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Caminhadas de universitários de origem popular UFRB Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB

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Caminhadas de universitários de origem popular : UFRB / organizado por Ana Inês Souza,Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federaldo Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009.100 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular)

Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade eas Comunidades Populares.

Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.ISBN: 978-85-89669-39-9

1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integraçãouniversitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I.Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI.Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares.V. Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII.Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.

CDD: 378.81

Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.

Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e SilvaJorge Luiz BarbosaAna Inês Sousa

Organização da Coleção: Monique Batista CarvalhoFrancisco Marcelo da SilvaDalcio Marinho GonçalvesAline Pacheco Santana

Programação Visual: Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ

Coordenação: Claudio BastosAnna Paula Felix IanniniThiago Maioli Azevedo

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Ministério da Educação

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares

Rio de Janeiro - 2009

Organ i z ado resJailson de Souza e Silva

Jorge Luiz BarbosaAna Inês Sousa

Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ

Rio de Janeiro - 2009

UFRB

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Adriano Guedes de Souza

Alessandra Régis do Rosário

Anderson dos Santos da Silva

André Bruno Santos da Anunciação

Bruna Maria Santos de Oliveira

Daniela de Souza Sales

Daniela da Silva Santos

Daniela de Melo Oliveira

Deraci Souza dos Santos

Edilon de Freitas dos Santos

Edimilson Pereira dos Santos da Silva

Ednólia Oliveira dos Santos

Eliana Souza dos Santos

Emanuel Silva Andrade

Érica Paixão da Silva

Evanilda dos Santos

Esmeralcy Almeida Santos

Fabiana Aguiar Fonseca

Geoston Caetanos Castro Oliveira

Gerlan Cardoso Sampaio

Iranildes Sales Bispo

Jailton Almeida dos Santos Barbosa

Jeovana Ribeiro de Jesus do Nascimento

Joana Angelina dos Santos Silva

Jordana da Silva Chaves

José dos Santos

José Raimundo dos Santos

Joselita de Jesus Bomfim

Juliana de Jesus Santos

Leila Pereira da Cruz

Lucas Dias Reis

Maria Joseni Borges de Souza

Maria Gilcilene Maciel Rocha

Marly Silveira

Meire Aparecida de Souza Fiuza

Naiara Fonseca de Souza

Núbia Oliveira

Palmira Magaly Passos Gusmão

Queilane Salvador Santos

Rosiane do Carmo Teixeira

Rosiane Rodrigues da Silva

Robenilson Ferreira dos SantosSilmary Silva dos Santos

Simone Santana da Cruz

Solange Conceição Silva

Tatiane Santos de Brito

Toniel Costa do Carmo Santos

Vanessa Morais Paixão

Uirlon Sábigo Alves Cardoso

Coleção

AutoresPresidente da República

Luiz Inácio Lula da Silva

Ministério da EducaçãoFernando HaddadMinistro

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização eDiversidade – SECAD

André Luiz de Figueiredo LázaroSecretário

Diretoria de Educação para a Diversidade - DEDIArmênio Bello Schmidt

Coordenação Geral de Diversidade – CGDLeonor Franco de Araújo

Programa Conexões de Saberes:diálogos entre a universidade eas comunidades populares

Jorge Luiz BarbosaJailson de Souza e SilvaCoordenação Geral

Cláudio Orlando Costa do NascimentoCoordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFRB

Rita de Cássia Nascimento LeiteEduardo David de OliveiraDjenane Brasil da ConceiçãoPriscila Carvalho LeãoSivanildo da Silva BorgesCoordenação Adjunta

Paulo Gabriel Soledade NacifReitor

Silvio Luiz de Oliveira SógliaVice-Reitor

Rita de Cássia Dias Pereira de JesusPró-Reitora de Políticas Afirmativas e Assuntos Estudantis

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Prefácio

A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permi-tam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econô-mica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.

A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo impli-ca uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efeti-vamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pelamelhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de formaintensa e sistemática esses objetivos.

Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a lutacontra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por umlado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes univer-sitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-gradu-ação nas universidades públicas.

Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir daSecretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e repre-senta a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, nacidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de InteressePúblico Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede deUniversitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimen-to em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou,inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais, distri-buídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamoso Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS,UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos osestados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC,UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar,UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB.

Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma,ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação comopesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógi-cas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais emcomunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de

1 A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, aomenos 35 bolsistas.

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práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origempopular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição,ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais.

Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos doPrograma: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Cone-xões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantese ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esseslivros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, quecontrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes dascamadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para oscursos com menor prestígio social.

Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela constru-ção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira maisjusta e uma humanidade cada dia mais plena.

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Ministério da Educação

Observatório de Favelas do Rio de Janeiro

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Sumário

Apresentação 09Rita de Cássia Dias, Cláudio Orlando Costa do NascimentoEduardo Oliveira, Djenane Brasil da Conceição e Priscila Leão

Texto autobiográficoAdriano Guedes de Souza 13

AutobiografiaAlessandra Régis do Rosário 15

Em busca de um sonhoAnderson dos Santos da Silva 18

MemorialAndré Bruno Santos da Anunciação 21

Meus relatosBruna Maria Santos de Oliveira 24

Caminhos cruzados: muitas vidas, uma históriaDaniela de Souza Sales, Esmeralcy Almeida Santos,Gerlan Cardoso Sampaio, Iranildes Sales Bispo,Jailton Almeida dos Santos Barbosa, Joana Angelina dos Santos Silva,Juliana de Jesus Santos, Maria Joseni Borges de Souza ,Naiara Fonseca de Souza, Rosiane do Carmo Teixeira,Rosiane Rodrigues da Silva, Robenilson Ferreira dos Santos,Silmary Silva dos Santos, Simone Santana da Cruz,Tatiane Santos de Brito e Vanessa Morais Paixão 27

“Caminhando contra o vento”Daniela da Silva Santos 36

AutobiografiaDaniela de Melo Oliveira 38

MemorialDeraci Souza dos Santos 40

Quem sou eu?Edilon de Freitas dos Santos 41

MemorialEdimilson Pereira dos Santos da Silva 45

Em busca dos sonhosEdnólia Oliveira dos Santos 47

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Minha trajetória de vidaEliana Souza dos Santos 50

Trajetória da conquista de um sonhoEmanuel Silva Andrade 53

Texto autobiográficoÉrica Paixão da Silva 55

Texto autobiográficoEvanilda dos Santos 56

Vários obstáculos, novas conquistasFabiana Aguiar Fonseca 58

Texto autobiográficoGeoston Caetano Castro Oliveira 61

Texto autobiográficoJeovana Ribeiro de Jesus do Nascimento 64

AutobiografiaJordana da Silva Chaves 67

O impossível aconteceuJosé dos Santos 68

Texto autobiográficoJosé Raimundo dos Santos 70

AutobiografiaJoselita de Jesus Bomfim 72

Verdadeira identidadeLeila Pereira da Cruz 73

Texto autobiográficoLucas Dias Reis 75

Meus passos, minha caminhadaPalmira Magaly Passos Gusmão 77

MemorialMaria Gilcilene Maciel Rocha 79

L’AmoreMarly Silveira 83

SuperaçãoMeire Aparecida de Souza Fiuza 85

Texto autobiográficoNúbia Oliveira 88

A realizaçao do sonhoQueilane Salvador Santos 90

Minha históriaSolange Conceição Silva 92

Texto autobiográficoToniel Costa do Carmo Santos 95

AutobiografiaUirlon Sábigo Alves Cardoso 99

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Apresentação

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia 9

A Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB nasce impregnada de refe-renciais históricos e culturais da tradição do “Recôncavo Baiano, berço da nação brasileira”.São saberes e experiências que se caracterizam, fundamentalmente, pelo reconhecimento evalorização das formas de resistência, reação e afirmação das diferenças e da possibilidadede coexistência coletiva.

A UFRB, imbuída do propósito de contribuir para a correção das distorções sociaisainda presentes, compromete-se em propiciar a inclusão social e a igualdade racial, atravésde políticas institucionais, é assim que a UFRB torna-se pioneira no âmbito das universida-des brasileiras, na criação de uma Pró-Reitoria dedicada a implantar políticas de açãoafirmativa associadas aos assuntos estudantis, instituindo a PROPAAE - Pró-Reitoria dePolíticas Afirmativas e Assuntos Estudantis - cuja missão é promover a execução de políti-cas afirmativas e estudantis, garantindo à comunidade acadêmica condições básicas para odesenvolvimento de suas potencialidades, visando a inserção cidadã, cooperativa, propo-sitiva e solidária nos âmbitos cultural, político e econômico da sociedade e o desenvolvi-mento regional.

A PROPPAE nasce comprometida com a perspectiva multicultural, sintonizada coma luta dos movimentos sociais, e com as atuais políticas públicas relativas à diminuiçãodas disparidades sociais e a promoção da igualdade racial e da diversidade, sobretudo,vincula-se àquelas políticas que impliquem na promoção de práticas relativas à democra-tização do acesso, permanência e pós-permanência do estudante de origem popular noensino superior.

A UFRB/PROPAAE, de forma dialógica e articulada com os vários segmentos contem-plados pelas políticas institucionais, pôs em prática uma ação de co-responsabilidade emutualidade no trato com as demandas da comunidade acadêmica, instituindo o Programade Permanência embasado nos princípios da experiência universitária, que integra nasações de permanência, práticas de ensino, pesquisa e extensão, fomentadas em torno doconceito de permanência qualificada.

O Programa de Permanência visa contribuir com a permanência dos estudantes noscursos de graduação da UFRB, assegurando formação acadêmica qualificada, através deaprofundamento teórico, por meio de participação em projetos de extensão, atividades deiniciação científica vinculadas a projetos de pesquisa e atividades de ensino relacionadasà sua área de formação e ao desenvolvimento regional. Implementando assim, uma políticade permanência associada à excelência na formação acadêmica.

Conexões de Saberes na UFRBO Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades

populares integra a política institucional da UFRB que vincula de forma inextrincável, a

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10 Caminhadas de universitários de origem popular

formação técnico-científica, ao compromisso social e à promoção do protagonismo doscidadãos acadêmicos.

Baseado no plano de ação da PROPAAE-UFRB, de construção e implantação depolíticas de acesso e permanência para estudantes de origem popular, afro-descendentes eindígenas no ensino superior, a UFRB esteve presente no II Seminário Nacional do Progra-ma Conexões de Saberes, realizado no período de 1 à 4 de novembro de 2006, no Rio deJaneiro. Nessa oportunidade, foi possível vivenciar uma conexão nacional, constituída pelaparticipação dos coordenadores locais e nacionais, dos estudantes bolsistas, das representa-ções comunitárias e das universidades integrantes do Programa, que contempla todas asunidades da Federação.

A PROPAAE articulou no Projeto institucional a participação da Pró-Reitoria dePesquisa e Ensino de Pós-Graduação - PRPPG e da Pró-Reitoria de Extensão - PROEXT,instituindo uma coordenação colegiada, e um plano de trabalho que pudesse articular àpolítica de permanência e de ações afirmativas, às ações de pesquisa e extensão.

Segundo o Reitor Prof. Paulo Gabriel Nacif, a decisão de participarmos do Conexõesde Saberes deveu-se, sobretudo à importância de envolver experiências entre Universida-de-Comunidade, tendo os jovens de origem popular como protagonistas das ações quebuscam valorizar tradições, saberes e experiências locais.

As caminhadas, experiências e saberes emancipatóriosA escrita autobiográfica foi o nosso ponto de partida para a execução do Projeto.

Consideramos que a escrita e a socialização dos textos sobre as histórias de vida possibili-tou vários olhares sobre itinerários e itinerâncias realizados pelos estudantes no decorrer desuas vidas. Esses textos, num primeiro momento, possibilitaram a condição de reconheci-mento e apropriação dos sentidos correspondentes às caminhadas, ao vivido individual ecoletivamente.

O caminho percorrido, reconhecido, refletido e apropriado pelos sujeitos expressasuas vivências, experiências e saberes. Em outras palavras, os estudantes ao escreveremsobre suas histórias, acordaram suas memórias, buscaram compreender as situaçõesvivenciadas, os contextos, os tempos-lugares de onde cada um fala, produz seus sentidosconsoantes com suas vidas de agora.

Podemos perceber muitas histórias diferentes e em comum, experiências protagonis-tas, vivências tradicionais, culturais, saberes ancestrais, conhecimentos contextualizados,encarnados na região do Recôncavo, um Ethos que institui realidades e expressa a prepon-derância de referenciais pertencentes a etnia negra.

Caminhadas no ensino médio: às rodas de formaçãoOs textos das histórias de vida, experiências e saberes dos estudantes-conexistas pre-

sentes nesse livro destinam-se à execução do Programa na sua fase de extensão junto àsescolas de ensino médio, numa ação que consiste na realização de atividades de formaçãojunto aos alunos do 3º. ano do ensino médio nos espaços escolares.

Pretendemos assim, favorecer o diálogo entre os estudantes da UFRB e os estudantesdo ensino médio através das Rodas de Formação para tratarem de temas transversais perti-nentes à formação cidadã, social, cultural e protagonista dos Jovens.

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia 11

Profa. Dra. Rita de Cássia DiasPró-Reitora de Políticas Afirmativas e Assuntos Estudantis

Prof. Dr. Cláudio Orlando Costa do NascimentoCoordenador de Políticas Afirmativas – CPA e do Programa Conexões de Saberes na UFRB

Prof. Dr. Eduardo OliveiraCentro de Formação de Professores – CFP

Profa. Ms. Djenane Brasil da ConceiçãoCentro de Ciências da Saúde – CCS

Priscila LeãoAssistente Social UFRB

As Rodas de Formação são constituídas e organizadas pelos estudantes e coordenado-res do Conexões na UFRB e pelos alunos de escolas públicas de ensino médio da Região doRecôncavo. As Rodas promovem o debate de temas transversais do currículo dessas esco-las, a exemplo das ações afirmativas, articulado com as políticas de acesso e permanênciano ensino superior. Essa ação de extensão nas escolas do ensino médio, possibilita aosestudantes-conexistas uma permanência qualificada, um exercício protagonista implicadoe comprometido com atividades de formação, que resulta em integração, debate, pesquisa eformação. A metodologia de abordagem coletiva de temas previamente elencados, enfocadosa partir da sistemática de relatos e discussões. As Rodas são compostas por Jovens que serevezam nas funções de facilitadores, ao apresentarem seus relatos, saberes e experiências afim de dinamizar o início das discussões sobre os temas escolhidos para a formação.

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia 13

Fiz o curso primário em escola pública, onde tive muitas dificuldades para estudar, poismuitas vezes não tinha material escolar suficiente. Mas com a ajuda de minha mãe, que sempreme incentivou aos estudos, eu concluí o ensino primário sem nunca ter perdido um ano.

O maior problema em estudar era financeiro, pois o meu pai não me reconheceu comofilho e fui criado somente por minha mãe. Ela, por ser quase analfabeta - concluiu somentea 4ª série do primário -, tinha dificuldades em conseguir um emprego. Então, ela sempretrabalhou com bicos: lavadeira, faxineira, venda de produtos de catálogos de revistas. Odinheiro que entrava servia praticamente só para pagar aluguel e a comida.

Entrei para o ensino fundamental com onze anos de idade. Foi nessa época que minhamãe começou a vender doces (balas, chicletes etc) e eu passei ajudá-la. Pela manhã ia àescola e ela ficava na barraca de doces. Durante a tarde, eu ficava na barraca e ela podia fazeroutras coisas, como vender produtos e fazer faxinas. Aos sábados era dia de eu trabalhar nafeira com carrinho-de-mão (carregando compras) e ela ficar o dia inteiro na barraca. Odinheiro era pouco, mas dava para ajudar na alimentação para a família: minha mãe, eu eminha irmã Adriana, que ainda era muito pequena.

Concluí o ensino fundamental sem também perder nenhum ano. Nesse intervalo detempo, a barraca foi perdendo freguesia, os doces foram acabando e eu fui à procura de outrostrabalhos como engraxate, ajudante de marceneiro e de ajudante de oficina de bicicletas.

Durante o ensino médio, comecei a trabalhar numa oficina de conserto de moto,recebendo metade do salário mínimo na época, onde além de trabalhar aprendi a profissão.No período da manhã eu estudava e à tarde trabalhava. Também concluí o ensino médio deforma regular, sem perder nenhum ano.

Após isso fiquei um ano sem poder estudar, pois passei a trabalhar o dia todo e chega-va em casa muito tarde (20h) e cansado, mas não podia deixar de trabalhar porque minhamãe não conseguia mais trabalhar por motivos de saúde (problemas de coluna e nervos) etambém não podia se aposentar por nunca haver trabalhado com carteira assinada. Então,era praticamente eu que sustentava a casa, e nessa época já não pagávamos mais aluguel,pois o meu avô havia falecido e deixou um terreno grande na roça, que foi vendido e odinheiro dividido entre os filhos. Com esse dinheiro compramos um terreno e com a ajudade uma prima da minha mãe, Eneide, e conseguimos construir uma casa.

Nesse período eu passei a me engajar em grupos de jovens da Igreja Católica, ondedesenvolvíamos trabalhos de evangelização.

Adriano Guedes de Souza*

Texto autobiográfico

* Graduando em Engenharia Agronõmica pela UFRB.

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14 Caminhadas de universitários de origem popular

Então achei um emprego melhor, como balconista numa lanchonete, onde recebiamelhor remuneração e com isso podia ajudar mais em casa. Foi nessa mesma época que sentinecessidade de entrar em um cursinho pré-vestibular. Por participar do grupo de jovens daigreja, consegui, através de um amigo, uma vaga em um cursinho pré-vestibular mantidopela Igreja Católica, que era gratuito e direcionado para jovens de origem popular. Mesmotrabalhando, fiz o cursinho à noite e aproveitava as horas vagas no trabalho para estudar.

No final de 2003 me inscrevi para o vestibular da Universidade Federal da Bahia(UFBA) no campus de Ciências Agrárias, em Cruz das Almas, que posteriormente se torna-ria a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e fui aprovado. Mas aí surgiuum novo obstáculo: o curso para o qual fui aprovado (engenharia agrônoma) era em perío-do integral e isso dificultou as possibilidades de continuar trabalhando, pois eu era o únicofuncionário da lanchonete. E, além disso, era eu sozinho quem sustentava a casa. Fiqueisem saber qual decisão tomar. Foi aí que minha mãe me deu a maior força para optar pelosestudos. Saí do emprego e entrei na universidade.

Quando entrei na faculdade, uma ex-professora e um amigo me informaram que osestudantes tinham direito a uma bolsa alimentação, e que era somente para estudantes quemorassem fora da cidade, mas que os que estivessem numa situação muito difícil poderiamtentar concorrer à bolsa, mesmo morando na cidade. Então tentei, e apesar de tudo, conse-gui. Com isso, os gastos em casa diminuíram um pouco. Minha mãe passou a fazer outrosbicos e conseguiu também a Bolsa-Família, um auxílio do governo federal de R$ 65,00mensais. Uma tia, Enilda, passou a assinar a sua carteira de trabalho, para tentar garantir umafutura aposentadoria.

Apesar de todas essas dificuldades, estou feliz e orgulhoso por cursar agronomia eapaixonado pelo curso. Mesmo tendo estudado em escola pública, consegui entrar em umauniversidade federal e passei de certa forma a ser uma referência em meu bairro para osoutros jovens, pois assim como eu consegui passar, eles também são capazes de conseguir.

Desde que comecei a estudar na universidade, me empolguei com as informaçõesrelacionadas ao meu curso de agronomia, quando algo dentro de mim me chamou muito aatenção. Sentia uma vontade muito grande de poder dividir com a sociedade, principal-mente com os jovens como um todo; tudo aquilo que aprendi e venho aprendendo no meucurso e na minha luta como estudante pobre, vindo de espaço popular e de origem afro.Sempre que chegava da universidade os amigos do meu bairro se aproximavam, e meperguntavam como era a faculdade, como eu havia conseguido entrar, algumas pessoas quenem falavam comigo antes, me paravam nas ruas me desejando parabéns; eu achava tudoaquilo tudo o máximo.

Quando estava no 5° semestre do curso fiquei sabendo de um Programa do governofederal, chamado Conexões de Saberes. Procurei mais informações e, quando soube que a idéiaera trabalhar com questões sociais voltadas para comunidades populares, me interessei muitopelo Programa. Fiz o processo seletivo, mas veio logo em seguida a decepção, pois não fuiselecionado. Fiquei triste, mas não desanimei, pois pessoas muito queridas haviam passado.

Passado alguns meses, estava em casa à noite, quando um primo veio até minha casapara dizer que a universidade tinha ligado para ele, dizendo que eu devia comparecer no diaseguinte na coordenação de assuntos estudantis. Fiquei muito curioso, mas nem me lembra-va mais do programa do governo, pensei que era por outros motivos. Quando cheguei lá, nodia seguinte, tive uma grande surpresa: fiquei sabendo que tinha sido escolhido como novomembro do programa. Esse foi um dos momentos mais emocionantes, depois de ter sidoaprovado no vestibular, em minha caminhada estudantil.

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia 15

Sou filha de Antonio Geraldo do Rosário Filho e Maria Lucia Regis do Rosário etenho Luana e Anderson como irmãos.

Nasci em 28 de junho de 1980, na cidade de Valença, interior da Bahia, sendo aprimeira filha de uma família de classe média baixa.

Graças ao bom Deus, que ilumina nossa família, nunca passamos por dificuldades,meu pai sempre manteve a casa, pois era a única pessoa que trabalhava.

Ele nunca teve um emprego fixo, sempre trabalhou para si mesmo como produtorrural e na alta estação - como minha cidade é costeira - ele também trabalhava com venda demariscos num ponto que meu avô cedeu pra ele, no fundo do mercado da cidade, e minhamãe sempre foi dona de casa.

Meus pais não completaram os estudos, só cursaram até a oitava série do ensinofundamental, mas sempre lutaram para que eu e meus irmãos fôssemos mais além. Então,com toda dificuldade e estudando sempre em colégio público, eu e meus irmãos fomosadiante. Minha irmã, mesmo sendo mais nova que eu, está concluindo a faculdade deadministração pela Universidade Estadual da Bahia (UNEB) e eu agora entrei na Universi-dade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

Meu caminho até a universidadeSempre estudei em escola pública, cursei o ensino fundamental no Complexo Escolar

Gentil Paraíso Martins, na época o único colégio de ensino fundamental da cidade.Lembro que ia para o colégio sem nenhuma vontade, sem nenhum estímulo, pois a

estrutura docente era precária . Os professores passavam o conhecimento de forma mecânicae me lembro que chegava muitas vezes a ter medo de alguns deles, nesta época acabeirepetindo a sétima série, atrasando assim minha formação. No ano seguinte consegui passarpara a oitava série e concluí o ensino fundamental.

O meu ensino médio cursei em uma escola técnica - Escola Média de AgropecuáriaRegional (EMARC) onde fiz o curso técnico em agropecuária. Na época era consideradoensino médio, optei por fazer este curso pensando em ajudar meu pai.

Foi uma época mais animadora em minha vida, pois a escola tinha uma estrutura bemmelhor do que a outra, que eu tinha cursado o ensino fundamental.

Porém, no final do curso, vi que não era aquilo que eu queria seguir e fiquei um poucodesesperada, pois agora a responsabilidade caía um pouco sobre mim. Tinha chegado a

Alessandra Regis do Rosário*

Autobiografia

* Graduanda em História pela UFRB.

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16 Caminhadas de universitários de origem popular

hora de retribuir um pouco a meus pais do que eles tinham feito por mim todo aquele tempoe ajudá-los nas despesas, pois agora chegava a hora de meus irmãos estudarem também,então deixei de lado os conhecimentos que tinha aprendido no segundo grau (pois a difi-culdade de conseguir emprego na área era grande) e fui procurar emprego no comércio dacidade.

Não foi fácil, como não consegui resolvi fazer um teste de seleção na outra instituição deensino da minha cidade, o Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia (CEFET),passei e comecei o curso técnico em turismo, pois era uma área que estava gerando muitoemprego na cidade, pela vocação como cidade turística. Comecei o curso, que era noturno,mas não desisti de procurar emprego e acabei conseguindo um estágio na própria instituição,onde exercia a função de monitora do laboratório de informática e recebia uma bolsa de meiosalário mínimo. Lá pude também aprender computação e esta bolsa foi de grande importânciapara mim, pois além do conhecimento tinha a ajuda de custo que me auxiliou muito.

Após o final do curso, e conseqüentemente o final da bolsa, consegui um emprego nocomércio da cidade como vendedora em uma loja de calçados. Este trabalho tomava prati-camente todo o meu tempo, então parei de estudar e só tinha tempo para o trabalho, que eramuito cansativo e muitas vezes humilhante, devido às muitas cobranças dos chefes.

Nesta época minha irmã passou no vestibular e entrou na universidade. Foi um mo-mento muito feliz para mim e para meus pais, que ate então não tinham noção do que era afilha de um produtor rural e de uma dona de casa na universidade. Essa vitória de minhairmã foi cada vez mais me estimulando, cada degrau que ela alcançava me deixava maisinteressada e feliz, de certo modo eu me realizava com as conquistas e descobertas dela.

E foi ela mesma que me incentivou a voltar a estudar. Foi aí que resolvi entrar em umcursinho pré-vestibular: trabalhava durante o dia e fazia o cursinho à noite, e logo nocomeço me senti muito feliz por estar ali, lutando por um sonho, porém muitas vezeschegava muito atrasada e cansada e não conseguia assistir as aulas. Além disso, por eu teroptado por fazer meu ensino médio em escola técnica, deixei de lado muitas matérias queeram de suma importância, essenciais para o vestibular, como física, química etc. Daí,quando os professores do cursinho passavam estas matérias me sentia totalmente aérea, comos assuntos que nunca tinha visto. Isso me desanimava muito e eu pensava que nunca iriapassar no vestibular. Infelizmente, devido ao cansaço e os horários irregulares, acabei desis-tindo do cursinho. Assim, como era de se esperar não passei no vestibular.

A grande decisãoMesmo com a derrota do primeiro vestibular, não tinha desistido do meu objetivo, que

era entrar na universidade.Depois de cinco anos de trabalho e sem perspectiva de melhora, veio em minha mente

uma idéia: largar o emprego e me dedicar exclusivamente ao vestibular.Cheguei em casa e comentei com meus familiares a minha decisão de sair do trabalho,

sabia que seria uma decisão que poderia me trazer muitas preocupações, pois não poderiaajudar nas despesas da casa e nem mesmo nas minhas próprias despesas.

Minha família, apesar das dificuldades que iríamos enfrentar, me deu o maior apoio edisse que eu poderia sair do trabalho o correr atrás dos meus objetivos. Nesse momento nãoposso deixar de falar na pessoa que é a razão do meu viver: minha mãe, que acredita em mimaté mais do que eu. Ela me deu toda força e incentivo. Então a decisão estava tomada: saí do

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trabalho e comecei a estudar. Com o dinheiro da minha rescisão de trabalho paguei ocursinho pré-vestibular e aí pude chegar no horário, sempre disposta a aprender tudo nasaulas, além de estudar em casa também. Passaram-se oito meses, tinha chegado finalmentea reta final do cursinho e as provas de vestibular. Nessa época o dinheiro que eu tinharecebido já havia acabado, então como já estava mais segura do vestibular resolvi voltar atrabalhar. Consegui outro emprego, bem mais maleável que o antigo, e comecei a viajarpara fazer vestibular. Eu tinha me escrito em duas universidades – a Universidade Estadualda Bahia (UNEB) para o curso de pedagogia e a Universidade Federal do Recôncavo daBahia (UFRB) para o curso de história, que era o meu curso preferido. Fiz as provas, fiqueimeio apreensiva, mas com muita fé fiquei aguardando o resultado.

O grande diaLembro que entrava na internet todos os dias na esperança que o resultado saísse antes

que o previsto mas via que seria realmente na data prevista. Exatamente no dia que eu nãotinha entrado na net foi quando saiu o resultado. Eu estava no trabalho e logo que a lojaabriu minha amiga Selma me deu os parabéns, dizendo que eu passei no vestibular daUNEB. Eu fiquei sem graça e trêmula, agradecia muito a Deus pela vitória de estar dentro deuma universidade. Fiquei a manhã toda ansiosa para chegar a hora do almoço e contar amaravilhosa notícia para minha mãe e pra minha família.

O que eu não sabia é que Deus tinha me reservado uma surpresa ainda maior. Depois dacomemoração de ter passado em um vestibular e confirmado que tinha valido a pena todosos meus esforços e abdicações, outro amigo meu me ligou e disse que tinha saído o resulta-do da federal e eu tinha passado também. Eu não acreditava naquilo que eu ouvia, era muitafelicidade para uma pessoa só (chorei muito junto com minha mãe, pois tinha passado naUFRB para o curso dos meus sonhos, foi o dia mais feliz da minha vida).

Depois da euforia havia chegado à hora de pensar como eu iria estudar, pois a univer-sidade ficava em outra cidade e seria difícil achar um lugar para morar. Então minha irmãentrou em cena mais uma vez: ligou para uma amiga dela que morava próximo de Cachoei-ra e perguntou a ela se eu poderia passar um tempo em sua casa. Ela disse que eu poderiaficar quanto tempo quisesse, então mais uma vez larguei tudo e fui atrás dos meus objetivos.

Logo quando entrei na universidade tive a oportunidade de me inscrever na seleçãopara bolsista de um projeto maravilhoso que é o Programa Conexões de Saberes, no qual fuiselecionada e fiquei muito feliz não só pela ajuda de custo que me proporcionaria comotambém pela maravilhosa experiência de poder passar para muitos jovens a minha históriade vida e incentivá-los a correr atrás dos sonhos deles, mesmo com muitas dificuldades quenós sabemos que são inevitáveis, principalmente para estudantes que são oriundos de co-munidades pobres e de escolas públicas.

Veja, não diga que a canção está perdidaTenha fé em Deus tenha fé na vidaTente outra vez. Raul Seixas

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18 Caminhadas de universitários de origem popular

Vou contar a história de um jovem que lutou bastante para conquistar seu sonho.Foram muitas as barreiras que ele encontrou no caminho, porém superou cada uma delas ecorreu como um verdadeiro atleta, a fim de alcançar seu objetivo: entrar na faculdade.

A princípio gostaria que você, leitor (a), o chamasse de Silva. O jovem Silva é de umafamília simples e humilde de interior da Bahia. Sua mãe, Railda, uma senhora amigável euma mãe formidável, teve três filhos. O Aprígio, o mais velho, o Ademir (que após contrairuma doença ficou mudo e surdo) e o caçula Silva. Seu pai chama-se Dermeval, um senhorque segundo sua mãe cercava seu filho caçula de todo amor e carinho. Silva não conheceua figura paterna, pois o pai morreu quando ele tinha três anos de idade. Não digo que foiuma dor para esta criança, pois ela desconhecia o significado desta palavra.

