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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO A CIDADE VISTA A PARTIR DOS DESLOCAMENTOS E FLUXOS: Estratégias discursivas para narrar a villa miseria de Cristian Alarcón Dalva Desirée Climent Rio de Janeiro 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

A CIDADE VISTA A PARTIR DOS DESLOCAMENTOS E FLUXOS:

Estratégias discursivas para narrar a villa miseria de Cristian Alarcón

Dalva Desirée Climent

Rio de Janeiro

2017

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A CIDADE VISTA A PARTIR DOS DESLOCAMENTOS E FLUXOS:

Estratégias discursivas para narrar a villa miseria de Cristian Alarcón

Por

Dalva Desirée Climent

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do Rio de

Janeiro como quesito para obtenção do título de

Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários

Neolatinos - Literaturas Hispânicas)

Orientador: Professor Doutor Ary Pimentel

Rio de Janeiro

Março de 2017

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A CIDADE VISTA A PARTIR DOS DESLOCAMENTOS E FLUXOS:

Estratégias discursivas para narrar a villa miseria de Cristian Alarcón

Por Dalva Desirée Climent

Orientador: Ary Pimentel

Dissertação de Mestrado submetida ao programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos necessários à

obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos/Literaturas

Hispânicas)

Rio de Janeiro

Março de 2017

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Climent, Dalva Desirée.

A cidade vista a partir dos deslocamentos e fluxos: estratégias discursivas para

narrar a villa miseria no romance de Cristian Alarcón./ Dalva Desirée Climent. –

Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2017.

xi, 116 fl. il.; 31 cm.

Orientador: Ary Pimentel

Dissertação (Mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de Pós-

Graduação em Letras Neolatinas, 2017.

Referências Bibliográficas: f. 101-109.

1. Villa miseria. 2. Imigração. 3. Arquivo I. Pimentel, Ary. II. Universidade

Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras

Neolatinas. III. Título

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A Valentín.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço a Deus, a quem recorri e em quem me amparei em muitos

momentos de dificuldade e de enfrentamento dos obstáculos. Nele encontrei forças para

conciliar a tripla jornada de mãe, professora e pesquisadora.

Gostaria de fazer um agradecimento especial a duas colegas que me deram ânimo e

coragem quando nem eu mesma acreditava em mim: Bárbara de Oliveira Santos e Simone

Silva do Carmo. Obrigada por toda a ajuda que encontrei no gesto generoso da amizade. Sei

que muito dessa conquista devo ao apoio de vocês.

Agradeço ao colega de curso Thiago Carvalhal, que me possibilitou um importante

contato para que eu realizasse um encontro com o escritor Cristian Alarcón.

A Julia Nelly, minha professora de produção textual, que me mostrou que a escrita

acadêmica também poderia ser um caminho a ser trilhado por mim.

Agradeço ainda a um grande amigo que fiz dentro dessa universidade, Peter de Sá

Pereira. Obrigada por me fazer rir cada vez que eu estava desesperada tentando entregar um

texto no prazo, ou fechar algum capítulo. Para além das conversas pelos corredores, das

mensagens que me recordavam dos prazos, surgia uma amizade que ultrapassa os limites da

UFRJ.

Agradeço ainda a Renata Dornelles, pelos conselhos iniciais, pelas caronas, pelos

livros emprestados.

Minha maior gratidão está reservada a meu filho, razão de tudo, por me arrancar

sorrisos nos momentos mais difíceis, por cada vez que me interrompia a escrita para me dar

um beijo, dizer que me ama e pelas vezes que tentava me ajudar escolhendo um título para um

capítulo, dizendo: “mamãe, coloca «plutz faqui zoool», seu professor vai gostar”. Te amo!

Obrigada por ser meu motor, minha vida.

À minha mãe, que me deu duas pátrias para amar, por mudar sua vida nesse último

ano para que eu pudesse concluir esse curso de mestrado. Sem você, eu não teria conseguido.

Obrigada por tudo.

Ao meu marido, pelo companheirismo, pelas fotos e, principalmente no auxílio com

o sério problema que havia “entre a cadeira e o computador”.

Ao meu irmão, que, quando eu estava longe de Buenos Aires, me ajudou comprando

livros, enviando por amigos, “recorrendo toda Buenos Aires por tus malditos libros”. Você é

o melhor irmão do mundo. À minha irmã pelas orações e por me escutar sempre.

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Agradeço a todos os professores que pude conhecer nessa faculdade e que, de

diferentes modos, constituíram oportunidades de crescimento pessoal e intelectual.

Ao escritor Cristian Alarcón, por disponibilizar longas horas de uma tarde perdida no

final de 2015 para uma agradável conversa sobre imigração, literatura e política, obrigada.

Agradeço ainda aos amigos, que me aguentaram todo esse tempo falando do meu

objeto de pesquisa, me escutando, me acalmando e me dando força, em especial a Michelyne

Barros Costa Ferreira, que me injetou a vontade de realizar esse Mestrado, e mostrou os

primeiros caminhos a serem trilhados. Às diretoras das escolas onde trabalho, que entenderam

os momentos em que tive de me ausentar para participar de congressos e seminários, por

sempre me incentivarem dando ânimo e demonstrando total compreensão.

Aos meus alunos, que me ensinam a cada dia, que me fazem rir e chorar, por me

ajudarem a pensar em alguma coisa diferente da pesquisa por umas poucas horas.

Por fim, um agradecimento especial ao meu orientador, Ary Pimentel, por ser

desafiador, generoso e me mostrar e me incentivar a percorrer os caminhos que se abriam à

minha frente. Por cada livro indicado, pelas críticas, pelos elogios e, principalmente, pela

forma apaixonante como fala de literatura, obrigada, de verdade!

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Con la expansión global de los imaginarios

se han incorporado a nuestro horizonte

culturas que sentíamos hasta hace pocas

décadas ajenas a nuestra existencia.

Néstor García Canclini

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RESUMO

CLIMENT, Dalva Desirée. A cidade vista a partir dos deslocamentos e fluxos: Estratégias

discursivas para narrar a villa miseria no romance de Cristian Alarcón. Rio de Janeiro, 2017.

Dissertação de mestrado em Literaturas Hispânicas. (Mestrado em Letras Neolatinas. Área de

Concentração: Estudos literários Neolatinos.) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do

Rio de Janeiro, UFRJ. Rio de Janeiro, 2017.

A presente dissertação traz uma análise do romance Si me querés quereme transa, de Cristian

Alarcón. O texto narra a cidade de Buenos Aires com foco na criação de uma villa miseria

fictícia, na qual se reúnem sujeitos provenientes de países limítrofes, trazendo para o campo

da literatura a discussão do incremento da imigração no final do século XX, e as

consequências desse fenômeno para as formas de relacionar-se com o outro. Priorizando a

questão imigratória, o escritor enfatiza o problema da visão homogeneizante constituída a

partir de um mito fundacional e visibilisa as práticas culturais de que os imigrantes fazem uso

para apropriar-se do novo território. Desponta na obra a questão da religiosidade, que

constitui um patrimônio simbólico e político dentro desses espaços, sendo um importante

fator para ler as villas do Conurbano Bonaerense. Para dar conta da narração de territórios e

sujeitos complexos, o escritor lança mão de diversas técnicas literárias e jornalísticas,

transitando entre ambos campos e diluindo as fronteiras entre o real e o ficcional. Cria uma

narrativa porosa, conforme define Garramuño, assimilando a experiência do real como ponto

chave para a construção do romance. Ao lançar-se no desafio de narrar uma cidade

fragmentada, constituída de diversas lhas urbanas, o escritor prioriza a independência da

criação literária e, ao mesmo tempo que nos desafia a repensar o gênero romance, dialoga

com o cânone da literatura latino-americana. O livro é composto por uma narrativa complexa,

polifônica, com inúmeros personagens, vozes e arquivos, apresenta uma forte carga de

subjetividade e experiência do autor, fornecendo-nos através de um espaço fictício uma leitura

das diversas periferias em um único espaço e demarcando a complexidade multicultural da

capital argentina atual e das diversidades encontradas nos textos da literatura recente que

buscam narrar o urbano e os sujeitos da contemporaneidade.

Palavras-chave: Narrativa do contemporâneo - Fluxos - Território - Arquivo - Porosidade.

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RESUMEN

CLIMENT, Dalva Desirée. A cidade vista a partir dos deslocamentos e fluxos: Estratégias

discursivas para narrar a villa miseria no romance de Cristian Alarcón. Rio de Janeiro, 2017.

Tesis de Maestría en Literaturas Hispánicas. (Maestría en Letras Neolatinas. Área de

Concentración: Estudios Literarios Neolatinos.) - Faculdade de Letras, Universidade Federal

do Rio de Janeiro, UFRJ. Rio de Janeiro, 2017.

Este trabajo de investigación ofrece un análisis de la novela Si me querés quereme transa, de

Cristian Alarcón. El texto narra la ciudad de Buenos Aires con un enfoque en la creación de

una ficticia villa miseria, en la que se reúnen sujetos procedentes de los países vecinos,

trayendo al campo de la literatura la discusión sobre el aumento de la inmigración en el siglo

XX y sus consecuencias en las formas de relacionarse dentro de la urbe. Al priorizar el tema

de la inmigración, el escritor acentúa el problema de la visión homogeneizante constituida a

partir de un mito fundacional y visibiliza las prácticas culturales que utilizan los inmigrantes

para apropiarse del nuevo territorio. Sobresale en la obra el tema de la religiosidad, que

constituye un patrimonio simbólico y político dentro de esos espacios, siendo un factor

importante para leer las villas del Conurbano Bonaerense. Para ejecutar la narración de

territorios y temas complejos, el escritor hace uso de diversas técnicas literarias y

periodísticas, transitando entre los dos campos y diluyendo los límites entre lo real y lo

ficcional. Crea una narrativa porosa, como lo define Garramuño, asimilando la experiencia

de lo real como punto clave para la construcción de la novela. Al lanzarse en el reto de narrar

una ciudad fragmentada, constituida en varias Islas urbanas, el escritor enfatiza la

independencia de la creación literaria y, al mismo tiempo que nos desafía a repensar el

género novela, dialoga con el Canon de la literatura latino americana. El libro está compuesto

por una compleja narrativa, polifónica, con numerosos personajes, voces y archivos, presenta

una fuerte carga de subjetividad y de la experiencia del autor, nos ofrece a través de un

espacio ficticio una lectura de varios barrios en un único espacio y destaca la complejidad

multicultural de la capital Argentina y la diversidad encontrada en los textos de la literatura

reciente que pretenden narrar lo urbano y los actores de la contemporaneidad.

Palabras-clave: Narrativa de lo contemporáneo - Flujos - Territorio - Archivo - Porosidad.

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ABSTRACT

CLIMENT, Dalva Desirée. A cidade vista a partir dos deslocamentos e fluxos: Estratégias

discursivas para narrar a villa miseria no romance de Cristian Alarcón. Rio de Janeiro, 2017.

Master Tesis in Hispanic Literature. (Master in Letras Neolatinas. Faculdade de Letras,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. Rio de Janeiro, 2017.

This research concerns about the analysis of the novel “Si me querés quereme transa”, wrote

by Cristian Alarcón. This novel guides itself in a way that we may think about the characters’

and territories”performance narrated in the work . When bringing to the middle of the

narrative the creation of a fictitious slum inhabited principally by immigrants who come from

boardline and andine countries, the author brings out lots of conflicts on account of this

immigration. The research seeks to solve such conflicts considering the several cultural

practices portrayed in the plot analysing the distinct functions of these strategies . We ,

therefore, retake in our work the importance of the immigration subject into the argentine

society and how ,nowadays the customs shown demonstrate the need of the territory

affirmation and appropriation . Among the several cultural strategies presentesd in the text

we emphasize the uses of religiousness which make an enormous change in the usage ways

of such strategies by the urban popular sectors . The narrative of peripheral territories gives

us elements that make us reflect upon the representation of the argentine town in its

own organization. Besides, it makes possible to distinguish the frontiers established between

the formal city and the periphery. Another important point in this work is the creation of

a fictitious slum that rises after na intense writer’s participation in the various territories

. It is quite interesting,though, to approach the different strategies used by the writer

who varies from the investigative journalism to the literature, mixing the frontiers between

reality and fiction , the text configures itself as a porous narrative following the definition

given by Florencia Garramuño, the author uses not only his own experience but also

the ones obtained in files along a deep investigation with anthropological and

ethnological characteristcs . Launching himself on the challenge of narrating a fragmented

city made of various urban islands , the writer emphasizes the Independence of literary

creation, and at the same time that he challenges us to rethink the novel gender, he also

talks to the canon of latin american literature. The book is formed by a complex

polyphonic narrative , full of characters, voices and files, besides it shows such a

powerful author’s subjectivity and experience giving us through a fictitious space, an

approach of the several peripheries in a unique space and determining the multicultural

complexity of the current argentine capital and diversities found in the recent literary

texts which seek to narrate the urban side and the subjects of the contemporaneous

narrative.

Key-Words: Contemporary-narrative – Flow – Territory – Files -Porosity

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................................13

1. A VILLA DEL SEÑOR NO CENTRO DA NARRATIVA: A REPRESENTAÇÃO DOS

TERRITÓRIOS PERIFÉRICOS..............................................................................................20

2. BREVE PERCURSO PELA HISTÓRIA DA IMIGRAÇÃO ARGENTINA...................33

2.1 A REPRESENTAÇÃO DA RECENTE IMIGRAÇÃO NO ROMANCE.........................43

3. OS USOS DAS PRÁTICAS RELIGIOSAS; ESTRATÉGIAS DE NEGOCIAÇÃO E

APROPRIAÇÃO DO TERRITÓRIO.......................................................................................55

4. A INVENÇÃO DA VILLA MISERIA: ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS, A POROSIDADE

DA NARRATIVA DE CRISTIAN ALARCÓN......................................................................73

5. CONCLUSÃO......................................................................................................................97

6. BIBLIOGRAFIA................................................................................................................101

7. ANEXOS............................................................................................................................110

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I- INTRODUÇÃO

O processo de massificação e globalização permitiu a debilitação ou o

rompimento de fronteiras e a integração de diversos territórios e culturas que se

concebiam de modo separado. Deslocamentos e fluxos de todos os tipos vêm

transformando as economias, as sociedades e as formas como as pessoas se organizam e

vivem a cidade. Desse modo, nos tempos atuais, impõe-se pensar os processos de

desterritorialização e reterritorialização provocados no âmbito local devido aos fluxos

transnacionais, gerando um novo cenário especialmente nas periferias das grandes

urbes.

Historicamente um país de imigrantes, a Argentina não ficou alheia aos fluxos

populacionais do final do século XX e nas últimas duas décadas recebeu uma grande

massa de imigrantes oriunda dos países vizinhos e andinos. Esse processo gerou

identidades complexas, que entram em conflito com o relato nacional hegemônico, até

então um elemento fundamental para imaginar a nação.

A partir da década de 1990, o campo literário argentino sofre uma verdadeira

reconfiguração e percebem-se produções que passam a tratar prioritariamente da

representação das questões urbanas e seus imaginários. Há um destaque para escritores

que apresentam em comum a experiência da história contemporânea e que nasceram

após de 1970, como por exemplo, Juan Diego Incardona, Félix Bruzzone, Ariel Magnus

e o autor da obra aqui analisada, Cristian Alarcón.

Ao priorizar em suas narrativas questões referente à cidade e suas periferias,

desponta nesses textos a representação de um dos territórios que gera os mais diversos

discursos: as villas miserias1 argentinas. Nesses locais, que apresentam algumas

características similares às favelas cariocas, encontra-se, ao contrário destas, uma

grande concentração de imigrantes de países como Bolívia, Peru e Paraguai, fato que

reforça os discursos discriminatórios com relação a esses grupos e aos territórios

periféricos.

Em alguns casos, para a representação desses espaços, surge um elemento

importante, que é a experiência do autor dentro do território narrado. Esta dimensão da

literatura do presente pode ser percebida em diversas formas dependendo da narrativa.

1 Favelas. Todas as traduções desse trabalho são de nossa autoria, exceto quando sinalizado de modo

diferente.

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Temos textos nos quais ocorre uma vivência muito próxima do escritor com a

experiência narrada e esse é o caso de Cuando me muera quiero que me toquen cumbia

e Villa Celina, nome do romance e da villa onde Juan Diego Incardona nasceu e viveu

intensamente alguns anos da sua juventude. Outra vertente traz o relato ficcional de uma

experiência periférica que foi basicamente fruto da de observação, como se dá com La

villa, de Cesar Aira, por exemplo. Ainda podemos destacar obras em que o contato com

o território foi de certa forma bastante superficial, importando mais os relatos e visões

que circula sobre essas localidades do que o contato direto. Isto é o que ocorre com o

romance La 31, de Ariel Magnus. Em outras palavras, esses escritores tratam de narrar

um presente, de certa forma vivido, observado ou lido por eles, e terminam por criar

uma série de textos que buscam plasmar figurações da periferia (villas miseria da

Capital Federal e localidades do Conurbano Bonarense2) través de uma diversidade de

projetos narrativos.

A obra analisada por nós se insere nesse panorama, trazendo uma figuração do

urbano que se apresenta como um híbrido de ficção e jornalismo, testemunho e

etnografia. Cristian Alarcón, o autor de Si me querés quereme transa, traz à cena

literária a questão do incremento da imigração limítrofe na cidade de Buenos Aires e o

tema do acelerado processo de villerización/favelização na virada do século XX para o

XXI. O lócus da narrativa é a Villa del Señor, um assentamento informal no qual

convivem sujeitos oriundos de distintos países e marcados por uma multiplicidade de

deslocamentos. Num território ficcional bastante poroso, onde diversas etnias e grupos

culturais convivem, os conflitos associados aos movimentos desses novos imigrantes da

cidade de Buenos Aires e as relações estabelecidas entre esses sujeitos e o território

aparecem marcadas por dois temas principais: o tráfico de drogas e a religiosidade.

Contudo, mais que reduplicar os lugares comuns de um discurso midiático que

passa a relacionar os “bolitas”, “perucas” e “paraguas” (meros sujeitos supérfluos

transformados em coisas) com o problema da segurança, Alarcón constrói uma narrativa

na qual sobressaem momentos da vida cotidiana: os problemas, os dramas e as

negociações desses imigrantes que deixam seus países para ir viver em uma villa

2 O termo refere-se aos vinte e quatro municipios ou partidos que cercam a Cidade Autônoma de Buenos

Aires (CABA), estes municípios são divididos por áreas, tais como; Zona Sul, Oeste e Norte, onde há

localidades urbanizadas e parcialmente urbanizadas . Dentro desses municípios existem bairros de classe

alta (região norte) e bairros de classe média ou baixa (sul e oeste). Cada município apresenta diferentes

características sociais.

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miseria portenha. Fazendo o caminho inverso e voltando ao espaço de origem desses

personagens que em grande medida correspondem a figuras com as quais o autor

conviveu, o narrador lança luz sobre as práticas culturais de diversos grupos

migratórios, que habitam a villa narrada (uma villa que é também uma mescla ficcional

de todas as villas reais da cidade), possibilitando-nos analisar as estratégias desses

atores como forma de afirmação e consolidação de suas culturas e como modo de

utilização e apropriação do território que habitam.

Para dar conta dessas questões nesse momento apresentamos a estrutura

escolhida para a escrita desse trabalho: optamos por escrever os capítulos de forma

independente, porém conectando os pontos abordados, seguindo uma ordem que busca

o melhor entendimento dos aspectos analisados na obra. Todos os capítulos são escritos

com base nos suportes teóricos e no próprio texto de Alarcón, sendo os dois últimos os

que apresentam um detalhamento mais completo das questões narrativas. Os primeiros

capítulos visam a dar conta das questões sociais e históricas com relação aos grupos

representados no romance.

O primeiro capítulo trata de processar o recorte de algumas publicações

recentes que buscam narrar os territórios periféricos, realizando uma breve análise de

obras que abordam essa temática. Não pretendemos, com isso, realizar a cartografia de

uma produção necessária para ler esses espaços, destacando-se que a escolha destas se

deram pela necessidade de criar um eixo possível de análise e leitura dentro da

complexidade e riqueza existente na literatura argentina do presente.

Também foi importante para a escolha dos títulos para essa breve análise

inicial a opção por obras nas quais os escritores apresentassem algumas características

em comum: são argentinos, narram a villa miseria ou o Conurbano Bonarense e

apresentam a mesma faixa etária, participando dos mesmos eventos políticos e

socioeconômicos dentro do país. Acreditamos que esse é um fator importante para

pensar o grupo de escritores que passa a tratar da narração da cidade apresentando como

ponto fulcral o olhar para as villas/favelas. Sinalizamos também que podemos encontrar

além dos textos mencionados, vários outros textos que narram as periferias portenhas.

Cabendo ressaltar ainda que Cristian Alarcón é chileno-argentino, porém reivindica,

dependendo do contexto em que está inserido, uma ou outra nacionalidade.

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Para a análise dessas narrativas utilizaremos principalmente dos aportes de

Josefina Ludmer ao analisar os territórios fragmentados definidos pela autora como

“ilhas urbanas”, as considerações referentes ao campo literário argentino de Vicente,

Vanoli e Beatriz Sarlo. Para tratar a questão da representação dos grupos e territórios

denominados periféricos foram de muita importância as consideração e aportes de Paulo

Roberto Tonani do Patrocínio, e, para a leitura das villas, recorremos aos estudos da

antropóloga Maria Cristina Cravino e novamente às considerações de Beatriz Sarlo.

No segundo capítulo discorreremos brevemente sobre a história da imigração

argentina, uma vez que a formação do Estado nacional argentino possui um papel de

importância para entender as relações com os distintos imigrantes. A imigração é o

ponto central para a construção dos personagens da própria villa narrada. Para pensar as

questões e conflitos que envolvem a “imigración cercana”, recorremos principalmente a

Alejandro Grimson e Elisabeth Jelín.

O segundo capítulo trata ainda de dar conta de analisar a questão imigratória

no romance. As trajetórias dos sujeitos representados levantam a questão da formação

de novas comunidades nas quais se observa um entendimento compartilhado por seus

membros diferente daquele que marca a convivência no restante da cidade formal. A

formação da identidade comunitária está fortemente relacionada ao que Arjun

Appadurai chamou de “mundos imaginados” (1996, p.14), nos quais adquire um papel

fundamental e um poder singular na vida social dos indivíduos a circulação de relatos,

de canções, mitos e programas televisivos gravados na grade de canais de outros países.

O trabalho da imaginação e as representações coletivas nestas periferias

transcende as fronteiras do território e observa-se que nas últimas décadas com o

impacto das novas tecnologias, a imaginação passou a ser um fator social e comunitário.

Tendo como base a pluralidade dos mundos imaginados, as comunidades demonstram

assim a capacidade de armar o relato de suas vidas recorrendo a diversos acervos,

fazendo com que estes deem sentido a uma trama de trajetórias cotidianas.

Tais práticas e expressões são base de um complexo diálogo entre imaginação

e ritual na medida em que são utilizados dentro dos trabalhos coletivos dos grupos

sociais como forma de disseminação e reorganização dos relatos nessas novas

comunidades, conforme observa Homi Bhabha, para quem “os fragmentos, retalhos e

restos da vida cotidiana devem ser repetidamente transformados nos signos de uma

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cultura nacional, coerente, enquanto o próprio ato da performance narrativa interpela

um círculo crescente de sujeitos nacionais” (BHABHA, 2003, p. 2017).

Para a análise dessas questões recorremos às noções de “comunidade” e

sujeitos “supérfluos”, propostas por Zygmunt Bauman, e de “comunidade imaginada”

(Benedict Anderson) e de “imaginação” como “fato social coletivo” (Arjun Appadurai).

Na representação da questão imigratória, sobressaem na narrativa os elementos

relacionados aos aspectos culturais das diversas etnias. Portanto, no terceiro capítulo

nos centramos na análise desses elementos. O romance apresenta uma grande

diversidade de costumes das diferentes etnias que habitam a villa narrada, porém um

deles ganha destaque que é a questão dos usos das religiosidades por parte dos

personagens. Em nossa análise, apontamos que tais estratégias culturais surgem como

um importante fator para demarcar a relação desses indivíduos com o território. Para

problematizar o papel do território nesse contexto faremos uso dos estudos de Rogério

Haesbaert, e para dar conta dos usos da religiosidade nos espaços narrados fazemos uso

dos estudos de Pablo Semán, María Julia Carozzi e Rita Laura Segato.

O quarto e último capítulo trata da análise das estratégias narrativas e

discursivas para a criação do assentamento informal fictício Villa del Señor. Aí nos

deteremos nos mecanismos utilizados pelo autor que transita entre as esferas do literário

e do jornalismo, e nos propomos pensar a importância do real para a construção da

narrativa. Para essas questões nos utilizamos das concepções de “arquivo”, de Roberto

González Echevarría, dos aportes referente às “literaturas do presente”, de Josefina

Ludmer. Mostram-se ainda fundamentais para a nossa leitura dois conceitos de

Florencia Garramuño: o de inespecificidade e o de porosidade da arte.

Esses aportes teóricos foram fundamentais para a elaboração dessa análise,

porém outros apareceram no decorrer dessa dissertação, contribuindo também para

pensar o texto e reforçando os conceitos aqui utilizados.

Essa pesquisa parte de duas hipóteses iniciais: os escritores que buscam na

literatura atual narrar às cidades se lançam no desafio de dar conta de uma realidade na

qual os fluxos populacionais geram identidades e territórios complexos, e devido a

heterogeneidade desses sujeitos e espaços os escritores já não podem utilizar-se dos

mesmos padrões narrativos dos romances tradicionais. Por isso, recorrem a novas

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formas de narrar, criando textos em que a separação entre o real e ficcional não pode ser

percebida facilmente, porém muito mais que trazer para as suas narrativas a diluição das

fronteiras entre o real e o ficcional, estas categorias se mesclam, criando a porosidade da

narrativa, como definido por Garramuño.

A segunda hipótese que nos motivou para a análise de dita obra está

relacionada com a forma como os personagens aparecem representados. Nesse romance,

onde configura-se a visão de uma cidade multicultural, pressupomos que as práticas

culturais que ocorrem dentro do espaço são mecanismos que buscam a apropriação e

reivindicação do território, e que nas villas portenhas o principal fator para realizar essa

estratégia é a religiosidade como marca de identificação de suas comunidades

originárias.

Ainda com relação à escrita desse trabalho, cabe dizer que optamos por utilizar

no corpo do texto os fragmentos do livro no idioma original, para proporcionar ao leitor

o contato direto com o romance. Os trechos do romance estarão traduzidos nas notas de

rodapé desse trabalho.

Referente às citações teóricas e críticas estas estarão traduzidas no corpo do

texto, e na nota de rodapé se encontrará a transcrição no idioma original em que foram

consultadas. Acreditamos que dessa forma a leitura se tornará mais objetiva. No caso da

entrevista realizada com o autor da obra, são transcritos os trechos da mesma na versão

original e sem a tradução , na intenção de não trazer uma interpretação que não esteja de

acordo com a fala de Cristian Alarcón.

Assim, acreditamos que o presente trabalho se justifica por trazer como objeto

um romance que desafia os parâmetros tradicionais de dito gênero, ao mesmo tempo em

que traz questões que se destacam na realidade da cidade contemporânea, dialoga com o

cânone literário hispano-americano, e estabelece que para narrar essa cidade

contemporânea faz-se necessário embaralhar as fronteiras do real com o ficcional e

voltar o olhar para as periferias.

Cabe ressaltar, que até a presente data o romance si me querés quereme transa

ainda não foi objeto de trabalho acadêmico, a maioria dos artigos relacionados ao texto

se atem à questão da violência e do tráfico de drogas, tema esse que não foi o abordado

nessa dissertação.

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Esperamos, portanto que esse trabalho contribua para pensar através da análise

do romance Si me querés quereme transa como os escritores latino-americanos têm

recorrido a diversas técnicas para narrar à complexidade das cidades contemporâneas e

principalmente como a literatura vem se transformando, rompendo paradigmas e

paradoxalmente os escritores mantém vínculos com a própria tradição dessa literatura.

Acreditamos também que embora o livro se proponha a narrar à realidade das

villas/favelas argentinas, em muitos aspectos podemos realizar uma análise comparativa

com alguns textos da literatura brasileira, que também vêm apresentando uma

necessidade de narrar às cidades e os sujeitos e territórios denominados de periféricos.

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1. VILLA DEL SEÑOR NO CENTRO DA NARRATIVA: A REPRESENTAÇÃO

DOS TERRITÓRIOS PERIFÉRICOS

Dentro de nós.

Guarda estes nomes: bidonville, taudis, slum,

with-town, sanky-town,

callampas, cogumelos, corraldas,

hongos, barrio paracaidista, jacale,

cantegril, bairro de lata, gourbville,

champa, court, villa miseria,

favela.

Tudo a mesma coisa, sob o mesmo sol,

por este largo estreito do mundo.

Isto consola?

É inevitável, é prescrito,

lei que não se pode revogar

nem desconhecer?

Não, isto é medonho,

faz adiar nossa esperança

da coisa ainda sem nome

que nem partidos, ideologias, utopias

sabem realizar.

Dentro de nós é que a favela cresce

e, seja discurso, decreto, poema

que contra ela se levante,

não para de crescer.

Carlos Drummond de Andrade

Iniciamos esse trabalho com um trecho da obra “Favelário nacional”, de Carlos

Drummond de Andrade, pois ele demarca o tema que é abordado nessa pesquisa: a

representação dos territórios periféricos.

Drummond associa as diferentes manifestações do fenômeno pelo mundo

afora, transcrevendo os distintos nomes que podem ser encontrados para referir-se a tais

espaços. As favelas apresentam muitas características similares, o que faz com que

algumas discussões sobre esses locais sejam recorrentes, o que é sinalizado no poema.

Podemos mencionar a falta de estrutura, concentração de pessoas menos favorecidas, e

ainda o fato de que, segundo o senso comum, é o território com maiores índices de

violência.

