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Universidade Federal do Rio de Janeiro Construção relacional: estado, mudança e resultado Bruna Gois Pavão Ferreira 2015

Universidade Federal do Rio de Janeiro · agora vê meu tão especial título de Mestre sendo alcançado ... meu amor, por estar ao meu lado em todos os momentos, ... SINOPSE Análise

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Construção relacional: estado, mudança e resultado

Bruna Gois Pavão Ferreira

2015

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Construção relacional: estado, mudança e resultado

Bruna Gois Pavão Ferreira

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas da Universidade Federal do Rio

de Janeiro como quesito para a obtenção do

Título de Mestre em Letras Vernáculas

(Língua Portuguesa).

Orientadora: Professora Doutora Marcia dos

Santos Machado Vieira.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2015

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FICHA CATALOGRÁFICA

F383c

Ferreira, Bruna Gois Pavão

Construção relacional: estado, mudança e resultado /

Bruna Gois Pavão Ferreira. -- Rio de Janeiro, 2015.

136 f.

Orientadora: Marcia dos Santos Machado Vieira.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do

Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de

Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 2015.

1. Funcionalismo. 2. Construções gramaticais. 3.

Verbos relacionais. 4. Construção relacional. I.

Vieira, Marcia dos Santos Machado, orient. II.

Título.

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Construção relacional: estado, mudança e resultado

Bruna Gois Pavão Ferreira

Orientadora: Marcia dos Santos Machado Vieira

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Língua

Portuguesa).

Examinada por:

_____________________________________________________________________

Presidente Professora Doutora Marcia dos Santos Machado Vieira

Departamento de Letras Vernáculas (UFRJ) - Orientadora

_____________________________________________________________________

Professora Doutora Roza Maria Palomanes Ribeiro

Departamento de Letras e Comunicação (UFRRJ)

_____________________________________________________________________

Professora Doutora Violeta Virginia Rodrigues

Departamento de Letras Vernáculas (UFRJ)

_____________________________________________________________________

Professora Doutora Eliete Figueira Batista da Silveira

Departamento de Letras Vernáculas (UFRJ) - Suplente

_____________________________________________________________________

Professora Doutora Edila Vianna da Silva

Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (UFF) - Suplente

_____________________________________________________________________

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2015

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Para ser grande, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis (Fernando Pessoa)

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeço a Deus, pois sempre acreditei que Ele não escolhe

os capacitados, mas capacita os escolhidos. Se não fosse Ele, eu não teria chegado até

aqui.

Aos meus pais, Miriam e Claudio, que sempre me incentivaram a estudar, a ser

uma boa aluna e a correr atrás dos meus sonhos com minhas próprias pernas. Devo a

vocês muito do que sou hoje. Foi o exemplo de vocês que me motivou a trilhar o

caminho do bem, o caminho do trabalho, da realização dos sonhos. Meu pai sempre diz

que “A vida é difícil”, e eu sei o quanto é difícil alcançar nossos objetivos. Há muitos

obstáculos, mas, quando temos fé e força de vontade, tudo é superado. Vocês me

inspiram e despertam o melhor de mim. São fundamentais em minha vida. Amo vocês.

Obrigada por tudo. Não há palavras suficientes para agradecer.

Ao meu marido, Douglas, que esteve presente em minha vida desde o Ensino

Médio, acompanhou toda a minha trajetória até aqui, me viu conquistar a tão sonhada

vaga para Letras na UFRJ (que sempre fora meu sonho!), viu minha formatura no

Bacharelado e na Licenciatura, viu minha tão sonhada aprovação para o Mestrado e

agora vê meu tão especial título de Mestre sendo alcançado... E está só começando!

Obrigada, meu amor, por estar ao meu lado em todos os momentos, não só de alegrias,

mas também de tristeza e desânimo. Obrigada por ter tanto orgulho de mim. Obrigada

por acreditar em mim até mesmo quando eu não me julgo capaz. Você é essencial em

minha vida. Eu te amo.

Ao meu irmão, Vitor, que sempre me incentivou, torceu e teve orgulho de mim.

Amo você.

Aos meus avós, Maria do Socorro, Nilson e Ruth, pela constante torcida e

orações, pelo carinho e pela presença em minha vida. Amo vocês.

A todos os amigos e familiares que sempre me incentivaram e torceram por

mim, especialmente meus padrinhos Rose, Eclésio, Cristina, Alinson, Vanessa e Paulo;

meus tios Léo e Olga; meus sogros Lucimar e Getulio.

À minha querida orientadora, Marcia, que despertou em mim, no 5º período da

Faculdade, o amor pela sintaxe e a certeza de que esse era o meu caminho. Suas aulas

me inspiraram e inspiram muito! O convite para a Iniciação Científica foi muito

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especial e foi o começo de tudo. Comecei a pensar no Mestrado, no Doutorado... Muito

obrigada pelos seus ensinamentos, por dividir seu conhecimento comigo, pela sua

atenção, paciência e disponibilidade. Obrigada por acreditar em mim!

Às minhas amigas de Graduação, Kate e Silvana, que sempre fizeram parte

desse sonho. Nossos trabalhos juntas, nossas conversas, nossa amizade... Obrigada por

torcerem por mim!

À Eneile, que me ajudou tanto em minha primeira apresentação na JIC, em

2011, quando minha orientadora estava em licença-maternidade. Obrigada pela atenção,

dedicação, pelos treinos e pela disponibilidade.

À Bruna Cupello, que conheci durante a IC, por revisar o abstract de minha

dissertação.

Às professoras Violeta, Roza, Eliete e Edila por terem aceitado tão gentilmente o

convite para participar de minha banca e pela disponibilidade e comprometimento.

Aos professores da Graduação e do Mestrado, que também me inspiraram, como

Violeta, Silvia Rodrigues, Vera Paredes, Maura Cezario, Maria Luiza Braga, dentre

outros.

Aos professores do Colégio Boas Novas, que também contribuíram para a

escolha de minha profissão.

Ao CNPq, pelo suporte dado em forma de bolsa durante a realização desta

pesquisa.

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Esta pesquisa foi desenvolvida com

financiamento do CNPq (02/2013 – 02/2015).

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SINOPSE

Análise da construção relacional com os verbos ser, estar,

ficar, andar, viver e virar com base no uso de tal

construção em contos literários do PB sob as perspectivas

funcionalista, construcionista e cognitivista, focalizando,

especificamente, a construção de estado e mudança,

resultativa ou não.

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RESUMO

CONSTRUÇÃO RELACIONAL: ESTADO, MUDANÇA E RESULTADO

Bruna Gois Pavão Ferreira

Orientadora: Marcia dos Santos Machado Vieira

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras

Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro –

UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em

Língua Portuguesa.

Com base em pressupostos teórico-metodológicos das abordagens funcionalista,

construcionista e cognitivista (BYBEE, 2003, 2010; GOLDBERG, 1995, 2003, 2013;

HALLIDAY, 1994; TAYLOR, 1995; TRAUGOTT & TROUSDALE, 2013; dentre

outros), esta pesquisa focaliza o uso da construção relacional em contos literários do

Português Brasileiro: mais precisamente de construções de estado ou mudança de

estado, resultativas ou não.

A construção relacional é formada, em geral, por sujeito, verbo relacional e

predicativo e apresenta uma destas relações de sentido entre os termos da construção:

atributiva ou caracterizadora, qualificativa, identificadora, equativa etc. A partir da

construção relacional, é possível distinguir alguns subtipos: construção de estado, que

não pressupõe processo anterior e não envolve dinamicidade; construção de mudança

de estado, que já pressupõe processo anterior e envolve dinamicidade; construção

habitual, que indica um estado habitual ao longo de um determinado tempo; construção

resultativa, em que há uma mudança de estado que envolve resultado. A análise baseia-

se em 806 dados desse tipo de construção, com ser, estar, ficar, andar, viver e virar em

60 textos narrativos. Dentre os problemas relativos à caracterização morfossintática e

semântica da construção com os verbos relacionais em estudo e à descrição funcional

das predicações em que eles ocorrem, examinam-se aspectos como: (i) a estruturação

mais frequente das predicações nominais do corpus – seus constituintes e a ordem

destes; (ii) a natureza do sintagma sujeito dessas predicações; (iii) a configuração dos

sintagmas predicativos sobre os quais os verbos relacionais operam gramaticalmente;

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(iv) o estatuto semântico de cada ocorrência das formas verbais em estudo, procurando

detectar semelhanças e diferenças entre suas instâncias de uso; (v) o estatuto funcional

das predicações nominais que tais formas verbais integram. Com isso, os dados foram

analisados de acordo com os seguintes parâmetros: (i) verbo relacional em questão; (ii)

tipo de construção relacional; (iii) grau de animacidade do sujeito; (iv) predicativo

restritivo ou não restritivo; (v) papel temático do sujeito; (vi) tipo de predicação

nominal; (vii) estrutura sintagmática do predicativo; (viii) tipo de processo relacional;

(ix) tipologia do estado de coisas representado pela predicação; (x) estado aspectual da

predicação; (xi) ordem dos termos da construção; (xii) polaridade negativa ou positiva;

(xiii) plano discursivo.

A partir da análise dos dados segundo esses parâmetros, é possível identificar que

os resultados não só consolidam a hipótese de prototipicidade da construção relacional

no gênero em estudo, como também permitem destacar as nuances de sentido

decorrentes da influência do verbo relacional sobre a construção em que se insere, além

de detectar outros verbos que podem assumir função relacional em determinada

construção, com base no estudo de seus aspectos sintáticos, semânticos e discursivos.

Palavras-chave: Funcionalismo, Construções gramaticais, Verbos relacionais,

Construção relacional.

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ABSTRACT

RELATIONAL CONSTRUCTION: STATE, CHANGE AND RESULT

Bruna Gois Pavão Ferreira

Orientadora: Marcia dos Santos Machado Vieira

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em

Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de

Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Mestre em Língua Portuguesa.

Based on theoretical and methodological assumptions of functionalist,

constructionist and cognitive approaches (BYBEE, 2003, 2010; GOLDBERG, 1995,

2003, 2013; HALLIDAY, 1994; TAYLOR, 1995; TRAUGOTT & TROUSDALE,

2013; among others), this research focuses the usage of relational construction on

literary tales Brazilian Portuguese: more precisely state or change of state constructions,

resultative or not.

The relational construction is formed, in general, by subject, relational verb and

predicative and it presents one of these meaning relations (that follow) between the

terms of construction: attributive or characterizing, qualifying, identifying, among

others. From the relational construction, it is possible to distinguish some subtypes:

state construction, which does not presupposes previous process and does not involve

dynamics; change of state construction, which presupposes previous process and

involves dynamics; usual construction, which indicates a normal state over a certain

time; resultative construction, in which there is a change of state involving result.

The analysis is based on 806 data of this type of construction, with the verbs ser,

estar, ficar, andar, viver and virar, collected in 60 narrative texts. Among the problems

related to of morphosyntactic and semantic characterization of construction with

relational verbs in study and functional description of predications in which they occur,

many aspects are considered, such as: (i) the most common structure of nominal

predications from the corpus - their constituents and order; (ii) the nature of the subject

phrase of these predications; (iii) the setting of predicative phrases on which relational

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verbs operate grammatically; (iv) the semantic status of each occurrence of verbal forms

in study, looking to detect similarities and differences between their use instances; (v)

the functional status of nominal predications that these verbal forms integrate.

Thus, the data were analyzed according to the following parameters: (i)

relational verb in question; (ii) type of relational construction; (iii) degree of animacy of

the subject; (iv) predicative restrictive or non-restrictive; (v) thematic role of the

subject; (vi) the kind of nominal predication; (vii) phrase structure of the predicative;

(viii) type of relational process; (ix) the state of affairs represented by predication; (x)

aspectual state of predication; (xi) order of the terms of the construction; (xii) negative

or positive polarity; (xiii) discursive level.

From the analysis of the data according to these parameters, it is possible to

identify that the results not only consolidate the prototypicality hypothesis of relational

construction in the studied genre, but also allow to highlight the sense of nuances

arising from the influence of relational verb on the construction in which it takes part in

and detect other verbs that can take relational function in a certain construction, based

on the study of their syntactic, semantic and discursive aspects.

Keywords: Functionalism, Grammatical constructions, Relational verbs, Relational

construction.

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SUMÁRIO

ÍNDICE DE DIAGRAMAS, QUADROS E TABELAS.............................................17

ABREVIATURAS.........................................................................................................19

1. INTRODUÇÃO ................................................................................................20

2. O QUADRO ATUAL DE DESCRIÇÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO

RELACIONAL....................................................................................................................26

2.1 Descrições em obras da literatura....................................................................26

2.1.1 Gramatical..............................................................................................26

2.1.2 Acadêmico-científica..............................................................................28

2.2 Categorização verbal.........................................................................................33

2.2.1 Categorias de verbos (semi-)gramaticais.............................................33

2.2.2 Os verbos em estudo..............................................................................34

2.2.2.1 Ser.....................................................................................................34

2.2.2.2 Estar..................................................................................................35

2.2.2.3 Ficar..................................................................................................35

2.2.2.4 Andar................................................................................................36

2.2.2.5 Viver..................................................................................................36

2.2.2.6 Virar..................................................................................................37

2.2.2.7 Sobre as semelhanças e diferenças entre as construções com ser e

estar...................................................................................................37

3. ORIENTAÇÕES E REFERÊNCIAS TEÓRICAS.......................................39

3.1 A abordagem funcionalista..........................................................................................39

3.2 A abordagem construcionista......................................................................................39

3.3 A abordagem cognitivista.............................................................................................42

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3.4 A Linguística Funcional centrada no uso...................................................................43

4. OUTROS CONCEITOS BÁSICOS.............................................................................43

4.1 Forma, função e iconicidade........................................................................................43

4.2 Categorização linguística.............................................................................................44

4.3 Aspecto..........................................................................................................................45

4.4 Frames e processos relacionais....................................................................................47

4.5 Predicação e transitividade..........................................................................................49

4.5.1 Predicações nominais.................................................................................................52

4.6 Papéis semânticos..........................................................................................................55

4.7 Metáfora, metonímia e analogia..................................................................................56

4.8 Figura e fundo...............................................................................................................59

4.9 Gramaticalização..........................................................................................................60

4.9.1 Gramaticalização de construções.................................................................62

4.10 Construções gramaticais............................................................................................62

4.10.1 Construção relacional.................................................................................63

4.10.1.1 Construção de estado e mudança de estado..........................................63

4.10.1.2 Construção resultativa............................................................................64

4.10.1.3 Construção de estado habitual...............................................................66

5. MATERIAIS E METODOLOGIA.............................................................................66

5.1 Dados do uso................................................................................................................66

5.1.1 Escolha das fontes do corpus.......................................................................67

5.1.1.1 Contos literários........................................................................................67

5.1.1.2 Textos do Google.......................................................................................70

5.2 Procedimentos para a análise das amostras de dados.............................................70

5.2.1 Parâmetros e hipóteses de análise dos dados.............................................71

5.2.1.1 Verbo relacional em jogo..........................................................................71

5.2.1.2 Tipo de construção relacional...................................................................72

5.2.1.3 Grau de animacidade do sujeito...............................................................75

5.2.1.4 Predicativo restritivo ou não restritivo....................................................77

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5.2.1.5 Papel semântico do sujeito........................................................................78

5.2.1.6 Tipo de predicação nominal......................................................................78

5.2.1.7 Estrutura sintagmática do predicativo....................................................79

5.2.1.8 Tipo de processo relacional.......................................................................80

5.2.1.9 Tipologia do estado de coisas representado pela predicação.................82

5.2.1.10 Estado aspectual da predicação..............................................................84

5.2.1.11 Ordem dos termos da construção...........................................................84

5.2.1.12 Polaridade positiva ou negativa..............................................................85

5.2.1.13 Plano discursivo.......................................................................................86

6. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DE DADOS DO PORTUGUÊS.............................88

6.1 Caracterização das predicações nominais encontradas nos contos

literários..................................................................................................................88

6.1.1 Co-atuação de parâmetros: análise multidimensional das

construções.......................................................................................................112

6.2 Outras observações baseadas em amostra de dados complementar................118

6.2.1 Caracterização de predicações com estatuto de construção passiva.......122

6.3 Proposta de descrição gramatical da construção relacional.............................123

6.3.1 Padrões microconstrucionais da construção relacional..........................124

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................126

8. BIBLIOGRAFIA....................................................................................................129

8.1 Referências............................................................................................................129

8.2 Obras consultadas.................................................................................................133

8.3 Fontes dos dados...................................................................................................135

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ÍNDICE DE DIAGRAMAS, QUADROS E TABELAS

Diagramas

1: Representação esquemática da construção relacional e suas

microconstruções.....................................................................................................124

Quadros

1: Pareamentos de forma e significado na construção relacional em

estudo........................................................................................................................25

2: Representação do modelo de estrutura simbólica para uma construção (CROFT,

2001 apud MARTELOTTA, 2011, p. 86).................................................................41

3: Síntese da hipótese de relação entre o tipo de construção relacional em estudo e

sua configuração interna mais produtiva..................................................................73

4: Nível 1: Construção relacional mais prototípica.................................................115

5: Nível 2: Construção relacional intermediária......................................................115

6: Nível 3: Construção relacional intermediária.....................................................116

7: Nível 4: Construção relacional intermediária......................................................116

8: Nível 5: Construção relacional intermediária......................................................116

9:Nível 6: Construção relacional mais periférica....................................................116

Tabelas

1: Distribuição dos dados de predicações nominais do corpus por verbo

relacional.................................................................................................................88

2: Distribuição dos dados por verbo relacional e tipo de construção

relacional................................................................................................................90

3: Distribuição dos 806 dados por grau de animacidade do sujeito e verbo

relacional................................................................................................................94

4: Distribuição dos 806 dados por restrição (ou não) semântica do predicativo e

verbo relacional......................................................................................................95

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5: Distribuição dos 806 dados por papel semântico do argumento/participante

sujeito e verbo relacional.......................................................................................99

6: Distribuição dos 806 dados por tipo de predicação nominal e verbo

relacional...............................................................................................................100

7: Distribuição dos 806 dados por estrutura sintagmática do predicativo e verbo

relacional...............................................................................................................103

8: Distribuição dos 806 dados por tipo de processo relacional e verbo

relacional...............................................................................................................104

9: Distribuição dos 806 dados por tipologia do estado de coisas representado pela

predicação e verbo relacional.................................................................................105

10: Distribuição dos 806 dados por estado aspectual da predicação e verbo

relacional...............................................................................................................106

11: Distribuição dos 806 dados por ordem dos termos da construção e verbo

relacional..............................................................................................................108

12: Distribuição dos 806 dados por polaridade positiva ou negativa da predicação e

verbo relacional...................................................................................................110

13: Distribuição dos 806 dados por plano discursivo e verbo

relacional.............................................................................................................111

14: Padrões microconstrucionais mais frequentes..............................................125

15: Padrões microconstrucionais menos frequentes...........................................125

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ABREVIATURAS

LC = Linguística Cognitiva

MCI = Modelo Cognitivo Idealizado

NGB = Nomenclatura Gramatical Brasileira

PB = Português Brasileiro

PRED = Predicativo

SAdj. = Sintagma Adjetival

SAdv. = Sintagma Adverbial

SN = Sintagma Nominal

SPrep. = Sintagma Preposicionado

SUJ = Sujeito

V = Verbo

VRel. = Verbo Relacional

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1. INTRODUÇÃO

Deslinda-se, aqui, o uso da construção relacional em contos literários do

Português Brasileiro: mais precisamente de construções de estado ou mudança de

estado, resultativas ou não.

Nesta dissertação, articulam-se pressupostos teórico-metodológicos e enfoques

descritivo-explicativos de alguns linguistas das abordagens funcionalista, cognitivista e

construcionista, tais como Bybee (2003; 2010), Goldberg (1995; 2003; 2013), Halliday

(1994), Taylor (1995), Traugott & Trousdale (2013), dentre outros. Entende-se que a

abordagem da Linguística Funcional centrada no uso escolhida para nortear este estudo

permite compreender melhor o fenômeno da linguagem (especialmente seus aspectos

morfossintáticos, semânticos e pragmáticos) na medida em que o concebe articulado ao

discurso, ao universo social e à cognição (às experiências e aos modos de

conceptualização universais ou específicos de uma sociedade).

A abordagem funcionalista caracteriza-se pela proposta de integração dos

componentes sintático, semântico e pragmático, e pela relação entre gramática e

discurso. Nessa proposta, os processos de gramaticalização devem-se também à

influência de fenômenos discursivos. Assim, uma gramática funcionalmente orientada

para o discurso analisa a relação sistemática entre forma e função. Afinal, a gramática

de uma língua natural é dinâmica, já que é passível de se adaptar de acordo com o

contexto linguístico e com a situação extralinguística; e a língua é considerada um

instrumento de interação e uma estrutura maleável em certa medida, cujas pressões

internas e externas ao sistema linguístico interagem e se confrontam.

A abordagem construcionista apresenta como unidade básica da língua a

construção gramatical, que é definida como um pareamento entre forma e significado.

Quando lida com estruturas de configuração argumental, tal abordagem focaliza a

construção sintática em si, e não apenas o verbo. Dentro dessa perspectiva, as

construções têm significado próprio, convencional e esquemático, independentemente

dos verbos e outros itens lexicais que as compõem. Desse modo, o significado de uma

oração não consiste na combinação dos significados das partes da sentença, mas deriva

também da construção, que por si só já é dotada de significado. Segundo essa

perspectiva, as gramáticas das línguas são compostas de pares de esquemas conceptuais

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e padrões gramaticais que se inter-relacionam. Por considerar a construção como

unidade básica da língua, a abordagem construcionista não subdivide a gramática de

uma língua em componentes autônomos: fonologia, morfossintaxe e semântica são

partes integradas e inter-relacionadas de uma construção gramatical.

Com base nessa abordagem, trabalha-se com a concepção de que um verbo, em

vez de possuir, na língua, significados diferentes do significado de base que lhe

permitem atuar em construções diferentes, tem seu significado atualizado ou expandido

em decorrência de sua compatibilização com o tipo de construção em que o verbo

participa. Desse modo, o verbo não muda de significado para licenciar outras

construções. É das construções em que toma parte que vêm seus sentidos e da

combinação semântica entre elas e o verbo. De acordo com essa abordagem, existe uma

semântica da construção associada a um padrão sintático, a qual restringe a inserção de

elementos nos slots desse padrão.

Para mostrar que não são os verbos que licenciam o sentido da oração, mas a

construção como um todo, podemos analisar os exemplos abaixo:

(1) Homem estava no estacionamento da agência quando foi roubado.

[http://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2015/01/homem-e-vitima-de-saidinha-de-

banco-na-serraria-em-maceio.html]

(2) Eu estava muito cansada, sentei-me no banco da cozinha.

[A legião estrangeira, Clarice Lispector]

Nota-se que o verbo é o mesmo nos dois exemplos, porém, apresenta sentidos

diferentes a depender da construção em que se insere. O primeiro apresenta uma ideia

de localização (função locativa), e o segundo denota uma atribuição de estado ou

característica (função atributiva). Os dois sentidos são permitidos pela construção: a

primeira é uma construção locativa, e a segunda é uma construção relacional de estado.

No primeiro exemplo, o verbo estar é predicador e o complemento circunstancial no

estacionamento da agência configura-se como um sintagma preposicionado (SPrep.),

enquanto, no segundo, o verbo é relacional (VRel.) e há um predicativo do sujeito sob a

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forma de sintagma adjetival (SAdj.). Existem, também, certas condições aspectuais que

podem interferir nessa categorização, a depender do contexto comunicativo:

(3) Joana está sempre em casa (= Joana é caseira).1

Em (3), a presença do advérbio sempre, com um sentido de algo muito

frequente, interfere na semântica da construção: pode haver a substituição por um SAdj.

(caseira) sem prejuízo de sentido.

Podemos pensar, também, nas trajetórias de gramaticalização que levam ao

desenvolvimento de novas construções gramaticais. Nesse caso, podemos citar as

construções em que um verbo aparece como mais lexical/predicador e aquelas em que

ele é mais gramatical, como relacional ou auxiliar:

(4) Desistiu de acompanhar a irmã até a festa. Ele ficou em casa.

(5) A irmã desistiu de ir à festa. Ele ficou feliz.

Nos exemplos acima, o verbo ficar aparece em duas construções diferentes: na

primeira, apresenta um sentido mais lexical (=permanecer), sendo um verbo predicador;

na segunda, ocorre como verbo gramatical, na função de relacional (=tornar-se). Logo,

em (5), ocorre um esvaziamento semântico, em que ficar perde sua noção de estado

estável e espacial, e passa a configurar um estado emocional/psicológico, conforme o

predicativo em jogo na construção.

Na concepção mais atual, a abordagem cognitivista entende a gramática como

uma rede de unidades simbólicas, chamadas de construções gramaticais, que

apresentam um pareamento entre forma e significado. Além disso, são importantes para

esta pesquisa os conceitos cognitivistas de categorização, protótipos e frames.

O princípio básico que rege a Linguística Funcional centrada no uso consiste em

entender a estrutura linguística como emergente e estável na medida em que é utilizada,

uma vez que criatividade e repetição são duas forças importantes. Nesta dissertação,

utilizar-se-ão princípios e pressupostos dessas abordagens teóricas no estudo de

1 Os exemplos (3), (4), (5), (6), (7), (21), (30), (31), (32), (37a) e (37b) foram criados pela

pesquisadora.

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construções com verbos relacionais, na tentativa de aprofundar a descrição de tal

categoria de construções. A articulação dessas abordagens para os propósitos desta

investigação implica, por sua vez, que se lide com um conjunto de conceitos-chaves.

Um conceito-chave para esta pesquisa é o de categorização linguística, que

constitui um processo cognitivo de domínio geral2. Em relação aos fatos linguísticos,

diz respeito à semelhança ou identidade entre as construções. Cada categoria é

concebida de acordo com o representante prototípico, que reúne os traços característicos

da categoria. Dessa forma, os conceitos são concebidos segundo as características mais

próximas ou mais distantes do modelo exemplar, prototípico. Tendo como base a

categorização e a prototipicidade, as categorias são vistas em um continuum, e não

como categorias estanques.

A gramaticalização constitui um tema caro ao Funcionalismo. Em sua concepção

clássica, ocorre quando uma unidade linguística começa a adquirir propriedades de

formas gramaticais ou, se já possui estatuto gramatical, se torna ainda mais gramatical.

À medida que isso ocorre, a unidade linguística que se envolve nesse processo se sujeita

a uma nova categorização, devido a uma reanálise categorial. Nessa perspectiva, a

análise da gramaticalização centrava-se no item linguístico (HOPPER, 1991, por

exemplo). Porém, com a abordagem construcionista, o foco deixa de ser apenas o item e

passa a ser toda a construção envolvida. Assim, entra em cena a gramaticalização de

construções. É comum que itens lexicais ou construções de uso muito frequente tendam

a se gramaticalizar, já que passam a desempenhar funções tanto lexicais quanto

gramaticais; além disso, o item ou construção em processo de gramaticalização sofre

uma perda gradual de seu conteúdo nocional (dessemantização), ou seja, uma redução

de seus usos concretos em prol da ampliação de seus usos abstratos, o que provoca a

polissemia do item ou da construção e, com isso, passa a prestar-se à estruturação de

novas expressões linguísticas. Pode haver uma composição de novas expressões a partir

de formas gramaticais e lexicais já existentes, enriquecendo o inventário lexical da

língua, ou a extensão do uso de formas já existentes para a expressão de novos

conceitos, o que inclui um processo de analogia (e noções de transferência, metonímia

2 Os processos cognitivos de domínio geral estão por trás do modo como as palavras se agrupam

para dar origem a construções (BYBEE, 2010).

