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Universidade Federal do Rio de Janeiro A DIVINA COMÉDIA NAS ILUSTRAÇÕES DO SÉCULO XV: IMBRICAÇÕES TEXTO E IMAGEM Linda Salette Miceli Ferreira 2013

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

A DIVINA COMÉDIA NAS ILUSTRAÇÕES DO SÉCULO XV: IMBRICAÇÕES

TEXTO E IMAGEM

Linda Salette Miceli Ferreira

2013

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A DIVINA COMÉDIA NAS ILUSTRAÇÕES DO SÉCULO XV: IMBRICAÇÕES

TEXTO E IMAGEM

Linda Salette Miceli Ferreira

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-graduação em Letras Neolatinas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

quesito para a obtenção do Título de Mestre em

Letras Neolatinas (Estudos Literários – opção

Literatura Italiana).

Orientadora: Profª. Drª. Sonia Cristina Reis

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2013

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A DIVINA COMÉDIA NAS ILUSTRAÇÕES DO SÉCULO XV: IMBRICAÇÕES

TEXTO E IMAGEM

Linda Salette Miceli Ferreira

Orientadora: Profª. Drª. Sonia Cristina Reis

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como quesito para a

obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários – opção

Literatura Italiana).

Examinada por:

______________________________

Presidente, Profª. Drª. Sonia Cristina Reis

______________________________

Profª. Drª. Marinês Lima Cardoso

______________________________

Prof. Dr. Fabiano Dalla Bona

______________________________

Profª. Drª. Flora Di Paoli Faria (Suplente)

______________________________

Prof. Dr. Mauro Porru (Suplente)

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2013

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Ferreira, Linda Salette Miceli

A Divina Comédia nas ilustrações do século XV: imbricações

texto e imagem/ Linda Salette Miceli Ferreira. – Rio de Janeiro:

UFRJ/ FL, 2013.

111f.: Il.: 1cm.

Orientadora: Sonia Cristina Reis

Dissertação (mestrado) – UFRJ/ FL/ Programa de Pós-

Graduação em Letras Neolatinas, 2013.

Referências Bibliográficas: f. 90-93.

1. A Divina Comédia: repercussão nos campos literário e

pictórico. 2. Representações simbólicas e alegóricas. 3. O cotejo

poema dantesco e ilustrações. I. Reis, Sonia Cristina. II.

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras,

Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas. III. Título.

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“... onde houver trevas, que eu leve a luz”.

Francisco de Assis

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço a Deus pela minha vida e por tudo o que Ele me

concede.

Agradeço também aos meus queridos professores, mas, em especial, aos de

Italiano, com os quais aprendi muito do que sei hoje em dia. E, aqui, um particular

agradecimento às professoras Sonia Cristina Reis, minha orientadora, e Flora De Paoli

Faria.

Segue, ainda, o agradecimento ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas e à CAPES, por financiar meus estudos no Mestrado como bolsista.

Meus agradecimentos também aos meus familiares, que sempre me incentivam e

a um grande amigo que não pode ser esquecido, Prachedes.

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SINOPSE

Cotejamento texto, imagem e construção simbólica da identidade italiana nos cantos I,

III e VIII, do livro Inferno, da Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265 – 1321), e nas

ilustrações de Sandro Botticelli (1445 – 1510) para esses cantos.

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RESUMO

A DIVINA COMÉDIA NAS ILUSTRAÇÕES DO SÉCULO XV: IMBRICAÇÕES

TEXTO E IMAGEM

Linda Salette Miceli Ferreira

Orientadora: Profª. Drª. Sonia Cristina Reis

Resumo da Dissertação de Mestrado submetido ao Programa de Pós-graduação em

Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como quesito

para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários – opção

Literatura Italiana).

Estudo da retomada dos cantos I, III e VIII, do livro Inferno, da Divina

Comédia, de Dante Alighieri (1265 – 1321), pelo artista italiano Sandro Botticelli (1445

– 1510), no século XV, período correspondente ao Renascimento italiano. Por meio das

ilustrações desse artista, referentes a esses cantos, o cotejamento entre o poema dantesco

e as ilustrações foi investigado a partir da definição de imagem em DONDIS (2007) e

da discussão sobre texto e imagem em ECO (1994). As relações entre o texto poético, as

ilustrações e a construção simbólica da identidade italiana, bem como o contexto sócio,

político e cultural, do recorte das épocas focalizadas têm por suportes teóricos BURKE

(2010), BURCKHARDT (2009) e RAIMONDI (1998).

Palavras-chave: Dante Alighieri, Divina Comédia, Sandro Botticelli, Renascimento,

texto, imagem, identidade.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2013

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ABSTRACT

A DIVINA COMÉDIA NAS ILUSTRAÇÕES DO SÉCULO XV: IMBRICAÇÕES

TEXTO E IMAGEM

Linda Salette Miceli Ferreira

Orientadora: Profª. Drª. Sonia Cristina Reis

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em

Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como quesito

para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários – opção

Literatura Italiana).

Study of the recovery of the chants I, III and VIII, of the book Inferno, of Divine

Comedy, written by Dante Alighieri (1265 – 1321), by the Italian artist Sandro Botticelli

(1445 - 1510), in the 15th

century, period corresponding to the Italian Renaissance.

According to Botticelli’s illustrations, referents to these chants, the comparison between

Dante’s poem and the illustrations was investigated from the definition of image in

DONDIS (2007) and the discussion about text and image in ECO (1994). The relations

between the poetic text, the illustrations and the symbolic construction of the Italian

identity, as well as the social, political and cultural context of the specific periods

related in this thesis supported by the theories of BURKE (2010), BURCKHARDT

(2009) and RAIMONDI (1998).

Key-words: Dante Alighieri, Divina Comédia, Sandro Botticelli, Renaissance, text and

images.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2013

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RIASSUNTO

LA DIVINA COMMEDIA NELLE ILLUSTRAZIONI DEL SECOLO XV:

IMBRICAZIONI TESTO E IMMAGINE

Linda Salette Miceli Ferreira

Orientadora: Profª. Drª. Sonia Cristina Reis

Riassunto da Dissertação de Mestrado submetido ao Programa de Pós-graduação em

Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como quesito

para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários – opção

Literatura Italiana).

Studio della ripresa dei canti I, III e VIII, del libro Inferno, della Divina

Commedia, di Dante Alighieri (1265 – 1321), dall’artista italiano Sandro Botticelli

(1445 – 1510), avutasi nel secolo XV, periodo del Rinascimento italiano. Per mezzo

delle illustrazioni di questo artista, fatte per questi canti, il paragone tra il poema

dantesco e le illustrazioni è stato ricercato tramite la definizione di immagine in

DONDIS (2007) e la discussione su testo ed immagine in ECO (1994). I rapporti tra il

testo poetico, le illustrazioni e la costruzione simbolica dell’identità italiana, così come

il contesto socio, politico e culturale, messo in evidenza in questo studio hanno come

appoggio teorico BURKE (2010), BURCKHARDT (2009) e RAIMONDI (1998).

Parole-chiave: Dante Alighieri, Divina Comédia, Sandro Botticelli, Rinascimento, testo,

immagine, identità.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2013

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................... 13

1. A DIVINA COMÉDIA: REPERCUSSÃO NOS CAMPOS LITERÁRIO E

PICTÓRICO ..................................................................................................

18

1.1. Dante Alighieri até a Divina Comédia ................................................... 19

1.1.1. Dante Alighieri e o contexto sócio, político e cultural de Florença 19

1.1.2. Dante e o campo literário ................................................................ 24

1.1.3. A Divina Comédia ........................................................................... 29

1.2. Os desdobramentos do Renascimento .................................................... 33

1.3. Questões relativas ao poema dantesco e a sua representação imagética 44

2. REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS E ALEGÓRICAS ............................ 49

2.1. A plasticidade do poema dantesco ......................................................... 52

2.2. Texto e imagem no poema dantesco e suas representações ................... 54

3. O COTEJO POEMA DANTESCO E ILUSTRAÇÕES ............................... 64

3.1. A seleção plástica das cânticas ............................................................... 64

3.2. A técnica de Sandro Botticelli da representação do poema dantesco: a

punta d’argenteo ....................................................................................

65

3.2.1. Cena 1 (Canto I) .............................................................................. 67

3.2.2. Cena 2 (Canto III) ........................................................................... 73

3.2.3. Cena 3 (Canto VIII) ......................................................................... 79

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 87

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................... 90

6. ANEXOS ....................................................................................................... 94

6.1. Cânticas da Divina Comédia .................................................................. 94

6.2. Ilustrações de Botticelli .......................................................................... 108

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INTRODUÇÃO

Esta Pesquisa de Dissertação de Mestrado foi realizada com o intuito de

apresentar a retomada das cenas dos cantos I, III e VIII, do livro Inferno, da Divina

Comédia, de Dante Alighieri, no século XV, período correspondente ao Renascimento

italiano, por meio das ilustrações de Sandro Botticelli. Tal retomada tornou-se de

grande importância, neste período, devido às questões sócio, artísticas e políticas da

época, como será observado nos capítulos desta investigação.

Assim, para situar brevemente o período que é tratado nesta pesquisa, é válido

esclarecer que a Itália, no momento do Renascimento, não existia como país e

atravessava sérios problemas de ordem política, por não possuir uma única língua que

pudesse congregar linguisticamente para dar início à construção de uma identidade

nacional. A falta dessa língua nacional, naquele momento artístico tão caro aos

italianos, não impediu, por exemplo, de no contexto do Renascimento italiano, durante

o século XV, que a retomada da obra Inferno, da Divina Comédia, de Dante Alighieri,

fosse escrita no dialeto de Florença, por meios iconográficos. É conhecido ainda como

um momento importante para as artes, sobretudo, para a pintura e escultura, sendo o

Renascimento uma grandiosidade para o mundo ocidental. Este mesmo momento viu a

diminuição de obras literárias em língua vernácula, ou seja, em dialetos italianos. O

foco da Pesquisa de Dissertação de Mestrado foi investigar quais as motivações que

levaram a retomada de cenas do canto Inferno da obra dantesca nas ilustrações de

Sandro Botticelli.

A problematização da Pesquisa de Dissertação de Mestrado teve como horizonte

a hipótese de que a retomada da obra Inferno, da Divina Comédia, de Dante Alighieri,

por meios iconográficos, deu-se devido à busca de uma construção simbólica de uma

possível identidade italiana e literária idealizada séculos antes do Renascimento italiano,

fato que motivou artistas renascentistas a demonstrarem, por meio de sua arte, esses

ideais identitários, já descritos em Dante Alighieri, os quais já indiciavam uma literatura

italiana.

O resultado da Pesquisa de Dissertação de Mestrado, que será apresentado em

capítulos e subseções, visou discutir as questões relativas à produção artística do

Renascimento, suas obras, investigando o papel do mecenas na produção dessas

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imagens, o tipo de material utilizado, o método de realização dessas obras, enfim, o

contexto sócio, cultural e histórico em torno dessa produção artística, referente à

retomada da obra dantesca. Objetivou-se abordar ainda a questão da construção

simbólica da identidade italiana pela retomada da obra dantesca por meio de ilustrações.

A partir do entendimento do momento sócio, artístico e político do

Renascimento, passou-se para a análise do cotejamento entre o texto literário, a Divina

Comédia, mais especificamente o livro Inferno, de Dante Alighieri (1265 – 1321) e as

ilustrações dos cantos I, III e VIII, de Sandro Botticelli (1445 – 1510), realizadas no

século XV, período do Renascimento italiano.

Desta maneira, o capítulo 1 dessa Dissertação de Mestrado trata da obra

dantesca, a Divina Comédia, e sua repercussão nos campos literário e pictórico, sendo

estudado, no primeiro subcapítulo, Dante Alighieri até a Divina Comédia. Esse

subcapítulo foi dividido em outros três, a saber: o primeiro, Dante Alighieri e o contexto

sócio, político e cultural de Florença, o segundo, Dante e o campo literário e o terceiro,

a Divina Comédia. Em seguida, vem o segundo subcapítulo, Os desdobramentos do

Renascimento e, por último o terceiro subcapítulo, Questões relativas ao poema

dantesco e a sua representação imagética. Na realização desse capítulo, sobretudo, para

o estudo sobre a parte histórica e sobre vida de Dante foram utilizadas as obras de

BOSCO (1966), em Dante la vita e le opere, PETROCCHI (1963), em Dante e il suo

tempo, e REYNOLDS (2011), em Dante. Além dessas obras, contribuíram para a

investigação outra versão da Divina Comédia, traduzida para o italiano standard, que é

ALIGHIERI (2007), em Tutte le opere. Outro texto, não menos importante, para a

tessitura do capítulo foi MARAZZINI (1994), em La lingua italiana.

Já para a discussão sobre o período sócio-histórico-artístico relacionado ao

Renascimento Italiano, foram utilizados os textos: MAZZARIOL & PIGNATTI (1957),

Storia dell’arte italiana, que trata mais especificamente de Botticelli, situando-o no

período delle botteghe (primeiras academias de arte italiana); D’ANCONA &

WITTGENS (1953), Storia dell’arte italiana, que trata da questão da pintura florentina

na segunda metade do Quattrocento, e LEGRAND (1999), L’Art De La Renaissance,

que discute sobre a arte na época do Renascimento, apontando para a imagem da

sociedade; HAY (1988), Historia de las civilizaciones - La epoca del Renacimiento, a

qual tratará das civilizações na época do Renascimento, e ACKER (1992),

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Renascimento e Humanismo – O homem e o mundo europeu do século XIV ao século

XVI, que discute a questão do homem no humanismo e, posteriormente, no

Renascimento.

Ainda relacionados à questão do Renascimento italiano, para a construção desse

capítulo foram importantes também as obras de BURKE (2010), O Renascimento

Italiano – Cultura e sociedade na Itália, que trata do Renascimento italiano indicando

para a cultura e para a sociedade italiana, por intermédio das análises das biografias dos

artistas, observando a importância dos mecenas, a utilização das obras de arte, enfim,

pontos essenciais para um entendimento sobre o universo renascente, BURCKHARDT

(2009), A cultura do Renascimento na Itália, que também foca seu trabalho no

Renascimento italiano, discutindo a questão do estado como obra de arte, o redespertar

da antiguidade, tratando da questão do retorno aos clássicos, do porquê da importância

de se retornar a eles, BAXANDALL (1991), O olhar renascente, no qual, novamente,

foram vistas as questões do mecenato, a forma como se davam as negociações para a

feitura de um quadro, o valor das cores, etc. Foram utilizados ainda a esse respeito

CRACCO; PRANDI; TRANIELLO (1982), em Corso di storia, e também FERRONI

(1991), em Storia della letteratura italiana.

Para o estudo da pintura Renascentista foi fundamental a obra de CARRASSAT

& MARCADÉ (1999), Les Mouvements Dans La Peinture, e BUSIGNANI (1965), I

Diamanti Dell’Arte – Botticelli. Esta última obra trata da biografia e também das obras

deste artista italiano. Vale acrescentar que, mesmo tratando de pintura, é possível retirar

algumas ideias que servem para a ilustração.

O capítulo 2 discute a representação simbólica e alegórica presente na obra

dantesca. Esse capítulo foi subdividido em dois, a saber: A plasticidade do poema

dantesco e Texto e imagem no poema dantesco e suas representações. O resultado da

Pesquisa de Dissertação de Mestrado apresentada neste capítulo visa à discussão da

realização desse cotejamento entre duas formas de representação, a partir do tema da

obra poética, foram fundamentais os conceitos de BARROS (2005), em Teoria

Semiótica do Texto, sobre o vínculo que os semas e os signos de uma imagem podem

possuir que remetem ao texto literário. E, também, os conceitos de semiologia e de

semiótica de acordo com ECO (1994), La struttura assente, apontando, sobretudo, para

os signos que constituem as ilustrações como, por exemplo, o significado das cores, das

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vestimentas e dos símbolos, e ECO (2005), Tratado geral de semiótica, que trata da

questão estética do texto. Depois do desenvolvimento de todo esse capítulo, será

também tratada a questão da construção simbólica da identidade italiana, com base,

principalmente, em RAIMONDI (1998), Letteratura e identità nazionale.

Em relação às técnicas de leitura visual, DONDIS (2007), em A sintaxe da

linguagem visual, mostra métodos que proporcionam um melhor entendimento sobre as

imagens, apresentando, ao leitor, as partes que as constituem, que são: a cor, o tom, a

textura, a dimensão, a proporção e suas relações compositivas com o significado. Por

meio desta obra, foi possível ainda demonstrar que é muito importante o entendimento

do ambiente em que se vive, visto que o mesmo exerce um profundo controle sobre a

maneira de ver, devido a estas partes constitutivas.

A percepção visual também será cuidadosamente estudada com base em

MERLEAU-PONTY (1999), Fenomenologia da percepção, e, partindo de suas ideias,

será possível mostrar que toda a riqueza de detalhes vistas em pinturas e ilustrações é

oriunda da percepção subjetiva, que é a tentativa de uma descrição direta de

experiências individuais. Portanto, os artistas tiveram a oportunidade de representar as

descrições do texto literário com base em seus repertórios imagísticos, ou seja, eles

representaram as descrições com o material imagístico que eles tinham em mente a

respeito do que leram e transpassaram para um quadro. O que não se deve esquecer é o

fato de o pintor da época do Renascimento ter sido mecenado, ou seja, a liberdade para

a realização das obras não existia, já que a obra deveria estar de acordo com o que ele

desejasse.

A questão do olhar também terá relevância para este capítulo, sendo assim será

estudado também BAXANDALL (1991), em O olhar renascente, que trata de como se

dá o olhar para a imagem. Convém ressaltar que, assim como no primeiro capítulo,

outros autores também constarão no presente estudo.

O capítulo 3 traz a análise do cotejamento entre o poema dantesco e as

ilustrações de Sandro Botticelli referentes aos cantos selecionados. Esse capítulo

também foi dividido em dois subcapítulos, o primeiro: A seleção plástica das cânticas, e

o segundo: A técnica de Sandro Botticelli da representação do poema dantesco: a punta

d’argenteo. Este último será subdividido em três outros subcapítulos referentes às

análises e cotejamentos realizados entre o texto literário e as ilustrações. Para a

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realização do estudo desse capítulo, basicamente, serão utilizadas as mesmas referências

do capítulo anterior, visto que toda a parte técnica foi descrita nele.

O último capítulo é o das considerações finais, em que se busca indicar as

peculiaridades e detalhes do tema pesquisado, contribuindo com informações

importantes para o entendimento do cotejamento entre os dois tipos de texto, o literário

e a ilustração.

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1. A DIVINA COMÉDIA: REPERCUSSÃO NOS CAMPOS LITERÁRIO E

PICTÓRICO

Este primeiro capítulo tem como foco apresentar a repercussão da obra de Dante

Alighieri (1265 – 1321), desde a época medieval, período em que foi escrita, até o

Renascimento italiano, momento em que ela foi retomada imagisticamente pelo artista

italiano Sandro Botticelli (1445 – 1510). Para tanto, esse capítulo será dividido em três

subseções, apontando para partes específicas e determinantes para o entendimento de

como se deu tal repercussão.

Desta maneira, a primeira subseção tem por objetivo apresentar uma breve

biografia de Dante Alighieri, indicando pontos de grande relevância para a constituição

de suas obras literárias. Principalmente seu lado político será aqui tratado, com o intuito

de mostrar como e porque a sua principal obra, a Divina Comédia, foi escrita. Além de

sua principal obra, serão apresentados outros trabalhos seus, de grande importância e

que também mostram características particulares da escritura deste artista. Não será

descuidado nesta parte da Dissertação o contexto sócio, político e cultural no qual Dante

se envolveu.

A partir deste ponto, na segunda subseção, é estudada a importância do poema

dantesco nas épocas medieval e no Renascimento, ou seja, a repercussão do poema

dantesco desde o Medioevo até o século XVI. Essa subseção apresenta indícios

importantes para o entendimento da feitura das ilustrações de Sandro Botticelli, uma vez

que traz a relevância do papel do mecenato na cultura italiana do período renascentista.

Busca-se, assim, nesta parte, a compreensão das etapas, desde o aprendizado do artista

até a realização das obras que se referem às ilustrações de sua retomada da obra

dantesca, para observar as motivações que determinaram esses desenhos.

Já a terceira subseção trata das questões relativas ao poema dantesco e sua

representação imagética, ou seja, são vistos os pontos principais da realização das

ilustrações de Botticelli, tendo em conta a questão do mecenato, como estudado na

subseção anterior, porém com o intuito de apresentar pontos que indiquem,

simbolicamente, traços da construção de uma identidade italiana, que ou já havia sido

construída séculos antes, ou encontrava-se em processo de construção.

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1.1. Dante Alighieri até a Divina Comédia

Esta primeira subseção tem como objetivo apresentar a biografia de Dante

Alighieri, buscando passear pelo processo de formação pessoal, não se esquecendo

também do seu contexto sócio, político e cultural que circundava o poeta de Florença. É

de suma importância focar neste ponto, uma vez que, para buscar uma aproximação do

entendimento de quem foi Dante Alighieri, é necessário averiguar tais fatos.

Assim, será possível compreender muitas das escolhas deste escritor tão

importante para a cultura italiana e, evidentemente, suas escolhas interferiram

diretamente em suas obras, principalmente em suas escolhas políticas. Algumas de suas

obras serão, mais adiante, brevemente mencionadas, para ilustrar um pouco o

comentário sobre a sua produção literária, sendo tratada, é claro, sua maior obra a

Divina Comédia, por último.

1.1.1. Dante Alighieri e o contexto sócio, político e cultural de Florença

Dante nasceu em Florença, no ano de 1265. Não se sabe, verdadeiramente, o dia

preciso de seu nascimento, entretanto, como dito em um de seus livros, a Divina

Comédia, ele nasceu na constelação de Gêmeos, desta maneira, provavelmente, no

período entre maio e junho.

Com o fim de esclarecer o sobrenome de Dante, pode-se dizer que aliger é

derivado do latim e significa alado, sendo seu verdadeiro nome Durante, e Dante a

forma abreviada, que significa resistente. Este escritor teve como antepassado

Cacciaguida, que foi cavaleiro na Segunda Cruzada. Sua esposa chamava-se Alighiera

Alighieri e era oriunda da região do vale do Pó, em Ferrara.

Seu pai chamava-se Alighiero Alighieri e tinha, aproximadamente, 45 anos na

época de seu nascimento. Este era um homem de posses em Florença e conseguia

aumentar sua renda com empréstimos financeiros. Com isto, ele sustentava sua família

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oferecendo conforto, entretanto, Dante, condenava sua atitude como usura. Sua mãe,

Bella, faleceu quando Dante era ainda uma criança, entre os anos de 1270 e 1275, sendo

assim, seu pai casou-se, novamente, com Lapa, e, com ela, teve dois filhos, a saber:

Francesco e Gaetana. Existiu ainda outra filha, cujo nome não se sabe, porém, sabe-se

que ela se casou com Leone Poggi. A morte de seu pai ocorreu no período entre 1281 e

1283, fazendo com que Dante tivesse que ter um tutor, uma vez que vigorava na época

uma lei que afirmava que menores de 25 anos de idade deveriam estar aos cuidados de

um tutor.

É possível dizer que, posteriormente à morte de sua mãe, a maior experiência na

infância de Dante foi seu encontro com Beatrice, cujo relato ele faz em seu livro Vita

Nuova.

Dante casou-se com Gemma, da família Donati. Seu noivado foi aos 12 anos de

idade e casaram-se no ano de 1290, quando ele tinha 25 anos. Tiveram dois filhos

Iacopo e Pietro, sendo seu primeiro filho sacerdote e o outro juiz. Existe a possibilidade

de ele ter tido mais dois filhos, Giovanni e Gabriello, entretanto, eles podem ser filhos

de um homônimo de Dante. Além deles, eles tiveram ainda duas filhas, Antonia e

Beatrice (que se tornou freira em Ravenna). Vale acrescentar que existe a hipótese de

que Dante teve somente a filha Antonia que, ao se tornar freira, adotou o nome do

verdadeiro amor de seu pai.

A formação de Dante foi no Trivium e no Quadrivium, curso composto pela

gramática (latim), lógica e retórica, seguidas pela aritmética, geometria, astronomia e

música. Posteriormente a isto, como em Florença não havia uma universidade, ele

continuou seus estudos frequentando palestras em escolas de franciscanos, em Santa

Croce, e de dominicanos, em Santa Maria Novella.