Destacamos que embora as favelas apresentem características que as

aproximam, há nesses territórios particularidades e variáveis que dependem do local

geográfico que ocupam e do momento histórico em que foram criadas. Deste modo, foi

a partir da observação da complexidade existente nas villas da Capital Federal e do

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Conurbano Bonarense que o autor do romance Si me querés quereme transa criou a

Villa del Señor, palco de uma trama de muita complexidade e das ações de muitos

atores que darão corpo à trama:

Villa del Señor se extiende a lo largo y ancho de treinta manzanas. De formas

irregulares, atravesadas por arbitrarios pasillos angostos, sus terrenos fueron

ocupados por los inmigrantes que llegaron a Buenos Aires a partir de la década del

cincuenta. Las viejas fotos del archivo Histórico de la Ciudad muestran los baldíos

en el lugar donde hoy se levantan desordenadas construcciones. (ALARCÓN, 2012,

p.57)3

Assim como acontece em outros textos da literatura latino-americana, não se

pode percorrer concretamente as ruas da Villa del Señor ou mesmo identificar suas

coordenadas em nenhuma das atuais villas da cidade de Buenos Aires. Evidentemente

não é possível delimitá-la em algum momento histórico da contemporaneidade e isto se

dá porque o espaço onde transcorre a narrativa é marcadamente ficcional.

A partir da criação deste território, Cristian Alarcón trava um diálogo com

obras canônicas como Pedro Páramo, de Juan Rulfo, e Cem anos de solidão, de Gabriel

García Márquez. Em Comala e Macondo a imagem da cidade remete povoados que

seriam afetados pelo processo de industrialização e massificação (ROMERO, 1976). O

que acontece em Villa del Señor é uma imagem oposta porque apresenta uma grande

presença de aspectos de uma cultura pré-moderna e não urbana na cidade atual, trazendo

para a cidade narrada a situação de muitos imigrantes que deixam seus lares para tentar

uma vida melhor na capital de seus países ou nos centros urbanos de países vizinhos,

levando consigo toda uma bagagem cultural que impactará no espaço receptor.

Em outras palavras, enquanto Pedro Páramo e Cem anos de solidão tratam de

abordar na literatura os fluxos migratórias de meados do século XX, Alarcón trará para

a literatura a questão das imigrações atuais e suas consequências na cidade do século

XXI. Cabe a reflexão de que a villa/favela criada por Alarcón é habitada principalmente

por imigrantes oriundos dos países limítrofes e andinos. Nesse e sentido o território

ocupado apresenta as diversas estratégias e conflitos dos diferentes habitantes desse

local, o que será retomado nesse trabalho posteriormente com um maior detalhamento.

3 A Villa Del Señor estende-se ao longo de trinta quarteirões, de forma irregular, arbitrária e atravessada

por corredores estreitos. Suas terras foram ocupadas por imigrantes que chegaram a Buenos Aires no

início dos anos cinquenta. Fotos antigas do Arquivo Histórico da Cidade mostram os terrenos baldios

onde hoje levantam-se desordenados prédios.

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A Villa del Señor poderia ser lida então como uma Macondo ou Comala

moderna, embora, para sua criação, o procedimento seja bastante distinto do utilizado

para a criação das cidades nas obras canônicas referidas (Cem anos de solidão e Pedro

Parámo). Enquanto nestas obras as cidades representadas inserem-se no campo da

fantasia, utilizando-se de elementos fantásticos ou sobrenaturais como os que

predominam no realismo mágico, a villa de Alarcón apresenta muitos dados da

realidade atual para a invenção desse espaço, como trataremos no último capítulo dessa

dissertação.

Outro ponto de análise seria a questão familiar, que surge como importante

elemento, ora para dar início à trama como em Pedro Parámo, onde é a busca do pai

que lança Juan Preciado rumo à cidade desconhecida, ora para demarcar o movimento

cíclico que ocorre na história da família dos Buendía de Cien años de soledad. Na Villa

del Señor também a questão familiar ganha espaço para estabelecer a importância do

agrupamento dos novos imigrantes. E isto é dado a partir dos laços forjados entre os

conterrâneos e da criação de redes seguras de relacionamento que transcendem as

fronteiras nacionais.

Podemos prosseguir com a nossa breve análise comparativa, estabelecendo

que, se em Cien años de soledad foi necessário agrupar os membros da família, por ser

tão numerosa em uma árvore genealógica, no caso de Si me querés quereme transa, os

personagens também serão alocados em um esquema organizador, pois agora o que se

pluraliza é a nacionalidade dos que habitam as villas/favelas da cidade de Buenos Aires.

E essa estratégia faz-se necessária para a organização dos grupos que articulam o tráfico

de drogas dentro dessa villa.

A antropóloga María Cristina Cravino, ao analisar algumas das villas do

Conurbano Bonarense, sinaliza que “para todo grupo humano, o controle de um

território é origem de poder desde o momento em que o território possui propriedades

susceptíveis de ser tratadas como recurso” (2009, p.29) E complementa afirmando que

“o lugar pode ser fonte de identificação de um grupo, porém requer que este seja capaz

de converter o local em fonte de prestigio do grupo e organizar normas comuns ao redor

do pertencimento local” (2009, p.29). Segundo Cravino, o território ainda funciona

como uma importante via de integração “o bairro (podemos ler a villa) pode constituir-

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se em um dos principais vínculos sociais para certos grupos em certas conjunturas”

(CRAVINO, 2009, p. 29).4

A Villa del Señor exemplificará essa análise exposta pela autora no que tange à

apropriação do território, e traz para a literatura argentina atual a representação desses

conflitos. Vale ressaltar que os territórios periféricos e seus sujeitos, em muitos

momentos, foram representados na literatura argentina, porém ocupando um espaço

secundário. Em 1956, Bernardo Verbistk, pela primeira vez, denomina esses espaços de

villa miseria em seu livro Villa miseria también es América e desloca a representação

da favela para o centro da narrativa.

Nesse romance, Verbistk trata os problemas que ocorriam nas villas na década

de 60, as políticas públicas de erradicação desses espaços e as dificuldades encontradas

pelos novos moradores ao se instalarem nas zonas periféricas. Naquele momento, o

autor trazia para o campo da representação literária as estratégias utilizadas pelos novos

habitantes para instalar-se nesse novo espaço: como se relacionavam, como deveriam

agir para sobreviver e resistir às diversas ações de repressão policial.

Cravino (2009,p.183) sinaliza que essa obra poderia ser chamada de “romance

jornalístico” por ser “uma boa imagem do que significava a vida em uma villa nessa

época. Estabelece também a vida da classe trabalhadora e a transição da vida campestre

á proletária” 5 e a concentração dessas pessoas na nova cidade.

A Argentina que Verbistk narra é bem diferente da que vamos encontrar nas

narrativas mais recentes sobre as villas de Buenos Aires. O processo de formação de

cada villa demarca suas especificidades com respeito aos primeiros assentamentos

informais, tanto no que se refere aos materiais usados para a construção quanto nas

formas de convivência dentro do espaço e relação com os que se encontram fora da

villa. Isto foi devidamente sinalizado pela autora quando esclarece que:

Há transformações na sociabilidade desde o início de surgimento de cada uma das

favelas ou assentamentos até a atualidade, porém particularmente nas favelas

4 “Para todo grupo humano, el control de un territorio es origen de poder desde el momento en que el

territorio posee propiedades susceptibles de ser tratadas como recurso... el lugar puede ser fuente de

identificación de un grupo, pero requiere que éste sea capaz de convertir lo local en fuente de prestigio del

grupo y organizar normas comunes alrededor de la pertenencia local… el barrio puede constituirse en

unos de los principales vínculos sociales para ciertos grupos en cierta coyunturas.” (CRAVINO, 2009, p.

29) 5 “... una buena imagen de lo que significa la vida en una villa en esos momentos, como así la vida de la

clase obrera y la transición de la vida campesina a la proletaria.” (CRAVINO, 2009, p. 183)

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também aumentou geometricamente a densidade, a quantidade de população, e

variou a origem dos imigrantes, por tanto não há dúvida de que os laços não são os

mesmos. (CRAVINO, 2009, p. 30)6

Para destacar apenas algumas das obras que abordam essa temática,

sinalizamos cronologicamente Villa Celina, de Juan Diego Incardona, La Villa, de

César Aira, La 31, una novela precaria, de Ariel Magnus, Cuando me muera quiero que

me toquen cumbia, de Cristian Alarcón, Villa 31, la historia de un amor invisible, de

Demian Konfino, Si me querés quereme transa, de Cristian Alarcón, entre outras.

Embora tenham como cenário os mesmos espaços (os territórios denominados

periféricos da capital e do Conurbano Bonaerense) apresentam escritas heterogêneas em

que a experiência individual do autor torna-se um ponto chave para a leitura dessas

narrativas.

Esses escritores trazem à cena literária a narração das periferias e de seus

sujeitos, contudo não mais de forma secundária, e sim como elemento central. A villa

miseria aparece como principal personagem de seus textos. Em seguida, realizaremos

um rápido percurso nas obras mencionadas, para destacar os principais pontos dentro de

cada narrativa e analisaremos mais detalhadamente a última publicação de Cristian

Alarcón. Afinal o que pretendemos demarcar é a diferença entre Si me querés quereme

transa e os demais textos selecionados que narram às villas contemporâneas.

Estes escritores apresentam um novo horizonte de sentidos e experiências

vividas que alimentam suas obras e criam um complexo sistema de texto. Para Vanoli e

Vecino estas narrativas podem ser chamadas de dispares e heterogêneas tanto em termos

de tradição literária quanto em sua relação com os processos históricos. Mesmo

apresentando características e temáticas comuns, estas obras não obedecem a um padrão

estético homogêneo (VANOLI, VECINO, 2009-2010, p.259).

Diferentemente do que ocorre no campo da literatura brasileira, embora se

encontre na literatura argentina uma vasta produção de obras que narrem as periferias e

seus sujeitos, não constatamos até o momento nenhum movimento que se assemelhe ao

que ocorreu no Brasil conhecido como Literatura Marginal. Os livros que se inserem

nessa denominação apresentam como fator de importância a vivência do escritor dentro

6 “Hay transformaciones en la sociabilidad desde los comienzos del surgimiento de cada una de las villas

o asentamientos hasta la actualidad, pero particularmente en las villas también aumentó geométricamente

la densidad, la cantidad de población, y varió el origen de los migrantes, por lo que sin duda los lazos no

son los mismos.” (CRAVINO, 2009, p. 30)

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dos espaços periféricos que lhe asseguram a autoridade para narrar esses territórios e

podem ser identificados como, por exemplo, em obras como Cidade de Deus, de Paulo

Lins, ou Capão pecado, de Ferréz (PATROCÍNIO, 2016).

Mesmo encontrando diversas obras em que a experiência do escritor aparece

como fator de importância para a narrativa, reiteramos a impossibilidade de identificar

um movimento parecido ao que ocorre no Brasil.

Na Argentina, em sua grande maioria, as obras atuais que narram às favelas

continuam sendo escritas por intelectuais e os escritores da literatura recente apresentam

uma característica importante para pensar essas narrativas, conforme destaca Beatriz

Sarlo: “Os novos gêneros jornalísticos são decisivos na formulação de narrativas sociais

e na própria produção de uma categoria especializada de escritor: o jornalista moderno,

repórter, entrevistador, cronista” (SARLO, 2006, p. 36-37)7, estes lançam mão de vários

e distintos recursos para dar voz e vida às favelas e a seus sujeitos. Os autores transitam

pela antropologia, etnografia, sociologia, psicologia, pelos arquivos, pela experiência

pessoal e podem ou não ter tido profundo contato com as favelas narradas, como em La

31, de Ariel Magnus, como veremos a seguir.

Retomando as obras mencionadas, cronologicamente temos La villa, de Cesar

Aira (2001), o escritor traz para a cena literária com seu estilo de escrita que não atende

à linearidade para estruturar a narração da favela a partir do mundo dos catadores de

papelão, chamados na cidade de Buenos Aires de “cartoneros”. Aira apresenta a villa

com uma descrição quase etnográfica sobre a atividade de catar papelões, através do

olhar de um personagem que decide ajudá-los na tarefa diária. A obra surge com

elementos que se mesclam entre a realidade do cotidiano e a fantasia, num registro em

que não ocorre a separação clara entre um ponto e o outro. Embutindo nas linhas de seu

texto uma leitura enigmática das favelas e dos sujeitos que passam a ocupá-la. Estes

aparecem nas ruas da cidade, no final da década de 90 com o agravamento da crise.

Segundo a análise de Cravino, a descrição dessa favela e seus personagens

termina por delimitar tais espaços com “estereótipos clássicos de uma favela... os

narcotraficantes, empregadas domésticas, policiais, imigrantes” (CRAVINO, 2009, p.

7 “Los nuevos géneros periodísticos son decisivos en la formulación de narrativas sociales y en la

producción misma de una categoría especializada de escritor: el periodista moderno, repórter,

entrevistador, cronista” (SARLO, 2006, p. 36-37)

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185).8 O autor ambienta sua história na villa 1-11-14 situada na zona sul do bairro de

Flores na cidade de Buenos Aires, que é mais conhecida como Bajo Flores. Com essa

narrativa, Aira visibilisa um fenômeno social que ocorre nos anos 90, época em que se

observa o aumento e a circulação dos sujeitos dedicados a essa atividade na cidade, a

qual é vista com mais intensidade devido à crise enfrentada pelo país.

No ano de 2003, Cristian Alarcón publica Cuando me muera quiero que me

toquen cumbia. Esta publicação leva para o campo literário a representação do espaço

periférico a partir da realidade de adolescentes que se envolvem com o mundo do delito.

O livro centra-se na vida de jovens que entram a prática das infrações delitivas e na

relação que estabelecem com o bairro.

A villa/favela retratada demarca os valores que eram importantes para os

moradores desse espaço localizado na zona norte do Conurbano, em San Fernando. O

bairro aparece como local da comunidade, onde os moradores compartem um

sentimento quase familiar pelos que nele habitam: protegem-se entre si, os mais novos

respeitam os mais velhos e há códigos de conduta que variam de grau, mas impedem,

por exemplo, que sejam cometidos roubos contra os que compartilham do mesmo

território, a história é ambientada na década de 90. Esse livro terá uma importância

central para a criação do romance do autor, objeto dessa pesquisa, e, portanto

retomaremos a essa análise, de forma mais detalhada, posteriormente.

Villa Celina (2008), de Juan Diego Incardona, apresenta uma forte carga de

subjetividade e experiência pessoal do autor, que nasceu e passou boa parte de sua

juventude morando na favela narrada. Villa Celina situa-se no município La Matanza na

província de Buenos Aires e é o espaço retratado conforme comentam Hérnan Vanoli e

Diego Vecino, ao analisar a obra: “aqui, o Conurbano é escrito com a gramática do

bairro, do contato primário e local, quase familiar” (2009-2010 p. 270).9

Observa-se que o escritor constrói a narrativa a partir de uma visão bastante

romantizada da favela. Neste espaço, as lembranças são recuperadas com carinho e certa

nostalgia, não apenas do bairro, mas principalmente de uma época que trazia uma

8 “estereotipos clásicos de una villa... los narcotraficantes, empleadas domésticas, policías, inmigrantes”.

(CRAVINO, 2009, p. 185) 9“aquí, el conurbano se escribe con la gramática del barrio, del contacto primario y local, casi hogareño.”

(VANOLI, VECINO, 2009-2010 p. 270)

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sociabilidade e a presença de valores simbólicos. Desse modo, a história ambientada

entre os anos 70 e 80 remete a muitas memórias do próprio escritor.

Quatro anos mais tarde, teremos a publicação de La 31, una novela precaria

(2012), de Ariel Magnus. Como antecipado no próprio título é um romance precário que

traz a narrativa de várias cenas da favela, de forma radicalmente fragmentada. Numa

fatura ficcional, as histórias e personagens vão desenhando uma villa/favela que

representa o imaginário de muitas pessoas que não conhecem esses espaços. Nem

mesmo o fato de apresentar o nome de uma conhecida favela de Buenos Aires ou ainda

de trazer na capa do livro uma imagem da Villa 31,10

(localizada ao leste da cidade de

Buenos Aires, no bairro Retiro) desfazem a ideia de que a favela representada por

Magnus é ficcional. A chave de leitura desse texto é a própria fragmentação da

narrativa.

Dessa forma, os relatos das diferentes personagens muitas vezes não são

fechados e não obrigatoriamente retomados. O texto configura-se de modo não linear, e

sua fragmentação surge como opção estética para representar a heterogeneidade dos

próprios espaços periféricos e de seus sujeitos, e evidenciar os muitos discursos

existentes sobre as periferias e o Conurbano Bonaerense.

No mesmo ano, teremos a publicação de outra obra que novamente traz como

título a emblemática favela de Buenos Aires, La Villa 31, la historia de un amor

invisible (2012). É conhecida como novela histórica, pois remete ao início das ações de

ocupação dessa favela e na atualidade vem sendo alvo de muitos discursos conflituosos

devido à percepção de que seu crescimento transformou e vem transformando a cidade.

Neste livro, a história é contada a partir das lutas sociais que os moradores

travam com os meios políticos para reivindicar melhorias. A imigração aparece como

fator importante para ler os personagens e como em Villa Celina a visão derivada da

experiência do autor tem grande relevância. Cabe dizer que Demian Konfino trabalha

10

A Villa 31 é considerada uma das maiores favelas da Argentina. Situa-se nas imediações do Centro da

cidade de Buenos Aires. É comum que a imprensa se refira a ela como uma das mais antigas do país. Sua

origem é estimada por volta de 1930. Inicialmente, era denominada “Villa Desocupación”. Ao longo das

décadas, foi cenário de muitas lutas sociais e disputas com distintos governos que pretendiam erradicá-la.

Seu processo de urbanização iniciou-se em 2010. Na atualidade encontramos também uma denominação

específica para uma parte dessa favela que cresceu formando novos assentamentos: a 31 Bis. Devido a

sua localização, a Villa 31 e a Villa 31 Bis representam um contraste com os suntuosos prédios da cidade

que crescem ao lado das casas humildes desse território periférico.

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realizando um serviço voluntário e de militância em um refeitório popular comunitário

dentro dessa favela.

De alguma forma, esse espaço surge para demarcar no romance a importância

do trabalho em comunidade e das lutas que os moradores realizam diariamente para

conseguir melhores condições de vida. Cabe ainda ressaltar que tanto no livro de

Magnus quanto no de Konfino aparecem na capa fotos da Villa 31, o que leva o leitor a

associar a descrição dos personagens e fatos do texto literário à realidade encontrada

nessa favela.

É interessante destacar que podemos encontrar um diálogo entre as três obras

mencionadas que narram os problemas sociais existentes dentro das favelas

representadas: Villa miseria también es América, La 31 de Magnus e no livro de

Demian Konfino. Nelas encontraremos uma cena recorrente na qual os moradores

discutem sobre os problemas sociais e quais estratégias deveriam tomar para solucionar

esses problemas. Em La 31 de Magnus, o destaque é que os problemas surgem como os

próprios sujeitos e a Miséria, a Fome, entre outros, ganham voz e se convertem em

personagens alegóricos no capítulo que leva o nome de “Alegoría miseria”11

.

No mesmo ano Cristian Alarcón publica o romance objeto desse trabalho, Si

me querés quereme transa, que como mencionamos, diferencia-se das demais obras por

criar uma favela absolutamente ficcional. Nela, a questão da imigração recente, seus

conflitos e estratégias, trazem para o campo da representação a questão das cidades

atuais e suas aglomerações informais. Como destaca Sarlo, “a cidade crioula foi de

barro, a cidade moderna foi de tijolo e cimento, a cidade tugurizada é de amianto”

(2009, p. 71).12

Esta interessante observação de Sarlo nos permite pensar na própria

representação desses espaços levando em conta o próprio material usado ao longo dos

anos que demarcam o processo de industrialização e formação das grandes cidades. O

termo “tugurizar” refere-se às precárias casas que foram tomando as cidades e

consequentemente à criação das periferias que historicamente concentram um grande

11

Para uma análise mais detalhada desse fragmento do livro de Ariel Magnus, consultar a dissertação de

mestrado de Renata Dornelles Lima, intitulada La 31 e os limites da forma: Imaginários urbanos,

fragmentação e inespecificidade do discurso na literatura Argentina. 12

“La ciudad criolla fue de barro, la ciudad moderna fue de ladrillo cocido y cemento. La ciudad

tugurizada es de chapa” (SARLO, 2009, p. 71).

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número de pessoas desfavorecidas e na atualidade é perceptível pela própria construção

das casas nas favelas, aglomeradas e feitas em sua grande maioria com telhados de

amianto. Em outras palavras, narrar às cidades atuais é narrar as favelas nas substâncias

de que são feitas.

Nesse sentido os espaços periféricos colocam tanto o território quanto os

sujeitos dentro de um discurso que busca homogeneizar as diferenças existentes nessas

periferias. Os indivíduos que habitam esses espaços são constantemente alvos dos mais

diversos discursos que os colocam ocupando um espaço de inferioridade. Para o teórico

Marcuse (2004, apud CRAVINO, 2009, p.34) essas questões são definidas como

“processo de segregação”13

definido por ele como:

aquele onde um grupo populacional é forçado involuntariamente a aglomerar-se em

uma área espacial definida em um gueto. Por tanto, este se forma e se mantém

graças à ação adotada pelas forças dominantes da sociedade para separar, delimitar

um determinado grupo populacional, externamente definido como racial, étnico o

estrangeiro; tratado y assumido como “inferior”. (MARCUSE, 2004, apud

CRAVINO, 2009, p.34)14

No caso da Argentina, esse espaço de inferioridade na atualidade é associado

aos territórios periféricos que são conhecidos como villas miseria ou assentamentos

precários. Em sua maioria são ocupados pelos imigrantes limítrofes e andinos que

seriam, numa observação estratificada em classes sociais, o grupo mais subalterno da

sociedade.

Em seu conhecido livro Os condenados da cidade, Loic Wacquant já nos

apontava a importância de pensar nas diferenças desses espaços. E neste sentido, as

favelas ou periferias da França, do Rio, São Paulo ou Buenos Aires não são uma mesma

coisa.

É comum, devido à grande imigração de países próximos e andinos, a

denominação da villa a partir da nacionalidade majoritária presente em determinado

espaço. Um exemplo disto seria a identificação de certos territórios como “a villa dos

peruanos”, “dos paraguaios”, “dos argentinos” ou “dos bolivianos”. Com isso, é

13

“… proceso de segregación.”( MARCUSE, apud CRAVINO, 2009, p.34) 14

“… aquel donde un grupo poblacional es forzado involuntariamente a aglomerarse en un área espacial

definida en un gueto. Por lo tanto, éste se forma y se mantiene gracias a la acción adoptada por las fuerzas

dominantes de la sociedad para separar y limitar un determinado grupo poblacional, externamente

definido como racial, étnico o extranjero; tratado y asumido como «inferior».” (MARCUSE, apud

CRAVINO, 2009, p.34)

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possível verificar diferentes experiências dentro de cada território periférico e distintas

formas de uso e apropriação desses espaços.

A Villa del Señor traz para o campo da representação os conflitos existentes

entre as diversas etnias que ocupam a cidade, mas também apresenta essa favela como

espaço de sociabilidade entre essas pessoas. A trama desenvolve-se a partir das brigas e

disputas pelo poder, o que é observado a partir do domínio do tráfico dentro da favela.

Tais conflitos ocorrem entre os diferentes grupos étnicos: a quadrilha dos bolivianos e a

dos peruanos que travam verdadeiras guerras para a conquista desse espaço.

Esses conflitos representados na trama são constante na realidade argentina, e

os meios de comunicação fazem a cobertura desses episódios de disputas pelo poder

dentro das diversas villas. O escritor reúne as várias nacionalidades e traz para o campo

da representação esses embates.

Cabe estabelecer a análise de Appadurai (1996, p. 36) em que “a realidade do

pensamento etnoterritorial’’ faz com que os indivíduos criem uma “discriminação entre

as diferentes categorias de cidadãos, ainda que todos ocupem o mesmo território”.

De volta à nossa obra, podemos dizer que a Villa del Señor é a grande

personagem do romance. Trata-se de um território complexo habitado por imigrantes de

diversos países que trazem consigo as mais variadas histórias. Essas surgirão em um

primeiro momento, de forma fragmentada e parecem não ter relação umas com as

outras. Porém, no decorrer da narrativa, percebemos que todas elas desenham e dão vida

a esse espaço narrado.

Desse modo, essas histórias traçam o desenho da própria favela, com suas

complexidades territoriais e étnicas, sendo a nacionalidade um ponto de importância

dentro desses espaços. As diversas práticas culturais aparecem como importante fator

para ler os indivíduos dentro da Villa del Señor. Como sinalizado anteriormente, estes

são denominados diversas vezes a partir de suas nacionalidades e agrupar-se-ão em

micro territórios, divididos de acordo com a identificação de seu país de origem.

O que nos lembra Cravino (2009, p. 28, 29) é que ao instalar-se na villa e

construírem micro- territórios esses locais “podem funcionar como uma via que permite

criar vínculos sociais para determinados grupos em determinados momentos”. E em

diálogo com este pensamento, Haesbaert (1999, p.22) conclui que desta forma fica

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comprovada “a capacidade dos grupos humanos de recriar espaços múltiplos de

sociabilidade.”

Para Ludmer (2010, p.131), esses micro territórios além de demarcarem a

criação de espaços de sociabilidade e de manutenção das diferentes culturas encontradas

na villa miseria podem ser entendidos como “ilhas urbanas” (2010, p. 121). Deste

modo, nos permitem verificar que o crescimento das favelas faz com que a cidade atual

pareça fragmentada. Há uma força dicotômica entre centro e periferia que cria um

movimento tensional, mas percebe-se que a separação desses espaços tem sido vista

como estando cada vez menos rígida como destacamos no próprio romance:

Aunque las zona se devaluó. Algunas de esas casas aún lucen los detalles de esos

tiempos de abundancia y esplendor europeo, a pocas cuadras del lugar ahora

ocupado por trabajadores peruanos, paraguayos, bolivianos y argentinos. La ciudad

creció y la frontera entre Villa del Señor y “el barrio “se hizo laxa”. (ALARCÓN,

2012, p. 62)15

A mobilidade da fronteira existente entre a favela e a cidade é um ponto de

relevância para pensar a relação entre esses dois locais. Os espaços periféricos são

constantemente associados à marginalidade e sofrem vários estigmas negativos que

foram identificados por Wacquant como “áreas a serem evitadas, profusas em crimes,

em marginalidade e em degeneração moral, onde se pressupõe que habitem apenas

membros inferiores da sociedade” (2001, p. 32).

Com o passar dos anos, as villas/favelas vão ganhando espaço e ocupando as

áreas mais centrais da cidade. Dessa forma, a barreira entre o centro e a periferia torna-

se visivelmente menor, a própria cartografia de Buenos Aires oferece uma experiência

de estreitamento entre esses dois polos. Assim, os conflitos entre os membros que

ocupam os dois espaços díspares tornam-se cada vez mais evidentes e os discursos

discriminatórios aumentam com relação a esses locais e seus habitantes.

Dessa forma, as diferentes nacionalidades presentes na obra trazem à cena

literária a realidade atual do grande fluxo migratório que se observa na Argentina. O

romance enfatiza essa questão, trazendo para o campo da narrativa tanto a

reconfiguração da urbe portenha quanto os conflitos e enfrentamentos originados pelos

15

“Embora a área tenha se desvalorizado. Algumas dessas casas ainda exibem os detalhes desses tempos

de abundância e esplendor europeo, a poucos quarteirões do lugar agora ocupado por trabalhadores

peruanos, paraguaios, bolivianos e argentinos. A cidade cresceu e a fronteira entre Villa del Señor e «o

bairro» se tornou frágil.” (ALARCÓN, 2012, p. 62)

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constantes fluxos imigratórios. Por tratar-se de uma narrativa contemporânea, na qual a

migração que está em foco é a andina e limítrofe.

Para entender os diversos conflitos e diálogos travados entre os grupos e entre

a sociedade receptora e os imigrantes faz-se necessário realizar um rápido percurso na

história da imigração argentina. Cabe enfatizar os aspectos da imigração atual que se

configura nos personagens da obra analisada e entender a relação entre a sociedade e

esses imigrantes. Ainda prosseguiremos com uma leitura das estratégias utilizadas por

eles para sua manutenção no novo espaço e veremos como essa questão aparece

representada na narrativa.

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33

2. BREVE PERCURSO PELA HISTÓRIA DA IMIGRAÇÃO NA ARGENTINA

O romance Si me querés quereme transa traz como habitantes da Villa del

Señor um conjunto muito diverso de personagens. Podemos identificar alguns deles e

suas nacionalidades: Leoncio Reyes, peruano, Alcira que demarca a complexidade das

identidades dos grupos imigratórios: “Argentina de nacimiento, Alcira era tan boliviana

y andina como cualquier paisano de su pueblo cercano de Cochabamba” (ALARCÓN,

2012, p. 226).16

Dona Mari, boliviana, e ainda há outros personagens que não têm seus

nomes próprios mencionados e sim são referidos através de suas nacionalidades como

por exemplo a argentina, a paraguaia, a peruana.

Como acontece com os personagens, os espaços e grupos também são

denominados pela nacionalidade “La canchinta de los paraguayos”, “El Rinconcito

boliviano” ou “la banda de peruanos”. Esses exemplos de descrição dos personagens e

de alguns espaços da favela estão presentes por todo o romance e assinalam a

importância que a nacionalidade, a origem dos personagens, assumem na obra: “el

boliche se llamaba Yuri y era el emprendimiento de una madraza ayacuchana casada

con un boliviano que alternaban los discos de sus patrias para una concurrencia siempre

andina” (ALARCÓN, 2012, p. 85).17

Essa villa traz como ponto central a questão das recentes imigrações na cidade

de Buenos Aires, portanto, faz-se necessário realizar um rápido percurso na história da

imigração argentina. Isto ajuda a entender a relação entre essa imigração e a sociedade

atual. Historicamente, a Argentina é um país de imigração com duas dinâmicas

migratórias: a transatlântica, que vai principalmente de 1880 a 1920, e a interna, que

teve forte impacto no país durante a primeira metade do século XX. Estes foram fluxos

populacionais importantes para a construção da realidade social, econômica e política

do país.

Como destacado por Gimson, a imigração transatlântica não tinha o único

propósito de aumentar rapidamente a população do país. O objetivo central era o de

16

“Argentina de nascimento, Alcira era tão boliviana e andina como qualquer compatriota de seu

povoado próximo de Cochabamba.” (ALARCÓN, 2012, p. 226) 17

“A boate se chamava Yuri e era o empreendimento de uma senhora ayacuchana casada com um

boliviano que alternavam as músicas de suas pátrias para una concorrência sempre andina.” (ALARCÓN,

2012, p. 85)

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“consolidar a influência civilizadora européia”18

(HALPERÍN apud GRIMSON, 2011,

p. 30). Essa consolidação da cultura européia será um fator de grande relevância para a

construção do relato nacional argentino bem como para a formação de toda a sociedade.