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ou metáfora); alguns itens podem sofrer redução fônica, decorrente do aumento da

frequência; e há um aumento da previsibilidade de uso e fixidez da posição contextual

em que o item pode figurar.

O objetivo desta dissertação é analisar dados de predicações nominais com os

verbos relacionais ser, estar, ficar, andar, viver e virar como construções formadas, em

geral, por um sintagma nominal (SN) sujeito, verbo relacional e SN, SAdj. participial ou

não, sintagma preposicionado (SPrep.) ou sintagma adverbial (SAdv.) com função de

predicativo sob as perspectivas funcionalista e construcionista. As construções com os

referidos verbos são aqui reunidas sob o rótulo de construção relacional. Dentro dela,

há microconstruções, que são classificadas em construções de estado ou de mudança de

estado, em construções resultativas e em construções de estado habitual. E, entre essas

construções, as com o verbo ser são as mais frequentes e mais produtivas: mais

frequentes, porque são as que aparecem mais (frequência de ocorrência/token); e mais

produtivas (frequência de type), porque são as que se envolvem em mais subtipos de

construção relacional (Quadro 1):

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FORMA SIGNIFICADO

(SN) VRel. SAdj.

Eles eram obedientes. [Os obedientes,

Clarice Lispector]

SN tema/experienciador + Verbo de

estado/mudança/resultado + Predicativo

atributivo

SN experienciador / Verbo de estado /

Predicativo atributivo

(SN) VRel. SN

Ovo é a alma da galinha. [O ovo e a galinha,

Clarice Lispector]

SN tema/experienciador + Verbo de

estado/mudança/resultado + Predicativo

identificador/possessivo

SN tema / Verbo de estado / Predicativo

identificador

(SN) VRel. SPrep.

A sebe era de pitangueira. [Cem anos de

perdão, Clarice Lispector]

SN tema/experienciador + Verbo de

estado/mudança/resultado + Predicativo

atributivo/locativo/temporal/possessivo

SN tema / Verbo de estado / Predicativo

atributivo

(SN) VRel. SAdv.

Mas meu passado era agora tarde demais.

[Os desastres de Sofia, Clarice Lispector]

SN tema/experienciador + Verbo de

estado/mudança/resultado + Predicativo

locativo/temporal

SN tema / Verbo de estado / Predicativo

temporal

Quadro 1 – Pareamentos de forma e significado na construção relacional em estudo.

Assume-se, portanto, o conceito de construção gramatical para as predicações

nominais encontradas no corpus, por representarem esquemas/pareamentos entre forma

e função (Quadro 1). A maior contribuição da abordagem construcionista para esta

dissertação diz respeito à concepção de que a estrutura oracional é determinada pela

estrutura de participantes do verbo e pela estrutura argumental da construção e que o

sentido decorre da construção em que o verbo é empregado e da combinação semântica

entre o verbo e a construção para expressar um determinado estado de coisas que é

apreendido segundo uma dada perspectiva de representação da cena a que se vincula.

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2. O QUADRO ATUAL DE DESCRIÇÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO

RELACIONAL

2.1 Descrições em obras da literatura

2.1.1 Gramatical

Foram analisadas algumas obras gramaticais no que concerne à conceituação de

verbos relacionais, conhecidos também como verbos de ligação no âmbito escolar.

Nas obras gramaticais mais tradicionais analisadas (CUNHA & CINTRA, 2008;

LUFT, 1976; ROCHA LIMA, 2010; BECHARA, 1963, 2010), é unânime o

reconhecimento desse tipo de verbo como elo entre sujeito e predicativo, além da

apresentação de uma lista com os verbos que se prestam à tal função e seus respectivos

estados (permanente, transitório etc.).

Em Cunha & Cintra (2008), os verbos de ligação são também chamados de

copulativos. Os autores definem-nos como verbos que estabelecem a união entre duas

palavras ou expressões de caráter nominal, além de funcionarem como elo entre o

sujeito e seu predicativo. Os autores destacam, ainda, que os verbos de ligação podem

expressar “estado permanente”, “estado transitório”, “mudança de estado”,

“continuidade de estado” e “aparência de estado”. Há, também, uma observação em

relação aos verbos que se empregam ora como significativos ora como verbos de

ligação, a depender do texto, como em Andei muito preocupado e Andei muito hoje, em

que, no primeiro exemplo, o verbo andar funciona como verbo de ligação, pois

expressa “estado transitório” e representa um elo entre o sujeito e o predicativo; já no

segundo exemplo, o verbo andar é significativo, ou seja, predica um evento sobre o

argumento externo sujeito e é o responsável pela determinação do número e da natureza

semântica dos participantes.

Em Luft (1976), os verbos de ligação recebem também o nome de verbos

predicativos e verbos relacionais, e são definidos como os elementos que unem o

predicativo ao sujeito. Em relação ao que podem expressar, o autor afirma que há várias

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espécies de verbos de ligação, conforme os “aspectos”3 que exprimem: “estado

habitual” ou “aspecto permansivo”, “estado passageiro” ou “aspecto transitório”,

“mudança de estado” ou “aspecto inceptivo”, “continuidade de estado” ou “aspecto

durativo”, “semelhança”, “dúvida de estado” ou “aspecto dubitativo”. Luft (1976) faz,

ainda, uma referência aos verbos que não são simplesmente de ligação, pois podem

acumular a função de verbo nocional, com uma noção além do estado (predicado verbo-

nominal). Por exemplo, em Anda curvado, que se refere a “caminhar + estar curvado”.

Em Rocha Lima (2010), tem-se uma definição bem resumida sobre os verbos de

ligação. Utilizando-se de exemplos com sete tipos de verbos (ser, estar, andar,

permanecer, continuar, ficar, parecer), o autor lista os verbos de ligação (mais

prototípicos) e define-os como elementos indicativos dos diversos aspectos sob os quais

se considera a condição do predicativo em relação ao sujeito.

Bechara (1963, p. 251), por sua vez, apresenta o verbo de ligação como aquele

que “entra no predicado nominal” e cuja função é apresentar um estado, qualidade ou

condição (permanente, passageiro, mudança de estado, continuidade de estado,

aparência) do sujeito. Em obra mais recente, Bechara (2010, p. 292-293) aborda essa

questão de forma mais detalhada. O autor afirma que o predicativo “delimita a natureza

semântico-sintática de um reduzido número de verbos” e cita os verbos de ligação ser,

estar, ficar, parecer, permanecer. Além disso, Bechara (2010) não segue a

Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), que distingue o predicado em verbal,

nominal e verbo-nominal, pois acredita que “toda relação predicativa que se estabelece

na oração tem por núcleo um verbo”, ou seja, o autor não considera o predicativo como

o responsável pela projeção de argumentos em uma oração, atribuindo essa função ao

verbo de ligação. Dessa forma, pode-se inferir que, para ele, os verbos de ligação têm

comportamento mais lexical.

Em obras gramaticais mais recentes (CASTILHO, 2010; RAPOSO, 2013), há

um estudo mais detalhado, considerando mais possibilidades de uso de tais verbos.

3 Aspecto permansivo: Ana é inteligente; aspecto transitório: O menino está triste; aspecto

inceptivo: Os nossos saíram vencedores; aspecto durativo: O menino continua triste; aspecto dubitativo:

Parecia triste.

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Castilho (2010) fala a respeito de gramaticalização verbal (migração de verbo

pleno a verbo funcional, e de funcional a auxiliar). Segundo o autor, os verbos

relacionais reúnem-se sob o rótulo de verbos funcionais, que são aqueles que transferem

o papel de selecionar argumentos e lhes atribuir papéis temáticos a outros constituintes,

como SN, SAdj., SAdv. e SPrep. Castilho (2010) reconhece que o papel de tais verbos

reduz-se a portar marcas morfológicas e constituir sentenças apresentacionais,

atributivas e equativas.

Raposo (2013, p. 1304), por sua vez, chama os verbos relacionais de verbos

copulativos, classificando-os semanticamente em dois grupos: aqueles que são usados

para atribuir uma propriedade ao sujeito ou descrever seu estado, e aqueles que

descrevem uma mudança de estado do sujeito. Assim, identifica os verbos que se

encaixam em cada grupo. O autor também faz uma distinção entre predicados estáveis e

predicados episódicos, que diz respeito às propriedades mais permanentes e às mais

transitórias de um indivíduo na configuração da predicação nominal.

Na descrição que foi encontrada nas obras gramaticais supracitadas, é

interessante destacar que, na maioria delas, não se percebe uma preocupação com o uso

efetivo da língua, uma vez que, em geral, consideram predicações nominais e categorias

verbais de forma estanque, ou seja, desvinculadas de seu contexto de uso e, na maioria

das vezes, fornecem listas fechadas de verbos de ligação.

É importante salientar, com base na proposta desta dissertação, que tanto a

forma quanto a função e o sentido são de extrema relevância para o estudo e análise da

construção com verbos relacionais, uma vez que, para as abordagens funcionalista e

construcionista, não é possível dissociar forma de significado e vice-versa. De acordo

com tais abordagens, o tratamento dado aos verbos em estudo é o de construção

relacional, que funciona como um todo significativo.

2.1.2 Acadêmico-científica

Sobre os verbos relacionais em estudos linguísticos recentes, destacam-se, para

os propósitos desta dissertação, os trabalhos de Travaglia (2004), Dik (1997), Machado

Vieira (2004), Vitral & Coelho (2010) e Pavão & Vieira (2013) como referências

teórico-descritivas iniciais.

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Travaglia (2004) classifica o verbo de ligação como “item (verbo) funcional”,

pois desempenha um papel nitidamente gramatical, ou seja, de significação interna à

língua. Os verbos de ligação seriam incluídos nessa categoria por sua função relacional

de conectivo. Nesse sentido, Travaglia (2004, p. 2) propõe que os verbos de ligação são

verbos em processo de gramaticalização

[...] por expressarem noções semânticas muito gerais e/ou mais abstratas [...], por serem meros

‘carregadores’ ou ‘suportes’ de categorias verbais não expressando uma situação [...], por

exercerem funções próprias de outra categoria (a dos conectivos, em que parecem estar se

transformando) ao atuarem como um item com uma função relacional entre dois elementos da

cadeia linguística. (TRAVAGLIA, 2004, p. 2)

Além disso, o autor elabora uma lista com dezessete4 verbos considerados por

ele verbos de ligação, ampliando, assim, as listas presentes nas gramáticas e livros

didáticos, em que somente os verbos prototípicos (ser, estar, permanecer, ficar,

continuar, parecer) figuram.

Dik (1997) utiliza o rótulo de cópula-suporte para identificar os verbos

relacionais (ou copulativos), pois verifica que, em muitas línguas, a predicação requer

um verbo copulativo, que pode ser usado para codificar tempo, aspecto e modo. Ele cita

a língua portuguesa, em que há, segundo ele, dois verbos copulativos (ser e estar), que

possuem construções e significados diferentes. Isto demonstra que os verbos

copulativos não são simples verbos-suporte. Observa-se que, em certas condições, o uso

de ser é obrigatório e, em outros, o de estar, como no exemplo Um papagaio é/*está um

animal. Em construções com predicados locativos pode-se encontrar ser ou estar,

dependendo da natureza do sujeito. Exemplos: A festa é na casa da Taís e A televisão

está na casa da Taís, em que, no primeiro caso, se tem um evento como sujeito (A

festa), e, no segundo, uma entidade (A televisão).

Além disso, há diferenças semânticas quando há aspectos diferentes. Dessa

forma, verifica-se que, no português, os verbos de cópula ser e estar suportam, além das

categorias gramaticais de tempo, modo e aspecto, propriedades semânticas que os

4 São eles: acabar; achar; andar; apresentar-se; continuar; deixar; estar; fazer; ficar; mostrar;

parecer; passar; permanecer; ser; tornar; tratar-se; viver.

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diferenciam, como a noção de estado permanente que o verbo ser geralmente apresenta,

enquanto estar apresenta, na maioria dos casos, uma noção de estado transitório.

Machado Vieira (2004, p. 32) também apresenta uma descrição sobre os verbos

de ligação, na qual menciona outros nomes por eles recebidos na literatura linguística:

predicativos, relacionais e copulativos. Com base em critérios sintáticos e semânticos, a

autora destaca propriedades de tal categoria, algumas delas evidentes nesta definição:

“verbos que se relacionam a elementos não-verbais com função atributiva, para conferir

a estes elementos o papel de projetar sintática e semanticamente predicações, ou seja,

função predicante”. Valendo-se de exemplos de predicações nominais, mostra que não é

o verbo que projeta os argumentos, mas o elemento não-verbal (predicativo).

Segundo Vitral & Coelho (2010, p. 94), “a função copulativa é um estágio mais

inicial da gramaticalização dos verbos plenos em verbos auxiliares e, como tal, carrega

ainda algumas nuanças do seu valor nocional, embora numa acepção mais abstrata”.

Dessa forma, haveria um resquício semântico provindo da categoria verbo predicador

que permitiria estabelecer as diferenças de estados encontradas nos verbos copulativos,

como “estado permanente”, “temporário”, “mudança de estado”, “duração do estado” e

“repetição do estado”. Tendo como base a análise semântica, Vitral & Coelho (2010)

constatam que os verbos copulativos não são verbos plenos. Utilizando a proposta de

Benveniste (1966), os autores observam que há dois termos distintos para o verbo ser: a

cópula, marca gramatical de identidade, e um verbo de exercício pleno, que coexistiram

e podem coexistir sendo completamente diferentes. Além disso, em muitas línguas

houve uma fusão entre eles. Constata-se, entretanto, que a acepção mais recorrente do

verbo ser atualmente é a de um uso já gramaticalizado do verbo. Os autores citam,

ainda, Travaglia (2004), que propõe que o verbo ser é atualmente um verbo mais

gramatical do que lexical. Ele defende que os verbos gramaticais apresentam status de

marcador, de indicador ou de item funcional. O uso de ser, portanto, como verbo de

ligação, seria um misto de indicador (porque indica característica ou estado) e de item

funcional (porque funciona como conectivo). Em relação ao verbo estar, verifica-se

que, em sua etimologia, esse verbo apresenta mais de um étimo (no latim clássico, stare

podia significar, com sujeitos animados, ‘o oposto a sentar-se’; com sujeitos

inanimados, ‘estar situado’; e ‘ficar’), que apresentam natureza nocional e natureza

relacional.

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Em artigo recente, Pavão & Vieira (2013) tratam da análise sintática e semântica

das predicações nominais com os verbos relacionais ser e estar, constatando que a

configuração de tais construções é determinada não só pela semântica do verbo

relacional, mas também pela natureza semântica do sintagma predicativo do sujeito, por

elementos aspectualizadores e/ou temporais do contexto linguístico, pelo contexto

discursivo-pragmático e pelo esquema construcional de estado como um todo. As

autoras fazem um resumo das principais características encontradas nas predicações

com verbos relacionais analisadas:

[...] tais verbos geralmente relacionam uma referência a um atributo; são empregados de

forma generalizada na representação de estados; têm pouco conteúdo nocional; quase não

impõem restrições à configuração dos constituintes que relacionam, salvo em alguns casos;

operam na construção como itens instrumentais que atuam sobre um sintagma adjetival,

nominal, preposicional ou adverbial, conferindo-lhe função predicante em relação a um

constituinte nominal, em construções pessoais. (PAVÃO & VIEIRA: 2013, p. 39).

Em síntese, da análise de todas as obras brevemente sumarizadas, verifica-se

que, enquanto os representantes da visão gramatical tradicional (CUNHA & CINTRA,

2008; LUFT, 1976; ROCHA LIMA, 2010; BECHARA, 1963, 2010) buscam apenas

descrever os aspectos que os verbos de ligação podem desempenhar numa oração

(estado transitório, permanente etc.), as obras gramaticais mais recentes e os estudos

linguísticos aprofundam um pouco mais o tema. Travaglia (2004) analisa estes verbos

como pertencentes a um processo de gramaticalização, além de apresentar outros verbos

(menos prototípicos) que funcionam também como verbos de ligação. Dik (1997)

chama a atenção para o papel de marcador de tempo, aspecto e modo que os verbos

relacionais também exercem. Em relação a Machado Vieira (2004), há uma

preocupação em definir esse tipo de verbo sintática e semanticamente, e em focalizar a

função do elemento não-verbal ligado a ele, chamado de predicativo, que se configura

como função predicante em relação ao argumento sujeito, por atuação daquele, e, assim,

restringe seu preenchimento. Vitral & Coelho (2010) defendem que a função copulativa

é um estágio mais inicial da gramaticalização dos verbos plenos em verbos auxiliares,

ainda que se mantenha com um resquício semântico provindo da categoria verbo

predicador, resquício esse que permitiria estabelecer as diferenças de estados

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encontradas nos verbos copulativos, como “estado permanente”, “temporário”,

“mudança de estado”, “duração do estado” e “repetição do estado”. Castilho (2010) e

Raposo (2013) preocupam-se com os diferentes sentidos que os verbos relacionais

podem desempenhar em uma construção e preveem outros verbos que podem funcionar

como relacionais. Por fim, Pavão & Vieira (2013) ressaltam a importância de se

considerarem as predicações com verbos relacionais a partir de esquemas construcionais

e destacam as nuances semânticas que um verbo relacional pode desempenhar numa

construção, além de sua configuração semântica, discursiva e morfossintática.

Nota-se também que, nos livros didáticos e nas gramáticas tradicionais, há pouco

espaço para os verbos de ligação. Geralmente, são mencionados apenas quando se fala

em “predicado nominal”. Não há um aprofundamento sobre a complexidade desse tipo

de verbo ou da construção em que se envolve, há apenas uma listagem de verbos

prototípicos, sem levar em conta outros casos menos comuns, em que verbos

tipicamente predicadores funcionam como verbos de ligação, como no exemplo “Ando

ansiosa”, em que o verbo “andar”, tipicamente predicador (indicador de movimento =

caminhar), funciona como verbo relacional, ligado a um elemento não-verbal com

função atributiva, além de indicar um estado habitual, frequente.

Das reflexões que a análise crítica de tais descrições propiciou, nesta dissertação

aproveitam-se, entre outros elementos, estes: na construção relacional, não é o verbo

que projeta os argumentos, embora no uso raramente seja mero conectivo; o predicador

não-verbal é elemento importante na determinação do número e da natureza dos

participantes, porém, padrões de organização de predicações relacionais regulam sua

atuação e sua significação; a variação semântica que alguns autores propõem, como a

distinção entre predicados estáveis e episódicos proposta por Raposo (2013), é fruto da

configuração de predicações nominais em que interagem aspectos estruturais,

semânticos e discursivos; a gramaticalização verbal, em destaque tanto na abordagem de

Castilho (2010) sobre tais predicações como na de Vitral & Coelho (2010), é um

processo importante no deslinde de aspectos envolvidos no tema, assim como é a

gramaticalização construcional, na medida em que tais predicações advêm/derivam da

compatibilização entre a semântica e o papel morfossintático dos itens linguísticos que

efetivamente preenchem padrões/esquemas construcionais relacionais e a configuração

semântico-discursiva e formal sistemática e mais abstrata destes.

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2.2 Categorização verbal

2.2.1 Categorias de verbos (semi-)gramaticais

Para os propósitos desta dissertação, destacam-se duas categorias no estudo dos

verbos: (i) verbos plenos ou predicadores; (ii) verbos relacionais (também chamados de

verbos de ligação e verbos copulativos).

Os verbos plenos ou predicadores possuem comportamento mais lexical e são os

responsáveis pela projeção sintático-semântica dos papéis participantes. Tais verbos

mantêm seu sentido primário, como em:

(6) O rapaz ficou em casa.

Nesse exemplo, o verbo ficar mantém seu sentido de permanecer e projeta os

argumentos sujeito e complemento circunstancial de lugar.

Segundo Raposo (2013, p. 359), os verbos relacionais (chamados por ele de

copulativos) veiculam valores semânticos importantes nas construções em que se

inserem, porém, não funcionam como predicadores, pois não contribuem para definir o

tipo de propriedade atribuída ao sujeito, que depende do predicativo (que pode ser um

SAdj., SN, SPrep. ou SAdv.). Os verbos relacionais ligam-se a um elemento não-verbal

com função atributiva (predicativo), que passa a exercer uma função predicante,

restringindo semanticamente as possibilidades de preenchimento do constituinte sujeito:

(7) O rapaz ficou triste.

Nesse exemplo, não é o verbo que restringe sintática e semanticamente o

argumento sujeito, mas o predicativo, que exige um sujeito [+humano], tornando

agramaticais construções como *A pedra ficou triste, *A planta ficou triste (exceto em

construções com linguagem figurada, com personificações). Por outro lado, o verbo

relacional contribui semanticamente para o sentido da construção como um todo. Basta

trocar o verbo relacional por outro para que haja uma mudança de significado:

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(a) O rapaz estava triste.

(b) O rapaz era triste.

(c) O rapaz vivia triste.

Em (7), há uma mudança de estado: o rapaz não estava triste, ele ficou triste

devido a uma determinada situação; em (a), há um estado transitório: o rapaz estava

triste, porém pode não estar mais; em (b), a tristeza é uma característica inerente ao

rapaz, tendo um caráter mais permanente; por fim, em (c), há uma semântica de

frequência, que denota um estado habitual.

2.2.2 Os verbos em estudo

Os verbos relacionais ser, estar, andar e viver são usados para atribuir uma

propriedade ou descrever o estado do sujeito, em geral. Já os verbos relacionais ficar e

virar são usados, geralmente, para descrever uma mudança de estado do sujeito. Assim,

podemos subdividir a construção relacional em construção de estado e construção de

mudança de estado.

2.2.2.1 Ser

O verbo relacional ser aparece, geralmente, em construções com predicados

estáveis, pois caracteriza um indivíduo durante um longo período ou durante toda a sua

existência, particularizando-o. Logo, a construção relacional com o verbo ser é chamada

de construção de estado. Na maioria dos casos, atribui alguma propriedade ao indivíduo

ou identifica-o:

(8) Os olhos castanhos eram intraduzíveis, sem correspondência com o conjunto

do rosto. [A criada, Clarice Lispector]

(9) O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. [O ovo e a galinha, Clarice

Lispector]

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Existe, no Português Brasileiro, uma oposição semântica entre ser e estar, pois

ser denota um sentido mais permanente, enquanto estar apresenta um sentido mais

transitório. No entanto, é importante salientar que tais sentidos dependem dos outros

elementos da predicação, visto que se trata de construções.

2.2.2.2 Estar

O verbo estar relacional aparece, geralmente, em predicados episódicos, que

denotam propriedades transitórias dos indivíduos, propensas a mudanças. Também se

classificam como episódicos muitos particípios verbais usados com valor de adjetivo.

Por outro lado, não são todos os particípios verbais que se podem combinar ao verbo

estar relacional, pois só podem ocorrer particípios de verbos que denotam situações

télicas, ou seja, quando há uma entidade que sofre mudança e passa a um novo estado,

chamado de estado resultativo.

Assim, um particípio como morto denota uma situação estável permanente e

ocorre com o verbo relacional estar, pois é uma forma no particípio de um verbo télico,

representando um estado resultativo:

(10) O menino estava morto. [Natal na barca, Lygia Fagundes Telles]

Logo, a construção relacional com o verbo estar pode ser enquadrada na

construção de estado ou na construção resultativa.

2.2.2.3 Ficar

O verbo relacional ficar designa o processo da mudança e o estado que resulta

da mudança, ou seja, o estado resultativo. Logo, a construção com tal verbo recebe o

nome de construção de mudança de estado:

(11) Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem

pai nem mãe compreenderiam. [Tentação, Clarice Lispector]

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Nesse exemplo, verifica-se que o verbo ficar se combina com um predicativo

episódico (espantada), que denota um estado temporário de um indivíduo, ou seja,

sujeito à mudança. Outra particularidade que se nota é que, na construção relacional

com ficar o verbo aparece, na maioria dos casos, no pretérito perfeito para representar o

evento da mudança de estado e sua duratividade.

2.2.2.4 Andar

O verbo relacional andar designa o prolongamento de um estado episódico

sujeito a se tornar habitual, ou seja, um estado episódico dentro de um enquadramento

temporal limitado:

(12) Andei doente e morno, com uma alma de serralho e de mel por aspirar um

frasco de essência de rosas. [A mais estranha moléstia, João do Rio]

No exemplo (12), observa-se que o verbo andar se combina com predicativos

episódicos (doente e morno), que são propriedades estáveis. O verbo no pretérito

perfeito contribui para essa semântica, pois assinala um fato que se repetiu no passado,

isto é, um fato habitual no passado.

Assim, a construção com tal verbo é chamada de construção de estado habitual.

2.2.2.5 Viver

O verbo viver, enquanto relacional, passa a desempenhar o sentido de “estado

habitual”, ou seja, constitui ações que se repetem ou perduram durante um determinado

tempo:

(13) Se eu não era feliz, vivia alegre. [Confissões de uma viúva moça, Machado

de Assis]

A construção com o verbo relacional viver é denominada construção de estado

habitual.

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2.2.2.6 Virar

O verbo virar, em seu uso relacional, é esvaziado de seu sentido de direção,

passando a desempenhar uma semântica de resultado, semelhante a tornar-se. Portanto,

a construção com tal verbo é chamada de construção de mudança de estado:

(14) E o latido virou um gemido de sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia

Fagundes Telles]

2.2.2.7 Sobre as semelhanças e diferenças entre as construções com ser e estar

Oliveira (2001) propõe uma descrição das ocorrências dos verbos ser e estar

com base em alguns aspectos. O primeiro deles é a ocorrência em predicações adjetivais

indicando a cor de determinada entidade. A autora observa que os adjetivos que indicam

cores se inserem em predicações estativas, que não resultam em qualquer tipo de

evento:

(15) Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos. [Tentação, Clarice Lispector]

(16) – Você é perfeito, ovo. Você é branco. [O ovo e a galinha, Clarice

Lispector]

(17) Era uma emergência como se os lábios da menina estivessem cada vez mais

roxos. [A legião estrangeira, Clarice Lispector]

(18) O rosto do rapaz estava esverdeado e calmo [...]. [A mensagem, Clarice

Lispector]

A diferença entre ser e estar quando inseridos em uma construção relacional

com adjetivos indicando cores parece estar relacionada ao tipo de estado que enunciam,

ou seja, variam apenas no aspecto que conferem às construções em que se inserem. A

construção com ser remete a intervalos de tempo ilimitados, possibilitando construções

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com valor atemporal e orações genéricas, o que geralmente não ocorre na construção

com estar, que indica estados coincidentes com o momento de enunciação.

Os exemplos (15) e (16) representam a construção relacional atributiva com o

verbo ser e o predicativo sob a forma de sintagma adjetival indicando cor. Observa-se

que são construções marcadas pelo traço [+ permanente] ou [+ inerente], estabelecendo

o contraste com os exemplos (17) e (18), que apresentam um traço [+ transitório].