Dante, em sua tentativa de entrar para um grupo de poetas, conheceu Guido

Cavalcanti, com quem estabeleceu uma relação estreita de amizade e aprendizado, ou

seja, tinham uma relação de mestre e aprendiz. A poesia de Cavalcanti era conflituosa,

uma vez que demonstrava um embate entre idealismo e desejo, traços bem diversos da

escritura de Dante. Cavalcanti o ajudou inúmeras vezes, lendo e criticando seus poemas,

o que fazia com que Dante crescesse sempre mais.

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Muito do que se vê nas obras de Dante foram fatos verídicos, experienciados e

vistos por ele. Deste modo, é possível dizer que, durante esse período, muitos fatos

ocorriam publicamente, ou seja, eram revelados, como, por exemplo, os funerais,

festivais e as execuções em público, que eram comuns. Dessa maneira, Dante

presenciou por diversas vezes pessoas sendo queimadas vivas, em outras, os assassinos

sendo enterrados de cabeça para baixo, com as pernas para fora. Esses fatos remetem

diretamente ao Inferno, da Divina Comédia, em que se pode verificar uma das

condenações como sendo, justamente, essa de ser enterrado de ponta cabeça, com as

pernas para fora. Portanto, constata-se que muitas das condenações observadas neste seu

livro foram fatos verídicos que ele presenciou ou teve notícias.

Aos 30 anos de idade, seus poemas eram bastante lidos e recitados, e suas cópias

eram realizadas até mesmo fora de Florença. Este foi um dos fatores que incentivaram

Dante a entrar para a vida pública, vida pública esta no sentido de associar-se ao grêmio

dos médicos e farmacêuticos, o que era muito comum entre os homens da sociedade da

época que tinham como objetivo entrar em contato com outros profissionais e trocar

experiências, divulgando, assim, seu trabalho. Cabe acrescentar que também os pintores

pertenciam a esse grêmio.

Partindo para a vida política de Dante, convém declarar que, nesta época, ele e

sua família já eram membros do partido dos Guelfi, que se mantiveram no poder de

Florença durante vinte e cinco anos, ou seja, ele estava completamente envolvido com a

parte política de Florença, sua cidade natal. Entretanto, os Ghibellini exilados, partido

oponente, estavam sempre presentes como uma ameaça. Uma tentativa de represália foi

feita pelos Ghibellini, no ano de 1289, contudo foi repelida na Batalha de Campaldino1,

na qual Dante fez parte da cavalaria. Devido aos acontecimentos, ocorriam muitas

modificações no poder e uma das consequências disto foi a colocação dos amigos,

Guido Cavalcanti e Dante, em lados opostos.

É preciso esclarecer a maneira como se estruturava o governo florentino neste

momento. Existia um Gonfaloniere di Giustizia2, que era um funcionário eleito, que

tinha em torno de mil subordinados para dar ordens e era apoiado por seis priores, os

quais ficavam no posto por um período de dois meses. Além disto, existiam três

1 Batalha entre os Guelfos, de Florença, e os Gibelinos, de Arezzo, em 1289.

2 Estandarte da justiça.

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conselhos, dispostos da seguinte maneira: 100 membros eram responsáveis pelas

finanças; 300 membros aconselhavam o podestà3, que era eleito como um árbitro de

fora de Florença; e o último eram 150 membros, que ajudavam o Capitano Del Popolo4.

Devido a essas problemáticas políticas, Florença tornava-se um local perigoso.

O partido dos Guelfi dividiu-se em duas facções, sendo uma a dos Bianchi e a outra dos

Neri. Dante fazia parte do grupo dos Bianchi e foi eleito membro do corpo executivo,

do Conselho dos Cem, sendo conhecido como um orador persuasivo e convincente. O

líder do grupo dos Neri era Corso Donati e o da parte dos Bianchi era Vieri de’ Cerchi,

sendo os primeiros conhecidos como mais militantes e agressivos.

Dante, mesmo depois de terminar seu mandato, continuou a ser convocado para

servir à República de diversas maneiras, como supervisor de obras. Neste momento, a

problemática entre as duas facções chegou ao seu ápice, quando o Papa Bonifácio VIII

decidiu enviar o cardeal Matteo de Acquasparta para tentar uma reconciliação, que foi

mal sucedida. Em seguida a esse fato, aproximava-se também o exílio de Guido, cuja

sentença foi assinada por Dante, como prior. A consequência disto foi a morte de seu

grande amigo.

Em 1300, o então Pontífice Bonifácio anunciou um jubileu, no qual ele ofereceu

absolvição plenária aos peregrinos arrependidos que visitassem os santuários de São

Pedro e de São Paulo. Isto fez com que Roma, conhecida como centro espiritual e

histórico, ficasse cheia de pessoas durante todo o ano, com peregrinos de toda parte da

Europa, inclusive Dante.

Evidentemente, com tantos problemas políticos ocorrendo, esperava-se por algo

de pior, e três homens tiveram papeis fundamentais nisto, a saber: o papa Bonifácio

VIII, Carlos de Valois, que era irmão do rei da França e também Corso Donati. Os

transtornos na cidade preocupavam o Papa, que suspeitava que os Guelfi Bianchi

fossem contra ele, deste modo ele apoiou os Guelfi Neri. Neste período, Corso Donati,

que havia sido banido de Florença, foi para Roma, com o intuito de conspirar com o

Papa. E, logo em seguida, Carlos de Valois foi nomeado pacificador, por Bonifácio

VIII, fato que se verificou, a posteriori, como um engano. Ele, no dia primeiro de

Novembro de 1301, chegou aos portões de Florença, como pacificador. Três dias

3 Prefeito.

4 Capitão do povo.

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depois, chegou Corso Donati, ilegalmente, acompanhado pelos Guelfi Neri,

ocasionando um golpe de estado, liberando os presidiários, assassinando os Guelfi

Bianchi, saqueando e queimando as casas. Vendo toda essa cena, o pacificador, Carlos

de Valois, não fez, absolutamente, nada. Assim, o grupo dos Guelfi Bianchi foi banido,

mandado para o exílio e, dentre eles, estava Dante Alighieri.

Depois de ser mandado para o exílio, Dante, finalmente, percebeu que o

responsável por tudo aquilo que tinha acontecido tinha sido o Papa Bonifácio VIII, uma

vez que ele havia planejado tudo o que ocorrera, ganhando, neste caso, o controle total

da cidade de Florença. Tal fato acarretou uma profunda aversão de Dante pelo Pontífice,

que, posteriormente, em sua obra a Divina Comédia, o colocou no Inferno. E, mais uma

vez, é possível observar que, nas obras de Dante, existem muitos pontos que podem ser

relacionados à sua vida pública.

Na época medieval, o exílio era comum, como era também comum ser a

comunidade que recebia um exilado. Essa comunidade podia também ser formada por

um grupo de refugiados políticos. Obviamente, sabendo que Dante era totalmente

envolvido com a parte política de Florença, assim que chegou em Ravena, os políticos

de lá o colocaram em seus planos para o retorno à Florença. Em 1302, com 37 anos de

idade, ele já possuía duas sentenças de banimento contra ele. Em janeiro daquele ano,

foi multado em 5 mil florins e obrigado a permanecer fora de sua cidade por um período

de dois anos. Os governantes exigiram que essa quantia fosse paga em três dias e, como

ele e outros não conseguiram pagar, sua sentença foi eternizada.

Em 1303, houve um golpe contra o Papa Bonifácio VIII, comandado por Sciarra

di Colonna e por Guilherme de Nogaret, francês. Eles e outros “italianos”, que eram

contra o Pontífice, no dia 6 de setembro daquele ano, invadiram a cidade de Anagni, às

6 horas da manhã, por um portão que foi deixado aberto por traição. Desta maneira, eles

entraram e foram logo para a casa dos cardeais, para saqueá-la e, depois disto,

dirigiram-se, diretamente, para o palácio Caetani, local da residência pontifícia. Nessa

época, Bonifácio VIII estava com, aproximadamente, oitenta anos, e enfrentou seus

inimigos, que requeriam que a família Colonna5 retornasse à cidade. Todavia, seus

pedidos foram negados e, no final da tarde daquele dia, seu quarto foi aberto à força.

Pegaram-no e levaram-no como prisioneiro, saqueando suas riquezas, sendo levado até

5 Família de grande importância política e econômica, tanto na época medieval quanto no Renascimento.

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o mercado e obrigado a absolver todo o povo. Em 16 de setembro, ele saiu de Anagni e

foi mandado para Roma, onde faleceu em 12 de outubro. Enfim, depois desse Papa,

vieram outros, cuja missão pacificadora não auxiliou no sentido de viabilizar o retorno

dos exilados para Florença. As informações biográficas de Dante Alighieri são extensas,

sendo assim, o recorte proposto nesta subseção buscou apenas indiciar alguns traços da

biografia dele presentes em sua produção literária, em particular, na sua principal obra a

Divina Comédia.

1.1.2. Dante e o campo literário

Tratar do campo literário de Dante Alighieri não é uma tarefa fácil, tendo

presente o cenário de produção literária de sua autoria. É importante lembrar que o foco

do tema da Dissertação de Mestrado é o canto Inferno, da obra Divina Comédia. Nesse

sentido, são indicadas, nesta subseção, as obras de Dante mais citadas nas antologias de

Literatura Italiana, tendo em vista que o objetivo da Dissertação não é discutir todas as

obras de autoria do escritor florentino, apesar de ser um estudo bastante interessante.

Desta forma, apenas para mostrar um pouco de como era Dante, ainda jovem,

em relação aos seus trabalhos literários, cabe observar que ele não era dedicado somente

à literatura, visto que, uma vez, seu amigo, Guido Cavalcanti, reprovou um soneto seu,

por considerar que ele estava desperdiçando seus talentos. Sabe-se que ele viveu nesse

ambiente “boêmio”, não tão sério, até chegar à idade adulta e REYNOLDS (2011: 42)

declara a esse respeito:

O contraste entre a alegria e o horror se reflete nos aspectos contraditórios de

sua personalidade: por um lado, realista, terreno e sensual, por outro íntegro,

idealista e visionário. Sua formação responde por ele até certo ponto, mas não

pode explicar como, partilhando essas influências com seus contemporâneos,

ele foi capaz de superá-las, tornando-se um dos maiores poetas do mundo

ocidental.

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A declaração de Reynolds leva, realmente, a pensar sobre a genialidade desse

artista tão completo que, desde muito novo, já se destacava dentre os poetas de sua

época. Sendo assim, é conveniente tratar aqui um pouco das obras dantescas, com o

intuito de apresentar o seu campo literário, obviamente, não somente as suas obras, mas

também um pouco do que Dante pretendia em seu meio cultural.

Seu primeiro livro, intitulado Vita Nuova, foi escrito no período de 1292 a 1293,

dois anos após a morte de Beatrice Portinari, em 1290. Dante o dividiu em duas partes,

sendo a primeira a narração dos eventos e dos sentimentos que motivaram a composição

do poema e, a segunda, a análise de cada poema. Trata-se de uma obra composta por 42

capítulos breves, em rima, e seu título faz menção a uma experiência absoluta que

renovou sua vida. Desta maneira, ele começa a obra narrando seu encontro, aos nove

anos de idade, com Beatrice, sua amada, e segue contando os acontecimentos até

encontrar-se novamente com ela, nove anos depois.

Dante tratou do amor, fazendo uma ligação entre ele e a gentileza que via na

mulher, ou seja, a mulher era a dona da graça, da doçura e da humildade, sendo esta a

visão que ele tinha de Beatrice, uma visão idealizada do amor, que caracterizou o Stil

Novo dantesco.

Vale acrescentar ainda que essa obra traz um elemento novo, de

experimentações nunca antes feitas, em relação ao texto, sendo assim, a partir de então,

o vernáculo italiano como, por exemplo, os dialetos florentino e siciliano, dentre outros,

tinha somente meio século de uso, como linguagem literária, quando Dante começou a

escrever seus versos. Cabe notar que a difusão dessa obra foi feita por meio das cópias

manuscritas de Giovanni Boccaccio, cuja primeira edição foi impressa em 1576.

Nesse momento, convém uma breve explicação a respeito da figura de Guido

Cavalcanti e também do contexto em que ele se insere na vida de Dante. Destarte, a

figura de Guido surgiu para Dante no momento em que ele estava tentando entrar para

um grupo de poetas. Nesta época, o amor cortês, cultivado pelos trovadores, estava

sendo propagado pelo norte da Península Itálica e também pela Sicília. Tal amor

revelava uma experiência dignificante, que somente um cor gentile, ou seja, um coração

nobre, poderia ser capaz de sentir. Desta sorte, os poetas que se dedicavam a essas

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experiências eram denominados os Fedeli d’Amore, os fiéis de amor. Dante criticava

esse tipo de poeta, uma vez que tinha uma visão mais terrena. Entretanto, ele queria

fazer parte desse grupo seleto, decidindo, então, colocar alguns de seus sonetos para

circular, anonimamente. Como recebeu respostas positivas, escreveu poemas mais

audaciosos e enviou para um grupo ainda maior de poetas, que os interpretaram, sendo

que, um desses sonetos foi o que Dante incorporou como primeiro poema de seu livro

Vita Nuova. Vale acrescentar que, nesta época, ele regulava uns 17 anos de idade.

Na época da morte de Beatriz, como dito anteriormente, Dante já era conhecido

em Florença como um competente poeta, visto que seus poemas já eram cantados,

decorados e recitados, tanto por homens como por mulheres e, tendo esse público,

começou a ousar e se enveredou por outros territórios. Primeiramente, ele escrevia

como os trovadores, sendo seus temas: o amor não correspondido, a personificação da

morte, o amor oculto, os desentendimentos com a mulher amada, entre outros. Foi então

que Guido Guinizelli6 deu origem a um novo conceito de cor gentile, cuja temática

refere-se a uma qualidade mental que possibilitava a experimentação unicamente do

efeito mais elevado do amor, ou seja, um amor sublime.

Dante escreveu tantos poemas sobre Beatriz e sobre seu amor oculto por ela que

compreendeu que ela significava muito mais para ele do que ele mesmo imaginava.

Desta maneira, ela havia tornado-se a virtude ideal, um ser paradisíaco, de uma beleza

extraordinária. A partir dessa compreensão, por parte dele, REYNOLDS (2011: 52)

afirma:

Este foi o primeiro passo de Dante em direção a uma nova forma de alegoria:

não uma personificação, nem um simbolismo, mas a percepção de que as

pessoas reais podiam ser imagens de qualidades que estão além delas

mesmas, não só em festas de máscaras e cortejos, mas na vida real.

Enfim, aos 30 anos de idade, seus poemas eram bastante lidos e recitados, e suas

cópias eram realizadas até mesmo fora de Florença. Este foi um dos fatores que

incentivaram Dante a entrar para a vida “pública”, associando-se ao grêmio dos médicos

e farmacêuticos, como dito anteriormente.

6 Guido Guinizelli (1235 - 1276) foi um importante poeta italiano que foi o iniciador e o teorizador do

Dolce Stil Novo, a corrente literária do século XIII italiano.

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A obra Convivio, escrita em língua vulgar, foi redigida entre 1303 e 1304. Esta,

em seu projeto inicial, deveria conter quinze tratados e um capítulo introdutório,

entretanto, Dante parou de escrever no quarto tratado. Cabe observar que o quarto

tratado foi escrito anos mais tarde, entre 1306 e 1308.

No Convivio, Dante, diferentemente do que fez na Vita Nuova, modificou seu

estilo, adotando um mais argumentativo e expositivo, com o qual confrontou alguns dos

temas da cultura filosófica do seu tempo. Deste modo, inaugurou uma prosa filosófica

totalmente diversificada, coerente e lúcida, em língua vulgar. Logo, nessa obra ele trata

de um banquete de sabedoria, oferecido aos mais pobres e miseráveis. No primeiro

tratado, ele tem por foco seu amor por Beatrice e trata de outros temas, principalmente

de seu pensamento filosófico. No segundo tratado, Dante discorre sobre a filosofia na

vida do homem. Já no terceiro, escreve sobre a nobreza e, finalmente, no último trata de

amizade, felicidade, fidelidade, velhice, juventude, ética etc. Vale acrescentar que Dante

interrompeu a escritura desse livro para dar início a sua obra de maior prestígio, a

Divina Comédia.

O livro De vulgari eloquentia foi escrito entre 1303 e 1304. Ele o escreveu em

língua vulgar e não em latim, sendo esse trabalho o primeiro tratado sobre a língua e a

poesia. Pode-se afirmar que a preocupação dantesca com a questão linguística já era

grande na época do Medioevo. A intenção desse autor ao escrever essa obra foi a de

apresentar a superioridade da língua vulgar sobre os dialetos da Península Itálica, com o

intuito de estimular a sua regularização.

Segundo Marazzini, o latim no Duecento italiano teve sua base no campo da

prosa, por meio da comunicação escrita e de cultura. Nessa época, eram escritos nessa

língua documentos administrativos, jurídicos, contábeis, judiciários, além dos escritos

de filosofia, medicina, religião etc. Já com o latim vulgar realizava-se uma escritura de

alto valor experimental estabilizando as estruturas da prosa italiana.

ASOR ROSA (1985: 56) declara que a principal distinção da teoria linguística

dantesca é entre o vulgar e a gramática, uma vez que o primeiro é a língua em si, já o

segundo é a língua reduzida ao domínio de regras fixas. Dante acreditava que a língua

falada era totalmente variável e, a depender das condições de tempo e de lugar, seria

improvável o entendimento da fala dos habitantes de um mesmo lugar, que tivessem

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vivido em períodos diferentes da história. A gramática, nesse sentido, é uma identidade

“inalterável” da língua, ou seja, ela serve como base para uma língua comum.

Seu projeto inicial, para a escritura de De vulgari eloquentia, foi o de compor

quatro livros, analisando os vários níveis estilísticos e as possíveis formas de uso

literário da língua vulgar. Entretanto, essa obra também foi interrompida, exatamente,

no capítulo XIV, do segundo livro, para que ele começasse a escrever sua maior obra, a

Divina Comédia.

Esse tratado, De vulgari eloqentia, não teve tanto sucesso como as outras obras

de Dante, sendo redescoberto na primeira metade do século XVI e publicado em

tradução italiana. Segundo MARAZZINI (1994: 183):

... il De vulgari eloquentia finì per essere al centro dell’attenzione, come uno

dei testi fondamentali per il dibattito linguistico del Rinascimento.7

Essa afirmação de Marazzini confirma a importância dos escritos de Dante para

a questão linguística italiana, os quais não permaneceram somente em seu período, mas

perpassaram e continuam perpassando gerações.

Convém acrescentar que, no período do Ottocento italiano, Alessandro Manzoni

tentou diminuir a importância desse tratado dantesco, asseverando que o escritor não

tinha como finalidade uma língua única, mas sim uma única língua para a poesia. Desta

maneira, a nobreza do vulgar ocorre por meio da literatura, transformando o tratado de

linguística em tratado de teoria da literatura.

É possível perceber que, apesar de esse tratado não ter obtido tanto sucesso e ter

sido criticado, Dante deu o passo principal, através de vários estudos linguísticos, para a

composição de sua obra maior que foi a Divina Comédia. Desta forma, pode-se afirmar

que ele foi um escritor além de seu tempo.

A Monarchia, outra obra dantesca, foi escrita entre 1311 e 1313. Esta é um

tratado em latim, dividido em três livros, nos quais deixa transparecer seus

7 “... o De vulgari eloquentia acabou por estar no centro da atenção, como um dos textos fundamentais

para o debate linguístico do Renascimento”. (Tradução própria)

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conhecimentos de filosofia e política de seu tempo. No primeiro livro, ele defende a

necessidade de se ter um único monarca para o governo mundial. No segundo, mostra a

origem divina do Império Romano e, no terceiro, trata da relação entre o Papado e o

Império.

Enfim, Dante Alighieri, além dessas obras acima descritas, escreveu muitas

outras, igualmente importantes para o conhecimento do estilo dantesco, porém não tão

conhecidas, a saber: Rime, Il Fiore, Detto d’Amore, Egloghe, Epistole e Quaestio de

aqua et de terra. Deste modo, inúmeros foram os trabalhos deste autor para a cultura

italiana e ocidental.

1.1.3. A Divina Comédia

A Divina Comédia, obra mais significativa de Dante Alighieri, foi escrita

quando o autor florentino já se encontrava no exílio. O canto Inferno, objeto do tema

desta Dissertação, foi concluído em 1309; os outros dois cantos que compõe essa obra

dantesca são o Purgatorio, finalizado em 1313, e o Paradiso que começou a ser escrito,

três anos mais tarde, em 1316 e ficou pronto nos seus últimos anos de vida.

Segundo Ferroni (1992: 110), 750 manuscritos foram realizados e catalogados,

da obra dantesca durante os séculos XIV e XV, indicando a circulação das obras

dantescas para além de seu tempo.

Um dos copistas da obra literária de Dante foi Giovanni Boccaccio (1313 –

1375), que realizou três cópias da Comédia. Vale ressaltar aqui a importância de

Boccaccio para a divulgação da obra dantesca, uma vez que foi ele que acrescentou o

adjetivo Divina à Comédia. Destarte, o novo título só foi integrado ao original no

período do Cinquecento italiano.

Esse poema é ligado à tradição medieval das visões do outro mundo, e assim,

Dante faz uma viagem nos três reinos, no do Inferno, do Purgatório e do Paraíso. Sua

viagem dura, aproximadamente, uma semana e tem início na noite da Sexta-feira Santa,

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ou Sexta da Paixão de Cristo, no dia 8 de abril de 1300, época em que tinha,

aproximadamente, 35 anos de idade. Com essa viagem, ele pode compreender a

estrutura do universo e conhecer as condições das almas depois da morte, podendo

observar as penitências que elas recebiam e como, enfim, fariam para chegar a Deus.

Além disto, a presença de Dante tem a função de incitar nas almas o desejo de se

comunicarem com os parentes e amigos em vida e a visão das almas é essencial para a

salvação dele (s), como um exemplo para rejeitar o mal e seguir no caminho do bem. O

guia de Dante, tanto no Inferno quanto no Purgatório, é Virgílio, que representa a razão

humana e, no Paraíso, Beatriz, que representa a fé e a ciência divina.

Quanto à importância dessa obra literária CATALDI e LUPERINI (1994: XXV)

declaram:

La Commedia è opera fortemente unitaria soprattutto per due ragioni: ha una

organicità narrativa (è la storia di un viaggio avventuroso, con un ben

individuato protagonista); ha una coerenza tematica (è la descrizione

dell’oltretomba cristiano). Ed è opera totale, anche, in quanto affronta una

materia (quella dell’aldilà e della salvezza eterna) che implica

necessariamente, nella prospettiva cristiana, il coinvolgimento di tutte le

questioni delle quali la mente umana è capace.8

A afirmação acima confirma o que outros teóricos e pesquisadores das obras

dantescas já declararam e continuam declarando em seus estudos, ou seja, a grande

importância que essa obra possui, sendo única.

É importante ainda lembrar uma das características estilísticas dessa principal

obra dantesca que se refere ao fato de os poemas da Divina Comédia serem escritos em

terza rima ou terzina9, uma invenção do próprio Dante, que também optou pelo

hendecassílabo10

para toda a obra. Segundo REYNOLDS (2011: 172):

8 A Comédia é uma obra fortemente unitária, sobretudo por duas razões: existe uma organicidade

narrativa (é a história de uma viagem aventurosa, com um único protagonista); existe uma coerência

temática (é a descrição do além-túmulo cristão). É uma obra total, mesmo enquanto afronta uma matéria

(aquela do além e da salvação eterna) que implica, necessariamente, na perspectiva cristã, o envolvimento

de todas as questões das quais a mente humana é capaz. (Tradução própria) 9 Rima tripla.

10 Versos de 11 sílabas.

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Versos em branco não eram usados em uma escrita vernacular. Dante amava

rimar, concatenatio pulcra (“acoplamento bonito”), como ele dizia. A rima

também é um auxílio à memória e uma produção contra omissões e

alterações por copistas.

A rigor, Dante já se ocupava com as questões relativas à linguagem em suas

obras e a exatidão com que escrevia, criando até mesmo uma nova estrutura, como dito

anteriormente, faz dele um poeta singular. Ele acreditava que a língua vernácula era

aquela adquirida pela imitação das amas de leite, sem regras. Sendo assim, ele tentou

encontrar uma forma, que fosse a mais apropriada, para ser o vernáculo italiano, uma

vez que existiam muitas variações dialetais na Península Itálica. A esse respeito

REYNOLDS (2011: 91) declara:

O amor de alguém à língua materna significa falar o vernáculo que se

aprendeu na infância, mas isso não deveria levar alguém a colocá-la acima de

todas as outras. Ao falar de si próprio, ele dá uma expressão comovente a seu

amor por Florença...