Conseqüentemente, ocorreu um rechaço e discriminação daqueles que não se

enquadram no modelo estabelecido. Em outras palavras, “na medida em que os Estados-

Nações existentes apoiam-se em alguma idéia implícita de coerência étnica como base

da soberania estatal, tendem certamente a transformar em minoria, degradar, penalizar,

assassinar ou expulsar aqueles que são vistos como minoria étnica” (APPADURAI,

1997, p. 44).

Com a diretriz de que “governar é povoar” estabelecida na constituição

argentina de 1853, o país nesse período começa a receber uma das maiores ondas

imigratórias da história moderna, totalizando aproximadamente seis milhões de

estrangeiros entre o final de século XIX e a metade do século XX.19

No ano de 1914, os

estrangeiros contabilizavam 30% da população total do país, sendo que 60% eram

residentes na cidade de Buenos Aires. Entre os anos de 1857 a 1940 a imigração

européia teve o maior incremento de pessoas, totalizando entre a população estrangeira

a maior porcentagem, sendo 51, 9% de italianos e 31, 5% de espanhóis.

Cabe lembrar que a industrialização do século XIX deu início a um processo de

urbanização, que no século XX apresenta seu máximo desenvolvimento. Esse fenômeno

foi observado em várias cidades de distintos países, demarcando a grande transição

urbana e a concentração de imigrantes nas grandes cidades. Cravino destaca as cifras

dessa mobilidade urbana e estas demonstram que:

no início do século apenas um oitavo da população mundial habitava as grandes

áreas urbanas, porém na segunda metade do século XX ocorreria a grande transição:

em 1950 moravam nas cidades 300 milhões de pessoas, em 1980 a cifra cresceu a

1.800 milhões e, para o fim da centúria, aproximadamente a metade da população

mundial (3 mil milhões) moraria nas cidade. A característica sobressalente foi que

dois terços dessa população se concentrava nos países menos desenvolvidos.

(CRAVINO, 2009, p. 15).20

18

Consolidar la influencia civilizadora europeia. 19

Todos os dados desse trabalho referente ao censo nacional da Argentina, foram obtidos pelo INDEC

(Instituto Nacional de Estadística y Censos, Argentina). Podem ser consultados pelo site oficial on line

http://www.indec.gob.ar/ ou pelo documento “Población y desarrollo inmigración contemporánea

argentina: dinámicas y políticas”. Dito documento se encontra na bibliografia desse trabalho. 20

“La industrialización del siglo XIX había iniciado un proceso de urbanización, que tendrá en el siglo

XX su máximo desarrollo. Se destacaba que, a principio del siglo, sólo un octavo de la población mundial

vivía en áreas urbanas, pero en la segunda mitad del siglo XX, tendría lugar la gran transición urbana: en

1950 vivían en ciudades 300 millones de personas, en 1980 la cifra creció a 1.800 millones y, para el fin

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Outro fator histórico importante para a consolidação dessa imigração no país

foi a Campanha da Conquista do Deserto argentino que teve início em 1878. Esta foi

responsável pela derrota e aniquilamento de tribos e povos que habitavam originalmente

esses espaços: foram devastados os Mapuche, os Ranqueles e os Tehuelche.

Essa empresa teve como principais consequências à adesão à soberania da

Argentina de uma grande área dos Pampas e da Patagônia (chamados Puelmapu pelos

mapuches) que até então era dominada pelos povos indígenas. Esses habitantes

vencidos sofreram a aculturação, a perda de suas terras e identidade para ser realocados

pela força em reservas indígenas ou transferidos para servir como mão de obra de

trabalho forçado.

Esse episódio gera diversas discussões e diferentes visões sobre a Campanha.

Por um lado, teremos discursos que defendem que essa conquista era necessária para o

desenvolvimento do plano de progresso do país. Outros que consideram um dos maiores

crimes contra a humanidade.

O fato, em nossa visão, está relacionado ao apagamento do reconhecimento das

culturas dos povos originários e reflete-se no preconceito e rechaço que pode ser

observado até os dias atuais na sociedade argentina. Há um processo discriminatório

contra aqueles que possuem traços característicos desses grupos indígenas, reafirmando

o projeto homogeneizador do mito fundacional argentino.

Dois livros importantes da literatura argentina trazem a questão desse projeto

de Nação, e tais textos foram importantes para a consolidação do relato nacional,

Facundo e Martín Fierro, neles a oposição e a figura do gaucho surgem como

importante fator para pensar a identidade nacional argentina.

Facundo, civilização e barbárie de Domingo Faustino Sarmiento, considerado

um dos principais livros da literatura argentina e latino-americana traz além de seu valor

literário, uma análise do desenvolvimento político, económico e social da América do

Sul, a sua modernização, sua diversidade potencial e cultural. Como indicado pelo seu

de la centuria, cerca de la mitad de la población mundial (3 mil millones) viviría en ciudades. La

característica saliente fue que dos tercios de esa población se concentraba en países menos desarrollados.”

(CRAVINO, 2009, p. 15)

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título, o escritor, analisa os conflitos que surgiram na Argentina uma vez alcançada a

independência política em 1816, com base na contradição entre civilização e barbárie.

Martín Fierro é um poema narrativo, escrito em verso por Jose Hernandez em

1872, considerada gênero gaúcho exemplar da obra literária. .O personagem é um

trabalhador gaúcho que devido a injustiça social do contexto histórico se torna um

bandido (fora da lei). Narra independente, o caráter heróico e sacrificial do gaúcho. O

poema é, em parte, um protesto contra a política do presidente argentino Domingo

Faustino Sarmiento de recrutar a força gaúcha para ir para defender as fronteiras

internas contra os índios.

Portanto, na literatura, a oposição entre os pólos referentes à modernização

versus atraso, cidade versus campo pode ser verificada nessas obras clássicsa . O crítico

literário Carlos Gamerro nos sintetiza esse ponto com sua análise em Facundo o Martín

Fierro, los libros que inventaron la Argentina:

Desde seu título, Facundo está construido como sistema de disjunções; civilização e

barbarie, se desprendem outras: unitários e federais, Europa e América, Buenos

Aires e o interior, progresso e tradição, cidade e campo, representando sempre uma

o polo negativo e outra o positivo. (2015, p. 45)21

Alejandro Grimson (2011, p. 31) esclarece que a imigração européia passa a

ser parte fundamental para o projeto de modernização e industrialização do país, e “os

múltiplos traços xenófobos foram direcionados através do grande relato da

«argentinidade»”. Com isto, a “argentinização” desses imigrantes fazia parte do ideal de

progresso que estava diretamente vinculado ao projeto de nação da Argentina,

conformando o mito fundacional de nação majoritariamente branca, homogênea e

europeia (cf. 2011, p. 29, 30, 31).

Depois da crise econômica de 1930, o país sofrerá uma nova onda imigratória,

dessa vez o incremento de pessoas será do campo para a cidade. Na chamada imigração

interna há a concentração de um grande fluxo de migrantes para as áreas industriais.

Esta onda migratória instala-se em Buenos Aires, concentrando-se na cidade. Passa-se a

observar uma variedade de etnias e de diferentes formas de vida o que acarreta choques

culturais, políticos e étnicos.

21

“Desde su título, Facundo está construido como sistema de disyunciones; de la oposición fundamental,

civilización y barbarie, se desprenden otras: unitarios y federales, Europa e América, Buenos Aires y el

interior, progreso y tradición, ciudad y campo, representando siempre una el polo negativo y otra el

positivo.” (GAMERRO, 2015, p. 45)

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Diferentemente do que ocorreu com a imigração transatlântica, esses novos

habitantes em sua maioria provenientes do campo, sofreram grande rechaço por parte de

alguns membros sociedade. É nesse momento que surge a denominação “cabecitas

negras” que é uma forma de nomear de maneira preconceituosa e racista os novos

migrantes. Grimson nos alerta (2011, p. 31) que há um destaque negativo para as

características étnicas de uma população com a maior proporção de antepassados

indígenas, colonial espanhola e afro-argentinos.

Na atualidade, ainda usa-se esse termo para referir-se a qualquer imigrante que

apresente características físicas que se assemelhem aos povos originários, e o mesmo

continua possuindo uma carga pejorativa e discriminatória com relação aos migrantes

internos.

Percebe-se, nos dias atuais, o predomínio de termos como “bolitas” para os

bolivianos, ou “paraguas” para os paraguaios, “perucas” para os peruanos,

transformando-os a partir de uma visão homogeneizante em supérfluos, coisas,

esvaziando-se a importância humana dessas pessoas.

Durante o período de “massificação da cidade” (ROMERO, 1976), os

migrantes internos estabeleceram-se principalmente no chamado cinturão industrial de

Buenos Aires. O resultado deste processo é que “se observava mais pessoas nas ruas;

começou a ser difícil encontrar uma casa ou apartamento, começaram a aparecer

barracas em terrenos baldios, que logo se transformaram em bairros.” (ROMERO, 1976,

p. 349).22

Durante os anos de 1970 e 1980 a Argentina recebeu um grande número de

imigrantes do Sudeste Asiático que se concentraram nas grandes cidades e dedicaram-se

principalmente ao comércio. Na década de 1990, percebe-se um aumento de imigrantes

latino-americanos não vizinhos, como os peruanos, e o incremento de imigrantes

provenientes de países limítrofes.

No final dessa década, o país sofre uma grave crise econômica que teve seu

ápice no ano de 2001, e mesmo que os dados imigratórios não demonstrem um

crescimento alarmante dos imigrantes limítrofes e peruanos. Nessa época a sociedade é

22

“Se vio más gente en las calles; empezó a ser trabajoso encontrar casa o departamento; comenzaron a

aparecer viviendas precarias en terrenos baldíos, que muy pronto constituyeron barrios.” (ROMERO,

1976, p. 349)

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levada através de discurso do governo e da mídia a associar os problemas da crise aos

novos habitantes, seja por conta do aumento do desemprego e da criminalidade ou ainda

pelo crescimento das favelas.

É importante observar as cifras referentes a essa imigração: em 1991, 5% da

população estrangeira dividia-se em 3% de migrantes limítrofes e 2% dos migrantes de

outros países. A maioria dos imigrantes eram provenientes de países como Bolívia,

Paraguai, Uruguai, Chile e Brasil. Essa imigração é a que apresenta mais força nos dias

atuais na Argentina e em especial na cidade de Buenos Aires. (INDEC)

Os dados do censo nacional de população demonstram que os estrangeiros

provenientes de países limítrofes como Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai

apresentam uma imigração constante que varia entre 2% e 2,9% da população total do

país, como pode ser verificado no quadro em anexo nesse trabalho.23

Como podemos observar no quadro II,24

ao longo dos anos e principalmente a

partir da metade do século XX, a Argentina perde a relevância como destino prioritário

para os países europeus. Contudo continua sendo um pólo atrativo tanto para o Peru

quanto para os países limítrofes.

Podemos ainda observar no quadro III25

sobre a população estrangeira segundo

o país de origem realizado no último censo de 2001 que 67% da população imigrante

são de latino-americanos, sendo 88% de países limítrofes, conformando os paraguaios,

bolivianos e chilenos os maiores grupos, perfazendo um total de 50% de toda a

população nascida no exterior.

Entre os países não limítrofes, como dissemos anteriormente, destacam-se os

peruanos, que representam 5,8% da população. Os demais grupos imigratórios da

Europa representa um total de 28, 2 enquanto os de origem asiática um total de 1,9%.

(INDEC)

É a partir desses dados da imigração recente que pretendemos centrar a nossa

análise do livro Si me querés quereme transa, publicado no ano de 2001. Este apresenta

a realidade imigratória dos anos 1990 e 2000 bem como seu impacto em Buenos Aires,

23

Quadro de dados imigratório, anexo 1 desse trabalho quadro 1. 24

Dito quadro encontra-se no anexo 1 desse trabalho, quadro 2. 25

Encontra-se no anexo 1desse trabalho, quadro 3.

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seja na reestruturação da própria cidade contemporânea ou na forma como se configura

o imaginário urbano. Beatriz Sarlo sintetiza de forma muito eficaz todo esse processo

que explicitamos:

A Buenos Aires que imaginaram as elites e que, em parte, conseguiram construir,

tem um perfil cuja originalidade veio da combinação de diferentes modelos

tecnológicos, urbanísticos e estéticos. Como na cultura argentina, a originalidade

está nos elementos que entram na mistura, presos, transformados e deformados por

un gigantesco sistema de tradução. Buenos Aires é uma tradução da Europa, mas

não de uma única ideia de Europa, mas de muitas línguas e muitos textos urbanos

em conflito, refratada pelo dado inevitável de sua localização na América. Há tanta

imitação como bricolagem e reciclagem, de segunda e terceira mão. Buenos Aires,

obviamente não é nenhuma cidade europeia, mas o produto de uma vontade cultural

europeia em América. (SARLO, 2006, p. 29)26

Mesmo considerando que o projeto nacional de formação do Estado argentino

tenha sido efetuado a partir de uma “tradução da Europa”, como vimos historicamente a

imigração europeia foi parte fundamental para a consolidação do projeto idealizado de

um povo homogêneo. E as demais imigrações foram ao longo dos anos de diferentes

formas discriminadas, com a constância da imigração limítrofe, o governo e os

discursos midiáticos ajudaram a fomentar a visão de uma identidade negativa em

relação a esses imigrantes. Em sua maioria, estes são moradores das villas. Ao longo da

história, as distintas imigrações foram se concentrando na cidade de Buenos Aires,

formando vários assentamentos que hoje constituem o cinturão denominado Conurbano

Bonaerense. Nesse sentido: “a constituição do Estado-Nação pressupõe o isomorfismo

entre povo, território e soberania legítima, que se encontra ameaçado pelas formas de

circulação de pessoas características do mundo contemporâneo” (APPADURAI, 1997,

p. 35).

Portanto, os hábitos e discursos discriminatórios para com os diferentes grupos

de imigrantes ao longo dos anos na Argentina refletem a consolidação do projeto

homogeneizante de nação. Este se enraizou na sociedade e é percebido até os dias atuais

sendo hoje direcionado para a imigração mais expressiva que é a dos países fronteiriços

26

“La Buenos Aires que imaginaron las elites y que, en parte, lograron construir, tiene un perfil cuya

originalidad provino de la combinación de diferentes modelos tecnológicos, urbanísticos y estéticos.

Como en la cultura argentina, la originalidad está en los elementos que entran en la mezcla, atrapados,

transformados y deformados por un gigantesco sistema de traducción. Buenos Aires es una traducción de

Europa, pero no de una sola idea de Europa, sino de muchas lenguas y muchos textos urbanos en

conflicto, refractada por el dato inevitable su ubicación en América. Hay tanta imitación como bricolaje y

reciclaje, de segunda y tercera mano. Buenos Aires, obviamente no es ninguna ciudad europea, sino el

producto de una voluntad cultural europea en América.” (SARLO, 2006, p. 29)

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e andinos. Estes são representados no romance e sublinham os vários tipos de

preconceito com relação a esses grupos.

A antropóloga María Cristina Cravino nos sinaliza que essa estigmatização

gerou o que ela define de “identidade villera”. Embora o conceito de identidade seja

complexo para ser analisado na economia desse trabalho, parece-nos importante a

atribuição que ela faz, utilizando-se das considerações de Althade que descreve sobre as

minorias étnicas na França, mas que podem ser utilizadas para pensar os grupos

migratórios atuais na Argentina que estão presentes em toda a obra analisada. Assim é

que retomaremos a fala do autor sobre as minorias étnicas, as quais, segundo ele:

ocupam um lugar central nos jogos de comunicação que as pessoas colocam em

funcionamento no seu novo marco de vida: de maneira global, essas pessoas foram

convertidas em atores simbólicos fixados em um polo negativo, e o eixo central dos

intercâmbios reside na construção da diferença com respeito a eles, e na edificação

da distância com respeito a esse polo negativo. (ALTHADE apud CRAVINO, 2009,

p. 186)27

No caso dos moradores das villas argentinas, essa visão é criada a partir de um

olhar exterior, que busca homogeneizar as diferenças. Estão em uma posição com

características típicas, negativas e estigmatizantes e os moradores desses espaços são

tratados como pobres, delinquentes ou imigrantes ilegais que devem ser descartados

remetendo ao conceito de “refugos humanos” de Zygmunt Bauman (2005, p. 94).

Cravino ao observar algumas das principais villas do Conurbano nos possibilita

a percepção da heterogeneidade existente nesses locais, constatando que a maioria das

pessoas que habitam as villas são oriundas de países limítrofes e andinos. As villas

observadas pela antropóloga apresentam principlamente três nacionalidades: boliviana,

paraguaia ou peruana. Contudo, também pode-se verificar que existem argentinos de

outras provincias como, por exemplo, Salta, Jujuy e Tucumán (2009, p. 180).

Essa heterogeneidade encontrada nas favelas atuais do Conurbano Bonarense

aparecerá retratada de modo ficcional no romance analisado. Se na atual Buenos Aires

podemos encontrar assentamentos denominados a partir da nacionalidade majoritária

encontrada em determinado espaço, por exemplo, a villa dos peruanos ou a dos

paraguaios, no espaço criado por Cristian Alarcón essas diferentes nacionalidades

27

“ocupan un lugar central en los juegos de la comunicación que la gente pone en funcionamiento en su

nuevo marco de vida: de manera global, se los ha convertido en actores simbólicos fijados en un polo

negativo, y el eje central de los intercambios reside en la construcción de la diferencia respeto a ellos, en

la edificación de la distancia respeto a ese polo negativo.” (ALTHADE apud CRAVINO, 2009, p. 186)

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conformam uma única villa, a Villa del Señor. Esta tem seus espaços habitados por

distintos “ranchos”: o lado dos bolivianos, dos peruanos, dos paraguaios e etc.

Maria Porto Bernardete (2006) reitera que embora a imigração não seja um

fenômeno recente, pois como vimos na história argentina foi a responsável pela própria

consolidação do Estado nacional, com o advento da globalização, a temática volta a

ocupar o centro das discussões políticas e sociais. Isto remonta a questões antigas como

a associação da favela aos problemas econômicos como desemprego, crises e

conturbações sociais (JELÍN in GRIMNSON, 2006, p. 47-68).

Embora tenha sido a partir do processo de massificação (1930) que se passa a

perceber a formação das villas na cidade de Buenos Aires, é com a grave crise, que teve

início em 1990 e seu ápice em 2001, que se constata um aumento das favelas em torno

da Capital Federal e o surgimento de novos assentamentos, demarcando que:

com o grau de instabilidade territorial encontra-se a maior ou menor possibilidade de

um território ser entrecruzado por ou se inserir no interior de outros, já que uma das

características do mundo dito global é promover uma complexa superposição de

territórios. (HAESBAERT, 2007, p. 50)

Portanto, o Conurbano Bonaerense apresenta-se como um grande entremeado

de villas, com pessoas das mais variadas procedências, e ocupam boa parte de um

espaço aonde se concentra os grandes comércios e a parte industrial da cidade. A villa

criada por Alarcón reflete essas questões e, embora não possa ser encontrada em

nenhuma das coordenadas da cidade, reúne elementos de várias localidades de Buenos

Aires. Isto traz para o campo da narrativa a representação desses espaços e sujeitos, seus

conflitos e negociações nas diversas áreas da cidade, portanto:

Os sujeitos marcam e definem o espaço e o espaço marca aos sujeitos com

identidade conflitiva, da qual tentam desligar- se ou reapropiar- se. Esta é a forma na

qual a hierarquia urbana da cidade é vivida pelos habitantes das favelas, conhecendo

claramente que o status de seus barrios tem consequencias para su vida social,

laboral, política, religiosa, etc. A diferenciação socio-espacial constrói fronteiras

simbólicas, que são de-codificadas em termos de tipologias urbanas. (CRAVINO,

2009, p. 191)28

28

“los sujetos marcan y definen el espacio y el espacio marca a los sujetos con identidad conflictiva, de la

cual intentan desligarse o reapropiarse. Esta es la forma en la que la jerarquía urbana de la ciudad es

vivida por los habitantes de las villas, conociendo claramente que el status de sus barrios tiene

consecuencias para su vida social, laboral, política, religiosa, etc. La diferenciación socio-espacial

construye fronteras simbólicas, que son de-codificadas en términos de tipologías urbanas.” (CRAVINO,

2009, p. 191)

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Enfim, a Villa del Señor representa “essas fronteiras simbólicas” e as

estratégias utilizadas pelos personagens demonstram as diversas formas a que os

imigrantes atuais operam para estabelecer-se no novo espaço. Por isto, demarcam a

multiplicidade de etnias, em especial de imigrantes limítrofes e peruanos na cidade

atual. O que nos remete a Cravino, quando afirma que:

a cidade não é apenas um fenômeno físico, um modo de ocupar um espaço, de

aglomerar-se, mas também um lugar onde ocorrem fenômenos expressivos que

entram em contradição com a racionalização da vida social. Assim como se passa de

cidades a mega- cidades, também se observa uma passagem da cultura urbana à

multiculturalidade. (CRAVINO, 2009, p. 23)29

Essa multiculturalidade é o que encontraremos na capital argentina da virada

do século e sua representação traz luz a diferentes elementos de diferenciação. Estes são

utilizados pelos imigrantes e mostram a importância que tem para eles o agrupar-se,

reafirmando que “as diferentes nacionalidades se constituem em dispositivos de

diferenciação, da mesma maneira que outras formas de classificação que se instituem

nesses bairros” (CRAVINO, 2009, p. 16).30

Dentro desses espaços, os imigrantes fazem uso de diversas práticas para

afirmarem-se na nova territorialidade. Devido ao rechaço que sofrem, buscam nessas

estratégias uma forma de resistência, realocando suas identidades, retomando valores

estabelecidos a partir da concepção de pertencimento e valorização de aspectos que

remetem a seus países originários como veremos em várias passagens da trama.

29

“la ciudad no es sólo un fenómeno físico, un modo de ocupar un espacio, de aglomerarse; sino también

un lugar donde ocurren fenómenos expresivos que entran en contradicción con la racionalización de la

vida social. Así como se pasa de ciudades a mega ciudades, también se observa un pasaje de la cultura

urbana a la multiculturalidad.” (CRAVINO, 2009, p. 23) 30

“las diferentes nacionalidades se constituyen en dispositivos de diferenciación, al igual que otras

formas de clasificación que se instituyen en estos barrios.” (CRAVINO, 2009, p. 16).

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2.1 - A REPRESENTAÇÃO DA RECENTE IMIGRAÇÃO NO ROMANCE

No romance analisado, como dito anteriormente, os conflitos entre os

imigrantes surgem a todo o momento e podemos ver configurada na representação de

alguns personagens a herança discriminatória fomentada no projeto homogeneizador de

nação europeia, demarcando que:

Durante o período de crescimento protegido do pós guerra, os Estados-nação bem

definidos e soberanos foram capazes de estabelecer uma clara separação entre

membros e não membros e de garantir um grau relativamente alto de congruência

entre as dimensões básicas do pertencimento. Hoje, essa capacidade desapareceu e

as rupturas antes escondidas do espaço da cidadania aparecem com nitidez. Na

medida em que se correm as fronteiras externas e a homogeneidade interna (real ou

imaginária) das sociedades avançadas, a partir de cima, pelos fluxos de capital de

alta velocidade e, a partir de baixo, pela combinação de crescentes correntes de

imigração e a concomitante decomposição da classe operária industrial, torna-se

cada vez mais claro que a cidadania não é uma condição adquirida ou garantida de

uma vez por todas e para todos, mas um “processo instituído” conflituoso e desigual,

que precisa ser continuamente conquistado e reassegurado. (WACQANT, 2001, p.

38-39)

Essa busca pela cidadania é uma luta constante para os membros que ocupam

os territórios marginalizados. Em uma das passagens, o personagem que habita um

território da villa que possui a maioria de moradores provenientes de países andinos

aponta a discriminação:

Por suerte, soy rubio. Siendo rubio tenés la mitad de los problemas resueltos. Si sos

morocho la vida se te hace más difícil. Y si vivís entre peruanos, si sos rubio y de

ojos claros, es todo más fácil todavía, porque es como que les engalanás la mesa con

tus rubíes celestes. (ALARCÓN, 2012, p. 214) 31

Assim, percebemos que dentro da favela, espaço no qual os membros recorrem

a uma identificação associada ao fenótipo indígena, também perceberemos a

valorização dos traços “brancos”. Isto é ratificado no momento em que o personagem

afirma que se ele fosse moreno a vida seria mais difícil ou ainda que seus olhos claros

enfeitam o ambiente onde a maioria de pessoas é de origem peruana. De fato, estas

características físicas vistas de forma negativa remetem aos povos originários, ou aos

que habitavam os campos e ainda na atualidade podemos constatar que:

a relação cada vez mais forte entre o Estado territorial e o estado-nação. O estado e

seu território tendendo a promover uma única identidade, construída,... através do

processo de construção de uma identidade nacional, seja do ponto de vista cultural-

31

“Por sorte, eu sou loiro. Sendo loiro você tema metade dos problemas resolvidos. Se você é moreno, a

vida se torna mais difícil. E se você mora entre os peruanos, e é loiro de olhos azuis, é tudo ainda mais

fácil, porque é como se você estivesse enfeitando a mesa com seus rubis celestes.” (ALARCÓN, 2012, p.

214)

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em termos de partilha de uma cultura (língua, religião...) – que leva à asfixia de

traços culturais e tradições minoritárias seja do ponto de vista da organização social

como um todo. (HAESBAERT, 2007, p. 48).

As questões levantadas favorecem a reflexão sobre as representações dos

grupos imigrantes atuais na obra analisada. A partir daí, utilizamos o conceito de grupos

diaspóricos que tem sido proposto por importantes escritores, mas com sentidos

variados para o mesmo termo. Em nossos estudos, recorremos à análise do antropólogo

James Clifford (apud BOLAÑOS, 2010, p. 3), quando esclarece que a diáspora refere-

se à construção das identidades comunitárias de grupos coletivos que constroem lares

longe de sua cidade natal. É neste sentido que os grupos analisados fixam-se no novo

território e recorrem a práticas baseadas no regionalismo, demonstrando que:

as novas formas de manifestação da diversidade territorial à qual está ligada a

regionalização, assim como as novas escalas em que se dá a manifestação dessa

diversidade”, e, portanto o regional aparece “sendo interpretado como uma

revalorização do singular, da diferença. (HAESBAERT, 1999, p. 16)

Ao instalarem-se no novo espaço e atualizarem elementos culturais de sua

cidade natal, os imigrantes estabelecem uma nova concepção de lar. Verifica-se que

“em muitas áreas ocorre um retorno aos enraizamentos mais conservadores, através de

identidades étnicas, religiosas, nacionais etc.” (HAESBAERT, 1999, p. 31).

Esse retorno aos vínculos mais tradicionais será constatado em todo o romance

nas práticas, falas e cenas da trama. Este fato torna a Villa del Señor uma favela que

apresenta dentro do mesmo espaço uma “diversidade territorial”, constando que “num

mundo em processo de globalização/des-territorialização temos mais dificuldade em

encontrar áreas coesas ou «integradas» e coerentes”. (HAESBAERT, 1999, p. 21). Uma

vez que dentro dessa favela teremos muitos indivíduos de diversos países fazendo uso

cada qual de suas práticas culturais.

Villa del Señor apresenta uma concepção de território que abrange tanto o

sentido simbólico quanto os sentidos políticos, demarcando que “num sentido mais

simbólico, o território pode moldar identidades culturais e ser moldado por estas, que

fazem dele um referencial muito importante para a coesão dos grupos sociais”

(HAESBAERT, 2007, p. 49).

Essas questões serão observadas por Aimée G. Bolaños, em seu artigo

“Diáspora”, ao analisar a dispersão dos indivíduos, a autora sinaliza que “o sujeito

diaspórico transforma-se na viagem transcultural, sendo transformador também dos

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espaços em que transita: efetiva formulação de dupla mão” (BOLAÑOS, 2010, p. 4). E

por conta dessa transformação, necessitam recriar suas identidades, gerando um espaço

simbólico que possibilite retornar às suas culturas e dessa forma buscam inserir-se no

novo espaço e enfrentar os diversos tipos de desafios.

A temática diáspora reúne noções de descentramento, sincretismo,

transculturação, hibridação e formação de novas identidades. Segundo a autora, os

tópicos discursivos recorrentes referem-se à viagem, origem, memória, migração, exílio,

expatriação, nação, regresso, tradições, mitos fundadores, habitabilidade, localização,

fronteira, zonas de contato, entre-lugar, sendo o tema da identidade/alteridade a maior

referência (BOLAÑOS, 2010, p. 19). E na obra analisada estas questões se fazem

presente e assumem um papel de relevância para a construção dos personagens e da

villa narrada.

Nestes grupos diaspóricos constata-se que ocorre a quebra de fronteiras como

nos alerta Arjun Appadurai: “Na medida em que os grupos migram se reagrupam em

novos lugares, reconstroem suas histórias e reconfiguram seus projetos étnicos, o etno

da etnografia adquire uma qualidade escorregadia e não localizada”32

(APPADURAI,

2001, p. 63).

Essa reconstrução de histórias e de identidades é, em nossa observação, a

responsável por fazer com que ditos atores recriem no espaço ocupado as mesmas

práticas que utilizavam em seus países de origem, regressando para as concepções de

Estado-Nação que molda as identidades. Esse processo foi denominado de

“comunidades imaginadas” por Benedict Anderson e como diria Appadurai (2001, p.

63), os grupos migrantes “deixaram de estar firmemente amarrados a um território e

circunscritos a certos limites espaciais, e já não se pode dizer que não tenham uma

consciência histórica de si e também que sejam culturalmente homogéneos”.33

Sendo assim, encontraremos na Villa del Señor um híbrido de culturas e etnias,

os personagens criam dentro da favela diversos micro-territórios delimitando a

heterogeneidade atual da urbe portenha. Por isto, os espaços são formados a partir de

32

“En la medida en que los grupos migran, se reagrupan en nuevos lugares, reconstruyen sus historias y

reconfiguran sus proyectos étnicos, lo etno de la etnografía adquiere una calidad resbaladiza y no

localizada” (APPADURAI, 2001, p.63). 33 “dejaron de estar firmemente amarrados a un territorio y circunscriptos a ciertos límites espaciales, y ya

no se puede decirse que no tengan una conciencia histórica de sí ni tampoco que sean culturalmente

homogéneos.” (APPADURAI, 2001, p. 63).

