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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
DIOGO OLIVEIRA RAMIRES PINHEIRO
A INVERSÃO DO SUJEITO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO:
UMA ABORDAGEM COGNITIVISTA
Rio de Janeiro
Abril de 2013
A INVERSÃO DO SUJEITO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO:
UMA ABORDAGEM COGNITIVISTA
Diogo Oliveira Ramires Pinheiro
Tese de Doutorado submetida ao Programa
de Pós-Graduação em Linguística da
Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de
Doutor em Linguística.
Orientador: Profa. Doutora Lilian Vieira
Ferrari
Rio de Janeiro
Abril de 2013
A inversão do sujeito no português brasileiro: uma abordagem cognitivista
Diogo Oliveira Ramires Pinheiro
Orientador: Profa. Doutora Lilian Vieira Ferrari
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários
para a obtenção do título de Doutor em Linguística.
Examinada por:
______________________________________________________________________
Presidente, Profa Doutora Lilian Vieira Ferrari
______________________________________________________________________
Profa. Doutora Mariangela Rios de Oliveira – UFF
______________________________________________________________________
Profa. Doutora Sandra Pereira Bernardo – UERJ
______________________________________________________________________
Profa. Doutora Maria Lúcia Leitão de Almeida – PPG Letras Vernáculas – UFRJ.
______________________________________________________________________
Prof. Doutor Mauro José Rocha do Nascimento – Departamento de Letras Vernáculas –
UFRJ.
______________________________________________________________________
Profa. Doutora Ana Flávia Lopes Magela Gerhardt – PPG Letras Vernáculas – UFRJ,
Suplente
______________________________________________________________________
Profa. Doutora Maria Luiza Braga – PPG Linguística – UFRJ, Suplente
Rio de Janeiro
Abril de 2013
AGRADECIMENTOS
À professora Lilian Ferrari, por me apresentar uma área nova e instigante da Linguística
Cognitiva, que alia espaços mentais, ponto de vista e subjetividade; por me ensinar
sobre o assunto e, além disso, me ensinar a fazer pesquisa sobre o assunto; e, de modo
geral, pela orientação ao mesmo tempo inteligente e sensata, perspicaz e paciente.
Aos professores Maria Lúcia Leitão de Almeida e Mauro José Rocha do Nascimento,
por todas as lições de Linguística Cognitiva e, em particular, pelos valiosos comentários
e sugestões feitos durante o Exame de Qualificação.
Ao Francisco, cuja companhia decididamente única torna muitos momentos mais
agradáveis, divertidos e inteligentes. E, por fim, à Liana, pela sua capacidade de tornar
cada momento pleno e inesquecível.
CRAIG (as Maxine, fascinated) Tell me, Craig, why do you love puppeteering?
(as Craig) Well, Maxine, I'm not sure exactly. Perhaps it's the idea of becoming
someone else for a little while. Being inside another skin. Moving differently,
thinking differently, feeling differently.
CRAIG: If only, I've been thinking to myself, if only I could actually
feel what Malkovich feels, rather than just see what he sees...
(Being John Malkovich)
PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. A inversão do sujeito no português brasileiro:
uma abordagem cognitivista. Tese (Doutorado em Linguística) – Programa de Pós-
Graduação em Linguística, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
RESUMO
Esta tese se propõe a investigar a inversão do sujeito no português brasileiro
falado à luz da Linguística Cognitiva. Para isso, são combinados dois modelos teóricos
complementares: uma versão recente da Teoria dos Espaços Mentais (SANDERS;
SANDERS; SWEETSER, 2009; 2012; FERRARI; SWEETSER, 2012) e a Gramática
de Construções goldbergiana. Assumindo o Princípio da Não-sinonímia (GOLDBERG,
1995), e considerando que sentenças SV e VS frequentemente expressam o mesmo
conteúdo objetivo, toma-se como ponto de partida a seguinte pergunta: qual é a
diferença semântica e/ou pragmática entre as duas estruturas?
As principais descobertas são as seguintes: (i) As estruturas SV e VS ativam
redes distintas de espaços mentais: a primeira instrui o ouvinte a posicionar o Ponto de
Vista no Espaço de Ato de Fala, localizado no ground comunicativo, ao passo que a
segunda promove o deslocamento do Ponto de Vista para o Domínio do Conteúdo;
como resultado, sentenças VS envolvem uma redução da distância entre sujeito
conceptualizador e objeto conceptualizado; e (ii) a construção VS predica uma cena de
experiência perceptual direta que inclui três elementos (Observador, Campo Visual e
Entidade Focalizada), dos quais apenas o último é perfilado (os demais permanecem
pressupostos).
A principal contribuição do trabalho consiste na sugestão de que a ordem VS
pode ser explicada com base na ideia de deslocamento do ponto de vista, na medida em
que a posição pós-verbal do sujeito fornece instruções específicas a respeito do
estabelecimento da rede de espaços mentais e das projeções entre esses espaços.
Palavras-chave: Ordem VS. Ponto de Vista. Espaços Mentais. Gramática de
Construções.
PINHEIRO, Diogo Oliveira Ramires. Subject inversion in Brazilian Portuguese: a
cognitive linguistics approach. Dissertation (Doctorate in Linguistics) – Programa de
Pós-Graduação em Linguística, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
ABSTRACT
This dissertation aims to investigate subject inversion in spoken Brazilian
Portuguese (BP) within the framework of cognitive linguistics. Two complementary
models are combined: a recently developed version of Mental Spaces Theory
(SANDERS; SANDERS; SWEETSER, 2009; 2012; FERRARI; SWEETSER, 2012)
and Goldberg’s Construction Grammar (GOLDBERG, 1995; 2006). Given that
canonical SV sentences and inverted VS sentences frequently convey the same
objective content, the first question to be raised, based on the Non-Synonymy Principle
(GOLDBERG, 1995), is the following: what is the semantic and/or pragmatic difference
between them?
The main findings are: (i) SV and VS strucutures evoke different mental spaces
networks: the former instructs the hearer to set Viewpoint in the Speech Act Space,
located in the Deictic Centre of Communication, whereas the latter signals Viewpoint
dislocation to the Content Domain; therefore subject inversion implies shortening the
distance between the subject and object of conceptualization; and (ii) VS construction
predicates an experiential gestalt that includes three conceptual elements (Observer,
Visual Field and Focused Entity), out of which only the latter is profiled (the other two
remain presupposed).
The main contribution of this research consists in the suggestion that VS order
can be accounted for in terms of Viewpoint dislocation, since post-verbal subject
position provides specific instructions regarding the establishment of mental space
networks and the connections between them.
Key-words: VS order. Viewpoint. Mental Spaces. Construction Grammar.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 13
1.1 DELIMITAÇÃO DO OBJETO 14
1.2 OBJETIVOS 18
1.2.1 Primeiro objetivo: identificar a motivação conceptual da alternância
SV/VS
18
1.2.2 Segundo objetivo: descrever a construção gramatical VS 20
1.3 ESTRUTURA DO TRABALHO 21
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: CAMINHOS DA LINGUISTICA
COGNITIVA
23
2.1 TEORIA DOS ESPAÇOS MENTAIS 25
2.1.1 O funcionamento do modelo (I) space builders e projeção entre domínios 28
2.1.2 O funcionamento do modelo (II): os primitivos discursivos 37
2.1.3 A versão BCSN 43
2.1.4 A mesclagem conceptual 49
2.2 GRAMÁTICA COGNITIVA 54
2.2.1 Proeminência focal: a questão do perfilamento 56
2.3 A GRAMÁTICA DE CONSTRUÇÕES 60
2.3.1 A Cognitive Construction Grammar 70
2.3.1.1 Princípios psicológicos de organização da linguagem 73
2.4 SÍNTESE 77
3 METODOLOGIA
79
3.1 CORPORA E ANÁLISE DE DADOS 79
3.2 TESTES DE ACEITABILIDADE 83
3.3 Síntese e encaminhamentos
4 INVERSÃO DO SUJEITO E PONTO DE VISTA: UMA ABORDAGEM
BASEADA EM ESPAÇOS MENTAIS
85
86
4.1 A HIPÓTESE GERAL: CORRELAÇÃO ENTRE PONTO DE VISTA E
POSIÇÃO DO SUJEITO
87
4.1.1 Desdobramentos da hipótese geral 93
4.2 ALTERNÂNCIA SV/VS E FLUTUAÇÃO DE PONTO DE VISTA:
ANÁLISE DE DADOS
99
4.3 UMA TIPOLOGIA PARA OS USOS VS 120
4.4 ORDEM VS E MESCLAGEM DE PONTO DE VISTA 129
4.5 SÍNTESE E ENCAMINHAMENTOS 136
5 INVERSÃO DO SUJEITO E SEMÂNTICA DE FRAMES: UMA
ABORDAGEM CONSTRUCIONAL
137
5.1 INVERSÃO DO SUJEITO E SEMÂNTICA DE FRAMES: UMA BASE
CONCEPTUAL PARA A CONSTRUÇÃO VS
137
5.2 FORMALIZANDO A CONSTRUÇÃO VS: O ALINHAMENTO
SINTAXE-SEMÂNTICA
142
5.3 COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE CLASSES VERBAIS E CONSTRUÇÃO
VS
149
5.3.1 Verbos de aparição 150
5.3.2 Verbos locativos estativos 152
5.3.3 Verbos de movimento 154
5.3.4 Verbos de mudança de estado 158
5.3.5 Verbos sensoriais 161
5.3.6 Verbos de ação 163
5.4 SÍNTESE E ENCAMINHAMENTOS 166
6 RESTRIÇÕES FORMAIS E FUNCIONAIS À INVERSÃO DO
SUJEITO: DISCUSSÃO TEÓRICA
168
6.1 UM TRATAMENTO DO FORMAL PARA A ORDEM VS:
MONOARGUMENTALIDADE E INACUSATIVIDADE
169
6.2 UM TRATAMENTO FUNCIONAL PARA A ORDEM VS:
ACESSIBILIDADE REFERENCIAL E TOPICALIDADE
172
6.3 SÍNTESE 183
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
184
REFERÊNCIAS
187
ANEXO
193
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Representação de O Rafinha é craque 29
Figura 2 Representação de No futuro, O Rafinha será craque 31
Figura 3 Representação da ambiguidade referencial em (9) 33
Figura 4 Representação da leitura genérica de (10) 35
Figura 5 Representação da leitura específica de (10) 35
Figura 6 Representação de Mari tem 30 anos 39
Figura 7 Representação de Em 2008, ela morou na Inglaterra 40
Figura 8 Representação de Em 2009, ela se mudaria para Roma. 41
Figura 9 Representação de Mas, em 2008, ela se apaixonou e... 42
Figura 10 Representação simplificada do modelo BCSN da TEM 44
Figura 11 Esquema do arranjo de visualização, segundo Verhagen (2005) 46
Figura 12 Basic Communicative Spaces Network 48
Figura 13 Representação do processo de integração conceptual em (13) 52
Figura 14 Esquema HIPOTENUSA, segundo a Gramática Cognitiva 56
Figura 15 Esquema de PAI, segundo a Gramática Cognitiva 58
Figura 16 Esquema de FILHO, segundo a Gramática Cognitiva 58
Figura 17 Perfilamentos possíveis da cadeia agentiva, segundo Langacker
(1991) 59
Figura 18 Representação da construção de movimento causado 72
Figura 19 Representação do padrão SV segundo a Teoria dos Espaços
Mentais 91
Figura 20 Representação do padrão VS segundo a Teoria dos Espaços
Mentais 92
Figura 21 Níveis de conceptualização dos exemplos (3) e (4) 101
Figura 22 Representação de o Dourado entrou aqui 102
Figura 23 Representação de esse meu amigo tava lá no camarim esperando 103
Figura 24 Representação de esse meu amigo tava lá no camarim esperando
aí daqui a pouco entrou esse tal de Marcelo 105
Figura 25 Representação de tá tocando o telefone 114
Figura 26 Representação de tá batendo o cansaço agora 117
Figura 27 Representação de o cansaço tá batendo agora 119
Figura 28 Tipologia dos usos VS segundo o tipo de Observador 121
Figura 29 Representação de eu tava assim no quarto descansando né’’ aí
do nada entrou o Dourado 122
Figura 30 Representação de e quando eu dei por conta... pô...só estava eu e
uns... dois no/ naquele vagão... 125
Figura 31 Representação de aparece dois garotos 131
Figura 32 Representação de aí ele foi atravessar a rua... aí veio um carro
disparado... 133
Figura 33 Representação de quando abre a porta do banheiro tá ele no
vaso 134
Figura 34 Cena de Focalização da Atenção 138
Figura 35 Esquema imagético do contêiner: cena de locação 140
Figura 36 Representação esquemática de tá seu chapéu no banquinho
vermelho 141
Figura 37 Alinhamento sintaxe-semântica na construção VS 145
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Levantamento preliminar das construções de inversão do sujeito no
PB 15
Tabela 2 Tipologia não exaustiva de space builders 30
Tabela 3 Continuum de construções gramaticais, segundo Goldberg (2003) 69
Tabela 4 Caracterização informal das construções de Estrutura Argumental 71
Tabela 5 Contraste entre as construções SV e VS 98
13
1 Introdução
O que motiva a inversão do sujeito no português brasileiro (PB) falado? Que
fatores estão associados à opção pela ordem VS (verbo-sujeito), em detrimento da
ordem canônica SV (sujeito-verbo)? Ou ainda: como explicar a possibilidade ou
impossibilidade de posposição do sujeito em diferentes contextos?
Depois de décadas de pesquisas, a quantidade de respostas sugeridas para essas
perguntas é de tirar o fôlego. Um breve levantamento da literatura mostra que a ordem
VS do português brasileiro já foi associada, pelo menos, aos seguintes fatores: a
monoargumentalidade, a inacusatividade, o peso fonético do sujeito, a indefinitude do
SN, a função apresentativa da sentença, o baixo grau de transitividade do verbo, o
caráter “novo” do referente do sintagma nominal e a baixa topicalidade do sujeito1. A
despeito da sua diversidade, essas explicações podem ser divididas – com alguma
simplificação inevitável – em dois grandes grupos: restrições de natureza formal (as
quatro primeiras) e motivações funcionais (as quatro últimas).
Este trabalho, por seu turno, investe em uma terceira via: seu objetivo é explicar
a inversão do sujeito no PB falado com base no paradigma da Linguística Cognitiva
(LC). Para isso, são recrutados, primordialmente, dois modelos teóricos que integram o
arcabouço da LC: de um lado, a Teoria dos Espaços Mentais, que será referida
eventualmente pela sigla TEM (FAUCONNIER, 1994 [1985]; 1997; SANDERS;
SANDERS; SWEETSER, 2009; 2012; FERRARI; SWEETSER, 2012); de outro, a
Gramática de Construções (GC), em particular a vertente sistematizada por Adele
Goldberg (1995; 2006).
1 No capítulo 7, irei comentar algumas dessas propostas a fim de compará-las com a abordagem
desenvolvida neste trabalho.
14
Esses dois modelos teóricos estão associados aos dois objetivos específicos desta
tese. A saber: (i) identificar a motivação semântico-conceptual subjacente à alternância
entre usos SV e VS; e (ii) descrever, sistematicamente, o padrão verbo-sujeito como
uma construção gramatical do português, ou seja, um pareamento convencional de
forma e significado2.
Esta introdução está organizada da seguinte maneira. A próxima seção, partindo
da constatação de que a inversão do sujeito no PB é um fenômeno complexo e
multifacetado, dedica-se a circunscrever com mais precisão o objeto de estudo da tese.
Em seguida, a seção 1.2 se detém sobre cada um dos dois objetivos específicos
elencados acima. Por fim, a seção 1.3 apresenta a estrutura geral do trabalho.
1.1 Delimitação do objeto
Como veremos no capítulo 2, o modelo da Gramática de Construções
compreende a língua como uma vasta e articulada rede de unidades simbólicas
(pareamentos de forma e significado), conhecidas como construções gramaticais. À luz
dessa concepção, a delimitação do objeto de investigação desta tese passa pela seguinte
pergunta: ao se debruçar sobre a ordem VS no português brasileiro, que porção da rede
construcional dessa língua o trabalho se propõe a descrever?
Ao que tudo indica, a inversão do sujeito no PB é um fenômeno complexo e
multifacetado, que se manifesta em diferentes contextos e pode estar associado a
funções pragmático-funcionais variadas. Sob uma perspectiva construcional, isso
significa que a ordem verbo-sujeito não corresponde a uma construção gramatical única,
2 O conceito de construção gramatical será esclarecido no próximo capítulo (seção 2.3), quando
apresentarei, em linhas gerais, o modelo da Gramática de Construções.
15
mas a uma família de construções inter-relacionadas3. A título de levantamento
preliminar, proponho um elenco de nove construções gramaticais nas quais a ordem VS
pode se manifestar4:
CONSTRUÇÃO GRAMATICAL EXEMPLO
1. Marcação de foco sentencial Furou o pneu.
2. Marcação de foco identificacional Até agora, chegou o Carlos e o José.
3. Interrogativa sim/não Seria ele a pessoa certa?
4. Construção optativa Queira Deus que ele volte logo.
5. Construção imperativa Vem pra Caixa você também!
6. Construção contrafactual diretiva Chegasse você mais cedo, então!
7. Construção contrafactual
condicional
Fosse você menos teimoso,
tudo estaria bem.
8. Construção condicional correlativa A data vai mudar, queira você ou não.
9. Construção completiva não-finita Garantiu ser ele a pessoa certa.
Tabela 1: levantamento preliminar das construções de inversão do sujeito no PB
O quadro acima é bastante heterogêneo. Em um primeiro corte, as duas
primeiras construções se distinguem de todas as demais, pela seguinte razão:
diferentemente dos padrões 1 e 2, as construções 3 a 9 apresentam restrições referentes
à morfologia verbal e, em pelo menos dois casos, exibem ainda algum tipo de
especificação lexical. Vejamos: a construção 3 especifica que o verbo deve vir no futuro
(do pretérito ou do presente), a construção 4 exige o chamado modo optativo, a
construção 5 demanda modo imperativo, as construções 6 e 7 requerem pretérito
imperfeito do subjuntivo, a construção 8 pressupõe presente do subjuntivo e a
3 O fato de as diferentes construções que manifestam ordem VS estarem relacionadas é uma hipótese de
trabalho, que decorre do Princípio da Motivação Maximizada (GOLBDERG , 1995), a ser apresentado no
próximo capítulo. Segundo esse princípio, padrões com uma mesma especificação formal devem
apresentar alguma afinidade semântica.
4 Essa lista é uma adaptação do quadro proposto em Pinheiro (2009).
16
construção 9 exige que o verbo esteja no infinitivo. Além disso, o padrão 8 especifica
necessariamente a sequência “ou não”, e é provável que o padrão 4 esteja estocado na
memória do falante sob a forma “Queira Deus que X”. Isso significa que ele demanda
não apenas um tempo/modo determinado, mas especificamente o verbo “querer” e o
sujeito “Deus”.
Nada disso, porém, se verifica nas construções 1 e 2. Aqui, não parece haver
restrição ao tempo/modo verbal (Furou o pneu, Furava o pneu; Chegou o Carlos e o
José, Vão chegar o Carlos e o José) ou qualquer especificação lexical prévia. O que
essa breve discussão sugere é que as construções 1 e 2 são mais abertas, ao passo que as
demais são mais fechadas ou restritivas, constituindo-se como padrões com maior grau
de cristalização5. Essa divisão inicial conduz a uma primeira delimitação do objeto de
estudo: aqui, os usos mais cristalizados não serão investigados. Por essa razão,
enunciados que manifestem as construções 3 a 9 estão excluídos da análise.
Isso, porém, não esgota a questão. Nesta tese, assumirei, ao menos como
hipótese inicial de trabalho, que as sentenças em 1 e 2 são instâncias de construções
gramaticais distintas. A razão para isso está indicada no próprio nome sugerido para
cada construção: elas apresentam estruturas informacionais diversas, na medida em que
a porção do enunciado correspondente ao domínio do foco não é a mesma nos dois
casos.
Explica-se. Com base em Lambrecht (1994), é possível assumir que a construção
1 sinaliza foco sentencial, às vezes referido na literatura como foco largo. Enunciados
que manifestam esse tipo de estrutura focal são chamados por Lambrecht (1994; 2001)
de “all-new sentences”, uma vez que sua propriedade definidora é a ausência de
conteúdo pressuposto. Trocando em miúdos, isso significa que a totalidade do conteúdo
5 No próximo capítulo (seção 2.3), veremos que as construções gramaticais se dispõem em um continuum
que vai dos padrões inteiramente abertos àqueles completamente fechados, passando por estágios
intermediários.
17
da sentença corresponde a informação nova. Na literatura sobre estrutura informacional,
o foco sentencial costuma ser identificado por meio da pergunta “O que aconteceu?”.
Como o enunciado Furou o pneu é apropriado como resposta a essa pergunta, entende-
se que ele manifesta foco sentencial.
Em contrapartida, o foco identificacional (ou foco estreito) envolve conteúdo
pressuposto. Um enunciado como Até agora, chegou o Carlos e o José é
pragmaticamente mais apropriado como resposta a uma pergunta do tipo “Quem
chegou?” do que como resposta à pergunta genérica “O que aconteceu?”. Na prática,
isso significa que esse enunciado evoca uma informação pressuposta, qual seja, a
informação de que alguém chegou. Ao mesmo tempo, sua função é identificar o
referente desse “alguém”. Em outras palavras, um enunciado como aquele que ilustra o
padrão 2 é usado com o propósito de especificar quem, em meio ao conjunto de
convidados, já chegou ao evento.
Neste trabalho, vale reiterar, tomarei essa diferença como base para a postulação
de duas construções gramaticais distintas (ainda que, muito provavelmente,
relacionadas): uma construção cuja função é marcar foco sentencial e outra
especializada na sinalização de foco identificacional. Essa distinção permite, enfim,
delimitar o objeto desta tese: aqui, irei me restringir aos casos de foco sentencial.
Estabelecida essa delimitação, passarei, a partir de agora, a me referir simplesmente à
“construção VS”. O leitor deverá ter em mente que, quando usado ao longo deste
trabalho, esse rótulo faz referência a apenas uma das (possíveis) nove construções
gramaticais de inversão do sujeito do português brasileiro.
18
1.2 Objetivos
Se o objeto desta tese é, especificamente, a construção VS de foco sentencial,
seu objetivo, conforme já ficou dito, é duplo: de um lado, explicar, à luz da TEM, a
motivação da alternância SV / VS; de outro, descrever, com base na GC goldbergiana, a
construção gramatical VS. Esta seção se debruça sobre cada um desses objetivos.
1.2.1 Primeiro objetivo: identificar a motivação conceptual da alternância SV / VS
Quando linguistas falam em alternância, eles se referem à possibilidade de
expressar um mesmo conteúdo objetivo por meio de duas estruturas sintáticas distintas.
Alguns exemplos famosos são as alternâncias bitransitiva (Mina sent a book to Mel X
Mina sent Mel a book), locativa (Pat loaded the wagon with the hay X Pat loaded the
hay onto the wagon), ergativa (O sol derreteu o gelo X O gelo derreteu) e ativa/passiva
(A Liana ouviu a música dos Beatles X A música dos Beatles foi ouvida pela Liana). A
“variação” entre estruturas SV e VS também pode, naturalmente, ser encarada como um
fenômeno de alternância, como mostram os exemplos (1) e (2) abaixo:
(1) A polícia chegou
(2) Chegou a polícia
De uma maneira geral, pesquisadores funcionalistas e cognitivistas têm
compartilhado a crença de que as línguas tendem a evitar sinônimos perfeitos6. No
âmbito da LC, essa ideia já foi sintetizada sob a forma do Princípio da Não Sinonímia
(GOLDBERG, 1995) e do Princípio do Contraste (CROFT, 2001). Ambos traduzem o
mesmo insight fundamental: diferenças na forma implicam diferenças no significado
6 Estou assumindo que a relação de sinonímia se aplica não apenas ao léxico, mas também a estruturas
sintáticas (correspondendo, neste caso, à ideia de paráfrase).
19
(aqui, tomado em sentido amplo e envolvendo, portanto, aspectos semânticos,
pragmáticos, discursivos ou funcionais)7. À luz desse insight, uma alternância como
aquela exibida em (1) e (2) demanda algum tipo de explicação: qual é, afinal, a
diferença de significado entre A polícia chegou e Chegou a polícia?
Neste trabalho, argumentarei que a alternância SV / VS é a manifestação
sintática de uma habilidade cognitiva geral, qual seja, a habilidade de deslocamento do
ponto de vista. Como se vê, o que está em jogo aqui é um processo cognitivo que
pertence, primariamente, ao domínio da percepção: temos a capacidade de apreender
um mesmo objeto (seja no mundo real ou na imaginação) a partir de diferentes pontos
de vista. O que este trabalho sugere é que essa capacidade encontra eco na sintaxe:
alternar entre um uso SV (como A polícia chegou) e sua contraparte VS (Chegou a
polícia) seria, então, em alguma medida análogo a alterar a localização a partir da qual
observamos uma determinada cena8. Nesse sentido, as sentenças em (1) e (2) devem ser
consideradas semanticamente dessemelhantes na medida em que traduzem
conceptualizações distintas de um mesmo cenário.
É a sugestão de que alternância SV / VS envolve deslocamento de ponto de vista
que explica a opção pela Teoria dos Espaços Mentais para dar conta do primeiro
objetivo desta tese. Com efeito, uma série de trabalhos em Linguística Cognitiva se
socorre da TEM para explicar fenômenos que envolvem, de alguma maneira, a noção de
perspectiva. Nessa lista, está o estudo clássico de Cutrer (1994) sobre tempos verbais,
uma série de trabalhos que se debruçam sobre o gerenciamento de pontos de vista
conflitantes no discurso indireto livre (SANDERS; REDEKER, 1996;
7 Outros autores, inclusive alinhados à linguística gerativa, também propuseram alguma versão de um
mecanismo anti-sinonímia. Voltarei a esse ponto no próximo capítulo (seção 2.3.1.1).
8 Por trás desse tipo de explicação, está a crença cognitivista na motivação conceptual da gramática. Em
poucas palavras, trata-se da ideia de que fenômenos gramaticais refletem, em alguma medida, processos
cognitivos gerais, ou seja, não especificamente linguísticos. Voltarei a esse ponto no capítulo 2.
20
VANDELANOTTE, 2012; NIKIFORIDOU, 2012) e ainda, talvez mais
surpreendentemente, estudos que revelam a importância da noção de ponto de vista na
construção da ironia (TOBIN; ISRAEL, 2012) e em processos de subjetificação
(FERRARI; SWEETSER, 2012). Esta tese pode ser entendida, ao menos parcialmente,
como parte integrante dessa tradição: aqui, irei recrutar o arsenal teórico-descritivo da
Teoria dos Espaços Mentais para explicar a diferença de perspectiva que parece motivar
a alternância entre usos SV e VS no português brasileiro.
1.2.2 Segundo objetivo: descrever a construção gramatical VS
Mais do que um modelo único, o rótulo Gramática de Construções (GC) abrange
um conjunto heterogêneo de modelos teóricos mais ou menos afins. A despeito das
diferenças, todos eles compartilham uma visão comum no que tange à arquitetura da
gramática. Em poucas palavras, trata-se de compreender a gramática das línguas
naturais como uma vasta rede articulada de unidades simbólicas (pareamentos de forma
e significado), que serão chamadas de construções gramaticais. À luz dessa concepção,
o segundo objetivo deste trabalho consiste na caracterização do padrão verbo-sujeito
como uma construção gramatical do português brasileiro.
Para isso, recorrerei, especificamente, à vertente goldbergiana da Gramática de
Construções (GOLBERG, 1995; 2006). A caracterização da construção VS envolverá
dois movimentos. Inicialmente, procedo à descrição do próprio padrão abstrato verbo-
sujeito. Nesse momento, irei sugerir que esse padrão evoca uma cena conceptual
específica – que será denominada Cena de Focalização de Atenção (CFA) – na qual um
indivíduo experiencia diretamente a entrada de uma entidade no seu campo visual. Para
descrever a CFA, recrutarei o arsenal teórico da Gramática Cognitiva de Ronald
Langacker (1987; 1991; 2008). Em seguida, mostrarei como os elementos presentes
21
nessa cena se associam às relações gramaticais disponíveis no padrão sintático verbo-
sujeito.
Concluída a descrição desse padrão sintático, tratarei, em um segundo momento,
do problema da interação verbo-construção. Nesse momento, dividirei os diversos usos
VS de acordo com as classes de predicadores que instanciam a construção, de maneira a
mostrar como se dá a compatibilização entre o sentido dos verbos e a própria semântica
do padrão abstrato, associada à Cena de Focalização da Atenção.
1.3 Estrutura do trabalho
O próximo capítulo será destinado à fundamentação teórica do trabalho. Como
veremos, a Linguística Cognitiva não constitui um corpo teórico homogêneo e
delimitado; antes, trata-se de um paradigma que abriga um conjunto multifacetado de
modelos e teorias. O capítulo 2 tratará especificamente dos três modelos recrutados
nesta tese e já mencionados acima: a Teoria dos Espaços Mentais, a Gramática de
Construções (com ênfase sobre a vertente golbergiana) e a Gramática Cognitiva de
Ronald Langacker. Em seguida, o capítulo 3 apresenta os procedimentos metodológicos
da pesquisa.
Na sequência, os capítulos 4, 5 e 6 constituem o cerne do trabalho. No capítulo
4, procuro levar a cabo o primeiro dentre os dois objetivos destacados acima: explicar a
alternância SV / VS com base na Teoria dos Espaços Mentais. O capítulo 5, por seu
turno, se ocupa do segundo objetivo: descrever a construção verbo-sujeito com base na
Gramática de Construções goldbergiana e, de forma complementar, na Gramática
Cognitiva langackeriana. Finalmente, o capítulo 6 propõe um diálogo entre a abordagem
desenvolvida nesta tese, ao longo dos capítulos 4 e 5, e outras hipóteses já sugeridas na
literatura para dar conta da inversão do sujeito no PB.
22
Por último, o capítulo 7 encerra a tese com uma retomada das principais
descobertas e, ao mesmo tempo, com um olhar prospectivo, buscando avaliar os
desdobramentos futuros de uma pesquisa de base cognitivista e construcional sobre a
inversão do sujeito no português brasileiro.
23
2 Fundamentação teórica:
caminhos da Linguística Cognitiva
A história da Linguística Cognitiva (LC) se inicia em fins da década de 70 do
século passado. É nesse momento que um pequeno grupo de pesquisadores, trabalhando
de forma independente, começa a questionar o princípio gerativista da autonomia da
forma gramatical. Embora desenvolvidos a partir de interesses teóricos diversos, os
trabalhos pioneiros de George Lakoff, Ronald Langacker, Leonard Talmy, Charles
Fillmore e Gilles Faucconier compartilham a crença de que a linguagem humana é
conceptualmente motivada. Na prática, isso significa que a forma linguística não se
encerra nos limites estreitos da própria forma. Em vez disso, ela reflete, em larga
medida, habilidades cognitivas gerais (quer dizer, não especificamente linguísticas),
como a capacidade de estabelecer relações analógicas entre domínios, categorizar
entidades, deslocar o foco de atenção e assumir diferentes pontos de vista, dentre muitas
outras. Em suma, para citar o slogan apenas aparentemente tautológico de Goldberg
(1995, p. 5), a ideia fundamental é a de que “conhecimento linguístico é conhecimento”.
A ênfase sobre as habilidades cognitivas do sujeito aponta para uma segunda
característica marcante da LC: a opção por uma semântica subjetivista. Por
subjetivismo, entende-se a preocupação não apenas com o conteúdo objetivo de uma
determinada unidade linguística (o objeto conceptualizado), mas também com os
indivíduos responsáveis por construir esse conteúdo (os sujeitos conceptualizadores).
Por essa razão, praticantes da Linguística Cognitiva têm se interessado pelos
mecanismos que permitem enquadrar eventos e cenários de diferentes maneiras – por
24
exemplo, deslocando a perspectiva, invertendo a relação figura/fundo, aumentando ou
diminuindo o zoom, etc.
De fins dos anos 70 para cá, essa posição teórica ganhou corpo, conquistou
adeptos e acabou por originar um “movimento autoconsciente” (LANGACKER, 1991b,
p. ix), que veio a ser conhecido como Linguística Cognitiva. Para Langacker (1991), é o
ano de 1989 que marca a institucionalização desse movimento: foi quando aconteceu a I
Conferência Internacional de Linguística Cognitiva, na qual se decidiu pela criação da
ICLA (International Cognitive Linguistics Association) e se anunciou o lançamento do
periódico Cognitive Linguistics, cujo primeiro número viria à luz no ano seguinte.
Se a partir deste momento a LC ganha ares de movimento coeso, cujo inimigo
declarado é a linguística gerativa e sua crença na autonomia da gramática, a verdade é
que a empreitada cognitivista nunca chegou a se constituir como uma teoria unificada
da linguagem. Não surpreendentemente, Geeraerts (2006, p. 2) se refere à Linguística
Cognitiva como um “arquipélago”, e Geeraerts e Cuyckens (2007, p. 5) sugerem que a
LC deve ser entendida, ela própria, como uma categoria do tipo family resemblance
(“semelhança de família”): um “aglomerado de diversas abordagens parcialmente
coincidentes”.
Trata-se, certamente, de uma família numerosa – ou de um arquipélago extenso.
No mínimo, ele inclui ilhas como o a Teoria dos Protótipos, a Teoria da Metáfora
Conceptual, a Gramática Cognitiva, a Teoria dos Espaços Mentais, a Teoria da
Integração Conceptual, a Semântica de Frames e a Gramática de Construções9 – para
citar apenas algumas das mais conhecidas10
. Este capítulo, claro, não promoverá um
9 Que poderia, ela própria, ser tratada como uma categoria por semelhanças de família, dada a
multiplicidade de “gramáticas de construções” mais ou menos afins.
10
Para uma problematização do status de diferentes conceitos, modelos e teorias que gravitam na órbita
da LC, ver Gerhardt (2003).
25
tour por todas as ilhas, mas apenas por aquelas que se mostram diretamente relevantes
para a proposta desenvolvida nos capítulos 4 e 5.
E quais são elas? Como vimos, o fenômeno da inversão do sujeito no PB será
investigado aqui a partir de duas perspectivas complementares. No capítulo 4, ele é
observado através das lentes da Teoria dos Espaços Mentais (FAUCONNNIER, 1994;
1997; SANDERS; SANDERS; SWEETSER; 2009; 2012; FERRARI; SWEETSER,
2012), aí incluído um de seus desdobramentos mais interessantes: a chamada Teoria da
Integração Conceptual (FAUCONNIER; TURNER, 2002). O capítulo 5, por sua vez,
procura descrever a ordem VS, de maneira sistemática, como uma construção
gramatical, ou seja, um pareamento convencional de forma e significado. Esse
tratamento segue as linhas gerais da versão goldbergiana da Gramática de Construções,
cujas obras-síntese são Goldberg (1995; 2006). Nesse momento, com o objetivo de
caracterizar com mais precisão o polo semântico da construção VS, recorro ainda ao
instrumental descritivo da Gramática Cognitiva langackeriana (LANGACKER, 1987;
1991; 2008).
São três, portanto, as ilhas teóricas a serem exploradas ao longo deste capítulo: a
Teoria dos Espaços Mentais (aí incluída a mesclagem conceptual), apresentada na seção
2.1; a Gramática Cognitiva langackeriana, que terá alguns dos seus conceitos básicos
discutidos na seção 2.2; e a Gramática de Construções (em particular, a vertente
goldbergiana), cujas premissas centrais são expostas na seção 2.3. Por fim, a seção 2.4
sintetiza os pontos mais importantes.
2.1 A Teoria dos Espaços Mentais
Hoje uma das ilhas mais vistosas do arquipélago cognitivista, a Teoria dos
Espaços Mentais (TEM), começou a se desenvolver em meados da década de 70, graças
26
ao trabalho pioneiro de Gilles Fauconnier. Como deixa clara a primeira obra publicada
sobre o modelo (FAUCONNIER, 1994 [1985]), a intenção original era oferecer
soluções simples e elegantes para certos problemas teóricos – fundamentalmente,
ambiguidades referenciais e transferência de pressuposição – que vinham se mostrando
especialmente resistentes a abordagens realistas e lógico-formais do significado,
tributárias da tradição da filosofia analítica.
Um exemplo clássico de ambiguidade referencial é dado pela seguinte sentença,
discutida por Fauconnier (1994, p. 49):
(3) Édipo acredita que vai se casar com sua mãe.
Essa sentença vincula-se a pelo menos dois significados, capturados pelas
paráfrases (3a) e (3b) abaixo: a primeira corresponde ao que é tradicionalmente
conhecido como interpretação transparente (ou de re), em que nomes e descrições são
atribuíveis ao falante; a segunda corresponde à interpretação opaca (ou de dicto), em
que nomes e descrições são atribuíveis ao “pensador” (o indivíduo cujo pensamento está
sendo linguisticamente expresso; neste caso, Édipo).
(3a) Édipo acredita que vai se casar com a pessoa que nós sabemos ser sua mãe
(embora ele não o saiba).
(3b) Édipo acredita que vai se casar com uma a pessoa que ele acredita ser sua
mãe.
Por que usos como (3) se mostraram historicamente problemáticos à luz das
semânticas formais e vericondicionais? Como observa Fauconnier (2007), uma fonte de
27
dificuldade reside no fato de que sentenças com contextos opacos têm o potencial de
infringir a Lei de Leibniz (ou lei de substituição dos idênticos), segundo a qual, se a = b,
então os dois termos são intercambiáveis em uma proposição sem que isso altere seu
valor de verdade. Ocorre que, se uma sentença como (3) pode ser falsa (caso se
considere a leitura (3b)), a substituição de “sua mãe” por “Jocasta” a torna
necessariamente verdadeira. Aqui, portanto, a “substituição de idênticos” parece falhar,
já que ela pode promover a alteração do valor de verdade da proposição.
