que é observável pelafreqüência deste comportamento. Esta estratégia é construída na ação epara a ação, sendo estruturante e reguladora da carga de trabalho.

Na medida em que as arcadas são escolhidas pelo chefe do naipe e

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seguidas pelos demais violistas, estabelece-se uma interface entre adimensão individual e a coletiva no tratamento destas informações.Embora prevista no Regimento Interno da orquestra e atribuída ao chefede naipe mediante estudo prévio das partes, a marcação de arcadasocorre de fato durante os ensaios. Seu repasse não é formalizado emmomento algum, o que acarreta uma dinâmica para sua circulação eapropriação por meio de gestos com o arco, meneios de cabeça,palavras soltas ou procura ostensiva nas partes colocadas em outraestante. Para tal, os violistas se levantam e procuram ler as indicaçõessobre os ombros do colega à frente, copiando-as ou indicando com oarco o trecho sinalizado. Os violistas se ressentem de freqüentes altera-ções e estabelecem uma rede de comunicação para agilizar o repasse.As verbalizações sobre a marcação de arcadas sinalizam sua relaçãocom a planificação de ações e uniformidade no resultado sonoro,diminuindo as microdecisões e possibilitando aos músicos dispor deseus recursos para outras demandas.

“É preciso marcar a arcada, se o arco é para cima ou para baixo, secomeça subindo ou descendo, ligado ou desligado. Quando não tem(marcação) não há preparo prévio adequado, você olha o chefe e saiuma droga. A gente gosta de marcar tudo, tudo. Sem marcação me dáagonia, mau humor. Prepara uma intenção e é outra. É desconcertante,desgastante”.

“A gente toca a mesma sinfonia duzentas vezes. E cada vez muda aarcada. É muita troca! A gente não tem um padrão para tocar. O mate-rial já devia vir marcado, pelo spalla, por reunião dos chefes de naipe,sei lá. Mesmo que a gente não goste não devia ficar mudando, aindamais no dia do concerto, mas já ficou tão comum que é quasenormal!”

As verbalizações indicam que a marcação de arcada estrutura a ativi-dade dos músicos enquanto naipe, visto que as referências comunsfavorecem coesão e maior segurança na performance. As alteraçõesconstantes e a falta de comunicação podem criar desconfortos físicos epsíquicos, acentuando a variabilidade presente na situação laborativa ecolaborando para quadros de fadiga relatados pelos sujeitos.

Os violistas ressaltam a necessidade de atenção constante, de uso damemória e concentração, o uso da percepção para entrosamento dogrupo, especialmente em situação de concerto. As partes a seremdecodificadas influenciam a carga cognitiva da atividade mediante aqualidade das informações contidas, legibilidade, tipo e tamanho defonte. Mesmo as obras já conhecidas precisam ser repensadas face àsnovas interpretações.

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Dada a forte pressão temporal, os violistas procuram conhecer aagenda de concertos previamente e acessar as partes para estudo,antecipando soluções às dificuldades do repertório. Alterações nestesquesitos podem dificultar a utilização desta estratégia.

Conclusão

A articulação entre as diferentes dimensões do trabalho permitiuhipotetizar que as exigências cognitivas da tarefa e suas implicaçõesfrente à pressão temporal existente e à organização do trabalho pode-riam estar contribuindo para o aparecimento de dor e desconforto rela-cionados ao tocar. O processo de marcação de arcadas é essencial àestruturação da atividade e requer comunicações entre os violistas pararepasse de informações determinantes ao desempenho do grupo. Atroca freqüente de arcadas e a ausência de um momento específicopara sua checagem pode estar colaborando para a ocorrência dedisfuncionamentos e de tensões que se somam a questões posturais etécnicas. A marcação de arcadas se coloca, desta maneira, comomomento crucial na atividade dos violistas, sendo reguladora das altassolicitações cognitivas presentes.

Referências bibliográficas

COSTA, C. P. (2003) Quando tocar dói: Análise Ergonômica do Trabalho deViolistas de Orquestra. Dissertação de Mestrado. Brasília: Universidade deBrasília.

COSTA, C. P. & ABRAHÃO, J. I. (2002). Músico, profissão de risco? In Anais doVII Congresso Latino-Americano de Ergonomia e XII Congresso Brasileiro deErgonomia. Recife, PE. CD Rom.

DECORDIS, F & Pavard, B. (1998). Comunicação e cooperação: da teoria deatos de fala à abordagem etnometodológica. In F. Duarte & V. Feitosa (org.).Linguagem e trabalho (pp. 51-81). Rio de Janeiro: Lucerna.

GARDNER, H. (1997). As artes e o desenvolvimento humano. Porto Alegre:Artes Médicas.

FERREIRA, M. C. & MENDES, A. M. (2003) Trabalho e riscos de adoecimento: ocaso dos auditores-fiscais da Previdência Social brasileira. Brasília: EdiçõesLer, Pensar, Agir LPA.

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Concerto para piano e orquestra de José Alberto Kaplan –um exemplo de intertextualidade em música.

Tarcisio Gomes Filho

UNICAMP

No século XX, aproximadamente nos fins de sua segundadécada, junto ao desenvolvimento do direito autoral,começaram a ser difundidas, nos meios literários, teorias

sobre intertextualidade oriundas dos russos Iuri Tynianov(1894-1943) e Mikhail Bakhtine (1895-1975), todavia, a palavraIntertextualidade, “intertextualité”, foi utilizada pela primeira vez porJulia Kristeva (1941) em Introdução a semanálise (1969), quando apre-sentou sua proposta teórica, desenvolvida a partir das noções de dialo-gismo e polifonia, formuladas por Bakhtine (Christoff, 1996: 59).

Mas afinal, o que fez Bakhtine? Estudando a obra de Dostoievski,Bakhtine, ao verificar, as relações entre o autor e suas personagens, dis-tinguiu dois tipos de romance: os monólogos e os polifônicos. Oprimeiro tipo se caracterizava pela comunhão do ponto de vista e deuma só ideologia, era a voz do autor. O segundo tipo era caracterizadopela presença, entre as personagens, de um coro de vozes simultâneas,onde cada voz carrega um ponto de vista e uma ideologia. Para ele,todo texto pertence ao corpus literário anterior e ao atual e qualquerenunciação, por mais completa que seja, constitui apenas uma fraçãode uma combinação ininterrupta na evolução contínua das interaçõesverbais. A obra de um autor inscreve-se, pois, num continuum históri-co, literário e social, o que não anula sua especificidade (Christoff,op.cit.: 61).

Em introdução a Semanálise (1969), Kristeva propõe a intertextualidadecomo trabalho de transposição e absorção de vários textos na constitu-ição de todo o texto literário. Apresenta o texto como um mosaico decitações, trabalho de absorção e transformação de um texto em outro(idem: 62).

O compositor José Alberto Kaplan observa que:

“A Intertextualidade veio mostrar que, pelo contrário, a obra de arte éo local onde confluem todos os elementos culturais que o autor assim-ila como ser social e que fazem parte de sua experiência pessoal (…)processo intertextual não pode ser alegado para justificar a simplesrepetição ou a falta de criatividade, pois o procedimento em pauta não

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é mera assimilação e sim um processo dinâmico e transformador. (…)a intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa deinfluências, mas o trabalho de assimilação e transformação, ou melhor,de remodelação de um ou vários textos, operado por um texto cen-tralizador, que detém o comando do sentido” (Kaplan, sd.: 5).

Na música, o uso da intertextualidade como recurso composicionalnão se constitui em novidade, já que, desde o século XIV era utilizada.No século XVII, compositores como Bach, que fez aproveitamento dasmelodias do hinário protestante em seus corais e Haendel, que tambémfez empréstimos de temas de muitos compositores da época – comoGottlieb Muffat, Johann Kaspar Kerll e Alessandro Stradella confirmama afirmação de um remoto uso da intertextualidade.

Afonso Romano de Sant’Anna, no ensaio Paródia Paráfrase & Cia, dis-tingue quatro tipos de intertextualidade, a apropriação, a paródia, aestilização e a paráfrase. Estes são por ele apontados como os diversosgraus de integração entre um texto e seus intertextos, resultantes dopropósito da semelhança ou diferença (Sant’anna, 2003).

Detalharemos agora cada um dos tipos de manifestação intertextualapontado por Sant’Anna:

Apropriação – É uma técnica onde textos de outrem são articulados emum contexto diferente, como numa colagem ou montagem. SegundoSant’Anna:

“A técnica da apropriação, modernamente, chegou à literatura atravésdas Artes Plásticas. Principalmente pelas experiências dadaístas, a par-tir de 1916. Identifica-se com a colagem: a reunião de materiais diver-sos encontráveis no cotidiano para a confecção de um objeto artístico”(Sant’anna, op. cit: 43)

“(…) a idéia da realização é que é importante. A forma é secundária.O artista está querendo desarrumar, inverter, interromper a normali-dade cotidiana e chamar a atenção para alguma coisa”. (idem: 45)

Paródia – Na paródia há uma inversão do sentido do texto parodiado,seja por meio da troca de um elemento por outro, da repetição de umestilo ou efeito técnico ou caricaturando a forma ou o espírito de umautor, gerando um produto que carrega traços do antigo e do novo.Sant’Anna observa que:

“A paródia é um efeito de linguagem que vem se tornando cada vezmais presente nas obras contemporâneas. A rigor, existe uma con-sonância sobre paródia e modernidade (…) a paródia é um efeito sin-tomático de algo que ocorre com a arte de nosso tempo (…) a fre-qüência com que aparecem textos parodísticos testemunha que a arte

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contemporânea se compraz num exercício de linguagem onde a lin-guagem se desdobra sobre si mesma num jogo de espelhos” (idem: 7).

Estilização – A estilização acontece quando ao fenômeno intertextualacontece numa mesma direção do texto estilizado. A paródia de umacomédia será uma tragédia e vice-versa, já na estilização não há estamudança de direção e os dois textos concordam entre si.

Paráfrase – A paráfrase se constitui de um texto que reafirma, em out-ras palavras, o mesmo sentido de outro. Segundo Sant’Anna a paráfraseé “Mais do que um efeito retórico ela é um efeito ideológico de con-tinuidade de um pensamento, fé ou procedimento estético”. (idem: 22)

O compositor

José Alberto Kaplan nasceu em Rosário de Santa Fé, Argentina em 16de julho de 1935. É naturalizado brasileiro e teve parte da sua formaçãomusical na Europa onde estudou com Nikita Magaloff em Genebra ecom Wladyslaw Kedra em Viena (Mariz, 2000: 501). Em 2005 foi ho-menageado com o título de Professor Emérito da Universidade Federalda Paraíba onde lecionou durante os anos 1964 a 1992. Kaplan possuipapel ativo no cenário da música contemporânea nacional e é figuraimportante no meio musical da região nordeste. Segundo a composito-ra Ilza Nogueira, “José Alberto Kaplan é um compositor que desen-volveu um estilo pluralista, no qual aspectos da musica brasileiranordestina rural, em citações literais ou imitações, adaptam-se àsidiossincrasias estilísticas de compositores da tradição culta ocidental(…)” (Nogueira, 2003: 6).

O Concerto para piano

O Concerto para Piano e Orquestra de José Alberto Kaplan1, a partir dainformação do compositor, foi composto utilizando, dentre outras, atécnica da intertextualidade, tendo como ponto de partida o Concertonº2 para piano e orquestra opus 102 de Dimitri Shostakovich.2 Oprimeiro movimento do Concerto de Kaplan, assim como o de

1 Esta obra foi estreada na cidade do Recife em concerto da Orquestra Sinfônica da mesma cidade,tendo como solista a pianista Eldia Carla de Farias, aluna do compositor. Depois a obra foi executa-da no "Panorama da Música Contemporânea" (1990), no Rio de Janeiro e na "IX Bienal de MúsicaContemporânea" (1990), regida pelo maestro Ricardo Duarte sempre com a mesma solista. (Kaplan,1999: 298).2 Informação obtida em entrevista realizada pelo pesquisador no dia 11 de Janeiro de 2005 em JoãoPessoa PB. Material em fita cassete pertencente ao acervo do pesquisador.

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Shostakovich, possui uma forma ternária que sugere uma insinuação àforma sonata do século XVIII.

Neste trabalho estamos chamando de “idéia” os principais desenhosmelódicos que fazem alusão ao que se chamaria de tema em umaForma Sonata clássica. Assim sendo, temos em Kaplan e Shostakovichos seguintes esquemas formais:

Figura 1 – Esquema formal dos Concertos de Kaplan e Shostakovich

De acordo com a tabela exposta é possível verificar que Kaplan utilizao mesmo número de idéias e as distribui entre as seções do mesmomodo que Shostakovich. Apenas na cadência Kaplan faz maior uso dosmateriais já expostos. Outra informação importante é que Kaplan utili-zou a mesma orquestração que Shostakovich, conferindo ao seuConcerto também uma semelhança timbrística.

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Exemplos de semelhanças e diferenças entre as idéias musicais.3

Idéia 1 – c.1 a 4

Figura 2 – Shostakovich c. 1 a 4 Kaplan c. 1 a 4

Trata-se aqui da introdução do Concerto. (1) No primeiro compassoKaplan muda o ritmo do motivo, utilizando uma tercina e aumentado-o em uma nota. Direção melódica ascendente, (2) no segundo com-passo há uma inversão da ordem dos intervalos – lá sol dó – umasegunda maior descendente e uma quarta justa ascendente, para dó lásol – terça menor e segunda menor descendentes, (3) no terceiro com-passo há inversão da ordem dos intervalos – fá sol lá – segundasmaiores, para fá lá sol – terça maior ascendente e segunda maiordescendente na voz superior, no Kaplan baixo utiliza segundasmenores. (4) No quarto compasso há mudança do movimento da linhamelódica de descendente para ascendente (4).

Idéia 3 – c. 23 a 26

Figura 3 – Shostakovich c. 23 a 26 Kaplan c. 23 a 26

3 Nas figurasque seguemos trechosmarcados enumeradosindicam asmodificaçõesrealizadaspor Kaplanno Concertode Shosta-kovich. Paracada figurahá umanumeraçãocorrespon-dente noscomentários.

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(1) Neste trecho Kaplan mantém o ritmo e muda a direção das alturas,(2) logo após ele mantém apenas a primeira célula rítmica e cria umanova célula, mais adiante (3) realiza uma mudança da primeira célularítmica e conserva os demais tempos do compasso, alterando a direçãodos intervalos, (4) no final realiza uma diminuição do ritmo.

Idéia 4 – c. 48/49 a 87 (Shostakovich) e c. 48/49 a 56 (Kaplan)

Figura 4 – Shostakovich c. 48/49 – 56, Kaplan c. 48/49 – 56

Shostakovich trabalha esta idéia apenas no piano, já Kaplan expõe, ini-cialmente, nas madeiras e depois no piano. Kaplan mantém o mesmoritmo e praticamente a mesma direção. (1) Há mudança de altura naprimeira nota da anacruse e no terceiro e quarto tempos do segundocompasso, no próximo compasso (2) há semelhança na direção dalinha melódica e no trecho final (3) há apenas a nota inicial emcomum.

Considerações finais

A intenção principal neste trabalho foi mostrar, por meio da análisecomparativa de trechos dos Concertos de Kaplan e Shostakovich, comofoi possível, utilizando a intertextualidade como ferramenta composi-cional, construir um novo texto musical a partir de um pré-existente.

Em relação aos pontos de ligação entre as duas obra, pela análise dosfragmentos das apresentados, verifica-se que Kaplan utilizou a mesmaforma e conseqüentemente o mesmo número de idéias queShostakovich. Os elementos de intertextualidade foram apresentados apartir do momento em que Kaplan seguiu a mesma direção apontadapor Shostakovich configurando o seu trabalho como uma estilização,pois de acordo com Sant’Anna, a estilização acontece quando o fenô-meno intertextual acontece numa mesma direção do texto estilizado.

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Referências bibliográficas

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———. (1999). Caso me esqueça(m) – Memórias musicais. João Pessoa:Páginas Paraibanas, Secretaria de Educação e Cultura.

———. (s.d). Intertextualidade – Sua aplicação no contexto da LinguagemMusical. João Pessoa: Não editado.

MARIZ, V. (2000) História da música no Brasil. 5ª ed. Rio de Janeiro: NovaFronteira.

MORGAN, R. P. (1991) Anthology of Twentieth-Century Music. New York:Norton & Company.

NOGUEIRA, I. (2003) A estética intertextual na música contemporânea:Considerações Estilísticas. Revista BRASILIANA – ABM vol.13.

Sant’Anna, A.R. (2003) Paródia Paráfrase & CIA. São Paulo: Ática.

Simms, Bryan R. (1995) Music of the Twentieth Century – Style and Structure.New York: Schirmer Books.

Aspectos psicológicos na preparação para a performance musical

Vivian Deotti Carvalho Sonia Ray

Universidade Federal de Goiás – UFG

Os instrumentistas frequentemente ficam sujeitos a situações queexigem maior esforço psicológico do que estão habituados,como a necessidade de se preparar para uma prova prática, ou

teste de seleção, apresentações em recitais, festivais e outros. Nestescontextos, em aulas práticas e ensaios (que se realizam em grande

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número e num curto espaço de tempo) podem gerar sentimentos con-fusos que interferem no desempenho do performer, quase sempreoriundos da ansiedade. Algumas destas interferências são: náuseas,taquicardia, sudorese, tremor, perda de memória, entre outros. Segundoespecialistas das áreas de psicologia e psicanálise (Oliveto, 2001), eneurologia (Houzel, 2002), a atividade do performer musical estámuitas vezes conectada a problemas pessoais do indivíduo, ou seja, aprópria apresentação pública requer aptidões de controle psicológicoque podem chegar aos limites da condição humana.

Grande parte da literatura sobre psicologia aplicada ao músico queatua no palco (Psicologia da Performance) está em língua estrangeira ouem periódicos de pouca circulação no meio musical. O pouco acessoa esta literatura tem contribuído com o aumento do nível de interferên-cias negativas na performance musical (Ray, Vieira e Dias, 2002), bemcomo distanciado o músico dos recursos disponíveis e aplicáveis à suarealidade. O alto grau de incidência em músicos que desenvolvemproblemas de origem psicológica no exercício de sua profissão indicaque grande parte dos instrumentistas e cantores não têm consciência desuas limitações psicológicas. Lehrer (apud Oliveto, 2001), psicólogo ediretor de uma clínica especializada no tratamento de ansiedade etensão, sublinha que o aprendizado na modulação da tensão perfor-mática seria tão importante quanto o da técnica instrumental. Paraevitar que estes desequilíbrios corporais tornem-se constantes ou seagravem, é de extrema importância a adoção de medidas com intuitode ajudar solucioná-los.

A carência de literatura na língua portuguesa direcionada ao problemae a grande incidência de problemas psicológicos nos músicosdificultam possíveis aplicações dos estudos existentes a atividademusical. Isto tudo, somado a falta interação entre profissionais de áreasa fins com a música (Mcardle, Katch, e Katch, 1974), reforça apertinência do presente trabalho.

Metodologia

O trabalho foi desenvolvido em dois momentos principais: 1) O levan-tamento de dados bibliográficos os quais geraram uma revisão da lite-ratura disponível referente a distúrbios psicológicos relacionados àatividade do performer musical (Carvalho e Ray, 2004) e 2) análise dosdados coletados na revisão de literatura e na aplicação de questionáriosaos alunos de graduação de licenciatura e bacharelado em instrumen-to musical e canto no período do mês de setembro de 2004. O ques-

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tionário teve como objetivo fazer um levantamento de dados dosfatores responsáveis por desgastes emocionais na visão dos sujeitos.

Ao todo, foram respondidos sessenta e três questionários, os quais con-tinham doze questões com respostas de múltipla escolha e abertas, deforma combinada.

Resultados

O primeiro gráfico (referente a questão n. 1 do questionário), demonstraque todos os performers já vivenciaram em alguma dimensão o estado

de ansiedade e tensão em suas apresentações em público.

Com a análise dos dados coletados nos questionários, foram detectadastrês possíveis causas de alteração na concentração do performer. Aprimeira delas vem a ser a tensão e a ansiedade, tendo em vista que71% das respostas evidenciaram a constância de dificuldade de con-centração nas performances. A apresentação para platéias diferentessurge como segundo fator que traz dificuldades à concentração do per-former. Porém, isso não é uma constância, pelo que se extrai da análisedo gráfico referente à questão de número 4.

Figura 2 –Questãonúmero 4 doquestionário:“4. Suacapacidade dese concentrar édiferente quan-do você seapresenta paraplatéiasdiferentes?”

Figura 1 –Questãonúmero 1 doquestionário:“Você se senteansioso outenso quando seapresenta empúblico?”

Sempre

Quase sempre

Às vezes

Nunca

14%

0%

41%

45%

Nunca

Às vezes

Quase sempre

Sempre

16%

5%

28%

51%

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No que tange a terceira e última causa de dificuldade de concentração,é suficiente uma breve análise da questão de número 5, na qual foi pro-porcionado ao aluno a opção de escolher em ordem de prioridadeentre a “falta de estudo”, “presença de determinada pessoa na platéia”,“executar um obra pela primeira vez”, bem como se ele nunca sentissedificuldade de se concentrar ou, caso preferisse, mostrar outra causapara o problema. Pelos gráficos apresentados quanto a esta questão ver-ificou-se como causa de maior atenção e prioridade a falta de estudosuficiente para a apresentação, com 74% de favoritismo.

Na questão 6 foi perguntado o que geralmente os performers sentemminutos antes de entrar no palco, proporcionando aos entrevistadosopções do tipo “Se lembra dos bons momentos vividos nos ensaios”;“Sente medo de perder o controle e se apresentar mal”; “Sente vontadede começar logo para não perder o aquecimento” etc. As duas opçõesmais escolhidas, como esperado, se dirigem a sentir medo de perder ocontrole e se apresentar mal (24%) e sentir medo de esquecer o que foimemorizado (23%). Mesmo tendo sido disponibilizado sete diferentesrespostas para o entrevistado escolher, houve quem ainda apresentasseopiniões do tipo “Diminuição diante dos colegas”, diz um aluno delicenciatura em violão; “Sem querer, lembro-me de uma vez que meapresentei mal”, diz um aluno de licenciatura em violino, “Penso emque devo fazer na performance”, diz outro aluno.

Figura n. 3 – Questão número 5 do questionário. “Você sente maiordificuldade de se concentar em suas performances quando: (enumerede 1 a 5 em ordem de prioridade).”

Na questão 10 procurou-se observar de forma mais detalhada quais são

74%

2%

6%

14%

4%

Não estuda o suficiente (A)

PRIORIDADE 1

Tem alguém na platéia que te deixanervoso/a (B)

Está executando uma obra pelaprimeira vez (C)

Nunca sinto dificuldade de me con-centrar em minhas performances (D)

Outro ( E )

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os motivos pelos quais os performers ficam sujeitos a perda do controledurante a performance musical. Com 41%, destacou-se o item relativoa “tocar num local com grande prestígio”, como sendo o fator que maisinterfere no controle da apresentação. Na questão aberta foram ofere-cidas algumas opiniões pelos entrevistados que relatam situações difer-entes às apresentadas como “quando sei que não domino a técnica” e“apresentação sem ensaio”, dizem os alunos de bacharelado em piano.

Analisadas todas essas questões sobre tensão, ansiedade, concentraçãoe controle, fica evidente que o surgimento de alguns sintomas físicosdecorrentes de fatores psicológicos, são normais. Os quais são maisdetalhados na questão 7, que proporcionou ao entrevistado a escolhade cinco sintomas previamente destacados (Boca seca; Taquicardia;Sudorese; Irritação e; Tremor). O tremor foi escolhido por 30% dosentrevistados e a Taquicardia por 24% de escolha. Mesmo tendo sidodisponibilizado diferentes respostas para o entrevistado escolher, houvequem ainda apresentasse outros sintomas, entre eles: sono, frio na bar-riga, falta de fome, mãos geladas, impaciência e pressão baixa.

Nas questões 11 e 12 ficou-se evidenciado que um número consid-erável dos entrevistados (46%) não pratica qualquer exercício físicoregularmente. Por outro lado, somente 20% não realizam alongamen-tos logo antes da performance. Segundo Lehrer (apud Oliveto, 2001), aeficiência física é também um pré-requisito indispensável na finalidadede otimizar os resultados do desempenho musical tendo como objeti-vo ter o mínimo de esforço e com isso prevenir qualquer tipo de lesão.

As questões 2 e 8 confirmam que a maioria dos músicos acredita que

Figura 4 –Questãonúmero 7 doquestionário:“Assinale os sin-tomas que vocêtem antes oudurante sua per-formance(Assinale todosos que forempertinentes)”

17%

24%

16%12%

30%

1%

Taquicardia

Boca seca

Sudorese

Irritação

Tremor

Outro

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um acompanhamento psicológico e a autoconfiança são requisitosnecessários para melhor enfrentarem a preparação para suas perform-ances.

Conclusão

Ao analisar os questionários pode-se observar que todos os entrevista-dos, em alguma dimensão, já vivenciaram o estado de ansiedade outensão, desconsiderando assim a segunda hipótese. Por outro lado,confirma que muitas vezes a experiência de palco não é um fator rele-vante que retira o sentimento de ansiedade ou tensão vivido durante aperformance.

Confirmou-se que a sobrecarga de responsabilidade imposta pelacomunidade musical aos performers e o aspecto competitivo, inerenteà atividade do performer musical, são possíveis causas de ansiedade epânico de palco, e são também fatores que dificultam a concentraçãodo performer interferindo em sua atividade. Registrou-se ainda umíndice assustador de 74% dos sujeitos no experimento têm consciênciade que o fator responsável pela dificuldade de concentração é o poucotempo destinado a preparação das peças.

Ao apresentar os resultados do experimento, espera-se contribuir como aumento da literatura na língua portuguesa direcionada psicologia daperformance e propor reflexões a instrumentistas e cantores no sentidode encontrarem caminhos pra otimizar sua performance.

Referências bibliográficas

CARVALHO, Vivian Deotti e RAY, Sônia (2004). A preparação para a perform-ance musical: aspectos psicológicos. Trabalho apresentado como conclusãode curso. Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Brasil.

CONABLE, Barbara e CONABLE, William. (1995). How to Learn the AlexanderTechnique: a manual for students. 3ª ed. Portland: Andover Press.

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HOUZEL, Suzana Herculano- (2002). O cérebro nosso de cada dia: descober-tas da neurociência sobre a vida cotidiana. 1. ed. Rio de Janeiro: Vieira &Lent.

KAPLAN, José Alberto (1987). Teoria da Aprendizagem Pianística: uma abor-dagem psicológica (pp.17-49). 2ª Edição. Porto Alegre: Editora Movimento..

MCARDLE, W., Katch, F. e Katch, V. (1974). Fisiologia do Exercício. 4a ed. Riode Janeiro: Guanabara.

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OLIVETO, Karla. (2001). Pânico de Palco. Brasília: Editora da UnB.

RAY, S., M. Vieira e A. Dias. (2002). A Preliminary Study on Interferences inMusic Performance. Trabalho apresentado por ocasião do II SNPPM.Universidade Federal de Goiás Goiânia, Brasil.

O pianista e a psicologia da música: um diálogo necessário

Diana Santiago

Universidade Federal da Bahia –UFBA

Em artigo notório na área da teoria da música, Janet Schmalfeldt,tentando encontrar respostas para o problema de como umaanálise pode auxiliar a construir uma execução musical, con-

fronta a relação entre analista musical e músico (Schmalfeldt, 1985).Para alcançar tal desiderato, assume alternativamente ambos os papéis,tomando como ponto de partida o opus 126 de Beethoven. De modosemelhante, neste artigo, pretende-se estimular um diálogo interno nopianista, com base em duas posições: a do psicólogo clínico, terapeu-ta, e a do psicólogo pesquisador, cognitivista e biopsicólogo. Partindode exemplos da literatura, particularmente dos trabalhos de Bruser(1997), Parncutt & McPherson (2002) e Williamon (2005), focam-seaspectos da personalidade do músico e dos processos psicofosiológicosda execução musical, tais como: estilos de atuação, preparação domúsico para tocar, treinamento das habilidades físicas e mentais emmúsica, técnicas de ensaio, expressividade em música, memorização.É comum que o músico e o professor de instrumento conduzam suaspráticas de forma intuitiva e atendo-se à tradição recebida. Contudo, osachados na área da pesquisa psicológica oferecem excelentecontribuição para a otimização dessas práticas, e não podem serdesconsiderados. Esta discussão objetiva contribuir para a melhoria dasmesmas.

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Ao examinar as relações possíveis do pianista com a psicologia, sobres-saem aquelas que podem se estabelecer entre as psicologias do desen-volvimento, da educação, da personalidade, a psicologia social, a cog-nitiva, a biopsicologia, a psicologia clínica e a neuropsicologia. Isso,porque os principais pontos de contato entre o pianista e o psicólogosão aqueles situados no âmbito da preparação do intérprete para tocar,que lidam com o estudo dos processos psíquicos e psicofisiológicos daperformance musical: estudos e atuações que pretendem compreendero self do músico e os fundamentos da prática musical, buscando umaotimização do desempenho do músico, ou seja, melhores técnicas deprática (ensaio), melhor aproveitamento do tempo pelo músico emelhores resultados audíveis. Essa otimização tem por corolário umamelhor qualidade de vida para o intérprete.

Em artigo notório na área da teoria da música, Janet Schmalfeldt, ten-tando encontrar respostas para o problema de como uma análise podeauxiliar a construir uma execução musical, confronta a relação entreanalista musical e músico (Schmalfeldt, 1985). Para alcançar tal objeti-vo, assume alternativamente ambos os papéis, tomando como ponto departida o opus 126 de Beethoven. Com aquele texto, Schmalfeldttrouxe a análise para mais perto do músico, tentando diminuir a dis-tância entre formulações teóricas e a prática musical. De modo semel-hante, neste artigo, pretende-se estimular um diálogo interno nopianista, com base em duas posições: a do psicólogo clínico, terapeu-ta, e a do psicólogo pesquisador, cognitivista e biopsicólogo. Esse diál-ogo pode ser muito enriquecedor, por trazer impactos na prática pianís-tica desde o estúdio do professor de piano até o palco de concertos.

Estilos de atuação

Um dos principais pontos sobre os quais o estudo da personalidadepode contribuir para a prática musical é na definição dos estilos deatuação dos músicos, o que pode servir como fundamento para o trata-mento da ansiedade na performance e para a redução da tensão psi-cofísica no momento da execução musical . Westney (2003: 150-1)chama a atenção para dois estilos de intérprete: o primeiro caracteriza-se pela preocupação em questionar-se “o que você pensa de mim?”;esta preocupação gera uma constrição mental e física, causadora detensão corporal; o segundo caracteriza-se pela idéia “deixem-me com-partilhar isso com vocês”; essa idéia gera expansão e libera a energiado intérprete, completando o circuito intérprete-platéia. Bruser (1997:151-9) enumera três estilos de tocar: um de paixão exagerada, no qual

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nos agarramos deseperadamente à música; um de fuga/evasão, no qualresistimos a lidar com a música, e um de agressão, ataque à música. Oprimeiro gera exagero na interpretação, o segundo gera um toqueimpreciso e o terceiro, tensão desnecessária e um toque áspero. Essesestilos fazem parte tanto de nosso comportamento cotidiano quanto daprática instrumental, e o único modo de nos libertarmos deles é pelaautoconscientização de sua existência.

Uma descrição detalhada de achados de pesquisa psicológica sobre apersonalidade dos músicos, incluindo diferenciações tipológicassegundo o grau de profissionalismo, a categoria do instrumento quetocam e até o estilo de música em que se especializaram pode serencontrada em Gabrielsson (1999: 564-5). Já Imreh (in Chaffin et alii,2002, cap. 3) faz uma meticulosa revisão de declarações de pianistasfamosos sobre sua maneira de serem músicos, especificamente, sele-cionando considerações sobre as características de suas memórias(tipos), o modo de conduzirem sua prática para aprenderem uma peçanova e seu método de memorização, como lidam com a ansiedade e amaneira como preparam uma apresentação pública de alto nível. Éimpressionante a variedade das personalidades dos artistas e, portanto,dos achados da pesquisa!

Contribuições da psicologia cognitiva

A psicologia cognitiva da música tem muito a contribuir para o intér-prete. Estudos nesta área nos oferecem uma melhor compreensão dosestágios da prática. Por exemplo, após extenso estudo de caso, Chaffina subdividiu nos seguintes estágios: exploratório, sessão por sessão,estágio cinza (uma fase de transição), montagem da peça, polimento(preparando para a primeira apresentação, repolimento, aumentando oandamento), manutenção (Chaffin et alli, 2002: 239-246).

Igualmente importantes têm sido as contribuições da psicologia cogni-tiva no que diz respeito à memorização. Introduzida por ClaraSchumann em 1828, a prática da performance de memória foi popu-larizada por Liszt, mas, apesar disto, considerada de mau gosto e osten-tosa até o final do século XIX. Contudo, sua aceitação foi crescendo,apesar das demandas enormes que requer do músico – memorizar mi-lhares de notas e saber recordá-las e executá-las em situações de stresscomo são as apresentações públicas (Williamon, 2002: 113). O traba-lho minucioso de estudo da prática da pianista profissional GabrielaImreh realizado por Roger Chaffin e Mary Crawford, enquanto aquelaestudava o Presto do Concerto Italiano de J. S. Bach (Chaffin, Imreh &

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Crawford, 2002) confirmou a importância da utilização de estratégiasanalíticas para estabelecer uma representação mental confiável damúsica. Estudos na área sugerem que os músicos devem se valer dastécnicas analíticas que preferem durante o processo de prática, demodo a estabelecer pontos de referência confiáveis no momento daexecução musical (Williamon, 2002: 124).

Ginsborg afirma que a música é armazenada na memória de longoprazo através de múltiplas representações e sugere as seguintes estraté-gias na memorização musical: analisar a música a ser estudada, demodo a compreendê-la e organizá-la; dividi-la em partes estruturaiscurtas para o estudo, aumentado o tamanho das partes à proporção emque a música se torna mais familiar; e usar a memória cinestésica emconjugação com a memória visual ou auditiva. Além dessas recomen-dações específicas, ter consciência de que:

· Pouco e freqüentemente é uma estratégia melhor para memoriza-ção que a tentativa de memorizar trechos grandes em uma ou duassessões maiores;

· No estágio final da preparação da peça a ser tocada de memória,deve-se buscar um estado de confiança que seja independente dofato do momento ser uma sessão de prática ou uma apresentaçãopública e deve-se buscar ainda um estágio de aprendizado no con-texto, ou seja, treinar de memória no ambiente comum da práticae no local onde ocorrerá a performance (2005: 137-8).

Treinamento das habilidades físicas e mentais em música

O pioneiro no estudo dos aspectos físicos da performance foi CarlSeashore, que desenvolveu métodos para registrar as característicasdetalhadas da determinação do tempo e da dinâmica em performancesmusicais. Dentre as habilidades físicas da performance musicalencontram-se o movimento complexo (incluindo independência ecoordenação motoras) e habilidades de determinar o tempo. Dentre ashabilidades mentais, leitura de notação (já que tratamos da música detradição ocidental), memorização e imaginação ou representaçãomental (Clarke, 2002: 60-3).

Estudos em performance de alto nível em várias áreas demonstraramque são necessários ao menos 10 anos de prática intensa para umprofissional atingir a excelência (Ericsson, 1997: 23-5). Essa “regra dos10 anos” aplica-se desde a atividades predominantemente físicas comocorrer até àquelas predominantemente mentais, tais como xadrez e,igualmente, à música da tradição ocidental. Chaffin & Lemieux (2005)

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definem a prática efetiva por meio de cinco características: concen-tração, estabelecimento e conquista de objetivos específicos, constanteauto-avaliação, uso flexível das estratégias, capacidade de quempratica ter em mente a visão geral da peça.

Ao tratarmos do preparo físico do músico, é importante considerarmosa necessidade de um bom condicionamento corporal para a excelênciado desempenho no instrumento. Técnicas e intervenções utilizadas empesquisas pioneiras com músicos realizadas em vários países, buscan-do tornar melhores as condições de preparação dos mesmos, têmincluído exercícios físicos, técnica de Alexander, biofeedback e neuro-feedback para auto-regulação fisiológica, programa de treinamento dehabilidades mentais e ensino da expressividade musical por meio defeedback da aprendizagem (Williamon, 2005). Infelizmente, ainda sãopoucas as instituições que incluem cursos de tal tipo em seu currículoregular, ou mesmo como atividade de extensão, e poucos os profes-sores de instrumento conscientes da necessidade dos mesmos.

Técnicas de ensaio (prática)

Estudos sobre técnicas de ensaio (prática) têm esclarecido a naturezadessa prática e sugerido estratégias para ensaio individual ou coletivo.

Jorgensen (2005: 85-6) apresenta uma visão abrangente da práticamusical, incluindo uma perspectiva histórica. Partindo da visão susten-tada por Gamalian, ele afirma que a prática efetiva consiste numa auto-intrução e, como tal, deve incluir três fases: planejamento e preparaçãoda prática; realização da prática; observação e avaliação da prática. Asestratégias de planejamento e preparação incluem estratégias paraseleção de atividades e organização e estratégias para gerenciamentodo tempo; as estratégias executivas incluem estratégias de ensaio,estratégias para a distribuição da prática ao longo do tempo e estraté-gias para a preparação de uma apresentação pública; já as estratégiasde avaliação incluem o conhecimento, o controle e regulação dasestratégias como um todo.

Barry & Hallam (2002: 150 ss.) apontam muitos pontos em comum aosmencionados por Jorgensen para a eficácia da prática: a necessidadedo controle do tempo (duração total do ensaio/prática, organização dotempo); estratégias cognitivas (prática mental, análise, metacognição,respeito às diferenças individuais). Segundo as autoras, as pesquisasrevelam que a prática é melhor sucedida quando os músicos incluemreflexão sobre seus próprios processos mentais (metacognição),

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empregam a prática mental em combinação com a física, acercam-seda prática de forma organizada, estudam e analisam partituras, plane-jam sessões relativamente curtas e regulares, estão intrinsecamentemotivados, e escutam exemplos musicais apropriados – incluindogravações profissionais e/ou demonstrações do professor.

Para Chaffin et alii, as características da prática efetiva são: o desejoardente de aprender, uma concentração focada, determinação de obje-tivos, o hábito da avaliação, estratégias de prática, agendamento daprática (practice scheduling), monitoramento dos níveis de energia demodo a saber parar se o grau de eficiência estiver caindo, trabalho etestagem dos trechos trabalhados (work and runs), uso da estruturaformal para a divisão das partes a serem estudadas; antecipação dosobjetivos futuros (2002: 254-261).

É importante também para o músico compreender as várias pesquisassobre a comunicação verbal e não-verbal em ensaios de música decâmara e sobre a utilização do corpo na performance (Williamon,2005).

Expressividade em música

Pode a expressão emocional ser aprendida? As abordagens tradicionaisda expressividade em música incluem a modelagem auditiva (o profes-sor toca para o aluno ouvir e tentar imitar) e estratégias de experimen-tação (testagem de diversas possibilidades); abordagens alternativas deensino são o ensino da teoria da comunicação emocional e o feedbackcognitivo e suas aplicações, em busca de uma integração de técnica eexpressão (Juslin & Persson, 2002: 227ss.). Para que variações emexpressividade sejam efetivas, devem ser não apenas detetadas pelosouvintes, porém, fazerem sentido para eles (Sloboda, 1994: 158).

Na área, destacam-se os trabalhos de Juslin. Com base em achados depesquisa, ele argumenta que a expressividade deriva de cinco fontesprincipais, que denomina de Modelo GERMS :

· regras gerativas (G) – são aquelas que marcam a estrutura demaneira musical;

· expressão emocional (E) – serve para transmitir emoção ao públi-co;

· flutuações ao acaso (R) – refletem as limitações motoras humanas;

· princípios do movimento (M) – que sustentam que mudanças deandamento devem seguir padrões naturais do movimento humano;

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· desvios do estilo (S) – que refletem tentativas deliberadas do intér-prete para desviar das expectativas do estilo em relação à perform-ance, de modo a adicionar tensão e imprevisibilidade à mesma(Juslin et alii, 2005: 252-3).

A partir de achados de pesquisa, recomenda formas alternativas para otreinamento da expressividade, centrando-se no uso do computador(Juslin et alii, 2005: 259-265; Juslin & Persson, 2002: 230-3).

Coda

O contato com a vasta literatura que já existe sobre performance e psi-cologia da música é ocasião para reflexões produtivas para o músico.Tomando a frase do pianista Seymour Bernstein (1981: 9) quandoafirma que “A prática produtiva é um processo que promove auto-inte-gração”, façamos votos para que a voz do psicólogo cientista possa nosauxiliar a encontrar melhores estratégias de estudo e desempenho; epara que a voz do psicólogo terapeuta possa nos auxiliar na integraçãodo ser. A música soará mais bela.

Este artigo baseia-se em literatura revista para pesquisa financiada peloCNPq.

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4. Artes Musicais,Lingüística, Semiótica e Cognição

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Um panorama de estudos comparativos entre fala e canto

Beatriz Raposo de Medeiros

Universidade de São Paulo – USP

Aproposta deste panorama é resumir achados de estudossobre a produção acústica dos segmentos de fala cantados(Raposo de Medeiros, 2002, 2003) e sua relação com

dados articulatórios, bem como apresentar resultados de experimentoperceptual envolvendo a discriminação de vogais faladas e cantadas.

Vogais deformadas (centralizadas) e não mal pronunciadas

O aparelho fonador funciona como um instrumento através do qualpodem-se ajustar diferentes ressonâncias. Para simplificar a idéia desteinstrumento, podemos considerá-lo na forma de tubos. Por exemplo: alaringe seria um tubo possuindo pregas vocais sujeitas à vibração (verStevens, 1977, para detalhes), as quais possuem músculos e cartilagensresponsáveis por ajustar modos de vibração e freqüência fundamental.O trato vocal1, seria um tubo cujos articuladores ativos (mandíbula,lábios e língua) filtrariam o som produzido na laringe. Estes sons podemser tanto da fala como da música. No caso mais específico desta últi-ma, temos os vocalizes, em que uma vogal qualquer, destituída de sen-tido, faz soar uma melodia. No caso da canção, temos duas linguagensentrelaçadas, dando conta, a um tempo, das restrições da fala e dasrestrições da música. O termo restrições será entendido aqui, grossomodo, como regras. Regras fonético-fonológicas envolvem a produçãode diferentes sons da fala estabelecendo-se relações de diferença entresi, e as regras musicais envolvem basicamente, entre outras exigências,ajuste de altura e tempo. Sendo assim, ao se cantar com texto, ou seja,não simplesmente vocalizar, quem canta está ao mesmo tempo imple-mentando seu conhecimento lingüístico e musical. A tarefa não é dasmais simples, dado que, para responder às necessidades de afinação esustentação de uma nota musical, muitas vezes o cantor/a tem de com-prometer a inteligibilidade da fala. Surge, então, uma pergunta clássicano que toca a inteligibilidade do canto. Por que, em notas altas, fica tãodifícil entender o que se canta? Vogais fechadas deformam-se ao seremcantadas em freqüências de fonação acima de 700 Hz mais ou menose isto recebeu um tratamento aprofundado e uma explicação convin-cente a partir de Sundberg (1977, 1987), que explicou a relação da

1 O tratovocaltambém éformadopelo tratonasal, consti-tuído dascavidadesnasais,responsáveispelaressonâncianasal quenos permiteproduzir eperceber asconsoantes eas vogaisnasais naslínguas natu-rais.

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natureza fonética acústica da vogal, com a freqüência da nota cantadaou freqüência de fonação.

A partir da explicação de Sundberg (1977), difundida juntamente como conceito de formante do cantor, desenvolveu-se um estudo compar-ativo de aspectos fonéticos da fala e do canto (Raposo de Medeiros,2002) a fim de levantar evidências na fala cantada do portuguêsbrasileiro, através de canções eruditas, de que atribuir a não inteligibil-idade à má dicção do cantor/a ou ao compositor, apenas fortalece omito da má dicção no canto. Uma vez citada a questão do formante docantor, é preciso esclarecer que, assim como a necessidade de abaixa-mento da mandíbula no canto para maior energia do sinal, o formantedo cantor é também uma resultante acústica para a voz cantada obtermaior energia e se destacar na massa de sons da orquestra. Este fenô-meno é encontrado em vozes de baixos, barítonos, tenores e contraltoscom treinamento vocal de belcanto (Sundberg,1999). Estão portanto,de fora, as vozes de sopranos, que, por sua vez, para maior volume dosinal sonoro cantado, empregam o abaixamento da mandíbula para aprodução de notas cantadas, mesmo em torno de 420 Hz de freqüên-cia (Raposo de Medeiros, 2002).

Investigando acusticamente o que acontecia com cada uma das setevogais tônicas do PB2, chegamos à conclusão que, de fato, no canto, asvogais são deformadas, em relação ao padrão acústico das vogais fal-adas. Na teoria de produção acústica da fala (Fant, 1960) as caracterís-ticas acústicas das vogais podem ser representadas através dum padrãoformântico, (f-pattern). Para se entender isso é preciso lembrar que asressonâncias específicas de cada vogal são os formantes, e que, dentreeles, os três primeiros são suficientes para nosso ouvido perceber avogal produzida. Uma vez que os dados de vozes femininas de sopra-no3 indicavam-nos um determinado padrão formântico na fala,pudemos compará-lo com o do canto e daí inferirmos o que estavaacontecendo articulatoriamente no canto ao se cantar uma determina-da vogal, entoando-se uma freqüência de fonação por volta de 420 Hz.

2 Para comparar a fala e o canto em PB, escolhemos as sete vogais orais tônicas [i,e,E,a,ç,o,u] e asconsoantes oclusivas surdas [p,t,k], que foram realizadas no logatoma /la'CV/, contido na fraseveículo: “Canto /la'CV/ baixinho numa velha canção de ninar”, na qual V era entoada num freqüên-cia fundamental em torno de 420 Hz (lá b 3). Uma pequena alteração rítmica se deu para encaixaras sílabas lapá (exemplo de um dos logatomas possíveis), sem alteração da estrutura do compasso,sequer da melodia.3 Cinco informantes cantoras, com voz de soprano, foram gravadas cantando e falando as mesmasfrases veículos, produzidas cinco vezes por cada informante. Isso permitiu-nos chegar a um médiade F1, F2 e F3, individual e por fim, geral, de cada vogal.

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O achado mais geral deste estudo foi o de que as vogais cantadas, exce-to [a] são produzidas com a mandíbula mais baixa se comparado àfala. Isso vai ao encontro do achado de Sundberg (1977). Ora, se, acada nota mais acima na escala a cantora é obrigada a produzir a vogalcom a boca mais aberta (mandíbula mais abaixada), forçosamente estavogal é deformada, ou seja, perde a qualidade vocálica exigida pelotexto, uma vez que quanto mais baixa a mandíbula, mais alto é o F1.Assim, uma vez deformada a fala, sua inteligibilidade fica compro-metida em favor das restrições musicais. Um segundo achado maisespecífico é o de que se produz uma centralização das vogais no canto,ou seja todas elas tendem a ficar parecidas com um schwa, ou vogalneutra, assim representado [´]. Esta vogal é produzida com os articu-ladores exercendo pouca constrição no trato oral. O/a cantor/a tentaimplementar um tubo uniforme ao cantar vogais, dado que ele/a devemanter a laringe livre de maiores contrições, pois é ali que se produz afreqüência fundamental.

Ao aprofundarmos os conhecimentos sobre a relação entre acústica dafala e a acústica do canto, vemos que as manobras específicas docanto, como manter a mandíbula mais baixa e a configuração do tratomais neutra, limita a dicção da fala. Em um estudo de filmagens da face(Raposo de Medeiros, 2005), verificamos que a mandíbula é de fatomais abaixada na produção da vogal cantada como se pode ver nosfotogramas a seguir.4

Fotogramas a: à esquerda, [ç] cantado e à direita, [ç] falado.

4 Nota-se no fotograma de [i ] cantado, que há elevação do lábio superior em comparação ao [i ]falado. Isso pode ser uma compensação para o pouco abaixamento da mandíbula exigido pelavogal alta. Estudos futuros, filmando mais informantes, podem confirmar essa hipótese dacompensação.

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Fotogramas b: à esquerda [i] cantado e à direita [i ] falado.

Tanto acústica, como articulatoriamente, evidenciamos as diferençasentre o canto e a fala. A questão que ficou suspensa no ar foi aquelarelacionada à percepção das vogais cantadas. Agora resta deslindar oque acontece com a outra ponta do processo.

Percepção de vogais cantadas isoladas do contexto

A premissa básica deste experimento é de que os cantores tentam man-ter o espaço vocálico em busca da inteligibilidade, mesmo realizandomanobras do canto, diferentes daquelas da fala. Esta inteligibilidade,até onde podemos atestar , ocorre nas vizinhanças de uma faixa de fre-qüência de baixa para média (Raposo de Medeiros, 2002, Scotto diCarlo, 1985). No entanto, o estudo sobre o canto em PB apresentadoanteriormente reuniu evidências de que há uma sobreposição entre asvogais [E,a,ç] cantadas quanto a F1, mas não quanto a F2. Isto nos levoua considerar que embora a produção esteja consideravelmente alteradano canto, impondo uma mudança articulatória ao trato vocal, a dis-tinção fonológica não fica completamente afetada. Em outras palavras,as vogais cantadas, assim como as faladas, mantêm a distinção entre si.

O experimento em questão envolveu estímulos criados a partir das fra-ses faladas e cantadas por uma das cantoras gravadas para o estudoacústico apresentado na seção 2. Para ouvir tais estímulos, 22 infor-mantes (universitários, de ambos os sexos, com audição perfeita) foramvoluntários5. Os estímulos criados consistiram no seguinte: escolheu-seo conjunto de vogais cantadas e faladas por apenas uma cantora e nosubconjunto de cada vogal, escolheu-se aquela cujos valores de for-

5 Osouvintesforam expos-tos aos estí-mulos usan-do fones deouvido, emuma salasilenciosa,da seguintemaneira: asdiferentesmodalidades,ou seja ocanto e afala, foramapresentadosem blocosseparados, enestes aordem dasvogais eraaleatória. Aoouvir avogal, oouvinte aidentificavaentre as setevogaispossíveis.

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mante eram mais parecidos com a média desta cantora. Tais vogaisforam isoladas do contexto que as circundava, ou seja da palavra. Emseguida, a duração das vogais foi ajustada da seguinte forma: [E,a,ç]ficaram com 110 milissegundos, [e,o] com 90 ms e [i,u] 60 ms, numatentativa de normalizar a duração vocálica segundo a duração intrínse-ca destes segmentos. Os resultados são apresentados nas tabelasabaixo.

Fala: Vogais Percebidas

a E e i ç o u acerto

a 197 1 0 0 0 0 0 99%

E 0 197 1 0 0 0 0 99%

e 0 0 194 4 0 0 0 98%

i 0 0 6 192 0 0 0 97%

ç 2 0 0 0 187 9 0 94%

o 0 0 0 0 0 162 35 82%

u 0 0 0 0 0 43 154 78%

sr 199 198 201 196 187 214 189

Tabela 1. Matriz de confusão das vogais faladas para todas as respostas dosouvintes. No eixo horizontal, sr é a soma dos acertos e erros. Acélula sombreada contém a porcentagem total dos acertos.

Canto: Vogais Percebidas

a E e i ç o u acerto

a 190 0 0 0 7 0 0 96%

E 1 174 20 0 0 3 0 88%

e 0 8 79 111 0 0 0 40%

i 0 0 2 196 0 0 0 99%

ç 26 0 1 0 134 37 0 68%

o 0 1 2 1 44 117 33 59%

u 0 0 0 0 0 3 194 98%

sr 217 183 104 308 185 160 227

Tabela 2. Matriz de confusão das vogais faladas para todas as respostas dosouvintes. No eixo horizontal, sr é a soma dos acertos e erros. Acélula sombreada contém a porcentagem total dos acertos.

O percentual de acerto geral, destacado em cinza nas tabelas, como seesperava, é maior na fala que no canto. Isso é coerente com os dadosacústicos e articulatórios que destrinçam as diferenças entre a pro-dução da fala e do canto. A vogal cantada que mais parece ser afetadano tocante a inteligibilidade é a vogal [e], percebida 111 como [i].

78%

92%

Fala

: Vog

ais

Apr

esen

tada

sC

anto

: Vog

ais

Apr

esen

tada

s

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Algo semelhante acontece com a vogal [o]. Estas vogais são médias-altas e, ao serem cantadas, oferecem um desafio para a articulação: nãose pode abaixar demais a mandíbula, caso contrário passam a serouvidas como vogais médias-baixas, por exemplo, [E,ç]. A hipóteseexplicativa para o fato de [e] ser ouvido como [i] é que a cantora evitaao máximo a abertura exagerada da boca, mas acaba ocasionando ocontrário e alçando a vogal; ou seja o timbre passa a ser o de uma vogalfechada (ou alta).

O caso de [o] não é tão exemplar quanto o de [i] e dificultauma hipótese explicativa esclarecedora, uma vez que foi percebido 33vezes como [u] e 44 vezes como [ç]. Por um lado, pode-se dizer que avogal foi alçada, e por outro pode-se dizer que a manobra de abaixa-mento da mandíbula foi implementada e os ouvintes identificaram [ç]no lugar de [o]. Pode-se dizer que as vogais médias-altas “ficam inde-cisas” no canto, ou seja, são produzidas num meio caminho entre asmédias-baixas [E,ç] e as altas [i,u].