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suas nacionalidades, e percebemos que os laços familiares tornam-se um ponto de

importância para esses atores. Existe uma necessidade premente de agrupar-se e de ter

uma casa, o que é um fator crucial para esses grupos:

En sociedades de migrantes, los nuevos y los recién llegados tienen una necesidad

fundamental: la vivienda. Estrecha, incómoda, con un baño compartido entre veinte

personas y una cocina comunitaria en un recodo del pasillo, se la paga como sea,

aún si es cara; todo por dejar de ser errantes. (ALARCÓN, 2012, p. 223)34

Ter uma casa, mesmo que pequena, torna-se a primeira via de acesso e ingresso

na nova sociedade, e é também uma forma de reestruturação familiar no novo território.

Estas casas que constituem as favelas e que são as principais moradias dos imigrantes

aparecem representadas no romance fornecendo-nos a possibilidade de ler a favela

ficcional que foi criada a partir da observação de muitas periferias:

Viven pasillo o pared de por medio, arriba o abajo, todos en un radio de cien metros.

La base, una doble hilera o media luna de piezas, se ha ido elevando tan alto que da

sombra permanente en el patio interior. Son edificios caprichosos que suelen

parecerse a los cuadros de Escher, meandros angulosos con escaleras que no van a

ningún sitio. (ALARCÓN, 2012, p. 229)35

Interessante pensar a descrição das casas nas villas miseria comparadas com

quadros de Escher. É possível observar essas construções pelo ponto de vista estético no

qual a arquitetura dessas casas aparece de modo irregular e individual. As casas são

construídas, em sua maioria, pelos próprios moradores e sem a intervenção de nenhum

profissional da construção. A imagem destas construções mistura-se com a do grande

centro comercial de Buenos Aires, com os modernos prédios e estabelece o contraste da

cidade atual.

Portanto, essas construções e os personagens representados na favela ficcional,

configuram uma imagem da realidade atual da urbe portenha, que vem se modificando

ao longo dos anos. Na atualidade, imigrantes e sociedade receptora buscam novas

formas de relacionar-se dentro do território. Ao apresentar a favela, o autor enfatiza que

esse espaço é ocupado por distintos imigrantes, configurando a Villa del Señor como

território híbrido de múltiplas nacionalidades:

34

“Nas sociedades de migrantes, os novos e recém-chegados têm uma necessidade fundamental: a

moradia. Pequena, desconfortável, com um banheiro para ser dividido por vinte pessoas e uma cozinha

comunitária em um canto do corredor, se paga de alguma forma, mesmo que seja cara; tudo por deixar de

ser errantes.” (ALARCÓN, 2012, p. 223) 35

“Moram entre o corredor e a parede, para cima ou para baixo, todos dentro de um raio de cem de

metros. A base, uma fileira dupla ou uma meia lua de dois quartos, que aumenta tão rápido que dá sombra

permanente no pátio interior. São edifícios extranhos que muitas vezes se assemelham a pinturas de

Escher, meandros angulares com escadas que não vão a lugar nenhum.” (ALARCÓN, 2012, p. 229)

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En la Villa, a los primeros pobladores que habían llegado desde el interior se les

fueron sumando los de los países limítrofes y los peruanos, que ya eran un número

importante. Familias enteras que aprendían lo aprendido en sitios como San Juan de

Lurigancho o Comas, en la Gran Lima, donde se habían asentado sin más que lo

puesto al llegar de empobrecidas zonas rurales. (ALARCÓN, 2012, p. 59)36

Esse trecho nos aponta que a Villa del Señor é composta por um grande

número de imigrantes, e também de argentinos. Estes atores, ao agruparem-se em micro

territórios dentro da villa, terminam por retomar valores ancorados na concepção de

nação/pátria. A fim de que construam suas identidades, mesmo diante de constante

preconceito e rechaço, o agrupamento torna-se necessário para reconstruir suas vidas. É

uma saída possível para os conflitos vivenciados e travados entre eles e a sociedade que

os recebe. Isto é reiteradamente observado no romance:

Porque los gringos blancos – acá hasta los más negros se creen blancos al lado de

nosotros – se burlaban, me sacaban el cuero como a un chancho pelado. Me fui

quedando en silencio de no poder pronunciar las eses como acá. Allá las decimos

distinto, y qué quiere que diga, ¡mejor! Porque, fuera de toda broma, hablamos, digo

yo, un castellano más bonito los limeños. (ALARCÓN, 2012, p. 66-67)37

Esses conflitos aparecem representados em outros trechos da obra, sejam eles

por discriminação na forma de falar, ou pela cor da pele, como vimos no trecho acima,

ou na maneira de relacionar-se dentro dos espaços:

Acá en lugar de tocar bocina todo el tiempo, como allá, se dicen puteadas y facilito,

como si nada, se menta a la madre. Allá si le mentas la madre a uno, capaz que te

mate. Yo soy un sobreviviente de tres guerras en esta Villa del Señor, que aunque

usted no lo crea se va pareciendo cada vez más a los barrios de mi querida ciudad

Lima. (ALARCÓN, 2012, p. 67)38

Cabe destacar que outro ponto interessante no trecho citado para pensar essas

identidades complexas configuradas na obra é o fato de que o personagem faz uma

análise comparativa entre as duas cidades e conclui que apesar das diferenças a cidade

portenha tem se tornado cada vez mais parecida com a sua cidade de origem,

mostrando, portanto as mudanças que vêm sofrendo a cidade receptora.

36

“Na favela, os primeiros habitantes que tinham vindo do interior se juntaram aos dos países limítrofes e

peruanos, que já eram um número significativo. Famílias inteiras que aprendiam o que era aprendido em

lugares como San Juan de Lurigancho ou Comas, na Grande Lima, aonde se haviam assentado sem nada

mais do que o lugar de chegada de empobrecidas zonas rurais.” (ALARCÓN, 2012, p. 59) 37

“Porque os gringos brancos - aqui, até mesmo os mais negros se acham brancos do nosso lado –

Zombavam de mim, me humilhavam. Eu fui ficando em silencio por ser incapaz de pronunciar os s como

aqui. Lá falamos os s diferente, o que eu posso te dizer, melhor! Porque, falando sério, eu te digo, nós os

limenhos, falamos um castellano mais bonito.” (ALARCÓN, 2012, p. 66-67) 38

“Aqui em vez de tocar buzina o tempo todo, como lá, se tratam com palavrões, e fácil, como se não

fosse nada, se xinga a mãe.Lá, se você ofende a mãe de alguém, é capaz que te matem. Eu sou um

sobrevivente de três guerras na Villa del Señor, que, embora você possa não acreditar se parece cada vez

mais com os bairros da minha querida cidade de Lima.” (ALARCÓN, 2012, p. 67)

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A nova localidade estabelece, portanto uma relação entre os dois espaços: o

“lá” e o “aqui” e mostra como as barreiras entre elas está se tornando cada vez menos

rígida. Também podemos demarcar os conflitos entre os imigrantes e a sociedade que os

recebe, que será verificado em diversos outros momentos do romance: “Para colmo de

males, la piba era una argentina. En el negocio los argentinos, si no son putos, me traen

dramas. Son complicados” (ALARCÓN, 2012, p. 133).39

E ainda: “Una de las ordenes

de Cali era que no contrataran argentinos para armar su ejército porque los argentinos

son muy traicioneros.” (ALARCÓN, 2012, p. 168).40

Logo, embora o livro aponte o enfrentamento entre os distintos grupos que

habitam a favela, e que saibamos que há um forte preconceito de grande parte da

sociedade argentina em relação a esses imigrantes, encontraremos no decorrer da trama

uma inversão em que os argentinos é o que são considerados traiçoeiros, mentirosos e

preguiçosos com relação ao trabalho. Há ainda uma valorização da cidade natal de cada

um dos diferentes grupos: “Buenos Aires puede ser muy elegante y europea, pero no le

llega ni a los talones a Lima” (ALARCÓN, 2012, p. 42).41

Ao agruparem-se nos distintos micros territórios, além de retornarem a valores

estabelecidos a partir da noção de “membresía”, há a criação de diversos espaços de

identificação. Nestes, os migrantes ocupam um território cada vez maior e mais visível

na cidade de Buenos Aires. É possível identificá-los pela sua inserção em diversas áreas

da cidade e nesta ocupação territorial estabelecem atividades comerciais: vendem frutas,

roupas, artigos culturais de seus países.

Também é possível perceber que eles transitam dentro e fora da periferia. Basta

observar seus movimentos culturais e religiosos como a realização de festas e cultos de

suas práticas, se reúnem em boates, organizam ligas de futebol, ONGs, fazem protestos

por melhores condições de vida e moradia. Cabe mencionar que dois dos grupos mais

numerosos de imigrantes limítrofes atualmente na Argentina é o de bolivianos e o de

peruanos. O que é revelado pelos dados do último senso:

39

“Para o cúmulo dos males, a garota era uma argentina. Nesse negócio os argentinos, se não são bichas,

me trazem problemas. São complicados” (ALARCÓN, 2012, p. 133) 40

“Uma das ordens de Cali era que não contratassem argentinos para formar seu exército porque os

argentinos são muito traiçoeiros” (ALARCÓN, 2012, p. 168). 41

“Buenos Aires pode ser muito elegante e européia, mas não chega nem aos pés de Lima.” (ALARCÓN,

2012, p. 42)

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49

De acordo com o censo de Povoação do ano de 1991, os imigrantes limítrofes já

representavam mais de cinquenta por cento da população estrangeira do país”. No

censo seguinte que foi realizado no ano de 2001, a população limítrofe e peruana

representava dois terços da população, chegando a superar os setenta e cinto por

cento no censo de 2010.42

(Cuadernos Migratórios – OIM, p. 18).

Esses imigrantes conquistaram através de lutas sociais e militância nos bairros

diversos direitos civis. Os bolivianos, por exemplo, transformaram um espaço

deteriorado em um bairro, em Charrúa (GRIMNSON, 2011). Também existem outros

espaços denominados a partir da nacionalidade mais expressiva em determinada

localidade, a favela 1-11-14 é mencionada como a favela dos peruanos, e em Liniers

também encontramos a definição de bairro dos bolivianos. Cabe esclarecer que os

discursos relacionados aos diferentes espaços ocupados pelos imigrantes podem ser

percebidos segundo a observação de Rogério Haesbaert:

Enquanto em alguns lugares há um enfraquecimento do Estado, que não tem mais

meios de manter uma pretensa coesão nacional frente ás disputas regionais e dos

lugares para se globalizar... Em outros lugares os nacionalismos são retomados, sob

as mais diversas argumentações e colorações políticas... muitas vezes em nome da

preservação e/ou defesa da identidade territorial. (HAESBAERT, 2007, p. 49)

Esse retorno ao regional é muito presente na trama, principalmente nos

momentos em que os personagens realizam festas familiares. Nesse momento emerge a

memória de como viviam nos seus países e mais especificadamente no povoado de

origem:

Me sorprendió su gracia, la forma que se levantaba el ruedo de la falda para zapatear con los

tacos al ritmo huaino. La esencia de lo rural volvía a aparecer en la trama urbana de estos transas que esa

noche tiraban la casa por la ventana y se mareaban para dejarse llevar por los sonidos de la tierra de sus

orígenes. (ALARCÓN, 2012, p. 226)43

O trabalho da imaginação (APADDURAI, 1996) é acionado e os atores

colocam em cena fatores tipicamente regionais, realizando uma viagem mesmo que seja

temporária e subjetiva ao seu país de origem. Isso ocorre através de um retorno à

localidade onde estão suas raízes mais familiares, o povoado natal. Na trama, percebe-se

como a questão de retorno a formas de convivência relacionadas ao campo, que é o

42

De acuerdo al Censo de Población del año 1991, los inmigrantes limítrofes ya representaban más del

cincuenta por ciento del total de la población extranjera. En el siguiente censo que fue realizado en el

año 2001, la población limítrofe y peruana representaba dos tercios del total de los extranjeros,

llegando en censo de 2010 a superar el setenta y cinco por ciento.

43

“Me surpreendeu sua graciosidade, a forma que levantava a barra da saia para sapatear com os saltos ao

ritmo huaino. A essência do rural voltava a aparecer na trama urbana desses traficantes que essa noite

gastavam mais do que podiam e se embebedavam para deixar-se levar pelos sons da terra de suas

origens.” (ALARCÓN, 2012, p. 226)

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local originário de praticamente todos os personagens no romance, pode ser verificada

no recurso que têm esses imigrantes para realizar o pagamento de suas moradias, o uso

do anticrético.44

“Gracias al anticrético, la construcción de piezas para alquilar en los

pisos superiores a la vivienda propia es uno de los negocios más rentables entre los

migrantes, sobre todo como en territorios como Villa del Señor” (ALARCÓN, 2012, p.

230).45

Essa maneira de investir nas próprias construções e melhorar a renda surge

como a principal estratégia que permite conquistar novas habitações. Demonstra, ao

mesmo tempo, que os diferentes imigrantes recorrem a práticas utilizadas

principalmente no campo, em suas regiões de origem e transportam-nas para o novo

território. O narrador retoma a importância dessas estratégias de financiamento dentro

da favela ao referir-se ao pasanaku boliviano:46

Siempre ayudan los dos préstamos fundamentales en la economía interna: el

pasanaku, un sistema de ahorro previo, y el anticrético. Gran parte del

financiamiento interno está regido por la abundancia de estos préstamos informales

en los que siempre se gana. (ALARCÓN, 2012, p. 231)47

O uso dessas duas formas de investimento do dinheiro traz à luz também a

questão da importância das redes de confiança e de valores ancorados na moral da boa

conduta dentro das comunidades. Como podemos verificar na explicação que dá o

narrador ao explicitar essas duas formas de usos da economia popular: “El pasanaku en

general es de cumplimiento estricto. Los participantes se conocen. Se ven casi todos los

días.” (ALARCÓN, 2012, p. 231).48

E continua enfatizando a importância da

valorização dos aspectos relacionados a hábitos bastante regionais como o sentido de

44

A anticrese é um instituto civil, espécie de direito real de garantia, ao lado do penhor e da hipoteca, no

qual o devedor, ou representante deste, entrega um bem imóvel ao credor, que no caso é o credor

anticrético, para que os frutos deste bem compensem a dívida. Não existe anticrese originada pela lei,

como ocorre nos outros dois institutos citados anteriormente. 45

“Graças ao anticrético, a construção de quartos para alugar nos andares superiores das próprias

construções é um dos negócios mais rentáveis entre os imigrantes, principalmente em territórios como a

Villa del Señor.” (ALARCÓN, 2012, p. 230). 46

Pasanaku é um sistema de economia de crédito rotativo utilizado com muita intensidade na Bolívia.

Está reconhecido como uma modalidade da economia solidária, com antecedentes nas culturas

americanas pré-colombianas. Basicamente, é um acordo de empréstimo de uma grande quantia ou de

imóveis com o incremento de altos juros. Na maioria das vezes, o credor é dono de um prédio ou casa

com vários cómodos que serão utilizados para oferercer dezenas de moradias a diversos inquilinos.

Geralmente se faz uso de um termo que apresenta um ano de prazo que pode ser estendido para dois.

Após este período, o credor deve retornar a propriedade ao seu estado original e recebe seu dinheiro. 47

“Sempre ajudam os dois empréstimos fundamentais na economia interna: o pasanaku, um sistema de

economia previa, e o anticrético. Grande parte do financiamento interno está regido pela abundancia

destes empréstimos informais nos quais sempre se ganha” (ALARCÓN, 2012, p. 231) 48

“O pasanaku geralmente é de cumprimento estrito. Os participantes se conhecem. Se vêem quase todos

os dias.” (ALARCÓN, 2012, p. 231)

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laços estabelecidos a partir da coletividade: “ Cada vez que uno se suma a un pasanaku

está poniendo en juego su moral ante el vecindario. Es un capital que no se puede poner

en riesgo.” (ALARCÓN, 2012, p. 232).49

As formas de relacionar-se dentro desse espaço remetem a muitos países e

principalmente a diversas regiões que se reportam ao campo, destacam-se nas práticas

mais cotidianas vividas dentro da villa. Ela deixa de ser uma localidade apenas

percebida como espaço de violência, embora este seja também um tema abordado no

livro, mas o romance foca principalmente na percepção do cotidiano, do elemento

rotineiro, na vida dessas pessoas:

El sábado es el mejor día en Villa del Señor. Son los partidos de fútbol. Son las

misas de los difuntos. Son las procesiones. Son los cumpleaños que no se pudieron

festejar a la semana. Los que no trabajan están contentos porque hay de todo para

hacer. Los que tienen trabajo están contentos porque ese día no les toca. El sábado

se ve de todo. (ALARCÓN, 2012, p. 67)50

Portanto, a Villa del Señor nos permite verificar, além do fenômeno atual que

ocorre em Buenos Aires, uma cidade fragmentada, dividida em dois espaços dispares: o

grande centro (espaço de trabalho, do entretenimento, do turismo e da economia) e a

villa (território de precariedade e de indivíduos rechaçados), as práticas mais cotidianas

que ocorrem nos espaços periféricos. E mesmo sabendo que a divisão existe entre centro

periferia, imigrantes e sociedade, e imigrantes de diferentes países, percebe-se que essas

barreiras simbólicas tem se tornado cada vez mais frágeis, pois ocorre o trânsito e o

diálogo entre os indivíduos dessas diferentes localidades. Para aprofundar na idéia de

barreira simbólica retomaremos o texto de Haesbaert, segundo o qual:

existem diversas concepções de território de acordo com sua maior ou menor

permeabilidade: temos desta forma, desde territórios mais simples, exclusivo-

excludentes, até territórios totalmente híbridos, que admitem a existência

concomitante de várias territorialidades. (HAESBAERT, 2007, p. 44-45)

Todos esses espaços parecem constituir outro mundo, diferente da cidade

receptora e das cidades originais dos migrantes, representando, porém, uma relação

entre ambas, no momento em que oferecem um local de confiança, de lembranças, de

problemas comuns e de formas de diversão e sociabilidade. Por ocuparem um lugar tão

49

“Cada vez que alguém se soma a um pasanaku está pondo em jogo sua moral perante a vizinhança. É

um capital que não se pode por em risco.” (ALARCÓN, 2012, p. 232). 50

“O sábado é o melhor dia na Villa del Señor. Acontecem os jogos de futebol. As missas dos falecidos.

As procissões. Os aniversários que não puderam ser celebrados durante a semana. Os que não trabalham

estão felizes porque tem de tudo para se fazer. E os que trabalham estão felizes porque esse é o dia de

folga. No sábado se vê de tudo.” (ALARCÓN, 2012, p. 67)

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central na realidade e no projeto narrativo, encontraremos com muita frequência no

romance a representação desses espaços de sociabilidade, constituídos, por exemplo:

pelas festas, feiras e ritos religiosos. Estes funcionam como local de diálogo e de

intercâmbio entre os que viajaram a Buenos Aires e os que permaneceram nos países

originários.

Dentro das diversas práticas encontradas na cidade e configuradas no romance

podemos destacar as festas pátrias que representam um local de encenação e vivência

das identidades imaginadas. Segundo Grimson (2011), não se pode atribuir uma única

definição para a mesma, e sim diversas, que configuram a pluralidade de indivíduos e

concepções de tal evento.

Para alguns, a festa é de caráter principalmente católico e religioso, para outros

é a afirmação do que seria para os migrantes a valorização de suas culturas originárias.

E ainda há os que a veem relacionada com a tradição. Para os mais jovens é o momento

de expor suas danças e divertir-se. Existe ainda o fator comercial (GRIMSON, 2011).

Dentro das festas, encontramos as feiras, que reúnem as cores, os sabores, os

alimentos que remetem à pátria. É nesse local que “se materializa a Nação e onde se

desenvolvem os modos em que a Nação se incorpora se faz corpo”51

(GRIMSON, 2011,

p. 87).

As festas além de retomarem os valores que remetem ao país de origem, nos

aproxima do cotidiano das pessoas que habitam a villa, demonstrando as relações

familiares e o sentido de vizinhança, como podemos ler no seguinte trecho:

En las fiestas no se mezquina. Si hay pollo, hay como cincuenta pollos. Si hay

cerveza, hay cajas de cerveza. Si hay vino, damajuanas. Así es. Y si se pudiera matar

una vaca para que todo el mundo comiera ella, pues matarían una entera para que no

faltara a nadie (ALARCÓN, 2012, p. 72).52

Reunindo nessa favela ficcional as diversas etnias e culturas, o escritor traz o

plano da representação as várias práticas desses imigrantes e demonstra que dentro do

espaço ocupado os atores buscam apoiar-se em diferentes formas de sociabilidade.

51 “se materializa la Nación y donde se desarrollan los modos en que la Nación se incorpora, se hace

cuerpo.” (GRIMSON, 2011, p.87)

52

“Nessas festas não tem mesquinharia. Se tem frango, tem como cinquenta frangos. Se tem cerveja, são

caixas de cerveja. Se tem vinho, garrafões. Assim é. E se for necessário matar uma vaca para que todos

possam comer, se mata uma inteira para que não falte pra ninguém.” (ALARCÓN, 2012, p. 72)

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53

Frequentemente, estão envolvidos em eventos que remetem a suas culturas originárias,

como as feiras:

Lo más ajetreado es la feria de la avenida Bonavena, donde hay desde pungas hasta

tripa de arroz con pollo, chicha, ceviche, pollo asado, choripán, sopa de maní, sopa

paraguaya, lo que imagine hay. Es como la frontera de todos los países juntos.53

(ALARCÓN, 2012, p. 71).

Esse trecho nos possibilita entender a importância da Villa del Señor na

narrativa, não somente as feiras, ou festas, ou os ritos representam o limite entre todos

os países juntos, e sim a própria favela com sua complexidade de atores e histórias

reúne no mesmo espaço muitos imigrantes. Esta pode ser considerada como a

representação da “fronteira de todos os países juntos”, trazendo para o campo literário a

questão imigratória recente como fator principal para a construção da obra e para ler a

cidade atual de Buenos Aires.

Nessa favela há o rompimento de fronteiras que é observado a partir da mescla

de etnias presente na favela narrada e do cruzamento de aspectos culturais de diferentes

culturas. A música e os ritmos também representam essa mistura e interação: “Se

combinan los ritmos: La cumbia con el chamamé, con el huaino, el folclore andino,

pachanga en general, diría yo. El sábado es pachanguero. Es el día de fiesta.”54

(ALARCÓN, 2012, p. 72).

As distintas celebrações afirmam a presença dos grupos migratórios e criam

uma interação dos migrantes com a população em geral. É na festa que a identidade

migrante muda de concepção, suas nacionalidades que estão sempre relacionadas à

marginalidade e muitas vezes são motivo de vergonha passam a ser elemento de

orgulho. Nasce assim uma valorização da cultura originária, e suas músicas, danças e

comidas tomam as ruas, dialogando com a cidade.

Como pudemos perceber em diversos trechos do livro, há uma cartografia das

inúmeras práticas imigrantes dentro do espaço narrado. Isto pode ser encontrado na

forma de suas moradias, nas celebrações familiares, nas festas pátrias, nas comidas e

também nas diversas formas de utilização da religiosidade. Em nossa leitura, essas

53

“A mais movimentada é a feira da Avenida Bonavena, onde tem de punga até tripa de arroz com

frango, chicha, ceviche, frango grelhado, choripán, sopa de amendoim, sopa paraguaia, o que você

imaginar tem lá. É como a fronteira de todos os países juntos.” (ALARCÓN, 2012, p. 71) 54

“Combinam-se os ritmos: a cumbia com o chamamé, com o huaino, o folclore andino, pachanga

normalmente, eu diria.Sábado é pachanguero. É dia de festa.” (ALARCÓN, 2012, p. 72)

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54

diferentes estratégias utilizadas sinalizam a apropriação do território por parte desses

grupos. Como esclarece Haesbaert:

O conjunto de práticas sociais e os meios utilizados por distintos grupos sociais para

se apropriar ou manter certo domínio (afetivo, cultural, político, econômico, etc.)

sobre/através de uma determinada parcela do espaço geográfico manifesta-se de

diversas formas, desde a territorialidade mais flexível até os territorialismos mais

arraigados e fechados. (HAESBAERT, 2007, p. 44)

No romance, dentre as diversas estratégias utilizadas pelos imigrantes os

diversos usos da religiosidade surgem como importante fator para demonstrar essa

apropriação do território. O autor reconhece sua visão referente a esse ponto:

El territorio siempre es ajeno para un exiliado, para un desterrado, el territorio

siempre le pertenece a otro, y en ese sentido, para poder sobrevivir, ese exiliado o

desterrado debe convertirse en un…, paradójicamente, en un conquistador del

territorio ajeno, y de diversas maneras con estrategias migrantes más o menos

inteligentes, con redes de solidaridad o solo, con familia o sin familia, con la

religión… se encuentran maneras de apoderarse… (Cristian Alarcón, entrevista

pessoal, 15 de dezembro de 2015)

Interessa-nos, portanto analisar as representações dessas práticas que surgem

como fator de importância para a composição dos personagens e do próprio romance. A

partir delas, buscaremos ler as transformações e relações estabelecidas dentro da cidade.

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55

4. - OS USOS DAS PRATICAS RELIGIOSAS, ESTRATÉGIAS DE NEGOCIAÇÃO

E APROPRIAÇÃO DO TERRITÓRIO.

Estas diferentes tentativas de expandir o

imaginário territorial para situações de mudança

política e de diáspora têm algo em comum: a

tendência a usar o imaginário territorial do

Estado-Nação para alcançar e mobilizar grandes

populações dispersas no mundo contemporâneo

em direção a uma formação étnica transnacional.

Ajun Appadurai

A epígrafe serve como força motriz para pensarmos uma formação étnica

transnacional capaz de abarcar a diversidade presente no território. Neste sentido, ao

utilizar o imaginário territorial do Estado-Nação, os indivíduos buscam uma apropriação

do novo espaço. Para essa leitura nos utilizamos da concepção de território de Rogério

Haesbaert, que nos sinaliza que território “tem a ver com poder”, e acrescenta “diz

respeito tanto ao poder no sentido mais concreto, de dominação, quanto ao poder no

sentido mais simbólico, de apropriação” (HAESBAERT, 2004, p. 1-2). Portanto os

diversos mecanismos usados pelos imigrantes funcionam como fatores de mudança e

desenvolvimento.

Em entrevista, o escritor Cristian Alarcón afirma que, ao debruçar-se nos

conceitos teóricos sobre imigração, um deles traduz seu olhar em relação a Si me querés

quereme transa: “ Me fascina el concepto de la translocalidad migratória” (Cristian

Alarcón, entrevista pessoal, 15 de dezembro de 2015). E acrescenta que o que mais lhe

chama a atenção é “la idea de un descubrimiento en esa partición que produce el exilio,

en esa división que produce el exilio de que el aquí y el ahora está allí donde el sujeto

esté, y que por lo tanto se construye territorio’’ (Cristian Alarcón, entrevista pessoal, 15

de dezembro de 2015).

Portanto, todas as diversas formas de utilização desse espaço e que aparecem

representadas no romance (as festas, as feiras, os ritos, as práticas religiosas) são

estratégias utilizadas pelos imigrantes para afirmarem suas identidades. Deste modo,

realizam a resistência frente aos discursos discriminatórios e principalmente defendem o

direito ao uso do espaço que ocupam. Neste sentido, podemos pensar que,

Se o território é o espaço marcado com os emblemas identificadores de sua

ocupação por um grupo particular, que por sua vez se inscribe com suas

características, a identidade desse grupo que o considera próprio e transita

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livremente, no mundo de hoje seria possível dizer que há um novo processo em

curso no que respeita territorialidade, entendida como uma experiência particular,

histórica e culturalmente definida de território. Grupos que se comportam párias

secundárias em suas formas de organização apelam a lealdade e a exibição

ritualizada de fórmulas que expressam essa lealdade, e se expandem criando faixas

de identidade comum e apropriação territorial. Poderia se dizer que as pessoas

carregam consigo os marcadores territoriais que se trata de territórios extensíveis,

que crescem a medida que como suas respectivas adesões amentam. Gradualmente,

um povo parece-nos não ser mais definido como o conjunto dos habitantes de um

território geograficamente definido, mas como um grupo que carrega a heráldica de

uma lealdade comum e, com isso, insitui um território no espaço que ocupa.

(SEGATO, 2008, p. 44)55

Na Villa del Señor, as diferentes práticas dos imigrantes transformam o

território ocupado em um espaço de encenação de suas identidades. Como sinalizado no

fragmento citado, a questão geográfica perde a relevância, pois os territórios na

atualidade passam a ser extensíveis uma vez que os símbolos utilizados para definir a

identidade nacional são transportados com os indivíduos que recriam esses símbolos no

novo espaço, no caso os transportam para o país receptor, e nele vivenciam e instituem

um território.

Em outras palavras podemos observar que os conjuntos de práticas sociais

utilizadas pelos atores representados na obra são utilizados na tentativa de manter certo

domínio territorial, seja esse domínio afetivo, cultural, político ou econômico. E para

isso utilizam-se tanto de territorialidades mais flexíveis quanto das mais enraizadas.

Dessa forma, podemos constatar que enquanto em alguns locais se verifica o

enfraquecimento de concepções originárias do Estado-Nação. Em outros os

nacionalismo são retomados, muitas vezes em defesa ou preservação da identidade

territorial (HAESBAERT, 2007, p. 49).

Interessante pensar que na Villa del Señor, pela multiplicidade de etnias que

agrupa, ocorre a encenação de variados territórios. Dentre as diversas práticas

55

“Si el territorio es espacio marcado con los emblemas identificadores de su ocupación por un grupo

particular, que a su vez inscribe, con sus características, la identidad de ese grupo que lo considera

proprio y lo transita libremente, en el mundo de hoy sería posible decir que hay un nuevo proceso en

curso en lo que respeta la territorialidad, entendida como experiencia particular, histórica y culturalmente

definida del territorio. Grupos que se comportan como patrias secundarias en sus formas de organización

apelan a la lealtad y la exhibición ritualizada de fórmulas que expresan esa lealtad, y se expanden creando

franjas de identidad común y apropiación territorial. Podría decirse que las personas llevan los

marcadores territoriales a cuestas y que se trata de territorios extensibles, que crecen a medida que sus

respectivas adhesiones se expanden. Gradualmente, un pueblo parecería no ser más definido como el

conjunto de los habitantes de un territorio geográficamente delimitado, sino como un grupo que porta la

heráldica de una lealtad común y, con esto, instituye un territorio en el espacio que ocupa.” (SEGATO,

2008, p. 44)

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encontradas na obra uma se destaca, ganhando relevância na narrativa. Trata-se da

questão dos usos da religiosidade dentro dos espaços periféricos. Esses usos despontam

na obra como elemento importante para a criação dos personagens e costura as diversas

histórias dentro do texto. Nesse sentido podemos afirmar que:

A construção do território resulta da articulação de duas dimensões principais, uma

mais material e ligada à esfera político-econômica, outra mais imaterial ou

simbólica, ligada, sobretudo à esfera da cultura e do conjunto de símbolos e valores

partilhados por um grupo social. (HAESBAERT, 2007, p. 49)

Essas duas formas de construir um território estarão presentes no romance. E

uma das maneiras simbólicas que permitem a identificação dos indivíduos a partir de

seus símbolos identitários e partilhados por um determinado grupo é, sem dúvida, a

religiosidade.