A resposta tradicional a esse problema envolve a postulação de “mundos
possíveis”, ou realidades alternativas: assim, teríamos o mundo real (em que Jocasta é a
mãe de Édipo) e o mundo da crença de Édipo (no qual Jocasta não é sua mãe). Croft e
Cruse (2004) notam que, de um ponto de vista filosófico, esse tipo de solução dá
margem ao seguinte questionamento: em que consistem exatamente esses mundos
possíveis? Em se tratando de uma perspectiva realista, a resposta está longe de ser
óbvia. Se não se trata do próprio mundo real, então onde encontrá-los? Trocando em
miúdos: qual a natureza desses “mundos possíveis”11
?
A solução proposta por Fauconnier passa pela substituição de uma visada
realista por uma abordagem cognitivista. Com isso, no lugar dos mundos possíveis,
entram os espaços mentais. Em poucas palavras, espaços mentais são estruturas
cognitivas efêmeras criadas continuamente durante o desenrolar de uma interação
11
Além da sua implausibilidade metafísica, os “mundos possíveis” padecem de um segundo problema,
observado por Fauconnier (1994, p.xxxvi). Em uma perspectiva realista, o significado de um nome ou
descrição decorre da relação de referência direta que ele estabelece com uma determinada entidade
(situada no mundo real ou, vá lá, em algum mundo possível). Mas, com frequência, nomes e descrições
linguísticas (incluindo descrições definidas) não se referem a entidades individuais, e sim a papéis ou
categorias (“roles”) – e, nesses casos, não é possível falar em uma relação de referência direta. É o que
ocorre em usos como “Ele gosta de usar o boné com a aba pra trás”, em que a descrição definida “o boné”
se refere a uma categoria geral, e não a um boné específico. Mesmo (1) pode apresentar uma leitura
genérica desse tipo, como notado por Fauconnier (1994, p. 50). Trata-se da seguinte interpretação: Édipo
acredita que quem quer que se descubra ser sua mãe é a pessoa com quem ele irá se casar. Nesse caso, a
descrição “sua mãe” não corresponde a um referente individual (seja ele Jocasta ou Mérope), mas
meramente a uma categoria.
28
comunicativa e utilizadas para compartimentar e gerenciar o fluxo de informação. Isso
resolve o problema filosófico levantado por Croft e Cruse. Afinal, não é difícil apontar a
natureza e a localização dos espaços mentais: trata-se de estruturas cognitivas, que,
como tais, existem na mente dos interlocutores – e, ainda mais concretamente, no
cérebro12
.
Nesse sentido, a explicação de Fauconnier para a ambiguidade de (3) não
envolve a postulação de dois “mundos possíveis”, mas de dois espaços mentais: um
Espaço da Realidade (também chamado de Espaço Base) correspondente ao mundo real
(do mito), no qual a mãe de Édipo é Jocasta, e um espaço M correspondente às crenças
de Édipo, no qual a mãe de Édipo não é Jocasta, mas Mérope.
Até este ponto, procurei apresentar o contexto de surgimento da TEM – a reação
às abordagens realistas e lógico-formais do significado – bem como definir seu conceito
central, qual seja, a noção de espaço mental. A partir de agora, volto-me para um outro
tipo de questão. A saber: como a teoria funciona na prática, operacionalizando a análise
e representação de sentenças como (3)? É o que veremos nas próximas seções.
2.1.1 O funcionamento do modelo (I): space builders e projeções entre domínios
Observem-se as sentenças abaixo:
(4) O Rafinha é craque.
(5) No futuro, o Rafinha será craque.
(6) O Fafá acredita que o Rafinha é craque.
(7) Na cabeça maluca do Fafá, o Rafinha é craque.
(8) O Fafá quer que o Rafinha seja craque.
12
Ver Coulson, Urbach e Kutas (2006) para evidências a favor da realidade psicológica dos espaços
mentais e das projeções entre eles.
29
A sentença em (4) é interpretada, tipicamente, como uma informação relativa à
realidade imediata dos interlocutores. Na Teoria dos Espaços Mentais (ao menos, na sua
versão mais tradicional, como veremos adiante), isso significa que ela será construída
no Espaço Base (B), definido como âncora ou ponto de partida do discurso e
normalmente identificado com o aqui-e-agora da interlocução13
. Aqui, portanto, apenas
o Espaço Base está envolvido na interpretação da sentença, como se vê abaixo:
r
Espaço Base
Figura 1: Representação de O Rafinha é craque
Como se vê, o elemento r (Rafinha) está presente no próprio Espaço Base,
representando o fato de que a situação RAFINHA SER CRAQUE é interpretada como um
fato presente e real (interpretação default, adotada na ausência de sinalização em
contrário).
O mesmo não vale, porém, para os demais exemplos: em todos eles, a situação
RAFINHA SER CRAQUE é compreendida como uma informação que se aplica não à Base,
mas a algum outro domínio de interpretação (ou seja, outro espaço mental). Esses
domínios são os seguintes: em (5), o tempo futuro; em (6) e (7), a crença do Fafá; em
(8), o desejo do Fafá. Na prática, portanto, as representações de (5) a (8) irão se
13
Em Fauconnier (1994 [1985]), o Espaço Base é chamado de Espaço da Realidade (R).
r: Rafinha
CRAQUE r
30
distinguir da de (4) por incluírem dois espaços mentais: o Espaço Base e algum espaço
adicional, quer seja de futuro, crença ou desejo.
Em todos esses exemplos, a abertura desse espaço adicional é sinalizada de
maneira explícita, por meio de alguma expressão linguística. Expressões desse tipo,
cujo propósito é fornecer instruções para a ativação de um novo espaço mental, são
chamadas de space builders, ou construtores de espaços. Em (5), os spaces builders
responsáveis por promover a abertura do Espaço de Futuro são o sintagma
preposicionado e o sufixo modo-temporal do verbo. Em (6) e (7), a abertura de um
mesmo Espaço de Crença é indicada por estruturas formalmente distintas: no primeiro
caso, o verbo “acreditar”; no segundo, o sintagma preposicionado. Por fim, em (8), é o
verbo “querer” que funciona como space builder do Espaço de Desejo. Ferrari (2011, p.
111-112) apresenta a seguinte lista ilustrativa dos tipos mais comuns de space builders:
TIPO DE ESPAÇO CRIADO EXEMPLO
Espaços geográficos Na Índia, as vacas são animais sagrados
Espaços temporais Em 1964, Martin Luther King ganhou o Prêmio Nobel da Paz
Espaços condicionais Se o presidente viajar, o vice assumirá o cargo.
Espaços contrafactuais Como seria a Terra, se tivesse anéis como os de Saturno?
Espaços de representação No quadro, a moça de cabelo louro contempla a paisagem.
Espaços de domínios de atividade
No futebol americano, há jogadores que apenas defendem.
Tabela 2: Tipologia não-exaustiva de space builders (FERRARI, 2011)
31
Se é verdade que (5) a (8) se distinguem de (4) por incluírem um espaço
adicional (e um space builder que sinaliza a abertura desse espaço), também é fato que
essa não é a única diferença. Outro ponto importante é o seguinte: enquanto (4) conta
com apenas um Rafinha (aquele representado pelo elemento r no Espaço Base), os
demais exemplos incluem, por assim dizer, “dois Rafinhas”. Por um lado, há o Rafinha
do Espaço de Futuro, ou de Crença, ou de Desejo: aquele a quem se aplica o atributo
“craque”. Por outro, deverá haver também uma representação para o jogador Rafinha no
Espaço Base, na medida em que esse indivíduo já existe aqui e agora (embora não com
o atributo de craque). A título de ilustração, vejamos o esquema de (5):
r
Espaço Base (B)
r’
Espaço de Futuro (F)
Figura 2: Representação de No futuro, o Rafinha será craque
O diagrama acima mostra claramente os “dois Rafinhas”: aquele representado
por r (B), que não é craque, e aquele representado por r’ (F), que é craque. Aqui, é
importante atentar para a linha que vincula os dois elementos: ela traduz visualmente a
r’: Rafinha
CRAQUE r
r: Rafinha
32
ideia de que r e r’ se referem, em alguma medida, à mesma pessoa (mas só “em alguma
medida”, porque o segundo tem uma propriedade que o primeiro não tem).
Essa conexão entre elementos de espaços distintos é um dos mecanismos mais
importantes da TEM. Em Fauconnier (1994, p. 3), ele é formalizado por meio do
Princípio da Identidade (ou Princípio do Acesso), que estabelece o seguinte:
Se dois objetos (em sentido maximamente abrangente), a e b,
estão ligados por uma função pragmática F (b = F(a)), uma
descrição de a, da, pode ser usada para identificar sua
contraparte b.
Assim, de acordo com o Princípio de Identidade, temos, nos exemplos (5) a (8),
uma função pragmática ligando r (o Rafinha real e presente, que não é craque) a r’ (o
Rafinha craque, esteja ele no futuro, na crença do Fafá ou no desejo do Fafá).
Em suma, até aqui vimos algumas das categorias que compõem o arsenal
teórico-descritivo da TEM: os espaços mentais, os space builders e a função
pragmática, que evidencia as conexões ou correspondências entre espaços. Munidos
desse aparato, podemos ver agora como a teoria explica a ambiguidade de (3) (leitura
transparente versus leitura opaca), retomado e renumerado abaixo:
(9) Édipo acredita que vai se casar com sua mãe.
Conforme já comentado, temos aqui dois espaços mentais: um Espaço da
Realidade ou Espaço Base, indicado pela letra R e correspondente ao mundo real (do
mito), e um espaço M correspondente às crenças de Édipo (que, como sabemos, não
33
correspondem aos fatos). Esses dois espaços, com seus respectivos elementos e ligações
entre eles, estão representados na figura 3.
m m’
j1 j2
p1 p2
R M
Figura 3: Representação da ambiguidade referencial em (9), segundo Fauconnier (1994 [1985])
Como se vê, ambos os espaços incluem referentes que correspondem (i) ao papel
de mãe de Édipo (m no espaço R e sua contraparte m’ no espaço M), (ii) a Jocasta, sua
mãe verdadeira (j1 no espaço R e sua contraparte j2 no espaço M) e (iii) a Mérope, a
mulher que ele acredita ser sua mãe (p1 no espaço R e sua contraparte p2 no espaço M).
De resto, as linhas que vinculam m a m’, j1 a j2 e p1 a p2 traduzem visualmente a ideia
de que esses referentes dizem respeito, em alguma medida, à mesma entidade ou
conceito.
As semelhanças, contudo, terminam aí. Em R, como se vê, existe uma ligação,
indicada pela seta pontilhada, entre m e j1, sugerindo que, nesse espaço, é Jocasta quem
desempenha o papel de mãe de Édipo. Por outro lado, em M, a ligação se dá entre m’ e
m: mãe de Édipo (papel)
j1: Jocasta
p1: Mérope
m’: mãe de Édipo (papel)
j2: Jocasta
p2: Mérope
34
p2, traduzindo o engano de Édipo em relação a sua ascendência. Diante disso, a
diferença entre as leituras em (3a) e (3b) pode ser explicada como segue. Na primeira, a
descrição definida “sua mãe” se aplica a j1 (que se liga j2 a por uma relação de
identidade), representando a seguinte ideia: a pessoa com quem Édipo acredita que vai
se casar é a mulher que nós sabemos ser sua mãe (interpretação transparente,
verdadeira). Na segunda, a mesma descrição se aplica a p2 (que se liga p1 por uma
relação de identidade), representando a seguinte ideia: a pessoa com quem Édipo
acredita que vai se casar é a mulher que ele sabe ser sua mãe (intepretação opaca,
falsa)14
.
Outro tipo de ambiguidade explicada de forma elegante pela TEM diz respeito
aos casos em que descrições indefinidas podem receber duas interpretações. Um
exemplo é a sentença em (10), abaixo.
(10) O Flamengo quer contratar um atacante famoso.
Essa sentença admite duas leituras: uma genérica, na qual o Flamengo quer
contratar qualquer atacante que seja famoso, e outra específica, segundo a qual
Flamengo quer contratar um atacante determinado (digamos, o Messi), o qual é famoso.
A primeira intepretação está representada na figura 4, ao passo que a segunda é
traduzida visualmente pela figura 5.
14
Talvez o leitor esteja sentindo falta aqui de alguma categoria que traduza a ideia de ponto de vista, o
que tornaria tudo mais simples: a leitura em (2a) envolve o ponto de vista do falante, enquanto a de (2b)
se funda na perspectiva do próprio Édipo. Com efeito, Vandelanotte (2012), em uma análise baseada em
espaços mentais, explica a ambiguidade de Oedipus said that his mother was beautiful a partir da
alternância de ponto de vista no discurso indireto (ponto de vista do falante ou do personagem cujo
discurso é reportado). Ocorre, porém, que a explicação apresentada aqui é aquela de Fauconnier (1994
[1985]), obra que marca o estágio inicial de desenvolvimento da teoria, quando a noção de Ponto de Vista
ainda não havia sido incorporada. Isso ficará mais claro na seção 2.1.2.
35
a’
a
m’
R F
Figura 4: Representação da leitura genérica de (10)
a a’
m m’
R F
Figura 5: Representação da leitura específica de (10)
No segundo caso, o referente m’, do espaço F (espaço do desejo do Flamengo),
tem uma contraparte m no espaço R (espaço da realidade), indicando que o atacante
desejado pelo clube corresponde a um indivíduo determinado do mundo real. No
primeiro caso, o referente m’, embora se ligue a a’ (que corresponde ao papel atacante
a: atacante famoso (papel) a’: atacante famoso (papel)
m’: atacante famoso
a’: atacante famoso (papel)
m’: atacante famoso
a: atacante famoso (papel)
m: atacante famoso
36
famoso), não tem contraparte em R, sugerindo a leitura genérica: trata-se de qualquer
um que se insira na categoria de atacante famoso, sem correspondência com algum
jogador específico.
Assim como o problema da opacidade referencial, a questão do “escopo dos
indefinidos” também desafia as semânticas de inspiração lógico-formal. A saída clássica
consiste em considerar que o indefinido pode ter dois significados: um específico,
correspondente em forma lógica ao quantificador existencial, e outro genérico,
traduzido pelo quantificador universal. Em uma abordagem baseada em espaços
mentais, por outro lado, essa diferença é apenas um efeito incidental da aplicação do
Princípio de Acesso: em uma leitura, há uma relação de identidade entre m e m’, ao
passo que na outra interpretação esse vínculo está ausente. Como notam Lakoff e
Sweetser (1994), essa explicação é mais econômica porque não é preciso postular dois
sentidos diferentes para o artigo indefinido. Em vez disso, entende-se que esse artigo
tem uma função semântica única e invariante: introduzir um novo elemento em um
determinado espaço mental.
Uma evidência bastante convincente da superioridade dessa abordagem é a
seguinte: por postular diretamente dois sentidos para o determinante indefinido (um
existencial/específico e um universal), o tratamento lógico-formal naturalmente só
poderá explicar os casos em que a ambiguidade das descrições indefinidas remonta à
oposição entre especificidade e generalidade. Mas como explicar a ambiguidade de uma
sentença como (11), adaptada de Fauconnier (1994, p. 24)?
(11) Liana pintou uma árvore.
37
Aqui, o sintagma “uma árvore” pode se referir tanto ao “modelo” que foi pintado
por Liana (na interpretação mais imediata, a árvore do mundo real cuja aparência a
pintora procurou reproduzir na tela) quanto à representação pictórica. Neste caso, ambas
as interpretações são específicas; portanto, não é possível explicá-las por meio do
tratamento lógico-formal clássico para a ambiguidade das descrições indefinidas.
Por outro lado, a TEM prevê diretamente a possibilidade de ambiguidade em
(11). Como o verbo “pintar” é um space builder, temos aqui um Espaço de
Representação R, no qual há um referente a’ representando a árvore. Além disso, temos
também, por definição, um Espaço Base, no qual pode ou não haver um elemento a
correspondendo à árvore real (na interpretação em que o sintagma indefinido
corresponde à árvore pictórica, não necessariamente há um modelo do mundo real).
Assim, a descrição indefinida pode se referir diretamente a a’ (com ou sem
correspondência com uma contraparte a no Espaço Base) ou pode se referir diretamente
a a, no Espaço Base, e apenas indiretamente, via Princípio de Acesso, a a’ no Espaço da
Representação.
Os exemplos (4) a (11) devem ter dado uma boa ideia inicial sobre como a TEM
lida, na prática, com problemas de referência, graças a constructos teóricos como
espaços mentais, funções pragmáticas e space builders. Mas o fato é que, depois do
trabalho seminal de Fauconnier (1994 [1985]), a teoria incorporou novos conceitos e,
principalmente, ampliou seu raio de ação. É o que veremos a seguir.
2.1.2 O funcionamento do modelo (II): os primitivos discursivos
Vimos que, nos seus estágios iniciais, a TEM se desenvolveu como uma reação
às semânticas de inspiração formalista. Isso explica o conjunto de fenômenos
contemplado em Fauconnier (1994 [1985]): fundamentalmente, problemas ligados à
38
ambiguidade referencial e à questão da transferência de pressuposição. Outros autores,
porém, não demoraram a se dar conta de que o modelo poderia explicar, de forma
igualmente elegante e econômica, uma série de outros fenômenos linguísticos. Um
marco desse segundo momento é a tese de doutorado de Cutrer (1994) sobre tempos
verbais15
.
A contribuição fundamental de Cutrer é a sistematização dos chamados
primitivos discursivos. Trata-se de quatro constructos teóricos, correspondentes a tipos
distintos de espaços mentais, que se mostram necessários para dar conta do novo objeto
sobre o qual a TEM se debruçava: a representação linguística do Tempo (“time”) por
meio dos tempos verbais (“tenses”). Os primitivos discursivos propostos por Cutrer
(1994) são os seguintes: Base, Foco, Ponto de Vista e Evento16
.
O Espaço Base, como já ficou dito, é o ponto de partida ou âncora do discurso:
ele diz respeito à realidade compartilhada inicialmente entre os interlocutores, a partir
da qual outras realidades poderão ser criadas. O Espaço Foco (F), por sua vez, é aquele
no qual se estrutura a informação que está sendo veiculada num dado momento: é
sempre, portanto, o espaço correntemente ativado. O Espaço Ponto de Vista (PV) é
aquele a partir do qual a informação contida em outro espaço é acessada: trata-se do
“centro de conceptualização e consciência do self a quem o enunciado é atribuído”
(CUTRER, 1994, p. 73)17
. Por fim, o Espaço de Evento é o espaço temporal que
corresponde ao momento de ocorrência do evento expresso pelo verbo.
15
Fauconnier (1994) menciona o livro Partitioned representations, de John Dinsmore, publicado em
1991, como um antecedente importante da proposta de Cutrer (1994).
16
O primeiro, como vimos, já está presente na versão anterior do modelo, sendo chamado de Espaço de
Realidade em Fauconnier (1994 [1985]). O segundo, como notam tanto Cutrer (1994) quanto Fauconnier
(1994), aparece na obra já citada de John Dinsmore, que também trata de tempos verbais.
17
Como nota Ferrari (2011), esse self corresponde em geral ao próprio falante. Mas isso não é obrigatório
– e, com efeito, a possibilidade de que cenários sejam conceptualizados a partir de pontos de vista
alternativos, diferentes daquele do falante, é crucial para este trabalho. Esse ponto ficará mais claro no
capítulo 4.
39
Para ilustrar esses conceitos, recorro ao breve texto abaixo, uma adaptação de
um exemplo discutido por Fauconnier (1994, p. 73):
(12) Mari tem 30 anos. Em 2008, ela morou na Inglaterra. Em 2009, ela se
mudaria para Roma. Mas, em 2008, ela se apaixonou e decidiu permanecer
na Inglaterra.
A representação de (12) se inicia pelo Espaço Base, onde se estrutura a
informação sobre a idade de Mari. Nesse momento, o Espaço Base é o único disponível,
correspondendo também ao Espaço Foco, Ponto de Vista e de Evento. Assim:
BASE
m FOCO
PV
t EVENTO
Figura 6: Representação de Mari tem 30 anos
A informação da sentença seguinte é construída em um novo espaço mental,
aberto pelo space builder “Em 2008”. O Foco e o Evento se deslocam para esse novo
espaço, já que a sentença agora fala diretamente sobre um fato passado. No entanto, o
Ponto de Vista segue na Base: afinal, é a partir do momento presente (da interação) que
“olhamos” para esse evento passado e o conceptualizamos:
m: Mari
t: 30 anos
TER m, t
40
m BASE
PV
t
FOCO
m’ EVENTO
i
Espaço de Passado
(Em 2008)
Figura 7: Representação de Em 2008, ela morou na Inglaterra
Com a sentença seguinte, e a abertura de um novo espaço mental por meio do
space builder “Em 2009”, o Ponto de Vista é finalmente deslocado. Note-se que, neste
caso, a informação MARI MUDAR-SE PARA ROMA é apresentada como um fato futuro em
relação ao ano de 2008 (que, como vimos, é passado em relação ao momento de fala).
Aqui, portanto, o espaço aberto pelo sintagma “Em 2008”, que na passagem anterior
estava em Foco, passa a abrigar o Ponto de Vista (em outras palavras, estamos falando
aqui do valor semântico clássico do futuro do pretérito):
m’: Mari
i: Inglaterra
MORAR m’, i
41
m BASE
t
PV m’
i Espaço de
Passado
(Em 2008)
r FOCO
m’’ EVENTO
Espaço de Futuro
(em 2009)
Figura 8: Representação de Em 2009, ela se mudaria para Roma
Finalmente, a última sentença nos leva de volta para o espaço correspondente ao
ano de 2008. Esse espaço, portanto, volta a abrigar os primitivos Foco e Evento – e, da
mesma maneira, o Ponto de Vista retorna para a Base. São acrescentadas duas
informações ao Espaço Foco: a de que Mari se apaixonou e a de que ela decidiu
permanecer na Inglaterra.
m’: Mari
r: Roma
MUDAR-SE m’’, r
42
m BASE
PV
t
FOCO
m’ EVENTO
i Espaço de
Passado
(Em 2008)
r
m’’
Espaço de Futuro
(Em 2009)
Figura 9: representação de Mas, em 2008, ela se apaixonou e...
A despeito da artificialidade desse texto (ou talvez por isso mesmo), ele deve ter
dado uma boa ideia de como funciona o gerenciamento dos primitivos discursivos
sistematizados por Cutrer (1994). Como se vê, compreender esse passagem envolve não
apenas fracionar as informações em diferentes espaços mentais como também
manipular os primitivos discursivos a partir das instruções fornecidas pelos elementos
linguísticos (neste caso, os advérbios temporais e os morfemas modo-temporais dos
verbos).
m’: Mari
i: Inglaterra
MORAR m’, i
APAIXONAR-SE m’
PERMANECER m’, i
43
2.1.3 A versão BCSN
Vimos acima que a tese de Cutrer (1994), precedida pelo trabalho de John
Dinsmore, alargou as fronteiras da TEM ao propor um tratamento para a expressão
linguística do tempo e, ao mesmo tempo, sistematizar um conjunto de primitivos
discursivos. Novas pesquisas, porém, conduziram a desenvolvimentos ainda mais
instigantes. Nesta seção, apresento a versão da Teoria dos Espaços Mentais
desenvolvida por Sanders, Sanders e Sweetser (2009; 2012) e por Ferrari e Sweetser
(2012). Por razões que ficarão mais claras ao final da seção, esse modelo será referido
como BCSN, sigla para Basic Communicative Spaces Network.
As inovações trazidas pela versão BCSN decorrem de dois insights
fundamentais. O primeiro diz respeito à necessidade de estabelecer uma separação entre
o ato de interação em si mesmo e o conteúdo efetivamente comunicado. Pensemos no
exemplo (12), discutido na seção anterior. Como vimos, a informação associada à
sentença “Mari tem 30 anos” é estruturada no Espaço Base. Isso se justifica pelo fato de
se tratar de uma informação presente e real, que coincide com o aqui-e-agora dos
interactantes. Ou seja: a Base é, ao mesmo tempo, o “lugar” onde estão os
interlocutores, sujeitos de comunicação e conceptualização, e o espaço onde está a Mari,
objeto comunicado e conceptualizado. O problema está, precisamente, na mistura entre
esses dois planos. Embora, neste caso, exista uma coincidência temporal entre eles,
trata-se de níveis qualitativamente distintos: uma coisa é o ato de interação em que os
interlocutores se alternam nos papéis de falante e ouvinte(s); outra é o conteúdo
efetivamente conceptualizado e veiculado pelo discurso.
Essa separação, reitere-se, é um dos pilares da versão BCSN. O plano da
situação comunicativa (o aqui-e-agora interacional) tem sido chamado alternativamente
de Centro Dêitico da Comunicação (SANDERS; SANDERS; SWEETSER, 2009; 2012)
44
e de ground (FERRARI; SWEETSER, 2012), termo também empregado na gramática
langackeriana e definido da seguinte maneira: “O evento de fala, seus participantes e
suas circunstâncias imediatas” (LANGACKER, 1991, p. 548). Por seu turno, o plano do
conteúdo efetivamente comunicado/conceptualizado corresponde ao Domínio do
Conteúdo (DC). Em uma representação simplificada (a ser incrementada adiante), essa
divisão pode ser capturada assim:
Espaço Base Espaço de Conteúdo
Figura 10: Representação simplificada do modelo BSCN da Teoria dos Espaços Mentais
Em um modelo desse tipo, portanto, a situação comunicativa é representada
separadamente do conteúdo veiculado. Assim, diferentemente do que vimos na
representação dos espaços mentais de (12), o Espaço Base não incluirá mais os
referentes sobre os quais se fala, e sim as próprias circunstâncias da interação –
notadamente, o falante, o ouvinte, o momento de fala e o espaço onde transcorre o ato
de comunicação. É claro que nós podemos transformar esses elementos em objetos de
enunciação – é isso que fazem os dêiticos, afinal de contas. Mas, nesse caso, eles serão
representados duas vezes (e associados via função pragmática): no Centro Dêitico da
Centro Dêitico Domínio da Comunicação do Conteúdo (Ground)
45
Comunicação, como elementos integrantes da própria situação comunicativa, e no
Domínio de Conteúdo, na condição de referentes sobre os quais se está falando.
A mesma separação representada na figura 10 é capturada por meio do conceito
langackeriano de “viewing arrangement”, ou arranjo de visualização (LANGACKER,
1991; 2008). Definido de maneira ampla, um arranjo de visualização consiste em uma
relação assimétrica entre um sujeito visualizador (“viewer”) e um objeto visualizado.
Langacker (2008) sugere que o termo deve ser entendido de forma abrangente, podendo
ser aplicado tanto a situações de uso linguístico quanto a casos em que a relação não é
mediada pela linguagem. Por exemplo, a relação estritamente perceptual entre um
observador de pássaros e os pássaros observados é um tipo de arranjo de visualização
que não envolve interação linguística. Por outro lado, toda situação comunicativa se
organiza a partir de um arranjo de visualização. Neste caso, os “visualizadores” (ou
conceptualizadores) são o falante e o ouvinte, ao passo que a “situação visualizada” (ou
conceptualizada) corresponde ao próprio significado das expressões linguísticas
(LANGACKER, 2008, p. 73-74). Neste trabalho, para me referir ao visualizador em
sentido amplo (quer se trate, por exemplo, de um falante ou de um observador de
pássaros), empregarei indiferentemente as expressões sujeito conceptualizador, sujeito
cognoscente ou sujeito de consciência (esta última, utilizada também por Sanders,
Sanders e Sweetser (2009; 2012))18
.
No que se refere, especificamente, ao arranjo de visualização que estrutura a
interação linguística, Verhagen (2005, p. 8) o esquematiza da seguinte maneira:
18
Voltarei a este ponto no capítulo 4, quando procurarei demonstrar a utilidade de distinguir entre os dois
tipos de arranjo visualização para explicar a semântica da ordem VS.
46
Nível O: objeto de conceptualização
Nível S: sujeito de conceptualização
Figura 11: Esquema do arranjo de visualização, segundo Verhagen (2005)
Neste esquema, o nível S corresponde ao aqui-e-agora interacional, vale dizer,
ao plano da situação comunicativa (cada círculo da metade de baixo representa um
interlocutor). Ele equivale, portanto, ao ground ou Centro Dêitico da Comunicação. Por
sua vez, o nível O diz respeito às informações efetivamente comunicadas e
conceptualizadas pelos interlocutores, correspondendo assim ao Domínio do Conteúdo.
Neste trabalho, tomarei como sinônimos os termos Centro Dêitico da Comunicação,
ground e nível do sujeito (ou nível S), bem como os termos Domínio do Conteúdo e
nível do objeto (ou nível O)19
.
A separação entre o ground e Domínio do Conteúdo é, no entanto, apenas o
primeiro dos dois insights que motivam a versão BCSN. O segundo é a ideia de que o
19
Que ganho teórico se obtém ao incorporar a noção langackeriana de arranjo de visualização – a relação
assimétrica entre sujeitos conceptualizadores (ground) e objeto conceptualizado (conteúdo) – à Teoria dos
Espaços Mentais? Fundamentalmente, esse incremento torna a teoria apta para lidar com um fenômeno
discutido pioneiramente, no âmbito da Linguística Cognitiva, por Ronald Langacker (1990): a questão da
subjetividade / subjetificação. Simplificadamente, o grau de subjetividade / objetividade de expressões
linguísticas reside da interação entre os níveis S e O. Desse modo, ao formalizar uma representação
separada para cada um desses níveis, o modelo BSCN permite que a Teoria dos Espaços Mentais
desenvolva mecanismos capazes de explicar fenômenos de subjetificação, tanto em perspectiva sincrônica
quanto diacrônica. Para a análise de casos concretos, ver Sanders, Sanders e Sweetser (2009; 2012),
Ferarri e Alonso (2009) e Ferrari e Sweetser (2012).
47
self não é unificado, mas heterogêneo20
. Dito informalmente, os interlocutores não são
apenas sujeitos que, estando engajados em uma situação comunicativa, executam atos
de fala. Eles têm, ainda, pelo menos outras duas facetas: são pessoas físicas localizadas
em um determinado espaço-tempo real e são seres pensantes, ou seja, dotados de
estados mentais. Se o self é múltiplo, ou multifacetado, faz sentido que os interlocutores
sejam representados diversas vezes no Centro Dêitico da Comunicação. Na versão
BCSN, cada faceta do falante e do ouvinte é representada em um espaço mental distinto,
todos eles integrantes do ground ou CDC (e essas facetas serão vinculadas,
presumivelmente, por meio de funções pragmáticas, via Princípio de Identidade). As
facetas mencionadas acima correspondem aos seguintes espaços: Espaço Real (falante e
ouvinte como pessoas físicas), Espaço de Ato de Fala (falante e ouvinte como
interlocutores engajados em uma ação linguística intersubjetiva) e Espaço Epistêmico
(falante e ouvinte como sujeitos cognitivos, dotados de estados / processos mentais).
Para além desses três espaços, dois outros têm sido citados como integrantes da
rede de espaços mentais que compõem o ground: um Espaço Metalinguístico, que inclui
um conjunto de pareamentos forma-significado, e um Espaço Metatextual, que registra
o histórico da conversação em curso.
Ao fim e ao cabo, portanto, ficamos com a seguinte imagem geral. Toda situação
comunicativa evoca uma rede de espaços mentais dividida em dois planos: ground e
Domínio do Conteúdo. Esse ground não corresponde a um espaço mental único – o
Espaço Base unitário das versões anteriores da TEM –, mas a um conjunto de cinco
espaços mentais, que podem ser divididos em dois grupos: de um lado, o Espaço Real, o
Espaço de Ato de Fala e o Espaço Epistêmico (aqueles que incluem uma representação
20
Boa parte da carreira do psicólogo americano Ulric Neisser foi devotada a desenvolver esse mesmo
insight à luz da psicologia cognitiva. A esse respeito, vale a pena ler o clássico Five kinds of self
knowledge (NEISSER, 1988).
48
dos interlocutores, com suas diferentes facetas); de outro, o Espaço Metalinguístico e o
Espaço Metatextual (que não incluem tal representação). A figura abaixo, adaptada de
Ferrari e Sweetser (2012), representa essa rede:
Figura 12: Basic Communicative Spaces Network
Como enfatizam Sanders, Sanders e Sweetser (2009; 2012), a ideia central do
modelo é a de que esses espaços são aqueles dados a priori em qualquer interação
comunicativa. Quer dizer: todo ato de comunicação ocorre em um determinado espaço-
tempo, onde se situam pelo menos dois indivíduos (Base Real), que atuam como
interlocutores (Espaço de Ato de Fala), ao mesmo tempo em que são sujeitos
cognitivos, dotados de estados mentais (Espaço Epistêmico). Esses indivíduos,
recorrendo a um certo conjunto de formas linguísticas (Espaço Metalinguístico), falam
sobre um determinado assunto (Domínio do Conteúdo). Com o desenrolar do discurso,
Metalinguístico
Metatextual Ato de fala: interação
Epistêmico : processos mentais
do falante
Epistêmico : processos mentais
do ouvinte
(fisicamente presentes)
espaço real
tempo real
CONTEÚDO
Ground
Foco
Base Real
falante ouvinte
49
as informações transmitidas passam a fazer a parte da realidade imediata dos
interlocutores, podendo então ser acessadas por eles (Espaço Metatextual). A rede
formada pela soma de todos esses espaços será então chamada de Basic Communicative
Spaces Network (BCSN), já que ela é composta por espaços mentais automática e
necessariamente disponíveis – daí serem “básicos” – sempre que se instaura uma
situação comunicativa.
É a versão BCSN da Teoria dos Espaços Mentais, seu desenvolvimento mais
recente, que será empregada neste trabalho. A análise desenvolvida, contudo, não irá
lançar mão de todos os espaços que constituem essa rede. Como se verá no capítulo 4, o
contraste fundamental se dará entre o Espaço de Ato de Fala, pertencente ao Centro
Dêitico da Comunicação, e um espaço mental pertencente ao Domínio do Conteúdo.
Além disso, em algumas análises, farei referência também ao Espaço Metatextual. Em
nome da clareza visual, irei representar, em cada caso, apenas os espaços relevantes
para a análise do exemplo em pauta.
2.1.4 Mesclagem conceptual
De todas as descobertas decorrentes das pesquisas sobre espaços mentais, é
provável que a mais celebrada seja a operação cognitiva conhecida como mesclagem ou
integração conceptual (a ponto de ela ter recebido status de teoria independente, sendo
frequentemente referida como Teoria da Integração Conceptual). Esse processo, que
tem sido reconhecido como uma operação imaginativa ao mesmo tempo poderosa e
inconsciente, permite projetar elementos de cenários distintos em um cenário único,
criando mentalmente, a partir dessa fusão, um mundo alternativo. Isso não significa, a
despeito do que essa descrição sumária possa sugerir, que a mesclagem seja atributo
exclusivo da imaginação artística. Pelo contrário: trata-se do modus operandi básico do
50
pensamento ordinário, responsável, segundo se tem alegado, por conquistas evolutivas
tão profundas quanto o raciocínio matemático (NUÑEZ, 2004) e a própria linguagem
humana (FAUCONNIER; TURNER, 2008).
Tecnicamente, a operação de mesclagem envolve as seguintes etapas: (i)
estabelecimento de uma analogia entre elementos pertencentes a espaços mentais
distintos; (ii) projeção de elementos de pelos menos dois espaços mentais (espaços
input) sobre um terceiro (espaço mescla); e (iii) como resultado, produção, no espaço
mescla, de um significado novo (estrutura emergente), não presente em nenhum dos
espaços input. Para que esse processo aconteça, é necessário que existam, pelo menos,
quatro espaços mentais. A saber:
Espaço genérico: representa a estrutura abstrata comum aos espaços input,
assegurando a possibilidade de estabelecer uma vinculação entre eles.
Espaço input 1 e espaço input 2: são os espaços originais que contêm as
informações a serem projetadas e mescladas.
Espaço-mescla: espaço que recebe as informações projetadas dos espaços input,
constituindo-se, portanto, como o espaço onde se produz a estrutura emergente.
Esse processo pode ser exemplificado por meio do anúncio abaixo, parte
integrante de uma campanha publicitária lançada por uma companhia farmacêutica
norte-americana com o objetivo de popularizar o teste para detecção do vírus HIV21
.
21
Uma análise mais detalhada do anúncio pode ser encontrada em Pinheiro e Nascimento (2010).
51
(13)
Como se vê, a imagem representa uma relação sexual peculiar. Embora pareça
haver apenas duas pessoas envolvidas, é possível enxergar uma profusão de braços. O
texto do anúncio esclarece o mistério: ao dormir com alguém, você está, indiretamente,
se relacionando com todos os parceiros prévios dessa pessoa.
O interessante, porém, é que a imagem representa essas relações como se elas
fossem diretas. Quer dizer: no mundo real, cada indivíduo só se relaciona de forma
indireta – “por tabela” – com os demais parceiros do seu parceiro. Mas, no mundo
ficcional (mesclado) criado pela imagem, a situação muda de figura: tudo se passa como
se o homem e a mulher estivessem tendo contato direto com os parceiros anteriores do
outro (o que, sem dúvida, torna a argumentação muito mais contundente e convincente,
aumentando as chances de que o anúncio atinja seu objetivo). Em outras palavras,
diversas relações sexuais afastadas no tempo e no espaço são comprimidas em um único
frame espaço-temporal.
52
Isso quer dizer que o espaço genérico – aquilo que existe em comum a todos os
inputs – inclui o conceito de relação sexual (que pode ser tratado como um Modelo
Cognitivo Idealizado, nos termos de Lakoff (1987)). Ao mesmo tempo, cada input (no
esquema abaixo, I1, I2 e I3) – e, neste caso, pode-se supor uma série potencialmente
infinita de inputs – representa uma relação sexual particular. Por isso, cada um desses
espaços inclui um referente h (homem) e um referente m (mulher).