Outra observação importante é a de que, segundo a autora e os resultados

obtidos na análise do corpus desta dissertação, a construção com estar dá conta de

estados resultantes, enquanto a com ser denota estados lexicais, ou seja, estados com

propriedades inerentes, sem limite temporal. Quando a construção com estar apresenta

predicativo sob a forma de sintagma adjetival participial, isto é, com um adjetivo

resultante de um verbo de ação, o caráter resultativo fica ainda mais evidente, pois ainda

contém em si a ideia de evento. Além disso, pode aproximar-se das construções

passivas:

(19) A praça ia fechar-se; os negócios do dia estavam concluídos; e dentro das

colunas que formam a entrada do edifício, poucas pessoas ainda restavam. [A viuvinha,

José de Alencar]

(20) A vidraça inferior estava pintada de uma cor que outrora fora branca e que

se tornara acafelada. [A viuvinha, José de Alencar]

Se introduzirmos um agente nas orações anteriores, torna-se ainda mais nítido o

caráter passivo de tais construções, além de confirmar a ideia de evento intrínseca ao

adjetivo participial:

(19a) A praça ia fechar-se; os negócios do dia estavam concluídos [por

Juvenal]; e dentro das colunas que formam a entrada do edifício, poucas pessoas ainda

restavam.

(20a) A vidraça inferior estava pintada [pelo melhor pintor da cidade] de uma

cor que outrora fora branca e que se tornara acafelada.

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3. ORIENTAÇÕES E REFERÊNCIAS TEÓRICAS

3.1 A abordagem funcionalista

Os funcionalistas não concebem a língua como uma entidade autônoma, pois

fatores discursivos, sociais, históricos e cognitivos podem influenciá-la.

Na perspectiva funcionalista, a língua é um instrumento de comunicação e

interação social submetido às pressões comunicativas do meio no qual se insere, ou seja,

é submetida ao uso (NEVES, 2004). Assim, a produção linguística do falante é fruto da

interação, em que estão envolvidos o contexto e as informações pragmáticas, por

exemplo. Ao se analisar uma situação comunicativa, o contexto, os propósitos de fala e

os participantes são observados. Por ser dinâmica, a língua é sujeita a variações e

mudanças.

Pesquisas que se orientam por uma abordagem funcionalista buscam analisar a

língua em uso, trabalhando com dados reais de fala ou escrita examinados nos contextos

comunicativos em que são coletados. Dessa forma, o uso das expressões linguísticas é

determinado por condições reais de produção, sendo a Gramática Funcional uma teoria

geral sobre a organização gramatical das línguas naturais que prevê uma relação entre

pragmática, semântica e forma, entre discurso e gramática.

3.2 A abordagem construcionista

Na abordagem construcionista, a língua é concebida como sendo composta de

pareamentos convencionalizados de forma e significado ou construções organizadas em

uma rede. As construções são entendidas como unidades simbólicas convencionais. São

convencionais na medida em que são compartilhadas entre um grupo de falantes; são

signos, tipicamente associações arbitrárias de forma e significado; são unidades na

medida em que algum aspecto do signo é tão idiossincrático ou tão frequente que o

signo está entrincheirado como um par de forma e significado na mente do usuário da

língua.

Dessa forma, a língua é uma rede de construções, e a unidade básica da

gramática, da análise gramatical, é a construção, que, por sua vez, se revela nas

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experiências comunicativas por meio de instâncias de uso. Traugott & Trousdale (2013,

p. 3) sintetizam os princípios básicos da abordagem construcionista:

a) a unidade básica da gramática é a construção, que é um par convencional de

forma e significado;

b) a estrutura semântica é mapeada diretamente na superfície da estrutura sintática,

sem derivações;

c) a língua, dentre outros sistemas cognitivos, é uma rede de nós e ligações entre

nós; associações entre alguns desses nós tomam a forma de hierarquias de

herança5;

d) a variação linguística e dialetal pode ser representada de várias formas, incluindo

processos cognitivos de domínio geral e construções de variedade específica;

e) a estrutura da língua é formada pelo uso.

Outro conceito importante nessa abordagem é o processo de

construcionalização, que é regido pelos seguintes parâmetros, de acordo com Traugott

& Trousdale (2013):

(i) esquematicidade – consiste numa propriedade de categorização

que envolve crucialmente abstratização. Tal parâmetro diz

respeito a quão uma construção é geral ou inespecífica;

(ii) produtividade – é uma propriedade gradiente e refere-se a

esquemas parciais. Diz respeito à extensão e à frequência com que

instâncias de uma construção aparecem;

(iii) composicionalidade – refere-se à extensão a que a ligação entre

forma e significado é transparente. É pensada geralmente em

termos tanto semânticos (o significado das partes e do todo)

quanto em relação às propriedades combinatórias do componente

sintático. Diz respeito à extensão a que o significado do todo da

construção é uma função do significado de suas partes.

5 Hierarquias de herança: relações taxonômicas capturando o grau em que as propriedades de

construções de nível mais baixo são previsíveis a partir de outras mais gerais (Traugott & Trousdale:

2013, p. 3 – tradução livre).

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Martelotta (2011, p. 86) reproduz o modelo de estrutura simbólica para uma

construção (Quadro 2) de acordo com Croft (2001):

CONSTRUÇÃO

Propriedades sintáticas

Propriedades morfológicas

Propriedades fonológicas

FORMA

↓ ← ELO DE CORRESPONDÊNCIA

SIMBÓLICA

Propriedades semânticas

Propriedades pragmáticas

Propriedades discursivo-funcionais

SENTIDO

Quadro 2 – Representação do modelo de estrutura simbólica para uma construção (CROFT, 2001

apud MARTELOTTA, 2011, p. 86).

Nesse modelo, o elo entre a forma e o sentido é interno à construção. Assim, as

estruturas conceptuais podem ser universais e apresentar construções específicas em

cada língua.

Assume-se que as palavras contribuem para o significado das sentenças, mas não

são responsáveis por todo o significado. A diferença do significado do verbo se dá pela

integração do sentido do verbo com o sentido da construção.

Em síntese, segundo essa teoria, as gramáticas das línguas são compostas por

pares de esquemas conceptuais e padrões gramaticais que se inter-relacionam. O

significado da construção não corresponde à soma dos significados das unidades

lexicais, mas tanto as construções gramaticais quanto as unidades lexicais são

combinações de forma e significado, um continuum léxico-sintático. Assim, não é o

verbo que muda seu sentido para licenciar, por exemplo, argumentos extras; o sentido é

proveniente da construção em que o verbo é empregado e da forma como a construção

se combina semanticamente com o verbo para expressar o evento complexo.

Nesta dissertação, adota-se o conceito de construção para se referir a estruturas

sintático-semânticas formadas por verbos relacionais. Nesse sentido, leva-se em conta

não só a forma como também o significado do todo da construção.

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3.3 A abordagem cognitivista

Um dos principais pressupostos da Linguística Cognitiva (LC) é o de que “a

estrutura léxico-gramatical das línguas naturais em alguma medida reflete a estrutura do

pensamento” (ALMEIDA et al., 2010, p.16). Além disso, defende-se que existem

processos cognitivos de domínio geral que motivam fenômenos gramaticais.

Essa abordagem baseia-se na Hipótese da Corporificação, em que a linguagem

passa a ser concebida como reflexo da experiência do corpo no mundo real. Apesar de

apresentar um pensamento mentalista e representacionista da linguagem, tal como a

Linguística Gerativa, a LC não é universalista.

Outro aspecto importante é que a Linguística Cognitiva rompe com a tradição,

que prevê categorias estanques. Por isso, adota a teoria dos protótipos, que pressupõe a

existência de membros mais centrais para representar uma categoria do que outros.

Além disso, a inclusão em uma categoria é vista como um fenômeno gradiente.

Para compreender melhor, é importante destacar que a Semântica Cognitiva

prevê dois grandes tipos de estruturas: (1) esquemas imagéticos6, que são esquemas

mentais que codificam padrões especiais advindos de experiências sensório-motoras; (2)

frames7 e modelos cognitivos idealizados8 (MCI’s): frames são conjuntos de

conhecimentos ou expectativas em relação aos quais uma palavra deve ser interpretada,

enquanto os MCI’s são representações cognitivas estereotipadas. Dessa forma,

depreende-se que o conhecimento de mundo é muito importante para a Semântica

Cognitiva.

6 Exemplo de esquema imagético: esquema do contêiner, que trata do movimento para dentro ou

para fora.

7 Exemplo de frame (Fillmore, 1982 – bachelor): solteirão (representa o homem não casado que

atende a uma série de expectativas culturais, como a existência de uma idade apropriada para casar, um

grupo específico de homens etc.).

8 Exemplo de MCI (Lakoff, 1987): mãe (nível idealizado – modelos genealógico, genético, de

gestação, de parto, de amamentação e de criação. Outros usos do termo – mãe adotiva, relacionado à

criação; mãe de leite, relacionado à amamentação; mãe de aluguel, relacionado à gestação).

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Em resumo, segundo a abordagem cognitivista, o significado linguístico é

baseado no uso e na experiência, e a natureza da gramática é dinâmica, por isso, são

importantes os conceitos de protótipos e categorias radiais. Além disso, os sistemas

cognitivos não são autônomos, pois refletem a hipótese de que a experiência sensório-

motora e o pensamento abstrato estão relacionados.

3.4 A Linguística Funcional centrada no uso

Segundo Martelotta (2011), a linguística centrada no uso é a tradução do termo

usage-based model, utilizado inicialmente em Langacker (1987). Essa abordagem

designa modelos teóricos que privilegiam o uso da língua, considerando a existência de

uma forte relação entre a estrutura linguística e o uso que os falantes fazem da língua

nos contextos reais de comunicação.

É importante destacar algumas particularidades dessa abordagem, como a grande

importância atribuída aos aspectos culturais e a concepção de sintaxe a serviço do

discurso. Desse modo, a gramática de uma língua constitui um conjunto de princípios

dinâmicos, que são modificados pelo uso.

Martelotta (2011, p. 59) também utiliza o conceito de construções gramaticais,

designando-as como “unidades formais fixas, padronizadas e portadoras de significado,

incluindo aí características pragmático-discursivas”. O autor destaca, ainda, que o

significado de uma construção não equivale à soma dos significados de suas unidades

constituintes, pois tais unidades devem ser vistas como não composicionais.

As abordagens supracitadas foram escolhidas para nortear este estudo por

constituírem modelos baseados no uso, pois lidam com dados reais, além de

conceberem a língua como instrumento de interação e compreenderem as unidades

linguísticas como dotadas de forma e função (significado).

4. OUTROS CONCEITOS BÁSICOS

4.1 Forma, função e iconicidade

É importante destacar alguns outros conceitos básicos para a abordagem

funcionalista adotados nesta dissertação. Além da língua, os conceitos de forma e

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função são fundamentais nessa perspectiva. Na interação verbal, há um dinamismo entre

forma e função da língua, ou seja, entre os componentes linguísticos e pragmáticos nos

contextos de interação. A partir desses conceitos, emerge o Princípio Universal da

Iconicidade, que é definido como a correlação natural e motivada entre forma e função

(ou significado). Segundo esse princípio, o comportamento linguístico possui um

propósito comunicativo específico. Dessa forma, pode haver motivação fonológica,

morfológica ou semântica. Por outro lado, na língua, há casos em que não há uma

relação clara entre forma e significado, pois o significado original do elemento

linguístico pode ser perdido parcial ou totalmente:

(21) Fiquei acompanhando e vi que o carro virou em direção à Avenida Brasil.

(22) E o latido virou um gemido de sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia

Fagundes Telles]

Os dois exemplos com virar apresentam sentidos diferentes. Em (21), há uma

entidade que percorre uma trajetória, apresentando um significado de direção,

movimento; em (22), virar indica uma mudança de estado, com o sentido de “tornar-

se”. Por outro lado, podemos pensar metaforicamente, pois “tornar-se” indica uma

mudança, que apresenta em sua essência ideia de movimento, tal como presente na

origem do verbo virar. Tal exemplificação evidencia a iconicidade.

4.2 Categorização linguística

Para uma análise mais efetiva do significado da construção em estudo, o

conceito de categorização é importante, pois constitui o processo pelo qual entidades

semelhantes são agrupadas em classes específicas.

A categorização está fortemente ligada à memória. O modelo clássico de

categorização prevê que um elemento faz parte de uma determinada categoria quando

apresenta todos os atributos que a definem. Segundo a gramática clássica, existem

categorias rígidas e estanques, que são desmistificadas se uma simples análise de dados

do uso real da língua for executada.

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Em estudos linguísticos mais recentes, defende-se que as categorias apresentam

membros mais prototípicos (chamados de exemplares), outros intermediários e outros

mais periféricos, existindo, assim, um continuum, tão caro à teoria funcionalista. Há,

portanto, uma escala de prototipicidade, que apresenta as chamadas categorias radiais.

Os elementos pertencem a determinadas categorias de acordo com o contexto, ou seja, o

elemento mais prototípico de uma categoria pode depender do contexto. Tal contexto é

a representação de um evento, e pode ser linguístico ou social. A Linguística Cognitiva

afirma que a categorização linguística se processa, geralmente, na base de protótipos

(exemplares típicos, mais representativos, ou, melhor, representações mentais destas

entidades) e que, consequentemente, as categorias linguísticas apresentam uma estrutura

prototípica (baseada em protótipos). Mais precisamente, os vários membros ou

propriedades de uma categoria possuem, geralmente, diferentes graus de saliência (uns

são prototípicos e outros periféricos), agrupam-se, fundamentalmente, por similaridades

parciais ou semelhanças de família e os limites entre si bem como entre diferentes

categorias são, frequentemente, imprecisos. Esta concepção da categorização é

conhecida como Teoria dos Protótipos. Em contraste com o modelo clássico, essa teoria

postula que as categorias não são estruturas homogêneas. Por haver atributos que,

tipicamente, associamos a uma determinada categoria, além de outros que são menos

facilmente associados ou quase não são, podemos pensar nas semelhanças de família

para atestar que os limites entre as categorias são difusos. Dessa forma, a Teoria dos

Protótipos postula que há membros mais representativos (centrais/periféricos) de uma

categoria, em torno dos quais os demais se organizam, constituindo uma categorização

radial.

4.3 Aspecto

Um conceito muito importante no estudo das predicações, particularmente nas

que envolvem a construção relacional, é o aspecto. Não é à toa que as construções com

ser e as com estar são normalmente diferenciadas pela natureza permanente ou

duradoura das primeiras em oposição à natureza transitória das com estar.

Tempo e aspecto constituem conceitos similares, porém, com uma diferenciação

crucial: enquanto o tempo se refere a um tempo externo, o aspecto localiza a situação

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conforme o tempo interno. A situação diz respeito à “representação linguística de um

determinado estado de coisas ou acontecimento do mundo num contexto espácio-

temporal” (RAPOSO: 2013, p. 585). Segundo Travaglia (1985), o aspecto é uma

categoria verbal ligada ao tempo, pois indica o espaço temporal ocupado pela situação

em seu desenvolvimento marcando a sua duração, isto é, o tempo gasto pela situação em

sua realização. Ao diferenciar as noções de tempo e aspecto, Travaglia (1985) ressalta

que, enquanto a categoria de tempo é uma categoria dêitica, já que situa o momento de

ocorrência da situação a que nos referimos em relação ao momento da fala como

anterior (passado), simultâneo (presente) ou posterior (futuro) a esse mesmo momento,

a categoria de aspecto não é uma categoria dêitica, pois se refere à situação em si,

indicando algo sobre o grau de desenvolvimento, de realização da situação. É um

“tempo interno” à situação, enquanto tempo é um “tempo externo”.

O aspecto marca/identifica a estrutura das situações. Sendo assim, pode ser

inceptivo (quando a situação está em sua parte inicial), terminativo (quando está em sua

parte final), resultativo (quando há algum resultado), dentre outros. O aspecto pode ser

descrito a partir de algumas propriedades ou traços, como dinamicidade, duratividade,

telicidade e homogeneidade.

Uma situação é dinâmica quando passa por fases que progridem no tempo e

podem alterar o estado de coisas inicial. A situação é estática quando ocorre durante um

determinado intervalo de tempo sem qualquer modificação do estado de coisas.

Geralmente, a construção com verbo relacional apresenta situações estáticas, pois não

há modificação do estado de coisas, exceto no caso da construção resultativa, que

pressupõe alguma mudança que gera um resultado. Uma situação é considerada

durativa quando se prolonga por um determinado espaço de tempo, e pontual quando

acontece em um único momento, que é marcado linguisticamente. A situação é télica

quando há uma fronteira final que determina a sua conclusão. Não é télica quando pode

se desenrolar indefinidamente. As situações télicas são caracterizadas por apresentar um

estado de coisas posterior à culminação, que é chamado de estado resultativo. Quando a

situação télica é construída com um argumento nominal semanticamente contável e com

papel temático de paciente, a ocorrência de um estado resultativo pode ser representada

por uma construção relacional com o verbo estar, com sujeito paciente e o predicativo

sob a forma de particípio passado, como em (23):

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(23) Vieram então os filhos dos homens e as filhas das mulheres e colheram as

Rosas, não só as que estavam abertas como algumas ainda não desabrochadas; e

depois as puseram no peito, na cabeça ou em grandes molhos, tudo conforme

ordenara o Jardineiro. [Metafísica das rosas, Machado de Assis]

Uma situação é homogênea quando mantém as mesmas características da

situação por completo, considerada de forma global.

É importante ressaltar, também, a diferença entre estados e eventos. Nos

eventos, há presença de dinamicidade, enquanto nos estados esta não ocorre. Os estados

são situações não dinâmicas, com estrutura interna uniforme. Em contrapartida, os

eventos são caracterizados pela dinamicidade, podendo apresentar subfases.

Em relação à construção relacional com os verbos em estudo, interessam as

nuances aspectuais estática e resultativa, que estão relacionadas diretamente aos estados

e eventos. Por resultar de uma ação, o aspecto resultativo aproxima-se de um evento,

enquanto o aspecto estático representa estados.

4.4 Frames e processos relacionais

Ao estudar as construções gramaticais, é importante pensar na construção do

significado. O conhecimento que adquirimos ao longo da vida é armazenado e exerce

papel de extrema importância nessa construção.

Desse modo, a relação que se dá entre as construções e os frames consiste na

estrutura semântica. Frame refere-se a um “sistema estruturado de conhecimento,

armazenado na memória de longo prazo e organizado a partir da esquematização da

experiência” (FERRARI: 2014, p. 50). Assim, acredita-se que o significado das palavras

seja subordinado a frames, pois a compreensão e a interpretação de uma determinada

construção dependem do conhecimento e da experiência humana, além da cultura.

A partir da noção de frame, é possível averiguar a valência de um verbo, ou seja,

o número de participantes que o verbo exige e as relações entre eles, de acordo com a

cena da experiência humana em questão. Por isso, algumas palavras identificam a

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mesma coisa no mundo, porém, podem ser vistas sob diferentes frames e, até mesmo,

apresentar significados distintos9.

Com base nessa noção, é possível identificar os diferentes frames ativados na

produção de construções como Ela está feliz e Ela está em casa. No primeiro exemplo,

há dois participantes (cf. Halliday, 1994)10, o sujeito Ela e o predicativo feliz, que

denotam uma relação de atribuição de característica a determinado ser. Já no segundo

exemplo, há um participante e uma circunstância (cf. Halliday, 1994), pois há um

sujeito (Ela) e um complemento circunstancial de lugar (em casa), ou seja, é uma

relação de localização espacial de determinado ser.

Podemos articular a noção de frames aos processos relacionais propostos por

Halliday (1994). Dentre os processos existentes, interessam a esta dissertação os

processos relacionais, que possuem uma função classificatória, relacionando duas

entidades no discurso. Eles podem ser atributivos ou identificadores. Nos atributivos, há

dois participantes: o portador e o atributo. Esse tipo de processo relacional não é

reversível, ou seja, não é uma relação de equivalência entre os elementos de uma

construção. Assim, a ordem não pode ser modificada.

Nos processos identificadores, uma entidade é identificada em termos de outra.

Também há dois participantes: o identificado, que é alvo da definição, e o identificador,

que é o elemento definidor. Esse processo é reversível, podendo haver mudança na

ordem dos elementos da construção.

Os processos relacionais são aqueles que estabelecem uma relação entre

entidades, identificando-as ou lhes atribuindo características. Desse modo, os processos

relacionais podem ser identificadores, quando uma entidade é usada para identificar a

outra; atributivos, quando uma qualidade é dada a uma entidade:

(24) Eu era uma rainha delicada. [Felicidade Clandestina, Clarice Lispector]

9 Exemplo: bola – objeto esférico utilizado em alguns esportes; bola – de sorvete.

10 Utiliza-se o conceito de participante de Halliday (1994), que se refere aos elementos que se

associam aos processos e que são representados, geralmente, por sintagmas nominais. Goldberg (1995)

considera como papéis participantes os elementos participantes da cena evocada pelo verbo, ou seja, são

especificados pela semântica do verbo.

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(25) Amizade é matéria de salvação. [Uma amizade sincera, Clarice Lispector]

(26) Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números. [Uma

amizade sincera, Clarice Lispector]

(27) As moças estavam contentes, Mocinha agora já recomeçara a sorrir. [O

grande passeio, Clarice Lispector]

Em (24) e (25), há a identificação de uma entidade a partir de outra (eu = rainha

delicada; amizade = matéria de salvação); enquanto em (26) e (27) há uma atribuição

de características (insolúvel; contentes) a uma entidade (nossa amizade; as moças).

Também há processos relacionais circunstanciais e processos relacionais

possessivos. Nos primeiros, a circunstância é um atributo associado a um outro

participante, enquanto nos processos relacionais possessivos há uma relação de

propriedade, uma vez que o conceito de posse implica a visualização do esquema

dentro-fora com foco sobre o continente. Nesse caso, ativa-se o esquema de

continente/conteúdo, que reforça a noção de estado (exemplo 29):

(28) Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo,

nunca está de lado. [Come, meu filho, Clarice Lispector]

(29) [...] no dia seguinte eu estava com um dos meninos pela mão. [A legião

estrangeira, Clarice Lispector]

Em (28), as construções com estar apresentam circunstâncias de lugar (em cima,

embaixo, de lado), enquanto em (29) há uma relação de posse (com um dos meninos

pela mão).

Para Halliday (1994), exemplos como A meia estava na gaveta e O livro é da

menina são considerados processos relacionais.

4.5 Predicação e transitividade

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50

Predicação e transitividade são conceitos fundamentais na abordagem

funcionalista e, em especial, para esta dissertação.

Na abordagem funcionalista, a predicação deve ser entendida como um processo

de atribuição sintático-semântica, em que o predicador (verbal ou não-verbal) seleciona

o número de argumentos de acordo com o tipo de estado de coisas (DIK, 1997). Dessa

forma, atribui-se uma propriedade a uma ou mais entidades ou se estabelece uma

relação entre entidades. O termo predicador é o responsável por projetar os argumentos,

aos quais atribui papel semântico, pois é o elemento nuclear. A estrutura argumental de

um verbo decorre de seu significado e da relação entre ele e o contexto em que ocorre.

Por outro lado, há casos em que o predicador não é um verbo, mas um elemento

nominal. Na abordagem construcionista, por sua vez, há papéis participantes, evocados

pela semântica do verbo, e papéis argumentais, evocados pela construção, que se

referem aos papéis semânticos (GOLDBERG, 1995).

Ao falar em predicação e argumentos ou participantes, surge outro conceito

importante: a transitividade. Enquanto é considerada propriedade inerente do verbo pela

Gramática Tradicional, a Linguística Sistêmico-Funcional avalia a transitividade como

uma interação de elementos sintáticos (presença ou ausência de SN complemento),

semânticos (papel semântico do objeto) e pragmáticos (uso textual do verbo).

Dependendo do contexto de uso, um mesmo verbo pode variar entre uma classificação

transitiva ou intransitiva. Na perspectiva funcional, a transitividade denota a

transferência de uma atividade de um agente para um paciente.

As delimitações quanto à transitividade e intransitividade dos verbos não são fixas,

pois há verbos intransitivos que podem ocorrer como transitivos a depender do

contexto. Além disso, o objeto direto pode desempenhar diferentes papéis semânticos:

(30) Viva a sua vida!

(31) Deus vive!

(32) O menino vive cansado.

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Em (30), o verbo viver aparece em uma construção transitiva, com um objeto

direto; em (31), numa construção intransitiva; em (32), em uma construção relacional,

indicando frequência, estado habitual. Tais exemplos ratificam a proposta de que a

transitividade é uma propriedade de toda a construção, e não apenas do verbo.

Hopper & Thompson (1980) formulam a transitividade como uma noção

contínua, escalar, não categórica, concebida como um complexo de dez parâmetros

sintático-semânticos independentes, que focalizam diferentes ângulos da transferência

da ação em uma porção diferente da oração. Quanto mais traços de alta transitividade

uma oração exibe, mais transitiva ela é; não pode haver transferência sem que pelo

menos dois participantes estejam envolvidos. A transitividade permite a identificação

das ações e atividades humanas que são expressas no discurso e a realidade que é

retratada. Essa identificação se dá através dos principais papéis de transitividade:

processos, participantes e circunstâncias (HALLIDAY, 1994). Os processos são os

elementos responsáveis por codificar ações, eventos, estabelecer relações, exprimir

ideias e sentimentos, construir o dizer e o existir; já os participantes são os elementos

envolvidos com os processos; por fim, as circunstâncias são as informações adicionais

atribuídas aos diferentes processos.

Relacionando a proposta de tipologia de processos e participantes às metafunções

da linguagem, é possível destacar alguns elementos importantes. Cada sentença

expressa três significados simultaneamente: o ideacional, o interpessoal e o textual.

Dessa forma, os processos, ao associarem participantes específicos determinados pela

sua semântica, constroem um domínio particular da experiência, que permite entender o

ambiente e influir sobre os outros, de acordo com os usos da linguagem.

Para Halliday (1994), a transitividade é centrada na função ideacional, que

consiste na representação da experiência, através da qual “construímos o mundo”,

voltada para o significado. A identificação das ações e atividades humanas expressas no

discurso e da realidade retratada se dá através dos principais papéis de transitividade:

processos, participantes e circunstâncias, que correspondem, em geral, às três classes de

palavras encontradas na maioria das línguas: verbo, substantivo e advérbio.

Os conceitos de processos, participantes e circunstâncias são categorias

semânticas que explicam, de forma mais geral, como os fenômenos do mundo real são

representados como estruturas linguísticas. Os processos são divididos em processos

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materiais, mentais, relacionais, verbais, existenciais e comportamentais. Os processos

materiais constituem ações de mudanças externas, físicas e perceptíveis. Os processos

mentais lidam com a apreciação humana do mundo. Os processos relacionais

estabelecem uma relação entre entidades, identificando-as ou classificando-as. Os

processos verbais constituem os processos do dizer, comunicar, apontar. Os processos

existenciais representam algo que existe ou acontece. Por fim, os processos

comportamentais são os responsáveis pela construção de comportamentos humanos,

incluindo atividades psicológicas e fisiológicas. Todos os processos realizam-se através

de sintagmas verbais. Para Halliday (1994), os principais tipos de processo são os

materiais, os mentais e os relacionais. Os participantes constituem os elementos

envolvidos nos processos, de forma obrigatória ou não, e realizam-se sob a forma de

sintagmas nominais, em geral. Já as circunstâncias são as informações adicionais

atribuídas aos processos, realizando-se sob a forma de sintagmas adverbiais.