Na Argentina atual, durante todo ano podemos encontrar diferentes festas que a

princípio parecem ter uma conotação apenas religiosa. Poderíamos citar como exemplo

a Festa de Nossa Senhora de Copacabana, padroeira dos bolivianos, ou a da Virgem de

Caacupé, padroeira dos paraguaios, bem como a do Senhor dos Milagres, figura central

para a religiosidade dos peruanos.

Ao observar uma dessas festas, a da Virgem de Copacabana, Alejandro

Grimson (2011, p. 65-77) atestou que existem muitos outros fatores além do religioso

nessas celebrações. Ressalta, por exemplo, os usos políticos e afetivos, a apoderação, o

retornos aos valores originários e também o caráter comercial e festivo que existe nessas

celebrações. Portanto, não seria equivocado concluir que essas práticas representadas no

romance além dos diversos fatores encontrados, atualizam a necessidade de apropriação

do território:

Os rituais são artefatos comunicativos que, ao mesmo tempo, criam, selam um

continente social, às vezes, como uma comunidade, outras como fratria ou

irmandade-, e permitem que a empresa ou consórcio assim formado registre o

espaço com a marca de sua existência. Nesse sentido, é claro que o ritual consagra

sacraliza um território como tal. (SEGATO apud ALONSO, 2008, p. 50)56

Pretendemos ler as diferentes manifestações religiosas no romance como

estratégias que buscam demarcar o espaço como um território de uma determinada

56

“Rituales son artefactos comunicativos que, a un mismo tempo, crean, sellan un continente social - a

veces como comunidad, otras veces como fratría o hermandad -, y permiten que la corporación o

consorcio así formado inscriba el espacio con la marca de su existencia. En ese sentido, está claro que el

ritual consagra, sacraliza un territorio como tal.” (SEGATO apud ALONSO, 2008, p. 50)

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comunidade, reafirmando sua presença. Na maioria das vezes as diferentes culturas são

rechaçadas e discriminadas. Interessa aqui pensar também o modo como as diferentes

práticas religiosas encontradas na villa miseria narrada demostram as novas formas de

relacionar-se com a cidade. A villa é um espaço multicultural no qual as diferentes

etnias circulam e dialogam dentro do território. E para essa leitura é importante destacar

que nas sociedaes atuais o uso da religiosidade apresenta um enfoque diferente do que

era observado anteriormente:

Se nas sociedades tradicionais o homem preenchia todos os poros de seu território

através de uma apropriação simbólica onde, por exemplo, uma dimensão sagrada

dotava de sentido o espaço em sua totalidade, nas sociedades modernas o território

passa a ser visto antes de tudo, numa perspectiva utilitarista, como um instrumento

de domínio, a fim de atender às necessidades humanas. (HAESBAERT, 2007, p. 43)

Portanto, a questão da territorialidade traz à discussão não apenas as questões

políticas, mas também as relações com a economia, com as diferentes culturas e os

modos como as pessoas se organizam dentro desse espaço. As religiosidades

encontradas nesses territórios são formas de reivindicar poder e apropriação. Sendo

assim, podemos entender o território como espaço para realizar as diferentes funções:

políticas, sociais, econômicas e simbólicas (HAESBAERT, 2004).

A realização das funções simbólicas a partir da religiosidade popular é um

ponto importante para pensar nas villas/favelas argentinas. Diferentemente do Brasil

onde as práticas religiosas apresentam um forte sincretismo por conta da herança afro e

indígena, formando uma população com fortes características de miscigenação, na

Argentina, a sociedade possui uma imagem de povo que remete a uma homogeneidade.

Portanto, as práticas religiosas que não conformam o patrimônio entendido e celebrado

como tipicamente argentino são fortemente hostilizadas.

Ao trazer essa temática como elemento chave para ler o romance e para a

criação da villa e dos personagens, Cristian Alarcón reivindica com sua narrativa a

importância das diferentes religiosidades dentro desses espaços. A socióloga Ana

Lourdes Suaréz nos ajuda a compor essa análise ao afirmar que:

Os assentamentos precários da cidade de Buenos Aires, a pesar da homogeneidade

sócio-econômica de sua população conformam um espaço de uma grande

diversidade y riqueza cultural. Diversidade que se nutre, entre outros aspectos, da

variedade de lugares de proveniência de seus habitantes, sua habilidade para

insertar- se numa cidade que em muitos aspectos se apresenta como hostil, da

criatividade para orquestrar a sobrevivência cotidiana apesar das fortes adversidades.

Esta diversidade cultural se expressa na religiosidade palpável no espaço. Qualquer

pessoa que faça um percurso rápido pelos bairros precários da cidade não pode

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59

deixar de notar a quantidade e variedade de marcas religiosas no espaço público:

imagens da Virgem nas suas diversas invocações: Luján, Caacupé, Copacabana,

Urcupiña etc.; cruzes e inscrições que indicam a presença de capelas cristãs

(católicas o evangélicas); pequenos “santuários” dos santos (Cayetano, Francisco,

etc.) que convivem com ícones populares de santidade como o Gauchito Gil, a

Difunta Correa, etc. São todas marcas que falam de uma religiosidade viva e

presente na vida cotidiana das pessoas nesses bairros. (SUÁREZ, 2014, p. 187)57

Portanto, para narrar os bairros periféricos ou villas da cidade de Buenos Aires

faz-se necessário observar e pensar as diversas práticas religiosas que despontam nessas

localidades. Tais mecanismos apresentam variadas estratégias que não devem ser vistas

apenas pelo enfoque do religioso na vida dessas pessoas, na medida que apresentam

funções como manutenção e afirmação de suas culturas e domínio do território.

Em entrevista que fizemos com o autor, ele afirma que esse elemento foi

importante para a construção da sua imagen da villa: “el libro podía haber comenzado

de otras diez maneras diferentes, porque la historia tiene tantas… cruces y aristas y

escenas fuertes que no habría problema con eso. Sin embargo, comienza con ellos en

una escena pública en el Río de Plata, pero íntima y religiosa, una ceremonia familiar,

religiosa de esperanza.” (Cristian Alarcón, entrevista pessoal, 15 de dezembro de 2015).

Ao ser indagado sobre o fato de todas as suas obras apresentam alguma relação

com o elemento religioso, o escritor confirma que é um ponto que lhe chama a atenção,

pois: “En esas escenas religiosas hay un profundo goce. Los sujetos están entregados a

una dinámica divinal, energética, que los mantiene excitados, porque están convencidos

de algo, que lo importante ahí es la certeza, el convencimiento, la creencia.” (Cristian

Alarcón, entrevista pessoal, 15 de dezembro de 2015). Ainda nessa direção, Rita Laura

Segato esclarece que:

Diferentes grupos parecem trabalhar activamente no processo de expansão tentacular

e se esforçam para imprimir nos lugares que habitam com marcas de uma paisagem

que emana cada vez mais da bagagem mental, de um estilo comportamental e de um

padrão edilício - estão criando território à medida que adicionam novos membros.

57

“Los asentamientos precarios de la ciudad de Buenos Aires, pese a la homogeneidad socio económica

de su población, conforman un espacio de una gran diversidad y riqueza cultural. Diversidad que se nutre,

entre otros aspectos, de la variedad de lugares de proveniencia de sus pobladores, de la habilidad de los

habitantes para insertarse en una ciudad que en muchos aspectos se presenta como hostil, de la creatividad

para orquestar la supervivencia cotidiana pese a las fuertes adversidades. Esta diversidad cultural se

expresa en la religiosidad palpable en el espacio. Cualquiera que haga un recorrido rápido por los barrios

precarios de la ciudad no puede dejar de notar la cantidad y variedad de marcas religiosas en el espacio

público: imágenes de la Virgen en sus diversas advocaciones: Luján, Caacupé, Copacabana, Urcupiña,

etc.; cruces e inscripciones que indican la presencia de capillas cristianas (católicas o evangélicas);

pequeños “santuarios” de los santos (Cayetano, Francisco, etc.) que conviven con íconos populares de

santidad como el Gauchito Gil, la Difunta Correa, etc. Son todas marcas que hablan de una religiosidad

viva y presente en la vida cotidiana de las personas en estos barrios.” (SUÁREZ, 2014, p. 187)

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60

Etnia e religião, em tempos de política de identidade, cada vez mais se reduzem ao

papel do repertório de emblemas que servem esta nova forma de modalidade da

territorialização – a etnicidade cada vez menos densa nos conteúdos que nós os

antropólogos chamamosde culturais e cada vez mais enfática nos aspectos icônicos e

estereotipados da tradição (o costume engessado); a religião cada vez mais

superficial em seu conteúdo doutrinário e na profundidade da discussão teológica

para dar espaço a ênfase nas fórmulas litúrgicas, disciplinares e ornamentais como

emblemas claros de pertencimento. (SEGATO, 2008, p. 44)58

Ou seja, durante as narrativas e no processo de apresentação das personagens, a

questão da religiosidade surgirá em diversas cenas, demonstrando como essa temática

aparece entre as mais importantes atividades dos habitantes da villa narrada. Nesse

sentido, cabe para nossa análise a observação de Rita Laura Segato, no que tange às

religiosidades dentro da nova ordem territorial contemporânea. Segundo ela, “as

tendências da religiosidadade contemporânea respondem a uma nova ordem territorial e

são percebidos em seu pleno significado quando são interpretadas à luz da

territorialidade que configura hoje nossa economia política do espaço” (SEGATO,

2008, p. 43).59

Logo destacamos marcas textuais que denotam a importância do âmbito

religioso dentro da obra, como, por exemplo, alguns elementos para-textuais. A capa da

primeira publicação do livro dá destaque à imagem de um Cristo Negro Crucificado, o

Señor de los Milagros.60

Além disso, o nome da villa fictícia criada pelo escritor no

romance é Villa del Señor (Favela do Senhor), remetendo a uma figura cristã.

E no decorrer da narrativa irão surgindo outros elementos de crença e usos dos

elementos religiosos como, por exemplo, a umbanda, o culto à Santa Morte, a leitura da

sorte feita por uma cigana, a importância de se realizar ritos como o casamento ou o

batismo, a utilização de entidades populares como Tata Bombori61

e Ekeko,62

entre

58

“Diversos grupos parecen trabajar activamente en procesos de expansión tentacular y se esfuerzan por

imprimir los lugares que habitan con marcas de un paisaje que emana cada vez más el bagaje mental, de

un estilo comportamental y de un padrón edilicio- van creando territorio a medida que agregan nuevos

miembros. Etnicidad y religiosidad, en tiempos de Política de la identidad, se reducen cada vez más al

papel del repertorio de emblemas que sirven a esta nueva modalidad de territorialización- la etnicidad

cada vez menos densa en contenidos que los antropólogos llamamos culturales y cada vez más enfática en

los aspectos llamados icónicos y estereotípicos de la tradición (la costumbre enyesada); la religión cada

vez más superficial en sus contenidos doctrinarios y en la profundidad de la discusión teológica para dejar

lugar al énfasis en fórmulas litúrgicas, disciplinarias y ornamentales como emblemas claros de

pertenencia.” (SEGATO, 2008, p. 44) 59

“las tendencias de la religiosidad contemporánea responden a un nuevo orden territorial y se perciben

en su pleno sentido cuando son interpretadas a la luz de la territorialidad que configura hoy nuestra

economía política del espacio”. (SEGATO, 2008, p. 43)

60 O Senhor dos Milagres. 61

Tata Bombori é um santo de devoção popular muito venerado por povoados afastados dos centros

urbanos da Bolívia. A imagem do Santo atrai todos os anos a milhares de visitantes para a cidade de

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61

outros. Cabe destacar a observação feita por Semán: “a modernização, muito mais que

liquidar a referência à religiosidade, gera instituições que redefinem a forma de

existência da religião” (SEMÁN, 2010, p. 100).63

Essa redefinição dos usos das práticas religiosas pode ser percebida nos

personagens que aparecem na trama circulando entre as diversas religiosidades e o

sincretismo está presente no romance da mesma maneira que podemos percebê-lo nas

ruas da Buenos Aires atual. Para esse trabalho, lançamos mão da definição de

sincretismo de Sanchis: “a tendência a utilizar relações apreendidas no mundo do outro

para ressemantizar o seu próprio universo”. Ou ainda:

o modo pelo qual as sociedades humanas (sociedades, subsociedades, grupos

sociais; culturas, subculturas) são levadas a entrar num processo de redefinição de

sua própria identidade, quando confrontadas ao sistema, simbólico de outra

sociedade, seja ela de nível classificatório homólogo ao seu ou não. (SANCHIS

apud SEMÁN, 2010, p. 102)

É comum encontrar na cidade as marcas de diversos tipos de religiosidade,

mescladas, fundidas como prática de fé. Os sujeitos circulam entre diferentes esferas do

religioso e parecem transitar entre diferentes territórios “sagrados”, conforme nos

aponta o sociólogo Pablo Semán: “Diferentes tipos de trajetória criam diferentes

possibilidades de apropriação que resultam em diferentes rotas no espaço religioso e na

definição do mesmo.” (SEMÁN, 2010, p. 73).64

Com o crescimento do fluxo de pessoas provenientes do Peru e de diversos

países limítrofes, a cidade passa a perceber a inclusão de elementos sagrados ou

religiosos que não são comuns à cultura argentina. As celebrações da Virgem de

Copacabana ou o culto a San la Muerte, considerada uma deidade pagã, passam a fazer

Bombori no norte de Potosí. Sua imagem se refere ao Apóstolo Santiago Mayor e se tornou o grande

padroeiro do Altiplano e da Bolivia. Nas histórias do Novo Testamento podem-se encontrar dois

apóstolos com o mesmo nome: Santiago Mayor e Santiago Menor. No caso da Bolivia, refere-se a

Santiago Mayor irmão do apóstolo e evangelista João. A utilização do nome Bombori está vinculada a

localiazação do povoado aonde se encontram os maiores números de devotos e a capela com a sua

imagem. 62

Ekeko (Equeco) é um símbolo característico da manifestação cultural religiosa popular proveniente das

montanhas andinas e até hoje é adorado na Bolívia, Peru e regiões do sul do norte do Chile e da

Argentina. Considerado um deus da riqueza, fertilidade e alegria. É um ídolo que proporciona abundância

aos que lhe realizam oferendas. Normalmente sua adoração é feita atraves de um boneco, que tem a forma

de um homem baixo, sorrindo, vestido com roupas típicas do altiplano e carrega a muitas sacolas. A

pessoa que lhe rende adoração deve depositar na imagem dinheiro, cigarros ou otras oferendas.

Atualmente a estatueta que o representa, tem um buraco na boca para inserção de um charuto ou cigarro. 63

“la modernización, mucho más que liquidar la referencia a lo sagrado, genera instituciones que

redefinen la forma de existencia de la religión” (SEMÁN, 2010, p. 100) 64

“Diferentes tipos de trayectoria crean diferentes posibilidades de apropiación que se traducen en

recorridos diferentes en el espacio religioso y en la definición del mismo” (SEMÁN, 2010, p. 73).

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62

parte não apenas dos usos que cada indivíduo faz de sua fé, integram o cenário da

própria cidade. Como observa ainda Pablo Semán: “Sincretismo é uma forma de

caracterizar os processos de inovação cultural, de elaboração de síntese e

compatibilização entre simbolismos” (SEMÁN, 2010, p. 102).65

Embora tenhamos muitos registros na Argentina de práticas de cunho popular,

como o Gauchito Gil66

e a Difunta Correa,67

o fenômeno que tem sido percebido com

maior destaque é o incremento de elementos que não são próprios da cultura argentina e

a utilização de diferentes formas de religiosidade “alheia” pelos indivíduos. Cabe

destacar nesse momento, que devido ao preconceito com relação à nova imigração, as

celebrações de suas religiosidades também são motivos de conflito, muitas vezes

provocando o rechaço e o apagamento de ditas festas (GRIMSON, 2011).

No romance de Alarcón, essas questões aparecem representadas na presença de

inúmeras identidades, de diversas nacionalidades, que pontuam a grande quantidade de

histórias diversas, constituindo a teia de um território ficcional no qual observamos os

conflitos vividos pelos novos imigrantes da cidade de Buenos Aires. Essa diversidade

faz com que ocorra um diálogo que possibilita o reconhecimento e a integração de

diferentes sensibilidades religiosas, que, por sua vez, dão lugar a “religiosidades que

hibridam o dogma oficial com as mais variadas determinações sociais e culturais”

(SEMÁN, 2010, p. 102).68

Cabe ressaltar que alguns dos episódios mais importantes da história ocorrem

em torno um rito69

religioso. O próprio romance inicia-se e termina com um desses

ritos. A questão do sagrado aparecerá de imediato na obra, pois o romance abre os

personagens envolvidos nas ações do culto religioso a Oxum:

65

“sincretismo es una forma de caracterizar los procesos de innovación cultural, de elaboración de

síntesis, y de compatibilización entre simbolismos …” (SEMÁN, 2010, p. 102) 66

Figura religiosa de devoção popular na Argentina, seu fundamento histórico está baseado na figura de

um trabalhador de área rural, símbolo da identidade argentina chamado Antonio Mamerto Gil Núñez.

Pouco se sabe de sua verdadeira história. É originário da província de Corrientes e existem diversas

versões para o motivo de sua santificação pela população. Não é reconhecido como santo pela liturgia

católica e as diferentes versões são passadas oralmente. 67

Santa de cunho popular que também apresenta inúmeras versões, a mais antiga data de 1878 e se baseia

em uma mulher que se chamava Deolinda Correa, da província de San Juan, também não é reconhecida

pela liturgia católica e suas versões são difundidas há anos oralmente. Como Gauchito Gil, possui muitos

devotos. 68

“religiosidades que hibridan el dogma oficial con las más variadas determinaciones sociales y

culturales” (SEMÁN, 2010, p. 102) 69

Utilizamo-nos da definição da palavra rito presente no Dicionário da Língua Portuguesa, destacamos

as seguintes definições: “1. Ordem prescrita da cerimônia que se praticam numa religião. 2. Cerimônias

religiosas próprias as diversas comunhões cristãs. 3. Qualquer cerimonial; seita; culto.”

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Alcira estira el satén amarillo sobre una tabla como si estuviera cubriendo un altar

con un mantel. Mandó a construir esa balsa de un metro por un metro tal como se lo

pidió la mai, una mujer de tamaño descomunal que la guía en el universo Umbanda

desde hace algunos meses. (ALARCÓN, 2012, p. 13)70

É a partir desse relato que a história da Villa del Señor passa a ser narrada e é

ainda na narração desse rito de Umbanda71

que seremos apresentados ao escritor como

mais um personagem da obra, sofrendo um forte conflito por se aproximar de forma tão

íntima da personagem. Trazendo ao texto experiências vividas por ele ao longo dos anos

de pesquisa que antecederam o romance, Alarcón assume o processo de criação da obra

como uma fusão entre realidade e ficção. A partir desta primeira cena já se anuncia a

impossibilidade de separar as duas esferas (a real e a ficcional) para a composição do

romance, ponto que trataremos no capítulo seguinte, configurando a questão da

“porosidade” definida por Florencia Garramuño (2011). O escritor se inclui na obra e

participa do rito: “Por eso llevamos hasta la orilla del Río de la Plata las manos cargadas

de fuentes de maíz hervido, figuras hechas en polenta y duraznos en almíbar: el color

del sol es el color de Oxún.” (ALARCÓN, 2012, p. 13).72

Pensando nas duas marcas textuais que o escritor nos traz inicialmente na sua

narrativa: a questão do “Señor de los Milagros” e o culto a Oxum, torna-se importante

ressaltar a análise do modo como os sujeitos transitam em diversas esferas do religioso.

Seguindo a abordagem de Pablo Semán que nos apresenta estas questões enfatizando a

necessidade de pensar os usos do religioso de forma “holística e cosmológica”

(SEMÁN, 2001). Em algumas sociedades atuais, este trânsito acontece de forma natural

sem conflitos ou constrangimentos, percebendo-se ainda como ponto de relevância o

uso político que se faz do religioso dentro de determinados grupos observados pelo

sociólogo:

Nestas formas diferenciais estão pesando as forças de diversos processos sociais,

políticos e religiosos e sua elaboração por sujeitos de setores populares e a sucessão

70

“Alcira estica o cetim amarelo sobre uma tábua como se estivesse cobrindo um altar com uma toalha de

mesa. Ele mandou construir essa jangada de um metro, conforme solicitado pela mãe de santo, uma

mulher de estatura enorme que a guia no universo da Umbanda há alguns meses.” (ALARCÓN, 2012, p.

13) 71

A antropóloga Rita Laura Segato desenvolve uma importante análise com respeito à expansão dos

cultos afro-brasileiros na Argentina, sinalizando entre outros fatores a busca por uma identidade negra

que foi apagada pelo processo homogeneizante de nação. Para uma análise mais detalhada consultar os

textos da autora que se encontram na bibliografia desse trabalho. 72

“Por isso levamos até a margem do Rio da Prata as mãos carregadas de vasilhas de milho cozido,

figuras feitas de polenta e pêssegos em calda: a cor do sol é a cor da Oxum.” (ALARCÓN, 2012, p. 13)

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de ditas formas mostra as linhas de transformação da religiosidade dos setores

populares urbanos.73

(SEMÁN, 2010, p. 74)

No romance de Alarcón, as diversas práticas religiosas denotam essa

transformação na forma dos indivíduos vivenciarem sua fé. Esta ultrapassa as

concepções que as priorizam levando em conta apenas o caráter extraordinário do

religioso ou uma alternativa que se utiliza “quando tudo fracassou”.74

Traz à cena

literária os mecanismos utilizados por esses atores marcados pelas questões da

desterritorialização e territorialização.

O personagem Alcira, que inicia o romance realizando a oferenda a Oxum,

também faz uso de outras práticas de fé, como a crença em uma deidade popular, que

vem ganhando campo e seguidores na cidade de Buenos Aires. Esta entidade

normalmente é associada à marginalidade, porém vem sendo objeto de culto e devoção

das mais diversas pessoas. Trata-se da Santa Morte75

:

¡Qué miedo! Es una calavera, o mejor dicho es un esqueleto completo, con una capa

negra. Ella, con su pobreza, vos sabés que lo quiere tanto, le profesa tanta devoción,

que le ha mandado hacer una guadaña de oro, igualita a la que se supone que usa la

muerte para llevarte! ¡De oro puro! ¡Un lujo increíble, la muerte ésta! (ALARCÓN,

2010, p. 210)76

A personagem caracteriza, portanto, o uso de diferentes formas de

religiosidade, transitando em diversas esferas do religioso, como observado no seguinte

trecho: “¡Qué impresionante como ella cree en todo! ¡Cómo se cuida! Cómo, por las

dudas, le prende una vela a cada santo. Nunca mejor usado el refrán. Ella en la entrada

tiene un San la Muerte…” (ALARCÓN, 2010, p. 210).77

Na trama poderemos ver Alcira realizando o culto a Oxum, respeitando a sua

mãe de santo, que a guia e aconselha, e também recorrendo à Santa Morte para

73 “En estas formas diferenciales están pesando las fuerzas de diversos procesos sociales, políticos y

religiosos y su elaboración por sujetos de sectores populares y la sucesión de dichas formas muestra las

líneas de transformación de la religiosidad de los sectores populares urbanos”. (SEMÁN, 2010, p. 74) 74

“cuando todo fracasó” (SEMÁN, 2010, p. 71). 75

Santa Morte ou San la Muerte - figura sagrada de cunho popular, seu culto é muito difundido no

México, não se sabe ao certo sua origem. Normalmente, foi fruto de devoção por presos, comerciantes

ilegais, pobres e narcotraficantes, porem sua veneração tem ganhado inúmeros fiéis e alcançando diversos

países. Por ser associada aos menos favorecidos, é comum encontrar culto à Santa Morte nas periferias e

uma grande adesão por parte dos imigrantes. 76

“Que medo! É um crânio, ou melhor, dizendo, é um esqueleto completo, com uma capa preta. Ela, com

sua pobreza, você sabe que ela ama tanto essa caveira, professa tal devoção que mandou fazer uma foice

de ouro, igualzinha a que se imagina que a morte usa para nos levar. De ouro puro! Um luxo incrível, essa

morte!” (ALARCÓN, 2012, p. 210) 77

“Que impressionante como ela acredita em tudo! Como se cuida! Como, por via das dúvidas, ela

acende uma vela para cada santo. Nunca esse ditado foi tão bem usado. Ela na entrada tem um San La

Muerte” (ALARCÓN, 2012, p. 210)

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proteger-se. Ao mesmo tempo, casa-se pela Igreja Evangélica e batiza seu filho pela

Igreja Católica. Escuta ainda conselhos dados por uma cartomante. Ou seja, o mesmo

personagem circula em diversas esferas do religioso, como constatado por Pablo Semán

em seus estudos sobre a religiosidade dos setores populares, em especial de algumas

periferias portenhas. Há nesses espaços uma fluidez e mobilidade religiosa que

conforma fronteiras tênues no que diz respeito ao uso dessas práticas. Nesse sentido

Suárez observa que:

as paróquias, templos e demais lugares vinculados ao culto adquirem para os

povoadores dos assentamentos conotações peculiares, que vão mais além de ser

espaços para a prática religiosa; são espaços onde, pelas situações de vida dos

habitantes de assentamentos, as pessoas, através das atividades propostas, “somam”

nas várias dimensões que fazem às possibilidades de ir ganhando “agência” e

autonomia. (SUÁREZ, 2014, p. 203)78

Também o escritor que aparece como narrador e personagem, e que no início

participa do culto a Oxum, em uma das passagens recorrerá a uma prática de fé de

cunho popular, quando consulta a uma bruxa colombiana para que esta lhe leia a sorte:

la visita a la bruja rindió sus frutos cuando regresé. Alcira se aferraba tanto a las

creencias en deidades paganas y hechizos andinos que el argumento de una bruja del

Caribe sobre lo de firmar juntos el mismo papel me resultó ideal para espantar la

idea del padrinazgo. (ALARCÓN, 2012, p. 131)79

No decorrer da narrativa, percebemos outro elemento que sinaliza a

importância dos aspectos religiosos dentro do texto e como estes nos podem levar a uma

leitura mais complexa dos sujeitos que habitam esse espaço narrado. O escritor diz que

em muitos momentos da trama se utiliza do que ele denomina de “ retazos de memória”

(Cristian Alarcón, entrevista pessoal, 15 de dezembro de 2015). Enfatiza que estes

foram importantes para representar o trânsito dos personagens nas distintas celebrações

e ritos religiosos.

No livro aparece com frequência a menção ao Señor de los Milagros. Este,

originalmente, é conhecido como o santo padroeiro dos peruanos e assume um papel de

importância dentro da trama. Vários personagens recorrerão a este santo e lhe atribuirão

78

“las parroquias, templos y demás lugares vinculados al culto adquieren para los pobladores de los

asentamientos connotaciones peculiares, que van más allá de ser espacios para la práctica religiosa; son

espacios donde, por las situaciones de vida de los habitantes de asentamientos, las personas, a través de

las actividades propuestas, “suman” en las varias dimensiones que hacen a las posibilidades de ir ganando

“agencia” y autonomía.” (SUÁREZ, 2014, p. 203) 79

“A visita à bruxa rendeu seus frutos quando voltei. Alcira se agarrava tanto nas crenças em divindades

pagãs e feitiços andinos que o argumento de uma bruxa do Caribe sobre o perigo de termos juntos nossas

assinaturas no mesmo papel foi para mim o ideal para espantar a ideia de ser padrinho de seu filho.”

(ALARCÓN, 2012, p. 131)

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um sentido de consolo aos imigrantes: “el Señor de los Milagros, la masiva imagen del

Cristo Negro de los peruanos que se repite en cada capital del mundo donde un

inmigrante añore su tierra, lo conmueve” (ALARCÓN, 2012, p. 39).80

Percebemos que a figura do Cristo moreno, o padroeiro dos peruanos, é um

fator importante para pensar a construção da obra e da própria favela. Ele aparece

mencionado em vários momentos da narrativa. Esse Cristo que representa um

importante símbolo para a identidade peruana conforma, dentro da favela retratada, a

presença da forte imigração e a importância da religiosidade no interior desses espaços.

É importante sinalizar que esse mesmo Cristo é o que aparece na capa e dá

nome a villa fictícia. No último capítulo, que traz uma das cenas mais importantes de

disputa de território e poder, acontece justamente na procissão ao Cristo dos Milagres.

É interessante pensar a capa da primeira edição e a mudança que ocorre na

capa das publicações seguintes (ANEXO 2). A primeira edição traz a imagem do Cristo

Moreno, padroeiro dos peruanos e antecipa ao leitor que essa temática será um ponto

chave para a leitura da obra. A aproximação da foto dessa imagem religiosa com um

vocabulário que remete a tráfico dentro das favelas portenhas (Se me querés quereme

transa) provoca estranhamento por relacionar as práticas religiosas populares com o

universo do delito.

A relação entre as questões sagradas e o mundo do crime também pode ser

verificada em outras obras como La Virgem de los sicarios, de Fernando Vallejo, ou Le

viste la cara a Dios, de Gabriela Cabezón. Essa característica já se destacava no

primeiro livro publicado por Alarcón (Cuando me muera quiero que me toquen

cumbia). No romance de Alarcón também encontraremos essa relação entre crime e

religiosidade, porém na obra essa temática vai mais além, e sinaliza as práticas

religiosas populares como mecanismos comuns aos habitantes das periferias portenhas.