Railda, mesmo abalada com a morte de seu marido, decidiu cuidar dos três filhos.Tornou-se não só mãe, mas - porque não dizer - um pai também. Era uma guerreira, umamãe brasileira, uma mulher que mesmo viúva lutou pelo bem-estar dos seus filhos. Elaencontrou dentro de casa uma ajuda fundamental na criação das crianças: seu filho maisvelho, Aprígio. Este, por sua vez, começou a trabalhar cedo para ajudar a pagar as despe-sas de casa. Surgia então um batalhador, um exemplo. Batalhador sim! Travou uma lutanada fácil, por ter que conciliar trabalho e estudo. Quantas noites mal dormidas teve estejovem, afim de que seus irmãos ficassem bem. A ajuda dele foi indispensável para acriação da família.

Mas passados alguns anos e muitas lutas de sua mãe e irmão, chega a época de Silvacomeçar seus estudos numa escolinha chamada Menino Jesus. Os primeiros anos foramdifíceis para ele, por não conseguir entender o significado de estudar; deu muito trabalhopara seu irmão e sua mãe. Uma das frases que ele não cansava de repetir era que “escola nãodá futuro”. Ledo engano.

Essa fase turbulenta de Silva passou, e o Colégio Virgílio de Senna, onde cursou oprimário, lhe ajudou a amar e admirar os estudos; a partir de então Silva teve uma verdadeirahistória de paixão com o conhecimento, mesmo com o Virgílio de Senna deixando a desejarcom relação à estrutura. Em meio a tudo isso o jovem Silva concluiu as quatro séries iniciaisneste colégio e passou a estudar em outro colégio, chamado Senador Pedro Lago.

Mas antes de passar para a quinta série, Silva passou as férias de fim de ano com sua tiaAlmira Nunes, irmã de sua mãe, e conviveu com seus primos Adenilse (Lila) e Isaias (Sassá),além do tio Antônio Carlos, um policial militar. O que era para serem férias acabou se

Anderson dos Santos da Silva*

Em busca de um sonho

* Graduando em Comunicação Social pela UFRB.

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tornando a realidade de Silva, pois ele vive até hoje com essa família. Você acha que eleabandonou sua mãe? Claro que não! Ele vive entre a casa de uma e outra mãe.

Tia Almira tornou-se uma segunda mãe para ele. Foi ela que, também uma guerreira, olevou a conhecer o mundo à sua volta. Enquanto uma das mães o superprotegia (Railda) aoutra o ensinou a encarar seus desafios e medos (Almira).

No Colégio Estadual Senador Pedro Lago o amor de Silva pelos estudos aumentoumais ainda. Era um colégio com novos professores, amizades, aprendizagens. E mesmo comtanta novidade, o colégio caía aos pedaços, o que levou os alunos a serem transferidos atéa conclusão de uma reforma local. Apesar das condições precárias de infra-estrutura, eleaprendera muitas lições que pôde levar para o ensino médio no Centro Educacional TeodoroSampaio.

O Teodoro Sampaio foi mais um colégio público na vida de Silva; mesmo assim, erauma fascinação a cada aula, a cada seminário, havia uma verdadeira emoção no ato deestudar. Porém, nem tudo eram flores: havia também as dificuldades com alguns professorese muitas vezes a má qualificação e a falta de responsabilidades dos mesmos.

Passados três anos, ele concluiu o ensino médio em 2004 e, a partir daí, começou abusca pelo seu sonho, o ensino superior.

Inscreveu-se num programa do governo federal, Universidade para Todos, e obteveuma vaga. E neste momento começou a dimensionar o quanto era grande a “brecha” entre oensino público médio e superior. Ele percebeu, na prática, que havia muitos assuntos doensino médio que o vestibular cobrava e que ele não tinha a mínima noção.

Então ele começou a esforçar-se bastante para tapar os espaços que o ensino médiodeixou. Foram muitas madrugadas afora com a cara nos livros, para ver se conseguia pelomenos tornar-se competitivo no vestibular.

Participou do processo seletivo do Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET),para um curso técnico, de nível médio: foi aprovado, mas não era isso que queria. O CEFETera apenas um aperitivo perto do seu sonho. Ele cursou parcialmente, mas não desistiu deentrar na faculdade.

Logo após inscreveu-se no vestibular da Universidade Federal da Bahia (UFBA), emSalvador e passou na primeira fase. Parecia que alcançaria seu sonho. Após fazer a segundaetapa, com todas as dificuldades, foi saber no que deu: REPROVADO.

Mesmo com a derrota, o que ele não podia era desistir, de seu sonho. Desta vez tentoua Universidade Estadual da Bahia (UNEB), novamente em Salvador, e achou que desta vezseria diferente, estava confiante, tinha que ser aprovado. Passados alguns dias saiu o resul-tado, e por incrível que pareça ele foi REPROVADO.

Uma tristeza total para ele, sentia-se incapaz, temia não conseguir nunca. Mas sabiaque só não alcançaria seu sonho se parasse de tentar! Foi tentar em outra cidade, na Univer-sidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), e durante os três dias de prova acordava àsquatro horas da manhã e pegava o ônibus às cinco. Depois de toda correria para realizar asprovas, saía a lista de aprovados, e seu nome... não estava lá, REPROVADO mais uma vez.Já dá para imaginar como estava difícil para ele, após três derrotas consecutivas, o quêfazer? O que você faria, leitor(a)? Desistiria de seu sonho?

Silva jamais desistiria, e é por isso que escolhi a história dele para vos contar. Elecontinuou em busca do seu sonho. Cursou por mais um ano o Universidade para Todos,aprendendo e revisando todos os assuntos.

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20 Caminhadas de universitários de origem popular

Em seguida procurou pela isenção da taxa do vestibular da Universidade Federal doRecôncavo da Bahia (UFRB), e conseguiu pela quarta vez obter uma isenção. Fez suainscrição para o curso de Comunicação Social, e pela primeira vez concorreria a um cursoque o agradava.

Finalmente chegou o dia da prova, fez a primeira fase e conseguiu ser aprovado. Destavez não se alegrou tanto como da primeira vez, mas estudou bastante, afim de não serreprovado como das outras vezes.

Realizou a segunda fase e, após alguns, dias saiu o resultado. Ele estava com muitomedo do que poderia estar escrito lá, temia mais uma vez ser reprovado, estudou muito epassar era tudo que mais queria. E quando tomou coragem para ver o resultado, contemplouo que assim poderia estar escrito como uma notícia de jornal: “Depois de dois anos tentandoser aprovado numa universidade pública, após perder a vaga em três vestibulares consecu-tivos, o jovem Silva é APROVADO no processo seletivo da Universidade Federal doRecôncavo da Bahia, para o curso de Comunicação Social”.

Finalmente Silva alcançou seu sonho, mas tenham certeza, muitos outros virão. E sabepor quê? Silva vai em busca de seu sonho.

Ah! Quase esqueci seu nome... Anderson dos Santos da Silva, atual membro do Cone-xões de Saberes e o mesmo que vos escreve.

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Histórico e caminhadasMeu nome, antes de eu nascer, já estava certo, iria ser Bruno, se menino; Poliana, se

menina; depois que eu nasci, acrescentou-se o André por convenção de minhas outras duasirmãs primogênitas, Andréia e Adriana, ficando assim, André Bruno.

Há 24 anos eu nascia em Salvador, capital baiana. Era fofinho, bem cuidado e todomundo queria um pedacinho meu. Talvez este tenha sido o meu primeiro momento entretantas pessoas juntas.

Sou filho de mãe solteira. Sou fruto da convivência quase efêmera entre minha mãe emeu progenitor.

Minha mãe trabalhava como auxiliar de contas médicas no Instituto de Dermatologiae Alergia da Bahia (IDAB) quando conheceu o meu pai, que era funcionário público domunicípio onde nasci. Namoraram por, mais ou menos, dois anos, até que eu nascesse e elese eximisse de sua responsabilidade sobre mim quando descobriu que ela, sua namorada,aguardava um filho seu.

Embora o fato de ser mãe solteira tenha começado anos antes de eu nascer e ganhadomaior impulso nos anos seguintes ao meu nascimento, mulheres de muita coragem comominha mãe já executavam a difícil tarefa de ser mãe e pai ao mesmo tempo.

André Bruno Santos da Anunciação*

Eu prefiro ficar com os gestosa me perder com as palavras.Intuo a docilidade dos versos,a versificação da alma.Tua rima é doce, teu propósito é suave.Melindra no campo das flores,escorre saudades.Espero, um dia, amadurecer-te e coser-te dedetalhes,encher-te de brilho.Tomara que venha à minha bocae que eu não fale bobagens.Faça-me entendê-la clara e precisa,que eu a compreenda leve e tranqüila,mas não sucumba a tua verdade,doce palavra.

Memorial

* Graduando em Engenharia Agronômica pela UFRB.

André Bruno Santos da Anunciação

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22 Caminhadas de universitários de origem popular

Estudei sempre em rede pública de ensino. Fui aluno de creche, onde aprendi, entreoutras coisas, a cantarolar. Coisa que faço até os dias de hoje debaixo do chuveiro. Não mearrisco em público.

Tive uma passagem breve por duas escolinhas de ensino pré-primário que eram parti-culares, mas nada que onerasse as despesas de minha família (que era basicamente compos-ta por mim, minhas irmãs, minha mãe e minha avó [que guardo com muito carinho emminha memória]).

Depois desse período pré-silábico, eu passei os anos áureos de minha infância na EscolaVila Vicentina – Vicentina em homenagem a São Vicente de Paula – que apesar de serCatólica, o ensino era gratuito, pois havia um convênio entre a igreja e o Governo do Estado.

Entrar lá foi o meu primeiro grande sacrifício, pois embora fosse de caráter público, oensino era de excelência e exigia-se muito para ingressar nela.

Eu saí do pré-primário sem base alguma, e uma das exigências da escola era quesoubéssemos ler, escrever e fazer continhas. Mas eu não sabia, absolutamente, nada.

Acabei por ser alfabetizado por minha mãe, em casa, sob beliscões, safanões,xingamentos etc., bem ao modo em que ela aprendera. Mas eu só tenho a agradecê-la portudo, pois me motivou a querer mais e a perseguir isso.

Havia todo um rito de entrada, saída e permanência nas dependências de lá. Entráva-mos enfileirados, executando alguma canção católica propícia do mês, a caminho do pátiomaior do antigo convento, onde ficávamos de frente à matriarca da escola (católica-nata)que nos regia, como ninguém, acalmando nossos ânimos com as canções que tratavam deamor, perdão, paciência e paz, seguidos de sermões às vezes dados por ela própria, peloMonsenhor, ou mesmo pela secretária paroquial do Monsenhor.

Ainda me lembro com muito carinho de uma que dizia assim:

Eu te peço perdão, meu Deus;Se não perdoei, se não obedeci;Se não parei para agradecer:O meu despertar, o meu viver,Minha alegria de brincarE o meu sonho gostosoÀ noite, ao deitar.

Duas pessoas muito importantesA primeira, minha avó, a segunda, minha madrinha (aliás, meus padrinhos). Falar de

seres tão angelicais, ternos, amigos como minha avó e minha madrinha é me remeter, assimcomo em todo momento anterior, a um mundo que me traz muitas boas recordações: essasduas pessoas (ou melhor, três, com o meu padrinho) sempre estiveram bastante presentes emminha vida.

Tanto minha avó como meus padrinhos eram aquele ombro amigo com o qual podiacontar e ter em troca palavras confortáveis, animadoras, amorosas e de esperança. Por diver-sas vezes, ambos, socorreram-me. Sinto falta de minha avó querida!

Meu padrinho é a figura mais próxima que tenho de um pai, minha madrinha é umasegunda mãe, grande amiga.

Se era mês mariano, cantarolávamos à Virgem Maria; se era a Páscoa, ressentíamos onascimento e a paixão de Cristo...

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Origem e manancialSou oriundo do índio (do mato) e do preto (escravo e quilombola), com raízes fincadas

no Sul e Recôncavo da Bahia.A universidade me deu a oportunidade fazer o caminho que os meus ancestrais não pude-

ram fazer, por serem negros e, por isso, não tinham “alma” (negro vem do latim que quer dizer“coisa sem alma”). Como poderiam ter direito à educação, se nem alma eles podiam ter?

Minha tataravó era índia que fora trazida por “focinho” (estrutura análoga a umaboca) de cachorro a um quilombo (de história e elenco perdidos) que havia aqui noRecôncavo, antes mesmo de haver a circunscrição política de Cruz das Almas.

Meu bisavô, Tomás Nogueira, negro alto, espigado, nascera livre, no mato, provavel-mente em algum quilombo, pois nascera por volta dos anos 1840, morrendo por volta dosanos de 1960, com cento e quinze anos de idade em Cruz das Almas, cuja causa mortis dadapelos seus foi “uma feridinha no pé.”

LutasComecei a “lutar” (executar atividade remunerada) desde os dezesseis anos de idade

com a oportunidade do meu primeiro emprego, chance que tive ao ser selecionado porconcurso mirim para ser estagiário da Secretaria de Cultura e Turismo do Estado da Bahia,onde levei um ano sob contrato.

Aos dezessete, quase dezoito, tive o meu primeiro emprego com a Carteira de Traba-lho e Previdência Social (CTPS) assinada em Clínica Oftalmológica, depois na Vivo Tele-comunicações.

Nunca fui ativista de movimentos sociais, contudo encetei a primeira turma de instru-tores de um Curso Pré-Vestibular da Organização de Auxílio Fraterno (OAF), mantido peloMinistério da Educação (MEC), através do Programa Inovadores de Cursos (PIC) e Organi-zação das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), voltado, emespecial, para os negros e jovens em situação de risco social.

Nem por isso deixei de estudar, eu queria mais, mais do que os meus antepassadoshaviam conseguido ou tentado, eu queria uma carreira acadêmica, uma formação intelectu-al, social e política...

O meu primeiro vestibular foi para Ciências Contábeis no Instituto de EducaçãoSuperior Unyhana Salvador (IESUS), onde passei, mas não cursei. A instituição era particu-lar e eu só o fiz porque fui isentado da taxa de inscrição.

Eu continuei estudando. Queria ser militar, e, por isso, inscrevi-me no curso prepara-tório para a Academia Superior de Armas do Exército Brasileiro, que tinha sede no CentroFederal de Educação Tecnológica (CEFET), mas quando faltavam quatro meses para con-correr a uma vaga para cadete na Academia Superior de Armas (ASA) - Escola de FormaçãoMilitar das “Agulhas Negras”, que é uma instituição de formação militar da Marinha doBrasil, desisti, fazendo o meu primeiro vestibular federal para a Escola de Agronomia, quepertencia à Universidade Federal da Bahia (UFBA), mas que agora compõe um dos campi daUniversidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), onde curso.

Assim como eu pretendia antes de entrar na universidade, continuo perseguindo osmeus sonhos (que eram: independência, ascensão social, crescimento intelectual, moral,humano...) e tenho certeza de que chagarei lá, unindo à minha profissão, a minha realizaçãopessoal de estar fazendo o que gosto (em breve, ser engenheiro agrônomo).

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24 Caminhadas de universitários de origem popular

Meu nome é Bruna Maria Santos de Oliveira, sou de Barreiros – Distrito de Riachãodo Jacuípe, na Bahia, e vou contar alguns relatos de minha vida, talvez comuns a tantasoutras marcada por uma trajetória de dificuldades e conquistas.

Tudo começou com o namoro de dois jovens, Odenice e Orlando, meus pais biológi-cos. Nasci prematura de sete meses, na casa de meus avós maternos, sem nenhuma condiçãofavorável para um parto. Tive problemas de saúde que quase me levaram à morte, sobrevivigraças a Deus e aos cuidados de minha família.

Por esses e outros motivos, quando tinha alguns meses de vida, fui morar na casa demeu avô paterno, cuja morte ocorreu após dois anos, e minha ida pra lá, que era pra ser poralguns dias, ficou em definitivo, pois continuei lá morando por toda a minha vida.

Essa talvez tenha sido a parte mais difícil e prazerosa de minha vida, pois ganhei umafamília maravilhosa composta de uma mulher (segunda mulher de meu avô) que até faltam-me palavras para descrevê-la, cujo nome é Maria de Jesus Ferreira, minha mãe ou, comocostumo chamá-la, “mainha”. Uma mulher batalhadora, guerreira e muito forte que criouseus sete filhos, que são meus tios-irmãos.

“Mainha” além de mãe, foi o pai de seus filhos, netos e de algumas crianças que“apareceram” como eu. Trabalhou durante toda sua vida como lavradora para sustentar atodos e não tinha nem os domingos para descansar. Mesmo não sabendo ler e escrever e dasdemais dificuldades, sempre nos mostrou a importância dos estudos. Sempre dedicou seuamor e cuidados pra mim igual aos seus filhos.

Lembro-me dos cuidados especiais - e até exagerados - que recebia por causa dosmeus ataques de bronquite asmática e das muitas vezes onde todos “perdiam” noites e diasem revezamento para cuidar de mim, faltando até mesmo nos seus trabalhos, pois desdemuito cedo todos já lidavam com isso para ajudar na renda familiar, tudo para dedicar totalatenção a mim.

Lembro-me também com muitas saudades das belas tranças que eram feitas em meuscabelos ao domingos, dia este em que eles eram lavados sempre às dez horas da manhã,quando o sol estava “quente”, pois tinha que ficar aquecendo-me para secar mais rápido.Nesses momentos, como em tantos outros, parecia até que o mundo todo parava para dedi-car-me amor, carinhos e segurança, e foi assim ao logo de minha vida.

Estudei durante toda minha vida em escolas públicas, etapa maravilhosa e marcante,onde comecei a traçar meus objetivos e conviver com pessoas que me ajudaram em tal

Bruna Maria Santos de Oliveira*

Meus relatos

* Graduanda em Engenharia Agronômica pela UFRB.

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trajetória. Concluí o ensino médio em 2004, apesar das dificuldades, pois além da falta depreparação de alguns professores, não existia na comunidade uma sede própria e adequadapara o único colégio de ensino médio do lugar. Para tal finalidade foi utilizado um galpãode um ex-supermercado, desativado por falta de estrutura física, e tive também que traba-lhar durante o período escolar para ajudar na renda familiar, o que não foi motivo parainterromper meus objetivos.

Em decorrência da falta de oportunidade de emprego e estudo em Barreiros, em janei-ro de 2005, fui pra Feira de Santana fazer um Curso Técnico em Agropecuária pela Funda-ção Bradesco, que a princípio foi apenas a primeira oportunidade que encontrei pra conti-nuar estudando. Entretanto, me apaixonei pela área de atuação, que conseqüentementefoi responsável pela minha escolha profissional: a Engenharia Agronômica.

O curso técnico me proporcionou também a oportunidade maravilhosa de morar commeu irmão Paulo Marcos, com quem até então tinha pouco contato. Foi nele que encontreitambém total apoio para continuar estudando, pois ele é uma pessoa maravilhosa e um dosmeus exemplos.

Após concluir o curso técnico, fui trabalhar em uma ONG, o Movimento de Organiza-ção Comunitária (MOC). Meu trabalho era em Itiúba, na Região Sisaleira, desenvolvendoatividade com jovens e familiares baseado em agricultura familiar, agroecologia e crédito,com objetivo de melhorar a qualidade de vida e geração de renda das pessoas daquelaregião. O MOC foi uma academia importante em minha vida, pois a partir dele tive aoportunidade de me envolver verdadeiramente com os movimentos sociais e causas que atéentão só me envolvia como coadjuvante. Me possibilitou também conhecimentos e mo-mentos que me ajudaram não apenas profissionalmente, mas também pessoalmente, graçasao convívio com pessoas e lugares que me possibilitaram tal papel. Conquistei e fui con-quistada por várias pessoas e construí muitas amizades. Afastei-me do trabalho por causa dauniversidade, pois não tinha como conciliar o trabalho com os estudos acadêmicos porserem em municípios diferentes e distantes, pois Itiúba, fica aproximadamente 400 km deCruz das Almas, onde está o campus de Engenharia Agronômica da Universidade Federaldo Recôncavo da Bahia (UFRB).

Consegui, apesar de muitas dificuldades, ingressar na UFRB e fazer o curso Engenha-ria Agronômica. Consegui quebrar o paradigma que existe na cabeça de muitas pessoas deque a universidade, apesar de pública, não é para todos.

Realmente faltam políticas afirmativas contínuas e intensivas para erradicar as des-vantagens que os grupos sociais de baixa renda enfrentam ao longo da história e quedificultam sua inserção igualitária na competição social, como ingressar e permanecer emuma unidade pública de ensino superior. Pois os cursos oferecidos, na maioria das vezes,possuem um turno integral diurno, ficando quase impossível conciliar trabalho e estudo.Isso muitas vezes define os que podem continuar e os que sacrificam o estudo. Sei tambémque a caminhada é longa e que entrar não foi o maior desafio: concluir e enfrentar o compe-titivo mercado de trabalho será ainda mais duro.

O meu ingresso na UFRB possibilitou-me o conhecimento do Programa Conexões deSaberes, que despertou meu interesse não apenas pela possibilidade de ganhar uma bolsaque iria ajudar a manter-me na universidade com menos dificuldades financeiras por umperíodo de tempo, como também pela proposta de poder ajudar e contribuir no crescimentode pessoas de classes populares como a minha.

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26 Caminhadas de universitários de origem popular

Sem dúvida, os maiores responsáveis pelo meu sucesso foram minha mãe Maria, meuirmão Paulo Marcos, minha família, alguns professores e amigos, que com certeza sabem dacontribuição que tiveram durante minha vida. Fica aqui registrado o meu muito obrigadapor terem me incentivado sempre e acreditarem em mim. Agradeço principalmente a Deuspor te me dado a vida e a possibilidade de conviver com pessoas maravilhosas e poder con-quistar meus objetivos.

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IntroduçãoSão quase seis da tarde. As aulas já acabaram faz algum tempo. As salas estão vazias,

chorando de saudades da euforia que há pouco tudo preenchia e agora se transforma em umvazio amistoso entre a angústia e o descanso. Olhando ao redor não se vê uma alma sequer.Já foram todos embora para seus afazeres, para suas tendas, para suas famílias. As luzes dopátio já se encontram apagadas e seria difícil encontrar direção caso a luz da saída nãoficasse costumeiramente acesa, servindo de bússola.

Parando no meio do pátio e fazendo ecoar três palmas seguidas, logo surgirá em meioao breu um dos porteiros, seu Gerson ou seu Josafá, em dias alternados. O primeiro magro,queixo fino, olhos grandes, semblante amigável. O outro roliço e contente, pronto paraservir. Ambos negros - como a maioria dos brasileiros -, vagam pelos corredores à espera dovigia noturno que chega às sete.

Está tudo vazio. O silêncio é sonoro. Se apurar os ouvidos um instante, perceberá umburburinho ao longo do corredor. Descendo as duas escadas, chegará à frente de uma sala, àsvezes a porta encontra-se aberta, outras vezes não. Será fácil perceber que nem tudo ésilêncio. Nessa sala, em um grande e irregular círculo, senta-se um pequeno grupo de jovensatentos. Descobrir-se-á, em meio a muitas vozes, risos, contos, histórias de vida e de supera-ção, trajetórias que se cruzam perfazendo um desenho único. Esses jovens passaram pormuitas dificuldades. Fizeram dos obstáculos um meio de preparação para a vida, do estudoum alicerce e da negritude um orgulho de viver. São negros e pobres, critério imprescindí-vel para compor o grupo de contemplados pelas políticas afirmativas da UniversidadeFederal do Recôncavo da Bahia - UFRB.

Guardamos lembranças maravilhosas, sonhamos, fazemos gracejos. Nossas históriassão bem parecidas, mas não são iguais...

Não somos iguais, pois uns são bolsitas da Fundação Clemente Mariane e outros doPrograma Conexões de Saberes. Vivemos em lugares diferentes, cidades diferentes, temosfamílias diferentes, cursos universitários diferentes, mas também somos parecidos... estu-damos em escolas públicas, tivemos o mesmo sonho de ingressar na universidade, mora-mos em bairros populares, temos histórias marcadas pela desigualdade social e discrimi-nação racial, somos protagonistas de nossas histórias, somos negros e negras que, histori-camente excluídos, resolveram responder com a inserção, daí que desejamos incluir osbolsitas da Fundação Clemente Mariane com trajetórias semelhantes às nossas, que, naverdade, entrelaçam-se com nossas vidas. Por isso realizamos o desafio de escrever essetexto a 16 mãos!

Caminhos cruzados:muitas vidas, uma história

Texto a 16 mãos

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28 Caminhadas de universitários de origem popular

InfânciaO cheiro da terra preenche o ar. Terra molhada, chuva forte, incessante... dá vontade

de ver um filme, comer pipoca, ficar enrolado no cobertor quentinho, olhar da vidraça achuva caindo na calçada, levando as folhas do chão na rua silenciosa. No entanto, numacasa de pau-a-pique, chão batido e coberta por palhas, a chuva não inspira momentosalegres... pai, mãe e quatro filhos... todas as crianças foram debaixo da mesa. Lá permane-ceram até a chuva passar.

Na zona rural de Mutuípe a vida não era fácil. Ora comiam banana verde cozida emrodelas, ora comiam um ovo dividido para seis pessoas, e carne fresca só quando o paifosse, no sábado, comprar uma cabeça de boi na feira.

A menina olhava impotente com os olhos marejados e irritados pela fumaça, o fogo aconsumir suas lembranças e o trabalho de seus pais. Era a segunda vez que a casinha de pau-a-pique ardia em chamas. Da primeira, reduziu os sonhos da família a cinzas. Da segunda, afumaça causou insuficiência respiratória no caçula. O fogo, então, lhe roubava a vida. Seupequenino irmão morrera.

Uma mesma vida, outras experiências. Um sorriso maroto e sapeca alegra seu rosto eilumina qualquer coração angustiado. A menina brinca com os irmãos... faz comidinha deervas silvestres, fabrica bonequinhos e animais de chuchu com pernas e braços de taliscasde café, corre feliz pelas campinas verdes... não se queixa da vida nem da sorte. RosianeTeixeira sorri e encanta, sabe o que é sonhar.

Na zona urbana de Amargosa tinha uma rua com muitas crianças que brincavam o diainteiro. Brincavam de casinha, amarelinha, comidinha, esconde-esconde, escolinha, desfi-les... Daniela amava brincar com a turminha de sua rua. Era tão divertido que Vanessa,moradora de outra rua, às vezes aparecia pra brincar também. Em casa, cantava com umatoalha na cabeça fazendo graça para os pais. Também fazendo graça, Maria Joseni fazia opai de brinquedo enchendo a cabeça dele de xuquinhas coloridas. Era uma alegria só nazona rural de Ubaíra.

Na zona rural de Elísio Medrado não era difícil encontrar Gerlan dentro do panacun,servindo de contrapeso para a lenha, enquanto seu avô seguia puxando o jumento pelocaminho de terra seca. Para o menino, aquele era um divertido e prazeroso passeio. “Ah! Quesaudades!”

Da zona rural vem o alimento. São das raízes firmadas na terra que brota o sustento nãoapenas do corpo, mas da cultura e da tradição de um povo. Iranildes e Robenilson moraramem lugares diferentes de Brejões e, após alguns anos, ambos mudaram-se para a zona urbanada cidade. Maria Joseni saiu da roça após conseguir a bolsa do Conexões de Saberes. A suafamília continua morando no mesmo lugar. Jailton, Tatiane e Simone viveram na zona ruralde Amargosa, mas logo migraram para a cidade. Já Esmeralcy, ainda hoje, vive com sua mãeno campo, nos arredores de Amargosa. Quando a noite cai, no silêncio ela ouve apenas ocanto dos grilos, que vêm do mato. Então, pega um papel e uma caneta, senta-se na cama e,à luz de uma vela, começa a escrever a sua história. E assim, fazendo suas as palavras deCora Coralina, diz:

Eu sou aquela mulherA quem o tempoMuito ensinou.

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Ensinou a amar a vida.Não desistir da luta.Recomeçar na derrota.Renunciar as palavras e pensamentos negativos.Acreditar nos valores humanos.Ser otimista. Cora Coralina

Como vive no meio rural, encontra-se em estreito contato com a natureza, sentindo-se,muitas vezes, como um pássaro livre. Ali, respira um ar puro e sacia sua sede com a mais puraágua de uma nascente que se encontra ao pé da mata, na propriedade da família. Foi ali queaprendera a dar os primeiros passos, fazer os primeiros riscos e, apesar de ter sido umacriança “fechada” e ciumenta, era também feliz, brincalhona e estudiosa, tornando-se, hoje,uma pessoa simples e humilde.

Os mais velhos sempre gostaram de contar para as crianças, na zona rural ou urbana,histórias antigas e de assombração que rendem muitas fantasias, pesadelos e sustos para acriançada, despertando a criatividade e a relação de respeito com as crenças dos antigos.

Era um dia especial. A recepção era sempre calorosa: “que milagre é esse você poraqui!?”, a vovó indagava. E com um brilho nos olhos, começava a contar a história quemais gostava:

Os cangaceiros eram temidos em toda a região, pois eram valentes.Andavam todo o nordeste. Piauí, Ceará, Pernambuco... e na Bahiaeles saíam em bando, assaltando e matando gente rica comocoronéis e outras autoridades da época. Eles eram temidos portodos e admirados por alguns. Tinham fama de justiceiros,principalmente Lampião, o líder, com sua mulher e companheira,Maria Bonita. Ela sempre era vista como uma mulher corajosa,com chapéu na cabeça e arma na mão. Lampião e Maria Bonitalutaram juntos até a morte.

Iranildes, atenta, ouvia as histórias que a avó contava.À beira do rio Jiquiriçá-Mirim o Sol se põe mais uma vez, e ao adentrar da noite o

candeeiro é aceso e colocado sobre a mesa junto ao pequeno caderno. Após um longo ecansativo dia de trabalho, o coração de mãe sabe que passar o conhecimento é uma lindaforma de demonstrar amor. Então, a mão calejada coloca-se sobre as mãos pequenas edelicadas que desajeitadas desenham as primeiras letras à luz do candeeiro. Tatiane foialfabetizada em casa por sua mãe.

Sentadas à mesa da pequena sala, Daniela era orientada por sua mãe, que paciente-mente ensinava-lhe as letrinhas e os números. Era impressionante como ela aprendia rápi-do. Orgulhosa de ver a filha lendo e escrevendo, a mãe resolveu matriculá-la numa escolinhapública em que havia estudado e, além disso, ficava próxima do bairro em que moravam. Ashistórias são diversas, mas formam um mesmo mosaico de infâncias que se desenharam namesma cena social, cada uma com seu colorido, cada uma com sua tristeza.