Nesta dissertação, a atenção é voltada para os processos relacionais, que

estabelecem uma relação entre sujeito e predicativo, seja uma relação atributiva,

temporal, locativa, de posse ou de identificação, por exemplo.

4.5.1 Predicações nominais

Nem sempre as construções apresentam um verbo como predicador. Quando isso

ocorre, geralmente o predicado descreve um estado ou propriedade que é atribuído ao

sujeito. Assim, diz-se que o verbo não contribui semanticamente para a predicação em

si:

(33) Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio

arruivados. [Felicidade Clandestina, Clarice Lispector]

Isso não significa que o verbo não apresente alguma contribuição semântica à

construção. Pode-se aplicar o teste de permuta verbal para comprovar que o verbo

contribui para as nuances de sentido das construções:

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(33a) Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio

arruivados.

(33b) Ela estava gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio

arruivados.

(33c) Ela ficou gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio

arruivados.

Em (33a), (33b) e (33c), nota-se que há uma alteração de sentido quando

realizada a permuta de um verbo relacional por outro. Em (33a), o verbo era confere à

construção uma ideia mais permanente, mais duradoura; enquanto, em (33b), o sentido é

mais transitório; e, em (33c), há uma mudança de estado.

Nesses casos, o valor semântico dos verbos relacionais na construção é

identificado. Segundo Raposo (2013), embora eles não contribuam de fato para a

descrição do estado ou da propriedade veiculada pelo predicado nem para a

caracterização dos estados descritos pelos sintagmas adjetivais ou preposicionados,

esses verbos permitem a identificação do modo e do aspecto nas construções em que

aparecem e são responsáveis pela marcação das categorias de tempo, pessoa e número

também.

As predicações nominais apresentam como núcleo, prototipicamente, um

sintagma adjetival, mas podem apresentar também um adjetivo participial, ou seja, um

adjetivo que tem base verbal (forma nominal particípio). Geralmente, quando isso

ocorre, há um estado resultativo, que decorre de uma ação que afeta uma entidade e

acarreta uma mudança de estado.

(34) A praça ia fechar-se; os negócios do dia estavam concluídos; e dentro das

colunas que formam a entrada do edifício, poucas pessoas ainda restavam. [A

viuvinha, José de Alencar]

Em (34), observa-se que há uma mudança de estado, que apresenta um resultado

da ação de concluir, ou seja, os negócios foram concluídos por alguém. Nessa

construção, apresenta-se o estado resultativo.

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Também podem aparecer como predicadores na construção relacional sintagmas

preposicionais e sintagmas adverbiais, ainda que em menor número:

(35) [...] sua família era do Piauí [...]. [Uma amizade sincera, Clarice Lispector]

(36) Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo,

nunca está de lado. [Come, meu filho, Clarice Lispector]

Em (35), o predicativo aparece sob a forma de SPrep. (do Piauí) e em (36),

aparece sob a forma de SAdv. (embaixo).

É importante destacar que, na construção relacional, é o predicativo que

contribui semanticamente para a predicação, ou seja, é ele que seleciona o argumento

sujeito.

No estudo da construção com os verbos relacionais depreendido nesta

dissertação, está em jogo a questão aspectual, especialmente com ser e estar. As

diferenças semânticas entre as construções com um ou com o outro verbo decorrem da

distinção entre predicações estáveis e predicações episódicas.

As predicações estáveis constituem as propriedades ou qualidades estáveis nos

indivíduos, denotando certa particularidade, ou seja, são propriedades ou qualidades que

duram grande parte da vida do indivíduo ou mesmo durante toda sua existência. Assim,

costumam ser propriedades com aspecto mais permanente. Geralmente, as predicações

estáveis são construídas com o verbo relacional ser.

As predicações episódicas, ao contrário, descrevem propriedades transitórias

dos indivíduos, ou seja, são espacial ou temporalmente delimitadas e podem sofrer

mudanças. Geralmente, ocorrem em construções com o verbo relacional estar.

A partir da distinção entre predicações estáveis e episódicas, é possível

identificar que as primeiras não admitem a quantificação temporal com o advérbio

sempre (exemplo 37b) ou com a expressão todas as vezes, enquanto as episódicas

(exemplo 37a) a admitem:

(37a) Sempre que Joana está feliz, canta no banheiro.

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(37b) *Sempre que Joana é gorda, come brigadeiro.

Geralmente, a construção de estado apresenta situações totalmente estáticas, ou

seja, não manifestando qualquer marca de dinamicidade, porém, algumas dessas

construções podem denotar eventos. Dessa forma, as predicações que apresentam algum

traço de dinamicidade, aproximando-se dos eventos, são consideradas predicações

faseáveis. Por outro lado, aquelas que não manifestam qualquer traço de dinamicidade

são consideradas predicações não faseáveis.

4.6 Papéis semânticos

Dik (1997) descreve as funções semânticas das predicações com base no tipo de

estado de coisas11. Tais funções (agente, meta, receptor, paciente, tema, entre outros)

“especificam os papéis que as entidades desempenham no estado de coisas designado

pela predicação” (Dik: 1997, p. 117).

O autor propõe os seguintes estados de coisas: situação (estado ou posição) e

evento (processo – dinamismo ou mudança e ação – atividade ou finalização). Além

disso, expõe níveis de relações funcionais, dentre eles as funções semânticas:

(i) Funções semânticas (agente, meta, receptor etc.): especificam os papéis que os

referentes ligados aos termos desempenham no estado de coisas designado pela

predicação em que esses termos ocorrem.

(ii) Funções sintáticas (sujeito e objeto): especificam a perspectiva segundo a qual o

estado de coisas é apresentado na expressão linguística.

(iii) Funções pragmáticas (tema, tópico, foco etc.): especificam o status informacional

dos constituintes num conjunto comunicativo mais amplo em que ocorrem (ou seja, em

relação à informação pragmática do emissor e do destinatário no momento do uso).

11 O termo “estado de coisas” é empregado por Dik (1997) no sentido amplo de “concepção de

algo que pode ocorrer em algum mundo”. Essa definição implica que um estado de coisas é uma entidade

conceptual.

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Para Dik (1997), há uma relação entre pragmática, semântica e sintaxe no

paradigma funcional, que consiste no fato de a semântica ser considerada instrumental

em relação à pragmática, e a sintaxe ser instrumental em relação à semântica.

Segundo Goldberg (1995), além das informações contextuais veiculadas pelos

papéis participantes existem outras informações mais gerais, que não estão diretamente

ligadas aos aspectos imediatos do evento, mas que podem, de algum modo, entrar em

ação na produção e na interpretação da cláusula. Os elementos que veiculam essas

informações são chamados por ela de componentes da cena. Esses componentes podem

ser de dois tipos: os papéis participantes (ou em termos de construção argumental,

costumam corresponder a papéis temáticos); os dados adjacentes (não se traduzem em

termos argumentais, mas compõem a cena exprimindo circunstâncias etc.).

Com base na abordagem funcionalista de Dik (1997) e na construcionista de

Goldberg (1995) a respeito desse tema, podemos definir, de modo geral, que os papéis

semânticos são definidos como a relação de sentido que se estabelece entre o verbo e

seus argumentos/participantes em uma determinada construção.

Nesta dissertação, consideram-se, como papéis semânticos desempenhados pelo

sujeito da construção relacional em estudo, tema (ou paciente) e experienciador. O papel

de tema (ou paciente) diz respeito à entidade afetada e o de experienciador (sujeito

humano) está relacionado a uma entidade que experiencia um estado psicológico ou

físico.

4.7 Metáfora, metonímia e analogia

Por meio de processos cognitivos, como a metáfora e a metonímia, é possível ir

além da representação imediata da realidade. A metonímia e a metáfora constituem

processos de expansão semântica. Dessa forma, pode haver uma composição de novas

construções a partir de outras já existentes ou o surgimento de novas construções, e a

extensão do uso de construções já existentes para a expressão de novos conceitos, o que

inclui um processo de analogia (aplicando noções de transferência, metonímia ou

metáfora).

A metáfora constitui um processo de mudança de significado, que opera como

uma transferência de um conceito básico e concreto para outro mais abstrato. A

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metonímia, por sua vez, constitui uma transferência semântica e designa a mudança que

determinada forma sofre em função do contexto linguístico e pragmático em que está

sendo utilizada.

A partir desses processos, entra em cena o conceito de extensão de usos ou

generalização de contextos, que constitui um dos parâmetros de gramaticalização

propostos em Heine & Kuteva (2007) apud Martelotta (2011). A extensão caracteriza-se

pelo desenvolvimento de usos em novos contextos e constitui um fenômeno gradual. No

caso da construção em estudo nesta dissertação, importa o componente semântico da

extensão de uso, que atribui um novo valor a um elemento, emergindo de novos

contextos:

(38) Tirou tragadas, soltou muitas fumaças, e sentiu o corpo se desmanchar,

dando na fraqueza, mas com uma tremura gostosa, que vinha até ao mais dentro,

parecendo que a gente ia virar uma chuvinha fina. [A hora e vez de Augusto

Matraga, Guimarães Rosa]

Em (38), ocorre extensão de uso da construção com o verbo virar, que passa a

integrar uma construção relacional com o sentido de “tornar-se, transformar-se”. Outro

parâmetro em jogo é a dessemantização, que consiste na perda de conteúdo semântico,

ou seja, as construções que se gramaticalizam assumem função gramatical, pois tendem

a perder parte de seu sentido original ao sofrer a extensão de uso a partir de novos

contextos:

(39) É certo que muitas vezes me perguntavam por que é que eu me distraía

tanto e andava tão melancólica; isto chamava-me à vida real e eu mudava logo

de parecer. [Confissões de uma viúva moça, Machado de Assis]

Em (39), uma vez que há extensão de uso da construção com o verbo andar,

ocorre um esvaziamento semântico, perdendo a noção de movimento (= caminhar) e

adquirindo sentido de frequência, ao apresentar uma leitura habitual.

A analogia, por sua vez, é um mecanismo de mudança linguística, que consiste

no uso de um novo item ou construção em um padrão já existente. Para Bybee (2010), a

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analogia é vista como fonte de novas construções. A maioria das formações por

analogia baseia-se na semelhança fonológica ou semântica com formas existentes. Nesta

dissertação, são analisadas as construções que apresentam semelhança semântica e

semelhança sintática:

(40) A vida corria tranquila, os empregos eram estáveis, mas Marina e Philip se

viram caminhando naquela linha tênue que separa o conforto do tédio.

[http://nomadesdigitais.com/como-uma-familia-de-nomades-digitais-estrangeira-

escolheu-viver-numa-ilha-no-litoral-brasileiro/]

Em (40), notamos o uso de um verbo, tradicionalmente considerado

significativo, numa construção relacional de estado (habitual). A construção A vida

corria tranquila pode ser interpretada como A vida era tranquila/A vida andava

tranquila. Na primeira interpretação, seu sentido de estado [+permanente] é ressaltado;

enquanto, na segunda, sobressai o sentido de frequência.

Por constituir uma rede de construções, a gramática de uma língua apresenta

alguns tipos de relação. Para explicar essas relações, Goldberg (1995) utiliza o princípio

da herança, que se refere às construções gramaticais formarem uma rede interligada

através de relações de herança que motivam as propriedades das construções

particulares, ou seja, redes se organizam radialmente em torno de uma construção

central/básica (cf. Diagrama 1).

Goldberg (1995) estabelece quatro tipos de herança:

(i) herança por polissemia – quando uma construção é uma extensão semântica

de outra;

(ii) herança por subparte – quando parte de uma construção pode existir

independentemente, em uma construção à parte;

(iii) herança por instanciação – quando uma construção específica instancia

outra;

(iv) herança por extensão metafórica – quando uma construção é uma extensão

metafórica de outra, ou seja, o sentido da construção primitiva é projetado para outro

domínio na nova construção.

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Esses tipos de heranças possibilitam a determinação das diferenças e das

semelhanças entre construções relacionadas.

4.8 Figura e fundo

Figura (foreground) e fundo (background) são importantes conceitos

funcionalistas utilizados para a análise de narrativas. Eles estão relacionados ao que é

considerado central e ao que é periférico na estrutura textual. A figura é a parte que

apresenta os pontos mais importantes do discurso e caracteriza-se pela sequência

temporal de eventos concluídos, pontuais, afirmativos, realis, sob a responsabilidade de

um agente. Por outro lado, o fundo é a parte que contém as informações que comentam

ou ampliam o que está sendo destacado pelo falante, correspondendo à descrição de

ações e eventos simultâneos à cadeia da figura, além da descrição de estados, da

localização dos participantes na narrativa e dos comentários avaliativos (CUNHA,

OLIVEIRA & MARTELOTTA, 2003). Segundo Hopper (1979), a narrativa é

organizada em dois planos discursivos diferentes: figura e fundo. A figura corresponde

aos eventos organizados temporalmente e o fundo apresenta as descrições, que

contextualizam as ações da figura, ajudando a compô-la. Essa organização realiza uma

distinção entre os fatos que estão na linha principal de eventos (figura) e os que servem

de suporte a tais eventos (fundo). Na figura, ocorrem eventos dinâmicos, enquanto no

fundo, há o predomínio de situações estáticas e descritivas. Dessa forma, o uso da

construção relacional apresenta maior destaque no fundo das narrativas:

(41) Maria, essa estava simples demais para me olhar e surpreender os efeitos

do convite: olhou em torno e afinal, vasculhando na cesta de roupa suja, tirou de

lá uma toalha de banho muito quentinha que estendeu sobre o assoalho. [Vestida

de preto, Mario de Andrade]

Em (41), o trecho essa estava simples demais para me olhar e surpreender os

efeitos do convite corresponde ao fundo, pois descreve a personagem Maria nessa cena.

Maria... olhou em torno e afinal, vasculhando na cesta de roupa suja, tirou de lá uma

toalha de banho muito quentinha que estendeu sobre o assoalho corresponde à figura,

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pois apresenta uma sequência de fatos/ações.

Silveira (1990) propõe uma “hierarquia de fundidade”, visto que o fundo pode

apresentar funções muito amplas. Então, a autora cria um continuum (FIGURA ↔

FUNDO).

Entre figura e fundo, haveria alguns níveis de fundo, alguns mais próximos da

figura e outros mais distantes. Dessa forma, a autora postula cinco níveis de fundo: o

nível mais próximo da figura (Fundo 1) engloba cláusulas que dão informações

concretas sobre o evento, como a apresentação do evento, do cenário, dos personagens e

de sua fala; o Fundo 2 especifica tempo, modo e finalidade; o Fundo 3 especifica

referente, processo/ação; o Fundo 4 especifica as relações de causa, consequência e

adversidade; por fim, o Fundo 5, mais distante da figura, apresenta interferências do

falante no evento, como opinião, dúvida, resumo, conclusão e canal.

Nesta dissertação, buscamos investigar em que nível(is) de fundo encontram-se

as ocorrências de construção relacional analisadas, com base na proposta de Silveira

(1990).

4.9 Gramaticalização

Existem fatores que possibilitam identificar a gramaticalização: frequência de

ocorrência ou de tipo de construção, alteração semântica, polissemia do termo, redução

de material fônico e redução dos contextos sintáticos em que o item ou construção pode

ocorrer. Além disso, é importante frisar que uma das características básicas do processo

de gramaticalização é o princípio de unidirecionalidade, que afirma que a mudança se

dá numa direção específica e não pode ser revertida.

Hopper (1991) defende cinco parâmetros no processo de gramaticalização:

estratificação, divergência, especialização, persistência e descategorização. Esses

princípios acentuam o caráter gradual da gramaticalização, uma vez que conferem aos

elementos analisados o grau de mais ou menos gramaticalizados:

(i) estratificação: em um domínio funcional amplo, novas camadas estão sempre

emergindo e coexistindo com as antigas.

(ii) divergência: a unidade ou construção lexical que inicia o processo de

gramaticalização pode manter suas propriedades originais, preservando-se como item ou

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construção autônoma e, assim, estar sujeita a quaisquer mudanças inerentes a sua classe,

inclusive sofrer um novo processo de gramaticalização.

(iii) especialização: relaciona-se com o estreitamento de opções para se codificar

determinada função, à medida que uma dessas opções começa a ocupar mais espaço

porque mais gramaticalizada.

(iv) persistência: prevê a manutenção de alguns traços semânticos da forma-

fonte na forma gramaticalizada, o que pode ocasionar restrições sintáticas para o uso da

forma gramaticalizada.

(v) descategorização: perda, por parte da forma em processo de

gramaticalização, dos marcadores opcionais de categorialidade e de autonomia

discursiva. A forma em gramaticalização tende a perder ou neutralizar as marcas

morfológicas e os privilégios sintáticos que caracterizam as formas plenas (como nomes

e verbos), vindo a assumir atributos das categorias secundárias mais gramaticalizadas

(como advérbios, pronomes, preposições, clíticos, afixos), podendo, em alguns casos,

chegar a zero.

Raposo (2013, p. 277/278) descreve sinteticamente o processo de

gramaticalização que os verbos ser e estar sofreram ao longo do tempo na língua

portuguesa. Tais verbos derivam das formas latinas sedere e stare, que significavam

estar sentado e estar de pé, respectivamente. Assim, passaram de verbo

predicador/pleno a verbo relacional e a verbo (semi)auxiliar, envolvendo a passagem do

domínio espacial (posição no espaço) para o domínio temporal (permanência e

transitoriedade):

(42) – Na Sorveteria Gatão o sorvete é bom porque tem gosto igual da cor.

[Come, meu filho, Clarice Lispector]

(43) Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo,

era muito maior do que quando estávamos sozinhos. [Uma amizade sincera,

Clarice Lispector]

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Os exemplos (42) e (43) ilustram a noção temporal dos verbos relacionais ser e

estar em seu uso atual e mais comum: no primeiro, ser denota uma propriedade mais

inerente, permanente; no segundo, estar denota maior transitoriedade.

4.9.1 Gramaticalização de construções

Nesta dissertação, interessa a gramaticalização de construções. O conceito de

gramaticalização tem sido reformulado desde a primeira referência ao termo

(MEILLET: 1921 [1912]) à medida que se avançam os estudos sobre o processo. O

olhar deixou de recair apenas sobre o item e passou a englobar toda a construção.

Segundo Goldberg (1995), as construções são esquemas abstratos, que vinculam a

forma ao significado. Essa vinculação se dá devido ao sentido de uma construção não

corresponder à soma dos sentidos de cada um de seus elementos, ou seja, não é uma

visão composicional.

Na gramaticalização, há dois tipos de mudança pelos quais passam as

construções: a mudança construcional, que afeta a dimensão interna de uma construção;

a construcionalização, que é a criação de novas formas e novos significados ou

combinação de signos, sendo acompanhada de mudanças no nível da esquematicidade,

produtividade e composicionalidade (TRAUGOTT & TROUSDALE, 2013).

4.10 Construções gramaticais

Como já foi dito ao longo desta dissertação, a abordagem construcionista

considera a construção gramatical como unidade básica da língua.

Goldberg (1995) propõe alguns tipos de construção, como as construções de

movimento, transferência, mudança de estado e causa. Segundo ela, essas construções

de estrutura argumental correspondem aos tipos oracionais mais básicos e, em seu

sentido central, codificam cenas (situações) que são fundamentais à experiência

humana. Com isso, a autora enfatiza que as sentenças produzidas por falantes de uma

língua estão repletas de motivações que surgem das relações entre forma (estrutura

sintática) e função (significado).

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4.10.1 Construção relacional

Quanto à forma, compreende-se como construção relacional a construção

composta por sujeito (explícito ou não), verbo relacional (nesta dissertação, ser, estar,

ficar, andar, viver e virar) e predicativo do sujeito (sob as formas de SN, SAdj.

participial ou não participial, SPrep. ou SAdv.). A partir dessa construção, há as

construções intituladas construção de estado e construção de mudança de estado. A

construção de estado habitual denota um evento que ocorre com determinada

frequência. Já a construção de mudança de estado pode ser uma construção resultativa,

quando o foco recai sobre o resultado.

4.10.1.1 Construção de estado e mudança de estado

A construção de estado é formada por verbos relacionais que não pressupõem

mudança, como em:

(44) Cronologicamente a situação era a seguinte: um homem e uma mulher

estavam casados. [Os obedientes, Clarice Lispector]

(45) Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números. [Uma

amizade sincera, Clarice Lispector]

Nos exemplos (44) e (45), verifica-se que não há indício de mudança de estado,

ou seja, descrevem-se propriedades/características. Logo, representam a construção de

estado.

Por outro lado, há a construção de mudança de estado, que indica um estágio

anterior, ou seja, indica que houve uma mudança:

(46) Desde a entrada no quarto eu concentrara todos os meus instintos na

existência daquele travesseiro, o travesseiro cresceu como um danado dentro de

mim e virou crime. [Vestida de preto, Mario de Andrade]

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(47) Maria, por seu lado, parecia uma doida. Namorava com Deus e todo o

mundo, aos vinte anos fica noiva de um rapaz bastante rico [...]. [Vestida de

preto, Mario de Andrade]

Observa-se que as construções com os verbos relacionais virar e ficar denotam

uma mudança (virou crime, porque antes não era; fica noiva, porque antes não era).

4.10.1.2 Construção resultativa

A construção de estado resultativo apresenta algum resultado de uma ação

anterior. Assim, enquadra-se nesse rótulo a construção relacional com os verbos virar

(com sentido semelhante a tornar-se, exemplo 50), estar (nos casos em que o

predicativo é um particípio ou adjetivo de base participial, exemplo 48) e ficar (exemplo

49):

(48) E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores.

[Cem anos de perdão, Clarice Lispector]

(49) Quando soube que o seu querido Luís estava atacado da terrível moléstia,

Anastácio ficou triste, e foi nessa ocasião que se encontrou com o Dr. Lemos e

lhe deu notícia da gravíssima situação do afilhado. [Aurora sem dia, Machado de

Assis]

(50) E de repente riu sacudindo o avental: Depressa, até a casa da Juana Louca,

quem chegar por último vira um sapo! [Que se chama solidão, Lygia Fagundes

Telles]

Tendo como base o padrão prototípico de construção resultativa, que consiste

em X FICAR Y (PALOMANES, 2007), pretende-se analisar a construção X ESTAR Y,

sendo Y um adjetivo participial, como em A casa estava revirada, cuja semântica

apresenta um resultado da ação de revirar, podendo ser compreendida como A casa

ficou revirada.

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65

Observa-se que a semântica do verbo estar liga-se à semântica da construção

como um todo para licenciar tal sentido. Dessa forma, a construção gramatical é

analisada como uma correlação entre forma e significado.

Também foram encontrados dados com o verbo virar indicando resultado,

conforme o recente estudo desenvolvido por Palomanes & Oliveira (2013).

Foi considerada construção resultativa com ficar a construção com predicativo

do sujeito sob a forma de adjetivo participial e que apresenta semântica de resultado de

uma ação:

(51) Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. [A

Repartição dos Pães, Clarice Lispector]

Em (51), há um resultado da ação de convidar: nós estávamos convidados para o

almoço de obrigação. Portanto, associando forma e significado, observa-se que se trata

de uma construção gramatical resultativa. Esse constitui um exemplo prototípico, visto

que estar acompanhado de particípio é considerado uma construção que indica uma

mudança de estado, tendo como uma de suas nuances a resultatividade.

Observa-se que também há uma mudança de estado como consequência de uma

ação, como resultado, nas construções com virar encontradas no corpus. Trata-se,

também, de construção resultativa (exemplos 52 e 53):

(52) Desde a entrada no quarto eu concentrara todos os meus instintos na

existência daquele travesseiro, o travesseiro cresceu como um danado dentro de

mim e virou crime. [Vestida de preto, Mario de Andrade]

(53) E o latido virou um gemido de sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia

Fagundes Telles]

Com estar mais adjetivo participial, também pode haver semântica de resultado

(exemplo 54):

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(54) O canto já estava ocupado por um monte de sedas, que deixou escapar-se

um ligeiro farfalhar, conchegando-se para dar-me lugar. [Cinco minutos, José de

Alencar]

Estar ocupado também indica um resultado de ocupar algo com alguma coisa.

É importante observar que, na construção resultativa, os verbos ficar e virar se

distanciam de seus sentidos primários: ficar afasta-se do sentido de permanência. e virar

afasta-se da noção de direcionamento, adquirindo a significação de tornar-se. O uso de

ficar e virar com o sentido de tornar-se pode ser analisado como um caso de extensão

de uso. A extensão caracteriza-se pelo desenvolvimento de usos em novos contextos, no

caso, no contexto de construção resultativa. Quando ocorre a extensão de uso de

determinada construção, entram em cena alguns processos cognitivos: a metáfora, que

constitui um processo de mudança de significado, operando como a transferência de um

conceito concreto para outro mais abstrato; a metonímia, que consiste em uma

transferência semântica por meio de relação de contiguidade.

4.10.1.3 Construção de estado habitual

A construção de estado habitual denota eventos que se repetem ou continuam no

decorrer do tempo:

(55) Mendonça aprovou as calças, e desculpou como pôde a ausência, dizendo

que andava atarefado. [Miss Dollar, Machado de Assis]

(56) Se eu não era feliz, vivia alegre. [Confissões de uma viúva moça, Machado

de Assis]

Em (55) e (56), observa-se que há estados que se repetem com determinada

frequência (andar atarefado e viver alegre).

5. MATERIAIS E METODOLOGIA

5.1 Dados do uso

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67

O corpus é composto de predicações nominais coletadas em contos literários da

modalidade escrita do Português Brasileiro. Escolheu-se o conto, por se tratar de um

gênero textual que apresenta, geralmente, um grande número de ocorrências de

descrições. Além disso, também se procurou contar com dados coletados no Google.

Para a constituição dessa amostra complementar, foram pesquisadas construções pouco

encontradas no corpus de contos literários, mas que, impressionisticamente, se supõe,

são comuns.

Foram selecionados 60 textos narrativos do gênero conto literário, dos quais

foram extraídos 806 dados da construção em estudo, sendo 417 com o verbo ser, 233

com estar, 104 com ficar, 36 com andar, 10 com viver e 6 com virar. No Google, foram

coletadas 10 ocorrências de construção com tornar-se, 7 com correr e 8 com soar.

Além disso, buscaram-se exemplos de construção relacional com os outros verbos

citados na literatura como relacionais (continuar, parecer, permanecer).

A análise dos dados coletados ocorreu com base na observação (i) da construção

relacional com os verbos em estudo e (ii) da configuração sintático-semântica de tal

construção. Dessa forma, foram criados treze parâmetros para a análise dos dados. Para

o tratamento quantitativo dos dados, foi utilizado o aplicativo do programa Goldvarb

que forneceu a distribuição dos dados por esses parâmetros, conhecido como makecell.

Recorreu-se a esse aplicativo apenas porque viabiliza a quantificação que se deseja e é

conhecido pelo pesquisador.