De modo geral, 78% de acerto das vogais cantadas em uma freqüênciade fonação de 420 Hz, aproximadamente, é uma porcentagem alta,indicando que as vogais cantadas têm boa inteligibilidade. Há aindaque se considerar, em defesa de nosso argumento, que essas vogaisforam isoladas do contexto, que por sua vez é facilitador de inteligibi-lidade. Caso levemos um experimento com vogais contextualizadas emsuas palavras cantadas, devemos elevar a porcentagem de acerto.

Discussão (quase) final

A questão da manobra articulatória típica do canto, o abaixamento damandíbula, quando relacionada aos fenômenos acústicos, tanto de pro-dução como de percepção, faz convergir para a seguinte idéia: o canto,ou fala cantada, é produzido a partir de negociações entre as restriçõeslingüísticas do texto e as restrições musicais. Aquelas requerementendimento do texto cantado, e as últimas, afinação e volume dosinal sonoro. A questão pode ainda ser refinada. As filmagens da facenos permitiram registrar o que acontece com a mandíbula, mas osmovimentos da língua, ficam ainda a ser revelados, o que se pode serfeito com técnicas baseadas em raio-X ou similares. Ao se revelar movi-mento da língua no canto, comparado ao da fala, poder-se-ia confirmara hipótese explicativa de que o trato vocal configura-se de modo maisuniforme no canto. Quanto à percepção das vogais, seria interessanteinvestigar dois diferentes grupos de ouvintes (um formado por cantorese outro por não-cantores) para verificar se o primeiro grupo tem uma

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taxa de acerto maior do que o segundo. Se isso se confirmar, é possívelpostular que os ajustes articulatórios para manter a distintividade entreas vogais cantadas são implementações sistemáticas e controladas porquem canta, o que significa dizer que a inteligibilidade não é umacaso, mas resultado de um elo construído entre produção/percepção,a partir de capacidades lingüísticas e musicais.

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Contornos melódicos do canto e da fala em bebês de 12 a 24 meses

Esther Beyer

Cláudia Braga

Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS

Introdução

Este estudo teve início em setembro de 2005, com os alunosmatriculados nas aulas do curso de extensão de Música paraBebês da Profª. Drª. Esther Beyer na Universidade Federal do Rio

Grande do Sul - Instituto de Artes. Participaram 21 bebês com idades de12 a 24 meses.

Autores como Mársico (1982), Gordon (2000), e Seeliger (2003) têmescrito sobre o desenvolvimento musical. De uma forma bem maisdetalhada, Beyer (1994, 1996, 2004) e Barceló (2003) descrevem aíntima relação entre fala e canto, relacionada ao desenvolvimentomusical.

A hipótese deste trabalho é que as diferentes formas de estímulo parauso da voz, ou ainda a presença ou não de estímulos, favoreçam o seuuso de forma expressiva, possibilitando vocalizações de melodias e aaquisição da comunicação verbal. Não foram considerados dadosreferentes às motivações dos pais, contexto cultural, entre outros.

No plano musical, inventar é para a criança confrontar-se com amatéria sonora: manipulá-la, experimentá-la, agrupá-la, recombiná-la,etc., sem se deixar subjugar por ela, mas procurar aos poucos dominá-la (Mársico, 1982). É provável que, sendo facilitadas estas experiênciassonoras já nos primeiros anos de vida, isto resulte de um domínio dassuas possibilidades. O domínio das experiências sonoras, por sua vez,pode auxiliar a comunicação de forma integral, o desenvolvimento dafala e do canto. Esta aquisição favorece o sujeito no seu convívio socialatravés da comunicação verbal adequada (Ploog, 1992). O convíviocom música desde a tenra infância pode beneficiar o desenvolvimentode uma forma integral, motor, intelectual e emocional.

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Objetivos

– Analisar as diferentes vocalizações de bebês de 12 a 24 meses

– Verificar nestes momentos as aquisições no desenvolvimento docanto e da fala

Metodologia

A coleta de dados foi feita de 16 de setembro de 2005 a 11 de novem-bro de 2005, num total de 8 semanas. Todos os registros foram feitoscom fita cassete, em aparelho Aiwa – aparelho gravador TP – VS535.Participaram da pesquisa todas as crianças das turmas C1 (idades de 12a 17 meses no ato da matrícula) e D2 (idades de 17 a 24 meses no atoda matrícula) do curso de extensão Música para Bebês da profª. EstherBeyer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Todas as criançascontavam com idades de 12 a 24 meses no início da pesquisa. Os re-gistros sonoros foram realizados pelos pais ou cuidadores. Todos osresponsáveis pelos bebês que acompanhavam-nos nas aulas receberamorientação oral e por escrito sobre os procedimentos para o registrosonoro do bebê. Foram utilizados 4 gravadores, sendo dois por turma.Cada responsável ficava com o kit de gravação por 7 dias. O kit degravação continha 1 CD identificado, com músicas utilizadas nas aulasde música para bebês, com duração total de 15 minutos; 1 formuláriopara preenchimento que também continha esclarecimentos sobrecomo proceder com o registro sonoro; 1 gravador; 2 fitas K-7 identifi-cadas com o dia em que deveriam ser utilizadas. Os responsáveis de-veriam gravar durante 15 minutos diários as vocalizações do bebê. Omomento escolhido deveria ser o mesmo durante os 7 dias de registros(por exemplo, hora do banho). O CD deveria ser colocado para tocardurante os 15 minutos da gravação.

Após a coleta, o conteúdo das fitas foi passado para CDs.Posteriormente, os dados de canto e fala foram selecionados, transcritose analisados. A análise sonora das gravações foi feita no programa SonySound Forge 7.0. Para a relativização das alturas “cantadas/faladas” dosbebês foi utilizado um teclado.

Coleta de dados

Foram transcritos todos os trechos de vocalizações dos bebês pesquisa-dos. Os sons relatados aproximam-se ao som produzido pelos bebês enão sugerem sustentação exata ou saltos exatos. As transcrições foramfeitas utilizando a afinação padrão de um teclado, com afinação tem-perada cromática de 12 sons com lá 440 Hertz.

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Análise e discussão dos dados

Questionários preenchidos Permanência com o gravador

Percentual de bebês por turma

Foram pesquisados 21 bebês. Aotodo foram 18 questionáriospreenchidos (85,71%), 1 gravaçãonão feita (4,76%) e ainda 2famílias que não levaram ogravador para casa (9,53%). 9crianças pertenciam à turma C1 e9 crianças à turma D2. 4 famílias

ficaram com os gravadores durante 2 semanas e 1 família durante 3semanas. Todos os demais ficaram durante os 7 dias estipulados. Todasas vocalizações registradas foram transcritas.

Na primeira turma ainda é possível verificar uma construção de experi-mentos e “exercícios” instintivos para a maturação do aparelho fona-dor. Balbucios, grunhidos, guinchos que vão de graves a agudos, bus-cam a sustentação do som, movimentos de lábios e língua buscandoreconhecer diferentes formações para a emissão de som, experimen-tação de ressonadores, imitação de sons produzidos pelos cuidadores(mãe e pai especialmente) e o início de uma distinção entre fala ecanto. Na segunda turma, que vai do 17º ao 24º mês, a entonação daspalavras e frases reflete o crescimento na linha melódica, que já teve oinício de seu desenvolvimento em alguma fase anterior. O vocabulárioaumenta gradativamente. As canções cantadas já são reconhecíveis eseus repertórios vão se ampliando. As letras das canções são incom-pletas, e/ou ritmos e linhas melódicas entoadas são inexatas.

Ao analisar os textos e desenhos escolhidos para descrever a primeiraturma, nota-se claramente um crescimento nas experimentações dosbebês. Desta mesma forma há pontos de partida que se assemelham emvárias tomadas, com relação às alturas entoadas. As diversas manifes-

turma C (50 %)

turma D (50 %)

1ª semana (72,23 %)

2ª semana (22,22 %)

3ª semana (5,55 %)

Questionários preenchidos (85,71%)

Questionários não preenchidos (14,29%)

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tações de produção de sons vão se somando, o que faz com que osbebês não abandonem nenhum dos já manipulados, mas vão acres-centando aos seus “repertórios” um número cada vez maior de possi-bilidades sonoras. A tentativa de sustentar um mesmo som, por exem-plo, quase permite a “visualização” da imaturidade do seu aparelhofonador, pelo grande esforço que parece estar sendo empregado. Tantono sentido ascendente quanto descendente, a emissão de sons empequenos intervalos parece servir como trampolim para a experimen-tação de intervalos maiores. Mesmo grandes intervalos descendentessão facilmente imitados pelos bebês. Os bebês aventuram-se na experi-mentação de novas consoantes. Aparece o início de uma diferenciaçãoentre canto e fala, com construções melódicas primárias e junção demovimentos rítmicos com a melodia nos bebês mais velhos dentrodeste grupo C.

A partir dos 17 meses, os bebês já conseguem manter algum diálogocom um interlocutor familiar. Alguns contornos vocálicos que eramfeitos nos primeiros meses registrados ainda aparecem bastante, comobrincadeiras com glissandos. A “produção” musical (improviso) já podeser identificada, o que não acontecia no primeiro corte analisado (12 a17 meses). Brincam com as palavras, seus sons e significados. Parecemdar-se conta de algumas transformações que são possíveis na lin-guagem falada. Cantam estimulados ou por conta própria. Manipulamas canções, improvisam sobre elas. Nas tomadas registradas é possívelperceber constância no pulso e ritmo de alguns bebês em algumascanções. Conseguem cantar ao menos um pequeno conjunto depalavras das canções que reconhecem. Quando estimuladas, cantammais partes de letra das canções do que quando sozinhas, especial-mente os finais de palavras e frases. Mantêm brincadeiras com sonsgraves e agudos.

Conclusão

De acordo com Beyer (1988), quando se compara a evolução dosestágios na linguagem verbal com a linguagem musical, verifica-se umatraso na aquisição desta segunda com relação à primeira, embora asestruturas cognitivas necessárias já tenham sido formadas durante aaquisição da linguagem verbal. O uso significativamente maior da lin-guagem verbal em relação à musical pode ser apontado como expli-cação para a existência desta decalagem. Considerando o estímulooferecido aos bebês da pesquisa, pode-se dizer que a probabilidadepara esta decalagem é um pouco menor. Ainda que as palavras e/ou

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frases não estejam completas no processo da fala, a entonação utiliza-da é bastante clara, com uso de interrogações e exclamações com umbom domínio. Os esquemas adquiridos para o desenvolvimento da falae que ainda estão em formação nesta faixa etária final avaliada de 24meses, assemelham-se aos do canto se pudermos comparar a emissãodas palavras ainda com “erros”, com a dificuldade dos bebês em man-ter a linha melódica de uma canção, apesar do reconhecimento e emis-são de parte do texto e do ritmo desta mesma canção.

Se considerarmos na linguagem falada e na musical, o uso dos quatroparâmetros do som: duração, altura, intensidade e timbre, aproxi-mamos a aquisição destas duas linguagens como meios de expressão.O acompanhamento da evolução da linguagem em bebês possibilita avisualização destes quatro parâmetros e evidencia a facilidade que elestêm na reprodução rítmica se comparada à melódica. A própria lin-guagem falada observada parece poder relacionar-se a isto.

Em Beyer (1988), pág. 89, lê-se que ”o simples ouvir não irá produzirno sujeito aquisição da linguagem musical. Torna-se necessário que acriança exerça sua ação sobre o som, produzindo música, para queaprenda a codificar e decodificar mensagens musicais.” Considero,desta mesma forma que a aquisição da linguagem falada é facilitadaporque a manipulamos e estamos expostos a ela durante longos perío-dos inclusive já dentro do útero, especialmente se levarmos em contaque nos humanos a maturidade do ouvido se dá a partir do sexto ousétimo mês de gestação. Por mais que haja estímulo sobre a linguagemmusical, ela jamais se equiparará à da linguagem falada. De qualquerforma, é possível verificar aqui que os estímulos musicais podemfavorecer a aquisição da linguagem falada. Ao final dos 24 meses, comrelação ao desenvolvimento musical e da fala, os bebês emitiampequenas frases, identificavam canções através de melodias e/ou ritmo,brincavam com a estrutura musical de forma rudimentar, cantavamcanções com alguma linha melódica, com ritmo bastante constante ecom letra incompleta e pareciam identificar graves e agudos na voz einstrumentos. É necessário a continuação do registro sonoro destesgrupos pesquisados, para que haja a possibilidade de se fazer umacomparação entre os dados coletados.

Referências bibliográficas

BARCELÓ, B. J. (2003). La gènesi de la inteligència musical em línfant.Barcelona: DINSIC.

BEYER, E. (1988). A abordagem cognitiva em música: uma crítica ao ensino

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da música, a partir da teoria de Piaget. Porto Alegre: UFGRS/FACED, Diss.Mestr.

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MÁRSICO, L (1982). O despertar musical da criança e o desenvolvimento dacriatividade infantil no plano musical. In: Educação e realidade. 7, n 2, 115-119.

PLOOG, D. (1992). The evolution of vocal communication. In H. Papousek,U. Jürgens, M. Papousek (org.). Nonverbal vocal communication – compar-ative and developmental approaches, pp. 6-30). New York: CambridgeUniversity Press.

SEELIGER, M (2003). Das Musikschiff; Kinder und Eltern erleben Musik; vonder pränatalen Zeit bis ins vierte Lebensjahr. Regensburg: ConBrio.

maior detalhamento desta pesquisa: [email protected] e/[email protected]

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Música e Linguagem Verbal:distanciamentos e aproximações

Silvia Cordeiro Nassif Schroeder

Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP

Aconcepção da música como uma forma de linguagem,embora amplamente difundida no meio educacional (cf.,por exemplo, Swanwick, 2003; Gaínza, 1997; Fonterrada,

1991; Penna, 1998, etc.), sempre teve opositores radicais em outrasáreas do conhecimento, sobretudo na filosofia. Sem a intenção defechar essa questão, gostaria, neste trabalho, de tecer algumas analo-gias entre a linguagem verbal e a música, no intuito não apenas deentender melhor as razões dessa polêmica, buscando subsídios paraum posicionamento fundamentado, mas sobretudo de investigar emque medida essas analogias podem ajudar numa compreensão maisprofunda da própria música.

Antes de qualquer análise mais aprofundada, podemos dizer que amúsica (e aqui me refiro especialmente à música ocidental) e alinguagem verbal possuem semelhanças bastante óbvias: ambas traba-lham com sons que se articulam temporalmente e possuem formas deorganização de tal modo similares que os próprios termos de análisemusical são emprestados da análise lingüística (frases, períodos,pontuações, pergunta e resposta etc.). Partindo dessa constatação,trabalharei, nos limites deste texto, algumas questões relativas à possi-bilidade de existência de uma sintaxe musical análoga à sintaxe verbalou lingüística, procurando verificar quais as suas especificidades emrelação a esta. Considero esse o primeiro passo em direção a umaaceitação efetiva da música como uma forma de linguagem.

Sintaxe musical x sintaxe lingüística

Quando falamos em sintaxe, temos implícita a idéia da existência deregras combinatórias que permitem que, dentro de um sistema, peque-nas unidades dêem origem a unidades maiores. Para que possamosfalar em sintaxe, portanto, dois pressupostos são necessários: a descon-tinuidade, ou seja, a possibilidade de decomposição de um continuum(no caso, sonoro) em unidades discretas básicas e a presença de algumtipo de hierarquia entre essas unidades que lhes atribua funções oucondições de aparecimento. Do ponto de vista da música, podemos

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dizer que esses dois pressupostos estão presentes: toda música édecomponível em unidades sonoras (não necessariamente “notas”, mas“eventos” musicais) e em toda música as unidades se combinam deacordo com determinadas regras, quer seus praticantes tenham ou nãoconsciência delas. Num primeiro momento, então, podemos falar naexistência de uma sintaxe musical análoga à sintaxe lingüística.

Ao aprofundarmos a comparação, entretanto, começamos a perceberque não apenas os modos de combinação musicais e lingüísticos nãosão exatamente os mesmos, como também não são as mesmas as ca-racterísticas de suas unidades básicas. Isso desencoraja alguns autoresa reconhecer a existência efetiva de uma sintaxe musical (e artística,por extensão). Entre os opositores a uma abordagem da arte de modogeral como uma forma de linguagem que possui sintaxe própria,podemos citar, por exemplo, a filósofa Susanne Langer (1989), que, aodividir as formas simbólicas em discursivas (que corresponde àlinguagem verbal) e apresentativas (onde encontramos a arte), colocacomo uma das diferenças fundamentais entre essas duas formas desimbolismo a natureza de suas unidades, questionando, mesmo, apossibilidade de se considerar “linguagem” qualquer representaçãonão verbal. Segundo Langer (1989), enquanto a linguagem (que paraela é sinônimo de língua) possui um vocabulário (palavras com signifi-cado fixo) e uma sintaxe, nos simbolismos não discursivos a própriafragmentação em unidades básicas é questionada e, na possibilidadedisto ocorrer, essas unidades não apresentam uma identidade tal quepossam ser reconhecidas em outros contextos (ou seja, não existe aquia idéia de um vocabulário).

Nessa mesma linha de pensamento, M. Dufrenne (1998) nega aexistência de um “sistema” nas obras de arte:

Compreende-se, então, que, enquanto a língua se manifesta no con-junto dos discursos e impõe a cada um qualquer coisa de comum peloqual eles constituem uma totalidade homogênea, o conjunto das obrasde determinada arte não apresenta caracteres onde se revelaria umsistema. A arte é feita de criações singulares e a praxis criadora ésempre anárquica (op. cit.: 112).

E questiona que a harmonia constitua efetivamente uma gramática damúsica tonal e dê origem a uma “língua musical”:

Isso nos conduz à colocação de uma última questão: há, verdadeira-mente, um campo sonoro preexistente à obra? Há um campo lingüís-tico preexistente à fala: um em-si da língua que existe, como dizSaussure, na massa falante, e que o lingüista estuda aquém da fala ou,

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então, supondo uma fala anônima que não introduz nem singularidadenem mudança (graças a isso ele pode privilegiar a sincronia). Mas nãohá em-si do campo musical. A música não existe fora das obras musi-cais, e o músico é um homem que se instrui junto das obras, como opintor, conforme lembra Malraux, junto dos quadros (Idem: 120).

Segundo a perspectiva de Dufrenne, só poderíamos considerar a idéiade uma sintaxe na música, se tomarmos cada obra isoladamente, umavez que, para o autor “cada músico reinventa a música por sua própriaconta” (1998: 121).

Vejo nesses autores um problema bastante comum quando se tentacomparar música e linguagem verbal. A língua é tomada, sob a óticasaussureana, como um sistema fechado, abstrato, sujeito a regras fixas.Já a música, por outro lado, é tomada em sua realização concreta, comtodas as singularidades (e “deformações” do sistema”) que aí podem serencontradas. Ora, também a língua, quando tomada em funcionamen-to, está sujeita a todo o tipo de variações e idiossincrasias. A confusãoestabelece-se, então, porque tenta-se comparar níveis distintos nalíngua (o nível abstrato do sistema) e na música (o nível individual darealização concreta). Com efeito, não podemos abstrair da música suadimensão sonora, concreta, sem a qual ela efetivamente não existe.Nesse sentido, para que possamos estabelecer analogias frutíferas, pre-cisamos buscar também na língua sua dimensão concreta, analisá-laem seu funcionamento. Não me refiro aqui ao nível saussureano da“fala”, pois esta é tida por Saussure simplesmente como um ato indi-vidual, algo “acessório e mais ou menos acidental” (s/d: 22) em relaçãoà língua, esta sim essencial para os estudos lingüísticos. Quando faloem funcionamento, penso sobretudo no nível discursivo, instância dalinguagem sempre em movimento, onde as posições e as percepçõesdos locutores não são fixas, mas vão se constituindo ao longo doprocesso discursivo. Penso que se olharmos para a linguagem sob essaótica, as comparações com a música começarão a ser possíveis. Denada adiantará compararmos, como muitas vezes tem ocorrido, um sis-tema abstrato e inerte com algo vivo e pulsante. Só faremos encontrardiferenças e constatar apressadamente a impossibilidade de aproxi-mações entre esses dois universos simbólicos. Mas se, ao contrário,considerarmos o sistema lingüístico sincrônico como uma “ficção”(expressão bakhtiniana), que em nenhum momento está realmente emequilíbrio, e que as formas lingüísticas (assim como as musicais) tam-bém são sempre percebidas como signos mutáveis (Bakhtin, 2002: 15),então poderemos efetuar paralelos frutíferos.

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Um dos principais argumentos contrários a aproximações entre amúsica e a linguagem verbal seria a ausência, na primeira, de unidadessignificativas generalizantes. Benveniste (1989), por exemplo, tomandoa nota como unidade básica, tenta mostrar que a música não dispõe deunidades dessa natureza. Entretanto a nota, se quisermos fazer umparalelo estreito com a linguagem verbal, corresponderia ao fonema(Schaeffer, 1993; Molino, 1975). É, portanto, um traço distintivo (dealtura e duração) e não uma unidade significativa. Cada nota, isolada,não tem nenhum sentido, mas se trocarmos uma nota por outra,mudamos completamente o sentido do trecho onde ela está inserida.Por outro lado, se fizermos o recorte não na nota mas na célula musi-cal, veremos que esta, até certo ponto independentemente do contextomaior da obra completa, já apresenta várias significações dentro do sis-tema tonal: um impulso rítmico, um campo harmônico delimitado,uma direção melódica. Se essas significações (talvez melhor fossechamá-las “previsões significativas”) vão se manter ou não quandoinserirmos a célula num contexto maior é irrelevante. Também na lin-guagem verbal não podemos falar em significados absolutos eimutáveis, pois estes também estão vinculados ao contexto onde aspalavras estão inseridas (tanto no sentido interno do texto quanto emrelação a sua situação de produção). Na verdade, de acordo comBakhtin (2002), existem dois tipos de significado na língua: o tema, istoé, um sentido específico, definido não apenas pelas formas lingüísticas,mas por todo o contexto situacional, e a significação, ou seja, um sen-tido convencional, abstrato, idêntico a cada vez que é repetido. Háentretanto, uma diferença fundamental, é importante assinalar, entre asunidades significativas musicais e verbais. Enquanto a palavra, por maissentidos (temas) que possa ter, guarda uma certa unicidade, ou seja,mantém algo em comum em todas as significações possíveis (Bakhtin,2002: 106), nas formas significativas musicais não há nada que garan-ta uma unicidade em relação a todas as suas significações possíveis,sendo bastante comum, aliás, a mesma unidade, no mesmo sistema,adquirir sentidos completamente opostos, de acordo com o contexto. Apolissemia, nesse sentido, em música, não é apenas predominante, maso único modo de significância possível.

Outro argumento contrário a uma aproximação entre a arte (e a músi-ca, por extensão) e a linguagem verbal seria o fato de que, enquanto alíngua se submeteria a regras sintáticas rigorosas, nas obras artísticashaveria uma suposta liberdade sintática total. De acordo com Dufrenne(1998), a “arte autêntica” gera sua própria língua, enquanto que só os“artistas menores” obedecem a um código. Temos aí vários pontos a

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considerar. Em primeiro lugar, já vimos que em se tratando da línguaem funcionamento, ou seja, de suas enunciações concretas, essasubmissão total a regras fixas é bastante relativa, pois como aconteci-mento vivo, a língua, através de seus locutores, está em permanentereestruturação. Por outro lado a música, mesmo a “autêntica” de quefala Dufrenne (a qual, podemos inferir, se refere à música considerada“legítima” segundo os padrões da cultura ocidental moderna), por maisinovadora que seja, está sempre ligada de algum modo a um gêneromusical preexistente, nem que seja para negá-lo.

Para entender melhor essa questão, façamos novamente um paralelocom a língua, tomando os conceitos bakhtinianos de enunciado egênero discursivo. De acordo com Bakhtin (2000), a utilização dalíngua se dá em forma de enunciados concretos (orais ou escritos)proferidos por sujeitos concretos em situações específicas. Cadaenunciado, independente do seu conteúdo e volume têm característi-cas estruturais definidas e fronteiras bem delimitadas. Um enunciadotermina quando completa um sentido e provoca uma atitude responsi-va por parte do interlocutor (que não precisa ser necessariamente umaresposta fônica e nem imediata). Todo enunciado, desse modo, se ligaa um enunciado anterior (ao qual ele é de alguma forma uma resposta)e a um posterior (que também de algum modo lhe estará respondendo).Nenhum locutor, nesse sentido, é o primeiro “que rompe pela primeiravez o eterno silêncio de um mundo mudo” (p. 291), mas sua falapressupõe não somente a existência da língua, como de enunciadosanteriores. “Cada enunciado é um elo na cadeia muito complexa deoutros enunciados” (p. 291). Também segundo esse autor, “qualquerenunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cadaesfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveisde enunciados” (p. 279, grifos do autor), aos quais ele denominagêneros do discurso. Isso significa que os falantes de determinada lín-gua produzem enunciados não apenas segundo as regras sintáticas esemânticas da língua, mas também segundo os seus “gêneros discur-sivos”. Esses gêneros, tanto podem ser padronizados (cumprimentos,formulação de documentos oficiais etc.) quanto mais livres e criativos.Na verdade, para Bakhtin, a maior parte dos gêneros se presta ao queele chama de reestruturação criativa, o que não deve ser confundidocom a criação de um novo gênero. Ainda segundo esse autor, manifes-tamos melhor nossa individualidade nos gêneros discursivos que maisdominamos. É aí que podemos exercer nosso poder de “reestruturaçãocriativa” de modo mais original. Trazendo esses conceitos para ouniverso da música, podemos dizer que toda obra musical também é

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um elo numa cadeia de obras e, de algum modo, uma “resposta” aoque veio antes. Um compositor pode compor não apenas porque eledispõe de um sistema musical, mas principalmente porque ele dispõede outras músicas que foram compostas anteriormente e com as quaisele vai “dialogar”. Tomada isoladamente, também cada música éindividual, mas que sempre se liga a uma esfera musical coletivaespecífica (a um gênero). A maior parte das criações musicais (e artísti-cas, poderíamos estender) nada mais são do que reestruturações criati-vas de gêneros existentes e não criações no sentido de “invenções” pro-priamente ditas. A individualidade de um compositor geralmente sedesenvolve a partir do domínio de um gênero específico, o qual eletenta a todo o custo transcender. Não existe, considerando-se umsistema musical determinado, algo como a possibilidade de umacombinação completamente livre das unidades musicais, pois o com-positor está preso não somente à sintaxe do sistema como também aogênero ao qual se filia (afirmativa ou negativamente). A história damúsica ocidental erudita está repleta de exemplos que comprovam essateoria. Lembremos, por exemplo, que aquele que é até hoje considera-do um dois maiores gênios musicais de todos os tempos, J. S. Bach,praticamente uma unanimidade entre músicos dos mais variadosgêneros e estilos, tem seu valor creditado ao fato de ter levado às últi-mas conseqüências os procedimentos composicionais e o sistemamusical já usados há bastante tempo, e não por ter “inventado” umnovo sistema, por exemplo. E não apenas Bach não foi um músico “deinvenção”, como sua música polifônica era considerada completa-mente antiquada por seus contemporâneos (inclusive por seus filhos,todos músicos), sendo que sua genialidade só foi “descoberta” muitotempo depois de sua morte, já no início do período romântico(Carpeaux, 2001). Esse caso ilustra o fato de que na música (assimcomo na língua) o conceito de criação ou inovação, assim como osvalores atribuídos a eles são bastante relativos, de modo que não só os“artistas menores” se submetem a regras sintáticas, mas também muitosdos maiores porta-vozes da “arte autêntica”.

As colocações acima, é importante frisar, não pretendem de modoalgum excluir a possibilidade da existência da “invenção” musical, damúsica original, que não busca um diálogo com o que já existe, masaspira a um monologismo puro. Voltando à analogia com a língua,vemos que o próprio Bakhtin admite um tipo de linguagem – alinguagem poética – que busca o seu isolamento, que tenta libertar odiscurso das marcas dialógicas, privando-lhe de intermediações, fazen-do com que ele seja expressão direta do seu autor-criador (Tezza, 2003:

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270) . Entre essa “pura poesia” e a “pura prosa” (a fala cotidiana, essen-cialmente dialógica) existem, de acordo com Bakhtin, inúmerasgradações em relação ao “modo como o autor-criador lida com a dia-logicidade interna” (Tezza, 2003: 266). Nesse sentido, a diferença entreo estilo poético e o estilo prosaico seria mais quantitativa (em relaçãoa essa dialogicidade), visto serem as formas lingüísticas (gramaticais) asmesmas em ambos os casos. Na música temos uma situação bastantesemelhante. Entre a chamada “música de consumo” ou “música demassa” – que trabalha quase que exclusivamente com clichês musicais– até as vanguardas eruditas – que tentam não apenas criar novas sin-taxes, mas “inventar” seu próprio som, usando fontes sonoras total-mente inovadoras, por exemplo – temos uma série de gradações emrelação aos modos de apropriação de discursos musicais alheios. Nãohá duvida, contudo, que a música mais dialógica (aquela que de algummodo dialoga com o que já existe, se apropriando de sentidos musicaisconstituídos) é absolutamente predominante no universo musical, qual-quer que seja o gênero considerado (popular, erudito, folclórico, jaz-zístico etc.). Também não há dúvida de que mesmo a vanguarda maisoriginal não pode ser tomada como um “monologismo puro”, pois suasinovações, por mais radicais, o são sempre em relação a o que já existe.

Considerações finais

Em suma, face ao que foi visto, podemos retornar à questão inicial eafirmar sem medo a existência de uma sintaxe musical, a presença nasmúsicas de um sistema no qual unidades menores (células) vão secombinando, formando unidades maiores (frases, períodos etc.) econstituindo a obra como um todo. Como já foi dito, essas unidadestêm suas próprias características, distintas das unidades lingüísticas, ese organizam segundo as normas das “gramáticas musicais” (tonal,atonal, modal, serial etc.) bem como dos diversos gêneros existentes namúsica, de tal modo que pode-se falar em “línguas musicais”, que nadamais são do que abstrações inferidas a partir de um conjunto de obras.Aproximamo-nos, assim, de uma concepção efetiva da música comolinguagem, investigação esta que se completaria com uma análisetambém da dimensão semântico-musical, análise essa que deixo paraum outro momento.

Referências bibliográficas

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Parabolicamará: a construção de um objeto complexo

Wanderson Bersani

Faculdade de Música Carlos Gomes – FMCG

Peter Dietrich

Universidade de São Paulo – USP

”Parabolicamará” foi gravada no segundo semestre de 1991,época em que Gil cumpria seu mandato de vereador emSalvador. Podemos observar ainda hoje a contemporanei-

dade desta obra, uma vez que a globalização ainda é o tema que tomaconta do debate no início do século XXI.A integração cultural ecomercial e a interligação quase instantânea entre os mais distantespólos do planeta caminham lado a lado com a rotina de milhares decomunidades rudimentares espalhadas pelo globo, totalmenteexcluídas do avanço tecnológico.

Fundamentação teórica

Influenciado sobretudo pelas pesquisas de Saussure, Propp e Lévi-Strauss, Greimas lança as bases para uma teoria que considera a ger-ação do sentido em um plano mais profundo, anterior à manifestação– seja ela verbal, visual ou musical. Este procedimento abriu as portaspara pesquisadores que, posteriormente, desenvolveram a teoria emdireção a semióticas específicas. Para a análise desta canção, seguire-mos o modelo geral proposto por Luiz Tatit, conforme apresentado nasobras “Musicando a semiótica” e “O cancionista: composição decanções no Brasil”.

Estrutura verbal

Como ponto de partida para a análise do texto verbal da canção,podemos rapidamente destacar certos elementos semânticos: “desaveiro”, “de jangada”, “tempo que levava Rosa pra aprumar o balaio”,“tempo de um raio” – elementos estes associados ao conceito denatureza – e “de avião o tempo de uma saudade”, “onda luminosa” –elementos associados à cultura.

O modelo semiótico prevê um nível de organização de sentido articu-lado por uma categoria fundamental – no caso, natureza versus cultura.

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Os termos desta categoria são determinados como positivos ou eufóri-cos, e negativos ou disfóricos, conforme a relação do ser vivo quepercebe com os conteúdos percebidos. Porém, em “Parabolicamará”parece ter havido uma suspensão da determinação fórica: euforia e dis-foria não aparecem alinhadas nem com natureza nem com cultura.Percebe-se também, como em “pela onda luminosa (fibra ótica: cultura)leva o tempo de um raio (natureza), o mesmo tempo que Rosa levavapra aprumar o balaio”, indicativos de que o autor tenha trabalhado todoo texto sobre um termo complexo. Ou seja, ao invés de polarizar a ca-tegoria natureza versus cultura, valorizando positivamente um dos ter-mos, o autor investe na união entre os opostos. Esta união se faz ple-namente representada pela palavra “Parabolicamará”: vocábulo criadocom a palavra “parabólica” e o vocativo “camará” (usado comumentenas rodas de capoeira), realizando perfeitamente o sincretismo entrecultura e natureza.

Não há uma percepção de um percurso entre os termos, não havendopassagem do estado de natureza ao estado de cultura ou vice-versa.Não é possível perceber também a construção clara, num processonarrativo, dos estágios de manipulação, competência, performance esanção (previstos no modelo geral de análise), tornando-se inviável ainterpretação do texto dentro de uma narrativa linear. Podemos afirmarque esta é uma estratégia narrativa que opta por não hierarquizar valo-res. Se nas estruturas fundamentais não percebemos uma polarização,nas estruturas narrativas não poderemos ver um sujeito em buscaexclusivamente de valores de natureza ou de cultura.

Acima das estruturas fundamentais e narrativas, a semiótica prevê umterceiro patamar de significação, capaz de dar conta de elementos maisconcretos e complexos que os demais. Neste nível, denominado “níveldiscursivo”, podemos perceber as relações entre enunciação e enun-ciado, temas e figuras.

“Parabolicamará” instaura um discurso em 3ª pessoa, recurso utilizadopara a criação da ilusão de objetividade. Com esse recurso, o enunci-ador finge um distanciamento da enunciação, que passa a ser neutra-lizada e assume o papel de fazer nada mais do que comunicar os“fatos”. É a chamada “desembreagem enunciva”, onde a utilização deum espaço do “lá” (ao invés de “aqui”) acaba por determinar, ainda quesecundariamente, mais um traço de aspectualização que contribui paraa criação do efeito de realidade e de objetividade.

Antes de desenvolver a análise sobre o tempo, temos que estabelecer a

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diferença entre tempo como recurso da linguagem de estabelecerrelações cronológicas entre acontecimentos (articulando antes, durantee depois), e o tempo como um tema do discurso, ou seja, reflexõessobre o assunto “tempo”. “Parabolicamará” realiza uma interessanteoperação entre essas duas acepções.

Na expressão “Antes longe era distante, perto só quando dava”; “Dejangada leva uma eternidade, de saveiro leva uma encarnação, pelaonda luminosa, leva o tempo de um raio”; “De avião o tempo de umasaudade”, o autor alude claramente à questão das distâncias sendoencurtadas com a chegada da tecnologia. Como observador, o sujeitoda enunciação simplesmente relata os acontecimentos, a visão domundo “antes” do advento tecnológico e do mundo “agora”. Mais umavez, o autor opta por não polarizar a oposição: embora reconheça astransformações, ele nem exalta nem critica o avanço tecnológico. Maisque isso, ele ressalta a simultaneidade entre esses mundos, apoiado naexistência concomitante de mundos rurais e urbanos, o que apontaimediatamente para uma concomitância entre o “antes” e o “agora”.Embora reconheça a competência dos elementos tecnológicos emencurtar o tempo e espaço (avião e onda luminosa), ele também vê amesma competência nos elementos naturais (raio e rosa).

Uma outra abordagem da categoria temporal pode ser feita levando emconta o aspecto de duratividade e pontualidade. O autor prefere nãorelacionar diretamente o aspecto pontual e o durativo com os termos dacategoria fundamental natureza versus cultura. O tempo da naturezatanto é durativo (jangada = eternidade) quanto pontual (raio = balaio).O mesmo acontece com o tempo da cultura, que é durativo (avião =tempo da saudade) e pontual (onda luminosa = tempo do raio).

O discurso se organiza semanticamente com a reiteração de termoscorrelacionados. Este fenômeno recebe o nome de “isotopia”. É a par-tir das isotopias, ou seja, das recorrências, que podemos perceber ostemas tratados pelo discurso. Em “parabolicamará” podemos ressaltaras seguintes isotopias: isotopia rural: camará (gíria de roda decapoeira), berimbau, balaio, cabaça, jangada, saveiro; isotopia urbana:parabólica, avião, onda luminosa; isotopia do tempo: tempo de umraio, tempo nunca passa, tempo não tem rédea. Estas isotopias sealinham no tema do avanço tecnológico, da transformação, empassagens que trabalham a oposição entre antes e depois. Mas elastambém constroem o tema da imutabilidade, quando realinhadas sob oaspecto da concomitância. A falta de uma oposição semânticaclaramente associada com valores eufóricos e disfóricos resulta numa

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colocação sobre a questão tempo como uma questão problematizada,não como um tema estabelecido e resolvido.

Os percursos temáticos de “Parabolicamará” não são totalmenterecobertos por percursos figurativos (figuração esparsa), uma vez quenão chegam a constituir percursos figurativos completos. A coerênciasemântica do discurso é garantida pela recorrência temática.Dessaforma o texto em questão se aproxima muito ao texto científico e filosó-fico, tendo como contribuinte o tempo verbal presente numa “verdadeabsoluta”, enunciva – é um tempo presente: “isso é assim”.

Um dos princípios que regem a chamada Semiótica Tensiva (ClaudeZilberberg em seu ensaio “Essai sur les modalités tensives”, 1981) é aquestão da aceleração e desaceleração. Aplicando esta teoria em“Parabolicamará”, destacamos a “evolução tecnológica” (cultura) apre-sentada como aceleração. Esta evolução encurta tempo e encurtaespaço, e está associada ao aumento de velocidade: “de avião, o tempode uma saudade” ou “trás dos montes, den de casa (antena parabóli-ca)”. No entanto, estes valores de aceleração também estão presentesna natureza: “tempo de um raio” ou “tempo que levava Rosa pra apru-mar o balaio. Já ”saveiro” e “jangada” estão alinhados à natureza e sãorelacionados também com desaceleração.

Estrutura musical

A primeira parte das estrofes 1, 2,4, 5 e 7 será chamada de A. Todos ostrechos “Ê, volta do mundo…” ficam aqui representados por B. A letraC representará os parágrafos que se iniciam em “de jangada leva umaeternidade”.

Podemos verificar a recorrência de uma figura melódica em A, repre-sentando uma forte tematização, que é corroborada pelo gênero daCapoeira, com sua estaticidade harmônica e repetição dual de notas noinstrumento berimbau – repetição esta seguida pelos outros instrumen-tos, como a guitarra, o contrabaixo elétrico e a marcação linear da per-cussão. Esta figura melódica recorrente, que se inicia com um grandesalto ascendente, se degrada em pequenos saltos descendentes e sefinaliza numa alternância de duas notas, sendo que o último salto édescendente.Estes tonemas descendentes auxiliam para com o aspectoafirmativo de A, a exposição “do que é”, do “assim que as coisas são”.Outros indícios da tematização de A são o efeito de segmentação cria-do pela recorrência de ataques na forma de consoantes e a diminuiçãodo prolongamento das vogais terminativas.Este efeito repetitivo acaba

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por gerar desdobramentos secundários, como uma maior percepção doritmo.

Existe uma variação na última frase de A, onde o tonema agora se apre-senta no sentido ascendente, dando um caráter tensivo e interrogativoà frase, tendo como resposta a estrutura B, com seus tonemas descen-dentes afirmando novamente o “é assim do mundo”.Percebe-se em Bum amplo alongamento das vogais: “ê volta do mundo camará...”, fatoreste que atenua a recorrência dos ataques (ainda presentes em “voltado mundo camará...”) e acaba por diluir a percepção da tematizaçãodesta melodia. Porém, a maior ruptura se dá em C, onde o alongamen-to das vogais diminui a percepção do ritmo. Esta diluição do ritmo égerada tanto pela abertura melódica da voz como pelos timbres dosinstrumentos: o prato da bateria passa a ser atacado na cúpula, geran-do um som agudo e contínuo; o teclado conduz acordes numa regiãomais aguda e com aberturas maiores entre as notas de seus acordes; ea flauta executa notas longas, que se encurtam ao final das frasestrazendo dicotomias entre continuidade e descontinuidade. A passiona-lização de C gera um processo de desaceleração.

A última exposição de A apresenta o maior salto ascendente de toda acanção, gerando uma expansão da tessitura para 11 semitons e levan-do o último B para uma região mais aguda, que se repete até o final dacanção. Este final possui uma grande sobreposição de instrumentos etimbres, mesclando sons “orgânicos” a sons digitais e vozes de “sam-pler”. Estes instrumentos aos poucos vão saindo de cena, gerando umprocesso de decantação, onde somente restam o berimbau com seucaxixi e o timbre digital dos teclados. Trata-se aqui de um reflexo, agorano arranjo, da complexificação, entendida como uma união de termosopostos. Timbres “artesanais” (berimbau, caxixi) são mesclados comtimbres processados (guitarra distorcida, samplers). A união entrenatureza e cultura materializa-se no arranjo.

Embora neste trabalho não nos aprofundamos no estudo da harmonia,pode-se referir ao uso do estilo Modal na criação harmônica de A e B,contrastados com uma construção harmônica Tonal Maior no trecho C,colaborando fortemente com sua abertura e passionalização.

Conclusão

Percebemos tanto no plano verbal quanto no plano musical um con-stante investimento sobre o termo complexo das diversas oposiçõessemânticas apresentadas (natureza versus cultura, aceleração versus

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desaceleração, durativo versus pontual, antes versus hoje, timbres “na-turais” versus timbres artificiais). A suspensão da polarização no planoverbal foi amplamente confirmada no plano musical. A tematização(aceleração) e a passionalização (desaceleração) aparecem claramentena melodia em trechos em que o texto verbal enfatiza tanto elementosde natureza como de cultura. A junção de opostos não se restringe aoplano verbal, mas atinge todas as estruturas da canção. No plano musi-cal temos a apresentação concomitante do berimbau e da guitarra, dapercussão e dos teclados, da voz humana e da voz digitalizada.

A recorrência de um mesmo procedimento em diversas partes da letrae da música confere a “Parabolicamará” um extremo grau de coesão, oque contribui não só para sua inteligibilidade como também para suaeficácia. Resultado de uma minuciosa estratégia discursiva, tanto verbalcomo musical, ela supera a dicotomia entre avanço tecnológico epreservação de costumes com um amplo processo de complexificação.

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Conceito de ritmo em música e poema

Judson Gonçalves de Lima

Universidade Federal do Paraná – UFPR

Nosso objetivo neste artigo é discutir um pouco a relaçãoexistente entre ritmo em música e poesia. Essa preocu-pação nasce em função de um trabalho de pós-graduação

no qual pretendemos estudar o ritmo e a melodia nopoema lido e no poema musicado. Em função desse estudo precisamosdelimitar as fronteiras do que é chamado de ritmo e melodia em uma ena outra forma de produção. Queremos chegar à análise do que ocorrecom esses aspectos textuais quando eles são manifestados pelo canto epela fala (As considerações aqui tecidas são, portanto, referentes àcanção, e os exemplos pensados na canção brasileira).

Quando tentamos chegar a um consenso em relação a esses conceitosnão encontramos muitos problemas em relação à melodia, aceita como“o jogo de alturas entre as notas” , na definição de Bosi (2000), masextremamente ligada ao ritmo. O Dicionário Grove, verbete “Melodia”,sendo menos simplista que a definição anterior, diz que melodia é“uma série de notas musicais dispostas em sucessão, num determinadopadrão rítmico, para formar uma unidade identificável” (O grifo é nossoe mais à frente ser-nos-á útil).

Não surpreende que na definição de alguém dedicado à literatura,como é o caso da definição de Alfredo Bosi, não seja patente a pre-ocupação em definir a melodia como “jogo de alturas entre as notasdispostas com determinado rítmico”. O ritmo na melodia da palavra éo próprio ritmo da palavra, e ele necessariamente existe. Então, pormais que o ritmo da palavra “medida” possa ser diferente na pronunciade uma pessoa para outra, em uma situação como “Essa cova em queestás/ Com palmos medida” é bem provável que o ritmo da palavra“medida” seja muito parecido numa e noutra leitura. Na canção, noentanto, a mesma palavra pode aparecer em canções diferentes comcurvas melódico/rítmica muito distintas. Essa grande diferença não épossível na fala porque a tessitura utilizada na linguagem cotidiana,bem como o tempo de sustentação de determinada sílaba/nota, é muitopequena se comparada à música. Na música pode se usar algumasoitavas para a construção melódica e tempo indeterminado parasustentação da nota.

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Da mesma forma, quando a definição do dicionário diz que a melodiaé “uma série de notas musicais dispostas em sucessão, num determina-do padrão rítmico”, não carece dizer que elas são executadas emalturas que podem ser diferentes ou não, mas não ter altura é impos-sível. Mais importante destacar, no entanto, o “jogo de alturas” entre asnotas na poesia, porque a fala se utiliza de uma tessitura tão pequenaem relação à música, que existe o risco de desdenharem a melodia doverso, o que seria imperdoável.

A grande diferença melódica entre poesia e música é justamente essa.A melodia é a mesma coisa em uma e em outra, mas a utilização se dáde forma diferente. Na nossa música ocidental não há, em moldesescalares, intervalos melódicos menores que um semi-tom1, já na falaocorrem intervalos mínimos o tempo todo, intervalos menores que umsemi-tom variando por um ou dois tons dependendo da situaçãosemântica – alguém exprimindo surpresa, por exemplo, deve falar“Nossa!” com uma curva rítmico/melódica mais acentuada do que aoexpressar numa oração “Nossa Senhora Mãe da Misericórdia”.

Na questão rítmica é que residem alguns problemas. O conceito étumultuado dentro das próprias áreas de literatura e música.

Na literatura, há séculos, luta-se contra a redução do ritmo ao metro, oque na música poderia ser semelhante a reduzir o ritmo à fórmula decompasso. O que estamos inclinados a acreditar e tentaremos defenderaqui, é que ritmo tanto em música quanto em poesia são a mesmacoisa, assim como a melodia.

A despeito do metro, que se constrói sobre o número de sílabas ealguns acentos e cesuras pré-definidos, o ritmo no poema se constróisobre cada palavra, e cada ausência de palavra. E se materializa naleitura: se um poema é diferente do outro, temos ritmos diferentesmesmo que ambos tenham a mesma forma.

Do prisma rítmico, não há dois poemas iguais, ainda que moldadospela mesma fôrma: dois sonetos em decassílabos rimados segundo oesquema abab abab ced fef, por exemplo, assemelham-se na forma ouna estrutura de superfície, mas não no ritmo (...) Mesmo que se tratassede duas ou mais versões de um poema, o quadro não se alteraria: parafins do ritmo, cada versão corresponderia, aproximadamente, a umnovo poema. (Moisés, 1997: 100)

Ao passo que o ritmo é dado pela intensidade, duração, timbre,cesuras, pausas e rimas, o metro se refere à acentuação obrigatória2,cadência – que faz parte do que Massaud está chamando de “fôrma”

1 Há os“bends” quesão notasnão exis-tentes naescala tem-perada pro-duzidas peloestiramentodas cordas.

2 Além deMassaud eBosi hávários outrosautores quedestacamessa diferen-ciação. Porexemplo,Campos(1960).

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na citação acima. “O domínio do ritmo não é o da contagem. Liga-senão à escansão artificial mas à pronúncia real” (Tomachevski apudMedeiros, 2001: 135). O ritmo do poema é o ritmo da fala. Se umaleitura é diferente de outra, o ritmo se refaz.

Os teóricos dizem que o mesmo poema lido duas vezes terão doisritmos diferentes. Porque em cada leitura acentua-se diferentemente,realiza uma determinada duração em determinada sílaba que édiferente da leitura anterior, nunca conseguindo repetir exatamente oritmo do poema. A princípio não há nenhum problema nessa variação“inevitável”. Diz Jean Cohen:

“Os próprios foneticistas não estão de acordo quanto à maneira corre-ta de dizer um verso. De onde vem tal desacordo? A resposta é fácil.Nunca os poetas se preocuparam em anotar na “partitura” qualquerindicação. No tocante ao ritmo, sobretudo, teria sido fácil indicar comum signo o lugar dos acentos. Os poetas nunca o fizeram.” (Cohen,1974: 49).

Edgar Allan Poe poderia quase concordar com essa afirmativa. Apenasa ressalva de que em 100 leitores um faria “a” leitura rítmica correta deum poema. (Poe, 2004)

Uma questão: será que uma marcação de acentos orientaria correta-mente a leitura? As palavras já possuem acentos e, num verso, identi-ficá-los (mesmo não coincidam com todos os acentos de palavras) nãoé a tarefa mais difícil. E ainda assim, mesmo sabendo onde ficam osacentos, as leituras podem ser diferentes.

O Dicionário Grove de Música, verbete “Ritmo”, diz que o ritmo namúsica é o “grupamento de sons musicais, principalmente por meio deduração e ênfase”. Essa definição não parece apresentar problemas,mas depois o verbete segue dizendo do tempo: “[...] Na músicaocidental, o tempo é geralmente organizado para estabelecer umapulsação regular, e pela subdivisão dessa pulsação em gruposregulares” . A questão é que ritmo tem determinada liberdade dentro dotempo; ele se constrói dentro do tempo mas não o é, e nesse pontoalgumas definições se perdem, como se perdem os que confundemmetro e ritmo no verso. Por mais que a definição em sua primeira partealerte sobre a “ênfase”, não lhe dedica a atenção necessária. Ummesmo agrupamento de sons pode ter ritmo diferente de acordo com aacentuação que as notas recebam. É possível tocar uma mesma músicavariando o seu estilo – não é incomum no Brasil uma mesma cançãoser gravada em ritmo de samba e depois em forró, por exemplo;ademais, talvez nenhum exemplo seja melhor que o de João Gilberto

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que rearranjou para a bossa nova, sambas e sambas-canção, e às vezesrespeitando as mesmas figuras rítmicas tem-se ritmos diferentes.

O ritmo na música corresponderá ao modo como as notas são execu-tadas: duração, intensidade, se em tempo forte, médio ou fraco, nocontratempo, se é uma síncope, se é apojatura. Tudo isso vai definir oritmo musical. Se levarmos a discussão à cabo, chegaremos à con-clusão de que o ritmo na fala se dá da mesma forma. Assim, mesmo queno poema o ritmo se faça sobre a palavra e na música sobre as notas,seus elementos são os mesmos. E assim como o uso da melodia se fazdiferente em poesia e música ocorre o mesma com o ritmo.

Para usar uma palavra que chame a atenção, estamos crendo que o usode ritmo e melodia em música é “exagerado” em relação à poesia. Emmelhores palavras, podemos dizer que a utilização desses elementos sedá em maior escala na música: maior tessitura melódica e maiores pro-porções rítmicas.

Mas a utilização deve ser mais zelada também na música, já que esta,mais do que a poesia – embora isto seja necessário também no verso –,depende da recorrência e da repetição “para formar uma unidade iden-tificável” – como diz o Grove. Por isso criar um sistema de notaçãocapaz de indicar duração, intensidade e altura das notas a serem exe-cutadas. Mas não é verdade dizer que essa notação não ocorre noverso, porque a palavra é um sistema de notação de duração, intensi-dade e altura. É bem verdade que é um esquema mais fácil de burlardo que a notação musical, mas ele existe e junto com a situaçãosemântica, ajudado pela acentuação e pontuação, indica com relativaprecisão esses quesitos. Não é comum pronunciar a palavra “medida”acentuando-se a primeira ou a última sílaba, a menos que o leitor nãocompartilhe de conhecimentos de língua portuguesa. Ao ler “medida”,é bem provável que a sílaba “di” tenha maior duração bem como maioraltura melódica.

Concluindo, acreditamos que ritmo e melodia tenham um conceitoúnico, ao menos no campo da música e da poesia, o que não é sufi-ciente, no entanto, para concordar com E. A. Poe quando ele diz que overso “não pode ser melhor designado que como uma Música inferiorou menos capaz”2.

Segundo Luiz Tatit, o canto traz consigo, um determinado índice deoralidade, o que chama de “lastro entoativo”. Ou seja, há presença doritmo e da melodia da fala na linha rítmico/melódica da canção:“alguém cantando é sempre alguém dizendo”. (Tatit, 1995: 20)

2 O versopode explo-rar outrosaspectoscom maisproficiênciaque a músi-ca; e tam-bém, nãopodemosreduzir overso à músi-ca, comonão é possí-vel o con-trário (territmo emelodia nãoé tudo e nemé uma exclu-sividademusical, atéporqueambosnasceram amesmacoisa.LembrandoRousseau,“outrora,falar e cantareram amesmacoisa”).

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Preciso me encontrar: o intérprete como produtor de sentido

Andréa Picon

Faculdade de Música Carlos Gomes – FMCG

Peter Dietrich

Universidade de São Paulo – USP

Qualquer canção é um recorte das inúmeras possibilidades que alíngua e o sistema musical oferecem. Compor significaselecionar valores e direções, resultado final de um complexo

processo de triagem. No entanto, nenhuma composição – eisso é especialmente válido na música popular – é capaz de definirtodos os parâmetros envolvidos na produção de uma peça. Mesmodepois de “acabada”, qualquer composição deixa inúmeros elementospotencialmente abertos. É exatamente neste campo que arranjadores,instrumentistas e intérpretes podem atuar, e um novo processo de esco-lhas e seleções tem início. Este trabalho realiza a análise de três inter-pretações da canção “Preciso me encontrar”, de Antônio CandeiaFilho. Escolhemos as versões de Cartola (1976), Marisa Monte (1989) eNey Matogrosso (2003). Além das interpretações vocais individuais,levaremos em conta também a atuação do coro que finaliza a versãode Cartola.