Espaço Genérico
(Relação Sexual)
Input 1
Input 2
Input 3
Figura 13: Representação do processo de integração conceptual em (13)
Todos os referentes indicados pela letra m são ligados por uma relação simples
de identidade, indicando que se trata da mesma pessoa física. O mesmo não acontece
com os referentes indicados pela letra h: eles também são conectados entre si, mas não
por corresponderem à mesma pessoa, e sim por desempenharem o mesmo papel,
h1
m1 h2
m2
h3
m3
h1
h2 h3
m’
h m
53
previsto no espaço genérico: o de parceiro masculino da relação sexual. Uma vez
conectados, todos esses homens (h1, h2 e h3) são projetados, juntos, no espaço mescla,
o que transparece na imagem. Como resultado, produz-se no espaço mescla um
significado que não existia em nenhum dos espaços input: uma relação com múltiplos
parceiros. Esta é, portanto, a estrutura emergente.
Nesta tese, procurarei demonstrar que alguns enunciados VS exibem um tipo
específico de mesclagem, que envolve a fusão de dois pontos de vista distintos. Trata-se
de um fenômeno que já foi identificado em casos de discurso indireto livre, como
mostram os exemplos abaixo.
(14) She closed the door in Mommy’s face.
(15) They now saw, tied to the fence, Ratliff’s buckboard and team. (William
Faulkner, The Hamlet).
No primeiro exemplo, discutido em Sanders, Sanders e Sweetser (2009, p. 27),
consideremos apenas a interpretação segundo a qual a sentença se refere à mãe do
agente representado pelo pronome “she” (e não à mãe do falante ou narrador). Nesse
caso, sua interpretação envolve dois pontos de vista distintos: o do narrador, marcado
pela terceira pessoa “She”, e o do agente/personagem, sinalizado pela escolha da forma
“Mommy” (quando o narrador tenderia a optar por algo como “her mother”).
Também no segundo exemplo, discutido em Nikiforidou (2012), temos um
evento construído, simultaneamente, a partir de duas perspectivas: enquanto o tempo
verbal da forma “saw” aponta para o ponto de vista do narrador, o dêitico “now” invoca
a perspectiva dos personagens referidos pelo pronome “they”, fazendo com que o
evento seja interpretado “como experienciado, em vez de relatado” (NIKIFORIDOU,
2012).
54
No capítulo 4, procurarei mostrar que um fenômeno semelhante de mesclagem
de pontos de vista pode ser verificado em alguns usos da construção verbo-sujeito,
aproximando-a, talvez de forma surpreendente, dos casos de discurso indireto livre.
2.2 Gramática Cognitiva
Assim como a Teoria dos Espaços Mentais, também a Cognitive Grammar de
Ronald Langacker começou a ser desenvolvida nos anos 70, inicialmente sob o rótulo
de Space Grammar. Sua motivação original foi a constatação de que as “guerras
linguísticas”, que então se desenrolavam entre os adeptos da Semântica Gerativa e da
Semântica Interpretativa, haviam se revelado uma disputa inócua. Nas palavras do
autor, era necessária “uma maneira inteiramente nova de pensar a linguagem”
(LANGACKER, 2007, p. 421). Com o tempo, porém, o que era marginal acabou se
tornando, em alguma medida, mainstream – ou, no mínimo, mais natural e palatável. E
o modelo desenvolvido por Langacker, inicialmente de forma independente, acabou por
se integrar à empreitada mais ampla da Linguística Cognitiva. O que é apenas
previsível, dado seu compromisso com a premissa central da LC: a ideia de que a
gramática “reflete nossa experiência básica de movimentação, percepção e ação sobre o
mundo” (LANGACKER, 2008, p. 4).
Diante disso, não surpreende que um dos conceitos centrais da Gramática
Cognitiva seja o de construal, ou conceptualização, que se refere à maneira como um
determinado cenário é construído ou conceptualizado pelo sujeito. A ideia fundamental
aqui é a de que podemos “enxergar” uma mesma cena de diferentes formas. Não se
trata, claro, de uma habilidade especificamente – ou mesmo primariamente – linguística.
Por exemplo: durante uma aula, tomando uma determinada região da sala como a
totalidade do meu campo visual, posso optar por focalizar o aluno que me olha com
55
interesse ou seu colega, logo ao lado, que parece dormir. Ou ainda: ao ouvir uma
música, posso me concentrar especificamente nos sons produzidos pela guitarra ou pelo
baixo. Em cada caso, a situação objetivamente acessada é a mesma (no primeiro
exemplo, uma região específica da sala de aula, incluindo seus ocupantes; no segundo,
uma determinada música), mas o sujeito a constrói de modos distintos conforme opta
por (ou é levado a) alocar a maior parte da sua atenção sobre uma ou outra parte da
cena.
Do ponto de vista da LC, o que realmente importa é o fato de que essa
habilidade se reflete na gramática, motivando frequentemente a escolha de uma ou outra
forma linguística. Exemplos clássicos são a alternância ativa/passiva ou a chamada
alternância ergativa (por exemplo, o menino quebrou o copo e o copo quebrou). Nesse
sentido, uma maneira simples de explicar a diferença semântica entre Liana devorou
todas as revistas e Todas as revistas foram devoradas por Liana envolve uma alteração
na proeminência relativa dos participantes da cena: ainda que as duas sentenças
evoquem um mesmo cenário objetivo (seu “valor de verdade” é idêntico), seu conteúdo
é construído ou conceptualizado de formas distintas pelo falante (e, consequentemente,
pelo ouvinte).
Langacker (2008) enumera quatro grandes tipos de operações de
conceptualização (ou “construal operations”), identificados a partir das seguintes
categorias semânticas: especificidade, focalização, proeminência e perspectiva22
. No
capítulo 5 desta tese, ao descrever o polo semântico da construção VS, irei lançar mão,
22
Essa divisão – como qualquer outra tentativa de catalogar e classificar essas operações – é em larga
medida arbitrária. Verhagen (2007) compara as tipologias propostas por Langacker (1987), Talmy (2000),
Croft e Cruse (2004) e Langacker (2007) para ao final demonstrar, convincentemente, que “um esquema
classificatório geral para as operações de conceptualização não é exequível” (VERHAGEN, 2007, p. 49).
Langacker (2007) parece concordar com essa posição, ao observar que classificações dessa natureza são
utilizadas apenas por uma questão de conveniência didática.
56
especificamente, de conceitos relacionados à categoria de proeminência. É dessa
categoria, portanto, que se ocupa a próxima seção.
2.2.1 Proeminência focal: a questão do perfilamento
Langacker (2008) identifica dois tipos de relações conceptuais ligadas à noção
de proeminência: a dicotomia base/perfil e o alinhamento trajetor/marco. Aqui, vou me
limitar à primeira dessas relações, uma vez que as noções de trajetor e marco não serão
recrutadas mais adiante para descrever a semântica da construção VS.
Na Gramática Cognitiva langackeriana, uma apresentação inicial dos conceitos
de base e perfil costuma partir de exemplos visuais, e mesmo geométricos, o que se
explica tanto pelo potencial didático desses exemplos quanto pelo próprio espírito da
Cognitive Gramar, que tende a enfatizar o papel das habilidades perceptuais humanas
(vale lembrar que o nome original da teoria era Space Grammar). Com efeito, dois
exemplos citados frequentemente para distinguir as noções de base e perfil são as
palavras “hipotenusa” e “raio” (no seu sentido geométrico).
O ponto fundamental aqui é o seguinte: compreender a ideia de hipotenusa
pressupõe, necessariamente, que se entenda o conceito de triângulo retângulo (o mesmo
vale, claro, para a noção de circunferência em relação à palavra “raio”). A figura abaixo
representa, no estilo langackeriano, o significado da palavra “hipotenusa”:
Figura 14: Esquema de HIPOTENUSA, segundo a Gramática Cognitiva
57
A figura acima traduz a ideia de que o conceito de hipotenusa depende
inapelavelmente de alguma referência à noção de triângulo retângulo. Com efeito, uma
linha em tudo idêntica àquela destacada na figura 14, mas sem o triângulo fundo, não
seria uma hipotenusa: seria apenas uma reta. Nos termos da Cognitive Grammar, a parte
destacada do esquema é chamada de perfil (“profile”): trata-se do conceito diretamente
representado pela palavra. Por outro lado, a área sem destaque gráfico corresponde ao
domínio conceptual pressuposto: um aspecto do “conhecimento de mundo” que, embora
não seja diretamente referido pela palavra “hipotenusa”, deve necessariamente ser
evocado para que essa palavra seja interpretada adequadamente. A esse domínio
pressuposto, Langacker se refere como base (“base”)23
. Nesse sentido, a diferença entre
“hipotenusa” e (digamos) “cateto maior” é entendida como uma questão de
perfilamento: ambos os termos evocam a mesma base, mas perfilam porções distintas.
Ainda nos termos da Gramática Cognitiva, o par base / perfil está relacionado à
diferença entre designação e predicação. O verbo “predicar” é utilizado para fazer
referência à totalidade do polo semântico de uma unidade linguística: no caso da palavra
“hipotenusa”, diremos que ela predica toda a cena representada na figura 14. O verbo
“designar”, contudo, diz respeito apenas à parte perfilada da predicação: assim, diremos
que o substantivo “hipotenusa”, embora predique o triângulo retângulo como um todo,
designa (ou perfila) apenas o seu lado maior.
Embora, como já ficou dito, a gramática langackeriana recorra com frequência a
exemplos marcadamente visuais, é evidente que seus conceitos deverão se aplicar a
quaisquer domínios de experiência. Isso pode ser ilustrado por outro exemplo clássico:
os substantivos que se referem a formas de parentesco. Os esquemas abaixo, adaptados
23
Nesse sentido, como observam Croft e Cruse (2004), o conceito langackeriano de base não se distingue
fundamentalmente do frame fillmoreano.
58
de Langacker (2008, p. 67), representam o aporte semântico das palavras “pai” e
“filho”:
Figura 15: Esquema de PAI, Figura 16: Esquema de FILHO,
segundo a Gramática Cognitiva segundo a Gramática Cognitiva
Como mostram os diagramas acima, as palavras “pai” e “filho” evocam uma
mesma base: um domínio abstrato que corresponde a um determinado tipo de relação
familiar. A diferença entre esses substantivos, portanto, diz respeito ao perfilamento:
cada um deles designa uma porção distinta desse domínio abstrato.
Se a distinção langackeriana entre base e perfil se mostra útil na área da
semântica lexical, talvez seja no campo da sintaxe – ou, mais precisamente, da interface
sintaxe-semântica – que seu poder explicativo se revele de forma mais instigante.
Langacker (1991, p. 332-333) mostra como esses conceitos podem explicar um caso
clássico de “alternância de valência”. Observem-se as sentenças abaixo24
:
(16) a. O ladrão abriu a porta com o pé-de-cabra.
b. O pé-de-cabra abriu a porta.
c. A porta abriu
24
Essa discussão pode ser vista também em Leitão et alii (2009, p. 29-31).
59
A ideia central é a seguinte: essas três sentenças fazem referência a uma mesma
base, mas estabelecem perfilamentos distintos a partir dela. A base, aqui, não é um
cenário específico no qual um ladrão usa um pé-de-cabra para abrir a porta (formulada
com esse grau de detalhamento, ela não se aplicaria necessariamente a (16b) ou a (16c)),
mas uma cena arquetípica abstrata: uma cadeia causal cujo fluxo de energia se origina
no agente, passa por um instrumento e termina no tema. Os diagramas abaixo
representam a configuração semântica de cada sentença25
:
a.
b.
c.
Figura 17: Perfilamentos possíveis da cadeia agentiva, segundo Langacker (1991)
No esquema correspondente a (16a), a totalidade da cadeia causal é perfilada:
aqui, portanto, o perfil coincide com a base. Nos outros casos, o perfilamento é parcial:
em (16b), apenas o agente fica pressuposto, ao passo que em (16c) tanto o agente
quanto o instrumento pertencem à base. Em resumo, a alternância de valência ilustrada
25
Os círculos pontilhados indicam participantes que podem ou não ser expressos sintaticamente.
60
em (16a) a (16c) reflete, na forma sintática, diferentes possibilidades de construção ou
conceptualização de um mesmo cenário: a cadeia causal arquetípica representa nos
diagramas da figura 1726
.
Os exemplos discutidos até aqui devem ter dado uma boa ideia do tratamento
langackeriano para a categoria de proeminência – e, em particular, para os conceitos de
base e perfil. No capítulo 5 desta tese, esses conceitos serão mobilizados para descrever
o polo semântico da construção verbo-sujeito.
2.3 Gramática de Construções
Qualquer apresentação da Gramática de Construções (GC) deve começar com
uma ressalva: não existe apenas uma GC, mas um conjunto razoavelmente heterogêneo
de abordagens construcionais da gramática. Com efeito, é possível contabilizar pelo
menos os seguintes modelos: a Unification Construction Grammar, associada
principalmente aos nomes de Charles Fillmore e Paul Kay; a Radical Construction
Grammar, proposta por William Croft (CROFT, 2001); a Cognitive Construcion
Grammar, desenvolvida sobretudo por Adele Goldberg a partir do trabalho pioneiro de
George Lakoff (LAKOFF, 1987; GOLDBERG, 1995; 2006); a Embodied Construction
Grammar, proposta por Benjamin Bergen e Nancy Chang (BERGEN; CHANG, 2005);
e a abordagem de Mandelblit (1997), baseada em espaços mentais e integração
26
Langacker (1991) demonstra, convincentemente, as vantagens dessa abordagem. No hoje clássico The
case for case, Fillmore (1968) propõe sua famosa hierarquia temática para a determinação do sujeito:
AGENTE > INSTRUMENTO > TEMA. Ou seja: numa sentença que contenha agente, instrumento e
tema, o primeiro será o sujeito; caso o agente não esteja presente, a relação de sujeito será desempenhada
pelo instrumento; por fim, o tema só será sujeito no caso de os outros dois papéis temáticos estarem
indisponíveis. O interessante é notar que, à luz da abordagem langackeriana, que lança mão das noções de
base e perfil, essa hierarquia não precisa ser postulada. Em vez disso, ela pode ser apreendida a partir da
seguinte formulação geral: o papel de sujeito será desempenhado pelo elemento conceptual mais próximo
da origem do fluxo de energia dentre os elementos perfilados.
61
conceptual. Como se não bastasse, a própria Gramática Cognitiva de Ronald Langacker
(1987; 1991; 2008) tem sido tratada como uma vertente da GC27
.
Feita essa ressalva, é o caso de perguntar: o que todas essas abordagens têm em
comum? De imediato, é possível responder pela negação: a perspectiva construcional
recusa a concepção gerativista segundo a qual a gramática das línguas naturais consiste
em um conjunto de regras aplicadas sobre itens lexicais. Mas há ainda a resposta
positiva: a despeito das divergências, todas as linhagens da GC compreendem a
gramática como uma rede estruturada de construções gramaticais, entendidas como
pareamentos convencionais de forma e significado.
Como enfatizam diversos praticantes da GC (FILLMORE; KAY; O’CONNOR,
1988; GOLDBERG, 2006; CROFT, 2007), a noção de construção gramatical está
presente, ainda que de forma intuitiva e pré-teórica, nos estudos gramaticais
tradicionais, tendo sido responsável pelos “maiores avanços no estudo da gramática
desde os antigos estoicos” (GOLDBERG, 2006, p. 1)28
. No entanto, com o
desenvolvimento da linguística gerativa, em especial a partir da década de 70, essa
noção foi destituída de qualquer estatuto teórico relevante, passando a ser vista como
mero epifenômeno. A seguinte passagem de Chomsky (1993, p. 4) é especialmente
elucidativa a esse respeito:
“A GU [Gramática Universal] fornece um sistema de princípios fixos
de parâmetros cujas possibilidades de marcação são limitadas. As
27
Comparações entre esses modelos têm sido relativamente frequentes na literatura especializada, e
podem ser encontradas em Croft e Cruse (2004, cap. 10), Goldberg (2006, cap. 10), Evans e Green (2006,
cap. 20) e Croft (2007).
28
Em outro lugar (PINHEIRO, 2007), dei o seguinte exemplo de emprego intuitivo da noção de
construção gramatical brasileira na tradição gramatical brasileira: a Gramática Contemporânea da Língua
Portuguesa (CUNHA; CINTRA, 1994) faz referência ao padrão formal “predicativo + verbo”,
associando-o diretamente, entre outros fatores, à expressão de afetividade. Trata-se de um tipo de análise
próprio às abordagens construcionais, ainda que, naturalmente, esse tipo de afirmação não esteja
fundamentado em um modelo teórico-descritivo explícito.
62
regras particulares a uma determinada língua se reduzem à escolha de
valores dentro desses parâmetros. A noção de construção gramatical é
eliminada – e, com ela, as regras particulares a uma determinada
construção.”
Se, a partir da década de 1970, a gramática gerativa passa a se mover
consistentemente em direção a regras sintáticas cada vez mais gerais e abstratas, o
contraponto a essa opção não demora a aparecer. E ele vem na forma do hoje clássico
Innocence: a second idealization in linguistics, artigo publicado por Charles Fillmore
em 1979. Nesse texto, o autor estabelece uma analogia com a celebrada idealização
chomskiana do falante/ouvinte ideal (aquele que pertence a uma comunidade linguística
homogênea e não é perturbado por problemas de desempenho). Fillmore sustenta que os
linguistas estariam operando também, e inadvertidamente, com uma segunda
idealização, que deveria ser explicitada: a do falante/ouvinte inocente.
Em resumo, o falante/ouvinte inocente é um indivíduo capaz de construir ou
decodificar sentenças composicionais – com base no conhecimento de suas partes e
princípios de organização –, mas inapto para compreender e produzir enunciados que
contenham algum grau de opacidade. Ao mostrar que um indivíduo como este teria sua
fluência seriamente comprometida, Fillmore chama a atenção para algo vinha passando
despercebido: o fato de que a idiomaticidade é um fenômeno muito mais central, e
recorrente, do que se costuma – ou se costumava – supor.
É o interesse por usos idiomáticos que abre espaço para o primeiro momento da
Gramática de Construções, capitaneado por Charles Fillmore e Paul Kay. A razão é
simples: como padrões idiomáticos não podem ser explicados a partir princípios gerais
de composição semântica, é preciso descrevê-los individualmente, compreendendo-os
como uma estrutura formal direta e convencionalmente associada a algum tipo de
63
especificação semântico-pragmática. Em uma palavra, é preciso tratá-los como uma
construção gramatical.
Um exemplo desse tipo de investigação é o estudo sobre a construção WXDY,
sigla para What’s X doing Y?, desenvolvido por Paul Kay e Charles Fillmore (KAY;
FILLMORE, 1999). Segundo os autores, a construção WXDY, ilustrada por sentenças
como (17) e (18), é um padrão formal convencionalmente associado a um conteúdo
semântico-pragmático próprio: a noção de incongruência, surpresa ou mesmo
repreensão.
(17) Waiter, what is this fly doing in my soup?
(18) What was Mary doing under the bed?
Como observam os autores, alguém poderia alegar que a postulação de uma
construção gramatical independente seria desnecessária, já que o significado de (17) e
(18) poderia, em tese, ser calculado com os instrumentos da pragmática griceana. Basta
pensar que o juízo de valor negativo (diante de uma situação vista como inapropriada)
só emerge quando alguém já sabe, por exemplo, o que Mary estava fazendo debaixo da
cama – ou seja, quando não se trata de uma pergunta sincera. Nesse caso, a pergunta
violaria a máxima da quantidade, o que levaria por implicatura ao significado
pretendido – na paráfrase de Fillmore e Kay, algo como “How come Mary is under the
bed?”.
Embora os autores reconheçam que esse mecanismo está, provavelmente, na
origem da construção WXDY, eles mostram que nem sempre o significado de seus usos
concretos pode ser obtido pela via griceana. Fundamentais para comprovar esse ponto
são exemplos como (19), (20) e (21), abaixo. Fillmore e Kay lembram que a implicatura
64
pressupõe, em um primeiro momento, a construção de um sentido literal, a ser
posteriormente recusado em virtude da violação a alguma máxima conversacional. No
entanto, como nesses exemplos o referente do sujeito é inanimado, sequer existe algum
sentido literal prévio que possa ser construído.
(19) What is this scratch doing on the table?
(20) What do you think your name is doing in my book?
(21) I wonder what the salesman will say this house is doing without a kitchen.
A moral da história é a seguinte: o significado de sentenças como (19) a (21) não
pode ser obtido por meio de princípios semântico-pragmáticos mais gerais. Por essa
razão, o padrão WXYD deve ser postulado como uma unidade linguística independente
– vale dizer, uma construção gramatical.
O trabalho de Wierzbicka (1987) aponta na mesma direção. Vejamos os usos
abaixo:
(22) Boys will be boys.
(23) Students will be students.
Assim como ocorre com a construção WXDY (ao menos, em algumas
instâncias), também a interpretação de (22) e (23) pareça estar relacionada à violação
máxima de quantidade – neste caso, a máxima da quantidade. A autora, porém, chama a
atenção para o fato de que essas sentenças não poderiam ser traduzidas literalmente em
uma série de línguas – o que, por si só, é sintomático do seu caráter convencional. Isso
65
fica ainda mais evidente quando se observa que, mesmo em inglês, usos como (24) e
(25) não são possíveis.
(24) *Wars will be wars.
(25) *Business will be business.
Essa impossibilidade não pode ser prevista em uma abordagem que conte apenas
com princípios pragmáticos gerais. É por isso que a autora postula a existência de uma
construção gramatical independente com a forma Nplural will be Nplural e uma
especificação semântica associada à ideia de “tolerância com a natureza humana”
(WIERZBICKA, 1987, p. 106). Apenas dessa maneira é possível explicar a
gramaticalidade de (22) e (23), em oposição à agramaticalidade de (24) e (25).
Os exemplos discutidos até aqui ilustram, em suma, o seguinte ponto: o conceito
de construção gramatical é necessário para dar conta de usos que exibem algum grau de
idiomaticidade, uma vez que eles não podem ser explicados a partir de princípios gerais
de combinação sintática e interpretação semântico-pragmática. A GC, no entanto, não
alcançaria a maturidade até que um segundo passo fosse dado: a generalização do
conceito de construção gramatical para a totalidade dos usos linguísticos, aí incluídas
as sentenças perfeitamente composicionais da “core gramar”. Vejamos os exemplos
abaixo:
(26) Liana arremessou o gato para fora do quarto.
(27) Rafinha cabeceou a bola para o gol.
66
Ao contrário dos exemplos (19) a (23), as sentenças em (26) e (27) não são
inerentemente problemáticas para modelos composicionais. Em linhas gerais,
abordagens desse tipo tendem a assumir que a interpretação de expressões causativas
resulta da combinação de duas predicações: uma estabelecida pelo verbo (Liana
arremessar o gato; Rafinha cabecear a bola) e a outra, pela preposição (gato para fora
do quarto; bola para o gol). A ideia é a de que cada predicador conta com sua própria
estrutura de evento: o verbo exprime um processo, ao passo que a preposição indica um
lugar. Assim, a combinação das duas predicações, viabilizada pelo fato de que os
predicadores compartilham um argumento comum, resulta na interpretação de mudança
de lugar.
Neste ponto, cabem duas observações. Em primeiro lugar, é preciso notar que as
sentenças acima também são passíveis de um tratamento construcional. Para isso, basta
postular um esquema sintático geral (sujeito + objeto + oblíquo) associado a uma
configuração semântica específica, na qual uma causa externa (que corresponde
sintaticamente ao sujeito) provoca o deslocamento de um tema (correspondente ao
objeto) em direção a um alvo (que se manifesta como um oblíquo). O caráter inovador
dessa proposta não deve passar despercebido: ela implica a associação direta entre uma
forma sintática abstrata – ou seja, sem qualquer tipo de especificação fonológica/lexical
– e um determinado conteúdo semântico. Sob esse ponto de vista, os usos em (26) e
(27) serão tratados como instâncias de um mesmo padrão sintático-semântico geral, que
tem sido chamado de construção de movimento causado (GOLDBERG, 1995).
Mas há ainda um segundo ponto, talvez mais relevante para a argumentação
desenvolvida aqui. Como mostra Goldberg (1995, cap. 7), abordagens composicionais
como aquela esboçada acima esbarram em algumas dificuldades. Uma delas é ilustrada
pelas sentenças (28) e (29), abaixo.
67
(28) Kiko espirrou o guardanapo para fora da mesa.
(29) Aírton correu as crianças para fora do quarto.
O problema de explicar (28) e (29) de maneira análoga ao tratamento
composicional esboçado para (26) e (27) é o seguinte: como “espirrar” e “correr” são
verbos monoargumentais, não é possível postular uma predicação do tipo “Kiko espirrar
o guardanapo” ou “Aírton correr as crianças”, cujo segundo argumento seria
compartilhado com a predicação estabelecida pela preposição. Sem esse
compartilhamento, perde-se o link entre as duas estruturas de evento, inviabilizando a
regra composicional29
.
Diante desse tipo dificuldade, como nota Goldberg (1995, p. 156), uma solução
típica seria postular sentidos adicionais para cada um dos verbos (acrescentando alguma
nuance causativa). Embora uma saída desse tipo acabe, na prática, por explicar a
possibilidade de usos como (28) e (29), ela incorre no problema óbvio da falta de
economia descritiva: no extremo, essa solução poderia conduzir a uma proliferação
desenfreada de sentidos novos (e frequentemente implausíveis) para um sem-número de
verbos, o que é no mínimo contraintuitivo.
Em uma abordagem construcional, ao contrário, (28) e (29) não constituem um
problema. Isso porque a semântica de movimento causado é atribuída direta e
convencionalmente ao próprio esquema sintático abstrato. A ideia que emerge aqui,
portanto, é a de que o significado do enunciado decorre de uma divisão de tarefas entre
os itens lexicais (privilegiadamente, o verbo) e a construção gramatical abstrata. No
caso de (28), por exemplo, a divisão se dá nos seguintes termos: o evento expresso pelo
padrão sintático (“fazer mover”, ou seja, a própria noção de movimento causado) é
29
Goldberg (1995, cap. 7) mostra que alguns autores procuraram apontar saídas para esse tipo de
dificuldade e discute, com algum aprofundamento, as inconsistências das soluções propostas.
68
entendido como resultado do evento expresso pelo verbo (ou, inversamente, o evento
expresso pelo verbo – o ato de espirrar – é o meio que viabiliza o evento expresso pela
construção).
Em resumo, a discussão dos exemplos (26) a (29) deve ter servido para
evidenciar as vantagens de uma abordagem construcional mesmo nos casos em que se
está diante de usos perfeitamente regulares e previsíveis, como (26) e (27). As
implicações teóricas dessa proposta não são nada desprezíveis. Ao fim e ao cabo, a lição
que ela deixa é a seguinte: o conceito de construção gramatical, identificado
originalmente com os usos em alguma medida idiomáticos / opacos / irregulares, pode
ser facilmente estendido para explicar enunciados perfeitamente regulares e
composicionais.
Como resultado, emerge uma concepção inovadora de gramática, que passa a ser
entendida como um repositório imensamente vasto e altamente estruturado de
construções gramaticais. Sob esse ponto de vista, a totalidade do conhecimento
gramatical do falante pode ser representada por meio de pareamentos de forma e
significado: para citar o slogan de Goldberg (2003, p. 223), temos “constructions all the
way down”. Essa ideia é ilustrada pela tabela abaixo, retirada de Goldberg (2003, p.
220):
69
CONSTRUÇÃO FORMA/EXEMPLO FUNÇÃO
Morfema ex. anti-, pre-, -ing
Palavra ex. Avocado, anaconda, and
Palavra complexa ex. Daredevil, shoo-in
Idioma (preenchido) ex. Going great guns
Idioma (parcialmente preenchido)
ex. Jog (someone’s) memory
Construção condicional co-variacional
Forma: The Xer the Yer(ex. The more you think about it, the less you understand)
Significado: variáveis dependente e independente conectadas
Construção bitransitiva (objeto duplo)
Forma: Suj [V Obj1 Obj2] (ex. He gave her a Coke; He baked her a muffin)
Significado: transferência (real ou pretendida)
Passiva
Forma: Suj aux VPpp (PPby) (ex. The armadillo was hit by a car)
Função discursiva: tornar o paciente tópico e/ou o agente não-tópico
Tabela 3: Continuum de construções gramaticais, segundo Goldberg (2003)
Essa nova compreensão acarreta algumas rupturas. Notadamente, deixam de
fazer sentido dicotomias como léxico / sintaxe (ou gramática) e idiomaticidade /
composicionalidade. Afinal, do ponto de vista da GC, não há distinção qualitativa entre
palavras, padrões idiomáticos (inteira ou parcialmente preenchidos) e esquemas
sintático-semânticos abstratos: trata-se, em todos os casos, de construções gramaticais.
A distinção entre elas não é de tipo, mas de grau: como se vê na tabela acima, existe um
continuum de preenchimento fonológico cujos extremos são, de um lado, as construções
inteiramente preenchidas (ilustradas nas quatro primeiras linhas da tabela) e, de outro,
os padrões totalmente abertos (ilustrados nas duas últimas linhas).
No cenário das abordagens construcionais, o modelo desenvolvido por Goldberg
(1995; 2006) se ocupa, privilegiadamente, das construções inteiramente abertas – e, em
70
especial, das chamadas construções de estrutura argumental. Como o nome sugere,
trata-se de esquemas sintático-semânticos que representam grades temático-
argumentais. Na tabela acima, essa classe de construções está ilustrada pelo padrão
bitransitivo (“objeto duplo”), na penúltima linha. Esse padrão inclui três argumentos
sintáticos (sujeito, objeto 1 e objeto 2), que se ligam – embora a tabela não mostre – a
três papéis semânticos (agente, beneficiário e paciente). Outro exemplo discutido aqui é
a construção de movimento causado, que subjaz às sentenças (26) a (29). Como vimos,
ela associa as relações gramaticais de sujeito, objeto e oblíquo aos papéis semânticos de
causa, tema e alvo.
No capítulo 5 deste trabalho, é a vertente goldbergiana da GC, às vezes referida
como Cognitive Construction Grammar, que será utilizada para descrever a ordem VS
como uma construção gramatical do português brasileiro. Embora se trate de um
esquema sintático inteiramente aberto (sem especificação lexical), o padrão verbo-
sujeito certamente não se qualifica como uma construção de estrutura argumental. A
rigor, ele se assemelha mais à construção passiva (última linha do quadro acima) do que
a construções como a bitransitiva ou a de movimento causado. Apesar disso, procurarei
mostrar, no capítulo 5, que o modelo desenvolvido por Goldberg pode ser útil para
capturar algumas generalizações relevantes acerca da ordem VS no PB. Dada a sua
importância para este trabalho, as linhas gerais desse modelo são apresentadas na
próxima seção.
2.3.1 A Cognitive Construction Grammar (GOLDBERG, 1995; 2006)
Como já ficou dito, o modelo goldbergiano foi desenvolvido para dar conta das
construções de estrutura argumental. Especificamente, Goldberg (1995) investiga, de
71
forma particularmente detalhada, três construções de estrutura argumental do inglês: a
construção bitransitiva, a construção de movimento causado e a construção resultativa.
Um dos pontos de partida da autora é a Hipótese da Codificação de Cenas
(“Scene Encoding Hypothesis”). Segundo essa hipótese, construções de estrutura
argumental representam cenas básicas da experiência humana: gestalts experienciais
que correspondem a tipos de eventos definidos de forma bastante geral e abstrata, tais
como “alguém causando algo, alguém experienciando algo, algo se movendo, algo em
um determinado estado, alguém possuindo algo, algo causando uma mudança de estado
ou locação e algo produzindo um efeito sobre alguém” (GOLDBERG, 1995, p. 39). No
que se refere às três construções estudadas com maior profundidade em Goldberg
(1995), suas cenas básicas estão sintetizadas na tabela abaixo, bem como sua forma
sintática:
CONSTRUÇÃO FORMA SIGNIFICADO EXEMPLO
Construção ditransitiva
SUJ V OBJ1 OBJ2
X FAZER Y RECEBER Z
She gave John a cake
Construção de
movimento causado
SUJ V OBJ OBL
X FAZER Y
MOVER-SE PARA Z
Frank kicked the dog
into the bathroom
Construção resultativa
SUJ V OBJ OBL
X FAZER Y
TORNAR-SE Z
He wiped thetable clean
Tabela 4: Caracterização informal das construções de estrutura argumental (GOLDBERG, 1995)
No modelo goldbergiano, os elementos semânticos associados aos eventos
expressos por uma construção são chamados de papéis argumentais. Em alguma
medida, eles coincidem com os papéis temáticos tradicionais, como agente, tema, alvo,
72
etc. É importante, porém, resistir à tentação de equacionar essas duas categorias, como
se fossem apenas rótulos distintos para conceitos idênticos. Definitivamente, este não é
o caso, e por duas razões relacionadas. Em primeiro lugar, papéis temáticos são
tipicamente entendidos como primitivos teóricos universais e largamente independentes
das suas propriedades distribucionais. Papéis argumentais, ao contrário, não existem a
priori, independentemente das construções das quais fazem parte. Na verdade, eles
devem ser pensados como rótulos úteis para capturar o papel relativo de cada elemento
conceptual na cena básica subjacente à construção. E é isso que conduz à segunda
diferença. Como os papéis argumentais são definidos “em termos de exigências
semânticas de construções particulares”, eles tenderão a ser “mais específicos e mais
numerosos que os papéis temáticos tradicionais”30
(GOLDBERG, 2006, p. 39).
Em uma construção de estrutura argumental, cada papel argumental é vinculado
a uma relação gramatical (papel sintático). A título de ilustração, vejamos como é
representado o alinhamento sintaxe-semântica da construção de movimento causado:
Sem FAZER-MOVER < causa alvo tema >
PRED < >
Sin
V
SUJ
OBL
OBJ
Figura 18: Representação da construção de movimento causado (GOLDBERG, 1995)
Sintetizando, temos até aqui a seguinte situação. A construção de movimento
causado reflete uma gestalt experiencial básica que pode ser capturada pela expressão
30
Este é um ponto de convergência extremamente relevante entre a Cognitive Construcion Grammar de
Adele Goldberg e a Radical Construction Grammar de William Croft.
73
algo causando uma mudança de locação – ou, de modo menos informal, pela
proposição “X fazer Y mover-se para Z”. Cada um dos três elementos conceptuais
presentes nessa cena corresponde a um papel argumental disponível no polo semântico
da construção: causa, tema e alvo. Além disso, cada um desses papéis se vincula a uma
representação sintática presente no polo formal: respectivamente, sujeito, objeto direto e
oblíquo. Por fim, o tipo de evento abstrato representado pela construção associa-se ao
slot sintático destinado ao verbo. Nesta tese, recorrerei a esse tipo de representação,
próprio do modelo goldbergiano, a fim de formalizar a construção verbo-sujeito do
português brasileiro.
2.3.1.1 Princípios psicológicos de organização da linguagem
Goldberg (1995) elenca um conjunto de quatro princípios psicológicos que
ajudam a moldar a rede construcional das línguas naturais. Para este trabalho, apenas
dois deles são diretamente relevantes: o Princípio da Motivação Maximizada e o
Princípio da Não-sinonímia. Ambos regulam a relação entre forma e função.
O Princípio da Motivação Maximizada estabelece uma associação entre
afinidade formal e afinidade semântica. De acordo com esse princípio, se duas
construções são relacionadas sintaticamente, então elas também manifestarão algum
vínculo de significado. No capítulo anterior, como vimos, eu sugeri que o português
brasileiro exibe um conjunto de nove construções gramaticais de inversão do sujeito.
Dado que todas manifestam a ordem linear verbo-sujeito, é de se esperar, a julgar pelo
Princípio da Motivação Maximizada, que elas estejam semanticamente conectadas, em
maior ou menor grau. Para os propósitos desta tese, este é o princípio menos relevante
dentre os dois mencionados acima: ele voltará a aparecer apenas no capítulo 7, dedicado
74
às considerações finais, quando retomarei a ideia de que o elenco de construções VS do
português brasileiro constitui uma família de construções inter-relacionadas.
Mais importante aqui é o segundo princípio goldbergiano, que consiste em um
mecanismo anti-sinonímia. No interior de diferentes quadros teóricos, e movidos por
interesses diversos, muitos pesquisadores já chamaram a atenção para o fato de que as
línguas tendem a evitar sinônimos perfeitos. É conhecida a declaração de Bolinger
(1977, p. ix) segundo a qual “toda palavra cuja sobrevivência é permitida pela língua
deve fazer a sua contribuição semântica”. Nessa trilha, mas trabalhando na seara da
aquisição da linguagem, Clark postula o seu Princípio do Contraste, segundo o qual
“Palavras diferentes significam coisas diferentes. Quer dizer, em se tratando de
linguagem, onde quer que haja uma diferença na forma haverá uma diferença no
significado” (CLARK, 1987, p. 1 [grifo no original]).
No âmbito específico da Gramática de Construções, Croft (2001, p. 111)
também propõe o seu Princípio do Contraste, formulado nos seguintes termos: “se duas
estruturas gramaticais ocorrem na mesma língua para descrever a ‘mesma’ experiência,
elas irão se diferenciar quanto à conceptualização dessa experiência, de acordo com as
diferenças entre as estruturas”. O Princípio da Não-sinonímia nada mais é que a versão
goldbergiana desse insight. Resumidamente, ele sustenta o seguinte: “Se duas
construções são sintaticamente distintas, elas também deverão ser semântica ou
pragmaticamente distintas” (GOLDBERG, 1995, p. 67)31
.