Pode-se observar que a concepção dantesca de língua vernácula italiana

apontava para uma diferença entre os vernáculos, o “ilustre” era o que iluminava a

pessoa que o utilizava, pelo poder que tinha, o “cardeal” era aquele em que as pessoas

se apoiavam e se voltavam, o “palaciano” era o utilizado na corte e o “curial” era o

equilibrado, usado em tribunais de justiça, conforme explicado por REYNOLDS (2011:

94).

FERRONI (1992: 93) também faz uma breve análise da importância de Dante,

mas em relação à literatura italiana:

DANTE ALIGHIERI sintetizza le tendenze essenziali della letteratura del

secolo XIII e crea allo stesso tempo modelli determinanti per tutta la

letteratura italiana.11

11

“DANTE ALIGHIERI sintetiza as tendências essenciais da literatura do século XIII e cria ao mesmo

tempo modelos determinantes para toda a literatura italiana”. (Tradução própria)

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Segundo Ferroni, Dante, em sua obra mais famosa, a Divina Comédia, confronta

a língua italiana com níveis estilísticos variados, produzindo um espaço literário rico,

como ainda não havia sido visto em nenhuma outra obra literária europeia, daquela

época. Além disto, o artista aproveita-se de sua poesia para revelar os sinais da crise

pela qual a Europa estava passando, no século XIV, o que mostrava uma consciência até

dolorosa da realidade em que vivia. Sendo assim, sua poesia possui uma enorme

densidade histórica, que transmite uma realidade “concreta”, haja vista que se baseia

nos valores medievais. Desta maneira, FERRONI (1992: 111) declara a esse respeito:

D’altra parte, è la stessa forza dell’invenzione poetica a conferire realtà alla

«narrazione» delle varie tappe del viaggio e dei personaggi incontrati. I

significati vanno comunque ben al di là di una narrazione «fantastica». Per il

poeta il suo viaggio è anzitutto un percorso di rendizione e riscatto,

un’operazione ascetica che conduce alla verità e alla salvezza. Ma nello

stesso tempo vuole offrirsi, secondo i canoni della letteratura morale

medievale, come immagine esemplare di ogni esperienza umana.12

Deste modo, existe uma complexidade no poema dantesco que se dá devido ao

desconhecimento dos personagens apresentados no texto e, para tanto, é necessário um

estudo paralelo, referente a estes personagens, para um melhor entendimento de cada

um, uma vez que pertencem ao período medieval. Vale acrescentar que muitos destes

personagens da obra poética pertenceram ao ambiente sócio político frequentado por

Dante, e o que se pode perceber desses elementos históricos é o juízo dantesco centrado

em um conhecimento de mundo dos duzentos.

Nesse sentido, observa-se que a Divina Comédia, como afirmam muitos

estudiosos e especialistas, é uma obra de valor estético e literário difícil de ser

mensurado. Esse seu aspecto peculiar faz dela e de seu autor um exemplo de fenômeno

de retomadas nas artes, não se restringindo apenas à cultura italiana, mas também à

cultura ocidental. O recorte proposto, por essa Dissertação, ficará restrito a revisitação

ocorrida no Renascimento, conforme será apresentado na próxima seção.

12

“De outra parte, é a mesma força da invenção poética que confere realidade à «narração» das várias

etapas da viagem e dos personagens encontrados. Os significados vão, de qualquer modo, além de uma

narração «fantástica». Para o poeta sua viagem é, primeiramente, um percurso de redenção e resgate, uma

operação ascética que conduz à verdade e à salvação. Mas, ao mesmo tempo quer oferecer-se, segundo os

cânones da literatura moral medieval, como imagem exemplar de cada experiência humana”. (Tradução

própria)

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1.2. Os desdobramentos do Renascimento

Esta segunda subseção tratará, como o próprio título diz, dos desdobramentos do

Renascimento e, para tanto, será necessário apresentar pontos cruciais para o

entendimento de como se deu o surgimento do Renascimento, suas características, como

eram os estudos dos artistas, sobretudo de pintores e ilustradores. Não só isso, mas

entender também como se dava o tratamento entre o mecenas e seu cliente, no caso o

artista, enfim, todas essas minúcias relevantes para encaminhar o ponto principal da

Dissertação que é, posteriormente, mostrar como se deu a retomada da obra dantesca

por Botticelli.

Deste modo, para o entendimento razoável do que ocorreu no período do

Renascimento, faz-se necessário buscar as motivações que aconteceram no Humanismo,

ocorrido no período anterior ao grande movimento artístico. Sendo assim, a afirmação

de FERRONI (1992: 131 – 132) a esse respeito define bem esse movimento:

Il concetto di Umanesimo si riferisce a una cultura piú strettamente vicina

agli uomini nella loro individualità e concretezza. Nello sviluppo di questa

cultura gioca un ruolo fondamentale l’attenzione riservata al mondo classico,

visto in contrapposizione alla mediocrità del presente. Ai toni elegiaci,

nostalgici, patetici dell’atteggiamento tardo-gotico, quello umanistico

sostituisce valori positivi e di equilibrio.13

Esse movimento intelectual acompanhou o nascimento e o desenvolvimento do

Renascimento, da segunda metade do século XIV até o XVI. Foi caracterizado pela

vontade de redescobrir a cultura antiga, ou seja, a clássica, em seus valores primitivos,

originais. Visou à aprendizagem da língua dos clássicos e um modo de escritura, em

latim, o mais próximo dos antigos escritores. Além disto, como característica,

CHASTEL (2012: 448) acrescenta:

13

“O conceito de Humanismo se refere a uma cultura estreitamente próxima aos homens na sua

individualidade e concretude. No desenvolvimento dessa cultura apresenta um rolo fundamental, a

atenção reservada ao mundo clássico, vista em contraposição à mediocridade do presente. Aos tons

elegíacos, nostálgicos, patéticos do movimento tardo-gótico, aquele humanístico substitui valores

positivos e de equilíbrio”. (Tradução própria)

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O “humanismo” busca, por todos os meios, justificar todos os aspectos do

homem; sem atentar um instante sequer contra a grandeza do santo, sustenta

a grandeza da personalidade forte, do “herói”.

Os humanistas também tinham por característica refutar o pensamento metódico

dos séculos precedentes, desta maneira estudando o homem, a sua palavra, o seu

comportamento, e não mais o cosmos ou as essências metafísicas. Para esses

intelectuais, a exaltação da virtude do homem significava saber as suas manifestações

individuais, mundanas e sociais. Além disto, eles colocavam-se no centro do mundo,

quer dizer, eram antropocentristas e, não mais teocentristas, como antes.

Os séculos foram passando e, no século XVI, segundo BURCKHARDT (2009:

253), continuava-se a falar, compor e escrever poemas humanisticamente, entretanto,

ninguém mais queria fazer parte do grupo dos humanistas, devido às acusações que eles

recebiam, de serem presunçosos, da sua devassidão e, principalmente, devido à

irreligiosidade, já que a Contra-Reforma estava brotando. A partir de então, observa-se

que o humanismo começou a caminhar para o seu arremate.

Assim, o Renascimento, como um movimento que se iniciou quando o

Humanismo já havia sido constituído, trouxe à luz muito dos ideais humanistas, como o

uso da razão, a evidência empírica, o antropocentrismo e, principalmente, o retorno aos

clássicos, para o seu contexto, adaptando-o ao seu momento, buscando a perfeição e a

harmonia nas artes. E, para caracterizar esta principal característica ASOR ROSA

(1985: 114) declara:

Umanesimo significa appunto, da una parte, studia humanitas, cioè culto,

amore ed interpretazione di quei testi classici in cui si può identificare una

più propria e diretta nozione dell’umano; dall’altra centralità, essenzialità e

preminenza dell’uomo nella costruzione e valutazione dell’universo.14

14

“Humanismo significa de fato, por um lado, studia humanitas, isto é culto, amor e interpretação

daqueles textos clássicos, no qual se pode identificar uma própria e direta noção do humano; por outro

lado, a centralização, essencialidade e primazia do homem na construção e avaliação do universo”.

(Tradução própria)

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Enfim, o Renascimento está estreitamente relacionado ao Humanismo, sendo

este a sua primeira expressão, cujo fundamento estava na redescoberta e na reproposta

da cultura clássica. Foi marcado por fenômenos que tiveram início no século XV,

fenômenos estes de desenvolvimento de novas formas culturais, uma abundante

produção artística, retomada de atividades econômicas e uma nova atenção à vida

terrena.

A concepção de Renascimento relaciona-se com a sociedade italiana dos séculos

XV e XVI, e entende-se por ele o “renascer” do homem, do seu desempenho social e

cultural. Pode-se articular ainda que, dentre as inovações revolucionárias desta época,

estão o novo interesse pela natureza e um vital otimismo que engrandece o homem

como senhor da natureza. Um dos pontos destas inovações pode ser conferido no

retorno da literatura em língua vulgar, que no Humanismo foi difundida somente em

pequenos grupos de intelectuais, mas que, no Renascimento, foi posta à disposição da

população, uma vez que existia um enorme desenvolvimento da imprensa, cujo trabalho

havia favorecido a multiplicação do público de leitores.

A primeira manifestação cultural renascentista ocorreu na Península Itálica, na

região da Toscana, e teve como principais centros duas cidades em particular, Florença

e Siena. A partir de então, este movimento difundiu-se pela Europa Ocidental, mas a

Península Itálica continuou sendo o local em que este movimento das artes teve maior

expressão, graças à quantidade de artistas que predominavam nestes centros e também

ao ambiente de mecenato, motivando a produção de obras de alto valor artístico.

Os homens do século XV e da primeira metade do século XVI possuíam uma

grande percepção do revigorar da vida civil, dos estudos e das técnicas, e tal percepção

fez-se notória por meio do duradouro processo de reestruturação da sociedade italiana

na saída da crise econômica do século XIV e também da peste que assolou a Europa.

Naquele momento histórico, os estudiosos e os artistas italianos renascentistas tiveram,

então, a convicção de serem, realmente, o centro da sociedade europeia, sentindo-se

guias da cultura dos demais países, que ainda não haviam saído da crise.

É conhecido que os séculos XV e XVI, na Itália, representaram um período

muito importante para as artes, com grandes inovações, gêneros, técnicas, estilos. A

primeira gravura em madeira, por exemplo, foi realizada no século XV, o primeiro livro

impresso foi a Bíblia, no século XIV, por Johannes Gutenberg, e, ainda, nesse mesmo

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período, foi feita a primeira pintura a óleo e também foram descobertas as regras da

perspectiva linear.

Nessa época, os artistas italianos15

abandonaram a tradição pictórica medieval16

,

recusando-a em nome de uma mais antiga, ou seja, romperam com a tradição medieval

em favor da tradição clássica. Assim sendo, este apreço pela Antiguidade clássica17

foi

uma das principais características do movimento renascentista. Segundo BURKE (2010:

26), o rompimento existente com a tradição, na realidade, não ocorreu inteiramente,

uma vez que, em muitas obras produzidas naquele momento artístico, é possível

verificar uma série de características de ambos os períodos Medieval e Renascentista e

ainda de outras obras que não seguiram nenhuma das características comuns a esses

períodos artísticos. A rigor, a tradição medieval foi, aos poucos, sendo deixada de lado

em busca de um novo ponto de vista pictórico, quando teve início a releitura dos

clássicos.

Esse fervilhar artístico ocorrido, no momento histórico do Renascimento,

particularmente em duas cidades da Itália, não foi acompanhado igualmente pela

literatura em vernáculo, pois a península itálica, ainda não era concebida como um reino

e encontrava-se totalmente fragmentada em regiões isoladas quer politicamente quer

linguisticamente.

Essa peculiaridade italiana contribuiu sobremaneira para a diminuição da

produção literária naquele momento do Renascimento. É notório que os dialetos,

diferentes línguas entre si, variavam de região para região, ocasionando, muitas vezes, a

dificuldade na interação de indivíduos que moravam até próximos, tornando

problemática a comunicação oral, dada a quantidade enorme de dialetos existentes na

Península Itálica, conforme é informado por Lanuzza 18

. Além disso, cabe dizer que este

panorama linguístico, apesar dos esforços das políticas linguísticas, como aqueles

promovidos pela Accademia della Crusca19

a favor da língua vernácula italiana

prolongou-se por vários séculos, até o século XX.

15

Esses artistas italianos eram os pintores e ilustradores da época do Renascimento, na Itália. 16

A tradição pictórica medieval era basicamente gótica e foi abandonada em favor de uma mais antiga,

ou seja, a clássica, grega e romana. 17

A Antiguidade clássica compreende os gregos e romanos. 18

LANUZZA, Stefano. Storia della língua italiana. Roma: Newton Compton editori, 1994. 19

Fundada em 1583, em Florença.

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A paisagem linguística italiana do Renascimento era outra, assim com era outra

a visão de mundo na época do Renascimento. Pode-se observar que essas visões de

mundo têm sua maior expressão na literatura e na arte. A visão da Itália do

Renascimento traz uma imagem muito diferente das regiões italianas de outros tempos

para além do Humanismo e do Renascimento, as quais foram representadas

imageticamente, apresentando uma península italiana do passado, conhecida a partir de

obras artísticas humanistas e renascentistas.

Neste momento da Dissertação, é necessário dispensar algumas linhas sobre a

noção de “obra de arte”. A concepção de obra de arte é moderna, por mais que os

museus e as galerias de arte possam indicar o contrário. Além disto, a valorização da

obra de arte não era como é concebida hoje. Era outra, visto que, naquela época, no

Renascimento, pinturas, esculturas, estátuas etc., eram considerados objetos

descartáveis, ou seja, sem valor.

Apesar dessa desvalorização do sentido da obra de arte, sua utilização mais

corrente era de sentido religioso. Em suma, as pessoas viam as imagens como sagradas,

então elas eram utilizadas, por exemplo, como estímulo à devoção de algum santo ou

santa, em particular. A esse respeito, BAXANDALL (1991: 48) afirma:

A maior parte das pinturas do século XV são religiosas. (...) significa que as

pinturas eram criadas para preencher fins institucionais precisos, que

sustentavam as atividades espirituais e intelectuais e que dependiam também

da jurisdição de uma teoria eclesiástica consolidada com relação às imagens.

As pinturas também eram utilizadas dentro das casas, uma vez que causavam

efeito moral sobre as crianças, de forma que os meninos deveriam se espelhar no

menino Jesus e, as meninas, nas santas e na Virgem Maria, isto a título de aprendizado

para as crianças. Outro exemplo de como essas imagens, cujos quadros eram colocados

nas paredes das igrejas, em particular o tema dessas pinturas era a via Crucis, de Jesus

Cristo, foram empregadas em sentido didático, pois tinham a função de possibilitar a

leitura dos iletrados que não teriam como decodificar o texto escrito.

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Além do uso religioso, o emprego político das pinturas também existiu nesse

período. Eram pintados, normalmente, retratos oficiais de nobres e de cenas de vitórias

em batalhas. Exemplo disto foi a destruição dos quadros encomendados por Cascina a

Leonardo Da Vinci e a Michelangelo, feita pelos Medici quando retornaram ao poder

em 1513. Tal fato é de suma importância nesse período e é o que se pode confirmar

nessa breve citação em que BURKE (2010: 165) declara:

O lado positivo é que Cosimo de’Medici demonstrou que tinha consciência

dos usos políticos da cultura ao fundar, primeiro, a Academia Florentina e,

depois, a Academia do Desenho. Em outras palavras, ele tentou transformar o

“capital cultural” toscano (o primado de sua língua, literatura, arte) em

capital político para o regime.

A partir dessa afirmação, não se tem dúvida de que a política realmente

influenciava as artes de maneira muito envolvente.

Não se pode esquecer da utilização das obras de arte em seu sentido estrito, ou

seja, o uso de pinturas como gosto individual. Existiam os retratos das filhas esposáveis,

em negociações com príncipes e também retratos de pessoas comuns. É necessário

atentar para o fato de que, ter uma pintura ou uma estátua como decoração, por prazer,

ainda era muito difícil, visto que o conceito de “arte pela arte” estava muito longe de ser

concebido.

No Renascimento, o tema das pinturas era, em geral, de acordo com o gosto dos

pintores, como, por exemplo, o gosto pela natureza, tratando das imagens com grande

vivacidade, mostrando seu movimento, além da utilização da tridimensionalidade, tendo

presente a harmonia renascentista. Havia ainda, naquele momento, a busca do traço da

perfeição do belo adônico.

Essa aguçada procura de perfeição, por parte dos artistas, era também marcada

pela diferença de gosto entre os indivíduos, mesmo porque, havia diferença entre as

artes. Dessa maneira, houve mudança durante o período do Renascimento, a saber:

diferenças entre regiões, principalmente entre Veneza e Florença, entre grupos sociais e

entre indivíduos contra o Renascimento.

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É importante ressaltar o fato de que, segundo BURKE (2010: 191), o

Renascimento foi um movimento de minoria, haja vista que a maior parte da população

era constituída de camponeses que, por questões peculiares a esse grupo, não teriam tido

acesso às obras de arte, no sentido de conhecimento das inovações culturais. Em

contrapartida a isso, para os artistas era dado um incentivo muito grande a favor do

conhecimento e do aprimoramento de suas técnicas, feitas pelo mecena, ou patrono.

A questão do patronato, ou mecenato, teve grande importância no período do

Renascimento, já que esses eram os clientes que faziam suas encomendas para os

artistas. Roma foi um centro de patronato, que atraía artistas de várias outras regiões da

Itália e da Europa. Tratando da parte geográfica, BURKE (2010: 64) declara que, nos

séculos XV e XVI, as regiões mais urbanizadas da Europa localizavam-se na Itália e nos

Países Baixos, sendo assim, verificou-se que a maioria dos artistas tinha suas origens

ligadas a essas localizações.

É importante ressaltar o fato de que era grande o número de famílias de artistas

nessa época, visto que, na Itália renascentista, tanto a pintura quanto a escultura eram

“negócios de família”, ou seja, muitas vezes, o trabalho artístico passava de geração

para geração dentro de uma família. Entretanto, não necessariamente, haja vista que os

artistas poderiam ser tratados como membros da família e não terem nenhum tipo de

laço sanguíneo, mas o tratamento interpessoal era o mesmo. Nesse sentido, muitos

artistas passavam por uma formação, ou seja, para serem recrutados pelos mestres, eles

precisavam estudar, sendo assim, faziam parte de culturas diferentes, a saber: a cultura

da universidade e a do ateliê.

O estudo no ateliê tinha início quando o artista ainda era menino, durante um

ano, com o intuito de obter prática no desenho do painel pequeno. Posteriormente a isto,

ele deveria servir no ateliê sob a orientação de algum mestre para aprender a trabalhar

em todas as áreas da profissão, para então poder dar início ao trabalho com as cores.

Eles aprendiam ainda a mexer com as colas, gessos, modelavam, douravam e

imprimiam, num período de seis anos. No total, seriam treze anos de treinamento para

tentar chegar à perfeição do trabalho. Merece destaque o fato de que, para fazer parte de

uma guilda20

, era exigido dos pintores uma série de atividades em vários meios, como

20

Associação de profissionais que surgiu entre os séculos XIII e XV. Existiam vários tipos de guildas,

como por exemplo, de comerciantes e de artistas.

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trabalhos com telas, pergaminhos, painéis de madeira, gesso, tecido, ferro, vidro etc.

Além desses trabalhos, era necessário, no treinamento dos pintores, o estudo e a cópia

das coleções de desenhos do ateliê, cuja função era a de preservar a tradição dele e

unificar o seu estilo. É preciso levar em consideração que alguns artistas entravam para

a guilda já no final da carreira, como foi o caso de Botticelli.

O mestre, nesse caso, por vezes, era da família dos aprendizes, como citado

anteriormente, e era pago para fornecer a eles moradia, alimentação e instrução. Outras

vezes ainda, o mestre pagava aos aprendizes quantias que variavam de acordo com a

evolução deles. O nome desses mestres tinha muita importância, algumas vezes, sendo

adotado pelos aprendizes, como lembrança de sua formação, como foi o caso de Jacopo

Sansovino e Domenico Campagnola, que eram aprendizes de Andrea Sansovino e

Giulio Campagnola, respectivamente. Determinados ateliês possuíam um grande valor

para a arte do período renascentista, como o de Lorenzo Ghiberti, o de Andrea el

Verrocchio e o de Rafaello Sanzio, considerado o mais importante da época.

No século XV, havia treze universidades na Itália, sendo elas: Roma, Pisa,

Ferrara, Salerno, Siena, Turim, Perúgia, Piacenza, Florença, Pádua, Nápoles, Pavia e

Bolonha. Dentre elas, a universidade de Pádua21

era a mais importante da época e, em

sequência, vinha a de Bolonha22

que era também muito popular entre a elite e a de

Ferrara que era conhecida por seus baixos preços.

O estudo de artes na universidade era baseado nas sete artes liberais, que eram

divididas no trivium, que abrangia a gramática, a lógica e a retórica, e o quadrivium, que

abarcava a aritmética, a geometria, a música e a astronomia, conforme já explicado

antes, quando se tratou da formação intelectual de Dante Alighieri. Posteriormente a

isto, o aluno podia seguir seus estudos para níveis mais elevados como a teologia, a lei

ou a medicina. Para manter um estudante na universidade o custo era de,

aproximadamente, 20 florins por ano, ou seja, um valor muito alto para a época. Esse

ponto merece um destaque, já que essa relação de estudo era oriunda da época medieval

e, como dito anteriormente, Dante formou-se nesse modelo de aprendizado.

21

Universidade de Pádua: mais importante nas áreas de Filosofia e Medicina, segundo FERRONI, Giulio.

Dalle Origini al Quattrocento. Milano: Einaudi Scuola, 1995, p.108 – 159. 22

Universidade de Bolonha: mais importante nas áreas de Direito, Medicina, Ars Dictandi e Tratados de

retórica. Ver Ferroni (1995).

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A organização das artes, tanto para pintores quanto para escultores, ocorria na

bottega, ou seja, num estúdio, local onde os artistas produziam uma variada quantidade

de trabalhos em colaboração uns com os outros. Obviamente, essas botteghe recebiam

muitas encomendas, sendo assim, por vezes, era necessário contratar assistentes, além

dos aprendizes que já trabalhavam lá, para que essas encomendas fossem realizadas no

prazo pedido. Os assistentes eram chamados garzoni (meninos) e, como tratado

anteriormente, eles, provavelmente, pertenciam à “família” do mestre.

Uma problemática existente no período era a da autoria, uma vez que o mestre

assinava todas as obras realizadas, porém, nem sempre ele as tinha feito. Um detalhe

não deve ser esquecido, uma vez que, pelos traços das obras, era possível identificar o

autor delas, já que os pintores eram conhecidos por suas particularidades no trabalho.

Nessa época, era comum a existência de preconceito para com artistas e

escritores, uma vez que não eram respeitados por todos. Desta forma, os artistas eram

considerados “desprezíveis”, devido ao caráter manual de seus trabalhos, além de

envolver a venda no varejo, indiciando uma falta de aprendizado. Esse desprezo pelo

trabalho manual dos artistas referia-se ao fato de os artistas terem de sujar as mãos para

pintarem e, aos nobres, esse tipo de trabalho não agradava. Outro ponto, a venda ao

varejo, gerava outro preconceito que os aproximava aos mascates, aos verdureiros e aos

pintores. Somava-se a isso ainda o preconceito da elite daquela época em relação ao

artista, que era considerado ignorante por não ser treinado em teologia e nos estudos

clássicos.

Destarte, apesar de suas investigações e esforços, os estudos das artes “liberais”

eram considerados uma arte mecânica. Desse modo, era pouco provável que um pintor

tivesse uma condição financeira elevada, que aumentasse seu status. Todavia, alguns

recebiam postos administrativos e civis, que tornavam esse status mais elevado, além de

lhes render dinheiro.

É notório que os poucos que enriqueceram com esse trabalho aumentavam muito

o valor de suas pinturas, valorizando seu serviço. Outro ponto a ser mencionado é que a

casa desses artistas indicava a sua condição social, a depender das posses que tinham.