Fundamentação teórica

Luiz Tatit descreve dois tipos de investimentos dentro do sistema dasemiótica da canção. O primeiro, resultado de um processo geral deaceleração, tem como foco principal o campo das durações. A reaçãonatural à rápida repetição do pulso em um andamento mais aceleradoé o surgimento de motivos rítmico-melódicos repetidos. A recorrênciadestes motivos ativa a memória, reduzindo o fluxo de informações, oque estabiliza o pulso rápido, evitando a sua dissolução. Esse processorecebe o nome de tematização. O segundo investimento é regido peladesaceleração, e tem como foco principal o campo das alturas. O pulsodesacelerado tem como principal conseqüência o aumento da duraçãodas notas, valorizando o contorno do perfil melódico e ampliando atessitura. Esse é um terreno propício para a proliferação de grandessaltos intervalares e o prolongamento das vogais – fenômeno querecebe o nome de passionalização.

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O pesquisador prevê também a possibilidade de infiltração de elemen-tos desestabilizadores, que se opõem ao investimento na estruturaçãomusical. Esse processo evidencia a fala que está por trás da voz quecanta, ou seja, promove um retorno à instabilidade do discurso oral:trata-se da figurativização. Evidentemente, esses procedimentos nãosão mutuamente exclusivos. Eles podem aparecer combinados emproporções diversas. Uma canção pode escolher a tematização comoprojeto entoativo principal e apresentar passionalização residual. Ouentão pode escolher um procedimento principal para a primeira partee outro para a segunda. A tematização e a passionalização podem serentendidos como projetos entoativos de concentração e extensão,respectivamente. No primeiro caso, surgem os mecanismos deinvolução (tematização e refrão) e evolução (desdobramento e segundaparte). No segundo, os movimentos conjuntos (graus imediatos egradação) e disjuntos (salto intervalar e transposição). Além de aplicar-se diretamente à análise das canções, a teoria se aplica também aqualquer melodia incidente fora do contexto canção.

Método

Para fazer a transcrição da melodia, utilizaremos o diagrama propostopor Luiz Tatit, onde cada linha corresponde a um deslocamento demeio tom. Desta maneira poderemos imediatamente perceber o perfilmelódico, assim como a tessitura da canção (o espaço entre a linhamais grave e a mais aguda) e a região em que se encontra cada trecho.Após a transcrição da melodia, faremos uma análise dos aspectosinvariantes das três versões, seguindo a orientação semiótica. Uma vezisolados os elementos fixos, poderemos comparar as diferentes atua-ções de cada interpretação e verificar quais são os efeitos de sentidodecorrentes.

Resultados

A - Figura 1

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A’ - Figura 2

B - Figura 3

B - Figura 4

Podemos notar a recorrência da linha melódica por toda acanção. Observamos nas duas primeiras frases(Figuras 1 e 2) uma alternância entre três notas e o mesmo desenhomelódico ascendente e descendente entre eles. É importante ressaltarque todas as frases desta melodia terminam com inflexões descen-dentes. No modelo de Tatit, a finalização da frase – o tonema – temuma importância especial, já que eles se reportam diretamente aocaráter afirmativo ou interrogativo da frase. A presença exclusiva detonemas descendentes confere à melodia de “Preciso me encontrar”um caráter fortemente asseverativo. Esse procedimento transmite à letraum forte teor de verdade, de certeza absoluta. O efeito de sentidoresultante é a instauração de um sujeito que não tem dúvidas sobre oaquilo que diz. Este é um fato inscrito na melodia, que independe dainterpretação.

Outro fator importante, observável na parte A, é o insistente repouso na

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nota Ré, que além de ser a tônica da canção é também sua nota maisgrave. O pequeno motivo de três notas está “atrelado” ao registro maisgrave, como se ele não tivesse força suficiente para “descolar”. Atuandodiretamente na percepção do que é dito pela letra, esta configuraçãopromove um efeito de sentido de imutabilidade e de impotência, comose o sujeito também não tivesse forças suficientes para realizartransformações.

Esta situação se modifica parcialmente na parte B. Apesar de manter omesmo perfil melódico, sempre com tonemas descendentes, ela estáem uma região mais aguda, até atingir o auge na frase “eu queronascer”. Após esse grande esforço de tensionamento, a frase decai atéa nota mais grave, como se toda a energia disponível já tivesse sidoconsumida pelo esforço anterior.

II - Interpretação

A primeira escolha que o intérprete faz (incluindo aqui também o papeldo arranjador) é a do andamento da canção. Observando as definiçõesde tematização e passionalização, podemos ver que a velocidade dopulso é um fator determinante (embora não seja o único). O andamen-to de cada interpretação pode ser observado na Tabela 1:

Tabela 1

Versão Andamento (BPM)

Cartola 78

Ney Matogrosso 65

Marisa Monte 56

Uma dedução pautada exclusivamente pela análise do pulso poderiachegar à conclusão de que a versão de Cartola tende mais à tematiza-ção, enquanto que a versão de Marisa Monte seleciona um projeto depassionalização. No entanto, este não é o único fator a ser levado emconta. É evidente que em um andamento desacelerado as notas tendema ficar mais longas, mas o intérprete tem sempre a liberdade demodificar as durações relativas das notas para criar determinadosefeitos de sentido.

Na versão de Marisa Monte, podemos perceber que a cantora preenchetodos os espaços disponíveis com o alongamento das vogais. É umainterpretação que expande, chamando a atenção para o perfil melódi-co e atenuando as marcações rítmicas. Esta é a clássica configuraçãode uma canção passionalizada. O resultado deste procedimento é uma

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intensificação dos elementos passionais relatados pela letra. Na cançãopassionalizada, o foco principal é a situação emocional do sujeito quenarra, ou seja, seu estado afetivo.

Cartola opta por uma outra estratégia entoativa. Ao contrário de MarisaMonte, ele não alonga as vogais. Não se trata de uma tematização, poisele também não prioriza os ataques consonantais, ou seja, sua inter-pretação não reforça a percepção do pulso. A extrema irregularidade desua entoação deixa a melodia no limite da inteligibilidade musical. Suainterpretação está muito mais próxima de uma fala do que de umcanto. Esse fenômeno é denominado figurativização. Com esseprocedimento, o intérprete focaliza o momento de enunciação. Comisso, ele alcança um alto grau de realismo (melhor seria dizer: “efeitode sentido de realidade”), pois podemos perceber, por trás daquele quecanta, alguém que fala.

No final da versão de Cartola, surge o coro cantando apenas a parte A.Apesar de ser uma inserção bem rápida, podemos perceber uma nítidadiferença na estratégia enunciativa. Aqui as notas são precisas, tanto emaltura quanto em duração. Os ataques são claros e marcados, e comisso há uma automática valorização do pulso. É uma interpretação quesegmenta e delimita os espaços. Trata-se de uma interpretação temati-zada. O foco agora não é mais nem o enunciador, nem tampouco seuestado afetivo. Com a tematização o foco desloca-se para a narrativa,ou seja, para a evolução dos acontecimentos e a transformação dosestados.

A interpretação de Ney Matogrosso oscila entre a passionalização e afigurativização, situando-se no meio do caminho entre Cartola e MarisaMonte. Em alguns pontos, ele chega a alternar estes procedimentosverso a verso, construindo uma peça balanceada. Justamente por isso,em nenhum momento podemos determinar qual o investimento pre-dominante. O efeito resultante é um foco dividido entre o efeito derealidade, da pessoa que fala, e entre o valor afetivo do que é dito.Podemos observar a disposição de cada interpretação no quadradosemiótico (figura 5):

Conclusão

A partir dos resulta-dos obtidos pudemosverificar a con-tribuição do intér-

Coro Marisa Monte

Ney Matogrosso

Cartola

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prete na construção do sentido da canção. A atuação do intérpreterecai sobretudo no tratamento rítmico dado à frase musical. A escolhado andamento e a valorização do pulso (acentuação ou atenuação)interferem diretamente na percepção global da melodia. Este trabalhotambém comprova o rendimento do modelo de Tatit para a análise dacanção, especialmente no tratamento de alturas e durações.

Referências bibliográficas

BARROS, D. L. (2002). Teoria do discurso.São Paulo: 3ª ed. Editora Humanitas.

———. (2003). Teoria semiótica do texto. São Paulo: 4ª ed., Editora Ática.

TATIT, L.A.M. (1998). Musicando a semiótica. São Paulo: Annablume.

———. (1996).O cancionista: composições de canções do Brasil. São Paulo:EdUSP.

O estatuto do timbre no modelo semiótico

Peter Dietrich

Universidade de São Paulo – USP

Desde a sua primeira publicação, em 1994, a semiótica dacanção não sofreu alterações significativas em sua estruturade base. O ponto que nos interessa em especial é a fronteira

que separa plano de expressão e conteúdo: quais são e como seorganizam os elementos em cada plano, e as relações entre ambos. Aafirmação que segue, extraída de um trabalho publicado recentemente,resume bem a solução de Tatit para a problemática a que estamos nosreferindo:

É suficiente, para nossa finalidade, atribuirmos à organização melódicaa função de elemento estruturador do plano da expressão e àorganização lingüística a incumbência de conformar o plano de

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conteúdo (Lopes & Tatit, 2003).

Esta é a premissa elementar da teoria: o verbal constitui o plano de con-teúdo, o melódico o de expressão, e a interação entre eles se dá porrelações semi-simbólicas, ou seja, relações entre categorias. Naaparente simplicidade desta descrição não cabe nenhuma crítica: aeconomia do modelo é perfeita para descrever satisfatoriamente amaioria das canções, fato comprovado em dezenas de análisesrealizadas por inúmeros pesquisadores nestes últimos dez anos.

O principal instrumento de análise melódica do modelo original é operfil da curva melódica: a predominância de saltos intervalares e oaumento das durações sugerem um regime desacelerado, regido pelaégide do /ser/, propício para sustentar as manifestações de tensões pas-sionais descritas pela letra. Por outro lado, uma melodia com notas cur-tas e poucos saltos representa um regime acelerado, regido pela égidedo /fazer/. Esses regimes são denominados passionalização e tematiza-ção, respectivamente. Contrapondo-se a esses recursos de estruturaçãomelódica, o modelo prevê também a possibilidade de remissões aoestado desorganizado da fala: a figurativização. A manifestação da fi-gurativização concentra-se no final de cada frase melódica: o tonema.Tonemas descendentes indicam asseveração, tonemas ascendentes esuspensivos indicam uma interrogação. Dentro do modelo, essas infor-mações são atribuídas exclusivamente ao plano de expressão.

A imensa maioria das análises que ultrapassa este procedimento básico“enriquece” o plano da expressão da canção com elementos deexpressão verbal: rimas, aliterações, etc… A análise da letra da cançãosegue o rumo de uma análise de poesia, e a análise musical continuaestritamente focada na melodia, ou para ser mais preciso, no perfilmelódico.

Objetivos

O objetivo principal deste trabalho é questionar a separação entre ver-bal (conteúdo) e musical (expressão) no modelo clássico, a partir deuma discussão do estatuto semiótico do timbre.

Contribuições

Na famosa peça instrumental “Duelo de Banjos” de Eric Weisberg, tri-lha sonora do filme Amargo Pesadelo, de 1972, temos – como sugere otítulo – dois instrumentos “duelando” entre si. Nossa análise tentaráanular por completo a informação verbal transmitida pelo título, e

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verificar se o conceito de “duelo” pode ser extraído exclusivamente dainformação musical.

Um primeiro fator capaz de sustentar o sentido de duelo é a apresen-tação das frases melódicas. Alternadamente, são apresentadas frasesritmicamente bem resolvidas e mal resolvidas. As frases ímpares sãoapresentadas com pulso regular e acentuação constante. As duraçõessão homogêneas. As expectativas das resoluções rítmicas são confir-madas. Nas frases pares, acontece o oposto. Embora sejam tocadas asmesmas notas (alturas), as durações não são homogêneas e asresoluções rítmicas não são confirmadas. Entre essas frases, podemosperceber a permanência de determinada informação (alturas) e adeterioração de outra (durações). A impressão auditiva é muito clara:estamos diante de um processo de comunicação, ou seja, a peçaconstrói uma cena sobre a transmissão de um /saber/.

Se esta tese se sustenta, temos também que admitir que estamos diantede dois actantes. De fato, se a primeira frase melódica é ritmicamenteperfeita, temos um sujeito competente, em conjunção com o /saber-fazer/. A segunda frase melódica, ritmicamente imperfeita, mostra umsujeito em disjunção (ao menos parcial) com o /saber-fazer/. É interes-sante notar que o material sonoro é aqui antropomorfizado, construin-do um plano narrativo – no caso, uma manipulação. Para a semióticagreimasiana, a aquisição do /saber/ faz parte de uma etapa do esquemanarrativo denominado “aquisição de competência”. Para poder tocar amelodia, o sujeito precisa estar em conjunção com o /saber-fazer/. Nodecorrer da música, esta performance recebe uma sanção positiva: asduas melodias se encontram, desembaraçadas, sem entraves rítmicos.

Um outro fator capaz de sustentar a tese do duelo é o timbre. Comovimos, a peça começa com a apresentação e repetição de frases sim-ples. No entanto, o timbre das frases pares é diferente do das frasesímpares. O primeiro instrumento é um violão de aço, e o segundo umbanjo. Todo instrumento de corda tem um leque de variações timbrísti-cas possíveis, reguladas pela maneira como as cordas são tocadas (compalheta ou com dedo, com ou sem unha) e pelo ponto de ataque (maisperto do cavalete, mais perto do braço). Essas variações podem serusadas por um mesmo intérprete em uma mesma peça, mas geralmenteacabam por constituir uma “assinatura pessoal”: é possível reconhecerum instrumentista apenas pelas características do timbre do seu toque.Ou seja, o timbre pode ser um elemento que produz o efeito de senti-do de identidade (ou parcialidade). Por outro lado, em determinadassituações musicais, o timbre pode ser usado para criar o efeito de sen-

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tido de homogeneidade, ou de totalidade. De qualquer forma, é impor-tante perceber que o timbre é um dos recursos que o enunciador dodiscurso musical possui para criar efeitos de sentido. No início de“Duelo de banjos”, é possível perceber que existem dois instrumentosdistintos. Mais que isso: foi produzido o efeito de sentido de doisinstrumentos distintos.

Essa música pode ser o ponto de partida para uma reflexão mais pro-funda sobre o conceito de timbre. O timbre, independentemente desuas características acústicas, é sempre o som de algum instrumento. Eum instrumento – uma vez reconhecido pelo seu timbre – passa a sernão só um som, mas uma figura do mundo. O som de um violino pres-supõe um violino tocando. E um violino é um instrumento que temtamanho, cor e forma. Mais que isso: tem história, e por isso mesmo,tem contexto. Sabemos que o violino é um instrumento de orquestra,assim como sabemos também que é um instrumento antigo. Um violi-no em uma escola de samba (como ocorreu no samba enredo da Beija-flor em homenagem a Bidu Sayão, em 1998) é algo absolutamenteinusitado e original (foi na época e ainda seria hoje) – o mesmo acon-teceria com um pandeiro numa orquestra. Neste ponto, o processo deconstrução do sentido musical aproxima-se muito do verbal.Aprendemos a associar o som da palavra “violino” com o conteúdoviolino (instrumento de orquestra, tocado com arco, feito de madeira,pequeno, etc…). A única diferença é que aqui não estamos maistratando do som da palavra violino, construída com vogais econsoantes, mas do som do instrumento violino, construído a partir dafricção entre arco e cordas.

Resumindo: o timbre é uma figura do mundo, é um marcador depresença, e – como vimos em “Duelo de banjos” – pode atuar nafunção de ator do discurso. Por todas essas funções, fica claro que onível discursivo é o lugar (ou pelo menos um dos lugares possíveis) parao timbre.

Devemos ressaltar que estamos definitivamente falando de plano deconteúdo. A presença do timbre no plano de expressão tem caracterís-ticas essencialmente diferentes. Na expressão, o timbre poderia opor acategoria de brilhante versus opaco, por exemplo, e contrair relaçõessemi-simbólicas com a letra – se for uma canção – ou com outros ele-mentos do plano de conteúdo musical. No plano de conteúdo, os tim-bres são identificados a partir de figuras do mundo (vozes, instrumen-tos, sons eletrônicos, etc…). Além disso, eles podem ser sérios oudescontraídos, frívolos ou austeros. Um timbre pode também ser

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dramático – ou simplesmente engraçado. Na canção Julia/Moreno, deCaetano Veloso, há uma flauta doce (timbre suave) acompanhando otrecho “Julia” e uma guitarra elétrica distorcida (timbre áspero) acom-panhando o trecho “Moreno”. Daí se extrai uma relação semi-simbóli-ca áspero versus suave e masculino versus feminino (Dietrich, 2003).Neste caso, ressaltamos uma característica do timbre presente no planode expressão. Poderíamos nos limitar ao discurso musical, e verificar arelação entre áspero versus suave e guitarra versus flauta, estes últimostomados aqui como atores do discurso musical, e figuras do mundo. Aguitarra é o instrumento símbolo do Rock, que por sua vez carrega va-lores de rebeldia e agressividade. A flauta é associada ao conceito depureza e leveza. Estaríamos então relacionando uma manifestação deexpressão do timbre com uma manifestação do conteúdo do timbre.

Outro elemento que parece contribuir para a caracterização deste “atormusical” é a intensidade. A intensidade é antes de tudo um marcadorda presença do sujeito. A oposição forte vs. fraco, no plano daexpressão, pode marcar a intensidade da presença desse ator no planodo conteúdo. Sons mais fortes (qualquer operador de mixagem sabedisso) parecem estar mais próximos. Em uma primeira análise, aintensidade opera uma categoria própria do nível discursivo: aproxi-mação vs. distanciamento. Ela pode também marcar a presença dedeterminadas passagens (ou determinados sujeitos) como átonos outônicos. O ouvido tende a atribuir maior importância a sons mais altos.Em um arranjo polifônico (com muitos atores, portanto) é muitocomum variar ao longo da peça o instrumento que toca mais alto. Écomo se o discurso “focalizasse” um ator diferente a cada momento –o correspondente desse efeito no teatro, por exemplo, é o foco de luzque pode passar de um ator a outro.

A intensidade pode também “deformar” o timbre do instrumento,podendo com ele compor uma imagem de agressividade – ou demansidão. São efeitos de sentido que estão atuando também no níveldiscursivo.

Conclusões

A semiótica greimasiana está hoje em franco desenvolvimento.Pesquisadores de vários países se empenham para proporcionar aomodelo novas ferramentas, capazes de descrever um número cada vezmaior de fenômenos. No Brasil, graças principalmente ao desenvolvi-mento das pesquisas de Luiz Tatit, podemos ver o surgimento de umimportante pólo de pesquisa em semiótica da canção. Isso faz com que

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o modelo original se mantenha em constante revisão e ampliação. Paraque o desenvolvimento da semiótica da canção aconteça sem osurgimento de incoerências e contradições internas, acreditamos sernecessário enriquecer o plano do conteúdo, atualmente formadoapenas pelo verbal, com elementos extraídos do discurso musical.Além de ampliar as ferramentas descritivas do modelo, esteprocedimento abre o caminho para a consolidação de uma semióticado discurso puramente musical.

Referências bibliográficas

BARROS, D. L. P. (2003) Teoria semiótica do texto. São Paulo: 4ª ed., EditoraÁtica.

DIETRICH, P. (2003) Araçá Azul: uma análise semiótica. Tese de mestrado(FFLCH-USP)

FIORIN , J. L. (2000) Elementos de análise do discurso. São Paulo: EditoraContexto.

LOPES, I. C.; TATIT, L. (2003) Ordem e desordem em fora da ordem. In: Teresa– Revista de Literatura Brasileira, vol. 4/5. São Paulo: Editora 34.

TATIT, L.A.M.(1996). O cancionista: composição de canções no Brasil. SãoPaulo: EdUSP.

———. (1998). Musicando a semiótica. São Paulo: Anablume.

———. (1994). Semiótica da canção – melodia e letra. São Paulo: Escuta.

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Aquisição de língua e aprendizagem de música:um paralelo possível?

Valentina Daldegan

“Seria interessante descobrir se existe algum outro domínio cognitivoalém da linguagem cuja teoria da aprendizagem seja idêntica ousimilar à da linguagem. Até hoje não foi feita sugestão alguma quefosse persuasiva, mas é concebível que tal domínio exista.”

Noam Chomsky (1975: 20).

Comparações entre linguagem e música existem há muito tempo.Jean-Jacques Rousseau, por exemplo, defendeu a idéia de que alíngua e a música de cada povo têm uma origem comum e

entrelaçada. Para Rousseau, tanto a música quanto a língua têmsua origem no canto, entendendo ele por “canto” a declamação entoa-da, a expressão vocal (le cri) da paixão do homem primitivo. Ele a dis-tingue da linguagem dos gestos, suficiente para a comunicação dasnecessidades: “As necessidades ditaram os primeiros gestos e aspaixões arrancaram as primeiras vozes” (Rousseau, 1781, apud Didier,1985: 156). Segundo ele, a separação entre música e língua deu-se como crescimento da complexidade das relações sociais, por um processode intelectualização:

“à medida em que as necessidades crescem, que os negócios se com-plicam, que as luzes se estendem, a língua muda de caráter; ela torna-se mais exata e menos apaixonada, ela substitui os sentimentos comidéias; ela já não fala mais ao coração, mas à razão.” (idem, ibidem)

É a música, então, que exprime a paixão. Esta gênese comum damúsica e da língua em Rousseau é menos histórica do que mítica: eleparte da observação da aquisição da língua na criança, igualando-a aoselvagem, ao homem primitivo.

A teoria lingüística tem como objeto de análise a linguagem,instrumento que dá forma aos atos, vontades, emoções, sentimentos eprojetos humanos. Segundo Coelho Netto (1983: 15), esta é a razão dateoria lingüística ser utilizada no estudo de outros campos gerados esustentados pela linguagem, inclusive o campo das artes. ParaFerdinand Saussure a lingüística tem caráter geral aplicável aos dife-rentes aspectos da atividade humana. Ao estudar os signos dentro davida social – estudo batizado por de Semiologia – se estudaria tambéma linguagem, que seria o gênero do qual a lingüística é a especie (apudCoelho Neto, 1983: 17) . Muitos são os domínios humanos abordados

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hoje do ponto de vista da linguagem ou da lingüística, utilizando-acomo corpo de métodos heurísticos e descritivos. Não são poucos osestudiosos que, tomando como base especialmente a teoria saussurianada lingüística estrutural, comparam as estruturas da música com as daslínguas naturais. (Seixo, s/d, passim) Estes estudos fogem ao escopodeste trabalho.

O objetivo aqui é propor uma averiguação sobre até que ponto sãopertinentes as afirmações sobre a identidade, mesmo que parcial, entreo aprendizado da língua e o da música.

Linguagem, música e cognição

Estudos que comparam o processamento cognitivo da linguagem e damúsica não são incomuns hoje em dia. Pelo estudo de caso de indiví-duos que sofrem de afasia – dificuldade de processamento da lin-guagem – ou amusia – dificuldade de processamento da música –, aneuropsicologia aponta na direção de que música e linguagem não sãofaculdades mentais completamente independentes e que ambas têmprocessamentos complexos, alguns deles sobrepostos, outros não. Porum lado, a comparação da percepção de contornos melódicos na músi-ca com a intonação na fala sugere o processamento semelhante deambas (Trehub, 2003; Patel et alii, 2005). Por outro lado, o processa-mento das relações das relações sintáticas (harmônicas) na música, porexemplo, não teria nenhuma associação com o processamento da sín-taxe na linguagem. Chega-se a esta conclusão ao comparar sujeitos quesofrem de afasia e percebem música normalmente e outros que têmamusia e processam a linguagem sem problemas. Já resultados da neu-roimagética parecem indicar que este processamento seria semelhante.Num experimento, músicos escutaram sentenças lingüísticas e seqüên-cias de acordes com níveis variados de incongruidade sintática (basea-dos em regras gramaticais da língua e princípios harmônicos tonais namúsica) e as imagens pesquisadas mostraram que o processamentosintático da música ativou áreas no cérebro ligadas à linguagem (Patel,2003; Patel & Peretz, 1997). A meu ver, o erro está em considerar namúsica um aspecto muito restrito: a harmonia tonal simplificada, querepresenta apenas um fragmento da tradição musical ocidental. Para oouvinte submetido ao teste, isto representa uma caso típico de músicaque, na concepção de Jos Kunst (apud Dottori, 2005), “colapsou emlinguagem”.

Já no campo do ensino musical, autores modernos têm elaboradoteorias sobre o aprendizado da música relacionando-o ao da línguamaterna.

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Aquisição lingüística

Antes de seguirmos adiante, cabe discorrer suscintamente aqui sobreaquisição linguística. O interesse por este fenômeno é muito antigo nahumanidade, mas foi apenas a partir do século passado que os estudossobre o assunto se tornaram mais sistemáticos, e foram criadas teoriaspara explicá-lo. Cada uma delas vê o fenômeno linguístico sob umcerto prisma e colabora de maneira diferente no sentido de esclarecê-lo. As quatro principais abordagens sobre a aquisição língua são:

– A teoria cognitiva de Jean Piaget, segundo a qual existe umacapacidade genérica de aprendizagem; a criança primeiro aprendeconceitos e depois adquire palavras para nomer tais conceitos. Asidéias mais simples são então expressas antes das mais complexasmesmo que sejam gramaticalmente mais complicadas.

– A teoria behaviorista, baseada nas idéias de Burrhus FredericSkinner populares nos anos 40 e 50, que prega que as criançasaprendem imitando e repetindo o que ouvem e que o reforço po-sitivo e a correção são de fundamental importância na aquisição.

– A teoria sócio-histórica de Len S. Vygotsky, que explica aaquisição linguística como um fato social, que vem da necessidadedo ser humano de comunicar-se e interagir com o mundo – a lin-guagem seria a principal forma de mediação entre o homem e omundo em que vive. Segundo Vygotsky, existe uma fase “pré-in-telectual da linguagem” – em que os sons que um bebê faz são umaforma de estravasamento de suas emoções e um meio de contatosocial – e uma fase “pré-linguística do pensamento” – que permiteà criança solucionar problemas práticos e de usar instrumentospara conseguir seus objetivos. Por volta dos dois anos de idade,essas duas condutas que vinham separadas se juntam para formaro “pensamento linguístico”, que passa a dominar as ações psi-cológicas humanas, passando o homem de “ser biológico a sócio-histórico.” (Oliveira, 1993)

– A teoria inatista, com a qual Noam Chomsky defende a idéia deque a faculdade lingüística funciona de acordo com as regras deuma “Gramática Universal”, que especificará as propriedades dosom, significado e organização estrutural das línguas. SegundoChomsky, a investigação destas regras poderia levar a alguma elu-cidação sobre as características específicas da inteligência humana,e portanto sobre a própria natureza humana, se é a capacidadecognitiva do homem a mais notável característica da espécie. Paraele, a aquisição da linguagem não pode ser explicada a partir daaplicação de capacidades de aprendizado genéricas, existindo nohomem uma “faculdade de aquisição da linguagem” (Language

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Aquisition Device: L.A.D.), que seria inata e seguiria mecanismospróprios. (Chomsky, 1975: 4ss.)

Não obstante as diferenças e divergências entre as teorias, alguns fatossão aceitos universalmente: a aquisição linguística é uma consequên-cia natural de sociedade humana, todas as crianças expostas a uma lín-gua a adquirem naturalmente sem esforços deliberados de ensino eaprendizagem, não importando diferenças individuais de inteligência.Universais também são os estágios da aquisição:

“Pré-fala” – Muito antes de tentar proferir as primeiras palavras, osbebês estão em contato com a língua que os cercam. Ouvem – eprestam atenção – os sons a entonação e o ritmo do discurso.Reconhecem a voz das pessoas com quem estão em contato eentendem o que se fala ao seu redor.

“Balbucio” – os bebês começam a proferir sons de fala, muitos dosquais não fazem parte de sua língua materna e serão descartadosmais tarde.

“Palavras soltas” – os bebês falam as primeiras palavras, que nor-malmente lembram o balbucio (mama, papa, baba). Começam anomear as coisas e muitas vezes as “palavras” são simplificadas”(“bo” para bola, por exemplo). O significado das palavras podem àsvezes não corresponder àquele dos adultos.

“Combinação de palavras” por volta de um ano e meio a dois anos,as crianças conseguem falar frases com vearias palavras. Muitasvezes, entretanto, sua gramática não é a mesma dos adultos – geral-mente elas tentam evitar irregularidades.

Por volta dos seis anos, as crianças já falam a sua língua materna comproficiência semelhante à de um adulto.

Aprendizado de música

Em meados dos anos quarenta, Shinichi Suzuki desenvolveu uma abor-dagem para o ensino de música baseada nestes estágios universais daaquisição linguística. Para Suzuki, o processo de aquisição da línguamaterna é a chave de qualquer aprendizado. De acordo com ele, qual-quer criança é capaz de desenvolver habilidades musicais a um nívelmuito elevado — assim como toda criança normal desenvolve acapacidade de falar — se o “Método da Língua Materna”, como elemesmo o denominou, for utilizado. Defendendo a idéia de que talentonão é um acaso do nascimento e que o indivíduo é fruto do meio emque vive, cada aspecto de seu método é, intuitivamente, relacionado aum aspecto do processo de aquisição da língua materna.

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Segundo Suzuki, quanto mais cedo, e o quanto mais música houver noambiente da criança, tanto melhor (para a aquisição, ela está envolvi-da constantemente com sua língua materna). Os primeiros sons noinstrumento, as primeiras melodias, deveriam estar internalizados antesda criança tentar tocar, isso se consegue através de muitas repetições(assim como as primeiras palavras na língua, como “mama”, que sãorepetidas inúmeras vezes antes que a criança consiga proferi-la). Devehaver constante motivação e incentivo por parte dos pais a cadapequeno passo e a cada obstáculo superado pela criança (durante aaquisição, cada ação da criança ao tentar falar é motivada com entusi-asmo pelos que a cercam). O progresso se daria pela prática diária (ascrianças normalmente não passam um dia sem falar, e assim a falatorna-se natural e fluente). A leitura não deveria ser ensinada antes dafluência no instrumento (assim como ninguém aprende a ler antes defalar).

O Método Suzuki tem méritos em muitos aspectos, mas sua falha épensar na aquisição da língua materna através da repetição – o quereflete o pensamento behaviorista, que teve seu auge durante a criaçãodo método.

Apesar de sua abordagem ser bastante diferente daquela de ShinichiSuzuki, Edwin Gordon também faz uma analogia entre a aprendizagemda música e da língua. Segundo ele, música e língua estruturam-se esão aprendidas semelhantemente:

“Considere-se linguagem, fala e pensamento. A linguagem é o resulta-do da necessidade de comunicar. A fala é o modo como nos comuni-camos. O pensamento é aquilo que foi comunicado. Música, interpre-tação e audiação (audiation) têm significados paralelos. A música é oresultado da necessidade de comunicar. A interpretação é como acomunicação acontece. Audiação é aquilo que é comunicado.”(Gordon, 1997: 6)

Gordon comenta que a aquisição da língua materna dá-se pela imersãodo bebê no ambiente em que ela é falada. A criança absorve o queouve, vocalizando sons por imitação até ser capaz de articular asprimeiras palavras e, em seguida, apreender o código da língua de suacultura. Gordon considera que infelizmente a experiência musicalsegue, em geral, um caminho diferente, pois as crianças não recebemorientação formal ou informal até sua entrada na escola, criando-lhesgrandes dificuldades. Na introdução ao livro Music Play, Gordon (etalii, 1998) ressaltam a importância dessa orientação a crianças peque-nas, pois segundo pesquisas recentes

“existem períodos críticos associados ao surgimento de conexões neu-

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rológicas e sinapses que ocorrem antes do nascimento e durante aprimeira infância. (…) A Natureza proporciona à criança uma super-abundância de células para estabelecer estas ligações, quer antes donascimento quer em alturas cruciais após o nascimento. Se estas célu-las não forem usadas para este objetivo durante esses períodos cru-ciais, acabam por se perder e nunca mais podem ser recuperadas.”Sendo assim, se uma criança muito pequena não tiver a oportunidadede desenvolver um vocabulário de audição musical, as células queteriam sido usadas para estabelecer esse sentido auditivo serão dire-cionadas para um outro. Nenhuma medida de educação compen-satória posterior poderá eliminar na totalidade essa deficiência.”

Este “vocabulário musical” seria desenvolvido através da internalizaçãode padrões (“patterns”) rítmicos e tonais que formam a base da teoriade aprendizagem musical (Music Learning Theory) de Gordon. Segundoele, assim como o morfema é a unidade básica de significado dalinguagem, os padrões — rítmicos e tonais — são as unidades básicasde significado na música. São as palavras, não fonemas isolados, quetornam possível nossa compreensão da linguagem e assim quanto maispalavras temos em nossos vocabulários ativo e passivo, tanto melhorsomos capazes de pensar sobre aquilo que nos é dito e de formarconclusões próprias. Da mesma maneira, pessoas com vocabuláriosmusicais limitados têm a capacidade de imitar a música, mas não de“audiá-la” (audiate). (Gordon, 1997: 113)

É importante frisar, entretanto, que, apesar de enfatizar o paralelismoentre música e linguagem, Gordon também reforça em seus textos asdiferenças entre elas:

“Não obstante as analogias que tenho feito entre linguagem e música,deve-se ficar entendido que música não é uma linguagem. Música nãotem palavras ou gramática. Ao contrário, ela tem apenas sintaxe, queé o arranjo ordenado dos sons. É interessante especular, entretanto, sea linguagem poderia na verdade ser uma forma de música.” (Gordon,1997: 6)

Assim como Suzuki, ao dar demasiado valor à repetição, Gordon pecaao enfatizar incansavelmente o desenvolvimento de “patterns”. Amúsica consegue ter significado mesmo quando se livra dos “patterns”rítmicos e tonais; e é justamente quando ela foge disso e deixa de serprevisível que ganha mais expressividade.

Considerações finais

Até hoje ninguém foi capaz de explicar como, exatamente, as criançasadquirem sua língua materna. Assim como não existe uma teoria defi-

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nitiva sobre aquisição de língua, as teorias de aprendizagem musicaltambém têm um longo caminho à sua frente. Por isto, as hipóteses com-parativas entre processamento cognitivo musical e lingüístico repousamem fundações pouco firmes. De qualquer modo, abordagens como asde Suzuki e de Gordon, dentro de suas limitações, têm sido ampla-mente utilizadas e com sucesso. A existência de um L.A.D. não é com-provada, e não penso que devêssemos ir em busca de um M.A.D., poisa evolução não parece ter-nos dotado de mecanismos específicos paraa música. Mesmo assim, acredito que os estudos de nossa capacidadecognitiva de aquisição lingüística podem ainda vir a colaborar muito nocampo da aprendizagem musical e quem sabe um dia possamos pen-sar em “aquisição musical”.

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4. Tecnologia, Artes Musicais, e a Mente

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Do “quanto” ao “quando”:novos estudos sobre cognição do ritmo e a experiência

de um seqüenciador posicional

Darcy Alcantara Neto

Universidade Federal do Espírito Santo

No artigo “The Comeback of systematic Musicology: newEmpiricism and the Cognitive Revolution”, HenkjanHoning (2004) considera uma mudança na visão sobre

a música, nas duas últimas décadas: de arte (ou objetoartístico), a música passa a ser vista como processo, em que desem-penham papéis centrais o intérprete, o ouvinte e a própria música,enquanto som. Essa mudança de foco é especialmente visível nocampo da musicologia sistemática, em que se deu

“a complete reorientation of the discipline to fundamental questionswhich are non-historical in nature, [encompassing] research into thenature and properties of music as an acoustical, psychological andcognitive phenomenon”1. (…) While twenty years ago, music washardly mentioned in any handbook of psychology (or appeared only ina subsection on pitch or rhythm perception), it is now recognized,along with vision and language, as an important and informativedomain in which to study a variety of aspects of cognition, includingexpectation, emotion, perception and memory. (Honing, 2004).

Robert Gjerdingen (2002), adverte para uma diferença fundamental notratamento do objeto entre a teoria e a cognição musical: “Music theo-ry traditionally looks at music as something written. Music cognitionlooks at music as something heard” (apud Honing, 2004). Na tese“Musicalidade métrico-tonal: condições primeiras para a comunicaçãoverbal sobre a música”, Moraes (2003) alerta para a inadequação dateoria musical convencional a seu objeto, em situação análoga àdescrita por Ferdinand de Saussure, que, no início do século XX, feznotar que a ciência lingüística tomava indevidamente como objeto deestudo a representação escrita da língua, e não a língua em si: confun-dia “mapa” e “território” (Saussure, 1916). Também a teoria musicaltradicionalmente se constituiu numa descrição da escrita musical, àmaneira de uma cartilha, confundindo o objeto (a música) com a suarepresentação (a notação musical) (Moraes, 1991). Nicholas Cook(1990), também refletindo sobre essa inadequação entre teoria e práti-ca, afirma que “music is full of things which even trained musicians find

1 V. Duckles& J. Pasler,‘HistoricalandSystematicMusicology’,p. 491, apudHoning(2004).

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hard or impossible to hear in terms of their structural organization”.Cook também adverte para o fato de que pessoas musicalmenteletradas, ainda que possam acompanhar uma peça em termos técnicos,não o fazem quando a ouvem naturalmente, isto é, por prazer.

And one might conclude from all this that the conventional theory ofmusic in which sonatas forms, tonal structures and thematic relation-ships play so large a part is no more than a theory of unheard forms,imaginary structures, and fictitious relationships.

A teoria musical, ao se ater tradicionalmente a descrever estruturas nemsempre percebidas, entretanto, não o faz somente nos níveis superioresde percepção (no plano dos esquemas tonais da forma-sonata, porexemplo), mas também nos níveis mais fundamentais, precisamente nonúcleo axiomático constituído pelos quatro parâmetros do som, comoafirma Moraes (1991), em “Por uma teoria do ritmo: o caso da metáfo-ra musical em lingüística”. Debruçando-se sobre a necessidade de uma“teoria do ritmo”, Moraes identifica que algumas ciências, como aLingüística, quando necessitam de formulações teóricas sobre ritmo,recorrem curiosamente à teoria musical – a “metáfora musical”.

Dentre as muitas falas de lingüistas e musicólogos, coletadas porMoraes (2003), as seguintes afirmações embora datadas da década de70, ainda são amplamente reveladoras – dão-nos a idéia do que sepodia esperar dessa incursão à teoria musical tradicional, que, tradi-cionalmente, “works with impressionistic, non formalizing methods”(Lidblom & Sundberg, 1976). E ainda a confissão de Hackman (1975):“It took far too long for me to realize that the methods of music analy-sis had to bear at least a superficial resemblance to other methods ofscholarly and scientific inquiry”.

Uma das formas que a teoria musical galgou status científico mais con-sistente, a partir da década de 70, e se converteu em um “more diverse,more interdisciplinary, and less balkanized field the world over than itwas in the 1970” (Grove, 2000), esteve seguramente garantida no inter-câmbio com outros campos do conhecimento, entre eles, a lingüísticae a psicologia cognitiva. Entretanto, o diálogo interdisciplinar estabele-cido fez com que a “metáfora musical” estivesse presente também nocampo da cognição musical, influenciando de maneira não-intencionala elaboração de modelos de percepção, desde a construção dos estí-mulos (nos trabalhos empíricos) à análise dos resultados, portando-secomo axiomas da percepção, ao invés de explicitarem sua condição deparadigmas advindos da notação, e subjacente aos manuaiselementares de teoria musical. Mais à frente, explicitaremos como os

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conceitos notacionais têm influenciado os estudos de cognição doritmo, em geral. Antes, porém, empreenderemos uma visita concisa atextos recentes, focando alguns dos aspectos do atual estado-da-arte dacognição de ritmo.

Cognição e ritmo

“The study of time in music (in the form of its durational parameters,rhythm and metre) has received only modest attention from the Westerntheory of music, as compared with the study of pitch issues (in the formof melody and harmony”, como afirmado em “Just in time: towards atheory of rhythm and metre” (Lopes, 2003). O maior número de estudossobre temporalidade e ritmo de que dispomos hoje de característicasfortemente interdisciplinares, envolvendo cognição, semiótica, lingüís-tica e filosofia procuram restabelecer ao ritmo um caráter fundamental,anterior às alturas. Moraes (1991), encontra a fala de Cooper & Meyer(1960), que, citado por Martin (1972), afirmam que

Every musician, whether composer, performer, or theorist, will agreethat ‘In the beginning was rhythm’. (…) For the shaping power ofrhythm and, more broadly speaking, of the temporal organization ofmusic is a sine qua non of the art (…) To study rhythm is to study all ofmusic.

Para Lopes, “a música relaciona vibrações físicas (i.e. propriedadesmensuráveis do som) com algum tipo de forma humana. The specialfeature of that human form is the creation of a temporal order withoutwhich sound could not be raised to the level of music” (Lopes, 2003).Susanne Langer, em “Sentimento e Forma” (1953, apud Moraes, 2003),também alertava para o fato de que:

quase no mesmo momento em que nos propomos pensar em termosestritos sobre o fenômeno chamado “música”, apresenta-se a física dosom como o fundamento natural de qualquer teoria” (Langer,1953:113), apesar de que, continua a autora, “… o som, e mesmo otom, como tal não é música”. (Moraes, 2003).

A necessidade dessa “ordem temporal”, sem a qual o som não se tornamúsica, é presente em textos de vários autores, em especial a partir dasúltimas três décadas, quando observamos um crescente interesse noestudo de ritmo e temporalidade, não apenas no domínio musical, masna lingüística, psicologia, neurociência e nas ciências exatas (Moraes,1991). Curiosamente, é também na década de 70, a partir dapublicação de Fundações Biológicas da Linguagem (1967), por ErickLenneberg, que

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talvez, pela primeira vez, tornou-se amplamente reconhecido quedomínios do conhecimento exibiam suas próprias regras e princípios,e que estes podiam ser atribuídos, em alguns detalhes concretos, aestruturas e mecanismos do cérebro (...), às surpreendentes especifici-dades das funções cerebrais e às localizações corticais particulares,nas quais elas eram executadas. (...) O trabalho de pesquisadorescomo Chomsky, Lenneberg ou Geschwind (...) salientaram as con-strições sob as quais o desenvolvimento opera. (Gardner,1991)

Gardner, então, enumera uma série de situações que exemplificam tais“constrições” ou “cerceamentos” em nosso desenvolvimento cognitivo,ressaltando a grande importância epistemológica e psicológica do fatode que “crianças, também, dividem ou ‘analisam’ contínuos sensoriaisde nível mais alto de maneira muito semelhante à dos adultos”. Nocaso da cor, elas reconhecem a existência de cores focais, bem comoos chipanzés, o que “assegura o argumento de que tais inclinações per-ceptivas são construídas na neurofisiologia do sistema visual”. Noâmbito lingüístico, Gardner também apresenta “uma analogia reve-ladora para o contínuo cromático”, na leve diferença de tempo deemissão da voz de um /p/ e do /b/, lembrando que

[d]esde o começo, as crianças, como os adultos, tratam todos os /b/scomo /b/s, e todos os /p/s como /p/s, com a percepção categóricasobrepujando a detecção de diferenças puramente físicas no tempo deemissão da voz (...) O fato de que crianças de comunidades de falalargamente diferentes analisam o continuum semelhantemente nosprimeiros meses de vida fornece evidência ainda mais decisiva de quea natureza cerceou a percepção de estímulos lingüísticos auditivos.(Gardner,1991)

Para Gardner, “a noção behaviorista de que os seres humanos podemaprender – ou esquecer – qualquer coisa parece tão ingênuo como acrença computacional inicial de que todas as resoluções de problemassão uma só coisa”. A constatação de que há estruturas mentais que,simultaneamente, limitam nossa capacidade de perceber o tempo, e aomesmo tempo nos permitem lidar com eventos rítmicos, memorizá-lose repeti-los, segundo cerceamentos impostos pela natureza e biologia,levanta a questão sobre quais são os cerceamentos impostos à per-cepção de ritmo. Sakai et alii, 1999 dá-nos uma definição de ritmo quese desdobrará até o final de nosso estudo:

Rhythm is a flow of time, a series of time intervals marked off by theonsets of sensory or motor events, such as tones, flashes of lights, andsteps in dances. Thus, rhythm is a supramodal entity that is determinedsolely by time information. The fact that we can recognize, discrimi-nate and reproduce a large number of rhythms suggests that individual

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rhythms can be internally represented, but its neural mechanism hasnot been well understood. [g.n.]

Sakai et alii (1999), partindo do estudo de Essens & Povel (1985), quepropõe dois tipos de representação mental para ritmo, dependendo dosintervalos de tempo – representação métrica e não-métrica, para ritmosformados com razões de intervalos de tempo inteiras (e pequenas) enão-inteiras, respectivamente –investiga se essas tais diferentes repre-sentações ativam igualmente diferentes áreas do sistema nervoso. Arepresentação métrica consiste em “mapear um ritmo em uma estrutu-ra temporal de referência, chamada de relógio interno, através do qualas séries de intervalos temporais são metricamente relacionadas umascom as outras”. É o caso dos ritmos formados com proporções simples.Em síntese, Sakai et alii concluem que

there are two modes of neural representation for rhythm. Their selec-tion depends on the interval ratios of the rhythm or, more precisely, onthe strategy used for encoding the rhythmn, metrical or nonmetrical.Nonmetrical strategy may require explicit processing for the individualtime intervals, whereas metrical strategy may operate automatically,and possibly implicitly, to allow hierarchical encoding of the wholerhythm. In this regard, the right and left hemispheric dissociationobserved in the nonmetrical and metrical rhythm processing may beclosely related to the finding of Hazeltine et alii (1997), who showed asimiliar hemispheric dissociation between explicit and implicit motorsequence learning.

Os dois padrões de ativação cerebral encontrados no estudo de Sakaiet alii, no entanto, correspondiam, não à razão dos ritmos apresenta-dos, mas, em maior parte, à razão dos ritmos que foram produzidospelos sujeitos, quando lhes era pedido que repetissem o que tinhamouvido, “sugerindo que as ativações observadas refletiram a represen-tação interna do ritmo”. Os dados da ressonância magnética indicaramtambém que os padrões de ativação para os ritmos 1:2:4 e 1:2:3 forammuito parecidos, mas completamente diferentes daqueles observadosno ritmo 1:2.5:3.5. Em relação à localização dos hemisférios, houveuma predominância da representação métrica associada ao hemisférioesquerdo, enquanto a não-métrica ao hemisfério direito, o que está deacordo com estudos anteriores que mostram que deficiências rítmicaseram encontradas após lesões no hemisfério esquerdo. Uma outra con-clusão importante de Sakai et alii é que “embora nós tivéssemos usadoestímulos auditivos para apresentar os ritmos, os lobos temporais nãomostraram ativação significativa; apenas uma pequena porção no ladodireito estava ativa para o ritmo 1:2.5:3.5”. Conclui, assim, que

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The frontaparietal network active in the present study would, thus,reflect the supramodal mechanism for rhythm processing, as suggestedby Mavlov (1980). Indeed, it was shown that the ability in rhythm pro-cessing was preserved, even after the lesions in the temporal lobe(Peretz and Kolinsky, 1993; Peretz, 1996). [g.n.]

Em consonância com o estudo, Guttman et alii (2005) no artigo desugestivo título “Hearing What the Eyes See: Auditory Encoding ofVisual Temporal Sequences” relatam os resultados de experimentos emque ritmos veiculados através de impulsos visuais são codificados etransformados em representação mental auditiva, de forma automática,obrigatória e sem esforço. Baseado na “modality-appropriatenesshypothesis” (Welch,1999, e Welch & Warren, 1980), “perception givesprecedence to the ‘best’ sensory modality for the task at hand: vision forspatial judgements and audition for temporal judgments. Intersensoryconflicts are resolved through subjugation of the less reliable sense – asreliable by auditory driving – and possibly even through sensoryrecalibration”.

A referência auditiva para estímulos visuais não é algo inteiramentenovo. Conhecemos a fala subvocalizada quando se lê um texto. Noentanto, os experimentos manifestam um “markedly different flavor”:“It arouse automatically, unintentionally, and without learning orpractice”. Em um dos experimentos, a presença proposital de “incon-gruent auditory information substantially impeded rhythm memory,even though this information was irrelevant to the visual task”. Osobservadores foram incapazes de ignorar os sons e se concentrarexclusivamente nas seqüências visuais.

O estudo também supõe a existência de um módulo perceptual paraprocessar tempo, que facilitaria a construção de uma estrutura tempo-ral única a partir de múltiplas modalidades sensoriais, com diferentespesos para cada um dos sentidos, na entrada de informação, como su-gerido pela “modality-appropriateness hypothesis” (Welch, 1999;Welch & Warren, 1980). Conseqüentemente,

given the effectiveness with which auditory information reflects time,the representations arising from such a module could well engender anauditory (rather than amodal) character, resulting in the experience of‘hearing’ visual temporal structure. [g.n.]

Outra idéia importante é a compreensão de que nossa percepção musi-cal, assim como a visão e a linguagem verbal, em alguns aspectos,opera discretizando o contínuo físico. David Temperley, em “TheCognition of Basic Musical Structures” (2001), ressalta que “the per-

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ception of rhythm is, in an important sense, categorical: we understandnotes as being in one rhythmic category or another, rather than merelyperceiving them as continually varying”. Temperley (2001) afirma clara-mente que “duration patterns are not usually performed with perfectprecision, nor do they need to be in order to be recognized and under-stood”.

A importância do metro: da duração à posição

Nos textos selecionados, observamos uma crescente importânciaatribuída ao metro. Sakai et alii afirmam enfaticamente que

[i]nterestingly, some subjects unintentionally transformed the 1:2.5:3.5rhythm into 1:2:4 rhythm, which was consistent with the finding ofEssens (1986). It has also been shown that voluntary motor behaviorstended to fall into a time sequence related with 1:2 ratios (Essens andPovel, 1985; Fulop et alii, 1992). Together, the results suggest that arhythm is represented, by default, in a metrical form rather than a non-metrical form. [g.n.]

David Temperley (2001), afirma que “at the very least, listeners infersome kind of structure of regular beats from music, which allows themto synchronize their movements with it”, por exemplo, batendo os pésna pulsação. No entanto, para Temperley, “the importance of metergoes far beyond this; meter plays an essential role in our perceptualorganization of music”. [g.n.] Temperley exemplifica citandoexperimentos em que mudar o contexto métrico de uma melodia,apresentando-a com um outro acompanhamento, a faz soar totalmentediferente (Povel & Essens, 1985), assim como colocar as barras decompasso em lugares diferentes de uma mesma música ocasiona osintérpretes a considerarem-nas como duas peças diferentes, “not evenrecognizing the similarity between them” (Sloboda, 1985). Esses expe-rimentos sugerem, também enfaticamente, que “the metrical context ofa musical passage greatly influences our mental representation of it.”(Temperley, 2001).

Em Temperley (2001) e Sakai et alii (1991), a inferência da estruturamétrica se dá a partir das proporções de tempo. As durações são con-sideradas como o dado em si, sobre o qual se elaboram as represen-tações métricas. A mesma música, com barras de compasso em lugaresdiferentes, é percebida como músicas diferentes, mas sua essência –aquela que atende ao axioma duracional da teoria musical – se man-tém: daí a surpresa em ver que é a mesma música, contrariando a intui-ção – ou a cognição musical. No entanto, não nos enganamos em dizer

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que as músicas são, de fato, diferentes. O que há de comum entre asmelodias são as durações, que servem de base para a elaboração dosestímulos experimentais, mas elas já não representam para nós a cate-goria perceptiva fundamental que buscamos, com base na qual dis-cretizamos o contínuo.

De fato, o que devemos procurar é uma inversão: uma supremacia docognitivo-métrico em relação ao físico-duracional. Moraes (2003) eMoraes (1991) constata a negação da duração enquanto categoria per-ceptiva, resultado daquela inadequada transposição dos parâmetrosfísico-acústicos do som para o núcleo axiomático dos “parâmetros damúsica”. Citando Bachelard (1933), “que mostra “grande ‘independên-cia de espírito’ – em relação a uma poderosa musicoteoria”, Moraesutiliza a frase do autor de A Dialética da Duração para corroborar aidéia de que:

Para durarmos é preciso então que confiemos em ritmos, ou seja, emsistemas de instantes (...) [A] ‘duração de uma nota não é, em música,um desses elementos puros, nitidamente primitivos, como fariam creros professores de solfejo” [grifo de Moraes]

Em contraste, juntamente com Moraes (1991 e 2003), adotamos ummodelo perceptual que não considera proporções temporais lineares,mas outra categoria sígnica, denominada “quanDidade” (d/t): a infor-mação rítmica que “sentimos” é a localização do “ponto” em que seinicia um dado evento sonoro (ataque), situado em um complexo pul-sativo hierárquico, sobre o qual “calculamos”, a posteriori, as medidasde tempo, se desejamos escrever. Curiosamente, nos textos analisados(por exemplo Sakai et alli e Temperley), podemos encontrar asexpressões “points in time”, “beat” e “onsets”, em significativosmomentos de definições do que é ritmo.