31
Pode ser interessante observar que linguistas de inclinação formalistas também têm recorrido à mesma
ideia básica. No âmbito da morfologia gerativa, por exemplo, Aronoff (1976) sugere (ou resgata) o
mecanismo de bloqueio, segundo o qual uma nova palavra não poderá ser criada caso já exista uma outra
palavra no léxico capaz de cumprir a mesma função. No terreno da linguística histórica, Kroch (1994),
citando explicitamente o bloqueio de Aronoff como fonte de inspiração, expande essa noção para
estruturas sintáticas: o autor sugere que a existência de dois padrões estruturais semanticamente
equivalentes, funcionando como “dublês” sintáticos, deverá gerar uma situação de instabilidade capaz de
conduzir à mudança linguística.
75
O arsenal teórico-descritivo da Linguística Cognitiva, ao permitir a detecção de
nuances de significado frequentemente sutis, tem se mostrado especialmente bem
sucedido na tarefa de evidenciar diferenças semânticas entre estruturas sintáticas que
pareciam perfeitamente equivalentes. Um exemplo recente interessante é o estudo de
Almeida e Ferrari (2012) sobre as construções de complementação epistêmica do inglês.
Nesse trabalho, as autoras procuram evidenciar a diferença pragmática entre as
construções de complementação epistêmica com e sem o complementizador “that”.
Partindo do princípio goldbergiano da não-sinonímia, a pergunta que elas se colocam é
a seguinte: qual a diferença de significado entre as construções X thinks that Y e X
thinks Y?32
.
A resposta oferecida é surpreendente em sua simplicidade. Fundamentalmente,
as autoras demonstram que, embora ambas as construções sejam marcas de
intersubjetividade (já que sinalizam o ponto de vista do falante em relação a outros
pontos de vista disponíveis no discurso), a construção sem complementizador sugere
conjunção cognitiva, ao passo que a construção com complementizador sugere
disjunção cognitiva. Vejamos na prática como isso acontece:
(30) Speak up: Yet when Lisa See met with Speak up, she talked about China
of today. We asked her how many prejudices westerners still had about the
country.
Lisa See: A lot, I think, a lot. You know, I think people hear, “Oh, this will
one day be a superpower”, but I don’t think people have a concept of
what that really means and how much China has changed and how
different it is today. (SpeakUp 240, 2007: 13)
32
Na verdade, outros verbos epistêmicos, como “guess” e “believe”, também são levados em conta. Aqui,
no entanto, a título de ilustração, discutirei apenas exemplos com “think”.
76
Em (30), como se vê, a pergunta do entrevistador pressupõe a existência de
preconceitos em relação à China. Segunda as autoras, o que motiva o emprego da
construção sem o complementizador “that” é o alinhamento do ponto de vista da
entrevistada em relação a essa concepção implícita (conjunção cognitiva). Em (31),
porém, acontece o oposto:
(31) Noam Chomsky: I think the World Social Forum should be considered not
as a place for the excluded members of society but for society.
Speak up: He was asked about Latin America, whether the continent
should make institutions of its own.
Noam Chomsky: I don’t think that there should be a Latin American
alternative to OPEC or the IMF, but rather worldwide alternatives (Speak
up 191, 2004:17).
Neste caso, a pergunta dirigida a Chomsky e reproduzida pela revista SpeakUp
ativa o pressuposto de que a América Latina deveria criar instituições próprias. Como se
vê na sequência, esse pressuposto corresponde a um ponto de vista em relação ao qual
Chomsky irá divergir: ele defenderá a criação de instituições mundiais, e não
continentais. O que se vê, portanto, é o seguinte: também aqui a construção de
complementação epistêmica sinaliza um posicionamento intersubjetivo; neste caso,
contudo, o que se marca é o não-alinhamento em relação ao ponto de vista disponível no
discurso (disjunção cognitiva).
A comparação entre (30) e (31) deve ter servido para mostrar o Princípio da
Não-sinonímia em ação: como se trata de formas distintas (com e sem
complementizador), espera-se que haja também uma diferença no polo semântico (em
77
sentido amplo) da construção, o que foi comprovado pela análise de Almeida e Ferrari
(201).
Como vimos no capítulo anterior, o Princípio da Não-sinonímia também cumpre
um papel relevante como ponto de partida desta tese. Afinal de contas, um dos objetivos
do trabalho é identificar a motivação semântica que subjaz à escolha da ordem VS, em
detrimento da ordem canônica SV. Conforme já ficou dito, uma maneira de formular
essa questão é a seguinte: dado o princípio goldbergiano da não-sinonímia, qual a
diferença entre as construções sujeito-verbo e verbo-sujeito? Em outras palavras, que
diferença semântica existe entre um uso como O pneu furou e sua contraparte Furou o
pneu? É o que tentarei responder no capítulo 4.
2.4 Síntese
Este capítulo apresentou um breve tour por três das “ilhas” que compõem o
“arquipélago” da Linguística Cognitiva: os três modelos teóricos que serão mobilizados,
nos capítulos 4 e 5 deste trabalho, para descrever as propriedades semânticas associadas
à construção VS do português brasileiro. Em relação à Teoria dos Espaços Mentais,
destaquei o Princípio de Identidade, o conceito de space builder e os chamados
primitivos discursivos, em especial o Foco e o Ponto de Vista. Além disso, apresentei a
versão BCSN e a operação de mesclagem conceptual, chamando a atenção,
particularmente, para a possibilidade de mesclagem de pontos de vista. Todo esse
arsenal teórico será recrutado no capítulo 4.
Em relação à Gramática Cognitiva de Ronald Langacker, destaquei a noção de
“construal” (conceptualização) e, em particular, a categoria de proeminência. No que
respeita a essa categoria, apresentei a distinção entre base e perfil e chamei a atenção
para o emprego dos termos predicação e designação no âmbito desse quadro teórico. O
78
instrumental da Gramática Cognitiva será mobilizado no capítulo 5, para descrever o
polo semântico da construção VS.
Por fim, apresentei um histórico da Gramática de Construções, procurando
justificar a necessidade de recorrer ao conceito de construção gramatical. Em seguida,
expus em linhas gerais o modelo goldbergiano, destacando em especial a Hipótese da
Codificação de Cenas, a noção de papel argumental e os Princípio da Motivação
Maximizada e da Não-sinonímia.
79
3 Metodologia
Para investigar a inversão do sujeito no português brasileiro, este trabalho
recorre a dois expedientes metodológicos: primariamente, análise qualitativa de dados
reais de língua falada; de forma complementar, testes empíricos de aceitabilidade
aplicados a falantes nativos do PB. Neste capítulo, tratarei separadamente de cada um
deles.
3.1 Corpora e análise de dados
Os dados analisados foram coletados dos corpora BBB 10 e Discurso &
Gramática. O primeiro consiste em 224 horas e 38 minutos de gravações da décima
edição do pay-per-view (transmissão 24 horas) do programa Big Brother Brasil 10,
veiculado pela Rede Globo de Televisão no ano de 2010. Essas gravações foram
divididas em 26 DVDs com durações desiguais, dos quais os oito primeiros foram
transcritos e analisados para esta tese, totalizando aproximadamente 60 horas de
gravações. É importante destacar que o corpus BBB 10 integra o corpus LINC, que vem
sendo construído por integrantes do Grupo de Pesquisas em Linguística Cognitiva
(LINC / UFRJ) e conta com amostras de língua falada e escrita do português brasileiro.
A transcrição do corpus BBB 10 obedeceu às seguintes convenções:
[ ] sobreposição de vozes localizada
(+) pausa breve
/ truncamento brusco
MAIÚSCULAS ênfase ou acento forte
80
(( )) comentários do analista
:: alongamento da vogal
” subida rápida (equivale aproximadamente a um ponto de
interrogação)
’ subida leve (equivale aproximadamente a uma vírgula)
Por sua vez, o corpus Discurso & Gramática (D&G), disponível no endereço
eletrônico http://www.discursoegramatica.letras.ufrj.br/, inclui dados de língua falada e
escrita relativos a cinco municípios brasileiros (Rio de Janeiro, Natal, Rio Grande, Juiz
de Fora e Niterói) e divididos de acordo com cinco modalidades textuais (narrativa de
experiência pessoal, narrativa recontada, descrição de local, relato de procedimento e
relato de opinião). Para este trabalho, foram utilizados apenas os dados de língua falada.
É importante destacar que a análise de dados restringiu-se às sentenças
declarativas, afirmativas, ativas e sintaticamente independentes. Uma consequência
dessa opção metodológica é a exclusão das construções gramaticais VS mais fechadas
ou restritivas (conforme Tabela 1 da Introdução). Foram excluídas também as sentenças
existenciais com os verbos “ter” e “haver”. Essa decisão, razoavelmente comum nos
estudos sobre inversão do sujeito no PB (NARO; VOTRE, 1999; SPANÓ, 2008), foi
motivada pelo fato de que essas sentenças são fortemente refratárias à anteposição do
sujeito, virtualmente eliminando a possibilidade de alternância SV / VS.
Além disso, foram excluídos ainda os usos com verbo “existir”. Esse expediente
não é tão comum, mas tampouco é inédito (TAVARES SILVA, 2010). Neste caso, não
há impossibilidade absoluta (ou quase absoluta) de anteposição do sujeito, já que
enunciados SV com verbo “existir” não são propriamente incomuns. No entanto, é
importante notar que, em muitos casos, a anteposição é fortemente desfavorecida (se
81
não impossível). É o que ocorre em sentenças como Existe uma falha na sua
argumentação.
A fixação da ordem VS nesses contextos parece estar ligada ao problema das
“duas existências”, discutido tanto por Heine (1997) quanto por Langacker (2004,
2009). Ainda que motivados por preocupações diversas, os dois autores sustentam que o
grupo das sentenças existenciais recobre, a rigor, dois usos distintos. Em estudo sobre a
gramaticalização das construções de posse, Heine (1997) diferencia o esquema
existencial monoargumental (Y exists) dos esquemas existenciais biargumentais (X’s Y
exists, Y exists for/to Y e As for X, Y exists). Movendo-se na mesma direção, ainda que
no interior de um quadro teórico sensivelmente distinto, Langacker (2004; 2009)
preocupa-se em diferenciar conceptualmente sentenças do tipo An unicorn is in the
garden de outras como An unicorn exists: no primeiro exemplo, restringe-se a “locação
[do unicórnio] a uma região delimitada, o que implica que, se alguém procurar nessa
região, irá encontrá-lo” (LANGACKER, 2009, p. 98); no segundo, a especificação
locativa é “generalizada, maximamente esquemática” (LANGACKER, 2009, p. 98).
No que diz respeito à gramática do PB, Bechara (2006), em investigação de base
funcionalista, sugere que o verbo “existir” se associa a duas “estruturas de predicação”
distintas. Essas estruturas correspondem, precisamente, aos dois tipos de existência
identificados por Heine (1997) e por Langacker (2004; 2009), embora o autor não cite
esses trabalhos. Assim, Bechara diferencia usos do tipo Existem leões na África de
outros como Deus existe, sugerindo a seguinte distinção entre eles: no primeiro caso
(chamado de existir1), temos um “predicado verbal pseudo-transitivo”, com SN
normalmente indefinido posicionado à direita do verbo; no segundo (chamado de
existir2), temos um “predicado predicativo existencial”, com SN normalmente definido
82
precedendo o verbo. Crucialmente, o autor argumenta que apenas existir1 é sinônimo de
“ter” e “haver”.
A julgar pelo trabalho de Bechara (2006), portanto, as sentenças existenciais
com sujeito pós-verbal seriam especializadas nos usos locativos associados aos verbos
“ter” e “haver” (nos quais se verifica o que Langacker chama de “região delimitada”).
E, mais importante, essa especialização pode explicar a estranheza sentida quando se
tenta antepor o sujeito de Existe uma falha na sua argumentação. A consequência disso
é que enunciados com a forma SN existir expressariam um conteúdo objetivo distinto
daquele associado a enunciados do tipo existir SN: para usar a terminologia de
Langacker, no primeiro caso teríamos existência e no segundo, locação33
. Dessa análise
decorre que, assim como “ter” e “haver”, também o verbo “existir” não manifestaria de
fato alternância SV / VS.
A questão é certamente complexa, e é possível que a distinção entre existir1 e
existir2 não seja tão absoluta – com efeito, Bechara (2006) chega a mencionar situações
de “cruzamento de estruturas”. De qualquer maneira, parece haver evidências
suficientes de que o verbo “existir” apresenta certas particularidades, as quais ameaçam
a interpretação do contraste SN existir / existir SN como um caso de alternância. Embora
sejam necessários mais estudos para esclarecer essas particularidades – ou talvez por
isso mesmo –, optei por excluir as sentenças com esse verbo do conjunto de dados
analisados.
Em suma, esta pesquisa se valeu primordialmente da análise qualitativa de dados
reais do PB falado extraídos de dois corpora, com a exclusão de sentenças existenciais
33
Isso sugere que o PB talvez esteja caminhando rumo a uma lexicalização do verbo “existir”, com duas
representações separadas para esse predicador. Com efeito, Bechara (2006) chega a levantar essa questão
– embora não fale em lexicalização –, ao se perguntar se “acaso temos dois verbos existir, ou apenas um
existir multifuncional” (p. 668). O autor, porém, não se propõe a responder essa pergunta.
83
com “ter”, “haver” e “existir” motivada pelo fato de que esses verbos parecem não
manifestar de fato alternância SV / VS (ainda que por razões distintas).
3.2 Testes de aceitabilidade
Para além da análise qualitativa de dados reais, o trabalho se valeu ainda, de
forma complementar, de testes empíricos de aceitabilidade. Como se verá, a
argumentação desenvolvida no capítulo 4 envolve, em alguns momentos, um
julgamento acerca da possibilidade de inversão do sujeito com certos enunciados
originalmente proferidos com ordem SV (ou, ao contrário, da possibilidade de
anteposição do sujeito em usos VS). Sabe-se, no entanto, que a introspecção do analista
nem sempre é confiável para esse tipo de avaliação. Por esse motivo, é importante que
se tente acessar a percepção de um grupo de falantes nativos não-especialistas34
.
Diante disso, com o objetivo de fortalecer a argumentação desenvolvida neste
trabalho, optei por desenvolver um pequeno teste de aceitabilidade, que pode ser visto
no anexo desta tese. Nesse experimento, a tarefa dos informantes era avaliar o grau de
aceitabilidade das sentenças-alvo, escolhendo uma dentre as seguintes alternativas
apresentadas: totalmente aceitável, aceitável porém estranha ou inaceitável. Ao todo,
havia cinco sentenças-alvo, das quais quatro com sujeito pós-verbal e uma com sujeito
pré-verbal35
.
O teste foi aplicado a um grupo de 38 falantes nativos do português brasileiro,
todos eles estudantes de primeiro ou segundo período do curso de Engenharia
34
A Linguística Cognitiva já foi alvo de ataques violentos em função de uma alegada tendência a confiar
excessivamente na introspecção do analista, abrindo mão do recurso a testes experimentais (SANDRA;
RICE, 1995; PEETERS, 2001). É preciso dizer, no entanto, que a situação já mudou muito, e atualmente
uma porção considerável da literatura em LC é composta por estudos empíricos.
35
Em seu estudo sobre a inversão do sujeito no inglês, Chen (2003) lança mão de um recurso semelhante:
em alguns pontos da sua obra, o autor faz referência à intuição de falantes consultados informalmente
acerca da possibilidade ou impossibilidade de posposição do sujeito com determinada sentença.
84
Ambiental da Universidade Federal da Fronteira Sul. Para produzir as sequências
linguísticas apresentadas, tomei como ponto de partida enunciados que constam dos
corpora BBB 10 e Discurso & Gramática. Em relação aos enunciados originais, foram
feitas as seguintes modificações: (i) a posição do sujeito foi alterada, de maneira que ele
foi deslocado para a posição imediatamente à esquerda ou imediatamente à direita do
verbo (conforme o caso); (ii) em prol da inteligibilidade, as marcas de conversação oral
(como hesitações, falsos começos e sobreposições) foram eliminadas, bem como foram
abolidas as convenções de transcrição, tendo sido substituídas pelos sinais de pontuação
próprios do sistema ortográfico; e (iii) usos que divergiam da norma culta do PB foram
substituídos pelas formas prestigiadas, a fim de evitar que influenciassem a resposta do
informante. No texto, todas as sentenças eram precedidas por uma sequência com
função contextualizadora.
Antes do início da aplicação, eu li as instruções em voz alta e reforcei-as
oralmente, procurando deixar claro que o objetivo era conhecer a intuição do falante
nativo acerca da aceitabilidade ou naturalidade dos usos destacados nos contextos em
que apareciam – e não a correção gramatical desses usos à luz da norma padrão.
Após a aplicação do teste, as respostas fornecidas pelos informantes foram
convertidas em números, seguindo uma fórmula bastante simples: a indicação
totalmente aceitável foi transformada em grau 2, a resposta aceitável porém estranha
passou a equivaler a grau 1 e a marcação inaceitável recebeu grau zero. Ao final, o valor
obtido por cada sentença foi dividido pelo número total de respostas36
. O resultado da
divisão traduz, assim, o grau médio de aceitabilidade de cada sentença-alvo. Foi
possível, desse modo, criar uma escala de aceitabilidade cujos extremos são os valores 0
36
Nem sempre esse número é igual a 38, porque alguns informantes “pularam” uma ou mais sentenças.
85
e 2. Nessa escala, quanto mais próximo de 2, maior a aceitabilidade do uso VS em
pauta; inversamente, quanto mais próximo de 0, menor a sua aceitabilidade.
O próprio desenho do experimento embute a suposição de que a aceitabilidade
de uma sentença não pode ser apreendida de forma dicotômica, reduzindo-se às opções
aceitável e não-aceitável. Na verdade, trata-se de um continuum, de modo que os usos
linguísticos podem ser julgados, comparativamente, como mais ou menos aceitáveis. A
apresentação de apenas três possibilidades de resposta envolve uma inevitável
arbitrariedade: a rigor, seis sentenças poderiam, em tese, receber seis avaliações
distintas. Aqui, porém, optei por um desenho mais simples, uma vez que o teste
experimental cumpre, neste trabalho, um papel meramente acessório e complementar.
3.3 Síntese e encaminhamentos
Em resumo, esta pesquisa se valeu de dois recursos metodológicos: análise
qualitativa de dados reais de língua falada e testes experimentais de aceitabilidade.
Esses expedientes poderão ser vistos nos capítulos 4 a 6. O primeiro dekles, que se
constitui como o procedimento metodológico principal da pesquisa, marca presença em
todos esses três capítulos. Por sua vez, o teste experimental é utilizado apenas no
capítulo 4, já que sua função é medir a possibilidade de alternância SV / VS em
determinados contextos.
86
4 Inversão do sujeito e Ponto de Vista:
uma abordagem baseada em
espaços mentais
Como vimos no capítulo 2, uma das características mais marcantes da
Linguística Cognitiva é sua opção por uma semântica subjetivista (em oposição às
semânticas de inspiração realista / objetivista). Conforme já ficou dito, essa posição
teórica ajuda a explicar o interesse dos linguistas cognitivistas pelas chamadas
“operações de conceptualização” (“construal operations”): mecanismos conceptuais que
permitem enquadrar eventos e cenários de diferentes maneiras.
Em meio aos diversos mecanismos desse tipo já propostos na literatura, um
papel de destaque vem sendo atribuído à noção de perspectiva. Com efeito, ela
comparece em muitas das linhagens teóricas que participam da empreitada cognitivista,
como a semântica cognitiva de Leonard Talmy, a Gramática Cognitiva de Ronald
Langacker e a Teoria dos Espaços Mentais. Não surpreendentemente, a ideia de
deslocamento de perspectiva tem sido mobilizada para explicar uma vasta gama de
fenômenos linguísticos, dentre os quais se incluem a dinâmica de interpretação dos
tempos verbais (CUTRER, 1994; LANGACKER, 2009); os diferentes tipos de discurso
em narrativas (SANDERS; REDEKER, 1996); a construção online da ironia (TOBIN;
ISRAEL; 2012); ou a diferença entre condicionais de futuro canônicas e com recuo
temporal (FERRARI, 2012). Neste capítulo, argumentarei que a alternância de
perspectiva também está por trás da variação na posição do sujeito no PB falado
contemporâneo. Em outras palavras, tentarei mostrar que a opção por uma estrutura SV
ou VS é, fundamentalmente, uma questão de ponto de vista.
87
O capítulo está organizado como segue. Na seção 4.1, apresento uma hipótese
geral para a inversão do sujeito no PB falado contemporâneo e procuro formalizá-la à
luz da Teoria dos Espaços Mentais. Na sequência, a seção 4.2 busca analisar usos SV e
VS a fim de demonstrar, por meio da análise de dados reais, como se manifesta na
prática a hipótese apresentada anteriormente. Na sequência, a seção 4.3 propõe uma
tipologia para os usos VS e a seção 4.4 discute casos de mesclagem de Ponto de Vista.
Finalmente, a seção 4.5 sintetiza os pontos mais importantes e inicia a transição para o
capítulo seguinte.
4.1 A hipótese geral: correlação entre ponto de vista e posição do sujeito
Por um lado, é inegável que o português brasileiro falado exibe, ainda hoje, a
possibilidade de alternância SV/VS, admitindo tanto enunciados como O pneu furou e
O João apareceu quanto enunciados do tipo Furou o pneu e Apareceu o João. Por outro
lado, diversos pesquisadores têm sugerido que, se duas estruturas são formalmente
distintas, então elas não deverão ser inteiramente equivalentes do ponto de vista
semântico-pragmático (um insight que, como vimos, foi formalizado por Goldberg
(1995) nos termos do Princípio da Não-sinonímia da Forma Gramatical). Diante disso, a
pergunta que se coloca é a seguinte: qual é a diferença semântica (em sentido amplo)
entre uma sentença com sujeito pré-verbal e sua “contraparte” VS?
A ideia básica é a seguinte. Ao codificar linguisticamente um evento, o falante
tem, amplamente falando, duas opções, no que concerne à perspectiva adotada. Uma
possibilidade é preservar a situação default, na qual a cena designada37
é construída a
partir do seu próprio ponto de vista; uma segunda possibilidade é alinhar-se à
perspectiva de outro sujeito cognoscente disponível (outra “subjetividade”, nos termos
37
Ao longo desta tese, empregarei o verbo “designar”, bem como “predicar”, com o sentido que eles
assumem no âmbito da cognitive grammar langackeriana (conforme seção 2.2.1).
88
de Dancygier (2012)), passando a construir o evento segundo o ponto de vista desse
indivíduo. Ao longo desta tese, defenderei que a ordem SV está associada à primeira
opção, enquanto a ordem VS manifesta a segunda alternativa. Nesse sentido, a inversão
do sujeito rompe a configuração dêitica padrão, enquanto a anteposição a preserva.
Para termos uma noção, ainda que por ora apenas intuitiva, de como isso
funciona na prática, comecemos pelo exemplo abaixo. Trata-se de uma fala da
participante Fernanda, do BBB 10, dirigida a Dicésar em um momento em que os dois
se cruzam na casa38
.
(1) F: Di seu chapéu tá no banquinho vermelho (Corpus BBB 10)
No contexto pragmático em que foi enunciada, a sentença em destaque parece
fortemente resistente à inversão do sujeito, como mostra (1b):
(1b) # Di, tá seu chapéu no banquinho vermelho39
De fato, o grau médio de aceitabilidade de (1b) para os informantes consultados
foi de 0,6, indicando, portanto, baixa aceitabilidade. Por outro lado, um contexto
narrativo apropriado, ainda que mínimo, parece capaz de “salvar” a ordem VS. É o que
ocorre em (1c):
(1c) Aí, quando eu olho, tá seu chapéu no banquinho vermelho.
38
A partir deste capítulo, a numeração dos exemplos será reiniciada.
39
Mais aceitável aqui seria o emprego da construção de antitópico (LAMBRECHT, 1994) – “Tá no
banquinho vermelho, seu chapéu” –, mas, neste caso, já estamos diante de uma construção gramatical
sensivelmente distinta.
89
Como explicar a diferença de aceitabilidade ou naturalidade entre (1b) e (1c)? O
ponto crucial é que sequência quando eu olho sugere a existência de algum personagem
de uma narrativa mais ampla que, em determinado momento, teria se deparado com o
“chapéu” jogado sobre o “banquinho vermelho”. O que a comparação entre (1b) e (1c)
sugere é que a inserção dessa “subjetividade” – para recorrermos novamente ao termo
de Dancygier (2012) – contribui para o êxito pragmático do enunciado. Com efeito, o
uso real em (2) é bastante semelhante a (1c):
(2) DO: cara daí eu bah me apaixonei pelo bicho’ daí eu falei ah mãe deixa eu
ficar’ daí minha mãe’ e ele não saía meu’ minha mãe tentava’ sai não sei o
quê’ ele pegava saía e depois voltava (+) até que um dia mesma coisa ela’ sai
sai’ aí ela foi fazer sei lá o que na rua’ quando ela volta tá ele dentro da
casa (+) ele tinha conseguido entrar (Corpus BBB 10)
Vale apenas comparar os enunciados em negrito em (1) e em (2). Por um lado,
ambas as sentenças destacadas designam uma cena objetiva de locação: no primeiro
caso, a continência do “chapéu” no espaço do “banquinho vermelho”; no segundo, a
continência do cachorro (“ele”) no interior da casa. Mas a maneira como essa cena é
construída difere em cada caso. Intuitivamente, é possível dizer que, em (1), o falante
está apenas informando ou comunicando a localização do chapéu ao ouvinte, ao passo
que o uso em (2) parece reproduzir ou simular uma experiência original de percepção,
de maneira que a cena de locação é apresentada “pelos olhos” da personagem – a mãe
do narrador – que, a certa altura, se depara inesperadamente com o animal dentro da sua
casa.
Uma maneira informal, mas possivelmente esclarecedora, de formular essa
distinção é a seguinte: o uso SV em (1) comunica simplesmente a existência do
90
“chapéu” no espaço do “banquinho vermelho”; por outro lado, o uso VS em (2)
comunica que alguém testemunhou a existência do cachorro na região “dentro da casa”.
Essa distinção pode ser representada por meio da versão BCSN da Teoria dos
Espaços Mentais. Como vimos no capítulo 2, esse modelo parte de uma separação entre
dois planos: o ground comunicativo – aquilo a que Sanders, Sanders e Sweetser (2009;
2012) se referem como Centro Dêitico da Comunicação (CDC) e que Verhagen (2005)
chama de nível S ou nível do Sujeito – e o Domínio do Conteúdo (DC), correspondente
ao que Verhagen (2005) chama de nível O ou nível do Objeto. O primeiro plano, vale
lembrar, captura os aspectos relativos à própria situação comunicativa, correspondendo,
portanto, ao aqui-e-agora da interação em curso; o segundo, por sua vez, diz respeito ao
conteúdo efetivamente expresso pelo uso linguístico. Nesse sentido, o Espaço Foco
estará sempre situado no DC, mas o Ponto de Vista pode ser manipulado, posicionando-
se ora no nível O, ora no nível S.
É precisamente essa flutuação do Ponto de Vista que se vê nas figuras abaixo. A
figura 19 representa o padrão SV, ilustrado em (1). Aqui, o posicionamento do PV no
ground, ou Centro Dêitico da Comunicação, procura traduzir o fato de que a cena
designada – e representada no Domínio do Conteúdo – está sendo construída por
alguém que está afastado dela. Vale dizer, alguém que fala sobre o evento (no aqui-e-
agora da interação em curso), mas não o presencia diretamente (no aqui-e-agora dos
fatos narrados). Neste ponto, é preciso lembrar que o ground, no modelo BCSN, não
corresponde a um espaço mental único, mas a uma espécie de arquidomínio: uma rede
de espaços vinculados a diferentes facetas do aqui-e-agora comunicativo. A razão pela
qual eu proponho que o Ponto de Vista do padrão SV está localizado, especificamente,
no Espaço de Ato de Fala deverá ficar mais clara na próxima seção. Por ora, o mais
91
relevante é notar que a construção SV associa-se à perspectiva do Centro Dêitico da
Comunicação (em oposição ao Domínio do Conteúdo).
Por sua vez, a figura 20 representa o padrão VS, ilustrado em (2). Como vimos,
a sentença em destaque nesse exemplo pressupõe, para além dos próprios interlocutores,
uma “subjetividade” adicional localizada no aqui-e-agora da narrativa: um
personagem – a mãe do narrador – que presencia a cena designada “diante dos seus
olhos”. Isso é representado pelo fato de esse sujeito cognoscente estar situado no
Domínio do Conteúdo, compartilhando o mesmo espaço-tempo da cena focalizada. Em
(2), portanto, o ponto de vista é – em alguma medida – terceirizado: o falante opta por
construir o evento a partir de uma perspectiva in loco.
Centro Dêitico da Domínio do
Comunicação Conteúdo
PV FOCO
Espaço de
Ato de Fala
Figura 19: representação do padrão SV segundo a Teoria dos Espaços Mentais
92
Centro Dêitico da Domínio do
Comunicação Conteúdo
PV’
PV
FOCO
Espaço de
Ato de Fala
Espaço de
Percepção
Figura 20: representação do padrão VS segundo a Teoria dos Espaços Mentais
Em suma, proponho sintetizar da seguinte maneira a diferença semântico-
conceptual entre as construções SV e VS: a construção gramatical SV serve como pista
para que o Ponto de Vista seja posicionado no Centro Dêitico da Comunicação (mais
especificamente, no Espaço de Ato de Fala); inversamente, a construção VS serve como
pista para que o Ponto de Vista seja posicionado no próprio Domínio do Conteúdo. Na
prática, isso significa que a inversão do sujeito associa-se a uma configuração de
espaços mentais na qual os primitivos discursivos Foco e Ponto de Vista compartilham
o mesmo domínio na BCSN: o Domínio do Conteúdo.
Como se vê, o contraste entre as construções SV e VS diz respeito,
fundamentalmente, à distância entre Ponto de Vista e evento em Foco. Quando
cotejados, os dois diagramas traduzem visualmente a ideia de que o padrão VS envolve
uma maior proximidade entre sujeito conceptualizador (PV) e objeto conceptualizado
93
(Foco), em comparação com padrão SV. Para fazer referência a esse ponto de vista
aproximado, vou recorrer à expressão perspectiva in loco.
4.1.1 Desdobramentos da hipótese geral
Para explorar os desdobramentos da hipótese da perspectiva in loco, gostaria de
retomar aqui o conceito de arranjo de visualização (“viewing arrangement”), discutido
no capítulo 2. Como já ficou dito, Langacker (2008, p. 73) define o arranjo de
visualização como qualquer tipo de relação assimétrica entre “visualizadores”
(“viewers”) e situação “visualizada” (“situation being viewed”). Quando se trata de usos
linguísticos, os “visualizadores” são os indivíduos que conceptualizam ou apreendem o
significado de expressões linguísticas – ou seja, o falante e o ouvinte. Por sua vez, a
situação “visualizada” é o próprio significado apreendido (LANGACKER, 2008).
Vimos, porém, que nem todo arranjo de visualização envolve uma situação
comunicativa ou uso linguístico. Com efeito, esse tipo de arranjo está presente em toda
situação na qual um sujeito cognoscente captura ou apreende diretamente algum aspecto
da realidade não-linguística: por exemplo, um apaixonado contemplando as estrelas, um
adolescente ouvindo a música da moda, um paciente sentindo dor, um expatriado
pensando na sua terra natal, um linguista tendo uma ideia. Em todos esses casos, existe
uma relação assimétrica de conceptualização na qual o apaixonado, o adolescente, o
paciente, o expatriado e o linguista atuam como sujeitos conceptualizadores – enquanto
as estrelas, a música, a dor, a terra natal e a ideia são os objetos de conceptualização.
Neste trabalho, reservarei o termo percepção para fazer referência a esse tipo de arranjo
de visualização40
.
40
O termo não é exato, já que o tipo de apreensão direta a que eu me refiro aqui nem sempre é motivado
por um estímulo externo; por essa razão, algumas dessas experiências seriam mais propriamente
caracterizadas como memória ou imaginação do que como percepção (por exemplo, “veio uma ideia na
minha cabeça”).
94
A distinção entre as duas modalidades de arranjo de visualização oferece um
caminho para explorarmos as diferenças entre os padrões SV e VS. A figura 19
representa apenas um tipo de arranjo de visualização: aquele que se dá entre os
interlocutores engajados em uma situação comunicativa e a cena evocada por um
enunciado linguístico. Como vimos, o acesso desses interlocutores à cena focalizada
não é direto (eles não veem a cena propriamente), mas indireto (eles se limitam a
interpretar o enunciado linguístico que designa a cena). Por essa razão, esses
conceptualizadores não desempenham o papel de Observadores, e sim os papéis de
Falante e Ouvinte41
. Neste trabalho, vou adotar, por padrão, a perspectiva de quem
codifica linguisticamente um determinado conteúdo, razão pela qual irei me referir ao
ponto de vista do Falante, tomando-o como o sujeito conceptualizador associado ao
Espaço de Ato de Fala (e, portanto, ao padrão SV). Nesse particular, sigo de perto a
opção de Sanders, Sanders e Sweetser (2009; 2012)42
.
A figura 20, por seu turno, mostra os dois tipos de arranjo de visualização. Além
da relação entre interlocutores e significado da expressão linguística (presente, por
definição, em qualquer situação de uso linguístico e, consequentemente, também na
figura 19), esse diagrama representa, no Domínio de Conteúdo, o segundo tipo de
arranjo de visualização: aquele que se estabelece entre um sujeito cognoscente in loco
(PV’) e um evento não-linguístico (cena em Foco). Nesse caso, portanto, o
41
Irei utilizar inicial maiúscula para me referir aos papéis conceptuais de Falante e Ouvinte – ou seja, os
papéis de interlocutores engajados em uma situação comunicativa, e associados ao Espaço de Ato de Fala
do modelo BCSN. Isso permitirá distinguir o falante e o ouvinte como pessoas físicas ou seres-no-mundo
(grafados com inicial minúscula) dos papéis conceptuais de Falante e Ouvinte (grafados com inicial
maiúscula). A importância dessa distinção ficará clara mais à frente, na análise dos exemplos.
42
Essa opção não tem implicações profundas, e sua motivação é quase trivial. Ocorre que é o próprio
material linguístico – as escolhas léxico-gramaticais – que franqueia ao analista algum acesso aos estados
mentais do conceptualizador. E quem faz essas escolhas é, muito naturalmente, o Falante. Por esse
motivo, é só em relação aos estados mentais do Falante que podemos fazer afirmações com alguma
segurança. Isso não implica, porém, qualquer desconsideração pelo caráter notoriamente intersubjetivo da
construção do significado.
95
conceptualizador não é um indivíduo que constrói o sentido de um enunciado
linguístico, mas alguém que apreende diretamente um evento, envolvendo-se, assim, em
uma experiência de percepção. Por essa razão, direi que o sujeito conceptualizador
próprio do padrão VS – aquele representado pelo PV’ do Domínio de Conteúdo –
desempenha o papel de Observador43
.
Essa distinção é capaz de explicar os efeitos de sentidos diversos que as
sentenças SV e VS parecem produzir. No segundo caso, como o conteúdo proposicional
da sentença é construído sob o ponto de vista de um Observador, tudo se passa como se
tivéssemos sido transportados ou projetados para o espaço-tempo onde se passam os
eventos designados. A aproximação entre sujeito e objeto gera, como resultado, um
efeito de experiência direta. Do ponto de vista estilístico, isso produz a impressão de
que enunciados com sujeito pós-verbal são mais vívidos ou expressivos do que aqueles
com sujeito anteposto44
.
Por seu turno, sentenças SV são interpretadas segundo a perspectiva do próprio
Falante, ou seja, um sujeito localizado no Centro Dêitico da Comunicação (e não no
Domínio de Conteúdo). Em outras palavras, quando se trata de um uso VS, o
conceptualizador é construído como um indivíduo espaço-temporalmente afastado do
evento em Foco. Como resultado, a construção SV não se associa ao efeito de
experiência direta. Na verdade, o conteúdo do enunciado será construído como algo que
está sendo comunicado interacionalmente (em oposição a presenciado ou testemunhado
43
Como é praxe na linguística cognitiva, em especial nas vertentes de Leonard Talmy e Ronald
Langacker, uso o domínio visual apenas como ponto de partida. Nesse sentido, nem sempre a palavra
“Observador” será empregada em sua acepção literal. Às vezes, a sentença VS evoca uma percepção
baseada em outro domínio sensorial (por exemplo, a audição), de maneira que o termo deverá ser
interpretado metonimicamente. Em outros casos, temos um espaço abstrato (não sensorial), envolvendo,
portanto, uma projeção metafórica.
44
Interessantemente, Bolinger (1977), ao discutir a inversão verbos-sujeito no inglês, insiste bastante na
ideia de vivacidade (“vividness”). Até onde eu tenho conhecimento, esse efeito nunca foi associado à
estrutura VS no português brasileiro. A mim, no entanto, parece intuitivo que usos VS exibem uma
vivacidade ou dramaticidade que contrasta com o distanciamento possibilitado pelos usos SV – e a
proposta desenvolvida aqui, em termos de espaços mentais, permite explicar essa sensação.
96
diretamente). Do ponto de vista estilístico, o afastamento entre sujeito e objeto produz a
impressão de que enunciados com sujeito pré-verbal são mais frios ou objetivos do que
aqueles com sujeito posposto.
A esta altura, já devem estar claras as razões para a sugestão de que, em se
tratando de sentenças SV, o Ponto de Vista se situa especificamente no Espaço de Ato
de Fala: ocorre que a responsabilidade pela construção do conteúdo é atribuída ao
Falante como tal (entendido como realizador de uma ação verbal em uma situação
comunicativa, como vimos no capítulo 2), de maneira que o enunciado é interpretado
como um ato de comunicação verbal dirigido ao Ouvinte (e não como a representação
de processos mentais, o que está ligado ao Espaço Epistêmico, nem como o fato em si
mesmo, tomado objetivamente e “independente” do falante, o que está ligado ao
Domínio do Conteúdo).