Segundo BURKE (2010: 102), o status dos artistas, na Itália, era mais alto em

comparação com as outras partes da Europa, e, em Florença era onde se localizavam a

maioria deles. É possível dizer ainda que, no século XVI, esses artistas já possuíam

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alguma espécie de conhecimento sobre as humanidades, gerando assim o rompimento

entre as duas culturas e a mobilidade social deles se confirmou desde o surgimento do

termo “artista”.

Outra questão importante para o entendimento do Renascimento refere-se ao

patronato, que naquela época se manifestava de cinco maneiras diversas, a saber: o

sistema doméstico, o sob medida, o de mercado, o da academia e o de subvenção. O

sistema doméstico funciona da seguinte forma: o artista permanecia alocado na

residência de um homem de posses, o patrono, que fornecia ao artista o necessário para

a sua sobrevivência, enquanto a obra de arte desejada era produzida. O sistema sob

medida referia-se a uma relação temporária entre o patrono e seu cliente que teria

duração exata do início ao fim da produção da obra de arte. O sistema de mercado

referia-se ao artista que tentaria a venda das próprias obras já prontas, ou diretamente ou

por meio de um comerciante. Os dois últimos sistemas, nesta época, ainda não existiam,

porém é preciso deixar claro que eles funcionaram tempos depois, desta maneira: o

sistema da academia era controlado pelo governo, por meio de uma organização de

escritores e artistas, e o sistema de subvenção era baseado em uma fundação que

mantinha os artistas sem tomar posse do que produziam.

Os patronos, ou mecenas, podiam ser eclesiásticos ou leigos, e cabe salientar o

fato de a Igreja Católica ser o maior patrono das artes, nesse momento do

Renascimento, uma vez que faziam inúmeras encomendas de pinturas para a decoração

das igrejas. Já os leigos também faziam tais encomendas, todavia, as penduravam em

suas casas. Esses quadros, para BAXANDALL (1991: 14), tinham uma utilidade

particular, a saber:

... a utilidade primeira de um quadro era a de ser observado: os quadros eram

destinados ao cliente e às pessoas que ele julgava pudessem admirá-los, com

o objetivo de receber estímulos agradáveis, dignos de serem conservados pela

memória e até mesmo enriquecedores.

Com essa declaração, é possível observar qual era exatamente a primeira função

do quadro, obviamente tendo outras tantas funções, porém, nesse momento histórico,

este era o foco primordial. Havia também outra divisão dos patronos, entre público e

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privado. Os patronos corporativos eram, normalmente, as guildas, as irmandades e o

Estado, entretanto existia uma ligeira imprecisão ao tentar caracterizar o patronato dos

príncipes entre público e privado. É possível notar que o mecenato, neste período, dava-

se devido a três motivações: o prazer, a piedade e o prestígio; contudo, uma quarta

motivação surgiu que foi a do investimento nas obras artísticas. É interessante observar

que, segundo BURKE (2010: 122), a maioria dos indivíduos que compravam obras de

arte apenas por seu valor em si tiveram uma educação humanista.

A rigor, não se sabe a maneira que os patronos selecionavam seus artistas.

Porém, existem provas reais da importância entre a relação deles descritas nos contratos

firmados entre eles. Esses contratos possuíam seis itens, os materiais, o preço, a data de

entrega da obra, o seu tamanho, a quantidade de assistentes necessários para a sua

realização e o tema. A partir desse contrato, dois motivos principais para conflitos

começavam a surgir, a questão do pagamento e da obra. A problemática do pagamento

ocorria pelo fato de o patrono não pagar justamente seu cliente, ou de atrasar o

pagamento, já a problemática da obra acontecia de várias formas, por exemplo, o artista

podia não gostar da maneira como o patrono pediu que a obra fosse realizada, ou ainda

o patrono podia não gostar do resultado da obra.

Com o passar do tempo, o surgimento da imprensa fez com que houvesse um

declínio do patronato literário. Nas artes visuais, foi possível observar o crescimento do

mercado, visto que o número de consumidores aumentou significantemente, e a procura

por obras religiosas também. Assim, não é possível saber se o crescimento das artes na

Itália renascentista se deu graças aos patronos ou não, mas graças a eles a obra dantesca

foi retomada e pintada e ilustrada por vários artistas.

1.3. Questões relativas ao poema dantesco e a sua representação imagética

Nesta terceira subseção, será apresentada a retomada da obra dantesca, a Divina

Comédia, pelo artista Sandro Botticelli, tentando pontuar a importância da recuperação

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deste clássico da literatura italiana, pela ilustração, com o intuito de mostrar a

construção simbólica da identidade italiana, por meio dessa retomada.

Conforme indicado anteriormente, dentre uma série de grandes artistas

renascentistas, o escolhido para esta investigação foi o artista Sandro Botticelli. Este,

por meio do mecenato, retomou a obra dantesca, ilustrando toda a Divina Comédia. A

escolha deste mecenas, Lorenzo di Pierfrancesco de’ Medici, pela obra de Dante,

obviamente, teve uma fundamentação política e social, desta maneira contribuindo para

a ideia da construção simbólica de uma identidade literária italiana, não só por ter suas

origens no endereçamento político da família florentina dos Medici. Tal representação

tem ainda suas procedências na fomentada discussão entre os intelectuais da Academia

Florentina, e os da Accademia della Crusca, surgida em 1570-158023

, por exemplo, que

inicialmente eram opositores por conta dos discursos eruditos da primeira, em relação

aos discursos leves, da segunda24

. Pode-se observar ainda, nessas ilustrações

fomentadas por um dos Médici, uma espécie de resgate da história e da cultura italiana.

Vale notar que o papel do mecenato, na época do Renascimento, teve grande

importância, como afirma ASOR ROSA (1985: 108):

Grande e crescente importanza assume perciò in questo quadro il fenomeno

del mecenatismo, cioè la disponibilità del principe a finanziare l’esecuzione o

la stampa di opere d’arte o letterarie e a sostentare intorno a sé con donativi e

stipendi letterati, pittori, scultori, architetti, scienziati.25

Destarte, o mecenato apresentava pontos negativos, como a tendência à

subordinação do artista para com o príncipe, e positivos, como um estímulo a uma

maior integração entre cultura e sociedade civil.

23

Sobre esse tema sugere-se a leitura de Grazzini , G. “L’ Accademia della Crusca”, Firenze, 1968. 24

DELI - Dizionario Etimologico della Lingua Italiana, di Manilio Corelazzo e Paolo Zolli, Bolonha,

Zanichelli, 1999, p-4-7 e 421. 25

“Grande e crescente importância assume, portanto, neste quadro, o fenômeno do mecenato, isto é a

disponibilidade do príncipe a financiar a execução ou a impressão de obras de arte ou literárias e a

sustentar ao redor de si com donativos e salários letrados, pintores, escultores, arquitetos, cientistas’.

(Tradução própria)

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A obra de Botticelli foi encomendada por Lorenzo di Pierfrancesco de’ Medici

(1463 – 1503) com um intuito político, uma vez que é possível observar indícios

comuns entre a política da época de Lorenzo e a política tratada por Dante em sua obra.

Vale acrescentar que Lorenzo tinha planos futuros para a unificação da Península

Itálica, contra o Vaticano e Roma. O resultado final da obra foi considerado uma

maravilha, haja vista a quantidade de outras pinturas e ilustrações sobre a obra dantesca

que não foram consideradas de boa qualidade.

Seus desenhos, feitos entre os anos de 1480 e 1490, foram realizados em cento e

duas folhas de pele de ovelha, a saber, de tamanho 47,5 x 32,5 cm. Em um lado da

folha, o mais duro, Botticelli redigiu, à mão, cerca de noventa e nove versos, por página,

organizados em quatro colunas. O lado mais macio, quer dizer, o outro lado da página,

foi meticulosamente preparado para que ele realizasse seus desenhos, utilizando a

técnica da punta d’argenteo, cujo método será explicado com detalhes no capítulo 3.

Convém acrescentar que esse trabalho ocupou todo o final da carreira de Botticelli e

que, a título de curiosidade, as primeiras edições impressas e ilustradas da Divina

Comédia foram, a saber: Foligno, em 1472, e posteriormente Veneza, em 1477, Mântua,

Nápoles e Milão, em 1478, respectivamente. É válido acrescentar que a edição de 1477

foi publicada em escrita gótica, até então reservada somente aos textos sacros.

Partindo do ponto de como foi estruturada e realizada a obra de Botticelli, é

necessário tratar da questão da construção identitária italiana e, segundo RAIMONDI

(1998: IX):

L’identità di un popolo si forma da una memoria comune, che deve essere

critica per poter guardare lucidamente al passato.26

Essa citação traz à luz o pensamento de que a obra dantesca fornece, de certa

forma, indícios dessa identidade, uma vez que ela é sempre retomada, ou seja, está

presente na memória comum da população italiana, tornando-se um traço identitário.

26

“A identidade de um povo se forma de uma memória comum, que deve ser crítica para poder ver

lucidamente o passado”. (Tradução própria)

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A literatura, para Raimondi, tem um papel fundamental para a construção

identitária de um povo, pois fixa e delimita essa identidade por meio de obras clássicas,

de grande importância para o país. No caso da Itália, que, como afirmado anteriormente,

ainda não era concebida como um país no período do Renascimento italiano, a literatura

tinha como base os três grandes pilares clássicos: Dante Alighieri, Francesco Petrarca e

Giovanni Boccaccio. Entretanto, a obra dantesca foi justamente a mais retomada pela

pintura, obviamente, como já mencionado também, graças ao incentivo de Boccaccio ao

fazer inúmeras cópias da Divina Comédia e de sua importância como obra literária.

É importante indicar que a obra de Dante foi revisitada, três séculos depois,

simplesmente por um gosto estético. Ela foi retomada, uma vez que sua referência à

parte política é bastante pontual, o que a faz ser uma obra que perpassa o tempo,

chegando até os dias de hoje. Portanto, Lorenzo di Pierfrancesco de’ Medici tinha

motivos para pedir que a obra fosse realizada, já que, no momento em que a

encomendou, ele estava no poder. A respeito da importância da literatura como um sinal

identitário, RAIMONDI (1998: XVIII) declara ainda:

La letteratura è il segno di un’identità che fissa e rende eterno, anche nelle

sue successive modificazioni, il carattere di un popolo. E l’identità è qualcosa

che si possiede e che vive attraverso le epoche.27

Ou seja, com essa declaração, Raimondi deixa transparecer que a literatura

possui um valor relevante para a construção dessa identidade, visto que ajuda a construir

também o caráter do povo, o qual irá ultrapassar os séculos, caracterizando aquele povo.

Em consonância com a citação acima, segundo CHASTEL (2012: 176), observa-

se que:

27

“A literatura é o sinal de uma identidade que fixa e eterniza, até nas suas sucessivas modificações, o

caráter de um povo. E a identidade é algo que se possui e que vive através das épocas”. (Tradução

própria)

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Na época de Lourenço, a Comédia não se beneficiava apenas de um prestígio

excepcional: por meio dela é que o humanismo platônico teve um contato dos

mais frutíferos com os mestres da arte clássica.

Chastel, com essa afirmação confirma que a presença da obra dantesca, no

Renascimento, era importante e é possível notar também que o poema de Dante já vinha

sendo trabalhado durante séculos, e até aqui são três séculos de diferença, de quando a

obra foi realizada. Desta forma, de acordo com Raimondi, pode-se verificar que, uma

vez que essa obra vem sendo retomada há tantos séculos, ela participava da construção

da identidade literária italiana.

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2. REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS E ALEGÓRICAS

Este segundo capítulo discute as representações simbólicas e alegóricas

presentes na obra de Dante Alighieri, a Divina Comédia. Como já mencionado, este

estudo é baseado somente no livro Inferno, da obra dantesca, especificamente nos

cantos I, III e VIII. Tais símbolos e alegorias serão analisados posteriormente, com o

intuito de apresentá-los tanto na obra literária quanto na obra de Sandro Botticelli.

Esse capítulo apresenta, ainda, um primeiro subcapítulo que trata da questão da

plasticidade do poema dantesco e, em um segundo subcapítulo, a respeito da relação

que se dá entre o texto poético de Dante e as ilustrações de Botticelli, referentes aos

cantos, conforme mencionado acima.

Os símbolos possuem importância fundamental e foram criados pelo homem

para resumir, em si, um significado, estando espalhados em todos os lugares. Eles

devem ser simples e se referem a uma ideia, a uma atividade comercial, a uma

instituição ou partido político, ou ainda a um grupo. É possível perceber que o símbolo

foi desenvolvido para sintetizar a informação, quer dizer, seu significado resume-se a

uma imagem como, por exemplo, a figura de uma pomba que simboliza a paz. A

intenção de se ter um símbolo é que ele seja observado e reconhecido pelo observador.

Os símbolos são bastante utilizados por Dante Alighieri em sua obra a Divina

Comédia, sendo assim, eles tem uma grande importância em seu livro, uma vez que

estes carregam um significado que é dado pelos observadores como, por exemplo, das

ilustrações de Botticelli, sobre a obra dantesca, conseguindo a leitura por meio do olhar.

Sobre os símbolos, DONDIS (2007: 21) declara:

Porém, mesmo quando existem como componente principal do modo visual,

os símbolos atuam diferentemente da linguagem, e, de fato, por mais

compreensível e tentadora que possa ser, a tentativa de encontrar critérios

para o alfabetismo visual na estrutura da linguagem simplesmente não

funcionará. Mas os símbolos, enquanto força no âmbito do alfabetismo

visual, são de importância e viabilidade enormes.

Assim, com a declaração de Dondis, é possível perceber que a importância dos

símbolos para o entendimento de uma imagem é fundamental, possuindo uma força de

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grande relevância, uma vez que, como dito anteriormente, o símbolo carrega em si uma

significação.

Já a alegoria28

, também bastante presente na obra dantesca, é um procedimento

retórico, muito utilizado na época de Dante, ou seja, no Medioevo. Nela, os conceitos

são representados em figuras concretas de animais, pessoas ou coisas que possuem um

significado autônomo. Ela foi definida por Aristóteles como uma metáfora continuada,

visto que se assemelha à metáfora, porém tal semelhança não significa que alegoria e

metáfora tenham o mesmo significado, visto que a alegoria refere-se muito mais a um

campo semântico ampliado.

Cabe acrescentar que Botticelli, em suas ilustrações, se prende em desenhar,

principalmente, as alegorias descritas na obra dantesca, já que elas carregam em si

muito significado para cada canto, pois Dante utilizou-se delas para exprimir a carga

semântica sobre um personagem, ou um animal, servindo para o entendimento do leitor

do poema dantesco.

Como já mencionado no capítulo 1 desta Dissertação de Mestrado, existe uma

complexidade no entendimento desta obra, devido ao sentido que os personagens da

obra de Dante assumem no poema. Esses personagens alegóricos sempre se referem a

problemas ocorridos na sociedade de Dante, do Duecento, e que, por um motivo pessoal

ou não, foram ali colocadas.

Desta maneira, observa-se que o canto I possui uma série de alegorias e

símbolos, como, por exemplo, a selva escura que, neste caso, representa,

alegoricamente, a vida pecaminosa vivenciada na Terra. O encontro de Dante com as

três feras tem por símbolo alegórico as três divisões do inferno, sendo o significado da

onça, a luxúria, do leão, a soberba e da loba, a avareza. O sol, que aparece no poema

dantesco é o símbolo de Deus e Virgílio representa e simboliza a razão humana, que

também estão colocados alegoricamente.

Nota-se também que, somente o fato de Dante ir para o outro mundo, nessa

viagem para o inferno, faz com que exista uma alegoria. Cabe salientar o fato de que

nem todas as descrições feitas por Dante em seu poema foram representadas nas

ilustrações realizadas por Botticelli para os cantos aqui estudados.

No canto III, observa-se que o portal do inferno representa uma transmutação, de

um estado para outro, uma vez que é, nesse canto, que Dante torna-se personagem.

28

Conceito retirado do site www.treccani.it

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Além disso, verifica-se também o ritual de passagem simbolizado pelo barqueiro

Caronte.

Já no canto VIII, é possível perceber, novamente, o ritual de passagem,

simbolizado por Flégias, o outro barqueiro, e também a presença dos demônios, que

simbolizam a perversidade, a maldade etc. Enfim, estes são os principais símbolos e

alegorias que são notoriamente utilizados por Dante e que foram transpassados para as

ilustrações de Botticelli nos cantos I, III e VIII, do livro Inferno, da Divina Comédia.

Deste modo, é possível identificá-los com certa facilidade nas imagens, porém, seus

significados nem sempre serão percebidos por um observador da ilustração que não

tiver um conhecimento prévio da obra literária.

Portanto, é possível entender a obra dantesca de duas maneiras, a primeira é

superficialmente, quando não se conhece nada sobre o período medieval em que Dante

viveu e, a segunda é profundamente, quando se conhece a parte sócio, histórica e

cultural daquela época, realizando assim uma leitura densa e complexa, conforme a obra

de Dante Alighieri realmente exige.

A título de exemplificação, no livro Inferno, observa-se que, em alguns cantos,

Dante refere-se à língua e à literatura, por meio dos personagens que inseriu no inferno,

como no aparecimento, no canto I, de Virgílio. O poeta latino, escritor da Eneida, de

quem Dante era leitor e admirador, tornou-se o guia do poeta florentino. No canto III,

Dante coloca o papa Celestino V, uma vez que ele tinha um caráter duvidoso, abdicando

de seu cargo, dando lugar ao papa Bonifácio VIII, inimigo de Dante. Já no canto IV, no

Limbo, foram colocadas as almas dos virtuosos, os quais não sofrem pena, mas que

devem permanecer lá porque não foram batizados e, dentre eles estão Virgílio, Homero,

Horácio, Ovídio e Lucano, ou seja, todos escritores importantes da Antiguidade

Clássica. No canto X, Dante colocou dentre os heréticos Farinata, político, chefe dos

Ghibelini, facção oposta a de Dante, que o reconheceu por sua língua, o Toscano. Neste

mesmo canto, o poeta encontra-se com Guido Cavalcanti, seu grande amigo em vida,

também poeta, que o ajudou muito com suas obras. Já no canto XV, ele encontrou-se

com Brunetto Latino, o qual, em vida, foi mestre do poeta florentino. Além dele, ele

encontrou-se também com Prisciano, um célebre gramático do século VI, e com

Francesco d’Accorso, um contemporâneo de Brunetto, que era um famoso mestre da

escola jurídica de Bolonha. No canto XXXIII, no verso 80, o poeta faz referência a

língua italiana que era chamada a língua do “sì”.

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2.1. A plasticidade do poema dantesco

A plasticidade de um texto é sentida, automaticamente, quando ao se começar a

ler, o processo da imaginação também se inicia, fazendo com que tudo aquilo que está

presente no texto seja pensado, ou seja, há a formação de imagens mentais que

possibilitam o entendimento do leitor. Essa formação de imagens mentais é constituída

por meio da percepção que se tem de algo, seja ele escrito, como no caso do poema

dantesco, ou visualizado, como no caso das ilustrações de Botticelli.

A esse respeito, MERLEAU-PONTY (1999: 47) declara:

Perceber não é experimentar um sem-número de impressões que trariam

consigo recordações capazes de completá-las, é ver jorrar de uma constelação

de dados um sentido imanente sem o qual nenhum apelo às recordações seria

possível.

Com esta declaração, este teórico da fenomenologia da percepção afirma que,

apesar de se remeter uma percepção a uma coisa já vista, ela deve ser única e não

comparada a uma recordação, uma vez que perceber não é o fato de recordar.

Desta maneira, aquilo que é percebido se enquadra dentro de um campo visual,

campo este determinado pelo olhar. Quando se olha para um quadro, por exemplo, de

um modo geral, se vê tudo, entretanto, a percepção do que se está vendo, nem sempre, é

total, quer dizer, algumas vezes, se deixa de notar algo até importante devido à atenção,

já que a percepção anda lado a lado com ela. É o que afirma MERLEAU-PONTY

(1999: 24) em: “O “algo” perceptivo está sempre no meio de outra coisa, ele sempre faz

parte de um “campo”. É possível dizer que a percepção é uma experiência que faz parte

do cotidiano dos indivíduos e é ela que permite que o mundo possa ser desvendando.

No poema dantesco, a plasticidade é verificada pela forma como Dante descreve

as situações que ocorrem com ele e com Virgílio em sua viagem ao outro mundo. Essa

descrição realizada por Dante é plástica no sentido de que, quando se lê o poema,

automaticamente, uma série de imagens mentais são formadas, fazendo com que essa

descrição siga como um filme dentro da mente do leitor. Assim como fazem todos os

leitores desta obra, Botticelli também o fez, transpassando para suas ilustrações suas

percepções, de acordo com as descrições de Dante para cada canto.

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Deste modo, nessa viagem, Dante trata de como foi a sensação de entrar na selva

escura, sozinho, sentindo-se ameaçado por feras que o amedrontaram de tal forma que o

poeta florentino pensou em desistir de seu percurso.

Observando o canto I, o que se verifica é uma grande plasticidade em termos de

descrição, desde o início do canto até o final. Isso foi transpassado para a ilustração, por

Botticelli, de forma bastante pontual, com certa “fidelidade” ao poema, ou seja, ele

tentou representar o maior número de descrições possíveis.

A questão que não deve ser esquecida é que o artista, no caso, Botticelli, teve

uma “total” liberdade para representar a obra dantesca da maneira que considerou mais

conveniente, apesar de ter sido mecenado e, desta maneira, provavelmente, tendo que

obedecer a certos critérios pontuados por seu mecena, no caso, Lorenzo di Pierfrancesco

de’ Medici. Assim, esta parte será tratada logo em seguida, no próximo subcapítulo.

O canto III possui uma descrição ainda mais refinada, já que existe um percurso

que Dante e Virgílio perfazem e que é tratado, por Dante, minuciosamente. É possível

conferir cada sentimento e cada expressão de dor ou de pena sentida pelo personagem

Dante. A leitura de Dante do portal do inferno é simples, porém, o poeta sente que o

sentido daquelas palavras é extremamente duro, transpassando, deste modo, para o

leitor, a dureza dessas palavras.

Seguindo o percurso, Dante e Virgílio pegam a barca de Caronte, alegoria que

simboliza um ritual de passagem, e vão trilhando caminhos cada vez mais árduos,

apresentando sempre suas sensações, descrição que faz com que o leitor se aproxime do

texto, devido a sua plasticidade.

No canto VIII, Dante descreve sua chegada ao quinto círculo, o dos irados e

enfurecidos. Ele e Virgílio continuam pelo caminho e entram na barca de Flégias, a

saber, outra alegoria que simboliza um ritual de passagem, onde, no meio do trajeto,

encontram-se com Filippo Argenti, um antigo inimigo político de Dante.

Quando chegam à cidade de Dite ambos se deparam com muitos demônios, fato

tratado por Dante na descrição do poema de forma bastante detalhada, apontando para o

medo que sentiu quando os demônios tentaram impedir a passagem deles.

O que se pode averiguar, depois de verificar os acontecimentos de cada canto

aqui estudado, é que a plasticidade do poema dantesco se dá, sobretudo, pelo fato de ao

se ler o poema, facilmente conseguir formar imagens mentais a respeito do que se está

lendo, como mencionado anteriormente. Assim, essas imagens formadas mentalmente

comprovam a plasticidade existente no poema dantesco.

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É necessário, entretanto, observar que a obra a Divina Comédia traz muitos fatos

sócio-históricos e personagens referentes ao horizonte medieval, o que, a princípio,

pode dificultar a leitura dessa obra dantesca, mas pode também abrir a possibilidade

para a averiguação da força comunicativa desses personagens dantescos.

2.2. Texto e imagem no poema dantesco e suas representações

A retomada do subcapítulo anterior permite observar que o poema dantesco

possui uma plasticidade enorme, o que torna a sua leitura agradável. Essa característica

do texto poético possui muitas partes descritivas, fazendo com que a compreensão se

torne mais fácil. Neste sentido, o conceito de semiótica, que é o estudo que trata do

texto, como BARROS (2005: 7) declara em: “A semiótica tem por objeto o texto, ou

melhor, procura descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que

diz”, esclarece a importância do entendimento do texto. Com essa declaração, Barros

consegue explicar o objetivo principal da semiótica, objetivando evidenciar o

cotejamento entre o texto e a imagem.