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Trajetória escolar: do ensino infantil ao fundamentalA professora ficava na porta recebendo os pequenos alunos, a mãe ia levando pela

mão a garotinha Iranildes para o primeiro dia na escola. Robenilson era muito pequeno paraficar num lugar com tanta gente, então, no rostinho assustado, começaram a escorrer lágri-mas incessantes, fazendo o pequeno adormecer... só despertou quando a mãe chegou parabuscá-lo. Não muito diferente aconteceu com Jailton que, ao entrar na escola, as portasforam fechadas e aquele portão grande de ferro foi trancado. Não daria mais para alcançar amamãe, então no meio do pátio ele entregou-se ao desespero do choro.

Rosiane Rodrigues não entrava na escola de jeito nenhum, ficava do lado de fora,entre a curiosidade e a vergonha. No final - indecisão completa - chorava. Simone entusias-mou-se com tudo que via e Silmary fez logo amizade e achou a escola o maior barato!

Um “toquinho de gente” iria ser interna no Convento de Santa Clara, em Salvador.Muitas meninas de várias idades olhavam para aquela garotinha recém-chegada. Aquela seriaa família de Juliana por muitos anos. Só iria para casa nos fins de semana e se o comportamen-to fosse satisfatório. Juli era muito pequena para compreender as circunstâncias que a levarampara aquele lugar tão diferente do seu cotidiano. O convento era um lugar de disciplina eoração, mas para a interna, havia tantas obrigações como orações. A imposição religiosa eraconstante: às 6:00 acordava e rezava aos pés de Nossa Senhora; às 6:10 escovava os dentes epenteava os cabelos; 6:20: esperava até o horário do café; 6:30 era a fila e oração para o caféda manhã; 7:00 oração de agradecimento, em seguida vinham as atividades de limpeza e atéo fim do dia tantas outras rezas e obrigações... a mãe de Juliana sabia que uma criança pobre,negra e mulher, só venceria na vida através de muito estudo e dedicação.

Uma garotinha fofa... saia de prega azul marinho e um shortinho da mesma cor porbaixo, blusa branca de tergal, um lindo laço nos cabelos, sapatinhos pretos e meias brancas.Feliz, andava em direção ao educandário Imaculado Coração de Maria, em Amélia Rodrigues,administrado por irmãs missionárias, que ensinavam com dedicação os valores cristãos.Joaninha passou muitos momentos bons no educandário, mas certo dia sumiu uma lapiseira0,7 mm na sala, e a dona da grafite asseverou: “só saio daqui quando aparecer minhalapiseira!” Não precisa dizer que essa era a menina mais chata da turma. Todos procuraramem seus pertences, e as irmãs também revistaram e olharam a bolsa de todos, um por um.Entrevistaram cada aluno, individualmente, inquirindo sobre o objeto. No entanto, nem oculpado nem a lapiseira apareceram. Então, as férias de São João terminaram em sabatina elimpezas do pátio das 8h às 17h. Acontece que no meio do pátio, entre o cimento, nascia umcapim. Ajoelhadas, sol quente, arrancavam o matinho, assim como quem paga um pecadoque não cometeu...

Aos sete anos, sua mãe a matriculou na alfabetização numa escola da zona urbana,porém a professora percebeu que a pequena já estava alfabetizada e a transferiu para a 1ªsérie. Na sala, tudo lhe parecia estranho e confuso, pois seus colegas lhe olhavam comdesconfiança.

Quase nada a inibia, a não ser um colega que todos os dias ao término das aulascercava-lhe e tentava agredi-la fisicamente. Este dilema se estendeu por vários e váriosmeses, até que um dia, Tatiane disse a si mesma: “Tenho que dar um jeito nisso! Ele nãopode continuar me atormentando...!” Então, por mais irresponsável que fosse seu ato,decidiu levar uma faca para a escola e ameaçar o menino. Após isso, ele não mais a incomo-dou. Depois de ter vivido tal experiência ela aprendeu uma lição que traz consigo em todos

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os momentos de sua vida, que nossos grandes medos só podem ser superados se enfrentadoscorajosamente.

A pequena Maria Joseni que carinhosamente era chamada de Dodi. Estudava pelamanhã e, na volta da escola, as pernas curtas encaravam uma estrada longa de terra, os carrospassavam a lançar poeira em seu meigo rosto. Sentia um vazio que parecia consumir a alma.Então, sem outra reação mais espontânea para aquela situação, sentava e chorava em meioàs vacas por trás da cerca e, olhando os meninos andando pelo caminho, as lágrimas nãosolucionavam nada, mas era a única coisa que lhe ocorria naquele momento.

Trajetória escolar: ensino médioDó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si... as notas da canção não podem ser esquecidas por nenhum

dos músicos, pois um erro compromete todo o grupo, a música é um excelente veículo paralevar alegria. Robenilson conheceu a música no Colégio Estadual Ana Lúcia Castelo Bran-co, o que lhe deu a oportunidade de tocar instrumentos musicais e de aprender a reger asexperiências vividas rumo às conquistas.

• Lave todos os pratos!• Deixe a cozinha limpa!• Tire a poeira dos móveis!• Arrume todas as camas!• Varra a casa!• Lave o banheiro, está imundo!• O menino está chorando mais uma vez...!

Esta era uma rotina triste para uma adolescente com muito desejo de estudar... eprecisava suportar humilhações, tristezas, dores, aflições, trabalhando como babá e domés-tica. Sozinha, naquela casa, servia de alvo para críticas cruéis... sentia-se só, estava longe doabraço da mãe e do olhar protetor do pai. Já não daria mais para agüentar, era hora deRosiane Teixeira voltar para sua casa, na roça.

Ainda não havia raiado o sol, eram 4h da manhã, o sono precisava dar lugar à determi-nação, estava frio, chovia muito, seria bom ficar debaixo das cobertas... esticou o corpo,passou a mão nos olhos, bocejou, pensou em sonhar mais um pouco, mas para realizar ossonhos era necessário levantar, então vestiu a roupa e seguiu pelo caminho de terra, que eraapenas lama a grudar em suas pernas e sapatos. Meia hora depois do trajeto e essa corajosamocinha chegaria ao ponto para pegar o ônibus que a levaria para a escola na cidade. Nocaminho de sempre, prestando atenção no pasto, no cheiro forte de esterco molhado, napaisagem que se desenhava tranquilamente à sua frente, surpreendeu-se com um grandeanimal que desembestava em sua direção. Calafrio, taquicardia, pavor, correu desesperada,afobada e, sem saber medir o susto e a fuga, caiu na lama, lambuzou-se, mas livrou-se davaca. Estava suja e cansada nos primeiros minutos da manhã, isso não era uma novidade.Dentro da bolsa tinha sempre roupas limpas de reserva, entrou na plantação, trocou deroupa e seguiu a longa jornada em busca da realização dos sonhos que acordada criava.

As 4:00 da manhã, em Ubaíra, Maria Joseni também carecia despedir-se do sono eenfrentar mais uma difícil jornada rumo à escola. Como já era de costume nos dias de chuva,a roupa limpa ia dentro da bolsa, pois o risco de cair era grande e sempre acontecia. No diada entrevista para a seleção do Programa Conexões de Saberes, Joseni chegou na universi-

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dade completamente suja de lama. Havia caído de moto em uma das ladeiras que tinha desubir para chegar em seu destino.

A platéia aplaudiu de pé a estréia do jovem grupo de teatro. As pessoas se divertirammuito naquele dia e os atores se sentiam realizados com os sorrisos e aplausos. A partirdaquele momento, a paixão pela arte de interpretar nasceu no coração de Naiara, que passoutodo o ensino médio desenvolvendo seu talento.

Também no ensino médio, Juliana estudava num colégio perto do convento; ela sedividia entre a escola, a casa e as fugidas que dava do convento.

Na vida há muitos encontros e desencontros. Em um encontro do colegiado escolar na5º série do ensino fundamental Jailton e Vanessa tornaram-se amigos. Nas histórias existemplanos e coincidências. Em uma dessas, Simone foi colega de Rosiane Rodrigues por mui-tos anos, vivendo alegrias e tristezas lado a lado. Gerlan era um rapazinho que dava “nó empingo d’água”. Certo dia armou com os colegas da sala e deu uma tortada na cara da vice-diretora da escola. Foi o maior fuzuê! Ele era colega da comportada Esmeralcy. ComoBrejões não é uma cidade muito grande, Robenilson e Iranildes foram colegas três anosconsecutivos. O mundo se faz pequeno quando quer, e planejando ou não, as conexõessempre acabam acontecendo.

Entrada na universidadeA filha de uma família de baixa renda não poderia de forma alguma fazer um cursinho

pré-vestibular, pois isso significaria muito no orçamento precário da casa. Vanessa estudavasozinha em casa utilizando revistas, jornais e livros emprestados. O primeiro vestibular quefez foi um grande desafio para a moça de 17 anos que acabara de concluir o ensino médio,mas, para sua surpresa, teve resultado satisfatório e está cursando o tão sonhado curso dePedagogia. As longas noites de estudo não foram exclusividade de Vanessa. Todos os outrostiveram muita coragem e determinação para entrar na universidade, alguns pelo sistema dereserva de vagas, outros não, alguns com cursinho pré-vestibular, outros sem, mas todos,sem exceção, deram duro pra entrar na faculdade!

Similar, Iranildes estudava em casa e, com um pequeno grupo de amigas, tambémalmejavam cursar o ensino superior público. Fez algumas tentativas sem sucesso, porém, omomento de realizar seu objetivo estava se aproximando. Fez o vestibular e alcançou arealização. Essas são nossas histórias comuns!

NegritudeTodos os alunos deveriam se reunir em grupos. E assim foi feito. Havia um grupo com

meninas brancas e apenas uma negra. Então em alto e bom som a professora gritou para amenina negra: “Você é muito fraca para ficar nesse grupo de meninas mais fortes quevocê!” A menina negra e gordinha não sabia o que fazer, estava com vergonha, se sentidomuito mal, como se estivesse lhe faltando chão nos pés. Pensava: “como essa mulher, quenem me conhece, pode dizer que eu sou fraca? Fraca por quê?” Triste, abaixou a cabeça emmeio àquela cena constrangedora. Fez o trabalho no “grupo dos fracos” que acabou sendoo melhor de toda a sala. Silmary aprendeu a mostrar sua capacidade e determinação, o queiria ser fundamental na formação de sua identidade como negra. No ensino médio, Marynão se atemorizava, pelo contrário, organizava apresentações sobre negritude e fazia expo-sições orais para todo o Colégio Estadual Pedro Calmon.

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Certa vez, Gerlan foi assistir a um filme na casa de sua tia. Um amigo negro sentou-sena cama dela. Ao cair da tarde, quando o garoto foi embora, a tia pegou o lençol e lavou como maior desprezo. Esse acontecimento chocou Gerlan, que não cruzou os braços diante daofensa. Junto com alguns colegas integrou uma comissão que organizou o Primeiro Desfileda Consciência Negra, onde propuseram um evento que mostrasse o valor, a cultura e abeleza do negro.

Chegou a uma loja para fazer um pagamento. Todos a olhavam com desconfiança euma apreensão tomou seus passos, que divagavam em direção ao caixa sob olhares atentose desconfiados. A funcionária da loja, depois de muito fazê-la esperar, perguntou comindiferença: “Você veio pagar algo do seu patrão? Qual é o nome dele?” Abateu-lhe umatristeza e uma revolta que a levaram às perguntas que não calavam em sua mente: “por queme julgam doméstica? Por que a desconfiança? Acham que estou aqui para roubar?”Olhou-se, e na pele encontrou o motivo das suspeitas: por ser negra, não mereceu confiança.Lembrou-se das inúmeras vezes que, ao manifestar qualquer opinião em sala de aula, noensino médio, era chamada de “negrinha atrevida”. Então, disse com altivez: “Não! Aconta é minha mesmo! Eu comprei, trabalhei e posso pagar com meu próprio dinheiro!Você acha que não posso pagar porque sou negra, é!?”

As aulas começavam em Salvador. Pais e filhos iam às papelarias comprar os materiaisescolares. Juliana entrou na loja e encontrou atendentes aparentemente de origem oriental.Inesperadamente um senhor a convidou a se retirar. “Será que ele achou que eu não tinhacondições para comprar? Achou que eu poderia roubar, ou era só por eu ser negra?”Depois de muito pensar, Juliana percebeu que eram as três coisas juntas. Então prometeu asi mesma que jamais se calaria novamente diante de um ato de preconceito.

As crianças sentavam ao redor da mesa e Daniela ia explicando as lições, uma a uma.No meio delas havia uma menina que, apesar de ter apenas seis anos de idade, demonstravaatitudes preconceituosas, por isso quanto mais Dani se aproximava mais a menina se afas-tava. Era uma menina branca que não se esquivava das outras crianças brancas, porém, daprofessora negra do reforço escolar, ela fugia o quanto podia. Um sentimento desafiadortomou conta de Daniela, que resolveu mostrar à criança que a única diferença existenteentre elas era a cor da pele e nada mais. Após muito tempo de convivência e insistência, acriança aprendeu. Hoje ela está crescendo e sempre vai visitar sua ex-professora negra.Daniela não desistiu e contribuiu muito para a formação cidadã daquela criança.

Ela segurava com doçura a mão da netinha indo para a missa. No caminho da igrejaencontrou uma beata que perguntou: “É sua neta? Mas é tão moreninha?! Que moreninhabonita”. E a avó respondeu: “é minha neta sim, meu chocolate!” E não era apenas na ruaque a estranhavam. Na sua própria casa alguns parentes diziam: “você foi trocada no hos-pital!” Isso acontecia por que a família materna inteira possuía pela clara e apenas sua mãetinha se relacionado com um homem negro, gerando uma filha negra, consequentementediscriminada. A confusão na cabeça da criança ficava completa por não ter contato com afamília paterna, restando-lhe apenas enfrentar os preconceitos na casa de pessoas de pelebranca. Hoje, Naiara não se importa com os comentários sobre suas origens, pois se declaranegra e orgulha-se disso!

Na Escola Santa Bernadete, em Amargosa, no censo escolar, uma pergunta foilançada para o rapaz: “qual seu pertencimento étnico-racial?” Ele rapidamente respon-deu: “negro”. A professora, espantada, exclamou: “você é pardo!” Depois de uma longa

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34 Caminhadas de universitários de origem popular

discussão, Jailton foi declarado como pardo por determinação da professora, gerando mui-tos conflitos no rapaz. No colégio sempre havia aqueles que cantavam musiquinhas deprovocação às crianças negras, o que deixava Jailton bastante triste e sem reação, mas hojeele já sabe como agir diante de situações semelhantes.

“Lugar de preto e pobre é na escola e você só será gente se conseguir se formar!”, jádiziam os pais de Tatiane. Os meninos gritavam: “nega preta!” Tatiane, ao se dar conta quese dirigiam a ela, lembrava que sua mãe sempre dizia: “quando esses meninos ficarem techamando desse jeito você tem que responder: ‘sou negra sim, com muito orgulho!’ Nãodeixe ninguém pisar em você!” Entre lágrimas, Tati falava exatamente como a mãe lhe diziae assim fez inúmeras vezes. Algumas pessoas lhe diziam: “essa sua cor é cabo verde”,outras diziam: “sua pele é tão linda, que nem parece negra!” E Tati, não esqueceu a liçãoda mãe, e, ainda hoje, diz: “sou negra sim, com muito orgulho!”

Ser negro em um país regido por valores que têm na aparência a primeira razão de umser, é ir para uma entrevista de trabalho sabendo que as chances são mínimas, é saber que naspenitenciárias a maioria dos detentos são pretos, é ser discriminado, é sofrer a ideologia dobranqueamento para ser mais aceito, é ser marginalizado em qualquer situação, é ser oprimeiro suspeito sem investigação, é sentir-se culpado pela falta de reconhecimento de suahumanidade, é ter sua religião distorcida. Quantas vezes em uma rua escura e deserta,alguém passou para outra calçada ao ver um negro? Até quando será permitido?

Ser negro no Brasil é também ter na pele, na mente, na alma e no coração as marcas dahistória desse povo que é, antes de tudo, negro; é ter a força de não se deixar abater, é tersempre coragem pra lutar, é estudar para se fazer ouvir, é ter na arte um instrumento deliberdade, é ter na tradição a imortalidade de seus ancestrais, é ter na natureza a razão de suaexistência, é ter confiança em suas divindades, é cultuar seus orixás, é conviver em famílias– nucleares ou extensas, é ter orgulho do samba no pé, do sorriso no rosto, da resistência àopressão, da criatividade, da inclusão, do colorido que povoa nossa pele; é sonhar quenossas crianças não sofrerão preconceitos, é ter sensibilidade para ensiná-las o caminho dorespeito à diversidade.

ProtagonismoSendo movimento social lutando pelos direitos da população, lá estava Joseni presente.

A comissão de menores em Ubaíra conta com a colaboração de Dodi, que percebe as dificul-dades que as crianças da sua localidade tinham para estudar, assim, começou a dar reforçoescolar para os pequenos, mesmo sabendo que financeiramente eles não poderiam retribuir.

Os corações jovens sempre acabam sendo invadidos pelos sonhos antigos ainda nãoalcançados. Jailton é um desses jovens com sonhos antigos de solidariedade e amor aopróximo. Uma idéia se concretizou quando ocorreu a II Gincana Entre Ruas de Amargosapara arrecadar alimentos, roupas, remédios e brinquedos que deveriam ser doados à popula-ção carente da cidade. Também arrecadavam livros para as bibliotecas. Esse evento ocupoualguns finais de semana de jovens, crianças e adultos que, participando de provas diversase brincadeiras diferentes, contribuíam para amenizar o sofrimento de muitas pessoas. Daniela,com seus colegas e amigos, também faziam o possível para arrecadar o máximo de contri-buições para ajudar pessoas de bairros humildes da cidade, mas ouvir lamentos e aflições aangustiava, no entanto - e apesar do sentimento de impotência - jamais deixou de sergenerosa e participativa.

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia 35

No Centro Sapucaia, Silmary e Vanessa ocupavam-se elaborando e contando históriaspara crianças do Timbó, localidade atendida pela ONG Sapucaia, que trabalha para preser-var os recursos naturais de Amargosa e região.

Políticas afirmativasNa estrada de chão, entre um carro e outro, só dava pra ver muita poeira com o Sol a

arder na cabeça. Em um dos carros que viajavam entre as cidades de Brejões e Amargosa, iauma picape D20 a carregar em sua carroceria três estudantes da UFRB, Iranildes, Robenilsone Paloma, que não é bolsista. Essa realidade não era nada agradável, mas a motivaçãomostrava-se tão grande que não os deixava desistir.

Essa situação findou quando Robenilson obteve a bolsa Conexões de Saberes, poisele passou a ter condições de manter-se em Amargosa. Não foi diferente com Naiara, Juliana,Joana, Joseni e Rosiane.

Outros moravam em Amargosa, mas a família não tinha como dar subsídios para todasas despesas que demandava os estudos na universidade, assim era para Daniela, Gerlan,Simone, Vanessa e Esmeralcy. Já Silmary, Jailton e Tatiane não conseguiam conciliar traba-lho e estudos acadêmicos, por esse motivo estavam numa situação difícil. Rosiane Rodriguesperdeu o emprego assim que resolveu estudar, pois os horários coincidiam. Todos estavamcom dificuldades para continuar a graduação...

Vemos na roda de conversa nossas histórias encontrarem-se mais uma vez na UFRB, noprograma de políticas afirmativas, que visa não só a permanência qualificada do estudante nagraduação, mas prioriza a valorização e o reconhecimento étnico e racial como um dos funda-mentos do Programa de Permanência da Pró-Reitoria de Políticas Afirmativas e AssuntosEstudantis. O Programa Conexões de Saberes não oferece apenas um auxílio financeiro.Antes de tudo, é uma oportunidade de um encontro mais profundo, verdadeiro e sinceroconsigo e sua história. Muitos chegaram confusos: ‘‘eu coloquei na inscrição que sou pardo,mas que cor tu achas que sou?” Ou: “sou afrodescendente, mas visivelmente parda!”Assim, aconfusão de pensamentos propagou-se, as discussões foram dando margens para que o reco-nhecimento étnico-racial começasse a acontecer, já que eles vão muito além da cor da pele.Como um indivíduo pode desenvolver-se sem reconhecer sua etnia? Porque a vergonha de serpreto? Porque o medo das conseqüências que ser negro traz? Hoje, estamos em processo dereflexão. As lágrimas tomam um novo sentido, os sonhos moldam-se e tomam novos horizon-tes. Em nossos semblantes começa a surgir o orgulho que cresce dia-a-dia e a felicidade depoder assumir o que somos, sem máscara nem disfarce, sem vergonha ou receio. O melhorficou para o final, que é mais um começo, para nós que nas políticas afirmativas encontramoso suporte para uma permanência de qualidade na universidade. Enfim, os sorrisos estão che-gando, os sonhos são grandes e a vontade de realizá-los ainda maior, o que dá razão paramuitas novas histórias de sucesso, determinação e superação de obstáculos.

As dezesseis mãos que assinam esse artigo são:Daniela de Souza Sales (Dani), Esmeralcy Almeida Santos, Gerlan Cardoso Sampaio,

Iranildes Sales Bispo, Jailton Almeida dos Santos Barbosa, Joana Angelina dos SantosSilva (Joaninha), Juliana de Jesus Santos (Juli), Maria Joseni Borges de Souza (Dodi),Naiara Fonseca de Souza, Rosiane do Carmo Teixeira, Rosiane Rodrigues da Silva,Robenilson Ferreira dos Santos (Rob), Silmary Silva dos Santos, Simone Santana da Cruz,Tatiane Santos de Brito (Tati) e Vanessa Morais Paixão.

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36 Caminhadas de universitários de origem popular

Meu nome é Daniela da Silva Santos, tenho 24 anos, nasci em dois de setembro de1982, em Santo Antonio de Jesus, na Bahia.

Falarei de minha mãe. Seu nome é Sonia Maria da Silva Santos e teve três filhos: AnaPaula, Luis Cláudio e eu, que sou a terceira. Não conheci meu pai e nunca tive meios paraprocurá-lo e me aproximar dele.

A verdade é que eu tive uma vida “madrasta”, sofri muito, toda lembrança que tenhode minha infância é de sofrimento e tristeza. Começarei o relato de minha história a partir delembranças remotas que marcaram muito a minha vida.

Minha mãe me levou muito cedo para a casa de uma de suas amigas, a qual não merecordo o nome agora. Ela foi para Salvador, e eu tive de ficar morando com essa amiga dela.Lembro-me muito bem que fiquei aos prantos,não entendia porque ela teria que se afastarde mim. Os dias se passaram e senti muito a sua falta. Após alguns meses ela voltou, era umaépoca de São João eu fiquei muito feliz de estar ao seu lado, mas o período de festas passoue ela logo voltou para Salvador para trabalhar e novamente nos afastamos. Foi difícil segu-rar, e o pior é que tive que sair da casa dessa amiga de minha mãe para morar com outraamiga dela, que as pessoas chamavam de “dona Neném”.

Passei alguns anos morando na casa de dona Neném, ela é uma pessoa muito boa, poiscuidava bem de mim, mas eu precisava de uma mãe, de uma família, pra me passar valores,me ensinar as coisas da vida, enfim, precisava de um lar que me acolhesse e que fosse meu,precisava sentir os pés no chão.

O período que fiquei na casa de dona Neném foi muito angustiante pra mim, ficava otempo inteiro na janela esperando minha mãe voltar, ficava na expectativa de que ela viesseme buscar e sonhava com a possibilidade de morarmos juntas pra sempre; por mais dura quefosse a minha realidade, eu, como criança, ainda tinha capacidade de sonhar com diasmelhores.

Depois de alguns anos na casa de dona Neném, fui surpreendida com a notícia de que,a pedido de minha avó, eu iria morar com meu tio José e sua esposa Lucia, que eram entãorecém-casados. Fiquei feliz, pois pelos menos iria morar com um parente, mas as coisas nãoseguiram como eu imaginava. No início, quando fui morar na casa de meu tio José, tudo foibem, mas depois de algum tempo, sua esposa e eu já não convivíamos bem, isso porque elame maltratava muito. Eu ficava refletindo em alguns momentos, indagando o porquê de eusofrer tanto? Porque eu tinha que passar por todas essas coisas?

Daniela da Silva Santos*

“Caminhando contra o vento”

* Graduanda em Comunicação pela UFRB.

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia 37

Toda experiência que passei no período na casa de meu tio José mexeu muito comigo,hoje eu sou uma pessoa muito conflituosa, inconstante e insegura. Tenho medo da vida emalguns momentos e em outros enfrento ferozmente os obstáculos que surgem diante demim, acredito que toda essa experiência que passei me tornou a pessoa que hoje eu sou, oucomo diria o filósofo francês Jean Jacques Rousseau: “O homem é fruto do meio”.

Sinto que às vezes sou muito exagerada quando conto a minha história de vida, maseu faço um auto-reflexão e me questiono se houve durante minha infância algum momentofeliz. A resposta é não, não tinha nenhum momento de felicidade, não sei como não morri detristeza; sei, contudo, que essa situação me fez ver o quanto fui e sou forte e persistente.

Fui à escola pela primeira vez aos dez de idade, pois eu não tinha documentos emmãos que me possibilitassem a inscrição em um colégio atrás de educação formal. Até queminha tia Rita se dispôs a ir ao cartório pegar a segunda via de minha certidão de nascimen-to. Daí fui matriculada, esse era o meu melhor momento. Gostava muito de ir a escola, mesentia alguém, só não gostava quando tinha que realizar trabalhos escolares: era precisocomprar materiais e eu não tinha a quem recorrer. Eu observava que meus colegas tinhampai e mãe, que por mais humildes que fossem fariam um sacrifício e comprariam materiaispros filhos. Quanto a mim, não tinha a quem pedir.

Os anos passaram e cheguei à adolescência. Meus conflitos se acentuavam, eu perce-bia que já não dava mais pra continuar morando na casa de meu tio José, pois minhaconvivência com Lucia estava insuportável, daí eu resolvi que sairia de lá e moraria na casade minha tia Minusinha. Ela não queria que eu fosse, pois não tinha condições de mesustentar, mas eu argumentei que não havia mais nenhuma possibilidade de conviver com aesposa de meu tio.

Minha tia é uma pessoa muito boa, mas não podia fazer por mim o que eu realmenteprecisava, porém eu fui seguindo em uma nova fase de minha vida. Quando fui morar com elatinha treze anos de idade e uma longa experiência de vida. Na escola eu estava indo mal, haviaperdido o ano e estava desolada, mas mesmo assim não desisti e prossegui minha caminhada.

Quando completei dezessete anos comecei a namorar o Joel, quando tínhamos um anoe meio de namoro fomos morar juntos, e com dois anos juntos fiquei grávida de meuprimeiro filho: Joilson. Eu cursava o primeiro ano do ensino médio e, com o nascimento demeu filho minha irmã Ana Paula foi morar comigo: ela tomava conta de Joilson pra que eupudesse estudar.

Quando eu estava no segundo ano fiquei grávida de meu segundo filho, o João Pedro.Aí as dificuldades se acentuaram, mas eu não desisti. Com quinze dias de parida voltei àsaulas, no terceiro ano, e nos intervalos das aulas ia correndo pra casa amamentar meu filho.Concluí o ensino médio e prestei meu primeiro vestibular para o curso de História, mas nãoconsegui aprovação. No ano seguinte me matriculei num cursinho pré-vestibular .

No início deste mesmo ano eu sofri uma grave decepção no meu casamento e estavadecidida a dar um novo sentido a minha vida, além de meus filhos: meus estudos. Presteivestibular pela segunda vez, mas também não passei.

Continuei me dedicando muito aos meus estudos e prestei vestibular pela terceira vezpara os cursos de Comunicação na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e Geogra-fia na Universidade Estadual da Bahia. Consegui aprovação nas duas, fiquei feliz da vida,pois parecia um sonho. Tenho muitos planos para o meu futuro e tenho grandes sonhos:encontrar meu irmão, meu pai e escrever a minha história de vida em um livro.

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38 Caminhadas de universitários de origem popular

Ei, psiu! Será que você me deixa ser seu anjo de guarda aqui na terra? Então leia minhahistória e pense na sua...

Nasci em Nazaré, uma cidade próxima a Santo Antônio de Jesus, ambas na Bahia, porque o médico que atendia minha mãe trabalhava naquela cidade por questões políticas.

Vivi parte da minha infância em na chamada Rua do Areal. Lembro-me bem de umaprofessora que tive nesta rua onde morei. Ela tinha uma escola pequena, simples, perto deminha casa e foi onde comecei a dar os primeiros passos em busca do conhecimento. Aprofessora Edite, como era chamada, era muito carinhosa e marcou muito minha vida, acomeçar pelo jeito de chamar-me: Dade. Ela era uma negra bem forte e sempre com seulindo sorriso nos lábios, que nos fazia sentir vontade de ficar pertinho dela.

Com mais ou menos doze anos de idade eu e minha família mudamos para mais pertodo centro de Santo Antônio de Jesus. Continuei estudando nas escolas públicas perto deminha casa, e a maior parte do ensino fundamental fiz no Colégio Estadual Francisco daConceição Menezes. Nesse colégio fiz boas amizades, tanto entre o corpo discente, comotambém entre o corpo docente. Foi lá que me formei em magistério (curso preparatório paraformação de professores de 1ª a 4ª séries). Dez anos atrás, esse era o curso mais procuradopara quem queria ensinar, ou seja, formar-se e logo trabalhar. Esse curso também era o que amaioria das famílias de baixo poder aquisitivo estimulavam seus filhos a fazerem, pois amaioria delas não podia encaminhar seus filhos para estudarem fora.

Os meus pais, não sei se pelo grau de instrução que era muito baixo, pois meu pai sósabia assinar o próprio nome e minha mãe estudou na roça apenas até a 3ª série, não meincentivaram a continuar meus estudos. A única pessoa da família que faz um curso de nívelsuperior sou eu, a caçula da família.

Mas hoje entendo que meus pais não me incentivaram a estudar porque quisessem,mas porque eles não tiveram esse tipo de incentivo, pois tiveram que batalhar desde muitocedo. Meu pai foi caminhoneiro até o dia que Deus o levou e a minha mãe sempre foi dona-de-casa e costureira, exercício que aprendeu com as tias, pois minha avó morreu aindaquando ela era bebê.

Formei-me e, depois de ensinar por muito pouco tempo, fui trabalhar no comércio, queera a única saída para arrumar emprego. Contudo, dentro de mim existia uma força quequeria fazer-me movimentar, ou seja, eu não estava satisfeita profissionalmente e precisavacontinuar estudando.

Daniela de Melo Oliveira*

* Graduanda em Enfermagem pela UFRB.