É interessante notar que todas as propriedades que distinguem as estruturas SV e
VS podem ser deduzidas diretamente das redes de espaços mentais representadas nas
figuras 19 e 20. No caso do padrão SV, o Ponto de Vista se localiza no aqui-e-agora da
interação (Centro Dêitico da Comunicação), o que é compatível com o fato de que o
sujeito conceptualizador não tem acesso direto ao objeto conceptualizado (perspectiva
distanciada). Além disso, mais especificamente, o PV se encontra no Espaço de Ato de
Fala, o que é coerente com o fato de que o sujeito conceptualizador se constrói como
Falante, sendo entendido como o indivíduo que comunica linguisticamente uma
informação.
Por outro lado, no caso do padrão VS, o Ponto de Vista se localiza no aqui-e-
agora do evento designado (o Domínio do Conteúdo), o que é compatível com o fato de
que o conceptualizador tem acesso direto a esse evento (perspectiva in loco). Além
disso, é importante notar que: (i) o Espaço Foco se configura como um Espaço de
97
Percepção e (ii) esse Espaço de Percepção está diretamente subordinado ao espaço
mental onde se situa o Ponto de Vista. Essas duas propriedades são compatíveis com o
fato de que o sujeito conceptualizador desempenha o papel de Observador.
O quadro delineado até aqui pode ser sintetizado como segue. A ordem VS ativa
uma configuração de espaços mentais na qual o Ponto de Vista se localiza no Domínio
do Conteúdo e o Foco se situa em um Espaço de Percepção. Isso implica que a cena
focalizada deve ser interpretada segundo a perspectiva de um sujeito conceptualizador
com acesso direto ao objeto conceptualizado (perspectiva in loco). Ao evocar essa
proximidade, o padrão VS produz o efeito de experiência direta, o que significa que o
conceptualizador se constrói como (desempenha o papel de) Observador. Por seu turno,
a ordem SV ativa uma configuração de espaços mentais na qual o Ponto de Vista se
localiza no Centro Dêitico da Comunicação; mais especificamente, no Espaço do Ato de
Fala. Isso implica que o sujeito conceptualizador não tem acesso direto ao objeto
conceptualizado (perspectiva distanciada). Ao evocar esse afastamento, o padrão SV
produz o efeito de apreensão indireta da cena focalizada (via comunicação verbal), o
que significa que o conceptualizador se constrói como (desempenha o papel de)
Falante.
O alinhamento entre todas essas propriedades está sintetizado na tabela abaixo:
98
Tabela 5: contraste entre as construções SV e VS
Forma sintática
Posição do Ponto de
Vista
Distância relativa entre PV imediato
e Foco
Papel do sujeito de consciência
(sujeito responsável pela construção do
evento em Foco)
Efeito de sentido
Efeito Estilístico
SV
Centro
Dêitico da Comunicação
(Espaço de Ato de Fala)
Relação de
distanciamento
Falante
Apreensão indireta
do evento focalizado (via comunicação
verbal)
Apresentação
mais fria, objetiva,
distanciada
VS
Domínio do Conteúdo
Relação de
proximidade (perspectiva
in loco)
Observador
Experiência
direta
Apresentação mais vívida e
expressiva
99
Em suma, até este momento procurei desenvolver a hipótese central desta tese,
segundo a qual a alternância SV / VS reflete uma flutuação do Ponto de Vista na rede de
espaços mentais, de maneira que a inversão do sujeito está associada a uma situação em
que o sujeito conceptualizador (Ponto de Vista) compartilha o mesmo espaço-tempo do
objeto conceptualizado (Foco).
4.2 Alternância SV/VS e flutuação de Ponto de Vista: análise de dados
Para verificar, na prática, a diferença de perspectiva associada aos usos SV e VS,
comecemos comparando os dois exemplos abaixo. O primeiro é enunciado no seguinte
contexto. Num primeiro momento, o participante Dourado, do BBB 10, entra na sala
onde estão conversando Dicésar e Fernanda, que o ignoram. Depois que ele se afasta,
Anamara se junta ao grupo e Dicésar relata, com a ajuda de Fernanda, o episódio que
acabara de acontecer. Já em (4), o mesmo participante Dicésar narra para Fernanda e
Serginho uma história que lhe fora contada por um amigo.
(3) DI: Maroca ouve essa’ o Dourado entrou aqui’ olhou pra cara de nós
dois’ pra ver se a gente dava bola aí pegou e foi embora
F: ele ia falar alguma coisa
DI: ele ia falar alguma coisa
(Corpus BBB 10)
(4) DI: não bi olha isso’ aí esse meu amigo tava lá no camarim né’ e/ é::
esperando (+) aí daqui a pouco entrou esse tal de Marcelo
Embora os usos em destaque em (3) e (4) designem cenas objetivas semelhantes,
parece claro, mesmo intuitivamente, que elas são construídas de formas distintas. Do
100
ponto de vista interpretativo, essa diferença pode ser formulada da seguinte maneira: em
(3), a sentença veicula uma simples informação objetiva transmitida aqui e agora – no
ground interacional – do Falante para o Ouvinte; em (4), diferentemente, o uso VS se
configura com uma tentativa de reproduzir uma experiência original de percepção.
Informalmente, é possível formular essa distinção nos mesmos termos propostos para
capturar a diferença entre (1) e (2): no primeiro caso, o Falante apenas comunica o
evento de entrada de Dourado; no segundo, o Falante comunica que alguém presenciou
o evento de entrada do Marcelo45
.
A julgar pela fala de Dicésar em (3), podemos presumir com segurança que, em
algum momento, ele próprio e a participante Fernanda presenciaram diretamente a
entrada de Dourado no cômodo onde ambos estavam – assim como aconteceu com
“esse meu amigo” diante do aparecimento do “tal de Marcelo”, como nos informa o
exemplo (4). A diferença entre os dois casos, portanto, não tem a ver com os episódios
objetivos a que cada sentença alude. Tem a ver, isso sim, com construções conceptuais
– e, paralelamente, estratégias discursivas/interacionais – diversas. Assim, apenas em
(4) o Falante traz à tona o instante em que ocorre o evento de entrada, em alguma
medida presentificando-o e reproduzindo (ou pelo menos simulando) a experiência de
percepção vivenciada por algum sujeito de consciência in loco (vale dizer, alguém que
estava no camarim quando se deparou com o aparecimento do Marcelo). Em (5),
diferentemente, o Falante opta por não “reviver” esse momento, limitando-se a veicular
uma informação de que ele dispõe.
Essa caracterização sugere que a diferença entre esses dois usos diz respeito ao
número de níveis de conceptualização envolvidos na interpretação do enunciado.
Assim: em (3), o Falante é o sujeito responsável por construir diretamente o evento
45
Mas, como veremos no próximo capítulo, a parte do “presenciamento” não é designada pela sentença
VS; em vez disso, ela faz parte da base, compondo a porção pressuposta da predicação (LANGACKER,
1987; 1991; 2008).
101
designado; em (4), porém, ele opta por apresentar esse evento “através dos olhos” de um
outro sujeito cognoscente – vale dizer, uma “testemunha ocular” da cena – que se torna,
então, o conceptualizador imediato do evento. A esse sujeito cognoscente in loco, vale
lembrar, tenho me referido como Observador. Aqui, portanto, o Falante (em alguma
medida) “terceiriza” o ponto de vista para o personagem, que desempenha o papel de
Observador. Ao fim e ao cabo, ficamos com a seguinte situação: o uso em (3) conta com
apenas um nível de conceptualização, ao passo que (4) envolve dois níveis. Essa
diferença pode ser diagramada assim:
(3) Falante Evento em Foco
(4) Falante Observador Evento em Foco
Figura 21: níveis de conceptualização dos exemplos (3) e (4)
A versão BCSN da Teoria dos Espaços Mentais permite captar essa diferença de
maneira engenhosa. Em (3), se o evento designado – a entrada de Dourado – é
construído diretamente pelo Falante, isso significa que o Ponto de Vista está localizado
no ground (mais especificamente, no Espaço de Ato de Fala). Isso é compatível com a
interpretação de que o uso SV nesse exemplo é interpretado tão-somente como uma
informação transmitida aqui e agora ao Ouvinte pelo Falante. Eis o diagrama:
102
Centro Dêitico da Domínio do
Comunicação Conteúdo
FOCO
PV
a c
b d
Espaço de Espaço de
Ato de Fala Passado
Figura 22: Representação de o Dourado entrou aqui
O caso de (4) é mais complexo. A primeira sequência da fala de Dicésar – não
bi’ olha isso – tem um caráter marcadamente diretivo, configurando-se como um pedido
de turno. Na sequência, o Falante inicia uma narrativa, prenunciada pelo item “aí”, que
funciona então como space builder. Direi, então, que esse space builder abre um Espaço
da Narrativa 1, dentro do qual é interpretada a sequência esse meu amigo tava lá no
camarim né’ esperando. Note-se que, embora o Foco esteja localizado no Domínio do
Conteúdo, o Ponto de Vista está no Espaço de Ato de Fala – portanto, no ground –,
representando o fato de que é o Falante que está construindo diretamente esse evento.
c: Dourado
d: aqui
ENTRAR c, d
a: Dicésar
b: Fernanda
103
Centro Dêitico da Domínio do
Comunicação Conteúdo
FOCO
PV
a d
b e
c f
Espaço de Espaço da
Ato de Fala Narrativa 1
Figura 23: Representação de esse meu amigo tava lá no camarim esperando
É importante perceber que o evento interpretado no Espaço da Narrativa 1 tem
uma função contextualizadora: ele corresponde ao movimento narrativo a que Labov se
refere como “orientação”, cujo propósito é o de identificar “o tempo, o lugar, as pessoas
e sua atividade ou a situação” (LABOV, 1972, p. 364). E qual a importância dessa
orientação para o uso VS em (4)? Eis a resposta: é ela que define o cenário onde irá
ocorrer a experiência de percepção direta predicada por essa sentença, ao mesmo tempo
em que estabelece textualmente o sujeito de consciência que irá vivenciar essa
experiência – neste caso, o personagem referido como “esse meu amigo”). Na prática,
d: amigo
e: camarim
f: hora de entrar
ESTAR d, e
ESPERAR d, f
a: Dicésar
b: Fernanda
c: Serginho
104
portanto, a evocação do Espaço de Narrativa 1 disponibiliza uma “subjetividade”
(DANCYGIER, 2012) adicional para a conceptualização do evento subsequente.
Como se vê, esse evento subsequente – a entrada do Marcelo – constitui o
segundo momento da narrativa; por isso, chamarei de Espaço da Narrativa 2 o espaço
mental dentro do qual ele é interpretado. Ao mesmo tempo, ele se configura como um
Espaço de Percepção (EP), na medida em que a cena de entrada do Marcelo é construída
como um evento que ocorre dentro do campo visual do “amigo” e é percebido por ele.
Neste ponto, é relevante notar que a abertura desse EP é sinalizada pelo space
builder “daqui a pouco”. Do ponto de vista semântico, esse sintagma preposicionado
tem duas propriedades interessantes: além de sugerir uma passagem de tempo, ele se
alinha a um centro dêitico deslocado, na medida em que esse “aqui” não diz respeito à
localização temporal dos interlocutores no ground, mas à localização temporal do
“amigo” no camarim. Dessa maneira, esse sintagma prenuncia a ocorrência futura de
um evento a partir do centro dêitico desse personagem.
Em suma, a ideia é a seguinte: se o Falante (situado no Centro Dêitico da
Comunicação, ou seja, no aqui-e-agora da interação em curso) é um sujeito cognoscente
dotado de perspectiva, também o “amigo” (localizado no Domínio do Conteúdo, ou
seja, no aqui-e-agora dos fatos narrados) se configura como locus de consciência
potencial. Neste momento, portanto, temos dois Pontos de Vista disponíveis para a
construção do evento subsequente (a entrada de Marcelo): o PV do ground (Falante) e o
PV’ do Domínio do Conteúdo (Observador). O primeiro, por encontrar-se em outro
contexto temporal (perspectiva distanciada), não tem acesso perceptual direto ao evento.
O segundo, ao contrário, compartilha o mesmo contexto temporal do evento
subsequente (perspectiva in loco), o que lhe franqueia acesso perceptual direto a ele.
105
De acordo com a hipótese da perspectiva in loco, este é um contexto altamente
propício à ordem VS, já que existe, neste ponto do discurso, um sujeito cognoscente in
loco disponível e ativado: um bom candidato, portanto, a Observador. E, de fato, temos
aqui dois elementos formais que favorecem o deslocamento do centro dêitico e a
construção da cena a partir de uma perspectiva in loco: a própria ordem linear verbo-
sujeito e, como já se viu, o dêitico deslocado “aqui” (da expressão “daqui a pouco”). A
rede de espaços mentais que traduz a conceptualização do evento em foco a partir desse
ponto de vista in loco está representada abaixo:
Centro Dêitico da Domínio do Conteúdo
Comunicação
d PV’
PV
a e f
b
c
Espaço de FOCO
Ato de Fala g
Espaço de Percepção
(Espaço da Narrativa 2)
Figura 24: Representação de esse meu amigo tava lá no camarim esperando
aí daqui a pouco entrou esse tal de Marcelo
g: Marcelo
ENTRAR f
a: Dourado
b: Lia
c: Cadu
d: amigo
e: camarim
f: hora de entrar
ESTAR d,e
ESPERAR d, f
106
O contraste entre as figuras 22 e 24 traduz visualmente a diferença de
interpretação entre os usos destacados em (3) e (4). No primeiro caso, o enunciado SV é
entendido como uma simples informação transmitida pelo Falante ao Ouvinte, o que
significa que o próprio Falante é o responsável direto pela construção do evento em
foco. Isso é representado pelo fato de que o PV se situa no ground comunicativo – mais
especificamente, no Espaço de Ato de Fala – e, coerentemente com isso, pelo fato de
que o evento em foco não é construído em um Espaço de Percepção. No segundo caso,
por outro lado, o enunciado VS parece reproduzir uma experiência original de
percepção. Nesse sentido, o Falante não constrói diretamente o evento em foco; em vez
disso, ele o apresenta “pelos olhos” do indivíduo que o vivenciou originalmente,
reproduzindo assim, em certa medida, essa experiência original. Isso é representado
pelo fato de que o ponto de vista adotado é o PV’ do Domínio de Conteúdo e,
coerentemente com isso, pelo fato de que o evento em foco é interpretado em um
Espaço de Percepção (e, portanto, construído como objeto de percepção de algum
sujeito in loco).
Não devem passar despercebidas aqui as diferenças referentes à construção
discursiva dos exemplos (3) e (4). A distinção crucial diz respeito à disponibilização,
em (4), de uma sequência linguística preparatória, anterior ao evento ENTRADA DE
MARCELO, cujo papel é mapear o terreno e identificar o local e personagens envolvidos
na narrativa (trata-se do movimento narrativo a que Labov (1972) se refere como
“orientação”). Como se vê, essa sequência insere explicitamente, no Domínio do
Conteúdo, um referente que corresponde a um sujeito cognoscente (o “meu amigo”).
Em (3), em contrapartida, o evento de ENTRADA DE DOURADO é apresentado
imediatamente após a sequência inicial com função intersubjetiva (Maroca’ ouve essa).
107
É provável que a diferença de construção discursiva entre os dois casos esteja
relacionada à opção pela ordenação SV e VS, respectiv\aamente. Em (4), a sequência
preparatória cumpre o papel de estabelecer explicitamente um referente no Espaço da
Narrativa 1 (o “amigo”), disponibilizando, portanto, um Observador como locus de
consciência potencial para a conceptualização do evento subsequente. Em (3), por outro
lado, a ausência dessa “orientação”, somada à enunciação de uma sentença
marcadamente diretiva/intersubjetiva no instante imediatamente anterior, alinha-se com
a adoção da perspectiva do Falante, localizado no ground.
O que eu estou propondo é que, em (4), o movimento narrativo de “orientação”,
ao inserir explicitamente na rede de espaços mentais um sujeito cognoscente, produz um
contexto discursivo altamente propício à inversão do sujeito. No entanto, o Ponto de
Vista do Falante segue, por definição, presente e disponível, conforme representado na
figura 24 pela existência de um PV no Espaço de Ato de Fala. Em face disso, a hipótese
prevê que a ordem SV também é uma possibilidade. Essa previsão foi confirmada pela
intuição de falantes consultados: a versão de (4) com sujeito pré-verbal teve média de
aceitabilidade 1,8.
De todo modo, o ponto crucial é que as “alternativas” SV e VS, ainda que
possivelmente aceitáveis em um mesmo contexto, parecem sinalizar para
conceptualizações sutilmente distintas do cenário em foco. Com efeito, os mesmos
falantes consultados para avaliar a possibilidade da anteposição de sujeito em (4)
manifestaram a percepção de que as duas “alternativas” não constroem a cena
precisamente da mesma maneira. De modo geral, eles sugeriram que a sentença VS
produz um efeito de surpresa (pela chegada do Marcelo), ao contrário do uso SV. Isso é
coerente com a ideia de que as codificações SV e VS fornecem instruções de sentido
relacionadas, respectivamente, aos Pontos de Vista do ground e do Domínio do
108
Conteúdo: o Falante está simplesmente comunicando uma informação de que ele já
dispõe, ao passo que o Observador se depara, naquela momento, com o aparecimento do
Marcelo no camarim.
Esse mesmo contraste pode ser verificado no par abaixo. Ambos os exemplos
foram extraídos do corpus Discurso & Gramática e não há entre eles qualquer ruptura
ou descontinuidade. Aqui, eles foram separados apenas para facilitar a referência
posterior.
(5) o Alexandre pegou o carro dele e foi... comprar cerveja... aí estava descendo
pela Conde de Bonfim... né? e ia dobrar... numa rua à esquerda... que era
contramão ((riso)) pra ir no/ na... na padaria que estava aberto lá pra
comprar cerveja... no bar que estava aberto pra comprar cerveja... aí ele...
pô... ligou a seta... reduziu... quando ele virou pra esquerda pra cruzar a
Conde de Bonfim... vinha um táxi... ((interrupção de colega de trabalho))
vinha um táxi correndo pra caramba... e bateu... na porta dele... do lado
dele assim... acabou o carro... pô... ele se machucou na cara... cortou a cara...
entrou vidro dentro do olho dele... mas não chegou a se... a se ferir
gravemente não... foi só assim leve... né? e pô:: o mais engraçado é que ele
saltou do carro... pô... putão... e o motorista do táxi tranquilíssimo... ligando
já pra::/ pegou o rádio lá que tem no táxi e ligando lá pra Central... pediu
reboque e não sei o quê... não deu nem atenção pra ele... aí pararam ((riso))
parou uma porção de tá::xi... aí os caras do táxi começaram a arrumar
confusão... com ele... pô... ele falou que... os caras do táxi falando pra ele
assim “pô... ninguém vai pagar teu prejuízo mesmo... sai fora” ((riso)) e::...
e não pagaram mesmo não... o cara/ veio a polícia... registraram a
109
ocorrência... o próprio policial falou que não adiantava nada que... entrar na
justiça... demora anos... e dificilmente a empresa de táxi vai pagar... você só
leva prejuízo... (Corpus D & G – Narrativa recontada – Rio de Janeiro 1)
(6) E: mas ele também estava errado... né? entrar na contramão...
I: não... ele estava errado... mas o táxi veio cortando pela contramão
também... o cara do táxi que estava mais errado do que ele ainda... e tanto
o policial falou que o cara/ ele tinha toda chance de ganhar no tribunal... só
que... pô... ia demorar anos e::... no final a companhia ainda ia recorrer... se
bobear ne... nem pagava... (Corpus D & G – Narrativa recontada – Rio de Janeiro 1)
Como se vê, o uso VS em (5) está inserido em uma narrativa mais ampla,
protagonizada pelo motorista Alexandre. É fácil notar que toda a sequência de
acontecimentos é apresentada sob a perspectiva desse personagem: o ouvinte/leitor só
tem acesso a novos cenários ou paisagens na medida em que o seu campo visual vai se
alterando. À luz da TEM, o Alexandre atua como um sujeito cognoscente descentrado
que está disponível para a conceptualização dos eventos apresentados.
A certa altura da narrativa, a sequência quando ele virou pra esquerda pra
cruzar a Conde de Bonfim sugere a abertura de um novo campo visual para o motorista
– o que significa, em outras palavras, que essa sequência funciona como um space
builder que promove a abertura de um Espaço de Percepção. E é dentro desse espaço
mental que o evento subsequente será interpretado – o que significa que a cena da vinda
do táxi é enquadrada como objeto de percepção direta do motorista Alexandre.
Ao final da narrativa, no entanto, a entrevistadora intervém, aparentemente
incomodada com a tese implícita na fala do informante (segundo a qual o motorista
110
Alexandre não teria tido responsabilidade pelo acidente). Procurando evidenciar a
fragilidade dessa tese, ela comenta: mas ele também estava errado... né? entrar na
contramão.... Neste ponto, o informante parece sentir-se na obrigação de contra-
argumentar – e o que era uma narrativa se transforma, definitivamente, em um breve
embate argumentativo. É nesse momento que ele enuncia a sentença SV em destaque.
Por meio dela, ele procura reafirmar sua tese, a favor da qual reúne mais adiante alguns
argumentos (aí incluída a opinião do policial).
Nesse contexto, a sentença destacada em (6) não é entendida – diferentemente
do que se vê em (5) – como uma tentativa de reproduzir a experiência original de
percepção vivenciada pelo Observador. Em vez disso, ela é interpretada como um
argumento (portanto, um ato linguístico e intersubjetivo) trazido à tona pelo Falante, no
interior de uma disputa retórica com o Ouvinte, a fim de refutar a tese contrária e
reafirmar sua posição.
A esta altura, deve estar claro que a diferença de intepretação entre (5) e (6) está
diretamente relacionada a uma diferença de Ponto de Vista: no segundo caso,
atribuímos a construção do evento em foco ao próprio Falante; no primeiro, enxergamos
o evento em foco “pelos olhos” de um Observador in loco, como se estivéssemos dentro
da cena presenciando a aproximação do táxi.
Também aqui, essa distinção é coerente com os diferentes contextos de uso de
(5) e (6). Em (5), o ouvinte/leitor acompanha uma narrativa, o que favorece que ele,
imaginativamente, se coloque no lugar de um dos personagens – propiciando a
construção do evento em foco (a aproximação do táxi) segundo a perspectiva do
Alexandre. É por isso que, na prática, tudo se passa como se estivéssemos revivendo a
situação original. Por outro lado, quando o enunciado SV é proferido, a narrativa já foi
interrompida e o contexto é o de uma disputa argumentativa. Assim, nesse caso, o
111
evento de aproximação do táxi não é mais apresentado como a percepção vívida (e
assustadora) experienciada por um determinado personagem, e sim como um argumento
apresentado pelo Falante.
Não surpreendentemente, os falantes que participaram do teste experimental
julgaram a contraparte VS de (6) – mas veio o táxi cortando pela contramão também...
– bem pouco natural: seu grau médio de aceitabilidade foi 0,8. Esse resultado pode ser
explicado pela presença do conectivo “mas” e do focalizador “também”. Ambos os
elementos atuam diretamente na negociação intersubjetiva entre os interlocutores: o
primeiro sinaliza a introdução de um argumento que contraria a tese do informante,
enquanto o segundo é usado pela entrevistadora para focalizar uma informação presente
na fala do informante (a informação expressa pelo sintagma “na contramão”). Como
consequência, esses dois elementos sugerem que a própria Falante é a responsável pela
construção do evento designado (a vinda do táxi pela contramão). A ordem VS, por
outro lado, aponta para a perspectiva do Observador. Assim, produz-se um conflito
entre a posição do sujeito, de um lado, e o emprego dos itens “mas” e “também”, de
outro. Presumivelmente, é esse conflito que produz a sensação de estranheza em (6),
revelada pelas respostas dos falantes que responderam ao teste de aceitabilidade.
Esse contraste é bastante semelhante ao que se vê abaixo:
(7) DI: você viu bem’ muito bem quem é os três’ o Cadu é uma pessoa
maravilhosa mas ele tá influenciado com tudo isso’ ele tá protegendo a
amiga dele (Corpus BBB 10)
112
(8) C: não’ é é é a Fernanda foi procurar ele’ e ela ficou um tempão
procurando’ tempão tempão tempão tempão’ aí daqui a pouco ela olha pro
lado’ tá o moleque dormindo na cadeira (Corpus BBB 10)
Semelhantemente ao vimos em (6), os informantes consultados consideraram
bem pouco natural a inversão do sujeito da sentença destacada em (7): a contraparte VS
do enunciado em negrito obteve média de aceitabilidade 0,5, revelando claramente a
estranheza provocada por essa opção.
À luz da hipótese da perspectiva in loco, não é difícil explicar essa estranheza,
bem como a naturalidade do enunciado em negrito em (8). Ocorre que, em (7), não é
possível atribuir a conceptualização da cena designada a um Observador. Afinal, o
conteúdo do enunciado em destaque não é construído como um objeto de percepção de
algum sujeito cognoscente in loco. Trata-se, em vez disso, de uma simples declaração
produzida pelo Falante. Em (8), por outro lado, a narrativa “transporta” os interlocutores
para o aqui-e-agora dos fatos narrados, de maneira que a cena em foco é construída sob
a ótica da Fernanda, produzindo o efeito de experiência direta. Uma evidência adicional
desse deslocamento dêitico é o advérbio “aqui” (na expressão “daqui a pouco”), cuja
base interpretativa é a localização temporal da personagem Fernanda, e não o momento
da enunciação.
Vejamos agora o uso VS em (9). Defenderei que ele pode ser interpretado nos
mesmos moldes de (4), (5) e (8), ou seja, como uma sentença que traduz uma relação de
experiência perceptual direta entre um sujeito cognoscente in loco e um determinado
objeto de percepção.
(9) DO: ó (+) ó tá tocando o telefone’ cês tão ouvindo’’ (Corpus BBB 10)
113
O enunciado em (9) é proferido por Dourado logo depois que ele ouve um toque
de telefone ao longe; seu objetivo é chamar a atenção dos jogadores Lia e Cadu, aos
quais ele se dirige diretamente. Aqui, defenderei que (9) expressa a própria experiência
de percepção ou constatação in loco desse toque. Nesse sentido, a única particularidade
desse uso, em oposição a (4), (5) e (8), reside no fato de que o lapso temporal entre a
experiência de percepção e sua veiculação linguística é mínimo. Relacionado a isso, está
a fato de que, em (9), o Observador não é evocado lexicalmente, mas apenas
situacionalmente; nos demais exemplos de uso VS, ao contrário, esse Observador é
referido textualmente em uma sequência prévia (no primeiro caso, o SN “esse meu
amigo”; no segundo, o nome “Alexandre” e o pronome “ele”; no terceiro, o SN “a
Fernanda”).
Diante disso, a análise que proponho para (9) é a seguinte. O participante
Dourado desempenha (pelo menos) dois papéis distintos: ele é o Falante, responsável
por proferir o enunciado, e o Observador, ou seja, o indivíduo que acaba de vivenciar a
experiência de ouvir o toque do telefone46
. Por essa razão, reitere-se, proponho que (9)
não se distingue fundamentalmente de (4), (5) e (8): em todos esses exemplos, o evento
em foco é construído segundo a perspectiva do Observador (em oposição à perspectiva
do Falante). Como resultado, obtém-se a seguinte rede de espaços mentais:
46
Neste caso, o termo “Observador” não deve ser entendido de modo literal, mas metonímico: no
domínio sensorial, a audição é substituída pela visão (cf. seção 4.1.1, nota 7).
114
Centro Dêitico da Domínio do
Comunicação Conteúdo
PV’
PV a’
a
b
c
Espaço de FOCO
Ato de Fala d
Espaço de Percepção
(Espaço da Narrativa 2)
Figura 25: Representação de tá tocando o telefone
O ponto fundamental, em suma, é que o uso em (9) envolve uma experiência de
percepção direta: Dourado ouvindo o toque do telefone. E, se há uma experiência de
percepção, então deve haver um experienciador – ou um Observador, para manter o
termo que tem sido empregado neste trabalho. Ao fim e ao cabo, é precisamente a
disponibilidade desse Observador que licencia a ordem VS neste exemplo.
Isso fica claro quando (9) é contrastado a um uso como (10), que parece
desfavorecer fortemente a inversão do sujeito, como se vê em (10b).
(10) L: não’ tá uma pobreza’ vou te enganar não
DI: de trabalho’’
d: telefone
TOCAR d
a: Dourado-Falante
b: Lia
c: Cadu
a’: Dourado-
Observador
115
L: é’ de trabalho’ tá FOda’ meu (+) meu celular tá tocando cada vez
menos (Corpus BBB 10)
Se em (9) o evento de toque do telefone é codificado por meio de uma sentença
VS, o mesmo não parece possível aqui, como mostra (10b):
(10b) # É, de trabalho, tá tocando meu celular cada vez menos
Com efeito, a média do grau de aceitabilidade de (10b), de acordo com os
informantes consultados, foi de 0,9, sugerindo que a sentença foi percebida como pouco
natural.
Como explicar esse resultado? Ocorre que, diferentemente de (9), o uso em (10)
não predica uma experiência de percepção. Isso porque o conteúdo dessa sentença
corresponde a uma abstração: o sintagma “cada vez menos” deixa claro que a Falante
Lia não está evocando uma experiência perceptual específica, mas formulando uma
generalização com base em experiências individuais. Isso está relacionado à diferença
semântica entre as perífrases verbais de (9) e (10): embora as marcas morfológicas dos
verbos sejam as mesmas, apenas no primeiro caso a sentença designa um evento
simultâneo ou quase-simultâneo ao momento da fala; no segundo caso, o sentido da
perífrase verbal é próximo ao do chamado pretérito perfeito composto47
.
Esse tipo de formulação linguística – generalizações, abstrações – parece ser
pouco compatível com a perspectiva do Observador. Isso porque generalizar, ou
abstrair, demanda um distanciamento em relação ao fato (ou melhor, em relação a uma
47
Vale a pena atentar para a complexidade da interpretação dessa sentença. Note-se que ela faz alusão,
metonimicamente, à escassez de propostas de trabalho. Quer dizer: dentro de uma cena complexa, na qual
há uma relação entre o toque do celular e o recebimento de propostas de trabalho, a Falante seleciona o
primeiro evento para fazer referência ao todo. Esse tipo de designação metonímica é compatível com o
que foi dito antes: (10) não simula uma experiência perceptual direta (PV’ do Observador); em vez disso,
trata-se de uma informação transmitida pela Falante a partir de um ponto de vantagem distanciado.
116
série de fatos particulares). E, naturalmente, o ponto de vantagem do Observador –
alguém situado in loco, no calor dos acontecimentos – não proporciona esse
distanciamento. Em resumo, se é verdade que o padrão VS simula ou evoca o instante
em que se dá a experiência de acesso direto a um objeto, decorre que esse padrão está
impregnado de uma espécie de imediatismo perceptual que o torna pouco apropriado
para expressar conteúdos generalizantes como o de (10).
Um dado de uso VS análogo a (9) – em que o Observador não é evocado
textualmente, mas está disponível situacionalmente – aparece em (11). Aqui,
acompanhamos um diálogo que transcorre algum tempo depois de uma prova de
resistência do BBB 1048
:
(11) C: nossa eu tô cansado (+) tá batendo a:: a::
L: [a lombeira]
C: [o cansaço] agora
(Corpus BBB 10)
Assim como em (9), é possível atribuir aqui dois papéis conceptuais ao falante
Cadu: o de Falante propriamente dito e o de Observador49
, ou seja, o indivíduo que
experienciou a sensação subjetiva de cansaço. Por isso, na rede de espaços mentais, o
Cadu corresponderá a dois referentes – disponibilizando, portanto, dois pontos de vista
para a conceptualização do evento em foco (o surgimento do cansaço). Diante disso,
proponho que o enunciado acima, sendo constituído por uma sentença VS, implica a
48
As provas de resistência costumam durar muitas horas (iniciam-se à noite e terminam, em geral, apenas
na manhã seguinte) e frequentemente exigem que os concorrentes passem toda a madrugada em uma
mesma posição ou realizando a mesma tarefa repetitiva.
49
Assim como em (9), também aqui a observação não deve ser entendida literalmente.
117
adoção da perspectiva in loco do Cadu-Observador. Neste caso, a rede de espaços
mentais é perfeitamente análoga à do exemplo (9). Vejamos.
Centro Dêitico da Domínio do
Comunicação Conteúdo
PV’
PV a’
a
b
Espaço de FOCO
Ato de Fala c
Espaço de Percepção
(Espaço da Narrativa 2)
Figura 26: Representação de tá batendo o cansaço agora
É interessante notar como esse exemplo contrasta sutilmente com o uso abaixo.
Depois de sair da cozinha, onde havia travado com a participante Lia um breve diálogo
do qual (11) é uma parte, Cadu encontra Dourado no quarto. É nesse momento que ele
profere o seguinte enunciado:
(12) C: cara tu tinha razão’ o cansaço tá batendo agora
(Corpus BBB 10)
c: cansaço
BATER c
a: Cadu-Falante
b: Lia
a’: Cadu-
Observador
(Experienciador)
118
A sequência cara’ tu tinha razão denuncia: essa fala de Cadu remete a uma
conversa anterior entre ele e Dourado a respeito das “provas de resistência” (em que os
concorrentes frequentemente devem atravessar a madrugada sem mudar de posição).
Nessa conversa, Dourado havia previsto não que os participantes da prova de resistência
iriam se cansar – isso é autoevidente –, mas que o cansaço seria sentido tardiamente
(porque logo após a prova a adrenalina estaria alta). Nesse contexto, a fala de Cadu em
(12) funciona como um testemunho de que a previsão de Dourado estava correta. Do
ponto de vista da estrutura informacional, o foco da sentença em destaque reside no
denotatum do advérbio “agora”: grosso modo, ela equivale a “é agora que o cansaço tá
batendo (conforme você havia previsto)”. Mas o que tudo isso tem a ver com o ponto de
vista e, consequentemente, a posição sintática do sujeito?
Ocorre que, ao enunciar (12), Cadu não está reproduzindo a experiência de
surgimento do cansaço. Diferentemente de (11), não se trata neste caso do Cadu-
Observador sendo invadido aqui-e-agora pela sensação de cansaço, mas do Cadu-
Falante concordando com uma afirmação expressa pelo seu interlocutor em uma
situação comunicativa anterior (e trazida à tona neste momento). Informalmente, o
“cansaço” de (11) é apenas uma entidade abstrata pertencente ao conhecimento de
mundo dos falantes, ao passo que, em (12), trata-se “daquele cansaço ao qual você se
referiu em outro momento”. Do ponto de vista pragmático-funcional, a distinção é a
seguinte: embora em ambos os casos tenhamos um SN definido, em (11) essa definitude
formal se deve apenas ao fato de que se trata de um referente identificável; em (12),
diferentemente, trata-se de um referente que está sendo reativado no contexto da
interação entre aqueles dois interlocutores.
Essa diferença de interpretação é compatível com o uso VS no primeiro caso e
SV no segundo. Afinal, tudo o que um Observador pode fazer, a partir do seu ponto de
119
vantagem in loco, é vivenciar diretamente uma experiência; por outro lado só quem
pode agir intersubjetivamente, reagindo ou respondendo à fala do interlocutor (para
concordar, discordar, justificar, etc.) – e acessando para isso registros de um diálogo
anterior – é, naturalmente, o Falante, ou seja, alguém que se situa no Espaço de Ato de
Fala e está engajado em uma situação comunicativa. Isso explica por que a rede de
espaços mentais ativada por (12) é sensivelmente diferente daquela de (11):
Centro Dêitico da Domínio do
Comunicação Conteúdo
c
d
Espaço
Metatextual
FOCO PV ’
a c’
b
Espaço de Espaço de Presente
Ato de Fala
Figura 27: Representação de o cansaço tá batendo agora
Note-se que, nessa rede, estão representados dois referentes para a entidade
abstrata CANSAÇO: c no Espaço Metatextual e sua contraparte c’ no Espaço Foco. E,
mais do que isso, eles estão ligados por uma função pragmática, sugerindo a existência
c: cansaço
BATER c a: Cadu-Falante
b: Dourado
c: cansaço
d: logo após a prova
NÃO BATER c, d
120
de uma relação entre o cansaço que o Cadu-Observador está efetivamente sentindo
“agora” e o cansaço que Dourado havia previsto em conversa anterior.
Ao fim e ao cabo, enunciados VS como os de (9) e (11) são análogos a usos
como “caiu uma gota de chuva na minha cabeça”, “entrou um cisco no meu olho”,
“parou a música” ou “veio uma pontada forte na barriga agora”, dentre tantos outros,
quando proferidos “do nada” (não inseridos em uma sequência linguística mais ampla) e
pouco depois (às vezes imediatamente depois) da ocorrência do evento designado: todos
eles registram/relatam a experiência de percepção pela qual o Observador está passando
ou acaba de passar.
Em resumo, esta seção procurou analisar contrastivamente usos SV e VS, a fim
de verificar a hipótese de que essa alternância é motivada por um processo conceptual
de deslocamento do Ponto de Vista. Dessa maneira, o padrão SV preserva o arranjo de
visualização default (PV do Falante, localizado no Espaço de Ato de Fala, que pertence
ao Centro Dêitico da Comunicação, ou seja, ao aqui-e-agora da interação em curso) ao
passo que o padrão VS se associa a um arranjo alternativo (PV’ do Observador,
localizado no Domínio do Conteúdo, ou seja, no aqui-e-agora do evento em foco).
4.3 Uma tipologia para os usos VS
Ao discutir os exemplos de uso VS na seção 4.2, vimos casos em que o
Observador não coincide com o Falante (exemplos (4) e (5)) e outros em que Falante e
Observador correspondem à mesma pessoa física (exemplos (9) e (11)). Essa distinção
pode servir como ponto de partida para uma tipologia dos usos VS, cujo fundamento é o
tipo de Observador. Nesta seção, procurarei sistematizar essa tipologia, que está
sintetizada no diagrama abaixo:
121
Figura 28: tipologia dos usos VS segundo o tipo de Observador
A figura acima distingue os diferentes usos VS com base em propriedades
semânticas do Observador. Todos os exemplos discutidos até aqui apresentam um
Observador determinado, ou seja, um Observador que corresponde a um (ou mais de
um) referente cuja identidade é recuperável. Vejamos dois desses casos:
(13) o meu colega me contou... que ele estava os dois indo... aí ele foi
atravessar a rua... aí veio um carro disparado... e atropelou ele...