Ainda sobre a questão do cotejamento é importante trazer algumas

considerações a esse respeito. Desta forma, ECO (1994: 384) trata de definir tanto

semiótica quanto semiologia:

... “semiologia” una teoria generale della ricerca sui fenomeni di

comunicazione visti come elaborazione di messaggi sulla base di codici

convenzionati come sistemi di segni; chiameremo “semiotiche” questi singoli

sistemi di segni nella misura in cui siano tali, e pertanto formalizzati (se già

sono individuati come tali) o formalizzabili (se sono appunto da individuare

là dove non si pensava che vi fosse un codice). In altri casi si dovrà

riconoscere che la semiologia mette in luce l’esistenza non di semiotiche vere

e proprie ma di repertori di simboli (che alcuni designano come semíe) che,

se non sono sistemabili come semiotiche, dovranno essere ricondotte per le

loro condizioni d’uso ad altre semiotiche base.29

29

“... “semiologia” uma teoria geral da pesquisa sobre os fenômenos de comunicação vistos como

elaboração de mensagens baseados em códigos convencionados como sistema de sinais; e chamaremos

“semiótica” estes únicos sistemas de sinais na medida em que sejam tais, e por isso formalizados (se já

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Com a definição acima, é possível perceber que não somente a semiótica é

importante para esta investigação, mas também a semiologia.

Deste modo, é possível dizer que o resultado da união do plano do conteúdo

(significado) com o plano da expressão (significante) é o texto, que é um objeto de

comunicação entre indivíduos. É necessário salientar o fato de que o texto a ser

estudado nesta Pesquisa de Dissertação de Mestrado é o poema dantesco,

especificamente os cantos I, III e VIII, do Inferno, da Divina Comédia.

As imagens, a serem estudadas e analisadas nesta investigação, são as ilustrações

dos cantos I, III e VIII referentes ao livro Inferno. Para esse estudo, serão necessários

alguns conceitos básicos sobre a construção da imagem, compreendida como linguagem

visual, uma vez que eles permitirão um melhor entendimento sobre as imagens que

serão analisadas no capítulo 3 da presente Dissertação.

A partir deste ponto, é importante ressaltar que toda mensagem visual expressa e

recebida por um indivíduo é feita em três níveis, a saber: o representacional, o abstrato e

o simbólico. O primeiro trata de coisas que são vistas e identificadas de acordo com a

experiência pessoal e o meio em que se vive, o segundo refere-se à qualidade

cinestésica de um fato visual e o terceiro é um conjunto de símbolos criado pelos

homens, cuja atribuição de significação foi dada por eles.

A realização de imagens depende de elementos básicos da comunicação visual,

são eles: o ponto, que é a mínima unidade de comunicação que existe, e mais simples

também; a linha, que é definida como um ponto em movimento e pode assumir muitas

formas; a forma, que é descrita por uma linha e pode definir-se por três formas básicas,

o círculo, o triângulo equilátero e o quadrado; a direção, cujas formas básicas possuem

três direções significativas, o círculo, a curva, o triângulo, a diagonal e o quadrado, a

vertical e a horizontal; o tom, claro ou escuro, ou seja, a luminosidade; a cor; a textura;

a escala; a dimensão; e o movimento.

Enfim, a imagem necessita desses elementos básicos. No caso das ilustrações a

serem analisadas no próximo capítulo, um dos pontos que não foram utilizados por

são individualizados como tais) ou formalizáveis (se são mesmo de individualizar lá onde não se pensava

que vos fosse um código). Em outros casos se deverá reconhecer que a semiologia coloca à luz a

existência não de verdadeiras e próprias semióticas, mas de repertórios de símbolos (que alguns designam

como semas) que, se não são sistematizados como semióticos, deverão ser reconduzidos para as

condições de uso as outras semióticas base”. (Tradução própria)

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Botticelli para a feitura de suas obras referentes aos cantos estudados foi a cor, uma vez

que as ilustrações selecionadas neste recorte apresentam somente contrastes entre o

claro-escuro. Entretanto, serão estudados outros elementos, presentes nas composições

desse artista que possuem grande importância para o entendimento das imagens.

Para dar seguimento ao estudo da imagem, o contraste é uma força essencial

para a composição da ilustração, pois ele é uma força de oposição que gera um choque,

um estímulo para o observador, uma vez que chama a atenção, que, como mencionada

no subcapítulo anterior, tem uma ligação direta com a percepção. A importância do

contraste se dá por meio da presença ou não de luz, que é fundamental para a

capacidade fisiológica da visão. É preciso acrescentar que o contraste tonal possui um

papel de suma relevância, uma vez que por meio dele percebem-se as formas dos

objetos, a dimensão dada à imagem etc. Na realidade, segundo DONDIS (2007: 118 –

119), o contraste é:

Isso é o contraste, uma organização dos estímulos visuais que tem por

objetivo a obtenção de um efeito intenso. (...) O contraste é um instrumento

essencial da estratégia de controle dos efeitos visuais, e, conseqüentemente,

do significado. (...) O contraste é um caminho fundamental para a clareza do

conteúdo em arte e comunicação.

Com esta definição de contraste, não resta dúvida da importância da utilização

dele em uma imagem.

Desta sorte, a luz, necessária para que haja o contraste, permitirá que a visão se

intensifique, fazendo com que o sistema nervoso interaja com a visão para facilitar a

capacidade de discriminar aquilo que se vê. Sendo assim, o contraste define a ideia e é

válido acrescentar que ele se divide em contraste de tom, de cor, de forma e de escala.

O contraste e todas as partes constitutivas da imagem fazem parte da

composição dela, que segundo DONDIS (2007: 131) é: “A composição é o meio

interpretativo de controlar a reinterpretação de uma mensagem visual por parte de quem

a recebe”. Assim, o conteúdo está ligado à forma e o significado se dará por meio do

olhar do observador e, obviamente, pelo trabalho e talento do criador da imagem, o

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pintor ou o ilustrador, como é o caso desta Dissertação. Toda a mensagem e o

significado da imagem estão presentes na composição dela. É com o estudo da

composição da imagem que o ilustrador ou o pintor farão com que os observadores

percebam, por exemplo, o equilíbrio na imagem.

Assim sendo, serão tratadas agora algumas dicotomias necessárias para o

entendimento da construção visual do desenho, que são de enorme importância para esta

Dissertação de Mestrado, uma vez que permitirão uma leitura das imagens de forma

técnica. Ou seja, por meio das dicotomias estudadas na obra de Dondis (2007), a leitura

da descrição imagística será facilitada. Deste modo, seguem abaixo essas dicotomias.

a) Equilíbrio – Instabilidade

O equilíbrio é uma técnica utilizada que consiste em um centro de suspensão

entre dois pesos e a instabilidade é a ausência desse equilíbrio.

b) Simetria – Assimetria

A simetria é constituída quando se tem cada unidade localizada de um lado e de

outro da linha central. Já na assimetria isso não ocorre.

c) Regularidade – Irregularidade

A regularidade ocorre quando há a uniformidade dos elementos e a

irregularidade dá relevância ao inesperado.

d) Simplicidade – Complexidade

A simplicidade é imediata e uniforme, sem complicações e a complexidade,

como o próprio nome diz, são estruturas complexas, por serem difíceis de serem

percebidas em um contato imediato.

e) Unidade – Fragmentação

A unidade é um equilíbrio entre os elementos em uma totalidade, sendo que a

junção de várias unidades requer uma harmonia, já a fragmentação é a decomposição

das unidades e elementos.

f) Economia – Profusão

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A economia é uma organização visual discreta com a utilização dos elementos e

a profusão é um enriquecimento visual conservador.

g) Minimização – Exagero

A minimização é uma abordagem suavizada e o seu contrário é o exagero.

h) Previsibilidade – Espontaneidade

A previsibilidade é um plano convencional e a espontaneidade é caracterizada

pela falta de planejamento, é uma técnica impulsiva.

i) Atividade – Estase

A atividade é caracterizada pelo movimento e o estase é caracterizado pela

imobilidade, representando um repouso absoluto.

j) Sutileza – Ousadia

A sutileza caracteriza-se pela delicadeza e o requinte, já a ousadia é

caracterizada pelo atrevimento em colocar elementos novos em uma obra.

k) Neutralidade – Ênfase

A neutralidade é caracterizada pelo neutro e a ênfase salienta somente algum

elemento.

l) Transparência – Opacidade

A transparência caracteriza-se por revelar aquilo que está localizado atrás de

algo e a opacidade é o ocultamento dos elementos.

m) Estabilidade – Variação

A estabilidade possui uma abordagem temática com uniformidade e coerência e

a variação possui a diversidade de elementos.

n) Exatidão – Distorção

A exatidão fornece a noção de realidade e a distorção adultera o realismo.

o) Planura – Profundidade

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A planura e a profundidade dependem diretamente da perspectiva e da utilização

da luz, dos efeitos de claro-escuro.

p) Singularidade – Justaposição

A singularidade foca em um tema isolado, caracterizada pela ênfase, e a

justaposição manifesta estímulos visuais estabelecidos entre elementos.

q) Sequencialidade – Acaso

A sequencialidade é caracterizada pela organização e o acaso caracteriza-se pela

ausência de planejamento.

r) Agudeza – Difusão

A agudeza caracteriza-se pela clareza de expressão e a difusão é suave,

preocupando-se menos com a precisão dos elementos.

s) Repetição – Episodicidade

A repetição ocorre quando um elemento é repetido várias vezes e a

episodicidade caracteriza-se pela desconexão.

Enfim, será por meio da percepção visual que o observador conseguirá distinguir

as características citadas acima, visto que elas facilitam o entendimento do observador.

Já o artista, no caso Botticelli, utilizou-se dessas técnicas para realizar suas ilustrações,

considerando os recursos que eram mais relevantes para a sua obra.

A partir disto, é necessário mostrar a importância de se reconhecer os sinais

apresentados, tanto no texto quanto na imagem como, por exemplo, os símbolos, as

alegorias, as vestimentas etc., que contribuem para situar os personagens em seus

momentos históricos, e, esses mesmos símbolos, alegorias, vestimentas, cores, entre

outras partes visivas vão constituir a imagem. Eco (1994: 405) trata da questão da

Semiologia dell’intreccio, ou seja, uma semiologia entrelaçada, no caso do cotejamento

do texto com a imagem, uma vez que a narrativa visual está completamente ligada ao

texto.

O texto literário, nesta investigação, tem um papel fundamental, uma vez que é

ele que fornece os dados e as descrições necessárias para a realização das obras feitas

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por Botticelli. Este, por meio de sua leitura do poema, conseguiu formar imagens

mentais que serviram de base para a realização de suas ilustrações.

À medida que um indivíduo lê algo, ele consegue, a partir disto, formar imagens

mentais, conseguindo, então, visualizar, imageticamente, o que está lendo. Sendo assim,

o trabalho do ilustrador, neste caso, de Botticelli, foi ler a obra dantesca e, em

sequência, transpor para o papel a descrição feita na obra, tentando não fugir muito do

que foi escrito pelo poeta.

Pode-se notar que a obra de Botticelli contemplou de maneira bastante

minuciosa cada canto descrito por Dante, utilizando-se da técnica da Punta d’argenteo.

É o que declara CHASTEL (2012: 183):

Cada página adere assim de um modo maravilhoso à “visão”, despojada de

todo peso. (...) Essa interpretação tão fluida, e com pulsação tão pura, confere

à obra de Botticelli um êxito inigualável; ela domina e em certa medida

explica as obras dos últimos anos com as quais mantém ligações precisas. A

ordem racional da perspectiva é abolida, com toda espécie de vínculos

“pagãos: o espírito antigo desapareceu por completo da obra, na qual já não

reinam mais os deuses.

Desta forma, é possível compreender que a obra de Botticelli teve, realmente,

uma grande importância para época renascentista italiana.

Com o intuito de dar continuidade a questão de como o artista transpôs, para a

ilustração, o que estava descrito no texto literário, é necessário considerar o fato de que

cada artista possui um repertório particular de conhecimentos, com os quais pode

trabalhar.

Partindo de como a ilustração foi realizada e passando para o observador que a

vê e tenta entendê-la, é preciso atentar para a questão do olhar, visto que é, por meio

dele, que o observador irá receber as informações. Deste modo, sabe-se que cada

indivíduo interpretará o que vê a sua maneira e isso faz com que as pessoas consigam

observar de forma um mesmo quadro ou ilustração. Esses fenômenos ocorrem graças à

percepção visual, como já visto anteriormente.

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Posteriormente a todo esse estudo de como se dá o texto e a imagem, é

necessário atentar para a intenção principal da concepção deste cotejamento que é

descobrir o porquê da retomada da obra Inferno, da Divina Comédia, de Dante

Alighieri.

Como já estudado no capítulo 1, a importância da obra artística de Dante é

sentida até os dias atuais. Entretanto, na época do Renascimento italiano, a Itália, que

ainda não havia sido unificada como um país, passava por muitos problemas políticos e,

já naquele momento, existiam políticos que visavam essa unificação, contudo, a

unificação geográfica e política era muito difícil de ser conseguida. Porém, a construção

simbólica de uma identidade já estava sendo indiciada.

A retomada da obra dantesca, a pedido de Lorenzo di Pierfrancesco de’ Medici,

deu-se com intenções políticas, uma vez que ele queria que houvesse a unificação do

país. Na mesma época, até mesmo a Accademia della Crusca, que foi criada em 1583,

concebeu Dante como um dos três pilares da construção da língua italiana, juntamente

com Petrarca e Boccaccio. A esse respeito, DE MAURO (1995: 4) declara:

(...) dall’Alighieri al Vico e al Muratori, ossia già prima del Risorgimento,

era stata ben presente l’idea che la lingua fosse simbolo della nazione e che

l’adesione alle sue norme fosse testemonianza di nazionalità.30

Com tal declaração, De Mauro afirma a importância da obra de Dante para a

nação italiana, uma vez que foi ele que iniciou o processo linguístico italiano e, até hoje,

muitas estruturas ainda são realizadas da mesma forma como ele fazia. Já sobre sua

importância como pai da língua italiana, LANUZZA (1994: 31) afirma:

È allora per questa sua capacità di fissare una genealogia del linguaggio e di

trasformare la tradizione in innovazione che Dante si legittima «padre» della

lingua italiana.31

30

“(...) de Alighieri a Vico e a Muratori, ou seja, já antes do Renascimento, era presente a ideia que a

língua fosse símbolo da nação e que a adesão as suas normas fosse testemunho de nacionalidade”.

(Tradução própria)

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É notório que já, desde muitos séculos, Dante é considerado o pai da língua

italiana devido aos seus escritos. Desta maneira, Dante, já no Duecento, preocupava-se

com uma unificação linguística, o que, posteriormente, dá início a uma construção

identitária linguística, apesar de ser conhecido de todos que a Itália era completamente

fragmentada em dialetos. Porém, a identidade de um povo é formada de uma memória

comum, segundo RAIMONDI (1998: IX).

A tradição literária de um povo também está diretamente relacionada com a

construção identitária de um país e, a este respeito, RAIMONDI (1998: IX) declara:

La nostra tradizione letteraria indica infatti un vero e proprio percorso della

memoria attraverso scrittori e poeti che hanno riflettuto, in modi diversi, sul

nostro essere italiani. Per queste ragioni ritornare ai classici, anche se si tratta

di libri molto noti o comunque già letti in passato, può essere una scoperta.32

De acordo com a citação acima, é possível perceber que os clássicos literários

fazem parte da memória de um país e, essa memória, está totalmente conectada à

identidade dele, como RAIMONDI (1998: XVIII) afirma que:

La letteratura è il segno di un’identità che fissa e rende eterno, anche nelle

successive modificazioni, il carattere di un popolo. E l’identità è qualcosa che

si possiede e che vive attraverso le epoche.33

Desta sorte, a literatura italiana teve papel fundamental para a construção

simbólica da identidade italiana. Desta maneira, a retomada, por meio das ilustrações de

Botticelli, apontava, já naquela época, para essa construção.

31

“É, então, pela sua capacidade de fixar uma genealogia da linguagem e de transformar a tradição em

inovação que Dante se legitima «pai» da língua italiana”. 32

“A nossa tradição literária indica de fato um verdadeiro e próprio percurso da memória por meio de

escritores e poetas que refletiram, de modo diverso, sobre nosso ser italiano. Por estas razões, retornar aos

clássicos, ainda que se trate de livros muito conhecidos ou ainda já lidos no passado, pode ser uma

descoberta”. (Tradução própria) 33

“A literatura é sinal de uma identidade que fixa e faz eterno, também nas suas sucessivas modificações,

o caráter de um povo. E a identidade é algo que se possui e que vive ultrapassa as épocas”. (Tradução

própria)

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3. O COTEJO POEMA DANTESCO E ILUSTRAÇÕES

Este terceiro capítulo trata do cotejo entre o poema dantesco, especificamente

dos cantos I, III e VIII, do livro Inferno, e as ilustrações de Botticelli, referentes a esses

cantos. Para tanto, na primeira subseção será estudada a seleção plástica das cânticas,

apresentando as motivações da escolha delas, na segunda, o estudo tratará da técnica

utilizada por Sandro Botticelli para a realização de sua obra, a saber: a punta

d’argenteo, e, posteriormente a isto, serão analisadas as cenas escolhidas para esta

investigação, seguidas pelos trechos selecionados dos cantos dantescos e pelo

cotejamento entre eles.

3.1. A seleção plástica das cânticas

A seleção plástica das cânticas foi realizada por mim, com base nas descrições

do poema dantesco. Primeiramente, foram selecionados os três cantos, observando a

importância de cada um deles e a relevância da sua estrutura.

O canto I foi selecionado, uma vez que é um dos cantos de maior relevância

deste poema, já que se refere à entrada de Dante na selva escura e seu encontro com seu

guia, Virgílio, grande poeta, escritor da Eneida. É a partir desse encontro que o percurso

de Dante começa, permanecendo sozinho, apenas no encontro com as três feras.

O canto III, por sua vez, foi selecionado uma vez que descreve a entrada de

Dante no inferno, tornando-se, nesse canto, personagem. Além da importância deste

fato, observa-se também a figura do barqueiro, Caronte, que transporta as almas de uma

margem à outra do rio Aqueronte. Basicamente, é nesse canto que começa a intensa

jornada de Dante e Virgílio pelo inferno.

Já o canto VIII foi escolhido, pois, nele, Dante segue para a cidade infernal,

Dite, e, para tanto, depara-se com Flégias, o barqueiro que atravessa as almas para suas

penitências do outro lado do rio Estige. Há ainda, nesse canto, o encontro de Dante com

seu inimigo político, Filippo Argenti, cuja inimizade teve início enquanto Filippo ainda

estava vivo. Estas questões serão tratadas mais adiante, no momento da análise deste

canto.

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É conveniente esclarecer que, primeiramente, foram selecionados os cantos para,

posteriormente, serem selecionadas as ilustrações de Botticelli, com referência aos

cantos supracitados.

3.2. A técnica de Sandro Botticelli da representação do poema dantesco: a punta

d’argenteo

Primeiramente, antes de tratar especificamente da técnica utilizada por Sandro

Botticelli (1445 – 1510), faz-se necessário contar um pouco da obra deste artista tão

famoso na época do Renascimento italiano.

Botticelli nasceu em Florença, em 1 de março de 1445 e faleceu no ano de 1510,

em 17 de maio. Seu verdadeiro nome era Alessandro di Mariano di Vanni Filipepi,

oriundo de uma família pobre e que começou a trabalhar cedo. Dentre seus principais

trabalhos estão: Primavera, O Nascimento da Vênus, entre outras obras que não cabe

listar aqui, tendo em vista que o foco da Dissertação de Mestrado não é a produção

artística de Botticelli, apesar de ser um estudo bastante interessante. Sua obra a ser

analisada nesta investigação é a ilustração do livro a Divina Comédia.

É válido esclarecer que Botticelli não realizou essa obra por vontade própria, ele

foi mecenado por Lorenzo di Pierfrancesco de’ Medici, que lhe encomendou este

trabalho. É possível acrescentar que tal obra acarretou uma total modificação na vida

particular deste artista, uma vez que ele passou os últimos anos de sua vida trabalhando

em cima desta grande obra.

Deste modo, a técnica utilizada por Sandro Botticelli é muito particular e foi

realizada da seguinte maneira:

Botticelli utilizou-se de cento e duas folhas de pele de ovelha para realizar sua

obra, a serviço de Lorenzo de’ Medici. Essas folhas tinham 32,5 centímetros de altura e

47,5 de largura.

Para a realização dos desenhos, ele utilizou o lado mais seco e duro, da folha,

para escrever os cantos e o outro lado, o da pele do animal, foi tratada para poder ser

desenhada. Cada página escrita continha, aproximadamente, uns noventa e nove versos,

dispostos em quatro colunas e redigidos à mão. Já o lado do desenho foi extremamente

cuidado para que ele pudesse utilizar sua técnica, a punta d’argenteo.

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Essa técnica consiste em amaciar a superfície desta folha para o recebimento de

um traçado tênue de duas pontas de metal. O desenho, primeiramente, é esboçado com

uma ponta de prata, por meio de arranhões. A segunda ponta, mais leve, composta por

uma liga de chumbo e estanho, é utilizada para terminar os desenhos. Depois dessa

primeira etapa, os desenhos são retraçados, com duas tonalidades de tinta de cor sépia,

uma mais clara e outra mais escura.

É valido acrescentar que esta era uma técnica de desenho antiga, do século VI,

que se tornou popular em Florença. Essa técnica era extremamente difícil e uma das

mais complexas em relação ao desenho na época do Renascimento italiano, haja vista o

controle que o artista deveria ter para que o desenho ficasse perfeito ou, pelo menos, de

boa qualidade. A respeito da continuação dessa técnica, sabe-se que, a partir do final do

século XVI, ela foi sendo deixada de lado e, no século XVIII, nenhum artista a utilizava

mais.

A edição utilizada para esta investigação foi baseada no livro original de Sandro

Botticelli, do século XV. Essa obra renascentista era aberta horizontalmente e possuía

um canto completo por página, seguido da ilustração realizada por ele. Esta edição

preservou a orientação dada aos desenhos de Botticelli, ou seja, desta maneira, o leitor

lê o livro verticalmente, na direção de cima para baixo.

A orientação, do modo como foi feita, faz com que se desça ao inferno e, a partir

do purgatório, se inicia a subida até o paraíso. É possível verificar que existem 102

ilustrações nesta obra. Convém deixar claro que a verdadeira obra de Botticelli teve uma

trajetória complexa, estando o livro dividido, atualmente, entre o Kupfertichkabinett34

,

de Berlim, e a Biblioteca do Vaticano. Foi apenas no ano de 1980 que os desenhos de

ambos os lugares foram, realmente, identificados como pertencentes à mesma obra,

sendo, em 2000, reunidos e expostos em uma exposição que percorreu por toda a

Europa. Contudo, sabe-se que algumas imagens foram perdidas ao longo do trajeto,

estando oitenta e cinco desenhos em Berlim e somente sete no Vaticano.

34

Museu localizado em Berlim, na Alemanha.

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3.2.1. Cena 1 (Canto I)

Com o intuito de facilitar o entendimento de como se dará o processo de análise

e do cotejamento, primeiramente será apresentado um pequeno resumo sobre o que trata

o canto I, em seguida, será analisada a ilustração de Botticelli, referente a este canto e,

somente então, será realizada a comparação entre o canto I e a ilustração.

Desta maneira, resumidamente, o canto I, do livro Inferno, descreve Dante

perdido em uma selva escura, na metade de sua vida; ou seja, na época medieval, a

expectativa de vida era de, aproximadamente, 70 anos de idade. Isso significa que,

naquele momento, ele tinha uns 35 anos, no ano de 130035

. Cabe ressaltar que o fato de

ele estar perdido nesta selva escura, selvagem, representa a consequência de um desvio

de virtude.

Ele entra nessa selva e permanece por lá durante algum tempo até se deparar

com uma das três feras. É importante pontuar aqui a relevância desse encontro, que não

significa apenas o deparar-se com três feras, a onça, o leão e a loba, mas cada uma, em

particular, possui uma carga significativa própria que deve ser levada em conta.

Em primeiro lugar, ele encontra a onça, que é o símbolo da luxúria, depois, ele

se defronta com o leão, que tem por significado a soberba e, por último, ele fica, frente a

frente, com a loba, símbolo da avareza. Tais feras obstruem o caminho do monte

iluminado pelo Sol da Graça divina e correspondem às três grandes visões do Inferno,

das quais derivam todos os pecados.