Ao indagar o escritor sobre a questão da mudança da capa em entrevista

pessoal, ele disse que a alteração ocorreu apenas por um motivo financeiro. Pois houve

um problema entre o fotógrafo responsável pela foto da primeira publicação e a editora

80

“O Senhor dos Milagres, a massiva imagem do Cristo Negro dos peruanos que se repete em todas as

capitais do mundo onde um imigrante sinta saudade de sua terra, o comove.” (ALARCÓN, 2012, p. 29)

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“Hubo un problema con el fotógrafo y se rompió la relación”. (Cristian Alarcón,

entrevista pessoal, 15 de dezembro de 2015)

E explica essa transição: a foto utilizada para as publicações seguintes é uma

doação de uma fotógrafa amiga (Donna De Cesare),81

que realizou um projeto

fotográfico registrando os Mara Salva Trucha.82

. Alarcón acrescenta que embora a

primeira capa possua uma relação mais forte com sua narrativa, sentiu-se honrado com a

doação, pois comparando as duas fotos que aparecerão na capa de seus livros percebe

uma afinidade entre o seu trabalho e o projeto da fotógrafa. Ele sinaliza que:

Si bien los personajes son completamente distintos, lo cierto es que la perspectiva

con la que trabaja Donna De Cesare, la mirada sobre las personas que tiene sus

fotos, es una mirada muy parecida a la mía, tiene mucha relación con la mía, hay un

gran trabajo con distintos métodos” segundo o autor se assemelham entre eles “ la

ética y las formas de construir miradas cuando se llega a los territorios de los más

vulnerables, donde las violencias son más fuertes. (Cristian Alarcón, entrevista

pessoal, 15 de dezembro de 2015)

O escritor continua explicando que, mesmo diante do fato da foto utilizada

trazer personagens que não se relacionam diretamente com o que pretende narrar, ocorre

uma comunicação, um diálogo, com o trabalho dessa fotógrafa. Acrescenta ainda que:

“El libro fue muy influenciado por ciertas conversaciones, artistas, escritores,

académicos, juristas y protagonista de distintos lugares. Trabajé mucho en

Centroamérica, trabajé en México, Peru, acá en Brasil”. E continua “A mí me gusta

mucho el viaje, el viaje es para para mí central.” (Cristian Alarcón, entrevista pessoal,

15 de dezembro de 2015)

Alarcón afirma ainda que o contato com a festa do Cristo Moreno foi muito

importante para criar a villa narrada. E que muitos momentos do romance e nas

características dos personagens surgem costumes tipicamente peruanos, porém que o

81

Donna De Cesare renomada fotógrafa nova-iorquina. Depois de terminados seus estudos universitários

em literatura na Universidade de Essex, Inglaterra (1979), começou a trabalhar como fotógrafa, escritora

e depois como um cinegrafista. De Cesare ganhou prêmios nacionais e internacionais por suas foto-

reportagem sobre a violência de gangues nos Estados Unidos e na América Latina. O prêmio mais recente

foi o primeiro lugar na competição de 2002 NPPA, Melhor Fotojornalismo por seu ensaio fotográfico

sobre a Colômbia, publicado por Crimes de Guerra e realizou um importante trabalho fotográfico com o

grupo Mara Salva Truchas. 82

O Mara Salva Trucha é uma organização criminosa internacional que teve sua origem em Los Angeles

e se expandiu para outras regiões dos Estados Unidos, Canadá, México e norte da América Central. Essa

gang é conhecida por utilizar diversas tatuagens pelo corpo, inclusive no rosto como forma de marcar o

pertencimento à organização. Possuem um código moral próprio e registros de excessiva violência e

crueldade. Entre suas atividades criminosas encontram-se registros de extorsão, sequestro, tráfico

humano, tráfico de drogas, assassinato, venda de armas, entre outros.

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contato com outros países não foi menos fundamental para a criação do seu segundo

livro.

Portanto, em nossa argumentação, assim como para o autor, a capa da primeira

publicação a que traz um Cristo crucificado é a que se aproxima de nossa leitura e pelo

que constatamos com a entrevista, da proposta inicial do projeto pensado pelo escritor.

O autor afirma que para o romance a presença peruana é algo marcante para a criação da

narrativa e dos personagens. Porém analisando a segunda capa também podemos

realizar uma leitura que se associa com a narrativa, o fato de que ela é construída por

uma junção de muitas experiências, e da impossibilidade de demarcar um território

único.

A religiosidade perpassará toda a narrativa, ao abrir a trama com um culto a

Oxum e finalizá-la com uma procissão em homenagem ao Cristo Negro, na qual os

indivíduos saem de seus espaços periféricos e transitam pelas ruas da cidade, fecha-se o

ciclo. Nesse instante da festa, deixam sua condição periférica e assumem um papel de

importância que transcende o território. Podem, através de suas práticas, realizar uma

comunicação com os demais membros da sociedade, afirmando sua cultura e ainda

reivindicando os espaços mais centrais da cidade.

Na obra isto se verifica principalmente na festa e culto ao Senhor dos Milagres,

e na realidade da cidade podemos encontrar o mesmo fenômeno nas diversas festas que

ocorrem ao longo do ano organizadas pelas diferentes coletividades existentes na

Buenos Aires atual, como, por exemplo, a festa de Nossa Senhora de Copacabana ou a

da Virgem de Caacupé.

No romance, podemos verificar que quando estão planificando os preparativos

para a cerimônia assumem diversos papéis organizando-se e, no momento dessa

celebração, as diferenças entre as etnias são minimizadas. Na hora da procissão, os

diferentes micro territórios se unem para um bem maior, não mais importa se um grupo

é de peruanos, ou bolivianos, e sim pedem, marcham, cantam pela causa dos imigrantes.

É aqui onde a fé assume um papel político, e a apropriação do território surge como

palco de encenação para essas questões. Tal união é retratada no texto como podemos

observar no trecho a seguir:

Tres campanazos y los hermanos, sincronizados en un solo movimiento, doblaron

las rodillas, se calzaron los maderos al hombro y levantaron La imagen Del Señor

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desbordada de flores y velas. Eran dos tablones a lo largo, como en todas partes,

como en todo el mundo, con el Señor de los Temblores, mecido sobre las andas

plateadas. La banda pasó del himno del Señor a una marinera dedicada al santo de

los santos, mientras un millar de devotos y unos quinientos curiosos salieron en

procesión. Los hijos de todos acompañaban el cortejo vestidos de gala. Los hijos del

resto de los vecinos curioseaban y aprovechaban para ensordecer con sus cohetes,

como en una Navidad anticipada. El barrio entero se había juntado alrededor de los

puestos de comida de Bonavena, esperando que se acercara la columna de fieles,

después de rodear la villa por la avenida Galíndez, la avenida Monzón y la calle Sin

Apellido. La fiesta era pura contentura popular, y se atizaba con chicha morada, con

vino con soda y, sobretodo, con la cerveza que en el paladar peruano habita como la

hiedra en la piedra, y nunca es demasiada. (ALARCÓN, 2012, p. 283-284)83

Na prática desse rito que, à primeira vista, parece ser apenas religioso,

podemos perceber como sinalizado por Semán, que existem outras questões a serem

observadas. A procissão assume um caráter festivo e reúne diversos atores que não estão

participando diretamente do rito em si, mas que se tornam espectadores. Todo o bairro

participa desse momento, seja pela fé ou pela festa, em que o consumo de produtos

típicos se faz presente:

la fiesta popular prendió el comercio y el consumo y a cada paso los menos

creyentes aprovechaban para sentarse a tomar y comer, mientras los más fieles

mantenían el ritmo de la lenta caminata. La escena se desarrollaba en dos

velocidades simultáneas: los penitentes, a su cadencia de himnos melancólicos, y el

resto, los cuerpos del festejo, entregados a las músicas que salían de cada bar

improvisado, de cada pollada, de cada ventana, que se movían encendidos.

(ALARCÓN, 2012, p. 289)84

A partir dessa festa popular que se desprende de uma celebração religiosa,

podemos ler a negociação que os atores realizam com os demais membros da sociedade,

saindo dos espaços periféricos e ocupando as principais ruas da cidade. Nesse sentido,

seus rituais e cerimônias próprias abrem palco num espaço percebido como liberado

da homogeneidade antes garantida por uma administração forte, e seus ícones

passam a funcionar como verdadeiras logomarcas do grupo. É por onde se

83

“Três badaladas e os irmãos, sincronizados em um só movimento, os joelhos dobrados, madeiras

colocadas no ombro e levantaram a imagem do Senhor transbordada com flores e velas. Eram duas tábuas

compridas, como em todos os lugares, como em todo o mundo, com o Senhor dos Tremores, embalado na

maca prateada. A banda passou do hino do Senhor para uma ladainha dedicada ao santo dos santos,

enquanto mil devotos e unos quinhentos curiosos saíram em procissão. Os filhos de todos acompanhavam

a procissão vestidos de gala. Os filhos do resto dos vizinhos bisbilhotavam e aproveitavam para fazer

barulho com seus fogos de artifício, como em um Natal antecipado. Toda a vizinhança se reunia ao redor

das barracas de comida da Bonavena, esperando que se aproximassem os fiéis, depois que rodearam a

favela pela avenida Galíndez, a avenida, Monzón e a rua Sem Nome. A festa era puro contentamento

popular, e esquentava com chicha, vinho com soda e, especialmente, com a cerveja que para o paladar

peruano nunca é demais.” (ALARCÓN, 2012, p. 283-284) 84

“a festa popular agitou o comercio e o consumo e a cada passo os menos crentes aproveitavam e

sentavam-se para beber e comer, enquanto os mais fiéis mantinham o ritmo da lenta caminhada. A cena

acontecia em duas velocidades simultâneas: os penitentes, com sua cadencia de hinos melancólicos, e o

resto, os corpos do festejo, entregados ás músicas que saiam de cada bar improvisado, de cada festinha, de

cada janela, que se movimentavam alvoroçados.” (ALARCÓN, 2012, p. 289)

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estampam seus ícones e acontecem seus rituais que circula o território cada vez mais

móvel do grupo. (SEGATO, 2008, p.45)85

É nesse momento que os imigrantes, ao marcharem, entoarem seus cantos e

tomarem as diversas ruas, mudam de posição, assumem destaque e passam a comunicar-

se com os demais membros dos espaços, que podem ser moradores da periferia ou não.

Como mencionado no trecho, vários curiosos participam desse momento, e mesmo os

que não os aceitam são surpreendidos por sua celebração, escutam suas músicas e

assistem sua procissão. Dessa forma acabam por participar de maneira indireta,

propiciando um diálogo entre os dois polos da cidade, a periferia e o grande centro.

Essa organização da festa e procissão do Cristo Negro também pode observada

nas diversas festas pátrias que acontecem ao longo do ano na cidade de Buenos Aires.

São momentos que geram inúmeros discursos com respeito à imigração limítrofe. O

escritor traz para a narrativa a representação dessas questões e nos possibilita verificar

que o uso de práticas religiosas apresenta mais questões do que as relacionadas somente

com o âmbito religioso. E ainda nos demonstra que tanto a religiosidade como os

demais costumes culturais dos imigrantes presentes no romance confirmam que o que

de fato está em jogo é a apropriação do território.

No último capítulo do romance, a luta travada por dois grupos de

nacionalidades diferentes pelo controle do tráfico de drogas na Villa del Señor ocorre ao

mesmo tempo que a procissão religiosa e o evento preparado por toda a comunidade

acaba sendo palco de uma imensa disputa na qual alguns personagens são mortos. A

narração termina por retomar a importância do rito religioso, imbricado com outras

práticas, fechando a narrativa com a representação de uma celebração na qual se unem o

sagrado e o profano da festa. Dessa forma, a violência descrita termina sendo

minimizada, pois, apesar da explosão de violência, os personagens retomam o propósito

daquele dia, que era a procissão, momento alto de suas práticas culturais:

Sin músicos ni bailarines, llevado en andas por algunos sobrinos del capo y seguido

sólo por un grupo de mujeres, el Cristo de las Maravillas volvió a la calle Bonavena,

cruzó, se adentró por un pasillo a la villa del Señor y llegó al sitio que se le había

preparado para que descansara al final de la peregrinación. En la canchita de los

paraguayos, allí donde la sangre de los jefes peruanos que antecedieron a Marlon

había sido derramada, doña Mari y sus hijas, con la ayuda de la soldadesca, habían

85

Sus rituales y ceremonias propias abren palco en un espacio percibido como liberado de la

homogeneidad antes garantizada por una administración fuerte, y sus íconos pasan a funcionar como

verdaderas logo- marcas del grupo. Es por donde se estampan sus íconos y acontecen sus rituales que

circula el territorio cada vez más móvil del grupo. (SEGATO, 2008, p.45)

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armado una alfombra de flores: el barro apisonado de la cancha, oculto bajo un

manto de margaritas de color. El cuerpo herido de Cristo, su corona dorada, se

bamboleó por última vez y, lento, con la suavidad de los penitentes, consolado por la

voz de las mujeres que cantaban su himno, descendió a la tierra. (ALARCÓN, 2012,

p. 297)86

Com esse trecho relacionado à procissão se encerra a narrativa e se reforça a

importância da realização dessa prática para os personagens. Outro ponto interessante é

que na festa celebrada para o santo padroeiro dos peruanos, a pessoa responsável pela

organização é uma boliviana. Dona Mari, figura que assume um lugar de respeito dentro

da favela, é quem trabalha incansavelmente para que a festa aconteça apesar de todos os

problemas e conflitos entre os que travam uma verdadeira guerra pela disputa territorial

do trafico dentro da Villa del Señor: “Es extraño, pero ni siquiera su hija, o sea la esposa

de Marlon Aranda, ocupaba el lugar privilegiado en la fiesta que ella ocupaba. Más

extraño aún: doña Mari no era peruana, sino boliviana. Como sea, andina y exultante…”

(ALARCÓN, 2012, p. 290).87

Ou seja, de acordo com nossas observações e leitura da obra, o que pretendem

os imigrantes com as diversas manifestações é apropriar-se do espaço periférico,

mostrar algo de seu para a cidade através de seus ritos e utilização de elementos que

remetem a suas culturas. Com isso, eles formam parte do espaço, tem o direito à

utilização do mesmo e querem ser aceitos como parte integrante da sociedade. Buscam

ser respeitados sem que seja necessário anular-se ou negar suas origens e as diferenças

entre as diversas etnias, em algum, momento podem ser minimizadas para a

reivindicação de algo que seja comum e importante aos que habitam os espaços

periféricos.

Observamos que as diferentes práticas dos imigrantes na contemporaneidade

apresentam a função principal de domínio e apropriação do novo território. Constatamos

também que devido ao grande número de diferentes nacionalidades, a urbe portenha tem

experimentado um diálogo fluido com novos usos de diferentes práticas religiosas

86

“Sem músicos nem bailarinos, levado em uma maca por alguns sobrinhos do narco e seguido apenas

por um grupo de mulheres, o Cristo das Maravilhas voltou para a Rua Bonavena, atravessou, entrou por

um corredor na favela do Senhor e chegou ao local que lhe haviam preparado para descansar no final da

peregrinação. No beco dos paraguaios, onde o sangue dos chefes peruanos que antecedeu a Marlon tinha

sido derramado, Dona Mari e suas filhas, com a ajuda dos soldados, tinham montado um tapete de flores:

o barro pisado do beco, escondido sob um manto de margaridas coloridas. O corpo ferido do Cristo, sua

coroa dourada, oscilou pela última vez e lento, com a suavidade dos penitentes, confortado pela voz de

mulheres cantando seu hino, ele desceu a terra.” (ALARCÓN, 2012, p. 297) 87

“É estranho, mas nem sequer sua filha, ou seja, a esposa de Marlon Aranda, ocupava o lugar

privilegiado na festa que ela ocupava. Mais estranho ainda: Dona Mari não era peruana, e sim boliviana.

Como seja, andina y exultante…” (ALARCÓN, 2012, p. 290)

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populares. Uma vez que para esses imigrantes, suas celebrações apresentam uma forte

carga de resistência frente aos diversos preconceitos, este acaba por ser um elemento de

negociação crucial no novo cenário.

Para exemplificar trazemos o exemplo de algumas fotos tiradas em ruas de

Buenos Aires (ANEXO 3) , em que podemos perceber o que discorremos até o

momento. Em um mesmo espaço vemos duas imagens paradoxais no que tange ao

sentido religioso de cada uma, de um lado temos a imagem de Cristo, do outro a da

Santa Morte, e também encontraremos um pequeno santuário feito por algum devoto,

ocupando o mesmo local “sagrado”, teremos um dos ícones da religiosidade popular

argentina El gauchito Gil dividindo o espaço com a Santa Morte. E ainda

encontraremos uma diversidade de santos populares comuns à cultura argentina ou não

nas “santerías”88

que podem ser encontradas em diversos bairros. (ANEXO 3)

Como vimos para a narração desse espaço e desses indivíduos o escritor

utilizou-se de muitos elementos da realidade atual da urbe portenha e também recorreu

às experiências por ele vividas ao longo de suas investigações jornalísticas. Nossa

proposta, nesse momento do trabalho, é analisar as estratégias utilizadas pelo autor para

dar vida à Villa del Señor, a seus personagens e para tecer a trama das diversas histórias

que constituem o romance.

88

Loja que vende produtos e artigos religiosos.

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4. - A INVENÇÃO DA VILLA MISERIA: ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS, A

POROSIDADE DA NARRATIVA DE CRISTIAN ALARCÓN

Copiar a realidade pode ser uma boa

coisa; mas inventar a realidade é melhor,

muito melhor.

Giuseppe Verdi

A citação retirada da epígrafe de “Quatro esperas”, texto publicado no livro O

Discurso e a cidade de Antonio Candido (1993, p. 153) faz clara referência ao que

vamos tratar nesse momento. Como vimos ao longo dos capítulos desse trabalho, a

favela ficcional criada pelo autor do romance é o ponto chave para a leitura da narrativa,

sendo esta a grande personagem da obra. Ela é inventada com os elementos encontrados

na urbe contemporânea e com dados recolhidos ao longo dos anos em que o escritor

realizou trabalhos investigativos, estando em contato com diferentes espaços da cidade.

Para melhor entendimento dessa criação, faz-se necessário realizar um rápido percurso

na trajetória do escritor.

Cristian Alarcón, autor Si me querés quereme transa, nasceu no Chile e está

radicado na Argentina desde os quatro anos de idade. Apresenta uma grande experiência

no campo jornalístico: possui licenciatura pela Faculdade de Jornalismo e Comunicação

Social da Universidade de La Plata, onde foi professor e atualmente é diretor de Pós-

graduação em Jornalismo Cultural.

Atua também como redator, cronista e fundou a rede de jornalismo policial

latino-americana Cosecha Roja, bem como a revista digital Anfibia, que reúne diversas

crônicas de novos escritores, que apresentam textos nos quais o foco está nos problemas

sociais contemporâneos.

Durante dez anos trabalhou como redator de crônicas sobre conflitos e

violência no Conurbano Bonaerense89

para o jornal Página 12. Após esse período,

continua realizando trabalhos sobre essa mesma temática e escreve crônicas para as

revistas TXT, Gatopardo, Rolling Stone e para o jornal Crítica.

89

Denominação utilizada para os diferentes trinta municípios que rodeiam a cidade de Buenos Aires e se

dividem atualmente em três grandes cordões ou áreas.

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Devido a essa experiência no campo jornalístico, seus textos apresentam forte

presença de um estilo de escrita que poderíamos aproximar ao New Journalism. Possui

três livros publicados: Cuando me muera quiero que me toquen cumbia (editora Norma,

2003), Si me querés quereme transa (editora Norma, 2010) e Un mar de castillos

peronistas, (editora Marea, 2013). Este último reúne uma seleção e compilação de

crônicas escritas e publicadas anteriormente, que trazem diversas experiências do autor

em Buenos Aires e em outras cidades.

Para compor seus livros, o escritor transita livremente pelas duas esferas da

narrativa: a literária e a jornalística. Podemos perceber a mescla dos dois diferentes

estilos de modo explícito na estrutura de sua segunda obra, Si me querés quereme

transa, livro que é o foco desse trabalho.

O escritor compõe um texto de não-ficção no qual as técnicas do novo

jornalismo e da ficção tornam-se imprescindíveis para dar conta dos fatos de nossa

atualidade. Esse procedimento foi denominado de “realidadficción” por Josefina

Ludmer (2007, p.01,02) para mostrar que nestas escritas realidade e ficção não podem

ser facilmente identificadas.

A forte presença do jornalismo é o que faz com que sua escrita e seus livros

possam ser denominados como textos de investigação, relatos ou crônicas. Antes de

publicar Cuando me muera quiero que me toquen cumbia, o autor lançou

primeiramente, de forma isolada, alguns capítulos que integraria o livro como crônicas,

no jornal Página 12. Um dos capítulos de Si me querés quereme transa aparece

publicado como crônica em sua obra posterior ao romance, Un mar de castillos

peronistas. Ao mesmo tempo encontramos em seu romance Si me querés quereme

transa fragmentos de crônicas que foram publicadas anteriormente.

Sua segunda obra vem recebendo críticas positivas no campo literário, mas a

parte da trama que está dedicada ao tráfico de drogas faz com que a violência do mundo

do delito ganhe maior visibilidade e quase oblitere para muitos leitores outros elementos

constitutivos do romance. Por conta disso, certas questões da obra literária acabam por

ser postas em segundo plano. Em uma conversa que tivemos no final do ano de 2015,90

o autor revela algo que lhe foi recomendado por um amigo, escritor e crítico literário:

90

Entrevista pessoal realizada com o autor em dezembro de 2015.

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El poeta Sergio Parra, en una noche de tragos con Pedro Lemebel, cuando apenas

nos estábamos conociendo, me dijo: “nunca dejes que te traten como un experto en

narcotráfico, nunca dejes que te traten como un experto en violencia, nunca dejes

que te traten como un experto en ladrones ni en nada de lo que vayas investigar”.

(Cristian Alarcón, entrevista pessoal, 15 de dezembro de 2015)

Mesmo compreendendo que suas duas publicações trazem à cena de forma

bastante forte a questão da violência e do narcotráfico no território periférico, pois

ambas foram fruto de uma investigação jornalística que Cristian Alarcón desenvolveu

ao longo de quatro anos, nossa proposta de análise de sua segunda obra é justamente

desviar o nosso olhar em direção às representações das pessoas que habitam o espaço,

privilegiando outras práticas cotidianas desses indivíduos para além dos estereótipos da

miséria, da falta de oportunidades e da violência. Esta opção metodológica não apaga a

força temática relacionada às redes de narcotráfico e suas articulações, mas abre novos

pontos de interlocução e de leitura da obra.

O projeto de escrita para seu primeiro livro surge de uma investigação pautada

pelo jornal que trabalhava. Naquele momento Alarcón deveria apurar a crescente

violência que vitimava jovens pobres da periferia e tentar estabelecer uma relação das

ações da polícia com essa mortes em uma villa do Conurbano localizada em São

Fernando: “ En San Fernando estuve todo el tiempo libre que me quedaba entre 1997 y

2000 y 2000 y 2003.” (Cristian Alarcón, entrevista pessoal, 15 de dezembro de 2015).

Concomitante a isto, ele fez uma investigação sobre as articulações do

narcotráfico dentro e fora da Argentina, realizando diversas viagens à Colômbia,

Bolívia, Peru, Chile, México e também Brasil. Este trabalho o fez observar essa

realidade do submundo da droga e entrevistar diversos atores, não apenas dentro de

villas argentinas, mas também desses outros países, sempre voltando seu olhar para os

territórios e sujeitos denominados periféricos.

Essas investigações que seguiram o rigor do trabalho jornalístico, a checagem

minuciosa dos dados, o recolhimento de diversas entrevistas e a busca pela verdade lhe

renderam muitas experiências e o contato com pessoas de diferentes territórios. Vale

ressaltar que a relação direta com os perigos que uma pesquisa com narcotraficantes

representa aparece constantemente nas linhas de seus textos. Assim como a sua

dimensão humana, que se manifesta diante de estreitos laços de afeto que surgem no

decorrer dos anos a partir do contato frequente com as pessoas devido ao processo

investigativo. Podemos ler em seu romance:

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cualquiera podía imaginar a un autor temeroso en medio de una ardorosa

investigación sobre narcos, acosado por los secretos del negocio, la paranoia de los

capos, el pérfido interés de los jueces y la policía en sus archivos. Nadie apostaría a

que el miedo a chocar y quedar atrapado entre latas de carrocería fue el único que

me atravesó en estos cuatro años de inmersión. (ALARCÓN, 2012, p. 221)91

Os conflitos vividos internamente pelo autor são explicitados nas histórias,

bem como em entrevistas oferecidas pelo escritor nos meios acadêmicos e em

programas relacionados à literatura. O autor afirma que essa relação tão próxima com os

entrevistados foi um dos aspectos mais difíceis de elaborar no período de sua escrita.

Essa questão é bem marcante na fatura de Cuando me muera quiero que me toquen

cumbia e também aparece retratada em Si me querés quereme transa.

Tais vivências ocupam um lugar em sua narrativa, e podemos perceber que o

surgimento de sua segunda publicação somente ocorre devido à experiência do trabalho

de campo que derivou no seu primeiro livro. É essa relação que gostaríamos de

desenvolver em seguida. Em suas três obras publicadas torna-se difícil separar a escrita

e o olhar do jornalista, o cronista do escritor literário. Essa tensão que se processa de

modo poroso culmina em sua segunda publicação, o romance que tratamos aqui.

Para o autor,92

foi apenas no momento em que se afastou da realidade narrada

que conseguiu escrever de forma mais impessoal, sem sofrer com os fatos ou envolver-

se com as pessoas, como ocorreu em seu primeiro livro. Alarcón resume em poucas

palavras o processo de escrita dos dois livros: “Ya en Si me querés, en lugar de

territorializar yo desterritorialicé” (Cristian Alarcón, entrevista pessoal, 15 de dezembro

de 2015).

Diferente de seu primeiro livro, teremos neste romance uma narrativa

complexa, polifônica que traz em seu texto a representação de uma das questões mais

discutidas na atualidade e nas representações literárias sobre o Conurbano Boanarense:

a villa, seu crescimento e seus atores. Para realizar uma análise da construção literária

de Si me querés querme transa faz-se necessário lançar um rápido olhar para sua

91

“qualquer um poderia imaginar a um autor temeroso em meio a uma ardorosa investigação sobre

traficantes, acossado pelos segredos do negocio, a paranoia dos chefes de tráfico, o pérfido interesse dos

juízes e da policia em seus arquivos. Ninguém apostaria que o medo a bater e ficar preso entre a lataria de

um carro foi o único que me atravessou nesses quatro anos de imersão. (ALARCÓN, 2012, p. 221)

92 O autor já havia feito essa afirmação em diversas entrevistas, e em nossa conversa novamente retoma

esse ponto, e enfatiza que o distanciamento tanto das pessoas quanto dos territórios foi fundamental e

necessária para a escrita de seu romance.

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primeira publicação, Cuando me muera quiero que me toquen cumbia. Esse livro é fruto

de um minucioso trabalho de investigação jornalística. Durante seu processo de escrita,

por quatro anos, o autor observou diariamente e de forma muito próxima o território

periférico. Nesse período aproximou-se dos moradores, especialmente dos adolescentes,

criando vínculos de amizade, que são retratados na própria narrativa.

Cristian Alarcón fez um trabalho de jornalismo investigativo com

características etnográficas e antropológicas da observação participativa. Ele vai às

festas com os adolescentes, frequenta suas casas e realiza inúmeras entrevistas com

numerosos moradores. Durante essa intensa observação lhe chama a atenção um fato

curioso: os jovens delinquentes possuem um santo protetor que os defende quando saem

para realizar seus roubos.

Esse “santo” é um personagem local que assumirá um lugar importante no

projeto do escritor, que observa como há uma forte relação entre o mundo do delito e o

da religiosidade dentro dos territórios periféricos. Essa será uma temática constante em

todas as suas publicações.

A figura que assume um papel central no plano da religiosidade da villa de San

Fernando é um adolescente que foi executado pela polícia de forma covarde e que se

converte “santo” para os demais jovens. Víctor “El Frente” Vital, após sua morte,

transforma-se em um mito, um santo digno de receber orações e oferendas. Por isto, é

um modelo para os meninos que o admiravam e veem no mundo do crime uma

possibilidade de obter os bens de consumo e ascensão social dentro da villa.

O autor transcreve as entrevistas realizadas a diversos atores da villa e aos

poucos vai revelando as características que levaram esse adolescente, que poderia ser

apenas mais um entre tantos que são assassinados diariamente nas periferias da cidade, a

ser considerado um “santo”.

Ao longo dessa narrativa, vamos conhecendo gradativamente, através do

contato do jornalista com os entrevistados e dos diversos documentos jurídicos e

policiais consultados por Alarcón, que Víctor “Frente” Vital é admirado por sua conduta

dentro da favela. Tinha sido um ladrão com valores éticos, que entendia a villa como

um território familiar, respeitando sempre os que nela habitavam, em especial, as

crianças e os mais velhos. Um jovem ladrão que roubava e distribuía os bens adquiridos

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entre os moradores da villa, ou utilizava o dinheiro para celebrar o sucesso do delito em

festas com seus companheiros: uma espécie de Robin Hood periférico.

Para a construção desse relato, o autor fez uso principalmente de técnicas de

jornalista: investiga, checa os dados recolhidos, observa intensamente, pesquisa em

diversos arquivos policiais e principalmente utiliza-se das entrevistas concedidas pelos

familiares e amigos de Víctor. Durante o período em que observou ele se relacionou

com os moradores do território.

Como elemento facilitador de sua aproximação com os jovens observados,

Cristian Alarcón percebeu um dado importante: o arquivo da música. O escritor

percebeu que esse se mostrava um importante instrumento a ser utilizado para entender

e penetrar no mundo dos adolescentes. Compreendeu que a música podia ser uma porta

de acesso a esse mundo desconhecido e que nas festas o ritmo tocado era sempre a

cumbia. Ao som dessa música com a qual se identificavam, os jovens relacionavam-se e

festejavam o sucesso dos roubos bem sucedidos.

O livro leva o nome de uma cumbia, que é o ritmo mais escutado pelos

adolescentes na época em que o autor observou o mundo dos jovens que se envolviam

no universo dos delitos . A história do livro é ambientada na década de 90, quando a

música escutada, dançada e cantada pelos jovens ainda não era a cumbia villera93

, mas

sim uma versão romântica do “ritmo tropical”. Esta letra em particular retrata o que os

adolescentes envolvidos no mundo do delito já sabem e entendem como seu destino: a

morte certa. Porém, eles não querem que no dia de seu enterro haja tristeza ou lágrimas.

Desejam que seja um dia de alegria e que alguém coloque cumbia para tocar e festejar,

pois viveram intensamente suas vidas.