(Corpus D&G – Narrativa recontada – Rio de Janeiro 2)
(14) C: não Lia deixa eu falar’ eu tava assim no quarto descansando né’’ aí do
nada entrou o Dourado MUIto revoltado’ aí eu assim’ que foi cara’’
(Corpus BBB 10)
Fundamentalmente, os dois usos destacados acima podem ser analisados nos
mesmos moldes de todos os enunciados discutidos até aqui, ou seja, como
representações de uma experiência perceptual direta (Ponto de Vista situado no
Domínio do Conteúdo). Além disso, nos dois casos, o experienciador, ou Observador, é
textualmente evocado em uma sequência prévia, sendo explicitamente disponibilizado
coincidente com Falante
TIPO DE
Determinado
não-coincidente com o Falante
OBSERVADOR Indeterminado/Genérico
122
como locus de consciência potencial para a construção do evento subsequente (aí ele foi
atravessar a rua; eu tava assim no quarto descansando né).
Apesar disso, há uma diferença interessante. Se, em (13), não se verifica uma
relação de identidade entre os referentes que desempenham os papéis de Falante e de
Observador, em (14), a pessoa física do falante é conceptualmente cindida, sendo
representada em dois planos distintos: no Centro Dêitico da Comunicação, na condição
de Falante (o sujeito responsável pelo proferimento dos enunciados) e no Domínio do
Conteúdo, na condição de Observador (o sujeito responsável pela experiência de
percepção). Aqui, portanto, pode-se falar na existência de “dois Cadus”: o Cadu-Falante
(narrador), localizado no aqui-e-agora da interação (portanto, no Centro Dêitico da
Comunicação), e o Cadu-Observador (personagem), localizado no aqui-e-agora dos
fatos narrados (portanto, no Domínio do Conteúdo). Vejamos:
Centro Dêitico da Comunicação Domínio do Conteúdo
PV’
PV a’
c
a
b
Espaço de FOCO
Ato de Fala d
Espaço de Percepção
(Espaço da Narrativa 2)
Figura 29: Representação de eu tava assim no quarto descansando né’’ aí do nada entrou o Dourado
d: Dourado
ENTRAR d
a: Cadu-Falante
b: Lia
a’: Cadu-bservador
c: quarto
ESTAR
DESCANSANDO
a’, c
123
Na figura acima, a linha tracejada representa uma função pragmática ligando o
Cadu-Falante ao Cadu-Observador. Como prevê o Princípio da Identidade (seção 2.1.1),
quando dois referentes estão ligados por uma função pragmática, a descrição de um
deles pode ser usada para acessar o outro. É o que se verifica aqui: se o pronome “eu” se
refere ao Falante (referente a), ele é usado também para acessar um personagem da
narrativa (referente a’). O modelo BCSN fornece meios de representar separadamente
esses dois papéis desempenhados pelo falante, possibilitando capturar com mais
precisão tanto o fracionamento quanto a interconexão das informações disponibilizadas
em uma determinada situação comunicativa.
São abundantes os dados que exibem o tipo de cisão conceptual do falante
representado na figura acima; os usos VS em (15) e (16) servem como ilustração
adicional.
(15) C: e ele assi/ ele dorme muito’ é ele que eu te falei que tipo tem vezes que
a gente vai se arrumar na casa dele aí fica esquen/ na/ no/ tipo tomando
uma birita antes tipo aí tô lá pronto na casa dele’ daqui a pouco Bruno’
Bruno’ Bruno’ Bruno’ ((simula batidas na porta)) quando abre a porta do
banheiro tá ele no vaso ó ((simula ronco)) dormindo
(Corpus BBB 10)
(16) A: não Dimmy’ inacrediTÁvel (+) a gente tava lá almoçando’ tudo bem’
tudo normal’ de rePENte veio Dourado’ dizer que a gente não pode
chamar ele de chato’ porque ele não deu liberdade pra GENte
(Corpus BBB 10)
124
Nestes dois casos, o falante desempenha simultaneamente os papéis de Falante e
de Observador. Em (15), o Cadu-Falante narra uma história na qual, a certa altura, o
Cadu-personagem abre a porta do banheiro e se depara com seu amigo Bruno “no
vaso”; em (16), a Anamara-Falante conta um episódio no qual a Anamara-personagem
está almoçando calmamente quando é surpreendida pela aproximação de Dourado.
Neste ponto, é preciso registrar ainda a possibilidade de usos como (9), repetido
e renumerado abaixo:
(17) DO: ó (+) ó tá tocando o telefone’ cês tão ouvindo’’ (Corpus BBB 10)
O caso de (17) é fundamentalmente semelhante ao de (14), (15) e (16): como já
vimos (figura 25), há aqui uma cisão conceptual que produz a existência de “dois
Dourados”. A única diferença é que, neste caso, o Observador é evocado apenas
situacionalmente. Conforme já ficou dito, isso é possível em função da quase-
sobreposição temporal entre o evento de percepção e o evento de enunciação.
Mais interessante ainda, do ponto de vista das “acrobacias cognitivas”
(FERRARI, 2012) envolvidas na construção do significado, é a possibilidade de que um
determinado indivíduo seja cindido não em dois, mas em três referentes distintos na
rede de espaços mentais. É o que ocorre no exemplo abaixo.
(18) eu estava segurando/ eu estava ali em pé segurando naquela chupeta... aí
eu... sem entender... eu estou vendo aquele tumulto vindo na minha
direção... e quando eu dei por conta... pô...só estava eu e uns... dois no/
naquele vagão... a gente ficou preocupado... (Corpus D & G – Relato de
experiência pessoal – Rio de Janeiro 1)
125
Neste exemplo, o informante corresponde, naturalmente, ao Falante, localizado
no Espaço de Ato de Fala do Centro Dêitico da Comunicação. Mas, além disso, ele
aparece duas vezes no Domínio do Conteúdo: por um lado, ele é o sujeito de
consciência que presencia a cena designada pela sentença VS (quando eu dei por
conta); por outro, esse indivíduo faz parte da cena percebida por ele mesmo (só estava
eu e uns... dois). Trata-se, portanto, de um caso em que um determinado sujeito
conceptualizador toma consciência da sua própria condição, voltando suas atenções para
si mesmo e para a situação em que ele está inserido. Vejamos como essa situação pode
ser representada nos termos do modelo BCSN:
Centro Dêitico da Domínio do
Comunicação Conteúdo
PV’
PV a’
a
b
Espaço de
Ato de Fala
a’’
c d FOCO
Espaço de Percepção
Figura 30: Representação de e quando eu dei por conta...
pô...só estava eu e uns... dois no/ naquele vagão...
a’’: informante-objeto
c: “uns dois”
d: vagão
ESTAR a’’, c, d
a: informante-Falante
b: entrevistador
a’: informante-
Observador
DAR POR CONTA a’
126
O que a figura 30 mostra é que, em (18), o informante desempenha três papéis
conceptuais: o de Falante, o de Observador (sujeito da experiência de percepção) e o de
objeto da experiência de percepção. De acordo com o Princípio da Identidade (seção
2.2.1), a função pragmática representada pela linha tracejada permite que o pronome
“eu”, cujo propósito primário é designar o Falante a, seja usado para acessar também o
Observador a’ e o objeto de percepção a’’.
Até este ponto, todos os exemplos discutidos envolvem um Observador
determinado. Mas, como mostra a figura 28, há casos em que o Observador é genérico
ou indeterminado. É o caso de (19).
(19) DI: Serginho’ pensa no seu close
C: o Brasil vai ficar lou::co
S: por que’’ por que eu dou bafão’’
C: pô nego vai olhar vai tá tu e a Fernanda se agarrando na cama
(Corpus BBB 10)
Compreender este exemplo requer alguma contextualização. No momento em
que a conversa acontece, os participantes Serginho e Dicésar estão no “paredão”, e no
dia seguinte um dos dois será eliminado do programa. Aqui, a palavra “close” se refere
ao clipe com os melhores momentos dos “emparedados”, que sempre vai ao ar nos dias
de eliminação. Nesse diálogo, Cadu prevê que uma das cenas do “close” será o
momento em que Serginho e Fernanda trocam carícias na cama.
O que explica a inversão do sujeito neste caso? Aqui, uma das palavras-chave
parece ser o substantivo “close”: ela nos ajuda a construir a cena designada pela
sentença VS como objeto de percepção do telespectador. Isso, claro, é reforçado pela
127
sentença nego vai olhar, em que o verbo perceptual funciona como space builder capaz
de disparar a abertura do Espaço de Percepção onde o conteúdo do enunciado VS será
interpretado. Aqui, como se vê, o Observador, evocado lexicalmente pela palavra
“nego”, corresponde a qualquer potencial telespectador do programa, conforme as
informações cotextuais permitem inferir.
Um exemplo análogo é (20), em que o Observador também é genérico. A única
diferença é que, neste caso, ele é evocado pelo sintagma nominal “o cara”:
(20) DO: é muito BOM (+) a gente é big brother’ a gente é né’’
F: eu vou comprar’ eu vou comprar
DO: cara a gente tem que tirar uma onda também’ o cara chega lá em casa’
tá você lá
F: com o roupão
(Corpus BBB 10)
Neste exemplo, os participantes Dourado e Fernanda, do BBB 10, conversam
sobre a possibilidade de adquirir o roupão com a marca do Big Brother Brasil. O
primeiro defende essa ideia, sob o argumento de que a gente tem que tirar uma onda
também. É só a partir desse ponto que ele inicia uma narrativa hipotética (co-narrada
por Fernanda). Nessa narrativa, um indivíduo (“alguém”) se desloca até um
determinado local (“lá em casa”) e, ao chegar, se depara com uma determinada cena
(“você lá com o roupão”).
Sob diversos aspectos, o uso em (20) é notavelmente semelhante a todos os usos
VS discutidos até aqui, na medida em que a cena designada pela sentença VS em
destaque é apresentada segundo a perspectiva de um sujeito in loco. A única diferença
sensível, reitere-se, é que o Observador, evocado pelo sintagma nominal “o cara”, tem
128
referência genérica: trata-se de qualquer um que venha a chegar “lá em casa” e a se
depare com “você lá com o roupão”.
Por fim, é preciso considerar casos em que o Observador genérico não é evocado
lexicalmente, e sim inferido. É o que se vê em (21).
(21) L: e a menininha ficou’’
DO: eles se perdem dela’ e ele fica sempre pensando nela
C: por que ele largou’’
DO: porque era filho da PUta’ era filho da puta
L: ah um dos irmãos era filho da puta
C: o irmão maior era filho da puta (+) e aí ele pega e larga ela (+) e aí ele/
ele/ aparece ele criança vendendo’ roubando comida no trem’ viviam
em cima do trem (Corpus BBB 10)
Nesta passagem, o participante Dourado relata, para Lia e Cadu, a história do
filme Quem quer ser o milionário?. Essa parte do relato diz respeito, especificamente, à
sequência em que o protagonista Jamal e seu irmão, ainda crianças, deixam para trás
uma “menininha” e, na cena seguinte, são vistos vendendo’ roubando comida no trem.
Como se pode notar, o evento designado é construído sob a ótica do espectador
do filme. É esse espectador, portanto, que desempenha o papel de Observador, já que
ele presencia diretamente a cena designada. Assim como em (19) e (20), trata-se de um
Observador genérico; neste caso, qualquer um que se disponha a assistir ao filme. Mas,
diferente desses dois exemplos, em (21) o Observador não é evocado lexicalmente; em
vez disso, ele deve ser inferido com base em informações cotextuais e no nosso
“conhecimento de mundo” (sabemos que filmes pressupõem espectadores).
129
Ao fim e ao cabo, o que os usos VS discutidos sugerem é que, a despeito da
referência semântica do Observador (determinado ou genérico, coincidente ou não com
o Falante), o padrão verbo-sujeito parece de fato sinalizar para a construção da cena a
partir de uma perspectiva in loco, promovendo um movimento de aproximação entre
sujeito conceptualizador e objeto conceptualizado e frequentemente produzindo, como
resultado, um efeito de maior expressividade ou vivacidade.
4.4 Ordem VS e mesclagem de ponto de vista
Até aqui, argumentei que o padrão VS funciona como pista formal que instrui o
ouvinte a interpretar o evento em foco a partir de um centro dêitico deslocado,
assumindo a perspectiva de um sujeito cognoscente in loco. Nesse sentido, interpretar
uma sentença como “tá ele no vaso” envolve uma “acrobacia cognitiva” (FERRARI,
2012) por meio da qual nos projetamos para o espaço-tempo da narrativa, colocando-
nos no lugar do Observador, ou seja, o Cadu-personagem. Da mesma maneira,
interpretar um uso do tipo “vinha um táxi correndo pra caramba” implica assumir o
ponto de vantagem do motorista Alexandre, localizado no aqui-e-agora do evento em
foco. Implica, em outras palavras, ver o mundo “pelos olhos” desse personagem.
Acontece que, se a ordem linear verbo-sujeito sugere, ou promove, um
afastamento em relação à situação comunicativa, é fato que enunciados VS concretos
frequentemente exibem outras marcas formais que, atuando no sentido contrário,
demandam o acesso ao ground interacional. Aqui, vou me concentrar em duas delas: a
morfologia do verbo e a forma do sintagma nominal em relação de sujeito.
Comecemos pelo exemplo (22), em que o informante relata uma tentativa de
assalto de que seu tio foi vítima.
130
(22) ele comprou o relógio... e voltou... quando voltou... para casa... estava um
pouco/ ah... meu Deus... estava assustado... com... com medo... porque... se
alguém... iria roubar o relógio... de repente... aparece do... dois garotos...
que ro/ queriam roubar o relógio dele... (Corpus D&G – Narrativa recontada
– Rio de Janeiro 2)
Neste exemplo, verifica-se o chamado presente histórico ou presente narrativo.
Como diversos autores já mostraram (LANGACKER, 1991; CUTRER, 1994;
GERHARDT, 2002), esse uso do presente do indicativo envolve o mesmo movimento
conceptual associado ao padrão VS: deslocamento do centro dêitico, com adoção de um
ponto de vista descentrado50
. Ao mesmo tempo, o sintagma nominal é pragmaticamente
não-identificável (LAMBRECHT, 1994). Isso significa que a interpretação desse
sintagma não demanda acesso a informações disponibilizadas no ground, quer sejam
informações disponíveis situacionalmente (e presentes, portanto, no Ground Real), quer
sejam informações disponibilizadas textualmente, ao longo da interação em curso (e
registradas, portanto, no Espaço Metatextual).
Nesse sentido, tanto a forma verbal quanto a estrutura do SN fornecem
instruções compatíveis com a da ordem VS, quais sejam, a adoção de um Ponto de Vista
distanciado do ground comunicativo. Por isso, neste caso, há uniformidade na adoção
de uma perspectiva descentrada. Isso não significa que a perspectiva do Falante esteja
inteiramente ausente; quer dizer apenas que o ground está tão subfocalizado quanto
possível, com a perspectiva do Falante permanecendo maximamente implícita. Como
resultado, obtém-se a seguinte configuração de espaços mentais:
50
Dos três trabalhos citados, o de Cutrer (1994) é o único que se baseia primariamente na Teoria dos
Espaços Mentais. Interessantemente, sua análise do presente histórico (CUTRER, 1994, cap. 7) se
aproxima bastante do tratamento desenvolvido nesta tese para a inversão do sujeito no PB falado: a autora
sustenta que o presente histórico estabelece uma nova base para a conceptualização do evento em foco.
131
Centro Dêitico da Domínio do
Comunicação Conteúdo
PV’
PV c
a
b
Espaço de FOCO
Ato de Fala d
Espaço de Percepção
Figura 31: Representação de aparece dois garotos
O caso de (23), contudo, é diferente. Aqui, o informante reconta uma situação
trágica vivenciada por um “colega”:
(23) o meu colega me contou... que ele estava os dois indo... aí ele foi
atravessar a rua... aí veio um carro disparado... e atropelou ele... (Corpus
D&G – Narrativa recontada – Rio de Janeiro 2)
Neste exemplo, embora o SN não demande acesso a informações do ground, o
tempo verbal toma como referência o aqui-e-agora da comunicação. Afinal, ao contrário
d: dois garotos
APARECER c
a: informante
b: entrevistador
c: “ele”
(Observador)
ASSUSTADO,
COM MEDO c
132
da forma de presente quando usada no relato de fatos passados (presente histórico ou
narrativo), a forma de pretérito não promove deslocamento dêitico – pelo contrário, ela
mantém a ancoragem dêitica no ground. Portanto, neste caso, a forma verbal nos instrui
a “olhar” para o fato passado (o evento designado pela sentença VS) a partir do ponto de
vantagem do Centro Dêitico da Comunicação. Em outras palavras, interpretar essa
forma verbal demanda que se acesse – e não que se abstraia – o momento da enunciação
(o Ground Real, nos termos do modelo BCSN). Ocorre que só quem pode acessar esse
momento são os interlocutores engajados na situação comunicativa – o Observador in
loco (neste caso, o “colega”) naturalmente não tem essa possibilidade, já que ele
“existe” em outro plano, participando do aqui-e-agora dos fatos narrados.
Na prática, isso significa que a sentença destacada em (23) apresenta duas
marcas formais conflitantes no que diz respeito ao posicionamento do Ponto de Vista:
enquanto a ordem VS implica a adoção do PV’ do Domínio do Conteúdo (Observador),
a opção pelo pretérito perfeito associa-se ao PV do ground (Falante). Neste caso,
portanto, a interpretação da sentença demanda o monitoramento simultâneo de duas
perspectivas: ao mesmo tempo em que “olhamos” para o evento em foco a partir do
ponto de vantagem do aqui-e-agora interacional, conforme a instrução semântica da
forma de pretérito, também o percebemos segundo uma perspectiva in loco, “pelos
olhos” do personagem que se deparou com a aproximação do carro.
Trata-se, portanto, de um caso de mesclagem de pontos de vista: se o uso
concreto resulta da combinação de diferentes construções gramaticais, duas delas – o
padrão verbo-sujeito e a construção morfológica de pretérito – fornecem instruções
conflitantes, resultando em um enunciado concreto com ponto de vista mesclado,
conforme o esquema abaixo:
133
Centro Dêitico da Domínio do
Comunicação Conteúdo
PV’
a Espaço de c
Ato de Fala d
b
PV a’
b’
e
Ground Real
Espaço de Percepção
(Espaço-mescla)
Figura 32: Representação de aí ele foi atravessar a rua... aí veio um carro disparado...
Um caso ligeiramente distinto – mas idêntico no fundamental – é o de (15),
retomado, editado e renumerado abaixo:
(24) C: daqui a pouco Bruno’ Bruno’ Bruno’ Bruno’ quando abre a porta do
banheiro tá ele no vaso ó ((simula ronco)) dormindo (Corpus BBB 10)
Se em (23) o PV do ground está ligado à forma do verbo, em (24) ele fica
evidenciado pela forma do sintagma nominal com relação de sujeito. Na medida em que
e: carro
VIR DISPARADO e
a e a’: informante
b e b’: entrevistador
c: “ele” / colega
(Observador)
d: rua
IR ATRAVESSAR c, d
134
se trata de um sujeito pronominal de terceira pessoa, sua interpretação demanda acesso a
informações disponibilizadas em porções anteriores do discurso, as quais, estando
registradas no Espaço Metatextual, só podem ser acessadas a partir do ground. Ao
mesmo tempo, e mais uma vez, a ordem linear verbo-sujeito aponta para a adoção do
ponto de vista descentrado do Domínio de Conteúdo. Com isso, a mesclagem de
perspectiva resultante se dá nos seguintes termos:
Centro Dêitico da Domínio do
Comunicação Conteúdo
Espaço Metatextual PV’
d
c e
PV a
b
c
Espaço de f
Ato de Fala
Espaço de Percepção
(Espaço-mescla)
Figura 33: Representação de quando abre a porta do banheiro tá ele no vaso
Por fim, é preciso dizer ainda que pode acontecer o contrário: enquanto o padrão
sintático sinaliza para o PV do ground, outras marcas formais, como a estrutura
c’: “ele” (Bruno)
f: vaso
ESTAR c’, f
a: informante
b: entrevistador
d: agente
(Cadu-Observador)
e: porta do banheiro
ABRIR d, e
c: Bruno
135
morfológica do verbo, apontam para o deslocamento dêitico, levando à adoção do PV’
do Domínio do Conteúdo. É precisamente isso que se vê no exemplo abaixo, em que a
participante Fernanda imagina a surpresa sentida por um “brother” hipotético que ganha
um carro durante o programa e mais tarde, ao chegar em casa, se depara com esse carro
(“ele”) “na sua garagem”
(25) F: não mas imagina que delícia’ cê chega na sua casa’ ele tá na sua
garagem (Corpus BBB 10)
Nesse caso, somos transportados para o mundo da narrativa (ou seja, colocamo-
nos no lugar do personagem representado pelo pronome “cê”) não por causa da ordem
sintática, que sinaliza para perspectiva distanciada, mas em função da forma de
presente, que aponta para a construção do cenário a partir do centro dêitico deslocado.
Aqui, portanto, o enunciado resultante envolve, mais uma vez, Ponto de Vista mesclado,
mas de maneira inversa à que se viu nos exemplos anteriores: neste caso, é a morfologia
do verbo, e não a ordem sintática, a marca formal responsável por convocar a
perspectiva in loco do Observador.
Em suma, esta seção procurou observar a construção do sentido de alguns
enunciados concretos. Como vimos, é possível que, em um mesmo enunciado,
construções distintas forneçam instruções semânticas divergentes. Nos exemplos (23) a
(25), verificamos como isso pode acontecer no que diz respeito à localização do Ponto
de Vista: com notável frequência, a intepretação de um enunciado envolve o
gerenciamento simultâneo de duas perspectivas distintas, de uma maneira que um
evento pode ser construído ao mesmo tempo a partir dos pontos de vantagem do ground
e do Domínio do Conteúdo. Aqui, procurei mostrar que isso caracteriza uma situação de
mesclagem de Pontos de Vista.
136
4.5 Síntese e encaminhamentos
Este capítulo propôs uma abordagem baseada em espaços mentais para o
fenômeno da inversão do sujeito no português brasileiro: seu objetivo foi desenvolver e
demonstrar, por meio da análise de dados reais, a hipótese da perspectiva in loco,
segundo a qual a ordem VS serve como pista formal que aponta para o posicionamento
do Ponto de Vista no Domínio do Conteúdo. Cumprida essa etapa, o próximo capítulo
parte para uma abordagem complementar, fundamentada na Gramática de Construções:
seu objetivo é formalizar o tratamento da ordem VS como uma construção gramatical,
ou seja, como um pareamento convencional de forma e significado.
137
5 Inversão do sujeito e semântica de
frames: uma abordagem construcional
No capítulo anterior, procurei desenvolver e demonstrar, por meio da análise de
dados reais, a hipótese central desta tese, segundo a qual a inversão do sujeito está
associada à perspectiva in loco. Com base nessa ideia, mostrei como a alternância
sintática SV / VS decorre de uma possibilidade de flutuação do Ponto de Vista na rede
de espaços mentais.
A partir de agora, passo a tratar sistematicamente a ordem VS como uma
construção gramatical, ou seja, como um pareamento convencional de forma e
significado. Na próxima seção, procuro delinear o fundamento semântico da construção
verbo-sujeito, nos termos da Gramática Cognitiva langackeriana. Em seguida, parto da
caracterização proposta para descrever seu alinhamento entre sintaxe e semântica,
formalizando-o segundo as linhas gerais do modelo construcional de Goldberg (cujas
obras-síntese são Goldberg (1995; 2006)). Por seu turno, essa sistematização permite
investigar, na seção 5.3, o problema da compatibilidade entre a construção verbo-sujeito
e diferentes classes verbais. Por fim, a seção 5.4 sintetiza os pontos mais relevantes e
prepara a transição para o capítulo seguinte.
5.1 Inversão do sujeito e semântica de frames: uma base conceptual para a
construção VS
Se a ordem verbo-sujeito se qualifica como uma construção gramatical, isso
significa que ela deve apresentar não apenas uma estrutura sintática, mas também uma
138
especificação semântica própria. Nesse sentido, o objetivo desta seção é descrever o
significado convencionalmente associado à construção VS.
Até agora, argumentei que o padrão verbo-sujeito está associado à perspectiva in
loco: a cena designada pela sentença VS é apresentada sob a ótica de um sujeito que
atua como “testemunha ocular”, localizada no aqui-e-agora do evento em foco. Essa
caracterização serve como ponto de partida: podemos assumir que o polo semântico da
construção VS corresponderá à cena conceptual representada no Domínio do Conteúdo.
Como vimos, trata-se de uma cena de experiência direta: uma situação na qual um
sujeito cognoscente in loco acessa / experiencia diretamente um determinado evento.
Neste ponto, gostaria de sugerir que essa cena corresponde a uma gestalt
experiencial específica, à qual irei me referir como Cena de Focalização de Atenção
(CFA). O diagrama abaixo procura traduzir visualmente essa gestalt, que deve ser
entendida como o frame semântico convencionalmente associado ao padrão sintático
verbo-sujeito.
= Observador
X = Entidade Focalizada
= Trajetória do foco
de atenção
= Campo Visual
Figura 34: Cena de Focalização da Atenção
X
139
Como se vê, a CFA inclui os seguintes elementos conceptuais: o Observador, o
Campo Visual e a Entidade Focalizada (EF)51
. Em poucas palavras, trata-se de um
cenário no qual o Observador volta sua atenção para uma determinada entidade,
passando a focalizá-la. Nesse cenário, o Campo Visual corresponde simplesmente à
totalidade do horizonte perceptual acessível ao Observador em um dado momento
(incluindo seus estados internos). No conjunto, a CFA procura representar um processo
de (re)alocação da atenção: ao centrar sua atenção sobre uma entidade que até então
não estava focalizada, o Observador produz, como resultado, o aumento do foco de
atenção sobre ela. Vejamos um exemplo concreto:
(26) o meu colega me contou... que ele estava os dois indo... aí ele foi
atravessar a rua... aí veio um carro disparado... e atropelou ele...
(Corpus D&G – Narrativa recontada – Rio de Janeiro 2)
Minha proposta é a de que a sentença VS em destaque evoca uma Cena de
Focalização de Atenção, na qual um Observador (por definição, como já sabemos, um
sujeito cognoscente in loco, ou seja, inserido no universo da narrativa) passa a focalizar
uma nova Entidade, que ingressa no seu Campo Visual. No exemplo acima, o
Observador é o personagem da narrativa identificado alternativamente como “meu
colega” e “ele”. Por seu turno, o Campo Visual é a totalidade do horizonte perceptual
acessível a esse sujeito no momento de ocorrência do evento designado pela sentença
em destaque. E, finalmente, a Entidade Focalizada, aquela sobre a qual o Observador
passa a alocar sua atenção, é o carro.
51
Vale lembrar, conforme ressalva feita no capítulo anterior, que o domínio visual é apenas um ponto de
partida, de maneira que o termo “Observador” deverá, em muitos casos, ser interpretado figurativamente.
Quanto ao Campo Visual, ele será, em alguns momentos, referido também como horizonte visual,
horizonte perceptual ou horizonte de consciência.
140
Na figura 34, é importante notar que apenas um elemento da CFA aparece
representado com linhas cheias: o “X”, correspondente ao elemento conceptual rotulado
como Entidade Focalizada. Por outro lado, tanto o Observador quanto o Campo Visual
são representados com linhas pontilhadas. Nos termos da Gramática Cognitiva, isso
significa que apenas a Entidade Focalizada corresponde a um elemento perfilado, ao
passo que Observador e o Campo Visual participam da base da predicação, compondo a
sua parte pressuposta.
O contraste entre os exemplos (1) e (1c), retomados e renumerados abaixo, pode
ilustrar a importância dessa caracterização.
(27) F: Di seu chapéu tá no banquinho vermelho (Corpus BBB 10)
(27b) Ai, quando eu olho, tá seu chapéu no banquinho vermelho.
É fácil notar que as sentenças destacadas em (27) e (27b) designam a mesma
cena objetiva: trata-se de uma cena de locação de uma entidade (o “chapéu”) em um
espaço (a região do “banquinho vermelho”). Para representar essa cena, podemos
recorrer ao esquema imagético do contêiner (JOHNSON, 1987). Nesse esquema, o
chapéu corresponde ao X, enquanto a região do banquinho corresponde ao círculo:
Figura 35: esquema imagético do contêiner:
cena de locação
X
141
A despeito dessa semelhança, as duas sentenças em negrito não são
semanticamente idênticas. E essa diferença pode ser explicada à luz da gramática
cognitiva langackeriana. Assim: se, por um lado, ambas as sentenças designam a mesma
cena objetiva (aquela representada na figura 35), na medida em que perfilam
precisamente os mesmos elementos, elas, por outro lado, predicam cenas distintas. Isso
porque, enquanto a sentença SV em (27) predica apenas a cena de locação codificada no
esquema do contêiner, o que (27b) efetivamente predica é um evento de percepção (ou
observação) – em outras palavras, uma Cena de Focalização da Atenção. Dentro desse
cenário predicado pelas sentenças VS, o Observador fica pressuposto (pertence,
portanto, à base), enquanto o “chapéu” e o “banquinho vermelho” são perfilados
(compondo, portanto, a parte efetivamente designada da predicação). Assim:
X = Cena de continência
Figura 36: Representação esquemática de tá seu chapéu no banquinho vermelho em (27b)
A comparação entre os exemplos (27) e (27b) deve ter servido para tornar
evidente a generalização proposta nesta seção, segundo a qual sentenças VS predicam
uma Cena de Focalização da Atenção. Dito de outra maneira, sentenças VS podem
designar diferentes tipos de eventos, mas deverão predicar, em última instância, um
evento (ou uma experiência) de percepção. Isso se aplica, como vimos, à sentença VS
X
142
em (27b): se alguém diz tá seu chapéu no banquinho vermelho, o que a sentença
informa não é apenas que há um chapéu sobre o banco, mas que alguém está
constatando diretamente a existência do chapéu sobre o banco (com a ressalva de que a
parte de “alguém constatar diretamente” não é evocada lexicalmente, mas apenas
sinalizada pela própria inversão da ordem canônica).
5.2 Formalizando a construção VS: o alinhamento sintaxe-semântica
Na seção anterior, propus que a Cena de Focalização da Atenção é o fundamento
semântico-conceptual da construção verbo-sujeito. Diante disso, a questão que se coloca
a partir de agora é a seguinte: como essa cena é codificada sintaticamente? Em outras
palavras, como representar o pareamento sintaxe-semântica da construção VS, nos
termos da Gramática de Construções (GC)? Nesta seção, procuro responder a essa
pergunta, valendo-me para isso, em linhas gerais, do modelo goldbergiano
(GOLDBERG, 1995; 2006).
O ponto fundamental, no que se refere à estrutura sintática, é que a construção
VS prevê apenas um argumento: aquele correspondente ao sujeito. Assim, temos a
seguinte situação. Por um lado, os elementos conceptuais não-perfilados (Observador e
Campo Visual) não são sintaticamente codificados pela construção, ou seja, não se
realizam como argumentos previstos no próprio padrão construcional. Por outro lado, o
elemento perfilado (a Entidade Focalizada) apresenta correspondência com um
argumento sintático, sendo realizado como sujeito. Isso pode ser visto nos exemplos
abaixo:
(28) começa a chover assim... torrencialmente... e fura o pneu... fura o pneu do
carro dela... (Corpus D&G – Narrativa de experiência pessoal – Rio de Janeiro 1)
143
(29) aí a gente::... caiu sentada... mas a gente não se machucou... ficou
doendo... aí... aí... bateu o sinal... aí a gente foi formar... (Corpus D&G –
Narrativa de experiência pessoal – Rio de Janeiro 1)
Em (28) e (29), a sentença VS apresenta de fato apenas um argumento, que
corresponde semanticamente à Entidade Focalizada e sintaticamente ao sujeito. Tem-se,
portanto, uma situação na qual os sujeitos “o pneu” e “o sinal” são, simultaneamente,
argumentos da construção e dos verbos respectivos. Em outras palavras, o papel
argumental Entidade Focalizada se funde, em (28), ao papel participante “coisa furada”
e, em (29), ao papel participante “coisa batida”.
A situação, porém, é um pouco diferente em (30) a (32):
(30) eles ficaram conversando com... com... o pessoal de lá... daqui a pouco
começou a correr gente lá pra esquina... (Corpus D&G – Narrativa recontada
– Rio de Janeiro 2)
(31) S: bi’ entrou uma mariposa desse tamanho no:: na cozinha (+)
começou a voar’ não consegui nem comer direito (Corpus BBB 10)
(32) aí quase acabando o baile... quase todo mundo já indo embora... aí chegou
a polícia entrou dentro do baile... (Corpus D&G – Narrativa de experiência
pessoal – Niterói)
Minha análise para os exemplos acima é a que segue. Em (30), temos, além do
sujeito “gente”, argumento obrigatório tanto do padrão VS quanto do verbo “correr”,
144
um sintagma preposicionado que corresponde a um adjunto tradicional (GOLDBERG,
2006), na medida em que não é argumento nem da construção nem do verbo. Já em (31)
e em (32), temos, para além do sujeito, um sintagma locativo preposicionado que é
argumento do verbo, mas não da construção – com a diferença de que, no primeiro caso,
ele está foneticamente expresso (“no:: na cozinha”) e, no segundo, foneticamente nulo
(um argumento zero que retoma anaforicamente o “baile”). Isso quer dizer o seguinte:
em (31) e (32), os sujeitos (respectivamente, “uma mariposa desse tamanho” e “a
polícia”) resultam da fusão de um papel argumental da construção VS com o papel
participante do verbo, mas os sintagmas locativos não correspondem a qualquer papel
argumental previsto no padrão verbo-sujeito52
.
Ao fim e ao cabo, ficamos com a seguinte situação. A construção VS evoca um
frame com três elementos conceptuais – Observador, Campo Visual e Entidade
Focalizada – que se relacionam de maneira específica, configurando a Cena de
Focalização da Atenção. No entanto, apenas um desses elementos é perfilado (tem
maior grau de proeminência focal), sendo o único representado sintaticamente pela
construção: a Entidade Focalizada, que corresponde à relação gramatical de sujeito. Nos
termos da notação desenvolvida por Goldberg (1995), na qual são representados apenas
papéis argumentais com contraparte sintática, o alinhamento sintaxe-semântica da
construção VS pode ser sintetizado assim:
52
A situação, na realidade, é um pouco mais complicada. O padrão VS não é a única construção sintática
envolvida nas sentenças destacadas em (30) a (32): todas elas incluem também uma construção de
estrutura argumental. Assim, em (31) e (32), embora o sintagma locativo não seja argumento do padrão
construcional VS, ele corresponde a um papel previsto na construção de estrutura argumental subjacente
(em ambos os casos, trata-se de uma construção de movimento intransitivo, nos termos de Goldberg
(1995)).
145
Figura 37: Alinhamento sintaxe-semântica na construção VS
O diagrama acima fornece duas informações fundamentais. Primeira: o tipo de
evento convencionalmente associado ao padrão VS é um evento de focalização de
atenção, vale dizer, uma situação na qual um observador in loco direciona sua atenção
para uma determinada entidade. Essa ideia é capturada pela proposição FOCALIZAR
ATENÇÃO, ligada ao predicador verbal. Segunda: o sujeito da construção VS deve ser
semanticamente construído como uma Entidade Focalizada. Essas duas restrições são,
na verdade, partes componentes de uma generalização maior, a saber: os itens lexicais
que instanciam a construção VS devem ser construídos como compatíveis com a Cena
de Focalização da Atenção.
Sob a perspectiva da Gramática de Construções, é isso que fica evidenciado pelo
contraste entre (27) e (27b). Em ambos os casos, o sujeito “seu chapéu” recebe o mesmo
papel temático: trata-se de um tema, na medida em que corresponde a uma entidade
locada em um determinado espaço. Ocorre que esse rótulo comum obscurece uma
diferença semântica que, a meu ver, é relevante sintaticamente: apenas no segundo caso
esse tema é construído como objeto de percepção de um sujeito in loco – em outras
palavras, como aquilo que tenho chamado de Entidade Focalizada. A proposta, portanto,
é a seguinte: como, em (27), o sintagma nominal “seu chapéu” não é construído como
Entidade Focalizada, ele não é admitido no slot de sujeito da construção VS,
inviabilizando a posposição. No entanto, em (27b), a cláusula temporal permite que o
SEMÂNTICA Focalizar Atenção < Entidade Focalizada >
PRED
SINTAXE V Sujeito
146
mesmo sintagma nominal seja interpretado como Entidade Focalizada, o que acaba por
licenciá-lo na construção VS.
A mesma restrição que proíbe (ou torna pouco natural) a inversão do sujeito em
(27) volta a bloquear o uso VS no exemplo abaixo:
(33) L: não’ eu achei que a Camila tinha entrado’ eu achei que ela tinha
entrado’ cheguei a contar pras minhas amigas’ pô olha que legal a Camila
entrou no Big Brother’ mas não meu’ foi por um triz na verdade (Corpus
BBB 10)
A passagem acima é proferida em uma situação na qual a participante Lia, do
BBB 10, descobre alguns conhecidos em comum com o jogador Dicésar. Nesse
contexto, ela conta uma história que envolve uma dessas pessoas, referida como Camila.