É também neste canto que aparece o seu guia, Virgílio, que o acompanhará por

todo o Inferno e o Purgatório, até a chegada ao Paraíso, local onde não pode entrar, uma

vez que não foi batizado e, devido a isso, sua penitência é ficar no Limbo. Virgílio,

neste caso, tem o papel de representar a Razão humana, guiando Dante por todo esse

percurso até a chegada ao Paraíso, onde, a partir daí, quem o guia é Beatrice.

Enfim, depois deste breve resumo sobre o canto I, seguirá abaixo a análise da

ilustração de Botticelli e seu cotejamento com o canto a que se refere, ou seja, o canto I.

(Anexo 6.2 – Ilustração, Canto I)

35

Ano do Jubileu decretado pelo então papa Bonifácio VIII.

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Assim, ao olhar imediatamente a ilustração acima, é bastante complexo

distinguir as partes descritivas que a compõem. Porém, pouco a pouco, ela torna-se mais

plástica e é possível remetê-la facilmente à descrição realizada por Dante em seu canto

I, do Inferno.

O que se percebe nesta imagem é a figura de Dante, acompanhado por um

homem, Virgílio, seu guia, tanto no inferno quanto no purgatório, em uma selva. É

possível verificar que a movimentação de Dante ocorre da parte inferior esquerda da

ilustração e essa movimentação possui uma ascendência, ou seja, ele está subindo, em

sentido transversal direito, na imagem, e, no meio deste caminho encontra-se com

Virgílio. Vale acrescentar que esta movimentação, que parece uma ascendência, na

realidade é somente o percurso que eles estão fazendo nesta selva, que na verdade não é

uma subida e sim o trajeto percorrido por eles.

A descrição pontual para que o leitor desta ilustração entenda que eles estão em

uma selva é, justamente, a quantidade de árvores existentes em todo o entorno pelo qual

eles passam. Entretanto, é difícil saber o período do dia em que eles estão, uma vez que

a técnica utilizada por Botticelli não possui cores e, portanto, para um indivíduo que não

leu a obra dantesca, o fato de Dante estar perdido em uma selva escura, ou seja, à noite,

é completamente irrelevante, pois somente olhando para a ilustração, não existem

indícios que façam o observador entender este fato, descrito por Dante na obra literária.

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Desta maneira, há a presença de uma complexidade, uma vez que essa ilustração é um

pouco opaca. É, justamente, a profusão das imagens, juntamente com o contraste entre o

claro-escuro, que tornam a percepção mais facilitada.

Em relação à continuidade da descrição da ilustração, as vestimentas utilizadas

tanto por Dante como por Virgílio são próprias da época medieval, sendo usadas túnicas

longas e uma espécie de gorro, sendo o de Dante, visivelmente, mais flexível, haja vista

o caimento da parte posterior dele. Já o de Virgílio se parece mais com um chapéu, uma

vez que é mais consistente na forma. Como dito no capítulo 2, as vestimentas são parte

importante para a identificação de um momento na história, pois caracterizam um

período. É possível acrescentar que, na descrição da subida de ambos ao inferno, nesta

ilustração, Virgílio aparece somente uma vez, enquanto Dante aparece quatro vezes.

Na primeira aparição de Dante, na descrição da ilustração, ele está na parte

inferior esquerda da imagem, parado e sozinho, perdido na selva. Nesta entrada, ele

aparece com a cabeça baixa, com as mãos entrelaçadas, como se estivesse refletindo

sobre a sua vida. Seu olhar perdido, na direção no chão, leva a esta percepção.

Em sua segunda aparição, ele está em sentido transversal ascendente para a

direita, com um semblante de preocupação, visto que está elevando suas mãos no

sentido do rosto e olha fixamente para a primeira fera que lhe aparece, a onça. Esta parte

gestual também faz com que se verifique o amedrontamento e o susto causado a ele por

parte deste animal que, alegoricamente, simboliza a luxúria.

Na terceira aparição, Dante, na imagem, parece estar mais acima, com um

semblante ainda atemorizado e, desta vez, depara-se com a segunda fera, o leão, que

simboliza a soberba. Aqui, ele não demonstra tanto medo, porém, seus braços, não estão

mais próximos ao rosto, mas sim em direção ao animal, como se quisesse afastá-lo.

Em seguida, aparece, então, a figura de Virgílio, acompanhando Dante que, pela

terceira vez, se depara com uma fera, desta vez a loba, que simboliza a avareza.

Acompanhado, Dante já não parece sentir tanto medo. Ele olha de perfil para a loba,

elevando sua mão direita à cabeça e sua mão esquerda está estendida em direção a

Virgílio, como se estivesse pedindo que ele parasse.

Convém notar que as três feras estão com suas bocas abertas, como se fossem

atacar a qualquer momento, com suas patas também em posição de ataque, e olham,

fixamente, para Dante e não para Virgílio.

Essa ilustração caracteriza-se pela assimetria, uma vez que dentro do campo de

visão dela, há a justaposição dos elementos que a compõe. Não é possível dizer que,

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portanto, existe um exagero presente nela, já que ele quis representar todo o percurso

realizado por Dante e Virgílio, desde a entrada de Dante até depois do encontro dele

com as três feras, o que caracteriza a sequencialidade da descrição. Na movimentação

dos personagens é possível verificar uma atividade presente. É notório também que

Botticelli, nesta ilustração, não atentou muito para a questão da profundidade da

imagem.

Para a realização da comparação entre o texto literário de Dante e as ilustrações

de Botticelli, seguirão, abaixo, os trechos selecionados, do canto I, do Inferno, para tal

comparação. Em anexo segue a versão completa deste canto. (Anexo 6.1 – Canto I)

3

33

36

39

42

Nel mezzo del cammin di nostra vita

mi ritrovai per una selva oscura,

ché la diritta via era smarrita.

[...]

Ed ecco, quasi al cominciar de l’erta,

una lonza leggera e presta molto,

che di pel macolato era converta;

e non mi si partia dinanzi al volto,

anzi ’mpediva tanto il mio cammino,

ch’i’ fui per ritornar piú volte vòlto.

Temp’era dal principio del mattino,

e ’l sol montava ’n sú com quelle stelle

ch’eran con lui, quando l’amor divino

mosse di prima quelle cose belle;

sí ch’a bene sperar m’era cagione

di quella fiera a la gaetta pelle

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45

48

51

54

l’ora del tempo e la dolce stagione;

ma non sí che paura non mi desse

la vista che m’apparve d’un leone.

Questi parea che contra me venisse

con la test’alta e con rabbiosa fame,

sí che parea che l’aere ne tremesse.

Ed una lupa, che di tutte brame

sembiava carca ne la sua magrezza,

e molte genti fé già viver grame,

questa mi porse tanto di gravezza

con la paura ch’uscia di sua vista,

ch’io perdei la speranza de l’altezza.

Deste modo, segue o cotejamento entre os textos, literário e ilustrativo. Sendo

assim, os primeiros três versos desse canto tratam da maneira como e quando Dante foi

parar nesta selva escura. Como dito anteriormente, Dante, neste momento, tinha,

aproximadamente, uns 35 anos de idade. Desta maneira, ele é representado por

Botticelli não como um idoso, mas sim como um homem maduro, sozinho, em sua

primeira aparição na ilustração, de cabeça baixa, como se estivesse perdido. Um detalhe

que não pode ser deixado de lado é que, devido à técnica utilizada por Botticelli, existe

uma dificuldade em saber o tempo em que se passa tal situação. Isto se torna evidente

ao se perceber que as ilustrações não apresentam cores e tons entre claro e escuro, que

permitam a identificação concreta da selva escura, conforme já mencionado antes.

Em seguida, partindo para os versos seguintes, de 31 a 54, Dante, em seu poema,

descreve seu encontro com as três feras. Em primeiro lugar, seu encontro foi com uma

onça ligeira e voraz, de pelo malhado, que impedia sua passagem, fazendo com que ele

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quase desistisse de continuar seu caminho e voltasse. Botticelli retrata, na segunda

aparição de Dante, ele de frente para essa onça, descrita pontualmente como o poeta

havia descrito no seu poema.

Em seu percurso no mundo dos mortos, Dante descreve o tempo, que já era o

início da manhã, quando o amor divino moveu as coisas belas, ou seja, as estrelas

estavam desaparecendo e o sol ia raiando, quando se deparou com a segunda fera, o

leão. Ele se sentiu ameaçado pelo animal, que vinha em sua direção, com a cabeça

erguida e muita fome, chegando a sentir que o ar estremecia. Botticelli retrata esta cena

na terceira aparição de Dante na ilustração, mostrando ele de frente para o animal

enfurecido. Neste caso, ele descreve, detalhadamente, a cena, porém, como já

mencionado, a parte temporal que Dante descreve em seu poema, outra vez não foi

levada em conta, uma vez que o dia estava raiando e não se observa este fato na

imagem.

Na sequência, o poema dantesco descreve o encontro de Dante com uma loba

esfomeada e muito magra, que lhe causou um grande medo e ele chegou a pensar que

não conseguiria sair de onde estava. Botticelli, nessa descrição colocou Dante de frente

para a loba, entretanto seu semblante, desta vez, não parecia demonstrar tanto medo

quanto na descrição do poema.

Na ilustração de Botticelli, observa-se ainda o encontro de Dante com Virgílio,

como se eles se encontrassem entre o encontro de Dante com o leão e a loba. Contudo,

pela descrição do poema, este fato somente ocorre depois de seu encontro com a loba,

portanto, existe não um erro, mas uma escolha própria, por parte do ilustrador, em

retratar o encontro deles antes e não depois. É possível que tal escolha seja pelo fato de

que se eles se encontrassem depois, a imagem ficaria sem sentido, uma vez que Virgílio

é seu guia.

É inegável que o artista, neste caso Botticelli, tentou abarcar o maior número de

informações descritivas do texto literário para colocá-las em sua ilustração, entretanto,

sabe-se que ele possui a liberdade artística de transpor para sua obra o que considera

relevante. É possível notar que ele transpôs para a ilustração as principais alegorias

descritas por Dante que, obviamente, são as partes mais importantes, já que possuem em

si uma carga significativa grande.

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3.2.2. Cena 2 (Canto III)

Da mesma forma com foi realizado no canto I, a análise do canto III terá início

com um breve resumo sobre ele, seguido da análise das ilustrações de Botticelli para

este canto e o cotejamento entre os dois.

É possível verificar que o canto III começa com a chegada dos dois poetas,

Dante e Virgílio, à entrada do Inferno. A partir da visão do portal do Inferno, Dante

introduz suas primeiras impressões sobre o que vê e é reconfortado pelo seu guia. É

neste canto que Dante, personagem, e não mais autor, passa a ver os danados, e aqui ele

vê os danados que não praticaram o Mal, mas que também não optaram completamente

pelo Bem. Desta maneira, esses danados são condenados e tem como castigo o fato de

serem picados por nuvens de vespas e obrigados a correr sem parar.

É também neste canto que Dante e Virgílio encontram-se com Caronte36

, o

barqueiro do mundo dos mortos, o qual transporta os danados de uma margem a outra

do rio Aqueronte, enveredando-os as suas punições. Convém salientar que Caronte

aparece deformado, no sentido de que se tornou um demônio, o primeiro demônio do

Inferno, que se realiza ameaçando as almas que chegam para pagarem por suas

condenações. Este canto acaba no momento em que ocorre um terremoto e Dante

desmaia, como se estivesse em um sono profundo.

Desta maneira, segue, em seguida, a análise das duas ilustrações de Botticelli

sobre esse canto e o cotejamento com o trecho do poema. (Anexo 6.2 – Ilustrações 1 e

2, Canto III)

36

Figura mítica do mundo clássico.

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Na primeira ilustração do canto III, é possível visualizar, primeiramente, um

barqueiro em um rio, dentro de um barco e várias pessoas à margem desse rio. Dentre

essas pessoas, que, na verdade, são as almas que acabaram de chegar ao inferno, estão

Dante e seu guia, Virgílio. Convém acrescentar que, nesta primeira ilustração do canto

III, há a utilização dos tons claro e escuro, que fornecem uma ideia tenebrosa para a

ilustração.

Nessa ilustração, detalhando-a, é possível verificar que Dante e Virgílio se

encontram na parte esquerda da imagem e, à frente deles, está o portal do inferno, onde

se observa a escritura descrita por Dante, no poema. Dante está atrás de seu guia, com a

mão direita semi elevada, olhando para a escritura do portal, apreensivo de entrar em

um local desconhecido e Virgílio, com a mão esquerda levantada, como se estivesse

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gesticulando, parece explicar a Dante o que ele irá encontrar no momento em que o

poeta florentino atravessar o portal.

A figura segue em uma linha reta e eles aparecem já do outro lado do portal,

quer dizer, ambos entraram, concretamente, no inferno. Deste modo, a ilustração

apresenta os dois no centro da imagem e as almas aflitas que se contorcem estão,

praticamente, ao redor deles, os quais estão à margem do rio Aqueronte. Dante aparece

esguio, com sua mão esquerda encostada no rosto e, do seu lado esquerdo, aparece o

rosto de Virgílio e seu braço esquerdo estendido em direção às almas, dispostas

próximo a eles. Eles, na posição que estão, parecem conversar, esperando algo. As

almas que aparecem no entorno estão nitidamente aflitas e aglomeradas, haja vista a

contorção de seus corpos nus, a expressão de terror de seus rostos, com as testas

franzidas, os olhos apertados, seus cabelos desgrenhados, bocas abertas, como se

gritassem.

Na sequência dessa ilustração, observa-se ainda uma terceira aparição de Dante

e Virgílio, os quais estão no canto direito da ilustração, onde se nota a presença de

Dante, de perfil esquerdo, mais próxima da margem do rio e Virgílio do seu lado

direito. Verifica-se também a presença de uma alma que está jogada aos pés de Dante,

ajoelhada a seus pés, com a cabeça encostada em seu antebraço esquerdo, em uma

posição de súplica ou de pedido de perdão. Dante está com a mão direita estendida

sobre o peito e a esquerda abaixo do queixo, o que dá a percepção de que ele está

surpreso com a atitude desta alma jogada a seus pés.

Próximo a esta última aparição de Dante e Virgílio, está o barqueiro, Caronte,

sentado em seu barco, que navega no sentido da esquerda para a direita da imagem. Ele

leva nas mãos seus dois remos, segurando-os com firmeza, uma vez que suas mãos

estão cerradas. Seu corpo é completamente peludo, possuindo uma cabeça monstruosa e

uma grande barba. Normalmente, o que a figura alegórica do barqueiro simboliza é a

travessia e, neste caso, é ele quem transporta as almas condenadas para a outra margem

do rio.

Essa primeira ilustração do canto três caracteriza-se por um equilíbrio

harmônico entre as figuras presentes nela, apesar dela ser assimétrica. Ela é complexa

devido à episodicidade presente, já que há uma profusão dos personagens. É possível

dizer que, devido ao movimento dados aos personagens, existe também uma atividade

na imagem, não exagerada. Outro fato relevante é que há a profundidade da imagem, o

que coloca a figura do barqueiro em ênfase. A utilização dos tons claro-escuro favorece

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o entendimento da ilustração, uma vez que os tons claros iluminam a parte escura, que

dá a sensação tenebrosa do inferno, para o observador que a percebe.

Posteriormente a essa ilustração, em seguida, Botticelli faz outra, que é,

basicamente, a visão ao contrário do que foi relatado na primeira ilustração deste canto,

é um olhar sob outra perspectiva. Nela, observa-se agora que a cena ocorre da direita

para a esquerda, sendo assim, Dante e Virgílio estão no canto direito da ilustração,

diante do portal do inferno, mas ainda do lado de fora. Percebe-se que Virgílio, com a

mão direita estendida para cima, mostra a escritura do portal para Dante, que a olha,

uma vez que seus olhos estão na direção do portal.

A segunda aparição deles é depois do portal, em que Virgílio aparece com o

braço direito estendido para frente e o rosto voltado para Dante que se encontra do seu

lado esquerdo, com a mão esquerda levantada, na altura do queixo. Virgílio parece

mostrar algo que está à frente deles a Dante, provavelmente, as almas, que na imagem

estão à frente deles. As almas, nesta segunda ilustração, estão dispostas no fundo da

imagem, com seus corpos contorcidos e nus, entretanto é mais difícil de verificar tantos

detalhes dos rostos dessas almas. Percebe-se nitidamente que elas estão aglomeradas,

contudo seus semblantes não estão tão próximos para que se possa fazer uma descrição

mais minuciosa a respeito delas.

Nesta última aparição de Dante e Virgílio, ambos aparecem de costas. Dante está

com a cabeça virada para o rio, que passa ao seu lado esquerdo, olhando para as almas

que estão mergulhadas na água. Virgílio está localizado ao lado esquerdo de Dante, com

o dorso da mão esquerda apoiado no ombro direito de Dante. Aos pés de Dante é

possível observar uma alma caída, com o rosto apoiado sobre o braço esquerdo, como

se chorasse. Ao seu lado, no rio, verifica-se uma grande quantidade de almas

mergulhadas na água e o barco do barqueiro, que está dentro dele, com os remos nas

mãos, contudo, é extremamente difícil identificar as características dele.

Essa segunda ilustração caracteriza-se pela instabilidade da imagem, assimetria,

irregularidade e complexidade, que se dão devido à profusão dos personagens. Há uma

profundidade nela, onde é possível observar a justaposição de vários personagens ao

fundo, que são as almas amontoadas. Diferentemente da outra imagem, esta é um pouco

distorcida e difusa, sendo que a utilização dos tons claro-escuro faz com que não fique

tão distorcida.

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Para o cotejamento do canto III, seguirão, abaixo, os trechos selecionados. Em

anexo segue a versão completa deste canto. (Anexo 6.1 – Canto III)

3

6

9

12

72

75

«Per me si va ne la città dolente,

per me si va ne l’etterno dolore,

per me si va tra la perduta gente.

Giustizia mosse il mio alto fattore;

fecemi la divina potestate,

la somma sapienza e ’l primo amore.

Dinanzi a me non fuor cose create

se non etterne, e io etterna duro.

Lasciate ogne speranza voi ch’intrate.»

Queste parole di colore oscuro

vid’io scritte al sommo d’una porta;

per ch’io: «Maestro, il senso lor m’è duro.

[...]

E poi ch’a riguardar oltre mi diedi,

vidi genti a la riva d’un gran fiume;

per ch’io dissi: «Maestro, or mi concedi

ch’i’ sappia quali sono, e qual costume

le fa di trapassar parer sí pronte,

com’ i’ discerno per lo fioco lume.»

Ed elli a me: «Le cose ti fier conte

quando noi fermerem li nostri passi

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87

90

93

96

su la trista riviera d’Acheronte.»

Allor con li occhi vergognosi e bassi,

tremendo no ’l mio dir li fosse grave,

infino al fiume del parlar mi trassi.

Ed ecco verso noi venir per nave

un vecchio, bianco per antico pelo,

gridando: «Guai a voi, anime parve!

Non isperate veder lo cielo:

i’ vegno per menarvi a l’altra riva

ne le tenebre etterne, in caldo e ’n gelo.

E tu che se’ costí, anima viva,

pàrtiti da cotesti che son morti.»

Ma poi che vide ch’io non mi partiva,

disse: «Per altra via, per altri porti

verrai a piaggia, non qui, per passare:

piú lieve legno convien che ti porti.»

E ’l duca lui: «Caron, non ti crusciare:

vuolsi cosí colà dove si puote

ciò che si vuole, e piú non dimandare.»

Com o fim de realizar a comparação entre o canto III, do poema dantesco, e a

ilustração de Botticelli referente a esse canto, observa-se, nos versos de 1 a 9, que Dante

inicia esse canto com a descrição da inscrição do portal do inferno. Tal escritura é

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bastante intensa em suas palavras, tanto que, nos versos de 10 a 12, Dante, já

personagem, comenta com seu guia, Virgílio, que o sentido daquelas palavras é duro

para ele. Na ilustração de Botticelli para essa passagem, pode ser verificada a presença

do portal do inferno, com as escrituras, entretanto, não é possível ler tudo que está

descrito no poema, uma vez que o ilustrador optou por não escrever tudo. Percebe-se

que Dante e Virgílio estão localizados, em um primeiro momento, de frente para o

portal, como se estivessem lendo a placa com as escrituras. É possível notar também

que, na primeira ilustração desse canto, Botticelli utilizou-se bastante do recurso de

claro e escuro, com o intuito de diferenciar, principalmente, a parte do fundo da

imagem, o que leva a percepção deste inferno escuro e tenebroso.

A partir dos versos 70 até 96, Dante descreve aquilo que vê assim que passa pelo

portal. Ele vê muitas almas à beira de um rio e segue conversando com Virgílio. Logo

em seguida, ele vê se aproximar uma barca, guiada por um velho, branco, que vinha

gritando, chamando as almas que ele atravessaria para o outro lado do rio Aqueronte.

Botticelli, em suas obras retrata as almas contorcidas, sofrendo e também o barqueiro,

Caronte, dentro de seu barco. A cena descreve, detalhadamente, os passos dados por

Dante e Virgílio, porém, a primeira ilustração é mais nítida do que a segunda,

apresentando muitos contrastes de claro e escuro. O recurso utilizado por Botticelli, na

segunda ilustração desse canto, é muito inteligente, visto que ele apresenta outra

perspectiva de uma mesma cena, o que faz com que se veja tudo de forma diferente.

3.2.3. Cena 3 (Canto VIII)

Para que se torne mais compreensível o entendimento do canto VIII, seguirá um

pequeno resumo sobre o que ocorre em todo esse canto e, na sequência, será feita a

análise da ilustração de Botticelli, referente a esse canto, e a comparação entre o texto

literário e a ilustração.

Assim sendo, no canto VIII, Dante e Virgílio estão à beira do rio Estige, no

quinto círculo infernal, local em que se localizam os iracundos, e embaixo de uma alta

torre, de onde conseguem ver outra torre distante, sendo que entre essas torres é descrita

uma troca de sinais luminosos. Esses sinais luminosos têm por função avisar ao

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barqueiro Flégias37

que está no momento de ele vir buscar as almas dos danados para

atravessá-las de uma margem à outra do rio.

Dante e Virgílio entram na barca e, enquanto estão sendo atravessados para a

outra margem do pântano, encontram um espírito inimigo de Dante, chamado Filippo

Argenti. Este tenta atacá-lo, em vão, sendo, então, maltratado pelas outras almas que o

acompanhavam, fato que deixou Dante, de certa forma, contente, visto que, em vida, ele

era seu oponente político, pertencendo à facção dos Neri, conforme mencionado no

capítulo 1.

Quando chegam a outra margem do pântano, eles desembarcam às portas da

cidade de Dite, que é a cidade infernal, e encontram vários demônios parados,

impedindo-lhes a entrada, acontecimento que acarretou certa perturbação em Dante, que

entrou em pânico ao vê-los. Entretanto, Virgílio sabia que um mensageiro celeste

chegaria para ajudá-los a entrar na cidade.

A partir deste breve resumo sobre o canto VIII, se iniciará a análise da ilustração

referente a ele. (Anexo 6.2 – Ilustração, Canto VIII)

37

Personagem mitológico, filho de Marte e de Crise. Dante o transforma no símbolo de um impulso cego

de vingança.

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Assim, observa-se uma narrativa imagística bastante delineada, começando da

parte superior direita da imagem e seguindo por ela, quase que transversalmente, até a

parte inferior esquerda da ilustração. Dante e Virgílio aparecem constantemente em

cada etapa deste percurso, fazendo uma descrição pontual dos acontecimentos citados

no poema dantesco.

A rigor, duas torres podem ser verificadas, as da cidade de Dite. Em uma delas, a

que está mais à frente da imagem, nota-se duas tochas em seu topo e, em duas janelas, o

rosto de duas almas, uma em cada janela, que estão em chamas. Seus rostos

demonstram dor, pois estão com suas bocas abertas, a testa franzida e um olhar quase

que perdido para o horizonte. Já na outra torre, é possível notar que uma das almas está

com duas tochas nas mãos, com um semblante feliz, uma vez que está sorrindo.

Como dito anteriormente, Dante e Virgílio aparecem constantemente nesta

ilustração e, em sua primeira aparição, eles estão na parte superior direita da imagem,

juntos, Dante com o braço esquerdo levantado, na altura do seu peito, e o outro na altura

do seu ombro. Virgílio aparece com sua mão esquerda também levantada, na altura do

ombro, e segura, com a mão direita, sua túnica. Ambos gesticulam como se

conversassem enquanto percorrem o caminho.