Autobiografia

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia 39

Em um belo dia comecei a namorar um rapaz de nome José Fidelis. Nós trabalhávamosjuntos em um escritório de seguros e, com pouco tempo de serviço e pouca maturidade,fiquei grávida: aí, tudo complicou para mim, pois atrasou mais ainda meus estudos. O piorde tudo é que nem sabíamos se realmente queríamos ficar juntos, pois tudo tinha aconteci-do abruptamente. Fomos morar num bairro bem distante do centro e comecei a perceber queestava sozinha, apesar de estar casada. Ele não ligava para mim, não me tratava bem, apesarde ser sempre um pai amoroso. Segundo as normas da empresa onde trabalhávamos, nãopodia trabalhar junto quem fosse parente, então eu resolvi sair e deixá-lo trabalhando.Resumo: eu e o pai de Gabriella Merícia, minha filha, vivemos cinco mal vividos anosjuntos. No entanto, no dia 19/04/2003 ele veio a falecer, vítima de um acidente automobi-lístico. Eu sofri muito, pois pensava e lembrava no amor que Fidélis e Gabriella dispensa-vam um ao outro. Aos poucos fui tentando tirar forças da fé que tenho em Deus e que a cadadia aumenta mais.

Desempregada e vivendo na casa de minha mãe, comecei a fazer artesanato paravender. Depois tive a brilhante idéia de dar aulas em minha casa. Com o tempo comecei afazer um curso para prestar concurso para Polícia Militar da Bahia e foi através deste cursoque me chamaram para ministrar aulas de reforço escolar para alunos de 1ª a 8ª séries. E foia partir desta experiência de dar aulas que adquiri bagagem para passar, em 2007 no vesti-bular para Enfermagem na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), no campusde Santo Antônio de Jesus. Um curso lindo, pelo qual a cada dia me apaixono mais. Tambémpassei no mesmo ano para o curso de Geografia na Universidade Estadual da Bahia (UNEB),porém optei por Enfermagem.

Eu não posso reclamar de nada. Deus me deu um grande presente que eu não sabia queera possível que acontecesse. Hoje estudar em uma universidade pública é um sonho eainda ganhei mais um lindo presente, que é fazer parte de um grupo tão acolhedor quanto ogrupo do Programa Conexões de Saberes. Fazer parte do Conexões é saber a cada dia quepessoas passam por muitos problemas e que acham que não vão chegar onde eu cheguei.Por isso, precisam do meu apoio e saber que é só acreditar em nós mesmos e lutarmos paraconquistarmos o nosso espaço na sociedade.

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40 Caminhadas de universitários de origem popular

Nasci em oito de abril de 1987, em Santo Antônio de Jesus, filha de Aládio Fagundes dosSantos com Clara Souza dos Santos, já falecida. Sou a última de onze filhos de pais lavradorese semi-analfabetos. Sem condições financeiras favoráveis, meu destino parecia previsível.

Meu nascimento e sobrevivência foram difíceis, pois minha mãe, além de estar em idadeavançada para ter uma criança, apresentava problemas de saúde. Então, quando nasci, omédico logo advertiu que eu não passaria mais que semanas viva, mas como é preciso ir contraas determinações que nos limitam, agora estou tentado contar um pouco da minha história.

Passei minha infância em localidade conhecida com Fazenda Congonha, na zonarural de Varzedo. Lá meus irmãos precisavam caminhar uma distância de aproximadamente4 km para chegarem até a escola, por isso, todos desistiram de estudar e saíram de casa paratrabalhar, devido também às condições financeiras.

Quando completei oito anos, minha família se mudou para o Povoado do Cruzeiro –na zona rural de Laje – lá comecei a minha vida escolar. Estudei sempre em escolas públi-cas, e sou mais alguém que teve que “correr atrás” para superar as marcas deixadas por umensino deficiente. Lembro que das dificuldades no curso pré–vestibular, a pior delas, era aangústia em pensar que tanto esforço poderia culminar em apenas uma tentativa frustrada.

Quero ressaltar um fator importante em minhas conquistas: a FÉ. Esta me sustenta e meimpulsiona a continuar lutando por meus desejos. Em um mundo real e baseado na razão, apresença de um Deus sobrenatural foi essencial para a realização de sonhos que vão além daqui.

É bom falar do relevante papel de uma importante instituição na vida de alguém: a FAMÍLA.Quando tinha treze anos minha mãe faleceu e, com o tempo, percebo quão grande foi esta perda!Possuía um vínculo muito grande com ela. Atualmente, reconheço meu pai, meus irmãos eamigos - que considero como família - como atores também responsáveis por minhas vitórias.

Completei o ensino médio e comecei a estudar em um curso pré-vestibular de cunhosocial que era uma oportunidade única!!! Então prestei vestibular para História na Univer-sidade Estadual da Bahia (UNEB) e para Psicologia na Universidade Federal do Recôncavoda Bahia (UFRB) e fui classificada em ambas.

Escolhi cursar psicologia na UFRB porque é uma universidade federal, que prepara osmelhores profissionais para atuar em diversas áreas. Até então, conhecia muito pouco depsicologia, e o que me fez optar por este curso foi a possibilidade de desempenhar umtrabalho que suprisse não apenas minhas necessidades materiais mas que permitisse umcontato humanizado com as pessoas, poder entendê-las e participar dos processos de “trans-formação” social, mudando de vida, superação de traumas.

Sou a primeira em minha família a ingressar em um curso superior de graduação e issoé uma grande vitória; não é o final, mas o início de uma outra caminhada em que devereisuperar limites. Permanecer na faculdade é ainda um grande desafio, porém um importantepasso foi dado e atualmente faço parte do programa de permanência na faculdade, na qualcontribuirei para que outras pessoas lutem contra as determinações sociais que os limitam.

Deraci Souza dos Santos*

Memorial

* Graduanda em Psicologia pela UFRB.

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Um dia você foi inscrito para participar domaior concurso do mundo, da maiorcorrida de todos os tempos. Acredito, vocêestava lá! Eram mais de quarenta milhõesde concorrentes. Pense nesse número. Todostinham potencial para vencer e só umvenceria. Será que você era um número namultidão ou tinha algo especial? Augusto Cury

Para mim foi um susto quando soube da possibilidade de escrever um memorial. Nãome é nada confortável falar da minha vida, mas vamos lá.

O meu nome é Edilon de Freitas dos Santos, brasileiro, nascido em Cachoeira, naBahia e resido desde criança em Conceição da Feira. Tenho dois irmãos, Elane e Marlon,que são filhos de pais distintos. Tenho dezenove anos de idade.

Sobre minha mãe

...mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana,sempre, quem traz no corpo a marca, Maria, Maria, possui aestranha mania de ter fé na vida...

Milton Nascimento e Fernando Brant

Eu não poderia começar a relatar minha trajetória de vida sem primeiro citar a pessoaresponsável por grande parte do que sou – minha mãe, Maria da Paixão Suzart de Freitas.Ela desde muito cedo enfrentou a vida praticamente sozinha. O pai da minha irmã, Elane,nunca ligou muito pra lá. Só dava pensão quando queria, e quase nunca queria.

O meu pai, esse praticamente não conheço. Só o vi uma vez em toda a minha vida,devia ter mais ou menos nove anos. Consigo lembrar-me com requinte de detalhes comotudo aconteceu. Eu estava voltando da escola, quando minha avó paterna me interceptoupara informar que meu pai estava para chegar no final de semana. Na hora fiquei sem reação.Em minha cabeça houve uma briga dos mais extremos sentimentos: amor, ódio, enfim,fervia um turbilhão de sensações.

Edilon de Freitas dos Santos*

Quem sou eu?

* Graduando em História pela UFRB.

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42 Caminhadas de universitários de origem popular

No entanto, minha mãe - apesar do abandono do meu pai em relação a mim - nuncaestimulou sentimentos negativos meus em relação a ele. Então decidi vê-lo, escutar suasexplicações, seus pedidos e aceitá-los. Mais uma vez decepção total. Ele veio conversarcomigo cheio de autoridade e, ao invés de dar-me um grande abraço, quis saber como iana escola.

O fato é que essa foi a primeira - e talvez última vez - que pude estar cara a cara como homem que afirma ser meu pai e que, por mais incrível que pareça, me registrou comoseu filho.

No final de 2006 ele ligou para mim se colocando à disposição para procurá-lo, sempreque precisar. Achei sua intenção nobre. O único problema são dezenove anos de atraso.

De fato, não conheço o significado da palavra “pai”. Já minha mãe, a essa serei gratopara o resto da vida, nunca conseguirei retribuir tudo o que ela fez por mim. Faltam-mepalavras para descrever uma pessoa que abdicou da própria vida pessoal em troca de propor-cionar uma vida honrosa para mim. Lembro-me de suas insônias quando faltava algo paramim e meus irmãos, lembro-me também de sua alegria pelas minhas conquistas. Para mim,essa pessoa interpretou com mais exatidão a palavra “mãe”.

A primeira escolaDepois de um breve período na creche Mimos da Tia Lena, a qual não me adaptei, fui

matriculado na Escola Cantinho do Saber. Lá estudei dos três até os oito anos de idade.Durante esse tempo fui muito bem alfabetizado, vivi inesquecíveis momentos. Até hojetenho vários amigos dessa época.

Foram vários acontecimentos especiais, recordo-me com mais intensidade de quandoparticipei da formatura do ABC. Ainda hoje consigo buscar em minha memória a imagemnítida. A diretora da escola colocando o anel no meu dedo, minha professora vibrandojuntamente com minha mãe, que se derramava em lágrimas na platéia. Lembro dos ensaiospara a valsa dos debutantes, posso inclusive ver diante de meus olhos a decoração do salão.Consigo escutar a música cantada em coro por nós.

Este ano quero paz em meu coração, quem quiser ter um amigo,que me dê a mão. O tempo passa, e com ele caminhamos todosjuntos, sem parar, nossos passos pelo chão vão ficar,marcas do que se foi, sonhos que vamos ter...”

Os Incríveis

Ensino fundamentalEscola Estadual Hérlio Mascarenhas Cardoso, essa foi a escola onde fiz quase todo

meu ensino fundamental. Quase porque comecei lá a partir da segunda série. Este ambientepara mim foi além do meramente escolar. Tive oportunidade de conviver com professoresque foram muito mais que simples orientadores acadêmicos, mas também pessoas que esti-mularam meu crescimento moral.

Não tenho conhecimento da atual situação desta escola, no entanto, quando era mem-bro do corpo discente dela a percebia como uma “grande família”.

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Talvez precocemente foi lá que, durante a sétima série, decidi o que queria comoprofissão para o resto da minha vida. Confesso que essa decisão foi bastante influenciadapor um professor por quem tenho bastante admiração. Quanto ele chegava para dar aulaspodia sentir o prazer, o regozijo com que ele desempenhava sua função. Professor Joaquimfoi um dos “culpados”, por eu estar encarando uma graduação em História. Um dos culpa-dos porque, mais tarde, durante o ensino médio, tive um exemplo semelhante novamentecom professor de História. Desta vez foi a professora a Ana Maria, essa foi muito mais queregente da disciplina, fez-se mestra na arte de lecionar.

Ensino médioFiz todo o meu ensino médio no Colégio Estadual Yêda Barradas Carneiro, concluí

em 2005. Essa fase foi bastante comum, o que não quer dizer irrelevante, pois como járelatei, foi neste contexto que confirmei o desejo que tinha de me graduar em História, maisprecisamente durante o primeiro e o segundo anos em que estudei com Ana Maria.

Entre as experiências que tive com a professora desta disciplina, algumas foram gra-ves e constantes, pois não aceitava alguns comportamentos dela como docente. Batia sem-pre de frente com ela. Mas sempre fui de deixar os problemas acadêmicos dentro dos murosdo colégio e fomos bons amigos.

O caminho até a UFRB

A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar, mas eis quechega roda viva e carrega o destino para lá..

Chico Buarque

Quando concluí o ensino médio estava meio sem perspectiva acadêmica, pois já tinhadecidido que, diante das dificuldades econômicas pelas quais minha família vinha passan-do, era melhor eu procurar um trabalho e, consequentemente, deixar de lado meu grandesonho, que era entrar para a universidade pública.

Assim fiz, e logo no início de 2005 recebi proposta para trabalhar informalmentecomo cobrador do transporte alternativo que faz a linha Conceição da Feira/Feira de Santana-BA. Não sei se por obra do acaso ou vontade divina, fato é que mesmo tentando distanciar-me do meio acadêmico, esse trabalho me colocava em constante contato com ex-professo-res, que me faziam sermões e sermões por eu ter me acomodado.

Os professores não sabiam do sacrifício que eu fazia para me convencer e aceitarnaquele momento que eu tinha mesmo é que me encaixar logo no mercado de trabalho.

Neste conflito fui até o meio do ano, quando soube de um pré-vestibular comunitárioe resolvi encarar a dupla jornada. No entanto, fisicamente para mim tornou-se insustentá-vel, pois meu trabalho começava às 5:00 da manhã e ia até horário indeterminado. Após trêssemanas, desisti definitivamente do pré-vestibular.

Resolvi fazer o exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Obtive uma média boa, entãome inscrevi para concorrer a uma bolsa do programa PROUNI (Universidade para Todos).

Um dia encontrei uma pessoa que tem uma parcela enorme de responsabilidade nofato de hoje esta na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). A minha grandeamiga Joana, que em uma conversa onde eu falava das minhas dificuldades, ela me falou da

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44 Caminhadas de universitários de origem popular

nova universidade que havia se instalado no Recôncavo e que já estava aberto o processode isenção da taxa do vestibular. Então eu corri para conseguir a isenção, me inscrevi parao vestibular e o fiz, pra História.

A melhor surpresa da minha vidaSaiu o resultado da seleção para a bolsa do PROUNI. Eu não podia acreditar: consegui

uma bolsa integral para Administração de Empresas, numa instituição particular, a Faculda-de de Tecnologia e Ciências (FTC). Com alguns dias saiu o resultado da federal. Pensei queera ilusão de ótica, não podia, como é que eu, sem pré-vestibular e de primeira, podia passarnuma federal. Felizmente não foi ilusão, realmente um rapaz de origem humilde haviaconseguido. Eu me senti o cara mais feliz do mundo.

Agora na universidade, o primeiro momento foi um “choque”, tudo fascinante, maissurpreendente do que imaginei. Tenho plena sobriedade e entendo o importante papelsocial que assumirei. Papel por vezes de protagonista, por vezes de coadjuvante, mas sem-pre de forma conjunta tentando transformar a minha realidade e a de todos à minha volta.

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Sou Edimilson Pereira dos Santos da Silva, 24 anos, moro em Cabaceiras do Paraguaçu-BA, terra natal do poeta Castro Alves, que lá nasceu em 14 de março de 1847, em uma fazendada região. Gosto de realçar esse fato porque as manifestações culturais acerca dessa datativeram importante influência em minha vida, desde a minha infância. Essa é uma das datasmais festivas do meu município, levando em conta que estudei todo o ensino médio emescolas que tinham relação direta em preservar a memória do poeta, através de diversos con-ceitos e empreendimentos realizados pela escola. Tempos marcantes, tanto que posso merecordar de um trecho do poema de Castro Alves (Navio Negreiro) que diz assim:

Senhor Deus, dos desgraçados!Dizei – me vós, Senhor Deus!Se é loucura... Se é verdade,Tanto horror perante os céus...Ó mar! Por que não apagasCo’a esponja de tuas vagasDo teu manto este borrão?...Astros! Noite! Tempestades!Rolai das imensidades!Varrei os mares, tufão! Castro Alves

Reflito também todos os desafios em minha trajetória de vida dentro e fora da escola.Posso dizer que sou de comunidade popular e filho de agricultores que fizeram bas-

tantes esforços para a minha permanência na escola, apesar das dificuldades enfrentadas.Retrato original, pode-se dizer, de toda a comunidade da região, e apesar de minha mãe emeu pai trabalharem duro na lavoura de milho, feijão, fumo, mandioca etc, eu freqüentavaa escola e começava a visualizar os horizontes do mundo letrado.

Portanto ricos e pobres só se assemelhavam em uma só vertente subjetiva: no pensamentode que a fuga da pobreza, a solução econômica, social e profissional se dá através da educação.

Minha relação com a comunidade onde vivo é bastante harmônica, me relaciono bemcom meus pais e amigos, gosto de praticar esportes, meu preferido é o futebol, o principalesporte da região.

Sempre que posso estou presente em eventos religiosos da Igreja Católica, no entantoa religiosidade da minha comunidade é diversificada e tem abrangência também para oProtestantismo e o Candomblé.

Edimilson Pereira dos Santos da Silva*

Memorial

* Graduando em Engenharia Agronômica pela UFRB.

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46 Caminhadas de universitários de origem popular

Concluí todo o ensino médio profissionalizante (magistério), na rede pública deensino; municipal e estadual consecutivamente.

Os obstáculos tiveram uma proporção de aumento gradativo ao longo dessa árduajornada, mas a força de vontade foi e está sendo a força motriz para estar hoje na Universi-dade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), onde curso Agronomia.

Durante todo o período colegial tive a oportunidade de me inserir em alguns gruposde incentivo, me instruí e busquei informação sobre diversos problemas, inclusive sobredoenças epidêmicas que assolavam a comunidade desta região, participei de grêmios estu-dantis e gincanas, isso também é algo para se lembrar. Além disso, sempre procuro estarinformado sobre alguns programas de melhoria social implantados em meu município,sejam eles programas de governo ou não; o importante é que essa interação nos proporcionaaprender muito, tanto na teoria quanto na prática, trazendo maior engajamento social atra-vés de maior relação com a sociedade.

Sobre todos esses períodos que relatei dou enfoque para uma frase que diz: “quandoevoluímos, evolui também tudo que está à nossa volta”. Desconheço o autor dela. Visualizoque o homem é um ser de vivência coletiva e, desapropriado de seus recursos básicos,utiliza diversos esforços para sua permanência no espaço geográfico.

Pois essa situação gera um conjunto de aspectos da vida material e cultural em quecada civilização desenvolve suas características próprias. Dentre esses aspectos a escolatem um papel mediador que instrui o indivíduo a ser construtor do meio social, tendo emvista normas e patamares a seguir.

Partindo daí o homem sempre irá buscar em cada estágio de seu desenvolvimento omais alto grau de sua evolução. E evoluir é nos despimos da condição de “homens primiti-vos” e ditarmos raízes na sociedade moderna. Porque o homem contemporâneo modificaconstantemente seus padrões de vida; claro que acoplado com o avanço tecnológico, porisso há a necessidade de mudança para adequar-se a essa evolução.

A universidade, na minha perspectiva e concepção é mais uma amplitude desse espa-ço, onde para transformamos idéias e criações; utilizamos um fundamental artifício que é aciência (uma intrincada teia de conhecimentos) com base no principio ético e moral.

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia 47

Sou filha de Antonio Gonçalves dos Santos e Honorina Oliveira dos Santos. Nasci em11 de março de 1978, em uma pequena fazenda dos patrões dos meus pais na Mata dasCovas, zona rural de Amargosa-BA, onde meu pai trabalhava como vaqueiro e minha mãecultivava a terra. Sou a quarta filha de uma família de quatorze filhos, sendo que trêsmorreram ainda pequenos.

Tive uma infância com poucas oportunidades de brincar com os amigos, pois meu paiera muito rigoroso. Meu maior sonho era ganhar uma boneca de cabelo grande, pois eutinha os cabelos curtos e crespos e, por isso, sofria alguma discriminação na escola. Não seiao certo o motivo desse desejo. Seria uma forma de chamar a atenção das pessoas pelo fatode elas só valorizarem cabelos lisos e grandes?

Estudei até a 2ª série do ensino fundamental numa escola municipal onde nasci.Recordo-me claramente da minha primeira professora, que por sinal era muito carinhosa echama-se Celice.

Quando completei onze anos, meus pais deixaram essa fazenda e compraram umpequeno pedaço de terra no Timbó, também zona rural de Amargosa. Lá, iniciaram a agri-cultura. Eu e meus irmãos, que até então éramos seis, sempre trabalhamos ajudando nossospais: acordávamos cedo e passávamos o dia inteiro no Sol quente. Mesmo assim o dinheironunca era suficiente.

A vida no campo é muito difícil, pois seus moradores são esquecidos e discriminadospor todos. Falta dinheiro e investimento para garantir a sobrevivência e a permanêncianesse espaço.

Eu não desejava aquele sofrimento para o futuro, queria mudanças, porém sabia quepara isso acontecer eu tinha que estudar. Ali o acesso à escola era difícil e assim resolvi irpara a cidade trabalhar na casa dos ex-patrões dos meus pais, com apenas treze anos. Sofrimuito por deixar meus familiares.

Aí aconteceu uma etapa importante da minha vida: ambiente novo, família distante,tarefas a cumprir. No começo foi muito duro, mas com o tempo, tudo foi se acomodando,pois tinha encontrado uma segunda mãe: a querida professora Lygia, a pró Lygia (comocarinhosamente todos a chamam) que logo cuidou de me levar ao médico, pois eu era umacriança doente, que necessitava de cuidados.

Aos quatorze anos voltei a estudar, depois de quatro anos fora da escola. Estudava noturno matutino e fazia as tarefas domésticas à tarde. Fiz 3ª e 4ª séries nas Escolas Reunidas

Em busca dos sonhosEdnólia Oliveira dos Santos*

* Graduanda em Letras pela UFRB.

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48 Caminhadas de universitários de origem popular

Almeida Sampaio; já de 5ª a 8ª, na Escola Estadual Santa Bernadete e o Ensino Médio noColégio Estadual Pedro Calmon. Foram muitos anos de sacrifícios e trabalho também.Encontrei amigos maravilhosos e inesquecíveis como Elâne, Jemile, Jirlene, Silvando,Virgílio e outros. O meu sonho era tornar-me professora da Escola Mundo Encantado, queera da minha patroa-mãe, pró Lygia.

Imagine o quanto seria gratificante para minha família ter uma filha professora daque-la escola tão famosa na cidade. Concluí o ensino médio no ano de 2000. Tive um professorde Didática no 1º ano que marcou a minha vida. Ele sempre incentivava muito os seusalunos a continuar os estudos e nos acompanhou até o 3º ano. Seu nome é Fábio Josué.

Depois fui morar na casa da família fantástica da minha amiga Elâne e comecei atrabalhar como auxiliar de classe nessa escola que tanto sonhava ser professora. Em 2002,voltei para casa da pró Lygia e comecei a lecionar na 3ª série do ensino fundamental.

Sonho realizado! Quanta alegria! Porém os empecilhos começaram a surgir, pois ospais dos alunos não acreditavam que eu seria capaz de conduzir aquela turma, já que no anoanterior eu era auxiliar de classe do maternal. A pró Lygia sabia o que estava fazendo, poissempre acompanhou meus estudos, sempre me incentivava e sabia que eu era capaz. Conti-nuei e desenvolvi bem o meu trabalho, no final do ano fui elogiada pelos próprios pais.Quando essa turma concluiu a 4ª série, fui convidada para ser madrinha de formatura. Con-tinuei ensinando na 3ª série durante cinco anos, sempre tendo um bom relacionamento comos meus pequenos. Eles gostavam tanto de mim que faziam a maior propaganda da próDinha, como carinhosamente me chamavam.

Mesmo trabalhando, na medida do possível, fazia leituras extras para o vestibular. Em2004, tentei meu primeiro vestibular e não passei. Fiz um ano de cursinho, mas o tempo nãoera suficiente para me dedicar. Tentei novamente em 2005 e 2006, também sem sucesso.Porém não desisti. Nesse último ano conheci Gilvânio, começamos a namorar. Ele fazia o 3ºano do ensino médio e combinamos estudar juntos nos fins de semana. Sempre tentei vestibu-lar para Letras Vernáculas na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), em Santo Antônio deJesus, pois sempre tive afinidade com Português. Mas meu maior sonho era fazer Psicologia.Como era um curso que só existia em cidade grande, eu achava um tanto quanto difícilconseguir; além de não gostar de lugares grandes, não tinha condições de me manter lá.

Quando a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) nasceu, trazendopara Santo Antônio de Jesus o curso de Psicologia, meu sonho renasceu, apesar de ter muitomedo de encarar o vestibular numa universidade federal. Então resolvi fazer o vestibular daUFRB e também na UNEB para Letras, juntamente com o meu namorado, que havia decidi-do também fazer Letras por gostar muito da literatura brasileira.

Quanta alegria! Passei na federal e nós dois passamos na UNEB. Presente triplo!Valeu a pena!

Em 2007, nova etapa, novos sonhos, mudanças, outros obstáculos: perdi meu empre-go, pois não dava para conciliar trabalho e estudo. Deixei minhas amorosas crianças e maisuma vez a pró Lygia apoiou-me, sabia que eu faria falta naquele ambiente, mas deu-me todaforça necessária e disse: “vá em busca de seus sonhos”.

E agora, como ficaria minha vida? Como continuar estudando sem emprego, semajuda financeira da família, pois ela não tem condições de me ajudar? Inscrevi-me noPrograma Conexões de Saberes e fui contemplada. Estou super feliz, terei um ano de bolsade estudos, vou poder permanecer aqui e incentivar outros jovens. Os anos seguintes? Não

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sei o que irá acontecer. Quero continuar estudando. Alguns sonhos já foram realizados,outros estão a caminho.

Não vou desistir! Meus pais continuam lá no campo fazendo as mesmas atividades desempre e eu estou aqui a lutar. Sou a única filha que está numa universidade e tenho aesperança que meus três irmãos menores cheguem onde estou e que milhares de outraspessoas também não parem no meio do caminho, pois tudo é possível para aqueles quecrêem e não desistem.

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50 Caminhadas de universitários de origem popular

Sou de uma família simples e humilde toda oriunda do interior (zona rural) da Bahia. Meupai, Cornélio, nasceu e cresceu no povoado conhecido como fazenda das Corocas, em EntreRios, onde aprendeu desde muito cedo a lidar com a lavoura. Não teve tempo de ir à escola,apesar de seu maior desejo ser aprender a ler: só aprendeu a assinar o nome e fazer contas.

Já a minha mãe, Edileuza, nasceu em Itanagra e cresceu em Araçás, localidade próxima aEntre Rios, onde estudou até a 6ª série do ginásio. Sempre fez pequenos bicos para ajudar nasdespesas de casa, com uma família grande (minha avó teve dezenove filhos). Ela fazia cabelo (aferro), unhas, lavava roupa de ganho (para fora), fazia faxina, vendia na feira... tudo para ajudar.

Surgiu em Araçás uma empresa de construção onde meu pai trabalhava como ajudan-te. O destino fez com que minha mãe fosse lavar a roupa desses rapazes, então numa dessasentregas de trouxa de roupas Edileuza conheceu Cornélio. Começaram a namorar e poucotempo depois ela ficou grávida.

Minha mãe passou uns dias na casa de uma tia, Leli, até o a época do meu nascimento.Após um fim de semana com muitas dores, na manhã da segunda-feira, 12 de novembro de1984, na maternidade Ticila Balbino, nasceu Eliana Souza dos Santos. Como a vida nointerior não é fácil, após esse momento lindo que foi o meu nascimento “painho e mainha”resolveram se mudar para Salvador, para assim eu ter um futuro melhor do que o deles.

Como começar a vida numa nova cidade? A primeira moradia deles foi uma casa delona preta numa invasão denominada Bate Coração, no bairro de Paripe. Nessa época elespossuíam as roupas, um fogareiro de uma boca, uma cama de campanha, dois pratos, doistalheres, dois copos e a “cara e a coragem”. Como era mês de junho e fazia muito frio, pelaprimeira vez minha mãe se desligou de mim e eu fiquei na casa de tia Leli. Ela arrumou umtrabalho como doméstica e meu pai de ajudante de caminhoneiro. Passaram-se quinze diasneste barraco até conseguir comprar um quarto-e-sala de taipa no mesmo lugar.

A vida começou a se ajeitar: eu ficava na casa de tia Leli com os meus primos AntonioMarcos e Patrícia e meu padrinho Manuel. Nos fins de semana ia ver meus pais, até que, depoisde quase três anos nessa toada, mudamos para uma casa maior, já com mainha grávida. Eu jáfreqüentava uma banca - que equivale a aulas de reforço escolar, mesmo não tendo aindacomeçado a estudar - que a vizinha dava, pois era muito “arteira” e só ficava quieta indo paralá. No dia 17 de março de 1989 nasceu meu irmão Jamerson e, como eu era a “princesinha dacasa”, tudo mudou: tive de aprender a dividir a atenção, o amor e o carinho de todos.

Eliana Souza dos Santos*

* Graduanda em Museologia pela UFRB.

Minha trajetória de vida

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Como aos quatro anos eu já era esperta o bastante, meus pais me puseram na EscolinhaTia Liliane, no bairro da Plataforma, porque com o nascimento do meu irmão meu pairesolveu mudar para um lugar melhor.

Estudei em outra escola até a alfabetização, o Jardim de Cristo. Um fato interessantefoi que aos seis anos (louca para ler tudo e qualquer frase) eu saí com minha mãe para fazercompras, mas só que quando a gente saía ela dizia: “Vou comprar isso, não tenho dinheiropra comprar nem água, então não me peça nada porque não vou te dar e não faz escândalo”.Aí eu ia toda feliz e não pedia nem para fazer xixi, só que desta vez foi diferente. Paramos emfrente a uma banca de jornais e vi uma revista em quadrinhos do Chico Bento. Fiqueialucinada, mainha disse que me daria só quando eu soubesse ler, pois eu soletrava, masinsisti tanto e ela comprou. Eu aprendi a ler em três dias: dormia, acordava, comia e tomavabanho com a revista do lado.

Me alfabetizei naquele ano. Meu pai resolveu mudar de bairro de novo e fomos morarnuma ocupação com o nome de Nova Constituinte, no bairro de Periperi, comunidadepopular que não possuía saneamento básico nem água encanada. Fui matriculada na EscolaComunitária Nova Constituinte, que ficava a quase meia hora de casa. Quando choviavirava um verdadeiro lamaçal e eu tinha de colocar meus pés num saco plástico; ao chegarlá a professora lavava os meus pés. No ano seguinte a escola fechou e fui transferida para aEscola Cleto Araponga, onde estudei até a 4ª série e que ficava a quase uma hora e meia à péda minha casa. Como não gosto de perder aulas, ia debaixo de chuva ou sol.

Depois desse sofrimento morei na casa de minha madrinha Zélia por quase novemeses, por que Periperi era perigoso: fomos assaltados em casa, minha mãe ficou com medoe minhas tias resolveram que era melhor morarmos em Águas Claras, perto dos nossosparentes. Nessa época cursava a 5ª série no Colégio Renan Baleeiro, que é literalmente emfrente a casa de minha tia. Meu pai comprou um terreno no final de linha de ônibus deÁguas Claras, construiu nossa casa e logo após descobriu que ele fora picado pelo barbeiroe tinha o Mal de Chagas.