5.1.1 Escolha das fontes do corpus

5.1.1.1 Contos literários

O gênero conto literário foi escolhido para compor o corpus por apresentar

maior número de ocorrências da construção relacional em estudo do que outros textos

descritivos, como narrativas jornalísticas (notícias, reportagens), anúncios e

propagandas (que descrevem os produtos ou serviços), caracterizações profissionais

(como as que há em páginas como a do Lattes). Em estudos anteriores (cf. PAVÃO &

VIEIRA, 2013), realizou-se a coleta de algumas dessas construções em textos

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jornalísticos escritos (como notícias) e em entrevistas orais transcritas, os quais também

apresentam grande variedade de construções relacionais, porém, nos contos literários,

há um maior detalhamento dos fatos (que são narrados e descritos) e, com isso, um

maior uso de construções que servem à caracterização de entidades.

Para justificar a escolha do gênero12 conto literário como uma das fontes de

coleta de dados, recorre-se a observações presentes em obras acadêmico-científicas

voltadas para o estudo de gênero discursivo. Tais observações revelam as características

presentes em tal gênero, que abriga, ao menos, dois tipos de texto: o narrativo e o

descritivo.

Segundo Santos et al. (2012), os gêneros textuais conjugam estabilidade à

instabilidade, pois os textos podem apresentar diferentes tipos sem que passem a

configurar gêneros diferentes:

(57) No fim de quinze dias tinha Camilo esgotado a novidade das suas

impressões; a fazenda começou a mudar de aspecto; os campos ficaram

monótonos, as árvores monótonas, os rios monótonos, a cidade monótona, ele

próprio monótono. [A parasita azul, Machado de Assis]

Em (57), nota-se que há narração e descrição. Ao mesmo tempo em que se narra,

descreve-se uma mudança de estado, por meio do uso de uma construção de aspecto

inceptivo (começou a mudar) e de construção relacional com o verbo ficar (ficaram

monótonos). O narrador fala do tempo que passa para determinado personagem e como

as coisas à sua volta se modificam. Logo, num mesmo trecho, há dois tipos textuais

(narração e descrição) num mesmo gênero (conto literário).

As autoras citam Bakhtin (1992), que define os gêneros textuais como tipos de

enunciados relativamente estáveis, que se situam social e historicamente, com

intencionalidade definida e relevante para determinado grupo social. Segundo o autor,

os gêneros se caracterizam da seguinte forma, quanto à sua composição:

(a) estilo – seleção de palavras, expressões e tipos de frases mais comuns e sua

organização;

12 Assume-se, nesta dissertação, que gênero textual (ou gênero discursivo) refere-se aos textos

materializados em situações comunicativas recorrentes (MARCUSCHI, 2009).

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(b) conteúdo temático – o que pode ser dito em determinado gênero;

(c) estrutura – refere-se aos tipos de texto (narração, argumentação etc.) e as

partes que constituem cada gênero.

É importante ressaltar que é um equívoco considerar os tipos como sinônimos de

textos, pois os textos são organizados de acordo com determinada tipologia de forma

predominante, porém, em geral, mais de uma aparece em sua constituição.

Adaptando a proposta de Marcuschi (2002, 2008), Santos et al. (2012)

reproduzem um quadro com a tipologia textual. Nesse quadro, a tipologia “descrição”,

apresenta como objetivo e temática “identificar, localizar e qualificar seres, objetos,

lugares, apresentando características físicas ou psicológicas” (SANTOS et al.: 2012, p.

36). Seguindo esse raciocínio, podemos destacar, para os propósitos desta pesquisa, que

é a construção relacional que cumpre, por excelência, esse papel em um texto

predominantemente descritivo.

Em todos os gêneros realizam-se tipos textuais, podendo ocorrer que o mesmo

gênero realize dois ou mais tipos. Assim, um texto é, em geral, tipologicamente variado

(heterogêneo). Logo, no gênero textual conto literário, há a predominância dos tipos

narrativo e descritivo. Segundo Travaglia (2002), em textos descritivos, os únicos

verbos gramaticais que aparecem são os de ligação/relacionais, sobretudo na descrição

estática. Dessa forma, utilizam-se os contos literários para uma análise efetiva da

construção relacional, tendo em vista que seu uso é mais produtivo em textos desse

gênero e do tipo descritivo.

De acordo com Azevedo (1995), nas narrativas, há um maior número de

ocorrências de verbos de ação e de estado. Desse modo, entram em cena dois conceitos

importantes para a abordagem funcionalista: figura e fundo. Esses conceitos constituem

os planos discursivos, ou seja, o princípio geral da percepção humana, no qual a

comunicação é estabelecida. Na figura da narrativa, há a predominância de verbos de

ação para a narração dos eventos e, no fundo, aparecem mais significativamente os

verbos de estado, que vão compor tipicamente as descrições e os cenários.

Tais características encontradas na figura e no fundo narrativos revelam que as

categorias verbais focalizadas são, de fato, recursos utilizados pelo falante a fim de

ampliar os fatos apresentados com descrições e comentários (fundo).

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Tomando por base a experiência anterior em pesquisa com outros gêneros

textuais com tipos narrativos e o referencial aqui brevemente traçado – que lida com

instabilidade e estabilidade e outros traços característicos da composição dos textos e

articula planos discursivos (figura e fundo) a procedimentos de narração e descrição –,

escolheu-se centrar a análise na construção com os verbos relacionais ser, estar, ficar,

andar, viver e virar presentes em contos literários brasileiros, a fim de, entre outras

finalidades, examinar a produtividade e a diversidade de seu emprego nesse gênero e a

relação entre os usos identificados e as características semânticas, formais e funcionais

da construção em que ocorrem, procurando levar em consideração o vínculo entre

gramática e texto.

5.1.1.2 Textos do Google

Para a organização de uma amostra complementar, foram coletados dados de

construções com os verbos tornar-se, soar, correr, continuar, permanecer e parecer a

fim de demonstrar outros usos da construção relacional e compará-los aos que estão em

estudo nesta dissertação. Assim, foram encontrados dados em textos de diversos

gêneros, como em notícias de jornais online, blogs etc.

5.2 Procedimentos para a análise das amostras de dados

A primeira etapa de pesquisa para esta dissertação baseou-se na realização de

leituras sobre o tema e, em consequência dessas leituras e de experiências com o estudo

de assuntos afins desde o período de iniciação científica, na definição da amostra de

construções relacionais a focalizar. Decidiu-se recorrer a textos escritos narrativo-

descritivos do gênero conto literário, no Português Brasileiro, uma vez que, nesse tipo

de texto, há maior probabilidade de encontrar construção relacional. Num segundo

momento, em decorrência de observação preliminar e geral dos dados que iam sendo

coletados, optou-se por somar a essa amostra uma espécie de amostra de controle de

certos traços ou configurações viáveis para a construção relacional. Para tanto,

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71

pesquisaram-se construções relacionais comuns no uso da língua e disponíveis na

internet com o auxílio da ferramenta de busca Google13.

Com a coleta de dados em andamento e à medida que as leituras sobre o tema

avançaram, foram estabelecidos alguns parâmetros para a realização de uma análise

qualitativa e quantitativa das amostras. Tais parâmetros serão expostos na próxima

subseção.

Em seguida, os dados foram codificados e analisados quantitativamente com o

auxílio do aplicativo makecell do programa Goldvarb, para identificar a porcentagem de

dados por categoria estudada e a distribuição das construções pelas características que

elas viabilizam.

A partir dos resultados obtidos, procedeu-se à análise qualitativa das amostras

com base nos pressupostos e princípios do quadro teórico adotado e, em consequência,

investiu-se na identificação das relações entre a construção relacional e categorias

detectadas no corpus para a proposição de uma rede de construções no PB.

5.2.1 Parâmetros e hipóteses de análise dos dados

Os parâmetros escolhidos para a análise dos dados coletados foram: (i) verbo

relacional em jogo; (ii) tipo de construção relacional; (iii) grau de animacidade do

sujeito; (iv) predicativo restritivo ou não restritivo; (v) papel temático do sujeito; (vi)

tipo de predicação nominal; (vii) estrutura sintagmática do predicativo; (viii) tipo de

processo relacional; (ix) tipologia do estado de coisas representado pela predicação; (x)

estado aspectual da predicação; (xi) ordem dos termos da construção; (xii) polaridade

positiva ou negativa; (xiii) plano discursivo.

5.2.1.1 Verbo relacional em jogo

Verificam-se, com base na concepção de frequência de token e de type de Bybee

(2010), a frequência e a produtividade das construções com os verbos ser, estar, ficar,

andar, viver e virar funcionando como relacionais, ou seja, como verbos que se

13 Foram digitadas, no campo de busca, construções com os verbos em questão já ouvidas, lidas e

até mesmo produzidas pela pesquisadora, a fim de atestar seu uso por outros falantes da língua.

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relacionam a elementos não-verbais com função atributiva ou identificadora, na maioria

dos casos, para conferir a estes elementos o papel de projetar sintática e semanticamente

predicações. A hipótese é a de que construções com os verbos ser, estar e ficar sejam

as mais frequentes e as mais produtivas.

5.2.1.2 Tipo de construção relacional

A construção relacional em estudo pode ser construção de estado ou de mudança

de estado. A construção de estado pode apresentar uma leitura habitual (indicando a

frequência de algum estado), uma característica ou uma qualidade no decorrer do

tempo; a construção de mudança de estado pode apresentar uma mudança que gere

algum resultado.

Em razão dessas possibilidades, neste segundo parâmetro de análise, tem-se

como hipótese que a construção em estudo apresenta variações de configuração

semântica, segundo o seguinte quadro de classificação (Quadro 3):

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Tipo de construção relacional Configuração interna mais produtiva

(1) Construção de estado

Exemplo:

A viagem foi muito bonita. [O grande

passeio, Clarice Lispector]

Construção relacional com os verbos SER,

ESTAR e FICAR com sintagmas nominais,

sintagmas adjetivais e sintagmas

preposicionados.

(2) Construção de estado

habitual/repetitivo

Exemplo:

O vice-rei, que era então o Conde de

Resende, andava preocupado com a

necessidade de construir um cais na

Praia de D. Manuel. [Um retrato,

Machado de Assis]

Construção relacional com os verbos

ANDAR e VIVER, ou com os verbos SER

e ESTAR com sintagmas adverbiais de

frequência.

(3) Construção de mudança de

estado

Exemplo:

E o latido virou um gemido de

sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia

Fagundes Telles]

Construção com os verbos FICAR e

VIRAR + sintagma adjetival ou sintagma

nominal.

(4) Construção de mudança de

estado resultativa

Exemplo:

O Antonico ficou envergonhado com a

reprimenda e foi para a sala lavado em

lágrimas. [As bodas de Luís Duarte,

Machado de Assis]

Construção com os verbos FICAR, ESTAR

e SER + sintagma adjetival participial.

Quadro 3 – Síntese da hipótese de relação entre o tipo de construção relacional em estudo e sua

configuração interna mais produtiva.

É importante ter em mente que os elementos modificadores, como os sintagmas

adverbiais, podem alterar o sentido da construção como um todo. Relações traçadas

nesse quadro são percebidas em exemplos do corpus tais como:

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(1a) O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico.

[Felicidade Clandestina, Clarice Lispector]

(1b) Camilo fora uma vez à fazenda do Dr. Matos; mas a filha estava doente. [A

parasita azul, Machado de Assis]

(1c) A página em que eu devia ter escrito as circunstâncias desse fato ficou em

branco, minha prima; agora, porém, podemos lê-la claramente no espírito de

Jorge, que, sentado à sua carteira, triste e pensativo, repassa na memória esses

anos de sua vida, desde a noite do seu casamento. [A viuvinha, José de Alencar]

Nos exemplos (1a), (1b) e (1c), as construções são de estado, pois não

pressupõem processo anterior e não envolvem dinamicidade. Em (1a), um ser

inanimado (o plano secreto da filha do dono de livraria) é caracterizado (tranquilo e

diabólico), ou seja, a construção apresenta um uso atributivo; em (1b), um ser humano

(a filha) tem seu estado descrito (doente); em (1c), o verbo ficar apresenta o sentido de

permanecer, ou seja, “a página permaneceu em branco”, permaneceu em seu estado,

logo, não envolve dinamicidade.

(2a) O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. [O

ovo e a galinha, Clarice Lispector]

(2b) Mendonça aprovou as calças, e desculpou como pôde a ausência, dizendo

que andava atarefado. [Miss Dollar, Machado de Assis]

(2c) A moça estava outra vez assentada na cama, mas já não chorava; tinha os

olhos fitos no chão. [O relógio de ouro, Machado de Assis]

(2d) O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu

quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. [Cem anos de perdão, Clarice

Lispector]

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Em (2a), (2b), (2c) e (2d), as construções são de estado habitual/repetitivo, pois

indicam a frequência de um estado no decorrer de um determinado tempo da existência

de um ser. Em (2a), ainda há o reforço do sintagma adverbial sempre, que indica

frequência. Em (2c) e (2d), sintagmas adverbiais conferem às construções o sentido de

frequência (outra vez e sempre).

(3a) A afilhada não advertia que o ofício do buço é virar bigode, ou, se pensou

nisso, fê-lo tão vagamente, que não vale a pena de o pôr aqui. [Ex cathedra,

Machado de Assis]

(3b) Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem

pai nem mãe compreenderiam. [Tentação, Clarice Lispector]

(3c) Quando soube que o seu querido Luís estava atacado da terrível moléstia,

Anastácio ficou triste, e foi nessa ocasião que se encontrou com o Dr. Lemos e

lhe deu notícia da gravíssima situação do afilhado. [Ernesto de Tal, Machado de

Assis]

Nos itens (3a), (3b) e (3c), as construções são de mudança de estado e,

especificamente, (3b) e (3c) são construções resultativas, pois envolvem resultado. Os

verbos virar e ficar distanciam-se de suas semânticas primárias de direcionamento e

permanência, respectivamente, e adquirem a significação de tornar-se, pressupondo que

houve uma mudança de estado. Em (3b), o espanto ocorre como resultado de uma ação

(um certo acontecimento que a deixou muda); em (3c), o verbo estar acompanhado de

um adjetivo participial (estava atacado) pressupõe mudança de estado com um

resultado, ou seja, o sujeito (Luís) sofre uma mudança de estado devido a uma terrível

moléstia.

Examina-se, então, a pertinência da relação sintetizada no quadro 3 em todo o

corpus.

5.2.1.3 Grau de animacidade do sujeito

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Este parâmetro é importante para identificar a seleção semântica que o

predicativo faz do argumento sujeito. Conforme Pavão & Vieira (2013), o significado

global de uma construção resulta da associação do significado semântico e do

significado lexical; logo, a estrutura de participantes/argumentos numa construção

relacional é determinada pelo predicativo e pela construção como um todo. Assim, o

predicativo, elemento não-verbal, assume a função lexical de predicação (de selecionar

sintática e semanticamente o argumento/participante sujeito, ou seja, suas condições de

preenchimento). Cabe a esse elemento não-verbal predicativo, ao qual o verbo

relacional não impõe restrição de qualquer natureza (até porque não funciona como

predicador), o papel de especificar as condições semânticas de preenchimento do

argumento sujeito:

(58) As moças estavam contentes, Mocinha agora já recomeçara a sorrir. [O

grande passeio, Clarice Lispector]

Em (58), nota-se que o predicativo contentes exige um sujeito [+ animado, +

humano], que é as moças, não podendo, por exemplo, ser *As pedras estavam

contentes, ou seja, com um sujeito [- animado, não humano] torna-se uma construção

agramatical, a não ser que faça parte de uma construção com sentido figurado,

personificado.

Por tratar-se de um corpus de contos literários, há diversos dados em que ocorre

linguagem figurada:

(59) O que é certo é que um véu de melancolia parecia envolver os olhos

travessos da bela Rosina. Nem já eram travessos; estavam desmaiados ou

mortos. [Ernesto de Tal, Machado de Assis]

No exemplo (59), os olhos de Rosina ganham aspectos humanos (travessos,

desmaiados e mortos). Assim, embora os predicativos sejam restritivos, exigindo

argumentos sujeitos [humanos] ou [+ animados], o gênero literário admite a ocorrência

de personificações.

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5.2.1.4 Predicativo restritivo ou não restritivo

Este parâmetro está intimamente relacionado ao parâmetro anterior. Por assumir

a função lexical de predicador (de selecionar sintática e semanticamente um participante

sujeito, ou seja, suas condições de preenchimento), o predicativo pode impor restrições

ou não à manifestação desse participante. Naturalmente, a estrutura de participantes

projetada pelo predicador não-verbal se compatibiliza com as imposições da construção

de estado ou da construção de mudança que a instancie. A observação preliminar dos

dados quanto a esse parâmetro que se empreendeu no início do estudo sugeriu que, em

geral, costuma haver restrição. Ressalte-se, de todo modo, que, embora o predicativo

assuma o papel de predicador no nível da predicação nominal e, então, encaminhe uma

estrutura de participante(s) associada a elemento não-verbal, ao preencher o slot em

uma determinada construção relacional, que, por sua vez, também tem um slot para

verbo relacional, esta acaba por ter influência sobre o pareamento forma-significado.

Alguns predicativos exigem sujeito humano, outros só aceitam sujeito [+

animado], outros, em menor número, aceitam qualquer tipo de sujeito, como [+

concreto] e [+abstrato], por exemplo. Essa é a hipótese da qual se parte para a análise

desse parâmetro.

(60) Estávamos fatigados, desiludidos. [Uma amizade sincera, Clarice

Lispector]

(61) Maria, essa estava simples demais para me olhar e surpreender os efeitos

do convite: olhou em torno e afinal, vasculhando na cesta de roupa suja, tirou de

lá uma toalha de banho muito quentinha que estendeu sobre o assoalho. [Vestida

de preto, Mario de Andrade]

Em (60), o predicativo exige sujeito humano, pois fatigados e desiludidos são

estados humanos. Já em (61), o predicativo não faz restrição semântica no que diz

respeito à configuração do sujeito, pois simples é uma característica que pode ser

atribuída a sujeitos humanos, [+ animados, não humanos], [+ concretos] e [+ abstratos]:

A menina é simples; A flor é simples; O convite era simples; A felicidade é simples.

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5.2.1.5 Papel semântico do sujeito

Este parâmetro relaciona-se ao anterior, pois diz respeito à função semântica que

o sujeito exerce na construção:

(62) Eu, um pouco ousada, fiquei feliz. [A legião estrangeira, Clarice Lispector]

(63) José Lemos indagou da mulher se não faltava nenhum convite, e depois de

certificar-se que estavam convidados todos os que deviam assistir à festa, foi

vestir-se para sair. [As bodas de Luís Duarte, Machado de Assis]

Em (62), o papel semântico do sujeito eu é o de experienciador, pois a entidade

experimenta um estado psicológico (feliz). Em (63), o sujeito todos, que está posposto

ao verbo, é tema (ou paciente), pois é uma entidade afetada pelo efeito de uma ação (ser

convidado).

Procurou-se observar o papel semântico do sujeito para que se pudesse

examinar: (i) se, geralmente, é ou não determinado pelo elemento não-verbal

predicativo; (ii) qual é a configuração mais comum nos predicados nominais do corpus

de contos literários em foco; (iii) a interferência da natureza semântica desse termo

sintático na leitura do tipo de predicado. A hipótese principal é a de que, quando o

sujeito é humano, predomina o papel semântico de experienciador, por ter controle

sobre uma percepção psicológica ou física; já quando o sujeito não é humano, sobressai

o papel de tema (ou paciente), que denota uma entidade afetada pelo efeito de alguma

ação, ou seja, este não tem controle sobre a situação. Outra hipótese é a de que o sujeito

seja determinado pelo predicativo, que restringe seu preenchimento sintático-semântico.

5.2.1.6 Tipo de predicação nominal

Em relação aos tipos de predicação nominal, a construção relacional pode

apresentar estado estável ou estado episódico. Os estados estáveis são aqueles que

indicam propriedades estáveis de um indivíduo, ou seja, que duram grande parte de sua

vida ou por toda a sua existência. São propriedades mais duradouras, permanentes ou

inerentes:

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(64) Ela é a amante que sabe que terá tudo de novo. [As águas do mundo,

Clarice Lispector]

Em (64), ser amante é uma propriedade que perdura durante algum tempo na

vida do argumento/participante sujeito ela.

Os estados episódicos, por sua vez, denotam propriedades transitórias de um

indivíduo, ou seja, delimitadas de alguma forma e propensas a mudanças:

(65) – E agora estou muito ocupado! [O grande passeio, Clarice Lispector]

Já em (65), a propriedade de estar ocupado é transitória, reforçada pelo sintagma

adverbial de tempo agora, e pode apresentar mudança.

Dessa forma, as predicações nominais podem ser estáveis ou episódicas. A

oposição existente entre ser e estar no PB está ligada à distinção entre esses dois tipos

de predicação. Assim, geralmente, os predicativos episódicos são compatíveis com estar

e os estáveis, com ser. Por outro lado, há alguns sintagmas adjetivais que são

compatíveis com ambos os verbos relacionais, admitindo, assim, leituras estáveis ou

episódicas, como em “Maria é/está alta”.

A intenção ao estabelecer esse parâmetro para análise foi a de, além de

investigar a oposição entre construções relacionais com ser e estar normalmente

referida quanto ao aspecto, verificar se a construção relacional com outros verbos

também pode ser categorizada com base nessa oposição e os elementos sentenciais que

levam a uma ou a outra leitura. A hipótese é a de que as construções com viver e andar

correspondem a predicações estáveis, tal como as com ser, pois apresentam

propriedades duradouras, que ocorrem com certa frequência; e as construções com ficar

e virar podem ser episódicas ou estáveis, a depender do contexto.

5.2.1.7 Estrutura sintagmática do predicativo

Esse parâmetro diz respeito à forma do predicativo quanto à estrutura

sintagmática. Averiguou-se que, na construção relacional com os verbos em estudo, o

predicativo pode apresentar-se sob as formas de sintagma adjetival não participial

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80

(exemplo 66), sintagma adjetival participial (exemplo 67), sintagma nominal (exemplo

68), sintagma preposicionado (exemplos 69) e sintagma adverbial (exemplo 70):

(66) Quando soube que o seu querido Luís estava atacado da terrível moléstia,

Anastácio ficou triste, e foi nessa ocasião que se encontrou com o Dr. Lemos e

lhe deu notícia da gravíssima situação do afilhado. [Ernesto de Tal, Machado de

Assis]

(67) E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores.

[Cem anos de perdão, Clarice Lispector]

(68) Eu era uma rainha delicada. [Felicidade Clandestina, Clarice Lispector]

(69) Foi nessa época que apareceu a Filó, uma gata meio doida que acabou

amamentando os cachorrinhos porque a Keite estava com crise e rejeitou

todos. [Que se chama solidão, Lygia Fagundes Telles]

(70) Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo,

nunca está de lado. [Come, meu filho, Clarice Lispector]

Esse parâmetro serviu muito mais a que se pudessem descrever as estruturas que

aparecem no corpus, a que se revela mais produtiva e a sua relação com o tipo de

processo relacional (adiante). Supõe-se que a configuração mais produtiva seja a com

adjetivo. Se isso se confirmar, ver-se-á que não é à toa que, em geral, as descrições

gramaticais chamam a atenção para predicados nominais formados por sintagmas

adjetivos e, muitas vezes, só chamam a atenção para esse tipo de configuração.

5.2.1.8 Tipo de processo relacional

Este parâmetro relaciona-se ao parâmetro anterior, pois o tipo de processo

relacional, muitas vezes, corresponde ao tipo de sintagma do predicativo; e baseia-se na

proposta de Halliday (1994). Segundo o autor, os processos são os elementos

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responsáveis por codificar ações, eventos, estabelecer relações, expressar ideias e

sentimentos, construir o dizer e o sentir. Nesse sentido, os processos relacionais são

aqueles que estabelecem uma relação entre entidades, identificando-as ou atribuindo-

lhes características, na maioria das vezes. De acordo com os dados analisados,

estabeleceu-se a classificação dos processos relacionais em:

(a) atributivos, quando há uma caracterização do argumento sujeito, ou seja, quando se

atribui a ele determinada propriedade, geralmente sob a forma de sintagma adjetival:

(71) Camilo estava ansioso por falar outra vez a Isabel. [A parasita azul,

Machado de Assis]

(b) identificadores, quando há um uso equativo, ou seja, o sujeito é igualado/equivalente

ao predicativo, geralmente sob a forma de sintagma nominal:

(72) Amizade é matéria de salvação. [Uma amizade sincera, Clarice Lispector]

(c) locativos, quando o predicativo, geralmente sob a forma de sintagma adverbial ou

preposicionado, informa a localização espacial do sujeito:

(73) Era a primeira vez que estávamos frente a frente. [Os desastres de Sofia,

Clarice Lispector]

(d) temporais, quando há uma localização no tempo e o predicativo aparece geralmente

sob a forma de sintagma adverbial ou preposicionado:

(74) Mas meu passado era agora tarde demais. [Os desastres de Sofia, Clarice

Lispector]

(e) possessivos, quando indicam uma relação de posse entre o sujeito e seu predicativo,

que aparece geralmente sob a forma de sintagma preposicionado ou sintagma nominal

representado por pronome possessivo:

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(75) Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era

secreta em mim. Carnaval era meu, meu. [Restos do carnaval, Clarice

Lispector]

O objetivo desse parâmetro é relacionar o tipo de processo relacional ao tipo de

sintagma predicativo, para constatar se são correspondentes. A hipótese é a de que os

processos relacionais atributivos apareçam na maioria dos dados e estejam

representados por SAdj., que têm a função de caracterizar uma entidade.

5.2.1.9 Tipologia do estado de coisas representado pela predicação

Na tipologia dos estados de coisas, busca-se identificar se a construção apresenta

um caráter [+ permanente], [+ transitório] ou híbrido (quando não há clareza/precisão

quanto ao seu caráter semântico). O verbo relacional escolhido para integrar a

construção pode influenciar diretamente no caráter semântico e, consequentemente, no

tipo de estado de coisas. O verbo relacional ser, por exemplo, geralmente indica um

estado mais permanente, enquanto estar indica transitoriedade nas construções das quais

faz parte, na maioria dos casos:

(76) Eu sei que o mundo é redondo porque disseram... [Come, meu filho, Clarice

Lispector]

(77) Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. [O

ovo e a galinha, Clarice Lispector]

(78) E agora estou muito ocupado! [O grande passeio, Clarice Lispector]

(79) Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era

muito maior do que quando estávamos sozinhos. [Uma amizade sincera, Clarice

Lispector]

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Em (76) e (77), a construção relacional com ser apresenta um caráter [+

permanente]. Em (76), (o mundo é redondo), o sujeito recebe uma característica estável,

pois é cientificamente comprovado que o mundo em que vivemos é redondo e essa

concepção ainda não mudou; em (77), há uma relação de equivalência, o amor é

comparado a uma grande desilusão, utilizando-se uma metáfora. Em (78), a construção

relacional com estar apresenta um caráter [+ transitório], reforçado pela presença do

sintagma adverbial agora, que remete a um estado temporário; em (79), a conjunção

quando contribui para o aspecto transitório da construção, indicando que a solidão era

maior quando o sujeito estava sozinho, ou seja, não era uma propriedade estável.

Este parâmetro relaciona-se diretamente ao tipo de predicação nominal, pois,

com estados, características ou propriedades [+ permanentes], a predicação nominal é

estável, enquanto, com estados, características ou propriedades [+ transitórias], a

predicação é episódica.

Por outro lado, a depender dos outros elementos presentes na construção, como

os sintagmas adverbiais, a própria semântica do predicativo e a pluralidade ou

genericidade da referência do sujeito, a construção relacional com ser pode apresentar

uma leitura [+ transitória] e a com estar pode apresentar uma leitura [+ permanente]:

(80) Não posso ir, eu estou morta. [Que se chama solidão, Lygia Fagundes

Telles]

(81) De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que

roía casa tão tranquila. [A quinta história, Clarice Lispector]

Em (80), o predicativo morta apresenta, por si só, um significado estável,

conferindo à construção um aspecto [+ permanente]; em (81), o sintagma adverbial de

dia confere à construção um caráter [+ transitório], pois as baratas só eram invisíveis de

dia. Por outro lado, se o exemplo (81) fosse Baratas são bichos invisíveis,

generalizando a referência do sujeito, o aspecto [+ permanente] seria mantido.

Esse parâmetro serve à análise da natureza das predicações nominais com ser e

estar. Além disso, também se analisaram as demais construções nominais quanto a esse

caráter aspectual. Esse parâmetro está intimamente relacionado ao parâmetro 6 (tipo de

predicação nominal), pois a predicação estável está ligada ao aspecto [+ permanente],

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enquanto a predicação episódica está ligada ao aspecto [+ transitório]. A hipótese é a de

que as construções que correspondem a predicações estáveis apresentam estado de

coisas [+ permanente] e as construções que correspondem a predicações episódicas

apresentam estado de coisas [+ transitório].

5.2.1.10 Estado aspectual da predicação

O aspecto da predicação pode ser faseável ou não faseável. É faseável quando a

predicação representa um evento e é não faseável quando representa um estado. Este

parâmetro está ligado ao tipo de construção relacional, pois as construções que indicam

mudança de estado, particularmente a construção resultativa, geralmente são faseáveis,

pois pressupõem um evento causador de um resultado. Já a construção de estado

(habitual ou não) é não faseável, pois há homogeneidade desde o primeiro momento até

os momentos posteriores:

(82) A alma de Ernesto ficou fortemente abalada com esta exposição que a moça lhe

fazia dos acontecimentos. [Ernesto de Tal, Machado de Assis]

(83) Os olhos castanhos eram intraduzíveis, sem correspondência com o conjunto

do rosto. [A criada, Clarice Lispector]

Em (82), o predicativo abalada é resultado de uma ação, pois a alma ficou abalada

devido à exposição que a moça fez dos acontecimentos, portanto, pressupõe-se um

evento causador desse resultado e é faseável; em (83), a construção representa um

estado/característica, logo, é não faseável.

A hipótese é a de que as ocorrências de construção relacional analisadas apresentam

aspecto não faseável, por representarem, em sua maioria, estados.

5.2.1.11 Ordem dos termos da construção

O parâmetro de ordem dos termos da construção busca identificar se a disposição de

tais termos numa determinada construção acarreta alguma alteração de sentido.

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A grande maioria dos dados coletados e analisados apresenta ordem direta, ou seja,

sujeito + verbo relacional + predicativo, como nos exemplos (84) e (85):

(84) E o latido virou um gemido de sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia

Fagundes Telles]

(85) Eu também me rio, o que prova que o meu espírito anda despreocupado e livre,

livre como a pena que me corre agora no papel, produzindo uma letra que não sei se

entenderá. [Ponto de vista, Machado de Assis]

Porém, há dados que apresentam ordem indireta:

(86) De boa família ele era, apesar de não gostar de vinho. E no entanto as melhores

do lugar eram as suas vinhas. [Duas histórias a meu modo, Clarice Lispector]

Em (86), há duas ocorrências com ordem indireta (de boa família ele era e as

melhores do lugar eram as suas vinhas). Ambas apresentam o predicativo, que

representa suas características, antes do verbo relacional e aparecendo o sujeito por

último. Podemos notar que se trata de um recurso linguístico para colocar em evidência,

enfatizar uma característica, que traz como efeito discursivo o realce de uma ideia. Em

relação ao sentido, não se percebe nenhuma mudança, além do efeito gerado em dado

contexto comunicativo.

5.2.1.12 Polaridade positiva ou negativa

Este parâmetro tem por objetivo verificar se ocorre negação precedendo uma

construção relacional e se isso acarreta alguma mudança de significado na construção

como um todo. A polaridade positiva ou negativa também constitui um parâmetro de

transitividade: a polaridade positiva indica alta transitividade, e a negativa indica baixa

transitividade.

(87) Ela não era nada, e afastou-se como se mil olhos a seguissem, esquiva na

sua humildade de ter uma condição. [A mensagem, Clarice Lispector]

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Em (87), ocorrem dois sintagmas adverbiais de negação (não e nada). Nesse

caso, o não utilizado antes da predicação nominal era nada serve para reforçar a ideia

de o argumento reduzir-se a nada no mundo representado no conto.

Já em (88)

(88) Eu não sou louco por solidariedade com os milhares de nós que, para

construir o possível, também sacrificaram a verdade que seria uma loucura.

[Menino a bico de pena, Clarice Lispector]

o sintagma adverbial não tem por objetivo negar a predicação nominal sou louco por

solidariedade. Nesse caso, ocorre negação oracional.

A hipótese é a de que a negação oracional acarreta mudança semântica na

construção como um todo, pois introduz um novo significado, o de negar algo que está

sendo dito ou concebido. Esse significado pode interferir em significados como os de

permanência ou duração e mudança de estado representados por uma construção

relacional. Esperava-se, também, que houvesse mais dados com polaridade positiva no

corpus analisado, uma vez que o conto literário é geralmente caracterizado pela

descrição de propriedades de personagens, cenários etc.

5.2.1.13 Plano discursivo

A definição deste parâmetro baseia-se em propostas funcionalistas a respeito da

organização dos planos discursivos em uma narrativa: figura e fundo. A figura apresenta

os eventos, que são organizados numa sequência temporal e fazem a história avançar; o

fundo corresponde às descrições, que auxiliam na composição da figura. Na figura, há

movimento e mudança, enquanto no fundo há inércia. Nos contos literários em estudo,

foram encontrados diversos trechos que em que se mesclam figura e fundo, embora a

construção relacional, geralmente, faça parte do fundo. Hopper (1979) explicita que os

eventos de fundo concorrem com os de figura, ampliando-os ou comentando-os:

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(89) Mendonça aprovou as calças, e desculpou como pôde a ausência, dizendo

que andava atarefado. [Miss Dollar, Machado de Assis]

(90) A moça desviou subitamente o rosto, tão infeliz que sou, tão infeliz que

sempre fui, as aulas acabaram, tudo acabou! – porque na sua avidez ela era

ingrata com uma infância que fora provavelmente alegre. [A mensagem, Clarice

Lispector]

Em (89), verifica-se que há uma sequência de ações (aprovou e desculpou) e,

em seguida, um estado habitual (andava atarefado). Portanto, podemos dizer que, nesse

trecho, há uma sequência de figura e uma ocorrência de fundo, que, na verdade,

corresponde ao discurso do Mendonça, ao que é dito por este. Em (90), as ações e os

estados são intercalados, de acordo com a fala do narrador e a do

participante/personagem.

Nos dados analisados, percebe-se maior ocorrência de construção relacional no

fundo das narrativas, confirmando a hipótese de que tal construção predominaria nesse

plano discursivo, visto que as descrições se encontram nele.

A análise segundo este parâmetro confirma os estudos realizados a respeito de

figura e fundo em narrativas, pois as cláusulas de fundo apresentam verbos estativos,

que dão suporte à narrativa. Além disso, não seguem uma ordem cronológica, pois

descrevem, geralmente, o evento, o cenário, os personagens etc. A partir dessa

variedade de descrições que as cláusulas de fundo podem apresentar, Silveira (1990)

propõe uma hierarquia de fundidade, visto que tais funções são muito amplas. Então, a

autora cria um continuum, que apresenta cinco níveis de fundo, alguns mais próximos

da figura e outros mais distantes, como foi apresentado no item 4.8 (Figura e fundo).

Nos dados analisados, predomina a ocorrência de Fundo 1, como nos seguintes

trechos:

(91) Um menino louro, decerto aquele que Mocinha deveria vigiar, estava

sentado diante de um prato de tomates e cebolas e comia sonolento, enquanto as

pernas brancas e sardentas balançavam-se sob a mesa. [O grande passeio,

Clarice Lispector]

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FUNDO 1 (apresentação e descrição do personagem)

(92) O dia estava pálido, e o menino mais pálido ainda, involuntariamente

moço, ao vento, obrigado a viver. Estava porém suave e indeciso, como se

qualquer dor só o tornasse ainda mais moço, ao contrário dela, que estava

agressiva. [A mensagem, Clarice Lispector]

FUNDO 1 (apresentação e descrição do personagem e do cenário)

Em (91), há a descrição detalhada de um personagem (menino louro, que deveria

ser vigiado por Mocinha, sonolento, de pernas brancas e sardentas). Em (92), há a

descrição do dia e do menino (palidez, suavidade, indecisão) e de uma personagem

feminina (agressividade).

6. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DE DADOS DO PORTUGUÊS

6.1 Caracterização das predicações nominais encontradas nos contos literários

Analisando-se o conjunto total de dados extraídos dos contos literários

consultados em função do verbo relacional que apresentam, obtém-se a seguinte

distribuição de ocorrências:

Construção com os verbos Quantidade de dados

SER 417/51,7%

ESTAR 233/28,9%

FICAR 104/12,9%

ANDAR 36/4,5%

VIVER 10/1,2%

VIRAR 6/0,7%

Totais: 806/100,0%

Tabela 1 – Distribuição dos 806 dados de predicações nominais do corpus por verbo relacional.

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Na tabela 1, encontra-se a distribuição dos dados coletados, de acordo com o

verbo em jogo na construção relacional. Observa-se, por essa distribuição, que a

construção relacional é a formada, tipicamente, com o verbo ser (51,7% do corpus), ou

ainda, embora com menor frequência, com os verbos estar (28,9% do corpus) e ficar

(12,9% do corpus). O corpus revela que, embora para tal construção possam colaborar

outros verbos (por exemplo, andar, viver, virar), um grande número de instâncias de

uso se baseia na compatibilização da construção relacional principalmente com o verbo

ser. Além de apresentar o maior número de ocorrências, a construção relacional com ser

reúne uma série de propriedades definidoras da categoria: construção de estado, sujeito

com papel de tema e humano ou concreto, predicativo restritivo, predicação estável,

predicativo sob a forma de SAdj., processo atributivo, aspecto não faseável, ordem

direta, polaridade positiva e plano discursivo fundo. A macroconstrução relacional

apresenta um pareamento forma-significado próprio, entretanto, mais generalizante de

estado, que – (i) em razão da integração, no slot destinado a uma forma gramatical

relacional, de verbos (mais ou menos propensos a tal preenchimento) e, no slot

destinado ao predicador não-verbal, de uma diversidade de expressões caracterizadoras

desse estado e (ii) em consequência da compatibilização entre essas formas e a

macroconstrução – se sujeita a reconfiguração semântica a qual confere sentidos mais

específicos às microconstruções, e estas, por sua vez, às instâncias de uso em si

(tokens): sentidos como os de permanência, transitoriedade ou mudança de um estado.

Dessa maneira, os dados revelam que a construção relacional com ser ocorre quase toda

vez que se precisam expressar situações permanentes ou duradouras; a construção com

estar ocorre tipicamente em situações transitórias; e a construção com ficar ocorre,

geralmente, nas que envolvem mudança. Em Pavão & Vieira (2013), já se definiam as

construções com ser e estar como as mais produtivas no que diz respeito à função

relacional. Além disso, seu papel atributivo também sobressaiu nesse estudo. E ficar

(com mais ocorrências/tokens) e virar (com menos) são, por sua vez, formas acionadas

normalmente para o preenchimento do slot de verbo relacional quando o objetivo é pôr

em evidência o processo de mudança ou o resultado de uma ação ou movimento de

mudança.

Analisando a distribuição dos dados pelos tipos de construção relacional,

observa-se o seguinte:

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90

Construção

com os verbos

Construção de

estado

Construção de

estado

habitual

Construção de

mudança de

estado

Construção

resultativa

SER 417/417 0/417 0/417 0/417

ESTAR 200/233 0/233 0/233 33/233

FICAR 6/104 0/104 89/104 9/104

ANDAR 0/36 36/36 0/36 0/36

VIVER 0/10 10/10 0/10 0/10

VIRAR 0/6 0/6 6/6 0/6

Totais: 623 46 95 42

Tabela 2 – Distribuição dos 806 dados por verbo relacional e tipo de construção relacional.

Na tabela 2, verifica-se o tipo de construção relacional predominantemente

associado a cada verbo. Para as construções com ser e estar predominou a construção

de estado (exemplos 93a e 93b), que não pressupõe processo anterior e não envolve

dinamicidade:

(93) a) A sala da casinha era simples e pequena, mas muito elegante; tudo nela

respirava esse aspecto alegre e faceiro que se ri com a vista. [A viuvinha, José de

Alencar]

b) Uma vez, quando Ofélia estava sentada, tocaram a campainha. [A legião

estrangeira, Clarice Lispector]

Para as construções com ficar e virar sobressaiu a construção de mudança de

estado (exemplos 94a e 94b), que pressupõe processo anterior e dinamismo:

(94) a) No fim de quinze dias tinha Camilo esgotado a novidade das suas

impressões; a fazenda começou a mudar de aspecto; os campos ficaram

monótonos, as árvores monótonas, os rios monótonos, a cidade monótona, ele

próprio monótono. [A parasita azul, Machado de Assis]

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b) Desde a entrada no quarto eu concentrara todos os meus instintos na

existência daquele travesseiro, o travesseiro cresceu como um danado dentro de

mim e virou crime. [Vestida de preto, Mario de Andrade]

Com andar e viver predominou a construção de estado habitual (exemplos 95a e

95b), que indica um estado habitual ao longo de um determinado tempo:

(95) a) O vice-rei, que era então o Conde de Resende, andava preocupado com a

necessidade de construir um cais na Praia de D. Manuel. [Um retrato, Machado

de Assis]

b) Comprou, por algumas centenas de mil-réis, um pequeno sítio com uma

miserável choça, coberta de sapé, paredes a sopapo; e tratou de cultivar-lhe as

terras, vivendo taciturno e sem relações quase. [O Feiticeiro e o Deputado, Lima

Barreto]

Com alguns dados de estar e ficar também ocorreu construção resultativa

(exemplos 96a e 96b), em que há uma mudança de estado que envolve resultado:

(96) a) E no meu rosto estará impressa a doçura da esperança moral.

[Encarnação involuntária, Clarice Lispector]

b) O chapéu, em vez de ir com a corrente por ali abaixo até perder-se de todo,

ficara espetado na ponta de uma rocha, e lá do fundo parecia convidar-me a

descer. [A parasita azul, Machado de Assis]

No caso da construção resultativa, entra em jogo a questão das passivas estativas

e resultativas. Segundo Raposo (2013, p. 440-444), as primeiras descrevem situações de

estado, em que não há evento de mudança de estado, enquanto as resultativas descrevem

a fase posterior da situação que resulta de uma mudança de estado. As construções

passivas estativas relacionam-se ao tipo de predicação nominal (estável ou episódico),

como em Este autor é/*está conhecido e ocorrem com predicativos sob a forma de

adjetivos. Têm natureza não eventiva (atélica) e não permitem o uso de expressões

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temporais, como em *A criança está descalça em três minutos. Já as construções

passivas resultativas ocorrem com predicativos com adjetivos participiais e, segundo o

autor, não admitem a realização lexical do sujeito por meio de um agente da passiva,

como em *A casa ficou revirada pelos ladrões/A casa foi revirada pelos ladrões. Por

meio de uma pesquisa no Google, foram encontradas ocorrências desse tipo de

construção sem agente da passiva, como mostram os exemplos 97-99. Mais adiante (p.

112/113), essa questão será refutada:

(97) Casa sozinha não se destrói ou fica bagunçada.

[http://vidaeestilo.terra.com.br/horoscopo/esoterico/feng-shui-a-casa-e-espelho-

que-reflete-como-esta-nossa-

vida,24fb2c793876f310VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.html]

(98) Irmãos brigam e casa fica toda revirada no bairro Sebastião Amorim.

[http://www.patosagora.net/noticias/?n=m5SrOX1bIt]

(99) A casa ficou completamente revirada e o veículo da idosa, um Renault Logan,

foi encontrado há pouco em Pinhais, na região metropolitana. Idalina era dona de

uma imobiliária no bairro, mas a polícia não sabe se o assassinato tem ligação com

o negócio da família.

[http://www.bandab.com.br/jornalismo/dona-de-imobiliaria-e-encontrada-morta-e-

amordacada-dentro-de-casa-totalmente-revirada/]

As ocorrências de construção resultativa com estar encontradas no corpus

apresentam predicativos sob a forma de sintagmas adjetivais participiais:

(100) A ambição do orador não estava apagada pela satisfação do publicista;

pelo contrário, uma coisa avivava a outra. [Aurora sem dia, Machado de Assis]

(101) Quando soube que o seu querido Luís estava atacado da terrível moléstia,

Anastácio ficou triste, e foi nessa ocasião que se encontrou com o Dr. Lemos e

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lhe deu notícia da gravíssima situação do afilhado. [Aurora sem dia, Machado de

Assis]

(102) O canto já estava ocupado por um monte de sedas, que deixou escapar-se

um ligeiro farfalhar, conchegando-se para dar-me lugar. [Cinco minutos, José de

Alencar]

Nota-se, nos exemplos anteriores, que está explícito o argumento agente da

passiva: em (100), é a satisfação do publicista; em (101), é a terrível moléstia; em

(102), é um monte de sedas. Assim, fica claro que as construções apresentam resultado.

As ocorrências de construção resultativa com ficar encontradas no corpus

também apresentam predicativos sob a forma de sintagmas adjetivais participiais, como

nos exemplos 103-105:

(103) O Antonico ficou envergonhado com a reprimenda e foi para a sala lavado

em lágrimas. [As bodas de Luís Duarte, Machado de Assis]

(104) Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que

nem pai nem mãe compreenderiam. [Tentação, Clarice Lispector]

(105) Os convidados, que cuidavam ter chegado tarde para a cerimônia, ficaram

desagradavelmente surpreendidos com a demora, e Justiniano Vilela confessou

ao ouvido da mulher que estava arrependido de não ter comido alguma coisa

antes. [As bodas de Luís Duarte, Machado de Assis]

Já as ocorrências de construção de estado com ficar encontradas no corpus são

aquelas em que há o sentido de permanecer, como nos exemplos 106-107:

(106) A página em que eu devia ter escrito as circunstâncias desse fato ficou em

branco, minha prima; agora, porém, podemos lê-la claramente no espírito de

Jorge, que, sentado à sua carteira, triste e pensativo, repassa na memória esses

anos de sua vida, desde a noite do seu casamento. [A viuvinha, José de Alencar]

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(107) Quando deu fé, o vulto estava defronte dela, parado na sombra. Vendo-se,

ambos fizeram o mesmo movimento para retirar-se e ambos ficaram imóveis,

olhando-se nas trevas. [A viuvinha, José de Alencar]

Construção

com os verbos

[+anim/hum] [+anim/não

hum]

[-anim/+concr] [-anim/+abstr]

SER 164/417 20/417 188/417 45/417

ESTAR 146/233 6/233 68/233 13/233

FICAR 87/104 2/104 14/104 1/104

ANDAR 28/36 0/36 7/36 1/36

VIVER 8/10 0/10 2/10 0/10

VIRAR 2/6 0/6 3/6 1/6

Totais: 435 28 282 61

Tabela 3 – Distribuição dos 806 dados por grau de animacidade do sujeito e verbo relacional.

Na tabela 3, analisa-se o grau de animacidade do argumento sujeito, ou seja, se o

sujeito representa uma entidade humana, animada não humana, concreta ou abstrata.

Nas construções com estar, ficar, andar e viver predomina sujeito humano; nas

construções com ser há pouca diferença entre o número de dados com sujeito humano e

com sujeito concreto (diferença de 24 dados apenas); nas construções com virar

predomina sujeito concreto com apenas 1 dado de diferença entre os dados com sujeito

humano. Podemos notar também que, nas construções com ser, estar e ficar há dados de

todos os tipos.

Com base nesse parâmetro, postula-se que uma construção relacional pode

conter sujeitos humanos, animados não humanos, concretos e abstratos.

É interessante notar que as ocorrências de construção relacional com viver e

andar aparecem mais com sujeito humano, levando à hipótese de que ainda mantêm

resquícios de seu valor de base. Desenvolvendo uma análise qualitativa dos dados,

observou-se que só houve duas ocorrências de construção com viver com sujeito não

humano:

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(108) O Jardineiro criou-nos para amar e servir as Rosas; façamos festas e

danças para que as Rosas vivam alegres. [Metafísica das rosas, Machado de

Assis]

(109) O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época.

[O ovo e a galinha, Clarice Lispector]

Em (108) e (109), notamos que há o uso de linguagem figurada, pois os núcleos

dos sujeitos são personificados (rosas e ovo). Dessa forma, esses elementos “ganham

vida”.

Construção com os

verbos

Predicativo restritivo Predicativo não restritivo

SER 282/417 135/417

ESTAR 73/233 160/233

FICAR 63/104 41/104

ANDAR 25/36 11/36

VIVER 4/10 6/10

VIRAR 3/6 3/6

Totais: 450 356

Tabela 4 – Distribuição dos 806 dados por restrição semântica (ou não) do predicativo e verbo

relacional.

A tabela 4 diz respeito à distribuição dos dados em função da propriedade de o

predicativo impor ou não restrição semântica ao argumento sujeito. Assim, o

predicativo pode ser restritivo ou não restritivo, levando-se em consideração a

construção como um todo. É importante destacar que as construções com ser

apresentam predicativos restritivos em sua maioria, devido à própria semântica do verbo

que influencia a construção relacional como um todo, pois se trata de um verbo de

existência, que relaciona entidades e suas características particulares, portanto restritas

(exemplo 110), ou sinaliza uma relação de igualdade entre as entidades (exemplo 111):

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(110) Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável

como só em criança fui decepcionada. [Perdoando Deus, Clarice Lispector]

(111) Mas pitangas são frutas que se escondem: eu não via nenhuma. [Cem anos

de perdão, Clarice Lispector]

Em (110), o predicativo restringe por se tratar de um estado humano (decepção),

portanto, só pode ocorrer com sujeito humano; em (111), o predicativo frutas que se

escondem também restringe, pois é uma característica particular de determinada fruta.

As construções com estar, por sua vez, apresentam, em sua maioria,

predicativos não restritivos, pois podem indicar diversas características de diferentes

entidades, sujeitos humanos ou não. Por outro lado, a diferença de quantidade das

ocorrências não é tão grande em relação ao predicativo restritivo:

(112) Uma vez, quando Ofélia estava sentada, tocaram a campainha. [A legião

estrangeira, Clarice Lispector]

(113) O dia estava pálido, e o menino mais pálido ainda, involuntariamente

moço, ao vento, obrigado a viver. Estava porém suave e indeciso, como se

qualquer dor só o tornasse ainda mais moço, ao contrário dela, que estava

agressiva. [A mensagem, Clarice Lispector]

(114) Camilo estava ansioso por falar outra vez a Isabel. [A parasita azul,

Machado de Assis]

Em (112) e (113), há duas características que não impõem restrição ao sujeito,

pois se trata de sentada e pálido. O predicativo sentada pode se referir a um sujeito

humano (como em 112), a um sujeito animado não humano (A cadela está sentada) ou

até mesmo a um sujeito inanimado (A boneca está sentada); o predicativo pálido pode

se referir a um sujeito concreto (como o dia, em 113) ou a um sujeito humano (como o

menino, em 113). Em (114), o predicativo é restritivo, pois exige a realização de um

sujeito humano, que experiencie o estado psicológico de ansiedade.

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As construções com ficar e andar apresentam restrição do predicativo, enquanto

as com o verbo viver não mostram restrições. Por fim, as construções com virar

apresentaram a mesma quantidade de dados com predicativo restritivo e não restritivo.

(115) Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso.

[O primeiro beijo, Clarice Lispector]

(116) Não, senhor; Ernesto de Tal, não estou autorizado para dizer o nome todo,

anda simplesmente apaixonado por uma moça que mora naquela rua; está

colérico porque ainda não conseguiu receber resposta da carta que lhe mandou

nessa manhã. [Ernesto de Tal, Machado de Assis]

(117) O Jardineiro criou-nos para amar e servir as Rosas; façamos festas e

danças para que as Rosas vivam alegres. [Metafísica das rosas, Machado de

Assis]

(118) Houvera um rompimento de amizade, mal-estar na parentagem toda, o

caso virara escândalo mastigado e remastigado nos comentários de hora de

jantar. Tudo por causa do dinheiro. [Vestida de preto, Mario de Andrade]

(119) E de repente riu sacudindo o avental: Depressa, até a casa da Juana Louca,

quem chegar por último vira um sapo! [Que se chama solidão, Lygia Fagundes

Telles]

Em (115) e (116), os predicativos feliz e apaixonado selecionam sujeitos

humanos; em (117), há uma personificação (rosas vivendo alegres), portanto, o

predicativo alegres não impôs restrição ao sujeito nesse caso. Por se constituir de contos

literários, o corpus apresenta diversas ocorrências desse tipo. Em (118), o predicativo é

não restritivo, pois pode ocorrer com sujeito humano (O ex-BBB virou um escândalo),

sujeito concreto (A roupa daquela atriz virou um escândalo). Por fim, em (119), o

predicativo restringe o sujeito, exigindo que seja humano. Com base no conhecimento

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de mundo, sabemos que, nos contos de fadas, o sapo vira príncipe e o príncipe pode

virar um sapo.

O fato de o termo predicativo impor restrição ao argumento sujeito está

relacionado ao grau de animacidade do sujeito, pois, com sujeitos humanos, a tendência

é a de que o predicativo seja restritivo, como confirmaram os dados com ser, andar e

ficar. Além disso, por se tratar de contos literários, houve uma ocorrência significativa

de dados com sentido figurado, em que a construção relacional com os verbos em

estudo foi utilizada com sujeitos personificados, os quais apresentam predicativos que

seriam restritivos em seu uso comum, como nos exemplos:

(120) Então as Rosas murmuraram que estavam tristes porque a contemplação

das coisas era muda, e elas queriam quem cantasse os seus grandes méritos e as

servisse. [Metafísica das rosas, Machado de Assis]

(121) Reviveu-me uma esperança há dias, continuou Camilo, esperança que já

estava morta. [A parasita azul, Machado de Assis]

Em (120), ocorre personificação (as rosas murmuram que estão tristes); em

(121), o predicativo morta é metaforicamente entendido como fim de uma trajetória.

Nos casos de ocorrências de dados em sentido figurado, consideramos, como

decisão metodológica, que os predicativos são não restritivos, por possibilitarem esse

tipo de leitura, muito comum no gênero em estudo.

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Construção com os

verbos

Sujeito tema Sujeito experienciador

SER 387/417 30/417

ESTAR 188/233 45/233

FICAR 70/104 34/104

ANDAR 14/36 22/36

VIVER 3/10 7/10

VIRAR 6/6 0/6

Totais: 668 138

Tabela 5 – Distribuição dos 806 dados por papel semântico do argumento/participante sujeito e

verbo relacional.

A tabela 5 mostra a distribuição das construções com os verbos relacionais em

estudo de acordo com o papel semântico do sujeito. Nas construções com ser, estar,

ficar e virar predomina sujeito com papel de tema; enquanto, nas com andar e viver,

predomina sujeito experienciador. Esse parâmetro está relacionado ao grau de

animacidade do sujeito, visto que apenas sujeitos humanos (ou personificados) podem

ser experienciadores:

(122) Bem sei que a idade explica muita coisa, mas há um limite, Raquel; não

confunda o romance com a vida, ou viverá desgraçada... [Ponto de vista,

Machado de Assis]

(123) Se eu não era feliz, vivia alegre. [Confissões de uma viúva moça, Machado

de Assis]

(124) Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o

namoro e ambos andavam tontos, era o amor. [O primeiro beijo, Clarice

Lispector]

Em (122), o sujeito é humano e experienciador de um estado; em (123), o sujeito

é humano e experienciador também de um estado, mas, como vimos no exemplo (117),

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pode ocorrer em sentido figurado com sujeitos não humanos; em (124), o sujeito

também é humano e experienciador, confirmando a relação existente entre os dois

parâmetros.

Construção com os

verbos

Predicação estável Predicação episódica

SER 408/417 9/417

ESTAR 62/233 171/233

FICAR 39/104 65/104

ANDAR 27/36 9/36

VIVER 10/10 0/10

VIRAR 6/6 0/6

Totais: 552 254

Tabela 6 – Distribuição dos 806 dados por tipo de predicação nominal e verbo relacional.

Na tabela 6, apresentam-se os resultados no que diz respeito ao tipo de

predicação nominal das construções com os verbos relacionais em jogo. Esse parâmetro

relaciona-se a um parâmetro posterior, que trata da tipologia do estado de coisas, ou

seja, em que se observa o caráter semântico de permanência ou transitoriedade das

construções. As predicações estáveis constituem as propriedades ou qualidades estáveis

nos indivíduos, que duram grande parte de sua vida ou durante toda a sua existência.

Assim, costumam apresentar um aspecto [+ permanente]. Geralmente, as predicações

estáveis são construídas com o verbo relacional ser, mas, como podemos observar na

tabela 6, houve a ocorrência de 9 dados de construção relacional com ser com uma

leitura episódica:

(125) Na hora do almoço, a comida foi puro amor errado e estável. [Miopia

progressiva, Clarice Lispector]

(126) De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que

roía casa tão tranquila. [A quinta história, Clarice Lispector]

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Podemos observar, em (125) e (126), que há adjuntos adverbiais de tempo

antecedendo as construções com ser. Por se tratar de adjuntos que indicam um

determinado espaço de tempo (na hora do almoço e de dia), a leitura que se faz dessas

construções é de algo transitório. Portanto, é interessante notar que outros elementos da

predicação podem influenciar a construção como um todo. Daí a importância de se

pensar na língua como uma rede de construções.

As predicações episódicas, ao contrário, descrevem propriedades transitórias

dos indivíduos e geralmente ocorrem em construções com o verbo relacional estar, o

que foi confirmado pela análise dos dados: a grande maioria dos dados com ser

apresentou predicação estável enquanto na grande maioria com estar identificou-se a

predicação episódica. Por outro lado, houve a ocorrência de 62 dados de construção

relacional com estar com leitura estável:

(127) O céu estava altíssimo, sem nenhuma nuvem. [O grande passeio, Clarice

Lispector]

(128) Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo,

nunca está de lado. [Come, meu filho, Clarice Lispector]

(129) Talvez tudo tivesse vindo de eles estarem com a procura no rosto. Ou

talvez do fato da casa estar diretamente encostada à calçada e ficar tão perto. [A

mensagem, Clarice Lispector]

(130) Com metade dos seus trabalhos já eu estava defunto. [A parasita azul,

Machado de Assis]

Em (127), vemos uma propriedade permanente, estável do núcleo do sujeito

(céu), que é estar alto; em (128), também há mais propriedades imutáveis do céu, como

estar em cima, nunca estar embaixo ou de lado; em (129), também há uma propriedade

estável, pois a casa está encostada à calçada e só deixaria de estar caso fosse demolida;

em (130), o predicativo defunto mantém em si um valor semântico de permanência,

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visto que é um estado estável. Assim, reafirmamos que outros elementos da predicação

podem influenciar, semanticamente, a construção como um todo.

Os dados com ficar no sentido de permanecer (menor quantidade de dados)

apresentaram predicação estável, enquanto, nos com sentido de tornar-se (a maioria dos

dados), identificou-se predicação episódica. Os dados com andar e viver, por denotarem

uma leitura habitual, indicaram, em sua maioria, predicação estável.

Nos dados com virar, sobressaiu predicação estável, embora houvesse o sentido

de tornar-se, o que foi bastante interessante e diferente do que ocorreu com os dados de

ficar com esse mesmo sentido: observamos que os dados com ficar denotavam estados

(sintagmas adjetivais) que eram transformados, enquanto os dados com virar

mostravam entidades que se tornavam outras entidades (sintagmas nominais). Dessa

forma, percebemos que há uma forte relação entre o verbo e o tipo de sintagma do

predicativo:

(131) E o latido virou um gemido de sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia

Fagundes Telles]

(132) Tirou tragadas, soltou muitas fumaças, e sentiu o corpo se desmanchar,

dando na fraqueza, mas com uma tremura gostosa, que vinha até ao mais dentro,

parecendo que a gente ia virar uma chuvinha fina. [A hora e vez de Augusto

Matraga, Guimarães Rosa]

(133) Eu, um pouco ousada, fiquei feliz. [A legião estrangeira, Clarice

Lispector]

(134) Ele nem ao menos sabia que ficava feio quando sorria. [Os desastres de

Sofia, Clarice Lispector]

Em (131) e (132), os predicativos são representados por SNs; em (133) e (134),

aparecem sob a forma de SAdj. Notamos que, embora o sentido seja semelhante entre as

construções, a representação do predicativo é feita de forma diferente.

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Construção

com os

verbos

SN SAdj.

Participial

SAdj. não

participial

SPrep. SAdv.

SER 193/417 6/417 204/417 12/417 2/417

ESTAR 2/233 86/233 114/233 23/233 8/233

FICAR 4/104 25/104 70/104 2/104 3/104

ANDAR 0/36 18/36 14/36 1/36 3/36

VIVER 0/10 6/10 4/10 0/10 0/10

VIRAR 6/6 0/6 0/6 0/6 0/6

Totais: 205 141 406 38 16

Tabela 7 – Distribuição dos 806 dados por estrutura sintagmática do predicativo e verbo relacional.

A tabela 7 revela as formas sintagmáticas sob as quais os predicativos podem

aparecer. Um resultado que essa tabela revela é que qualquer um desses sintagmas pode,

de fato, ocorrer nessa construção relacional. No entanto, é bem pouco frequente a

ocorrência de SAdv., que apareceu, na maioria dos casos, em construções que indicam

localização espacial:

(135) Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo,

nunca está de lado. [Come, meu filho, Clarice Lispector]

Esse parâmetro está relacionado ao próximo, que é o tipo de processo relacional,

pois o processo relacional exige determinado tipo de sintagma de acordo com o sentido,

como veremos abaixo. Na construção relacional em estudo, predominou a ocorrência de

predicativo sob a forma de SAdj. não participial, já que o principal sentido dessa

construção é o de atribuir características ou propriedades a uma entidade ou o de

identificar elementos, exceto no caso de construção relacional com virar, em que

predominou a ocorrência de SN.

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Construção

com os

verbos

Atributivo Identificador Locativo Temporal Possessivo

SER 216/417 194/417 1/417 1/417 5/417

ESTAR 220/233 0/233 12/233 0/233 1/233

FICAR 101/104 1/104 2/104 0/104 0/104

ANDAR 36/36 0/36 0/36 0/36 0/36

VIVER 10/10 0/10 0/10 0/10 0/10

VIRAR 0/6 6/6 0/6 0/6 0/6

Totais: 583 201 15 1 6

Tabela 8 – Distribuição dos 806 dados por tipo de processo relacional e verbo relacional.

Como podemos observar na tabela 8 em relação à tabela 7, processos atributivos

são representados por sintagmas adjetivais (participiais ou não), em sua maioria;

processos identificadores aparecem sob a forma de sintagmas nominais, geralmente;

processos locativos aparecem sob as formas de sintagmas preposicionados ou sintagmas

adverbiais, em geral; processos possessivos aparecem sob a forma de sintagmas

nominais (representados por pronomes possessivos) ou sintagmas preposicionados; o

processo temporal só apareceu em um dado, com o verbo ser, e foi representado sob a

forma de sintagma adverbial.

A hipótese inicial de que o processo relacional atributivo sobressairia nos dados

foi confirmada e está intimamente relacionada à alta produtividade de predicativos sob a

forma de SAdj.:

(136) Mas não era possível que esse silêncio e essa imobilidade continuassem; o

desconhecido tomou as mãos de Carolina e apertou-as; as suas estavam tão frias

que a moça sentiu gelar-se-lhe o sangue ao seu contato. [A viuvinha, José de

Alencar]

Em (136), ilustra-se que o processo relacional atributivo é representado em uma

construção relacional, estruturalmente, sob a forma de sintagma adjetival.

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Construção com

os verbos

[+transitório/-permanente] [-transitório/+permanente] Híbrido

SER 8/417 409/417 0/417

ESTAR 172/233 51/233 10/233

FICAR 63/104 29/104 12/104

ANDAR 25/36 9/36 2/36

VIVER 0/10 10/10 0/10

VIRAR 0/6 6/6 0/6

Totais: 268 514 24

Tabela 9 – Distribuição dos 806 dados por tipologia do estado de coisas representado pela

predicação e verbo relacional.

A tabela 9 apresenta os resultados da tipologia do estado de coisas conforme a

construção com os verbos relacionais em estudo. Os resultados foram os esperados, pois

na construção com ser predominou aspecto [-transitório/+permanente] (exemplo 137),

confirmando sua predicação estável; na construção com estar predominou aspecto

[+transitório/-permanente] (exemplo 138), ratificando sua predicação episódica:

(137) Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso.

[O primeiro beijo, Clarice Lispector]

(138) Mas, Nhô Augusto, não: estava deitado na cama, o pior lugar que há para

se receber uma surpresa má. [A hora e vez de Augusto Matraga, Guimarães

Rosa]

Com ficar no sentido de tornar-se (exemplo 139) e andar acompanhado de

sintagmas adverbiais como agora (exemplo 140) predominou aspecto [+transitório/-

permanente], e com viver e virar (exemplos 141 e 142) predominou aspecto [-

transitório/+permanente]. Já com ficar no sentido de permanecer (exemplo 143)

predominou aspecto [-transitório/+permanente]:

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(139) A primeira vez que fui a um baile, fiquei deslumbrada no meio daquele

turbilhão de cavalheiros e damas, que girava em torno de mim sob uma

atmosfera de luz, de música, de perfumes. [Cinco minutos, José de Alencar]

(140) É com curiosidade, algum deslumbrante e cansaço prévio que sucumbo à

vida que vou experimentar por uns dias viver. E com alguma apreensão, do

ponto-de-vista prático: ando agora muito ocupada demais com os meus deveres

e prazeres para poder arcar com o peso dessa vida que não conheço, mas cuja

tensão evangelical já começo a sentir. [Encarnação involuntária, Clarice

Lispector]

(141) Bem sei que a idade explica muita coisa, mas há um limite, Raquel; não

confunda o romance com a vida, ou viverá desgraçada... [Ponto de vista,

Machado de Assis]

(142) E o latido virou um gemido de sofrimento. [Que se chama solidão, Lygia

Fagundes Telles]

(143) Mocinha ficou parada, espreitando. [O grande passeio, Clarice Lispector]

Construção com os

verbos

Estado faseável Estado não faseável

SER 0/417 417/417

ESTAR 31/233 202/233

FICAR 9/104 95/104

ANDAR 0/36 36/36

VIVER 0/10 10/10

VIRAR 0/6 6/6

Totais: 40 766

Tabela 10 – Distribuição dos 806 dados por estado aspectual da predicação e verbo relacional.

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107

A tabela 10 relaciona-se ao aspecto da construção, se pode passar por fases, ou

seja, representando um evento; ou se não passa por fases, representando um estado.

Assim, a construção que indica mudança de estado, particularmente a resultativa, é

faseável, por constituir resultados de ações; enquanto a construção que indica estado

(habitual ou não) não é faseável. Verifica-se, nos resultados apresentados, que apenas

dados com estar e com ficar apresentaram dados faseáveis quando representam

mudança de estado com resultado:

(144) Em alguns minutos chegamos em face de um pequeno edifício construído

a alguns passos do alinhamento, e cujas janelas estavam esclarecidas por uma

luz interior. [Cinco minutos, José de Alencar]

(145) O tesouro que está escondido onde menos se espera. [Os desastres de

Sofia, Clarice Lispector]

(146) Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais

com os dedos que ficavam como ensanguentados. [Cem anos de perdão, Clarice

Lispector]

(147) Anda agora aqui em casa um sujeito que nos foi apresentado há pouco

tempo; qualquer outra moça ficava presa pelas maneiras dele; a mim não me faz

a menor impressão. [Ponto de vista, Machado de Assis]

Notamos que, nos exemplos 144-147, há a ocorrência de mudanças de estado

que gera algum resultado.

Por outro lado, também nas construções com esses verbos, predomina a

construção de estado (exemplos 148 e 149), portanto, com aspecto não faseável:

(148) A noiva estava radiante de ventura; o noivo parecia respirar os ares do

paraíso celeste. [Ernesto de Tal, Machado de Assis]

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108

(149) O major ficou satisfeito com o arranjo e consolou a sobrinha com a

promessa de que podia casar-se um dia com o primo. [Luís Soares, Machado de

Assis]

Construção

com os

verbos

SUJ V

PRED

V SUJ

PRED

PRED

V SUJ

V

PRED

SUJ

V SUJ V

PRED

SUJ

PRED

V

PRED

SUJ V

SER 336/417 0/417 14/417 14/417 0/417 49/417 1/417 3/417

ESTAR 151/233 8/233 3/233 7/233 0/233 64/233 0/233 0/233

FICAR 49/104 0/104 0/104 1/104 0/104 53/104 1/104 0/104

ANDAR 22/36 1/36 0/36 0/36 0/36 13/36 0/36 0/36

VIVER 4/10 0/10 0/10 0/10 0/10 6/10 0/10 0/10

VIRAR 5/6 0/6 0/6 0/6 0/6 1/6 0/6 0/6

Totais: 567 9 17 22 0 186 2 3

Tabela 11 – Distribuição dos 806 dados por ordem dos termos da construção e verbo relacional.

Na tabela 11, verifica-se que a ordem canônica (sujeito/verbo/predicativo – SUJ

V PRED) é a que predomina (exemplo 150) na maioria dos dados (567/806), seguida

pela ordem verbo/predicativo (V PRED) (186/806), quando o sujeito está oculto ou

indeterminado (exemplo 151):

(150) Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio

arruivados. [Felicidade Clandestina, Clarice Lispector]

(151) Assim ficamos muito tempo imóveis, ela, com a fronte apoiada sobre o

meu peito, eu, sob a impressão triste de suas palavras. [Cinco minutos, José de

Alencar]

As outras opções de ordem dos termos da construção ocorreram quando houve a

intenção de dar ênfase a alguma informação, como em:

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109

(152) Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho

verde... [Uma esperança, Clarice Lispector]

(153) Nem a minha falta de tempo me deixara perceber até então como eram

austeras e altas as paredes... [Os desastres de Sofia, Clarice Lispector]

Em (152) e (153), destacam-se as características (bonito e austeras e altas) do

termo sujeito.

Também se observou, nos dados, se havia ambiguidade decorrente da ordem,

como em:

(154) Mas nervoso era o nome que a família estava dando à instabilidade de

julgamento da própria família. [Miopia progressiva, Clarice Lispector]

(155) Amizade é matéria de salvação. [Uma amizade sincera, Clarice Lispector]

Em (154) e (155), por se tratar de processos relacionais identificadores, em que

os termos estão em relação de igualdade, pode-se inverter a ordem sem prejuízo de

sentido, como em (154a) e (155a):

(154a) Mas o nome que a família estava dando à instabilidade de julgamento da

própria família era nervoso.

(155a) Matéria de salvação é amizade.

Por outro lado, quando se trata de processo relacional atributivo, essa inversão

da ordem (de SUJ V PRED para PRED V SUJ) acarreta mudança de sentido:

(156) Essa prima era casada, não tinha filhos e adorava crianças. [Miopia

progressiva, Clarice Lispector]

(157) Eles eram muito infelizes. [A mensagem, Clarice Lispector]

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110

Alterando-se a ordem dos termos das construções (156) e (157), podemos dizer,

intuitivamente, que temos estruturas forçadas, que fogem ao uso mais natural da língua.

Pode haver essa inversão, embora não pareça tão natural. Talvez seja mais uma questão

de estilo (?Casada era essa prima/?Muito infelizes eram eles).

Construção com os

verbos

Polaridade positiva Polaridade negativa

SER 387/417 30/417

ESTAR 228/233 5/233

FICAR 103/104 1/104

ANDAR 34/36 2/36

VIVER 10/10 0/10

VIRAR 6/6 0/6

Totais: 768 38

Tabela 12 – Distribuição dos 806 dados por polaridade positiva ou negativa da predicação e verbo

relacional.

A tabela 12 apresenta os resultados referentes à negação oracional, que constitui

um dos parâmetros de transitividade propostos por Hopper & Thompson (1980). Na

grande maioria dos dados (768/806), a polaridade foi positiva, ou seja, não houve

negação oracional. Nas construções com ser, a polaridade negativa ocorreu, em sua

maioria, com predicativos sob a forma de SN, ou seja, havendo uma negação de

entidades (exemplo 158). Com estar, predominou a negação com predicativos sob a

forma de SAdj., isto é, negando algum estado, característica ou propriedade (exemplo

159). Com ficar só houve um dado com negação, com predicativo SAdj. também

(exemplo 160). Com andar ocorreu um dado com SAdj. e um com SN (exemplos 161 e

162):

(158) Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo

de lábios encarnados. [Restos do carnaval, Clarice Lispector]

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111

(159) O portador da minha carta anterior mandou-me dizer que lhe havia

entregue em mão própria; não estava doente; por que razão este esquecimento?

[Ponto de vista, Machado de Assis]

(160) Não sei como não fiquei louco, lembrando-me de que estávamos a 18, e

que o paquete devia partir no dia seguinte. [Cinco minutos, José de Alencar]

(161) E, enterrando a cara no livro, prosseguiu na leitura. Caetaninha referiu o

caso às mucamas, que lhe declararam desconfiar desde algum tempo, que ele

não andava bom. [Ex Cathedra, Machado de Assis]

(162) Beirávamos o abismo, ambos teimando que era um reflexo da cúpula

celeste, incongruência para os que não andam namorados. [Eterno!, Machado

de Assis]

O caráter permanente ou duradouro de ser e o caráter resultativo são

influenciados, ao passo que a negação em relação aos demais (andar e estar) não tem

nítida influência. No primeiro caso (ser), nem sempre se percebe o traço permanente

(como em 158). No segundo caso (ficar), não se tem um resultado, mas a permanência

no estado em que estava o argumento sujeito, já que resultado implica mudança, como

no exemplo (160). No terceiro caso (estar e andar), o valor de transitoriedade continua

a prevalecer, como em (159) e (161).

Construção com os

verbos

Fundo Figura

SER 401/417 16/417

ESTAR 191/233 42/233

FICAR 88/104 16/104

ANDAR 34/36 2/36

VIVER 9/10 1/10

VIRAR 5/6 1/6

Totais: 728 78

Tabela 13 – Distribuição dos 806 dados por plano discursivo e verbo relacional.

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112

Na tabela 13, analisa-se o plano discursivo de que cada dado faz parte. Segundo

Hopper (1979), a narrativa é organizada em dois planos discursivos diferentes: figura e

fundo. A figura corresponde aos eventos, às ações que se desencadeiam e o fundo

apresenta as descrições. Dessa forma, na figura, ocorrem eventos dinâmicos enquanto

no fundo há o predomínio de situações estáticas e descritivas. Logo, o uso da

construção relacional apresenta maior destaque no fundo das narrativas, confirmando a

motivação para a escolha de um corpus composto de textos narrativos (contos

literários), em que há grande variedade de descrições (de personagens, cenários etc.).

Nos trechos em que houve a ocorrência de figura, notamos que a figura fazia

parte da narração e da sequência cronológica dos fatos, às quais o fundo dá suporte.

Além disso, adotando a proposta de Silveira (1990), foi possível estabelecer os níveis de

fundo encontrados nos dados analisados. O nível que se destacou foi o Fundo 1, que

trata da apresentação e descrição dos personagens e cenário, e esse nível é o que está

mais próximo da figura. Talvez isso explique a ocorrência de trechos com figura nos

dados do corpus.

6.1.1 Co-atuação de parâmetros: análise multidimensional das construções

Procuramos atentar, ainda, à co-atuação dos parâmetros verificados na

caracterização dos dados, a fim de se realizar uma análise multidimensional da

construção. Para tanto, buscamos verificar cruzamentos dos dados relacionados a alguns

dos parâmetros estabelecidos para a caracterização do corpus de predicações nominais,

entre os quais estes: (i) propriedade de impor restrição do predicativo e animacidade do

sujeito; (ii) configuração sintagmática do predicativo e tipo de processo relacional; (iii)

tipo de predicação nominal e tipologia do estado de coisas; (iv) tipo de construção

relacional e estado aspectual da predicação; (v) plano discursivo e tipo de processo

relacional.

As hipóteses que motivaram tal observação foram as seguintes: (i) acredita-se

que o predicativo terá maior caráter restritivo quando corresponder a atributos ou

propriedades típicas de certos seres (de seres humanos, por exemplo), requerendo, nos

predicados nominais em que ocorrer, a existência de argumento com caráter de

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113

animacidade específico (sujeito humano ou personificado como tal); (ii) acredita-se que

os processos atributivos sejam representados preferencialmente por sintagmas

adjetivais, os identificadores por sintagmas nominais, os locativos por sintagmas

adverbiais ou preposicionados, os possessivos por sintagmas nominais e os temporais

por sintagmas adverbiais; (iii) acredita-se que a predicação estável apresente um caráter

mais permanente enquanto a episódica apresente maior transitoriedade; (iv) acredita-se

que somente a construção resultativa seja faseável, uma vez que decorre de uma ação;

(v) acredita-se que, no fundo das narrativas, predominem processos relacionais

atributivos, identificadores e possessivos, enquanto na figura sobressaiam processos

locativos e temporais.

A análise multidimensional permitiu alguns resultados já esperados. Em relação

à restrição do predicativo, a hipótese foi confirmada, pois, nos dados em que não

predominou predicativo restritivo, o sujeito foi utilizado no sentido figurado, como em:

(163) Entretanto, as Rosas estavam tristes, porque a contemplação das coisas era

muda e os olhos dos pássaros e das borboletas não se ocupavam bastantemente

das Rosas. [Metafísica das rosas, Machado de Assis]

Quanto à tipologia de processos relacionais, a hipótese também foi confirmada

na maioria dos casos, pois os processos atributivos (exemplo 164) são representados sob

a forma de sintagmas adjetivais (537 dados); os identificadores (exemplo 165) por

sintagmas nominais (197 dados); os locativos (exemplos 166 e 167) por sintagmas

adverbiais (7 dados) ou preposicionados (3 dados); os possessivos (exemplo 168), no

entanto, não apareceram sob a forma de sintagmas nominais (1 dado) na maioria dos

dados, mas como sintagmas preposicionados (5 dados); os temporais (exemplo 169) por

sintagmas adverbiais (1 dado):

(164) Eu também me rio, o que prova que o meu espírito anda despreocupado e

livre, livre como a pena que me corre agora no papel, produzindo uma letra que

não sei se entenderá. [Ponto de vista, Machado de Assis]

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114

(165) O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. [O ovo e a galinha, Clarice

Lispector]

(166) Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de

mortos deslizando na escuridão. [Natal na barca, Lygia Fagundes Telles]

(167) Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo,

nunca está de lado. [Come, meu filho, Clarice Lispector]

(168) [...] no dia seguinte eu estava com um dos meninos pela mão. [A legião

estrangeira, Clarice Lispector]

(169) Mas meu passado era agora tarde demais. [Os desastres de Sofia, Clarice

Lispector]

A relação entre o tipo de predicação nominal e a tipologia do estado de coisas

também foi confirmada: a predicação estável (exemplo 170) apareceu em maior número

com caráter [+ permanente] enquanto a episódica (exemplo 171) prevaleceu em estados

de coisas [+ transitórios]:

(170) Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o

mais. [O ovo e a galinha, Clarice Lispector]

(171) Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes

relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha

acontecido. [O primeiro beijo, Clarice Lispector]

Apenas a construção resultativa apresentou aspecto faseável (exemplo 172),

conforme o esperado, pois os demais tipos de construção representam estados, portanto,

não passam por fases e não envolvem qualquer dinamicidade:

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115

(172) Deitado na esteira, no meio de molambos, no canto escuro da choça de

chão de terra, Nhô Augusto, dias depois, quando voltou a ter noção das coisas,

viu que tinha as pernas metidas em toscas talas de taboca e acomodadas em

regos de telhas, porque a esquerda estava partida em dois lugares, e a direita

num só, mas com ferida aberta. [A hora e vez de Augusto Matraga, Guimarães

Rosa]

Por fim, todos os tipos de processos relacionais predominaram no fundo das

narrativas, contrariando a expectativa de que haveria alguma diferença.

Com base em tais resultados, pode-se reconhecer, no corpus de contos analisado,

um grupo de características associadas mais frequentemente a cada forma verbal

estudada e, então, pode-se configurar uma escala de usos que contemple, com base na

frequência de constructos, desde as categorias mais prototípicas da construção

relacional analisada até as mais periféricas. Dessa forma, postulam-se os seguintes

quadros, de acordo com um continuum, que vai do nível 1 (construção relacional mais

prototípica) até o nível 6 (construção relacional mais periférica). Os níveis de 2 a 5 são

considerados intermediários:

Verb

o

relacio

na

l

Co

nstru

ção

relacio

na

l

An

ima

c. do

sujeito

Restriçã

o

do

pred

icativ

o

Pa

pel

semâ

ntico

do

sujeito

Pred

icaçã

o

no

min

al

Sin

tag

ma

do

pred

icativ

o

Pro

cesso

relacio

na

l

Esta

do

de

coisa

s

Esta

do

asp

ectua

l

Ord

em d

os

termo

s

Po

larid

ad

e

Pla

no

discu

rsivo

Ser

417

Estado

417

Hum.

164

Restr.

282

Tema

387

Estável

408

SAdj.

não

part.

202

Atrib.

216

+perm

409

Não

faseável

417

Direta

336

Positiva

387

Fundo

401

Quadro 4 – Nível 1: Construção relacional mais prototípica.

Verb

o

relacio

na

l

Co

nstru

ção

relacio

na

l

An

ima

c. do

sujeito

Restriçã

o

do

pred

icativ

o

Pa

pel

semâ

ntico

do

sujeito

Pred

icaçã

o

no

min

al

Sin

tag

ma

do

pred

icativ

o

Pro

cesso

relacio

na

l

Esta

do

de

coisa

s

Esta

do

asp

ectua

l

Ord

em d

os

termo

s

Po

larid

ad

e

Pla

no

discu

rsivo

Estar

233

Estado

200

Hum.

146

Não

restr.

160

Tema

188

Episódi

ca 171

SAdj.

não

part.

114

Atrib.

220

+transit

172

Não

faseável

202

Direta

151

Positiva

228

Fundo

191

Quadro 5 – Nível 2: Construção relacional intermediária.

Page 116: Universidade Federal do Rio de Janeiro · agora vê meu tão especial título de Mestre sendo alcançado ... meu amor, por estar ao meu lado em todos os momentos, ... SINOPSE Análise

116

Verb

o

relacio

na

l

Co

nstru

ção

relacio

na

l

An

ima

c. do

sujeito

Restriçã

o

do

pred

icativ

o

Pa

pel

semâ

ntico

do

sujeito

Pred

icaçã

o

no

min

al

Sin

tag

ma

do

pred

icativ

o

Pro

cesso

relacio

na

l

Esta

do

de

coisa

s

Esta

do

asp

ectua

l

Ord

em d

os

termo

s

Po

larid

ad

e

Pla

no

discu

rsivo

Ficar

104

Mudan

ça

89

Hum.

87

Restr.

63

Tema

70

Episódi

ca

65

SAdj.

não

part.

69

Atrib.

101

+transit

63

Não

faseável

95

V Pred.

53

Positiva

103

Fundo

88

Quadro 6 – Nível 3: Construção relacional intermediária.

Verb

o

relacio

na

l

Co

nstru

ção

relacio

na

l

An

ima

c. do

sujeito

Restriçã

o

do

pred

icativ

o

Pa

pel

semâ

ntico

do

sujeito

Pred

icaçã

o

no

min

al

Sin

tag

ma

do

pred

icativ

o

Pro

cesso

relacio

na

l

Esta

do

de

coisa

s

Esta

do

asp

ectua

l

Ord

em d

os

termo

s

Po

larid

ad

e

Pla

no

discu

rsivo

Andar

36

Habitua

l 36

Hum.

28

Restr.

25

Experi

encia

dor

22

Estável

27

SAdj.

part.

18

Atrib.

36

+transit

25

Não

faseável

36

Direta

22

Positiva

34

Fundo

34

Quadro 7 – Nível 4: Construção relacional intermediária.

Verb

o

relacio

na

l

Co

nstru

ção

relacio

na

l

An

ima

c. do

sujeito

Restriçã

o

do

pred

icativ

o

Pa

pel

semâ

ntico

do

sujeito

Pred

icaçã

o

no

min

al

Sin

tag

ma

do

pred

icativ

o

Pro

cesso

relacio

na

l

Esta

do

de

coisa

s

Esta

do

asp

ectua

l

Ord

em d

os

termo

s

Po

larid

ad

e

Pla

no

discu

rsivo

Viver

10

Habitu

al

10

Hum.

8

Não

restr.

6

Experi

encia

dor

7

Estável

10

SAdj.

part.

6

Atrib.

10

+perm

10

Não

faseá

vel

10

V Pred.

6

Positiva

10

Fundo

9

Quadro 8 – Nível 5: Construção relacional intermediária.

V

erbo

relacio

na

l

Co

nstru

ção

relacio

na

l

An

ima

c. do

sujeito

Restriçã

o

do

pred

icativ

o

Pa

pel

semâ

ntico

do

sujeito

Pred

icaçã

o

no

min

al

Sin

tag

ma

do

pred

icativ

o

Pro

cesso

relacio

na

l

Esta

do

de

coisa

s

Esta

do

asp

ectua

l

Ord

em d

os

termo

s

Po

larid

ad

e

Pla

no

discu

rsivo

Virar

6

Mudan

ça

6

+concre

to

3

Restr./

Não

restr.

3/3

Tema

6

Estável

6

SN

6

Identif.

6

+perm

6

Não

faseável

6

Direta

5

Positiva

6

Fundo

5

Quadro 9 – Nível 6: Construção relacional mais periférica.

No nível 1, verifica-se que: o verbo ser se destaca na construção relacional,

como já foi constatado em Pavão & Vieira (2013) que examinaram o assunto em outros

gêneros textuais; o tipo de construção relacional predominante é a construção de estado;

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117

o sujeito se destaca como humano e com papel de tema; o predicativo sobressai como

restritivo (em relação ao participante que prevê) e sob a forma de sintagma adjetival não

participial; predomina a predicação estável; destaca-se o processo relacional atributivo;

estado de coisas [+permanente]; estado aspectual não faseável; ordem direta dos termos

(sujeito/verbo/predicativo); polaridade positiva; a maioria das construções predominou

no fundo das narrativas.

No nível 2, notam-se as características mais próximas da categoria prototípica: a

construção é formada pelo verbo estar; predomina construção de estado; sujeito humano

e com papel semântico de tema; predicativo não restritivo; predicação episódica;

processo relacional atributivo; predicativo sob a forma de SAdj. não participial; estado

de coisas [+transitório]; estado aspectual não faseável; ordem direta; polaridade

positiva; predominância no fundo das narrativas.

No nível 3, ainda há características próximas da categoria prototípica: a

construção é formada pelo verbo ficar; predomina construção de mudança de estado;

sujeito humano e com papel semântico de tema; predicativo restritivo; predicação

episódica; processo relacional atributivo; predicativo sob a forma de SAdj. não

participial; estado de coisas [+transitório]; estado aspectual não faseável; ordem V

PRED; polaridade positiva; predominância no fundo das narrativas.

No nível 4, as características começam a se afastar da categoria prototípica: a

construção é formada pelo verbo andar; predomina construção de estado habitual;

sujeito humano e com papel semântico de experienciador; predicativo restritivo;

predicação estável; processo relacional atributivo; predicativo sob a forma de SAdj.

participial; estado de coisas [+transitório]; estado aspectual não faseável; ordem direta;

polaridade positiva; predominância no fundo das narrativas.

No nível 5, também há características afastadas da categoria prototípica: a

construção é formada pelo verbo viver; predomina construção de estado habitual; sujeito

humano e com papel semântico de experienciador; predicativo não restritivo; predicação

estável; processo relacional atributivo; predicativo sob a forma de SAdj. participial;

estado de coisas [+permanente]; estado aspectual não faseável; ordem V PRED;

polaridade positiva; predominância no fundo das narrativas.

No nível 6, verificam-se as características mais periféricas, ou seja, aquelas que

mais se afastam da categoria prototípica. Os resultados foram: o verbo virar apresenta

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118

menor ocorrência no corpus; construção relacional de mudança de estado; sujeito

[+concreto] e com papel de tema; o predicativo aparece tanto como restritivo quanto

como não restritivo e sob a forma de sintagma nominal; predicação estável; processo

relacional identificador; estado de coisas [+permanente]; estado aspectual não faseável;

ordem direta; polaridade positiva; construções no fundo das narrativas.

Uma particularidade que se observou foi a de que, embora façam parte da

construção relacional de estado habitual, as construções com andar e as com viver

apresentam uma nuance diferente de estado habitual: nas primeiras, nota-se um estado

mais recente (Ela anda cansada ultimamente), enquanto nas últimas há um aspecto mais

inerente (Ela vive cansada). Dessa forma, a construção relacional como um todo adquire

uma semântica diferente a depender do verbo escolhido para integrá-la, sendo um

estado habitual mais recente ou um estado habitual mais inerente. Tal semântica pode

resultar, também, do significado primário dos verbos (viver = ter vida, existir; andar =

mover-se, caminhar).

Outra particularidade é a que ocorre entre as construções com ficar e virar.

Observa-se que há diferentes nuances de resultatividade: enquanto a construção de

mudança de estado com ficar parece indicar a mudança de um estado para outro, por

meio de sintagmas adjetivais (Ela ficou feliz), a construção com virar indica uma

mudança de uma condição/entidade para outra, por meio de SNs (Ela virou gerente da

loja).

6.2 Outras observações baseadas em amostra de dados complementar

É interessante notar que ficar (= tornar-se), virar (= tornar-se) e o próprio

tornar-se apresentam sentido semelhante, indicando a transformação de um estado para

outro ou de uma entidade para outra. Apesar dessa similaridade, observou-se, nos dados

analisados, que ficar representa a mudança de um estado para outro, ou seja, estavam

em jogo predicativos sob a forma de sintagmas adjetivais. Com virar e tornar-se, no

entanto, os dados demonstraram a mudança de uma entidade para outra ou a mudança

de condição de determinada entidade, ou seja, com predicativos sob a forma de

sintagmas nominais:

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119

(173) Eike torna-se réu na Justiça do RJ por crime contra o mercado financeiro.

[http://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/2014/10/eike-torna-se-reu-na-

justica-do-rj-por-crime-contra-o-mercado-financeiro.html]

(174) Feia na infância, 20 anos depois tornou-se um mulherão… Duvido

adivinharem quem é essa famosa…

[http://www.xonei.com.br/feia-na-infancia-20-anos-depois-tornou-se-um-

mulherao-duvido-adivinharem-quem-e-essa-famosa/]

(175) O fanatismo já virou um exército.

[http://oglobo.globo.com/mundo/o-fanatismo-ja-virou-um-exercito-14165268]

(176) Jóbson ficou feliz com a reestreia pelo Botafogo

[http://oglobo.globo.com/esportes/jobson-ficou-feliz-com-reestreia-pelo-

botafogo-14305510#ixzz3HXqrX2g3]

Os exemplos acima (173-175), com tornar-se e virar, apresentam a mudança de

uma entidade para outra (exemplo 175) ou a mudança de condição de determinada

entidade (exemplos 173-174), representadas por sintagmas nominais. Por outro lado,

com ficar (exemplo 176), nota-se a mudança de um estado para outro, por meio de

sintagma adjetival.

A partir de uma busca feita via ferramenta de busca do Google, também foi

possível reunir dados com outros verbos que podem integrar a construção relacional,

como soar e correr:

(177) A arbitragem correu tranquila e diferente de outras partidas não ocorreu

nenhum lance polêmico.

[http://www.ebc.com.br/esportes/copa/2014/06/colombia-vence-a-grecia-por-3-

x-0-no-mineirao]

(178) Nada soava redundante no texto de García Márquez.

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120

[O Globo, 08/08/2014, Nelson Motta, A dança das palavras]

Verifica-se, nesses exemplos, que há uma relação atributiva entre sujeito e

predicativo, intermediada por verbos que funcionam como relacionais, conferindo a

essas construções status relacional. Tais construções comportam-se de modo similar à

construção relacional aqui descrita, apresentando as mesmas características da

construção em estudo (com ser, estar, ficar, andar, viver e virar). E esse

comportamento é revelador da hipótese teórica de que é a construção gramatical a

responsável por gerar os sentidos oracionais, uma vez que, com a compatibilização de

verbos, mesmo os normalmente usados como verbos predicadores, com a construção

relacional, se tem uma predicação nominal. Com isso, as listas de verbos relacionais em

descrições gramaticais tendem a estar incompletas. Afinal, é a construção relacional,

mais abstrata, que implica a instanciação de um verbo como relacional.

Outra observação interessante relaciona-se à ocorrência de construção relacional

com o verbo ficar contendo palavras ou expressões comparativas:

(179) Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem

mulher feita ainda não era. [Cem anos de perdão, Clarice Lispector]

(180) Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais

com os dedos que ficavam como ensanguentados. [Cem anos de perdão, Clarice

Lispector]

(181) Quando recebi esta fatal nova fiquei como louca. [Confissões de uma

viúva moça, Machado de Assis]

Observa-se o uso da conjunção como e da palavra feito, equivalente a como. Tais

construções expressam comparação e ocorrem, na maioria dos casos, com o verbo ficar.

Com base em busca realizada no Google, foram encontrados dados em que expressões

comparativas aparecem em construção relacional com estar:

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121

(182) Estava como um azul opaco, sem luz, sem brilho, estava eu estatelada,

desligada e acorrentada pela amargura, estava eu no estava.

[http://pensador.uol.com.br/frase/ODA3NDEw/]

(183) Eu dizia que minha vida estava como um kamikaze, poderia ser divertido,

poderia dar enjoo e causar arrependimento.

[http://pensador.uol.com.br/frase/MTQ1MTYzNw/]

Em (182) e (183), há a ocorrência da conjunção comparativa como. Tais

exemplos ilustram as diversas ocorrências da construção relacional no discurso, com

várias nuances de sentido e servindo a diferentes situações.

Também foi empreendida uma pesquisa no Google a fim de identificar dados de

construção relacional com verbos que não foram estudados nesta dissertação, mas que

são citados nas obras gramaticais e acadêmico-científicas como relacionais:

(184) Paraquedas de menina não abre, mas ela continua viva!

[metropolitanafm.uol.com.br/novidades/entretenimento/paraquedas-de-menina-

nao-abre-mas-ela-continua-viva]

(185) Família unida permanece unida.

[http://www.aloalobahia.com/notas/familia-unida-permanece-unida]

(186) Torcida do Chelsea pode até estar triste, mas Lampard parece feliz no

City.

[http://uolesporte.blogosfera.uol.com.br/2014/08/14/torcida-do-chelsea-pode-

ate-estar-triste-mas-lampard-parece-feliz-no-city/]

Notamos que os dados encontrados se encaixam nos padrões

microconstrucionais considerados nesta pesquisa, pois são formados por sujeito/verbo

relacional/predicativo, ou seja, ordem direta; o predicativo sobressai sob a forma de

SAdj.; constituem processos atributivos na maioria dos dados; o sujeito é humano;

denotam estados etc. Assim, embora apareça em menor quantidade, a construção

relacional pode ser composta por tais verbos também.

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122

6.2.1 Caracterização de predicações com estatuto de construção passiva

Foram encontrados, no corpus, dados formados por sujeito, verbo ser, estar ou

ficar, particípio e agente da passiva (explícito ou não), que aparentam construção

passiva:

(187) A ambição do orador não estava apagada pela satisfação do publicista;

pelo contrário, uma coisa avivava a outra. [Aurora sem dia, Machado de Assis]

(188) A alma de Ernesto ficou fortemente abalada com esta exposição que a

moça lhe fazia dos acontecimentos. [Ernesto de Tal, Machado de Assis]

(189) Meu inesperado consentimento em saber foi hoje provocado pelo fato de

ter aparecido em casa um pinto. [A legião estrangeira, Clarice Lispector]

Os dados 187-189 apresentam estrutura típica de construção passiva. Em (187),

há um agente da passiva (A satisfação do publicista não apagou a ambição do orador).

Em (188), embora haja uma estrutura um pouco diferente, já que não ocorre a

preposição por, fica claro que o causador está presente (A exposição que a moça fez dos

acontecimentos abalou fortemente a alma de Ernesto). Em (189), há um agente da

passiva (O fato de ter aparecido em casa um pinto provocou hoje meu inesperado

consentimento em saber).

Com base em Raposo et al. (2013), verifica-se que a construção passiva

descreve situações dinâmicas, que são resultados de uma mudança de estado, como por

exemplo O templo ficou destruído. Segundo o autor, o agente da passiva não aparece,

pois a construção não permite, já que se mostra apenas o resultado de uma ação. Com

ser, o agente da passiva poderia aparecer: O templo foi destruído (pelos bárbaros).

Logo, fica difícil classificar a construção O templo ficou destruído em passiva ou

relacional resultativa. Para tentar solucionar essa questão, buscaram-se, no Google,

exemplos que mostrem se é possível ou não, no uso da língua, a ocorrência de agente da

passiva com ficar:

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(190) Um carro pegou fogo no início da noite desta quarta-feira, 17, na avenida

Luis Eduardo Magalhães, em Salvador, sentido Paralela. O veículo modelo Ford

Ka ficou destruído pelas chamas.

[http://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/1647253-carro-pega-fogo-e-

fica-destruido-na-avenida-luis-eduardo]

(191) Casa ficou destruída pelas chamas, mas não houve registro de vítimas.

[http://www.conesulnews.com.br/cidade/casa-ficou-destruida-pelas-chamas-

mas-nao-houve-registro-de-vitimas]

Como podemos ver em (190) e (191), no uso efetivo da língua, há a

possibilidade de construção com ficar e agente da passiva.

Essa aproximação entre construção passiva e relacional também se dá devido ao

grande número de propriedades partilhadas entre sintagmas adjetivais e particípios

verbais. Ambos podem flexionar-se em gênero e número e apresentar função predicativa

ou atributiva.

Segundo Casteleiro (1978) apud Barreiro (1998), a maioria dos particípios

passados se comporta como adjetivos. O autor afirma que se comportam como tal os

particípios passados que apresentam as propriedades predicativa (ou pós-cópula) e/ou

adnominal (pós-nominal e/ou pré-nominal). Logo, os particípios passados presentes nos

exemplos 187-189 podem ser considerados adjetivos, por apresentarem propriedade

predicativa/atributiva.

6.3 Proposta de descrição gramatical da construção relacional

Para uma descrição efetiva da construção relacional no Português, recorreu-se à

elaboração de uma rede de construções:

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Diagrama 1 – Representação esquemática da construção relacional e suas microconstruções.

Com base nessa representação, evidenciamos que a construção relacional

apresenta subtipos (construção de estado ou de mudança de estado), que também

apresentam subníveis (a construção de estado pode ser habitual ou não e a construção de

mudança de estado pode ser resultativa ou não).

6.3.1 Padrões microconstrucionais da construção relacional

Após a análise dos dados segundo os parâmetros estabelecidos e dos resultados

obtidos, é possível chegar a uma proposta de descrição gramatical da construção em

estudo. Para tanto, é importante pensar em uma rede de construções, formada por alguns

esquemas. Primeiramente, estabelecemos os padrões microconstrucionais mais

frequentes e os menos frequentes da construção relacional em relação ao verbo que a

integra (Tabelas 14 e 15):

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Padrão

microconstrucional

Construção

com os

verbos

Tipo de

construção

relacional

Número de

ocorrências

Porcentagem

de ocorrências

1 SER Estado não

habitual

417/417 100,0%

2 ESTAR Estado não

habitual

200/233 85,3%

3 FICAR Mudança de

estado

89/104 85,5%

Tabela 14 – Padrões microconstrucionais mais frequentes.

Padrão

microconstrucional

Construção

com os

verbos

Tipo de

construção

relacional

Número de

ocorrências

Porcentagem

de ocorrências

4 ANDAR Estado habitual 36/36 100,0%

5 ESTAR Resultativa 33/233 14,1%

6 VIVER Estado habitual 10/10 100,0%

7 FICAR Resultativa 09/104 8,6%

8 FICAR Estado não

habitual

06/104 5,7%

9 VIRAR Mudança de

estado

06/06 100,0%

Tabela 15 – Padrões microconstrucionais menos frequentes.

Há instâncias em que se reconhece o estatuto de construção relacional mais

rapidamente, até por conta do nível de gramaticalização já alcançado, da produtividade

de novas formações (com verbos até inesperados, como soar e correr) do que outras:

(192) A estrada de Petrópolis é muito bonita. [O grande passeio, Clarice

Lispector]

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(193) Minha mãe teimava que eu estava doente, e eu achava-me apenas um

pouco pálida e sentia às vezes um ligeiro calafrio, que eu curava, sentando-me

ao piano e tocando alguma música de bravura. [Cinco minutos, José de Alencar]

(194) Quando Maricota fugiu com o trapezista eu chorei tanto que minha mãe

ficou preocupada: Menina mais ingrata aquela! [Que se chama solidão, Lygia

Fagundes Telles]

(195) O curso de Alesina foi um dos melhores que cursei como estudante, mas

antes de ler o artigo, eu não tinha idéia de que ele era um superastro: eu ignorava

essas coisas e apenas escolhi o curso porque soava interessante.

[http://wap.noticias.uol.com.br/midiaglobal/freakonomics/2009/01/07/freakono

micscom-listas-e-precos-de-lista.htm]

Os exemplos (192), (193) e (194) representam instâncias mais facilmente

reconhecidas como construção relacional, pois constituem padrões microconstrucionais

mais frequentes, que são mais produtivos no uso da língua. O exemplo (195), por sua

vez, representa uma construção mais afastada do padrão, devido à baixa ocorrência e

por apresentar um sentido mais específico.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta dissertação oferece contribuição para a descrição da gramática do PB, uma

vez que aprofunda, com base em dados do uso, o que se conhece sobre a construção

relacional no PB e sobre suas possibilidades de configuração sintática e semântica.

Além disso, constitui uma colaboração em termos teórico-metodológicos, na medida em

que se configura como uma descrição que tem por intuito a articulação de pressupostos

dos enfoques funcionalista e construcionista no tratamento de predicações nominais,

ainda pouco empreendida na literatura linguística nacional sobre o tema.

Em obras gramaticais tradicionais, a construção relacional é vista, na maioria das

vezes, fora de contexto; nelas, não se dá a devida importância ao papel do slot destinado

ao predicativo, que geralmente seleciona sintática e semanticamente o participante

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127

sujeito; nem se observam as diversas relações que podem existir entre o sujeito e o

predicativo, intermediadas pelo verbo relacional; e também não se considera que outros

verbos, além dos normalmente listados, podem compatibilizar-se nessa construção.

Assim, o conhecimento sobre a construção relacional fica limitado a umas poucas

observações estruturais e impede que se percebam outros verbos que podem assumir

papel relacional. Por outro lado, obras de orientação teórico-descritiva e pesquisas

linguísticas levam em conta a possibilidade de ocorrência de construções não previstas

na tradição gramatical, além de buscarem uma descrição mais aprofundada da

construção relacional (também chamada de construção predicativa, copulativa). Logo, o

presente estudo dialoga mais de perto com estas obras. De todo modo, significa um

avanço também em relação a estas, na medida em que estabelece padrões

microconstrucionais para a construção relacional, concebendo-a como uma rede de

microconstruções que, por sua vez, se relacionam a (sub)esquemas construcionais mais

convencionalizados e generalizantes e procurando representá-las como pareamentos de

forma e significado.

Os resultados aqui expostos são bastante interessantes no que diz respeito a uma

proposta de descrição gramatical mais atual, com base em abordagens linguísticas

recentes (como a Gramática das Construções), e empiricamente fundamentada. É

possível estabelecer uma rede com a construção relacional como o pareamento forma-

sentido mais esquemático e mais abstrato no topo, emergindo dela a construção de

estado e a construção de mudança de estado, das quais emergem, por sua vez, a

construção de estado habitual e a construção resultativa, respectivamente. A partir dessa

representação, observam-se os verbos que integram cada construção preferencialmente e

suas particularidades sintáticas, semânticas e discursivas.

De tais resultados, destacam-se os seguintes: a construção relacional analisada

apresenta, em geral, uma relação atributiva entre sujeito e predicativo, sob a forma de

sintagmas adjetivais, na maioria dos casos, em que o predicativo exerce restrição

semântica. Nessas construções, o sujeito aparece geralmente como tema, os termos são

organizados na ordem direta (sujeito/verbo/predicativo) e a polaridade positiva se

destaca em todos os tipos de construção relacional em jogo. O tipo de predicação

nominal relaciona-se à tipologia do estado de coisas, confirmando os estudos que

afirmam que as construções com ser são estáveis, com aspecto [+permanente], e as com

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128

estar são episódicas, com aspecto [+transitório]. É interessante notar também que os

resultados mostram que, apesar de muitas vezes serem consideradas construções de

estado apenas, as construções relacionais apresentam nuances de significado, podendo

apresentar mudança, hábito e até resultado. Além disso, esta dissertação permite

perceber os vários sentidos que uma mesma construção pode apresentar (por exemplo,

ficar como tornar-se ou permanecer) e até comparar alguns usos identificados no

corpus com outros usos viáveis na língua (com tornar-se, soar e correr).

Esta dissertação ratifica a concepção teórica de que a língua é uma rede de

construções e de que a unidade básica da gramática é a construção, pois a construção

relacional em estudo, que constitui um padrão esquemático de forma-sentido na língua,

relaciona-se a padrões construcionais mais específicos, sejam eles os de estado (que

podem revelar caráter iterativo/habitual ou não) ou os de mudança (que podem

apresentar resultado ou não). Além disso, verifica-se que algumas microconstruções

revelam relações, constituindo uma rede polissêmica, como a construção com ficar, que

pode aparecer com um sentido mais estático, semelhante a permanecer, ou num sentido

de mudança de estado, semelhante a tornar-se.

Logo, acredita-se que, em linhas gerais, esta dissertação possa contribuir com:

(i) uma descrição mais efetiva da construção relacional; (ii) o desenvolvimento de

materiais didáticos que se dediquem a aprofundar o estudo sobre tal construção; (iii) o

(re)conhecimento da construção relacional com verbos não previstos pela tradição

gramatical; (iv) a percepção dos diferentes sentidos que um mesmo verbo pode implicar

a depender da construção em que esteja inserido.

Ainda há muito que pesquisar sobre a configuração sintático-semântica de tal

construção. Temas ou recortes que podem ser revistos e, por conseguinte, gerar novos

estudos são, por exemplo: a comparação entre a construção passiva resultativa e a

construção relacional resultativa; a comparação entre dados de outros corpora (outros

gêneros literários), de modalidades expressivas (modalidade oral, além da modalidade

escrita – focalizada nesta pesquisa), de variedades do Português (Português de Portugal

e de outros países em que se fala o Português, bem como variedades nacionais), de

sincronias diferentes; a compatibilização de outros verbos, além dos aqui estudados,

com a construção relacional e seus subesquemas configuracionais.

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129

8. Bibliografia

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12. LANGACKER, R. Cognitive Grammar – A basic introduction. New York:

Oxford University Press, 2008. Caps. 1 e 2.

13. OLIVEIRA, Fátima & CUNHA, Luís Filipe. Termos de espécie e tipos de

predicados. In: Língua Portuguesa: Estruturas, Usos e Contrastes, 2003.

14. OLIVEIRA, Maria do Carmo Pereira. As frases copulativas com SER – Natureza

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15. RIBEIRO, Roza Maria Palomanes. A expansão de sentidos do verbo ficar e os

mecanismos responsáveis pela organização cognitiva de suas significações. Revista

Eletrônica do Instituto de Humanidades: VOLUME II, NÚMERO VIII - Jan-Mar 2004.

16. _____________________________. A Linguística cognitiva aplicada ao ensino:

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17. RIO-TORTO, Graça. Para uma gramática do adjectivo. São Paulo: Alfa, 2006.

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18. TROUSDALE, Graeme. Grammaticalization, constructions and the

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Brems and Tanja Mortelmans (eds.). Grammaticalization and Language Change:

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1991.

2. Contos de Machado de Assis:

[http://machado.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=166:con

to&catid=34:obra-completa&Itemid=123]

3. Demais contos:

[http://contobrasileiro.com.br/?cat=2]

4. LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. 10ª ed. Rio de Janeiro: Francisco

Alves, 1996.

5. MEIRELES, Cecília. O fim do mundo. In: Quatro Vozes. Distribuidora Record de

Serviços de Imprensa: Rio de Janeiro, 1998, pág. 73.

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6. RIO, João do. A mais estranha moléstia.

[http://www.soleis.com.br/paulobarreto/Barreto-1.htm]

7. ROSA, Guimarães. A hora e vez de Augusto Matraga.

[http://fortium.edu.br/blog/fabricio_martins/files/2012/02/A_hora_e_vez_de_Augusto_

Matraga2.pdf]