Na segunda aparição, Virgílio, à frente de Dante, com o braço direito elevado a

uma altura acima de sua cabeça, mostra a Dante as torres da cidade. Ambos estão

olhando na direção do topo das torres e Dante aparenta estar impressionado, visto que

está boquiaberto. Seguindo o caminho que traçaram para percorrer, chegaram à margem

do rio Estige.

Esta é a terceira aparição deles na descrição imagística. À margem do rio, eles

observam que o rio está repleto de almas que sofrem, pagando por seus pecados, com

seus corpos nus, contorcidos na água. È possível observar uma série de fatores que

levam a entender o sofrimento que estão sentindo, já que existem corpos imersos até o

pescoço, com o rosto para o lado de fora da água, olhando na direção de Dante e

Virgílio, outros estão com as mãos na cabeça, puxando seus cabelos, com um semblante

bastante aflito e outro ainda com o dorso para fora da água, com a boca aberta, como se

estivesse gritando, olhando para cima, demonstrando uma enorme dor. Na água, além de

todos esses corpos, nota-se a presença de um barqueiro, Flégias, cuja função é

atravessar as almas que irão para a cidade de Dite. A partir disto, observa-se que

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Virgílio, inclinado para frente, à frente de Dante, com sua mão direita segurando a

túnica e a esquerda na direção do barco, parece falar com Flégias. Dante aparece na

ilustração à retaguarda de seu guia, com ambas as mãos na altura do peito e parece estar

esperando que ele fale com o barqueiro. Flégias, em seu barco, olha na direção de

Virgílio, segurando com a mão esquerda seu remo e a direita está elevada na direção de

Virgílio. O barqueiro tem uma aparência monstruosa, com o corpo de homem, mas com

asas que parecem de morcegos e chifres.

A quarta aparição de Dante e Virgílio na ilustração pode ser observada dentro do

barco de Flégias. Virgílio, aqui, aparece duas vezes, em uma ele parece estar

empurrando uma alma para soltar o barco e na outra ele está abraçado a Dante. Esta

alma que está dependurada no barco, o segura com as duas mãos. Ele está de boca

aberta como quem estivesse falando com eles no barco. Virgílio está totalmente

inclinado, com os braços para fora do barco, com as mãos encostadas nos braços dessa

alma, que é Filippo Argenti, inimigo de Dante em vida. Nesta outra aparição, em que

eles estão abraçados, ambos estão sentados dentro do barco e Virgílio está com seus

braços ao redor do pescoço de Dante, como quem o estivesse acalmando do susto de

encontrar seu inimigo. Enquanto isto, Flégias está sentado, com os remos nas mãos, de

costas para eles, olhando de perfil para o lado esquerdo do barco. Vale acrescentar que a

orientação desse barco é da direita para a esquerda da ilustração.

Em mais uma aparição e, desta vez a quinta, Dante e Virgílio já estão fora do

barco de Flégias, que segue seu caminho olhando em direção aos poetas (florentino e

latino), que estão na cidade de Dite. Virgílio, agora, mais uma vez sozinho, com seu

braço direito estendido à frente de seu corpo, na direção dos demônios, tenta afastá-los

deles. Os demônios, chifrudos e também com asas de morcego, parecem tentar se

aproximar deles, como se impedissem que eles ficassem ali. Os demônios têm um rosto

enfurecido e olham em direção a Virgílio, entretanto, um deles, para o observador da

ilustração, parece olhar para quem o olha, da mesma forma que Flégias também parece

olhar, sorrindo, para quem o observa.

Na última aparição de Dante e Virgílio nessa descrição imagística, no canto

inferior esquerdo da ilustração, Dante aparece com um semblante aflito, com a cabeça

inclinada um pouco para o lado esquerdo e com as mãos na altura de seu queixo. Sua

posição parece quase uma súplica. O poeta florentino está de frente para seu guia, com

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ambas as mãos estendidas para o chão e com a cabeça baixa, a sua posição na ilustração

permite a leitura de que Virgílio esteja pedindo calma a Dante.

A imagem selecionada para a análise das cenas ilustradas do canto Inferno, da

Divina Comédia, no caso a do Canto VIII, evidenciam a descrição perfeita dos versos da

obra literária. Podem ser observados ainda, na parte inferior da ilustração,

aproximadamente, cinco alçapões. Dentre eles, os que estão abertos estão repletos de

almas que queimam com o fogo. É possível ver suas cabeças tentando sair de dentro

desses alçapões, com seus rostos demonstrando aflição e dor, assim como os que estão

mergulhados no rio. É notável também a presença de um caixão aberto, de onde também

sai fogo, tendo almas dentro.

Essa ilustração tem como características o equilíbrio na disposição das formas

representadas, que pode ser notado por meio das duas torres, a simetria da imagem e a

irregularidade dos personagens, uma vez que estão justapostos. Um detalhe presente

nessa ilustração é a claridade das imagens do desenho, não vista nas outras. Não há a

presença do exagero, visto que nem toda a imagem está preenchida, mas há a

sequencialidade da cena e a atividade dos personagens. É possível notar, nessa

ilustração, que a utilização dos tons claro-escuro não foi realizada, tendo em vista que

os desenhos só estão traçados, o que, diferentemente das outras imagens, não fornece a

percepção de tenebrosidade. O que se pode acrescentar também é o fato de haver a

profundidade, porém ela é tão sutil que a imagem parece quase plana.

Abaixo, seguirão os trechos selecionados para o cotejamento entre o poema

dantesco e a ilustração, de Botticelli, do canto VIII, do livro Inferno. Em anexo segue a

versão completa deste canto. (Anexo 6.1 – Canto VIII)

3

Io dico, seguitando, ch’assai prima

che noi fossimo al piè de l’alta torre,

li occhi nostri n’andar suso a la cima

per due fiammette che i vedremmo porre,

e un’altra da lungi render cenno,

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6

15

18

21

24

27

69

72

tanto ch’a pena il poeta l’occhio tòrre.

[...]

Corda non pinse mai da sé saetta

che sí corresse via per l’aere snella,

com’io vidi una nave piccioletta

venir per l’acqua verso noi in quella,

sotto ’l governo d’un sol galeoto,

che gridava: “Or se’ giunta, anima fella!”.

«Flegïàs, Flegïàs, tu gridi a voto»,

disse lo mio segnore, “a questa volta:

piú non ci avrai che sol passando il loto.»

Qual è colui che grande inganno ascolta

che li sia fatto, e poi se ne rammarca,

fecesi Flegïàs ne l’ira accolta.

Lo duca mi discese ne la barca,

e poi mi fece intrare appresso lui;

e sol quand’io fui dentro parve carca.

[...]

Lo buon maestro disse: «Omai, figliuolo,

s’appressa la città c’ha nome Dite,

coi gravi cittadin, col grande stuolo».

E io: «Maestro, già le sue meschite

là entro certe ne la valle cerno,

vermiglie come se di foco uscite

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75

fossero.» Ed ei mi disse: «Il foco etterno

ch’entro l’affoca le dimostra rosse,

come tu vedi in questo basso inferno.»

No cotejamento entre o canto VIII e a ilustração de Botticelli referente a ele,

pode ser observado que na obra literária. Dante descreve, primeiramente, o que está

vendo, que é a alta torre da cidade de Dite. Em seguida, ele nota que duas chamas

estavam acesas e que outras duas respondiam, de longe, ao sinal. Botticelli, em sua

ilustração, retrata minuciosamente todo o percurso de Dante e Virgílio, apresentando, na

segunda aparição deles, nessa cena em que eles veem as torres.

Dante, do verso 13 ao 27, trata de como foi o momento em que avistou o barco

de Flégias, o qual se aproximava chamando pelas almas funestas. O barqueiro desceu de

seu barco, para embarcar as almas, e, no momento que Dante entrou o barco acusou que

lá estava uma alma viva. Botticelli representou essa cena na terceira aparição de Dante e

Virgílio, que estavam para entrar no barco. Já na quarta aparição, ele os colocou dentro

do barco, no trajeto para a cidade de Dite.

No terceiro trecho selecionado segue dos versos 67 a 75, Dante trata da chegada

deles à cidade de Dite. Virgílio o vai alertando sobre o que ele verá até o momento da

chegada, uma vez que eles se depararão com alguns demônios e com almas que ardem

no fogo eterno. Botticelli apresenta essa cena na quinta aparição de ambos os poetas, já

na cidade de Dite. Não é possível captar o sentimento de Dante em relação as almas

encontradas em seu percurso ainda obscuro para ele, mas é possível verificar a tentativa

de Virgílio de afastar os demônios de perto de Dante.

Pode-se observar, em relação a esse canto VIII, do Inferno, que Botticelli tentou

reproduzir a maior parte das descrições feitas no poema dantesco, entretanto, muitas

vezes não foi possível. Acredita-se que um dos motivos para a ausência de algumas

cenas desse canto pode ter sido pela perfeição sintética, para evitar o acúmulo de muitas

informações que, juntas, poderiam dificultar o entendimento do observador.

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Sendo assim, os trechos selecionados são os pontualmente retratados na obra de

Botticelli, porém, existem outros que abarcam todo o canto, mas que não são tão

relevantes para o entendimento da ilustração.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema da Dissertação de Mestrado sobre a retomada das cenas dos cantos I, III

e VIII, do livro Inferno, da Divina Comédia, de Dante Alighieri, no século XV, período

correspondente ao Renascimento italiano, por meio das ilustrações de Sandro Botticelli,

foi a motivação para uma série de descobertas importantes sobre a cultura italiana, que a

presente pesquisa precisou averiguar, como por exemplo, a de Dante ser o interprete da

crise da civilização comunal, e também que a distância cultural entre os leitores atuais e

Dante não impede a leitura dessa obra.

Uma das questões mais intrigantes, certamente, refere-se à investigação feita

sobre as questões relativas à produção artística do Renascimento, especificamente o

século XV, suas obras, verificando a função do mecenato na produção das ilustrações, o

tipo de material utilizado, o método de realização dessas obras, ou seja, a parte do

contexto sócio, cultural e histórico em torno dessa produção artística, que se refere à

retomada da obra de Dante Alighieri. Foi igualmente importante verificar que a questão

da construção simbólica da identidade italiana tenha sido pensada com valor cultural por

um dos Médici ao solicitar a Botticelli a retomada da obra dantesca por meio de

ilustrações para produzir, em outras palavras, a reedição da Divina Comédia.

O cotejamento entre o texto literário, a Divina Comédia, mais especificamente o

livro Inferno, de Dante Alighieri (1265 – 1321) e as ilustrações dos cantos I, III e VIII,

de Sandro Botticelli (1445 – 1510), realizadas no século XV, período do Renascimento

italiano, permitiu observar nas ilustrações, os tons, as disposições dos personagens e

objetos, e os traços que nos remetem ao texto literário, objetivando demonstrar a

proximidade descritiva entre texto poético e texto pictórico. O objetivo desta análise foi

o de identificar, nas ilustrações, as partes descritivas do texto literário, apontando para

trechos do canto aos quais a imagem se remete.

Este estimulante tema dividiu-se em subtemas nos capítulos da Dissertação,

objetivando organizar o encaminhamento das discussões. Assim, o capítulo 1, discorreu

sobre a biografia de Dante, para que houvesse um entendimento, não somente em

relação a sua maior obra, a Divina Comédia, mas também em relação as suas outras

obras que foram menores, porém não menos admiráveis.

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A investigação que foi apresentada nesse capítulo primeiro abarcou o contexto

sócio, cultural e político, correspondente ao período em que Dante viveu em Florença.

Além disso, verificou-se o campo literário ao qual o poeta pertencia e também,

obviamente sua principal obra. Nesse capítulo, foi apresentado ainda o período do

Renascimento italiano, o século XV, a partir do recorte proposto nesta Dissertação,

apontando para uma série de questões que envolviam a arte, como, por exemplo, a

questão do mecenato, que foi de suma importância para os artistas da época, assim

como foi para Botticelli e para a retomada da Divina Comédia, cujo mecenas era da

família Medici. Além disto, por último, nesse capítulo foram tratadas as questões

relativas ao poema e as suas representações imagéticas.

O capítulo 2, por sua vez, foi o mais teórico, pois trouxe a discussão sobre a

alegoria e o simbolismo, muito presentes na obra dantesca, por meio de seus

personagens, partindo então para o ponto da plasticidade do poema da Divina Comédia,

cuja discussão baseou-se na percepção. Em seguida, foi investigada a relação existente

entre o texto literário e as ilustrações no Renascimento, apontando para as partes

constitutivas da imagem, que são de grande relevância no momento da análise, e as suas

finalidades políticas e linguísticas na construção simbólica da identidade italiana.

Já o capítulo 3 da Dissertação trouxe a análise da seleção plástica das cânticas do

poema dantesco, bem como dos desenhos de Botticelli que deram a forma ilustrativa

para as cenas da Divina Comédia. Foi realizado um breve resumo sobre cada canto aqui

estudado, depois foi feita a análise das ilustrações para, posteriormente, apresentar o

cotejamento entre os versos do poema e as ilustrações.

Enfim, o resultado da Pesquisa de Dissertação de Mestrado confirmou a

importância desse artista tão grande, que foi Dante Alighieri, cujo trabalho foi retomado

durante tantos séculos e é, até hoje, tema de pesquisas acadêmicas não só na Itália,

como em outros países.

A rigor, a hipótese que motivou essa Dissertação de que a retomada da obra a

Divina Comédia, no Renascimento, poderia ser pensada em termos de uma construção

simbólica da identidade literária italiana confirmou-se, tendo em vista que foi possível

concluir que a fundamentação para a retomada da obra dantesca, por Botticelli, foi

motivada por uma questão política de Lorenzo di Pierfrancesco de’ Medici, primo de

Lorenzo, o Magnífico, o que fez a pesquisa observar que, nas questões que envolviam a

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política florentina, naquela época, já existia pelo menos um grande interesse cultural

pela retomada da Divina Comédia, o que mais adiante promoveu a discussão entre os

membros das Academias Florentina e da Crusca sobre as questões da política

linguística a partir de várias discussões sobre a unificação da Itália a partir da língua

única.

Enfim, é possível afirmar que a presente Dissertação não esgotou o tema da

construção simbólica de uma identidade italiana a partir de sua literatura, pois não teve

esse propósito, apenas indiciou um momento histórico importante dessa discussão na

Península Italiana, compreendendo que, em tal estudo, a Divina Comédia, é um

percurso literário necessário a ser feito para o entendimento e enriquecimento dessa

discussão linguística.

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6. ANEXOS

6.1. Cânticas da Divina Comédia

Tradução de Vasco Graça Moura

CANTO I

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Nel mezzo del cammin di nostra vita

mi ritrovai per una selva oscura,

ché la diritta via era smarrita.

Ahi quanto a dir qual era è cosa dura

esta selva selvaggia è aspra e forte

che nel pensier rinova la paura!

Tant’ è amara che poco é piú morte;

ma per trattar del ben ch’i’ vi trovai,

dirò de l’altre cose ch’i’ v’ho scorte.

Io non so ben ridir com’i’ v’intrai,

tant’ era pien di sonno a quel punto

che la verace via abbandonai.

Ma poi ch’i’ fui al piè d’un colle giunto,

lá dove terminava quella valle

che m’avea di pauro il cor compunto,

guardai in alto e vidi le sue spalle

vestiti già de’ raggi del pianeta

che mena dritto altrui per ogne calle.

Allor fu la paura un poco queta,

che nel lago del cor m’era durata

la notte ch’i’ passai con tanta pieta.

E come quei che con lena affannata,

uscito fuor del pelago alla riva,

si volge a l’acqua perigliosa e guata,

No meio do caminho em nossa vida,

eu me encontrei por uma selva escura

porque a direita via era perdida.

Ah, só dizer o que era é cousa dura

esta selva selvagem, aspra e forte,

que de temor renova à mente a agrura!

Tão amarga é, que pouco mais é morte;

mas, por tratar do bem que eu nela achei,

direi mais cousas vistas de tal sorte.

Nem saberei dizer como é que entrei,

tão grande era o meu sono no momento

em que a via veraz abandonei.

Mas indo ao pé de um monte com assento

lá onde terminava aquele val’

que o coração me enchera de tormento,

alto lhe vi nos ombros o cendal

vestido já dos raios do planeta

que leva à recta via cada qual.

Então o medo um pouco já se aquieta

que no lago do peito me durava

a noite que passei de pena inquieta.

E como quem a respirar arfava,

escapando do pélago à deriva,

e as águas perigosas remirava,

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cosí l’animo mio, ch’ancor fuggiva,

si volse a retro a rimirar lo passo

che non lasciò già mai persona viva.

Poi ch’èi posato un poco il corpo lasso,

ripresi via per la piaggia diserta,

sí che ’l piè fermo sempre era ’l piú basso.

Ed ecco, quasi al cominciar de l’erta,

una lonza leggera e presta molto,

che di pel macolato era coverta;

e non mi si partia dinanzi al volto,

anzi ’mpediva tanto il mio cammino,

ch’i’ fui per ritornar piú volte vòlto.

Temp’ era dal principio del mattino,

e ’l sol montava ’n sú con quelle stelle

ch’eran con lui quando l’amor divino

mosse di prima quelle cose belle;

sí ch’a bene sperar m’era cagione

di quella fiera a la gaetta pelle

l’ora del tempo e la dolce stagione;

ma non sí che paura non mi desse

la vista che m’apparve d’un leone.

Questi parea che contra me venisse

con la test’ alta e con rabbiosa fame,

sí che parea che l’aere ne tremesse.

Ed una lupa, che di tutte brame

sembiava carca ne la sua magrezza,

e molte genti fé già viver grame,

questa mi porse tanto di gravezza

con la paura ch’uscia di sua vista,

ch’io perdei la speranza de l’altezza.

E qual è quei che volontieri acquista,

e giugne ’l tempo che perder lo face,

assim minh’alma, ainda fugitiva,

volveu a olhar atrás aquele passo

em que pessoa alguma ficou viva.

E tendo repousado o corpo lasso,

retomo o andar na praia assim deserta,

e o pé firme mais baixo sempre faço.

E eis que, ao subir da encosta, estava alerta

uma ágil onça prestes no seu posto,

que de pelo malhado era coberta;

e sem sair da frente do meu rosto,

tanto impedia aquele meu destino,

que a vir-me embora me senti disposto.

Tempo era do princípio matutino,

e o sol ia subindo co as estrelas

que eram com ele quando o amor divino

moveu primeiro aquelas cousas belas;

e de bem esperar me eram razão

da fera em gaia pel’ malhas daquelas,

e a hora do tempo e doce a estação;

mas não foi sem que o medo aí me desse

a vista que então tive de um leão.

Pareceu que ele contra mim viesse

cabeça erguida e enraivecida fome,

que o próprio ar julguei que estremecesse.

E uma loba a quem a gana come

trazendo-a por só carga da magreza

e a muita gente já de dor consome,

tal susto me inspirou e tal surpresa

co medo que infundia sua vista,

que a esperança em subir me era defesa.

E como quem os ganhos que conquista,

chegado o tempo que a perder o abala,

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che ’n tutti suoi pensier piange e s’attrista;

tal mi fece la bestia sanza pace,

che, venendomi ’ncontro, a poco a poco

mi ripigneva la dove ’l sol tace.

Mentre ch’i’ rovinava in basso loco,

dinanzi a li occhi mi si fu offerto

chi per lungo silenzio parea fioco.

Quando vidi costui nel gran diserto,

«Miserere di me», gridai a lui,

«qual che tu sii, od ombra od omo certo!»

Rispuosemi: «Non omo, omo già fui,

e li parenti miei furon lombardi,

mantoani per patrïa ambedui.

Nacqui sub Iulio, ancor che fosse tardi,

e visse a Roma sotto ’l buono Augusto

nel tempo de li dèi falsi e bugiardi.

Poeta fui, e cantai di quel giusto

figliuol d’Anchise che venne di Troia,

poi che ’l superbo Ilïón fu combusto,

Ma tu perché ritorni a tanta noia?

perché non sali il dilettoso monte

ch’è principio e cagion di tutta gioia?»

«Or se’ tu quel Virgilio e quella fonte

che spandi di parlar sí largo fiume?»,

rispuos’ io lui con vergognosa fronte.

«O de li altri poeti onore e lume,

vagliami ’l lungo studio ’l grande amore

che m’ha fatto cercar lo tuo volume.

Tu se’ lo mio maestro e ’l mio autore,

tu se’ solo colui da cu’ io tolsi

lo bello stilo che m’ha fatto onore.

Vedi la bestia per cu’ io mi volsi;

em seu pensar só chora e se contrista;

assim sem paz a fera me encurrala,

a vir ao meu encontro, pouco a pouco,

e a empurrar-me lá onde o sol se cala.

E enquanto eu para baixo me desloco,

aos meus olhos se ofereceu de perto

quem por longo silêncio julguei rouco.

Quando eu o avistei no grão deserto,

«Ah, Miserere me» ali pedia,

«quem quiser que sejas, sombra ou homem certo!»

Diz-me: «Não homem, homem fui um dia,

e ambos os meus pais foram lombardos,

e Mântua por pátria os conhecia.

Nasci, sub Julio, embora em tempos tardos,

vivi em Roma sob o nobre Augusto

na era dos deuses falsos e bojardos.

Fui poeta e cantei daquele justo

filho de Anquises que de Tróia veio

quando o soberbo Ilíon foi combusto.

Mas porque volves ao ansioso enleio?

Porque não vais ao deleitoso monte

que é razão da alegria e dela cheio?»

«Serás tu pois Virgílio, aquela fonte

de que tão grande rio em fala espume?»

lhe respondi baixando humilde a fronte.

«Ó dos outros poetas honra e lume,

valham-me o grande estudo e o grande amor

que me fez penetrar no teu volume!

Pois tu és o meu mestre, o meu autor;

és tu aquele só de quem tirei

o belo estilo que me deu valor.

Olha esta fera por que me voltei;

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aiutami da lei, famoso saggio,

ch’ella mi fa tremar le vene e i polsi.»

«A te convien tenere altro vïaggio»,

rispuose, poi che lagrimar mi vide,

«se vuo’ campar d’esto loco selvaggio;

ché questa bestia, per la qual tu gride,

non lascia altrui passar per la sua via,

ma tanto lo ’mpedisce che l’uccide;

e ha natura sí malvaggia e ria,

che mai non empie la bramosa voglia,

e dopo ’l pasto ha piú fame che pria.

Molti son li animali a cui s’ammoglia,

e piu saranno ancora, infin che ’l veltro

verrà, che la farà morir con doglia.

Questi non ciberà terra né peltro,

ma sapïenza, amore e virtute,

e sua nazion sarà tra feltro e feltro.

Di quella umile Italia fia salute

per cui morí la vergine Camilla,

Eurialo e Turno e Niso di ferute.

Questi la caccerà per ogne villa,

fin che l’avrà rimessa ne lo ’nferno,

là onde ’nvidia prima dipartilla.

Ond’ io per lo tuo me’ penso e discerno

che tu mi segui, e io sarò tua guida,

e trarrotti di qui per loco etterno;

ove udirai le disperate strida,

verdrai li antichi spiriti dolenti,

ch’a la seconda morte ciascun grida;

e vederai color che son contenti

nel foco, perché speran di venire

quando che sia a le beate genti.

e me proteje, ó sábia personagem,

que em veias e em pulsos vacilei.»

«Pois te convém fazer outra viagem»

me respondeu quando chorar me viu,

«se fugir queres tal lugar selvagem:

que esta fera, que ao grito te impeliu,

ninguém deixa passar por sua via,

até matar, de tanto que impediu;

natura tão malvada e vil afia,

que não mais enche o apetite bruto

e após comer mais fome a insacia.

A muitos animais dá coito hirsuto

e mais serão ainda, té o Lebréu

chegar que a vai fazer morrer de luto.

Não sendo estanho ou terra o cibo seu,

sapiência será, e amor, virtude,

e seu país será de céu a céu.

Aquela humilde Itália a salvo escude,

por que morreu a virginal Camila,

e Turno, Eurialo, e Niso, em chaga rude.

Há-de este dar-lhe caça em toda a vila,

até voltar a pô-la lá no inferno,

lá de onde foi a inveja a desferi-la.

Pois para teu melhor ora governo:

que tu me sigas e serei teu guia,

daqui levando-te a lugar eterno:

ouvirás desespero e gritaria,

vendo espritos antigos e dolentes,

que cada um segunda morte expia;

e verás inda quantos são contentes

no fogo, porque esperam de inda vir

um dia junto das benditas gentes.