Note-se que o referente do sujeito não pode ser interpretado como Entidade Focalizada,
já que não se trata, aqui, de um Observador in loco constatando o ingresso da Camila no
seu Campo Visual (dito de outra maneira, não há uma Cena de Focalização da Atenção,
e sim um relato no qual o Falante reporta seu próprio discurso). Consequentemente, ele
não pode ocupar o slot de sujeito da construção VS, o que explica a pouca naturalidade
da inversão neste caso:
(33b) Eu achei que ela tinha entrado, cheguei a contar pras minhas amigas: pô
olha que legal # entrou a Camila no Big Brother
Na verdade, para que uma sentença como esta fosse licenciada, ela deveria ser
interpretada como a expressão da experiência de um Observador in loco: alguém que
testemunha a entrada da Camila. Dessa maneira, o referente do sujeito cumpriria o
147
requisito semântico necessário à sua instanciação na construção VS, sendo construído
como uma EF. É o que se vê no exemplo abaixo:
(34) C: ontem eu tava que nem um ovo frito na cama’ eu
S: ((incompreensível))
C: pô’ virava prum lado’ pro outro’ nada de dormir
S: mee too
C: aí levantei’ tava a Maroca e a Lia ainda aqui fora
S: é’ aí entrou a Maroca no quarto’ ligou o abajur e deixou ligado
(Corpus BBB 10)
Este uso, como se vê, se conforma perfeitamente à Cena de Focalização de
Atenção. Aqui, o referente de “a Maroca” desempenha o papel de Entidade Focalizada,
permitindo que ele seja instanciado no slot reservado ao sujeito da construção VS – e,
dessa forma, viabilizando a inversão do sujeito.
O contraste entre (33) e (34) reaparece na diferença entre (35) e (36):
(35) E: sabe... é a cor... tudo bem... tem... tem isso sim... agora as camadas
dessa montanha eu acho muito estranhas... num entendo porque que elas
tenham essas camadas... com cores diferentes... inclusive por se tratar de
uma fotografia... eu fico pensando... existe uma montanha desse jeito?
I: a luz tá incidindo sobre elas e dando essa variação de cores... desse tipo
aí...
E: se eu fosse...
I: a luz vem lá detrás dessa montanha... tá bom?
(Corpus D&G – Relato de procedimento – Natal)
148
(36) aí eu tentei sair com o carro não tinha jeito... o carro quebrou tudo... aí...
pô... saltei do carro pra... pedir ajuda... né? aí eu comecei a andar... aí na
minha frente ((riso)) tinha um... um Voyage parado... batido também... aí
eu fui conversar com os caras do carro... né? pô... vem ((riso)) eu doidão...
não me lembrava de nada da batida mais... aí eu cheguei pros caras e
perguntei “pô... cara... tu bateu com o carro aqui também? que
coincidência...” aí o cara veio pra cima de mim... querer me bater... (Corpus
D&G – Narrativa de experiência pessoal – Rio de Janeiro 1)
No primeiro exemplo, a sentença em destaque não predica o aparecimento de
uma Entidade no Campo Visual de um Observador; em outras palavras, não evoca uma
Cena de Focalização da Atenção. Na prática, isso quer dizer, que, do ponto de vista
semântico, o referente de “a luz” não se qualifica como uma EF. Sob uma visada
construcional, essa é a razão pela qual esse sintagma não pode ocupar o slot disponível
para o sujeito da construção VS – o que explica a impossibilidade, ou baixa
naturalidade, da inversão do sujeito neste caso.
Por outro lado, em (36), a sentença em destaque envolve uma CFA: aqui, a
sentença VS evoca um cenário no qual uma determinada entidade, referida pelo
pronome “eu”, ingressa no Campo Visual de sujeitos cognoscentes inseridos no mundo
dos fatos narrados – os ocupantes do Voyage, que desempenham, portanto, o papel de
Observadores. Como resultado, o referente do pronome “eu” se caracteriza claramente
como uma Entidade Focalizada – e é isso que licencia seu emprego no padrão
construcional verbo-sujeito.
Em suma, procurei nesta seção (i) apresentar o pareamento forma-significado da
construção VS, mostrando que, dos três elementos conceptuais presentes no frame da
construção, apenas um, a Entidade Focalizada, tem contraparte sintática,
149
correspondendo ao sujeito da construção, e (ii) mostrar que esse pareamento impõe uma
restrição à inversão do sujeito: apenas referentes que possam ser construídos /
interpretados como uma Entidade Focalizada serão licenciados na construção VS, o que
explica, em termos construcionais, a naturalidade da inversão em (27b), (34) e (36),
bem como a opção pela ordem SV em (27), (33) e (35).
Por que certos verbos admitem com facilidade a inversão do sujeito, ao passo
que outros parecem fortemente refratários à ordem VS? Nesta seção, procuro enfrentar
essa questão a partir de um enfoque construcional.
Na seção anterior, vimos que o padrão VS está convencionalmente associado ao
um frame semântico específico, ao qual denominei Cena de Focalização da Atenção. A
figura 37, que representa o pareamento forma-significado da construção, procura
traduzir essa ideia por meio da proposição FOCALIZAR ATENÇÃO. Diante disso, a
ideia básica é a seguinte: para poder ser instanciado na construção VS, um determinado
predicador deve ser compatível com o evento convencionalmente associado a ela, qual
seja, o evento de focalização da atenção.
5.3 Compatibilização entre classes verbais e construção VS
Os candidatos mais óbvios, nesse sentido, são os verbos de aparição. De fato,
sentenças como “Apareceu uma mosca na minha sopa” e “Surgiu uma luz no fim do
túnel” parecem se conformar à perfeição ao cenário delineado pela CFA: uma Entidade
ingressa no Campo Visual do Observador e passa, então, a ser focalizada por ele. Mas
outras classes de verbos também podem instanciar o padrão VS. Nesta seção, vou
investigar essas possibilidades de compatibilização, dividindo os verbos em seis grupos:
verbos de aparição, locativos estativos, de movimento, de mudança de estado, sensoriais
e de ação.
150
5.3.1 Verbos de aparição
Verbos de aparição podem ser facilmente instanciados na construção VS em
função da compatibilidade entre sua estrutura semântica e a Cena de Focalização de
Atenção. Afinal, tanto os verbos de aparição quanto a CFA representam um evento de
aparecimento, de maneira que o referente do sujeito desses verbos é facilmente
construído ou enquadrado como uma Entidade Focalizada. Isso os torna bastante
propícios à inversão do sujeito, como se vê abaixo.
(37) ele comprou o relógio... e voltou... quando voltou... para casa... estava um
pouco/ ah... meu Deus... estava assustado... com... com medo... porque... se
alguém... iria roubar o relógio...de repente... aparece do... dois garotos...
que ro/ queriam roubar o relógio dele... (Corpus D&G – Narrativa recontada
– Rio de Janeiro 2)
(38) C: o irmão maior era filha da puta (+) e aí ele pega e larga ela (+) e aí ele/
ele/ aparece ele criança vendendo’ roubando comida no trem’ viviam
em cima do trem (Corpus BBB 10)
(39) você é obrigado a pagar seu colégio e às vezes os particulares que
exploram e num são bem dados... quer dizer... você é obrigado a tudo...
você não tem direito a nada e você só tem direito a ser um cidadão se tiver
é:: se você tiver saúde... tiver uma educação e tiver segurança... aí surge
aquela pergunta... então aquelas pessoas que... como do sertão... elas não
têm direito à saúde... a educação?... são o quê? são gentes? são brasileiros?
ou são só indivíduos? (Corpus D&G – Relato de opinião – Natal)
151
Todos os exemplos destacados acima são manifestações linguísticas da CFA. Os
dois primeiros casos já são conhecidos. Em (37), o surgimento dos “dois garotos”
captura atenção do Observador, papel desempenhado aqui pelo personagem da narrativa
identificado como “ele”. Em (38), é a nova cena – eles criança roubando’ vendendo
comida no trem – que se faz presente no Campo Visual de um Observador genérico,
correspondente a qualquer potencial espectador do filme.
Por fim, em (39), temos um Observador genérico, que corresponde a qualquer
cidadão que, em determinado momento, tendo tomado consciência das disparidades
sociais presentes na realidade brasileira, se sente invadido por uma “pergunta” (um
questionamento, um sentimento de indignação). Aqui, a experiência perceptual é
interna, mental (e este é, portanto, um dos casos em que o termo “Observador” não deve
ser entendido literalmente). De todo modo, temos claramente um evento de focalização
de atenção: num determinado momento, o Observador genérico não está pensando na
“pergunta”; no momento seguinte, ele se percebe mentalmente tomado por ela, e sua
atenção se volta para esse questionamento53
.
O exemplo abaixo é um pouco diferente porque, neste caso, a Entidade
Focalizada é construída como algo que se estende no tempo (e não apenas existe no
espaço). É isso que justifica a escolha do verbo “começar”, que marca aspecto
inceptivo54
:
53
Neste ponto, talvez seja o caso de lembrar o seguinte: não estou propondo que verbos de aparição
sempre instanciam o padrão VS, mas apenas que eles são altamente compatíveis com esse padrão, em
função da sua afinidade semântica com a Cena de Focalização da Atenção. De todo modo, está claro que
esses verbos também podem instanciar a construção SV, participando, portanto, de enunciados que
sinalizam distanciamento entre sujeito conceptualizador e objeto conceptualizado. É o que ocorre na
seguinte passagem de discurso reportado, retirada do corpus D & G (Relato de procedimento / Natal):
“Edson... quem... quem fez esse... essa... essas ... essas telinhas?” ele disse ... “olha isso aí é um senhor...
que faz e deixa aqui pra vender... mas ele aparece muito pouco aqui”. Esse uso é semelhante ao de (10),
na medida em que corresponde a uma generalização, e não a uma experiência perceptual direta. Diante
disso, só é possível atribuir a construção do conteúdo do enunciado ao próprio Falante (PV do ground), o
que explica a anteposição do sujeito. Essa sentença, portanto, não é uma manifestação da CFA.
54
Como se vê, estou incluindo o verbo “começar” na categoria dos verbos de aparição. A meu ver, esse
agrupamento traduz uma generalização interessante: enquanto “aparecer” e “surgir” designam o
152
(40) tinha um cara que eu fiquei conhecendo... um cara que fazia economia
na... Federal do Ceará... e estava martelando demais comigo... que não era
assim “você não pode construir sua felicidade em cima da infelicidade dos
seus pais... seus pais já devem estar desespera::dos...” esse tipo de coisa...
aí eu resolvi ligar... né? mas aí liguei... aí começou a chantagem
emocional... quer dizer/ e fora isso... quer dizer... fora essa pressão que
havia pra... pra eu fazer alguma coisa... né? pra não ficar à toa... (Corpus
D&G – Narrativa de experiência pessoal – Juiz de Fora)
Temos aqui o relato de um episódio em que o informante foge de casa aos 18
anos. A passagem acima apresenta, especificamente, o momento em que ele decide ligar
para os pais depois de um mês longe de casa. Também este exemplo pode ser entendido
como uma manifestação da CFA, na medida em que se predica uma situação em que
uma determina entidade (a chantagem emocional) passa a existir no horizonte de
consciência de um Observador (o protagonista da história, que é o indivíduo que
vivencia/percebe o início da chantagem emocional).
5.3.2 Verbos locativos estativos
Como vimos, um verbo locativo estativo como “estar” não pode denotar, em si
mesmo, uma experiência de focalização da atenção, mas tão-somente uma cena de
locação. Isso explica por que ele parece mais resistente à inversão do sujeito do que os
verbos de aparição, como “aparecer”, “surgir” e “começar”. Com efeito, é essa
aparecimento no espaço de uma entidade sem estrutura temporal interna, “começar” designa o
aparecimento de uma entidade que se desenrola no tempo (“começou a novela, apareceu seu ator
preferido”).
153
resistência que fica exemplificada pelo contraste entre (1) e (1b), repetidos e
renumerados abaixo:
(41) a. F: Di seu chapéu tá no banquinho vermelho (Corpus BBB 10)
b. # Di, tá seu chapéu no banquinho vermelho
Por outro lado, dado o contexto discursivo apropriado, o verbo “estar” pode, sim,
amoldar-se à semântica da Cena de Focalização da Atenção, passando a predicar o
aparecimento de uma Entidade diante de um Observador. E o que seria esse contexto
apropriado? Fundamentalmente, trata-se de disponibilizar um Observador. É o que
ocorre em todos os exemplos já citados de uso VS com o verbo “estar”, bem como nos
usos abaixo55
:
(42) agora vai tá piorando e a gente vê aí os brasileiros... os nordestinos... os
sertanejo... ninguém abre os olhos... tá todo mundo iludido... todo mundo
pensando em como se divertir... todo mundo pensando em ter amanhã o
dia melhor... mas num abre pra situação econômica... que vai melhorar sua
vida... num vê... num tenta enxergar o que tá na sua frente... ele procura
sempre não querer aceitar a responsabilidade que tá nas suas mãos... eu
posso até dizer assim... eu posso até dizer assim... é como se ele visse...
ele olhasse pra um lado... olhasse pra outro e visse tá aqui a solu/ a
solução... tá nas minhas mãos... (Corpus D&G – Relato de opinião – Natal)
55
Como mostram os exemplos, optei por agrupar, sob o rótulo de “verbo locativo estativo”, duas
acepções distintas do verbo “estar”: seu uso propriamente locativo, ilustrado em (42), e seu uso como
verbo “de ligação”, ilustrado em (43). É a metáfora ESTADOS SÃO LUGARES (LAKOFF; JOHNSON,
1980) que permite estabelecer esse agrupamento.
154
(43) o caminhão foi andando uns duzentos metros... e ela está ali embaixo
naquele desespero todo e sem poder... tá entendendo? fazer nada...
porque... o motorista não estava vendo... só quando o pessoal começou a
gritar mesmo... que:: ele só/ foi escutar e parou o caminhão... quando ele
parou o caminhão... estava a rua toda cheia de sangue... e ela estava
toda... sabe? já estava... sem a/ o rosto... (Corpus D&G – Narrativa recontada –
Rio de Janeiro 1)
Note-se que, em (42), a sentença em destaque não predica simplesmente a
existência/presença da “solução” no espaço designado pelo advérbio “aqui” – e sim o
aparecimento dessa solução diante de um sujeito cognoscente in loco (aqui, um
Observador genérico). Analogamente, em (43), o enunciado em negrito não predica
apenas um cenário em que a rua está cheia de sangue, mas reproduz, de maneira
especialmente vívida e dramática, a percepção de um sujeito in loco (aqui, o motorista
do caminhão) acerca desse cenário. Nesse sentido, ambos os usos predicam a Cena de
Focalização, o que os torna compatíveis com o padrão VS.
5.3.3 Verbos de movimento
Assim como verbos de aparição e locativos estativos, verbos de movimento
instanciam com frequência o padrão VS. O que explica a compatibilização desses
verbos com a CFA? A resposta é simples. Por um lado, verbos de movimento
(diferentemente dos verbos de aparição) não predicam inerentemente o surgimento de
uma entidade em um determinado espaço, e sim o deslocamento dessa entidade. Em
muitos casos, Ocorre, esse deslocamento produz, como resultado, o aparecimento da
entidade no horizonte perceptual de um determinado sujeito cognoscente – o que
155
permite que ela seja conceptualizada como Entidade Focalizada e, por conseguinte,
torna o verbo de movimento compatível com a construção VS.
Em suma, tem-se a seguinte “divisão de trabalho” entre construção gramatical
abstrata e verbo que a instancia: a primeira exprime o resultado do processo (o
aparecimento do referente do sujeito no Campo Visual do Observador, atraindo sua
atenção), enquanto o segundo diz respeito ao meio que produz esse resultado (o
deslocamento, concreto ou abstrato). É essa “divisão de trabalho”, reitere-se, que
assegura a alta compatibilidade entre construção VS e verbos de movimento.
Um exemplo dessa compatibilidade pode ser visto em (44). Aqui, o
deslocamento da mariposa, designado pelo verbo “entrar”, acaba por fazê-la ingressar
no horizonte visual do Serginho-personagem (Observador), sendo construída, assim,
como Entidade Focalizada. Aqui, portanto, vemos que o aparecimento da Entidade
Focalizada é resultado do seu deslocamento.
(44) S: bi entrou uma mariposa desse tamanho no:: na cozinha (+) começou
a voar’ não consegui nem comer direito (Corpus BBB 10)
A mesma ideia pode ser aplicada a um sem-número de exemplos, como se vê
abaixo:
(45) I: aí eu e ela estava brincando embaixo na::... varanda... aí de repente
chegou uma mulher... e um homem com uma faca... perguntando se a::
minha mãe estava lá... (Corpus D&G – Narrativa de experiência pessoal – Juiz de
Fora)
156
(46) DI: daí eu falei pro serginho’ serginho caiu uma gota de água quente na
minha cabeça’ parece um cagado de pombo.. TUF (+) o Serginho
começou a rir ((risos)) (Corpus BBB 10)
(47) olha... a... minha história foi... pra mim tinha/eh... acabou o mundo naquele
dia... eu estava no colégio... era da quinta série... na/ nesse colégio
mesmo... escola Mafalda... aí eu estava no colégio... era... aula de
ciências... eu acho/ é... isso mesmo... aí depois veio uma inspetora...
pediu pra mim descer... (Corpus D&G – Narrativa de experiência pessoal – Rio de
Janeiro 2)
(48) C: ontem eu tava que nem um ovo frito na cama’ eu
S: (incompreensível)
C: pô’ virava prum lado’ pro outro’ nada de dormir
S: mee too
C: aí levantei’ tava a Maroca e a Lia ainda aqui fora
S: é’ aí entrou Maroca no quarto’ ligou o abajur e deixou ligado
(Corpus BBB 10)
(49) DO: não mas é uma viAgem porque na pororoca é uma onda mas daqui a
pouco passa boi morto’ pedaço de árvore (Corpus BBB 10)
Todos os usos VS acima predicam a Cena de Focalização da Atenção. Senão,
vejamos. Em (45), temos dois sujeitos in loco determinados (referidos por meio dos
pronomes “eu” e “ela”) que estão brincando “na varanda” quando se deparam com
“uma mulher... e um homem com uma faca”, passando a focalizá-los. Em (46), que
157
apresenta um uso de discurso reportado, o Observador in loco é o Dicésar-personagem,
que volta sua atenção para a “gota de água quente” no momento em que ela atinge sua
cabeça. Em (47), o Observador é o eu-personagem, cuja atenção é redirecionada para a
“inspetora” no momento em que ela se aproxima. Em (48), quem desempenha o papel
conceptual de Observador é (novamente) o Serginho-personagem, que está no quarto
tentando dormir no momento em que a Maroca ingressa (de maneira aparentemente
pouco cuidadosa) em seu horizonte perceptual. Finalmente, em (49), pressupõe-se um
Observador genérico que está assistindo à pororoca e se depara com “boi morto” e
“pedaço de árvore”. Neste caso, vale notar o emprego da expressão “daqui a pouco”, em
que o centro dêitico temporal para a interpretação do advérbio “aqui” é o ponto de
vantagem temporal desse Observador, denunciando a perspectiva in loco.
Neste ponto, é importante notar que o deslocamento pode também ser
metafórico, como nos seguintes exemplos:
(50) DI: eu já fiz também de enfermeira’ um show’ aquela:: do Kill Bill
((assovia a música)) com tapão no olho’’ incrível (+) daí entrava a
música’ é bem engraçada’ (Corpus BBB 10)
(51) “pô... você vai ficar nessa? sai dessa... procura outro... vou arrumar outro
pra você” eu “não... gente... não precisa” não sei quê... aí me apresentaram
um garoto chamado Rogério... aí rolou o clima lá... né? (Corpus D&G –
Narrativa de experiência pessoal – Juiz de Fora)
(52) minha mãe é muito vaidosa... é uma pessoa muito vaidosa... muito...
cuidadosa... e o meu quarto tem um sério problema... quando eu saio ele
está uma zona... e quando eu chego ele se torna uma zona... porque minha
158
mãe tem aquele trabalho todo de arrumar o quarto e quando eu chego volta
aquela bagunça toda... (Corpus D&G – Descrição de lugar – Rio de Janeiro 1)
Esses exemplos parecem comprovar a divisão de trabalho proposta acima entre a
semântica da construção gramatical, que denota o resultado do processo (ou seja, o
aparecimento da Entidade no Campo Visual do Observador), e a semântica do
predicador verbal, que denota o meio que conduz a esse resultado (ou seja, o
deslocamento da Entidade). Trocando em miúdos: como resultado de um deslocamento
(o processo de entrar, chegar, cair, vir, passar, rolar ou voltar), uma determinada
Entidade se faz visível no Campo Visual de um Observador, passando a ser focalizada
por ele.
5.3.4 Verbos de mudança de estado
Outra categoria que pode instanciar a construção VS são os verbos de mudança
de estado. Isso também é esperado, na medida em que a semântica desses verbos é
compatível com a Cena de Focalização da Atenção: assim como o deslocamento de uma
entidade pode produzir, como resultado, o seu aparecimento no horizonte de
consciência de um sujeito conceptualizador, o mesmo se dá com a mudança de estado.
Em outras palavras, é comum que passemos a atentar para uma determinada entidade
em função de uma alteração no seu estado. O exemplo abaixo ilustra essa possibilidade:
(53) aí fomos as duas e tal... chegamos lá... resolvemos o que tinha que
resolver... na volta / bom... foi tudo tranquilo... almoçamos lá... quando a
gente está voltando... começa a chover assim... torrencialmente... e fura o
159
pneu... fura o pneu do carro dela... (Corpus D&G – Narrativa de experiência
pessoal – Rio de Janeiro 1)
Neste exemplo, a cena designada pela sentença VS é construída sob a
perspectiva das duas amigas que estão dentro do carro quando o pneu fura; são elas que
desempenham, portanto, o papel de Observador. Note-se que, num primeiro momento, o
pneu não está incluído no horizonte de consciência das duas personagens – vale dizer,
não faz parte da representação de mundo correntemente ativada para elas. A sentença
VS, por outro lado, traduz o momento em que o pneu se insere no seu Campo Visual,
tornando-se “visível” para elas graças ao fato de ter furado. Aqui, portanto, ocorre algo
semelhante ao que vimos na seção anterior: o evento denotado pelo verbo (o estouro do
pneu) corresponde ao meio que produz como resultado o evento denotado pela própria
construção gramatical VS (o aparecimento do pneu no horizonte de consciência do
Observador).
Algo semelhante pode ser visto nos exemplos abaixo:
(54) e pô:: o mais engraçado é que ele saltou do carro... pô... putão... e o
motorista do táxi tranquilíssimo... ligando já pra::/ pegou o rádio lá que
tem no táxi e ligando lá pra Central... pediu reboque e não sei o quê... não
deu nem atenção pra ele... aí pararam ((riso)) parou uma porção de
táxi... aí os caras do táxi começaram a arrumar confusão... com ele...
(Corpus D&G – Narrativa recontada – Rio de Janeiro 1)
(55) DI: bi só que a bicha acho não pode coçar o cabelo né’’ coça’ o bicho
entorta
F: mas eu achei engraçado homem de peruca
160
DI: não se ficar ridículo daí eu não ponho não’ porque o careca usar’
dormir de boné (+) uma vez uma ami/ um amigo nosso espirrou ((simula
espirro)) descolou a peruca (Corpus BBB 10)
(56) L: e sabe quando você começa a sentir’’ uma coisa compensando a outra’’
eu comecei a sentir a dor no joelho (+) começou a doer o joelho (+) aí eu
comecei a sentir o ciático pegar (Corpus BBB 10)
(57) DI: tem que ficar assim ó’’ pode ficar assim’’
F: pode (+) pera aí’ eu vou fazer mais
DI: ai tá ardendo meu dedo
F: ai tá ardendo’’ por quê’’ deve ter algum machucadinho
Em todos os exemplos acima, as sentenças VS predicam uma Cena de
Focalização da Atenção. O exemplo (54) traduz o momento que o protagonista da
história, que desempenha o papel de Observador, tem seu olhar atraído pelo conjunto de
táxis que param no local do acidente, passando a focalizá-los. Em (55), a atenção dos
participantes da cena narrada (os Observadores) é atraída para a peruca no momento em
que ela sofre o descolamento. O uso em (56) é proferido numa situação em que a
participante Lia, do BBB 10, está relembrando as dificuldades enfrentadas em uma
prova de resistência. Aqui, a Lia-personagem, que desempenha o papel de Observador,
só passa a atentar para o seu próprio joelho no momento em que ele começa a doer. Por
fim, o caso de (57) é bastante parecido. Aqui, Dicésar está passando, com a ajuda de
Fernanda, um produto para descolorir os pelos. Neste exemplo, o enunciado em
161
destaque traduz o instante em que o Dicésar-personagem volta suas atenções para o
próprio dedo, o que só acontece graças ao início da ardência.
Ao fim e ao cabo, a lição que fica aqui é a seguinte: ao sofrer uma mudança de
estado (furar, parar, descolar, doer, arder), uma entidade que até então não estava sendo
focalizada pode atrair ou capturar o olhar de um Observador, passando a se constituir
como foco de atenção. É isso que torna os verbos de mudança de estado tão compatíveis
com a construção VS, convencionalmente associada à Cena de Focalização da Atenção.
Como se vê, a “divisão de trabalho” entre verbo e construção é idêntica à dos verbos de
movimento: enquanto a construção denota o resultado do processo (o aparecimento ou
focalização de uma determinada Entidade), o verbo de mudança de estado designa o
meio que conduz a esse resultado. É essa possibilidade de divisão de tarefas, reitere-se,
que assegura afinidade ou compatibilidade entre os verbos de mudança de estado e a
construção gramatical VS.
5.3.5 Verbos sensoriais
O mecanismo que permite a compatibilização de verbos sensoriais com o padrão
VS é fundamentalmente idêntico àquele que verificamos para os verbos de movimento e
mudança de estado. Ou seja: mais uma vez, a construção gramatical evoca a experiência
de percepção (o evento de focalização da atenção), ao mesmo tempo em que o verbo
designa o meio que produzirá, como resultado, essa experiência. Vejamos.
(58) quando o outro trem cortou na frente dele... bateu no... no bico do trem que
eu estava no primeiro vagão... e começou a balançar o vagão para um
lado e para o outro... e eu estava segurando/eu estava ali em pé segurando
naquela chupeta... (Corpus D&G – Narrativa recontada – Rio de Janeiro 1)
162
(59) C: nossa eu tô cansado (+) tá batendo a:: a::
L: [a lombeira]
C: [o cansaço] agora
(Corpus BBB 10)
(60) aí a gente::... caiu sentada... mas a gente não se machucou... ficou
doendo... aí... aí... bateu o sinal... aí a gente foi formar... (Corpus D&G –
Narrativa de experiência pessoal – Rio de Janeiro 1)
(61) C: não foi engraçado pra caRAlho’ ouve essa’ eu tava lá me arrumando
né’’ aí daqui a pouco toca o telefone’ aí é a Mônica’ Cadu vem me
buscar’’ (Corpus BBB 10)
Em (58), o movimento do vagão leva o eu-personagem, que aqui desempenha o
papel de Observador, a voltar sua atenção para o próprio vagão onde ele se encontra
(antes, muito embora ele estivesse dentro do vagão, podemos assumir que o vagão não
estava correntemente ativado na sua imagem mental da realidade). Em (59), um
exemplo já discutido no capítulo anterior, o Cadu-personagem tem sua atenção atraída
pelo impacto interno provocado pelo cansaço. No caso de (60), o som produzido pelo
sinal captura a atenção dos personagens referidos por meio do pronome “a gente”. Por
fim, em (61), a situação é muito semelhante: o Cadu-personagem está se arrumando
quando, a certa altura, é surpreendido pelo toque do telefone, voltando assim sua
atenção para ele.
Ao fim e ao cabo, os eventos designados pelos verbos (o balançar do vagão; a
“batida”, ou o impacto interno, do cansaço; o toque do sinal; o toque do telefone)
163
produzem, como resultado, o ingresso do referente do sujeito no Campo Visual do
Observador. Mais uma vez, é essa divisão de tarefas entre meio (representado pelo
verbo) e resultado (representado pela construção sintática) que permite a
compatibilização semântica entre os verbos acima e o padrão VS.
5.3.6 Verbos de ação
Embora seja bastante raro (BERLINCK, 1989; COELHO, 2000; SPANÓ, 2008),
é fato que verbos de ação podem, em alguns casos, exibir sujeito posposto. E, o mais
interessante, esses casos não são fundamentalmente diferentes daqueles que envolvem
verbos de movimento, de mudança de estado e de percepção sensorial, uma vez que a
divisão de trabalho é idêntica: também aqui o verbo denota o meio que produz como
resultado o ingresso do referente do sujeito no horizonte de consciência do Observador.
É o que se vê no exemplo abaixo.
(62) tá... outro dia... minha mãe costumava ir numa rua de cima ali... porque
nós temos muitos conhecidos... eu já morei ali... sabe? foi ela e meu
irmão... aí ela me contou... que chegando lá... eles ficaram conversando
com... com... o pessoal de lá... daqui a pouco começou a correr gente lá
pra esquina... correr gente assim... correr bastante gente... ela foi...
chegando lá... tinha um colega nosso... um garotinho... (Corpus D&G –
Narrativa recontada – Rio de Janeiro 2)
Aqui, a narrativa é apresentada sob o ponto de vista da “minha mãe” e do “meu
irmão” – os dois indivíduos que decidem “ir numa rua de cima ali”, como se observa no
início do relato. Num primeiro momento, marcado pela sequência eles ficaram
conversando com... com... o pessoal de lá..., há uma situação de estabilidade – a já
164
mencionada “orientação” da narrativa, segundo a terminologia de Labov (1972). Num
segundo momento, introduzido pelo space builder “daqui a pouco”, o olhar da mãe e do
irmão é subitamente atraído pela movimentação dos passantes. Neste caso, a cena
designada pela sentença VS – a correria das pessoas “lá pra esquina” – é construída
como um evento de percepção vivenciado por esses dois personagens.
A moral da história é a seguinte: mais do que exprimir o evento de corrida em si
mesmo, a sentença VS destacada procura representar a percepção súbita dos
Observadores em relação a esse evento, reproduzindo, em alguma medida, a experiência
original de surpresa dos indivíduos que presenciaram os fatos. Neste caso, portanto, a
compatibilização entre a semântica do verbo e a semântica da construção gramatical se
dá segundo as mesmas linhas gerais do que vimos para os verbos de movimento, de
mudança de estado e sensoriais. Ou seja: o evento designado pelo verbo produz como
resultado a focalização de uma determinada entidade por parte de um Observador.
Trocando em miúdos: se (por exemplo) o estouro do pneu faz um sujeito
cognoscente voltar sua atenção para ele, a súbita corrida desabalada de um grupo de
pessoas provoca o mesmo efeito: trata-se de uma alteração do estado de coisas com
potencial para atrair o olhar de um Observador.
Um exemplo análogo aparece abaixo:
(63) teve uma festa que eu fui...mi/ aí minha irmã também/ ela ia só que ela não
queria que eu fosse com ela... então eu fiquei chorando em casa... não fui
pra festa... aí ela foi... só que aí bateu uma amiga minha lá na porta de
casa me chamando pra ir... em seguida eu fui... aí chegando lá tive a maior
decepção... fiquei sabendo que a minha irmã gostava do mesmo menino...
(Corpus D&G – Narrativa de experiência pessoal – Niterói)
165
A análise proposta para (62) também se aplica a este caso. Aqui, mais do que
representar a ação realizada pela “amiga minha” (em termos langackerianos, o ato de
transferência de energia dessa amiga para a porta), a sentença predica o resultado dessa
ação, qual seja, o ingresso do referente do sujeito no horizonte de consciência do
Observador (o eu-personagem). Em termos informais, tudo indica que, em (63), importa
menos a ação realizada pela amiga do que o resultado dessa ação. Tanto assim que,
neste contexto, a informante poderia ter optado por formular a sentença da seguinte
maneira: só que aí apareceu uma amiga lá em casa me chamando pra ir. Não estou
propondo, é claro, que essa paráfrase é perfeitamente equivalente ao uso original; o
objetivo aqui é apenas evidenciar o fato de que, ao fim e ao cabo, o enunciado em
destaque em (63) parece representar, primariamente, uma experiência de percepção in
loco – e não uma ação prototípica de transferência de energia.
O mesmo pode ser dito a respeito do uso abaixo:
(64) C: hein Dourado’ escuta essa’ eu tava lá no:: tipo:: andando na rua né’ na::
ali na Barra’ aí daqui a pouco grita um maluco lá do outro lado
(Corpus BBB 10)
Também aqui, temos um verbo de ação, na medida em que o referente do seu
sujeito se qualifica como agente. Mas, novamente, é importante notar que a narrativa é
contada segundo a ótica do Cadu-personagem. Nesse sentido, parece razoável supor
que, neste caso, mais que a ação realizada pelo “maluco”, o que a sentença expressa é a
experiência de percepção do protagonista, que é surpreendido pelo grito. Assim como
em (63) é a batida na porta que faz a “amiga” ingressar no Campo Visual da
Observadora, neste caso é o grito que provoca a entrada do “maluco” no horizonte de
consciência do Observador. Temos, portanto, mais uma vez, uma CFA, de maneira que
166
a sentença VS predica uma situação de refocalização da atenção por parte de um sujeito
cognoscente in loco.
Finalmente, um uso real ouvido por mim pode ser usado para ilustrar essa
mesma situação. Falando sobre a experiência de lecionar em uma sala de aula lotada
para vestibulandos de Medicina especialmente bem preparados, um professor proferiu o
seguinte enunciado56
:
(65) Aí eu tô dando aula sobre fisiologia animal, de repente levanta a mão
uma aluna lá no fundo da sala.
Assim como acontece com “bater” e com “gritar”, o referente do sujeito de
“levantar” desempenha papel de agente, na medida em que tem controle sobre o
processo designado pelo verbo e o inicia por vontade própria. Nesse caso, porém, o
“ponto” da sentença em destaque parece ser primariamente o de predicar a experiência
de percepção (ou focalização de atenção) do eu-personagem, que, durante a explicação,
constatou o ingresso da “aluna” no seu Campo Visual, graças ao gesto realizado por ela.
Por fim, vale notar que, também aqui, não há diferenças quanto à divisão de tarefas
entre verbo e construção: novamente, o evento designado pelo verbo (“levantar”)
constitui o meio que leva ao resultado predicado pela construção VS (o aparecimento da
“aluna” no campo visual do professor).
5.4 Síntese e encaminhamentos
Se o capítulo anterior discutiu a inversão do sujeito à luz da Teoria dos Espaços
Mentais, este capítulo procurou sistematizar uma descrição de base construcional para o
56
O exemplo reproduz as exatas palavras do enunciado original.
167
padrão VS. Para isso, descrevi a cena conceptual evocada pelo padrão e identifiquei o
grau de proeminência focal dos elementos que a compõem (porção perfilada e porção
pressuposta), mapeando-a em seguida sobre a representação sintática da construção
verbo-sujeito. Em seguida, procurei explicar a compatibilidade entre essa construção e
diferentes classes semânticas de verbos.
Juntos, os capítulos 4 e 5 constituem o cerne deste trabalho: as abordagens via
espaços mentais e Gramática das Construções se complementam para explicar, à luz da
linguística cognitiva, o fenômeno da inversão do sujeito no PB atual. Concluída essa
etapa, as perguntas que se colocam são as seguintes: (i) em que essa proposta se
diferencia de abordagens anteriores?; e (ii) quais as vantagens do tratamento
cognitivista? É disso que trata o próximo capítulo.
168
6 Restrições formais e funcionais à
inversão do sujeito: discussão teórica
Na seara dos estudos sobre a gramática do PB, o tema da posição do sujeito
exibe uma admirável recalcitrância, tendo despertado o interesse de pesquisadores
alinhados às mais diversas correntes teóricas. O entusiasmo não surpreende, dado que o
fenômeno tem se mostrado sensível tanto a fatores formais quanto a motivações de
ordem funcional. Dentre as propriedades mais comumente associadas à posição do
sujeito, destacam-se o estatuto informacional do SN (BERLINCK, 1989; FERRARI,
1990; SPANÓ, 2008; MARQUES, 2012), o número de argumentos e transitividade do
verbo (LIRA, 1986; BERLINCK, 1989; COELHO, 2000; SPANÕ, 2008; MARQUES,
2012) e o grau de topicalidade do sujeito (FERRARI, 1990; NARO; VOTRE, 1999)57
.
Neste capítulo, dividirei essas abordagens em dois grandes grupos. De um lado,
abordagens de inspiração formalista, as quais se concentram, privilegiadamente, na
questão do tipo de verbo, associando-o a mudanças paramétricas que estariam em curso
no português brasileiro. De outro, abordagens voltadas para aspectos funcionais, que se
ocupam principalmente de dois fatores de natureza discursiva: o estatuto informacional
do referente do SN e o grau de topicalidade do sujeito. Essa divisão, no entanto, não
servirá apenas para que seja feita uma resenha de cada vertente58
. Aqui, o objetivo
57
Esses fatores estão longe de esgotar o amplo leque de propriedades já associadas à posição do sujeito
na vasta literatura sobre o tema, que incluem ainda aspectos como o peso fonético ou extensão do SN
(FIGUEIREDO SILVA, 1996; SPANÓ, 2008; SANTOS; SOARES DA SILVA, 2012), sua definitude
(LIRA, 1986; FIGUEIREDO SILVA, 1996; SPANÓ, 2008; SANTOS; SOARES DA SILVA, 2012) e
uma pletora de propriedades semânticas (BERLINCK, 1989; FERRARI, 1990; SPANÕ, 2008). Como é
virtualmente impossível contemplar todos os fatores já investigados, irei me deter aqui sobre os fatores
mencionados acima.
58
A propósito, uma revisão excelente sobre o tema encontra-se em Menuzzi (2004).
169
primordial é estabelecer um diálogo entre essas frentes de tratamento do problema e a
proposta desenvolvida nesta tese.