A experiência do Seqüenciador Posicional

Nos últimos anos, tivemos a oportunidade de experimentar, em circun-stâncias educacionais diversas, o modelo de percepção para ritmodesenvolvido em Moraes (1991) e (2003). A partir das diretrizes elabo-radas em Moraes (1994, 1996), construímos um protótipo de um“Seqüenciador Posicional”. O software permite lidar com as categoriasfundamentais do ritmo, minimizando os cálculos matemáticos – extra-musicais – presentes na escrita duracional. Exemplificando: na escritatradicional, o usuário que deseja “situar” um som na segunda semi-colcheia do quarto tempo de c , deve contar três tempos (pausas), adi-cionar ¼ da unidade de tempo, selecionar as figuras adequadas segun-

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do a u.t. para, sabendo já “onde” estaria a próxima batida, escrever um“valor” que preencha a “quantidade” de tempo necessária. No softwareposicional, seleciona-se a quadrícula do 4º tempo, escolhe-se o símbo-lo correspondente ao terceiro nível de pulsação e apagam-se os trêspontos desativados (A/C/D). As notas são inseridas como graus e atonalidade é ajustada separadamente.

O software foi experimentado em oficina de criação musical, na VIIMostra de Física e Astronomia realizada pela Universidade Federal doEspírito Santo e Prefeitura Municipal de Vitória2, paralelamente àSemana Nacional de Tecnologia, em outubro/2005, com alunos das 6ª,7ª e 8ª séries do ensino fundamental da Prefeitura Municipal de Vitória.Os alunos foram apresentados ao conceito de níveis pulsativoshierárquicos, realizando-os corporalmente, e em seguida foram esti-mulados, no computador, a criar ritmos de 8 compassos, atendendo àscondições: repetição do conteúdo dos 4 primeiros compassos, a partirdo qual seriam estabelecidas variações; criação de letra para o ritmo esubseqüente adequação do ritmo à letra desejada, e vice-versa. Nesseestágio, os alunos demonstraram uma relativa facilidade para detectarqual deveria ser a localização dos pontos na estrutura temporal, paraatender à prosódia do texto desejado, apagando e re-escrevendo even-tos sem ter que calcular durações, o que tornaria o processo muitomenos eficiente, já que não envolveria atividades de verdadeira análisee síntese musical, mas puramente matemática. Notamos que seria útiluma interface que permitisse arrastar um ponto de um locus temporalpara outro. Por último, os alunos adicionavam graus, com repetição evariação de padrões de alturas, selecionando à parte, com o auxílio doprofessor, a melhor tonalidade para a execução junto com o canto, egravando, ao final, o trabalho produzido pela dupla de alunos.

O software reflete o princípio de que nossa primeira ação musical é rít-mica: situar “algo” em algum “lugar” no tempo: uma batida, uma síla-ba, uma nota – ou, quem sabe, um gesto. Ele impulsiona uma com-preensão intuitiva das estruturas musicais, especialmente no domíniodo ritmo, e possibilita a manipulação e feedback instantâneos e ade-quados às representações mentais. Acreditamos que a necessidade deum estudo aprofundado numa teoria de cognição do ritmo posicionalfaz jus à preocupação de Trollinger (2005), segundo à qual

“[m]ost music programs seem to be created by non-professional edu-cators who are very talented, professional performers and/or privateteachers. Generally, most of these individuals do not receive trainingduring their education in developmental and educational psychologyor learning processes”.

2 A Mostrafoi promovi-da pelo De-partamentode Física daUniversidadeFederal doEspíritoSanto,Laboratóriode Instru-mentaçãopara oEnsino deFísica ePrefeituraMunicipal deVitória, entre5 a 8 de out-ubro de2005.

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Espera-se estimular estudos experimentais em cognição rítmica, naperspectiva posicional, com implicações na educação e na busca deconteúdo musical em sistemas de informação.

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Modelagem da variação do timbre musical utilizando modelos auditivos e mapas de Kohonen

Maurício A. Loureiro

CEFALA - Centro de Estudos da Fala, Acústica, Linguagem e Música, UFMG

Hugo B. de Paula

Pontifícia Universidade Católica de MinasGerais – PUC Minas

Tairone N. Magalhães

CEFALA – UFMG

Timbre Musical

Otimbre é percebido a partir da interação de propriedades estáti-cas e dinâmicas do som, agregando não apenas um conjuntocomplexo de atributos auditivos, mas também uma gama de

aspectos psicológicos e musicais. Em 1964, o timbre foi definido pelaASA (American Standard Association) como “aquele atributo do senti-do auditivo em termos do qual o ouvinte pode julgar que dois sons sim-ilarmente apresentados e tendo a mesma intensidade e altura, são dis-similares”. Metodologias de testes subjetivos de similaridade empresta-dos da psicologia experimental permitiram uma redução da dimen-sionalidade deste atributo em representações de menor complexidade,com a introdução da noção de “taxa de similaridade” entre estímulosauditivos, o que possibilitou mapear geometricamente o conceito desimilaridade acústica, fornecendo uma quantificação psicológica deuma estrutura relativamente complexa a partir de dados bem simples.Estudos mais recentes estabeleceram correlações entre fatores percep-tivos relacionados ao timbre e grandezas físicas mensuráveis direta-mente do som, possibilitando outras abordagens na investigação detimbre baseadas em análise acústica (Misdariis, Smith et alii, 1998).

Os instrumentos acústicos tradicionais permitem a produção e controlede uma vasta gama de timbres, que dependem da altura da nota, damaneira como é tocada e da habilidade do músico em seu controledinâmico. Entretanto, não há uma escala que o permita ser especifica-do quantitativamente pelo sistema tradicional de notação musicalassim como volume e altura, descritos em escalas fraco-forte e degamas alturas. Investigações mais extensivas sobre a variação inten-cional do timbre e sobre a capacidade do ouvinte em perceber e com-

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preender esta intenção tornam-se cada vez mais necessárias para acompreensão da contribuição de parâmetros acústicos , entre eles adiferenciação de timbre para a condução e percepção da expressivi-dade de uma performance musical.

Modelos Auditivos

Pesquisas em neuropsicologia e neurofisiologia da audição humanatêm possibilitado a construção de modelos que buscam representar ocomportamento dos componentes responsáveis pela audição, taiscomo ouvido externo e médio, membrana basilar, células ciliares doouvido interno e fibras nervosas do oitavo nervo craniano do sistemanervoso. Modelos auditivos ou cocleares vêm oferecendo uma alterna-tiva promissora para pesquisa em timbre musical. Estes modelos trans-formam o sinal em padrões de disparos neuronais, conhecidos comoneurogramas, resultando numa representação que não traduz neces-sariamente a distribuição de energia do sinal ao longo de seu espectrode freqüência. Estudos comprovaram uma maior eficiência destes mod-elos frente aos tradicionais, em casos em que o sinal se apresenta alta-mente corrompido por ruído. Esta propriedade os torna adequados paraa pesquisa em timbre, por implementarem uma característica complexada percepção auditiva, que é a capacidade de discriminação de timbresmesmo com a presença de altos níveis de ruído. Estudos mais recentescomprovam a robustez destes modelos na investigação dos mecanis-mos perceptivos do timbre musical (Cosi, De Poli et alii, 1994;Toiviainen, Kaipainen et alii, 1995; Toiviainen, 1996; De Poli ePrandoni, 1997).

Mapas Auto-Organizativos de Kohonen

Mapas Auto-Organizativos de Kohonen, conhecidos como SOM (Self-Organizing Maps), são algoritmos de redes neurais não supervisiona-dos, capazes de mapear dados de entrada de grandes dimensões emespaços de baixa dimensão, preservando as relações topológicas essen-ciais dos dados originais (Kohonen, 1995; Braga, Ludermir et alii,2000). Por não se fundamentar em suposições a priori sobre as carac-terísticas dos dados analisados, SOM se mostra como uma ferramentapoderosa para experimentos que envolvem análise de dados de grandecomplexidade e com altos índices de não linearidade, tais como sonsmusicais.

Leman propôs uma comparação entre os resultados obtidos por mapea-mentos timbrísticos resultantes de redes SOM com aqueles espaços

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construídos por MDS a partir de medições psicológicas, com o objeti-vo de estabelecer uma plataforma que incorporasse fenômenos audi-tivos e neuronais para a pesquisa musicológica (Leman, 1991; Leman,1994). Toiviainen comparou a eficiência das representações do timbremusical em espaços construídos por distâncias topológicas computa-cionalmente calculadas por SOM e por medições de estimação subje-tiva de similaridade (Toiviainen, Kaipainen et alii, 1995). Os resultadosdeste trabalho comprovaram um alto grau de correlação entre os doisdomínios, sugerindo uma adequação do modelo de Kohonen pararepresentar complexos perceptivos multidimensionais A equipe depesquisa do CSC da Universidade de Pádua desenvolveu estudos declassificação de timbres musicais utilizando SOM (De Poli, Prandoni etalii, 1993; De Poli e Tonella, 1993).

Objetivos

Este trabalho buscou explorar as possibilidades de utilização demodelos auditivos computacionais para investigar o significado dosparâmetros físicos determinantes nas variações de timbre que ocorremna execução de uma nota musical. A rica variação timbrística daclarineta foi utilizada para a construção de mapas timbrísticos, nosquais similaridades entre sonoridades pudessem ser representadas pordistâncias geométricas em espaços de baixa dimensionalidade.

Métodos

Dados de Análise

Embora o timbre possa variar independentemente da intensidade ou daduração, o alto grau de correlação entre timbre e intensidade facilita aamostragem de "valores" distintos de timbre para uma mesma nota apartir da especificação da intensidade. Assim, um músico foi instruídoa executar cada nota em quatro níveis de intensidade distintos: pianis-simo, mezzo-piano, mezzo-forte e fortíssimo, com o mínimo de varia-ção possível. As amostras foram obtidas a partir de gravações de todasas notas dos dois registros mais graves da Clarineta em Si b, variando deRé3 (147 Hz) a Lá5 (880 Hz), executadas nos quatro níveis de intensi-dade acima, com uma duração média de 3 segundos. Utilizamos tam-bém neste estudo amostras de grande conteúdo expressivo e largavariação de dinâmica e timbre, em diferentes registros do instrumento,extraídas da Abertura do 1º movimento do Quintetto op. 115 em Simenor para clarineta e quarteto de cordas de Brahms (compassos 5 a

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17). As gravações foram reamostradas a 22,05 kHz, e suas amplitudesforam normalizadas, para que fossem classificados em função de suavariação dinâmica.

Modelos Auditivos

Estas amostras foram então representadas em cocleagramas, extraídoscom a utilização do modelo auditivo desenvolvido por Richard Lyon(1988) implementado em Matlab por Malcolm Slaney (1998). Nestemodelo, um filtro linear simples simula a filtragem que ocorre no canalauditivo. Na modelagem da cóclea, são combinados vários canais debancos de filtros, que modelam a propagação das ondas de pressão,com ressonadores, as convertem em movimento da membrana basilar.O movimento da membrana basilar é detectado pelas células ciliaresinternas, que capturam apenas a fase positiva do sinal. Estas são simu-ladas através de Retificadores de Meia Onda (Half Wave Rectifiers ouHWRs), que fazem a representação neural do sinal. Controles deGanho Automático modelam efeitos como mascaramento, diferençasde tempo de adaptação no ouvido interno e não-linearidades da cóclea(Lyon e Mead, 1988). A saída gerada por esse modelo é uma matrizcom a probabilidade de ocorrência de disparos ao longo do nervo audi-tivo, denominada cocleagrama. A fim de reduzir a quantidade dedados, os dados de entrada foram decimados a cada 500 amostras.

SOM Toolbox

Os cocleagramas foram então classificados por um mapa auto-orga-nizável de Kohonen bidimensional com topologia hexagonal. Os arran-jos destes mapas neurais podem tomar várias formas, definindo asrelações de vizinhança entre os neurônios. Este estudo utilizou umaimplementação do SOM em Matlab desenvolvida por Juha Vesanto eequipe, da Helsinki Unversity of Technology, o SOM Toolbox (Versanto,Himberg et alii, 2000).

Resultados alcançados e discussão

Inicialmente, um mapa SOM hexagonal de tamanho 16x10 foi usadopara mapear as notas mais graves do instrumento. O mapa da esquer-da da Figura 1 mostra os sons ff e π destas 7 notas. Observa-se que oSOM foi capaz de discriminar os pontos pertencentes a cada som, agru-pando-os em poucas células contíguas. Percebe-se também que tantoas alturas quanto as intensidades foram adequadamente discriminadaspelo SOM e que notas π foram agrupadas mais compactamente que

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notas ff. Notas π tiveram a maioria de seus pontos concentrados emuma célula. Isto pode ser melhor verificado no mapa do centro queindica em cada célula a porcentagem da extensão total de cada somnela mapeada, proporcional ao tamanho do ponto. Esta diferenciaçãode espalhamento no mapeamento das intensidades também pode serverificada pela distribuição de distância métrica do mapa, mostrada nográfico da direita da Figura 1, no qual distâncias entre hexágonos repre-sentam distâncias entre neurônios do mapa. Este resultado é consistentecom estudos anteriores, nos quais espaços espectrais construídos a par-tir de Analise de Componente Principais (PCA) da distribuição espectralforam utilizados para representar o timbre (Loureiro, de Paula et alii,2004a; Loureiro, de Paula et alii, 2004b).

Figura 1: Mapeamento das amostras em neurônios do SOM (à esquer-da); porcentagem de amostras presentes em cada neurônio (no meio);matriz de distâncias entre os neurônios, onde quanto maior a célula,menor a distância entre suas vizinhas (à direita).

No entanto, a influencia da altura da nota neste tipo de representaçãoa torna inadequada para as finalidades deste estudo, que buscou carac-terizar as variações sutis do timbre, tais como aquelas que ocorrem aolongo de uma mesma nota durante uma performance musical. Váriossons de uma mesma altura foram então classificados em mapas SOMindividuais para cada altura. O mapa da Figura 2 mostra 4 sons da notaFá #3, amostradas fora do contexto de uma performance musical, nas 4intensidades, π, P, F, ƒ. Nota-se que houve uma boa discriminaçãodas intensidades, cada uma ocupando um dos 4 cantos do mapa.

Com a finalidade de caracterizar a variação de timbre durante uma per-formance musical, adicionou-se ao mapa anterior 3 notas de mesmaaltura, extraídas da Abertura do 1º movimento do Quintetto op. 115

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em Si menor para clarineta e quarteto de cordas de Brahms, dos com-passos 15, 16 e 17. Uma comparação auditiva entre estas 3 notas reve-la que a nota do compasso 15 é a que exibe maior variação timbrísti-ca, enquanto que a nota do compasso 17 corresponde a um final defrase em pianíssimo (∏ ), com pouca variação de timbre. Podemosobservar a mesma tendência de mapear os níveis de intensidade aolongo do eixo vertical e de distribuir sons de maior intensidade aolongo de regiões mais extensas do mapa.

Além disso, é interessante notar que os sons musicais foram mapeadosno lado esquerdo do mapa, enquanto que os sons não musicais foramdeslocados para o lado direito. Isto pode estar relacionado com o fatode que os sons musicais foram tocados por um músico distinto em uminstrumento também distinto, mesmo que gravados em condiçõesidênticas.

Figura 2. Trajetórias de amostras do Fá # na oitava 3 em 4 níveis de inten-sidade (à esquerda); sons não musicais acrescidos de trêsamostras extraídas do Quintetto de Brahms (à direita; tocadaspor instrumentista e clarineta distintos.

Conclusão

Esta representação gráfica do timbre e de sua evolução temporal ofere-ce caminhos para a compreensão do controle dinâmico e instantâneoque o instrumentista detém sobre o som dos instrumentos acústicos ede como este controle é percebido pelo ouvinte. Entretanto, a interaçãoentre a não linearidade dos modelos auditivos e a topologia não uni-forme dos mapas auto-organizáveis de Kohonen ainda precisam sermelhor entendida para que esta representação reflita mecanismos deprodução intencional e percepção do timbre.

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5. Artes Musicais e Cognição Social

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Mídia, gosto musical e a construção social da noção de infância

Maria José Dozza Subtil

Universidade Estadual de Ponta Grossa

Universo midiático e produção de sentidos

Otexto apresenta reflexões teóricas decorrentes de uma pesquisarealizada de 2000 a 2005, com crianças de 9 a 12 anos deescolas públicas e particulares da cidade de Ponta Grossa/PR,

objetivando compreender como se processa a apropriação e fruição damúsica midiática. A investigação revelou que embora não se possasuperestimar a importância da televisão, uma vez que existem outrasagências atuando na socialização dos menores – grupo familiar, gruposde amigos, comunidade de entorno, igreja e a própria escola – éimpossível negar que pela intensiva e extensiva exposição diária elaconstitui-se, juntamente com o rádio, numa das principais fontes deinformações, significações e conceitos sobre relações sociais em geral,mas particularmente sobre sociedade/escola, infância/adultos erelações de gênero.

Estudar a apropriação da música midiática, e nesse processo entendera produção do gosto musical e sua expressão, supõe considerar as for-mas e objetos de consumo postos pelo amplo universo mídiático e quesão colhidos pelas crianças tanto no contexto doméstico quanto noescolar, buscando apreender espaços de subjetivação e de autonomiana produção de significados, apesar da massiva imposição da indústriacultural. Martí (1999: 31), afirma que “…a música não reflete tãosomente o espírito de uma época, mas também intervém dialética-mente na configuração deste espírito…”. Fruição, expressão e signifi-cação das músicas midiáticas pelas crianças são práticas simbólicasque envolvem determinantes estruturais e subjetivos.

Se os textos midiáticos produzem uma polissemia de interpretações esignificados que têm relação com determinantes individuais e cole-tivos, isso traz para a recepção, não mais o caráter de reprodução dasrelações de força da sociedade mas a capacidade de produzir sentidose o desvelamento de um lugar onde aparece uma determinada com-petência cultural: “Os ‘usos’ (…) são inalienáveis da situação sociocul-tural dos receptores, que reelaboram, ressignificam, ressemantizam os

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conteúdos massivos conforme sua experiência cultural, a qual dásuporte para esta apropriação” (Jacks, 1999: 51).

O entendimento das mensagens midiáticas, a incorporação desse mate-rial simbólico ao repertório de conhecimentos e sentidos no decorrerda existência concreta dos indivíduos, é um processo condicionado pormúltiplas mediações. Cabe destacar a idéia de mediação

… como um conjunto de elementos que intervêm na estruturação,organização e reorganização da percepção da realidade em que estáinserido o receptor. (…) As mediações produzem e reproduzem os sig-nificados sociais, sendo o ‘espaço’ que possibilita compreender asinterações entre a produção e a recepção. (ibid: 49).

A mesma autora define o sentido de mediação em diferentesdimensões: individuais, situacionais e institucionais. As individuais sãocentradas no indivíduo, envolvem aspectos cognitivos – fatores queinfluenciam na percepção, apropriação e aquisição do conhecimento,e estruturais – elementos identitários referenciais como sexo, religião,escolaridade, etnia e estrato socioeconômico. As mediaçõessituacionais envolvem, além dos aspectos individuais, o contexto ondeacontecem as práticas cotidianas, particularmente o lar. As mediaçõesinstitucionais inscrevem o sujeito num cenário mais amplo, numa dadacomunidade, ligando-o a instâncias de níveis e caráter diferenciados:família, escola, religião e partido político. (ibid: 52-55).

O que isso significa em termos de produção do gosto musical das crian-ças a partir das emissões midiáticas (rádio e TV)? A análise empíricademonstrou que assistir a / ouvir programas musicais, cantar/decorarmúsicas e comprar CDs são atividades que, mesmo individuais, contamcom a parceria da família, dos amigos e dos colegas e são comparti-lhadas. Há uma cadeia de percepções, significados e conhecimentosconstruídos nos diferentes espaços e situações como sala de aula,recreio, entrada e saída da escola, festinhas, quarto, sala de tv, reuniãode amigos e igreja, que são determinantes nas práticas musicais e naexpressão de valores e juízos de valor.

Esse processo evidencia uma outra forma de apreensão da culturadecorrente dos novos sentidos produzidos pela mídia.

O audiovisual, graças aos recursos da eletrônica, trabalha comsom/imagem/palavra numa dimensão ampliada, mixada e multiplicada,ou seja, como “experiência global unificada” (Babin, Kouloumdjian,1982: 41). Particularmente no que tange à música, isso significa que o‘homem audiovisual’ é uma combinação da vista e do ouvido” (ibid:

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84). Mas a percepção auditiva tem um papel preponderante nas vivên-cias sensoriais pois, “… na imagem há projeção de um sentimentoprovocado pela sucessão de esquemas de tensão e movimentoinduzido pela forma musical” (ibid: 87).

Há um “sentido pressentido” é inconsciente e precede à lógica numprimeiro momento mas, na seqüência, regula e condiciona o pensa-mento. Assim se explicaria o hábito formado nas crianças e adoles-centes de ler os livros em rápidas olhadelas, que substituem a imersãoe a reflexão mais aprofundada do texto escrito. A TV estaria criandouma forma de processamento da informação de fora para dentro(Kerkhove, 1999: 50). Em particular, no caso da música, o aumento davelocidade da duração rítmica conforma modos de audição, dança emovimento mais do que a apreciação somente auditiva da melodia eda letra. O clip é a forma melhor acabada dessa “visualização” sonoraque apela ao movimento e à dança

Esse apelo icônico e cinético proposto pelas emissões televisivas é oresponsável por expressões que explicam mais do que aparentementequerem dizer como “eu vi a música da Carla Peres”’ “eu gosto de ver amúsica do Daniel”, ou ainda a fixação pelos ídolos, com suasperformances e caracterizações e não tanto nas letras e melodiascriando expressões metonímicas, tais como, “eu gosto da VanessaCamargo” (não “eu gosto da música da Vanessa Camargo!”).1

Também é necessário acrescentar que a música midiática encarna-senas imagens/objetos/fetiches evocados pelas veiculações de gêneros eastros, ou seja, criações míticas que atendem demandas simbólicas porilusão, sublimação e satisfação de desejos secretos e tambémproduzem demandas de consumo objetivo e de posse.

As crianças de 9 a 12 anos revelaram-se consumidoras costumazes degêneros, artistas, programas, CDs e outros objetos decorrentes dasveiculações midiático/musicais. Esse processo não fica apenas nasuperfície, mas molda formas de ver, sentir, representar e entender omundo, a sociedade em que vivem e as relações humanas que neleshabitam. Cabe investigar mais a fundo de que crianças estamos falan-do e que noção de infância está sendo moldada por esses objetosculturais, particularmente musicais, no princípio do novo milênio.

Mídia, gosto musical e construção social da noção de infância.

Algumas afirmações das crianças tomadas em momentos de apreciação

1 Prova dissoé o fato deque apesarde o CantorDaniel sercitado comoo preferidoem 5 anosde investi-gação, poraproximada-mente 40%das crianças,nenhuma desuas músicasé referidanessa mesmadimensão. Omesmoaconteceuem menorescala com acantoraVanessaCamargo.

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e discussão sobre música midiática trazem elementos reveladores:

“Não tem que tê música na escola porque a escola não é pra se diver-ti é só estudá” (Tam, 10 anos); “música de dentro da escola é aquelasque ensina, assim… educativa, cultural não as da televisão” (Juliano, 9anos); “tem música de criança e de adulto… só que nós somo criançamas gostamo das música de adulto … a gente é assim meio adulto,meio criança” (Edu, 10 anos); “o funk é música de prostituta… é muitobesterenta… fala muito palavrão… nós gostamos de dança o funk”(Marina, 11 anos); “as meninas gostam mais de música assim de amor,melosa, os menino gostam mais de funk, música country, sertaneja…elas gostam mais de dança… nós de olhá” (Edimilson, 12 anos)

É possível perceber o caráter pedagógico na mídia que “ ensina” osdiferentes papéis sociais - ser homem, mulher, criança, adulto, legitimaalguns conhecimentos em detrimento de outros, impõe um arbitráriocultural e até fortalece formas sensório-motoras de apreensão deconhecimentos, que vão interferir na aprendizagem formal vivenciadana escola. Nessa esteira uma outra noção de infância está sendoconstruída.

Estudos revelam que as mídias, através da veiculação dos diferentesobjetos culturais entre os quais a música, tem se configurado como umfator cada vez mais importante no processo de socialização.Buckingham (2000: 9) afirma mesmo que “o próprio significado deinfância nas sociedades atuais se cria e se define através das interaçõesdas crianças com os meios eletrônicos”. O advento das tecnologiaspara consumo doméstico, particularmente a televisão, vai provocaroutras discussões sobre o “ser criança” na esteira das críticas aosprocessos e produtos postos à disposição pela indústria cultural e queafetam decisivamente essa categoria social.

O “sentimento de infância”, um modo de encarar as crianças, e a“infância” como fase da vida independente das outras (adolescência,juventude e idade adulta ) é bastante recente e contemporâneo aosurgimento da família e da própria escola que “retiraram juntos a crian-ça da sociedade dos adultos” (Ariès, 1981: 277). Postmam (1999: 111)credita a construção e a desconstrução da noção de infância nacontemporaneidade aos eventos tecnológicos que ampliaram epublicizaram informações e conhecimentos restritos ao público adulto.

A acessibilidade da informação proposta pela mídia televisiva, quedestrói as diferenças entre conhecimentos privados e públicos e cujarevelação é gradativa, faz com que as crianças saibam tudo e as torna

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semelhantes aos adultos: “Significa (…) que ao ter acesso ao fruto, antesescondido da informação adulta, são expulsas do jardim da infância”.

Na contramão desse argumento, Meyrowitz, citado por Buckingham,considera positivo o desvelamento do mundo dos adultos proposto pelatelevisão, como forma de romper com um círculo de segredos ehipocrisias:

O uso generalizado da televisão equivale a uma ampla decisão socialde permitir aos pequenos que estejam presentes nas guerras, nos enter-ros (…) na sedução e nas tramas criminosas (…) Assim pois não sóocorre que a televisão descobre “ segredos”: revela também o segredodas coisas secretas, e por conseguinte deixa os adultos inermes ante apossibilidade de acusação de hipocrisia” (2000: 41).

A verdade é que a mídia desencadeia a expressão de juízos de valorcomo demonstrado acima, revelando o desenvolvimento do juízomoral, lugar do encontro ou do confronto entre afetividade e razão eque fundamenta os significados atribuídos às práticas musicais. Se“Toda moral consiste num sistema de regras e a essência de todamoralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo adquire porestas regras” (Piaget, apud La Taille, 1992: 49), as crianças de 9 a 12anos situam-se na fase da heteronomia, possuem interesse em partici-par de atividades coletivas regradas, mas não se pode dizer que são ossujeitos da produção dessas normas. Para elas, as regras são “algosagrado e imutável pois imposto pela tradição” (ibid: 50).

Assim os julgamentos dos sujeitos desta pesquisa - estão impregnadosdos valores impostos pela sociedade e, por ser essa uma fase de tran-sição entre heteronomia e autonomia quando discorrem sobre músicase cantores, apresentam uma face contraditória: criticam, julgam comseveridade letras, movimentos e significações do funk, em particular,associando a estereótipos de gênero, mas afirmam sua preferência poresse gênero, mais ou menos na linha do “façam o que eu digo mas nãofaçam o que eu faço”.2

Ao evidenciar gosto e significação musical, as crianças revelam adimensão afetiva da sua relação com os objetos da cultura e, aqui, épertinente afirmar como o autor acima citado, que só é possívelcompreender o pensamento humano a partir dos interesses, afetos,impulsos e emoção.

Considerações finais

Os sujeitos desta pesquisa revelaram modos de ser criança na relação

2 O conflitoreveladopelascrianças emgostar,dançar ecomprar asmúsicas dofunk, mas aomesmo tojulgar negati-vamente aspalavras, ostrejeitos, osgestos e asignificaçãodas letrasmostra bemesses senti-mentosdecorrentesda hipocrisiacom que asociedadetrata taisobjetos cul-turais.

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com a música midiática. A extensividade e intensividade do contatocom os produtos musicais que essas crianças mantêm cotidianamenteproduzem visões de mundo desveladas nas representações muitasvezes antagônicas sobre criança x adulto, escola x sociedade, meninosx meninas, por exemplo, que ancoram os preconceitos e a valoraçãoque a própria sociedade estabelece quanto a esses pares e, particular-mente, sobre a infância.

No entanto, se é possível afirmar que o processo de constituição dainfância hoje decorre das imposições estruturais da sociedade massivade consumo, não se pode desconsiderar os aspectos ativos da recepçãomusical dos sujeitos pesquisados. Pela característica própria da música,por seu caráter gregário e performático, ela aciona diferentes media-ções: individuais, contextuais e institucionais, que vão, de certa forma’interferir nas escolhas, nas preferências, nos juízos de valor e naspráticas musicais individuais ou compartilhadas.

Cabe ressaltar também o fato concreto de que a educação musical hojeestá por conta das crianças. As instituições socializadoras, entre elas aescola, não interferem qualitativamente nessa formação. A práticacomum é a audição apenas como evasão, motoricamente, aleatória ecentrada na imagem, na repetição e no re-conhecimento como afirmaAdorno (1991).3

Não se deve desconsiderar o potencial pedagógico da mídia que ensi-na também sobre música (materiais sonoros diversos, instrumentos,formas, estruturas’ história e desenvolvimento musical) pelo aporte damixagem som/imagem. Aproveitar essa dimensão significa desenvolvera percepção e a comparação, por exemplo no funk, no rap, no pagode,na axé music do que é inovação e do que é mera repetição. Se a escolaquiser cumprir seu papel na educação musical deve ampliar osrepertórios, inserindo no espaço escolar, outras formas musicais queestão ausentes do entorno sonoro das crianças.

Vale a pena também trazer para o interior da escola a discussão sobreo contexto de origem das formas musicais veiculadas massivamente,como elas se instalaram de empréstimo nas culturas atuais, como afe-tam hoje nosso gosto e nossas práticas, no local e no espaço que ocu-pamos. Isso necessariamente irá desencadear uma reflexão sobre opapel da Indústria Cultural como sistema integrado produzindo ereproduzindo valores, tendo por base as injunções econômicas dasociedade capitalista contemporânea.

3 As dubla-gens – quan-do as cri-ançasrepetem osmovimentose as letrasdos cantoresao som deCDs – acon-tecem fre-quentementenas escolas.

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Referências Bibliográficas

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ARIÈS, P. História Social da Criança e da família. 2.ed. Rio de Janeiro: EditoraGuanabara, 1981.

BABIN, P.; KOULOUMDJIAN, M.F. Os novos modos de compreender – a geraçãodo audiovisual e do computador. São Paulo: Edições Paulinas, 1982.

BUCKINGHAM, D. Crecer em la era de los meios electrónicos. Madrid: Morata’2000.

JACKS, N. Querência Cultura regional como mediação simbólica - um estudode recepção. Porto Alegre:Editora da UFRGS, 1999.

KERCKHOVE, D. A pele da cultura - Uma investigação sobre a nova realidadeeletrônica. Santa Maria da Feira: Relógio D’Água Editores, 1997.

MartÍ, J. Ser hombre o ser mujer a través de la música: una encuesta ajóvenes de Barcelona. In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 5,n.11. 29-51, out. 1999.

POSTMAN, N. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: EditoraGraphia, 1999.

Relações estéticas, programação e «Do belo na música hoje»

Isaac Felix Chueke

Observatoire Musical Français – Université de Paris-Sorbonne

Relações estéticas

De modo indubitável observa-se nos dias atuais uma impor-tante transformação no tocante à recepção da obra de arte.O público por certo adota atitude menos passiva, exigindo

uma interação maior entre emissor e receptor. O artista consciente nãose imobiliza e também age, buscando a interface entre seu exercícioprofissional e a sociedade à qual pertence.

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No caso específico da música contemporânea este novo comporta-mento de ambas as partes provou-se como essencial em têrmos dedivulgação. Terá chegado o momento em que a produção de nossotempo poderá ser mais amplamente reconhecida pela sua qualidade ediversidade? Este processo de transformação, aliás pouquíssimo docu-mentado pelos historiadores, está longe de estar terminado. Abertoporém o caminho para novas relações estéticas, analisemos algumasdas mudanças responsáveis por este fenômeno bem como suas princi-pais conseqüências. Considerando os vários acontecimentos ocorridosentre o fim do século 19 e o primeiro decênio do 20 liderados porWagner, Mahler e Scriabin de um lado, Debussy, Schoenberg eStravinsky do outro, uma nova gramática estava disponível e noscinqüenta anos que se seguiram compositores como Boulez eStockhausen encarregaram-se de estender estes limites à base de novosconceitos. Paralelamente, a obra de arte nas suas variadas manifes-tações ia progressivamente sendo entendida como não catalogável,adquirindo um significado plural e a obra aberta tornara-se por assimdizer o avesso do objeto pronto, acabado, definido, instância na qual aúltima palavra continuava sendo a do criador, aquela figura que malsuportava a «intromissão» do público. A nova música, que nos anos 70encontrava-se completamente afastada do diálogo com o mundo dasoutras artes contemporâneas, decide finalmente aliar-se ao movimento.Até aquele momento as contribuições da música erudita sendo fre-qüentemente ignoradas pelos mundos da dança moderna e do teatroexperimental, preteridas por outros gêneros musicais como o rock e ojazz, uma boa dose de competência e esforço passaram a ser requeri-dos tanto de parte do emissor quanto do receptor, uma vez que tornara-se imprescindível comunicar. À tomada de consciência inicial, seguira-se o portanto o desejo de apropriadamente direcionar as novas platéias.Um passo importante tinha igualmente sido alcançado com o reco-nhecimento da existência de culturas estrangeiras perfeitamente legíti-mas, originando a partir daquele momento intercâmbios entre artistasoriginários da Ásia, Europa e das Américas. A indústria fonográficachegara atrasada, custando a liberar-se de seus entraves, recuperando-se mais tarde ainda que com a criação de ‘labels’ ou sêlos por demaissimplistas, numa simples etiquetagem de gêneros, criando a chamada«world music». Hoje assistimos ao surgimento de uma nova corrente namúsica, aquela que deseja não necessáriamente eliminar as outrasmanifestações estéticas mas apenas inserir-se como nova via deexpressão. Particularmente, no que se refere aos novos compositores,tudo indica que terão sido eles os primeiros beneficiados. Afinal, era

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chegado o tempo de uma nova escrita englobando influências as maisdiversas e estas poderiam-somar-se ao aprendizado acadêmico já con-quistado nos conservatórios, eliminando uma série de tabus. Na áreada interpretação musical, atingia-se maior liberdade, com novasinstruções sendo repassadas aos executantes, suas capacidades deimprovisar sendo inclusive colocadas à prova. As fronteiras abolidas,seria a música nesta nova démarche passível de novamente surpreen-der o público? Os artistas haviam na realidade acrescentado algo maisà sua proposta: desejavam um enfoque diferente de nossa percepçãomusical. Obedecendo a uma concepção diferente do ritmo, o silênciotornara-se de ouro. O timbre proclamara sua independência firmando-se como parâmetro autônomo. Por outro lado, procedimentos com-posicionais por alguns tachados de obsoletos sofriam de revisão: umavez que os criadores estavam libertos da pressão de terem que escreversegundo esta ou aquela tendência convencionada como de vanguarda,ficava mais fácil a apropriação de elementos tradicionalmente consi-derados como pertencentes ao passado. Sendo assim, que tal umretorno ao contraponto ou à formulação de estruturas representando onovo e o antigo aos que assim o desejassem? Todas estas conquistasuma vez assimiladas não poderiam correr o risco de serem esquecidas,muito menos subestimadas, e neste sentido outro fator primordial erade que o material musical, se manejado com a dose certa de talento,estaria explicitamente validando-as. Também a tecnologia deixaria suamarca, veículo de uma música electroacústica pura ou parceira emtempo real de execuções ao vivo. Respondendo presente através anotação, gravação e publicação de uma obra, ela penetrara em mais deum campo. Logo para novas percepções, novas relações estéticas.

Programação e “Do belo na música hoje”

O ouvinte na qualidade de receptor ativo. O conceito do «belo», hojerevitalizado por uma nova apreciação estética, a importância do recep-tor neste enlace é fácilmente observável. Integrante de uma nova ge-ração exigente de formas originais de expressão artística em ligaçãodireta com nossa contemporaneidade, ele reivindica uma participaçãointegral no processo global da criação. Deveríamos ainda estar espan-tados da recepção outorgada hoje à música tão criticada da primeirametade do século XX? “Recusando à música qualquer outro conteúdo[que não a forma], conservamos seu valor.” (Hanslick, 1854: 167).Nosso sentimento do belo, confrontado à conclusão de Hanslick não écom toda certeza imutável. Se admitimos que as emoções suscitadaspela música junto ao ouvinte constituem um fenômeno à parte,

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simultâneamente não poderia falar-se hoje de uma apreciação estéticamenos engajada? Propositadamente neutra, nos desobrigaria daquelaposição unilateral que automáticamente rejeita outras possibilidades.Novamente, este mérito deveria ser creditado ao público que, inversa-mente à idéia geralmente difundida e aceita, não é necessáriamenteingênuo. Nada impediu-o por exemplo de saborear plenamente umamúsica dita «acessível», aquela produzida a partir dos anos 80, corte-jando-a sem complexos com formas de arte completamente outras.Logo, segundo nossa opinião, ultrapassados seriam aqueles que con-tinuassem insistindo, como dantes, a dividir a música em domíniosdiferentes, julgando uma séria, a outra informal, tornando-as nova-mente incomunicáveis entre si. De uma mensagem autêntica lembran-do-nos o século no qual vivemos, de uma música que não se contenteem trabalhar com fórmulas mais do que gastas, é disto que necessita epede o público. Observemos o repertório «inabitual», cada vez maispresente na programação de concertos: os grandes ciclos Stravinsky,Schoenberg, etc. A coqueluche de festivais contemporâneos saídos dosguetos de especialistas, eventos anteriormente reservados quase queexclusivamente aos «iniciados». O público de forma geral sentia-sepráticamente excluído. O despertar para todos, crianças e adultos,parece ter sido o do acoplamento de ateliês e ações educacionais diver-sas, ao que parece, condição sine qua. Na França, um concerto, melhordizendo um «happening» com a música de Iannis Xenakis, foi realiza-do na praça do Louvre. Contando com a presença de milhares deespectadores, ali sentados defronte à moderna pirâmide envidraçada, opúblico atento e receptivo à músicas entretanto consideradas de ordembastante complexa, haveria nesta situação forçosamente uma ambiguï-dade? O belo na música hoje? Já observamos a influência e os resulta-dos quando da adição da música de outras culturas à nossa. A cons-ciência aguda quanto às questões tratando principalmente da restitui-ção da individualidade, da espontaneidade, da interação das múltiplaspropostas criativas num mundo tecnológicamente avançado, não podedeixar de se perguntar sobre o lugar ocupado pela arte na sociedade.Transferência automática – do belo na música hoje passando por umaoutra apreciação da música de ontem – o repertório de cinco séculospode até soar como novo. Bastante fascinante aliás é o que representapara nós a configuração de dispositivos modernos para a redescobertade uma arte construída com outros meios. Como podemos observar,todas estas novas relações não deturpam, pelo contrário elas enrique-cem! As mudanças sociais tendo nos ajudado a reformar muitos de nos-sos valores e conclusões há muito arraigados, a música provou sua

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capacidade de resistir às intempéries, e sua recepção idem. QuandoHanslick comenta a respeito da instabilidade da relação semântica, estainstabilidade deve-se ao ouvinte. Se concordamos que existe um fatorvariável no que toca à recepção bem como de uma abordagem trans-cendental, questionamos também: há necessidade de uma educaçãoespecífica para a arte? Abordemos este aspecto sob outro ângulo, o damúsica e de sua representação. A luta de Hanslick em «a obra por elamesma» é a luta por uma música «pura», que negaria as vantagensdestas múltiplas associações extramusicais. Perguntamos: o imaginárioa serviço de uma apreensão global ao alcance de todos, por que não?Nossa opinião é de que a música sendo dotada de caráter tão distinto,jamais correria o risco de perder seu status de arte verdadeiramenteindependente. Como ilustração, segue a seguinte descrição de umensaio do maestro Wilhelm Furtwängler. Palavras de Otto Strasser(Jacquard, 1991: 11-14), durante anos um dos principais violonistas daOrquestra Filarmônica de Viena, igualmente um de seus adminis-tradores: «Ocorreu quando ensaiávamos a Eroïca (...) no transcorrer dosegundo movimento, a Marcha Fúnebre, Furtwängler disse repentina-mente aos primeiros violinos: ‘Vocês estão tocando esta passagem demodo por demais sentimental. Trata-se de um velório sem lágrimas’. NaSinfonia Pastoral, no momento da «tempestade», ele falava de um«dilúvio, de raios amarelos que flamejavam». Interpretando a QuartaSinfonia de Bruckner, os acordes das cordas que preparam no segundomovimento o tema maravilhoso das violas, deviam soar como «gotasque caem». Strasser conclui: «Hoje em dia seria muito comum taxar-mos tais expressões como românticas, entretanto para nós músicos,estas palavras tão esclarecedoras significam mil vezes mais que asobservações recriminatórias de muitos regentes que, à parte controlaras indicações de dinâmica e agógica, não têm práticamente nada adeclarar sobre a essência da música.» Sublinhamos esta últimaexpressão, essência da música, para demonstrar como sumidades musi-cais, orquestra e regente situados no mais alto patamar artístico, julga-ram indispensáveis recorrer à imagem para a realização de seu objeti-vo maior, qual seja o da interpretação da mensagem musical. Outrasanalogias podem revelar-se igualmente muito reveladoras. Por exem-plo, Alfred Brendel (Brendel, 1990) na sua interpretação da Sonata emlá menor K 310 de Mozart afirma ter o sentimento de um primeiromovimento escrito primordialmente para orquestra sinfônica, de umsegundo lembrando uma cena vocal com sua seção intermediária car-regada de dramaticidade, de um finale como transcrito para instrumen-tos de sopro interpretando um divertimento de grande ligeireza. Visto

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seu contexto histórico compreendemos a posição de Hanslick, princi-palmente se considerarmos uma questão tão delicada como a dasrelações entre a música dramática e o drama musical, problema deordem estética que foi motivo de preocupação para os compositoresromânticos alemães. Em contrapartida, concernente a idéia de umaabordagem científica da música, sempre situada vis-a-vis a substânciamusical conforme o desejo daquele autor, a consideramos como degrande atualidade. Porque com certeza, se a obra é imutável na suaobjetividade musical, levando-se em conta uma notação de todos osmodos bastante precisa, sua forma nos ajuda a descobrir o que ela nãoé. Para concluir, quanto à sua famosa frase definindo a música comocontendo «formas sonoras em movimento» (Hanslick, 1854: 94) acres-centaríamos que se a validade artística permanece independente de suapercepção estética, esta última se desenvolve de maneira contínua.Com o passar do tempo, de modo inconsciente ou não, formalismo esubjetivismo trabalhando em conjunto, estas transformações paulatina-mente operando na nossa percepção, são elas que virão nos anunciaras boas novas de uma relação estética revigorada. “Mesmo se todos osseres humanos, desde sempre, de todas as idades e oriundos dos maisdiversos países apreciassem de modo similar (mas como ter certeza?)um mesmo objeto, isto não impediria esta apreciação unânime de sercoletiva e individualmente, subjetiva, o fato não qualificando este obje-to como ‘objetivamente belo’” (Genette, 1997). A diversidade na unan-imidade e do belo musical para o todo sempre.

Referências bibliográficas

HANSLICK, Edouard (1854). Vom Musicalisch-Schönen, Leipzig (trad. franc. C.Bannelier, Paris: Christian Bourgois, 1986).

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GENETTE, Gérard (1997). L’oeuvre de l’art 2: la relation esthétique. Paris: Édi-tions du Seuil.

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O ouvido popular:notas sobre o relativismo da musicalidade.

Acácio Tadeu de Camargo Piedade

Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC

Apartir de observações, intuições e experiências na prática

musical e no ensino, pretendo aqui refletir sobre algumascaracterísticas do pensamento musical entre os músicos que

se dedicam ao repertório popular, em especial à música instrumentalbrasileira e ao jazz. Partindo de aspectos do debate antropológico sobrea questão do relativismo cultural, procurarei pensar o universo dasmúsicas populares, tentando assim contribuir para a discussão sobrediferentes formas de se fazer e ouvir música, ou seja, diferentesmusicalidades.

Trato a musicalidade não como uma capacidade ou aptidão para amúsica, mas sim como um conjunto de elementos musicais esimbólicos, profundamente imbricados, que é compartilhado e quedirige tanto a atuação quanto a audição musical de uma comunidadede pessoas1. No fundo deste processo está a matriz cultural,determinante maior na constituição da musicalidade, a partir de ondeé legítimo afirmar a diversidade de formas de se ouvir e fazer música e,para além de uma tolerância estética, a necessidade de desenvolverdiferentes ferramentas analíticas para se compreender as músicas. Apremissa intelectual do relativismo cultural implica aqui, portanto, emum relativismo da musicalidade.

Gostaria de começar pensando o relativismo em sua forma filosóficamais genérica possível: trata-se da idéia de que quando um sujeito pos-tula que uma coisa é esta coisa, ela o é a princípio tão somente para osujeito do postulado. Ou seja, uma constatação resulta de uma possi-bilidade, e não de uma verdade universal. Este relativismo genéricoapresenta-se, assim, como o contrário do universalmente válido e ver-dadeiro, e por causa deste seu caráter crítico, que insiste sempre que oque é não o é sob qualquer perspectiva, ele tem o atributo ao mesmotempo subversivo e liberal. Subversivo, de fato, pois o relativismo éuma expressão do ceticismo, talvez a forma mais poderosa e pertur-badora de ceticismo, pois representa uma visão de que “o conheci-mento e a verdade são relativos a um ponto de vista, um tempo, umlugar, uma disposição cultural ou cognitiva: e conhecimento e verdade

1 Venhopensando aidéia demusicalidadea partir dojazzbrasileiro eda idéia defricção(Piedade,2003, 2005).

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assim entendidos não são Conhecimento e Verdade” (Grayling,1996:58)2. Liberal, pois possibilita a fundação da legitimidade da diver-sidade de visões de mundo e de critérios de verdade. Neste último sen-tido, o relativismo encontra um apoio sólido na filosofia pragmatista,principalmente em William James. Para este autor, não há um modocomo as coisas realmente são e, portanto, o dualismo realidade/aparên-cia (e todos os dualismos conseqüentes) deve ser abandonado, pois sóo que podemos produzir são descrições do mundo e de nós mesmosque são mais ou menos úteis aos nossos interesses3. Nesta filosofia, opensamento tem por objeto não a reprodução de um dado da reali-dade, mas a construção de uma realidade futura, daí que o valor dasidéias não pode ser apreciado em relação ao objeto, mas em relaçãoao seu grau de utilidade. A forma extrema de relativismo está na basedo empirismo extremo – cujo expoente clássico pode ser o Locke databula rasa–, que defende que as idéias derivam unicamente daexperiência, que nenhuma idéia ou proposição pode ser conhecidasem recurso ao mundo empírico – e que, portanto, não háconhecimento a priori4.

A origem do conceito de relativismo cultural na antropologia envolveum pouco do ideal preservacionista-salvacionista em relação aos povosditos “primitivos”, expressando “o desejo de proteger as populaçõessubordinadas da discriminação e pilhagem do povo dominante”(Goldschmidt, 1960: 563). Desde o início, portanto, uma questão deordem moral envolve o conceito. Vamos agora comentar brevemente asdivergentes concepções de relativismo conforme Herskovits, Spiro eGellner, procurando levar ao que se pode chamar de “relativismoradical”. Tido como um histórico relativista “radical”, Herskovits afirmaque o relativismo nega os valores absolutos, mas não a moralidade: aocontrário, valoriza a dignidade inerente a cada corpo de costumes einsiste na necessidade de tolerância (Herskovits, 1963). Para outrosautores, o relativismo é uma posição que deve ser superável, poismantê-la torna impossível a comparação, acabando com oempreendimento antropológico, pois sem o método comparativo nãohaveria antropologia (ver Kaplan & Manners, 1981:18-23). Spiro (1992)procura mostrar que não há um relativismo, mas três: o relativismo

2 Sobre o ceticismo como fundamento filosófico para a antropologia, ver Leaf (1981:43-71).3 Ver o texto “Verdade sem correspondência com a realidade”, de Rorty (2000:17-52).4 Este pensamento, por sua vez, está profundamente ligado à escola interpretativa/hermenêutica deantropologia, particularmente aos estudos de performance e à antropologia da experiência (Turner,1987; Turner & Bruner, 1986), fundados no preceito de que o conhecimento -aqui, os símbolos-emergem na ação, e não que a ação emerge do conhecimento a priori.

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descritivo, que é o julgamento a um fato da diversidade cultural; orelativismo normativo, onde o julgamento é sobre o sistema cultural; eo relativismo epistemológico, que vai além dos dois primeiros e declaraque tudo é inscrito pela cultura, cada cultura sendo um mundo únicoe incomparável. Spiro, antagonista do radicalismo, busca combater esteúltimo tipo, bem como a antropologia hermenêutica, pois crê tambémque ambos representam a impossibilidade de existir uma disciplinacientífica tratando da alteridade (a antropologia!). Outra perspectivaanti-relativista é a de Gellner (1995), que se mostra defensor de umracionalismo crítico, em favor do universalismo. Para este autor, orelativismo levaria, em suas manifestações na esfera política, aopopulismo e ao nacionalismo, daí sua recusa em aceitar o que entendepor uma obsessão dos antropólogos por mundos fechados de culturacompartilhada.

Em favor de um relativismo radical, pode-se colocar ao lado deHerskovits o filósofo Nelson Goodman (1985), que afirma a existênciade um único mundo mas de uma multiplicidade de versões-de-mundo,mutuamente intraduzíveis. A aborgadem fenomenológica, da mesmaforma, possibilita pensar que múltiplas realidades emergem em funçãoda variedade de necessidades da consciência (Schutz, 1967), e assimtornam-se possíveis os diferentes mundos do sonho, da arte, daexperiência religiosa, da contemplação científica, diferentes provínciasfinitas de sentido (Langer, 1971). Tomando a perspectiva destes autores,quer podemos chamar de relativistas radicais, estamos nos acercandode uma possibilidade: aquela que afirma diferentes apreensões darealidade sonora, já que postula diferentes mundos sonoro-musicais.Neste caso, ao se falar em musicalidade, entra-se também no territórioda cognição, da epistemologia da música, do alcance da cultura naconstrução do mundo sonoro.

Após esta breve exposição do conceito de relativismo cultural5, e retor-nando agora ao universo do jazz e música instrumental brasileira, tragoabaixo algumas observações que se referem ao discurso dos músicos,que muitas vezes estão engajados profissionalmente em outras esferasda música brasileira6, mas que carregam uma musicalidade própria7.

Um primeiro ponto a comentar é que a dimensão harmônica é tratadano discurso dos músicos como a dimensão mais fundamental da músi-ca. De fato, quando se trata de “tirar música”, conforme se diz, o casoé a descoberta da estrutura harmônica em todos seus detalhes: tensõesadicionadas, baixos alterados, ritmo harmônico, etc. Muitas vezes oaspecto melódico parece estar em segundo plano, sendo compreendi-

5 Trata-se deuma dis-cussão muitotangencial.Para maioraprofunda-mento, verHollis &Lukes(1982).6 Por exem-plo, acom-panhandocantores ecantoras deM.P.B.7 VerPiedade(2003,2005).

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do como uma atualização linear de notas de acorde, notas auxiliaresou tensões. Em uma camada mais superficial há, de fato, um pensa-mento homofônico saliente, já que se compreende que as músicas têm,fundamentalmente, uma harmonia e uma melodia (“tema”). Tal formase traduz na notação musical: as partituras são grafadas no formatolead-sheet, ou seja, tema com cifras de acordes. Este modelo denotação prescritiva (Seeger) é prevalente no jazz e nos songbooks degrande parte das músicas populares do mundo8. No Brasil, este modeloestá consagrado pelo setor editorial.

O pensamento harmônico nesta musicalidade coloca em primeiro nívelas relações verticais, sendo que o encadeamento de acordes é com-preendido enquanto sucessão de blocos. A idéia da condução de vozesnão é prestigiada, a não ser quando há a necessidade de transcreveracordes em arranjos9. Pode-se dizer que as relações linearessimultâneas se encontram, a princípio, em segundo plano, e queprevalece um caráter secundário do pensamento contrapontístico. Aomesmo tempo, há uma dedicação à prática de um tipo de improvisaçãoaltamente coerente com este pensamento harmônico, ou seja, baseadana sucessão de blocos harmônicos. Improvisar, no contexto do jazz eda música instrumental brasileira, significa pôr em ação o domínio decertos padrões harmônicos convencionais, o conhecimento de escalassobre estes blocos verticais e a destreza na execução de modelosmelódicos pré-estabelecidos (riffs, grooves e outros clichês).

Na performance encontram-se outros elementos-chave para a com-preensão desta musicalidade. Destaco dois exemplos que revelam acentralidade do pensamento harmônico: a citação melódica e a re-har-monização. Na citação em contexto, trata-se de concatenar ou “fazercaber” em um esquema harmônico uma melodia que lhe é estranhamas que deve ser reconhecida pela audiência. Para além de fertilizarprocessos de referência e criação de significado (Piedade, 2005), acitação em contexto afirma o caráter basilar dos blocos harmônicos,como que relembrando sua perfeição para vários tipos de melodias. Nocaso da re-harmonização, refiro-me a certos momentos nas impro-visações, quando os instrumentistas da base harmônica fazem re-har-monizações espontâneas (alteração ou substituição de acordes, acordesemprestados de outros modos, modulações contínuas, uso de acordes

8 O formato songbook muitas vezes se apresenta em três pentagramas, um para amelodia e um pentagrama duplo para a escrita do acompanhamento para piano.Em geral, mesmo quando a parte de piano é escrita, há a colocação de cifras.

9 Isto se pode verificar em manuais de arranjo, como Guest (1996).

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errantes10, harmonia quartal, etc.) e os improvisadores instantanea-mente compreendem e reagem a estas transformações através do usode padrões adequados (escalas alteradas, modulações na pentatônica,acentuação de tensões novas, escalas “outside”, etc.). A improvisação,portanto, guia-se pelo pensamento harmônico, sua gestalt é o chorus,ou seja, a estrutura harmônica da música.

A partir destas observações, que destacam que a centralidade dopensamento harmônico é uma característica da musicalidade nouniverso do jazz e da música instrumental brasileira, gostaria de refletirsobre a questão do relativismo da musicalidade. Será que, nesteaspecto da prevalência harmônica, o jazz não conseguiu se desvenci-lhar do pensamento musical erudito europeu? Sim, pois é nestatradição que o desenvolvimento harmônico, como uma prerrogativacongênita e evolutiva, atingiu o máximo grau de importância histórica,tanto no nível musicológico quanto no discurso musical. Na verdade,não me proponho a responder tal questão, mas apenas a incitar umadiscussão sobre o impacto do relativismo cultural no estudo dasmúsicas populares.

Tomando o que acima está definido como relativismo radical, gostariade pensar a validade da idéia de diferentes mundos sonoros, que levaà multiplicidade da musicalidade. Ao se postular diferentes mundospossíveis, pode-se afirmar que a construção da realidade sonoro-musi-cal passa por uma ação relativa ao mundo da cultura e da sociedade,onde se aprende a construir seu mundo em comunidade, de formacompartilhada. Culturas diferentes o fazem a seu modo, desenvolven-do diferentes formas de nomear coisas. E diferentes línguas sugeremdiferentes conformações do aparelho cognitivo, e por sua vez diferentesmundos percebidos11.

Neste início do terceiro milênio, uma significativa parte da populaçãodos países desenvolvidos e em desenvolvimento tem acesso a váriosmundos musicais do presente e do passado, de perto e de longe. Oadvento da fonografia, que transformou a humanidade enormemente,já está naturalizado. Esquece-se do impacto da gravação, que deslocaa fonte sonora de sua base espacial, temporal e cultural12. Com isto,uma avalanche de diversidade musical chega aos ouvidos dos ouvintes,exigindo que sua musicalidade se expanda para que possa dar conta decompreender, para além do seu território musical, mundos como o hiphop, “axé music”, música brega, sertaneja, eletrônica, experimental, etambém mundos do passado. O pensamento harmônico da musicali-dade no jazz e na música instrumental não pode ser posto em ação no

10 VerSchoenberg(1969).

11 Para ocaso de umamusicalidadeindígena, verMello ePiedade(2005).

12 A esterespeito, verFeld (1994).

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caso destas músicas, as quais requerem um deslocamento em direçãoa uma outra perspectiva para o mundo sonoro, que é por excelênciauma outra musicalidade, carregada de nexos sócio-culturais. O desafioé pensar que, à luz de um relativismo radical, tal deslocamento se des-dobra também em suas bases cognitivas. Ou seja, ouvir um rap daforma como um nativo da musicalidade hip hop exige um aprendizadode um mundo possível, com todas as suas implicações estéticas, musi-cais, sociais, políticas e morais. Um caminho, uma abertura, não parao gosto, mas para a tolerância.

Referências bibliográficas

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Música para consumir

Irídio Magaldi Johansen de Moura

Pontifêcia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR

Amúsica existe para ser consumida. Não que seja obri-gatório ou inevitável estabelecer-lhe um preço ou concluirque não há mais futuro para ela fora da Indústria Cultural

(Adorno, 2002); nem tão pouco desqualificá-la por ser um produto – jáque ela é um resultado, muitas vezes do esforço e disciplina, doconhecimento adquirido, da criatividade, da sensibilidade. O ato deconsumir tem também um sentido de aproveitar ao máximo, ciente deque sempre há algo mais a descobrir ou constatar. Então consumir amúsica não a desvaloriza, pelo contrário. É preciso extrair dela suaessência, sem medo de gastá-la. Mesmo porque, sendo arte, ela não seesgota, mas renova-se.

Partindo deste princípio, uma das manifestações dessa relação música-consumo a ser observada aqui, difere consideravelmente da que

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Umberto Eco trabalha em Apocalípticos e Integrados, enquantodistingue “canção de consumo” da “canção ‘diferente’”. Não quediscorde das definições e levantamentos ali expressos, mas os conceitosde consumir são distintos em cada um dos textos, no que apontam amúsica como um fim ao consumo. Aqui, o consumo da música não seprende ao caráter mercadológico. Contudo, ambas as análisesconvergem num mesmo ponto, na questão do uso da música, o qualestá intimamente ligado ao meio empregado. O problema (se é quechega a tanto) nem sempre está na música, mas em quem a usa e,especialmente, em como se dá esse uso. De acordo com Eco:

O rádio – nisso ajudado pelo disco – pondo à disposição de todos umaenorme quantidade de música já “confeccionada” e pronta para o con-sumo imediato – desencorajou aquelas práticas de execução autôno-ma que caracterizavam os aficionados, os diletantes musicalmentesensíveis dos séculos passados; inflacionou a audição musical, habi-tuando o público a aceitar a música como complemento sonoro dassuas atividades caseiras, com total prejuízo de uma audição atenta ecriticamente sensível, levando, enfim, a um hábito da música comocoluna sonora da jornada, material de uso, que atua mais sobre osreflexos, sobre o sistema nervoso, do que sobre a imaginação e ainteligência. (Eco, 1993: 317)

No entanto, antes de se ater ao quesito uso da música, é precisoprosseguir nas formas de relação música-consumo. A outra faceta dessaligação indica a música como um meio, um caminho ao invés de umfim. Além de ser consumida, em algumas situações a música tambémserve para induzir ao consumo de outros produtos e/ou serviços; e aísim, aplicam-se necessariamente concepções de Marketing. É o casodo uso publicitário da música. A música publicitária, apesar de tambémpoder ser curtida, desfrutada, aproveitada ao extremo, tem como fina-lidade conduzir à venda. E como toda música fora de seu estado puro,a utilizada na propaganda ganha características particulares. Nãoresponde mais necessariamente aos parâmetros (por vezes um tantopolêmicos e relativos) que decidem o que é uma boa música ou umamúsica ruim. Para a publicidade, bem como no cinema, no teatro, nosjogos de videogame, … importa mais o que separa o bom do mau usoda música.

Outra propriedade singular da música publicitária baseia-se numprocesso comum na propaganda, intitulado AIDA ou AIDCA. Sobreesse sistema, Vestergaard e Schrøder discorrem em A Linguagem daPropaganda:

A primeira tarefa do publicitário, portanto, é conseguir que o anúncio

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seja notado. Uma vez captada a atenção do leitor, o anúncio devemantê-la e convencê-lo de que o tema daquele anúncio específico édo interesse dele. Além disso, o anúncio tem de convencer o leitor deque o produto vai satisfazer alguma necessidade – ou criar uma neces-sidade que até então não fora sentida. Por fim, não basta que o clienteem potencial chegue a sentir necessidade do produto: o anúncio deveconvencê-lo de que aquela marca anunciada tem certas qualidadesque a tornam superior às similares. (1994: 47)

O anúncio ideal deve chamar a atenção, despertar interesse, estimularo desejo, criar convicção e induzir à ação. E a música publicitária, paraobter sucesso em seus préstimos, deve cumprir todas essas funçõesdentro dos limites que lhe são apresentados, articulando-se através daspossibilidades da linguagem e do meio. Seu grande e principal desafioé ser auto-suficiente enquanto discurso de propaganda – em geral comuma duração de 30 segundos, raramente ultrapassando um minuto.

Apesar de ter sua elaboração e aplicações realizadas por teóricos daComunicação, essa estrutura não se restringe a discursos da mesmaárea. Cabe perfeitamente em qualquer texto verbal ou não-verbal(entenda-se assim, qualquer coisa) que objetive persuadir alguém.Desta forma, qualquer música pode seguir consciente ou inconsciente-mente esse método. Mas não se exige isso de nenhuma delas, tal qualo caso de uma trilha publicitária ou principalmente de um jingle pararádio, em que não terá a contribuição de outros recursos como aimagem.

Nem sempre o que chama atenção ou desperta o interesse para umamúsica está na própria música. Existem outros artifícios que favorecembastante. É o caso dos recursos visuais que auxiliam na compreensãoda mensagem e até na decisão de consumir (no sentido mais amplo,sem restringir-se tanto na idéia de compra e venda). Mesmo porque avisualidade só se desligou parcialmente da música com os adventos dodisco e do rádio. Se o “corpo fala”, ele em sua totalidade canta e tocatambém, junto com voz, boca, mãos e pés. Ver a música ser interpreta-da gera sensações e percepções diferentes de somente ouvi-la. Umaboa postura, bons figurinos, cenografias, iluminações, projeções eefeitos especiais interessantes também somam. Uma arte original e bemacabada, na capa dos discos, CDs e DVDs ajuda bastante na escolha.Atualmente, o videoclipe tem sido uma das linguagens mais fortes porconseguir unir o sonoro, o verbal e o visual de maneira coerente e ricaem significados. Resenhas, críticas especializadas (ou não) e a própriapublicidade estimulam e ampliam o desejo, convencem e influenciamdiretamente na decisão de consumir uma música, uma canção.

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Já a música publicitária, enquanto meio e não um fim, exceto em algu-mas ocasiões em que integra uma campanha maior com outras peçasde diferentes veículos e meios de comunicação, deve completar-se emsi mesma e concluir na “venda” efetiva da idéia que propaga. Dela écobrada a habilidade de conduzir o receptor, seu público-alvo, daatenção até a ação – passando por todas as etapas da transmissão dapropaganda sem recorrer a outros fatores, independente de assistência.Não basta ser uma boa música. Precisa ser articulada e utilizada demaneira inteligente.

Para especificar com maior clareza esse uso todo peculiar da música napublicidade, melhor do que exemplificar com uma canção original-mente composta já para essa finalidade, é interessante analisar umamúsica dita “pesquisada” – isso é, aquela que foi criada para outrosfins, mas é tomada por empréstimo, convocada para cooperar nointuito de vender. Todo valor agregado a essa música e até mesmo aoseu intérprete (o atual, o primeiro ou ainda aquele que com ela ganhoumais destaque e fez mais sucesso); juntamente ao momento oumovimento que ela representa, sua relevância social, cultural, históri-ca; é transportado para o novo texto que se constitui: a mensagempublicitária. E se não todos conscientemente, ao menos os valores quemais interessam e melhor se associam com o produto, o serviço, a idéiaa ser divulgada.

Todavia, isso não ocorre sem que antes a música sofra modificações,mesmo que sutis, devido à nova intenção que lhe é imposta. Essaimposição rende à música uma série de novas expectativas e respon-sabilidades. E isso acaba por lhe transformar, tornando-a praticamentenuma nova música, permitindo-lhe novas interpretações, leituras,novos significados; tamanha é a força dessa nova intenção aplicada.

Um exemplo pertinente é o uso da música Vâmo Pulá! (de Sandy eJúnior) num comercial da Chevrolet. Na propaganda, quando é canta-do “vâmo pulá num Chevrolet”, esse novo trecho “num Chevrolet” –que não pertence à versão original da letra – não é um mero acrésci-mo, mas também uma alteração na mensagem da música tal qual éconhecida. Porque não gera apenas um ganho de informação, mas umamudança – ainda que nesse caso de modo bastante tênue – no valor dealgo que já se comunicava. A ação pular (representada em uma licençapoética pelo termo coloquial “pulá”) implica em sair de uma situação,um estado; conseqüentemente, mover-se para um outro lugar. Então opulo, por ser uma atitude breve e de impacto, traz consigo conceitosbem explícitos de antes e depois, diferente de outras ações em que o

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durante ganha tanto destaque que aquilo que lhe antecede ou o quevem logo em seguida ficam apenas subentendidos.

Na canção original, a transição da estrofe para o famoso refrão ocorreda seguinte forma: “Prepare-se, você fará uma viagem incrível /Quando eu terminar de contar / Atenção para a contagem regressiva…5, 4, 3, 2, 1 / Vâmo pulá, vâmo pulá, vâmo pulá, vâmo pulá”. Sendoassim, o enfoque dado ao ato de pular é mais na partida para essa“viagem” citada e prometida. Bem de acordo com uma antiga moda doaxé, aquela do “tira o pé do chão” entoado por praticamente todos oscantores e conjuntos baianos na época – e que possivelmente tenhainfluenciado a composição desse hit de Sandy e Júnior, lançado poste-riormente, porém num período bastante próximo. A convocação emambos os casos é semelhante: simplesmente sair de uma postura e irpara outra insuficientemente especificada.

Contudo, na campanha publicitária da montadora de automóveis(enquanto a canção serve como jingle) o foco nesse pulo é, mais doque diferente, o oposto. Ele recebe um ponto de chegada bem claro eobjetivo. Nisso, a importância não está mais tanto no antes ou durantedo processo e sim na satisfação com os benefícios adquiridos após“pulá num Chevrolet”, o que realmente importa à empresa anunciantetransmitir. Esse convite, quase ordem, é bastante persuasivo e coerenteao discurso publicitário, contribuindo para o sucesso da recepção,compreensão e aceitação da mensagem pelo público-alvo. Pretendeconseguir a atenção e o interesse do ouvinte ao unir numa mensagempersonalidades como Sandy e Júnior a uma marca igualmente conheci-da. Atiça, procurando ou moldando o desejo e tenta convencer atravésda credibilidade e simpatia que as vozes e o carro transmitem e pelaprópria argumentação na letra, que busca uma atitude positiva porparte do receptor.

Porém, a ação que os jingles e trilhas publicitárias pretendem está sujei-ta também às informações e sentidos que os elementos puramentemusicais têm a comunicar. Pois “toda música tem o seu poder expres-sivo, algumas mais e outras menos, mas todas têm um certo significadoescondido por trás das notas, e esse significado constitui, afinal, o queuma determinada peça está dizendo, ou o que ela pretende dizer”(Copland, 1974: 23). Ainda a respeito desse poder comunicativo damúsica, Maria de L. Sekeff associa a estrutura do discurso musical àtríade semiótica de Pierce:

Os seus diferentes parâmetros – duração, altura, intensidade, timbre –e seus diferentes elementos constitutivos – ritmo, melodia, harmonia,

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vetor tonal –, uma vez relacionados (e tudo em música é relação),adquirem uma lógica intelectual e um significado psicológico tal quedeterminam um efeito direto sobre o ouvinte. […] Desse modo a músi-ca linguagem de natureza sensorial (primeiridade), afetiva (secundi-dade) e mental (terceiridade) fala diretamente ao nosso corpo, nossamente, nossas emoções, e contra isso somos relativamente indefesos.(1998: 37 e 46)

Essa definição se assemelha muito aos três modos de ouvir levantadospor Copland, os planos: “sensível”, “expressivo” e “puramente musical”(1974: 22). Enfim, a publicidade almeja atingir o ouvinte nesses planos,sobretudo no emocional. Sensibilizando e estabelecendo laços afe-tivos. Não apenas conquistar mas, despender suas forças e estratégiaspara manter a fidelidade do cliente. Por serem músicas muito breves enecessariamente sucintas, convém aos jingles e trilhas publicitáriasserem constituídos por elementos que se complementem sonora, verbale visualmente – de acordo com Santaella (2001) o sonoro, o verbal e ovisual coexistem, havendo visualidade nos sons e idéias de sonoridadenas imagens. Com o intuito de suprir as fraquezas e impotências unsdos outros, reforçar aspectos positivos e interessantes, nunca se anu-lando ou repetindo-se de maneira vã, sem propósito. Evitar redundân-cias e faltas de sentido. Encarar todos os seus elementos como signos eprocurar levá-los ao mais próximo do extremo ao que diz respeito àspossibilidades de significação. Construindo assim ricas paisagens sono-ras.

Referências bibliográficas

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6. O Desenvolvimento Paraleloda Mente e das Artes Musicais

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Construção inacabada, aberta e em constante movimento:Sobre a constituição do sujeito - Analogia

com a obra musical “Canon em Ré” de Pachelbel

Patrícia Wazlawick Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC (doutoranda)

Kátia MaheirieUniversidade Federal de Santa Catarina – UFSC

Glauber Benetti Carvalho Instituto ConSer; Allegro Escola de Música

Sobre Pachelbel e o “Canon em Ré”

Ocompositor da música que faz agora uma “metáfora para oprocesso de constituição do sujeito” é Johann Pachelbel.Nasceu em Nuremberg no ano de 1653 e faleceu em 1706.1 Foi

compositor e organista genial na improvisação e na técnica docontraponto2. Grande solista de órgão e cravo, tornou-se o músico maisimportante da escola de órgão no sul da Alemanha, antes de JohannSebastian Bach. Tinha preferência por um estilo lúcido e simples, comequilíbrio e clareza musical. Entre suas contribuições à música decâmara, inclui-se Cânon em Ré, que se tornou sua obra mais conhecida(Sadie, 1994), sob a qual teceremos uma analogia com o processo deconstituição do sujeito.

A forma musical “cânone”3 é uma forma de composição muito difun-dida pelos compositores do século XVI, e cujo tema, iniciado por umavoz – o antecedente – é continuamente imitado por outra(s) voz(es) –o(s) conseqüente –, à distância de um ou mais compassos, até o fim.Pode ser em uníssono, quando as vozes repetem exatamente as mesmasnotas; à oitava, quando o(s) conseqüente(s) são transpostos à oitava; e

1 Integrante do Primeiro Barroco na música ocidental. Para conhecer sobre a biografia e obra dePachelbel, ver Cande (1964), Sadie (1994), Franco (2005).2 Soube combinar o tecnicismo dos compositores alemães, com o virtuosimo dos mestres italianos,

criando um estilo que foi atingir seu apogeu com Johann Sebastian Bach (Franco, 2005). 3 De acordo com Horta (1985: 64), o cânone constitui uma “técnica ou peça em que uma melodia

imita exatamente uma outra (normalmente à pequena distância), como se a estivesse perseguindo,mas sem nunca alcançá-la…”. Ver também definição de cânone no Dicionário Grove de Música(Sadie, 1994: 163), e polifonia em Horta (1985), Sadie (1994).

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circular ou rota, quando as imitações percorrem todos os tons (Ferreira,1977).

O Cânon em Ré foi composto para um baixo e três violinos. É de cará-ter simples e espirituoso. Começa com notas longas, que gradualmentese tornam rápidas, enquanto o baixo retorna à velocidade inicial.

Isto pode ser afirmado a partir de uma análise musical. Dentre váriosaspectos desta música percebe-se que estruturalmente ela é de umasimplicidade que causa admiração. De acordo com Cande (1964: 237),a originalidade de Johann Pachelbel “…reside na pureza e na grandiosasimplicidade do seu estilo que contrasta com o estilo virtuosístico dosorganistas do Norte da Alemanha”.

Está na tonalidade de Ré Maior; apresenta três vozes, e um cravo quefaz os acordes da progressão harmônica. Uma das vozes é a do baixo,que não “participa” do “efeito” cânone, tocando apenas as tônicas. Asoutras duas vozes são executadas por violinos. Existe uma estruturabásica que se apresenta em oito compassos, acontecendo quinze vezesao longo da música toda. Seu compasso é quaternário (c).

Cada compasso da estrutura básica tem uma função: 1º- tônica, 2º-dominante, 3º- tônica, 4º- dominante, 5º- subdominante, 6º- tônica, 7º-subdominante, 8º- dominante. Em termos musicais esta progressão har-mônica seria representada da seguinte forma: I V VIm IIIm IV I IV V,sendo os acordes, nesta tonalidade, respectivamente: | D A Bm F#m GD G A |. Isto também foi evidenciado na análise harmônica de Summer(1995: 36).

De acordo com a movimentação melódica e harmônica da música, naprimeira vez que a estrutura básica é tocada apresenta-se o baixo e ocravo. Na segunda vez, a primeira voz inicia-se na nota de fá sustenido(fá#) e vai, em um movimento descendente na escala de Ré Maior, pas-sando pelos acordes, com os quais cria os seguintes intervalos, emrelação à nota tônica destes acordes: 3ªM, 5ªJ, 3ªm, 5ªJ, 3ªM, 5ªJ, 3ªMe 3ªM (sensível). Na terceira vez da estrutura básica entra a segunda vozfazendo um contraponto, porém em um movimento paralelo com aprimeira voz, sendo que o cânone só se inicia, efetivamente, na sextavez em que acontece a estrutura básica. Na quarta e quinta vez asvozes passam a se movimentar de modo independente.

Os cânones iniciados na sexta vez que se reapresenta a estrutura bási-ca não são uma simples repetição. Existe um cânone “diferente”. Pareceque é um cânone levado ao limite, ou seja, à fronteira daquilo que

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4 Terceirida-de: “corres-ponde ànossa esferacognitiva, aomovimentodo pensa-mento emsignos, àcaptação daestruturamusical, àsínteseintelectualpor meio daqual repre-sentamos einterpreta-mos omundo...”(Sefekk,1998: 42).Ver tambémSantaella(1983: 51).

depois, não seria mais um cânone, que só é possível por meio dealguém que domina completamente esta técnica. Pode-se dizer que éum cânone em nível de Terceiridade, segundo a compreensãoSemiótica de Peirce4, onde a máxima resultante lógica e complexa sevolta ao simples, ou seja, à Primeiridade. As repetições não acontecemde maneira que se possa “sentir” que algo está repetindo, mas hácânone de idéias melódicas, rítmicas e até de timbres e tessituras.

Aqui se pode iniciar a analogia da música apresentada com a questãodo processo de constituição do sujeito.

Para fazer um “resumo da ópera”, ou melhor, do cânone, destaca-seque sua construção musical se inicia no baixo contínuo. Uma base quesustenta desde o começo. A partir dele, entra a movimentação musicaldo cravo, uma linha melódica é construída, e ainda uma segunda.Melodias que se entrecruzam, caminham em paralelo, se contrapõe,geram intervalos entre notas, que se identificam em alguns momentos,em outros não, são independentes, e que por caminharem juntas – oque não significa estarem em concordância – vão constituindo o tododa peça musical. É o movimento da polifonia, simultaneidade de váriasmelodias que se desenvolvem independentes, dentro de uma mesmatonalidade. Melodias que se identificam na trajetória deste percurso,identificações em curso. Melodias que se cruzam, se tecem, aconte-cem, se contrapõe no contexto musical. Um grande e diverso movi-mento, onde há diálogo, escolhas que levam a outros lugares, contra-posições. Contra ponto. Nota contra nota. Poli fonia. Independentes,mas ocorrendo juntos em uma trajetória. Um movimento não derepetição, mas inovação dentro de um já conhecido. Um desconheci-do que entra sonoramente e participa junto, permitindo conhecer o queexiste e criar algo novo a partir da interface. Um baixo contínuo quemantém um existente, e que se inova a cada momento com a presençae construção da música, de sons outros que se fazem audíveis e cons-tituem o todo. Porque primeiro há uma voz afirmada, depois é negadapela presença de outra, que não a repete integralmente, mas que noembate com a primeira cria um outro som, outro todo de sonoridadespossíveis, e tecem algo novo pelo seu entrecruzamento, um movimen-to dialético, assim como o processo de constituição do sujeito.

Contradição, ambigüidade. Uma síntese inacabada e aberta (Maheirie,2002), porque não se fecha na permanência e aceita outras possibili-dades, ou movimentos que a ela não apenas se somam, mas queacontecem ora na contradição, ora na unicidade, produzindo sempreum devir, um vir-a-ser.

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Sobre a “constituição do sujeito” e a analogia com o cânone

O projeto, “a práxis, com efeito, é uma passagem do objetivo ao obje-tivo pela interiorização”, pela subjetividade (Sartre, 1984: 154). Estafrase de Sartre se configura como uma nova “voz” a ser desenvolvidanesta “composição”. Entendendo, a partir daí, que nenhuma objetivi-dade no mundo humano pode ser desprovida de subjetividade, e, aomesmo tempo, que não há subjetividade que não se objetive. Com estaidéia é que se pretende, agora, tecer um novo “cânone”, que tal comono “Cânon em Ré”, não irá fazer única e estritamente uma repetição da“voz seguidora” sobre a “voz líder”, mas buscar articular os elementosaproximando-se da compreensão deste que pode ser o movimento deconstituição do sujeito, um movimento, diga-se de passagem, tambémpolifônico.

Falar de constituição do sujeito na perspectiva histórico-cultural daPsicologia, é falar do movimento dialético que existe entre objetividadee subjetividade. Essas duas dimensões que se fazem constituintes dosujeito. Pela contínua movimentação entre objetividade e subjetividadeé que o sujeito vai se constituindo, de modo que poderia ser definidocomo produto aberto e inacabado da relação entre subjetividade eobjetividade (Maheirie, 2002). Estas dimensões estão permeadas umapela outra, uma construção em mão dupla, um movimento que sedesenvolve em espiral… um movimento tal como a composição de um“cânone” - onde as vozes5 não são uma simples repetição uma daoutra, mas um cânone tecido por estas duas vozes e levado ao limite,à fronteira daquilo que depois, não mais seria um cânone. Ou que atéseria, justamente por conter ainda, mas de modo transformado, estasmesmas duas vozes, que também não seriam mais as mesmas, visto quejá estariam, por sua vez, transformadas.

Este movimento dialético não acontece no vazio, pois “o sujeito é cons-tituído e constituinte do contexto social no qual está inserido”(Maheirie, 2003: 147). Ou ainda: “…inserido neste cenário de múlti-plas singularidades que se entrecruzam ele realiza a sua história e a dosoutros, na mesma medida em que é realizado por ela, sendo, por isso,produto e produtor, simultaneamente…” (Maheirie, 2002: 36). Nesteponto, a contextualização do espaço, tempo e momento histórico sefaz imprescindível, uma vez que existem determinações e limites colo-cados pelo sistema político-social-econômico no qual se está inserido.No entanto, além das determinações, o homem tem a possibilidade deescolha, ou seja, de atuar no mundo (Sartre, 1984). Isto sempre emvolta à compreensão de que o sujeito é constituído a partir da objetivi-

5 Aqui seentendam“as vozes”como asdimensõesobjetiva esubjetiva dosujeito.

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6 Notaacrescidapelosautores.

dade, mediada pela subjetividade, e estabelecendo vínculos derelações as mais diversas possíveis.

Sartre (1984) fala do “projeto” como o motivo pelo qual a realidadehumana seja sempre “desejo de ser”. De acordo com Maheirie (2002),o desejo de ser é “…aquilo que movimenta o sujeito no mundo e seumovimento é o impulso ao não existente, aquilo que não se é” (ibid.).Então, o que é este projeto senão o desejo de ser “alguém”? O projetoé um sujeito. O desejo de se fazer aquele alguém que ele deseja ser.

É o projeto da existência de um sujeito. Não é algo que se espera dofuturo, em termos de expectativa, muito embora o futuro faça partedeste projeto, assim como o já vivido e os momentos presentes. É umarticular, um constituir-se sob a trama destas três dimensões. É o mover-se da subjetividade em relação àquilo que ela ainda não é. A subjetivi-dade enquanto ainda não “sendo”, enquanto ausência de realidade físi-ca, que, na dialética com a objetividade, com o existente – aquilo quejá é –, poderá se constituir em realidade física, em objetividade.Subjetividade objetivada. O processo de constituir-se sujeito passandodo objetivo ao objetivo pela subjetividade (Sartre, 1984).

Um processo que transforma e mantém. Transforma porque parte dealgo que se mantém, e se supera. Mantém porque, ao se transformar,carrega junto o momento primeiro de que existe para poder depois setransformar. E isto se pode ver na movimentação musical do “Cânon emRé”. É com este olhar que se pode entender, seja no “Cânon” seja naconstituição do sujeito, que “segundo a concepção dialética, a passa-gem do “ser” ao “não-ser” não é aniquilamento, destruição ou mortepura e simples, mas movimento para outra realidade. A contradição fazcom que o ser suprimido se transforme” (Aranha & Martins, 1993: 89).

É na trama das relações sociais que este processo ocorre. Zanellabaseia-se no psicólogo russo Vygotsky para que se possa compreendero processo de constituição do sujeito. Segundo a autora, “a dimensãodo outro, ou mais adequadamente falando, da relação com um outro é,por sua vez, uma constante: as explicações do autor [Vygotsky]6 sobrea constituição do psiquismo humano fundam-se no pressuposto de queesta se origina no contexto das relações sociais” (2005: 8).

Compreende-se aqui o sujeito como um ser que se constitui dialetica-mente, por meio das relações que vivencia no mundo, produzindo suahistória, a dos outros e por elas produzido. Constitui-se, portanto, a par-tir de determinações econômicas e sociais, mas o faz orientado por um

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futuro, mediado semioticamente7 no contexto específico no qual seencontra.

Isto demonstra, remetendo-se ao “Cânon em Ré”, de Pachelbel, quesem a relação entre as vozes - que constituem a polifonia, ou sem arelação entre as linhas rítmicas e melódicas do baixo, do cravo e a poli-fonia tecida entre violinos e violas, o cânone não poderia existir. Umavoz precisa da outra para existir, e indo um pouco mais adiante ou mais“a fundo”, cada nota musical em si é afirmada e integra-se aos movi-mentos melódicos e harmônicos devido as outras notas musicais, quejunto ou contrariamente a ela tecem o próprio fato do existir enquantonota, enquanto som, integrando, no contexto total da composição, aforma do cânone, que depois se constituiu no “Cânon em Ré”, pelaatividade e pelo significado que atribuía, pelo fazer musical de JohannPachelbel. Que por sua vez, enquanto homem, músico, organista,professor, compositor, tem também a sua própria história, inserido numdeterminado contexto histórico-social, cultural, musical, que opermitiu constituir-se enquanto tal, e objetivar, neste contexto todo,suas músicas.

Ao compor este dueto entre as vozes da psicologia histórico-cultural eda música, com o “Cânone em Ré”, para se fazer audível o processo deconstituição do sujeito, finalizamo-lo com aquilo que se pode chamarde “coda”, fazendo ouvir a voz de Zanella: “…o encontro permanentee incessante com um outro possibilita reconhecer a pluralidade do quese é e do que se pode vir a ser” (2005:15). Esta voz contrasta e tece tam-bém um cânone com outra voz, quando diz que “constituir-se comosujeito é, nesta perspectiva, realizar a dialética do objetivo e do subje-tivo, já que o sujeito existe como subjetividade objetivada, que pelasubjetividade (…), se objetiva novamente (…), e assim infinitamente…(Maheirie, 2002: 37).

“… A existência é o lançar-se contínuo às possibilidades sempre reno-vadas”. (Sartre, 1984: 304).

Referências bibliográficas

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FRANCO, A. T. (2005). O adágio de Albinoni e o Cânon de Pachelbel. Revista

7 Estamediaçãosemiótica sedá principal-mente pormeio daação dosigno lingüís-tico e dasfunções dalinguagem,segundocompreendi-do emVygotsky, aoserem uti-lizados pelossujeitos emrelação, oque configu-raria anaturezasocial e cul-tural dasfunçõesmentaissuperiores,permitindoao sujeitoproduzir sig-nificaçõesem suasações evivênciasconcretas nocotidiano, euma dimen-são simbóli-ca da vida(Pino, 2005).

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Tabus, Mitos e Preconceitos:o talento sob diferentes perspectivas

Graziela Bortz

Instituto de Artes - UNESP

Há alguns anos, em minha ansiedade em me realizar comotrompista e entediada pela rotina dos ensaios na OrquestraMunicipal de São Paulo, cometi alguns erros que resultaram

no colapso de minha técnica. Como muitos músicos, iniciei-me noinstrumento de maneira “natural”, sem grandes impedimentos técnicos,e o que parecia uma dificuldade momentânea resultou num problemaquase intransponível, estendo-se por anos a fio. Procurei ajuda deprofissionais e textos, passei por questionamentos diversos, inclusive ode haver me enganado a respeito de meu talento, até descobrir o pesodessa palavra que usamos com muita freqüência, indiscriminadamente,sem nos darmos conta do julgamento que ela implica.

O dicionário de Aurélio Buarque de Holanda traz no segundo sentido– figurado – da palavra talento, a seguinte descrição: aptidão natural ouhabilidade adquirida. Infelizmente, a cultura brasileira valoriza a“aptidão natural” em detrimento da “habilidade adquirida”. De acordocom Sérgio Buarque de Holanda (2003: 82-3), “o prestígio universal do‘talento’, com o timbre particular que recebe essa palavra … provémsem dúvida do maior decoro que parece conferir a qualquer indivíduoo simples exercício da inteligência, em contraste com as atividades querequerem algum esforço físico”, ou, nas palavras de Leppert (1993:27): “nenhum poder é tão absoluto como o de aparentar não fazer nadaenquanto os outros fazem por você”. O ideal de poder está sutilmenteafinado ao de “facilidade” e “naturalidade”.

Deixando os ideais de poder à parte, sabe-se que a cognição musicalde estudantes e profissionais não se explica somente com base em suascapacidades “naturais”. Kemp (Hargreaves & North, 1997: 25-6) afirmaque o desenvolvimento das habilidades musicais de um indivíduodepende, entre outros fatores, da “existência ou aquisição de uma com-binação incomum de fatores de personalidade”. Argumenta que o“desenvolvimento musical reflete o tipo de pessoa que os músicos ten-dem a ser, assim como o ambiente em que tendem a se nutrir”. Fatoresindividuais como: introversão/extroversão, independência, sensibili-dade e ansiedade, assim como fatores externos como: estereótipos degênero e ambiente educacional interagem com habilidades físico-

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motoras, de memória e percepção. Tendemos a resumir os vários fatoresque levam ao desenvolvimento musical ao termo genérico: talento.

Tanto a concepção de talento musical como seu oposto, a inabilidade,parecem não ter significado na tribo Anang Ibibo da Nigéria. Davidsonet al. (Hargreaves & North, 1997: 188-89) mencionam a pesquisa doetnomusicologista J. Messenger que, ao estudar o comportamento emrelação à música e à dança daquela tribo, diz não haver encontradonenhuma pessoa com problemas de cognição de alturas, nem tam-pouco o termo “anti-musical”. Ao contrário do que ocorre no Ocidente,esse conceito era inexistente numa tribo onde a dança e a músicafazem parte do cotidiano comum a todos os integrantes. Davidsonafirma que a prática e o conhecimento das habilidades musicais são,no Ocidente, reservados apenas a uma minoria seleta, qualificadacomo detentora de alguma “dádiva ou talento especial” herdadobiologicamente.

Exemplo da idéia de herança genética ou atributo dos deuses encontra-se na reportagem de Teixeira (2006: 65) na Revista Veja sobre a influên-cia da corrupção na atitude ética do cidadão brasileiro. Num exemplofictício, aconselha um professor de tênis que detecta a “falta de poten-cial” de um aluno a “ser claro a respeito de seu julgamento” para queele não alente sonhos impossíveis de serem realizados. Sempre fuiadepta da idéia de que não existe professor, por melhor profissional queseja, capaz de identificar o potencial que um aluno tem de superar suasdificuldades e muito menos julgar seu grau de “talento”. Jamais levariaum aluno a desistir de tocar um instrumento por julgá-lo inapto, poruma simples razão: eu poderia estar errada.

O’Neill (Hargreaves & North, 1997: 48-9) afirma “não haver um acor-do geral entre pesquisadores sobre qual deveria ser a definição precisade ‘habilidade’ musical”, muito embora testes de aptidão sejam aplica-dos em escolas na Grã-Bretanha, que utilizam a relação causal entre“habilidade musical e achievement”. Por essa razão, acredito quesomente o praticante pode definir, ainda que somente tenha condiçõesde fazê-lo ao adquirir maturidade, o rumo que dará ao seu estudo musi-cal. Parece-me demasiado prepotente a atitude de certos professores (edirigentes de orquestras) em escolher o destino que um músico vai dara sua carreira. Em outras palavras, definir com exatidão o significado dapalavra talento, se é que isso será possível, requerá a coordenação dediversos aspectos da prática musical, incluindo: fatores ambientais,cognitivos, de gênero, motivação, psicológicos, educacionais e, nãomenos importantes, considerações a respeito das relações de poder nasociedade.

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Música: Gênero Feminino, Propriedade Masculina,Perda para Todos – Relações de Poder entre os Sexos Opostos

Comentando uma pintura feita num virginal no século XVII naInglaterra, Leppert diz:

A magnitude da dominação masculina é tal que as próprias artes lhesão inteiramente incorporadas; à mulher que toca o virginal, restarealizar o que o homem lhe prescreveu. … A relação entre notaçãomusical e vigilância é mais estreita do que a história da estética tempreferido considerar. Para expressar o assunto ainda mais escandalosa-mente, [a notação] foi desenvolvida para dar às pessoas ordens aseguir. O fato de [a existência de] grande música ser indiscutivelmenteligada à longa história da notação não diminui o preço social dessaconquista, que não é desconsiderável (1993: 133).

Leppert (1993: 72) afirma que a música é estreitamente relacionada atudo o que é feminino, incluindo aí o sentido de inferioridade.Historicamente, o homem recebeu pouco estímulo para estudar músi-ca como intérprete,1 enquanto, ao contrário, foi encorajado a abordá-la como “‘ciência’, concatenando filosofia e matemática” (p. 64). Eleainda sugere que a evidente “agressividade, imposição e insistência emmuito da música instrumental do século XIX” soa como um grito de“súplica” masculina pelo direito de exercer a atividade musical e umarecusa à idéia embutida pela cultura de que a atividade artísticapertence exclusivamente ao universo feminino (p. 187).

O trabalho de O’Neill (Hargreaves & North, 1997) aborda a mesmaquestão sob outro ponto de vista: tanto meninas como meninos vêema música como uma atividade feminina. Ao crescerem, no entanto, asmulheres têm que lidar com o fato de que profissionalmente são con-sideradas “inferiores”. Como intérpretes, meninos optam por instru-mentos culturalmente relacionados à masculinidade, como percussão etrombone, ou preferem embrenhar-se em tecnologia musical, evitando“uma espécie de transexualismo musical”.

Esses fatores sociais e culturais em torno do gênero seguramentecontribuem para a motivação e conseqüente assimilação no decorrerdo desenvolvimento musical do indivíduo. Para O’Neill, somente osmeninos com maior motivação intrínseca seguirão no estudo damúsica, enquanto as meninas mais motivadas irão certamente sedeparar com dificuldades no desenvolvimento da carreira, ainda quetenham alcançado maior grau de assimilação no estudo. Suasdificuldades, talvez maiores em países cuja tradição em manterestereótipos de gênero como o Brasil, já começam na própria

1 Analisandoum panfletodo últimoquarto doséculo XVI,Leppertdeduz que oautor consi-dera músicacomo “umaentidadefeminina…,cuja missãoé desmas-culinizar ohomem”(1993: 89).

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formação, justamente por iniciar seus estudos freqüentemente comprofissionais do sexo oposto, especialmente nos instrumentoscategorizados como “masculinos”.

Tive uma aluna de compleição pequena que já estudava trompa haviadois anos e mostrava alguma dificuldade para projetar o som e manteras notas constantes e afinadas. Percebi que era necessário mudar aposição do bocal para a tradicional proporção de 2/3 do bocal apoia-dos no lábio superior para 1/3 no lábio inferior. Passadas as primeirassemanas, a menina passou a produzir um belíssimo som e a se expres-sar em frases contínuas, num exemplo de como a simples observaçãodestituída de julgamento pôde mudar o resultado final.

Profissionais, muitas vezes competentes, tornam-se automaticamenteexcelentes professores quando ensinam alunos e alunas que não de-monstram dificuldades, mas quando estes apresentam problemas, sãoresponsabilizados por sua falta de talento. A isso dou o nome de exer-cício do poder. Acredito que o papel do professor é o de observar oaluno com isenção de julgamento e, como é seu papel, procuraridentificar e oferecer soluções possíveis para seus problemas.

Poder e Humilhação

Segundo Wilson (Hargreaves & North, 1997: 230), o “orgulho humanoé um motivo tão poderoso que o medo da humilhação pública produz,com freqüência, o mesmo grau de pânico emocional” do homem quedeve fugir de um “tigre de dentes de sabre”. O artigo discute os váriosfatores que levam o músico a sentir pânico ao tocar em público epropõe algumas formas de tratamento. Deixa de considerar, porém, ascausas da ansiedade.2

Pergunto: é fundamental que o músico toque em público? O músico éartista porque se apresenta? Minha resposta é: não. Concordo comRilke (1992: 22) quando aconselha seu correspondente a deixar depedir a opinião alheia a respeito da qualidade de seus versos: “Osenhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveriafazer neste momento. … Não há senão um caminho. Procure entrar emsi mesmo”.

Jung (1971: 79) diz que “a principal de todas as ilusões consiste emadmitir que alguma coisa pode satisfazer alguém. Esta ilusão está portrás de tudo o que é intolerável e na frente de todo e qualquer progres-so”. Julga a idéia de poder que persegue o homem ocidental umailusão, e se pergunta o que poderia ser feito “para que renunciasse a

2 Comexceção damenção àpreparaçãotécnica ade-quada antesda apresen-tação e daconsideraçãoda terapia deindivíduosque apresen-tam sintomasde fobiasocial,tratandoestes comocasos indi-viduais – oque outrapesquisa nomesmo livrodemonstra ocontrário: “Ébem docu-mentado quemúsicos ten-dem a serintrover-tidos”(Hargreavese North,1997: 27) —o autor deixade consider-ar, para mimum fator cru-cial, aorigem domedo dahumilhação:o ideal depoder.

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seu terrível poder” (p. 57).

A opinião do outro tem o poder de conduzir o músico à humilhação ouà exaltação. Qualquer das opções é ilusória porque corresponde a umaidéia passageira e parcial. Se eliminarmos as ilusões criadas pelasrelações de poder, a apropriação da verdade perderá a importância.Nenhum dos lados envolvidos será mais forte, nenhum mais fraco.Talvez então poderemos nós, do Ocidente, eliminar a idéia de quealguém pode ser “não-musical” e passar a respeitar o talento adquirido,suado e conquistado, tanto quanto o natural ou herdado.

Fluxo: Uma Alternativa

Nakamura explica o conceito de “fluxo” desenvolvido porCsikszentmihalyi (Csikszentmihalyi & Csikszentmihalyi, 1988: 320)como um estado de concentração e prazer onde os desafios e habili-dades se equilibram. Csikszentmihalyi (1988: 11-2) afirma que esseconceito é particularmente importante na área de educação, onde umapesquisa demonstra que o rendimento de alunos de ensino médio quesentiram prazer nos cursos foi superior ao previsto por avaliações dehabilidades e conhecimentos.

Larson (Csikszentmihalyi & Csikszentmihalyi, 1988: 164) observou oprocesso de trabalho de alunos do curso de inglês de ensino médio nosEUA com o mesmo grau de conhecimento, experiência e habilidade.Eles produziram textos qualitativamente distintos de acordo com amaneira com que reagiram emocionalmente às tarefas. Aqueles que sesentiram sobrecarregados, produziram trabalhos fragmentados, aquelesque se sentiram entediados, produziram textos tediosos. Ao contrário,aqueles que se sentiram à altura da tarefa e se envolveram com ela comequilíbrio entre razão e emoção, comunicaram-se com clareza atravésdo texto. “Muito freqüentemente pensamos a cognição como separadada emoção, como se os processos cognitivos pudessem ser entendidosindependentemente do afeto e vice-versa”.

Comparando o “fluxo” ao ideal zen, onde o ego não deve estarpresente no processo artístico, e criticando a execução musical queprivilegia o resultado sobre o processo, Agrell (2003: 36) propõe umarevisão do sistema de valores na interpretação. Diz que “a mente queresponsabiliza o ego por imprecisões tenta assumir o processo, forçá-lo. Isso resulta em tensão, estresse e aumento da imprecisão”.

Exercer uma atividade artística com prazer exige maturidade emocionale despreocupação com o ambiente ao redor, o que não significa

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isolamento, mas sim parceria, onde todos os lados (incluindo público)estão interessados em um único fim: o de produzir música com alegria.Acredito serem anacrônicos tanto o estímulo externo que se procuraatravés da competição entre os músicos como a hierarquia estabeleci-da na música clássica, e que ambos produzem distorções nasatividades artísticas. Embora Csikszentmihalyi (1990: 50) admita que“os desafios da competição podem ser estimulantes e prazerosos”,afirma que “a competição é prazerosa apenas quando é um meio deaperfeiçoar as próprias habilidades, quando se torna um fim em simesma, deixa de ser divertida”.

O que todos queremos é o constante aperfeiçoamento de nossashabilidades e isso se constrói com cumplicidade, curiosidade edeterminação, e não com o domínio da verdade e o exercício do poderde acordo com hierarquias determinadas e inflexíveis. O professor, omaestro, o crítico e o público que for capaz de reconhecer que não éuma divindade por si mesmo, saberá fazer a sua parte, que nada maisé que reconhecer seu grau de humanidade e participação neste mundoem que “estamos todos no mesmo barco”.

Referências bibliográficas

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Musicoterapia na educação musical do portador de atrasodo desenvovimento: Período crítico e plasticidade cerebral

Cybelle Maria Veiga Loureiro

Leonor Bezerra Guerra

Maria Cecília Cavalieri França

Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

Esse estudo resulta de uma dissertação de mestrado que, através deextensa revisão bibliográfica, deduziu estratégias e adaptaçõesmetodológicas de exercícios da prática da educação musical

dirigida para o desenvolvimento da atenção, memória, comunicação,habilidades motoras, amadurecimento emocional e socialização dosportadores de atraso do desenvolvimento, podendo assim auxiliar essapopulação de forma diferenciada. São abordadas as várias concepçõessobre desenvolvimento humano, predominantes entre os séculos XVIIIe XX por considerarmos fundamental a conjugação de teorias paraconstrução da fundamentação para a prática da educação musicalvoltada para o desenvolvimento das potencialidades musicais dessascrianças. A teoria dos “preformacionistas” perdurou até o início doséculo XVIII, considerando que hereditariedade e o meio ambienteeram os determinantes fundamentais do desenvolvimento humano.Para eles, biologicamente, todas as características corporais, talentos,interesses e competências eram selados no momento da concepção doser humano. Um atraso em seu desenvolvimento era considerado como“defeito de estoque” onde pouco ou nada poderia ser feito, pois era umestado nato e estático. Com Rousseau, Pestalozzie e Frobel, teve inícioo “predeterminismo”, que introduziu, no século XIX, a idéia da existên-cia de uma progressão universal para todas as crianças nos diferentesestágios do seu desenvolvimento. Uma importante contribuição dessesautores é que enfatizavam a necessidade e importância da música parao desenvolvimento completo das capacidades intelectuais e expressivasda criança. Quanto à deficiência, no entanto, acreditavam que o poten-cial de um deficiente poderia se tornar menos comprometido, mas nãomelhor do que geneticamente já estava determinado. Os conceitos deinteligência e de desenvolvimento passam, naquela época, a ser bas-tante pesquisados. Consequentemente, surgiram novas idéias na edu-cação que contribuíram para o que passou a ser denominado comodesenvolvimento global – educacional, psicológico, e social – dessas

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crianças, transformando radicalmente suas vidas (Lima e Fonseca,2004). A música desempenhou um papel importante nos programaseducacionais que passaram a ser desenvolvidos voltados para essasnovas idéias. A identificação da sua função em prol da educação dessaspessoas pode ser encontrada nos registros de estudos históricos damusicoterapia na educação especial, onde Seguin e Montessori sãocitados como os defensores do uso da música nesses programas (Alvin,1975: 48; Peters, 1987; Davis, 1999; Gfeller, 1999; Adamek, 2005).Ambos são considerados pioneiros na adoção do posicionamento deque, mesmo os casos clínicos mais difíceis, poderiam ser retificadosatravés de um ensino voltado para a estimulação sensorial, o que deuorigem à abordagem “ambientalista” dos desvios mentais. No final doséculo XIX e início do século XX, essas idéias foram desenvolvidas porHowe. Este defendia que o desenvolvimento da criança é o produtoacumulativo de uma contínua interação entre hereditariedade e meioambiente, dando origem à abordagem “interacionista”. Howe foi o pre-cursor da idéia de que o caminho certo para o desenvolvimento edu-cacional dessas crianças seria dentro das escolas comuns, junto aoscolegas comuns e em todas as áreas possíveis de obtenção de conhec-imentos, facilitando o desenvolvimento máximo de seu potencial. Noinício do século XX, fez-se necessária a criação de critérios de avalia-ção desses alunos, o que levou o ministro da educação do governofrancês a incumbir Binet e Simon, no ano de 1904, da elaboração deum teste de inteligência para auxílio à colocação de crianças comdéficit mental em salas de aula apropriadas.

Sabemos, hoje, que testar inteligência não se resume em (ou a?) mediruma capacidade fixa, mas sim apresentar uma variabilidade do poten-cial cognitivo de acordo com o grau de adaptação do indivíduo aomeio-ambiente e aprendizagem. O nosso desenvolvimento cognitivo ea nossa capacidade adaptativa às mudanças que ocorrem no nosso dia-a-dia, são altamente dependentes das acomodações do sistema nervoso(SN) a elas. Processos cognitivos englobam uma variedade de habili-dades que se somam e interagem no auxílio ao processo adaptativo dedesenvolvimento de estratégias que implicam em adquirir, interpretar,organizar, armazenar, recuperar e, por fim, utilizar nossos conheci-mentos (Lent, 2002: 2-14). O comportamento adaptativo é definidocomo maturação, aprendizagem e ajustamento social. O termo “matu-ração” é utilizado para explicar o processo de funcionamento rudi-mentar do sistema nervoso quando do nascimento do bebê e asmudanças rápidas que ocorrem principalmente dos dois aos quatroanos de idade. Durante a primeira infância e a fase pré-escolar, a crian-

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ça busca dominar habilidades básicas da vida cotidiana, cuja naturezaé sensório-motora (comer, sentar, andar, falar, usar o banheiro e vestir-se). A “aprendizagem” manifesta-se na aquisição de habilidadesacadêmicas como ler, escrever e contar. O ajustamento social se refleteno grau de relacionamento interpessoal atingido pela criança emrelação às normas culturais e na observância de normas e leis de acor-do com o exigido pelo ambiente. Durante o processo de aprendizagemocorrem modificações estruturais e funcionais das células neurais e desuas conexões, ou seja, o aprendizado promove “modificações plásti-cas” no cérebro. Todas as diferentes células do SN são dotadas de “plas-ticidade” que é definida como o processo pelo qual neurônios podemtransformar, de modo permanente ou pelo menos prolongado, a suafunção e a sua forma, em resposta à ação do ambiente externo. Estudosde patologias resultantes de lesões no SN, contribuíram para o conceitode “neuroplasticidade”. A plasticidade, após lesão neural ou dano cere-bral, ocorre simultaneamente no local onde ocorreu a lesão e tambémdistante dela. O sistema nervoso central (SNC) se organiza após umalesão, mediante intervenções medicamentosas, terapêuticas ou educa-cionais que podem resultar em reorganização neurológica, inclusiveatravés da proliferação de uma população de neurônios em resposta aestimulações do mundo externo fornecidas pelas estratégias men-cionadas. Foi demonstrado que a neuroplasticidade não ocorresomente nos casos patológicos, mas também tem importância nosperíodos de desenvolvimento pré e pós-natal, bem como nos processosde aprendizagem e de memorização de todas as crianças, além de seestender, embora com menor intensidade, ao longo de toda a vida deum indivíduo. A esses períodos de maior plasticidade, dá-se o nome de“período crítico” ou “receptivo” do desenvolvimento do SN. O períodocrítico refere-se ao grau de plasticidade que varia com a idade do indi-víduo. A plasticidade é maior durante os primeiros anos de vida, quan-do o SN é mais suscetível às transformações produzidas pelos estímu-los ambientais. Alguns aspectos do desenvolvimento do SN no períodocrítico do portador de atraso do desenvolvimento são consideradosainda mais relevantes, pois é quando o processo de aprendizagemcausa modificações estruturais e funcionais mais significativas nosneurônios e suas conexões. Essas modificações propiciam a aquisiçãode habilidades, o quê, consequentemente, aumenta a necessidade deintervenção terapêutica e educacional precoce. Intervenção precoce édefinida como uma estimulação adequada e contínua, que consideratodas as modalidades sensoriais – visual, auditiva, olfativa, tátil, gusta-tiva, cinestésica, proprioceptiva – e a integração entre elas no auxílio à

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maturação do SN. A estimulação no período crítico é determinada peloseu caráter sistemático e seqüencial, isto é, ininterruptamente e deacordo com os diferentes estágios ou seqüência do desenvolvimento dacriança. A plasticidade neural fundamenta e justifica a necessidade daintervenção precoce, pois é considerada um processo que deve acon-tecer desde os primeiros dias de vida da criança portadora de deficiên-cia, não somente pelos seus benefícios, mas para se evitar déficits cog-nitivos e comportamentais ainda maiores devido à privação sócio-edu-cacional (Loureiro, 2002). Depois que o organismo humano ultrapassaesse período e atinge a maturidade, sua capacidade plástica diminui ese modifica, mas não se extingue na vida adulta. A inserção de fatoresambientais adequados, como a estimulação através da música, influen-cia a interação das regiões cerebrais e promove alterações estruturaisdas células nervosas, o que permite o desenvolvimento de habilidadesperceptuais, motoras, cognitivas e sociais durante toda a nossa vida. Acada dia, técnicas estatisticamente mais confiáveis nos estudos sobre aneuroplasticidade cerebral estão sendo desenvolvidas e, além dosdados referentes ao período crítico do desenvolvimento do SN, levan-tam hipóteses como as “Leis de Aprendizagem Horizontal”, que especi-ficam que qualquer coisa pode ser apreendida em qualquer idade,desde que seja de uma forma útil ao indivíduo (Gardner, 2002: 29-30).Pesquisas em música e em musicoterapia vêm sendo realizadas comesse objetivo e demonstram estar beneficiando muitas pessoas com osresultados obtidos, como nos casos de lesões no SNC e em doenças naterceira idade (Unkefer, 1990).

Estudos utilizando neuro-imagem demonstram que áreas do córtexcerebral têm sua morfologia modificada mediante experiências auditi-vas envolvendo processamento de sons complexos e a música. A apren-dizagem é altamente dependente da prática e da experiência, sendoque ambas promovem modificações na representação do mapa corti-cal. Quando adquirimos uma nova habilidade, como aprender a tocarpiano, aumentamos a área somato-sensorial primária do córtex cere-bral, relacionada com os movimentos motores dos dedos (Altenmüller,2001; Rauschecker, 2001). Imagens do cérebro podem ser obtidasquando o indivíduo está ouvindo música, imaginado música, tocandoum instrumento. Até mesmo diferenças funcionais súbitas podem serencontradas após treino musical (Pascual-Leone, Dang et alli, 1995;Schlaug, 1995; Altenmüller, 2001; Pascual-Leone, 2001). Esses estudosdemonstraram a existência de múltiplas representações sensoriais damúsica no córtex cerebral. Essas representações parecem ser adaptati-vas e intercambiáveis devido à plasticidade cerebral. Envolvem habili-

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dades de percepção, cognição e motoras específicas que podem sertransferidas para respostas comportamentais, bem como caracterizaruma reorganização cortical resultante do treinamento musical. Outrosesforços vêm sendo dirigidos para o estudo do desenvolvimento dehabilidades não-musicais, tais como linguagem, matemática eraciocínio visio-espacial, que demonstram ser aumentadas nas criançasque estudam música. Durante o processo de aprendizagem ocorremessas modificações plásticas, estruturais e funcionais dos neurônios esuas conexões, promovendo reorganização da estrutura cerebral.

Algumas estratégias vêm sendo estudadas em musicoterapia com oobjetivo de reduzir, ou até mesmo minimizar, as diferenças entre osportadores de deficiências e as demais crianças dentro do sistema regu-lar de ensino. Levanta-se a hipótese de que, através da música, o tempode reação mais lento desses indivíduos pode ser modificado, se inter-venções perceptuais e motoras forem utilizadas na abordagem dodéficit. Sabe-se que é possível minimizar alguns dos efeitos da defi-ciência através de atividades específicas que incluam estimulação neu-rológica e que permitam a formação de estratégias de processamentoatravés da música (Dockrell e McShane, 2000). O programa educa-cional que consiste meramente na rotina de ensinar habilidades ou nouso acrítico de métodos e materiais, sem considerar informações sobreas habilidades e problemas específicos de cada aluno, talvez não sejaapenas perda de tempo e esforço, mas talvez provem ser também pre-judiciais ao indivíduo. Podemos concluir que, embora uma criançaapresente atraso no seu desenvolvimento, isso não significa que ela per-manecerá estática, numa classificação atribuída a ela desde a suaprimeira infância, desde que lhe seja oferecida uma educação adequa-da, mediante a qual possa aprender habilidades novas desde osprimeiros anos de vida, que contribuirão para sua melhor interaçãocom o mundo.

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Discutindo o talento musical a partir da visão de estudantes de música

Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo

Universidade do Estado de Santa Catarina

Luciana Machado Schmidt

Universidade Federal de Santa Catarina

Otalento musical é uma questão que vem sendo tratada pelasociedade, em geral, e também por músicos, como sendo algoinexplicável, inerente a algumas pessoas que se destacam ao

realizarem certas atividades. Para a sociedade, de uma forma geral,existem pessoas com capacidades ou habilidades inatas que indepen-dem de treinamento ou estudo, e isto as torna talentosas. A idéia de quealgumas pessoas são mais dotadas que outras prevalece em diversassituações, sendo que parece ser ‘natura’ ter ou não talento para a mú-sica. Entre os músicos também é bastante comum a referência aindivíduos talentosos, e isto pode estar ligado à capacidade deexecução virtuosística, por exemplo, ou à sensibilidade interpretativa,ou ainda à genialidade criativa. Em todos os casos, também parece ser‘natural’ que algumas pessoas serão melhores musicistas porquepossuem mais talento. Este trabalho se propõe a discutir brevementequestões relacionadas ao talento musical na perspectiva de estudantesuniversitários de cursos de Licenciatura e Bacharelado em música, como intuito de verificar de que forma estes estudantes compreendem aquestão do talento ao longo de sua formação.

Uma breve revisão de literatura sobre talento musical

O talento musical tem sido discutido pela literatura de forma diversifi-cada. Não há um consenso entre os pesquisadores sobre o que seriatalento, se ele é inato ou adquirido, de que forma se mede a presençade capacidades e predisposições nos indivíduos, ou se há uma relaçãodireta entre talento e desenvolvimento de habilidades. Howe et alii(1998) apresentam resultados de diversas pesquisas com relação aotalento musical que enfocaram:

a) talento inato – parece existir em alguns indivíduos que possuemfacilidades especiais para a realização de certas tarefas;

b) talento adquirido – através de oportunidades, treinamento e

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incentivo, os indivíduos podem desenvolver habilidades que nãoeram evidentes anteriormente.

Essas pesquisas não são conclusivas devido fundamentalmente a doisaspectos. O primeiro diz respeito à existência de diferenças inatas entreas pessoas, embora essas habilidades não podem ser previsíveis.Quanto ao segundo aspecto, alguns autores afirmam que o talento “éuma elaboração exagerada ou super simplificada de um conjunto deelementos” (Howe et alii, 1998: 30).

Do ponto de vista educacional, o conceito de talento é determinantepara o desenvolvimento de projetos pedagógicos. Autores reforçam quea educação musical tem se preocupado demasiadamente com osalunos ‘talentosos’ (Fowler, 1991; Hentschke, 1995; Plummeridge,2001), ignorando a possibilidade de desenvolvimento musical paratodos os indivíduos. Bellochio et al. (2001) alertam para o perigo de seprivilegiar apenas alunos ‘talentosos’, uma vez que esta atitude temcontribuído para que se perpetue a discussão sobre a necessidade ounão da música estar inserida na educação escolar e para que sepromova uma educação musical voltada a poucos. Campbell consideraque na visão eurocêntrica de talento “educação e trabalho ocupampouco espaço, e o meio não conta para nada” (1998: 169). Este modode pensar traz sérias implicações para o ensino de música. “O perigoaparece quando as pessoas entendem o talento como um dom raro egenético e então questionam o uso da educação para as massas ‘nãotalentosas’” (Campbell, 1998: 170).

Pesquisadores apontam para a importância do meio como constitutivodas habilidades em geral para todos os indivíduos. As habilidadesmusicais, portanto, também são construídas pela pessoa na relaçãocom seu meio. Davidson et alii (1997) enfatizam que é inegável que omeio afete o desenvolvimento de habilidades musicais. Vygotski (1997)demonstra que como o ser humano é um ser predominantementecultural, no sentido de que é constituído histórica e culturalmente, éuma falácia considerarmos que exista algo ‘natural’, como donsindependentes de educação e desenvolvimento numa cultura.

Autores diversos refletem sobre a musicalidade humana considerandoque todos os indivíduos estão aptos a se desenvolverem musicalmente(Elliot, 1995; Figueiredo, 2003; Figueiredo & Schmidt, 2005; Glover &Ward, 1993; Mills, 2005). Este desenvolvimento depende de fatorescomo motivação, estímulo, orientação, prática, oportunidades, dentreoutros. Hodges (2000) destaca que todos as pessoas têm capacidadepara responder e participar da música de seu meio, enfatizando a idéiade música para todos.

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Metodologia

Para o desenvolvimento desta investigação foi elaborado umquestionário com seis questões abertas sobre: talento; a necessidade ounão de talento para se fazer música; a possibilidade de desenvolvi-mento musical; o conceito de talento para as pessoas em geral; e ascaracterísticas de pessoas talentosas. O questionário também abriuespaço para comentários que os participantes quisessem fazer, alémdas perguntas formuladas.

Foram convidados 20 estudantes da mesma universidade: 10 de umcurso de Licenciatura em Música e 10 de um curso de Bacharelado emPiano. Os estudantes convidados estavam matriculados em diferentessemestres dos cursos, e o objetivo desta variedade era saber se haveriaalguma mudança conceitual com relação ao talento à medida que osestudantes progridem para períodos posteriores. Participaram dapesquisa 10 estudantes do sexo masculino e 10 do feminino, com idadevariando entre 17 e 47 anos.

Aplicados os questionários procedeu-se à tabulação e organização dosdados coletados. A análise dos dados foi realizada com ênfase nosaspectos qualitativos representativos da compreensão que aquelesestudantes tinham sobre o talento musical.

Apresentação dos dados

A primeira questão era: o que é talento? As respostas foram variadas. Ostermos utilizados pelos participantes indicaram aspectos heterogêneosnão excludentes, podendo a mesma resposta conter diversos atributos.O termo mais freqüente foi facilidade, seguido de habilidade, aptidão,dom, predisposição e capacidade. A utilização de muitos termos paraexplicar o que é talento também está presente na literatura específica edemonstra que este é um conceito complexo e subjetivo. A terminolo-gia empregada pelos participantes inclui itens que apontam para otalento inato e outros que associam o talento à força de vontade, aodesejo de aprender algo e à oportunidade.

A segunda questão do questionário tratava da necessidade ou não dotalento para lidar com música. Dentre os participantes, treze (6Licenciatura, 7 Bacharelado) responderam que sim; quatro (2Licenciatura, 2 Bacharelado) responderam que é relativo; e três (2Licenciatura, 1 Bacharelado) disseram que o talento não é necessáriopara lidar com música. Os comentários dos participantes neste tópicoincluíram, também, que a necessidade de talento depende do que se

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pretende realizar musicalmente. ‘Para ser um profissional da música’,afirmaram alguns participantes, ‘é necessário talento, mas não para amúsica na educação básica’. Sete participantes (4 Licenciatura, 3Bacharelado) consideraram que ‘o talento não é determinante para odesenvolvimento de atividades musicais, mas ajuda’; ‘é importante masnão indispensável’; ‘para se realizar música é preciso de estudo, tra-balho e vontade de aprender’. Dois participantes (1 Licenciatura, 1Bacharelado) incluíram a afirmação de que o talento é necessário nãoapenas para a música, mas para qualquer atividade que se realize.

A terceira questão era: todos os indivíduos podem se desenvolvermusicalmente? Os dez participantes da Licenciatura foram unânimesao afirmar que todos os indivíduos podem se desenvolver musical-mente. Dos estudantes de Bacharelado, oito também fizeram a mesmaafirmação. As respostas destes 18 participantes de alguma formaincluem que o desenvolvimento musical está diretamente ligado àprática, ao treino, a oportunidades e à orientação. Dois respondentesconsideraram que nem todos podem se desenvolver musicalmente. Umdeles indica que o motivo para isso seria alguma incapacidade física. Eum único participante afirmou que não pode se desenvolver musical-mente quem não possui uma “alma artística”.

Na resposta à quarta questão, o que as pessoas, em geral, pensam arespeito do talento, os participantes responderam em síntese que: é umdom inato; uma dádiva divina; algo de natureza subjetiva; e destinadoaos gênios e iluminados. A maioria das respostas incluiu de algumaforma a idéia do inatismo relacionada ao talento como sendo a formade pensar das pessoas em geral.

A quinta questão solicitou aos participantes que indicassem o nome deuma pessoa talentosa, justificando sua escolha. As respostas foramvariadas, assim como as justificativas. A maioria dos estudantes indicoucantores, instrumentistas e compositores famosos. Além disso, algunsparticipantes mencionaram seus próprios professores como sendopessoas talentosas. Dois alunos mencionaram seus colegas de cursocomo sendo talentosos, e um deles citou a si próprio como sendo umexemplo de talento musical.

A sexta questão abriu espaço para comentários adicionais. Nem todosapresentaram respostas a esta questão, e os que a responderam enfati-zaram pontos já apresentados anteriormente, tais como: ‘certas pessoastêm facilidade para fazer certas coisas e isso ajuda, mas quem não temtambém é capaz de grandes realizações’; ‘a discussão sobre talento é

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uma questão antiga e mesmo assim repleta de superstições. Pessoasrealmente não são iguais e cada um terá tendência a desenvolver deter-minadas tarefas com mais ou menos facilidade’; ‘o verdadeiro edu-cador musical deve saber que para o bom desenvolvimento basta 1%de talento e 99% de vontade. Cabe ao educador desencadear uma sériede dispositivos para que se inicie a capacidade de vir a desenvolver aspotencialidades que todos os indivíduos naturalmente possuem’.

Considerações finais

Não há diferenças significativas nas respostas dos participantes, sejameles estudantes de Licenciatura ou Bacharelado matriculados emdiferentes semestres dos cursos, sejam eles homens ou mulheres, outenham idades diferentes. No entanto, podem ser destacados algunspontos para reflexão:

a) A diversidade de definições sobre o que é o talento, encontradanas respostas dos participantes e na literatura, aponta para acomplexidade desta questão, evidenciando a necessidade de seaprofundar este tema.

b) O fato da maioria dos participantes acreditar que é precisotalento para se lidar com música, agrega a esta temática novosquestionamentos e remete à necessidade de se conceituar melhor oque é ‘talento’. Como as definições de talento apresentadas pelosparticipantes eram bastante diversificadas, ao considerarem anecessidade de talento para lidar com música os estudantes podemestar pensando em diferentes atributos que estariam evidenciadosnos indivíduos. Mas isto ainda não é suficiente para identificar comclareza o que é talento e, conseqüentemente, afirmar comsegurança que é preciso talento para lidar com música.

c) Apesar das diferentes definições de talento e da presença daconcepção inatista nas respostas dos estudantes, parece haver umaconcordância muito grande sobre o fato de que todos os indivíduospodem se desenvolver musicalmente. Em diversas respostas estáenfatizada a questão da educação musical, sendo este um fatordeterminante para o desenvolvimento musical. Isto quer dizer quemesmo aqueles que anteriormente haviam considerado o talentocomo uma característica inata, assumem que todos podem sedesenvolver, mesmo aqueles que não têm tal característica inata ounão apresentem facilidade para a realização musical.

d) Os resultados apontam para a necessidade de aprofundamentode questões fundamentais na formação de estudantes de música emseus cursos universitários. Tais estudantes serão multiplicadores de

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conceitos, e por esta razão deveriam estar preparados para discutiruma questão tão complexa quanto o talento de maneiraconsistente.

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Sessões de Demonstração

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Interação e cognição no processo de interpretação mediada da marimba

Cesar TraldiJônatas Manzolli

Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP

A pesar dos instrumentos de percussão serem, possivelmente, osprimeiros a surgir na História da Música, foram explorados

amplamente somente no século XX, no contexto da música ocidental.O desenvolvimento dos processos de construção dos instrumentos, oamadurecimento técnico dos instrumentistas, a grande variedade detimbres e a presença marcante do gesto do intérprete na interpretaçãoengendraram o surgimento de estratégias composicionais e recursostécnicos inovadores. Este processo gerou grande atenção por parte demuitos compositores e fez com que a percussão assumisse a posição deuma das principais fontes de novos paradigmas instrumentais na músi-ca contemporânea. O percussionista, ao interagir com este complexode ineditismo, tem que buscar novas fontes de conhecimento musical.O percussionista Kumor (2003) comenta que a performance de obrascontemporâneas exige do intérprete conhecimentos que vão além dopadrão curricular.

A possibilidade de interagir com meios sonoros e computacionais surgeno final do século passado e, rapidamente, torna-se uma das principaislinhas de composição e interpretação do início deste século. Rowe(1993) comenta que o desenvolvimento dos meios eletrônicos possibil-itaram a execução de composições algorítmicas em tempo real, assimos sistemas musicais computacionais são capazes de modificarem seucomportamento sonoro em função de estímulos gerados por músicosno momento da própria interpretação da obra.

A interação do gesto musical com dispositivos eletrônicos tem seu pre-cursor quando, em 1919, Leon Theremin cria o seu instrumentodenominado, posteriormente, de Theremin.1 Este instrumento foi oprimeiro a produzir som sem necessitar do contato físico do instru-mentista. Apenas a movimentação da mão realizada em torno de umaantena controlava a emissão sonora, o que fazia com que fossenecessária uma grande precisão gestual por parte do intérprete.Segundo Rowe (1993), historicamente, esta é a primeira referência deeventos sonoros realizados a partir do gesto sem contato direto com ummeio físico.

1http://thereminworld.com/

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Figura 1 - Um concerto para doisTeheremins, com a participaçãode outros músicos. LeonTheremin, à esquerda, executa umdos instrumentos e, simultanea-mente, atua como dirigente daperformance.

A interação de músicos com eletrônicos foi amplamente preconizadapor Boulez (1977) no seu texto em que comenta que tais dispositivosnão foram inventados para aplicações musicais, mas que a utilizaçãodos mesmos levaria a mutações ou soluções inovadoras. Este ponto devista é reforçado em Boulez & Gerzso (1988), onde o artigo concentra-se na interação com o computador.

Na última década, um novo campo de pesquisa está se desenvolvendocom o objetivo de estudar e criar novos dispositivos eletrônicos einstrumentos musicais para interação em tempo real. Em 2001, teveinício uma série de conferências anuais denominadas de NIME (NewInterfaces for Musical Expression), onde intérpretes e pesquisadoresapresentam os últimos avanços na construção de novas interfacesmusicais.

O trabalho que apresentamos teve sua mola propulsora com o desen-volvimento do laboratório de Interfaces Gestuais no NúcleoInterdisciplinar de Comunicação Sonora (NICS) apresentado emManzolli (1996). Neste sentido, a pesquisa aqui apresentada tem oobjetivo de ampliar as possibilidades interpretativas da marimba atravésda construção de novas interfaces. Em particular, nas próximas seçõesdescreveremos a criação e o desenvolvimento de baquetas interativascomo nova interface entre intérprete e eletrônicos. Este trabalho estuda,também, a posição interpretativa do percussionista frente a essa novainterface e apresenta outros dispositivos que têm o objetivo de ampliara interação preconizada: a) sensores piezoeléctricos utilizados nasteclas da marimba, b) microfones e c) sensores de movimento.

Este artigo discute brevemente na seção Interpretação Mediada, duasobras para marimba e eletrônicos em tempo real, com o objetivo deexemplificar a utilização de diferentes dispositivos de interação, o quecausa a necessidade de uma postura interpretativa diferente em cadauma das obras. Na seção seguinte descreve-se o processo de desen-volvimento da baqueta interativa. Posteriormente, discutimos que estapesquisa tem sua metodologia focada no processo de interação entre aprática instrumental e a construção de novos meios e dispositivos para

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interpretação mediada da marimba. Finalmente, apresentamos osresultados preliminares que apontam para a necessidade de uma novavisão interpretativa.

Interpretação Mediada

Uma das primeiras obras que encontramos no repertório para Marimbae eletrônicos ao vivo é Daydreams, composta em 1991 pelo composi-tor norte-americano Philippe Boesmans. O percussionista Robert Eslercomenta as dificuldades de execução dessa peça naquela época e atémesmo nos dias atuais no que tange a complexidade da tecnologia uti-lizada através de inúmeros dispositivos eletrônicos aplicados à inter-ação entre o intérprete e o computador. A interface utilizada foi sen-sores piezoeléctricos nas teclas da marimba, a informação recebida eraenviada a um conversor MIDI e o computador gerava informaçãomusical em resposta ao estímulo gerado pelas teclas através de eventosprogramadas numa das primeiras versões do programa Max.

Obras mais atuais utilizam dispositivos mais atualizados para realizar ainteração intérprete/computador. Um exemplo é a composição AGravidade Liberta (2003) para marimba e eletrônicos ao vivo do com-positor espanhol Ricardo Climent. Nessa obra o computador reage emtempo real aos estímulos produzidos pelo intérprete através de micro-fones e o computador processa o material sonoro produzindo efeitoscomo duplicação, repetição, distorção e alteração do timbre.

Apesar dos diferentes meios de interação utilizados em Daydrems e emA Gravidade Liberta, podemos notar que, em ambos os casos, é exigidodo intérprete um conhecimento e familiarização com a tecnologiautilizada que não faz parte da grade curricular convencional. Essasduas peças demonstram algumas das inúmeras possibilidades deinterpretação com eletrônicos ao vivo, o que nos leva a projetar anecessidade de uma nova visão interpretativa.

Nosso objetivo é estudar essa nova postura interpretativa em obras paramarimba e eletrônicos ao vivo sob a ótica da capacitação perceptivaderivada da mediação tecnológica. A interação em tempo real comdiferentes dispositivos como microfones, sensores piezoeléctricos,baquetas interativas, sensores de movimento, entre outros, leva o músi-co a buscar uma nova dimensão interpretativa para cada obra ou atémesmo para diferentes trechos da mesma, postura que é diferente dautilizada no repertório tradicional.

Na interpretação mediada há outro nível de cognição musical, pois o

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músico responde a estímulos gerados pelo computador com novas pos-sibilidades de execução. Como exemplo do que preconizamos nesteestudo pode-se generalizar o processo de interação reativa aplicado emDaydreams. Além de interagir percutindo cada uma das teclas damarimba, o intérprete poderia interagir com o computador e moldar ossons através de gestos de suas mãos onde sensores fixados numa luvacaptariam esses movimentos e provocariam novos estímulos fazendocom que ocorressem alterações em tempo real. Desta forma, a pesquisaque apresentamos busca fomentar uma nova postura interpretativa, ouseja, o que chamamos de técnicas interpretativas mediadas. Nesteartigo apresentamos um dos dispositivos já desenvolvidos.

Baqueta interativa

As baquetas têm grande importância na performance dos instrumentosde percussão e, em especial, na marimba. Elas são a interface entre oinstrumentista e o seu instrumento, portanto pareceu-nos natural explo-rar, como primeiro passo de pesquisa, tal dispositivo. Pois, apesar deelementar, no que tange à eletrônica envolvida, o estudo das baquetasinterativas poderá nos levar a conclusões mais avançadas sobre asimplicações dos processos interativos envolvidos e da metodologia depesquisa adotada.

Desenvolvemos baquetas do tipo mallets que, normalmente, são uti-lizadas nos instrumentos de percussão de teclado e que também podemser utilizadas em outros instrumentos de percussão como tambores,tímpanos, caixas, pratos, etc. Uma preocupação na construção dasbaquetas foi que as mesmas obtivessem a maior semelhança possívelcom as baquetas tradicionais. Esse cuidado foi tomado para não atra-palhar o instrumentista em performance. Assim, buscamos com queparâmetros como peso, tamanho, material e formato fossem preserva-dos e, desta forma, estaríamos tornando invariantes uma série de técni-cas tradicionais as quais poderíamos aplicar novos modos gestuais.

O dispositivo eletrônico utilizado foi o sensor piezoeléctrico que, apósser soldado a dois fios de conexão de 2,5 m de comprimento, foramenvolvidos com um pequeno pedaço de espuma para evitar a produçãode ruídos metálicos causados pelo contato direto do sensor com asesferas de borracha utilizadas para envolvê-los.

As primeiras baquetas foram desenvolvidas com tubos de alumínio com40 centímetros de comprimento e 4,0 mm de diâmetro. As mallets sãonormalmente construídas com cabos de madeira mas, devido a sua

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fragilidade quando perfurados, optamos por cabos de alumínio. Apósvários testes, a nova baqueta ainda produzia ruído causado pelo cabode alumínio. Desenvolvemos, então, um segundo modelo de baqueta,com a utilização de cabo de madeira e com os fios passando pelo seuexterior.

O fio da baqueta foi conectado a um dispositivo para fazer a conversãode cada pulso elétrico em um evento MIDI. Assim, o sinal produzidopelo percussionista poderia ser processado pelo computador ouproduzir som diretamente através de um módulo de percussão digital.

Figura 2 – Marimba, Baquetas Interativas e Módulo de PercussãoDigital.

Metodologia & resultados

1. Atelier de Interpretação

A metodologia utilizada na pesquisa apoia-se em três elementosfundamentais: a) construção de novos dispositivos com sensoresdiversos; b) mediação através de processo computacional e c) oficinasde performance onde são realizadas a validação do processo bemcomo as medidas de desempenho do sistema e avaliada a reação domúsico. Através da realização de oficinas de performance como meiode integração entre a prática instrumental e os dispositivos estudados,

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o intérprete-pesquisador vincula o conteúdo teórico e tecnológicodesenvolvido na construção de interfaces com sua prática instrumental.

A baqueta aqui apresentada trata-se do primeiro estudo de casoaplicado à interpretação da marimba, no qual avaliamos a interação dointérprete com o computador através das baquetas interativasdesenvolvidas com sensores piezoeléctricos.

2. Primeiros ResultadosCom os resultados obtidos na análise das oficinas já realizadas, obser-vamos que a necessidade de conhecimento dos dispositivos utilizadosem performance somado à forte presença da improvisação em obrascolocam o intérprete na posição de co-criador. O intérprete deixa apostura de apenas ser meio de execução para assumir a posição deelemento de coesão da obra. O instrumentista deixa de ter a postura deespecialista para ter uma visão interacionista na qual, através daadaptação, molda-se a cada obra.

Projeções & conclusão

O grande número e a diversidade de dispositivos eletrônicos de inter-ação tornam inviável o estudo de todos eles, mas temos como objetivopesquisar alguns que demonstram grande potencial na criação de inter-faces para a marimba como sensores de movimento e fotoelétricos.

A utilização de dispositivos eletrônicos de interação em tempo realvinculados à marimba e, em particular, as baquetas interativas,apontam para o desenvolvimento de uma nova visão interpretativa doinstrumento, pois possibilitam ao intérprete a interação com inúmerosdispositivos.

Os resultados preliminares que obtivemos demonstram que a utilizaçãode técnicas interpretativas mediadas como aqui estudadas fomentamno intérprete a ampliação de sua capacidade de controle de estruturassonoras e desenvolve sua habilidade de correlacionar eventos esonoridades da marimba.

Esta pesquisa tem o apoio da CAPES através de uma bolsa de mestra-do do programa do Instituto de Artes da Unicamp. O orientador temtambém apoio do CNPq através de uma bolsa de produtividade empesquisa.

Referências bibliográficas

Boulez, P. (1986). Technology and the Composer. In EMMERSON, Simon (ed.)

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The Language of Electroacoustic Music. London: Macmillan, 1986 (pg. 5-14).

BOULEZ, P.; GERZSO, A. (1988). Computers in Music. Scientific American, vol.258, n°4.

KUMOR, F. (2002). Interpreting the Relationship Between Movement andMusic in Selected Twentieth Century Percussion Music. Tese de Doutorado,University of Kentucky, USA.

MANZOLLI, J. (1996). The Development of a Gesture Interface’s Laboratory.Anais do II Congresso Brasileiro de Computação e Música, Recife,Pernambuco, Brasil.

ROWE, R. (1993). Interactive Music System. Cambridge: The MIT Press,Massachusetts.

Preparação para a performance de Now Here is Nowherepara contrabaixo e suporte fixo: considerações sobre per-

cepção timbrística e rítmica

Sonia Ray

Universidade Federal de Goiás – UFG

Os aspectos idiomáticos na performance musical tem sido objeto depesquisas brasileiras, particularmente naquelas voltadas para

edições críticas, as quais já representavam 11,5% de todas as disser-tações e teses na área em 2001 (Borém, 2005). Apesar da percepçãotimbrística e rítmica ter recebido considerável atenção depesquisadores no Brasil e exterior a exemplo de Clarke (1999),Williamon e Davidson (2002), Andrade (2003), Ray (2005) e Borém(1997), aspectos da preparação de obras envolvendo instrumentosacústicos e suporte-fixo ainda são raros.

No que tange o contrabaixo, sua constante expansão de recursos físi-cos proporcionada por avanços tecnológicos recentes, tem chamado aatenção de muitos compositores. Estes avanços estão relacionados àconfecção de cordas (são dezenas de tipos disponíveis), técnicas delutheria, disponibilização de tipos variados de espigão (como os “egg-pins” que facilitam o acesso a região aguda quando se toca em pé). Eles

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têm permitido o uso da extensa aguda extrema do instrumento comexcelente qualidade sonora, maior velocidade na execução de pas-sagens da região grave com maior definição do som e, sobretudo, maisvolume e qualidade timbrística. Com isso, compositores como PeterAskim, Hans Sturm, Teppo Hauta, Anderson Vianna, Ernst Mahle eEstércio Cunha, entre outros, têm ousado em suas composições paracontrabaixo, criando obras desafiadoras e estimuladoras para operformer.

Obras para contrabaixo e suporte fixo ainda são raras na produção doscompositores brasileiros, porém, as possibilidades singulares do instru-mento têm sido exploradas em atividades artísticas e de pesquisasintegradas, a exemplo de trabalhos como os de Borém (2005) e Ray(2001 e 2001a), que resultaram em obras brasileiras publicadas paracontrabaixo. Apesar da demanda anunciada do crescimento derepertório para contrabaixo e suporte fixo, o performer tem dificuldadena preparação deste tipo de peça em função do procedimentotradicionalmente adotado na preparação do instrumentista não sercompatível com alguns desafios apresentados com a presença doselementos não acústicos.

Assim, com o objetivo de refletir sobre formas de otimizar a preparaçãopara a performance de obras para contrabaixo e suporte fixo, este textoapresenta um experimento quer traçou considerações sobre percepçãotimbrística e rítmica no processo de preparação da obra Now here isNowhere (1997) de Mathew Hallaren.

Método

Os aspectos da percepção timbrística e rítmica foram levantados a par-tir de um experimento desenvolvido em duas etapas: preparação domaterial de leitura musical para os sujeitos, dos termos de consenti-mento livre e esclarecido, do equipamento de gravação e dos aspectosa serem observados. A principal hipótese levantada foi que o performerbusca aspectos familiares para interagir com elementos não acústicosna preparação de uma obra que envolve suporte-fixo (sons digitaliza-dos). As referências principais na preparação de obras envolvendosuporte-fixo são aquelas advindas do estudo tradicional: altura,duração precisa, intensidade limitada ao extremo do instrumento (semamplificação) e presença de outro executante (e não de equipamentoseletrônicos). A frase abaixo (exemplo 1) foi entregue aos dois sujeitosque tiveram 24 horas antes da gravação. O espaço de tempo foi con-siderado viável face à experiência dos sujeitos, ambos contrabaixistas

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graduados em Música-Habilitação em Contrabaixo. As gravações foramfeitas em vídeo digital em uma única sessão que demorou cerca de 2horas. A observação foi feita por mim e por um convidado, pianista epesquisador.

Exemplo 1: Trecho iniciado aos 92 segundos de Now Here is Nowherede M. Hallaren

Sobre a obra e o compositor

Now Here is Nowhere (1997) de Matt Hallaren (n.1970) para contra-baixo e suporte fixo foi composta para o Midle West CompositionSymposium realizado, no conservatório de Orberlin, em Ohio. A peçatem cerca de 6 minutos de duração e foi composta em colaboraçãominha com o compositor e estreada por mim no referido simpósio.Hallaron é um jovem compositor norte-americano que trabalha essen-cialmente com composições eletroacústicas. Era membro do grupo decompositores da pós-graduação que se dedicava à música contem-porânea naquele ano na Universidade de Iowa, EUA onde eu cursavadoutorado.

Considerações sobre percepção rítmica

Os sujeitos fora convidados a tocar a frase estudada 4 vezes sendo aprimeira sem acompanhamento, a segunda com o suporte-fixo e a par-titura com o desenho das ondas sonoras acima da frase que eles jáconheciam (exemplo 2). a terceira com o suporte-fixo e a partitura como desenho das alterações de dinâmica feitas pelo suporte-fixo (exemplo3) e a quarta com o suporte-fixo e a partitura apenas com indicações deentradas de pontos fortes de dinâmica do suporte-fixo as quais foramsimultaneamente percutidas por mim ao contrabaixo para evidenciar oponto das entradas a partir de uma fonte percussiva (exemplo 4).

Exemplo 2: Trecho de Now Here is Nowhere de M. Hallaren comsuporte-fixo.

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Exemplo 3: Trecho de Now Here is Nowhere de M. Hallaren comdinâmicas

Exemplo 4: Trecho final de Now Here is Nowhere de M. Hallaren comentradas

Os dois sujeitos se mostraram mais desconfortáveis com o exemplo 2 emais confortáveis com os exemplos 1 e 4. Os observadores atribuíramesta reação à falta de familiaridade dos sujeitos com sons sintetizados,que os deixou inseguros no exempo n.2. Já a percepção timbrísticafamiliar da percussão e meu movimento de corpo no exemplo 4ajudaram a prever entradas e a marcar o pulso, facilitando a execução.

Exemplo 5: Trecho final de Now Here is Nowhere de M. Hallaren

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Considerações sobre percepção timbrística

Para traçar considerações sobre o timbre, escolhi um trecho que exigeafinação exata com o suporte fixo (exemplo n.5), no qual os sujeitospodiam improvisar em torno da nota si, tocada simultaneamente pelosuporte.

Antes de gravar, os sujeitos tocaram as notas si, sib, do e fá por uns 5minutos. A seguir o trecho foi gravado duas vezes. Na primeira com osuporte fixo e na segunda comigo tocando a parte do suporte-fixo. Osobservadores concluíram que a afinação não mudou muito da primeirapra a segunda vez, entretanto, a melhora da qualidade sonora dossujeitos quando interagindo com outro instrumento acústico foi notáv-el, bem como a tranqüilidade dos músicos. Um dos sujeitos declarouao final da gravação que perceber o movimento de corpo (principal-mente do braço direito) do outro instrumentista, ainda que na partelivre para improvisação rítmica, ajudava a relaxar e a prestar maisatenção no som.

Resultados

Os contrabaixistas sujeitos deste experimento mostraram-se mais cal-mos e seguros quanto lhes foi apontada alguma possibilidade de uti-lizar seu conhecimento prévio de música para interagir com elementosnão acústicos na preparação do trecho da obra em questão. À medidaque os sujeitos conseguiram associar o som digitalizado a umparâmetro tradicional, a estratégia de preparação se tornou maispalpável e a performance passou a ser viabilizada. Os parâmetros maisutilizados como referência foram pulso e metro, porém alterações nadinâmica e timbre provocaram alterações na percepção rítmica e naafinação.

Conclusões

A conclusão mais importante é que quanto maior a referência de alturae timbre entre o suporte fixo e o instrumento acústico, maior o acertorítmico e mais apurada é a afinação. Estudos mais detalhados aindaprecisam ser desenvolvidos sobre este tema, porém, o presente trabalhodeve inspirar novos questionamentos neste sentido. O presente trabalhonão é conclusivo, pelo contrário, deve propor caminhos para outrasvisões sobre o tema e para abordagens semelhantes sobre outrosaspectos tais como intensidade, textura, forma, etc.

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Referências bibliográficas

ANDRADE, Silvana (2003). Trio T.12 (1960) de Breno Blauth e Trio (1963) deClaudio Santoro. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Goiás,Goiânia.

BORÉM, Fausto (1997). Apontamentos do seminário apresentado por ocasiãoda Convenção da ISB – International Society of Bassists. University ofIndiana, Indiana, EUA.

CLARKE, Eric (1999). Rhythm and Timing in Music. In Diana Deutsch (ed.) ThePsychology of Music (pp. 473-500). San Diego: Academic Press. 2ª ed.

HALLAREN, Matt (1997). Now here is Nowhere. Partitura. Goiânia: ma-nuscrito.

RAY, Sonia (2001). Música para Soprano, Flauta, Piano e 2 Contrabaixos:notas sobre a obra e sua edição. Revista Música Hodie, 1, 66-74.

WILLIAMON. Aaron e DAVIDSON, Jane (2002). Exploring Co-performerCommunication. Musicae Scientiae, 1, 53-72.

O conceito de modulação métrica e sua aplicabilidade emexercícios da Cartilha rítmica para piano de Almeida Prado

Sara Cohen

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ

Salomea Gandelman

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO

A Cartilha rítmica para piano articula, com muita propriedade,competências que Almeida Prado exerceu e tem exercido ao

longo de sua vida: as de compositor, pianista e professor. A obra, escritanos anos de 1992, 1999, 2003 e 2005, pode ser vista como um passeiopor muitas das estratégias rítmicas exploradas pelos compositores namúsica do século XX em suas investigações sobre as inúmeras possibi-lidades de flexibilização e ampliação da métrica característica damúsica tonal dos dois séculos anteriores.

Com roupagem harmônica moderna e variada, Almeida Prado cria 103pequenos exercícios, distribuídos em quatro volumes. Dialoga não só

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com os livros Treinamento elementar para músicos de Paul Hindemith,Rítmica de José Eduardo Gramani, Twentieth century harmony deVincent Persichetti, os VI volumes do Mikrokosmos de Bela Bartók,Maracatus de Recife, de César Guerra-Peixe, Música Popular Brasileirade Oneyda Alvarenga e Ensaio sobre a Música Brasileira de Mário deAndrade, mas também com suas anotações sobre rítmica grega e har-monia tradicional, nas aulas de Messiaen e Nadia Boulanger, duranteos anos em que viveu em Paris. A convivência com alunos de com-posição, descrita por Almeida Prado como criativa, estimulante e reno-vadora, e sobretudo os anos de aprendizagem com Camargo Guarnieri,engrossam as referências por ele apontadas como estimulantes para oprocesso de criação dos exercícios da Cartilha, conforme a “Pequenaexplicação” que apresenta a obra (Gandelman & Cohen, 2006: 59-60).

De uma maneira geral, os exercícios são curtos (alguns muito curtos,com trinta segundos de duração), focalizando, cada um deles, umdeterminado aspecto rítmico. Além disso, a inexistência de obras comesse perfil na musicografia brasileira confere à Cartilha um potencialpedagógico a ser explorado não só pelos professores de piano, mas,também, pelos de teoria da música, percepção e composição.Entretanto, os predicados musicais de muitos dos exercícios catapultama obra para além do eixo pedagógico, qualificando-os como pequenaspeças a serem incorporadas ao repertório das salas de concerto.

Propomos-nos, neste trabalho, a apresentar e analisar um dos aspectosrítmicos presentes na Cartilha, identificado na literatura comomodulação métrica. Iniciamos pela conceituação da estratégia,procurando evidenciar as operações mentais envolvidas no processo damodulação. Em seguida apresentamos a análise do exercíciomodulação rítmica: aceleração progressiva por meio de quiálteras de 3sobre 2, problematizando o título. São ainda feitas considerações sobreandamento e estudo do exercício.

Modulação métrica/time modulation

Tanto para o compositor quanto para o intérprete, a habilidade paramedir o tempo e fazer relações temporais na música é fundamental. Noséculo XX, alguns compositores se interessaram por investigar proces-sos de composição e de notação musical que lhes permitissem opera-cionalizar acelerações e desacelerações controladas. Um dessesprocessos é conhecido por modulação métrica, freqüentementeassociada ao compositor Elliott Carter (1908).

Segundo Weisberg, a técnica, em sua forma básica, foi utilizada muito

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antes de ser chamada modulação métrica, nas passagens entre intro-duções em andamento lento seguidas por seção em andamento allegro,especialmente no período Barroco. A prática da performance da épocaconsolidou a realização do allegro em um andamento duas vezes maisrápido que o da introdução, mesmo não havendo nenhuma indicaçãopara tal. Mais tarde, os compositores italianos passariam a utilizar asexpressões doppio piu mosso ou doppio piu lento, explicitando a pro-porção temporal entre os andamentos (Weisberg, 1993: 52).

Para entender porque também é utilizada a palavra modulação noprocesso rítmico, vamos nos remeter à harmonia tonal. Modular querdizer, nesse campo da música, mudar de uma tonalidade para outra. Oprocesso, em sua forma mais suave, utiliza um acorde comum entre astonalidades envolvidas, que, entretanto, desempenha na tonalidade dechegada uma função distinta daquela da tonalidade de partida. Agindocomo um elo entre as duas tonalidades, ele garante uma transição lóg-ica, mesmo quando surpreende o ouvinte. Por extensão do sentidotonal, modulação métrica é uma técnica para modificar andamentosatravés de uma duração comum.

Formulada de modo bem simples, a modulação métrica é uma estraté-gia rítmica para operacionalizar mudanças de andamentos (tempi), damesma forma como se muda a marcha de um automóvel para possibil-itar o aumento e a diminuição da velocidade. Para evitar instruçõesvagas tais como meno tempo, acelerando e ritardando, ou indicaçõesmetronômicas difíceis de serem seguidas com precisão durante a per-formance, as acelerações e desacelerações são manobradas através deproporções entre os próprios eventos rítmicos, provocando mudançasde andamento com mais exatidão.

No Exemplo 1,1 cada compasso tem a unidade de tempo dividida dife-rentemente, mas as pequenas figuras que aparecem acima das barrasde compasso informam que a duração da divisão do tempo em umcompasso deve ser igual à da divisão do tempo do compasso seguinte.O aumento do número de divisões da unidade de tempo a cada com-passo, faz com que as unidades de tempo tornem-se mais longas, resul-tando na desaceleração do andamento a cada novo compasso. Oexemplo ilustra um meio de passar suavemente, mas com precisão, deuma velocidade metronômica absoluta para outra.

1 Os exemplos de 1 a 4 foram escritos para ilustrar sinteticamente as situações de performancedescritas. Situações semelhantes podem ser encontradas na obra de Elliott Carter, dentre as quaiscitamos a Sonata para violoncelo (1948) e o Primeiro quarteto de cordas (1951).

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Exemplo 1: Desaceleração controlada do andamento

A indicação do valor metronômico, entretanto, resulta em uma infor-mação redundante no segundo e terceiro compassos, já que a corretarealização das modulações conduz automaticamente às modificaçõesdos andamentos. Ela nem sempre é explicitada na partitura, mas podeser útil ao intérprete como meio para confirmar a correta realização dasrelações temporais solicitadas. Logicamente, todo esse processo podeser operacionalizado com o objetivo inverso: o de provocar a acelera-ção do andamento.

O compositor pode manipular a equação característica dos processosde modulação métrica das mais variadas formas, implicando tambémem uma variedade de situações colocadas para a performance(Weisberg, 1993: 52). A articulação de uma mesma duração, como asdo Exemplo 1, agrupadas diferentemente de cada lado da modulação,exige a habilidade na realização dos reagrupamentos, muitas vezesdificultada pela rápida freqüência das articulações. Algumas modu-lações podem ser consideradas mais difíceis do que outras. É o caso doExemplo 2 que, apesar de análogo ao anterior no que diz respeito ànatureza da modulação, indica uma modulação menos suave e aindaenvolve grupos rítmicos com 7 unidades:

Exemplo 2

Situações mais complexas do que as ilustradas nos exemplos 1 e 2podem acontecer quando as figuras rítmicas da equação da modulaçãonão aparecem explicitamente no texto musical. O Exemplo 3 ilustra asituação na qual o intérprete precisa reagrupar a duração que vinha efe-tivamente realizando, mas, desta feita, o reagrupamento necessáriopara a realização da semínima é feito mentalmente.

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Exemplo 3

Já o Exemplo 4 ilustra a situação na qual o intérprete tem que imaginara duração de uma figura que efetivamente não estava sendo realizadapara operacionalizar a modulação.

Exemplo 4

Enfim, a modulação métrica é um meio para efetuar mudanças deandamento e, freqüentemente de compasso, através da equivalênciaentre durações, regulares ou irregulares, presente explicita ou implici-tamente, nos eventos rítmicos. O termo tem recebido críticas de algunsautores. Bernard (1988: 199-200) argumenta que o termo modulaçãométrica sugere que o processo consiste nas mudanças de métrica ou defórmulas de compasso, quando, na verdade, elas são um dos agentesda modulação. Simms (1986: 103) informa que o próprio Carter temutilizado a expressão tempo modulation, que expressa melhor o obje-tivo do compositor ao desenvolver o sistema: ampliar a extensão de suamúsica e manter um maior controle sobre mudanças de compasso e deandamento.

Análise do exercício

Dentre os vários procedimentos rítmicos explorados na Cartilha, o damodulação métrica chamou-nos a atenção pela forma extremamentesimples como Almeida Prado apresenta a idéia, levando-nos a uma per-feita compreensão do princípio envolvido. São três os exercícios nosquais aplica o procedimento: aceleração progressiva por meio de quiál-tera de 3 sobre 2, aceleração progressiva por meio de quiáltera de 5sobre 4, rallentando progressivo por meio de quiáltera de 3 sobre 4.Eles são um bom exemplo da impropriedade do termo a que nos refe-rimos anteriormente, porque operacionalizam alterações controladasdo andamento sem modificação da fórmula de compasso. Talvez porisso, o compositor os agrupe sob o título ‘modulação rítmica’.

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Entretanto, cabe observar que não encontramos esta expressão paraidentificar o procedimento que aqui estamos abordando na literaturavoltada para o ritmo na música do século XX.

O primeiro dos três exercícios, composto em , consiste em um mode-lo, apresentado do compasso 1 ao 4.1, sucessivamente transposto aosdoze graus da escala cromática (Exemplo 5). A cada transposição, ocompositor indica a modulação temporal a ser aplicada – a duração dacolcheia da tercina determina a duração da colcheia do compassoseguinte. O c.1 é constituído por colcheias na mão esquerda. Estascolcheias são duas vezes mais rápidas do que a semínima que lhes cor-responde. A estas colcheias se superpõem tercinas na mão direita noc.2. As colcheias da tercina são três vezes mais rápidas que a semínimaque lhes corresponde, e conseqüentemente são uma vez e meia (3:2)mais rápidas que as colcheias do primeiro compasso. O c.3 é arepetição do c.2 com o acréscimo de acentuações nas colcheias dastercinas, de duas em duas. Esse reagrupamento faz com que o conjun-to de duas colcheias seja mais rápido que o conjunto de duas colcheiasdo c.1. É a politemporalidade resultante da polirritmia. Tem-se aí aponte para a nova velocidade da unidade de tempo do c.4. Ocompositor ‘facilita’ a modulação através dos acentos das tercinas quea antecipam.

Exemplo 5: aceleração progressiva por meio de quiálteras de 3 sobre 2,Cartilha Rítmica para piano de Almeida Prado, c. 1-7

A estruturação harmônica do exercício, bastante simples, em tríades,permite que toda a atenção do intérprete esteja voltada para a realiza-

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ção rítmica. São duas as dificuldades, uma vez dominada a polirritmia.Uma está na habilidade para realizar a acentuação no interior das ter-cinas, visto que apenas a primeira delas coincide com o apoio métrico.Outra, na habilidade para transformar o reagrupamento provocadopelos acentos, em uma nova unidade de tempo.

À medida que o andamento aumenta nas sucessivas modulações, aexecução dos acordes repetidos vai se tornando cada vez mais difícil.Na 6ª modulação (compasso 19), a colcheia atinge uma velocidademetronômica infactível – 499 – obrigando o intérprete a interromper ociclo das transposições. De maneira geral, os intérpretes desejam atin-gir, em suas performances, andamentos que correspondam às determi-nações dos compositores. Porém, algumas vezes, elas podem não serapropriadas. Esse é o caso dos três exercícios de modulação rítmicaapresentados na Cartilha. Entretanto, o que importa aqui, bem comopara a Cartilha como um todo, é a compreensão e a realização doprincípio envolvido.

Que experiências anteriores podem ser propostas pelos professorespara preparar o caminho que leve à performance do exercício propos-to por Almeida? Levando em consideração que as duas questões tem-porais fundamentais no exercício são a aceleração controlada e apolitemporalidade provocada pela polirritmia, sugerimos que os pro-fessores proponham a seus alunos: 1) experiências de aceleração edesaceleração espontâneas, não controladas; 2) controle intuitivo noestudo, por exemplo, de escalas, como: começar em determinadoandamento, acelerar e desacelerar, voltando ao andamento inicial; 3)ainda no estudo das escalas, pensada como um sucessão de pulsosisócronos, propor a desaceleração e aceleração controladas através davariação de acentos (de duas em duas notas, três em três etc., e o inver-so); se a escala for estruturada a partir de uma unidade de tempo já sub-dividida, propor a aceleração e desaceleração controladas através doaumento e diminuição do número de divisões da unidade estabelecida;4) o estudo da polirritmia alternando as mãos; um percurso interes-sante, utilizando o próprio exercício é: m.e. (c.1), m.d. (c.2), váriasvezes, e, em seguida, m.e. (c.1) e m.d. (c.2 e c.3), também diversasvezes. Várias fases intermediárias e combinações entre as mãos podemser necessárias para a realização da polirritmia.

Por fim, cabe a cada professor, munido de toda a sua experiência, sersensível às necessidades de cada aluno.

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Considerações sobre aspectos neurológicos na preparação para uma performance musical

Sonia Ray

Universidade Federal de Goiás – UFG

Introdução e Fundamentação teórica

S abemos que o cérebro está no comando do corpo, entretanto,pouco nos damos conta de como este comando é exercido(Houzel, 2003), particularmente na preparação para uma

performance musical. Questões sobre o funcionamento deste órgãovital para a vida é objeto constante de pesquisas tanto institutos deciências biológicas quanto de centros de pesquisas ligados ao fazerartístico.

Tradicionalmente os estudos relacionando performance musical e cog-nição são desenvolvidos por pesquisadores da área de saúde. Umabreve revisão da literatura apresentada pelas pesquisadoras CristinaGerling e Jusamara Souza no I Seminário de Pesquisa em PerformanceMusical (Gerling, Souza, 2000) relata desde estudos pioneiros com opsicólogo Carl Seashore na Universidade de Iowa (EUA) na década de1930 até estudos mais recentes como os do atuante pianista e psicólo-go Eric Clarke na Universidade de Sheffield (Inglaterra). Entretanto, de

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objeto de pesquisa de psicólogos e neurocientistas, a performancemusical e os processos cognitivos relacionados à esta atividade artísti-ca passou gradativamente a ter envolvimento expressivo depesquisadores da área de música nos últimos anos (Gerling, 2005).

Trabalhos de equipes multidisciplinares envolvendo performance ecognição tem se multiplicado, como podemos observar nos trabalhosde Cardassi (2000), Gruzelier (2002), Gannett (2003), Ray, Vieira, Dias(2002), Pederiva (2004) e Ray, Cazarim (2005). Recentemente propusum caminho para o desenvolvimento de pesquisas sobre performancemusical baseado no conceito EPM – Elementos da Performance Musical(Ray, 2005). O conceito parte do princípio de que a performance musi-cal envolve seis aspectos que interagem no processo de preparação,execução e avaliação da performance musical. Os EPM são:

“...organizados em seis: 1) Conhecimento do Conteúdo, 2) AspectosTécnicos; 3) Aspectos Anato-Fisiológicos; 4) Aspectos Psicológicos; 5)Aspectos Neurológicos e 6) Musicalidade e Expressividade. Caberessaltar que, apesar de estarem sendo aqui abordados individual-mente, não se pode perder a noção de que os EPM ocorrem simul-taneamente durante a performance musical, e que a divisão e catego-rização na presente proposta têm apenas a função de facilitar a dis-cussão.” (Ray, 2005: 42)

O presente texto traz uma aplicação do conceito de EPM no que dizrespeito ao fazer musical (e sua preparação) quanto aos aspectosneurológicos, e tem por objetivo levantar e ilustrar alguns aspectos dofuncionamento do cérebro que podem auxiliar na preparação eexecução da performance musical.

Discussão

Apesar do aumento da literatura disponível sobre performance musicale o funcionamento do cérebro, pesquisadores não se cansam de afir-mar que ainda há muito a ser desvendado (Critchley, 1977;Sloboda,1989; Radocy, Boyle, 1997). Na prática do ensino e apren-dizado da performance musical as experiências continuam a ser trans-mitidas como resultados de pesquisas informais. Um exemplo recenteé trabalhos da contrabaixista Diana Gannett (1997) registrado em suasdisputadas apostilas de exercícios diários de técnica, trabalho queenvolve aspectos neurológicos, mas que não se apresenta de forma ademonstrar “como” os comandos cérebro foram utilizados. Partindo deconceitos apresentados em relatos de pesquisa da neurocientistaSuzana Houzel (2003), discutirei aspectos neurológicos implícitos naproposta de Gannett.

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Memória e Aprendizado

Da forma proposta por Gannett, a preparação técnica, sobretudo dedeterminadas passagens de alta dificuldade, pode passar por umprocesso de verbalização simultâneo a ação. Segundo ela o instrumen-tista de cordas deve

“falar o nome das notas e dos acordes enquanto toca... pois o cérebroadora etiquetas com nomes. [É como se fosse] uma síntese de entradade diversas informações ajudando a solidificar uma ação neurológica."(Gannett apud Ray, 2005: 79)

Houzel (2000) relata uma pesquisa desenvolvida em 2000 por Maguireet al. sobre a capacidade de memorização impressionante que os taxis-tas londrinos desenvolveram, provavelmente relacionada ao fato deterem como condição para tirar sua licença de trabalho, que decorarcerca de 2000 ruas e avenidas da capital inglesa. Pesquisas anteriores,diz Houzel, “nos últimos dez anos vêm mostrando que de fato há umareorganização de regiões do cérebro muito requisitadas. O exemplomais conhecido é o aumento da área [no cérebro] que representa assensações dos dedos da mão esquerda de violinistas profissionais…”(p.133). Neste sentido, a sugestão de Gannett de “etiquetar” o cérebro,encontra fundamento na pesquisa relatada por Houzel. A necessidadede se memorizar grandes quantidades de notas comprovadamente jálevou músicos a desenvolverem alta da capacidade de memorização.Entretanto, a síntese da qual nos fala Gannett, parece implicar em umacombinação de teorias behaviorista e cognitivista para fazer sentido nocontexto do aprendizado musical e merece um olhar mais detalhado.

Da forma como colocado por Gannett pode-se pensar que fala e açãosejam “sintetizados” antes que informados ao cérebro, ou ainda, que afala e o processo motor relacionados ao tocar música são informadosao cérebro em uma única via. Pensar assim, na verdade, facilita nossacompreensão do exercício técnico, mas não esclarece o que realmenteacontece no processo de memorização e assimilação do conhecimen-to em questão, qual seja: tocar.

A combinação ou síntese da fala e da ação motora da mão esquerdasão informações combinadas dentro do cérebro. Entretanto, isto acon-tece numa velocidade incrivelmente rápida de forma que, se o proces-so for repetido, como é na prática diária dos instrumentistas, esta “sín-tese” será registrada e memorizada pelo cérebro. Como este não é umestudo formal sobre a questão, fica aqui registrado como uma reflexãoe sugestão para equipes com estrutura laboratorial pra tal empreitada.

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Vale a pena destacar que o diferencial neste processo de memorizaçãoe aprendizado em uma atividade artístico-criativa é a qualidade dainformação que é “sintetizada”. Por isso, na utilização desta vai cogni-tiva para assimilação da técnica de preparação para a performance, oinstrumentista deve manter constante atenção com a afinação apuradado som que é assimilado à determinado movimento da mão esquerda(num processo de condicionamento físico), pois este é o “rótulo” que océrebro vai “ler” e memorizar.

Soma-se às questões de aprendizado as formas diferentes de memo-rização. Segundo Houzel (apud Ray, 2005), o cérebro tem um limite defuncionamento “válido”, isto é, um limite daquilo que ele realmenteassimilará e este limite também difere de pessoa para pessoa. Para falarde uma maneira simplificada, pode-se dizer que existem três tipos dememória: de curta, média e longa duração. É necessário que você saibaqual o seu objetivo com a memorização de um determinado trecho ouuma peça. A memorização de longa duração é construída com etapascurtas e com alto nível de concentração na qualidade do que é memo-rizado. É aquela que nos tem maior utilidade como músicos. Asmemórias de média e curta duração têm pouca utilidade na atividademusical. É aquela que usamos para lembrar um número de telefonequando não encontramos um papel pra anotar. Se você não anotarassim que desligar telefone você esquece! Parece viável que se veri-fique num experimento futuro se o músico popular (da noite!) faz usosignificativo da memória de curta duração, mas esta seria uma outrapesquisa.

Na minha experiência pedagógica com os aspectos da preparação paraa performance musical, esta reflexão tem possibilitado sugestões paramapeamento de estudo de peças, preparação pra performances públi-cas e esquemas de memorização de peças que têm otimizado o rendi-mento de meus alunos e o meu próprio À medida em que question-amos nossas habilidades e capacidades, podemos nos planejar melhorpara a construção de uma performance sólida. É preciso cada vez maisconsiderar os recursos oferecidos pelos avanços da ciência e combiná-los com nossas imperfeições humanas, tornando a arte de preparar etocar uma obra musical um trabalho não só complexo mas gratificante.

Contribuições

A maior contribuição deste trabalho está em ampliar as discussõessobre a preparação da performance a partir de aspectos cognitivos esuas aplicações diretas na otimização dos procedimentos pedagógicosatualmente utilizados na pedagogia da performance musical.

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Implicações:

Discutir aspectos da literatura disponível sobre performance musicalenvolvendo neurociência e propor estudos que inspirem investimentoem pesquisas interdisciplinares envolvendo performance musical ecognição.

Referências bibliográficas

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Simpósio de Alunos de Graduação

Técnicas de ensaios gerais para a performance musical em grupos de câmara

Thiago Cazarim Sonia Ray

Universidade Federal de Goiás – UFG

A performance musical envolve uma formação complexa do indivíduoque se propõe a se especializar nesta atividade. A formação desteprofissional envolve, além dos conhecimentos inerentes à área de músi-ca, aspectos de diversas outras áreas. Por isso, a performance musicaltem sido objeto de pesquisas integradas em vários centros de pesquisaem música, a exemplo do CSMP (Centre for the Study in MusicPerformance – Londres), da SRPMME (Society for Research inPsychology of Music and Music Education – Sheffield), do GEPM(Grupo de Estudos em Performance Musical – UnB), e GEPEM (Grupode Estudos em Perfomance Musical – UFG).

Ao se preparar para uma prova prática, testes de seleção e apresen-tações, o performer musical fica sujeito a situações que exigem grandeesforço físico e mental. Particularmente nos momentos finais dapreparação para atuar em público, os limites de tensão são levados aoextremo e pouco se sabe sobre como proceder nesta etapa depreparação. Estudos sobre o aumento do nível de interferências negati-vas na performance musical apontam a falta de preparação e planeja-mento de ensaios como um dos responsáveis pelo mau desempenho domúsico no palco.

O processo de preparação para a performance, entretanto, tem rece-bido pouca atenção dos pesquisadores, apesar de há muito ser aponta-do como tema extremamente relevante (Sloboda, 1989). Parte daescassez de literatura sobre o tema se dá por seu caráter indisciplinar,o qual exige grupos integrados de pesquisadores, o que ainda é raro noBrasil. Outra razão seria a falta de recursos para experimentos com per-formers em atividade.

Apesar disso, trabalhos pioneiros têm sido desenvolvidos no Brasil,

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particularmente pelo GEPEM-UFG. É com base em publicações deresultados parciais destes trabalhos, pretende-se lançar um olhar maisaprofundado nas formas de preparação da performance musical.

Objetivos

Este trabalho apresenta resultados e discussões da pesquisa desenvolvi-da pelos autores entre agosto de 2004 até o presente, cujo objetivo édetectar como grupos camerísticos planejam e realizam seus ensaios.Pretende-se, com isso, determinar as estratégias e técnicas utilizadaspor esses grupos, a fim de entender como ocorrem as etapas com-preendidas entre os ensaios preparatórios e a performance em público.

Os resultados e discussões abaixo são referentes à primeira etapa dapesquisa (concluída em julho de 2005) na qual buscou-se identificar apossível existência de uma técnica-padrão usada em ensaios gerais. Deagosto de 2005 até julho de 2006, a investigação (ainda em andamen-to) sobre as técnicas e planejamento dos ensaios se estende tambémaos ensaios preparatórios.

Método

Entre agosto e dezembro de 2004, foi feita uma revisão de literaturadisponível sobre o tema (em português e inglês), organizada, posterior-mente, em fichamentos.

No mesmo período, realizou-se um experimento envolvendo grupos decâmara que consistiu numa série de 10 gravações (8 ensaiospreparatórios, ensaio geral e performance pública). O objetivo doexperimento foi acompanhar o desenvolvimento dos ensaios de cadagrupo para detectar se os grupos camerísticos utilizavam uma técnica-padrão para a realização de seus ensaios. Também observou-se a eficá-cia das estratégias utilizadas durante os ensaios tendo em vista seuimpacto sobre a performance pública (resultado final). Após o términodas filmagens, estas foram repassadas para fitas de vídeo e analisadassob forma de protocolos.

Resultados

A análise das gravações mostrou a existência de tendências comuns aosgrupos, ainda que não haja uma técnica-padrão para os ensaios. Umexemplo disso é que o ensaio geral preservou, em geral, a mesmaordem de apresentação das peças da performance pública, o que indi-

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ca que ele é encarado como uma prévia da performance. Tambémnotou-se que a impossibilidade de se ensaiar no local da performancecom antecedência e apenas imediatamente antes da apresentação podeter limitado outras formas de se estruturar o ensaio geral.

Verificou-se o uso de diversas estratégias utilizadas durante os ensaios.Foram elas: 1) interrupção para correção de problemas do grupo; 2)interrupção para estudo individual; 3) uso de repetições (da peça todae de trechos); 4) ensaio de passagens entre trechos; 5) ensaio em anda-mento reduzido; 6) discussão para definir melhores estratégias deensaio; 7) uso de sinais para marcar as entradas (por contagem verbal egesto ou outro sinal corporal); 8) anotações na partitura; 9) uso demetrônomo; 10) uso de piano para conferir afinação; 11) discussão dainterpretação da peça (articulações, fraseado, dinâmicas); 12) liderançados ensaios exercida majoritariamente por 1 dos integrantes do grupo.

No entanto, na maior parte dos grupos, verificou-se a total ausência deplanejamento dos ensaios e da performance, o que indica falta deconsciência sobre a maneira como estes estão estruturados. Elementospsicológicos – como a ansiedade e falta de concentração na perfor-mance – levaram muitos músicos a cometerem erros em passagensonde não houve problemas durante os ensaios preparatórios, o quedenota a falta de preparo psicológico como um elemento complicadorna performance pública.

Um fato interessante foi que os músicos usam seus corpos como meiode interação e expressão. Isso se deu de três formas:

1) associação de determinados gestos à produção de sons específi-cos;

2) movimentação corporal e alterações no ritmo da respiração e nasexpressões faciais de acordo com a intensidade e caráter das idéiasmusicais;

3) uso de gestos (movimentos com a cabeça, os braços, as mãos,troca de olhares, respirações e expressões faciais) para sincronizarentradas (no início, final e sessões dentro de uma mesma peça).

Resta ainda saber até que ponto os performers têm consciência decomo seus corpos atuam durante os ensaios e a performance.Determinando-se a importância que o corpo tem na performance, épossível alertar os músicos e proporcionar um melhor aproveitamentodo tempo de ensaio. O mesmo pode ser afirmado em relação às técni-cas utilizadas pelos grupos durante os ensaios.

A partir dos dados obtidos do experimento, é possível afirmar que os

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performers empregam determinadas técnicas para resolução de proble-mas de execução. Contudo, a discussão para decidir pelo empregodessas estratégias praticamente inexistiu. Este fato indica a falta deconsciência por parte dos músicos sobre como o ensaio ocorre e ausên-cia de reflexão sobre melhores formas de se estruturarem os ensaios.

Foram levantados quatro principais problemas de execução encontra-dos durante os ensaios. Apresentamos abaixo estes problemas junta-mente com as técnicas mais utilizadas pelos grupos e sugestões de out-ras possíveis estratégias para solucioná-los.

1) Má afinação: O uso do piano mostrou-se eficiente para corrigirproblemas de afinação e entoação. Aliados ao uso do piano,repetições do trecho com problemas de afinação e estudo indivi-dual durante os ensaios e em andamento reduzido mostraram-seimportantes para adequar a afinação entre os performers.

2) Dificuldades de comunicação visual: A maior dificuldade encon-trada em relação à comunicação entre os performers foi o fato depiano não se encontrar em posição que favorecesse a interaçãovisual. Para isso, bastaria ter mudado o piano de posição em vez detentar achar a posição que ficasse menos desconfortável – o quenão ocorreu. Porém, em alguns casos, o local onde o ensaio se real-izou não permitia uma boa comunicação visual entre os músicos.Nestes casos, sugere-se o uso de metrônomo, contagem verbal ourespirações (sinais auditivos) para compensar as eventuais dificul-dades visuais.

3) Problemas individuais de execução: Principalmente nos ensaiosiniciais, ocorreram maiores dificuldades individuais na execuçãodas peças. O recurso utilizado pelos grupos foi a interrupção doensaio para estudo individual de trechos (em diversos andamentos).Ainda se poderia sugerir o uso de solfejo e metrônomo comoestratégias que podem minimizar o tempo necessário para acorreção dessas dificuldades.

4) Equilíbrio de sonoridade: De modo geral, os grupos apresen-taram bom equilíbrio sonoro. Quando surgiu algum problema destanatureza, o ensaio foi interrompido 0para discutir possibilidades defraseado. Uma possível estratégia, que não ocorreu no experimen-to, seria a realização de discussões prévias sobre a estruturação dapeça, o que poderia reduzir o tempo utilizado nos ensaios.

Conclusão

A partir da revisão bibliográfica, notou-se que a importância daspesquisas em performance musical tem aumentado consideravelmente

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nos últimos anos (Gerling e Souza, 2000). Os rumos que estaspesquisas tomaram foram os mais diversos, constituindo-se como umcampo de pesquisas interdisciplinares. Portanto, deve-se buscar a inte-gração das diversas ferramentas disponíveis para a melhora da quali-dade da performance. Gabrielsson (1999), a exemplo, aborda questõesreferentes às pesquisas em performance musical, tratando de assuntosvariados como ansiedade, improvisação e dos modelos propostos porpesquisadores para definir a performance musical. Entretanto, outrostrabalhos se mostram mais específicos ao enfocar apenas um aspectoda performance, como evidenciado em Green (1986), em que o autordiscute os processos que levam ao surgimento das interferências naperformance.

Pelo experimento utilizado constatou-se que, apesar de não haver téc-nica-padrão de ensaio, é possível detectar algumas tendências comuns.Os grupos adotam várias estratégias combinadas, dependendo do prob-lema ocorrido. No entanto, mesmo nos grupos em que o uso de ummaior número dessas técnicas ocorreu, a discussão sobre a escolha doemprego de determinada técnica específica inexistiu. Isso aponta paraa ausência de reflexão sobre como os problemas surgidos nos ensaiosestão sendo resolvidos e como se poderia resolvê-los de outrasmaneiras.

Entretanto, alguns grupos solicitaram cópias das gravações para quepudessem ver como se deu o andamento de seus ensaios. Esta pode serapontada como uma outra estratégia importante, já que, ao assistir asgravações, os músicos podem atentar para detalhes não percebidos nomomento do ensaio.

Finalmente, espera-se que o presente trabalho possa contribuir paracom as pesquisas em performance musical, à medida que disponibilizamaterial de referência para músicos em geral. Espera-se também queeste trabalho estimule a criação de novos materiais que estudem oprocesso de preparação para a performance musical.

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Etnomusicologia Aplicada: metodologias de pesquisa e açãoem contextos musicais tradicionais

Júlia Zanlorenzi Tygel

Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP

A Etnomusicologia Aplicada, também denominada EtnomusicologiaParticipativa, pode ser definida como a área da Etnomusicologia queestabelece uma ponte entre pesquisa e ação, e que direciona seus resul-tados principalmente às comunidades estudadas. O papel do etnomu-sicólogo aplicado, acadêmico ou não, é sempre o de catalisador emediador de tais comunidades, oferecendo sua capacitação paraajudá-las superar problemas específicos. Sua responsabilidade se refereà preservação de culturas tradicionais, respeitando seu dinamismo,através da documentação e, principalmente, do estímulo à sua con-tinuidade – através, por exemplo, da conscientização sobre a importân-cia dessas práticas, o auxílio à busca de patrocínio, o oferecimento decursos técnicos em pesquisa etnomusicológica (Davis, 1992; Sheehy,

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1992, Titon, 1992). Para esses autores, em todos os casos a premissa éque haja colaboração entre o pesquisador e os pesquisados, que, efeti-vamente, devem ser os construtores dos objetivos e do direcionamentoda pesquisa. Essa premissa é também aquela das pesquisas chamadasparticipativas, sugeridas no Brasil por diversos autores especialmentenas décadas de 1970 e 1980, a exemplo de Thiollent (2002), Fals Borda(1990) e Brandão (1990), que têm a obra de Paulo Freire (1985, 1990)como referência fundamental.

Em nossa pesquisa, que tem sido realizada através de levantamentodocumental, entrevistas e pesquisa de campo, estudamos como efeti-vamente se dão essas práticas em dois projetos distintos. O primeirodeles – coordenado e realizado pela compositora, antropóloga e etno-musicóloga Dra. Kilza Setti – desenvolve-se junto às comunidades indí-genas Timbira do Maranhão1, através de duas frentes de atuação, que,não obstante, estão relacionadas: as oficinas de música, que integramo programa de educação indígena do Centro de Trabalho Indigenista(CTI)2; e o Projeto Arquivo Musical Timbira. As oficinas de música tive-ram início em 1995 no campus da Universidade de São Paulo e a par-tir de 1999 passaram a ser realizadas no Centro de Ensino e PesquisaPëmxwyj Hëmpejxà, ou Escola Timbira, em Carolina/Maranhão, comperiodicidade regular. O principal objetivo dessas oficinas é estimulara conscientização dos Timbira sobre o valor de seu próprio repertóriomusical. Segundo Setti (2002),

“A proximidade com pequenas vilas e cidades mais próximas dasaldeias começa a atrair jovens e mesmo mulheres para o fascínio dosbens de consumo. Um dos pontos observados durante pesquisas comessas populações é que acabam envolvidas por repertórios musicais dequalidade duvidosa, que circulam no comércio, e que tornam-se aúnica opção de escuta para as populações sertanejas e indígenas.”

As aulas visam ampliar nos alunos a consciência musical de seu valiosouniverso sonoro, intimamente relacionado à natureza. Por isso, o mate-rial musical utilizado é composto, principalmente, por músicas desserepertório. Entretanto, Setti argumenta que todos devem ter o direito deacesso ao conhecimento, e por isso também seleciona, para apreciaçãonas aulas, músicas do repertório mundial, provenientes de outros povos

1 Os grupos Timbira contemplados são: Canela-Apãniekrá, Krikati, Canela-Ramkokamekrá, Gavião-Pykopjê, Apinajé e Krahô.

2 Organização Não-Governamental constituída juridicamente como associação semfins lucrativos que desenvolve atividades que visam contribuir para que os PovosIndígenas assumam o controle efetivo de toda e qualquer intervenção em seusterritórios. Mais informações no site: <http://www.trabalhoindigenista.org.br/>

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indígenas, de outras culturas tradicionais, da tradição erudita ocidental.Todavia, os conhecimentos musicais são aplicados sobretudo nasanálises do repertório Timbira, enfatizando que a tradição musical oci-dental possui apenas algumas possibilidades de se fazer e pensar músi-ca, dentre tantas que merecem ser valorizadas. O conteúdo das aulasabrangeu, até agora, história da escrita musical, percepção musical,apreciação musical e noções elementares de escrita musical. Os alunossão levados a reconhecer unidades de conhecimento musical em váriostipos de repertórios, percebendo, inclusive, as diferentes formas dedistintas culturas fazerem partituras. Setti preocupa-se com a dinâmicadas oficinas, que têm, também, um caráter de entretenimento, gerandobastante curiosidade e interesse dos alunos Timbira.

Das oficinas de música derivou a criação, em 1996, do ArquivoMusical Timbira, que está sob guarda do Centro de Ensino e PesquisaPëmxwyj Hëmpejxà, tendo obtido patrocínio do Programa PetrobrásMúsica entre 2002 e 2004. Neste período, realizou-se o 1º Encontro deCantadores Timbira, durante o qual foi gravado o CD AMJËKIN –Música dos Povos Timbira (iniciativa do CTI e da Associação Wy´ty Catëdos Povos Timbira do Maranhão e Tocantins3). Segundo Setti (2002),

“A formação de um Acervo Musical Timbira iniciou-se e prosseguecom a participação da totalidade dos grupos Timbira, numa política de‘provocar’ os grupos em estado de ‘dormência ritual’, incentivando-osa atualizar suas diferenças em relação aos outros grupos. Com esseestímulo, pretende-se incrementar a vida ritual, preservar e fortaleceros repertórios musicais.”

Os pesquisadores Timbira recebem treinamento e capacitação em ofici-nas de música, complementados pelos cursos da Escola Timbira, paraque estejam aptos a realizar o registro e o arquivamento de documen-tos sonoros. O acervo musical reúne mais de quarenta horas degravações, catalogadas e coletadas por pesquisadores Timbira, auxilia-dos por agentes da CTI. Segundo Setti, as oficinas de música têmestimulado a conscientização sobre a importância do própriopatrimônio musical, presente em grande parte de suas manifestaçõestradicionais. As análises de músicas do repertório Timbira associadas àsde outros repertórios têm levado os alunos a reconhecerem a importân-cia cultural e o valor musical de seu próprio repertório, o que, con-forme Setti, tem desencadeado uma escuta mais crítica em relação àsmúsicas das cidades ao entorno das aldeias. A partir de uma abor-dagem musical, os alunos têm se conscientizado sobre a importânciada continuidade de suas práticas tradicionais.

3 Associaçãoindependen-te do CTIformada ecoordenadaunicamentepor índiosTimbira,desenvolveatividadesvariadasvoltadas aosseus interesses.

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Essa conscientização é ampliada nas atividades do Arquivo MusicalTimbira, já que, nas práticas de recolha e catalogação de materiaismusicais, os pesquisadores Timbira são estimulados a refletir sobrequais são as ocasiões de interesse para gravação e a sistematizar algu-mas de suas características. O intercâmbio de gravações do ArquivoMusical entre aldeias tem proporcionado o fortalecimento de suaspróprias práticas. Conforme Azanha (1984), essas diferenças entre asmanifestações dos diversos grupos Timbira delineiam uma formaTimbira, que está, a partir desse intercâmbio – acentuado na realizaçãodo 1º Encontro de Cantadores Timbira – sendo colocada em evidência.

O segundo projeto estudado em nossa pesquisa é realizado na cidadeCachoeira, localizada no Recôncavo Baiano, através da ONGAssociação de Pesquisa em Cultura Popular e Música Tradicional doRecôncavo (APCM/Recôncavo), fundada e presidida pela doutorandaem Antropologia (USP) e radialista Francisca Marques. Ainda que suafundação date de 2003, desde 2001 a equipe desta ONG realiza diver-sas atividades relacionadas à educação comunitária, à educação patri-monial e ao registro dos bens culturais de Cachoeira e São Félix (cidadevizinha), oferecendo gratuitamente a jovens da comunidade cursos e apossibilidade de participar de diversos projetos.

A metodologia de atuação da ONG baseia-se na articulação entre ensi-no e pesquisa, introduzindo jovens e adolescentes na prática de docu-mentação etnográfica e investindo na formação de pesquisadoresjuniores e profissionalização técnica de nativos da comunidade. Essessujeitos são responsáveis por recolher, organizar e disponibilizarpesquisas e documentos audiovisuais, formando continuamente acer-vos sonoros e visuais; possibilitando e atuando na difusão dessesconhecimentos, inclusive na formação de parcerias com emissoras derádio, televisão e meios eletrônicos para produções conjuntas. Ospesquisadores juniores vêm se aprimorando para divulgar suaspesquisas em encontros, congressos, colóquios e simpósios.Futuramente, esse acervo deverá ser aberto à visitação. À exceção deMarques, todos os membros da Diretoria e do Conselho Fiscal da ONGsão moradores nativos de Cachoeira/BA, que estão sendo capacitadospara, futuramente, autogerir a instituição.

Cachoeira possui muitas tradições afro-descendentes, manifestas emvários grupos de samba-de-roda, candomblés, grupos de reggae, festastradicionais, somados a duas filarmônicas. A prática da pesquisa emEtnomusicologia tem não apenas despertado o interesse dos jovensenvolvidos nos projetos para a importância de seu patrimônio, como

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também fornecido a grupos tradicionais a primeira documentação desuas manifestações: todos os registros coletados são copiados, sendouma cópia doada ao grupo documentado. Para Marques (2003), esseprocesso é de fundamental importância já que em Cachoeira tem ocor-rido uma grande evasão de jovens dos grupos tradicionais para for-mação de grupos de pagode e outros gêneros, pela falta de interesse econsciência sobre o valor de seu próprio patrimônio cultural.

O principal objetivo dos cursos é introduzir e capacitar jovens na áreade pesquisa em Etnomusicologia, tornando-os responsáveis pela con-tinuidade e preservação de seu patrimônio imaterial. SegundoMarques, os alunos desses cursos já conheciam a música como per-formance – muitos deles são integrantes de grupos musicais – mas nãocomo pesquisa. O fato de serem moradores nativos de Cachoeira facili-ta o processo, uma vez que conhecem os grupos tradicionais e estãofamiliarizados com as festas da cidade. Todos os alunos receberam cer-tificados do Laboratório de Etnomusicologia, Antropologia e Áudio daAPCM/Recôncavo, alguns deles vinculados à UFRJ, e outros à USP, oque contribui significativamente para sua profissionalização.

A APCM/Recôncavo já realizou parcerias com o Instituto do PatrimônioHistórico e Artístico Nacional (IPHAN), por meio do projeto pilotoRotas da Alforria e com a UNESCO, através de participações no pro-grama Young Digital Creators. O inventário de bens imateriais realiza-do pela APCM/Recôncavo, em parceria com o IPHAN, foi o primeirotrabalho recebido por este órgão que teve elaboração participativa comos membros da comunidade, incluindo jovens ainda não formadoscomo pesquisadores graduados.

Parcerias com a UNESCO estabeleceram-se através da participação dealunos da APCM/Recôncavo em dois projetos: a) o de conscientizaçãosobre a importância da água “O Som da Nossa Água”, que consistiu nacaptação dos sons de dois rios de Cachoeira, e na composição musicalatravés da utilização dessas captações e de músicas tradicionais deCachoeira e São Félix, realizado em parceria com o Grupo deRadioarte (Salvador), a Escola de Música Didá e o Centro deDesenvolvimento Social da Orla de Camaçari (CEDESC); b) o projetode educação patrimonial “Scenes and Sounds of my City”, queabrangeu som e fotografia4. Essas parcerias permitiram aos jovens

4 Os samples e as imagens dos dois projetos podem ser acessadas através do sites:< h t t p : / / u n e s c o . u i a h . f i / w a t e r / p i e c e s / r e s u l t s ? g e t _ r e g i o n s=Latin%20America%20and%20the%20Caribbean> para o projeto “O Som da NossaÁgua”, e <http://unesco-mycity.paris4.sorbonne.fr/ gallery/050324/dia/LEAA/> para oprojeto “Scenes and Sounds of my City”.

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envolvidos ter os resultados de suas pesquisas incluídos nos anexos dosinventários dos bens culturais de Cachoeira e São Félix, constituintes doacervo do Museu do Folclore no Rio de Janeiro; e, no segundo caso,através da interação com jovens de outros países, também participantesdos programas da Young Digital Creators. Essa valorização externa temcontribuído, também, para a auto-valorização desses jovens, tanto desuas primeiras pesquisas etnomusicológicas e criações musicais con-juntas, quanto das práticas tradicionais de sua cultura – especialmenteas musicais.

A APCM/Recôncavo oferece também assessoria de comunicação e pro-jetos a grupos de cultura popular do Recôncavo, zelando, inclusive,pelo cumprimento da lei do direito autoral, por meio da orientação agrupos de cultura popular e música tradicional, para que tenham asses-soria jurídica especializada. As atividades destinam-se também a auxi-liar esses grupos na realização de práticas organizacionais e formais,como encaminhamento de reuniões, elaboração de documentos, etc.Derivou dessa frente de trabalho a formação da ONG AssociaçãoCultural do Samba-de-Roda Dalva Daiana de Freitas, irmã daAPCM/Recôncavo.

Considerações Finais

Podemos notar que, em todas as atividades descritas – dos projetos deCachoeira e entre os Timbira –, o foco está no estímulo à conscientiza-ção das comunidades sobre a importância e o valor de seu patrimôniocultural – principalmente o musical. Nos dois casos, essa conscientiza-ção tem levado os participantes “nativos” a um retorno para a práticadessas tradições, anteriormente por eles não notada, ou mesmo desva-lorizada. Esse processo contribui significativamente para a con-tinuidade dessas tradições musicais frente a um contexto mundial queestimula seu abandono. Nos dois projetos, existe uma grande preocu-pação com a participação e autonomia das comunidades na definiçãodos rumos das atividades, o que lhes confere um caráter emancipatório.

Entre os Timbira, a conscientização sobre o valor de seu repertóriomusical é estimulada principalmente através de práticas estritamentemusicais (nas oficinas de música) e da introdução à prática de pesquisaem Etnomusicologia (no Arquivo Musical Timbira). Nos projetos daAPCM/Recôncavo, a ênfase está na introdução à pesquisa e à profis-sionalização em Etnomusicologia, complementados pela participaçãoem criações musicais e audiovisuais. Embora o foco das práticas dosdois projetos seja diferente, ambos estão alcançando um objetivo

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semelhante, a saber, o fortalecimento de práticas musicais tradicionais,com participação ativa de jovens, através de metodologias que, sobdiferentes práticas, estimulam a conscientização sobre seu valor.

Este artigo apresenta alguns resultados preliminares de pesquisa de IniciaçãoCientífica (FAPESP) em andamento, intitulada “Etnomusicologia Aplicada: umareflexão crítica sobre as metodologias de dois projetos de pesquisa e ação”,desenvolvida no Departamento de Música do Instituto de Artes da UniversidadeEstadual de Campinas (UNICAMP), sob orientação da Profa. Dra. Lenita W. M.Nogueira. Nele discutimos as metodologias adotadas por dois projetos emEtnomusicologia Aplicada para estimular, em diferentes comunidades, a cons-cientização sobre a importância e o valor de práticas musicais tradicionais econtribuir, assim, para a o processo de sua continuidade.

Esperamos que a divulgação e breve discussão sobre as metodologias dessesprojetos possa contribuir, nos parâmetros de uma Iniciação Científica, para aampliação do debate sobre a Etnomusicologia Aplicada ou Participativa noBrasil e, também, para a implementação, criação e execução de outros proje-tos nessa área.

Referências bibliográficas

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DAVIS, Martha E (1992). Carreers, ‘Alternative Careers’ and the UnityBetween Theory and Practice in Ethnomusicology. In Ethnomusicology vol.36 no 3,1992 (pp. 361-367). Disponível em: <http://www.jstor.org/search/>Acesso: 03/2005.

FALS BORDA, Orlando (1990). Aspectos teóricos da pesquisa participante:considerações sobre o significado e o papel da ciência na participação po-pular”. In Brandão, C. R. (org.). Pesquisa Participante (pp. 42-62). São Paulo:Brasiliense.

FREIRE, Paulo (1985). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

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MARQUES, Francisca (2003). Samba de roda em Cachoeira, Bahia: uma abor-dagem etnomusicológica. Dissertação de mestrado apresentada aoPrograma de Pós-Graduação em Música da Escola de Música da UFRJ.

SETTI, Kilza (2002). Projeto Arquivo Musical Timbira. Selecionado peloPrograma Petrobrás Música, mimeo.

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SHEEHY, Daniel (1992). A Few Notions about Philosophy and Strategy inApplied Ethnomusicology. In Ethnomusicology vol. 36 no 3, 1992, 323-336.

THIOLLENT, Michel (2002). Construção do conhecimento e metodologia daExtensão. In Anais do I Congresso Brasileiro de Extensão Universitária.

TITON, Jeff Todd (1992). Music the Public Interest, and the Practice ofEthnomusicology. In Ethnomusicology vol. 36 no 3, 315-322.

O papel dos efeitos sonoros na significação em jogos eletrônicos

Felipe Hickmann

A natureza das relações estabelecidas entre efeitos sonoros em jogoseletrônicos e seus efeitos sobre os jogadores pode ser estudada de pon-tos de vista muito diversos. O jogo eletrônico se utiliza dos eventossonoros, assim como de todo tipo de informação visual, como veículospara comunicar ao jogador modificações em seu contexto. Essa infor-mação sonora precisará ser apreendida pelo jogador, e essa apreensãopode se dar de maneiras muito diferentes, dependendo por exemplo dafamiliaridade do jogador com aquele estímulo específico ou com suaspropriedades físicas, dos significados que o estímulo suscita naquelacultura específica, ou mesmo do próprio nível de atenção que ojogador tem condições de dispensar àquele evento em dado momentodo contexto de jogo.

Uma ferramenta que se mostra muito útil à compreensão do processode apreensão do material sonoro é o Behaviorismo, por se tratar de umescola psicológica que procura compreender a aprendizagem de umponto de vista extremamente sintético, a fim de que os dados possamser sempre verificados cientificamente. Partindo de um exemplo sim-ples, procuraremos determinar de que forma a análise do comporta-mento explica a maneira como um estímulo sonoro é convertido emcomportamento, em um jogo eletrônico. O exemplo a ser analisado foiextraído do jogo River Raid, lançado pela Activision em 1982 para oconsole Atari 2600. Nesse jogo, o jogador detém o controle de umavião, que se desloca em meio a obstáculos (móveis ou não) quepodem destruídos através de disparos ou dos quais se pode desviar. Oavião possui um tanque de combustível. À medida que o avião voa essecombustível é consumido, e precisa ser reposto (através do sobrevôo depostos de abastecimento) antes que se esgote, já que disso resultaria em

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sua queda. Existe, na parte inferior da tela, um mostrador indicando onível do combustível. No entanto, diante da necessidade de contornarou destruir os obstáculos à sua frente, nem sempre é possível aojogador desviar o olhar para baixo a fim de verificar se o combustívelestá próximo do fim. Então, a partir de um determinado nível crítico defalta de combustível, passa a soar um alarme indicativo dessa situação.Nesse caso, verifica-se um dos usos mais difundidos dos efeitos sonorosem jogos eletrônicos: comunicar ao jogador uma modificação de con-texto. Esse papel pode ser atribuído ao som, à imagem, ou a algumacombinação dos dois (como na situação descrita). A partir de então, ojogador dispõe do estímulo necessário ao comportamento de reabaste-cer imediatamente o avião.

No exemplo, ocorre o que do ponto de vista do Behaviorismo se con-vencionou chamar de “condicionamento operante”. Segundo Baum(1999), o condicionamento operante é uma modificação de comporta-mento reforçada pela sua própria conseqüência, e motivada por umcontexto específico. No contexto sonoro de alarme de falta de com-bustível, o jogador comporta-se de forma a reabastecer. Ele o faz devi-do às conseqüências: se não reabastecer, o avião cairá. Trata-se de umcaso de “reforço negativo”: o comportamento de reabastecer evita aconseqüência, e portanto é reforçado. Assim, a história de reforço dojogador o levará a procurar reabastecer sempre que ouvir aquelealarme específico.

É possível, no entanto, analisar a mesma situação sob outro ponto devista. Ocorre que, no momento em que o jogador reabastece, soa umaviso correspondente ao preenchimento do tanque de combustível(também assinalado visualmente). Pode-se constatar nessa relaçãocomportamento-conseqüência um reforço positivo: o comportamentode reabastecer causa o preenchimento do tanque (assinalado sonora evisualmente), e portanto é reforçado. Em todo o caso descrito, o con-texto (som e imagem indicando o final do combustível) que motiva ocomportamento (reabastecer) é chamado “estímulo discriminativo”(reabasteço porque me foi informado que é necessário; caso contrário,não me sentiria compelido a essa ação), e portanto diz-se que a açãode reabastecer está sob “controle de estímulo”. Os estímulos discrimi-nativos em contextos complexos como jogos são normalmente com-postos: não basta ao jogador ser informado de que é necessárioreabastecer. Também é fundamental, por exemplo, que não haja nen-hum obstáculo em frente ao posto de abastecimento (cujo contatocausaria a explosão do avião). Há, portanto, dois elementos que com-

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põe esse estímulo discriminativo: 1) a necessidade de reabastecimento;e 2) a ausência de obstáculos sobre o posto de reabastecimento.

A análise da situação descrita sob esses dois pontos de vista demonstraa necessidade de um sentido de interpretação mais amplo. O jogadorreabastece para preencher o tanque (reforço positivo); e preenche otanque para evitar que o avião caia (reforço negativo). Levando oraciocínio adiante, é possível entender que o jogador evita que o aviãocaia para que possa continuar jogando (assim, o som indicativo dereabastecimento é um estímulo discriminativo para que continuepilotando); e quer continuar jogando para que possa vencer a partida,ou acumular mais pontos. Talvez o sucesso no jogo lhe traga uma con-trapartida social positiva. Toda essa rede de comportamentos e conse-qüências possíveis forma uma cadeia. Quando um elo da cadeiareforça o anterior e funciona como estímulo discriminativo para oseguinte, temos a chamada “cadeia comportamental” (Baum, 1999).

O conjunto de contextos, comportamentos e conseqüências de umjogo específico é o que determina suas regras (ou seja, diz-se que umjogador “conhece” um jogo, do ponto de vista do Behaviorismo, quan-do reage a ele adequadamente, a partir de sua história de reforços).Regras mais complexas, evidentemente, levarão a um processo deaprendizado mais longo. Se o jogo não for capaz de sustentar, por suasqualidades de entretenimento, o interesse do jogador até que as regrastenham sido suficientemente compreendidas, corre o risco de ser aban-donado prematuramente. Nesse primeiro momento, o som (assim comotodos os elementos estéticos) cumpre um papel muito específico: asprimeiras oportunidades em que o jogador toma contato com as regrastambém são as primeiras oportunidades em que se depara com o uni-verso sonoro daquele jogo. Os valores estéticos do som recebem entãomaior destaque, já que precisam causar no jogador interesse suficientepor si próprios para que a primeira etapa de familiarização com asregras seja concluída com sucesso.

Cabe levantar até que ponto a discussão relativa a comportamento éválida em um contexto não-natural, como o aqui descrito. Seria o com-portamento de um jogador nesse tipo de contexto ao menos semel-hante àquele que encontraria lugar na realidade? Huizinga (1971) afir-ma que, para o jogador, a distinção entre o jogo e a realidade não éabsolutamente clara:

“Todo jogo é capaz, a qualquer momento, de absorver inteiramente ojogador. Nunca há um contraste bem nítido entre ele e a seriedade,sendo a inferioridade do jogo sempre reduzida pela superioridade de

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sua seriedade. Ele se torna seriedade e a seriedade, jogo.”

Trata-se de um “círculo mágico” isolado do mundo real, mas dotado desuas próprias regras. Nesse sentido, dentro daquele universo restrito, háuma existência “virtual” a ser defendida. As regras de comportamentodemonstram-se então válidas internamente àquele contexto.

O Behaviorismo, embora bastante viável para a compreensão de umexemplo simples como o até agora descrito, mostra-se menos conve-niente que outras análises possíveis no momento em que se passa aoestudo da formação dos significados dos estímulos sonoros em um jogoeletrônico. Os significados, para o Behaviorismo, também são resulta-do de histórias de reforço (portanto, variáveis de acordo com o contex-to). A semiótica, por outro lado, estabelece uma extensa terminologiajustamente para determinar sua natureza. A base dessa terminologia éo conceito de signo, “algo que intenta representar um objeto que é suacausa ou determinante, e que afeta uma mente de tal modo que deter-mina nela algo que é mediatamente devido ao objeto (determinaçãoessa chamada ‘interpretante.’)” (Santaella, 2001) A partir dessadefinição, é fácil concluir que todo e qualquer evento sonoro constantede um jogo eletrônico pode ser interpretado como um signo. Partindoda definição triádica proposta por Santaella (2001), podemos dizer que,no exemplo citado anteriormente, o som de alarme propriamente ditoseria o fundamento do signo, a falta de combustível seria seu objeto(aquilo que o signo busca representar), e o interpretante seria o efeitocausado sobre o jogador (a compreensão de que o combustível seencontra próximo do final, ou mesmo a simples admiração das quali-dades do som em si). Todo e qualquer signo é necessariamente com-posto por esses três elementos. Para uma melhor compreensão doprocesso de aprendizado do significado de um signo sonoro dentro docontexto específico de um jogo eletrônico qualquer, analisaremos maisprofundamente o interpretante, por se tratar do efeito propriamente ditocausado sobre o jogador. Diz-se que todo interpretante possui trêsníveis: o interpretante imediato (o potencial de interpretação inerente aqualquer signo, independente de que ele venha a ser de fato interpre-tado); o interpretante dinâmico (o efeito que o interpretante efetiva-mente produz na mente do intérprete); e o interpretante final (um idealinterpretativo, baseado na suposição de que fosse possível que umsigno pudesse produzir todos os interpretantes dinâmicos de modoexaustivo e final) (Santaella, 2001).

Para efeito de estudo do processo de aprendizado do significado de umevento sonoro qualquer por parte de um jogador, o interpretante

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dinâmico é o que desperta maior interesse. O interpretante dinâmico ésempre composto por três níveis de interpretação: o interpretante emo-cional, o interpretante energético e o interpretante lógico. Trata-se deperspectivas de interpretação de um mesmo signo qualquer. No entan-to, alguma das três sempre encontrará dominância sobre as demais, eessa diferença se deve ao nível diferenciado de experiência de cadaintérprete em relação ao objeto do signo. O interpretante emocionalatenta unicamente a qualidades de sentimento. Ou seja, o intérpretenão busca significação no signo, somente absorve seus valores estéticose se permite influenciar emocionalmente por eles. Essa é a primeiraexperiência vivida por um jogador quando se depara com um eventosonoro nunca ouvido: a atenção às qualidades do som em si, indepen-dente do que ele venha a significar. A seguir, entra em ação o interpre-tante energético: trata-se da busca do intérprete por um significado quejustifique o surgimento daquele som naquele contexto. No exemplocitado, em algum momento do processo de aprendizado o jogador sedará conta que aquele som determinado ocorre simultaneamente àindicação visual de baixo nível de combustível (que, evidentemente,também se constitui em um signo), e portanto compreenderá que esteé o significado daquele signo sonoro. Essa conclusão é efetivada pelointerpretante lógico. A partir do momento em que o significado dosigno sonoro já foi corretamente apreendido, o ponto de vista do intér-prete se modifica. Ele passa a saber de antemão o significado do signo,e portanto, ao se deparar com ele, o interpretante lógico tende a seapresentar com antecedência.

Meyer (1956) introduz conceitos muito importantes para a compreen-são do processo de significação. Segundo ele, há uma espécie de con-senso cultural entre determinados estímulos sonoros e seus significa-dos. Isso significa que esses estímulos despertarão em ouvintes domesmo grupo cultural interpretações muito semelhantes. Essas inter-pretações são chamadas “conotações”. A pesquisa de Meyer se aplicamais diretamente à interpretação de signos contidos em material pro-priamente musical (no caso em estudo, a trilha sonora de um jogoeletrônico). Caso a trilha sonora venha a ser aproveitada como ele-mento narrativo, terá a oportunidade de utilizar-se das conotaçõescomo forma rápida e eficiente de despertar no jogador determinadasrespostas emocionais.

Toda a discussão estabelecida a respeito da estimulação de um jogadorpor eventos sonoros, incluindo a atribuição de significados, possui cer-tamente o potencial de incitar a produção de trabalhos capazes de

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preencher lacunas que não puderam ser discutidas neste trabalho. Umadelas diz respeito à necessidade, freqüente em jogos eletrônicos, deque o som não induza a associação com qualquer significado, externoou interno ao contexto de jogo, ou o faça em um nível mais primário(ou subliminar, do ponto de vista de prioridade de percepção) do queo aqui discutido. Essa necessidade existe porque, em muitos casos, nãointeressa à estrutura narrativa do jogo que o som acrescente infor-mações a seu conteúdo. Em um caso como esse, a atuação de um estí-mulo sonoro como signo capaz de despertar um interpretante energéti-co ou lógico pode induzir uma associação equivocada, o que se con-stituiria em uma regra incorreta no universo de jogo, além de desviar ofoco de atenção do jogador de outros elementos que poderiam ser maisimportantes para seu desempenho. Assim, seria útil o estabelecimentode um “limiar de estimulação”, ou seja, um limite no qual os efeitossonoros deixam de ser apreendidos de forma subliminar (como umamúsica de fundo sem conteúdo narrativo) e passam a estar disponíveispara associação com eventos contidos na narrativa.

Referências bibliográficas

BAUM, W. (1999). Compreender o Behaviorismo. Porto Alegre: ArtesMédicas.

HUIZINGA, J. (1971). Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva.

Meyer, L. (1956). Emotion and Meaning in Music. Chicago: The Universityof Chicago Press.

SANTAELLA, L. (2001). Matrizes da Linguagem e Pensamento. São Paulo:Iluminuras.

Construção da performance por um aluno de graduação em piano: um estudo de caso

Estevam Brito Meireles Dantas

Universidade Federal da Bahia (PIBIC/FAPESB)

Estudos sobre a elaboração de planos de performance musical sãoainda escassos no Brasil. Um caminho para a pesquisa em performancemusical é a utilização das metodologias de pesquisa em psicologia eesporte (Ericson, 1997). Dentre suas habilidades físicas, a prática musi-cal apresenta movimento complexo e habilidades de determinar o

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tempo; dentre as mentais, leitura de notação, memorização e represen-tação mental. Sloboda (1982) faz um questionamento central a seuestudo: Como caracterizamos o que alguém sabe quando é capaz deexecutar uma peça musical? Como essa pessoa adquire tal conheci-mento? Que uso o músico faz de feedback perceptivo ao controlar suaexecução? Como a performance musical é afetada por fatores sociais esituacionais?

Os objetivos deste trabalho são observar, registrar e analisar sessões deprática de um aluno da graduação em piano durante o aprendizado depeça musical designada ao mesmo. Para isso, entrevistou-se o sujeitopor meio de questionário elaborado para tal fim, filmou-se sessões desua prática e acompanhou-se a escrita de um diário sobre a mesma.Pretendeu-se, com isso, esclarecer aspectos da construção da sua per-formance musical e comparar os dados com achados da literatura naárea. O trabalho de Nielsen (1997), um estudo de caso sobre a práticade um organista de igreja, norteia esta pesquisa. Até o momento, con-cluímos a coleta de dados e estamos dando seguimento às análises dosmesmos.

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Posters

. A mente e a percepção das artes musicais

A análise da utilização da música funcional em supermercados na cidade de Curitiba

Eduardo F. Frigatti, Mariane N. Oselame, Thomas R. Brenner – FAP

PALAVRAS-CHAVE: MUZAK, MÚSICA FUNCIONAL, MÚSICA DE TRABALHO

Desde os primórdios a música era utilizada pelo homem como facilitadora desuas tarefas cotidianas, através de ritmos determinados que organizavam ostempos dos trabalhos, melodias que reconfortavam ou instigavam e o próprioato de fazer musical, que, tornando-se o foco da atenção do indivíduo,amenizava a percepção do desgaste físico causado por uma tarefa repetitiva. Asworksongs dos escravos estadunidenses, as canções das lavadeiras, e os cantos‘vissungos’ dos escravos das minas de diamantes do interior de Minas Geraissão alguns dos vários exemplos da utilização da música durante o trabalho.

Atualmente, a utilização da música no ambiente de trabalho se enquadra den-tro do que se denomina música funcional, ou seja, toda música que possuiobjetivos ou aplicações extramusicais, como trilhas sonoras para filmes, jinglesou música ambiente apresentada em restaurantes, supermercados, consultóriosmédicos e fábricas etc. Essa utilização baseia-se nos efeitos psico-fisiológicoscausados no ser humano pelo fenômeno musical. Segundo Benenzon (1981)alguns desses efeitos são: o aumento do metabolismo; alteração da atividademuscular, freqüência respiratória, fluxo sanguíneo e pressão arterial; reduçãodo impacto dos estímulos sensoriais; podendo retardar a fadiga, estimular aconcentração e modificar a condutibilidade elétrica do corpo. Comple-mentando o que diz Benenzon, Leinig (1977) afirma que a música influência aconduta e o estado de espírito do homem. “Quer nas horas de lazer como nasde trabalho, o homem deve ouvir música, para se sentir integrado ao ritmo e àharmonia da vida”. Ou seja, a música tem efeitos tanto físicos quantopsíquicos.

Num primeiro momento, o emprego da música funcional em empresas estavavoltado para o aumento da produtividade dos funcionários, obedecendo a umasérie de preceitos que regiam sua aplicação. Dentre esses, destaca-se que amúsica em ambiente de trabalho deve ser variada e não contínua, pois “lamusica en su forma continua crea su propria monotonia” (Benezon, 1981:152). Além disso, deve-se evitar recursos que chamem a atenção, tais comomodulações, variações, arpejos e trinados. “La característica primordial que sequiere dar, es que nunca se emponga a la percepción consciente (…) se dice

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que la musica funcional se oye pero no se escucha” (Ibid: 154). Jourdain dizque “quando experimentamos música ambiente, ouvimos passivamente em vezde escutar, ativamente” (1998: 314). Isso porque “(…) o som em entrada éextensivamente processado no tronco do cérebro” (1998: 314). Deste modo, oprocesso sonoro dar-se-ia de maneira inconsciente causando efeitos psicofisio-lógicos que não estariam no foco de atenção do indivíduo.

Nesse início de pesquisa, indo a campo, constatou-se, através de entrevistascom funcionários de alguns supermercados da cidade de Curitiba, que a músi-ca ambiente desses locais eram de execução contínua ao longo do dia e suaprogramação era pouco variada, segundo os próprios funcionários tal situaçãoé fatigante. Isso leva a crer que essas músicas não eram destinadas ao bem-estardo funcionário, mas sim ao consumidor. Assim, constituem-se como objetivosdessa pesquisa, averiguar qual a influência da música funcional no consumidore se a utilização dessa forma de aplicação da música nos supermercados deCuritiba tem a intenção de facilitar o consumo do cliente por meio da criaçãode um ambiente agradável que promova uma sensação de bem-estar que, pornão estar conscientemente ligado à música, pode ser associado ao ato dacompra.

Ponteio 36 de Guarnieri: Linguagem Nacional e Abstrações

Ester Bencke

Bacharel em Música – UDESC

PALAVRAS-CHAVE: GUARNIERI, PONTEIO, LINGUAGEM NACIONAL

Mário de Andrade defendia o nacionalismo em música, que apresentava carac-terísticas de exotismo, como citações étnicas, como uma fase em busca de umamúsica inconscientemente nacional, que seria conseguida através de um amploconhecimento das músicas populares nacionais (étnicas, folclóricas e regiona-listas).

Este foi um desafio aos compositores da época que encontraram dificuldadestanto para traçar a fronteira entre o exotismo e a incorporação profunda damúsica popular quanto para expressar-se subjetivamente através da músicanacional. Guarnieri parece encontrar-se no momento em que isto tornou-sepossível, criando peças com uma brasilidade sutil, expressivamente brasileira,o que foi chamado por Mário de Andrade de linguagem nacional. Nesta lin-guagem, o material étnico e folclórico não mais é utilizado diretamente sobforma de citações, mas transformado pelo compositor,que imprime um trata-mento próprio a este material. Este tratamento pode ser compreendido com oabstração, por meio da separação mental dos elementos musicais popularespresentes em sua música através de análise musical. Esta pesquisa trata deaspectos da linguagem nacional presentes na série de Ponteios para piano solode Camargo Guarnieri e de seu contexto histórico-musical. A série é constituí-

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da de 50 Ponteios compostos entre 1931 e 1959, sendo que no início de cadaum deles há uma indicação expressiva. Por meio de leitura, apreciação, análisee interpretação musical, realizou-se um levantamento de elementos recorrentesda linguagem guarneriana na coleção de Ponteios e, na análise do Ponteio 36,foram destacadas abstrações, ou seja, transformações do material étnico e fol-clórico no âmbito musical, em suas relações com o tratamento de elementosmusicais e a indicação de caráter. O trabalho tem como objetivo acrescentardados relevantes aos estudantes de piano e intérpretes de música brasileira pormeio de uma compreensão analítica e contextual do Ponteio 36 e da reflexãoa respeito de música nacional. Com isto, levar a um entendimento racional doselementos populares transformados nos Ponteios de Guarnieri, que podem serouvidos como brasileiros, todavia não visualizados numa primeira leitura dapartitura, por estarem “diluídos” e só poderem ser compreendidos claramenteno âmbito mental. Em pesquisas subseqüentes, poderão ser levantadas relaçõesentre o tratamento de elementos musicais com as indicações expressivas deoutros Ponteios, e verificada a maior ou menor incidência de recorrênciasdestes elementos em Ponteios com indicações de caráter semelhantes.

Beethoven e Brahms na Sonata Op.9 de Alberto Nepomuceno

Igor Correia - UFPR

PALAVRAS-CHAVE: NEPOMUCENO, ANÁLISE MUSICAL

Este trabalho visa mostrar como Alberto Nepomuceno (1864-1920) entendeu,utilizou e adaptou alguns aspectos da música de Beethoven e de Brahms nasobras compostas durante seu período acadêmico (1889-1905) (Dudeque,2005). A música germânica do século XIX foi influente no pensamento devários compositores brasileiros, entre eles podemos citar Leopoldo Miguez,Henrique Oswald e Alberto Nepomuceno (Vermes, 2004). No caso de AlbertoNepomuceno, quem estudou em Berlim entre 1890 e 1894, a música deBeethoven pode ter servido como modelo a ser seguido juntamente com umainfluência da música de Brahms através dos estudos realizados com H.Herzogenberg. Ainda pertinente a este trabalho é o grande interesse queNepomuceno demonstrou em seus estudos acadêmicos e nos tratados por eleestudados. Alguns foram traduzidos para o português na sua quase integrali-dade pelo próprio Nepomuceno (Dudeque, 2005; Correa, 1986). O presentetrabalho ilustra tais suposições através de uma análise do primeiro movimentoda Sonata para piano Op. 9, composta em 1894, onde se observa semelhançase adaptações de estruturas e procedimentos composicionais inspirados namúsica de Beethoven e Brahms.

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2. A mente e a produção das artes musicais

Intencionalidade e criação em música

Caio M. Nocko

PALAVRAS-CHAVE: CRIAÇÃO, INTENCIONALIDADE

Em música, costuma-se muito analisar a forma, a harmonia, a melodia, a instru-mentação, etc, enfim, aspectos, de certa forma, técnicos. O campo subjetivoacaba, muitas vezes, sendo esquecido ou, simplesmente, deixado de lado. Masexiste sempre, quando o compositor vai criar uma obra musical, um aspectosubjetivo que podemos – e é o que pretendemos aqui – ressaltar: a inten-cionalidade. Segundo o filósofo John R. Searle, no sentido em que queremosdistinguir, a intencionalidade é:

“…aquela característica da mente graças à qual os estados mentais sãodirigidos a, ou falam de, ou se referem a, ou apontam para estados decoisas no mundo. É uma característica peculiar, uma vez que, na verdade,o objeto não precisa existir para ser representado por nosso estado inten-cional” (2000, p.67).