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A le quai poi se tu vorrai salire,

anima fia a ciò piú di me degna:

con lei ti lascerò nel mio partire;

ché quello imperador che là sú regna,

perch’ i’ fu’ ribellante alla sua legge,

non vuol che ’n sua città per me si vegna.

In tutte parti impera e quivi regge;

quivi è la sua città e l’alto seggio:

oh felice colui cu’ ivi elegge!»

E io a lui: «Poeta, io ti richeggio

per quello Dio che tu non conoscesti,

acciò ch’io fugga questo male e peggio,

che tu mi meni lá dov’ or dicesti,

sí ch’io veggia là porta di san Pietro

e color cui tu fai contanto mesti.»

Allor si mosse, e io li tenni dietro.

Às quais depois, se quiseres subir,

uma alma existe a tal mais do que eu dina;

deixar-te-ei com ela em meu partir;

que lá no alto imperador domina,

e porque fui revel a sua lei,

não deixa ver por mim terra divina.

Impera em toda a parte e dela é rei;

lá é sua cidade e alta sede:

felizes os eleitos que lá sei!»

E eu então: «Poeta, me concede

por esse Deus que tu não conheceste,

para que eu fuja o mal e o mal que o excede,

que tu me leves lá onde disseste,

à porta de São Pedro, ora te rogo,

e a esses que tão tristes descreveste.»

Então moveu-se e eu segui-o logo.

CANTO III

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«Per me si va ne la città dolente,

per me si va ne l’etterno dolore,

per me si va tra la perduta gente.

Giustizia mosse il mio alto fattore;

facemi la divina podestate,

la somma sapïenza e ’l primo amore.

Dinanzi a me non fuor cose create

se non etterne, e io etterno duro.

Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate.»

Queste parole di colore oscuro

vid’ïo scritte al sommo d’una porta;

Por mim vai-se à cidade que é dolente,

por mim se vai até à eterna dor,

por mim se vai entre a perdida gente.

Moveu justiça o meu supremo autor:

divina potestade fez-me e tais

a suma sapiência, o primo amor.

Antes de mim não houve cousas mais

do que as eternas e eu eterna duro.

Deixai toda a esperança, vós que entrais.

Estas palavras em letreiro escuro

Escritas vi por cima de uma porta;

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per ch’io: «Maestro, il senso lor m’è duro.

Ed elli a me, come persona accorta:

«Qui si convien lasciare ogne sospetto;

ogne viltà convien che qui sia morta.

Noi siam venuti al loco ov’ i’ t’ho detto

che tu vedrai le genti dolorosi

c’hanno perduto il ben de l’inteletto.»

E poi che la sua mano a la mia puose

con lieto volto, ond’ io mi confortai,

mi mise dentro a le segrete cose.

Quivi sospiri, pianti e alti guai

risonavan per l’aere sanza stelle,

per ch’io al cominciar me lagrimai.

Diverse lingue, orribile favelle,

parole di dolore, accenti d’ira

voci alte e fioche, e suon di man con elle

facevano un tumulto, il qual s’aggira

sempre in quell’aura sanza tempo tinta,

come la rena quando turbo spira.

E io ch’avea d’error la testa cinta,

dissi: «Maestro, che è quel ch’i’ odo?

e che gent’ è che par nel duol sí vinta?»

Ed elli a me: «Questo misero modo

tegnon l’anime triste di coloro

che visser sanza ’nfame e sanza lodo.

Mischiate sono a quel cattivo coro

de li angeli che non furon ribelli

né fur fedeli a Dio, ma per sé fuoro.

Caccianli i ciel per non esser men belli,

né lo profondo inferno li riceve,

ch’alcuna gloria i rei avrebber d’elli.»

E io: «Maestro, che è tanto greve

e disse: «Mestre, o seu sentido é duro.»

Então ele, avisado, me conforta:

«Convém deixar aqui temor secreto;

convém toda a vileza seja morta.

Viemos ao lugar onde o aspecto

verás, to disse, à gente dolorosa

que já perdeu o bem do intelecto.»

E quando a sua mão nas minhas pousa

com ledo rosto, e assim me confortei,

me descobriu tanta secreta cousa.

Suspiros, choros, gritos escutei

ressoando no ar baço de estrelas,

de quanto ao começar também chorei.

Línguas várias, horríveis falas belas,

e palavras de dor, acentos de ira,

vozes altas e roucas, batedelas

de mãos com mãos, tudo em tumulto gira,

naquela aura sem tempo destingida,

como areal que um turbilhão aspira.

E co a cabeça de erros só cingida,

Eu disse: «Mestre, que ouço? pela dor,

que gente é esta agora assim vencida?»

E ele a mim: «É o mísero valor

daquelas almas tristes em seu choro

que foram sem infâmia e sem louvor.

Vão misturadas ao molesto coro

dos anjos que não foram nem revéis,

nem fiéis a Deus, senão ao próprio foro.

Por mor beleza, o céu expulsa-os; eis

que a acolhê-los o inferno não se atreve:

seriam glória aos réus de eternas leis.»

E eu: «Ó mestre, o que é que tanto deve

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a lor che lamentar li far sí forte?»

Rispuose: «Dicerolti molto breve.

Questi non hanno speranza di morte,

e la lor cieca vita è tanto bassa,

che ’nvidïosi son d’ogne altra sorte.

Fama di loro il mondo esser non lassa;

misericordia e giustizia li sdegna:

non ragionam di lor, ma guarda e passa.»

E io, che riguardai, vidi una ’nsegna

che girando correva tanto ratta,

che d’ogne posa mi parea indegna;

e dietro le venía sí lunga tratta

di gente, ch’i’ non averei creduto

che morte tanta n’avesse disfatta.

Poscia ch’io v’ebbi alcun riconsciuto,

vidi e conobbi l’ombra di colui

che fece per viltade il gran rifiuto.

Incontanente intesi e certo fui

che questa era la setta d’i cattivi,

a Dio spiacenti e a’ nemici sui.

Questi sciaurati, che mai non fur vivi,

erano ignudi e stimolati molto

da mosconi e da vespe ch’eran ivi.

Elle rigavan lor di sangue il volto,

che, mischiato di lagrime, a’ lor piedi

da fastidiosi vermi en ricolto.

E poi ch’a riguardar oltre mi diedi,

vidi genti a la riva d’un gran fiume;

per ch’io disse: «Maestro, or mi concedi

ch’i’ sappia quali sono, e qual costume

le fa di trapassar parer sí pronte,

com’ i’ discerno per lo fioco lume.»

neles pesar em tal lamento forte?»

E ele disse: «Te dou resposta breve.

Esperança não tendo em si de morte,

trazem tão baixa e cega a vista baça,

que têm de inveja a toda a demais sorte.

Da fama não lhes fica ao mundo traça;

misericórdia justa os já despreza:

mas não falemos deles: olha e passa.»

E uma bandeira vi, com tal surpresa,

que girava correndo em veloz jeito,

e à indigna pausa era defesa;

e atrás lá vinha longa fila a eito

de gente que eu jamais teria crido

que a morte tanta houvesse já desfeito.

Depois de haver alguns reconhecido,

vi, conheci, da sombra a liviez

que por vileza a mor escusa há tido.

Logo entendi e certo se me fez

ser a seita dos maus que são nocivos

a Deus e aos seus imigos de uma vez.

De tão abjectos nunca foram vivos,

estavam nus e os bem espicaçavam

só vespas e moscardos, como crivos.

O rosto com o sangue lhes regavam,

e o sangue e mais as lágrimas, no chão,

lá repugnantes vermes os tragavam.

E dando mais além minha atenção,

vi gente junto a um rio de negrume;

pelo que disse: «Mestre, deixa então

que eu saiba quem são estes, que costume

a atravessar parece que os apronte,

como distingo neste frouxo lume.»

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Ed elli a me: «Le cose ti fier conte

quando noi fermerem li nostri passi

su la trista riviera d’Acheronte.»

Allor con li occhi vergognosi e bassi,

temendo no ’l mio dir li fosse grave,

infino al fiume del parlar mi trassi.

Ed ecco verso noi venir per nave

un vecchio, bianco per antico pelo,

gridando: «Guai a voi, anime prave!

Non isperate mai veder lo cielo:

i’ vegno per menarvi a l’altra riva

ne le tenebre etterne, in caldo e ’n gelo.

E tu che se’ costí, anima viva,

pàrtiti da cotesti che son morti.»

Ma poi che vide ch’io non mi partiva,

disse: «Per altra via, per altri porti

verrai a piaggia, non qui, per passare:

piú lieve legno convien che ti porti.»

E ’l duca lui: «Caron, non ti crucciare:

vuolsi cosí colà dove si puote

ciò che si vuole, e piú non dimandare.»

Quinci fuor quete le lanose gote

al nocchier de la livida palude,

che ’ntorno a li occhi avea di fiamme rote.

Ma quell’ anime, ch’eran lasse e nude,

cangiar colore e dibattero i denti,

ratto che ’nteser le parole crude.

Bestemmiavano Dio e lor parenti,

l’umana spezie e ’l loco e ’l tempo e ’l seme

di lor semenza e di lor nascimenti.

Poi si ritrasser tutte quante insieme,

forte piangendo, a la riva malvaggia

E ele a mim: «Tal cousa te desponte

assim que detivermos nossos passos

sobre a ribeira triste de Aqueronte.»

Então cos olhos de vergonha baços,

temendo minha fala ser molesta,

meus ditos junto ao rio fiz escassos.

E veio vindo a nós em nave lesta,

um velho, branco no vetusto pelo,

gritando: «Guarda a toda a alma funesta!»

O céu, não espereis nunca de vê-lo:

a pôr-vos no outro lado eis-me presente,

na eterna treva de calor e gelo.

«E tu que estás aí, alma vivente,

sai de ao pé destes já, que estão na morte.»

Mas que eu não me afastava então pressente:

«Por outra via e portos, de outra sorte

terás praia, não esta, onde passares:

mais leve lenho é bom que te transporte.»

E o guia então: «Caronte, sem te irares:

assim se quer lá onde mais se pode

o que se quer, e assaz de perguntares.»

Já se aquieta a tez lanosa, só de

ouvi-lo o Arrais do lívido palude,

conquanto a chama nos seus olhos rode.

Mas nuas almas lassas então pude

ver mudarem a cor, baterem dentes,

só de ouvirem assim palavra rude.

Maldiziam a Deus e a seus parentes,

espécie humana, tempo, lugar, sémen

de seu nascer e de suas sementes.

E depois recolhidas juntas gemem

lá onde o choro em margem torpe vaza

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ch’attende ciascun uom che Dio non teme.

Caron dimonio, con occhi di braggia

loro accennando, tutte le raccoglie;

batte col remo qualunque s’adagia.

Come d’autunno si levan le foglie

l’una appresso de l’altra, fin che ’l ramo

vede a la terra tutte le sue spoglie,

similemente il mal seme d’Adamo

gittansi di quel lito ad una ad una,

per cenni come augel per suo richiamo.

Cosí sen vanno su per l’onda bruna,

e avanti che sien di là discese,

anche di qua nuova schiera s’auna.

«Figliuol mio», disse ’l Maestro cortese,

«Quelli che muoion ne l’ira di Dio

tutti convegnon qui d’ogne paese;

e pronti sono a trapassar lo rio,

ché la divina giustizia li sprona,

sí che la tema si volve in disio.

Quinci non passa mai anima buona;

e però, se Caron di te si lagna,

ben puoi sapere omai che ’l suo dir suona.»

Finito questo, la buia campagna,

tremò sí forte, che de lo spavento

la mente di sudore ancor mi bagna.

La terra lagrimosa diede vento,

che balenò una luce vermiglia

la qual mi vinse ciascun sentimento;

e caddi come l’uom cui sonno piglia.

que espera a todos os que a Deus não temem.

E Caronte, demónio de olho em brasa,

fazendo-lhes sinal de que os recolha,

dá co remo nalgum que mais se atrasa.

Como de outono um ramo se desfolha,

e uma após a outra as folhas lá se vão,

e esses restos depois por terra olha,

assim também o mau sémen de Adão

despenham-se da margem uma a uma,

como as aves a quem chamando estão.

Partem na água assim de escura espuma,

e antes que dali desçam de uma vez

também nova fileira aqui se apruma.

«Meu filho», disse o mestre então cortês,

«os que morreram na ira do Senhor

de todos os países aqui vês;

e este rio estão prontos a transpor

que a justiça divina os atiçoa

e em desejo se volve o seu temor.

Aqui não passa nunca uma alma boa;

por isso, se Caronte te censura,

o seu dizer já sabes como soa.»

E findo isto, aquela terra escura,

com tal força tremeu que, do espavento,

se me banha em suor inda a figura.

A terra lacrimosa soltou vento

que lampejou de luz rubra tamanha,

a privar-me de todo o sentimento;

e caí como alguém que o sono apanha.

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CANTO VIII

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Io dico, seguitando, ch’assai prima

che noi fossimo al piè de l’altre torre,

li occhi nostri n’andar suso a la cima

per due fiammette che i vedemmo porre,

e un’altra da lungi render cenno,

tanto ch’a pena il potea l’occhio tòrre.

E io mi svolsi al mar di tutto ’l senno;

dissi: «Questo che dice? e che risponde

quell’ altro foco? e chi son quei che ’l fenno?»

Ed elli a me: «Su per le sucide onde

già scorgere puoi quello che s’aspetta,

se ’l fummo del pantan nol ti nasconde.»

Corda non pinse mai da sé saetta

che si corresse via per l’aere snella,

com’ io vidi una nave piccioletta

venir per l’acqua verso noi in quella,

sotto ’l governo d’un sol galeoto,

che gridava: «Or se’ giunta, anima fella!

«Flegïàs, Flegïàs, tu gridi a vòto»,

disse lo mio segnore, «a questa volta:

piú non ci avrai che sol passando il loto.»

Qual è colui che grande ingano ascolta

che li sia fatto, e poi se ne rammarca,

fecesi Flegïàs ne l’ira accolta.

Lo duca mio discese ne la barca,

e poi mi fece intrare appresso lui;

e sol quand’ io fui dentro parve carca.

Tosto che ’l duca e io nel legno fui,

segando se ne va l’antica prora

de l’acqua piu che non suol con altrui.

Bem antes de findar, como ora exprimo,

ao pé dessa alta torre a nossa via,

nossos olhos subiram ao seu cimo,

que dupla chamazinha aí luzia;

e vi outra de longe responder,

e tanto que o olhar mal a avalia.

E àquele mar de todo o mais saber

e eu disse: «O que diz este? e lhe responde

essoutro fogo? e quem no está a fazer?»

E ele a mim: «Na suja onda é onde

verás o que se espera, se a inquieta

fumaça desta lama não to esconde.»

Nunca corda mais tensa lançou seta

que assim corresse pelo ar tão lesta,

como avistei então uma naveta

que a vir por água para nós se apresta,

sob o governo só de um galeote,

que gritava: «Cá te eis, alma funesta!»

«Flégias, Flégias, teu vão grito se esgote»

lhe disse o meu senhor: «Por esta vez:

só a lama passar te somos lote.»

Como aquele que engano se lhe fez

e o escuta e disso então se amarga,

Flégias se reprimiu na ira soez.

Na barca desce o guia e nada o embarga,

e entrar me fez com ele seu empenho;

e só quando fui dentro acusou carga.

Sendo o meu guia e eu ambos no lenho,

segando vai a antiga proa agora

mais dentro de água porque nela venho.

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Mentre noi corravam la morta gora,

dinanzi mi si fece un pien di fango,

e disse: «Chi se’ tu che viene anzi ora?»

E io a lui: «S’i’vegno, non rimango;

ma tu chi se’, che sí se’ fatto brutto?»

Rispuosi: «Vedi che son un che piango.»

E io a lui: «Con piangere e con lutto,

spirito maledetto, ti rimani;

ch’i’ ti conosco, ancor sie lordo tutto.»

Allor distese al legno ambo le mani;

per che ’l maestro accorto lo sospinse,

dicendo: «Via costá con li altri cani!»

Lo collo poi con le braccia mi cinse;

basciommi ’lvolto e disse: «Alma sdegnosa,

benedetta colei che ’n te s’incinse!

Quei fu al mondo persona orgogliosa;

bontà non è che sua memoria fregi:

cosí s’è l’ombra sua qui furïosa.

Quanti sí tegnon or là sú gran regi

che qui staranno come porci in brago,

di sé lasciando orribili dispregi!»

E io: «Maestro, molto sarei vago

di vederlo attuffare in questa broda

prima che noi uscissimo del lago.»

Ed elli a me: «Avante che la proda

ti si lasci veder, tu sarai sazio:

di tal disïo convien che tu goda.»

Dopo ciò poco vid’ io quello strazio

far di costui a le fangose genti,

che Dio ancor ne lodo e ne ringrazio.

Tutti gridavano: «A Filippo Argenti!»;

e ’l fiorentino spirito bizzarro

Pelo morto canal fomos fora

quando um que a mim se fez cheio de lama,

disse: «Quem és, que vens antes da hora?»

E eu: «Se venho, não fico, mas que fama

é a tua, que assim te fazes bruto?»

Respondeu-me: «Sou um que chora e brama.»

E eu então: «Com choros e com luto,

maldito esprito, aqui de ficar tens;

que eu te conheço, mesmo não enxuto.»

E então prendeu ao lenho as mãos reféns;

e o mestre avisado o empurrou,

dizendo: «Embora ali cós outros cães!»

E o colo com os braços me abraçou:

beijou-me o rosto e disse: «Ó desdenhosa

alma, bendita a que te transportou!

Este no mundo foi gente orgulhosa;

e sem bondade que a memória enfeita:

assim eis sua sombra furiosa.

Quantos por reis a vida lá deleita,

mas, porcos na pocilga aqui, por pago,

deixam desprezo horrível que os enjeita!»

E eu disse: «Mestre, assim tais ganas trago,

de em lavagem o ver chafurdar bem,

antes de nós sairmos deste lago.»

E ele então a mim: «Antes porém

que a margem tu avistes, se sacie

desejo que gozar já te convém.»

Pouco depois despedaçá-lo vi,

assim fazendo as mais limosas gentes,

e a Deus, que de tal louvo, agradeci.

«Sus! Filippo Argenti!», uivam dolentes,

E o florentino espírito bizarro,

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in sé medesimo si volvea co’ denti.

Quivi il lasciammo, che piú non ne narro;

ma ne l’orecchie mi percosse un duolo,

per ch’io avante l’occhio intento sbarro.

Lo buon maestro disse: «Omai, figliuolo,

s’appressa la città c’ha nome Dite,

coi gravi cittadin col grande stuolo.»

E io: «e Maestro, già le sue meschite

là entro certe ne la valle cerno,

vermiglie come se di foco uscite

fossero.» Ed ei mi disse: «Il foco etterno

ch’entro l’affoca le dimostra rosse,

come tu vedi in questo basso inferno.»

Noi pur giugnemmo dentro a l’alte fosse

che valam quella tern sconsolata:

le mura mi parean che ferro fosse.

Non sanza prima far grande aggirata,

venimmo in parte dove il nocchier forte

«Usciteci», gridò: «qui è l’intrata.»

Io vidi piú di mille in su le porte

da ciel piovuti, che stizzosamente

dicean: «Chi è costui che sanza morte

va per lo regno de la morta gente?»

E ’l savio mio maestro fece segno

di voler lor parlar segretamente.

Allor chiusero un poco il gran disdegno

e disser: «Vien tu solo, e quei sen vada

che sí ardito intrò per questo regno.

Sol si ritorni per la folle strada:

pruovi, se sa: ché tu qui rimarrai,

che li ha’ scorta sí buia contrada.»

Pensa, lettor, se io mi sconfortai

contra si mesmo então volvia os dentes.

Deixando-o aí, que dele mais não narro,

a meus ouvidos mais clamor se sente,

pelo que o olhar atento além desgarro.

Disse o bom mestre: «Filho, à tua frente,

a cidade de Dite é a que fitas,

com grandes bandos e gravosa gente.»

E eu disse: «Mestre, vejo-lhe as mesquitas,

bem claramente, lá no vale interno,

e o fogo as faz vermelhas e vomita-as,

dir-se-ia», e ele me disse: «O fogo eterno

sufoca-as dentro e as faz ao rubro; possas

tu vê-lo agora neste baixo inferno.»

E nós enfim chegámos a altas fossas

que a terra valam tão desconsolada:

e as paredes de ferro julguei grossas.

Não sem antes a termos rodeada,

chegámos lá onde o Arrais exorta:

«Ora saí!», gritou, «é aqui a entrada.»

Mais de mil eram sobre tanta porta,

do céu chovidos e que iradamente

iam dizendo: «Que alma sem ser morta

vai o reino transpor da morta gente?»

Do sábio mestre então sinal me vem

de querer falar-lhes mais secretamente.

Então fecham um pouco o grão desdém

e dizem: «Vem tu só, e vá de volta,

quem tão audaz a este reino vem.

Regresse só na estulta estrada à solta:

prove, se sabe; e tu cá ficar vais;

que à escura região lhe fosse escolta.»

Como desanimei, leitor, pensais:

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nel suon de le parole maladette,

ché non credeti di tornarci mai.

«O caro duca mio, che piú di sette

volte m’hai sicurtà renduta e tratto

d’alto periglio che ’ncontra mi stette,

non mi lasciar», diss’io, «cosí disfatto;

e se ’l passar piú oltre ci è negato,

ritroviam l’orme nostre insieme ratto.»

E quel segnor che lí m’avea menato,

mi disse: «Non temer; ché ’l nostro passo

non ci può tòrre alcun: da tal n’è dato.

Ma qui m’attendi, e lo spirito lasso

conforta e ciba di speranza buona,

ch’i’ non ti lascerò nel mondo basso.»

Cosí sen va, e quivi m’abbandona

lo dolce padre, e io rimagno in forse,

che sí e no nel capo mi tenciona.

Udir non potti quello ch’a lor porse;

ma ei non stette là con essi guari,

che ciascun dentro a pruova si ricorse.

Chiuser le porte que’ nostre avversari

nel petto al mio segnor, che fuor rimase

e rivolsesi a me con passi rari.

Li occhi a la terra e le ciglia avea rase

d’ogne baldanza, e dicea ne’ sospiri:

«Chi m’ha negate le dolente case!»

E a me disse: «Tu, perch’ io m’adiri,

non sbigottir, ch’io vincerò la prova,

qual ch’a la difension dentro s’aggiri.

Questa lor tracotanza non è nova;

ché già l’usaro a men segreta porta,

la qual sanza serame ancor si trova.

tão maldita palavra ressoou

que não julguei que cá voltasse mais.

«Quem mais de sete vezes me salvou

e me deu segurança, por que enjeito

alto perigo que se me apontou,

não vai deixar-me, ó guia, assim desfeito;

e se passar além nos é negado,

pra trás depressa vamos a direito.»

E o senhor que me tinha lá levado,

disse: « Não temas, porque o nosso passo

não se pode tolher: por tal é dado.

Aguarda aqui e o teu esprito lasso

conforta e nutre de esperança dina,

que eu não te deixarei no baixo espaço.»

E a abandonar-me assim se determina

o doce pai e eu fico a duvidar,

que em não e sim a mente desatina.

Ouvir não pude o que lhes foi falar;

co eles não foi por tempo dilatado,

que é vê-los à porfia retirar.

Os adversários fora o hão deixado,

que as portas em seu peito são fechadas,

e a mim voltou com passo demorado.

Olhar no chão, sobrancelhas baixadas

sem ousar mais, dizia num suspiro:

«Quem me negou, de dor, estas moradas!»

E a mim, depois: «Tu, só porque ora me iro,

não desfaleças, vencerei a prova,

não importa a defesa do retiro.

Esta sua arrogância não é nova;

lhes travou já menos secreta porta

a qual sem fechadura inda se mova.

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Sovr’ essa vedestú la scritta morta:

e già di qua da lei discende l’erta,

passando per li cerchi sanza scorta,

tal che per lui ne fia la terra aperta.»

Sobre ela tu verás a escrita morta:

e abaixo desta desce a arriba certa,

e os círculos sem guia ter já corta

quem só por si se faça a terra aberta.»

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6.2. Ilustrações de Botticelli

CANTO I

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CANTO III – ILUSTRAÇÃO 1

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CANTO III – ILUSTRAÇÃO 2

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CANTO VIII