Meu pai fez o tratamento no Hospital das Clínicas, e como eu morava próximo doponto final da linha de ônibus do bairro, todo fim de semana eu ia visitá-lo. Painho passoua tomar remédios controlados, alguns eram doados e outros comprados.

Terminei o ensino fundamental e parti para o ensino médio. No sorteio de vagas, a escolaque caiu para eu estudar foi o Colégio Estadual da Bahia – unidade central. Surgiu a preocu-pação de como iria estudar, pois teria de pagar ônibus, e, com meu pai doente, a situaçãoestava crítica. Então comecei a vender doces em casa e brigadeiros na escola, a fazer pesquisaescolar manuscrita (acabei com tendinite)... tudo para ter o dinheiro do transporte.

Em 2001 ocorreu uma greve escolar enorme e eu, pela primeira vez, perdi o ano letivo.Tive de repetir tudo, fiquei triste mas meus pais me apoiaram. Estava no 3º ano.

Quando estava no 3º ano, em 2003, aconteceu algo inesperado: meu pai sofreu umderrame em 19 de julho, sobreviveu até 7 de agosto e faleceu nos braços de minha mãe. Atristeza abalou a nossa família, agora resumida a mainha, eu e Jamerson.

Minha maior lembrança dele era quando dizia: “como ovo com farinha mas eu formoa Eliana, ela vai ser doutora”. Tudo que ele queria para si depositou em mim, tendo orgulhoda minha capacidade.

Por isso que desde então me esforço para ter uma graduação no curso que adoro,Museologia. Fiz vestibular em outras instituições particulares e públicas, fui aprovada em

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52 Caminhadas de universitários de origem popular

particulares, mas como não tenho condições de pagar nem era o que eu queria, nunca fizmatrícula.

Ao saber da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), resolvi me inscre-ver. Fui aprovada, só que surgiu um grande problema: não tenho parentes em Cachoeira eisso dificultaria cursar Museologia. Mas como existe Deus, surgiram dois anjos na minhavida: Agnaíldes e Vera, que me acolheram em sua casa sem me conhecer direito.

Saí de casa para estudar, deixando meu quarto, minha família, minha vida, mas estávalendo a pena. Estou em Cachoeira e, quando retornar, estarei realizada.

Com a minha graduação desejo atuar na área de pesquisa e documentação de umainstituição, atrás do reconhecimento profissional. Desejo fazer pós-graduação em Históriada África (um assunto que tenho curiosidade em conhecer profundamente), quero fazercursos de especialização na área de restauro.

Tenho de agradecer a Deus e a todos que me ajudaram a ser a primeira pessoa da famíliaa ser universitária, em especial a tia Leli, tia Esperança, tia Didi, tia Regina, tio Chico, tio João,tio Antonio, tio Pedro, tio José, minhas madrinhas Ene e Zélia, meu padrinho Manuel, aosmeus primos e primas, a seu Luiz e dona Raimunda (pelos conselhos), Nilza e Helena (por meajudarem a segurar a barra e a chorar, quando precisava), a Jamerson, Gilmar, Irani e a todosque sabem o quanto eu os amo.

Eu dedico tudo o que eu fiz, faço e vou fazer a painho (in memorian) e a mainha.Também não posso esquecer do meu maior tesouro, que é Tamires, minha afilhada. Minhavida simplesmente se resume ao modo em que fui criada, humildemente, e como voutransformá-la após minha participação no Programa Conexões de Saberes e na UFRB.

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia 53

Logo quando comecei a freqüentar a escola, com uns seis anos de idade, numa comu-nidade da zona rural de Maragogipe-BA, onde morava com meus pais e mais três irmãos,percebi que estava me deparando com algo totalmente novo: a leitura. Ficava ansioso paraaprender a ler e assim poder mostrar para os meus pais a novidade que já fazia parte daminha vida. Foi tudo tão rápido que, quando me dei conta, já estava terminando a quartasérie do ensino fundamental e no ano seguinte iria estudar a quinta. Daí que surgiu um novodesafio. Teria que me deslocar de onde morava, na zona rural, para a zona urbana da cidade,pois só lá tinha escolas que ofereciam cursos a partir desta série.

Nossa! Lembro-me como se fosse hoje. No início foi muito difícil. Tinha que ir nacarroceria de um caminhão com meus irmãos e mais uma turma de pessoas. Às vezes, estequebrava ou a prefeitura atrasava o salário do motorista, e assim o transporte faltava, entãotinha que andar durante uma hora até a escola. Minha mãe, Maria, ficava muito preocupada,pois me achava muito ingênuo em comparação ao pessoal da cidade, que eles poderiamfazer algo de mau comigo. Com exceção das brincadeiras discriminatórias, por eu ser dazona rural, não havia nada de tão preocupante assim.

Na época em que estudava, nas horas vagas, ajudava meus pais no trabalho da lavoura;nunca gostei desse tipo de trabalho, mas era necessário praticar. Quando terminei a primeirasérie do ensino médio, fui chamado pela diretoria da escola onde estudava para trabalharcomo conferente de matrícula, pelo meu boletim acadêmico ser um dos melhores da sala.Oficialmente, era o meu primeiro trabalho remunerado; trabalhei durante um mês e meio e foiuma experiência muito significativa para o meu desenvolvimento pessoal e profissional.

Em 2004, com dezoito anos, quando estava perto de concluir o ensino médio, opensamento sobre o futuro não saía de minha mente. Era um período de ansiedades, dúvidase deduções sobre a minha vida após o término do período escolar, mas de uma coisa eu tinhacerteza: queria continuar estudando.

Minha irmã Fernanda, com dezenove anos, estava na expectativa de fazer o vestibularpara estudar numa faculdade particular, o Instituto Adventista de Educação do Nordeste(IAENE); eu não tinha idéia de como ela pagaria as mensalidades, pois o seu trabalho nãopagava o suficiente e nossos pais não tinham condições de ajudá-la. Aliás, eles e os morado-res da comunidade não tinham noção alguma sobre universidade. Ela acabou passandopara o curso de Pedagogia e deu um jeito de pagar. Eu, ao concluir o ensino médio, vimmorar com ela numa casa alugada no centro de Maragogipe. Então enquanto ela trabalhava

Emanuel Silva Andrade*

Trajetória da conquista de um sonho

* Graduando em Museologia pela UFRB.

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e estudava, eu trabalhava como orientador pedagógico em um projeto na área de alfabetizaçãode jovens e adultos. Era muito legal, visitava à noite as turmas de alunos, fazia reuniões com osprofessores e às vezes dava aula para os educandos. Foi uma experiência inesquecível pra mim.

No ano seguinte, minha irmã não teve mais condições de pagar as mensalidades dafaculdade. Após uma negociação com o IAENE, onde estudava, ela conseguiu um ótimodesconto, mas teria que trabalhar nesta instituição. Consequentemente ela largou o trabalhoanterior, e daí surgiu uma chance de trabalho pra mim, que seria no lugar dela, novamente naárea de educação, mas dessa vez, para trabalhar com alunos do ensino fundamental em umprojeto em que coordenava trinta professores. Foi nesse período, início de 2006, que um cursopreparatório para vestibulares e concursos públicos vinculado a uma nova universidade quetinha sido criada recentemente, a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB),passou a fazer parte da minha vida. Senti que era uma ótima oportunidade para me ajudar aingressar numa instituição de ensino superior, assim como minha irmã já conseguira, aindamais sendo pública, em que não me preocuparia com mensalidades. Seria um sonho pra mim.

Quando o curso preparatório começou, Fernanda já morava em Cachoeira, onde estu-dava e trabalhava, e eu voltei para a casa de meus pais na zona rural, pois não tinha comopagar o aluguel sozinho. Saía de casa para trabalhar às seis horas da manhã e chegava àsonze da noite, só depois do cursinho. Era uma rotina muito cansativa, mas sabia o queestava fazendo e tinha certeza que no final iria valer a pena.

No meio do ano a UFRB abriu o seu primeiro vestibular. Eu não perdi a oportunidadee me inscrevi para o curso de Comunicação, mas no dia da prova, logo na primeira fase,fiquei doente e não fui fazê-la; isso me deixou muito triste e minha família também, poissabia o quanto era importante para mim. Mesmo assim, não desanimei, continuei no cursi-nho e, no final do ano, novamente me inscrevi no vestibular do primeiro semestre de 2007,agora para o curso de Museologia, algo que nunca tinha pensado antes, apesar de sempre teradmirado uma instituição como um Museu.

Dessa não houve imprevistos. Fiz o vestibular e fiquei na expectativa do resultado.Achei que tinha ido mal, pois tive dificuldades com os cálculos na prova de matemática e,no momento, fiquei muito nervoso, perdi tempo. Mas estava confiante, pois fiquei felizcom o meu desempenho na área de Ciências Humanas. Quando saiu o resultado e vi queestava aprovado, foi uma felicidade única, não só para mim e minha família, mas tambémpara o pessoal da comunidade, pois lá praticamente ninguém tinha conseguido ingressarnuma universidade pública.

Depois disso, minha vida mudou totalmente. Mudei para Cachoeira, que é um poucodistante de Maragogipe, pois o curso é lá. Passei a morar numa casa alugada com algunscolegas. O primeiro mês de aula foi de adaptação, tanto com o curso quanto com a cidade, elogo surgiu um sério problema: as despesas eram muitas, meus pais não tinham como meajudar e minhas economias do trabalho já estavam no fim. Foi exatamente neste tumultuadomomento que surgiu a inscrição para o Programa Conexões de Saberes. Não perdi a chance deme inscrever, pois achei muito interessante a proposta e também seria uma grande ajudafinanceira para continuar tranqüilo no curso. Para a minha felicidade, fui selecionado e hoje,com 21 anos, estou no primeiro semestre e com grandes expectativas para o futuro. Conscien-te de que a universidade é um mundo de diferenças em que prevalece o conhecimento, quepara mim deve ser transmitido sempre como meio de transformação social para mudar essadura realidade que ainda oprime muitos jovens a inserirem numa universidade.

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Minha história é muito simples. Como em toda família de classe popular, passei porvárias dificuldades. Meus pais sempre lutaram para criar a mim e meus dois irmãos, além desempre nos incentivarem a estudar. Meu pai é pedreiro e minha mãe dona-de-casa.

Estudei todo o ensino fundamental e médio em escolas públicas, sempre sonhei emfazer vestibular, concluí meus estudos mas desanimei um pouco. Trabalhei temporariamen-te numa loja de roupas da minha cidade, Cruz das Almas. Em 2005 me casei, e encontrei nomeu esposo a força e o empurrão que precisava para despertar e voltar aos estudos. A convitede um primo, passei a estudar na biblioteca da cidade todas as tardes; cada semana lia umlivro e ali mesmo, com alguns colegas, tirava minhas dúvidas. Muitas vezes pensei emdesistir, mas Deus sempre colocava à minha frente pessoas que me incentivavam, assimcontinuei a estudar.

Ao saber que a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), seria implanta-da na minha cidade e em cidades próximas, me animei bastante. Como não me interessavapelos cursos oferecidos em Cruz das Almas, me inscrevi para Cachoeira, e hoje - com muitoorgulho - curso Museologia, que antes era um curso desconhecido para mim. Era muitodifícil explicar para as pessoas do que tratava o curso, alguns diziam: “Museologia? Ah,você vai cuidar de coisas velhas”. E eu tentava, mesmo sem ter muito domínio sobre o queestava falando (porque ainda estava no primeiro semestre), explicar que além de preservara memória, iria cuidar do nosso patrimônio histórico.

Apesar das dificuldades enfrentadas na sala de aula, principalmente porque sou muitotímida e tinha que apresentar seminários e debater assuntos em sala de aula, estar na facul-dade tornou-se algo maravilhoso, muito interessante e encantador.

Mas apesar de todo encanto e interesse, tive que encarar a realidade das dificuldadesfinanceiras de ter de cursar uma faculdade algo distante de minha casa, mesmo pública.Pagar o transporte e tirar várias fotocópias por semana não é fácil, ainda mais para quem nãotrabalha, como eu. Quando soube do Programa Conexões de Saberes me interessei, meinscrevi, e quando descobri que tinha sido escolhida fiquei muito feliz e encontrei maisforças para continuar.

Érica Paixão da Silva*

Texto autobiográfico

* Graduanda em Museologia pela UFRB.

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56 Caminhadas de universitários de origem popular

Em busca de conhecimentoMeu nome é Evanilda dos Santos. Nasci em Cachoeira-BA, no dia 6 de fevereiro de

1982. Sou da zona rural de Conceição da Feira e filha do encanador Ezequiel dos Santos eda doméstica Maria do Carmo dos Santos. Tenho quatorze irmãos, entre os três casamentosde meu pai. Hoje moro apenas com meu pai, minha madrasta Carolina e meu irmão Willys.

Quando eu tinha dois anos de idade meus pais se separaram, então minha mãe foiembora levando consigo duas irmãs: Elenilda e a caçula Elizabeth, deixando seis filhospara meu pai criar. Ele sempre foi um homem batalhador e sua infância foi muito sofrida.Apesar de tudo sempre foi forte e nos criou da melhor forma possível.

Foi uma fase bastante difícil para mim e meus irmãos, pois vimos nossa mãe ir emborae não podíamos fazer nada para impedir, apenas choramos pedindo que ela não fosse.Ficávamos sozinhos em casa e meus irmãos mais velhos, Raimundo e Ecia, tomavam contados demais. Meu pai saía bem cedo para trabalhar, chegava muito tarde e, além do mais,nesse período ele bebia muito.

Depois de alguns anos meu pai casou-se com Carolina, que consigo, trouxe três filhos:Uberlândio, Wilsa Carla e Willys. Para nós, Carolina não se tornou apenas uma madrasta,mais sim nossa mãe, pois ajudou meu pai a nos criar e nos tornou pessoas de bem. Ainda nãofreqüentávamos a escola, e logo que ela chegou nos matriculou. No primário, estudei naescola Canteiro da Alegria que ficava bem próxima de minha casa, e depois na escola JesséBittencourt Dalto, que ficava um pouco mais distante; para mim era maravilhoso freqüentara escola.

Em 1994, comecei a estudar o ensino fundamental e tive muita força de vontade, poisa escola Padre Alexandre de Gusmão, que eu freqüentava, era muito longe e meu pai nãotinha como para pagar o transporte; assim, tive que ir a pé, percorrendo três quilômetrostodos os dias. Mas apesar de ter andado vários quilômetros durante cinco anos, enfrentando

Evanilda dos Santos*

Texto autobiográfico

Feliz o homem que acha sabedoria, ohomem que adquire conhecimento: porquemelhor é o lucro que ela dá do que o daprata, e melhor a sua renda do que o ouromais fino. Provérbio 3. 13-14

* Graduanda em Museologia pela UFRB.

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períodos de chuva e sol, eu confesso que foram os melhores anos que estudei e que mais mediverti. Encontrei pessoas maravilhosas, principalmente minhas amigas Dorlene e Adriana,que estiveram sempre comigo durante todos esses anos. Depois de concluir o ensino funda-mental, fui estudar no centro da cidade, no Colégio Yêda Barradas Carneiro, em 1999,enquanto que Dorlene e Adriana foram para outro colégio. Apesar de termos tomado rumosdiferentes, ainda matemos algum contato e, quando nos encontramos, nos divertimos bas-tante, lembrando dos velhos tempos.

No primeiro ano do ensino médio, em meio a tantas dificuldades financeiras, meu paiteve que pagar transporte, pois não daria para ir à pé. Já nos anos seguintes, a prefeituracolocou ônibus à disposição dos alunos. Assim, foi maravilhoso concluir meu ensino mé-dio, sem me preocupar com esse problema. Nesse colégio encontrei Ariana e Clésio e nostornamos bons amigos, desde o primeiro dia de aula nos identificamos muito e sempreestávamos juntos. Hoje estamos distantes, mas sempre mantemos contato.

Em 2001 concluí o ensino médio. Desde então, passei seis anos sem nenhuma ocupa-ção profissional, apenas trabalhei com reforço escolar para crianças da minha comunidadee, nos fins de semana, me reunia com meus irmãos Willys e Ecilene e com minha amigaJoseane e com outros colegas para ensaiarmos no nosso grupo de dança, “Blit Dance”.

Resolvi estudar para o vestibular, meu grande sonho ainda é fazer Letras com habili-tação em Inglês, mas devido às condições financeiras, não tive nenhuma oportunidade defazer. Eu sempre me perguntava: será que vou conseguir fazer parte de uma universidade? Equando eu consegui o dinheiro para pagar o vestibular, escolhi a Universidade Federal doRecôncavo da Bahia (UFRB), mesmo não tendo o curso de Inglês que eu tanto queria, poiso custo de manutenção seria menor, principalmente no que diz respeito a passagem, pois auniversidade fica mais próxima de minha casa.

Prestei vestibular pela primeira vez e escolhi Museologia. Fui aprovada, confesso queestou adorando e pretendo concluí-lo; vejo que as portas estão se abrindo e quero aprovei-tar cada momento da melhor forma possível, inclusive para manter aceso aquele sonho, defazer Letras.

Estou muito feliz por ter conseguido entrar para uma universidade e, mesmo enfren-tando problemas financeiros, sei que vou conseguir vencer, pois Deus tem me dado muitasprovas e hoje mais uma porta foi aberta. Agora faço parte do Programa Conexões de Saberes,onde pretendo me dedicar e desempenhar um bom trabalho junto às comunidades, adqui-rindo e passando conhecimentos.

Agradeço a Deus e à minha família por tudo que tem acontecido comigo, além de meunamorado, Neto, que amo muito e tem me ajudado bastante.

Hoje, diante de todos os fatos ocorreram em minha vida, carrego sempre comigo aseguinte frase:

Lutar sempre, vencer às vezes, desistir jamais. Pensamento Popular

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58 Caminhadas de universitários de origem popular

O passado pra mim é uma cortina de vidro. Estou feliz e orgulhosa, pois posso observá-lo para caminhar para o futuro. Espero, através da minha história de vida, nutrir esperanças,estimular e quem sabe até desenterrar os sonhos daqueles que pensam que universidade éum sonho inatingível.

Nasci em 18 de abril de 1981, em Imperatriz, no Maranhão. Quando criança, adoravafabricar meus próprios brinquedos com meu irmão. Minha mãe e meu pai passavam o diatrabalhando na roça e na casa de farinha, fazendo fécula de mandioca. E nós passávamos odia ajudando nossos pais nas tarefas e fazendo travessuras. Não posso dizer que fui umacriança completamente feliz, pois me faltava algo muito especial e desejado: estudar! O quefoi muito difícil, devido ao lugar onde a família morava, na zona rural, muito distante dacidade, onde ficava a escola. Por isso essa felicidade só veio se concretizar aos nove anos,quando minha mãe conseguiu a casa de minha avó para ficarmos.

Foi então que pude ir à escola e estudar, como as outras crianças. Um mundo novo noqual aos poucos fui me inserindo. Confesso que no começo fui um “bicho do mato” tentan-do adaptar-se num mundo completamente diferente, porém muito fascinante, que fez demim uma aluna muito dedicada.

Aos quatorze anos, depois de ter cursado a 6ª série, tive que parar os estudos, por faltade lugar para morar, e voltei para o campo. Com 15 anos, acontecimentos marcantes muda-ram minha vida: casei e vim morar aqui na Bahia, com promessas de emprego para meuesposo. Aqui, fomos morar com meus sogros, na zona rural de Sapeaçu, onde passamosmomentos difíceis, ficando dois anos desempregados.

Quanto aos meus estudos, foram ficando um sonho cada vez mais distante. Tenteiinúmeras vezes recomeçá-lo, mas meu esposo não concordava com tal idéia, o que tornou-se motivo de desavenças durante alguns anos.

Com muita dificuldade, terminei o ensino fundamental fazendo Comissão Permanen-te de Avaliação (CPA), no Colégio Estadual Olavo Galvão, em Santo Antonio de Jesus. OCPA marcou a data da prova, eu peguei a relação dos assuntos e só voltei lá para fazê-la. Foiuma experiência com frutos de má qualidade, pois se com os professores explicando na salade aula torna-se difícil estudar, imagine sem eles, como foi meu caso.

Em 1999 nasceu minha filha Bianca, que hoje é meu incentivo para lutar. Foi e émaravilhoso dedicar-me a ser mãe. Apesar de toda essa euforia, eu queria ser mais que isso.

Fabiana Aguiar Fonseca*

Vários obstáculos, novas conquistas...

* Graduanda em Enfermagem pela UFRB.

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E o sonho de continuar meus estudos permanecia vivo em mim, nunca deixei de lutar pelodireito de continuá-lo.

Porém, nessas várias batalhas, só obtinha fracassos, lágrimas e problemas. Só conseguicontinuar quando minha filha chegou à época de ir para escolinha. E depois de um “longoacordo”, pude estudar num colégio regular, a Escola Estadual Doutor Eliel da Silva Martins.Foi para mim uma grande vitória e também um desafio, pois tive que me desdobrar paraacompanhar os assuntos, devido à deficiência do curso CPA. Mas venci com muita dedicaçãoe prazer. E com tudo isso adquiri frutos bons, um deles foi meu boletim escolar, que foi meupassaporte nas inscrições dos vestibulares, sendo sempre isenta da taxa de inscrição.

Ao concluir o terceiro ano, ainda sem muitas perspectivas de estudos, fui incentivadapelos meus professores, me inscrevi para o vestibular da Universidade Federal da Bahia(UFBA) e prestei para Agronomia. Para minha surpresa, passei para segunda fase, porém nãofui aprovada na lista final - não foi desta vez.

Com essa experiência e conscientização dos professores e pessoas de minha família,foi brotando dentro de mim a idéia de que um diploma de 2º grau não seria suficiente, queainda existia muito a ser conquistado e que eu era capaz. Tais idéias, apesar de simples paraalguns, pra mim foram revolucionárias. E mais uma vez, estava eu diante de uma grandebatalha. Imaginei que não existem vitórias sem lutas... garimpei pedras preciosas nas ruínasdos meus conflitos e nada conseguiu arrancar de mim esse tão desejado sonho.

Com ajuda da minha mãe, que sempre acreditou em mim, pude fazer um cursinho pré-vestibular em 2006 em Cruz das Almas, de domingo a domingo. Com essa oportunidade,realmente conheci de verdade a física, a química e a matemática que pensava ter conhecido.Tudo parecia “grego”, e às vezes batia o desespero, mas eu estava ali com um objetivo e paraisso tive que “traduzi-las” e absorver tudo. Torrei muito a paciência dos meus professores,muitas madrugadas foram minhas companheiras.

E com a concretização da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) e asoportunidades por ela proporcionadas, pude então decidir o que realmente queria fazer.Acabei me apaixonando pela área de Enfermagem. E no segundo vestibular para este cursona UFRB, apesar do nervosismo, conseguir passar para 2ª fase.

Então, decidi dar mais de mim, estudando até dezesseis horas por dia e, felizmente,conquistei a minha tão sonhada vitória. Ufa!

Não era mais um sonho, meu nome constava na lista dos classificados para enferma-gem da UFRB. E também para História na Universidade Estadual da Bahia (UNEB). O saborda conquista foi duplamente maravilhoso, uma felicidade inigualável e inexplicável. Avontade de gritar ao vento invadiu o meu ser, mas me faltaram forças e palavras. Só conse-guia chorar muito.

A partir de então, comecei a organizar os meus documentos para a matrícula, a ansie-dade tomou conta de mim. Não via a hora de começar a estudar.

Chegado o dia tão esperado da matrícula, numa manhã de chuva, vi meu sonho eminha alegria tornarem pesadelo, minha matrícula não poderia ser realizada devido a al-guns problemas na documentação escolar (mais um fruto do CPA). Confesso que pensavaque tudo estava indo por água abaixo, mas diante de todo esse desespero, permaneci sóbria,a fé me reergueu e fui à luta para ter o direito de poder realizar minha matrícula. Foram duassemanas de sofrimento e angústia, mas finalmente consegui regularizar a documentação epude enfim ingressar na universidade. Ufa, mais uma vez!

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60 Caminhadas de universitários de origem popular

Novos horizontes surgiram depois de tantas barreiras e meus sonhos renasceram apóslágrimas derramadas. Apesar do cansaço, pois moro longe da universidade, tenho que ir evir todos os dias de Sapeaçu. Estou gostando muito dessa nova etapa.

Para complementar minha alegria, consegui a bolsa do Programa Conexões de Sabe-res, que está sendo muito importante para manter-me, principalmente com relação aos trans-portes. Além de proporcionar-me oportunidades para que eu possa exercer minha funçãosocial como cidadã universitária.

Confesso que ainda tenho grandes desafios para enfrentar, obstáculos para superar ecrises para vencer, pois dar conta de todas as responsabilidades (estudo, Conexões de Sabe-res, filha, esposo e casa), não é fácil. Mas a coragem é o combustível que mantém a chamaacesa dos meus sonhos e o que me torna autora da minha própria história.

E para isso, “precisamos apenas entender que não existem pessoas fracassadas, o queexiste são pessoas que lutam pelos seus sonhos ou desistem deles. Por isso, nunca desistados seus sonhos!” Augusto Curi.

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PaisAcho que devo começar a contar um pouco da minha história de vida, por meus pais,

a quem devo uma gratidão eterna, mesmo com todos os problemas, percalços, indiferençase brigas.

Miguel Araújo Oliveira, nascido em Canudos, sertão baiano, como a maioria dascrianças nordestinas não teve a infância que uma criança merece, e viu que o único caminhopara a sobrevivência era pelo trabalho. Tendo que escolher entre trabalhar e estudar, parouna 4ª série do ensino fundamental.

Assim como a vida deixa marcas, ela traz presentes, e a grande dádiva do meu pai é aminha mãe, mesmo sem ele demonstrar isso (ou talvez nem saber). Dalva Caetano CastroOliveira, nascida em Jeremoabo e criada em Canudos, é uma mulher guerreira, de fibra, quemodificou sua vida a favor dos filhos, mas nunca desistiu de realizar seus sonhos, como em2001, o ano em que concluiu o ensino médio.

A vida de um sertanejo poderia se resumir na fuga da seca, da pobreza e a busca de uma vida melhor. Ela foi morar em Feira de Santana e ele foi onde o trabalho o levava, tudomuito rápido. Se conheceram, namoraram e se casaram, concebendo quatro filhos: Giovanne,George, Geórgia e Geoston.

EuSou Geoston Caetano Castro Oliveira, mas minha família e amigos de infância me

chamam de “Nenê”, e outros me chamam de “Geo”, já que para um cara de quase dois metrosde altura não fica bem chamar de “Nenê”. Tenho poucos amigos, mas os que tenho sãopessoas as quais admiro muito. Não sei ser espontâneo no começo, só quem é meu amigosabe como eu sou, tímido, sincero e adoro admirar as coisas à minha volta.

Sou um cara legal, tenho meus defeitos mas sei ser honesto com aquilo que faço ousinto, não sei enganar as pessoas nem mentir. Meus amigos sempre falam que muita gente jáquis se aproximar de mim, mas não o fazem. Não sei porquê, talvez um dia eu descubra.

Na escolaA primeira escola em que estudei se chamava Talento Infantil, eu tinha sete anos.

Lembro bem desse dia porque não chorei, não sorri, nem fiquei alegre ou triste, simplesmente

Geoston Caetano Castro Oliveira*

Texto autobiográfico

* Graduando em Comunicação Social - Jornalismo pela UFRB.

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curioso: uma mistura de medo com admiração, vendo aquele mundo todo colorido, comfiguras e desenhos na parede que eu não sabia o significado, que só depois vim saber queeram letras e números. Nessa escola estudei da alfabetização à 1º série e foram anos surpre-endentes, acho que o despertar pelo estudo não poderia ter sido em um lugar melhor.

Mas a realidade da minha família era outra. Meus pais não tinham como me sustentarem uma escola particular, então fui para o Colégio Estadual Dr. Wilson da Costa Falcão.Sorte minha que dois amigos foram comigo para o mesmo colégio, cuja integração com osnovos colegas foi mais fácil, apesar de ser muito tímido.

O “Wilson”, como chamávamos, foi palco da minha infância e começo da adolescên-cia. Todas as alegrias, tristezas - enfim – as emoções e sensações da juventude ocorreram nopátio daquele colégio. Lembro da primeira vez que pensei na universidade, quando a pro-fessora de História Maria Araújo perguntou, logo no primeiro dia de aula, pra que áreafaríamos o vestibular e qual seria o curso escolhido. Foi quando se iniciou toda a vontadede fazer um curso superior. De lá até o primeiro vestibular foram vários cursos em que penseiem Medicina Veterinária, Biologia, História, Educação Física, Direito, Medicina e Odonto-logia, mas só o curso mudava, porque a vontade de estudar na universidade só crescia.

Estudar nunca foi problema pra mim. Mas em relação a aprender o conteúdo, o proble-ma se encontrava em como obtê-lo. Como no “Wilson” não havia ensino médio, fui para aEscola Estadual Helena Assis Suzart, que não era o colégio que eu queria, mas o mais pertoda minha casa. Passei um ano reclamando com minha mãe que o ensino era muito fraco,porque o colégio era recém-inaugurado. No 2º ano do ensino médio fui para o Instituto deEducação Gastão Guimarães (IEGG), um colégio grande no centro da cidade, mas meuúnico interesse no colégio era o esporte, já que ele tinha fama neste setor.

O meu ensino médio foi muito complicado, pois o dinheiro do transporte, lanche efotocópia era curto, minha mãe às vezes me perguntava como eu conseguia passar a manhãtoda sem comer nada, acho que era a vontade de entrar para a universidade.

Pré-universidadeMe formei em 2002 e, logo em seguida, prestei vestibular para a Universidade Estadu-

al de Feira de Santana (UEFS) não consegui entrar porque zerei a prova de redação. Daípercebi que parte do que tinha aprendido não significava nada para o vestibular. Entreoutros problemas, não conseguia fazer um cursinho preparatório porque me preocupava emcomo pagar. Então o governo federal lançou o Universidade para Todos, um cursinho pré-vestibular, mas não fui aprovado no seu processo seletivo. Não desisti, e quinze dias depoisdas aulas começarem fui pedir à coordenadora que me deixasse assistir às aulas, e a respostadela foi positiva.

Fiz alguns vestibulares, só passei no quinto e, por sinal, foi a alegria e surpresa detodos, pois eu já trabalhava de manhã e fora aprovado no processo seletivo do Centro deEducação Tecnológica da Bahia (CETEB). Cursava à tarde, à noite ia para o pré-vestibulare estudava de madrugada até o sono e o cansaço me derrubarem. Tive êxito na UniversidadeFederal do Recôncavo da Bahia (UFRB), na Universidade Estadual da Bahia (UNEB) e naUEFS. Mas nesta, que era meu alvo principal, julguei que não teria condições de me manterao longo do curso e optei por não me inscrever.

Foram quatro anos de espera para ver a cena mais linda e perfeita, o olhar e o sorriso daminha mãe, algo que com palavras, sinais, gestos ou imagens é indescritível, algo que só eu sei.

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Universidade“Um mundo totalmente diferente do que pensamos”. Essa é a primeira impressão que

senti quando entrei na universidade, que como o próprio nome diz, é um universo deconhecimento e descoberta. Algo interessante de se ressaltar na UFRB é que existe umamistura de etnias, religiões, classes sociais e opiniões, algo que a diferencia das outrasuniversidades.

Optei por Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, depois de tantas dúvi-das. Descobri que quero seguir na área, mesmo sendo tímido, porque o curso é muitoabrangente. Escolhi Jornalismo mas quero me especializar no campo audiovisual, pois naBahia as universidades públicas só oferecem esta formação, além de Relações Internacio-nais ou Multimeios.

Existe um rótulo sobre o curso de Comunicação e acho que isso se reflete na sala, poisela é heterogênea, não é como na maioria das universidades em que grande parte dos alunosdo curso é oriunda de classe social mais abastada. O que me parece é que há uma separação nasala entre os alunos, em grupos formados, mas o clima é legal. Tento ser amigo de todos e, porincrível que pareça, as pessoas mas legais são aquelas que têm as mesmas dificuldades que eu!

Espero que o curso me dê a oportunidade de conseguir um emprego que me ajude alevar meus estudos adiante. Sei que quero seguir na vida acadêmica, talvez fazer mestradoe doutorado, e para isso terei que trabalhar e estudar como nunca, algo que já fez parte darotina de minha vida.

Com o projeto da Bolsa Clemente Mariane e o Programa Conexões de Saberes, possoficar um pouco mais tranqüilo e só me dedicar aos estudos e ao projeto e aumentar minhaexperiência profissional e humana, pois trabalhar com pessoas é uma forma de aprendizadomuito gratificante e o projeto está ainda começando, assim como a universidade. Mas façoprojeções de que será um sucesso.

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64 Caminhadas de universitários de origem popular

Chamo-me Jeovana Ribeiro de Jesus do Nascimento, tenho 20 anos, fui aprovada novestibular 2007 da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) no curso deMuseologia, em Cachoeira, no turno da manhã. Moro em Cruz das Almas e me deslocodiariamente para poder estudar.

Em 2005 me inscrevi no curso de Psicologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA)e não passei. Devido a pesquisas na internet, para me informar melhor sobre a área deatuação da Psicologia, tomei afinidade pelo curso e gostaria muito de ser psicóloga, mascomo não tinha conseguido passar nessa minha primeira tentativa, então resolvi mudar decurso, algo que não fugisse daquilo que eu tinha tido afinidade e que estivesse ao alcancedas minhas condições. Daí surgiu esse projeto da UFRB, e tomando conhecimento doscursos que estariam disponíveis fiz uma análise de cada um. Vi que teria o curso de Psico-logia na UFRB para Santo Antônio de Jesus, era o que eu desejava fazer, mas por questõesfinanceiras percebi que, com o transporte, os gastos seriam ainda maiores. Por mais que eugostasse de Psicologia, não poderia me comprometer a fazer esse curso, e, se eu passasse,não teria como me manter caso fosse morar lá.

Nós, estudantes, quando concluímos o ensino médio, desejamos prosseguir nos estu-dos fazendo algum curso superior. Muitas vezes por pressão dos pais que exigem, obrigame até mesmo escolhem os cursos que seus filhos devem fazer, e por outro lado os jovensvêem na faculdade uma forma de “independência”, ou seja, se ver livre pra tomar suaspróprias decisões. Muitos saem de casa pra morarem sozinhos, em repúblicas, alugam casas,etc; alguns conseguem arranjar um emprego e conciliar trabalho e estudo, e outros têm sua“independência” limitada, pois dependem de pensões dos seus pais para se manter.

Muitos jovens ficam iludidos com a faculdade, esse desejo de sair de casa, ter sualiberdade, festas, curtição: tudo é uma maravilha. Mas quando você está lá dentro a realida-de é outra, temos que ter responsabilidades, precisamos de muita atenção para termos umbom aproveitamento do curso. Eu mesma pensava em ir pra Salvador trabalhar e estudar lá,era meu sonho de consumo, mas eu vi que não teria condições, se eu fosse pra lá teria quemorar na casa de parentes, o que não é a mesma coisa que a minha casa e, mesmo trabalhan-do, as despesas seriam muitas.

Então nessa minha análise me interessei pelo curso de Museologia, que envolve His-tória da Arte, restaurações de patrimônios históricos, o estudo dos museus e a função que elevem a desempenhar na sociedade, as transformações, enfim, é algo novo pra mim e a princí-

Jeovana Ribeiro de Jesus do Nascimento*

Texto Autobiográfico

* Graduanda em Museologia pela UFRB,

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pio gostando muito, porém com dificuldades em algumas disciplinas, pois como falei étudo muito novo e a quantidade de assuntos é grande, principalmente para quem vem deuma escola pública e que não está acostumada com essa sobrecarga. Fica um pouco puxadoe além disso há algumas novas matérias que nunca tinha visto no ensino médio. Mas pelofato de Cachoeira ser próximo a minha cidade, resolvi investir e me inscrevi, só não tinhapensado como eu faria para me deslocar todos os dias. Fiz as provas da 1° fase não muitoconfiante em passar, mas tinha fé, então passei para a 2° fase e percebi que minhas chancesde ingressar na faculdade estavam aumentando, era uma oportunidade única que eu nãopoderia deixar escapar.

Hoje em dia ou você é qualificado, ou seja, ser apto para exercer uma função, ou vocêentra na enorme fila dos desocupados; até os profissionais que tem curso superior se depa-ram com esse caos que é o desemprego, e por necessidade acabam exercendo cargos que nãoestão relacionados com sua formação. Então, diante desses fatos, temos que ir sempre embusca de aperfeiçoamento para estarmos preparados para o mercado de trabalho. Espero aoconcluir o curso de Museologia fazer estágios e me especializar cada vez mais, para atenderas necessidades do mercado.

Nunca participei de movimentos estudantis, já contribuí com a comunidade populararrecadando alimentos não perecíveis e estaria disposta a contribuir mais ainda com algumprojeto da faculdade para com essas pessoas.

Venho de uma família de classe média, pois apesar de muitas dificuldades nuncapassei fome, sempre tive moradia e assistência médica. Meus pais não tiveram a oportunida-de de estudar como eu tenho hoje, mas eles sempre trabalharam muito para não faltar nadadentro de casa e sempre me deram uma boa educação.

Estudei o ensino fundamental todo em rede pública, e sabemos que o ensino públicodeixa muito a desejar, os alunos têm uma enorme carência de aprendizagem e nem sempreestão preparados o suficiente para enfrentar essa competitividade de mercado. Meus pais,em busca de melhorias de ensino pra mim, após a conclusão do ensino fundamental mecolocaram em uma escola privada, juntamente com a ajuda de minha madrinha, que pagavaas mensalidades para que eu tivesse no ensino médio uma boa preparação acadêmica queme ajudaria futuramente, porém as condições financeiras não permitiram que eu continuas-se nessa escola privada, então concluí o ensino médio numa escola estadual.

Minha mãe é de cor branca e o meu pai de cor negra e dessa mistura eu nasci. Conformeas características genéticas, me considero negra e até o momento nunca fui discriminadapela minha família, amigos ou em qualquer lugar que eu fosse. Meus pais são separados emoro apenas com minha mãe. Não trabalho e a única renda da casa é proveniente da aposen-tadoria de minha mãe, que recebe um salário mínimo. Esse dinheiro é dividido em alimen-tação, água, luz, gás e medicamentos, pois minha mãe sofre de hipertensão e necessitasempre de remédios para o seu tratamento, fora outras despesas que surgem, então essarenda mal dá pra suprir as necessidades da casa. Tenho que buscar ainda o dinheiro dotransporte, porque tenho que ir e vir todos os dias, tirar fotocópias, alimentação na faculda-de, e as possíveis viagens em grupo que teremos para as aulas práticas, como conhecer osmuseus de Salvador, Minas Gerais (aonde desejo muito ir, para conhecer Ouro Preto), Rio deJaneiro, entre outras cidades, ir para congressos etc.

Além das despesas da faculdade, eu usaria parte da bolsa para fazer um curso delínguas estrangeiras, pois hoje em dia vários lugares exigem que as pessoas falem mais de

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um idioma, e nessa área da Museologia é muito bom aprender mais de um idioma. Quantomais qualificada for a pessoa, melhores serão as oportunidades de trabalho; seria bom se nauniversidade implantassem esse curso de línguas estrangeiras também.

Gostaria muito de ter um emprego pra suprir essas minhas necessidades, mas é tãocomplicado arranjar para as pessoas que estão disponíveis a cumprir a carga horária de oitohoras por dia, imagine pra mim, que estudo pela manhã e que teria apenas a tarde ou a noitepara trabalhar, fora que teria que reservar um tempo pra estudar em casa, e também tem aquestão que eu talvez não conseguisse conciliar os dois, trabalho e estudo, pelo menosnesse início de semestre.

Por isso me inscrevi no Programa Conexões de Saberes, para tentar essa bolsa, porquede certa forma eu dependo de alguma renda pra continuar a freqüentar a faculdade.

Eu achei essa iniciativa de criar um programa que ajude financeiramente os alunos dauniversidade oriundos da rede pública muito importante para o aproveitamento estudantil,porque apesar de ser pública, existem gastos nos quais aqueles mais necessitados desistemde estudar e deixam de lado seus sonhos por falta de renda, mas com essa ajuda torna-sepropício a permanência daqueles que precisam se manter na faculdade.

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Eu me chamo Jordana da Silva Chaves, sou filha de Josino Campos Chaves e MariaRita da Silva Chaves. Nasci em Santo Antonio de Jesus, Bahia, porém nos meus primeirosanos de vida morei na zona rural de Dom Macedo Costa (cidade natal de minha mãe).

Para entender melhor a minha história, é necessário voltar ao tempo e falar um poucode meus pais. Com muita dificuldade minha mãe, em uma família de sete irmãos e mãesolteira, conseguiu estudar e concluir o ensino médio, onde fez magistério. Já o meu painem conseguiu se alfabetizar: vindo de uma família de doze irmãos, o trabalho acabousendo bem mais importante que os estudos.

Os problemas de saúde fizeram com que minha mãe parasse de lecionar, ela ensinavaalunos de primário e, portadora da Doença de Chagas , foi preciso colocar marcapasso nocoração, não podendo mais exercer sua função de professora. Ela hoje está em fase dereadaptação, com a saúde fraca. Outra dificuldade é o fato de meu pai ser autônomo, e nãoter renda fixa; a maior parte das contas da casa minha mãe quem paga. Apesar de tudo, osdois sempre fizeram questão que eu e meu irmão Diêgo estudássemos para no futuro vislum-brar uma vida melhor do que a que eles tiveram.

Sempre estudei em escola pública. Fiz meu primário na Escola Municipal CefiraBaylão Diniz, mesmo local onde minha mãe trabalha. Foi lá que eu construí meus primeiroslaços de amizade fora da família.

No ginásio, comecei a estudar no Colégio Felix Gaspar e concluí no Colégio RômuloAlmeida. Sei das dificuldades e das falhas da educação no país em que vivemos e isso fezcom que eu desse cada vez mais valor aos esforços dos meus pais. Mesmo contra a vontadedeles, resolvi trabalhar durante meu ensino médio na expectativa de ajudar nas despesas,mas vi que essa não era a melhor maneira de ajudá-los. Trabalhar sem carteira assinada nãodá expectativa nenhuma de vida e eu não via futuro ali.

Minha mãe sofreu derrame cerebral e foi um choque muito grande para toda a família.A fala foi prejudicada, mas graças a Deus, ela está viva. Decidi abandonar o trabalho eestudar para a universidade. Entrei em um cursinho pré-vestibular de caráter social, mas porjá ter entrado atrasada, não consegui acompanhar o ritmo, ficando apenas seis meses.

No ano seguinte, retornei ao cursinho e me dediquei de corpo e alma, lutei ao máximopara alcançar meu objetivo, que era a universidade.

Nessa batalha tive pessoas maravilhosas ao meu lado e Samuel, meu namorado, foiquem mais esteve mais presente, estudando, apoiando, e até mesmo dando bronca. Resulta-do: ambos passamos na mesma universidade e, por incrível que pareça, no mesmo curso:ENFERMAGEM. Hoje sei que posso conquistar todos os meus objetivos, basta ter força devontade e perseverança.

Jordana da Silva Chaves*

Autobiografia

* Graduanda em Enfermagem pela UFRB.

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68 Caminhadas de universitários de origem popular

Em 27 de janeiro de 2007, ao abrir timidamente o jornal A Tarde, consultei a relação doscandidatos aprovados no vestibular da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) econstatei que o meu nome se encontrava entre os aprovados do curso de Engenharia de Pesca.

O impacto foi tão grande que terminei transformando a bela notícia da conquista emum silêncio profundo, acompanhado de meditação e agradecimento a Deus, pela tão sonha-da vaga que já estava se tornando uma utopia. Em três outros concursos do referido vestibu-lar eu já havia fracassado. Além disso outros fatores, como o longo período afastado da salade aula (vinte anos), a conclusão dos ensinos fundamental e médio em escola pública e afalta de um curso preparatório para a realização de vestibular me respaldavam em certodesânimo e davam a entender que ser aprovado em um concurso de universidade federal eraalgo muito difícil nessas condições.

Quem sou euPara uns, José pescador; para outros, José do camarão; mas eu gosto mesmo é de ser

chamado Zé de Dona Jovelina ou de Zé do seu João.

José pescador: Desde a infância acompanhava meu pai e meus queridos irmãos nosdias de boas marés. Antes de ir para a escola, para vencer na vida e conseguir uma parte daalimentação, tínhamos grandes compromissos com a pesca, pois quando não estava lançan-do rede, estávamos arrastando um pequeno calão (rede de pesca de porte médio). Um saudo-so amigo do meu pai, Antônio Viana, sempre que via a nossa saída do porto, dizia: “Lá vaia canoa cobiçada com seu João e sua tripulação, para mais um dia de ensinamento de umagrande lição: de como seus filhos se defenderem da fome através da pesca, sem nada dosoutros lançarem mão”

José dos Santos*

* Graduando em Engenharia de Pesca pela UFRB.

José do camarão: Para não fugir do mar e ter uma carreira, o único jeito que arrumeifoi trabalhar com o cultivo de camarão. Foram muitos anos de vida dedicados a esta função;com ela eu fiz quase tudo: criação em gaiolas, cativeiro e até pesca de arrastão. É por issoque alguns me chamam até hoje de José do camarão.

Zé filho de dona Jovelina ou Zé do seu João: João é o meu pai e Jovelina é a minhamãe. Eles são as maiores pessoas da minha vida, por quem eu tenho grande consideração.É com muito carinho, amor e muita satisfação que os guardo no meu coração. Portanto,antes de tudo, jamais irei preferir ser chamado de outro nome, a não ser Zé de DonaJovelina ou Zé do seu João.

O impossível aconteceu

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia 69

De onde eu venhoVenho de uma linda cidade do Baixo Sul da Bahia, chamada Ituberá. Como eu não sei

falar em versos, deixarei alguém com mais experiência as belezas dela recitar.

Minha terra tem palmeiras,Onde canta o Sabiá;As aves, que aqui gorjeiam,Não gorjeiam como lá.Nosso céu tem mais estrelas,Nossas várzeas têm mais flores,Nossos bosques têm mais vida,Nossa vida mais amores.Em cismar, sozinho, à noite,Mais prazer eu encontro lá;Minha terra tem palmeiras,Onde canta o Sabiá.Minha terra tem primores,Que tais não encontro eu cá;Em cismar –sozinho, à noite–Mais prazer eu encontro lá;Minha terra tem palmeiras,Onde canta o Sabiá.Não permita Deus que eu morra,Sem que eu volte para lá;Sem que desfrute os primoresQue não encontro por cá;Sem qu’inda aviste as palmeiras,Onde canta o Sabiá. Gonçalves Dias

Para onde eu vou

A partir desta nova etapa de vida, acadêmica, me preparo para realizar a minha grandemissão, que é, sem me interessar em ganhar muito dinheiro, compartilhar com o próximo,sendo ele sem terra, sem lar ou sem chão, os conhecimentos adquiridos com minha novaprofissão de engenheiro de pesca.

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70 Caminhadas de universitários de origem popular

Nasci em Amargosa, no interior da Bahia, oriundo de uma família pobre. Por isso,desde criança, trabalhei pela busca de melhores dias de vida para mim e para toda minhafamília. Pela falta de apoio da figura paterna em todos os aspectos, tive que trabalhar desdemuito cedo para ajudar no sustento da família.

Aos doze anos estudava o primário durante a semana e comecei a vender picolé aossábados na minha cidade natal. À medida que crescia, sentia uma maior necessidade detrabalhar mais, pois as despesas da família aumentavam. Foi quando comecei a fabricar evender vassouras feitas artesanalmente por mim, o que continuei a fazer por alguns anos.

No final de 1995 terminei o primário e, por conta disso, passei a estudar na EscolaAgrotécnica de Amargosa, onde fui elogiado e incentivado pelos meus professores pelomeu bom desempenho escolar. Também conquistei a amizade de muitas pessoas, de quematé hoje sinto saudades.

Em 1997 mudei-me com minha família para Santo Antônio de Jesus, onde passamos amorar de aluguel num bairro pobre da cidade, cujo nome é Irmã Dulce. Matriculei-me noColégio Luis Viana Filho, para fazer o supletivo da 7ª a 8ª séries.

Em 1999 fui para o Colégio Rômulo Almeida estudar à tarde, já que trabalhava duran-te a noite, sendo por isso reprovado no final do ano. Por isso, só terminei o ensino médio nofinal de 2002.

Ainda dentro do meu terceiro ano, brotou o sonho de cursar História, pelo fato de ter umprofessor que ensinava esta disciplina de forma crítica e reflexiva: professor Edinaldo. Foiisso que me motivou a conhecer as questões sociais, porque o modelo capitalista contribuipara a desigualdade social, onde prevalece a falta de perspectiva de vida em pessoas quevivem na miserabilidade econômica, que em sua grande maioria são pessoas de origem afri-cana – na minha opinião – porque isso reflete diretamente na comunidade onde eu moro.

Através do estímulo de alguns professores, matriculei-me em 2004 no curso pré-vesti-bular Tiro de Guerra, para prestar vestibular na Universidade Estadual da Bahia (UNEB) nofinal do ano, sem êxito no processo de seleção.

Em 2005 fiz cursinho novamente, estudava em casa, mas não tive sucesso novamentena prova, para cursar História na UNEB.

Em 2006 entrei no curso pré-vestibular Razão, participei no meio do ano do processoseletivo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), passei na primeira fase,no entanto não passei na segunda. Inscrevi-me novamente no processo seletivo da UNEB e

* Graduando em Psicologia pela UFRB.

José Raimundo dos Santos*

Texto autobiográfico

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UFRB, no final do ano, e graças a Deus, passei para cursar Psicologia na UFRB, que tambémme fascinou por ser uma área que está ligada ao estudo do homem em diversos contextos,como histórico, social e cultural.

Tive que sair da empresa em que trabalhava, pois não dava para conciliar o trabalho e oestudo. Por isso, vários obstáculos estão surgindo e surgirão outros pela frente, tenho certeza.

Já matriculado na UFRB, espero ao terminar o meu curso, colaborar na melhoria daqualidade de vida das pessoas, principalmente aqueles que vivem oprimidos pelos detento-res do poder político do nosso país.

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72 Caminhadas de universitários de origem popular

Eu, Joselita de Jesus Bomfim, nasci na Zona Rural de Itamari, na Bahia. Tenho 25anos, sou solteira, moro com meus pais e três irmãos, tenho pele negra, olhos castanhosescuros e 1,65 metro de altura.

Iniciei a minha vida escolar aos seis anos, me alfabetizarei na zona rural e logo depoiscomecei a estudar o primário na Escola Estadual Dr. Vasco Filho, onde concluí a 4ª série noano de 1994. Já em 1995, comecei o ginásio na Escola Municipal Centro Educacional deApuarema. Nesta mesma escola cursei todo o ensino médio, e em 2001 prestei o meu primei-ro vestibular na Universidade Estadual da Bahia para o curso de Enfermagem. Fui classifi-cada, mas não convocada em virtude no número insuficiente de vagas. Essa trajetória con-tinuou e, já em 2005, prestei novamente vestibular, desta vez me sentia mais preparada,pois estudei um ano de cursinho. O problema é que ainda não foi suficiente, fui reprovadade novo! Voltei para a minha cidade, trabalhei durante o dia, dava aula de Ciências de 5ª a8ª séries e à noite trabalhava com classe de alfabetização.

Hoje, realizo o meu sonho ao cursar Enfermagem na UFRB. Espero que seja a minhaverdadeira vocação, pois a luta não foi fácil, já que vim de uma família de classe baixa compouca ou quase nenhuma instrução escolar.

Espero que consiga concluir o curso, já que este é um dos grandes desafios do alunoque vem da escola pública com baixo poder aquisitivo, como o meu caso. Mas apesar detodos os obstáculos, pretendo realizar o meu novo sonho, que é concluir a graduação, meespecializar na área e fazer um doutorado em Patologia Humana. Ser, enfim, realizadaprofissionalmente. E dar uma condição de vida melhor para os meus pais, que tanto lutarame se dedicaram para a conquista do meu sonho.

AutobiografiaJoselita de Jesus Bomfim*

* Graduanda em Enfermagem pela UFRB.

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia 73

Nascia mais um dia, o Sol aquecia a terra, o mundo estava tão diferente e não sabia queali, logo em frente, a poucas horas, aconteceria uma coisa especial.

No dia 8 de setembro de 1989, às 12:20, o mundo se alegrou, a felicidade aumentou,nascia em uma maternidade de Cruz das Almas uma criança de nome Leila, filha de LuizAlberto e Valneide Pereira.

Meu pai, pedreiro, estudou até a 4ª série. Órfão de pai aos sete anos, teve que trabalharpara ajudar sua mãe na criação de seus oito irmãos e, devido a isso, não pode se dedicar aosestudos. Teve de abrir mão de ser uma criança com infância normal e divertida para ser umacriança cheia de responsabilidade desde cedo. Ele começou a trabalhar vendendo picolépara ajudar nas despesas de casa, um pouco mais tarde ele aprendeu a profissão de pedreiroe começou a trabalhar nessa área. Depois ele conheceu minha mãe, que já tinha dois filhos.

Minha mãe, dona de casa e aposentada, estudou até a 6ª série. Largou a escola devidoa problemas de saúde e não pôde nem concluir o ensino fundamental. Aos 18 anos já eramãe e depois precisou criar dois filhos só com a ajuda de Deus e de seus pais.

Somos seis irmãos em casa, três homens e três mulheres. Minha irmã Valdinéia, de 25anos, abandonou os estudos ainda na 4ª série, se tornou mãe cedo e foi trabalhar em casa defamília. Meu irmão Everaldo, de 22 anos, estudou e conseguiu concluir o ensino médio.Trabalha em uma fábrica chamada Bibi Calçados. Os meus outros irmãos ainda estão nocolégio: Leandro na 1ª série, Luiz na 5ª série e Leilane no 2º ano.

Ao completar três anos entrei na escola, iniciando pelo Jardim, na Escolinha Casa daCriança, que na época era na minha rua. Logo depois eu me mudei de escola e fui estudar noColégio Batista, onde fiquei da 1ª à 4ª série. Eu, quando pequena, sempre fui uma criancinhafrágil e doente, porque tinha problemas respiratórios, sentia falta de ar, e devido a isso eudeveria me limitar a certos tipos de brincadeira, como de correr e coisas que exigissemmuito esforço físico.

Quando eu concluí a 4ª série, fui estudar no Centro Educacional Cruzalmense (CEC),onde fiz meus ensinos fundamental e médio. Na 6ª série uma colega minha de sala me tratoucom preconceito racial, pelo simples fato da cor da minha pele ser negra. Essa situação foimuito difícil para mim e assim eu descobri que existiam pessoas capazes de julgar o outropela cor da pele. Isso se repetiu mais uma vez mais tarde, dessa feita um pouco diferente: foipelo fato de ser de classe baixa. Uma pessoa me discriminou mais uma vez. Isso tudo foi

Verdadeira identidade

* Graduanda em Engenharia Florestal pela UFRB.

Leila Pereira da Cruz*

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74 Caminhadas de universitários de origem popular

superado porque eu conversei com minha mãe e ela me disse que não me importasse comisso, que no mundo existiam algumas pessoas desse tipo, e eu sempre senti orgulho daminha cor e da minha classe social.

No ensino médio sempre acontecia um evento no colégio chamado “Projeto Literá-rio”, e isso era muito legal porque cada sala ficava com uma obra literária para desenvolvere apresentar uma peça teatral. Era feita a divulgação do projeto em formas de cartazes e demini-apresentações; participei por três anos desse projeto, durante o tempo em que estudeinesse colégio.

Em 2005, no dia 1º de novembro, minha avó materna, que estava doente devido a umacidente vascular cerebral, faleceu. Nesse dia para mim o mundo tinha desabado, por queela era alegre, sorridente e uma pessoa muito querida por filhos, netos e amigos, não davapara acreditar. Quando eu vi minha avó dentro do caixão, cheia de flores, eu pensava queaquilo era um pesadelo e que ela estava apenas dormindo.

Em 2006 eu fiz o 3º ano do ensino médio no CEC à tarde e um cursinho no turno danoite no Pré-Vestibular do Povo. Em agosto meus pais me deram 75 reais para fazer ainscrição. Fiz o ENEM e continuava estudando e freqüentando o cursinho. Em novembro serealizaria a 1ª fase do vestibular da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB),um dia antes dei uma revisada nos assuntos e continuava ansiosa. No dia da prova saí decasa cedo e isso se repetiu nos dois dias seguintes. Eu fiquei contando as horas para sair oresultado e, quando saiu, descobri que tinha sido aprovada. Começava minha luta rumo à 2ªfase, que seria para mim mais difícil que a primeira porque as questões eram discursivas e,apesar de ter me preparado, me faltava confiança.

Na 2ª fase eu estudei mais que na primeira, a ponto de me desesperar. E se eu nãoconseguisse? Passado o dia da prova, esperei até o resultado e, quando saiu, fui na internetabrir a página da UFRB. Procurei resultado para o curso de Engenharia Florestal, cujocampus é em Cruz das Almas, e quando vi meu nome na tela eu senti uma forte emoção,inexplicável até hoje, para mim era um sonho e que eu demorava a acreditar.

Ao sair do 3º ano para uma universidade, minha família ficou muito feliz e daí emdiante eu comecei a imaginar como seria a universidade. No dia da matrícula foi quandoentrei na UFRB pela primeira vez e a sensação que tive foi de estar no jardim da infância,porque é o período em que você vai para a escola com sua mãe, e foi isso que aconteceucomigo: me senti feliz por poder compartilhar isso com minha mãe.

As aulas começaram, cheguei na UFRB tímida e demorava para acreditar que agora eutinha se tornado universitária, devido às minhas origens, filha de um pedreiro e uma donade casa, que mal concluíram o ensino fundamental.

No começo foi um pouco difícil, eu não conhecia quase ninguém e nem como funciona-va a universidade, afinal eu estava costumada com o colégio. Eu passei a enxergar o mundo deoutra forma totalmente diferente de quando eu estava do lado de fora da faculdade.

Sábio não é aquele que sabe muito, mas aquele que sabe que opouco que ele sabe é o muito que ele precisa. Autor desconhecido

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia 75

Tenho 19 anos e sou natural de Cruz das Almas, no interior da Bahia. Sempre fui umapessoa muito criativa, o que sempre chamou a atenção de amigos e parentes. Em muito aminha família contribuiu (e até hoje contribui) para as minhas conquistas, sempre me incen-tivando a fazer o que de fato gosto, sem, contudo, deixar de alertar-me a respeito dos riscosa que estamos expostos na vida, ressaltando ainda que eu deveria buscar as minhas vitóriaspessoais de maneira disciplinada e honesta. Herdei, portanto, através de lições familiares,valores que hoje me caracterizam como pessoa e que prezo muito.

Minha família sempre foi bastante envolvida com questões religiosas. Com efeito, aos11 anos entrei no grupo de coroinhas da Igreja Católica, na paróquia da minha cidade.Nesse mesmo período cursava a 5ª série do ensino fundamental, tendo, na escola em queestudava, um acerta popularidade que resultou em diversas indicações para assumir lide-ranças em atividades extra-classe, como gincanas, feiras de cultura etc.

No final de 2000, período em que já havia concluído a 6ª série, minha família semudou para Salvador; porque meu pai apresentava graves problemas de saúde e buscáva-mos oferecer-lhe melhores condições de tratamento. Seis meses após tal mudança, lamenta-velmente, meu pai veio a falecer, causando abalos à nossa estrutura familiar. Com isso,minha mãe, de uma modesta dona-de-casa, foi obrigada a se tornar chefe de família. Emborahouvesse muitas dificuldades naquele momento, decidimos permanecer em Salvador, ten-do em vista que eu e meus três irmãos teríamos mais oportunidades quanto aos estudos, bemcomo no mercado de trabalho.

Em busca de atividades que me levassem a lidar, de maneira menos angustiante, coma ausência do meu pai, decidi me matricular na oficina de teatro oferecida pela escola ondeestudava; daí surgiu a oportunidade de participar de um festival de música sobre o meioambiente, organizado pela Secretaria de Educação de Salvador e a Secretaria de Planeja-mento (SEPLAN), no qual fui vencedor com a música Beleza Ambiental.

Já em 2003 cursei o ensino médio em um dos colégios mais conceituados da redepública de Salvador: Colégio Estadual Anísio Teixeira – CEAT. Fazia apenas duas sema-nas desde a minha chegada no CEAT, quando fui eleito, por meus colegas, líder da turma.Certo de que estaria apto para representar todo o corpo discente dessa instituição, decidi meinscrever nas eleições do Colegiado Escolar (no segmento dos alunos). Durante o processoeleitoral, surpreendi professores e colegas ao apresentar bom desempenho nos debates edemais atividades correlatas. Doravante, venci as eleições para os três turnos (matutino,

Lucas Dias Reis*

* Graduando em Engenharia Agronômica pela UFRB.

Texto autobiográfico

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76 Caminhadas de universitários de origem popular

vespertino e noturno), e, logo após tomar posse, fui convidado pelo presidente do grêmioestudantil para assumir a diretoria de cultura do grupo: aceitei o desafio, e junto à coorde-nação pedagógica, desenvolvi e implementei diversas atividades culturais. Entretanto, comodiretor da função, permaneci por pouco tempo: cinco meses após assumir o cargo, fuinomeado vice-presidente do grêmio no turno vespertino.

Como sempre fui um estudante bastante sensível às causas sociais, nesse mesmo perí-odo, tornei-me militante junto à Juventude Socialista Brasileira (JSB) e, juntamente comoutros militantes, fundamos a Associação de Grêmios e Estudantes de Salvador (AGES).

Embora, como se pode observar, eu tivesse participação ativa no movimento estudan-til, em momento algum releguei a um plano secundário as minhas atividades religiosas,sempre cumprindo, com afinco, as minhas obrigações como catequista na Pastoral da Ju-ventude da paróquia que freqüentava.

Em agosto de 2005, quando cursava a 3ª série do ensino médio, fui nomeado presiden-te do grêmio estudantil. Como já presidia a comissão de formatura do colégio, decidi meafastar da JSB e da AGES, a fim de me dedicar mais ao grêmio, à organização da formaturae, é claro, aos estudos, já que faria vestibular ao final daquele ano.

Apesar do grande interesse que sempre apresentei pelas questões socioculturais, hajavista as atividades que executei durante a minha vida estudantil, era um desejo meu prestarvestibular para um curso que estivesse dentro da área de Ciências Agrárias, campo extenso,que me atraía por representar uma junção das Ciências Naturais e Sociais. Decidi, portanto,me inscrever para o curso de Engenharia Agronômica, na certeza de que ele contemplariatoda a riqueza oferecida pelas Ciências Agrárias. Aprovado, voltei então para Cruz dasAlmas, com grande expectativa quanto ao início de mais uma fase – desafiadora e prazerosa– da minha vida.

Cheguei à universidade um pouco tímido; entretanto, graças à minha busca incessan-te por novos amigos, fui rapidamente integrado à comunidade acadêmica, o que me possi-bilitou, já no primeiro semestre, a participar de trabalhos de pesquisa da área.

Hoje estou no segundo semestre e, gradativamente, acentua-se a minha paixão pelocurso. Continuo, pois, expondo-me a novos desafios, tendo como base o seguinte preceitodo pedagogo e sábio Paulo Freire: “Sem a curiosidade que me move, que me inquieta, queme insere na busca, não aprendo nem ensino”.

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia 77

Acredito que qualquer pessoa, quando descreve sua jornada vivida, inicia seu relatofalando sobre a família.

Tenho meus pais vivos e três irmãos, que são mais novos que eu. Meus pais sãoseparados há doze anos e nós moramos com minha mãe e um tio deficiente mental. Apesarda separação e de uma situação financeira limitada, meus pais nos criaram priorizandosempre nossa educação.

Essa situação financeira, somada ao término do casamento, marcou minha vida esco-lar, que foi cheia de migrações entre colégios públicos e particulares. As séries iniciaiscursei em escolas públicas, parte do ensino fundamental em colégios particulares, e outraparte em colégios públicos. Ao final do ensino fundamental resolvi iniciar o meu ensinomédio com um curso profissionalizante, então fiz magistério. Nos três anos de magistériofiz estágios remunerados em três escolas diferentes.

Fiz um cursinho pré-vestibular e, no mesmo período, ingressei num curso decapacitação para jovens no Instituto Cultural Steve Biko.

Na Steve Biko me formei, junto com outros vinte e nove jovens, na primeira turma derecreação infantil, onde tivemos oficinas de diversas atividades e fizemos apresentações emmuitos lugares. Neste período fui eleita líder da turma e representei o grupo num encontrocom primeira dama do país na época, Ruth Cardoso e outros jovens que participavam deoutros cursos com a mesma característica que o meu. Também fui chamada para trabalharem festas particulares e em festas populares feitas pela prefeitura de Salvador.

Apesar de diariamente discutir questões raciais, foi a partir do ingresso na Biko querealmente comecei a atuar na área. Li muito sobre esses assuntos, participei de palestras,discussões, amadureci meus pensamentos e decidi então prestar vestibular para um cursoque não é historicamente freqüentado por negros e que me parecia estimulante e novo.

Queria viver novas experiências e contribuir com minha causa em um campo diferen-te. Prestei vestibular para Engenharia Agronômica da então Universidade Federal da Bahia(UFBA) e passei. Quando cheguei aqui, desenvolvi algumas atividades como voluntáriano projeto da universidade, chamado UFBA em Campo. Este projeto auxiliava uma comu-nidade localizada dentro de sua área.

O projeto findou mas a minha vontade de trabalhar na área social não, então fuinomeada diretora social da Cooperativa de Estudantes de Agronomia (COOPEA). Idealizei

* Graduanda em Engenharia Agronômica pela UFRB.

Palmira Magaly Passos Gusmão*

Meus passos, minha caminhada

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78 Caminhadas de universitários de origem popular

alguns projetos, mas poucos foram postos em prática, por falta de verbas. Havia pensado emhortas comunitárias, em ciclo de palestras para serem desenvolvidas nessa comunidade,mas infelizmente não foram possíveis essas realizações.

Assim que acabou a minha gestão como diretora da Coopea, iniciei um estágio naescola sob a orientação da professora Gilca Garcia, que discutia as diversas formas de acessoa terra no Médio São Francisco, próximo à Chapada Diamantina, na Bahia. Nesse estágiotrabalhei principalmente em comunidades ribeirinhas e remanescentes de quilombos. Para-lelo a este estágio, trabalhei em São Felipe (no interior da Bahia, próximo a Cruz das Almas)como professora do ensino médio. Por quatro anos estive em São Felipe e, durante osúltimos anos, me dediquei exclusivamente às atividades que desenvolvia; deixei de priorizara faculdade pela necessidade de me sustentar em Cruz das Almas.

Mesmo distante da faculdade, formei junto com seis colegas o Núcleo de EstudantesNegros da Escola de Agronomia, que chamamos de Azeviche.

Com o Azeviche, eu e meus colegas fizemos algumas discussões até chegarmos àconclusão que deveríamos promover um seminário que discutisse as questões raciais nafaculdade, onde poderíamos então abrir nossas idéias a outros estudantes, como tambémpara o público da cidade no geral. O seminário que ocorreu no mês de outubro de 2005 sechamou “UFBA EM NEGRITO, o Recôncavo discute suas raízes”.

Para mim, a experiência foi única. Ao final do evento me senti realizada e frustrada porperceber a total falta de interesse dos professores em discutir ou até mesmo participar doseminário. Deste evento em diante poucas foram as atividades do Azeviche e, em virtudedisso, terminamos nos afastando. Porém a minha jornada ainda não havia esfriado, e euentão decidi me dedicar a faculdade e me formar de uma vez, e isso só seria possível se eutivesse um emprego na mesma cidade. Saí da escola que trabalhava e passei a estagiar naPrefeitura de Cruz das Almas, no departamento de Reparação Racial.

No departamento, pude me aproximar mais efetivamente das minhas antigas ativida-des junto à comunidade negra, além de conhecer e me envolver na política local. Mesmogostando de estagiar neste departamento, ainda assim não dispunha de tempo para a facul-dade e não podia também abrir mão da remuneração, então me inscrevi no Conexões deSaberes para poder unir a minha vontade em trabalhar às questões raciais nas comunidadese, ao mesmo tempo, obter uma remuneração para a minha permanência na universidade.

Agora que me aproximo do final da minha graduação, espero que o Conexões seja uminstrumento para o enriquecimento da minha caminhada e construção da minha carreira naforma como pretendo desenvolvê-la.

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Universidade Federal do Recôncavo da Bahia 79

Introdução

IEu vou cantar pra vocêsum pouco da minha históriaSou de uma família humildeque veio para mudar a trajetória

IINinguém da família enfrentou a históriaenfrentei as distâncias para me encaixar na história

IIIEstá é Maria Gilcileneque acabei de descreverque está no Conexões de Saberesna UFRB

• Para falar de mim, precisei fazer uma síntese da minha história de vida, assim conectei as informações descritas nesse documentário.• O memorial foi elaborado levando em conta as condições, situações e contingên- cias que envolveram o desenvolvimento do meu percurso até a entrada na univer- sidade.

Origem/famíliaEm São Felipe, na zona rural chamada Copioba do Sul-BA, em 15 de agosto de 1982,

nasceu uma negra linda, entre as lindas da minha cor, chamada, Maria Gilcilene M. Rocha,filha de gerações de agricultores rurais de subsistência.

Meu pai, Antonio Paulo Conceição Rocha, aprendeu a lidar com a lavoura e só estu-dou até a 4ª série primária do fundamental, por causa da distância até a escola. Minha mãevem de uma família numerosa é a segunda de dez filhos. Não teve muitas oportunidades deestudar e fez até a 3ª série primária do fundamental.

Após se casarem ainda adolescentes (dezessete e quinze anos, respectivamente) tiveramquatro filhos: Jivanildo, eu, Maria Jane e Gilmar. O casamento só durou sete anos e separam-se.

Maria Gilcilene Maciel Rocha*

* Graduanda em Engenharia Agronômica pela UFRB.

Memorial

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80 Caminhadas de universitários de origem popular

Meu pai ficou com a guarda dos filhos. Nos levou para a casa do meu avô paterno,Antonio Alves da Rocha, agricultor e serralheiro, hoje aposentado.

Minha mãe, saiu de casa e foi morar na casa dos meus avós maternos (Laura Pereira eJosé Maciel), que deixaram a zona rural (e se mudaram para o centro urbano, de Cruz dasAlmas-BA). Minha mãe não conseguiu um trabalho qualificado e começou a trabalhar dedoméstica.

Infância /adolescênciaA separação do casal aconteceu em 1988, estava com seis anos na época. A infância

ficou marcada por esta tragédia e por uma adolescência precoce. Assim, a maior parte dainfância foi concluída sem a participação dos pais. Era mãe e irmã ao mesmo tempo dosmeus irmãos. Aprendemos a caminhar sozinhos, um aconselhando ao outro. Ainda nesteperíodo, tolerava um sofrimento por não poder ver a minha mãe, por imposição paterna.

Como residíamos na casa de meu avô, ele preenchia a lacuna de carinho, nos permitiabrincar de tudo, de cantiga de roda, macaquinho, sete-pedra, casinha, até cozinhar; preferiamesmo era jogar futebol. Lembro nitidamente dos “babas” de fim de tarde com meninos emeninas, no pequeno campo, na propriedade do meu avô.

Como diz o ditado, “alegria de pobre dura pouco”, e assim foi a minha curta infância.Passados alguns anos nesta casa, minha avó Carmelita faleceu. Eu, por ser a “menina-mulher” mais velha, tive que assumir o controle dos afazeres domésticos, como lavar roupae pratos, cozinhar e outros. Assim, antecipei minha adolescência.

EscolaPara estudar tive que superar as dificuldades econômicas, e acima de tudo, as distân-

cias das escolas. Na zona rural as escolas ficavam distantes entre si, quando não éramosobrigados a estudar em outras cidades.

Para chegar até o colégio tive que andar de pé, caminhão ou ônibus, enfrentando altase baixas temperaturas, sol e chuva, até chegar ao destino final, meu colégio.

Antes de começar a estudar, imaginava que a escola era uma grande casa com quatroparedes, cheia de cadeiras e esteticamente bonita. A primeira vez que fui à escola tive umchoque, porque era o contrário do que imaginava. Era pequena, velha e feia. Em um brevemomento me desestimulei a estudar.

Comecei a estudar com seis anos, na escola Municipal Geraldo Pereira Lordelo, dopovoado da Tapera. Lá estudei o ABC e a Cartilha (alfabetização). Apesar de tudo, a profes-sora era excelente, a dona Vitória, que me fez mudar a concepção sobre a escola, dizia “quenão importava a beleza da escola, mas sim o que ela oferecia, o estudo”. Ela era paciente aoensinar o beabá e a tabuada.

Cursei da 1ª a 4ª séries na mesma escola. Nesse período tive as professoras Laura,Mariza e Antonia, esta carinhosamente chamada de Toinha, tão excelente quanto a donaVitória. Só me lembro que havia competição interna para mudar de lição, terminar o livroe pegar outro. Sempre fui uma das primeiras a terminar os exercícios e trocar de livro, o quegerava elogios das professoras. Havia também gozações por parte dos alunos, para quemerrasse a tabuada; isto incentivava a leitura constante em casa para não errar a resposta.

Na entrada para a 5ª série do fundamental tive um grande problema, pois a zona ruralsó oferecia estudo até a 4ª série fundamental. No centro urbano de São Felipe só haviam

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dois colégios que ofereciam o ensino fundamental e médio completo. Um era o ColégioEstadual João Durval Carneiro (CEJDC), que tinha poucas vagas por ano, preenchidas porestudantes do centro da cidade e, se sobrassem, para os da zona rural.

Meu pai foi procurar vaga para me matricular no CEJDC, mas não conseguiu como eraesperado. Como eu era esforçada nos estudos, ele resolveu falar com o dono do ColégioCenecista São Felipe para tentar uma bolsa de estudos, em troca de alguns sacos de farinhade mandioca. Aí ele teve êxito e me matriculou. Fiz a 5ª e 6ª séries no Cenecista São Felipe.Antes de terminar a sexta série, enfrentaria outro obstáculo, dessa vez era em relação aotransporte. O prefeito da cidade não estava pagando o salário dos motoristas e na época elesdeixaram de circular os carros.

Nesse período escrevi para minha mãe, expondo a situação e pedindo para ela reservaruma vaga de 7ª série em um colégio público. Ela conseguiu vaga no Colégio EstadualLandufo Alves de Almeida (CELAA). Porém ao passar para estudar em Cruz das Almas, oônibus era pago isso constituía um outro obstáculo, porque meu pai não queria que eu fosseestudar lá e tivesse contato com minha mãe, entretanto, se eu fosse estudar ele não pagariao ônibus. Visando o melhor pra mim, decidi estudar em Cruz das Almas, porque não tinhaprevisão para os motoristas voltarem a circular os ônibus para São Felipe.

Nas 7ª e 8ª séries do fundamental fui estudar no CELAA. Ia e voltava todos os diaspara casa do meu avô, financiado pela minha tia Maria, irmã do meu pai.

O ensino médio continuei no Landulfo Alves. Nesse período fiz grandes amizadescom Railda, Kátia, Núbia, Ana Paula, Regiane, tenho até hoje contatos com todas elas, emespecial a Ana Paula, que é minha cunhada.

O professor que mais se destacou nesse colégio foi Das Neves, de matemática. Suametodologia cativou muitos alunos, inclusive a mim. Era rígido quando necessário, po-rém ensina bem.

Nesse colégio participei de feiras de ciências, recitais de poesias, gincanas estudantis,feiras de cultura, seminários, entre outros eventos.

Nesses cinco anos conquistei amizades de muitos professores, inclusive a professoraDelma, que me incentivou a fazer o vestibular.

Trabalho x vestibularEm 2002, ao término do ensino médio, não fiz o vestibular, por falta de dinheiro para

pagar a inscrição. Em 2003, minha mãe pagou a inscrição do vestibular, mas não tive êxito.Prestei para enfermagem na Universidade Federal da Bahia (UFBA), passei na 1ª fase e perdina 2ª. Ainda nesse ano ela me matriculou em um cursinho pré-vestibular comunitário daIgreja Católica, chamado “cursinho do povo” e depois no pré-vestibular Garagem. Nessemesmo ano prestei o vestibular para pedagogia pela Universidade Estadual da Bahia (UNEB),no campus de Valença. Dessa vez tive sucesso, fiquei feliz, mas tinha um problema: era emoutra cidade e não teria recursos para me sustentar. Por conta de uma greve, as aulas só iriamcomeçar no segundo semestre de 2004.

Enquanto as aulas na universidade não começavam, trabalhei para juntar dinheiro epoder estudar. Fui garçonete em um restaurante no centro de Cruz das Almas e ganhavamuitas gorjetas, o que me incentivava a continuar no emprego. Trabalhava mais tempo quedeveria por pouco menos de um salário mínimo.

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Em 2004, por intermédio do empregador de minha mãe, que era na época diretoracadêmico da Faculdade de Ciências Tecnologia Albert Einstein (FACTAE) fiquei saben-do da seleção para o cargo de telefonista na instituição, com inscrição gratuita. Fui pessi-mista, nem os amigos achavam que iria conseguir, mas como quem “não chora não mama”,tentei. Fui selecionada para a 2ª fase, da entrevista coletiva, e mais uma vez fui pessimista,pois só havia uma negra, que era eu. As outras concorrentes eram loiras e morenas. Haviatrês vagas para o cargo, com quinze meninas na entrevista. Após oito dias saiu o resultadoe quase não acreditei: consegui, e isto foi motivo de alegria para todos, mãe, amigos, tios....

Deixei o trabalho de garçonete e fui trabalhar como telefonista. Passei quase três mesesem fase aprendizado para logo depois receber elogios de um trabalho bem feito, por parte detodos inclusive do presidente da faculdade, que disponibilizaria meia bolsa de estudos paraos funcionários da instituição. Então prestei vestibular para Administração, fui aprovada,juntei o útil ao agradável (trabalhando e estudando na mesma cidade, perto de casa).Estudava de manhã e trabalhava à noite.

No segundo semestre de 2004, chegaria a hora de decidir entre Pedagogia na UNEB,que é pública, e Administração na FACTAE, particular. Visando o melhor para mim, minhamãe preferiu que eu continuasse na FACTAE e desisti de estudar Pedagogia em Valença,pela UNEB.

No segundo semestre de 2005 prestei novamente o vestibular e passei, dessa vez paraAgronomia, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Hoje o curso faz parte da Univer-sidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Fiquei muito feliz, consegui passar numafaculdade pública, como desejava. Não pensei duas vezes, ao término do 3º semestre deAdministração da FACTAE tranquei matrícula.

Achava que iria continuar a trabalhar na FACTAE e estudar na UFRB. Entretanto, nãosabia do regulamento da instituição, em que funcionário bolsista que deixasse de estudar,perderia o trabalho. Logo, estava em uma escolha novamente entre FACTAE X UFRB.Consultei meus familiares, que aconselharam para ficar na FACTAE.

Estava na pior indecisão de toda a minha vida. Então pensei, pensei e decidi: resolviir contra os conselhos de minha família, pois acho que a sorte não bate duas vezes na mesmacasa, então o melhor pra mim era fazer a UFRB.

Hoje posso dizer com certeza que escolhi certo, pois uma das vantagens, é estar noConexões de Saberes, e poder contar a minha história.

Reflexão finalA trajetória da minha vida, até o dia atual, é marcada por muitos obstáculos financei-

ros. As dificuldades ocasionadas pelo dinheiro se agravam, ainda mais por pertencer a umaetnia negra.

Oriunda de uma família humilde, onde tem como prioridade o estudo, acreditam queisso pode mudar o estado socioeconômico, de status e conhecimento para quem consegueestudar.

Para estudar, tive que superar as dificuldades econômicas, e acima de tudo as distân-cias das escolas.

Enfim, a síntese da minha vida é marcada por muitos obstáculos, porém não me fize-ram desistir em nenhum momento do que hoje é meu objetivo principal, que é concluir ocurso superior.

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Sou estudante do curso de Nutrição da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia(UFRB) e venho contar um pouco da minha historia de vida. Ela é como a de milhões deoutras mulheres negras e pobres que vivem discriminadas, sem muitas oportunidades.

Estava no ventre da minha mãe quando meu pai morreu. Porém cresci na zona rural, noseio de uma numerosa família de nove irmãos, ao lado da minha mãe, que lutava comdificuldade para criar seus filhos.

Nossa situação financeira não era favorável, mas sempre fui uma criança alegre. Quan-to sentia medo, sempre procurava a “mainha”, que me transmitia muita seriedade e paz.

Aos dozes anos de idade fiquei órfã de mãe e passei por várias moradas na casa de parentes,estudando com dificuldade, sempre a perseguir o sonho de um dia obter um futuro melhor.

Após alguns anos fui acolhida por minha tia, hoje com 80 anos. Lá pude concluir osestudos do ensino médio e prestar vestibular, realizando o sonho de tentar freqüentar umauniversidade para, no futuro, assegurar uma melhor condição de vida para mim e meus irmãos.

Muito dedicada aos estudos, e com grande facilidade no aprendizado nas áreas deexatas, principalmente química e física, logo que concluí o ensino médio passei a trabalharcom reforço escolar para todas as séries, única fonte de renda para custear as minhas despe-sas pessoais.

Estudando em escola pública e sem dinheiro para custear um curso pré-vestibular,tentei quatro vestibulares para uma universidade pública estadual ou federal. Estas reprova-ções me deixaram num estado depressivo, me sentido incapaz de tudo, porém dei a voltapor cima e voltei a estudar, e dessa vez decidida a passar.

Hoje, após a minha aprovação no curso de Nutrição na UFRB, tenho receio de que semo suporte financeiro, tenha que abandonar o sonho da minha vida, pois sem trabalho fixo,não terei como pagar as despesas como alimentação e transporte para freqüentar a faculdade.

Entretanto com aprovação no vestibular, perdi o suporte financeiro do reforço escolarque eu oferecia, porque coincidiu o horário do curso com o horário das aulas da faculdade,não sendo possível remanejar o grupo para o horário noturno.

Freqüentadora de um centro espírita na cidade onde resido, trabalho como coordena-dora e evangelizadora do departamento de infância e juventude, que oferece às crianças ejovens da comunidade carente palestras sobre a doutrina e tem como objetivo mantê-los

Marly Silveira*

* Graduanda em Nutrição pela UFRB.

L’Amore

Uma história de amor, uma lição de vida

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afastados das drogas, mostrando a importância do convívio familiar, da boa conduta peran-te o seu próximo e conscientizando-os da contribuição para um mundo melhor.

Também atuo no departamento de assistência social, que visa completar a renda dapopulação de baixa renda, com cursos profissionalizantes e uma cesta básica mensal.

Com essa experiência vivenciada junto à comunidade, gostaria de ampliar minhasações, mais frequentemente na área de reforço escolar, levando conhecimento não só aspessoas que já se encontram na escola, mas principalmente aquela que não têm essa possi-bilidade, dando-lhes a chance de ter uma vida melhor.

Após a minha formação acadêmica, espero obter um trabalho que esteja aliado àrealização financeira, a oportunidade de atuar em projetos sociais com as comunidadespopulares, propiciando uma melhor qualidade de vida geral.

Sabendo que a formação acadêmica não se completa na graduação, tenho pretensõesde continuar os estudos, em cursos de especialização na área de nutrição clínica, e posteri-ormente fazer um mestrado e doutorado.

É dessa forma que levo minha vida, mostrando que por mais que existam obstáculosem nossas vidas, nada é impossível.

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Poderia ter começado minha história de várias maneiras, mas iniciei com este versículobíblico porque sou evangélica e gosto muito desta mensagem, ela me reanima sempre. Aocontar minha história você entenderá.

Nasci e fui criada em Cruz das Almas, cidade situada no Recôncavo da Bahia, ondesempre estudei em escola pública. Sou filha adotiva, talvez por isso valorize muito meuspais. Eles me criaram com muita dedicação, mesmo com todas as dificuldades que surgiam,me incentivavam e me alertavam que tinha de lutar por meus objetivos e que deveriaromper as barreiras que a vida colocasse à minha frente: que tentasse sempre, e não desistis-se ou desanimasse jamais.

Na escola primária, participava das aulas e de todas as atividades da escola. Lembro-me que sempre visitávamos a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA),onde eu e a turma aprendíamos muito sobre os alimentos; também desfilávamos no aniver-sário da cidade. Bons tempos! Quando pequena, ia continuamente com minha mãe à bibli-oteca municipal, onde escolhia livros de histórias infantis bem coloridos e cheios de gravu-ras. Gosto muito de ler.

Estudar sempre foi um prazer. Ia ao colégio para adquirir mais conhecimento e com-partilhar momentos de alegria com meus colegas; ajudávamos-nos naqueles assuntos dedifícil assimilação. Minhas notas sempre foram boas, mas em algumas matérias obtinhanotas piores. Precisei de reforço escolar em matemática; tinha horror a essa matéria e possodizer que o assunto mais interessante nesta seara foi matriz, pois o professor fazia com quedesenvolvêssemos nosso raciocínio lógico.

Morávamos eu e meus pais em uma casa no bairro da Assembléia. Em 1994, quandominha avó comprou uma casa nova, nos chamou para morar com ela, no bairro do Itapicuru.Vivo lá atualmente. A convivência em minha casa é muito boa, mas é claro que houvemomentos de crise, com crises financeiras que atingiam minha família. Havia constantesdiscussões e meus pais quase se separam. Sofria em ver que um casamento de 25 anos

* Graduanda em Comunicação pela UFRB.

Meire Aparecida de Souza Fiuza*

Superação

Não te mandei eu? Esforça-te, e tem bomânimo; não temas nem te espantes; porqueo Senhor teu Deus é contigo por onde querque andares. Josué1: 9

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poderia se desfazer. Desde que meus pais tinham vindo embora de São Paulo nunca conse-guiram arranjar um emprego fixo, “se viravam”. Trabalharam como ambulantes e autôno-mos durante dezoito anos e não foram bem sucedidos. Vendiam em barracas carne, bijute-rias, desinfetantes e doces. Foram tempos difíceis, meus pais contraíram dívidas e o queganhavam era pouco para cobrir as despesas da casa. Após esse período, em 2005, meu paiconseguiu emprego em uma fábrica de lajes e pré-moldados. As coisas melhoraram.

Estimulada por mim, em 2002 minha mãe voltou a estudar e deve concluir em 2007 o3º ano do ensino médio. Muito dedicada, ela participou do concurso da Prefeitura Munici-pal de Cruz das Almas em 2006, conseguiu boa pontuação e foi admitida no mesmo ano;hoje trabalha como auxiliar de serviços gerais. Ainda bem que as lutas só serviram para queo amor na nossa família crescesse mais e que pudéssemos valorizar uns aos outros.

Como disse, sempre me interessei pelos estudos. As matérias que mais gostava eramCiências e Educação Artística, porque sempre amei fazer artesanato e sempre fazíamos algonovo. Aos doze anos comecei a fazer artesanato para vender, o dinheiro dava para compraralgumas coisas, a realidade financeira não era fácil, vendo a situação que passávamos e nãome acomodei. Aprendi a confeccionar caixas presenteáveis, bordados, pinturas em tecido e,há cerca de quatro anos, conheci o “Biscuit”, material que se assemelha massa de modelar,utilizado para fazer ímãs de geladeira e objetos de decoração de cozinhas. Rende pouco,mas me ajudou a comprar minhas apostilas do colégio e mesmo no início da faculdade.

Estudei na escola Recanto Feliz da alfabetização à 4º série. Nessa última série (aosdez anos) participei do concurso de desenho “Pinta o Sete”, promovido por um mercadodo município. O desenho devia ser baseado na história de origem da cidade. Entre osprimeiros colocados fui classificada em sétimo lugar. Ao concluir o ensino primário,minha professora disse que minha vaga estava garantida no Centro EducacionalCruzalmense (CEC). Mas não foi tão fácil assim: sofri preconceito racial. Sou negra e meorgulho disso. Minha mãe conversou com as professoras da antiga escola, elas recomen-daram que fôssemos falar com a diretora do CEC. Ao conversar com a diretora da institui-ção minha mãe explicou que eu era uma boa aluna e que não sabia o porquê de ter sidomandada para outra escola. A diretora, com tom arrogante, perguntou: “Esta menina é boamesmo?” Recordo-me que minha mãe se calou, apenas tirou o boletim de notas da bolsae apresentou a ela. Então ela voltou e disse, meio sem jeito: “Continue assim que vocêterá sucesso na sua vida estudantil”. Minha vaga foi concedida, estudei neste colégio da5ª série ao 3º ano científico.

Estive sempre atenta a concursos e atividades que ocorressem em minha cidade. No 2ºano científico, participei do concurso da Secretaria da Fazenda para um estágio. Eram seisvagas, fui a nona colocada e, como não houve desistência, não consegui o estágio. Já no 3ºano científico participei de uma seleção para um cursinho pré-vestibular da prefeitura,nomeado “Pré-vestibular do Povo”: fui aprovada. Efetuei minha matrícula e cursei durante2006, no período noturno. Estudava no colégio à tarde e, com muito esforço, me deslocavapara o centro da cidade à noite. Ia de bicicleta com minha vizinha, que desistiu, mas eucontinuei a ir, porque meu pai me buscava todos os dias.

Em setembro de 2006 me inscrevi em um concurso de redação criado pelo RotaryClub da minha cidade, cujo tema central era “A melhoria do ambiente físico de Cruz dasAlmas”. Esperava-se por sugestões de educação ambiental ou gestão ambiental do municí-pio. Fiquei em primeiro lugar do Ensino Médio e fui premiada com um computador, (até

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então nunca tive condições financeiras para comprar). Minha redação foi publicada naRevista Canal, que circula na cidade.

Cursar a universidade sempre foi um sonho, às vezes achava inatingível. As dúvidasbrotavam em minha cabeça. Não era só a escolha do curso, mas como me manteria sepassasse. Os cursos com os quais me identificava eram desenho industrial, design de produ-tos, decoração de interiores e editoração gráfica. Mas eles só existiam em Salvador. Nãohavia como morar lá, não tinha parentes que pudessem me acomodar e a grana era curta.Decidi procurar outro curso que gostasse e fosse perto de casa. A solução foi o curso deComunicação Social em Cachoeira, próximo da minha cidade.

Fiquei na expectativa do processo de isenção de taxa de inscrição do vestibular econsegui êxito. Estava ansiosa e preocupada. Minha cabeça era um turbilhão de pensamen-tos! Dediquei-me mais ao colégio, além de ter feito cursinho. Prestei o vestibular e fuiaprovada na 1º etapa, uma alegria só! Uma amiga minha que havia sido também aprovadame convidou para estudarmos juntas. Assistimos aos filmes cobrados no vestibular e aindapagamos uma revisão em um cursinho particular, pois a 2º etapa já se aproximava. Nela aprova seria aberta, mas mesmo assim fiquei calma pedi direção a Deus. Fiz a prova tranqüila,afinal se não fosse aprovada já seria experiência para o próximo! Sou muito otimista achoque isso me ajudou muito e apesar das preocupações não entrava em desespero. Respondiminha prova e fui para casa. Quase todos os dias ia a uma lan house próxima para ver se jáhavia saído o resultado. Finalmente, no dia 26 de janeiro de 2007, soube a tão boa notícia:passei! Abracei meus familiares, chorei de emoção. Em minha cabeça passava um filme detudo que havia feito para conseguir realizar meu sonho. Vou sempre me lembrar destemomento ímpar em minha vida. Infelizmente algumas amigas minhas não conseguiramserem aprovadas, dou o maior apoio para que elas prestem vestibular novamente. A palavra-chave é tentar.

Hoje sou universitária e curso Comunicação Social. Estou muito feliz, afinal commuito esforço realizei um dos meus sonhos. Incentivo todos que têm interesse em fazervestibular. Que não fiquem estagnados diante dos obstáculos e que almejem as vitórias queestão por trás deles. Sei que é difícil, mas não impossível; a vitória é virtude apenas dosfortes, pois os fracos não conseguem ao menos lutar.

Sou grata a Deus, minha razão de viver, à minha família e meus amigos. Agradeço atodos que sempre me estimularam; se hoje consegui o que tenho não é privilégio só meu, éuma vitória de todos que me deram força, e não me deixaram desanimar

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Em 1983 o meu mundo começou. Foi quando minha mãe, com a graça do EspíritoSanto, trouxe-me pra cá e a minha história é mais ou menos a seguinte...

Nasci em Pintadas, cidadezinha no interior da Bahia, e comecei a minha vida escolaraos sete anos de idade na Escola Municipal Públio Barreto. Sempre gostei de estudar, achoque os obstáculos e dificuldades que passei para freqüentar a escola até concluir todoensino fundamental eram o que despertavam meu desejo de sempre continuar. Falo issoporque minha família sempre morou na zona rural, em um povoado localizado na divisãodos municípios de Pintadas e Maíri, e isso dificultava minha caminhada escolar.

Comecei a minha alfabetização já tardia, estudava em uma escola multiseriadada, ouseja, a professora lecionava para alunos da alfabetização até a 4ª série do ensino fundamen-tal. No mesmo turno e sala era impossível dar a mesma da atenção para todos os alunos.Dessa forma eu, assim como todos os outros coleguinhas de sala, tivemos uma base escolarprejudicada.

Para prosseguir com os estudos após esta etapa foi um processo difícil, pois morandona zona rural ficava complicado o deslocamento para a cidade e, para proceder com acaminhada estudantil teria que ser assim, já que na zona rural só tinha escola que ensinavaaté a 4ª série do ensino fundamental.

Mas foi assim que a prefeitura disponibilizou um microônibus para levar os estudan-tes interessados. Não foi fácil, pois eu tinha que andar todos os dias um bocado, devido oponto do transporte ser distante da minha casa. Sendo assim, tinha que sair cedo, por voltadas onze horas, e só retornava para casa novamente mais ou menos umas sete da noite.

Foi assim que comecei a estudar da 5ª a 8ª séries do ensino fundamental na EscolaMunicipal Professora Zilda Dias da Silva, na cidade em que nasci. Após a 8ª série tive quemudar de colégio, já que lá não havia ensino médio.

Comecei a estudar no Colégio Estadual Normal de Pintadas, durante dois anos, con-cluindo o último ano no Rio de Janeiro, no Colégio Estadual Charles Dickens. Ao começaro ensino médio optei por magistério (curso preparatório para formação de professores paraensinar de 1ª a 4ª séries), pois como não tinha certeza se no futuro iria fazer um cursosuperior, imaginava que optando por este curso, poderia depois de concluído conseguir umemprego na prefeitura, como muitos dos professores dos quais me ensinaram conseguiram.A maioria dos professores que me ensinaram na época não tinha nível superior, ensinavam

Núbia Oliveira*

* Graduanda em Enfermagem pela UFRB.

Texto autobiográfico

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apenas com o conhecimento que tinham adquirido no nível médio. Hoje, graças a Deus,esta realidade está mudando, pois só agora eu sei as dificuldades que tenho passado pelofato de não ter tido uma formação melhor. Não quero menosprezar o trabalho deles, afinaltenho consciência que a maioria se esforçou para dar o melhor de si e também sei que senão fosse dessa forma nem o ensino básico eu teria conseguido, uma vez que eu não tinhaoutra opção.

Sou filha de Osvaldo Gonçalves das Mercês e Carmezinda Vitalina de Oliveira, amboslavradores, hoje aposentados.

O nível cultural da minha família, no que diz respeito ao conhecimento formal, épouquíssimo. Sou filha de pais semi-analfabetos, e isso se justifica em parte pela falta deoportunidade que os mesmo não tiveram de freqüentar uma instituição educacional formal,afinal o conhecimento que adquiriram a foi graças a organizações feitas na comunidadecom propósito de transmitir o limitado conhecimento de uma pessoa para os componentesda mesma. Foi dentro da casa de um dos moradores da comunidade, com outras criançasreunidas, que meus pais também puderam ter a chance de concluir até a 3ª série do ensinofundamental.

Pertenço a uma família composta de quatro irmãos, dos quais dois deles não tiveram aoportunidade de concluir nem o ensino médio, sendo hoje também considerados semi-analfabetos.

Desde criança estudei em escola pública e o meu maior sonho era cursar enfermagem emuma instituição federal. Me sinto lisonjeada de hoje fazer parte do corpo discente de uma.Mas sei que as dificuldades serão inúmeras, porque não tive uma boa formação escolar.

Espero que, a partir dessa bolsa do Conexões de Saberes eu possa contribuir com aspolíticas afirmativas ajudando as comunidades populares e, ao mesmo tempo, eu possa coma parte financeira investir em melhorias no meu curso, participando de projetos e comtempo disponível para evoluir profissionalmente.

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Meu nome é Queilane Salvador Santos, a segunda filha de Pedro Pereira dos Santos eCleonice da Conceição Salvador, irmã de Fabio Salvador Santos. Nasci em maio de 1988em Cruz das Almas-BA. Oito meses após o meu nascimento, meu pai comprou um sítio nazona rural, no povoado de Cerquinha, que faz parte de Cabaceiras do Paraguaçu. Foi lá quedei os meus primeiros passos. Meu pai, nesta época, trabalhava em Salvador como garçomem um restaurante, e minha mãe como professora do ensino fundamental, profissão queexerce até hoje. Minha mãe, além disso, trabalhava nas horas vagas na agricultura.

No entanto, mesmo morando na zona rural, estudava em Cruz das Almas, e para chegaraté a cidade tinha que pegar ônibus todos os dias. Estudava numa Escola Municipal MariaPeixoto Barbosa junto com meu irmão, Fabio que estava dois anos adiantado em relação àmim. Tive que repetir a alfabetização por não saber soletrar as palavras.

A minha infância foi bem divertida no povoado onde morava, pois tinha muitasamigas e brincávamos bastante. Não posso deixar de falar do Fabio, que sempre foi um“irmãozão” para mim. Sempre gostei de brincar de boneca, tanto que quando percebi jáestava com quinze anos e brincando de boneca.

Algum tempo depois meu pai deixou o trabalho de garçom e foi trabalhar de agricul-tor no seu próprio sítio onde morávamos. Até que um dia meu pai resolveu comprar algumasterras em Juazeiro-BA, e infelizmente foi obrigado a vender seu sítio para poder pagar asterras. Foi a partir daí que a nossa vida financeira começou a mudar.

Nesta época estava com dez anos, estudava no Colégio Municipal Jorge Guerra, emCruz das Almas, estava na quinta série. Tivemos que nos mudar para o povoado da Pindobeira,em Muritiba-BA, em um sítio do meu avô.

Chegando a Pindobeira , percebi que a vida não seria fácil. Meu pai, endividado,sendo obrigado a trabalhar como agricultor, e como se sabe, não é muito rentável viver daagricultura, contávamos apenas com o salário mínimo da minha mãe para nos mantermos.Tanto eu como meu irmão sempre fomos estimulados pelos nossos pais a superar as dificul-dades e procurar o caminho do aprendizado e do crescimento. E graças a Deus nasci noberço evangélico. Somos da igreja Assembléia de Deus, e era na igreja que nos sentíamosrevestidos de força para enfrentar as dificuldades.

Desde a minha adolescência que vejo e sei o que é privação, é você querer alguma coisae não poder ter. Não que meus pais não quisessem me dar as coisas, mas porque realmente não

Queilane Salvador Santos*

A realização do sonho

* Graduanda em Museologia pela UFRB.

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tinham condições. Tanto eu como meu irmão tínhamos que trabalhar junto com nossos paisna lavoura. Era uma vida complicada, porque, além disso, era preciso estudar.

Graças a Deus sempre fui uma boa aluna, desde o ensino fundamental até o ensinomédio nunca passei por uma recuperação, e sempre dei orgulho aos meus pais.

Para ser realista, não pensava em fazer um dia uma faculdade, porque achava que nãotinha capacidade de passar no vestibular. Mas quando vi meu irmão ingressar na faculdade,me despertou uma vontade muito grande, de entrar e fazer o mesmo. Meu irmão prestou ovestibular sem fazer cursinho, ele estava encerrando o seu terceiro ano quando prestouvestibular da Universidade Federal da Bahia (UFBA) no curso de Zootecnia. Alguns diasdepois, saiu o resultado do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), e ele foi aprovadono Programa Universidade Para Todos (PROUNI) e faz Geografia na Faculdade Maria Milza(FAMAM). Resumindo, meu irmão faz duas faculdades.

Então pensei: meu irmão passou, eu também posso passar. Estava no meu segundoano do ensino médio e já falava em estudar para o vestibular. Lembro-me que nas minhasférias de final de ano estudei dois livros de História e alguns romances. Quando iniciei oterceiro ano, só falava em vestibular. Estudava no Colégio Estadual Landulfo Alves e naminha sala tinha 52 alunos; dentre esses, só eu prestei o vestibular.

Havia dificuldades para poder estudar para o vestibular, porque pela manhã trabalha-va, à tarde ia para o colégio e à noite era o único tempo que me restava para estudar, tantopara o colégio quanto para o vestibular.

Não tive condições financeiras para fazer um cursinho pré-vestibular, tinha que pegarlivros emprestados na Biblioteca Municipal.

Meus pais e meu irmão sempre me deram maior foca na época em que estudava para ovestibular. Na igreja onde congrego pedi aos irmãos da igreja que orassem por mim. Esempre dizia para os meus pais que este vestibular era o vestibular do milagre, pois estavafirmemente confiante em Deus que tudo ia dar certo. E realmente tudo deu certo.

Prestei o vestibular 2006/2007 da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia(UFRB), e passei para o curso de Museologia. Este foi o meu primeiro vestibular, e sinto-mebastante vitoriosa, porque vim de uma família pobre, de uma escola pública.

Hoje faço parte do Programa Conexões de Saberes e espero que, através da minhahistória pessoal, muitas pessoas possam ser incentivadas a prestar o vestibular e entrar numafaculdade.

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92 Caminhadas de universitários de origem popular

Nasci em Salvador-BA, no dia 13 de março de 1986. Em 2007 dei um passo muitoimportante para minha vida ao passar no vestibular da Universidade Federal do Recôncavoda Bahia (UFRB).

Para muitos a entrada na universidade é apenas uma continuação de seus estudos, maspara mim é a melhor forma de exercer cidadania, assim cobrar nossos direitos.

Não quero que digam “coitadinha” sobre mim, mas que minha história pessoal sirvade incentivo para quem tem outras histórias e saiba que não há limites para quem acreditaem si mesmo.

InfânciaGrande parte de minha infância morei com meus avós em Cruz das Almas-BA e,

devido a essa convivência, me habituei a referir-me a eles como “mainha e painho”. Esempre que me recordo disso me vem à memória o dia em que minha mãe foi nos visitar e,após seu regresso, meu tio Lucas, com ciúme, me mandou sair do colo de mainha, poisaquela era mãe dele e não minha. Então mainha nos explicou carinhosamente que por elaser minha avó, era o mesmo que ser minha mãe por duas vezes. Daquele dia em diante elepassou a explicar a todos que ele era meu tio, de forma muito engraçada, onde demonstravao orgulho de ser mais do que meu irmão.

Meu avô bebia muito, o que dificultava ainda mais a vida em casa. Minha avó faziacrochê. Nenhum deles possuía educação formal, aliás, ninguém na família foi muito longenesta área, com exceção de minha mãe, que cursou até a oitava série do ensino fundamental.

Por esses e outros motivos eu praticamente não freqüentei a escola infantil. Lembro que,por influência de minha mãe, cheguei a ser matriculada, mas que no meu primeiro contato com a escola eu adquiri verdadeira aversão, por sentir-me inferiorizada (não sabia sequer o abecê).Talvez também por ter olhos grandes, ser magrela e possuir cabelos crespos e avermelhados,o que era assustador e servia como alvo de deboche. No meu primeiro dia de aula, aprofessora pediu-me para dizer as vogais; fiquei apavorada e comecei a fazer xixi no meioda sala. Aquilo repercutiu muito mal, fui tratada de forma cruel enquanto estive na escola.

Com aproximadamente nove anos de idade fui morar com dona Helena (amiga deigreja de minha avó). Lá, minha vida não foi nenhum mar de rosas, porém foi nesse local queaprendi a ler e escrever e decidi voltar a estudar. E ao retornar para morar com meus avós -agora em Candeias-BA - pedi a eles que me matriculassem em uma escola melhor e assim foi

* Graduanda em Engenharia Agronômica pela UFRB.

Solange Conceição Silva*

Minha história

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feito. Ao chegar à nova escola percebi que tirava sempre as melhores notas e ganhei afeto ea admiração de todos, pois tinha idade e conhecimento avançado para estar na primeirasérie do ensino fundamental. Foi proposto então pela secretaria da escola uma forma deadiantar-me no nível escolar. Fui neste mesmo ano para a terceira série e, desde então, nãomais parei de estudar.

Durante a minha infância também houve momentos em que estive ao lado de minhamãe. Esses foram marcados por brigas horríveis entre ela e Raimundo (pai de meus irmãos),contudo foi quando freqüentei com muito entusiasmo a praia, shoppings e parques, ou seja,lugares que até então eu só conhecia pela televisão. Em relação a meu pai, ele nunca estevepresente em minha vida, apenas sei que tenho mais três irmãos.

AdolescênciaAo concluir a terceira série do ensino fundamental, saí de Candeias e fui morar com

minha mãe em Salvador. Eu estava com aproximadamente doze anos, minha mãe se encon-trava separada de Raimundo e, com muito esforço, acabava de construir uma pequena casapara morarmos nós três: eu, ela e Reijane, minha irmã mais nova que estava morando comsua avó paterna.

Fomos matriculadas em uma escola que ficava a 40 minutos à pé de casa. No primeiroano ambas estudávamos pela manhã e, como eu me encontrava na quarta série do funda-mental, no ano seguinte passei para o turno vespertino, pois a norma da escola era primáriopela manhã e ginásio à tarde, então fomos separadas.

A minha estadia nessa escola foi tranqüila e amigável, fiz amigos para toda uma vida;no entanto foram momentos conturbados em casa, pois Reijane acabou se afastando daescola. Indiretamente isso ocasionou a reconciliação de minha mãe com Raimundo, e de-pois disso veio o nascimento de meu irmão mais novo em 1999. Com a reaproximação docasal vieram também conflitos familiares.

Mesmo com varias confusões “daquelas”, em momento algum deixei minha vidaacadêmica, e então eu tentei conciliar trabalho com estudo. Comecei a trabalhar comoatendente em uma loja de aluguel de painéis perto de casa. E em meados de 2004 arrumeium estágio de recepcionista em uma pequena empresa de cursos profissionalizantes. Fiqueipor um ano e meio, até a conclusão de meu ensino médio.

2006: um ano especialO ano de 2006 se iniciava e eu desempregada e desesperada, pois não contava

sequer com a ajuda de custo do estágio, que havia acabado, já tinha distribuído currículos enão conseguia emprego. Sem alternativa, trabalhei com jogo de bicho com minha mãe,na esperança de encontrar algo de meu interesse depois. Trabalhava de dia e fazia ocursinho Universidade para Todos (programa do governo federal) à noite, para no finaldo ano prestar vestibular. E assim, prestei vestibular para Universidade Federal daBahia (UFBA), Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), UniversidadeEstadual da Bahia (UNEB) e CEFET-BA (Centro Federal de Educação Tecnológica daBahia). Fui aprovada em Engenharia Agrônoma na UFRB e em Automação e ProcessosIndustriais no CEFET.

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A escolha do cursoMinha intenção de fato era passar na UFRB, pois nos outros centros escolhi cursos

estritamente ligados a Ciências Exatas. Eu prefiro algo mais ligado à área de Ciências Bio-lógicas e naquele mesmo ano conheci uma pessoa que cursa Agronomia na UFRB, entãodespertei meu interesse no curso. Estou adorando meu curso, sei que futuramente não seráfácil, mas espero contribuir de forma qualificada para a sociedade.

A chegada na UFRB e o Programa Conexões de SaberesNo dia em que vi o resultado do vestibular, ao mesmo tempo em que sentia alegria

sentia também medo; eu mesma me indagava sobre o que iria fazer. No entanto, ouvindo amúsica “Caminhos”, de Raul Seixas, que diz “o caminho do risco é o sucesso”, deixei oemprego para me dedicar ao estudo.

E chegando na universidade pensava todo o tempo em como iria me manter no curso,já que o horário da faculdade já é um grande empecilho para conciliar estudo e trabalho.Estágio só se consegue a partir do terceiro semestre e com todos os pré-requisitos, comomédia superior a sete nas notas em sala, além da concorrência. Ao ver o edital do ProgramaConexões de Saberes verifiquei que me encaixava em todo o perfil proposto, isso me surgiucomo a “luz no fim do túnel”.

Ao entrar no Programa, percebi que era algo muito maior do que a ajuda financeira:era a oportunidade de conscientizar pessoas da mesma origem que a minha e que se encon-tram incrédulas quanto à sua própria capacidade de cursar o nível superior em uma faculda-de pública. Espero corresponder ao objetivo do Programa.

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Contar por escrito a história da minha vida é algo inédito para mim, mas também éuma experiência que me possibilita trazer à memória alegrias e tristezas, dificuldades evitórias. Mesmo tendo o hábito de escrever sobre diversos assuntos não somente na escolae posteriormente na universidade, mas também em casa, encaro a tarefa de redigir um textoautobiográfico como bastante desafiadora.

Meu pai, Gilberto, natural de Cachoeira-BA e minha mãe, Janice, nascida em SãoFélix-BA, se casaram no final de 1984. Alguns meses depois meu pai faleceu vítima deafogamento; mesmo sabendo nadar, ele sofreu congestão e seu corpo só foi encontrado nodia seguinte. Ele tinha 18 anos.

Numa tarde de dezembro de 1985 eu nasci, pesando pouco mais de três quilos equebrando os prognósticos de alguns vizinhos que diziam que eu, devido a ter pais comporte físico magro, iria nascer com bem menos peso.

Após a morte de meu pai, minha mãe continuou morando com minha avó Guilhermina.Ela era do tipo “matriarca”, que gostava de ver toda família reunida e manter tudo, inclusivea vida de todos os familiares, sob seu controle. Ela só teve duas filhas “legítimas”, porémtinha uma grande vocação para adoção. Sempre fez questão de nos ensinar princípios de fé,carinho, respeito e equilíbrio.

Iniciei a alfabetização com quatro anos de idade, tardiamente para padrões da época emais tardio ainda para os atuais numa escola vinculada a uma igreja evangélica a qual nóspertencemos até hoje, o Instituto Educacional Batista (IEB). Lembro-me que no primeirodia de aula chorei muito. Não me adaptei bem à professora no primeiro ano da alfabetizaçãoe por isso a direção me tirou do turno matutino e me colocou no vespertino, com umaprofessora chamada Norma. Com ela meu comportamento melhorou. No último ano doperíodo pré-escolar, em uma das brincadeiras do recreio, caí e fraturei o braço esquerdo, oque gerou muita preocupação por parte dos professores e funcionários, pois tinham receiode que minha avó responsabilizasse os mesmos por isso; porém quando ela e minha mãeperceberam que se tratava de nada muito grave, se acalmaram.

Aos sete anos minha mãe me matriculou no Grupo Escolar Carlos Marques de Almeida,onde cursei da 1ª a 4ª séries do primário. Na 1ª e na 2ª séries estudei no turno da tarde. Tiveboas notas e gostava muito de Português e Estudos Sociais, uma matéria que ensinavaassuntos relacionados à História e Geografia.

Toniel Costa do Carmo Santos*

* Graduando em Comunicação Social - Jornalismo pela UFRB.

Texto autobiográfico

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As duas professoras que me ensinaram nestas séries foram muito boas. Já na 3ª e na 4ªséries, somente uma professora chamada Edna me ensinou ambas. Ela é uma profissionalcompetente e, naquele período, sua característica marcante foi ser exigente quanto ao de-sempenho dos alunos, tanto que na sala havia vinte alunos e somente três não precisaram derecuperação para passar para a 4ª série - eu estava entre eles. A 4ª série ficou marcada pelagrande dificuldade que tive com Matemática, visto que se eu não tivesse bom desempenhoem Português e não dominasse as quatro operações não ingressaria na 5ª série. Com defici-ência nas operações de divisão, precisei de aulas de reforço para solucionar o problema.

Porém, o que mais me marcou nessa época, foi o período de outubro de 1995 a janeirode 1996. Foi quando minha avó paterna Celina ficou muito doente e acabou falecendo.Gostava muito dela e todos os domingos ou ela vinha até minha casa ou íamos até Cacho-eira visitá-la.

No Centro Educacional Rômulo Galvão (CERG), um colégio estadual, cursei da 5ªsérie ao 3ª ano de formação geral entre 1997 e 2003. A 5ª série foi um período de adaptação:mais disciplinas, mais professores, mais aulas por dia e maior cobrança de desempenho. Asaulas de que eu mais gostava eram as de Geografia, com a professora Girlene; Português,com a professora Edna e posteriormente com a professora Rosângela e Educação Artística,com a professora Lélia. Tive dificuldade com Ciências, Inglês e Educação para o Lar, umadisciplina relacionada a artesanato. Surpreendentemente não tive problemas com Matemá-tica, pois a professora Marilda explicava os assuntos de forma simples e prática, facilitandoa compreensão.

Na 6ª série não fiz uma boa primeira unidade, período geralmente equivalente há umbimestre, mas nas outras me dediquei mais e me recuperei.

Em 1999, na 7ª série, não tive problemas nas disciplinas, mas em meados de junhofiquei doente. Primeiro veio a febre alta que surgiu diariamente nos mesmos horários, de-pois começaram as dores no corpo e principalmente nas articulações. Como não havia umespecialista na cidade, um clínico geral diagnosticou “febre sem origem”. Fomos a umareumatologista em Feira de Santana e ela descobriu que se tratava de uma Artrite ReumatóideJuvenil, que apesar de ser uma doença óssea, tem origem no sangue devido a fatores gené-ticos. Ela aparece geralmente em mulheres - a probabilidade de aparecer em homens é deuma a cada cem casos - e por isso quando acontece em homens vem de forma mais intensae agressiva.

Foram três meses de perda de peso, restrição de movimentos e enfraquecimento dosistema imunológico devido aos medicamentos. Em setembro consegui retornar à escolacom parte do peso recuperado e dos movimentos também.

Fiz as provas e trabalhos pendentes e ainda deu tempo de participar da 1ª ExposiçãoInterdisciplinar do CERG, que tinha como tema a cidade de São Félix. Foram apresentadostrabalhos de pesquisas nos locais mais importantes da cidade. Além disso, foi feito umtelejornal no qual eu era um dos apresentadores, onde as reportagens eram voltadas para osproblemas dos bairros.

A 8ª série foi em 2000 e, mais uma, vez precisei ficar alguns meses sem estudar devidoao aparecimento de Lupus Eritrematoso Sistêmico, uma patologia reumática que se asso-ciou à Artrite Reumatóide. O Lupus afeta o sistema imunológico para fazer que as defesasataquem, ou seja, o sistema de proteção do organismo desenvolve mecanismos de ataque aopróprio organismo.

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Desta vez a recuperação foi mais gradativa. Precisei ir de táxi até o colégio e voltarandando com dificuldades; mesmo assim recuperei as provas que eu não tinha feito no pe-ríodo de tratamento e com boas notas. Acho que a superação foi fundamental naquela situação,assim como o apoio de minha mãe, minha avó e pessoas como meus amigos Carlos e Angelino.

Em 2001, prestes a iniciar o ensino médio, existiam duas opções de curso: o Magisté-rio (Ensino Médio Normal) e o de Formação Geral (popularmente chamado na época deCientífico). Optei pelo último porque já pensava em fazer vestibular para Jornalismo.

O ano letivo ficou marcado pelo início da reforma no CERG, que começou na metadede 2001 e se estendeu até os primeiros meses do ano letivo de 2002. Foi período de aulasquinzenais em uma escola municipal inativa. Nesse mesmo ano, apareceram seqüelas daatividade do Lupus, como as deformidades nas mãos, cotovelos e pés.

No 2º ano do ensino médio, grande parte do ano letivo foi cursado no CERG, após areforma do mesmo. Tive bom desempenho nas disciplinas, em especial Química, Sociolo-gia, Artes, Espanhol e História, porém eu achei muito importante ter feito mais textos nasaulas de língua portuguesa com o professor Conrado.

No 3º ano do ensino médio tive novamente problemas físicos. Só pude freqüentar aescola a partir de abril. Neste mesmo ano fiz o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)pela primeira vez e repeti nos anos de 2005 e 2006. Fiz apenas para testar meus conheci-mentos, me preparando assim para o vestibular, visto que não tinha condições financeiraspara fazer um curso preparatório.

Em 2006 surgiu em Cachoeira a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB),só que a informação que eu recebi de início era que haveria cursos de História, Museologiae Pedagogia. Como não me interessei por nenhum deles, resolvi não me inscrever. Posteri-ormente descobri que o curso de Pedagogia seria substituído pelo de Comunicação e, destavez, pensei em prestar o vestibular no fim do ano. Só tomei a decisão dois dias antes do finaldas inscrições.

Também me inscrevi no Programa Universidade Para Todos (PROUNI), pois comomeu perfil se encaixa nas exigências, achei que teria mais chances do que no vestibular daUFRB. A prova da 1ª fase representou para mim um momento de reflexão. O fato de eu estarali significou um ato de força de vontade. Percebi que basta querer e se esforçar para quetodas as coisas conspirem a favor dos objetivos.

Impulsionado pelo êxito na 1ª fase, usei todo tempo possível para estudar para a provada 2ª fase. Assim como na 1ª, a minha tática foi usar todo o tempo disponível no dia daprova. Alguns dias antes do resultado final saiu outro resultado, o do PROUNI e eu nãoestava entre os relacionados. Só restava portanto, o vestibular da UFRB.

Na verdade eu fiz o vestibular apenas com o intuito de ganhar experiência, poisachava que passados três anos da minha formatura eu estaria desatualizado, e portanto nãoteria chances reais de passar. Esse pensamento mudou quando passei para 2ª fase, poispercebi que, se tinha chegado até aqui, não poderia perder essa oportunidade.

Após mais de um mês de espera, saiu o resultado e eu soube de forma inusitada: numfim de tarde de sábado, um colega que também fez o vestibular veio me parabenizar, trazen-do o jornal que continha a lista de aprovados, ou seja, eu fui o “último a saber”. Assim comoeu, ele também passou, só que para Museologia. Infelizmente Carla, uma vizinha que muitome ajudou nesse período, não passou para enfermagem. A “ficha só caiu” após a matrícula.Todo esforço e espera valeram a pena.

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Nesta ocasião, inclusive, contei com a colaboração da professora Maria José, queresolveu todos os detalhes da matrícula e tem me ajudado bastante nesse processo de adap-tação a este novo desafio.

Ao entrar na universidade percebi que este não era um local apenas de aprendizadoacadêmico, mas de troca de conhecimentos tanto dentro como fora da instituição. Osurgimento na UFRB do Programa Conexões de Saberes tornou-se uma evidência firmedeste principio, pois proporciona que nós, bolsistas, sejamos agentes modificadores dasociedade.

Mesmo enfrentando muitos desafios, posso afirmar que Deus coloca pessoas em nossocaminho para nos ajudar nos momentos em que mais precisamos.

Foram professores, amigos e familiares que me deram a mão. Se eu for listar estesnomes posso me esquecer alguns, porém devo destacar a professora Edna Macedo e amigoscomo Albert, Djavan, Eliane, Fernando, Hilário e principalmente Cleiton, que “apesar detorcer para o Vitória” sempre me ajudou e continua assim fazendo.

Não posso deixar de destacar também a importância fundamental de minha mãe.Preocupada sempre com o melhor para mim, me incentivou nos momentos que eu maisprecisava e até hoje me ajuda de todas as formas possíveis, se fazendo constantementepresente e influente em minha vida. E principalmente agradecer a Deus não só por estar aomeu lado, sustentando-me, mas também por Ele ter me proporcionado aprender lições debondade, solidariedade e determinação.

Cheguei até aqui e pretendo ir mais longe, preservando os ensinamentos que minhaavó materna, falecida em 2005, deixou para mim: acreditar em Deus, pois Ele dá forças esuporte para as batalhas da vida e não se intimidar com os obstáculos, porque eles nãosurgem para serem temidos e sim para serem vencidos.

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É com orgulho e honestidade que relato a trajetória de minha vida. Até os oito anos deidade convivi com meu pai, Antonio Carlos, minha mãe, Neuza, e minhas duas irmãs Uitiere Werla; devido a vários desentendimentos entre meus pais, ocorreu a separação, sofrimuito, pois amo muito meus pais.

Minha mãe, mulher guerreira, professora na época do ensino médio e fundamental,trabalhou muito para nos criar e educar, educação essa sempre ministrada em instituiçõespúblicas.

O tempo foi passando e minha infância terminando de forma tão sutil que só as lem-branças restaram, ficou um gosto amargo devido a frustração por não ter em minha casa umambiente saudável e propício para uma criança se desenvolver, por minha família ser deorigem humilde, tendo baixa renda e pela relação conturbada entre meus pais.

Agradeço a Deus todos os dias por minha mãe ter se revelado uma mulher batalhadora,me incentivando a estudar e me dando todo auxílio possível para que eu pudesse vir metornar um homem de bem. Porém a mesma vem enfrentando problemas de saúde sérios. Hápouco tempo minha mãe se submeteu a uma carga de exames, e por infelicidade do destino,a maioria em seus diagnósticos apontou problemas. Com isso, ela se encontra no momentoafastada de suas atividades para poder dar início aos tratamentos.

O esforço de minha mãe vem se refletindo na minha vida, porque ultrapassei barreirase hoje aqui estou, em uma universidade federal de respaldo, cursando Nutrição, profissãoque venho conhecendo e me apaixonando cada vez mais.

Sei que existem dificuldades, gastos, responsabilidades pessoais comuns que têm queser cumpridas, mas essa bolsa de estudos vai me dar um suporte para que eu possa permane-cer na universidade e vencer mais esse obstáculo.

Diante de todas as dificuldades encontradas no meu caminho, entre vitórias e derro-tas, posso analisar com clareza os fatos ocorridos na minha curta trajetória de vida, e con-cluir que a garra e a vontade de vencer estão sempre comigo, e por isso eu sou vitorioso.

Uirlon Sábigo Alves Cardoso*

Autobiografia

* Graduando em Nutrição pela UFRB.