Dessa forma, toda vez que um artista pretende compor uma música, ele proje-ta suas idéias intencionalmente. Apesar de parecer ser algo óbvio, esse entendi-mento acarreta, por exemplo, o fato de a obra de arte musical estar repleta dossignificados que o compositor quis imprimir musicalmente ou, no caso de umacanção, na letra mesmo. Nesse caso, já vê-se que é graças à intenção do autorque certos traços melódicos, harmônicos, etc, são apresentados da forma quesão e não de uma outra maneira qualquer que poderiam ser. Ou seja, tudo oque foi produzido intencionalmente tem uma razão para estar da maneira queestá e não é acaso, como, pela falta de análise, costuma-se pensar. A forma, ainstrumentação, o caráter, por exemplo, são aspectos que são determinados,escolhidos de acordo com a intenção pretendida.

Seguindo esse pensamento, e fazendo algumas associações com os escritos daBiologia do Conhecer de Humberto Maturana, distinguimos três ‘finalidades’para a intencionalidade musical. A primeira diz respeito ao compositor em simmesmo. São as obras produzidas com a intencionalidade de lembranças, prin-cipalmente, para o próprio compositor. São composições criadas por ele paraele mesmo. Dizem respeito às sensações, aos sentimentos e pensamentos erecordações dele mesmo e, embora possa ser comunicada a outros, é com essaintencionalidade que realiza a obra. Aliás, devemos esclarecer desde já: as trêsespécies aqui separadas de intencionalidade estão presentes em todas as obras,mas sempre há uma que se distingue, se sobrepõe às demais e é isso o quequeremos destacar. Portanto, na primeira diferenciação, a intencionalidade docompositor é voltada para o contexto: ele mesmo. Ele pretende gerar algo (lem-brança, desejo, etc) em si próprio e assim tudo o que for pensado intencional-

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mente na obra será pensado com essa finalidade. Na segunda separação quefazemos, a intencionalidade do compositor se volta para os outros. É aqui ondese encaixam a maioria das obras, dedicadas e pensadas para o público em geralou em particular. Toda a etapa de criação do compositor é tomada, então, poresse sentido: comunicar a outros, provocar algo em outros que não ele mesmo.Ele trabalha, assim, com uma dimensão intersubjetiva ou, como ainda queremalguns, objetiva. Os maiores exemplos desse segundo aspecto são as obrasencomendadas e, principalmente, as obras com fundo comercial, como jingles,trilhas sonoras, etc, onde a intencionalidade está voltada para a comunicaçãodaquele que compõe – mediado pela música, pelo filme – com os especta-dores. Antes de explicar a terceira diferenciação de intencionalidade que faze-mos, precisamos tratar dos aspectos que dissemos fazer relação com a teoria deHumberto Maturana : os acoplamentos estruturais e a autopoiese. Acoplamentoestrutural é a denominação que Maturana dá para a constante relação queexiste entre um ser com os demais seres e, no caso especial de nós, sereshumanos, dentro de um domínio lingüístico. De acordo com o biólogo, há umatroca contínua de transformações entre o ser e o meio (que inclui os outrosseres). Algo feito pelo ser resulta em alguma no meio que, por sua vez, criaráoutra transformação no ser, que produzirá outra mudança no meio e assim pordiante. Ou seja, uma seqüência de transformações relacionadas e encadeadasumas com as outras. Associamos os acoplamentos estruturais dentro dodomínio lingüístico, com a segunda relação de intencionalidade, já citada: acriação voltada para a comunicação com o outro ser, a obra produzida com ointuito de provocar algo no outro. No caso do termo autopoiese, Maturana querdesignar a autoprodução do ser, senhor de suas próprias conseqüências, de seufuturo. Associamos a autopoiese com a primeira diferenciação que já expli-camos: a composição com a intenção de comunicar-algo-a-si-mesmo ouprovocar algum efeito no próprio autor; e também relacionamos com a terceirae última questão diferencial que destacaremos: a autopoiese da linguagem.Nessa terceira partição, a intencionalidade do compositor, durante o processode criação da obra, está direcionada para a transformação do código, da lin-guagem artística. É aqui que se encaixam obras como 4’33” de John Cage, a 9ªSinfonia de Beethoven e as primeiras obras concretas de Pierre Schaeffer ePierre Henry. Todas essas obras tem em comum o fato de terem quebrado regrasanteriores, mudado padrões e transformado o código musical até então pre-dominante em pelo menos um aspecto. E é essa a intenção dos compositoresdentro da terceira divisão que revelamos. Mas essa terceira relação, por dizerrespeito ao código, tem muita conexão com os acoplamentos estruturais tam-bém, porque altera a linguagem (musical ou, além dela, a natural) que é o meiopelo qual conhecemos e denominamos tudo e, a partir daí, agimos. Ou seja,uma alteração na linguagem é uma alteração na maneira como conhecemos,denominamos, etc, e assim essa alteração não é uma mera transformação docódigo, como normalmente se pensa, mas é algo que trará mudança, em curtoou longo prazo, na vida do ser humano (que só existe enquanto ser humano nalinguagem).

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Dessa forma, demonstramos três possibilidades de direcionamento daintencionalidade do compositor durante o processo de criação: a primeira dizrespeito à comunicação-dele-com-ele-mesmo; a segunda presume a comuni-cação do ser criador da música com outro (ou outros) ser ao qual esta é desti-nada, querendo simplesmente comunicar algo ou provocar alguma ação ousensação; e, por fim, a terceira possibilidade acontece quando a obra é pro-duzida com a pretensão de renovar ao menos um aspecto da linguagem ou ocódigo musical até então existente. É importante ressaltar novamente, por fim,que as três possibilidade de direcionamento existem na produção de uma obra,de uma forma ou de outra, mas o que analisamos aqui foi a intencionalidadeque se sobrepõe as demais em certa obra de música.

Enfim, pretendemos mostrar que a intencionalidade é algo muito importantedurante o processo de criação por gerar efeitos na obra em si, como aspectostécnico-lingüísticos e semânticos que são os que normalmente estudamos. Poroutro lado, lembramos que, apesar de preceder esses aspectos, a intencionali-dade é precedida pela história.

3. Artes musicais, linguística e cognição

Pesquisas no campo das neurociências cognitivas e na Psicologia da Música

Patrícia Lima Martins Pederiva

Faculdade Dulcina de Moraes, Brasília

PALAVRAS-CHAVE: MÚSICA, COGNIÇÃO, NEUROCIÊNCIAS

Este artigo traça um panorama de alguns estudos que vêem sendo realizadosnas últimas décadas e que buscam compreender os processos pelo qual o cére-bro processa armazena e produz música, e ainda, uma breve comparação entremúsica e fala. Tais estudos têm como base, principalmente, os avanços na neu-rociência cognitiva, que podem auxiliar no esclarecimento sobre a relaçãomúsica-cognição. O artigo apresenta possibilidades de estudos disciplinaresentre Música e neurociências cognitivas, tanto para compreender melhor o fun-cionamento geral do cérebro e dos processos mentais, quanto para entender asquestões pertinentes a área de Música.

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Música, cognição e educação: um estudo comparativo sobre as diferenças cognitivas entre músicos e leigos

Melody Lynn Falco Raby

Mestre em Psicologia – Universidade Tuiuti do Paraná

PALAVRAS-CHAVE: MÚSICA, COGNIÇÃO, EDUCAÇÃO

A presente pesquisa teve por objetivo verificar possíveis diferenças cognitivasentre músicos e leigos, tendo como referência a idéia de que a música, e prin-cipalmente, o estudo dela pode apresentar efeitos sobre o desenvolvimento dehabilidades cognitivas, contribuindo para a melhora ou facilitação das mesmas.A amostra foi composta por 47 participantes, dentre os quais 29 músicos e 18estudantes de Nível Superior que nunca estudaram música. Para a análiseestatística dos dados foi utilizado o teste não paramétrico U de Mann-Whitney,com o objetivo de comparar especificamente as funções raciocínio verbal,numérico, espacial, abstrato e atenção, contempladas através dos testes deraciocínio do BPR-5 e do teste Atenção Concentrada (AC), respectivamente. Osresultados coincidem com os de outras pesquisas, apontando para uma van-tagem dos músicos sobre os leigos, principalmente em orientação espacial eraciocínio abstrato. Implicações da pesquisa são discutidas, no sentido de veri-ficar se a música pode representar fator de benefício para o desenvolvimentocognitivo e na defesa da inserção da música na educação.

Música como ferramenta nos processos clínicos em fonoaudiologia

Lênia Luz Nogueira

Fonoaudióloga

PALAVRAS-CHAVE: MÚSICA, COGNIÇÃO, LINGUAGEM

Este trabalho tem por objetivo demonstrar que a música pode ser usada comoferramenta terapêutica e social dentro da busca de resultados de uma soluçãopara a as dificuldades de linguagem, sejam elas na escrita ou na fala. A popu-lação em questão era composta por 4 crianças entre 9 e 11 anos de idade, per-tencentes a uma faixa econômica de renda baixa, com um perfil de carênciaafetiva e educacional. Uma das crianças tinham uma deficiência mental leve,apresentando dificuldades maiores que as demais.

Em um primeiro momento a música foi usada como forma de recreação. Apalavra recreação provém do latim (recreatio, recreationem) e significa vulgar-mente o mesmo que recreio (divertimento, entretenimento). Bruscia, definindoRecreação Musical, complementa a afirmação acima acrescentando a expe-riência musical vivida pelo individuo para realizar a recreação: “(…) o ter-apeuta utiliza música, jogos e brincadeiras espontâneas e as artes como parte

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de um processo sistêmico que visa a ajudar crianças ou grupos de crianças aexplorar e trabalhar questões terapêuticas” (Bruscia, 2000: 235)

Fazendo uso da música como recreação as diferenças dentro do grupo desa-pareceram e os primeiros movimentos em relação ao outro apareceram deforma acolhedora. As dificuldades do grupo estavam centradas em déficits deatenção auditiva apresentando estes trocas fonológicas nos processos de escri-ta espontânea. Bruscia diz que: “Quando um cliente que tem déficits deatenção apreende a se concentrar no contexto musical, essa capacidade ouhabilidade potencialmente pode ser aplicada a muitos outros aspectos da vidado cliente.” Utilizando o CD da Casa de Brinquedos, trilha sonora de um pro-jeto musical criado por Toquinho, iniciamos então o atendimento propriamentedito. Todas as músicas foram apresentadas no decorrer das sessões e após aapresentação das mesmas eles enquanto grupo, escolheram uma delas para tra-balharmos a escrita. A música escolhida foi o Caderno, que foi apresentada emforma de jogo de adivinhação, já que a música descreve o objeto sem citar oseu nome. A música foi trabalhada dentro dos aspectos auditivos (escuta),visuais (leitura da letra) cinestésico (sensações que esta música trazia ao serescutada) e motor (dança).

A melhora dos participantes aconteceu em conformidade destes irem vencendoníveis cada vez maiores de dificuldades, e como conseqüência do processo,chegando mais perto dos seus objetivos de mudança. Mesmo que os objetivosnão fossem aulas de música, as possibilidades a exploração asseguravam amudança. Como afirma Gainza:

“A educação musical deverá tender a desenvolver, mediante diversas ativi-dades e processos musicais, a mais ampla gama de possibilidadeshumanas, e não apenas a tendência dominante” (Gainza, 1988: 38).

Neste processo terapêutico a evolução dos participantes foi avaliada comotendo bom resultado, sendo que do grupo dois tiveram alta e os demais foramremanejados para atendimento individual em fonoaudiologia e psicopeda-gogia. Concluimos com isso a importância da utilização da música nas ativi-dades terapêuticas em fonoaudiologia, na busca de soluções para os aspectosde déficit em fala e linguagem.

4. Tecnologia, artes musicais e mente

Quinteto de Metais: aspectos acústicos como ferramenta de composição

Felipe de Almeida Ribeiro

PALAVRAS-CHAVE: ACÚSTICA; COMPOSIÇÃO; ORQUESTRAÇÃO

A escrita para quinteto de metais, mesmo que ainda sem uma formação clássi-ca, tem suas origens desde o período renascentista. Bill Jones, no New Grove

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Dictionary of Music, nos afirma que compositores europeus do séc.XVI e XVIIescreviam quintetos de metais (sem formação específica). Outros, da mesmaépoca, escreviam para duas cornetas e três sacabuchas. Entretanto, somente apartir do séc.XIX é que essa formação se consolida: dois trompetes, umatrompa, um trombone tenor e uma tuba ou trombone baixo. Assim sendo, orepertório desta formação começa a receber sérias contribuições (preocu-pações específicas com relação à instrumentação e orquestração).

A presente comunicação propõe um estudo acústico-analítico dos instrumen-tos que compõem esta formação visando contribuir e auxiliar na prática com-posicional. A metodologia adotada consiste na participação dos ensaios de umquinteto de metais de Curitiba (trompetes, trompa e trombones). Os ensaiosforam gravados utilizando microfones condensadores e dinâmicos, mixer e umsistema de armazenamento multipistas com 24bits/96kHz. Como softwares,gravador multipistas, editor de áudio e analisadores de espectro. Na gravação,cada instrumento foi registrado individualmente e em grupo, gerando assimuma análise sob diversos aspectos: tessitura, dinâmica e ângulos de medida. Osinstrumentos foram captados numa distância aproximada de 1.5m, sob diver-sos ângulos em um auditório de Curitiba. Todo este procedimento resultou emuma análise do comportamento dos instrumentos sob vários aspectos.

Os resultados e conclusões deste trabalho foram focados exclusivamente parao profissional da área de composição musical. Muitos tratados de orquestraçãoanalisam os instrumentos sob um aspecto instrumental (características de cadainstrumento).

Pouca literatura do assunto concentra na questão orquestral, ou seja, aspectosda combinação instrumental. Este trabalho visa contribuir de uma maneiracientífica para demonstrar diversas combinações e seus diferentes efeitos,sejam eles tradicionais ou não.

Complexidade e Controle: projetando interações musicais em rede

Fábio Furlanete

Universidade Estadual de Londrina

PALAVRAS-CHAVE: AUTO-ORGANIZAÇÃO, INTERAÇÃO, CONTROLE

Este artigo discute o possível papel do compositor na música colaborativa emrede. Considera possibilidade da emergência de processos auto-organizadosnas interações nesse tipo de música e como o compositor pode favorecer o seusurgimento e interferir em seu desenvolvimento sem destruir a auto organiza-ção. São avaliadas as semelhanças desses problemas com os problemasenfrentados pela indústria de jogos e apontados alguns dos caminhos tomadospor ela para resolvê-los. Sugerimos o Controle Situacional e Redes Semiônicascomo quadro conceitual para tratar problemas com esse grau de complexidadee, por fim descrevemos a implementação (em andamento) de um sistema que

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procura aplicar os conceitos do Controle Situacional e das Redes Semiônicasno gerenciamento de processos auto-organizados no contexto da interaçãomusical em rede.

A Física-Matemática e a Neurociência na Música

Washington Roberto Lerias

Secretaria de Estado da Educação do Paraná

PALAVRAS-CHAVE: MÚSICA, FÍSICA-MATEMÁTICA, NEUROCIÊNCIA

Esta sessão está dividida em 3 partes: Na 1ª é demonstrado como a música sedá em nosso cérebro e as suas relações com outras funções cerebrais; Depoisé desenvolvida a Física-matemática da música, paralelamente à teoria musical;E a 3ª parte fica para treinamento, execução e apresentação musical pelos par-ticipantes.

Fundamentação teórica O método utilizado será o Auto-conhecimento dasFunções Cerebrais para o Aprendizado, levando-se em conta os avanços daneurociência e a lógica matemática de formação da linguagem musical, seusprincípios e sua interação com outras funções cerebrais, o qual será explanadono primeiro momento, no intuito de demonstrar como a música se dá em nossocérebro. Os conteúdos de física e matemática a serem desenvolvidos serão:(Ondas Sonoras, Fenômenos Periódicos, Período, Freqüência e unidades,velocidades do som, comprimento de onda, limites da audição e da falahumana, freqüências das notas musicais, proporções matemáticas entre osintervalos musicais, série harmônica e proporção áurea, infra-som, ultra-som,ondas de rádio e cores (luz), velocidade da luz, noções básicas de física quân-tica (fóton&cores dos elementos químicos), a relação entre as freqüências dasnotas musicais e as das cores e os fônons), distribuídos dentro das subdivisõesa seguir, numa seqüência lógica, relacinando a teoria com a prática: – Estudoda Vibração/Da Acústica à Óptica; Limites da Audição, Fala, Visão humana edos instrumentos musicais e suas curiosidades. – A Harmonia das notas musi-cais e das cores, suas relações e equivalência/O elo entre as artes e a ciência.– Afinando os Sentidos/Afinação instrumento-voz/Escrita e leitura musical (reale virtual) – Lógica matemática p/ formação das escalas (proporções dos inter-valos) – Execução nos instrumentos e voz (solfejo) – Estudo e treinamento dostempos de execução das notas. – A História da Evolução da Música segundouma visão científico-cultural (do tribal ao atual) – Lógica de formação dosacordes a partir dos maiores /Técnicas e treinamento. – Estudo e ensaios damúsica que será apresentada pelos participantes. – Produção visual. –Formação de Coral e Conjunto Musical.

Objetivos: a) Desmistificar a música através do seu estudo científico, baseadoem leis e princípios lógicos da física, da matemática e das funções cerebrais. b)Demonstrar a importância do estudo e da prática musical, para o desenvolvi-

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mento cognitivo, psicomotor e social. c) Valorizar o trabalho sincronizado emconjunto, bem como buscar compreender, respeitar e trabalhar as diferenças elimites individuais.

Contribuições e Implicações: Uma das contribuições deste trabalho se encon-tra na apresentação dos valores das freqüências das cores correspondentes ásnotas musicais, fazendo um paralelismo entre a acústica e a óptica, bem comoa música e as representações artísticas visuais. Uma outra contribuição está noestudo dos fônos e fótons da física quântica e a utilização destas corre-spondências para a formação da música dos elementos químicos e suas com-binações. E ainda se conta com o uso dos avanços tecnológicos e neurocientí-ficos no auto-conhecimento das funções cerebrais para o aprendizado.

Interação e Cognição no Processo de Interpretação Mediada da Marimba

Cesar Adriano Traldi – UNICAMP

PALAVRAS-CHAVE: INTERAÇÃO, INTERFACE, MARIMBA

A pesquisa aqui descrita vincula a interpretação musical e a interação do músi-co em processos de mediação tecnológica com o objetivo de ampliar a suapercepção sonora e a sua capacidade de interagir com a diversidade de gestose sonoridades vinculados à música contemporânea. Neste sentido Rowe (1993)comenta que a execução de processos computacionais em tempo real propiciao desenvolvimento de sistemas musicais com a capacidade de modificar seucomportamento sonoro em função de estímulos gerados por músicos durante aperformance.

No nosso estudo vinculamos estes avanços da computação musical com ainterpretação de instrumentos de percussão que apesar de serem os primeirosa surgirem na história da música, só foram amplamente explorados pela músi-ca ocidental no século XX. O desenvolvimento dos processos de construçãodos instrumentos, o amadurecimento técnico dos instrumentistas, a sua grandevariedade timbrística e a presença marcante do gesto do intérprete na perfor-mance, possibilitaram o surgimento de recursos composicionais e técnicos ino-vadores. Este processo gerou grande atenção por parte de muitos compositorese fez com que a percussão assumisse a posição de um dos principais recursosinstrumentais da música contemporânea. O percussionista Frank Kumor (2003),comenta que a performance de obras contemporâneas exige do intérpreteconhecimentos que vão além do padrão curricular.

A partir deste panorama o objetivo é observar essa nova postura interpretativaem obras para marimba e eletrônicos ao vivo sob a ótica da capacitação per-ceptiva derivada da mediação tecnológica. A interação em tempo real comdiferentes dispositivos como: microfones, sensores de piezo elétrico, baquetasinterativas, sensores de movimento, entre outros, leva o músico a dar nova

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dimensão interpretativa para cada composição ou até mesmo para diferentestrechos de uma mesma obra, postura que, muitas vezes, é diferente da utiliza-da no repertório tradicional. A necessidade do conhecimento dos dispositivosutilizados em performance somada a forte presença da improvisação nessasobras colocam o intérprete na posição de co-criador das obras que executa.

O interprete deixa a postura de apenas ser meio de execução, para assumir aposição de elemento de coesão da obra. Na interpretação mediada há outronível de cognição musical onde o músico responde a estímulos gerados pelocomputador com novas possibilidades de execução. O instrumentista deixa deter a postura de especialista para ter uma visão interaticionista onde, através daadaptação, molda-se a cada obra.

A metodologia utilizada na pesquisa apóia em três elementos fundamentais: a)construção de novos dispositivos com sensores diversos, b) mediação atravésde processo computacional e c) oficinas de performance onde é realizada avalidação do processo bem como as medidas de desempenho do sistema eavaliada a reação do músico.

Como estudo de caso aplicado à interpretação da marimba, apresentamos ainteração do interprete com o computador através de baquetas interativas, pornós desenvolvidas, nas quais utilizamos sensores piezo-elétricos. Finalmente, aanálise que fazemos é que a utilização de técnicas interpretativas mediadafomenta no interprete o aumento da sua capacidade de controle de estruturassonoras e amplia sua habilidade de co-relacionar eventos e sonoridades damarimba.

5. Artes musicais e cognição social

A Música o Sagrado e o Imaginário

Maria Ignês Scavone de Mello Teixeira – PUC-PR

PALAVRAS-CHAVE: MÚSICA, SAGRADO, IMAGINÁRIO

O imaginário que habita na mente dos que escrevem, executam e ouvem amúsica, será ressaltado pelas observações de Santos (2000) e outros autores,que servirão de referência para este olhar sobre a música, o sagrado e oimaginário.

A diversidade do universo melódico permite que este possa ser multiplicadoaos turbilhões tendo como ponto de partida um número restrito de notasmusicais, que podem produzir combinações infindáveis.

As produções rítmicas e sonoras dão espaço para os vôos da imaginaçãodaquele que produz a obra de arte e daquele que dela usufrui pela observação,pelos sentidos, que envolve todo o ser, num exercício cósmico que é infinito.

A estrutura musical é constituída de espaços e tempos. Sua construção é o con-

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junto de relações de imagens sonoras constituídas por esse tempo e espaço, epossui características comuns às da fenomenologia do sagrado (Santos, 2000).São partes da experiência do imaginário comuns à música e ao sagrado, entreoutros, a sedução provocada pelos ritmos, as construções melódicas, as basesmusicais das danças, e a própria estrutura musical que abrange o folclore, asformas clássicas ocidentais, as melodias e ritmos orientais e as práticas musi-cais religiosas que muitas vezes levam ao êxtase.

A abordagem deste estudo se direciona à umareflexão sobre os elementos queenglobam o imaginário assim como para as experiências na vivência da artemusical que contribueme interferem na formação cognitiva individual e coleti-va, causam sedução, e têm uma relação com o concreto e com a afetividade.

Dentro desse raciocínio, é possível perceber ainda as interferências do ima-ginário que nos leva a sair do tempo, reorganizar o espaço, saindo do nossoespaço cotidiano quando nos envolvemos pelos ritmos e melodias. “A flautaseduz o ouvido. O tambor percute a pulsação uterina. Martelo, bigorna, tím-pano servem agora a um outro ferreiro alquímico sonoro. Martelam imagens deuma outra dimensão.” (Durand,1927: 61).

As implicações principais da observação desse estudo, são: procurar percebera importância da imaginação, sua reabilitação na priorização da sensibilidade;induzira uma compreensãoda relação do imaginário com as músicas utilizadasnas práticas religiosas e mostrar a importância da imagem e imaginação nocontexto da obra musical, para os que a compõem, as interpreta e as ouvem.

Quando aprofundados os conceitos sobre o fato de que a obra musical ao serexperenciada, é recriada e ampliada pelos órgãos da sensibilidade, pode-seentender e perceber a força do imaginário na obra musical, que acontecenasensação causada pela sua ressonância.

Tendo como ponto de partida a música e o imaginário, foi desenvolvido noNúcleo de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião da PUC/SP, umestudo para a compreensão da experiência e vivência do Sagrado em contatocom as formas de expressão artísticas e o imaginário.

O grupo procurou se fundamentar no sentido literário e musical, segundo omitólogo romeno Mircea Eliade, que evidencia que é a partir do profano quesurge o Sagrado.

O que é o imaginário? Segundo Durand (1997: 14) o imaginário é o “conjuntodas imagens e das relações de imagens que constitui o capital pensado dohomo sapiens”, o grande e fundamental denominador onde se encaixam todosos procedimentos do pensamento humano”.

“O imaginário não só se manifestou como atividae que transforma omundo, como imaginação criadora, mas sobretudo, como transformaçãoeufêmica do mundo, como intellectus sanctus, como ordenança do ser àsordens do melhor” (Durand & Gilbert ,1997: 43).

O texto se refere a Kant, que já demonstra a importância da imagem e

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imaginação, sendo o primeiro, segundo Durand a iniciar a reabilitação daimaginação, priorizando a sensibilidade, para o universo da realidade.

Sendo assim o que seria a realidade? Segundo Ribeiro (1921), a realidade é asomatória da diversidade dos pontos de tudo que podemos vere sentir noUniverso, com suas aparências diversas, parciais, que vemos e sentimos atravésde fragmentos em que a unidade nem sempre pode ser captada.

As notas musicais sendo sete, apenas, podem produzir, segundo Ribeiro, umuniverso melódico infinito, assim como as cores e as palavras podem produzircombinações infindáveis, onde a realidade dá espaço para os vôos da imagi-nação daquele que produz a obra de arte e daquele que dela usufrui pelaobservação, pelos sentidos e tudo que envolve o ser.

Ainda na concepção de Ribeiro, o ritmo é capaz de nos mostrar a grandeza daunidade. O ritmo é mesurável, mas também leva ao prazer, ao desprazer,comove, promove sensações no corpo, na mente e na alma, alterando muitasvezes os sentidos.

O ritmo é o princípio da vida, da expressão do movimento. É o metro dos ver-sos, é a condição que define os passos da dança, é a batida do coração queleva à cadência da alma.

“A experiência musical não ocorre senão durante sua execução. Sua efemeri-dade, paradoxalmente, garante sua permanência” (Santos, 2000: 58). Isso nosleva a verificar a questão do tempo, do espaço e a da expressão do imagináriointrínseca à arte musical.

As imagens musicais possuem sentidos e significados que se sucedem num tur-bilhão de imagens, sentimentos e sensações que transitam pelo tempo eespaço, “remete-nos ao seu tempo próprio, retirando-nos do tempo cotidiano ecronológico” (p. 58).

A transcendência é uma conseqüência da realização da obra de arte, que nãoé uma aspiração de atingir algo abstrato, superior, ou seja, o homem divididoque atinge o sobrenatural, desvinculado de sua humanidade, e de seu meiosocial, mas sim “o caráter recíproco da constituição do humano e do sagrado”(Santos, 2000: 60).

Narrativa musical de história de vida: a música na velhice

Rosemyriam Cunha

mestre pela Universidade Federal do Paraná

PALAVRAS-CHAVE: MÚSICA, NARRATIVA, HISTÓRIA DE VIDA

O estudo das relações que o ser humano estabelece com a música tem adquiri-do dimensões multidisciplinares. A musicoterapia, como um campo novo deestudos, se dedicada à aplicação e compreensão de uma prática interativa, na

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qual predomina a linguagem musical, também buscando o entendimento dessarelação comunicativa.

A expressão da emoção e das intencionalidades humanas, desde o nascimentoe por todo o desenrolar existencial, se concretizam por meio do choro, do bal-bucio, da voz falada e cantada. Nesse sentido os parâmetros musicais comoritmo, intensidade, duração, altura e timbre, fazem parte das trocas sociais quea pessoa realiza ao longo da sua vida.

A música coloca-se como uma ferramenta que possibilita a efetivação de tro-cas sociais significativas nos diferentes períodos da vida humana: desde ascanções de ninar, as brincadeiras de roda, as parlendas e rimas, as sonoridadesintensas da juventude, até o repertório da idade adulta e a reminiscênciamelódica da velhice. Como forma musical presente em nossa cultura, a cançãotem acompanhado as manifestações da vida cotidiana das pessoas, expressan-do sentimentos e intenções, traduzindo motivações, narrando histórias. Acanção torna-se, nessa perspectiva, um ato de comunicação participativa, umanarrativa na qual alguém diz algo a alguém (Tatit, 1996).

Nesse trabalho a canção passa a ser considerada como uma narrativa cantadapor meio da qual as pessoas interagem e compartilham fatos e emoções quelhes são significativos (Ruud, 90). Essa narrativa emerge de uma cultura que,por fornecer descrições do pensamento e da maneira de viver do ser humano,constitui-se num elemento interpretativo possibilitado às pessoas a organizaçãode seu mundo social e de suas experiências (Bruner, 1997).

O envelhecimento populacional é uma realidade social. Os idosos de hoje par-ticiparam da popularização do rádio e da televisão, vivenciando um períodohistórico de intensa musicalidade. Talvez por isso, as canções emergem, no rolde suas ações coletivas ou individuais, como uma linguagem expressiva quepotencializa suas trocas sociais. Qual o significado das canções que formam orepertório musical construído pelos idosos? Esse trabalho teve por objetivoanalisar o repertório musical expressado por um grupo de 23 pessoas cujaidade variava entre 60 a 80 anos, no decorrer de um processo musicoterapêu-tico, na tentativa de entender o significado da música para essa faixa etária.Para tanto foi utilizado o método proposto por Vygotsky (1999) que parte daanálise funcional dos elementos e da estrutura da obra musical, para a recons-trução da resposta estética e o estabelecimento das leis gerais.

Os dados analisados revelaram que a interação musical proporcionou a cons-trução de um espaço de comunicação e aproximação no qual os participantesforam reconhecidos e respeitados nas suas opções e preferências, reafirmandosuas individualidades. O repertório expressado se constituiu, dessa forma, nanarrativa musical de suas histórias de vida.

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A música como ferramenta de inserção social do deficiente mental

Carmen Lígia Barboza Gruner

APAE, União da Vitória

PALAVRAS-CHAVE: MÚSICA, INCLUSÃO SOCIAL, DEFICIENTE MENTAL

A música é um trunfo no que se refere à sociedade e a tentativa de inclusãosocial de alunos com deficiência mental que, por meio desta, tem a oportu-nidade de mostrar que são capazes de produzir arte, e uma arte muitas vezestão bela quanto à de qualquer outro artista/ músico, sem exaltar deficiênciaalguma.

Para evidenciar o enriquecimento no desempenho social do deficiente mentalquando participa de produções musicais e incentivar a formação de gruposmusicais nesse meio faz-se necessária uma pesquisa mais ampla, qualitativa decunho exploratório, que estabelece um diálogo crítico e aberto entre o proble-ma pesquisado e a fundamentação teórica referente ao tema proposto. Apesquisa bibliográfica fornece a teoria sobre o assunto pesquisado com basenas leituras realizadas pelo pesquisador e lhe oportunizara reflexões.Utilizando a abordagem dialética, a pesquisa deve fazer a construção darelação do sujeito e suas incursões sociais, essencialmente oposição e comple-mento, num ciclo que não se fecha, mas atenta para novos questionamentospara aprofundamento futuro, fazendo-se importantes e complementares para acontinuidade do trabalho. A busca por conceitos científicos faz com que osmusicoterapeutas despertem para a necessidade de embasamento, para o com-prometimento por meio de publicação de seus achados ou descobertas, trazen-do novos conteúdos sobre a prática terapêutica, fortalecendo assim a profissãoperante a comunidade e os profissionais das demais áreas da educação, dasaúde, da área social e também da cultura, já que falamos em arte, e o objetodesse estudo é a música. Com isso, essa investigação abrange um largo públi-co, tanto de pessoas consideradas leigas, bem como profissionais de diversasáreas, em suas especificidades, incluindo os próprios musicoterapeutas, evi-denciando dados de uma nova opção sensibilizadora em âmbito social, dimi-nuindo estigmas e mostrando que a ciência avança em todas as áreas, aindaque alguns relutem em enxergar.

O ensino de piano nas escolas de Curitiba.

Carolina Melo das Chagas Lima – estudante, UFPR

PALAVRAS-CHAVE: PIANO, ESCOLAS, ENSINO

Observando-se a pouca oferta de ensino de instrumentos nas escolas deCuritiba, que leva a uma elitização e afastamento das crianças com a músicainstrumental, a pesquisa visa descobrir qual é a real oferta e como esse ensinoé procedido.

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O ensino que se pretende encontrar não é aquele com a intenção de formarconcertistas, mas sim educar musicalmente, ampliar o universo e tambémcomo um passatempo aos alunos.

O instrumento a ser focado nesta pesquisa será o piano. Esta, ainda em anda-mento, terá contido a relação das escolas públicas, tanto estaduais comomunicipais, e escolas particulares que oferecem de alguma forma ensino depiano aos seus alunos, citando se é como contra turno, educação permanente,para toda a comunidade ou ainda como parte da disciplina de Artes. Terá tam-bém dois questionários no qual os alunos responderão, um feito em abril eoutro em junho, onde os alunos falarão sobre as suas expectativas iniciais e asalcançadas, sobre o que idealizaram e o que se concretizou nas aulas e suges-tões. Também será feito um questionário aos professores de música com as mes-mas questões e outro com os demais professores das instituições sobre comoeles vêem o ensino de piano na escola. E descreverá o espaço em que as aulassão realizadas. Espera-se uma conclusão ao final da pesquisa sobre a quanti-dade de ofertas do ensino de piano e realização das mesmas.

6. O desenvolvimento paralelo da mente e das artes musicais

Musicalizando bebês

Celina Maydana & Maria de Fátima Machado Brasil

PALAVRAS-CHAVE: MUSICALIZAÇÃO, BEBÊS

Quando iniciamos o programa Musicalizando bebês nossa proposta foi darcontinuidade ao processo iniciado no período da gestação – Programa Músicae Gestação; realizado com as mães destes bebês. O Programa Música eGestação – Projeto Música-Mulher – faz o pré-natal semanal, e foi criado como objetivo de proporcionar um suporte técnico/físico/ psicológico às gestantes,visando o fortalecimento do vínculo mãe-filho. Convém salientar que estesuporte está baseado na música, pela importância que ela tem no desenvolvi-mento do ser humano como um todo. Esta constatação nos desafiou a incluí-laneste processo, desde o momento em que a mãe recebe a notícia da gravidez.Estamos trabalhando desde abril de 2004 com bebês a partir de três meses. Estetrabalho, além do processo de musicalização, visa a pesquisa referente a tudoquanto foi realizado no período anterior (gestação): relaxamento, exercícios,encontro com o bebê pela música, pela meditação, pelas conversas a dois, pelapreocupação em oferecer o melhor, pelo fato de entender o que é ser e nãosimplesmente estar grávida, pela segurança encontrada, o tempo dedicado, aimportância do pai e da família em todo este processo, a tranqüilidade para oparto, a amamentação e para os cuidados com o bebê. A resposta que cadabebê tem com as músicas ouvidas e trabalhadas desde a gestação até o presente

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vem nos surpreendendo: eles ouvem as músicas e é como se o mundo parassee só aquele som; reconhecido – importasse A atenção e o olhar se dirigem emdireção ao som, e enquanto não cessa, ficam como que hipnotizados. Omesmo acontece quando as mães cantam. Também, temos relatos de calma etranqüilidade na hora do banho, no sono, sucesso na amamentação, especial-mente quando estes são acompanhados por música. Para os bebês maiores deoito meses, temos verificado respostas relacionadas a ritmo, fala, memória,coordenação motora. Todas elas. Os resultados vão de encontro ao nosso prin-cipal objetivo com o bebê: proporcionar a música como parte integrante de seudesenvolvimento intra-uterino, de seu nascimento, do encontro com o mundo,de suas alegrias, de seu lazer, de seu aprendizado, de sua vida. A música é umafacilitadora na descoberta de um processo estético, e, o fará buscar mais e maissobre outras belezas, inclusive a sua própria beleza interior.

Autismo Infantil: como a Educação Musical pode ajudar na integração social dessas crianças?

Giovana Moreira Di Bernardo – estudante, UFPR

PALAVRAS-CHAVE: AUTISMO, CRIANÇAS, MÚSICA

O autismo é um distúrbio do desenvolvimento humano que há seis décadasvem sendo estudado pela ciência, mas ainda há muitas duvidas e perguntassem respostas dentro dessa síndrome. Existem muitos estudiosos que estão ten-tando desvendar certos mitos sobre o autismo, mas por enquanto nada foiaprovado para se ter certeza qual é o verdadeiro motivo que ocasiona essadoença. Essa síndrome pode variar quanto à severidade com que afeta ospacientes. Podem existir autistas com retardo mental, e autistas muitointeligentes, por exemplo.

As principais características dessa síndrome é o isolamento social e a profundasolidão. Crianças autistas têm uma dificuldade muito grande em se relacionarcom as outras pessoas, tendem a não desenvolver amizades. Há muita dificul-dade em crianças autistas conectar-se ao mundo que as rodeia. Acredita-se queessa doença começa no nascimento, mas só é reconhecido mais tarde. Oreconhecimento dos sintomas ocorre antes da criança completar 30 meses. Oautismo vai manifestando gradualmente, à medida que as seqüelas do isola-mento tornam-se cada vez mais visíveis. Atualmente, existem muitos estudossobre como a musicoterapia ajuda a melhorar a vida de crianças que temautismo. Os musicoterapeutas usam a música como um meio para a qualidadede vida dessas crianças. Nesses estudos foi comprovado o interesse dessas cri-anças para com a música.

Esse trabalho ainda está em andamento e visa pesquisar e conhecer se a edu-cação musical pode ajudar na integração social de crianças com o autismo, jáque a integração social é a maior dificuldade para quem tem essa síndrome.

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Coleta de Ferramentas Musicais Avaliativas para a Cognição

Leonardo da Silveira Borne – UFRGS/ISM-São LeopoldoPatrícia Danieli Schulz – ISM-São Leopoldo

Esther Sulzacher Wondracek Beyer – UFRGS

PALAVRAS-CHAVE: FERRAMENTAS AVALIATIVAS, MÚSICA E COGNIÇÃO,DESENVOLVIMENTO COGNITIVO

Estudos recentes (Bigand & Poulin-Charronnat, 2006; Hargreaves, 1996;Kebach, 2002; Kebach, 2003) têm mostrado que o desenvolvimento musical deum sujeito está intrinsecamente ligado ao seu desenvolvimento geral.Entretanto, estes estudos praticamente não abordam profundamente um aspec-to importante para educadores, pesquisadores e terapeutas: que ferramentas –jogos, atividades, métodos – são utilizados nas avaliações dos processos men-tais na música? Como elas devem ser empregadas e interpretadas?

É neste sentido que este projeto tem como objetivo geral, a partir da teoria dodesenvolvimento de Piaget e da sua pesquisa sobre percepção, coletar e criar(quando se fizer necessário) jogos, atividades e/ou métodos musicais que sejamefetivos como ferramentas avaliativas do desenvolvimento cognitivo geral deum indivíduo e, tratando mais especificamente na área das artes, de seu desen-volvimento musical.

O desenvolvimento musical de um sujeito não é apenas alcançado através deorientação específica, permitindo, assim, que “pessoas sem formação musical(formal) possam fazer apreciações sobre a estrutura musical de modo semel-hante às de pessoas com formação específica” (Davidson, Howe and Sloboda,1997, apud Maffioletti, 2000: 4). Beyer (1988) já afirmava há quase vinte anosque uma abordagem cognitiva se fazia extremamente necessária para a edu-cação musical, e, por extensão, a toda e qualquer prática musical (seja ela decunho pedagógico, social e, entre tantos outros, o terapêutico). Ressalta-se que“música é construção, aprendizagem, vivência, elaboração” (Lino, 2005: 172).

Escassas são as pesquisas nessa área. Estudos (Beyer, 1988; Beyer et alii, 2005;Kebach, 2003; Lino, 2005) demonstraram que ainda existem poucos materiaisdisponíveis; o que se tem mais presente em medição de nível de desenvolvi-mento são avaliações feitas a partir da representação gráfica derivada de umaintervenção musical ou aquelas que avaliam outros aspectos que não o cogni-tivo. Como exemplos menciono avaliações do emotivo, da interação social, dosníveis de ansiedade e estresse, etc. Como implicações, ter-se-ia, e.g., a inclusãode ferramentas musicais em avaliações cognitivas feitas em pesquisas, levanta-mentos, testes, etc, lembrando-se do dito popular, muitas vezes a música“chega a lugares onde a fala e o visual não alcançam”.

Ainda neste estudo, é bastante importante desenvolver uma reflexão quanto àsinvestigações de Piaget sobre a percepção. Estas pesquisas de Piaget tomamcomo base os estímulos visuais, sendo que há indivíduos que possuem o canal

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auditivo como principal fonte de interação com o mundo. Seria, portanto,muito importante levantar ferramentas que estudem o processo perceptivoauditivo no indivíduo, segundo a teoria de Piaget.

No caso de outros campos e áreas, como a musicoterapia, tem-se que as ferra-mentas musicais avaliativas ocasionariam possibilidade de constante avaliaçãoe auxiliariam na chamada “testificação musical”, prática que faz um levanta-mento do histórico pessoal, das capacidades e dos conhecimentos em música(Barcellos, 1999; Baranow, 1999; Davis et alii, 1999); já nas pesquisas feitas nocampo da psicologia da música, tal abordagem torna-se de fundamental valor(Sloboda 1996), uma vez que todas serão testadas em diversas populações emeios, dentro da medida do possível, construindo uma credibilidade em tornode tais atividades/jogos/métodos.

Quanto aos procedimentos metodológicos, será realizado levantamento biblio-gráfico, além de observações e de práticas de jogos, atividades e/ou métodosmusicais. Paralelamente, será feita uma análise verificando a viabilidade destesvirem a ser ferramentas avaliadoras do nível de desenvolvimento de um sujeito.Ao término desta primeira etapa, serão organizadas estas ferramentas de modoa averiguar se alguma área da avaliação cognitiva ficou com “lacunas” ou compoucas alternativas de atividades. Tal etapa é essencial, pois poderá implicarposteriormente em iniciar o processo de criação de novas ferramentas.

Atenção visual em músicos e não-músicos: um estudo comparativo

Ana Carolina Rodrigues, Leonor Bezerra Guerra e Maurício Alves Loureiro – UFMG

PALAVRAS-CHAVE: NEUROPLASTICIDADE, ATENÇÃO VISUAL, TREINAMENTO MUSICAL

A influência da música sobre a função cerebral tem sido alvo da curiosidade deneurocientistas e músicos desde a década de 1990. Existem várias evidênciasque apontam para a existência dos processos de neuroplasticidade cerebral,tanto funcional quanto anatômica, decorrentes do treinamento musical, osquais podem produzir diferenças comportamentais entre músicos e não-músi-cos.

Pesquisas sugerem uma influência do treinamento musical em capacidadescognitivas não-musicais em crianças, mas poucos estudos têm sido realizadospara investigar tal influência em adultos. Destes, alguns trabalhos têm relatado,direta ou indiretamente, a existência de capacidades visuais aumentadas emmúsicos. Entretanto, deve-se ressaltar que os estudos ainda não são conclu-sivos, considerando tratar-se de um campo de pesquisa recente. O objetivogeral deste trabalho é a investigação da capacidade de atenção visual emmúsicos e não-músicos adultos.

Dentre os objetivos específicos inclui-se verificar se há relação entre a capaci-dade cognitiva e dois fatores relacionados à experiência musical: idade de iní-

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cio dos estudos musicais e tempo de prática musical. O grupo dos músicos serácomposto por integrantes da Orquestra Sinfônica da Escola de Música daUFMG e o dos não-músicos, por estudantes de graduação ou pós-graduação damesma universidade. Para a avaliação da capacidade de atenção visual, apósrevisão de literatura e discussão com diferentes profissionais, desenvolvemos ametodologia que será utilizada na pesquisa, a qual consistirá de questionário etestes neuropsicológicos. O questionário de identificação fornecerá, além dedados básicos, informações que permitam excluir a possibilidade detranstornos de atenção. Serão aplicados os testes neuropsicológicos “TrailMaking” e subteste do “WAIS III”, capazes de verificar a capacidade de atençãovisual, principalmente para que sensibilidade dos mesmos seja avaliada. Oprincipal teste a ser aplicado será o “Multiple choice reaction time”, que seencontra disponível no aparelho “Multipsy 821”, um microprocessador que fazo registro e a análise de diferentes parâmetros psicológicos e psicofisiológicos.Neste teste, o indivíduo deve responder, por meio de ações motoras específi-cas, a vários estímulos luminosos que são apresentados.

Concomitantemente à apresentação dos estímulos luminosos, será projetadoum vídeo, em monitor posicionado em frente ao sujeito, o qual apresentaráuma figura geométrica em diferentes intervalos de tempo, para que o indivíduoinforme verbalmente a ocorrência da mudança no momento em que a perce-ber. Portanto, como esta tarefa envolve a capacidade de atenção visual dividi-da, ao contrário dos testes anteriormente citados, será possível comparar odesempenho dos indivíduos em tarefas mais e menos complexas. Testes infor-mais já realizados nos permitiram maior precisão na especificação dos dados aserem coletados, além de padronização da metodologia em relação àsinstruções que precedem os testes e às condições do ambiente experimental(posição

do equipamento, isolamento acústico). A investigação da capacidade deatenção visual em músicos e não-músicos poderá contribuir para aumentar oconhecimento das diferenças entre os dois grupos e ressaltar a existência debenefícios do treinamento musical em capacidades cognitivas não-musicais.Evidências que apontem para um maior desenvolvimento de tais capacidadesem músicos poderão ser consideradas mais um argumento para a educaçãomusical em diferentes faixas etárias.

Significados e Sentidos da Música: “Re-criando” e “compondo” entre aPsicologia Histórico-Cultural, Música e Musicoterapia

Patrícia Wazlawick – UFSC

PALAVRAS-CHAVE: SIGNIFICADOS E SENTIDOS, MÚSICA, PSICOLOGIA SOCIAL DA MÚSICA

O presente trabalho é um recorte teórico interdisciplinar que tece uma inter-face entre temáticas da perspectiva da Psicologia histórico-cultural, da Estética

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musical e da Musicoterapia. Tem como objetivo discutir a construção da sig-nificação musical em termos dos significados e sentidos da música, produzidospor sujeitos em relação, ao contemplar a discussão interdisciplinar entre asáreas acima descritas. A fundamentação teórica para tal lança mão dos con-ceitos de significados e sentidos, sob a perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, principalmente com a contribuição de L. S. Vygotsky, e estende estesconceitos para a compreensão da significação musical (tendo em vista ampliaresta compreensão ao situá-la no contexto sócio-histórico e cultural), ou seja,significados e sentidos da música com as idéias dos musicoterapeutasnoruegueses Even Ruud e Brynjulf Stige, em base à filosofia de LudwigWittgenstein.

A música é sempre um fazer com os outros. É relação. Ela é construída pelaação do sujeito em relação no contexto histórico-cultural, por meio da utiliza-ção cultural e pessoal dos sons. A música age sobre a cultura que lhe dá formae de onde ela deriva, ao mesmo tempo em que se insere na estrutura dinâmicaonde ela própria se formou. Está inserida nas várias atividades sociais, dondedecorrem múltiplos significados. A cultura dá os referenciais, bem como osinstrumentos materiais e simbólicos que cada sujeito se apropria para criar,tecer e orientar suas construções, neste caso, as atividades criadoras e musicais.Portanto, quando se vivencia a música se relaciona com a matéria musical emsi (resultado da relação de seus elementos) e com toda uma rede de significa-dos construídos no mundo social, seja nos contextos coletivos, seja nos con-textos singulares, enfim, junto dos contextos histórico-culturais de sujeitos.

São nas vivências em situações concretas permeadas pela dimensão afetiva queo sujeito encontra a “utilização viva” da música. Estas situações dão margempara a construção dos sentidos da mesma, em toda esta trama, os quais são,principalmente, constituídos por emoções, sentimentos, desejos, vontades,interesses, motivações dos sujeitos. Os significados e sentidos demonstram autilização viva da música e a constante movimentação de sujeitos implicadoscom a atividade musical, que constituem esta atividade enquanto ela tambémse faz constituinte deles. A partir da contribuição deste olhar, pode-se com-preender, em termos de implicações que esta discussão produz, que a músicaterá o seu significado, assim como a linguagem, a partir de seu uso, a partir docontexto, do jogo e dos jogadores particulares que produzem nestes contextosde jogos de sons, de vibrações, de ondas sonoras, de canções e músicas a suautilização, os seus significados e sentidos. A música teria o seu significado localem nada descolado do seu contexto.

O significado como uso, encontrado na utilização polissêmica da música, é umsignificado social e também singular. Um significado construído e criado nasrelações e ações pessoais e sociais condizentes com o que é vivido, experen-ciado e condizente com os sentidos singulares produzidos pelos sujeitos emrelação e em atividade, em meio ao contexto sócio-histórico e cultural de vida.

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O Canto Coral no Contexto Escolar

Jucélia Cristina Ribeiro – Escola de Música e Belas Artes do Paraná

PALAVRAS-CHAVE: MÚSICA NA ESCOLA, BUSCA DE PRÁTICAS COM O CANTO

CORAL, DESENVOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS E HABILIDADES

Neste trabalho de caráter qualitativo e interpretativo, foram problematizadasquestões referentes ao trabalho do Canto Coral no contexto escolar no proces-so ensino aprendizagem e desenvolvimento de habilidades e competências doaluno enquanto sujeito de sua aprendizagem. Nossa primordial intenção é decriar o espaço reflexivo sobre o Canto Coral, pois percebemos que o sujeitoaprende e adquire competências participando e que como sujeito ativo do con-texto escolar é envolvido em uma experiência educativa em que o processo deconhecimento está integrado às práticas. Sendo assim, diante de tais argumen-tos estabelecemos algumas questões que nortearam nossa reflexão bibliográfi-ca interpretativa. a) É possível desenvolver a prática do Canto Coral com osalunos de diferentes níveis sociais e culturais no contexto escolar? b) O serhumano é capaz de desenvolver habilidades e adquirir competências atravésdo ato de ensinar e aprender na prática do Canto Coral de forma concomitantea construção de sua historicidade? O trabalho monográfico no ambito latosensu remeteu–se à metodologia interpretativa de caráter bibliográfico-qualita-tivo, sendo realizada a análise de realidades do Canto Coral em um coro infan-til que nos deu abertura a múltiplas reflexões. Assim, analisamos como viven-ciamos a música no nosso dia-a-dia e como é tratada no contexto escolar. Alémdisso, trabalhamos o canto coral como prática social e mediação do desen-volvimento humano, considerando a música como atrativo potencial para aatividade humana e tratando a criação musical como prática social cultural-mente produzida e sua intervenção no desenvolvimento humano. Indicamos,desta forma, a reflexão sobre a prática no canto coral na escola como pressu-posto para novas possibilidades de aprendizagem para seus participes. Parapautar este trabalho apresentamos o relato de experiências, dando significadoao canto coral no contexto escolar, com posterior análise e reflexão de expe-riências vivenciadas em um coro infantil. Trabalhamos em cima de pressupos-tos que revelam o sentido atribuído para a musicalidade na escola, bem comosuas relações socio-educacionais. Assim, a partir das análises e reflexões reali-zadas, concluimos o trabalho abordando a importância dentro do contextoescolar da prática do Canto Coral destacando aspectos relevantes em todo opercurso.

Ao concluir este trabalho investigativo e respectivas reflexões teórico-práticas,ressaltamos que a escola no contexto atual está voltando seus olhos a si mesmae percebendo a necessidade de uma adequada metodologia de trabalho paraque seu educando desenvolva-se com maior segurança, segundo parâmetros dequalidade, dando abertura a outras metodologias.

A escola, enquanto espaço do saber por excelência, deve repensar sua práticapedagógica, bem como seu planejamento, sua metodologia de trabalho e ações

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desenvolvidas no contexto escolar. Desta forma o Canto Coral poderá tornar-seuma ferramenta eficaz e com rico significado, exercendo uma cumplicidade naaprendizagem dos alunos.

Esperamos, enfim, que este trabalho venha ao encontro de grandes incertezase que contribua de alguma maneira para mudanças de atitudes no contextoescolar formal ou informal, promovendo a prática do Canto Coral e levandoalternativas de desenvolvimento e de compreensão do mundo em que vivemose atuamos.

O desenvolvimento vocal de crianças de 2 a 6 anos de idade

Vivian Dell'Agnolo Barbosa – estudante, UFPR

PALAVRAS-CHAVE: DESENVOLVIMENTO VOCAL, CANTO, MODELOS TEÓRICOS

Este trabalho tem a finalidade de mapear o desenvolvimento do canto em cri-anças de dois a seis anos de idade, para verificar a validade de alguns modelosde desenvolvimento vocal propostos por pesquisadores estrangeiros, comoSwanwick e Tillman; McDonal e Simons e também avaliar se estes são válidosno caso das canções imitativas e espontâneas. A presente pesquisa, ainda emandamento, visa verificar se alguns fatores, como por exemplo, a televisão, ogosto musical dos pais, o tempo de permanência na escola e a escuta musicalexercem quaisquer influências sobre o desenvolvimento vocal e a escolha derepertório das crianças. As vozes das crianças também estão sendo gravadas,para fins de análise.

Para isso, pedimos e elas que cantem três canções: 1) Parabéns a você (cançãoobrigatória para todas as crianças); 2) Canção de livre escolha; 3) Canção imi-tativa, com melodia e ritmo simples. Algumas gravações já foram coletadas eestão sendo analisadas. Além disso, também foi elaborado um questionáriopara obtermos informações musicais sobre as crianças, suas famílias, sua vidaescolar e experiências musicais cotidianas. Três pessoas da área da músicaserão convidadas para ouvirem os trechos gravados e atribuírem a eles notas de0 (zero) a 10 (dez), para dar fidedignidade à pesquisa e avaliar o modelo escol-hido pelas pesquisadoras. Os dados estão sendo analisados e os resultados pre-liminares serão apresentados durante o encontro, com implicações para a edu-cação musical.