Em outras palavras, o autor faz uso de sua experiência de cronista para relatar a

“vida louca” de um jovem ladrão e de muitos outros habitantes da favela, dando-lhes

voz e explicitando nas linhas de seu texto os conflitos internos que passou ao se

aproximar de forma tão intensa da vida dessas pessoas. Nesse livro, percebemos como o

autor realiza um trabalho que dialoga com os estudos antropológicos e etnográficos,

93

Cumbia Villera é um subgênero da Cumbia Argentina e trata-se de uma cumbia que surge nas

periferias. Traz nas suas letras basicamente o vocabulário e as experiências do mundo do delito dos

jovens que entram nesse universo. Em alguns aspectos, pode assemelhar-se ao que se denomina no Rio de

Janeiro de “funk proibidão”.

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compartilhando com os moradores e em especial com os adolescentes medos,

frustrações, bebidas e cigarros.

Em seu relato, somos levados a olhar por outro viés a realidade desses

adolescentes . Neste processo de identificação, desconstruímos a visão criada pelo

discurso midiático, que, na maioria das vezes, os leva a ser vistos como sujeitos

descartáveis e sem salvação, remetendo ao que Zygmunt Bauman denominou de

“resíduos humanos”. (BAUMAN, 2005, p. 13 e 49).

Cristian Alarcón retrata esses adolescentes através de um texto em que se

coloca pára dar voz aos sujeitos periféricos. Neste sentido, cabe observar que eles não

são vítimas da sociedade e tampouco vilões. Enfim, são jovens que vivem a vida

buscando diversão, consumo de bens materiais e adrenalina.

Esse olhar é formado ao longo da leitura, quando somos apresentados a cada

personagem através da própria voz que nos relata o que aconteceu, com seus registros e

suas pausas. O escritor usa alguns recursos como o de transcrever o mais literalmente

possível o que foi dito pelo entrevistado. Assim, tomamos conhecimento não só da vida

de diversos adolescentes, como também das mães desses jovens e de alguns outros

familiares. Dessa forma, os adolescentes que são normalmente apenas números

estatísticos passam a ter nome, sobrenome, endereço e uma história que não os vitimiza,

ao mesmo tempo em que se dissociam da imagem formada pelos meios de

comunicação.

A estrutura da narrativa é simples e os dados narrados podem ser verificados

facilmente. O leitor pode entrar em contato com a mãe do menor assassinado, acessar as

páginas do Facebook do adolescente Víctor “El Frente” Vital. Mesmo após sua morte, a

página continua sendo mantida e administrada por seus amigos e familiares. Pode-se

ainda verificar o nome das ruas mencionadas no livro, às localizações e as coordenadas

de tempo. Ou ainda consultar em notícias da época o dia de sua morte com diversas

publicações do episódio pelos meios de comunicação.

Enfim, é possível encontrar registros de uma infinidade de dados que podem

ser checados. Trata-se de uma pesquisa de campo mesclada com a voz do próprio autor

que exibe nas linhas do texto seus sentimentos e angústias. Podemos verificar no trecho

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em que descreve a visita à tumba de El Frente, que é feita por seus amigos e familiares

até os dias atuais e foi realizada também por Cristian Alarcón:

Yo acompañé a sabina, a los hermanos del Frente y a Manuel hasta la tumba del

ladrón que me había hecho llegar, hacía tanto tiempo ya, a la villa. Nos paramos

frente a su foto en blanco y negro, ante las ofrendas de los chicos todavía intactas,

ante las botellas de Pronto Shake que la decoraban. Cada uno besó la foto. Yo

también. Cada uno se persignó. También lo hice. Y luego todos nos quedamos

callados durante un buen rato. Lloramos hasta que Sabina nos dijo que partiéramos.

Volvimos a la villa La esperanza. Comimos juntos. Luego, al atardecer, me alejé

hacia la estación. (ALARCÓN, 2012, p. 191)94

A antropóloga María Cristina Cravino se refere a essa publicação como “um

rito de passagem no qual o jornalista se vê cada vez mais envolvido”95

(2009, p.184) e

acrescenta ainda que esse relato e morte de El Frente “é o final de uma época” (2009,

p.184).96

Nesta época as villas apresentavam-se como um ambiente de comunidade e os

que nele moravam deveriam respeitar-se mutuamente e cuidar do espaço periférico.

Nesse sentido, a villa era entendida com um bairro com fortes laços familiares entre a

vizinhança (CRAVINO, 2009, p.184).

No decorrer das observações para a escrita de seu primeiro livro, podemos

perceber o conflito interno que sofre o autor, ao se aproximar de forma tão íntima dos

sujeitos envolvidos nos fatos centrais para a pesquisa. Alarcón cria vínculos afetivos

com as pessoas com que conviveu durante os quatro anos de pesquisa e percebe que a

realidade encontrada na villa é muito complexa. Decide, então, olhá-la de forma mais

distanciada. O autor nos revela sobre a escrita de Si me querés quereme transa: “Para mí

ha sido todo una política de resistencia, la idea de no dejarme asir por la..., atrapar por la

lógica del expertismo, por la lógica de …del periodista o del escritor experto.” (Cristian

Alarcón, entrevista pessoal, 15 de dezembro de 2015)

Esse distanciamento foi traduzido sete anos depois em seu primeiro e único

romance até o momento, Si me querés quereme transa, com a representação dos

problemas e conflitos existentes em periferias argentinas, que talvez apareçam também

em outras favelas distribuídas pelo globo. Como discorremos nos capítulos anteriores

94

“Acompanhei a Sabina, os irmãos do Frente e Manuel até o túmulo do ladrão que me havia feito

chegar, fazia tanto tempo já, à favela. Paramos em frente à sua imagem em preto e branco, diante das

oferendas das crianças, ainda intactas, que estavam na frente das garrafas de Pronto Shake que decoravam

a tumba. Cada um beijou a foto. Eu também. Cada um benzeu-se. Eu também me benzi. E logo ficamos

todos em silêncio por um tempo. Choramos até que Sabina nos disse que fôssemos embora. Voltamos à

favela La Esperanza. Comemos juntos. Então, ao anoitecer, fui caminhando em direção à estação.”

(ALARCÓN, 2012, p. 191) 95

“un rito de pasaje en el cual el periodista se ve cada vez más involucrado”. (2009, p.184) 96

“es el final de un época.” (2009, p.184)

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uma questão bastante discutida na cidade de Buenos Aires na atualidade é o crescimento

das villas no Conurbano e o aumento da imigração dos países limítrofes para esses

espaços.

Ao contrário do que ocorre em seu primeiro livro, em Si me querés quereme

transa Alarcón irá enfatizar a independência da criação literária diante da realidade e

dos outros discursos. Neste sentido, escreve um livro que, paradoxalmente, remete a

uma problemática do terreno sócio-histórico que é a violência associada ao tráfico de

drogas e aos espaços e deslocamentos massivos de uma nova onda de imigrantes para as

villas de Buenos Aires. Isto pode ser lido a partir da concepção de literatura pós-

autônoma proposta por Josefina Ludmer (2007).

O romace Si me querés quereme transa foi publicado no ano de 2010 pela

editora Norma na cidade de Buenos Aires. Possui treze capítulos, prólogo e

agradecimentos. Nesses capítulos o leitor é apresentado a uma galeria de personagens

que parecem inicialmente não ter relação uns com os outros, da mesma forma que cada

capítulo parece trazer a história de um personagem sem relação com os demais

capítulos. Porém, no decorrer da trama, percebemos que existe uma correlação e que

todos irão aos poucos desenhando a própria favela e constituindo a trama. O próprio

Alarcón sinaliza “la villa está construida con las voces” (Cristian Alarcón, entrevista

pessoal, 15 de dezembro de 2015)

Interessa-nos pensar o processo pelo qual passa o autor e a própria forma de

sua narrativa, que reúne e articula essas diferentes “vozes”, relatos recolhidos ao longo

de suas vivencias e investigações, pensar também o modo como o escritor faz uso de

dados recolhidos no período em que escreveu seu primeiro livro, e cria um espaço

fictício dando vida a personagens que são forjados a partir de pessoas com quem

conviveu e que entrevistou para seu primeiro projeto.

Nesse espaço ocupado principalmente por imigrantes andinos e dos países

limítrofes da Argentina, marcado pelos conflitos, diálogos, negociações e mediações

entre as diversas etnias, o escritor faz uso de técnicas jornalísticas e literárias para a

composição dos personagens e para o desenho da própria trama. Transitando em

diversas esferas do literário, tece um texto em que a experiência do real torna-se um

elemento chave para a construção da narrativa e dos sujeitos narrados.

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Pretendemos nesse momento do trabalho realizar um percurso nas diferentes

estratégias narrativas que o autor utiliza. Para isso, utilizamo-nos dos conceitos de

“realidadficción” de Josefina Ludmer, de “porosidade” e “inespecificidade da arte” de

Florencia Garramuño e ainda da concepção de “arquivo” de Roberto González

Echevarría.

Torna-se relevante para a nossa proposta de leitura da obra o conceito de

“autonomia da arte” de Peter Bürger e a concepção de “mímese” de David Pujante.

Com esses aportes teóricos, pretendemos analisar o trajeto discursivo do romance e

identificar no próprio texto as diferentes estratégias discursivas utilizadas pelo escritor.

Nesse romance, os distintos recursos empregados pelo autor fazem do texto

uma narrativa polifônica em que os diversos relatos, personagens e histórias dão vida à

villa que surge como um cenário complexo. E constata a diversidade que pode ser

encontrada nos territórios periféricos da Buenos Aires do século XXI.

As experiências e dados recolhidos anteriormente serão utilizadas novamente

por Alarcón, que se afasta da realidade dessas periferias, processa as informações

obtidas para compor a galeria de personagens que habitarão a villa narrada, uma villa

fictícia que surge após uma intensa experiência do autor nesses espaços e que pode ser

lida como uma alegoria das diversas villas encontradas no Conurbano Bonarense.

Interessa-nos pensar o projeto literário e o trânsito entre trabalho de

investigação jornalística e a escrita de uma obra complexa, um romance com bases na

experiência real, diferença que se torna evidente quando contrapomos Cuando me

muera quiero que me toquem cumbia97

e Si me querés quereme transa. O segundo livro

surge após experiências vividas pelo autor para a escrita do primeiro. A ficção retoma a

realidade para contá-la com mais intensidade e é necessário pensar a construção do

cenário da narração que trabalha com o inverificável, o que ocorre com a criação da

fictícia Villa del Señor no romance analisado.

Com a invenção dessa villa, Cristian Alarcón prioriza a independência da

criação literária fazendo com que o jornalista dê espaço ao escritor. E para pensar esse

ponto cabe resgatar a observação feita por David Pujante com relação a esses espaços

ficcionais que geram “mundos fictícios verossímeis e mundos regidos por regras que

97

Quando eu morrer, quero que toquem cumbia para mim. (Tradução literal)

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nem são da realidade efetiva nem são equivalentes” (1992, p. 165).98

A Villa del Señor

intensifica o diálogo com outros territórios ficcionais como Comala ou Macondo. Se

nesses a imagem oferecida era a de cidade abandonada, refletindo o processo de

despovoamento de áreas rurais com o êxodo para os grandes centros, a villa fictícia

agora demonstrará o processo de aglomerações das pessoas nas grandes urbes: Rulfo

cria Comala, Gabriel García Márquez, Macondo e Cristian Alarcón, a Villa del Señor:

“Las avenidas Bonavena, Galíndez, Monzón y la Calle sin Apellido. Frente queda la

Villa del Señor, cruzando la avenida Bonavena, el barrio Presidente Perón.”

(ALARCÓN, 2012, p. 53).99

Esse trecho em que um dos personagens explica a localização dessa favela nos

permite verificar que da mesma forma que não é possível percorrer fisicamente as ruas

de Comala ou Macondo, não encontraremos a Villa del Señor em nenhuma localização

real na cidade de Buenos Aires. Porém, este espaço é criado a partir de uma profunda

observação de várias favelas e do rico aproveitamento dos dados obtidos nesse período.

O romance apresenta um grande número de personagens, alguns serão

distribuídos em um esquema antes mesmo do início do texto propriamente dito, o que

pode ser comparado à árvore genealógica que abre algumas edições de Cien años de

soledad.

Se na obra de Gabriel García Márquez se fez necessário o agrupamento na

árvore genealógica devido ao imenso número de membros da família Buendía, na villa

de Alarcón essa árvore é substituída por um esquema usado para separar as diferentes

gangs encontradas na favela. A distribuição é feita através da nacionalidade e as redes

familiares assumem uma grande importância para esses grupos. O próprio escritor

comenta sobre esse mapa presente no início do livro: “Lo gracioso de ese mapa, es que

es inútil”. (Cristian Alarcón, entrevista pessoal, 15 de dezembro de 2015).

A ironia justifica-se porque é realmente inútil para tentar estabelecer uma

linearidade nas diversas histórias narradas. Como em Cien años de soledad, muitas

vezes o leitor se perderá no relato, pois os narradores mudam constantemente. A história

98 “mundos ficticios verosímiles y mundos regidos por reglas que ni son de la realidad efectiva ni son

equivalentes.” (PUJANTE, 1992, p. 165) 99

“As avenidas Bonavena, Galíndez, Monzón e a rua Sem Nome. Enfrente fica a Villa del Señor,

atravesando a avenida Bonavena, o bairro Presidente Perón.” (ALARCÓN, 2012, p. 53)

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tem um ritmo bastante acelerado imposto pela velocidade dos acontecimentos e

multiplicidade de pessoas que se sucedem na trama.

Cristian Alarcón realiza a ficção da realidade, ele se permite a liberdade de

criar recorrendo aos diferentes arquivos. Neste trabalho, utilizaremos a definição de

arquivo a partir da concepção de Roberto González Echevarría, em sua obra Mito y

archivo.

Interessa-nos lançar mão dos aportes do crítico para pensar a construção do

romance Si me querés quereme transa. Roberto González Echevarría defende em sua

teoria que os romances latino-americanos surgem a partir dos arquivos. Explica que o

início dos arquivos ocorre, segundo ele, quando o Estado moderno dos Reis Católicos

da Espanha cria instituições para guardar, arquivar e ordenar documentando por escrito

as atividades de seus súditos. Com isso, surge um sistema administrativo

meticulosamente organizado. Os responsáveis por esses documentos eram os letrados e

seus assistentes, escrivães, membros da burocracia estatal, encarregados de redigir,

copiar e arquivar documentos (Cf. GONZÁLEZ ECHEVARRÍA, 2011, p. 10-11).

Posteriormente, essa organização passaria a ser utilizada para os documentos

judiciais que continham as informações dos condenados, suas confissões, o registro

detalhado de seus delitos e de suas condenações, bem como suas descrições físicas.

Utilizando uma linguagem rebuscada, formal, própria dos detentores da lei, da ordem e

da justiça, os quais criaram uma retórica única, organizou-se o arquivo da lei. Dessa

forma, nasce o que o Echevarría denomina arquivos do direito. O mesmo autor nos

aponta: “o arquivo é em primeiro lugar a lei do que pode ser dito, o sistema que rege a

aparição das declarações como acontecimentos únicos” (GONZÁLEZ ECHEVARRÍA,

2011, p. 63).100

Diante dos arquivos do direito, possui o poder quem escolhe o que e como será

arquivado, estando os arquivos relacionados ao domínio. Por isto, preservar o arquivo é

preservar a autoridade. De volta à história, uma das características do Novo Estado era a

sua natureza de criar leis, sua marca mais visível era a meticulosidade e a organização –

100 “El archivo es en primer lugar la ley de lo que puede ser dicho, el sistema que rige la aparición de los

enunciados como acontecimientos singulares”. (GONZÁLEZ ECHEVARRÍA, 2011, p. 63 in Literatura y

heteronomía, estudios filosóficos 54: 127-138, 2014)

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um sistema minucioso que pretendia regular não somente os indivíduos, mas também

seus próprios códigos.

Ao retomar sua teoria, anos depois, González Echevarría faz referência aos

arquivos do necrotério, destacando a meticulosidade das informações, fazendo alusão à

riqueza e frieza de detalhes que se encontram nesse tipo de arquivo:

O necrotério, como instituição, é um arquivo de cadáveres e documentos

classificados e certificados pelo Estado; ambos os processos são regidos por uma

teórica notarial que, admito, está nas próprias origens da ficção romanesca, de modo

que o ponto de vista expresso no final da nota que diz «Não há melhor romance do

que um sumário» não poderia ser mais correto. (GONZÁLEZ ECHEVARRÍA,

2011, p. 09-10)101

Interessa-nos, portanto, pensar nessa definição de arquivo para analisar a

composição dos personagens e da própria trama, pois no romance de Alarcón, também

encontraremos essa mesma concepção de arquivo sendo usada para dar conta do relato

de mortes que decorrem da luta pelo domínio do território. Reafirmando o que foi dito

por Echevarría, encontramos a referência a estes arquivos no próprio romance de

Alarcón:

Mucho tempo después, en el expediente judicial, leí la descripción de los médicos en

la autopsia. Pedí una copia para convencerme y acordarme: “Presenta una herida de

contornos irregulares, con bordes contusos y de los que parten varios desgarros,

compatible con orificio de entrada de múltiples proyectiles de arma de fuego que

aparentemente provocan la pérdida total de los huesos de la calota craneana y de la

masa encefálica, encontrándose restos de la misma y sangre en un área aproximada

de dos metros de diámetro en una pared que se encuentra por detrás del mismo.”

(ALARCÓN, 2012, p. 74)102

De fato, interessa-nos essa concepção de arquivo para analisar os recursos

utilizados por Cristian Alarcón e ver como ocorre o processamento de diferentes dados

que foram recolhidos e utilizados em sua primeira publicação: entrevistas, depoimentos,

documentos jurídicos e policiais. Torna-se relevante pensar de que maneira estes foram

processados e administrados pelo autor de modo a criar uma obra de ficção na qual o

101

“La morgue, como institución, es un archivo de cadáveres y documentos clasificados y certificados por

el Estado; ambos procesos se rigen por una teórica notarial que, yo sostengo, está en los orígenes mismos

de la ficción novelesca, por lo que la opinión expresada al final de la cita de que «No hay mejor novela

que un sumario» no podía ser más atinada”. (GONZÁLEZ ECHEVARRÍA, 2011, p. 09-10) 102

“Muito tempo depois, no memorando judicial, eu li a descrição dos médicos na autopsia. Eu pedi uma

cópia para me convencer e me lembrar: «Apresenta uma ferida de contornos irregulares, com bordas

contundidas de onde surgem várias fraturas, compatíveis com porta de entrada de vários projéteis de arma

de fogo que, aparentemente, provocam a perda total dos ossos da calota craniana e da massa encefálica,

encontrando restos da mesma e de sangue em uma área de aproximadamente dois metros de diâmetro em

uma parede que se encontra na parte de atrás do mesmo.»” (ALARCÓN, 2012, p. 74)

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real torna-se o ponto chave para a construção da obra. A mescla entre o real e o

ficcional será sinalizada de imediato no prólogo de seu romance:

Si bien este libro es el resultado de una investigación periodística, el autor no se

propone colaborar con el trabajo del Poder Judicial y la policía. Los nombres de los

protagonistas de esta historia han sido cambiados con el firme propósito de no

perjudicarlos. Los lugares y las coordenadas de tiempo y espacio fueron modificados

u omitidos. Las identidades de los testigos de los crímenes han sido protegidas: en

algunos casos se ha descompuesto a una persona en dos o más seudónimos, o

sumado a dos personas en uno solo. (ALARCÓN, 2012, prólogo)103

Com isto, Alarcón sinaliza sua forma de administrar os documentos e

informações. Há o processamento de uma literatura que se baseia na linguagem como

em Cuando me muera quiero que me toquen cumbia, e que se utiliza de dados mais

duros do arquivo, mas que serão manipulados de forma diferente para a construção da

narrativa de sua segunda obra, dessa vez um romance.

Na segunda publicação, diferentemente da primeira, os locais, as coordenadas

de tempo e as histórias não são mais facilmente verificáveis. Ao contrário, como

sinalizado no prólogo, existe uma mescla entre os dados reais e os ficcionais. Os

próprios lugares nomes mencionados ao referir-se à villa fictícia são criados pelo autor.

Da mesma forma o escritor irá compor seus personagens: os fatos que observou, as

pessoas que conheceu e as diversas histórias que acompanhou de forma muito próxima

são utilizadas, mescladas para compor um ou mais personagens, ou desmembradas e

assim percebemos a impossibilidade de verificar a barreira que separaria o que é real do

que é ficcional.

Portanto, percebe-se o peso do arquivo não somente na construção da narração,

mas também no modo como este é utilizado para construir os personagens, que na obra

refletem a realidade de múltiplos habitantes da periferia. Nesse caso são os imigrantes,

que despontam no texto com problemas relacionados a conflitos existentes na cidade de

Buenos Aires. Em diversos trechos do livro o escritor fará alusão direta ao uso de

103

“Embora este livro seja resultado de uma investigação jornalística, o autor não se propõe a contribuir

com o Poder judicial e a polícia. Os nomes dos protagonistas desta história foram alterados com o firme

propósito de não prejudicá-los. Os locais e as coordenadas de tempo e espaço foram modificados ou

omitidos. As identidades das testemunhas de crimes foram protegidas: em alguns casos, se dividiu uma

pessoa em duas ou mais pseudônimos, ou se juntou duas pessoas em uma só.” (ALARCÓN, 2012,

prólogo)

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arquivos para a criação desses personagens: “No todas las historias tienen una voz que

las cuenta. Esta surgió de los expedientes judiciales” (ALARCÓN, 2010, p. 108).104

Como é retratado no fragmento, o uso dos documentos judiciais ou policiais

pelos escritores contemporâneos equivale à utilização dos arquivos do direito conforme

a proposição de Roberto González Echevarría. Estes são uma importante fonte de

inspiração para a criação das obras literárias latino-americanas e de modo análogo

Cristian Alarcón faz uso desse tipo de arquivos. O autor teve acesso a muitos

documentos desses arquivos durante a investigação jornalística que realizava para o

jornal Página 12 e os aproveita para criar os personagens do romance:

Allí está el pasado. La juventud de Porfirio está en ese expediente sucio que ha sido

carcomido y manchado por el tiempo, las ratas y las polillas. Tiene tres cuerpos, los

colores sepia de los papeles húmedos, el olor de los ácaros y el tiempo transcurrido.

En esas mil fojas hay que rastrear en muy poco tiempo los pasos de Porfirio Reyes,

sus alianzas, sus acciones. (ALARCÓN, 2010, p. 148)105

Retomando a teoria de González Echevarría, é fácil constatar que as principais

obras literárias latino-americanas de certo período, em particular os romances,

assemelham-se a documentos dos arquivos, ou surgiram a partir deles. Isso ocorre, pois,

de acordo com a hipótese de Mito y archivo, os escritores utilizavam-se dessa fonte pela

ausência de mitos existentes nessa cultura. Portanto, no caso da literatura latino-

americana, ficção e arquivo caminham lado a lado.

Os diversos procedimentos utilizados são encontrados nos atores representados

e em diferentes momentos da narrativa, como por exemplo, na voz do autor

personagem, do narrador-personagem e dos outros sujeitos. Em diversas passagens,

observa-se o uso de vários arquivos, jurídicos, históricos ou policiais transcritos nas

linhas do texto. Essas técnicas variadas são utilizadas pelo escritor para a composição de

seu romance e já tinham sido sinalizadas por Josefina Ludmer, ao analisar textos da

literatura do presente:

Porque essas escritas diaspóricas não só atravessam a fronteira da literatura, mas

também a da ficção e permanecem fora e dentro nas duas fronteiras. E isso acontece

porque reformulam a categoria de realidade: elas não podem ser lidas como um

mero realismo, relações referenciais ou verossimilhantes. Tomam a forma de

104

“Nem todas as histórias possuem uma voz que as conte. Esta surgiu dos documentos judiciais.”

(ALARCÓN, 2010, p. 108) 105“Ali está o passado. A juventude de Porfirio está neste documento sujo, que foi roído e manchado pelo

tempo, pelos ratos e traças. Tem três corpos, a cor sépia do papel molhado, o cheiro dos ácaros e o tempo

transcorrido. Nessas mil folhas será necessário rastrear em muito pouco tempo os passos de Porfirio Reis,

suas alianças, suas ações.” (ALARCÓN, 2010, p. 148)

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testemunho, a autobiografia, a reportagem jornalística, a crônica, o diário íntimo, e

até mesmo a etnografia (muitas vezes com um «gênero literário» enxertado dentro)...

“Elas fabricam presentes com a realidade cotidiana e essa é uma de suas políticas.

(LUDMER, 2007, Ciberletras ) 106

A obra aqui analisada insere-se nessas observações, uma vez que o escritor faz

uso das diferentes fontes mencionadas pela crítica e ainda utiliza-se dos arquivos, como

mencionado anteriormente. O que ocorre é um processamento dos diferentes tipos de

arquivos, observados e acessados por ele para transformá-los em ficção com uma forte

carga de realidade. Uma obra e que a realidade e a ficção não podem ser separadas, ou

identificadas com facilidade trabalha com aquilo que Josefina Ludmer denominou

realidadficción. A crítica argentina assinala que: “são e não são literatura ao mesmo

tempo, são ficção e realidade” (LUDMER, 2007,Ciberletras).107

No romance de Alarcón podemos encontrar, distribuídos ao longo dos

capítulos, de forma reestruturada, passagens que foram narradas como crônicas ou

reportagens do jornal Página 12. Podemos exemplificar através de uma das brigas pelo

território que ocorre na obra, através da descrição dos assassinatos encomendados por

sicários ou ainda na narração de um corpo encontrado em um cesto de lixo, com a boca

costurada. Em 2006 Alarcón publica pelo jornal a crônica En la Zona de guerra que

pode exemplificar esse processamento e utilização dos dados recolhidos:

En el barrio, en la escuela, las preguntas se multiplicaron. Parecía peruano o

boliviano. Tenía las uñas de los pies y de las manos pintadas de rojo. Las cejas

depiladas. Aunque no tenía implantes en los pechos parecía ser una travesti. “Color

trigueño, cabellos negros, largos; ojos pardos, peso: 55 kilos, nariz mediana, barba

afeitada del día”, describe un informe pericial. Desnudo, lo habían envuelto

prolijamente en una frazada de dos plazas. Cuando lo desenvolvieron notaron que

había sido abierto a lo largo y ancho del abdomen con brutalidad. No presentaba el

mismo cuidado que algún experto, quizás un cirujano, tuvo para eviscerar a otras

dos mulas del narcotráfico en la ciudad en el último año. 108

( ALARCÓN, 2006, PAGINA 12)

106

“Porque esas escrituras diaspóricas no solo atraviesan la frontera de la literatura, sino también la de la

ficción y quedan afuera y adentro en las dos fronteras. Y esto ocurre porque reformulan la categoría de

realidad: no se las puede leer como mero realismo, en relaciones referenciales o verosimilizantes. Toman

la forma de testimonio, la autobiografía, el reportaje periodístico, la crónica, el diario íntimo, y hasta de la

etnografía (muchas veces con algún “género literario “injertado en su interior)… Fabrican presente con la

realidad cotidiana y esa es una de sus políticas.” (LUDMER, 2007,Ciberletras) 107

“son y no son literatura al mismo tiempo, son ficción y realidad.” (LUDMER, 2007, Ciberletras) 108 No bairro, na escola, as perguntas se multiplicaram. Parecia Peruano ou boliviano. As unhas dos pés e

mãos pintadas de vermelho. Sobrancelhas depiladas. Embora não tivesse silicone nos seios parecia ser

um travesti. “De cor um moreno bronzeado, cabelo preto, longo; olhos castanhos claros , peso 55 quilos,

nariz médio, a barba feita no dia ", descreve um relatório pericial. Nu, o haviam envolvido

cuidadosamente em um cobertor de casal. Quando o desembrulharam notaram que ele tinha sido

aberto em todo o abdômen com brutalidade. O corte não apresentava o mesmo cuidado que algum

especialista, talvez um cirurgião, tivesse para eviscerar outras duas mulas de drogas na cidade no último

ano.

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Esse trecho de uma crônica publicada por Alarcón no jornal página 12 descreve

um corpo encontrado no lixo, nele o cadáver está aberto, seus órgãos foram retirados, a

descrição desse homem e a forma que foi encontrado é utilizado para dar forma ao

personagem Olray, homossexual, que em um momento da trama desaparece:

Todas las pistas que intenté seguir para dar con la confirmación de su muerte fueron

un fracaso. Llegó a convertirse en una obsesión. Había averiguado por muchos

crímenes en los alrededores de Villa del Señor… El cadáver con la boca cosida de

Olray no estaba en la morgue, en ningún hospital, no había sido enterrado en ningún

cementerio. Olray no estaba. (ALARCÓN, 2012, p. 251)109

Este trecho demonstra como a utilização de outros textos que foram publicados

por Alarcón como crônicas quando trabalhava no jornal surgem em seu romance com

outra forma de narrativa, compondo seus personagens e histórias. O que ocorre é a

abolição da fronteira que separaria a ficção dos dados da realidade recolhidos pelo

jornalista daqueles que agora compõem os personagens e histórias de um romance.

Com isto, pode-se verificar que no romance analisado ocorre a quebra de

fronteiras entre dois polos: o real e o ficcional, que caracterizaria o texto como uma

narrativa porosa, conforme definido por Florencia Garramuño. Dito de outra forma,

nesses textos a realidade e ficção, muito mais que constituírem uma narrativa em que

essas barreiras não são identificáveis, surgem da fusão que ocorre entre o que é real e o

que é ficcional. A realidade entra na ficção e a ficção na realidade. O texto, portanto,

existe graças a essa junção entre ambas.

Sendo assim, cabe, para a criação da villa retratada no livro, e para pensar a

obra, convocar o conceito de autonomia da arte proposto por Peter Bürger. Desta forma,

a villa aparece como um espaço que surge de uma intensa comunicação com as práticas

cotidianas, mas que possuem uma forte carga de ficcionalização e subjetividade do

escritor, seguindo aquilo que sinaliza Bürger: “uma arte que já não está distanciada da

prática cotidiana, porém que surge completamente nela” (2010, p. 72).110

Percebemos

esse aspecto no romance de Alarcón, a villa criada surge da forte experiência, das

práticas cotidianas vivenciadas pelo escritor.

109

“Todas as pistas que tentei seguir para dar com a confirmação de sua morte foram um fracasso.

Chegaram a transformar-se em uma obsessão. Havia averiguado por muitos crimes ao redor da Villa del

Señor… O cadáver com a boca costurada de Olray não estava no necrotério, em nenhum hospital, não

havia sido enterrado em nenhum cemitério. Olray não estava.” (ALARCÓN, 2012, p. 251) 110

“Un arte que ya no está apartado de la praxis cotidiana, sino que surge completamente en ella”

(BÜRGER, 2010, p. 72).