6.1 Um tratamento do formal para a ordem VS: monoargumentalidade e
inacusatividade
Em estudo hoje clássico sobre o fenômeno da ordenação vocabular, Berlinck
(1989) demonstra que o português brasileiro vem sofrendo um processo de progressivo
enrijecimento da ordem sintática, com a diminuição gradual de sujeitos pospostos
acompanhada pelo incremento dos sujeitos pré-verbais. Em poucas palavras, a autora
sugere que, entre os séculos XVIII e XX, o fator predominante para explicar a inversão
do sujeito vai deixando de ser o estatuto informacional do SN (propriedade funcional) e
vai passando a ser a transitividade do verbo (propriedade (tomada como) formal).
Especificamente, Berlinck (1989) mostra que a ordem VS vai, progressivamente,
passando a se limitar aos contextos mais intransitivos.
Tipicamente, esse enrijecimento é explicado pelo fato de que o português
brasileiro estaria passando por um processo de mudança paramétrica, deixando com isso
de ser uma língua de sujeito nulo e passando a língua de sujeito pleno. De acordo com
Chomsky (1981), essa mudança estaria relacionada à perda da “inversão livre” do
sujeito, o que ajudaria a explicar o processo de enrijecimento detectado por Berlinck
(1989).
Com efeito, Lira (1986), em estudo clássico sobre a ordem verbo-sujeito no PB,
constata que verbos de ligação e verbos transitivos praticamente excluem a
possibilidade de posposição do sujeito, apresentando inversão em apenas 8% e 0,8% das
ocorrências, respectivamente. Restaria aqui, como contexto menos refratário à
posposição, o caso dos verbos intransitivos, com 21% dos sujeitos em posição pós-
170
verbal. De fato, a conclusão de que verbos transitivos proíbem ou, pelo menos, inibem
fortemente a posposição no PB parece ser um dos principais consensos já alcançados a
respeito do tema. Nas palavras de Coelho, Werner & Aduin (2001, p.7),
o ponto de maior unanimidade entre os trabalhos variacionistas diz
respeito à monoargumentalidade, indicada, consensualmente, como
um fator favorável à ocorrência de VS, enquanto a pluri-
argumentalidade é indicada como inibidora dessa mesma ordem.
Após o trabalho de Lira (1986), que tratava os verbos monoargumentais como
uma classe única, um sem-número de estudos passa a levar em conta a distinção entre os
monoargumentais inacusativos e os inergativos (ou verdadeiros intransitivos). Embora
clara nos casos prototípicos, essa diferença é, a rigor, bastante controversa59
. Aqui,
porém, não cabe aprofundar essa discussão; o ponto relevante é notar que, segundo a
grande maioria dos estudos de inspiração formalista, são os verbos tipicamente tratados
como inacusativos que ainda licenciam a inversão do sujeito no PB contemporâneo. Nos
termos de Coelho (2000, p. 91), “uma construção intransitiva privilegia a ordem NP V,
enquanto a inacusatividade da construção caracteriza-se como o requisito fundamental
de ocorrência da variação, ordem NP V e ordem V NP”.
Como observa Menuzzi (2004), essa correlação é tipicamente explicada a partir
de um critério formal: verbos inacusativos teriam a ordem VS como natural ou básica
porque o seu sujeito seria, a rigor, argumento interno (e não argumento externo) do
verbo. Ao mesmo tempo, esse autor nota que pesquisadores alinhados à linguística
gerativa estão “cientes da existência de casos que não se conformam às suas
generalizações básicas” (MENUZZI, 2004, p. 358), dentre as quais se inclui o
59
A ponto de Cançado & Ciríaco (2004) proporem que essas duas categorias, em vez de serem tratadas
como classes estanques, devem ser entendidas apenas como extremos de um continuum.
171
imperativo da inacusatividade. Nesse sentido, o autor prossegue, devem tratar essas
situações como “casos excepcionais”, quer sejam resultado da interferência da norma
escolar, “relíquias históricas” ou estruturas sintáticas distintas da verdadeira inversão do
sujeito.
Neste ponto, eu gostaria de argumentar o seguinte: a abordagem de base
construcional proposta nesta tese permite explicar, indiferenciadamente, a possibilidade
de inversão do sujeito com verbos inacusativos, inergativos ou transitivos. Comecemos
notando que a maior parte dos verbos discutidos na seção 5.2 está entre aqueles tratados
usualmente como inacusativos: nesta classe, incluem-se pelo menos os verbos de
aparição como “aparecer” e “surgir”, os verbos locativos como “estar”, os verbos de
movimento como “chegar”, “passar” e “vir” e os verbos de mudança de estado como
“furar” e “descolar” – mas também outros, como “balançar” e “tocar”. Conforme
procurei desenvolver no capítulo anterior, todos eles são semanticamente compatíveis
com a construção VS, na medida em que os referentes dos sujeitos desses verbos podem
(às vezes, apenas nas condições discursivas apropriadas) ser construídos como
Entidades Focalizadas (e não meramente como temas ou agentes). Isso permite que eles
representem uma experiência de percepção, tornando-se instanciáveis na construção
verbo-sujeito, a qual, como vimos, predica uma Cena de Focalização de Atenção. Nesse
sentido, a proposta apresentada aqui é capaz de explicar o fato objetivo de que verbos
inacusativos são especialmente propícios à inversão – mas a razão para isso não é
alguma propriedade sintática, como a existência de um argumento interno que é alçado
à posição de sujeito, e sim a compatibilidade semântica desses verbos com o padrão VS.
O que nos conduz ao ponto mais interessante. Como vimos no capítulo anterior,
nos casos de verbos de movimento, de mudança de estado e sensoriais, essa
compatibilidade semântica decorre da seguinte divisão harmoniosa de trabalho entre
172
verbo e construção: a segunda expressa o resultado de um processo (o aparecimento ou
focalização de uma Entidade por parte de um Observador), ao passo que o primeiro
expressa o meio que conduz a esse processo. Vimos ainda que essa mesma divisão de
tarefas pode se aplicar a verbos de ação, ou seja, não-inacusativos. Em 5.3.6, foram
analisados dois casos de verbos inergativos (“correr” e “gritar”) e dois casos de verbos
transitivos (“bater” e “levantar”). E, em todos eles, verificamos que o evento designado
pelo verbo (a correria, o grito, a batida e o gesto de mão) são o meio que conduz ao
aparecimento de uma entidade (respectivamente, os passantes, o “maluco”, a amiga e a
aluna) no Campo Visual do Observador. Portanto, também nesses casos, os referentes
dos sujeitos têm a possibilidade de ser construídos semanticamente como Entidades
Focalizadas. E é essa possibilidade que, a meu ver, licencia a ordem VS com esses
verbos não-inacusativos nos contextos analisados.
Em suma, a principal vantagem dessa análise reside no fato de que ela é capaz
de dar conta, de maneira uniforme, do licenciamento da ordem VS tanto com verbos
inacusativos quanto, nos contextos apropriados, com verbos não-inacusativos, sem a
necessidade de recorrer a mecanismos extraordinários ou “excepcionais” para estes
últimos.
6.2 Um tratamento funcional para a ordem VS: acessibilidade referencial e
topicalidade
Sob uma perspectiva discursivo-funcional, é conhecida – ou, nos termos de
Berlinck (1997, p. 57), “corrente” – a associação entre ordem VS e função
apresentativa, de acordo com a qual o sujeito posposto corresponderia a “informação
nova”60
. Como observa Pontes (1986, p. 34),
60
Mesmos estudos de orientação formalista investem, com alguma frequência, nessa correlação, como se
vê em Negase (2007).
173
essa explicação é coerente com o ensinamento da Escola de Praga, ou
seja, o princípio pelo qual a informação nova vem no fim da S: o
sujeito posposto vem no fim da S porque ele não é tópico, ele carrega
a informação nova.
Essa hipótese, contudo, foi rapidamente descartada, ao menos como correlação
categórica. Em artigo sintomaticamente intitulado Nem tudo que é posposto é novo:
estatuto informacional do SN e posição do sujeito em português, Berlink (1995, p. 58)
se propõe a “questionar a associação ‘pré-verbal – dado / pós-verbal – novo’”. E esta
autora está longe de ser a única. Com efeito, Ferrari (1990, p. 659) já sugerira, com
base em entrevistas com alunos de 4ª série do Ensino Fundamental, que
sintagmas nominais que apresentam menor controle (e são, portanto,
menos agentivos) e que exibem baixa topicalidade (tendendo a não
ser evocados novamente no discurso) assumem a ordem VS,
independentemente do fato de terem sido mencionados anteriormente.
Nessa trilha, o levantamento apresentado em Naro e Votre (1999), baseado na
acessibilidade cognitiva dos referentes de sintagmas em função de sujeito61
, mostrou
que a frequência de referentes evocados ou disponíveis (portanto, não-novos) em
sentenças VS foi bastante significativa, correspondendo a 77% dos casos (ainda que
inferior à frequência de 92,6% apresentada por sentenças SV). Ao mesmo tempo, os
autores também demonstram que, contrariando as expectativas, sentenças SV
apresentaram sujeitos parcial ou completamente novos em 7,5% dos casos. Ainda que
61
Os autores se valem de quatro grandes categorias: evocado, disponível, parcialmente novo e
completamente novo. Enquanto a primeira diz respeito a referentes previamente mencionados no
discurso, a segunda envolve conceitos facilmente acessíveis para o ouvinte, dividindo-se em
permanentemente disponíveis (ex. a Lua está linda) e localmente disponíveis (ex. A padaria está fechada;
em referência à padaria do bairro). A terceira diz respeito a conceitos que, embora não disponíveis nem
referidos previamente, são introduzidos por meio de uma conexão com um referente evocado ou
disponível (novos ancorados; ex. Meu carro apareceu) ou acompanhados de alguma informação que
atenue seu grau de novidade (novos atenuados; ex. Chegaram uns caras malucos aí). A quarta, por fim,
inclui os conceitos novos sem qualquer tipo de ancoragem ou atenuação (ex. Apareceu um carro).
174
essa frequência seja menor do que a encontrada para referentes novos em sentenças VS
(23%), essa constatação representa mais uma evidência de que a acessibilidade
referencial não é suficiente para explicar a ordem vocabular.
O que todos esses dados sugerem é o seguinte: a correlação entre posposição do
sujeito e novidade referencial (e anteposição do sujeito e acessibilidade referencial) tem
alguma razão de ser, mas nem de longe explica todas as ocorrências. Por um lado, a
proporção de referentes evocados e disponíveis é de fato maior em sentenças SV, assim
como a proporção de referentes parcial ou completamente novos é bem maior em
sentenças VS. Embora isso confira alguma plausibilidade à generalização sobre usos
apresentativos, a quantidade de ocorrências de VS com referentes “dados” é alta o
suficiente para torná-la largamente insatisfatória. Basta observar que a maior parte dos
referentes dos sujeitos das sentenças VS (38,6%) recai na categoria dos evocados –
precisamente aqueles já mencionados no discurso precedente.
E é exatamente para desafiar a relação entre posposição do sujeito e novidade
referencial que Naro e Votre (1999) desenvolvem uma hipótese diferente, à qual vou
me referir como Hipótese da Topicalidade Baixa (HTB). Os autores definem tópico
como “o constituinte que é apresentado como central no nível oracional em um
determinado momento da comunicação” (NARO; VOTRE, 1999, p. 77). Para fins
práticos, eles consideram como tópico o primeiro elemento (nominal) de cada cláusula.
Segundo a HTB, sujeitos invertidos não podem corresponder a referentes tópicos. O
contraste entre os exemplos abaixo ajudará a esclarecer esse ponto:
(66) O carro da minha senhora, ο ΤΝ 4937– era um TL – foi roubado. Foi
roubado e ficou três dias desaparecido. Depois esse carro apareceu aqui,
numa delegacia aqui. (NARO; VOTRE, 1999, p. 79)
175
(67) Foi o cara, sabe? Ele estava perdido, assim. Apareceu uns homens. Ai,
ele brigou, brigou. Ai, ele näo conseguiu, sabe? Não conseguiu liquidá-
los. (NARO; VOTRE, 1999, p. 80)
Os autores mostram que, em (66), o referente CARRO “é o receptor de diversas
informações, como o número da licença, o modelo, o fato de que ele foi roubado, o
tempo durante o qual ficou desaparecido e o lugar onde reapareceu” (NARO; VOTRE,
p. 79). Para eles, é o fato de que esse referente se estabelece como tópico em um fluxo
discursivo que justifica que ele seja codificado como sujeito anteposto mesmo com o
verbo “aparecer”, que “frequentemente exibe ordem VS sob outras circunstâncias
discursivas”.
O caso de (67), por outro lado, é o inverso. Aqui, a passagem se inicia com a
introdução de um tópico – o referente do SN “o cara” – que se mantém na sequência
seguinte, já que a informação sobre estar perdido diz respeito a esse mesmo referente.
Neste caso, portanto, a sentença em negrito representa uma interrupção da sequência
tópica (uma interrupção provisória, diga-se), de maneira que o referente do sujeito de
“Apareceu” não se qualifica como tópico – o que, segundo os autores, licencia sua
inversão.
Esses dois exemplos, contudo, poderiam fornecer suporte à hipótese da função
apresentativa. A fim de demonstrar a insuficiência dessa hipótese, os autores recorrem
ao seguinte exemplo:
(68) De noite eu ia para ali perto do – na rua Riachuelo, né? Tinha um depósito
de jornal O Dia. Comprava o jornal ia para Copacabana vender dentro dos
176
önibus. Ai, quando dava assim três e meia, mais ou menos, acabava o
jornal. Ai, quatro horas pegava o trem para Japeri. (NARO; VOTRE,
1999, p. 81)
Esse exemplo ilustra com clareza o fato de que o sujeito invertido não precisa,
necessariamente, apresentar referente novo: como se vê, o referente de “o jornal” já
havia sido evocado em dois momentos anteriores. No entanto, o ponto fundamental,
para Naro e Votre, reside no fato de que o tópico predominante em toda a passagem
corresponde ao referente do pronome “eu”. Nesse sentido, nas duas menções anteriores
ao “jornal”, sua topicalidade era baixa – nos termos de Naro e Votre (1999, p. 81), eles
ocupavam uma “posição marginal na sequência tópica”. Assim, no momento em que a
sentença em destaque é enunciada, o JORNAL não é o referente tópico, de maneira que
ele pode ser codificado por meio de um sujeito posposto.
A HTB certamente dá conta da maioria dos usos VS em contextos narrativos,
como os autores demonstram. Segundo Naro e Votre, dos 391 usos VS analisados,
apenas 10 (2,6%) apresentavam sujeito tópico (ou com alto grau de topicalidade), dos
quais seis apareciam “em passagens discursivas que exibem marcas independentes de
expressão disfluente” (NARO; VOTRE, 1999, p. 83). Isso resulta em quatro
contraexemplos à HTB.
Embora pouco significativos do ponto de vista estatístico na amostra de Naro e
Votre (1999), não me parece que os contraexemplos à HTB possam ser descartados
sumariamente. Neste ponto, portanto, gostaria de me concentrar em alguns deles, na
medida em que esses usos parecem ser bastante reveladores das diferenças entre a HTB
e a hipótese defendida nesta tese. Comecemos pelo exemplo abaixo, que consta do
corpus Discurso & Gramática:
177
(69) aí bati num Voyage ((riso)) perdi a direção do carro e fui raspando o carro
pelo paredão do túnel assim... uns cem metros... aí eu parei o carro e pô...
a garota que estava comigo... desesperada... que a foligem tinha ( )
crioula... assim legal ((riso)) aí eu tentei sair com o carro não tinha jeito...
o carro quebrou tudo... aí... pô... saltei do carro pra... pedir ajuda... né? aí
eu comecei a andar... aí na minha frente ((riso)) tinha um... um Voyage
parado... batido também... aí eu fui conversar com os caras do carro... né?
pô... vem ((riso)) eu doidão... não me lembrava de nada da batida mais...
aí eu cheguei pros caras e perguntei “pô... cara... tu bateu com o carro aqui
também? que coincidência...” aí o cara veio pra cima de mim... querer me
bater... (Corpus D&G – Narrativa de experiência pessoal – Rio de Janeiro 1)
Neste caso, o referente do pronome “eu” é tópico da sentença imediatamente
anterior ao uso VS em destaque (“eu fui conversar com os caras do carro”). Nesse caso,
portanto, o enunciado VS não constituiria quebra da sequência tópica. Diante disso,
como justificar a inversão do sujeito?
É fácil verificar que esse uso é perfeitamente compatível com a hipótese da
perspectiva in loco. Aqui, temos um caso em que a pessoa física do falante está
conceptualmente cindida, desempenhando os papéis de Falante (no ground
comunicativo) e de objeto da percepção (no Domínio do Conteúdo)62
. Disso resulta
uma situação curiosa: embora o narrador faça parte da história narrada, ele opta por
apresentar o evento em foco (a sua própria aproximação) sob a ótica de outros
62
Trata-se de um uso semelhante ao do exemplo (18), discutido no capítulo 4 (“só estava eu e uns dois
naquele vagão”), na medida em que se verifica identidade entre o Falante e o objeto de percepção. O caso
de (18), porém, é um pouco mais complexo, já que a fragmentação conceptual do enunciador é tripla, e
não dupla: além de Falante e objeto, ele corresponde, ainda, ao Observador.
178
personagens: os ocupantes do Voyage. Essa opção parece cumprir, na construção da
narrativa, uma função de autocrítica: ao apresentar a si mesmo sob o olhar do outro, o
narrador parece querer evidenciar a inadequação do seu próprio comportamento,
ressaltando (talvez para fins humorísticos) o absurdo da situação.
É muito interessante observar que a sentença destacada acima apresenta três
evidências adicionais de deslocamento dêitico (para além da própria ordem VS). Uma
delas é a forma de presente do indicativo, caracterizando um caso de presente histórico:
conforme já comentado (seção 4.4), a forma de presente, quando empregada em
referência a um fato passado, promove deslocamento do centro dêitico, produzindo uma
situação fictícia na qual sujeito conceptualizador e objeto conceptualizado
compartilham o mesmo locus espaço-temporal.
Além disso, a própria escolha do verbo “vir”, pelo seu caráter dêitico, denuncia
que o evento deve ser construído sob a ótica dos “caras do carro”, os indivíduos em
direção aos quais o eu-personagem caminha. Por fim, é provável que mesmo a forma
verbal em terceira pessoa (portanto, sem concordância com o pronome sujeito) possa
ser explicada pelo deslocamento do ponto de vista. A ideia é a seguinte: se o evento é
construído a partir da perspectiva dos “caras do carro”, esse “eu” é, na verdade, um
outro, um “ele”. Em outras palavras, o “eu” não é construído como primeira pessoa
porque o ponto de vista adotado não é o do Falante. Todas essas marcas formais
sugerem que a cena designada pela sentença em negrito está sendo apresentada “através
dos olhos” dos ocupantes do Voyage. Segundo a hipótese da perspectiva in loco, é isso
que motiva a inversão do sujeito.
Mas, afinal, por que a HTB, embora dê conta da grande maioria dos usos VS em
contextos narrativos, não é capaz de explicar satisfatoriamente um enunciado como
(69)? Para responder essa pergunta, observem-se inicialmente os exemplos abaixo:
179
(70) eh... minha colega... foi pro::... Tijuca Off Shopping... foi/ aí pegaram o
meia vinte e dois... aí então... entraram... aí nisso ela está prestando
atenção... entrou um rapaz correndo... atrás dela... sentou do lado dela
dentro do ônibus... (Corpus D&G – Narrativa recontada – Rio de Janeiro 1)
(71) DI: ai é todo dia a mesma coisa viu’’ eu fico essa hora aqui fora pensando
na vida’ aí vem quinhentos mil mosquito em cima de mim
(Corpus BBB 10)
Em (70), existe uma sequência inicial na qual o Observador é estabelecido:
trata-se da “colega”, referida logo a seguir como “ela”: aí nisso ela está prestando
atenção... No que se refere ao fluxo discursivo, isso significa que, neste momento, o
referente de “ela” funciona como tópico. Assim, quando a sentença VS é enunciada, o
referente do sujeito – “um rapaz” – de fato não tem caráter tópico, de maneira que um
uso como este é compatível com a HTB.
Em (71), mais uma vez, o Observador é estabelecido textualmente antes da
sentença VS, por meio do pronome “eu”: trata-se do Dicésar-personagem (em oposição
ao Dicésar-narrador). No que se refere à sequência discursiva, isso quer dizer que o
referente de “eu” se torna tópico. Dessa maneira, quando a sentença VS é proferida,
indicando o aparecimento do referente do sujeito invertido no Campo Visual do
Observador, esse referente não tem caráter tópico, confirmando, portanto, a HTB.
Os exemplos (70) e (71) ilustram o modo mais comum de organização
discursiva em sequências narrativas nas quais se verifica um enunciado VS: primeiro, o
Observador é estabelecido no texto e passa a funcionar como tópico; só depois é
apresentado o evento codificado pela sentença VS, que marca uma interrupção ou
180
ruptura do estado de coisas anterior. Quando isso acontece, o referente do sujeito pós-
verbal apresenta, de fato, topicalidade baixa, já que ele interrompe a sequência na qual
o Observador se constitui como tópico. É precisamente isso que se vê tanto em (70)
quanto em (71).
Ocorre, porém, que essa organização discursiva não é obrigatória, como fica
evidente no exemplo (69). Vejamos abaixo uma comparação entre esse exemplo,
renumerado como (72b), e sua versão adaptada (72a):
(72a) Tinha um Voyage parado, batido também... aí eu fui conversar com os
caras do carro, né? Eles estavam lá parados, discutindo o que fazer, aí
vem eu doidão.
(72b) aí eu fui conversar com os caras do carro... né? pô... vem ((riso)) eu
doidão... não me lembrava de nada da batida mais... (Corpus D&G –
Narrativa de experiência pessoal – Rio de Janeiro 1)
A versão adaptada em (72a) exibe a organização discursiva padrão:
inicialmente, o Observador é estabelecido, e seu referente desempenha papel tópico
(Eles estavam lá parados, discutindo o que fazer); em seguida, o evento codificado pela
sentença VS marca uma ruptura no estado de coisas anterior, interrompendo a
sequência tópica (vem eu doidão). Se tivesse organizado seu discurso dessa maneira, o
enunciador de (69) teria produzido uma sequência narrativa pragmaticamente análoga à
de (70) e (71).
Mas não foi isso que aconteceu: o texto real é aquele de (72b). E, nesse caso, no
momento da enunciação da sentença VS, quem está estabelecido como tópico é o
referente de “eu” (que corresponderá à Entidade Focalizada ou objeto de percepção,
181
realizado como sujeito pós-verbal), e não o referente que desempenhará o papel de
Observador. Assim, levando-se em conta simplesmente o fluxo linear do discurso, o
exemplo de (72b) não deixa dúvidas de que o referente do sujeito posposto pode
corresponder ao tópico das sequências imediatamente anteriores.
E isso não parece ser especialmente raro, nem produz sequências
particularmente estranhas ou pragmaticamente mal-sucedidas. Vejamos mais três casos:
(73) C: ele’ não tô bem’ tô bem’ aí começo/ na hora que a mulher cutucou ele
começou a desenrolar com a mulher’ aí pegou a menina’ ficou com a
menina tipo’ aí daqui a pouco vem ele assim (Corpus BBB 10)
(74) C: aí teve uma hora BUM’ ele sumiu’ sumiu com a menina’ sumiu sumiu
sumiu’ desapareceu’ e a gente querendo ir embora querendo ir embora’
cadê o bruno cadê o bruno cadê o bruno’ daqui a pouco a irmã da Mônica
foi dar uma volta’ achou ele’ aí volta a irmã da Mónica’ Fernanda né o
nome dela’ (Corpus BBB 10)
(75) DO: o irmão maior era filha da puta (+) e aí ele pega e larga ela (+) e aí
ele/ ele/ aparece ele criança vendendo’ roubando comida no trem’
viviam em cima do trem (Corpus BBB 10)
Em (73), o referente de “ele” tem claramente papel tópico a partir de “ele
começou”. Nos termos de Naro e Votre (1999), esse referente é receptor de duas
informações: ele desenrola e pega/fica com “a menina”. Nesse contexto, a HTB faria a
previsão de que o evento ELE VIR ASSIM não poderia ser codificado por meio de uma
sentença VS. O exemplo (73), no entanto, contraria essa previsão.
182
Os casos de (74) e (75) são idênticos. Em (74), o referente de “a irmã da
Mônica” se qualifica, a certa altura, como tópico, sendo receptor de duas informações:
“deu uma volta” e “achou”. Nesse sentido, a sentença VS a seguir (volta a irmã da
Mônica) não constitui uma quebra da sequência tópica, contrariando a HTB. Em (75),
analogamente, o “irmão maior” desempenha papel tópico desde o início do turno: a ele
são atribuídas a propriedade de ser “filha da puta” e as ações de pegar e largar uma
menina que tentava acompanhá-lo. Na sequência, porém, esse mesmo indivíduo
aparece em um enunciado VS (aparece ele criança vendendo’ roubando comida no
trem”), realizado sob a forma de um sujeito pronominal.
Minha sugestão é que, por trás da insuficiência da HTB, parece estar (i) o
tratamento do fluxo discursivo como uma sequência linguística indiferenciada (e não
compartimentada em espaços mentais distintos) e (ii) relacionada a isso, a suposição
tácita de que a única perspectiva relevante é a do ground, ou seja, a dos interlocutores.
O problema é que, se o papel da sentença VS é precisamente promover o deslocamento
dêitico e evocar um ponto de vista alternativo, a atenção exclusiva às porções anteriores
do discurso – central quando se trata da tarefa de acompanhar o desenrolar da sequência
tópica – pode se revelar insuficiente.
Vejamos o caso de (69). A sentença aí eu fui conversar com os caras
claramente estabelece o referente de “eu” como tópico para o ouvinte (o entrevistador)
ou para os leitores da entrevista registrada no corpus. Ocorre que, a julgar pela hipótese
desta tese, a sentença seguinte não deve ser construída a partir da perspectiva do
ground, mas a partir ponto de vista dos “caras do carro”. É nesse sentido que a
construção VS promove uma “acrobacia cognitiva” (FERRARI, 2012) por meio da qual
o evento em foco é construído “pelos olhos” de um indivíduo que vivencia diretamente
os fatos. Ora, como esse indivíduo não está situado no ground, as porções anteriores do
183
discurso – a sequência tópica desenvolvida até então – simplesmente não existem para
ele. Tecnicamente, nos termos do modelo BCSN, isso significa que o sujeito de
consciência do evento em foco, estando localizado do Domínio do Conteúdo (nível O),
não tem acesso ao Espaço Metatextual, que faz parte do ground (nível S). Em termos
práticos, esse sujeito não pode ter tido acesso ao estabelecimento prévio do referente de
“eu” como tópico.
O ponto crucial, portanto, é o seguinte: quando se leva em conta apenas o fluxo
discursivo linear, parece haver uma suposição tácita de que o único ponto de vista a ser
considerado (a única “subjetividade” linguisticamente relevante) é o dos interlocutores.
No entanto, se é verdade que a ordem VS pode, por si só, promover um deslocamento
do ponto de vista, o que era tópico pode deixar de ser – sem que haja a necessidade de
qualquer sequência linguística interveniente para efetivar a destopicalização. Mas, para
isso, é preciso não apenas considerar a possibilidade de múltiplos pontos de vista como
reconhecer a compartimentação do fluxo discursivo em diferentes espaços mentais (em
vez de entendê-lo como uma sequência linear indiferenciada).
6.3 Síntese
Neste capítulo, procurei estabelecer um diálogo entre a hipótese da perspectiva
in loco, defendida neste trabalho, e abordagens anteriores da inversão do sujeito no PB.
Em particular, procurei dialogar com duas grandes vertentes de investigação: de um
lado, abordagens formalistas voltadas para a questão da transitividade e do número de
argumentos do predicador; de outro, abordagens de cunho funcional dedicadas a
questões de acessibilidade referencial e, especialmente, grau de topicalidade do sujeito.
Em ambos os casos, busquei evidenciar o potencial da hipótese da perspectiva in loco
no sentido de enriquecer a compreensão do fenômeno.
184
7 Considerações finais
Ao se debruçar sobre o fenômeno da inversão do sujeito no português brasileiro
falado, esta tese procurou cumprir dois objetivos: (i) oferecer uma explicação de base
cognitivista – especificamente, à luz da Teoria dos Espaços Mentais – para a alternância
SV / VS e (ii) descrever, nos moldes da Gramática de Construções goldbergiana, a
construção verbo-sujeito.
Com relação ao primeiro objetivo, propus que a diferença entre os padrões SV e
VS envolve deslocamento de ponto de vista. Com base na versão BCSN da TEM,
sustentei que a ordem sujeito-verbo sinaliza para o posicionamento de Ponto de Vista no
ground comunicativo (especificamente, no Espaço de Ato de Fala), de maneira que o
sujeito conceptualizador se constrói como Falante. Inversamente, a ordem verbo-sujeito
funciona como uma instrução formal para o posicionamento do PV no Domínio de
Conteúdo, com o Espaço-Foco correspondendo a um Espaço de Percepção; como
resultado, o sujeito conceptualizador se constrói como Observador. Isso explica por que
usos VS frequentemente produzem um efeito de apreensão direta do evento em foco,
como se ele estivesse sendo testemunhado, e não relatado.
Com relação ao segundo objetivo, sugeri que o polo semântico da construção VS
está associado à Cena de Focalização de Atenção, delineada com o auxílio do
instrumental teórico da Cognitive Grammar langackeriana. Procurei mostrar que essa
cena inclui três elementos conceptuais, dos quais dois ficam pressupostos (o Observador
e seu Campo Visual) e apenas um é perfilado (a Entidade Focalizada). Do ponto de vista
formal, isso significa que somente a Entidade Focalizada corresponde a um papel
argumental da construção VS, vinculando-se, nela, a uma relação gramatical e se
realizando, assim, como sujeito. Por fim, investiguei a compatibilização da construção
185
VS com seis classes de predicadores verbais (verbos de aparição, locativos estativos, de
movimento, de mudança de estado, sensoriais e de ação), buscando compreender como
se dá a “divisão de tarefas” entre o significado do verbo e a especificação semântica da
própria construção sintática abstrata.
Qual é o próximo passo? Aqui, é possível retomar, ciclicamente, o que já foi dito
na Introdução. Como vimos, a ordem VS parece se manifestar, no português brasileiro,
em um grupo aparentemente heterogêneo de nove construções gramaticais. Esse
levantamento preliminar deve ser encarado como uma hipótese inicial de trabalho – e,
mais do que isso, como uma agenda de pesquisas para um tratamento construcional da
ordem VS no PB. Nesse sentido, a continuação natural desta tese consiste em descrever,
nos seus próprios termos, as demais subconstruções.
Isso, porém, não esgota o problema. Mais do que obter uma descrição de cada
subconstrução individual, é preciso enfrentar o problema da relação que elas
estabelecem entre si. Explica-se: assumindo o Princípio da Motivação Maximizada
(GOLDBERG, 1995), apresentado no capítulo 2, é de se supor que as subconstruções
elencadas exibam alguma afinidade semântica. Nesse caso, estamos diante de uma
família de construções gramaticais de inversão do sujeito inter-relacionadas – ou, dito
de outro modo, um inventário de subconstruções vinculadas a uma construção VS mais
geral e abstrata. Diante disso, a pergunta que se coloca é a seguinte: como irmanar todas
as subconstruções VS em uma categoria única? Em outras palavras: qual a motivação
semântica / pragmática / funcional da categoria VS63
?
63
Essa indagação é muito semelhante à dúvida que motivou o estudo de Goldberg (2006, cap. 8) sobre a
inversão sujeito-auxiliar (ISA) no inglês. Ao identificar um conjunto de oito construções ISA, cada qual
associada a uma especificação semântico-pragmática própria – sentenças interrogativas, condicionais
contrafactuais, cláusulas comparativas, dentre outras –, a autora se pergunta que afinidade semântica
permite irmanar todas elas em uma mesma categoria. Sua resposta envolve a postulação de uma rede
radial, na qual as oito subconstruções se organizam em torno de uma construção ISA abstrata, definida
como o protótipo da categoria.
186
Esse tipo de indagação é particularmente importante para um paradigma não-
formalista, como é o caso da Linguística Cognitiva. Afinal, admitir que a mesma forma
verbo-sujeito se faz presente em um conjunto de construções inteiramente
independentes do ponto de vista semântico significaria aceitar a existência de
generalizações puramente formais. Na prática, isso equivaleria a assumir que a forma
sintática decorre, ao menos em alguns casos, de mecanismos formais internos. Essa
suposição, como se sabe, contraria tanto as premissas básicas da Linguística Cognitiva
(com sua associação estreita entre forma gramatical e conceptualização) quanto a ideia
fundadora das abordagens construcionais (segundo as quais a unidade básica da língua
são pareamentos de forma e significado).
É por essa razão que uma abordagem cognitivista da ordem VS deve se
preocupar não apenas em descrever as diversas construções de inversão do sujeito, mas
também em esclarecer que tipo de relação funcional (em sentido amplo) elas guardam
entre si. Para isso, pode ser produtivo partir da proposta desenvolvida neste trabalho: as
demais construções VS (ou pelo menos algum subconjunto delas) também se
caracterizam por apresentar perspectiva in loco? A noção de experiência direta também
se faz presente em outros casos de inversão do sujeito? Em que medida, em suma, a
hipótese defendida nesta tese, baseada fundamentalmente no conceito de Ponto de
Vista, se mostra útil para explicar a categoria VS como um todo?
Como de praxe, o trabalho se encerra com mais perguntas do que respostas. O
que, naturalmente, é um bom sinal. Afinal, ele terá cumprido sua missão se vier a servir
como ponto de partida – e, melhor ainda, como ponto de vista! – para novas
empreitadas. Nesse caso, é possível que algumas das questões em aberto sejam
respondidas. E é certo, para concluir com um enunciado VS, que surgirão perguntas
novas e instigantes.
187
Referências
ALMEIDA, M. L. L. et alii. (Org.). Linguística Cognitiva em foco: morfologia e
semântica. 1a ed. Rio de Janeiro: Publit, 2009.
ALMEIDA, S., FERRARI, L. Subjectivity, intersubjectivity and epistemic
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193
ANEXO
Nesta folha, você encontra cinco situações numeradas de 1 a 5. Em cada uma delas, há
uma frase destacada em negrito. Nós gostaríamos de saber o quanto essas frases soam
aceitáveis ou naturais para você, no contexto em que aparecem.
Para responder ao teste, pedimos que você marque, para cada frase em negrito, apenas
uma dentre as três opções oferecidas. Se você acredita que a frase é perfeitamente
natural, marque primeira opção (Totalmente aceitável); inversamente, se você julga o
uso em negrito em possível naquele contexto, marque a terceira opção (Inaceitável). Por
fim, se você considera que a frase poderia ser usada mas causa estranhamento, marque a
segunda opção (Aceitável, porém estranha).
1.
Dicésar e Fernanda se cruzam na sala e trocam olhares. Ela diz:
– Di, tá seu chapéu no banquinho vermelho.
Totalmente aceitável
Aceitável, porém estranha
Inaceitável
194
2.
Situação: Dicésar começa a narrar uma história para Fernanda e Serginho.
– Não, bi, olha isso. Esse meu amigo tava lá no camarim esperando, né? Aí daqui a
pouco esse tal de Marcelo entrou.
Totalmente aceitável
Aceitável, porém estranha
Inaceitável
3.
Situação: Em uma conversa com a Entrevistadora, Daniel conta uma história que
aconteceu com seu amigo Alexandre.
DANIEL: O Alexandre pegou o carro dele e foi comprar cerveja... aí estava descendo
pela Conde de Bonfim, né? E ia dobrar numa rua à esquerda que era contramão pra ir na
padaria que estava aberta lá pra comprar cerveja... Aí ele... pô... ligou a seta, reduziu...
quando ele virou pra esquerda pra cruzar a Conde de Bonfim, vinha um táxi correndo
pra caramba... e bateu na porta dele, do lado dele assim. Acabou o carro... pô, ele cortou
a cara, entrou vidro dentro do olho dele, mas não chegou a se ferir gravemente, não...
foi só assim leve, né? E pô... o mais engraçado é que ele saltou do carro, putão, e o
motorista do táxi tranquilíssimo, pegou o rádio lá que tem no táxi e ligou lá pra Central,
pediu reboque e não sei o quê... não deu nem atenção pra ele. Aí parou uma porção de
táxi, aí os caras do táxi começaram a arrumar confusão com ele... pô, ele falou que os
caras do táxi falavam pra ele assim: “pô, ninguém vai pagar teu prejuízo mesmo, sai
fora”. E não pagaram mesmo, não... veio a polícia, registraram a ocorrência, o próprio
policial falou que não adiantava nada, que entrar na justiça demora anos e dificilmente a
empresa de táxi vai pagar... você só leva prejuízo...
195
ENTREVISTADORA: Mas ele também estava errado, né? Entrar na contramão...
DANIEL: Não... ele estava errado, mas veio o táxi cortando pela contramão
também... o cara do táxi que estava mais errado do que ele ainda... E tanto o policial
falou que ele tinha toda chance de ganhar no tribunal... Só que, pô, ia demorar anos e no
final a companhia ainda ia recorrer... Se bobear, nem pagava...
Totalmente aceitável
Aceitável, porém estranha
Inaceitável
4. Situação: Dicésar conversa com Fernanda sobre outros três participantes do BBB 10:
Cadu, Dourado e Lia.
DICÉSAR: Você viu bem, muito bem quem são os três... O Cadu é uma pessoa
maravilhosa, mas ele tá influenciado com tudo isso, tá ele protegendo a amiga dele.
Totalmente aceitável
Aceitável, porém estranha
Inaceitável
196
5. Situação: Em conversa com Dicésar, Lia reclama da falta de oportunidades
profissionais.
LIA: Não, tá uma pobreza... Vou te enganar, não.
DICÉSAR: De trabalho?
Lia: É, de trabalho, tá FODA, meu. Tá tocando meu celular cada vez menos
(Corpus BBB 10)
Totalmente aceitável
Aceitável, porém estranha
Inaceitável