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Interessa-nos ainda abordar para a leitura da obra e da criação da favela o

conceito de “inespecificidade” da arte, proposto por Florencia Garramuño, pensando-o

em duas vias: tanto na dificuldade em catalogar obras recentes, como Si me querés

quereme transa, que movem-se em diversas esferas discursivas: a crônica, o jornalismo

investigativo, a literatura, quanto pensar esse conceito no próprio trajeto do escritor.

Alarcón move-se nessas diferentes esferas, criando uma obra “porosa”, na qual as

diversas experiências se unem , se mesclam, não podendo ser separadas.

Os conceitos mencionados: “realidadfición”, “inespecificidade” e “porosidade”

respectivamente de Ludmer e Garramuño, dialogam e se complementam, tratando de

dar conta de narrativas nas quais o real é muito mais do que uma fonte de inspiração

para os relatos. Vale constatar o distanciamento do conceito clássico de realismo em que

a obra de arte espelha a realidade. Na obra analisada, o real ou a experiência do real é a

chave para a construção da obra e encontra-se no próprio corpo da narrativa.

O romance de Alarcón traz para o campo literário o uso de diversos

procedimentos e nos desafia a buscar novos parâmetros para a análise de textos que

apresentam uma experiência do real e usos de arquivos para a composição da obra e dos

personagens, como foi observado por Garramuño:

Essas literaturas sugerem uma idéia de obra para o qual o próprio conceito de obra,

seria inadequado; uma espécie de arquivo do real despedaçado parece emergir de

estas práticas que caberia nomear, com Hélio Oiticica, como euxistências do real.

(...) Nessas euxistências do real, arquivo e experiência, ou arquivo e vida, não se

contradizem ou se auto aniquilam, e sim se conjugam na formulação de um conceito

de obra estriada no exterior que sugere novas operações e conceitos para

compreender a literatura e a arte mais contemporânea. (...) Essas práticas que

enfatizam a relação com o exterior através de um conceito renovado de experiência

mostram uma transformação do funcionamento da cultura em que a autonomia

artística, que sustentou tanto um certo tipo de politização como esteticismo, começa

a ser seriamente corroída.” . (GARRAMUÑO, 2009, p. 27-29)111

111

“Estas literaturas apuntan a una idea de obra para la cual el propio concepto de obra sería inapropiado;

una suerte de archivo de lo real despedazado parece emerger de estas prácticas que cabría nombrar, con

Hélio Oiticica, como euxistencias de lo real. (…) En esas euxistencias de lo real, archivo y experiencia, o

archivo y vida, no se contradicen o autoaniquilan, sino que se conjugan en la formulación de un concepto

de obra estriado por el exterior que sugiere nuevas operaciones y conceptos para entender la literatura y el

arte más contemporáneos (…) Estas prácticas que enfatizan la relación con el exterior a través de un

concepto renovado de experiencia muestran una transformación del funcionamiento de la cultura en el

que la autonomía artística, que sostuvo tanto un determinado tipo de politización como el esteticismo,

comienza a ser seriamente erosionada” (GARRAMUÑO, 2009, p. 27-29).

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Nesse sentido, a villa criada por Alarcón conjuga diversos elementos como

arquivo, ficção, realidade, experiência pessoal, o próprio “eu” do autor, suas

impressões, suas experiências nos diversos territórios observados. Tudo fusionado, sem

que um ponto anule o outro, e sim cada um desses diferentes procedimentos dá forma à

narrativa e possibilita que o romance surja. Podemos perceber nos agradecimentos a

influência desses aspectos:

A los jueces y fiscales de la Argentina y del Perú que me dieron acceso a

expedientes e información sin pedirme que traicionara a los protagonistas de esta

historia. A los testigos que confiaron. A los abogados por su sinceridad. A los

protagonistas por soportar mi presencia, mis persecuciones, mi insistencia, aun en

los casos a los que no accedieron a verme. A los funcionarios de los dos países que

me abrieron las puertas de los sitios donde no se podía entrar. (ALARCÓN, 2012, p.

300)112

Com esse fragmento, podemos ainda analisar o quanto as experiências vividas

pelo escritor foram utilizadas na composição do seu romance. Além de evidenciar com

esses agradecimentos o acesso a arquivos judiciais que foram processados e utilizados

para a criação de seus personagens que habitam a villa inventada, Alarcón nos fala

sobre a importância de suas experiências e do aspecto subjetivo para a criação de suas

obras. Ele assinala que há:

Una permanencia en algunos temas universales que me atraviesan de manera muy

personal, y que están siempre por detrás de los temas coyunturales, de la actualidad.

En el periodismo también ha sido así. O sea, he puesto mucho de mí mismo, de mi

propia historia, de manera totalmente inconsciente, en la búsqueda de una verdad, de

otros, que por muchos motivos luego descubro mía… totalmente construida de

retazos de memoria y de visiones humanas. (Cristian Alarcón, entrevista pessoal, 15

de dezembro de 2015)

As experiências pessoais do autor, também aparecem retratadas na obra,

principalmente sinalizando os conflitos que Alarcón sofre ao travar relações de amizade

com uma das protagonistas, a personagem Alcira, que surge como fio condutor da

trama. Os frutos dessa amizade construída ao longo de sua pesquisa investigativa

aparecem em diversos trechos da trama. No romance, ela é uma jovem narcotraficante e

exemplifica o que Alarcón frisou sobre a necessidade de “construir pactos de confianza

con las fuentes” (Cristian Alarcón, entrevista pessoal, 15 de dezembro de 2015). Essa

construção de pactos de confiança termina por embaralhar as fronteiras entre o escritor,

o jornalista e o amigo. Os frutos da amizade entre Alarcón e essa traficante trazem

112

“Aos juízes e procuradores da Argentina e do Peru que me deram acesso a registros e informações sem

me pedir que traísse aos protagonistas desta história. Às Testemunhas que confiaram. Aos advogados pela

sua sinceridade. Aos protagonistas por suportar a minha presença, minhas perseguições, a minha

insistência, mesmo nos casos em que não concordaram em me ver. Às autoridades dos dois países que me

abriram as portas dos lugares nos quais não se podia entrar.” (ALARCÓN, 2012, p. 300)

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conflitos internos que aparecem na voz do próprio autor, que também é personagem. A

cena na qual isto se evidencia com mais nitidez é quando a personagem lhe faz um

convite para que ele seja padrinho de um de seus filhos:

Desde el comienzo le dije que no, que era impropio, que no estaba dentro de los

códigos de mi oficio. Así como en su mundo había reglas no escritas como que no se

puede mejicanear al hermano, en el mío era imposible emparentarse de la manera

que fuera con una fuente. (ALARCÓN, 2012, p. 127)113

A aproximação com as “fontes” que posteriormente servirão para a criação de

seus personagens é o ponto em que mais se percebe as tensões internas que sofreu o

escritor. Na entrevista que nos concedeu, Cristian Alarcón reconhece que essa foi sua

maior dificuldade, estabelecer uma barreira entre seus dois papéis: o de jornalista

investigativo e o de amigo. Após um período longo convivência, o papel de investigador

torna-se cada vez mais distante e é difícil não estabelecer laços de amizade.

Encontramos no romance a seguinte passagem:

Las puertas de la casa de Alcira se abrieron para mí a medida que me apegaba a los

niños. Un día Alcira me propuso que la acompañara a llevarlos de paseo a algún

sitio. A la semana me vi trepándolos a los juegos que hay en el último nivel del

shopping del Abasto, el barrio más peruano de la ciudad. (ALARCÓN, 2012, p.

129)114

É importante nesse momento pensar na polifonia narrativa do romance. Como

foi sinalizado anteriormente, o livro não apresenta um único narrador, e sim vários.

Cristian Alarcón será um deles, surge com um narrador-personagem que transcreve com

sua fala as impressões, sentimentos e angústias que vivenciou ao longo da experiência

que teve travando contato com os habitantes desses espaços. E os papéis concomitantes

de jornalista e escritor, bem como os embates entre eles, ganham um lugar importante

na trama. Mais um exemplo surge numa passagem em que Alarcón conversa com uma

das personagens que diz:

Porque yo, para que no haya problemas, te voy a rebautizar a vos, como sos tan

delicado, Lupe. Como vas a México, a Colombia y te gustan todos esos lugares,

Lupe te va a quedar bien. Así nadie sospecha cuando me llamás para consultarme

113

“Desde o início eu disse que não, que era impróprio, que não estava dentro dos códigos do meu ofício.

Da mesma forma que em seu mundo havia regras não escritas como essa de não poder trapacear o irmão,

no meu era impossível relacionar-se da forma que fosse com uma fonte.” (ALARCÓN, 2012, p. 127) 114

“As portas da casa de Alcira foram se abrindo para mim à medida que eu me apegava as crianças. Um

dia Alcira me propôs acompanhá-la a dar um passeio com as crianças em algum lugar. Uma semana

depois, estava eu ajudando-os a subir nos briquedos que existem no último andar do Shopping do Abasto,

o bairro mais peruano da cidade.” (ALARCÓN, 2012, p. 129)

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algo, en lugar de saludarte, hola señor periodista tal, te digo: ¡Hola, Lupe!

(ALARCÓN, 2012, p.166-167)115

No decorrer da trama também teremos a narração em terceira pessoa e um

narrador onisciente bem como a voz dos próprios personagens e o uso de inúmeros

arquivos. Todos esses elementos comporão a fatura da obra. O escritor resume assim a

complexidade narrativa de Si me querés quereme transa: “En definitiva el libro es un

desgobierno, la estructura del libro es caprichosa” (Cristian Alarcón, entrevista pessoal,

15 de dezembro de 2015).

Outro trecho importante que aponta essa complexidade narrativa e as tensões

entre os diversos papéis assumidos por Cristian Alarcón é aquele em que o autor

personagem está em busca de informações e trava contato com uma importante fonte:

-Cuando uno no tiene dinero para pagar, no se le puede creer a la prensa, porque son

como esos animales carroñeros- me dijo Arsenio Reyes.

-Soy escritor- atiné a decirle.

-Eso podía mejorar las cosas, amigo, pero ¿cómo yo sé que usted me dice la verdad?

-Porque puede poner mi nombre en Internet y ver que no le miento. (ALARCÓN,

2012, p. 46)116

Para finalizar os exemplos referentes a esse trânsito que realiza o autor na

construção de sua narrativa, citamos outro trecho importante, em que o escritor muda de

lugar, e assume novamente o papel de cronista, explicitando suas tensões internas na

busca de informações e aproximação com os entrevistados:

Cuando volvemos al diálogo, me doy pena por haber hecho ese chiste: no era el

momento. Más tarde me daré cuenta de que fue quizá esa broma la que selló la

confianza entre nosotros, la que lo dejó navegar su vida sin temor a que lo engañara.

Para recuperarme hice una pregunta de cronista de nota roja (ALARCÓN, 2012, p.

39)117

115

“Porque eu, para que não haja problemas, vou te rebatizar, como você é tão delicado, vou te chamar de

Lupe. Como você vai ao México, à Colômbia e gosta de todos esses lugares, Lupe combina com você.

Assim ninguém vai suspeitar quando você me ligar para consultar alguma coisa, em lugar de te

cumprimentar, olá senhor jornalista tal, vou te dizer: Olá, Lupe!” (ALARCÓN, 2012, p.166-167) 116

“- Quando a gente não tem dinheiro para pagar, não se pode acreditar na imprensa, porque são como

esses animais carniceiros- me disse Arsenio Reyes.

- Sou escritor- atinei a dizer.

- Isso poderia melhorar as coisas, amigo, mas como é que eu posso saber que o que o senhor está me

dizendo é verdade?

- Porque poderá colocar meu nome na Internet e ver que não lhe estou mentindo.” (ALARCÓN,

2012, p. 46) 117

“Quando retornamos o diálogo, sinto pena de mim mesmo por ter feito esse piada: não era o momento.

Mais tarde me darei conta de que foi talvez essa brincadeira a que selou a confiança entre nós, a que o

deixou navegar na sua vida sem temor a que eu o enganasse. Para me recuperar fiz una pergunta de

cronista de imprensa marrom” (ALARCÓN, 2012, p. 39)

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Ao optar por essa estratégia narrativa complexa o autor reafirma a importância

da experiência do real em sua narrativa, uma vez que a narração é feita como

mencionado antes com a utilização de diversas vozes. E é interessante sinalizar que o

autor se coloca em uma posição de entre-lugar, sente-se um estrangeiro dentro do

espaço, não apenas por se denominar Chileno, mas também, e principalmente por

ocupar um lugar em que ele, o intelectual, narra a vida na periferia. A partir de uma

zona de contato criada pelo trabalho de observação:

Treinta años después de las desapariciones de Villa del Señor, en marzo de 1996,

tuve un remoto acercamiento al barrio la tarde en que un director del diario en que

trabajaba me mandó cubrir una noticia allí. Llegué a la zona sin todavía haber

logrado un claro dibujo de la ciudad en la mente: como muchos en ese sitio, yo

también era un recién llegado a Buenos Aires. (ALARCÓN, 2012, p. 59)118

A construção de seu próprio personagem nessa passagem demonstra a

complexidade existente entre a narração dos fatos reais mescladas com a subjetividade

do autor. Sabemos que Alarcón chegou ainda muito pequeno à Argentina, e já na

juventude estava em Buenos Aires, porém ele fusiona esse dado com a sensação que

teve nas primeiras vezes que pisou nos territórios periféricos. Parece que ele sentia-se

um imigrante dentro dessas localidades, e é interessante pensar em como o autor

reivindica uma ou outra nacionalidade quando fala de suas experiências: “Quando estou

no Chile me sinto muito Argentino, e quando estou em Buenos Aires me sinto o mais

chileno de todos” (Cristian Alarcón, entrevista pessoal, 15 de dezembro de 2015).

Ele mesmo se denomina como um “ser anfíbio”, remetendo à hibridez que

domina a sua própria historia no aspecto referente à sua experiência imigratória. Ao

mesmo tempo, as memórias de sua infância são retomadas a todo momento para a

construção de suas narrativas. Ele reconhece que constantemente recorda-se: “de mi

abuelo contando las historias del Pueblo” ou os livros “policíacos” que tanto o

influenciaram para sua trajetória literária, ao mesmo tempo que “hay un Pedro Páramo

que está presente, hay un Rulfo que a mí me impresionó, la presencia de la muerte es

siempre una buena compañía” (Cristian Alarcón, entrevista pessoal, 15 de dezembro de

2015).

118

“Trinta anos depois dos desaparecimentos na Villa del Señor, em março de 1996, tive uma remota

aproximação ao bairro na tarde em que um diretor do jornal em que eu trabalhava me mandou cobrir una

noticia ali. Cheguei ao local sem ainda ter conseguido fazer um claro desenho da cidade na mente: como

muitos nesse espaço, eu também era um recém-chegado a Buenos Aires.” (ALARCÓN, 2012, p. 59)

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Interessante para pensar o narrador da obra são as considerações sobre o

narrador pós-moderno de Santiago. Em seu texto, o crítico elabora uma hipótese de que

esse narrador atrai a ação narrada a partir de uma atitude semelhante à de um repórter,

realizando a narração “enquanto espetáculo que assiste” (SANTIAGO, 2002, p. 39) e

não como atuante.

O autor nos aponta também que podemos classificar os narradores em três

estágios evolutivos apontados por Benjamin: o narrador clássico, que pretende realizar

um intercâmbio de experiência entre o ouvinte e o narrador, o narrador do romance que

pretende ser impessoal e objetivo com relação ao que narra e o narrador jornalista que

“só transmite pelo narrar a informação, visto que escreve não para narrar a ação da

própria experiência” (SANTIAGO, 2002, p. 39).

Como vimos nos fragmentos da obra analisada que citamos anteriormente,

podemos encontrar no romance de Alarcón as três formas de narrativa. Porém a

principal diferença é que o narrador jornalista no caso de Si me querés quereme transa,

participa ativamente do que se está narrando, e em outros momentos ausenta-se e

utiliza-se das entrevistas. O escritor nos aponta que: “Dentro del testimonio mismo se

dan, se producen operaciones ficcionales” (Cristian Alarcón, entrevista pessoal, 15 de

dezembro de 2015) e esclarece que essa é uma certeza de todo o jornalista.

Dessa forma, o romance analisado desestrutura as categorias que se apresentam

com relação aos narradores do romance e consequentemente a própria estrutura de

romance, como podemos observar na análise de Florencia Garramuño:

Já não se trata de episódios que vão se conectando entre si em uma história com um

sentido claro, mas sim de episódios soltos, às vezes repetitivos, que evidenciam a

ausência de um sentido estruturante de obra ou de romance. A própria indefinição

com relação ao gênero que pertenceria esse texto também está relacionada com essa

grande desestabilização de uma ideia de obra e sua substituição pela escrita das

experiências. (GARRAMUÑO, 2011, Revista Z cultural)119

Cristian Alarcón insere-se com seu romance, e também com as suas outras

obras, nessa definição de “escritas das experiências”. São elas que dão o tom de sua

narrativa e nessa obra não nos depararemos com uma trama e personagens bem

119

“ya no se trata de episodios que se van conectando entre sí en una historia con un sentido claro sino

más bien episodios sueltos, a veces repetitivos, que evidencian la ausencia de un sentido estructurante de

obra o de novela. La propia indefinición con respecto al género al que pertenecería ese texto también

tiene que ver con esa gran desestabilización de una idea de obra y su reemplazo por la escritura de

experiencias.” (GARRAMUÑO, 2011, Revista Z cultural)

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delimitados, o que ocorre é justamente o contrário. E nele a subjetividade do autor será

fundamental para a composição. O escritor fala sobre a relação que estabelece com os

personagens ou fontes e com as experiências vividas e o processamento destas para sua

escrita, destacando que o fato de ser um imigrante é um elemento essencial para

entender essa relação:

el primer destierro, las ansias que produce el destierro, en esa insatisfacción total por

no poder pertenecer a la tierra propia produce un viaje que no termina nunca, y que

está en proceso siempre, y entonces creo que algunas de estas investigaciones han

sido viajes en medio de ese gran viaje, pero al acercarme seguramente, al acercarme

a Alcira, al acercarme a Olray, o a cualquier personaje de este libro, incluso a

Marlon y Niky Lauda, y a ellos se me acerco siempre al origen de mis historias, que

están en el campo, en el Sur de Chile, que está allá en la Cordillera, más allá del

límite, fronteriza, y casi pegada al otro lado. (Cristian Alarcón, entrevista pessoal, 15

de dezembro de 2015)

Cabe para analisar essa relação que estabelece o escritor entre sua obra e o

retorno a suas origens recordar a explicação de Josefina Ludmer: “uma justaposição ou

superposição de passados e de futuros, e uma conjunção de temporalidades em

movimento carregadas de símbolos, sinais e afetos” (LUDMER, 2000, p.94).120

A

autora fala sobre textos que buscam dar conta da narração do presente e sinaliza que em

muitas dessas narrativas iremos encontrar uma “mistura de história com o efêmero,

nessa matéria imóvel feita de rupturas, repetições e retornos” (LUDMER, 2000,

p.91).121

Essa característica pode ser percebida no romance de Alarcón, escrito com uma

forte carga de elementos que podemos encontrar na literatura do presente. Retorna ao

mesmo tempo a fatos passados, à sua memória e a muitos outros passados e presentes

que dão vida aos personagens, à trama e à própria villa constituída de inúmeras vozes. A

autora sinaliza que nos textos analisados “o caminho para a literatura era o desejo de

poder ver, «na ficção», as temporalidades do presente vividas por algumas

subjetividades” (LUDMER, 2000, p.94).122

Com essas considerações finalizamos a nossa análise, pois esse é o caminho

que propomos para ler o romance de Cristian Alarcón, uma fusão entre esses diversos

120

“una yuxtaposición o superposición de pasados y de futuros, y una conjunción de temporalidades en

movimiento cargadas de símbolos, signos y afectos” (LUDMER, 2000, p.94) 121

“mezcla de historia con lo efímero, en esa materia móvil hecha de rupturas, repeticiones y retornos.”

(LUDMER, 2000, p.91) 122

“El camino hacia la literatura era el deseo de poder ver, «en ficción», las temporalidades del presente

vividas por algunas subjetividades.” ( LUDMER, 2000, p.94)

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elementos: passado, presente, realidade, ficção e subjetividade traduzidos em um

romance moderno que desafia a busca de novas formas de ler e entender a literatura

recente. Paradoxalmente, estabelece um diálogo com o cânone criando um espaço

ficcional que evidencia a complexidade encontrada no mundo contemporâneo e também

nas diversas narrativas que buscam dar conta dessas realidades.

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6. - CONCLUSÃO

Trouxemos como proposta de trabalho o romance Si me querés quereme transa

do escritor Cristian Alarcón e realizamos uma análise do mesmo com o apoio do quadro

teórico proposto e estabelecemos um diálogo com outros textos. Observamos que esta

como as demais obras sobre villas da Grande Buenos Aires trata de narrar o território

periférico e seus sujeitos, porém o romance escolhido se diferencia dos demais pela sua

complexidade narrativa e por reivindicar a criação de um território ficcional.

Em Si me querés quereme transa a ficcionalização da Villa del Señor é o ponto

central para pensar a narrativa, por isso optamos por manter o foco do trabalho na villa

criada pelo escritor. Sinalizamos que a obra realiza uma interlocução com cânone da

literatura latino-americana ao mesmo tempo que traz para a narrativa a questão da

imigração recente na cidade de Buenos Aires.

Ao indicar um diálogo com o cânone não pretendemos de forma alguma

questionar ou por em xeque obras canônicas da literatura hispânica, mas sim apontar

que, embora o escritor traga um projeto literário que parece demonstrar a vontade de

uma ruptura com esses textos, pois afirma o escritor “yo no podría establecer una

relación con el canon de nivel consciente”,123

e acrescenta que “uno intenta no

acomodarse en los moldes de lo ya conocido porque yo no lo he intentado, si lo ha

ocurrido es totalmente ajeno a mi voluntad” (Cristian Alarcón, entrevista pessoal, 15 de

dezembro de 2015), ele termina por criar um diálogo com essas obras, colocando a Villa

del Señor no espaço de cidades fictícias, porém trazendo questões da urbe atual,

dinâmica e complexa.

Dessa forma, ao narrar as villas consequentemente o escritor narra a cidade,

com suas complexidades e diversidade, reconhecendo, portanto que o urbano é o

elemento central não apenas para o texto de Alarcón, mas também para alguns escritores

que se lançam no desafio de narrar uma cidade em movimento, um presente que muda

constantemente. E narrar à cidade de Buenos Aires é trazer a luz a questão dos fluxos

imigratórios atuais.

Para entender e ler a villa ficcional foi necessário realizar um rápido percurso

na formação da identidade nacional dos argentinos, processo em que tentamos

123

“Eu não poderia estabelecer uma relação com o cânon de forma consciente”

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esclarecer ou buscar mecanismos que possibilitem uma leitura para o rechaço e

preconceito que sofrem os imigrantes no país receptor. Por isso, os mesmos precisam

reconstruir suas identidades e agrupam- se de acordo com suas nacionalidades. Portanto,

despontam na narrativa os usos de suas práticas culturais, sendo o fator religioso o que

ganha principal destaque na nossa leitura.

Ao trazer para a nossa análise as questões das práticas imigratórias enfatizando

as relacionadas à religiosidade popular, demarcamos que para dar conta da narração dos

sujeitos e espaços denominados periféricos na cidade de Buenos Aires é essencial voltar

o olhar para esse elemento que surge como um mecanismo político para a apropriação

territorial.

Vale sinalizar que, desviando nosso olhar para esse fator, abrimos uma nova

janela de análise, que não prioriza as questões relacionadas à violência e disputa por

pontos de venda de drogas tão presentes nas narrativas relacionadas aos territórios

periféricos. Mesmo sabendo que esses elementos fazem parte da obra, nossa proposta

foi justamente não privilegiar esse ponto para poder realizar uma leitura dos sujeitos

narrados, desassociando esses territórios da imagem que se tem dessas localidades e

trazendo como fator principal a representação de suas práticas culturais que priorizam o

cotidiano vivido dentro das villas.

No romance, a questão dos usos da religiosidade popular nos setores urbanos,

em especial nas villas do Conurbano, ganha visibilidade e sinalizam os usos que os

sujeitos estão fazendo do religioso, num sentido latu, na contemporaneidade e também

no modo como esta mescla de culturas vem transformando as relações entre as pessoas e

o uso do espaço. Enfim, como estes fatores interferem na urbe e na paisagem atual de

Buenos Aires.

Essas questões foram desenvolvidas a partir da seleção de algumas cenas do

romance, porém gostaríamos de ressaltar que em nenhum momento tivemos a pretensão

de esgotar as possibilidades de análise de dita obra assim como dos demais textos de

Cristian Alarcón. Portanto, cabem muitas outras análises para os trabalhos futuros sobre

esse escritor.

Para realizar a análise da narrativa da obra propusemos um rápido percurso na

teoria de arquivo proposta por González Echevarría e percebemos que o escritor lançou

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mão de diferentes recursos para a construção de sua obra. Entre eles está o uso dos

arquivos, entendidos de forma ampla, sejam eles matérias de jornal, relatórios judiciais,

policiais ou descrições elaboradas por necrotérios e ainda o arquivo pessoal do escritor:

entrevistas realizadas, a memória de sua cidade natal e as experiências vividas em

distintos territórios.

Apontamos que, para o processo de escrita de seu segundo livro, o arquivo foi

uma das técnicas utilizadas pelo autor, mas demonstramos que Alarcón também lança

mão de outros recursos como, por exemplo, técnicas jornalísticas e literárias, e recorre

constantemente à sua própria experiência pessoal, que surge como mais um fator de

importância para entender sua narrativa.

Dessa forma, destacamos o trânsito que marca a trajetória do autor na

passagem da condição de escritor jornalístico, o qual escreve uma obra ancorada

basicamente no depoimento dos entrevistados quando lançou Cuando me muera quiero

que me toquen cumbia, para o papel de escritor de um romance complexo, de narrativa

polifônica que se utiliza do processamento dos diversos arquivos, fusionando-os com

suas experiências anteriores para dar vida a um território ficcional.

Com esse processo, surge uma villa fictícia que traz ao campo literário os

conflitos atuais dos territórios periféricos na sociedade argentina atual e que pode

representar os problemas de outras periferias, tendo em vista que a villa narrada embora

não exista fisicamente abarca questões recorrentes do cotidiano. Esta pode ser entendida

como uma alegoria das muitas periferias existentes na Buenos Aires atual e em outros

espaços periféricos.

Utilizamo-nos para a análise da criação dessa favela dois conceitos teóricos, a

concepção de autonomia de Peter Bürger, o qual defende que a arte autônoma é um

conceito pensado e utilizado na sociedade burguesa e que posterior a esse período torna-

se inviabilizado dito termo, pois os textos surgem de uma comunicação com a prática

cotidiana, tornando-se esta necessária para sua composição, tal conceito dialoga com o

de mimeses de David Pujante, e para a nossa leitura da obra analisada ambos tornaram-

se necessários para ler e pensar a criação da villa e do próprio texto.

Em outras palavras, a villa criada pelo escritor só foi possível graças a seu forte

contato com espaços periféricos, com seus atores e com a vivência em muitas das

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histórias que narra. Elas são desmembradas e processadas dando vida e voz a pessoas

que conviveu ao longo de suas observações.

Logo, essa villa surge de uma complexa rede de informações que fundem

realidade e ficção, as quais não podem ser separadas. Essa junção entre os dois polos é o

que dá a vida e tom ao romance e aos personagens, reafirmando o conceito de

“realidafición”, de “porosidade” e “inespecificidade” da arte, respectivamente propostos

por Josefina Ludmer e Florencia Garramuño. Nossa proposta foi a de realizar uma

aproximação entre estes conceitos, uma vez que se complementam e neles apoiar-nos

para explicar uma das principais características de Si me querés quereme transa, que é a

da própria impossibilidade de separar claramente ficção e realidade. Muito mais do que

não poder separar essas barreiras é neste entrecruzar que surge o texto. Abre-se nas

brechas da própria porosidade e constrói-se.

Si me querés quereme transa nos fornece, portanto, a possibilidade de pensar

novos parâmetros de leitura para as questões que emergem nas periferias. Traz à cena

um espaço fictício onde também está presente a realidade de inúmeros atores habitantes

desses espaços e pode funcionar como um laboratório para ler as periferias

contemporâneas dentro e fora da Argentina. Nela a experiência do real é o ponto chave

para a leitura e composição da obra, como propusemo-nos a demonstrar.

O romance de Cristian Alarcón exemplifica a complexidade de obras

contemporâneas que buscam dar conta das figurações do urbano em um mundo

globalizado marcado pelos fluxos imigratórios. Há o rompimento de fronteiras

geográficas e o surgimento de outras barreiras simbólicas. Insere-se ainda em um

conjunto de obras contemporâneas que nos levam a repensar as concepções definidas de

romance e desafia-nos a redefinir os parâmetros de leitura de textos que possuem uma

forte carga do real, e transitam em diversas e distintas esferas do literário.

A pluralidade de vozes e de fragmentos que terminam por desenhar a villa

narrada nos fornece o próprio desenho da cidade atual de Buenos Aires: multicultural,

fragmentada, dividida em muitas ilhas, com os mais diversos atores. A complexidade da

Villa del Señor traduz a realidade encontrada nesse espaço metropolitano.

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8. – ANEXOS

ANEXO 1

QUADROS REFERENTE À IMIGRAÇÃO LIMÍTROFE E ANDINA NA

ARGENTINA ENTRE 1980 E 2010

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ANEXO 2

CAPAS DO LIVRO SI ME QUERÉS QUEREME TRANSA, PRIMEIRA

PUBLICAÇÃO EDITORA NORMA 2010, SEGUNDA PUBLICAÇÃO

EDITORA AGUILAR 2012.

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ANEXO 3

FOTOS TIRADAS NA CIDADE DE BUENOS AIRES, PARQUE CHACABUCO

E BAIRRO LINIERS124

:

FOTO 1:

FOTO 2:

124

As fotos de número 1, 2 e 3 foram tiradas e cedidas pelo professor Doutor Ary Pimentel e as fotos 4, 5,

6 e 7 foram tiradas pelo fotógrafo Sergio Ricardo durante trabalho de campo de observação no ano de

2015 e 2016.

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FOTO 3:

FOTO 4:

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FOTO 5:

FOTO: 6

FOTO 7: