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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA DA LITERATURA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA LITERATURA A FRAGMENTAÇÃO DO EU NO OCIDENTE APÓS O SÉCULO XIX E SUAS EXPRESSÕES EM CONTOS DE MACHADO E LOBATO Joel Theodoro da Fonseca Júnior Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciência da Literatura, do Departamento de Teoria Literária da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Lima Lins Rio de Janeiro 2007

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE … · Negrinha, Lobato, usando a ... também o realinhamento das questões levantadas no ... ”, diz Jacobina, personagem do conto,

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE LETRAS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA DA LITERATURA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA LITERATURA

A FRAGMENTAÇÃO DO EU NO OCIDENTE APÓS O SÉCULO XIX E

SUAS EXPRESSÕES EM CONTOS DE MACHADO E LOBATO

Joel Theodoro da Fonseca Júnior

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciência da Literatura, do

Departamento de Teoria Literária da Faculdade de

Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro,

para obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Lima Lins

Rio de Janeiro

2007

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EXAME DE DISSERTAÇÃO FONSECA JUNIOR, Joel Theodoro da. Título: A fragmentação do eu no Ocidente após o século XIX e suas expressões em contos de Machado e Lobato/ Joel Theodoro da Fonseca Junior. - Rio de Janeiro: UFRJ/ 2007. Orientador: Ronaldo Pereira Lima Lins UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2007.

Banca examinadora:

Prof. Dr. Ronaldo Pereira Lima Lins/ UFRJ - Orientador Prof. Dr. André Luiz de Lima Bueno/ UFRJ Prof. Dr. Raimundo Nonato Gurgel/ UFRJ Suplentes: Profª. Drª. Marta Alckim/ UFRJ Prof. Dr. José Carlos Pinheiro Prioste/ UFRJ

Rio de Janeiro

2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE LETRAS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA DA LITERATURA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA LITERATURA

A FRAGMENTAÇÃO DO EU NO OCIDENTE APÓS O SÉCULO XIX E

SUAS EXPRESSÕES EM CONTOS DE MACHADO E LOBATO

Joel Theodoro da Fonseca Júnior

Rio de Janeiro

2007

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FICHA CATALOGRÁFICA

FONSECA JUNIOR, Joel Theodoro da. A fragmentação do eu no Ocidente após o século XIX e

suas expressões em contos de Machado e Lobato/ Joel Theodoro da Fonseca Junior. - Rio de Janeiro: UFRJ/ 2007.

xi, 181f.; 30 cm. Orientador: Ronaldo Pereira Lima Lins Dissertação (mestrado) - UFRJ/ Programa de Pós-

Graduação em Ciência da Literatura, 2007. Referências Bibliográficas: f. 153-157. 1. Fragmentação do Eu. 2. Fin-de-Siècle. 3. Machado de

Assis. 4. Monteiro Lobato. 5. Contos. 6. Pós-Modernidade. I. Lins, Ronaldo Pereira Lima. II. Universidade Federal do Riode Janeiro, Departamento de Teoria Literária. III. Título.

5

“Por sua vez, Lobato nos fala mais à alma brasileira no sentido

interiorano da palavra. Seu Jeca Tatu, suas notificações de

cidadezinhas do interior, suas narrativas de elementos

folclóricos, mais tarde resgatadas em seus textos infantis e

juvenis: tudo era meio de expressar suas idéias. Falava muitas

vezes por parábolas e personificações. Outras vezes, utilizando

lendas e fatos de criação animal ou do universo natural, trazia à

baila situações das sociedades humanas, notadamente a do

Brasil. Num trecho de Sorte grande, que está no livro

Negrinha, Lobato, usando a figura animal, diz que nos

galinheiros também é assim. Quando aparece uma ave doente,

ou ferida, as sãs correm-na a bicadas – e bicam até destruí-la”.

Antonio Candido

6

Dedico este trabalho a minha esposa Roberta e a meus filhos

Gabriel e Rafaela, que acompanharam e estimularam meus

estudos em todas as etapas.

A meu mestre Professor Doutor Ronaldo Lima Lins, orientador,

educador e incentivador de meu crescimento acadêmico.

7

AGRADECIMENTOS

Ao Professor Doutor Luis Alberto Alves por toda atenção e

estímulos dispensados.

Aos Professores Doutores Eduardo Coutinho, Vera Lins e André

Bueno, cuja capacidade e gestão de conhecimento me permitiram

construir estes pensamentos.

A minha esposa e filhos pela compreensão e pelo estímulo.

A meus pais, pela torcida e pelos primeiros tempos de estudos

em minha vida.

A minhas irmãs Raquel e Margareth, pelo apoio inconteste.

A vultos brasileiros como Machado e Lobato, que provocam em

nós o orgulho de sermos brasileiros enquanto lemos suas obras.

A Deus que, em meio a todos os movimentos humanos, continua

sendo o mesmo.

8

RESUMO

O objetivo desta dissertação é analisar os episódios centrais e periféricos do período

que se convencionou denominar Fin-de-Siècle. Como ponto de maior interesse,

vamos estudar os efeitos diretos sobre as pessoas que viveram naqueles dias e nas

que vieram depois delas.

O ponto central desta dissertação é a notada fragmentação do Eu que se percebe no

homem ocidental desde os anos 50 do século XIX até os anos 20 do século XX.

Como elemento literário, foram escolhidos dois importantes autores brasileiros,

Machado de Assis e Monteiro Lobato e, de suas vastas obras, foram escolhidos

alguns contos para demonstrar como a influência dos episódios em questão permeou

a literatura como vínculo de narrativa do homem e seu tempo.

9

ABSTRACT

The objective of this thesis is to analyze the central and peripheral facts of the

period of time named as Fin-de-Siècle. As the most important topic, we will study

some of direct and non-direct effects over the people who lived these days and after

them.

The central point of this thesis is the well known Ego fragmentation that can be

noted and studied in the Western man after those days from the 50s of XIXth

Century until the 20s of XXth Century

As a literary study, two important Brazilian authors were chosen: Machado de Assis

and Monteiro Lobato. From their vast work, some of their short stories were also

chosen in order to demonstrate how could all the studied themes of this thesis be

visible through literature as a connection between the man and his era.

10

SUMÁRIO

RESUMO................................................................................................................ 8

ABSTRACT............................................................................................................ 9

SUMÁRIO ............................................................................................................ 10

Introdução ................................................................................................................. 12

Capítulo 1 - O século XIX - O tempo em que o homem mudou .............................. 22

1.1. Quando os absolutos deixaram de ser absolutos............................................ 24

1.2. O homem que não tinha mais certeza de nada: o Eu no Fin-de-Siècle.......... 28

1.3. Mudanças na esfera dos pressupostos............................................................ 30

Capítulo 2 - Breve resumo do pensamento ocidental em direção ao Fin-de-Siècle . 35

2.1. Liberalismo .................................................................................................... 37

2.2. Fé ................................................................................................................... 40

2.3. Cultura ........................................................................................................... 42

2.4. Política ........................................................................................................... 46

Capítulo 3 - O Fin-de-Siècle: um marco temporal e espacial................................... 53

3.1. O Fin-de-Siècle e o início do século XX ....................................................... 54

3.2. Ambiente Fin-de-Siècle ................................................................................. 58

3.3. Problemas de preconceito, exclusão e extermínio racial ............................... 61

3.4. A porta aberta para o capitalismo avançado de fins do século XX ............... 67

Capítulo 4 - A Literatura - esboço teórico e prático - de fins de século XIX e início

de século XX............................................................................................................. 74

11

4.1. A formação da leitura no Brasil - a partir do século XVIII ........................... 74

4.2. O início da literatura e da leitura no Brasil .................................................... 80

4.3. O pensamento brasileiro no início do século XX .......................................... 83

4.4. Conceitos gerais e brasileiros de literatura .................................................... 90

Capítulo 5 - Machado e Lobato. Vidas e expressões ................................................ 96

5.1. Relação entre Machado e Lobato................................................................... 97

5.2. Machado, seu mundo e suas percepções do homem fragmentado................. 99

5.3. A leitura de mundo e do Eu fragmentado de Lobato ................................... 122

Considerações Finais .............................................................................................. 146

Referências bibliográficas....................................................................................... 155

Textos impressos................................................................................................. 155

Textos eletrônicos ............................................................................................... 157

Textos adicionais recomendados ........................................................................ 159

Anexos .................................................................................................................... 160

Anexo 1: Paranóia ou mistificação? ................................................................... 160

Anexo 2: Tabela de comparação simplificada entre os fatos do mundo e os fatos

biográficos de Machado e Lobato, incluindo as bibliografias de ambos............ 164

12

Introdução

“Não será na forma que conseguiremos localizar os

elementos de uma ruptura profunda, a não ser se

utilizarmos o conceito sob uma ótica ampla. Até certo

ponto, assumir a indiferença, quando nenhuma

alternativa parece trazer resultados, significa

incomodar-se”.

(Ronaldo L. Lins. In: A indiferença pós-moderna)

Podemos afirmar que o homem passou por profundas modificações em sua forma de

ver o mundo e, sobretudo, em sua maneira de ver a si mesmo. A começar por

eventos de grande interesse para tais transformações ocorridos com maior

intensidade a partir de meados do século XIX, temos que, a literatura, bem como as

demais expressões humanas, tornou-se portadora dos novos modelos nos quais o

homem se viu inserido.

Especialmente interessa-me para este estudo o período que se convencionou

denominar de Fin-de-Siècle, no qual os pressupostos da expressão fragmentada do

Eu foram sistematizados mais que em todos os outros tempos da história humana.

Nesse período vemos os momentos de questionamento se abrirem de maneira

ostensiva. Muitas reflexões sociológicas, antropológicas e filosóficas foram então

absorvidas pelo homem comum em sua vida prática. As respostas também

13

começaram a ser buscadas de forma mais intensa a partir de então, com notadas

modificações nas Ciências, além da criação de novas modalidades científicas de

estudo do interior humano, como o que se deu com a Psicanálise.

Como não poderia deixar de ser, as artes e a literatura desse tempo e dos tempos que

se seguiram estão permeadas de todas essas questões. Especificamente no caso da

literatura, personagens, dramas, narrativas inteiras se fazem questionar sob a égide

de referenciais menos objetivos – ou sem referenciais quaisquer – na busca de

respostas que antes encontravam eco em pensamentos inquestionáveis, como os da

religião. As respostas que antes satisfaziam, mesmo sem comprovação da lógica

prática, agora não mais valiam para o homem, pois para tudo passava a haver a

necessidade de comprovação sistemática, ou, no passo seguinte a essa evolução,

múltiplas respostas poderiam apresentar várias verdades possíveis.

Como nossas atenções estão voltadas para uma época determinada na trajetória do

homem ocidental, é natural constatarmos que, no espaço de tempo que vai da

segunda metade do século XIX às primeiras décadas do século XX, o Brasil teve

expoentes ímpares em sua literatura. Nessa transição de épocas, destaco Machado de

Assis nos primeiros tempos e Monteiro Lobato nos últimos. Ambos os autores têm

seu valor inquestionado entre críticos e pensadores brasileiros e estrangeiros.

Eles não foram contemporâneos em suas expressões, mas sucederam-se no tempo.

Machado, (1839 – 1908), viveu o exato período em que as evoluções do pensamento

liberal e as convulsões que apontam para a fragmentação do Eu estavam em curso.

Ele foi testemunha viva, na sociedade brasileira, de todas as influências recebidas

14

diretamente da Europa, que significava para nossa terra o pólo de orquestração

social, política, filosófica e, também, artística e literária. Machado representa a

geração que testemunhou os episódios e deixou sua marca de observador registrada

através de seus textos literários.

Lobato, (1882 - 1948), vive a situação imediatamente seguida à de Machado. Ele

viveu a convulsão do início do século XX, com duas grandes guerras, o redesenhar

das fronteiras de antigos impérios europeus, o grande avanço tecnológico que se

iniciava, mas também viveu o mundo que tornava maior o abismo existente entre as

classes sociais no Ocidente. Tal abismo se tornava mais contundente em seus

significados, já que os movimentos humanos do período Fin-de-Siècle tinham

tornado aquele mesmo homem meio descaracterizado e com o Eu fragmentado em

um ser, paradoxalmente, mais esperançoso com relação à vida comum. Viveu

também o realinhamento das questões levantadas no século anterior, sendo que, em

seus dias, com algo de amadurecimento nas ações propostas.

Machado era perspicaz, humorado, por vezes cínico e constantemente irônico em

suas expressões. Lobato era direto, contestador e, interessante notar, conseguia falar

a crianças e interioranos da mesma forma como falava a eruditos. Mesmo assim,

não deixava de ser também irônico e mordaz em suas colocações. Da monumental

obra que ambos deixaram, interessam-me em particular alguns dentre os muitos

contos que ambos escreveram magistralmente. Textos mais curtos e mais objetivos,

os contos nos permitem ver de maneira mais rápida o que o autor quer dizer sobre a

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tese e sobre a alma de seus personagens. Isso não diminui o valor literário do

gênero, pois é também verdade que a concisão é arte complexa.

Como elementos exemplificadores, temos que Machado nos deixou o conto O

espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana, no qual retrata passagens em

que o Eu se acha de fato em fragmentos, bem à moda realista. “Cada criatura

humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha

de fora para dentro...”, diz Jacobina, personagem do conto, para o qual uma era a

essência interior, ou seja, como o próprio ser via a si mesmo, e outra era a percepção

exterior, ou seja, como as demais pessoas o viam. Concorda com isso Richard

Sennett em O declínio do homem público, ao entender que, em dado momento, após

o Fin-de-Siècle e após a crise do Liberalismo, as diversas classes de homens com

vida aberta ao seu semelhante passaram a viver de maneira ambivalente, com graves

preocupações em atuar diante das pessoas e dos grupos de interesse, em detrimento

até mesmo de suas convicções. Machado, mesmo em meio a sua grande forma de

escrita, permite-nos identificar objetivamente seus intentos em bem nos informar

através de seus textos. Era, assim, bastante didático no que queria mostrar ao leitor.

Lobato, por seu lado, fala mais à essência interior do brasileiro. O Jeca Tatu, as

cidadezinhas do interior que aparecem em seus escritos, os elementos folclóricos, e,

tudo isso junto em seus textos infantis e juvenis formavam o meio de expressar suas

idéias. Parábolas e personificações, em paralelo a lendas e fatos de criação animal

ou do universo real, traziam à baila situações das sociedades humanas,

principalmente a brasileira. Num trecho de Sorte grande, que está no livro

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Negrinha, Lobato, usando a figura animal, diz que “nos galinheiros também é assim.

Quando aparece uma ave doente, ou ferida, as sãs correm-na a bicadas – e bicam até

destruí-la”. Completa depois, sem rodeios, dizendo que “em matéria de maldade o

homem é galináceo”. (Lobato, 1982, 171).

A determinação em perceber o Eu fragmentado em obras desses dois vultos da

literatura brasileira, particularmente nos contos, vem apoiada na percepção de que,

por trás da expressão literária, tanto de Machado quanto de Lobato, havia nítida

preocupação em deixar mensagens diretas ao brasileiro. Machado, cosmopolita,

amante do Rio de Janeiro, falou do que viu e viveu por aqui e do que leu de outras

partes. Lobato, empreendedor, homem vivido e viajado, falou de e para o interior e

para as crianças do Brasil, sendo que devemos entender que por detrás de caipiras e

crianças havia a fala ao adulto comum das grandes cidades brasileiras. Ambos

tocaram na ética e na eqüidade, cada um ao seu estilo. Ambos teceram críticas aos

desmandos e às mazelas de uma terra que ainda não olhava para si mesma com

olhos de quem poderia crescer não apenas em número, mas também em qualidade.

Aliás, diz Lobato que “um país não vale pelo tamanho, nem pela quantidade de

habitantes. Vale pelo trabalho que realiza e pela qualidade da sua gente”. Assim

registra num texto com o personagem Jeca Tatu, cuja aplicação seria comercial,

dando vigor ao lançamento de um produto farmacêutico, o Biotônico Fontoura.

(Disponível em: http://lobato.globo.com/misc_jeca.asp).

No caso dos dois autores, creio, há três influências fundamentais sofridas por eles. A

primeira é quanto ao tema: O Eu fragmentado passou a ser preocupação genuína de

17

todo ser humano após o Fin-de-Siècle. A maneira pela qual isso se demonstra varia

de autor a autor, no caso da literatura, mas o fato é que nunca mais se deixou de

perceber abertamente que havia algo além do que se expunha até então. Os autores

externam dessa maneira aquilo que sofrem como partícipes de uma sociedade em

transformação e ebulição, sendo que estão bem em meio ao processo em curso:

primeiro, Machado, contemporâneo dos movimentos europeus com reflexos diretos

no Brasil e, em seguida, Lobato, contemporâneo das alterações dos pólos de

dominação ocidental, ele mesmo entusiasta de seguir modelos mais evoluídos,

principalmente o americano. O homem, em meio a tudo isso, sofria bastante. A

sociedade enfermava e carecia de remédios. Os autores disso falavam em seus

escritos. Afastavam-se por vezes dos centros em que receberiam mais louros e

adentravam campos de questionamento nos quais seriam combatidos ou refutados.

Mesmo assim resolveram cumprir seus desejos de quase missão. Talvez não lhes

interessasse medir a ética ou o caráter do indivíduo, mas tratar do problema em si,

através de seus personagens, e chegar ao conhecimento do próprio indivíduo e à

educação da coletividade.

A segunda diz respeito ao modelo estrutural que seguiram por influência. Ambos,

Machado e Lobato, tinham referenciais de leitura européia e ocidental em geral, em

especial autores franceses e ingleses. Como diferencial em relação a outros grandes

autores de nossa literatura, embora não tenham sido os únicos a fazê-lo, encontra-se

o fato de eles terem trazido técnicas e conhecimentos de outras partes e de outras

literaturas nacionais para o ambiente de nossa literatura e, assim, terem sido mais

18

que capazes de falar aos seus compatriotas, os quais os entendiam perfeitamente.

Faziam literatura de alto nível, comparável à de qualquer outra parte, aos maiores

autores e às maiores obras. Utilizaram a versatilidade e a grande capacidade criativa

para falar coisa séria e profunda, sempre travestida de humor e agradabilidade.

A terceira influência notada, de certa maneira já mencionada anteriormente, é o

misto de nacionalidade, no sentido de apego ao que é brasileiro, com a observação

de vazio de sentimento de brasilidade aliado ao fato de ambos saberem que o

homem ocidental atravessava episódios críticos para sua formação. Falavam do que

viam e percebiam a pessoas que passavam pelos mesmos torvelinhos de identidade e

a pessoas que ainda viriam, que precisavam saber dos fatos e se precaver num futuro

que poderia ser melhor ou mais sombrio, dependendo das respostas alcançadas.

A menção e a leitura discriminada das três influências levam diretamente à hipótese

de que os contos de Machado e de Lobato tinham deliberadamente uma

preocupação com o indivíduo leitor e com o processo de cidadania brasileira que

estava em discussão. A fragmentação do Eu era elemento de percepção de ambos e,

de certa maneira, suas críticas e preocupações passavam por esse elemento então

recentemente observado. Um dos enfoques deste trabalho é perceber ainda que, a

partir disso, tanto em Machado quanto em Lobato, há uma leitura que vai além da

criação literária despretensiosa e sem atributos que não sejam apenas os literários.

Eles não o disseram abertamente, mas através de seus textos, seus contos e seus

personagens.

19

Basicamente, o objetivo é evidenciar que há uma nítida relação entre o estado do

homem cujo Eu se vê fragmentado e a expressão literária nos contos de Machado e

Lobato, cada um a seu modo e com sua particular habilidade.

A literatura é voz ativa de uma sociedade e, como tal, proclama fatos, anseios,

esperança e dor. O autor é a voz que se perpetua linhagens afora, sendo que, ao

registrar sua observação e sua opinião, ele o faz de modo particular, embora sob a

influência de sua comunidade, e referenciado por inúmeros fatos periféricos da

sociedade, muito embora tenha liberdade de expressão pela arte. Procuro demonstrar

neste trabalho que os autores em questão quiseram ir além de seus trabalhos com as

letras. Como parte integrante de seus tempos na história brasileira, ambos utilizaram

a arte literária para expressar aquilo que nem sempre se nota em primeiras leituras.

Nos contos, tanto de Machado como de Lobato, vejo uma síntese possível daquilo

que permeava seus pensamentos e suas preocupações. Suas esperanças aparecem

mescladas a constatações práticas do dia-a-dia de seu tempo. Personagens comuns,

extraídos da inspiração de vidas comuns que os cercavam representam toda uma

geração e seu comportamento.

O trabalho terá como objetivos principais: primeiramente, situar historicamente os

eventos que culminaram no que se convencionou denominar Fin-de-Siècle,

evidenciando os movimentos sucessivos ou paralelos que eclodiram naquele

período, seus resultados práticos no indivíduo e na coletividade e o rastro que

permanece até os nossos dias. Para tal, privilegio a leitura de textos como Viena

Fin-de-Siècle, de Carl Schorske; Amor líquido, de Zygmunt Bauman; Tudo que é

20

sólido desmancha no ar, de Marshall Berman; Pós-modernismo, a lógica cultural

do capitalismo tardio, de Fredric Jameson; O declínio do homem público e A

corrosão do caráter, de Richard Sennett; Ao vencedor as batatas, Que horas são? e

Um mestre na periferia do capitalismo, de Roberto Schwarz; As ilusões do pós-

modernismo, de Terry Eagleton; A formação da leitura no Brasil, de Lajolo e

Zilberman e A indiferença pós-moderna, de Ronaldo Lima Lins.

Em segundo lugar, será objetivo inserir Machado de Assis e Monteiro Lobato no

contexto das mudanças do Fin-de-Siècle e como as opiniões expressas em seus

contos apontam para indivíduos centrados e atentos a esses episódios. Para isso,

utilizarei principalmente A educação pela noite e os dois volumes de Formação da

literatura brasileira, de Antonio Candido; Presença da literatura brasileira, de

Antonio Candido e J. Aderaldo Castello; Introdução à literatura no Brasil, de

Afrânio Coutinho; O espírito e a letra, de Sérgio Buarque de Holanda; textos

esparsos (ensaios, artigos e outros) desses e de outros autores.

No contexto do segundo objetivo, utilizarei os textos literários evidenciados neste

trabalho. De Machado de Assis, contos extraídos das obras Histórias da meia-noite,

Histórias sem data, Várias histórias, Páginas recolhidas, Contos fluminenses,

Papéis avulsos e Relíquias da casa velha. De Monteiro Lobato, contos extraídos das

obras Urupês, Cidades Mortas e Negrinha, além do livro Idéias de Jeca Tatu.

A análise aponta para a resposta à seguinte questão, que é a problematização deste

estudo: Os contos de Machado e Lobato indicam a percepção que ambos tiveram

21

desse homem cujo Eu era fragmentado. O que escreveram, no entanto, é meramente

descritivo ou prescritivo de soluções futuras?

Acredito numa contribuição aos estudos e à compreensão dos eventos que cercaram

a nossa história no período entre meados do século XIX e primeiras décadas do

século XX. Da mesma forma, acredito numa contribuição a uma releitura de alguns

dos contos de Machado de Assis e Monteiro Lobato. Ambos os autores são muito

visitados não apenas no Brasil, mas em muitas partes do mundo. Eles são, ainda

assim, fontes inesgotáveis de novas pesquisas, novos olhares. Esta é uma

perspectiva em que os coloco como porta-vozes de seu tempo, o que muito me

interessa, visto que, como escritores, são fotógrafos literários da sua época, sua

sociedade, suas crenças, sua visão de mundo e tudo mais.

Minha expectativa é de que este trabalho possa estimular novas pesquisas em áreas

diretamente ligadas aos temas tratados ou afins. O que disseram escritores desse

porte deve ser fator de constante leitura em múltiplas visões entre nós. Nas palavras

de Machado em O Espelho:

“Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluído, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. (...) Está claro que o ofício desta segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência (...) Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...

- Não?

- Não, senhor; muda de natureza e de estado.”

22

Capítulo 1 - O século XIX - O tempo em que o homem mudou

“A vida é pura e severa, mas o caráter tem uma ou

duas cordas fraudulentas, a que só faltou a mão do

artista; nas coisas mínimas, mente com facilidade”.

(Machado, In: Galeria Póstuma).

Ao fazermos uma leitura ávida por compreensão e referência no texto de Schorske

(1988), é preciso lembrar sempre que o momento retratado por ele - ou seja, o

período que foi de meados do século XIX a início do século XX - era de grande

efervescência e muitos princípios de transformação que corriam em paralelo,

geralmente com alguma interligação.

Muitos movimentos nacionalistas começavam a se expandir por toda a Europa,

modificando conceitos e reformando idéias, bem como redefinindo paradigmas e

fronteiras. O Liberalismo, por exemplo, estava em crise conceitual e prática, com

nuances que não deixavam dúvida de que as mudanças eram por demais ríspidas,

com parcas possibilidades de alguém contemporâneo a elas poder perceber na

totalidade o que estava ocorrendo ao seu redor.

As diversas expressões de arte entravam, por um lado, em tempos de produção

fértil, como nunca antes imaginada, e, por outro, em crise intensa de sua produção.

A Ciência em geral sofria alterações também tremendamente significativas, com

rompimento de conceitos e princípios até pouco tempo antes aceitos como

23

axiomáticos. As idéias estavam sendo fragmentadas e as velhas categorias de

classificação de pensamento pareciam não mais se adequar de maneira a satisfazer

aos anseios populares e acadêmicos naquela virada de século.

Schorske (1988), em seu Viena Fin-de-Siècle, vem nos mostrar que em meio ao que

parecia uma tremenda desordem havia uma certa ordem que servia de elemento de

unificação, e isso se dava a partir de dois pontos básicos: a política e a cultura. O

Eu, a despeito de tudo o que ocorria, em meio ao caos organizado de idéias que

ainda buscavam caminho seguro a trilhar, era o ponto alto do desequilíbrio e da

fragmentação que vem até os nossos dias bater à porta do interior do ser humano

pós Fin-de-Siècle.

É claro que ele trata de um universo social delimitado, que é a cidade de Viena antes

e durante a virada para o século XX. Mas a Viena tratada por Schorske (1988) reúne

em si todos os elementos que ocorreram de modo semelhante no resto da Europa.

Na maioria dos episódios, em Viena, os fatos se deram de maneira concentrada e

mais intensa, servindo-nos de referencial para uma boa compreensão dos

acontecimentos mais gerais do Velho Continente.

Ao dizermos que o século XIX foi a época da história humana em que o homem

mudou, não queremos deixar transparecer que o mesmo jamais tinha mudado antes

disso. Queremos, sim, afirmar que as mudanças ocorridas ao longo daquele século -

e com as seqüências de nosso interesse nas primeiras décadas do século XX - foram

substancialmente profundas e de marcas que, cremos, não desaparecerão mais de

nossa história.

24

Pela agilidade de nossas empreitadas, é certo que voltaremos a experimentar

transformações profundas e penetrantes, mas todas elas terão obrigatoriamente de

passar pelos conceitos que absorvemos a partir do século XIX.

Muito do que foi consolidado desde então em nosso interior e em nossa sociedade é

a seqüência natural de nossa vida, sofrendo inequívoca influência daquilo que nos

sobreveio no passado. Mesmo que alguém possa particularmente discordar,

dificilmente poderíamos conceituar novos postulados sem nossos referenciais. Mais

cem ou cento e cinqüenta anos e alguém poderá escrever sobre o século XXI, o

tempo em que o homem mudou, sem a idéia de plágio sobre o que hoje se escreve de

nosso passado recente, mas tendo a firme convicção de que as próximas

transformações serão ainda muito mais intensas que as anteriores.

1.1. Quando os absolutos deixaram de ser absolutos

Até os dias que antecederam o século XIX não se pensava formalmente em questões

relativas. A verdade era verdade; a mentira era mentira. Os princípios do que era

relativo já existiam, mas os absolutos imperavam sem que coubesse a qualquer um

desafiar os seus postulados.

Talvez a grande diferença entre o que se vivia então e os nossos tempos é que a

mentira podia existir e, talvez, até coexistir pacificamente com a verdade. Mas uma

continuaria sendo mentira, e outra, verdade. A mistura conceitual não era algo que

se buscasse, ocorrendo furtivamente nas mentes. Os conceitos eram mais rígidos e,

por conseguinte, mais definitivos. Para os nossos dias, tal rigidez não faz sentido,

25

haja vista a relatividade com que se espera sejam analisadas todas as questões que se

nos deparam. Sobre a mentira a partir desse ponto de vista, diz-nos Lins:

A mentira funciona de tal maneira na gangorra das interpretações que, com freqüência, a impressão inicial, frente à experiência, não ganha conotações de delírio, o próprio delírio, com efeito, significando a verdade assumida e reconhecida pela maioria. Isso explica a cegueira que, eventualmente, toma conta das consciências, determinando convicções que, tempos depois, parecem inconsistentes, quando não absurdas e desprovidas de sentido. (Lins, 2006, 10).

A mentira nos serve apenas como exemplo, não sendo o foco deste trabalho. Da

mesma forma que se deu com ela, deu-se com as demais relações de interioridade,

de afetividade, de ética e tudo o mais que cerca e dá vida ao ser humano como ser

social que é. Parece-nos lógico e bom convencer-nos de algo que surgiu dentro em

nós sem que saibamos exatamente como ou por quais razões.

Somente quando nos aproximamos do século XIX - e de maneira mais intensa a

partir do século XVII - as idéias fora de um contexto mais ortodoxo começaram a

fluir com mais liberdade, numa espécie de preparação dos meios de reflexão para o

que viria em seguida.

Mesmo com as diferenças entre teoria e prática, o homem até esses dias encontrava

um ponto de refúgio singular ao qual retornava todas as vezes que seus pensamentos

e as respostas deles decorrentes não o satisfizessem em suas dúvidas e em seus

anseios. Esse esteio era a religião, que no Ocidente, principalmente a partir da

Europa, tinha as cores do cristianismo, que apontava sempre para um caminho

seguro às indagações humanas.

26

No século XIX, o homem queria ter comprovações práticas das teorias que se

propagavam. A razão determinava que não bastava apenas dizer que o certo era o

certo, mas era preciso provar que assim o era. Com o passar dos anos, o que parece

ter sido mais rápido do que em outros séculos, até mesmo essa comprovação passou

a ser objeto de novos questionamentos, pois o que se comprovava para alguns

poderia não se comprovar para outros. A verdade, enquanto conceito, sofria graves

combates: eram dias em que a relatividade no pensamento ocidental tomava corpo e

começava a ser amplamente vivida de maneira geral na sociedade. Não apenas

pensadores, cientistas e filósofos, mas todo o montante da sociedade foi se

adequando a não mais viver com base em conceitos absolutos não comprovados, em

absolutos para os quais não se atestasse tecnicamente uma comprovação plausível.

Por esse tempo, o homem ocidental começa a dialogar com o fim dos absolutos,

com o fim das respostas previamente existentes. A partir de então, esse homem

corre contra si mesmo na expectativa de defender-se. Descobre-se um por dentro e

outro por fora. Pergunta sem saber a resposta, mas não cessa mais de buscá-la. O

racional cedia lugar a algo mais denso, mais psicológico, como entendemos ao ler

que

a cultura liberal tradicional tinha se concentrado sobre o homem racional, cujo domínio científico sobre a natureza e controle moral sobre si deveriam criar a boa sociedade. No nosso século, o homem racional teve de dar lugar àquela criatura mais rica, mas mais perigosa e inconsistente, que é o homem psicológico. Esse novo homem não é simplesmente um animal racional, mas uma criatura de sentimentos e instintos. (Schorske, 1988, 26).

27

O Ocidente estava sendo preparado para o evento que se convencionou chamar Fin-

de-Siècle. Como o termo francês nos mostra, tal evento trata dos passos que

culminaram com a passagem do século XIX para o XX. Não é apenas a virada de

um século para outro, mas alguns anos que a antecederam e outros tantos que a

sucederam. Como interesse de nosso estudo, esse período se estende de meados do

século XIX às primeiras décadas do século XX.

Esse homem estava se preparando a partir dali para uma nova etapa de sua

existência, uma etapa que continuava sendo gregária e social, mas que abandonava

paradoxalmente alguns dos pontos de destaque dessas características. Ele passava a

se descobrir sozinho consigo mesmo e com suas angústias, ainda que se encontrasse

imerso em verdadeira turba urbana. Só e totalmente só. Sofrendo de um isolamento

que o afunda em novas formas e novos tons de solidão. Ele não mais encontraria a

razão do compartilhamento, fechado em si mesmo e em suas dúvidas, conforme nos

relata Lins ao tratar da questão num dos mais interessantes trechos de sua obra

citada, a segunda parte do capítulo O tríptico da identidade moderna:

Uma nova solidão tomou seu lugar na sociedade dos homens, diferente do que se vira antes, porque decidida a arcar com o seu peso, convencida da impossibilidade de romper-se em direção à exterioridade. Trata-se, por conseguinte, de uma solidão que leva à solidão, restringindo, cada vez mais, a comunidade capaz de acompanhá-la. (Lins, 2006, 44).

Dessa forma, absolutamente certo de não mais ter certeza de nada, o homem chegou

ao Fin-de-Siècle.

28

1.2. O homem que não tinha mais certeza de nada: o Eu no Fin-de-Siècle

Estamos falando de um período de nossa história em que o homem estava por

encontrar novos rumos, mesmo que conscientemente nenhum desses rumos fosse

mais uma luz perene para seu caminho, pois o mesmo homem sabia haver optado

por não querer mais pressupostos permanentes em suas reflexões e em sua vida.

O Fin-de-Siècle estava por chegar. As idéias se mostravam generalizadas, sem foco

definido e, com as certezas desaparecidas, a fragmentação se mostrava como a única

coisa certa e concreta, por paradoxal que pareça. Os rompimentos não se deram

apenas em relação a axiomas de religiosidade ou comportamento, mas em todas as

áreas da humanidade ocidental foram percebidas rupturas profundas nos antigos

modelos. A Ciência não foi exceção a essa regra, bem como as artes, a vida em

coletividade e tudo mais que diga respeito ao homem simples e comum. Nesse

período, as caracterizações que dessem mais certeza sobre fatos do que as incertezas

apregoadas eram simplesmente contestadas, mesmo as definições mais comuns,

como Romantismo ou Iluminismo, por exemplo.

Mas foi também nesse mesmo ponto que algumas das mais importantes ciências

para o melhor entendimento do interior humano foram sistematizadas ou adequadas

à nova razão. Falamos das ciências da área psicológica, como Psicologia, Psiquiatria

e sua irmã mais nova, a Psicanálise. O intenso ambiente de agitação e transformação

aliado ao caos da transição entre o certo e não-certo formaram o esteio adequado

para os estudos de Sigmund Freud que, partindo de nova ótica, estabeleceu os

estudos que deram origem à moderna Psicanálise.

29

Esse homem sem mais certezas, cujo Eu se sentia inquieto e em processo de

fragmentação chegava à encruzilhada da história. No Fin-de-Siècle esse era o

homem: alguém sem certezas, alguém cujo Eu aguardava olhando para frente,

embora soubesse não poder parar e simplesmente aguardar o futuro. Fragmentado, o

Eu sentia-se agora na iminente missão de escrever a história de maneira inédita, sem

conhecimento prévio que lhe permitisse antever o que seria de si algumas décadas a

seguir. Ele estava no momento em que tentava descobrir quem era de fato, ou se

isso realmente era importante.

Um outro Eu parecia pulsar dentro dele. “Afirmar a alteridade do Eu, (...) implicava

multiplicar as possibilidades. Nada a ver com enfermidade mental do dilaceramento

de personalidade, estudada pela psiquiatria”. (Lins, 2006, 29). Como vemos hoje

mais claramente, era um ser que precisava não apenas se descobrir, mas precisava -

e ainda precisa -, sendo descoberto, ser tratado para melhor viver e conviver consigo

mesmo e com os demais a sua volta. Sua resposta parece ter sido uma pragmática

relação de indiferença que, se num primeiro momento parecia se direcionar apenas

ao outro, ao externo, depois se viu que também se voltava contra si.

Um indivíduo indiferente não sairia de seus embaraços para olhar e interferir no exterior. Voltando para um "eu" que só se dobraria ao peso da angústia, não possuiria disposição para mergulhar nas dificuldades alheias, por mais agudas que se mostrassem. A tal ponto permaneceria anestesiado que não perceberia aquilo que o ameaça em família, na pracinha ou no meio da multidão, partindo de um conhecido ou de um estranho. Estaria incapaz de amor, de solidariedade, de paixão. (Idem, 8).

30

Lins coloca essa relação como verdadeira anomalia, dizendo que, “nesse caso, é

como se uma rebelião das células tomasse conta do espírito” (Idem, 9). E completa,

ainda sobre o mesmo tema, dizendo que a “perturbação rouba a vontade de viver”

(Idem, 9). Este era, portanto, um homem abalado, um ser em reconfiguração. E

muito do que começou a lhe ocorrer por ocasião do Fin-de-Siècle faz parte do que

consolida hoje em nós.

Talvez a primeira das providências para minimizar seus esforços e tranqüilizar esse

homem sem certezas fosse uma mudança na base de suas reflexões, exatamente nos

seus pressupostos. A forma como o homem via o que se dava ao seu redor, ou seja,

a sua cosmovisão, já abalada pelas sucessivas alterações, precisava agora ser

redefinida, a fim de que os choques externos se tornassem menos intensos

interiormente.

Com a anulação dos velhos pressupostos das categorias de classificação até então

conhecidas, cabia ao homem do Fin-de-Siècle buscá-los novos sobre os quais

pudesse se apoiar em busca de suas novas respostas.

1.3. Mudanças na esfera dos pressupostos

Entendemos os pressupostos como o conjunto de idéias que compõem a visão de

mundo pela qual o indivíduo ou a coletividade se guiam. Há aqueles que o são

apenas em nível particular, que podem diferir dos que são comuns a uma

coletividade. Por exemplo, um cidadão muçulmano inserido numa determinada

coletividade cristã terá pressupostos diferentes, que certamente influenciarão suas

31

decisões e comportamentos, mesmo que conviva pacificamente e que tenha muitas

coisas em comum com as demais pessoas. Este trabalho não tem por objeto maior o

aprofundamento no que tange aos pressupostos, mas trataremos aqui de alguns

daqueles que foram alterados a partir dos eventos que envolveram o período de

nosso maior interesse de estudos.

Creio que reside na desestruturação dos pressupostos que norteavam o homem do

século XIX o ponto chave da também desestruturação e conseqüente fragmentação

do Eu, conforme vemos no seguir da história. Ora, o homem comum tinha as bases

sobre as quais pautava seu pensamento, mesmo quando não fosse imprescindível

recorrer ao intelecto. Havia uma gama de respostas disponíveis a partir dos

processuais religiosos, políticos, culturais, artísticos, intelectuais e em diversas

outras áreas da civilização ocidental que ofereciam franco atendimento às

necessidades de respostas imediatas. Essas áreas deveriam ser comungantes entre si,

ou seja, elas não deveriam funcionar de maneira estanque, mas a vida do indivíduo,

com reflexos evidentes na vida comunitária, deveria ter lastro de várias dessas áreas

para que a vida fizesse mais sentido.

Dessa forma, era de se esperar que a ética proposta por uma de suas esferas de vida

tivesse reflexos claros e evidentes nas demais. Era o caso aberto de um político que

não poderia sê-lo de forma autêntica se sua moral e ética individuais e privadas não

correspondessem ao que ele apregoava às vésperas de sua candidatura. No Ocidente,

até pouco antes dos eventos da crise do Liberalismo e da ida em direção ao Fin-de-

Siècle, a cosmovisão, ou os pressupostos que governavam vidas e consciências eram

32

os do cristianismo na maior parte da Europa. Esses mesmos reflexos também foram

bem percebidos nas Américas colonizadas ou recém-libertas de suas matrizes por

causa da forte e sistemática presença européia no continente, ora como colonizador

e povoador por imposição direta, ora pela imposição social e econômica.

Os pressupostos individuais ou coletivos, e é bom percebermos que em muito eles

se encontram no íntimo do próprio indivíduo, migraram em direção a um processo

no qual as esferas de ação passaram a se manifestar de maneira estanque sem que

isso representasse mais problemas na ordem de consciência. Resultados esperados

poderiam justificar ações intermediárias sem riscos maiores a uma carreira

parlamentar com horário fixo de funcionamento, a uma campanha militar

justificada, sem que se levassem em conta outros pontos de reflexão ou mesmo a

uma perseguição étnica, sem que isso causasse nenhum dano a outras esferas de

pensamento ou de consciência, fosse ela individual ou coletiva.

A vida privada estava a partir de agora totalmente despida das responsabilidades

públicas, enquanto a vida pública estava desnudada do Eu privado e familiar. A

alma tornava-se endurecida e sem calor de sentimentos ou de pequenas doses de

resistência frente a tamanha indiferença relacional. Esses parecem ser amparos de

sobrevivência para aqueles que se encontravam em meio ao fogo cruzado das

alterações de pressupostos, conforme bem nos diz Lins (2006).

As pessoas envolvidas têm dois caminhos: endurecer a alma, fingir que são o que não são, ou resistir, minar com pequenas bombas caseiras o universo de calma determinado pela sociedade. Logo se perceberiam os traços de hipocrisia no quadro familiar do século XIX. (Idem, 156).

33

Aparentemente, tudo o que percebemos ao ler a respeito do homem de meados e fim

do século XIX parece haver se potencializado no homem dito pós-moderno. Talvez

a cimentação de passos seguidos automaticamente e sem tempo nem espaço para

reflexões mais profundas não lhe permitam pensar de modo mais detalhado sobre

sua realidade atual. Não temos qualquer estímulo interior para buscar o reparo do Eu

que se encontra fragmentado em nós, o que nos torna insensíveis com relação ao

outro e adormecidos, anestesiados, com relação a nós mesmos. Perceber a realidade

não tem sido capaz de nos fortalecer a ponto de buscar alternativa transformadora

que dinamize nossos sentimentos de humanidade.

Nas percepções que convergem para nós, ressalta a consciência da fragmentação como um dado cada vez mais presente pelas formas assumidas pela realidade. Os princípios da identidade, esgarçados pela dinâmica da indiferenciação em escala internacional, comprometendo até mesmo as tradições de pátria e de nacionalidade, transmitem uma sensação de desarmonia com os outros e consigo mesmo. A única defesa contra isso implica um recuo para um eu desgarrado no qual, sem outros pontos de contato, a pessoa se imagina mais ou menos segura. (Idem, 225).

Assim, é difícil perceber se a vida com pressupostos estanques fragmentou o Eu do

homem do século XIX, se foi a fragmentação desse mesmo Eu que tornou tais

pressupostos algo diferente do que eram, ou se ambos se auxiliaram mutuamente,

por pura necessidade de equalização das percepções e das ações. Foi nesse trânsito

de pressupostos que o homem ocidental começou a definir novas linhas de ações

que correspondem a eventos e idéias que perduram até aos nossos dias, já em inícios

do século XXI. Aliás, a nova base de pressupostos, com esferas estanques, parece

34

acompanhar nossa existência até aqui, sem que percebamos claramente se - e

quando - isso sofrerá novas transformações substanciais.

Com a noção de alterações de pressupostos mais clara em nossas mentes,

entenderemos melhor a linha de pensamentos que governou a nova mentalidade

humana na segunda metade do século XIX e início do século XX, no ápice do Fin-

de-Siècle.

No entanto, nosso pensamento não pode nem deve ser o de castigar o homem do

passado por ter construído a História conforme lhe vieram os meios para a construir.

É o que nos diz mais uma vez Lins:

O passado não guarda apenas revelações esquecidas; guarda valores, muitos deles úteis, se fosse possível trazê-los à modernidade para esquentar, com um cobertor de fraternidade, a frieza das nossas relações. (...) Deixaremos de culpar os grandes e irreverentes criadores da segunda metade do século XIX e do século XX, como se houvessem abusado da paciência em vez de cumprir um papel histórico. (Idem, 20).

35

Capítulo 2 - Breve resumo do pensamento ocidental em direção ao

Fin-de-Siècle

“Nos galinheiros também é assim. Quando aparece

uma ave doente, ou ferida, as sãs correm-na a bicadas

- e bicam-na até destruí-la. Em matéria de maldade o

homem é galináceo”.

(Lobato, In: Sorte grande).

A Europa do século XIX foi de uma incrível efervescência política, cultural,

científica, intelectual e de muitas outras áreas. As fronteiras ainda seriam redefinidas

algumas vezes, mas muito do que hoje tratamos por Europa, com seus conceitos, a

sua História e a sua contribuição à humanidade já estavam presentes e visíveis

naqueles dias. Quando queremos a melhor maneira de pensar a Europa de maneira

condensada e sintetizada para melhor compreendermos aqueles dias, podemos

recorrer a Carl Schorske (1988) e sua escolha de fazer de Viena de Áustria a melhor

amostra de tudo que ocorria em termos continentais.

Política e cultura andaram de mãos dadas nesse período de Fin-de-Siècle. Muitas

ações e realizações no campo das artes e do academicismo tiveram influência aberta

das estruturas políticas que regiam os momentos pelos quais atravessavam as

sociedades ocidentais mais desenvolvidas.

36

A influência, ou a mutualidade de interesses, ia desde uma obra de arte, como uma

tela, até um conglomerado arquitetônico que denunciava a presença de traços mais

afeitos a esta ou aquela tendência de pensamento.

Em A esperança, no capítulo O tríptico da aventura pós-moderna, Lins (2006) trata

do tema que lhe dá nome. Ora, o que nós, vivendo no que se convenciona chamar

pós-moderno, vemos ao olhar para dentro de nós? Conseguimos ver razão,

esperança, calor? Neste ponto, o autor questiona e traz experiências de outros

autores ao seu texto, a partir do qual temos uma visão sobre o reflexo de tudo o que

se dava em nível interior refletido em áreas exteriores, como música e artes em

geral. Chega a dizer que “o futuro, como um fantasma, insinua-se carregado de

possibilidades”. Mas, continua, “sem saber o que nos aguarda, sabemos, no entanto,

o que não queremos”. (Lins, 2006, 196).

O mundo seguia o seu percurso decepcionante, e era assim era retratado, a despeito das luzes de diversas cores que porventura o iluminavam, de acordo com quem segurava o foco, se de direita, se de esquerda. Pouco importava. O importante, vê-se hoje, era que a vida se insinuava cheia de curiosidades e valores. A resistência se mantinha, engajada nas formas de expressão e responsável pela capacidade de retocar até o mais extremo desenho da tradição, renovando-o e submetendo-o às discussões da atualidade. (Idem, 196,197).

Os tempos de Fin-de-Siècle eram de total inconstância de valores e conceituações, o

que fortaleceu imensamente o surgimento ou o reforço das ciências que estudam a

parte psicológica do ser humano, como a Psicanálise, conforme anteriormente

mencionado. A instabilidade no que crer ou em que postulados se basear fez do

homem do Fin-de-Siècle um homem solitário, mesmo quando em meio a multidões.

37

Repentinamente, cada qual parecia ter ganhado a liberdade ou, pelo menos, a

possibilidade de formular suas próprias crenças e sua própria fé, mesmo sem saber

exatamente como fazê-lo.

Vimos estabelecendo a idéia que o homem do Fin-de-Siècle era um homem com seu

Eu fragmentado. Seu pensamento, da mesma forma, encontrava-se em franco

processo de fragmentação. No entanto, isso não significa ausência de pensamento.

Pelo contrário, a fragmentação do Eu empurrou o homem a uma nova ordenação de

sua razão, de suas reflexões, agora com novos pressupostos e com uma nova visão

de esperança em relação a seu futuro.

2.1. Liberalismo

O Liberalismo não era um movimento recém-nascido quando o século XIX apontou

no horizonte. Podemos dizer que remonta ao século XVI e tinha por princípios

fundamentais assegurar as liberdades e direitos do indivíduo, além de ter em seu

bojo alguns processos de alerta contra possíveis abusos de poder. Isso se devia ao

fato de o Liberalismo ter surgido principalmente como reação de defesa social e

política contra uma seqüência de guerras sangrentas em que a Europa do século XVI

havia se envolvido, com destaque para a Guerra dos 30 Anos. Thomas Hobbes, John

Locke e Adam Smith são leituras indispensáveis para aquele que quiser se

aprofundar nesse período.

Quando chegamos ao século XIX, ou seja, 300 anos após o que acima foi

mencionado, o Liberalismo se depara com uma sociedade em ebulição, com

38

desmandos e confrontações políticas, além do que não se imaginava três séculos

antes: a revolução industrial e o conseqüente avanço da presença humana em

centros cada vez mais populosos. O Estado era freqüentemente instado a se afastar

cada vez mais das intervenções sociais e a deixar que o primitivo enfoque laissez-

faire do Liberalismo se tornasse sua mola mestra.

Roberto Schwarz no capítulo Nacional por Subtração, de sua obra Que horas são?

(1989) dá-nos interessante posição sobre o Brasil da época, quando diz que, “no

século XIX comentava-se o abismo entre a fachada liberal do Império, calcada no

parlamentarismo inglês, e o regime de trabalho efetivo, que era escravo” (Schwarz,

1989, 29). Com isso vemos claramente algumas das posições defendidas neste

trabalho, quais sejam, sobretudo, a relativização dos preceitos de coerência, e o

Liberalismo sendo tratado como uma mera expressão de fachada, sabendo nós que

por interesses peculiares à geopolítica da época. Vemos a perfeita convivência de

um esquema de dualidades que muito se aproxima do que hoje é o comum de

determinadas esferas da vida pública.

Esse Liberalismo já repleto de remendos, mas que mantinha historicamente em si

algumas figuras doutrinárias axiomáticas não suportou viver mais que meio século

XIX. Ele jamais desapareceu em sua totalidade. A história mostra que suas bases

estão vivas quando vemos os modernos movimentos de Neoliberalismo que se

implantam - no todo ou em parte - em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil.

O Liberalismo não conseguiu avançar muito. Dizendo que a razão refrearia os

abusos, não encontrou mais eco numa nova conjuntura que havia retirado a base da

39

razão como era conhecida até então. Poderíamos perguntar em pleno século XIX o

que seria razão, o que seriam os excessos, o que representaria invadir o espaço

alheio sem demonstrar peso de consciência nem frear os impulsos.

Lins (2006, 29) nos alerta, ao falar dos problemas relativos à interioridade, que a

realidade, a despeito de tudo, continua a existir, e que “uma vez de posse da

verdade, a lógica determinava que o caminho em direção a ela conduzisse a uma

individualidade mais forte e, desta, a uma sociedade melhor e mais aceitável”. Com

isso, esperava-se, o ser humano migraria a uma situação de equilíbrio interior e

exterior em seguida à descoberta de suas próprias dificuldades e limitações. Mas,

como saber delimitar os papéis se os mesmos não mais poderiam ser delimitados

numa visão ampla, mas apenas no âmbito das liberdades individuais e relativas?

Como contribuir com o outro se o indivíduo ainda não descobriu como ajudar a si

mesmo?

Esse mesmo Liberalismo, a partir de certo ponto, não encontrou mais veio de

navegação entre os Estados europeus. Os governos queriam manter-se liberais, por

tradição ou interesses governamentais e partidários, mas ideologicamente isso não

era mais uma realidade assim tão ampla.

O Liberalismo, portanto, definhou progressivamente na primeira metade do século e

agonizou ao longo da segunda metade. Novas teorias para o Estado, para a política e

para a economia foram estabelecidas exatamente nesse último período,

enfraquecendo ainda mais a combalida doutrina liberal. O Socialismo, enquanto

pensamento sistematizado, surge nesse ponto da história e se mostra publicamente

40

de modo mais amplamente sistematizado através da escrita de Karl Marx. Via de

regra, o homem como o do Fin-de-Siècle não era mais um liberal, no sentido

político do termo, mas isso também estava por ser revisto no Ocidente. Fruto disso e

para permear a política, a economia e a sociologia, duas grandes correntes foram ali

consolidadas e serviram de disputas universais futuras: o Socialismo e o

Capitalismo.

2.2. Fé

O pensamento básico encontrado na Europa do século XIX e início do século XX

ainda é o cristianismo. E por esse tempo, os olhares das duas maiores correntes

cristãs do continente estavam voltados para além-mar, a fim de aproveitar o

caminho aberto pelas navegações e esforços coloniais de suas próprias nações em

novos locais dominados. Dessa forma, as missões cristãs encontraram novo fôlego

por mais de cem anos.

Internamente, a teologia cristã estava também inserida nos contextos do século XIX

e, como todo o demais da sociedade, estava rumando abertamente em direção ao

Fin-de-Siècle. Notadamente, os pensamentos reinantes no Ocidente influenciaram

não apenas artes, filosofias, culturas e modelos práticos da sociedade, mas também

tocaram profundamente no que era até então o ponto de base inflexível do

pensamento do homem ocidental.

Embora as doutrinas ortodoxas do cristianismo não tenham sido alteradas nem

revistas, é fato que novas correntes de interpretação surgiram, algumas delas dando

41

cores totalmente novas ao que era a idéia central de sua reflexão. O Liberalismo,

que tanto influenciou o homem até esse ponto da história, também tocou fundo na

Teologia.

Com a fragmentação do Eu no Ocidente, o que era axiomático tendia a desaparecer,

cedendo lugar à relatividade e à pluralidade. Na Teologia, o processo foi muito

semelhante, passando a se expandir rapidamente o conceito de não uniformidade

teológica, com múltiplas possibilidades interpretativas e com a relativização quase

total dos elementos doutrinais.

Na prática, o que se deu foi uma invasão da esfera cristã pela esfera cultural e

filosófica que estava em ebulição no Ocidente. Isso se tornou possível graças à

alteração de conduta e de pressupostos, em que o homem podia agir em esferas

estanques, sem interligações entre elas. Por não mais ser o centro das ações

humanas, o que permeava todas as demais, o homem ocidental isolou as ações e o

contrário se notou posteriormente, quando a fé passou a ser influenciada pelas

outras esferas. Podemos notar o que diz Lins: “É certo que, como observa Marx e

mais recentemente Marshall Berman, nos últimos séculos, tudo o que era sólido se

desmanchou no ar, tudo o que era sagrado se dessacralizou.” (Lins, 2006,18).

Assim era o pensamento religioso do homem ocidental cujo Eu se via desfigurado e

fragmentado. Um homem que agora não ouvia mais, porém dizia como gostaria de

crer. Mesmo que sua fé fosse depositada no transcendente e no sobrenatural, ele

agora a relativizava e se permitia crer ainda, mas em novos moldes.

42

2.3. Cultura

A Europa do século XIX era uma verdadeira fábrica de cultura que trabalhava todo

o tempo e a todo vapor. As mais diversas personalidades dos mais variados

espectros das expressões artística e cultural humanas habitavam o Velho Continente

e dali propagavam suas inquietações e suas esperanças através de suas

manifestações culturais. Muitos pensadores europeus estavam em plena atividade de

reformular as próprias tradições nas artes e na cultura em geral, chegando a

estabelecer escolas de expressão e de pensamento em muitas delas, como História

da Arte, Literatura e Música, num intervalo de tempo muito curto. A ascensão e

queda do Liberalismo parece ter sido de grande auxílio para o desenrolar de todo

esse processo.

Schorske (1988) analisa as ligações entre política e cultura que se estendiam através

da arquitetura modernista dos suntuosos edifícios vienenses onde percebia forte

influência dos projetos liberais, das obras de artistas influentes como Klimt,

Schönberg e Kokochka. Vemos que, para esse pensador, política e cultura

condensaram o veio de coerência e unidade reflexiva em meio a um processo

caótico de vazios e ausências. Vemos também que aquilo que ele percebia em Viena

poderia ser transposto para o restante da Europa, haja vista a condensação que se viu

na capital austríaca naqueles dias.

O Fin-de-Siècle foi um período atípico para várias razões e muitos postulados

humanos. Cremos ser realmente estranho englobar numa mesma praça de análise

questões tão afastadas quanto religião e racismo, por exemplo, mas elementos assim

43

poderiam aparecer bastante integrados com a cultura que entrava em colapso, pois

ela estava por sofrer alterações permanentes e irreversíveis, a partir das quais os

moldes modernos e pós-modernos encontraram vincos de sustentação.

Entendo aqui por cultura todo o conjunto de códigos que podem reinar sobre os

procedimentos humanos numa sociedade como, por exemplo, a que vislumbramos

no Fin-de-Siècle. Em todos os momentos das sociedades podemos perceber sua

cultura, seja na forma de trabalho, no comportamento das pessoas, nas suas crenças,

em seus valores metafísicos (ou na ausência dos mesmos), nas suas formas de

expressão, etc.

Uma das mais objetivas formas de expressar a cultura de uma sociedade talvez seja

a expressão pictórica ou expressões que consigam aliar elementos visuais. Isso por

ser a visão o mais intenso dos sentidos humano e a busca por interpretações ou

simples contemplações representar um papel muito profundo no homem. Por essa

razão, fazemos uma relação entre cultura e artes visuais, o que leva de volta ao

ambiente Fin-de-Siècle e a explosão de artes plásticas e arquitetônicas que se viu em

toda a Europa e particularmente na Viena daqueles dias.

Uma interessante leitura sobre alguns estudos freudianos é feita por Codina (2005)

quando ela faz uma análise de ilusão e mal-estar passando por nossa busca interior

de identidade em meio à quase utopia de se encontrar uma. A autora do ensaio

trabalha aplicando tais conceitos no filme Clube da Luta (Estados Unidos, 1999,

direção de David Fincher). Lembremo-nos que a base desse tipo de raciocínio foi

extraída de Freud, que pensava seu tempo e o homem nele inserido exatamente sob

44

a premissa de que a identidade estava fragmentada e que algo poderia ser buscado a

fim de solucionar ou explicar tal questão. Diz ela em determinado trecho de seu

artigo: “para o ser humano e sua cultura existem duas saídas básicas: a sublimação

ou o recalque”. Continua dizendo que “o recalque é patológico e paralisa. O

neurótico experimenta a infelicidade de não conseguir conciliar seu desejo com a

cultura. Quanto à sublimação, seu alcance permanece ambíguo”. Diz mais:

Esse quadro agrava-se quando se compreende que o Eu não cumpre adequadamente sua tarefa de harmonizar as diversas forças que nele agem, na tentativa de superar os conflitos entre indivíduo e civilização. O trabalho de sublimação e a identificação fracassam, a hostilidade aumenta. O mal-estar insuperável na cultura obriga-nos a concluir que a aspiração de identidade e a tentativa de fortalecer e de reconciliar o Eu consigo mesmo manifesta a mesma insuficiência de qualquer outro desejo, já que o Eu se apresenta como modelo inatingível. A própria psicanálise mostra um Eu fragmentado, que fracassa constantemente, e parece pressupor a ilusão de atingir um Eu por meio de outro Eu igualmente ilusório. A reconciliação consigo mesmo e, portanto, com a cultura, apresenta-se assim como aquilo que sempre procuramos, sempre atingível, mas que permanentemente foge de nós. (Codina, 2005, 79).

A crise nas esferas política, social e interior do homem que viveu em tempos tão

dramáticos certamente contribuiu para que ele desenvolvesse meios de expressão

que deixassem à posteridade os sentimentos que trazia dentro de si. Uma onda

exploradora avassalou a Europa e deu conta de novos movimentos que surgiram em

várias áreas da expressão humana. Tudo buscava encontrar respostas e demonstrar a

crise vivida. Em muitos casos, a crise pessoal de autores, cientistas e artistas foi a

mola propulsora para suas expressões. É bem verdade que, inseridos num amplo

contexto, todos eles, invariavelmente, tinham reflexos interiores do que estava

acontecendo ao seu redor.

45

A busca e a instabilidade vividas refletiam, por exemplo, a forma de expressão. Era

bastante comum ver manifestações artísticas e culturais nas quais o moderno se

aliava ao antigo, numa busca por identidade atual com apego ao passado, numa

expressão que nem sempre refletia a realidade, posto que muitas das manifestações

clássicas utilizadas não tinham respaldo histórico com aquela sociedade específica.

Na Áustria, por exemplo, as estruturas oficiais, quando os trabalhos de reformulação

do centro da cidade, no Rinsgstrasse, geralmente tinham motivos históricos

clássicos, ligados à mitologia, sem relação alguma com o passado da sociedade

austríaca, mas evocativas de símbolos que dessem sentido à sensação de vazio que o

Eu fragmentado deixava ao largo da sociedade. Fachadas falsas com interiores

diferentes da expressão externa eram mais uma confirmação dessas motivações:

representavam um homem reembaralhado dentro de si mesmo, sem conseguir ainda

concatenar o Eu de dentro com o Eu de fora. Ainda em Viena, a Casa de Secessão,

uma espécie de museu misturado a uma casa de exposições culturais, foi uma

resposta às pressões da vida moderna, oferecendo a alternativa de se tornar um oásis

para o homem inquieto.

Em meio a todas essas novidades, alternativas modernizadoras eram postas em

prática. Além disso, nas artes plásticas, a expressão já era mais afeita ao moderno,

com o surgimento de arte menos convencional. Talvez não se tenha visto em outra

época da história uma tamanha efervescência de manifestações nas artes e na cultura

em geral: ao que tudo indica, o desassossego e a fragmentação do Eu motivaram

intensas amostras de expressão humana.

46

Schorske (1988, 248), por exemplo, transcreve uma sentença presente num painel

que representa a realização e que expressa tudo isso de forma sintética, falando de

poesia e arte: “O desejo de felicidade se consuma na poesia” e segue completando

que a arte “nos conduz ao reino ideal, o único onde podemos encontrar a alegria

pura, a felicidade pura, o amor puro”.

As artes, notadamente as artes plásticas, não eram mais a representação, mas a

apresentação de um ser humano em nova realidade, embora ainda em processo de

descoberta. Lemos que

O artista, embora seja um “homem sem regras” no oceano inexplorado da vida, pode, portanto, dar forma a uma parcela do ilimitado através da sua consciência dos rostos e visões. Essa consciência é simultaneamente dinâmica e estática: “deixando fluir a corrente e existir as visões”. Ela não “representa” a realidade humana ou natural, tal como fizeram os pintores até agora, mas a “apresenta” como a criação deliberada de uma consciência formada dentro dela. (Idem, 318).

Era o tempo de personagens como Klimt, Kokoschka, Schönberg, Loos e Mahler.

Este último, sendo também um musicista, influenciou profundamente artistas

plásticos, inspirando principalmente Klimt e boa parte de sua obra. Todos eles

foram exemplos de expressões nas artes: arquitetura, música e artes plásticas. Em

paralelo, expressões das letras e psicanalíticas fecharam um circuito em que o ser

humano se conduzia em direção a suas novas fronteiras culturais.

2.4. Política

A Europa era um teatro em cujo palco inúmeros movimentos nacionalistas

proliferavam por toda parte. O Liberalismo político entrava em crise aberta e já se

47

mostrava desfigurado. Foi em meio a essa evolução política européia que Schorske

(1988) observou detalhadamente o que ocorreu na Áustria entre 1848 e 1897, ou

seja, no período que vai de meados do século XIX ao auge do Fin-de-Siècle, em

particular, o processo de queda dos liberais. Ele nos mostra como as investidas dos

liberais contra as tradições da classe aristocrática que ocupava o governo até então,

bem como as reações e desdobramentos dessas investidas, influenciaram nos rumos

das artes, da arquitetura urbana, da política e dos movimentos sociais vienenses.

Muitos setores da sociedade sentiram-se estimulados à oposição dos processos

apresentados pelas reformas políticas e sociais do Liberalismo que, em síntese,

pareciam não corresponder aos anseios de maior fluidez, mas de reformas aparentes

que visavam apenas à manutenção das classes detentoras de poder em seus pontos

de domínio. Entre esses setores encontravam-se alguns que inicialmente poderiam

parecer opostos, ou pelo menos não coadjuvantes, mas que agora uniam forças

contra o mal comum, como setores insatisfeitos com os rumos de mudanças

propostas e aqueles reprimidos pelo antigo Liberalismo e que viam naquele

momento a chance de exigir uma mudança radical que consolidasse seus direitos.

Voltando-nos para a realidade brasileira de então, apenas a título de confirmação, há

uma interessante ponderação quando lemos que “o estatuto brasileiro da lei

burguesa, que vale e não vale, é o referente remoto desta relativização do escrúpulo

- encantadora ou detestável segundo o caso” (Schwarz, 1990, 130). Poucas

afirmativas quanto ao substrato social visto no século XIX brasileiro poderiam ser

mais ambíguas. Valer e não valer ou ser encantadora ou detestável pareciam

48

antíteses que conviviam lado a lado sem maiores problemas conceituais. Podemos

entender isso a partir do que temos estudado a respeito do Fin-de-Siècle e suas

circunstâncias. Lembremo-nos, no entanto, que o Brasil apenas o espelhava a

realidade de centros mais desenvolvidos que nos serviam de referência.

O meio político europeu, por sua vez, ia desde a nova maneira de pensar a ética aos

anseios expansionistas que chegavam a contradizer os recém-estabelecidos

postulados de respeito ao outro Eu, mesmo quando diferente do próprio Eu. O

cenário político europeu era vasto, rico e com muitos atores. Sionistas, anti-semitas,

nacionalistas, pan-nacionalistas, representantes da velha tradição política, radicais,

aristocratas, camponeses, artesãos, imperialistas, centralizadores, velhos liberais e

antiliberais: eis alguns dos muitos focos possíveis de pensamento político

encontrados facilmente na Europa. Em fins do século XIX e no ápice do Fin-de-

Siècle, sem dúvida, foram essas forças, que agiam centrifugamente, as grandes

ocasionadoras das derrocadas de impérios e tradicionais casas de governo europeus.

A tensão constante e progressiva dos muitos movimentos retrógrados e progressistas

aliada aos retrocessos sofridos pelos liberais que insistiam na manutenção do poder

não lhes permitiu suportar a velocidade institucional das mudanças e os fez ruir

velozmente. Conforme lemos em relatos sobre a Áustria,

Os novos movimentos de massa antiliberais - o nacionalismo tcheco, o pan-germanismo, o socialismo cristão, a social-democracia e o sionismo - surgiram de baixo para desafiar a tutela da classe média cultivada, paralisar seu sistema político e minar sua confiança na estrutura nacional da história. (Schorske, 1988, 127).

49

Embora a Europa pudesse viver experiências utópicas, os liberais austríacos não

penderam para a utopia e não criam abertamente nos princípios da perfectibilidade,

o que os tornava, num primeiro olhar, menos suscetíveis às instabilidades comuns e

generalizadas em todo o continente. De certa forma, eles demonstravam entender

melhor o que estava acontecendo nas camadas intelectuais, talvez por

sistematizarem seus pensamentos liberais em comparação com as mudanças sociais.

Os tempos eram de construções e substituições que muitas vezes se manifestavam

de maneira arbitrária, como a seqüência em que o credo liberal substituiu os

preceitos feudais que, àquela altura dos fatos, eram pejorativamente colocados sob a

alcunha aristocrata. Num outro viés, a monarquia constitucional veio substituir o

esteio formado pelo absolutismo aristocrático. Na seqüência dos fatos, o centralismo

parlamentar também veio para ficar no espaço deixado pela derrocada do

federalismo aristocrático.

Nos meios civis em toda a Europa, mas com especial vigor em Viena, ao se

somarem estas mudanças com as alterações éticas e de pressupostos gerais, temos

que a base de reconhecimento a partir do mérito passava a substituir a base anterior

que era pautada nos princípios do privilégio. Com esse pano de fundo, no qual as

mudanças se dão a partir de elementos que a própria sociedade não era capaz de

perceber com a mesma acuidade que seria preciso para acompanhá-las com a

necessária rapidez, chega um dado momento em que todos se voltam contra os

liberais, cada segmento político ou social tendo em mente suas próprias razões para

fazê-lo.

50

Como exemplo, diz Schorske (1988, 126) que “a sociedade austríaca não conseguiu

respeitar essas coordenadas liberais de ordem e progresso” e que, mais para fins do

século XIX, “a petite bourgeoisie alemã antiliberal” se colocou frontalmente contra

os liberais após estes terem atenuado de maneira aberta e ostensiva a sua antiga

retórica germanista, que em muito favorecia o espírito germânico na Europa e, de

maneira especialmente eficaz, em toda a parte da Áustria em que havia histórica

influência germânica. Em outra frente, o laissez-faire, ao invés de gerar princípios

de libertação da economia em relação às amarras do passado, findou por levantar e

fortalecer os marxistas de um tempo não muito distante de seus dias, olhando para

um futuro muito próximo. O catolicismo, antes inquestionável, agora perdia

definitivamente a vez entre a aristocracia, mas ressurgia com força sob a forma de

ideologia de camponeses e artesãos, que tinham um pensamento obstinado que os

levava a crer que Liberalismo era Capitalismo, e que Liberalismo era, portanto,

coisa de judeu. Quando chegamos ao final do século, até mesmo os judeus se

voltaram contra o Liberalismo, já que a sua derrota os deixou vitimados e

perseguidos na sociedade. A resposta dos judeus para estes últimos fatos foi a

sedimentação do sionismo como a derradeira possibilidade de sobrevivência, tendo

como matiz a fervorosa pregação de uma então hipotética volta à terra que seria o

sonhado lar nacional para os judeus dispersos por várias partes do mundo, mas que,

na Europa de Fin-de-Siècle, precisavam de alguma forma de escape a curto prazo.

Três importantes expoentes são citados como tendo começado suas vidas públicas e

sua pregação ideológica como liberais políticos e terminaram em vias diferentes,

51

fazendo de suas ideologias a prática formadora das massas que queriam atingir: São

os já mencionados Schönerer, Lueger e Herlz. Os dois primeiros foram os esteios

inspiradores de Adolf Hitler e o último foi o responsável por responder

sistematicamente às vítimas deste contra o levante do terror que se instauraria contra

os judeus na Europa.

Resume Schorske (1988):

Schönerer e Lueger, cada um à sua maneira, tinham conseguido defender a democracia contra o liberalismo. Ambos compuseram sistemas ideológicos que unificavam os inimigos do liberalismo. Cada qual à sua maneira empregou estilos, atitudes ou pretensões aristocráticas para mobilizar uma massa de seguidores ainda ávidos por uma liderança (...). Entre os dois líderes, Schönerer foi o mais impiedoso e o pioneiro mais ousado no desencadeamento de instintos destrutivos. Rompeu os muros co seu poderoso apelo anti-semita, mas Lueger organizou as tropas que ganhariam a vitória e os despojos.

Lueger era menos alienado e mais tradicional que o cavaleiro-burguês frustrado de Rosenau. Mesmo em seu anti-semitismo, Lueger carecia do rancor, da convicção e da coerência de Schönerer. Enquanto Schönerer explorou o caráter supranacional da comunidade judaica (...), Lueger revitalizou o anti-semitismo em seu ataque ao liberalismo e ao capitalismo. (Idem, 151, 152)

O poder carismático de Herzl como rei-messias redivivus não deve nos fazer negligenciar os elementos modernos de classe média que permeavam seus objetivos e métodos. O Estado judaico, tal como ele o concebera num panfleto de mesmo nome, não tinha nenhum traço de caráter judaico. Não existiria uma língua comum - certamente não o hebraico. (...).

Em todas as suas características, a terra prometida de Herzl, de fato, não era uma utopia judaica, mas liberal. Os sonhos de assimilação que não poderiam se realizar na Europa seriam realizados no Sião, onde os judeus teriam a nobreza e a honra com que Herzl sonhara desde a juventude. (Idem, 175)

Falando de Schönerer, Lueger e Herlz, diz Schorske (1988, 177) que eles

conduziram “seus seguidores para fora do mundo liberal em colapso, recorrendo às

fontes de um passado reverente para satisfazer aos anseios de um futuro

52

comunitário” e os classifica como “filhos rebeldes da cultura austro-liberal, uma

cultura que podia satisfazer os intelectos, mas matava a fome as almas de uma

população ainda apegada à memória de uma ordem social paternalista”.

Para melhor entender algumas questões, é importante termos sempre em mente que

a Áustria era uma nação multiétnica, que dentro de suas fronteiras abrigava diversas

etnias, sendo que as duas de maior projeção eram a germânica e a magiar, de origem

húngara. Interessante notar que o pensamento político, bem como suas ações na

Europa do século XIX, marcadamente no Fin-de-Siècle, deixou forte rastro que em

muito ultrapassou seu espaço e seu tempo, atingindo-nos ainda hoje com suas ações

e seus pensamentos. Capitalismo, Liberalismo, Socialismo, sionismo, anti-

semitismo, racismo, exclusão, inclusão, tolerância e tantas outras sistematizações

práticas e políticas daquele período ainda hoje assustam ou confortam o homem

ocidental.

53

Capítulo 3 - O Fin-de-Siècle: um marco temporal e espacial

“Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao

estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que

ele morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado

em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns

chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro

louco, além dele, em Itaguaí”.

(Machado, In: O alienista).

O Fin-de-Siècle não foi um fato isolado na história sobre o qual não saibamos

marcar períodos e acontecimentos. Como o nome diz claramente, Fin-de-Siècle fala

do final do século XIX e início do século XX.

Mais que isso, fala de eventos relacionados às transformações de toda a Europa, do

Ocidente, dos momentos críticos em que o homem dessa metade do planeta

descobriu-se sem identidade, com seu Eu fragmentado pelas sucessivas dissoluções

de seus pressupostos anteriores e pela luta individual e coletiva em estabelecer seus

novos modelos de visão de mundo.

Não é sem razão que vemos uma preocupação latente com aquilo em que estávamos

nos tornando a partir de então. O Eu, nesse tempo de alterações profundas, buscava

um novo espaço e novas cores através das quais se relacionar com o indivíduo que o

portava e com o mundo que o cercava. Para Lins, até hoje nos é difícil compreender

54

todos os ângulos da visão que temos do Eu, seja ele o nosso próprio, seja ele o

alheio. Isso por termos entrado num contexto de sociedade de massa, com tudo

macrodimensionado, enquanto o nosso Eu, esse sim, faz-se diminuto e fragmentado

dentro em nós, com notados reflexos por toda parte, inclusive na coletividade

massificada.

O eu, que começou sensível ao sofrimento, para transformá-lo por dentro, apropriar-se dele e quem sabe vencê-lo, aceitaria de bom grado a abandonar o projeto como se houvesse chegado a ele. Uma das dificuldades dos nossos contemporâneos consiste na grandeza dos números e das estatísticas. Tudo assumiu um aspecto gigantesco; tudo, tirando o eu, reduzido, ao contrário, a proporções microscópicas e condenáveis como se, ao mencioná-lo, quiséssemos sustentar o egoísmo. Não se pode agir com a sociedade de massa como se agia com a sociedade do século XVIII.

Lins, 2006, 71,72

Os eventos que antecipavam o final do século XIX e mostravam os primeiros anos

do século XX não foram de pouca importância, mas significaram um verdadeiro

sinal no tempo e no espaço, que marcariam permanentemente a figura humana.

Fosse em sociedade ou em solitária reclusão, o homem deveria seguir seu novo

rumo, traçado por ele próprio. Restava adequar-se e sobreviver a ele.

3.1. O Fin-de-Siècle e o início do século XX

Sennett (1998) nos mostra que até bem perto de meados do século XIX, o homem

aparentemente desejava ser indivisível, transparecendo ao máximo ao mundo

exterior e às demais pessoas o que ele realmente era. A partir daí, ele era uma

pessoa em determinados planos, mas começava a ser outra em outras cenas,

principalmente nas que envolviam o jogo público. Assim, na esfera pública, as

55

pessoas tendiam cada vez mais a serem diferentes daquilo que eram em sua vida

privada. Surgiam, a partir de então, os atores da vida pública, que tinham por

necessário desempenhar papéis específicos para o exterior de suas vidas, esperando

preservar ao máximo o que eram apenas para a sua privacidade.

Surgia o homem público que vem até hoje, visível e com projeção pessoal ostensiva,

mas que tenta se esconder dos olhares coletivos em sua vida privada. Dependendo

do seu momento, esse mesmo homem público desempenha dois papéis diferentes:

um papel passivo, de mero observador, ao fitar os demais; e um outro, ativo, de ator,

ao protagonizar o seu próprio jogo de cena.

Voltando-nos para a vida cotidiana prática, o que vemos de uma personalidade

pública no exercício de seu papel é apenas a exteriorização de seu jogo. Não

sondamos verdadeiramente a pessoa e seu caráter. Isso se fez axiomático e perdura

até nossos dias, nos quais vemos os jogos que se desenrolam à nossa vista, com

discursos de simulação e atuação objetiva, principalmente por parte da classe

política, hoje a maior expressão dessa característica.

Aqueles eram tempos em que a personalidade migrava de sua intimidade para o

público e, por isso, precisava ter defesas. Tempos de mudanças bruscas nos

sentimentos das pessoas, nos códigos de conduta coletiva, nas personalidades

variadas, nos discursos múltiplos, nas expressões individuais, do falar e do silenciar:

tudo poderia ser um jogo, com papéis definidos e por vezes conhecidos de todos.

Mas era necessário abrir a cena.

56

De certa forma, o homem moderno, e com isso quero dizer o homem que se moldou

no Fin-de-Siècle, passa a ser alguém que vive pelo menos dois “Eus”. Ele vive seu

Eu dividido em um Eu real e um Eu circunstancial. O Eu real é ativo e tem por base

as motivações e impulsos individuais, enquanto o Eu passivo é aquele que aparece

para a sociedade que cerca o indivíduo. O autor chama esses dois “Eus” de Eu (o

ativo) e mim (o passivo). (Sennett, 1998, 403).

Há algo mais a ver que apenas reações aparentes. O que estamos vendo no homem

que migrava de um século a outro, particularmente do XIX ao XX, era um

verdadeiro drama interior que, por essa mesma razão, se permitia mostrar no seu

exterior. Para Lins (2006) isso representava algo insuportável, dramático, a ponto de

tocar os ossos do ser humano. E é exatamente por causa das características

assumidas a partir de então por esse novo perfil que o homem se solta de suas

relações, inclusive daquelas que lhe dariam as bases para a seqüência de sua vida. O

que antes era trazido dos antepassados, dos pais, era agora renegado, mesmo que o

fosse inconscientemente.

Alguma coisa no século XIX, dramático nas suas dores, chegava aos ossos e se mostrava insuportável.

Para um cidadão dos dias que correm, os outros, nos Novecentos ou Oitocentos, para não falar daqueles anteriores ainda, apresentam um perfil tão distante que já não se afiguram antepassados. Cabe perguntar o que deles conservamos que nos torna a um só tempo iguais e dessemelhantes. (Lins, 2006, 29)

Esse homem cujo Eu está fragmentado e dividido é um homem que se sente só,

mesmo em meio a uma polis completamente povoada. As multidões circundantes

57

não mais representam companhia, mas podem ser canal simples e aceito de uma

intensa solidão. Máspoli (2001) diz que

Todas as relações com outros são, em última instância, meras estações ao longo do caminho através do qual o ego chega a si próprio. (...) Em termos sociológicos, a solidão é um subproduto da construção social do indivíduo. Ao afirmar a sua individualidade, o homem afirma também a fragmentação do universo social e o isolamento do outro. Este isolamento, porém, pode se tornar insuportável, gerando a tentativa de superá-lo por meio da relação interpessoal. (Máspoli, 2001, 5).

A adequação a esses valores pode representar sobrevida do Eu que aparece, sendo

ele apenas plástico, enquanto o verdadeiro Eu, ativo, se dá em oculto, o que também

o faz sobreviver. Cada um a sua forma, os dois modelos do Eu contemporâneo

parecem continuar sua corrida por adaptação. Muito do exposto e defendido por

Sennett foi buscado nos princípios psicanalíticos do narcisismo. Sobre seus

postulados, pode-se ler com detalhamento no capítulo 14, O ator privado de sua

arte. (Sennett, 1998, 243-314; 381-409).

Na literatura, que via de regra mostra o que se passa em determinados contextos e

tempos da sociedade, vemos uma interessante nota de Antonio Candido:

Quando a atividade dos escritores de um dado período se integra em tal sistema, ocorre outro elemento decisivo: a formação da continuidade literária, - espécie de transmissão da tocha entre corredores, que assegura no tempo o movimento conjunto, definindo os lineamentos de um todo. “É uma tradição, no sentido completo do termo, isto é, transmissão de algo entre os homens, e o conjunto de elementos transmitidos, formando padrões que se impõem ao pensamento ou ao comportamento, e aos quais somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar.” Sem esta tradição não há literatura, como fenômeno de civilização. (Candido, 2000, Vol I, 24).

58

No ápice do Fin-de-Siècle, o homem estava por completar o processo de

transformações que iam muito além do que ele talvez tivesse pensado quando os

movimentos de meados do século XIX tinham sido deflagrados. Muitas alterações

foram sentidas; novos marcos foram fixados no caminho do homem; as sociedades

ocidentais não eram mais as mesmas. E o Fin-de-Siècle foi o elemento demarcador

de tudo isso.

3.2. Ambiente Fin-de-Siècle

Fin-de-Siècle, como já sabemos, é termo aplicado não apenas a alguns pontos

geográficos determinados, como Viena, mas a todo um tempo, ou processo, durante

o qual o mundo, principalmente o Ocidental, com maior destaque ainda para o

europeu, teve uma verdadeira metamorfose social, política e cultural, com raios

atingindo todas as esferas da vida humana a partir de então.

Uma enorme massa de pensadores, artistas, psicólogos e historiadores estava

empenhada em responder perguntas eternas ao ser humano, mas que agora se

tornavam cruciais. O momento levava à discussão do problema da natureza do

indivíduo numa sociedade em crise de desintegração. Foi essa leva de

questionamentos que elevou Viena a um lugar de destaque no cenário em que se

buscava uma nova concepção para o ser humano. Até havia pouco tempo, o homem

tinha por boas e satisfatórias as respostas metafísicas a suas incógnitas, mesmo as

mais profundas. Quando não encontrava respostas plausíveis, o transcendente

59

atendia perfeitamente o seu silêncio e a paz aparentemente continuava a reinar nos

seres humanos.

A partir do desmonte da idéia mais universal desses pressupostos, as idéias mais

antropocêntricas ganham muito vigor e passam a governar a razão de modo objetivo

e direto. Nesse ambiente, toma força a idéia do homem psicológico (onipresente),

sendo que Schorske (1988) defende que ele surge a partir da crise política e cultural

de Viena.

O declínio, ou o incremento, da crise do Liberalismo gerou um severo clima de

ansiedade, inconstância, percepção nua da brutalidade da sociedade. O

desaparecimento da boa esperança, talvez um tanto ingênua, no homem, parece ter

se dado, ou, pelo menos, se evidenciado, exatamente por esses dias. Os traços

humanistas e cada vez menos metafísicos passaram a ser centrais nos temas e

discussões entre a intelectualidade. Com isso, o passo alcançado foi o do homem

que pensa e tem em si a resposta para suas mazelas, para seus vazios e para seus

questionamentos permanentes. O olhar do homem passou a ser posto dentro de si ao

invés de numa esperança externa, como acontecia tempos antes, no auge da

religiosidade ocidental européia.

A alta burguesia de então tinha bases simples e modelares: no aspecto da

moralidade, ela era convicta, virtuosa e repressora; no campo político, ela era

voltada para a lei e para seu império, que estava invariavelmente acima do indivíduo

e da ordem social; no aspecto intelectual, ela defendia a supremacia da mente sobre

o corpo, com progresso social advindo de trabalho duro, ciência e educação.

60

Talvez pairasse no ar uma idéia de que havia normalidade imperando sobre as

pessoas, mesmo quando ainda não a entendessem como deveriam. Difícil, talvez,

fosse alcançar intelectualmente o que poderia ser normal quando os paradigmas não

mais se mostravam tão claros. Como diz Lins (2006), a normalidade aparente,

aquela que engana, ou engoda, pode emascarar períodos de intensa crise interior.

Em suas palavras:

A ilusão de normalidade sugere um estado de calmaria que condiz mal, ou não condiz, com o tumulto subterrâneo responsável pela anomalia. De fato, a humanidade, apesar de irrequieta e não-conformista (caráter que, com inteligência, valeu-lhe como trunfo para sobrepor-se, ganhando a disputa no meio animal), atravessa períodos de estagnação nos quais a economia não manda, a sociedade dá provas de involução e a história, retrocesso. Fala-se em decadência dos costumes, das formas de organização, da qualidade de vida. (Lins, 2006, 9,10).

Notamos que a normalidade, quando apenas ilusória, é um mal latente que se abate

sobre o ser humano que, por não se aperceber de sua real situação, acomoda-se ao

que crê ser bom para si. Seu interior, no entanto, pode viver verdadeiras e duras

conturbações que não encontram rota de fuga alguma para aliviar o mesmo ser. Uma

série de eventos periféricos e circundantes aparecem como resultado imediato dessa

forma descompensada de ver a si mesmo e de perceber seus próprios sentimentos. A

reação se vê no que cerca o indivíduo, com claros reflexos sobre a própria sociedade

que o acolhe.

Assim, em meio a tão rica gama de mudanças, o burguês interiorizava a cultura

estética que ele absorvia, e dessa forma cultivava o seu Eu, sua unicidade pessoal, o

que lhe gerou inevitável preocupação com a vida psíquica individual. A fertilidade

61

de reflexões e postulados científicos e acadêmicos advindos desse período só nos

fazem comprovar tal realidade.

No entanto, por razões óbvias, uma problemática constante para os pensadores e

para os formadores de opinião no Fin-de-Siècle era a visão clara da dissolução do

postulado liberal em meio à política moderna da Europa e da Áustria de seu tempo.

(Schorske, 1988, 25-42). Assim como em todas as grandes fases da história em que

o homem sofreu alterações em sua sociedade ou em sua própria constituição, o

homem do Fin-de-Siècle, antes de auferir os benefícios advindos de seu novo

momento, passou por períodos de inquietação e ansiedade muito grandes. Muitos

problemas, o que é natural, também foram percebidos ao longo dos anos e décadas

em que o esteio da nova realidade se apresentava diante de sua vida.

No entanto, talvez o maior de todos os benefícios não esteja no campo dos

elementos concretos, mas na área do interior do homem: a esperança. Cansado de

uma série de fatores alienadores, opressores, aniquiladores de liberdade e de

possibilidade de igualdade, o homem do Fin-de-Siècle tinha agora diante de si uma

das mais belas sensações que o diferenciam de outros seres vivos e, em muitos

níveis, até entre homem e homem.

3.3. Problemas de preconceito, exclusão e extermínio racial

O problema relacionado ao poder e às conseqüências imediatas que dele podem

advir, quando mal estruturado e mal intencionado, jamais desapareceu de entre o ser

humano. Massacres, perseguições, exclusões, limpezas étnicas e todas as formas de

62

aberração originadas pelo poder mal coordenado foram vistas largamente durante

todo o século XIX e o Fin-de-Siècle. Lins diz que “na ânsia de varrer o mapa, de

limpar o terreno, de retirar espinhos, dissolvem-se valores” (Lins, 2006, 33), o que

pode perfeitamente ser aplicado aos esforços da geopolítica e da estrutura de poder,

tanto do Estado quanto de universos mais restritos dentro da sociedade.

Seguindo reflexões do mesmo autor, podemos entender que uma das problemáticas

de ordem política e social tenha se dado na sistematização que se fazia de uma

democracia moderna que coloriria o Ocidente a partir daqueles dias. Ele nos recorda

que há uma razão de ser da democracia e que a perda de seus pressupostos pode

acarretar males que não desejávamos para nós e nossa raça. Pensamento subjacente

a esse é que talvez tenhamos percorrido um círculo completo para cair no abismo do

qual queríamos nos livrar originalmente.

A utilidade da democracia consiste em não permitir que a exacerbação do eu até a anomalia (ou da loucura), ou eu já não mais dividido, mas único, exclusivo, perca a noção da realidade e nos arraste para a miséria, de onde, quando começamos, desejamos sair. (Idem, 38).

Não nos é muito fácil imaginar que o homem que tinha acabado de lutar por um

vasto leque de libertações individuais e comunitárias, cujo centro mais importante

estava fixado na relatividade e na aceitação da alteridade, ainda praticasse

exatamente as mesmas aberrações que sempre foram marca de uma espécie que não

se respeita.

Paradoxalmente, o homem aproveitava seu novo espaço de liberdade, mesmo em

meio às dúvidas que ainda o assaltavam, para subtrair a liberdade do outro. E diz

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ainda “A formação do ser dilacerado, capaz de extrair riqueza do sofrimento, como

se, enquanto campo de observação, num universo já de todo conhecido, restassem

regiões não desbravadas a reconhecer e a explorar” (Idem, 25).

Um novo imperialismo estava se fortalecendo com muito vigor. Bases científicas

que traziam novas possibilidades também podiam sugerir novas opressões. A

mesma teoria evolucionista que poderia representar uma resposta nova à existência

humana sem o apego ao religioso serviria também de base para que os mais fortes -

indivíduos ou nações - sentissem que tinham liberdade e direito de dominar os mais

fracos, mesmo que por força.

Foi exatamente por esse tempo que ciganos e judeus começaram a ser duramente

perseguidos em quase toda a Europa, sendo período que viu o surgimento de líderes

que deixaram rastros para que seus seguidores concluíssem posteriormente suas

aberrações, conforme trataremos mais adiante. Ainda nesse tempo, na França, viu-se

um notável erro acontecer contra um oficial do exército francês chamado Dreyfus, o

que até hoje é considerado uma vergonha para a política e as cortes daquele país.

Seu crime foi ter nascido filho de judeus - um judeu, portanto - mesmo em solo

francês. Há um texto disponível na Internet, da Ordem dos Advogados do Brasil,

Sessão Rio de Janeiro, (OAB-RJ), do qual extraímos alguns trechos:

O mais famoso erro judiciário de todos os tempos, sobre o qual talvez se tenha escrito mais que sobre o processo de Jesus ou de Sócrates. Alfredo Dreyfus, capitão israelita do exército francês, foi acusado de ser o autor de uma carta oferecendo documentos militares aos alemães, encontrada pelo serviço de contra-espionagem da França. Condenado em 1894 como traidor, sofreu a deportação para a Ilha do Diabo e a degradação militar. Começou então uma campanha de enormes proporções pela

64

revisão do processo e que dividiu famílias, amigos e toda a França em dois partidos, tal como o havia feito a Revolução Francesa. Os mais diversos interesses coligaram-se a favor ou contra o acusado, fazendo dele uma bandeira de luta. A nobreza, o clero, os anti-semitas, os reacionários de todo tipo, os militares, eram contra a revisão, achando que ela colocava em jogo a honra do exército francês caso as autoridades reconhecessem ter errado na condenação de Dreyfus, que fora julgado por um conselho de guerra, de cuja seriedade não se podia duvidar. A esquerda, os liberais, os progressistas, eram pela revisão e conseguiram levar a julgamento o verdadeiro culpado, o comandante Esterhazy, que foi absolvido. (...) Em 1902, novo pedido de revisão é feito e em 1906 a Corte de Cassação reconhece definitivamente a inocência de Dreyfus, sem enviá-lo a novo julgamento. Ele foi reintegrado no exército, lutou na guerra de 1914 e morreu em 1935. Na luta a favor do acusado salientaram-se grandemente Clemenceau e os advogados Labori e Demange. O processo revelou o grande senso de justiça do povo francês e ficou conhecido como “l’affaire” (o caso) por excelência. (Caso Dreyfus, http://www.elfez.com.br/elfez/Dreyfus.html)

Nesse episódio que movimentou a opinião pública na Europa e até no Brasil (Émile

Zola na França e Rui Barbosa no Brasil) houve muita comoção, mas o que de fato se

via era a idéia de segregação aberta com base nos méritos de herança étnica.

Ora, na Europa e na Áustria havia movimentos de contendas étnicas acontecendo

em várias partes. Na Áustria, era longa a questão que envolvia os magiares e os

germânicos, por exemplo. No entanto, talvez a mais intensa questão nesse aspecto

seja relacionada aos movimentos envolvendo os judeus, tanto dentro quanto fora da

Áustria. Como bem sabemos, até meados do século XX esse povo não tinha região

determinada como sendo geograficamente sua nação. Assim, a exemplo de povos

como os ciganos e, mais atualmente, comunidades palestinas, os judeus eram

dispersos entre outras comunidades nacionais.

65

Os judeus, desde a Idade Média, vinham sofrendo no Ocidente perseguições

sistemáticas baseadas em diversos preceitos. Anteriormente mais religiosa, a

perseguição que vimos no período Fin-de-Siècle tomou aspectos mais políticos com

forte dose de questões econômicas. Um movimento anti-semita estava em curso, em

meio a todas as alterações vividas na Europa. Muitos dos eventos posteriores, como

os da Alemanha de Hitler, tiveram seus embriões desenvolvidos no período que vai

de meados do século XIX ao início do século XX. Os postulados alicerçados nesse

tempo deixaram as bases para argumentações de perseguições e desmandos

generalizados, a ponto de dois homens públicos, políticos austríacos do Fin-de-

Siècle, Schönerer e Lueger, serem declaradamente inspiradores de Hitler.

Ainda em fins do século XIX, as bases de uma política anti-semita aberta e

declarada foram bem consolidadas e estabelecidas como sendo não apenas comuns,

mas necessárias. Uma das razões apregoadas para legitimar tudo isso era o

nacionalismo. Em tempos de crises, dúvidas e necessidades de definir questões

importantes, a nacionalidade, seja ela geográfica ou conceitual, também estava em

pauta.

A abertura que se deu para as perseguições chegou a assustar homens como Herlz,

que, sendo enviado como correspondente à França, viu, em Paris, atrocidades

cometidas por um regime que já estava bem amoldado ao anti-semitismo. Isso o

constrangeu por crer ele que algo assim jamais aconteceria numa terra que era o

berço do Liberalismo, que declarava liberdade, igualdade e fraternidade, ao mesmo

tempo em que estabelecia modelos de perseguição racial.

66

Tudo ocorria em meio ao declínio da confiança no Liberalismo enquanto opção

política possível para a posteridade. A condição de povo que os judeus tinham nos

países europeus incomodava a muitos. Eles constituíam na Áustria, como em outros

lugares da Europa, uma nação dentro de outra nação. Tinham direitos restringidos

por lei, mas gozavam de certos privilégios, como o de estarem isentos de

responsabilidades que só cabiam aos austríacos de fato. É bom lembrarmos que na

Europa do Fin-de-Siècle só eram considerados naturais os filhos de pais naturais, ou

seja, filhos de estrangeiros seriam sempre estrangeiros, o que perpetuaria os judeus e

demais etnias perseguidas como estrangeiros, mesmo várias gerações após a sua

chegada aos países em que se estabelecessem.

A necessidade de afirmação nacional pode ser um dos elementos importantes nesse

contexto conturbado, o que, de forma alguma, justifica atrocidades. O ápice na

Áustria parece ter sido a ascensão de Lueger ao governo municipal de Viena, eleito

duas vezes para o cargo, em 1895 e em 1897, sendo que somente da segunda vez foi

empossado, posto que, na primeira, teve sua posse embargada pelo imperador. A

seguida aprovação popular de Lueger, anti-semita declarado e devotado, evidencia

que o povo ansiava por algo naquele sentido.

A resposta à querela étnica foi a razão sionista, quase que encarnada por Herlz e

mais tarde afirmada em movimentos que se espalharam por toda a Europa e Estados

Unidos, possibilitando seu feito maior, o retorno da Diáspora à terra que

reclamavam como sendo milenarmente sua. Inicialmente, Herlz começou por

disseminar idéias assimilacionistas, segundo as quais os judeus não deveriam ser

67

excluídos das comunidades européias, mas assimilados por elas, à custa de estes

abrirem mão de suas tradições e de sua religiosidade. Mesmo assim não logrou êxito

em sua empreitada, o que o levou à pregação sionista. Buscou dois setores dos

judeus para fortalecer sua posição: os judeus menos ricos, que seriam a mão-de-obra

para a reconstrução da nova nação quando de seu retorno, e os mais abastados, que

seriam os supridores de recursos para tais realizações. As bases para o que se veria

desenvolver nas primeiras décadas do século XX, culminando com a repatriação de

judeus no Oriente Médio, estavam lançadas.

Analisando hoje, passados mais de cem anos, os dois aspectos, o anti-semita e o

sionista, parecem ter sido originados na mesma necessidade múltipla: afirmação e

sobrevivência. É claro que agora se sabe que a História poderia ter deixado outras

possibilidades, mas os homens do Fin-de-Siècle, com a formação e conformação

que tinham naqueles tempos, agiram daquela forma. Interessante notar que todos os

atores desses movimentos geraram suas ações combinando elementos clássicos e

historicamente consolidados de suas culturas com bases filosóficas e políticas

modernas para seus dias. O resgate do que tinham sido, somado ao que queriam ser,

ajudou a modelar o que passaram a ser.

3.4. A porta aberta para o capitalismo avançado de fins do século XX

Richard Sennett (2005) trata de questões como o tempo e a linearidade e como

pessoas de apenas uma geração atrás viviam com relação a esses pontos. Suas vidas

eram planejadas sobre a estabilidade e a possibilidade de rotinização de afetos e

68

trabalhos, o que, aos olhos do autor, eram coisas boas ou, pelo menos, de melhor

tom que aquelas acenadas pelo capitalismo mais selvagem de nossos dias.

O tempo ainda era gratuito para essas pessoas, que conseguiam viver sob processos

hierárquicos variáveis de acordo com o nível em que se encontravam e isso lhes era

natural. A prosperidade como busca desenfreada e que rouba os escrúpulos dos

homens após a geração anterior é observada por Sennett, que vê as ações dessa

natureza como altamente nefastas e corrosivas nas relações entre as pessoas,

inclusive de uma mesma família.

Para o autor, os trabalhos independentes e “terceirizados” são o substituto natural da

relação trabalhista mais convencional, desagregando o homem de seu bem maior,

que é a segurança pessoal e familiar. Não há mais o longo prazo no qual as pessoas

possam se equilibrar e planejar suas vidas e seus futuros. A carreira está

desaparecendo, bem como os laços fortes de antigas associações e o que sobra hoje

em dia são os laços fracos, mais modernos das associações a curto prazo ou, mesmo,

da ausência de associações. Encerra parte de seu discurso dizendo-nos:

O que é singular na incerteza hoje é que ela existe sem qualquer desastre histórico iminente; ao contrário, está entremeada nas práticas cotidianas de um vigoroso capitalismo. A instabilidade pretende ser normal (...) Talvez a corrosão de caracteres seja uma conseqüência inevitável. (Sennett, 2005, 33).

Em fins do século XX e início do XXI vemos um estrondoso retorno do trabalho à

casa, com o já familiar nome de home-office, talvez prenunciado pelo isolamento do

Eu fragmentado ainda do período Fin-de-Siècle. Esse movimento é contrário aos

tempos em que o homem, de forma oposta, migrou de sua casa para os ambientes

69

externos, o que permitiu dar grande impulso ao início da industrialização. O

homem, como se vê, e dependendo do modelo em que se insira, precisa ser flexível

para sobreviver.

Ao tratar de flexibilidade, somos lembrados que essa é a capacidade que tem a

árvore de se curvar ao vento e depois se endireitar sem se quebrar. O

comportamento humano flexível deveria ter essas características face à vida e às

dificuldades, o que compunha compreensão e busca por liberdade nos conceitos

mais antigos. Segue dizendo “Em nossa época (...) trai esse desejo pessoal de

liberdade. A repulsa à rotina burocrática e a busca da flexibilidade produziram

novas estruturas de poder e controle, em vez de criarem as condições que nos

libertam” (Idem, 54).

Interessante notar a opinião de Virgínia Drummond (2001), já sob um ponto de vista

da Psicologia, que põe a realidade atual do ser humano num retorno a um franco

processo de fragmentação, como se ele tivesse tido um momento no qual isso

sugerisse de alguma forma sinais de assentamento interior passageiro. O problema,

segundo ela, é que o ser humano, em face aos processos de fragmentação, colocou-

se como um autômato nas circunstâncias ao seu redor. O comportamento humano,

com isso, por uma questão de sobrevivência, deixa-se levar para “o que é mecânico,

automático, fisiológico, o que é inumano” (Drummond, 2001).

As dificuldades que ela aponta são muito próximas às de Sennett, autor que ela cita

sistematicamente em seu texto. O processo instalado no ser humano a partir do Fin-

de-Siècle não apenas se prolonga até os dias atuais, como ganha contornos de

70

perenidade sobre os quais não antevemos mudanças significativas. Drummond vê

um ressurgimento da fragmentação, só que agora com outras características,

“roupagens”, em sua fala. Essa fragmentação, para ela, não representa apenas um

dado de perturbação do indivíduo, mas de todos os processos que o cercam, como o

próprio trabalho, pois a fragmentação é, acima de tudo, algo desorientador,

desagregador, deixando reflexos diretos e facilmente perceptíveis em todos os

grupos sociais, a começar do indivíduo. Diz ela:

O que se pode com clareza identificar é o ressurgimento, sob outra roupagem, do “fantasma” da fragmentação, que tantas críticas propiciou às teorias fundadoras no campo dos estudos organizacionais. O que hoje se observa é a fragilização de todos os empreendimentos humanos pela fragmentação desorientadora, pela excessiva flexibilização que produz desagregação. Indivíduo, família, grupos sociais ou profissionais, e mesmo países tornam-se indefesos pela extrema permeabilidade de suas fronteiras, através da queda de barreiras protetoras de suas características mais constitutivas e singulares. (Idem)

Retornando a Sennett (2005), entre as páginas 123 e 126, na maior referência

seguida que faz a outro autor, Sennett abre um parêntese para resgatar e explicar

princípios de Max Weber e sua obra clássica A ética protestante e o espírito do

capitalismo. Discorre sobre o que Weber registrou de amparo teológico, histórico e

sociológico de fatos que não eram necessariamente do Capitalismo enquanto

doutrina econômica, mas que serviram de apoio aberto a muitas das suas práticas.

As modernas formas de trabalho em equipe levam a formas veladas de engano,

como as que fazem os trabalhadores, hipocritamente chamados de “colaboradores”,

pensarem que a sua equipe de trabalho faz parte de algo maior, uma grande equipe

de trabalho que compreende toda a corporação. Dela fazem parte os altos

71

executivos, os gerentes, etc. Na verdade, as equipes menores são induzidas a esse

pensamento por conta da intenção que as corporações têm de iludir seus

funcionários.

Falando sobre Weber, por exemplo, vemos que ele entende a vida social como a

conduta individual. Em sua obra já citada, Weber ressalta que as representações

sociais são juízos de valor que os indivíduos possuem e pelos quais eles se orientam.

Weber não é tão cético em relação à autonomia do indivíduo quanto outros autores,

mas é muito objetivo em suas considerações. Chama também a nossa atenção para a

importância de compreendermos bem as representações sociais para entendermos

melhor o desenvolvimento histórico.

O fracasso tornou-se a maior ameaça do homem moderno. Prova disso são as

volumosas apresentações sobre como vencer na vida, no trabalho, na família, etc.

Costumamos chamar tudo isso de auto-ajuda, na melhor das hipóteses. No mercado

competitivo, uma pequena minoria joga na derrota uma enorme maioria de gente

educada e preparada (Sennett, 2005, 141).

No começo do século XX, uma das maneiras encontradas, em tempos de crise, para

se superar o fracasso era trilhar uma carreira a ponto de fazer com que o sucesso

recobrado findasse com o fracasso. Mas, em tempos em que o capitalismo se tornou

flexível e que as carreiras não mais representam alternativa viável, o que aplicar

como antídoto? Em termos de capitalismo antigo, as empresas ofereciam modelos

nos quais os trabalhadores tinham a sensação de serem parte de algo muito maior,

de algo que era semelhante a uma enorme família. Tinham segurança e tinham

72

demonstrativos de suas habilidades para lhes garantir a possibilidade de driblar um

eventual fracasso. No Capitalismo tardio o que há é uma enorme instabilidade

individual, sem mais haver a possibilidade de expressar qualidades pessoais - por

conta, em parte, do trabalho em equipe - legando os trabalhadores à possibilidade do

fracasso e à depressão que a ele se segue.

Nasce, pela própria fragmentação das relações, um senso de dependência mútua que

gera um problema para o moderno Capitalismo, pois ele encara a dependência como

algo vergonhoso e desprovido de sucesso. Tornou-se comum pensar

automaticamente na oposição entre um Eu fraco e dependente e um Eu forte e

independente. Na verdade, estamos invertendo os valores, pois é este Eu

supostamente independente que se torna o mais fraco de todos, por sua inabilidade

em gerenciar os fracassos sofridos e as derrotas iminentes.

O uso indiscriminado do “nós” para esvaziar de conteúdo esse “Eu” leva a

problemas tais como falta de confiança, ineficiência relacional, etc. Para Sennett, no

caso específico da confiança, ela toma dois aspectos possíveis: a simples falta de

confiança e o excesso de desconfiança ativa nos outros. Esses problemas éticos

ainda sugerem mais uma face da problemática geral, que é a apropriação indevida

por parte de movimentos como o “comunitarismo” de termos com novo significado

técnico, como confiança, responsabilidade mútua, compromisso, etc.

Ao final de tudo, o que se quer de fato é o retorno à comunidade. A busca individual

está seriamente dificultada pelos pressupostos do capitalismo tardio, enquanto o

73

sistema em si não consegue mostrar saída plausível para suas crises e suas falhas de

modelo.

74

Capítulo 4 - A Literatura - esboço teórico e prático - de fins de

século XIX e início de século XX

“Nesse dia o infeliz engraçado chorou. Compreendeu

que não se desfaz do pé pra mão o que levou anos a

cristalizar-se”.

(Lobato, In: O engraçado arrependido).

4.1. A formação da leitura no Brasil - a partir do século XVIII

O Brasil, sabemos nós, juntamente com muitas outras nações, faz parte dos esforços

coloniais europeus que redesenharam o mundo a partir da Idade Média. Como terra

colonizada, a literatura que se conhece hoje nesses locais percorreu um caminho que

vai do seu surgimento com inegáveis influências diretas da metrópole ao que hoje

podemos ler e identificar como sendo a nossa literatura.

É período das mudanças decisivas, no qual as transformações que se viam em

progresso, mesmo que não se percebesse à época, redundariam, sim, na formação de

uma literatura nova, com crescente acréscimo de elementos genuínos. Isso

tampouco quer dizer que essa nova forma de fazer e perceber literatura não tenha

guardado referenciais de sua matriz que começava a perder tônus por essa ocasião.

As informações referentes à formação da leitura no Brasil, fator preponderante para

que pessoas como Machado de Assis e Monteiro Lobato tivessem leitores mais

75

tarde, servem para ilustrar o pavimento dos caminhos para a literatura que se

praticaria no Brasil, como aquela que ambos produziram.

“O ambiente para a produção literária nos meados do século XVIII era, no Brasil, o

mais pobre e menos estimulante que se possa imaginar, permanecendo a literatura

(...) um subproduto da vida religiosa e da sociabilidade das classes dirigentes”.

(Candido, 2000, Vol. I, 73). Assim começa o capítulo intitulado Literatura

congregada, no qual Candido trata de mostrar que o fato nu e cru do século XVIII

na literatura feita no Brasil apontava para direções que não eram a formação

objetiva de uma literatura nacional, mesmo sendo feita em terras brasileiras.

Candido nos diz que esse foi um período no qual se viu a formação de grupos de

interesses culturais, agremiações formadas nos moldes associativos, como

academias, que primavam pelas letras. Com o passar do tempo, os seus integrantes

desenvolviam seus textos, que ficavam sem leitura abrangente, pois este era um país

com alguma produção literária, mas sem público que a lesse.

Mesmo assim, esse modelo de agremiações foi importante, pois começou a formatar

um pequeno, porém importante público leitor, composto dos próprios agremiados,

que passaram a exercer o duplo papel de autor e leitor, com leituras retroalimentadas

e canalizadas para a fraternidade dos escritores e apreciadores das letras. “Foi,

portanto, um autopúblico, num país sem públicos”. (Idem, 74). De certa forma, este

elemento foi o propulsor da formação de um público que é sócio em suas atividades:

autor e leitor.

76

Enquanto isso, Lajolo e Zilberman (1996) colocam, em acréscimo a essas

informações de Candido, algo que pode explicar interesses de entrelinhas da

ocasião. Segundo seu relato, foi nesse mesmo período que o texto, cuja

consolidação de elemento independente pós-Gutenberg se verifica como irreversível

por várias questões, inclusive as comerciais. O autor adquire status até então

desconhecido, passando a ter importância não apenas intelectual ou fraternal, mas

importância de mercado, com normas e valores sendo aplicados ao seu trabalho.

Dizem elas que foi necessária a postulação do “reconhecimento da autoria,

fundamento da noção de propriedade literária, que adquire força de lei na passagem

do século XVIII para o XIX” (Idem, 61).

Elas concluem que os primeiros beneficiados foram os autores românticos. É bem

verdade que as autoras mencionam a Europa, mas Candido trata de uma nação em

formação que se espelha na Europa para várias coisas, inclusive para estabelecer os

embriões de sua própria literatura.

No capítulo intitulado Musa industrial, as autoras falam da mudança provocada por

um outro importante detalhe da época, que até nossos dias gera análises variadas e

discussões acaloradas. Se, por um lado, o autor começa a ser respeitado em alguma

forma, por outro, o seu texto parece ganhar mais importância que ele, pois,

transformado em produto industrializável e comercializável, cujo acabamento seria

o livro enquanto objeto, passa a valer mais dinheiro que a produção intelectual em

si.

77

A discussão não teve fim nos séculos XVIII e XIX, mas prossegue viva até hoje.

Essa forma de contradição conceitual, quando retornamos a Candido, parece servir

de base de entendimento das razões que levavam as agremiações, por exemplo, a

buscarem tenazmente um novo público que pudesse ser despertado para a leitura,

mesmo que, inicialmente, o mesmo fosse cíclico e restrito. De certa maneira,

Candido aponta para o fato de que o mercado literário brasileiro precisava começar

a funcionar.

A vinda de D. João VI para o Brasil, onde teve de, em pouco tempo, instalar a sede

de seu governo, fez com que determinados elementos importantes ao

estabelecimento de uma cultura nacional de leitura e constituição de literatura daí

surgissem. Formas mais abertas que as anteriores davam novos ares à imprensa, à

literatura, à divulgação de idéias, em paralelo ao surgimento e fortalecimento de

escolas superiores e debates que se davam em meio à intelectualidade da época.

Antonio Candido chama esse período de “nossa Época das Luzes” (Candido, 2000,

Vol. I, 215), deixando claro em sua seqüência de idéias que, para ele, isso despertou

a cultura intelectual e as artes, das quais ele destaca a literatura em particular. A

tudo isso se seguiu o primeiro público verdadeiramente consumidor de artes e de

produções literárias, que se consolida e progride até praticamente os dias atuais,

com poucas variantes. Mesmo assim, com tudo de importante que representou, essa

fase inicial foi ainda marcada pela aliança entre artes e literatura com o aparato do

Estado que, invariavelmente, era o grande fomentador de sua produção.

78

Contudo, o evento da abertura dos portos representou enorme passo ao

desenvolvimento da cultura dos livros no Brasil. Até então, Candido nos lembra que

a entrada dos mesmos era quase sempre clandestina. Com as facilidades de acesso

desse evento, o número de compradores e leitores aumentou gradativamente. De

início, nas primeiras décadas do século XIX, as livrarias eram ainda muito escassas

e os preços dos livros, muito elevados. Os livros encontrados, em muitos casos,

eram de má qualidade editorial ou de cunho estritamente religioso. Mesmo assim,

deu-se o início da comercialização dos livros, numa terra ainda sem maiores

públicos leitores.

Ações paralelas começavam a acontecer no sentido de formar bibliotecas que

dessem acesso ao público leitor em geral. A Biblioteca Real foi aberta no Rio em

1814 e, em 1820, já contava com nada menos que 60 mil títulos. Outras bibliotecas,

como a de Spix e Martius, evoluíram, do ostracismo por volta de 1817, à grande

freqüência em 1825. Para Candido, que fornece essas informações, isso representa a

evolução do hábito da leitura no Brasil.

Logo de início, há uma constatação do que pareceria óbvio, mas que de fato pode

ser verificado em nossa história: o escritor brasileiro não seria capaz de sobreviver

da literatura num Brasil do século XIX. Isso não é difícil de se entender, posto que

até nossos dias essa realidade teima em ser verdadeira para a enorme maioria dos

que se aventuram no mundo da criação literária em nossa terra.

Mesmo constatando que a imprensa trouxe enorme avanço ao universo literário,

precisamos entender que, para o mundo como um todo, mormente o ocidental,

79

estávamos com um enorme atraso. Aliado a esse dado evolutivo de nossa sociedade,

temos mais: os habitantes do Brasil do século XIX eram, na sua maioria, escravos e,

em cerca de 70%, analfabetos. Ora, escravos não compram por não terem dinheiro e

analfabetos não lêem por não saberem fazê-lo. Voltamos então à posição

anteriormente mencionada de autopúblico para as sociedades de interesse específico

em literatura e leitura em geral. Junte-se a tudo isso que, com um mercado exíguo,

tendo em vista a lei da oferta e da procura, afora os problemas técnicos de confecção

ou importação, o livro ainda era preciosidade para poucos abastados.

Numa realidade assim como a descrita, restavam poucos caminhos aos escritores

que se aventuravam naqueles tempos. Um deles era o tradicional caminho político

ou dos apadrinhamentos somente possíveis em sociedades ainda pouco sustentadas

por seus próprios recursos. Tais caminhos foram muito comuns para viabilizar as

primeiras obras e suas edições de alguns dos maiores expoentes de nossa literatura.

Finalmente com relação a esse período temos algumas informações de como se

deram as primeiras vendas dos livros então editados. Enquanto os livreiros eram

escassos e, quando existentes, de poucos produtos e muito preço, a venda direta aos

possíveis consumidores tomou bastante importância. Nesse exato contexto, o livro

era mercadoria como outra qualquer, vendável como frutas, legumes ou mesmo

escravos. Enfim, nesse método de comercialização, o livro não tinha o sentido de

cultura ou literatura que mais tarde se arraigou, mas apenas de mais um produto

comercializável por encomenda ou de porta em porta.

80

4.2. O início da literatura e da leitura no Brasil

Sobre este tema, Candido é mais rico, embora Lajolo e Zilberman também tragam

contribuições importantes. Candido faz a defesa de suas idéias da maneira que lhe é

peculiar, direta e objetivamente, em seu capítulo Teoria da literatura brasileira

(Candido, 2000, Vol. II, 293). Começa por dizer que “a crítica brasileira do tempo

do Romantismo é quase toda muito medíocre, girando em torno das mesmas idéias

básicas, segundo os mesmos recursos de expressão” (Idem). No entanto, mesmo se

posicionando dessa maneira, Candido faz diversas ressalvas, agregando real

importância a fatos de contribuição encontrados na crítica de então.

A primeira das críticas que faz é a de que, mesmo considerando a crítica algo pobre

e sem variantes, ele entende que a mesma reconhecia os momentos pelos quais

atravessava a literatura brasileira naquele momento. De igual modo, ele entende que

o amparo histórico que a crítica ofereceu aos escritores e estudiosos foi de enorme

valia, pois deu base e confirmou escritores a partir de conceituações sem as quais

seria impossível estabelecer caminhos acadêmicos, retóricos, críticos ou literários.

Como é de se esperar numa sociedade sem vínculos históricos de peso, a

estruturação de nossa crítica foi, em grande parte, fruto de uma apreciação nacional

que, com apelos internos, buscou amparo nas academias externas. O que de fato se

deu foi o apanhado de informações críticas junto às matrizes culturais de maior

peso. A busca por modelos é inegável em tempos de formação. A da literatura

brasileira e de sua crítica não fogem a essa regra. Problema novo a ser resolvido era

81

a definição do que seria o caminho adotado por uma literatura nacional, que, até

então, seguia estritos modelos externos.

Candido enumera a retomada das posições de Denis feita por Sílvio Romero, e que

seria, em suas próprias palavras, “o que se pode chamar de ‘teoria geral da literatura

brasileira’”:

“1) o Brasil precisa ter uma literatura independente; 2) esta literatura recebe suas características do meio, das raças e dos costumes próprios do país; 3) os índios são os brasileiros mais lídimos, devendo-se investigar as suas características poéticas e tomá-los como tema; 4) além do índio, são critérios de identificação nacional, a descrição da natureza e dos costumes; 5) a religião não é característica nacional mas é elemento indispensável da nova literatura; 6) é preciso reconhecer a existência de uma literatura brasileira no passado e determinar quais os escritores que anunciam as correntes atuais”. (Idem, 294).

Talvez o mais ardoroso debate daqueles dias não tenha se dado no campo técnico da

crítica literária, mas, antes, tenha avançado pelas linhas das discussões políticas.

Muito se discutiu das questões nacionais, o que fez com que o debate da crítica

migrasse da área mais cultural e literária para questões como: a literatura deve ser

nacional(ista) ou não, e a partir de que tempo ou de que autorias podemos definir a

literatura brasileira como verdadeiramente nacional? Talvez esse nível de discussão

tenha enfraquecido durante tempos a real importância da crítica literária e as

contribuições mais amplas que poderia ter trazido. Mas devemos entender que o

momento era difícil e com pouco favorecimento a discussões amplas, conforme já

se mencionou anteriormente.

Lajolo e Zilberman, por sua vez, recorrem aos textos de alguns dos autores

românticos brasileiros com a finalidade de interpretar em sua forma de contato

82

quase didática uma necessidade de condução factual do leitor diante do texto. Com

isso, mostra-se que os autores românticos tinham a clara noção de escrever para que

um público ainda frágil em sua leitura tivesse acesso às suas linhas.

Sugerem que, para o autor daqueles tempos, parecia haver a clara noção de que o

público ainda era pouco capaz de compreender a sua obra. Como forma de atestar

esse princípio, elas afirmam ainda que era muito comum os autores românticos

simularem reações dos leitores, aprovando-as em seguida no texto, como se o leitor

mesmo ainda não fosse capaz de chegar a tais conclusões por si próprio.

Para realçar a importância desse momento da leitura no Brasil, voltamos a lembrar

dos episódios da instalação da Biblioteca Real no Rio de Janeiro a partir das

doações de D. João quando de sua estada como monarca sediado nesta cidade. Num

período de escassos meios literários, essa foi uma fórmula bastante eficaz de fincar

raízes num solo ainda pouco semeado como era o do Brasil oitocentista.

Destacavam-se, em certo tempo, duas bibliotecas públicas no Rio de Janeiro: uma

era a Imperial e a outra ficava no Convento de São Bento. Interessante relato no

deixou Thomas Ewbank que, de visita ao Rio entre 1844 e 1845, declara: “A

Biblioteca [Nacional] honra a cidade. Cada pessoa decentemente vestida, branca ou

preta, tem acesso livre à consulta e se quiser fazer extratos, ser-lhe-ão fornecidos

penas, tinta e papel” (Lajolo e Zilberman, 1996, 180). É difícil percebermos de hoje

como teria sido essa percepção de Ewbank de um acesso tão liberado naqueles

tempos. Como esperar, por exemplo, que um negro de então estivesse

“decentemente vestido” ou, mesmo, querendo “fazer extratos?” Os negros eram, via

83

de regra, escravos, logo, mal vestidos e analfabetos (ou semi-alfabetizados). No

entanto, mesmo assim, pela investigação desse autor, parece que havia a liberdade

de fato; talvez só não houvesse condições de fazê-la valer amplamente.

4.3. O pensamento brasileiro no início do século XX

De onde nos viria a idéia de conjugar os eventos dos anos difíceis, embora

prolíficos, do século XIX e seus desdobramentos a partir daí? Ora, os eventos que

conjugam os fatos das diversas expressões humanas de nossa sociedade parecem

apontar para dois pontos que, se bem observados, parecem se estabelecer como

paradoxais. Por um lado, o homem que se cria moderno e pós-liberal muitas vezes

parece ser o mesmo homem que passava a buscar pressupostos e parâmetros havia

pouco perdidos pela humanização social. Cremos que esse imbricado procedimento

tinha a ver com a definição de parâmetros perdidos em meados do século anterior e

que, naquele início de século, precisavam ser restabelecidos, mesmo que com novas

roupagens.

O homem precisava se encontrar novamente, ou, quem sabe, pela primeira vez. Em

1920, por exemplo, o mundo ocidental ainda respirava freneticamente todas as

descobertas e alterações sugeridas pelos novos movimentos de fins do século XIX.

Na política não foi diferente. Na cultura, muito menos ainda. No Brasil, como em

muitos outros países semelhantes ao nosso, houve tempo em que política e cultura

pareciam não haver se divorciado.

84

Política e cultura andaram de mãos dadas por muito tempo no Brasil. Muitas ações e

realizações no campo das artes e do academicismo tiveram influência aberta das

estruturas políticas que regiam os momentos pelos quais o Brasil atravessava.

Muitos dos nossos maiores autores e intelectuais foram funcionários públicos e

conviveram harmonicamente oscilando entre o servir burocraticamente a sociedade

e a servir com suas reflexões e sua arte. A influência ia desde uma obra de arte,

fosse uma tela, até um conglomerado arquitetônico que denunciava os traços dos

governos ou do Estado mesmo.

Através do universo político, a intelectualidade no Brasil se viu muito próxima do

poder público. Como não poderia deixar de ser, as formatações políticas também

influenciaram em muito as contratações e convocações para cargos de confiança.

Muitos outros intelectuais eram simplesmente funcionários públicos de carreira que

prestavam seus serviços à comunidade em geral.

Muito apropriadamente, o que se viu no Brasil foi uma forte influência político-

partidária na formação do intelectual no Brasil, até por considerarmos real a

proximidade com o poder público (Miceli, 1979, 2). Isso tornava, de certa maneira,

intelectualidade e classe política um mesmo e coeso público-alvo de diversas ações

públicas e de imprensa especializada. “A Revista do Brasil se propunha a suscitar

uma tomada de consciência por parte da nova geração de intelectuais e políticos da

oligarquia” (Idem, 3). A Revista do Brasil era uma publicação que tinha alvos

comerciais que conviviam harmoniosamente com vultos expressivos da

intelectualidade brasileira e disputava o espaço comercial com diversas outras

85

publicações de porte expressivo. Chegou mesmo a se criar uma editora com o

mesmo nome que teve em seu catálogo os maiores expoentes da intelectualidade da

época.

Surge uma característica que se tornou praxe no Brasil, exatamente no período em

que se buscava estabelecer uma identidade intelectual e política. As questões da

Política começam a ser permeadas pelas questões das diversas políticas, inclusive as

de grupos e partidos que compunham as bases governistas. A intelectualidade que

servia publicamente foi tocada por essas questões em maior ou menor grau. O

chamado grupo do Estado (em referência ao jornal Estado de São Paulo) buscava

desanimar seus concorrentes fazendo “constantes referências às épocas em que os

órgãos de imprensa ‘viviam dos partidos e para os partidos e cada um para o seu’,

em denunciar a venalidade, o suborno e as subvenções oficiais de que dependia a

imprensa” (Idem, 5).

As ações públicas e as ações intelectuais tinham grande visibilidade da mídia da

época e dela sofriam muitas influências. Aquele mesmo ser humano tendo em algo

seu Eu desvalorizado e fragmentado, buscava por esses meios fazer com que se

tornasse menos vulnerável a sua instabilidade. Umas das práticas foi a criação e o

fortalecimento de grupos de interesse, hermeticamente estabelecidos, a fim de

propiciar aos seus integrantes uma idéia de hegemonia, força e integralidade.

Círculos do poder e do saber se formaram nas principais rodas de debate no Brasil.

Para Miceli, a ascensão no Brasil era cada vez mais dificultada, pois havia um

verdadeiro protetorado interno nesses grupos de afinidade e cuidados mútuos.

86

Após os anos 30, nota-se com mais freqüência a aproximação cada vez maior entre

intelectuais e classes de domínio de poder. Uma das ações que denunciam esse

processo é a mudança mais notada de partidos políticos, deixando em segundo plano

os objetivos do pragmatismo partidário e dando maior ênfase à continuidade dos

laços políticos estabelecidos. Muitos intelectuais da época desempenharam papel de

liderança e direção em órgãos públicos proeminentes, devendo, para manter estável

uma carreira política, se manterem fiéis muito mais a legendas pessoais e

condicionais que a princípios de ética partidária. Continuamos a ver que enquanto

esses intelectuais “assumiam diversas tarefas políticas e ideológicas, também se

lançaram a fundo nas lutas do campo literário, no intuito de impor os princípios e

modelos estéticos da arte ‘moderna’” (Idem, 12-13).

Nesse mesmo ambiente de políticas de enlaces, um outro fenômeno que muito

influenciou a formação intelectual na época foi o modelo de ensino. A formação

religiosa era a alternativa única para as pessoas oriundas de classes sociais menos

favorecidas, as quais não tinham meios para suprir seu crescer acadêmico por outras

formas. Esse modelo lhes passava formação intelectual humanista e clássica, o que

fazia delas pessoas mais preparadas para o exercício de futuras profissões,

geralmente aquelas ligadas ao serviço público. Muitas famílias deixavam para os

primogênitos a seqüência dos negócios familiares, enquanto que os demais filhos

eram endereçados a estudos acadêmicos. Ao final, em geral eles findavam por

pleitear cargos de direção em atividades políticas ou acadêmicas.

87

Isso começou a mudar com a proliferação de instituições de ensino superior livres,

fossem particulares ou públicas, que “afetou diretamente as reservas do mercado de

postos até então monopolizadas pelos detentores de diplomas concedidos pelos

cursos superiores oficiais” (Idem, 38). Diferentemente de tempos anteriores, o

diploma superior não mais representava apenas elo distintivo entre pessoas, mas

agora poderia também representar possibilidade real de colocação e disputa de

níveis diferentes de influência.

Todas essas caracterizações e peculiaridades ainda sofreram um outro movimento

de tensão, que deixava a disputa pela consolidação desse Eu em questão. A disputa

entre as questões da matéria, que pareciam mais afeitas aos novos rumos da

humanidade após o Fin-de-Siècle, e as questões do espírito, paradoxalmente

retornando com muito vigor em alguns círculos. Para Miceli, o que realmente estava

em jogo continuava a ser a estruturação e manutenção/ retomada de poder.

No campo político que geria a vida brasileira, voltamos um pouco no tempo, quando

da formação das estruturas que serviram de base ao período de virada de século. O

Brasil era terra em que os movimentos internacionais definiam muita coisa, mesmo

em âmbito interno, o que, como sabemos, continua sendo realidade até nossos dias.

Na ótica de Schwarz, a passagem do Brasil de uma condição de colônia para uma

nação independente não cumpriu todos os seus papéis, tudo aquilo que poderia se

esperar, principalmente porque a bandeira levantada era a do Liberalismo,

empunhada abertamente pelos partidários dos movimentos de independência

nacional.

88

O modelo adotado não atingiu os problemas mais profundos, passando-nos de uma

dependência formal de um pólo colonizador a uma dependência econômica em

relação a outros pólos colonizadores, desta feita com a utilização dos processos

sócio-econômicos. O autor mostra que a realidade que atingia o modus vivendi de

uma terra explorada continuava exatamente da mesma forma, citando exemplos bem

conhecidos sobre como isso se deu: enquanto a estrutura se transforma na esfera

local e na internacional, a base prática continua estagnada e sem qualquer alteração

que merecesse destaque. Isso representa fazer uma diferenciação entre pessoas e

entre possibilidades em seu tempo e em tempos futuros.

É sabido que a emancipação política do Brasil, embora integrasse a transição para a nova ordem do capital, teve caráter conservador. As conquistas liberais da Independência alteravam o processo político de cúpula e redefiniam as relações estrangeiras, mas não chegavam ao complexo sócio-econômico gerado pela exploração colonial, que ficava intacto, como que devendo uma revolução. Noutras palavras: o senhor e o escravo, o latifúndio e os dependentes, o tráfico negreiro e a monocultura de exportação permaneciam iguais, em contexto local e mundial transformado. (Schwarz, 1990, 36).

No âmbito mais intelectual do processo, as mesmas pessoas e os mesmos círculos de

poder que davam continuidade aos processos arraigados na sociedade e na política

brasileira eram obrigadas a pensar com mentes que olhassem com certo cuidado os

novos movimentos, o que representa dizer que, de alguma forma, repensava-se a

condição sócio-econômica brasileira.

No tocante às idéias caíam em descrédito as justificações que a colonização e o Absolutismo haviam criado, substituídas agora pelas perspectivas oitocentistas do estado nacional, do trabalho livre, da liberdade de expressão, da igualdade perante a lei etc., incompatíveis com as outras, em particular com a dominação pessoal direta. No plano econômico-político afirmava-se o sistema internacional

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polarizado pela industrialização capitalista, especialmente inglesa, cujo lado liberal pautaria a consciência do século. O que significava nestas circunstâncias a persistência do sistema produtivo montado no período anterior? (Idem, 36).

A vida nacional vivia um processo de ambivalência, numa interessante sugestão à

própria fragmentação do Eu experimentada pelo indivíduo no Fin-de-Siècle. E essa

característica, em que o avançado e retrógrado parecem conviver amigavelmente, o

Brasil consolidou muitas de suas estruturas de ação, o que persiste até hoje, assim

como persistiam os modelos de produção montados com base numa sociedade servil

e escravocrata, mesmo encharcados por idéias liberais.

O Brasil, sendo nação independente, era, no entanto, nação criminosa. A situação

em que se via o país era muito peculiar, senão estranha, como narra Schwarz, que

demonstra que, diante de uma estrutura legal, mesmo do ponto de vista

internacional, o Brasil vivia na contravenção às leis e acordos vigentes à época:

A face drástica da situação encontrava-se no tráfico negreiro, proscrito como “pirataria” em Direito Internacional, condenado do ponto de vista religioso, moral, político e econômico, privado dos antigos patrocínios governamentais, transformado enfim num imenso empreendimento ilícito e - como a que entretanto se prendia o andamento normal dos negócios brasileiros, que ficavam de estruturalmente associados à contravenção. (Idem, 39).

Como conseqüência, e por inferência, deduzimos que os movimentos na sociedade,

nas artes e nas esferas do poder tinham também como alvos as descobertas de

princípios de centralização ideológica e de explicação do mundo ao redor dos

homens da época. Além disso, tais pessoas, que tinham seu interior desvalorizado e

fragmentado a partir de pressupostos que as esvaziavam de suas crenças, tinham

90

gerado um estado de coisas, inclusive no poder público, que agora precisava

encontrar novos rumos. Daí a importância de que, nesse momento, a

intelectualidade brasileira devia de fato ter se aproximado dessas esferas da

sociedade.

A industrialização iniciada na Europa de forma acelerada e sem retorno, cujos

efeitos se faziam perceber também na arte e na cultura em geral, parecia apontar

uma alternativa possível ao futuro humano. Isso foi mais bem percebido no período

entre as duas grandes guerras mundiais que assolaram a Europa, exatamente o

mesmo palco de todas as novas e intensas reflexões da humanidade. No entanto,

como temos visto, todo esse mover remonta ao período intermediário do século

XIX, época de formação de novos pressupostos que agora eram consolidados. No

Brasil, tudo isso era refletido de maneira direta, principalmente pelas peculiares

relações de dependência que tínhamos - e continuamos a ter - de centros europeus e,

posteriormente, do norte-americano.

4.4. Conceitos gerais e brasileiros de literatura

Antes de explicar os porquês da obra de sua autoria que aborda exatamente a

formação da literatura no Brasil, Antonio Candido trata de resgatar alguns

pressupostos de sua percepção da literatura enquanto sistema. Interessante notar que

desde esse primeiro instante, o autor pretende abarcar vários itens que vez por outra

são desprezados ou menosprezados nas análises, tais como o objeto livro, o mercado

editorial, os autores, os editores, enfim, a completa organização de um sistema

91

encadeado e que é retroalimentado a partir de sua própria necessidade de progredir e

crescer.

Quando faz a sua introdução ao tema dessa maneira, Candido se despe de evocações

mais clássicas e bem consolidadas no meio da crítica, que geralmente vê a literatura

não como um todo, mas em partes de seu interesse particular ou de específico

estudo. Em geral, tem-se o conteúdo, mas rejeita-se tocar em pormenores, como o

meio pelo qual o conteúdo é difundido e perpetuado, bem como aqueles que

trabalham para a construção desse meio.

Quebrar paradigmas parece ser uma forma de estudar divertidamente de Candido.

Nesta sua obra, ele o faz com maestria e bom humor, mesmo sendo um humor por

vezes irônico, algo mais penetrante que o humor machadiano, já que Candido, como

crítico, dá nomes e aponta problemas; e o faz de modo direto.

A formação de todo um sistema não é algo que se dê de uma hora a outra, mas

carece de todo um processual histórico, sociológico, metodológico e de inúmeras

facetas de valor imponderável no todo. Por isso é tão importante a declaração de

Candido sobre os elementos da literatura de forma tão abrangente. Diferentemente

da maioria, ele, de modo precoce, defende esse status macro da literatura.

A partir de sua apropriação de todos os elementos como sendo importantes, Candido

aponta para o ângulo maior de seu trabalho, que é a discussão do que vem a ser

literatura brasileira e trabalha sob a perspectiva de que ela seja, de fato, literatura

nacional brasileira somente a partir do Arcadismo e do Romantismo. Encaixam-se a

partir daí tanto Machado quanto, posteriormente, Lobato.

92

Para Candido, havia um vazio a ser preenchido na literatura brasileira e este só o foi

a partir do período que nos interessa, ou seja, o mesmo que temos para observar

quanto a muitos modelos de formação no Brasil. A literatura também enfrentava um

vazio de postulados, como ele mesmo assegura ainda em seu texto de introdução à

obra em destaque. Mais adiante veremos como a questão de poder e política andou

de mãos dadas com a intelectualidade brasileira ao longo de décadas a fio,

mostrando, talvez, que todas as frentes estavam envolvidas com a configuração

elementar de um Brasil que buscava sua identidade por ser nação recente e jovem,

tanto como o homem daquele tempo, que tinha havia pouco se descoberto sem seus

parâmetros clássicos. Diz ele sobre a atividade literária:

Depois da Independência o pendor se acentuou, levando a considerar a atividade literária como parte do esforço de construção do país livre, em cumprimento a um programa, bem cedo estabelecido, que visava à diferenciação e particularização dos temas e modos de exprimi-los. Isto explica a importância atribuída, neste livro, à “tomada de consciência” dos autores quanto ao seu papel, e à intenção mais ou menos declarada de escrever para a sua terra, mesmo quando não a descreviam. (Candido, 2000, Vol I, 26).

E:

Ao mesmo tempo, esta imaturidade, por vezes provinciana, deu à literatura sentido histórico e excepcional poder comunicativo, tornando-a língua geral duma sociedade à busca de autoconhecimento. Sempre que se particularizou, como manifestação afetiva e descrição local, adquiriu, para nós, a expressividade que estabelece comunicação entre autores e leitores, sem a qual a arte não passa de experimentação dos recursos técnicos. (Idem, 27).

A sociedade e a literatura estavam, ambas, em processo de descoberta de quem eram

de fato. Muitas coisas que ocorriam eram experimentais e iam em direção a uma

93

busca por identidade e complementação das necessidades básicas de

(auto)conhecimento. Assim como Sennett fala de classe política num contexto mais

amplo e sociológico, Miceli nos faz interessante estudo sobre como, no Brasil, a

intelectualidade e essa classe estiveram intimamente ligadas em período de

consolidação mútua.

É Candido mesmo quem nos faz pensar sobre como a literatura é de fato a

demonstração artística daquilo que se passa na sociedade. A construção de uma

consciência nacional, o levantar e apresentar continuado dos fatos que montam a

estrutura temporal de uma sociedade e tudo o que compõe a formatação sociológica

e antropológica dos indivíduos parece ser de fato função de suma importância da

literatura.

A industrialização iniciada na Europa de forma acelerada e sem retorno, cujos

efeitos se faziam perceber também na arte e na cultura em geral, parecia apontar

uma alternativa possível ao futuro humano. Isso foi mais bem percebido no período

entre as duas grandes guerras mundiais que assolaram a Europa, exatamente o

mesmo palco de todas as novas e intensas reflexões da humanidade. No entanto,

como temos visto, todo esse mover remonta ao período intermediário do século

XIX, época de formação de novos pressupostos que agora eram consolidados.

A literatura e as artes em geral são expressões do ser humano. Neste caso, um ser

humano cujas emoções haviam sido tocadas no seu âmago. Dilacerado por dentro,

ele não conseguia mais se relacionar por fora, o que tornou viável um só caminho, o

qual o levaria a posições inesperadas para ele anteriormente. Incapacitado de se

94

resolver por dentro, o homem agora via-se incapacitado também para agir através de

seus afetos para fora de si mesmo. Sobre isso, diz-nos Lins:

No plano das emoções, também, o dilaceramento parece inevitável. Espera-se muito e se obtém pouco das relações afetivas. Tanta expectativa depositada sobre o outro resulta em decepção. Teria sido melhor, talvez, permanecer no território das interdições do século XVIII do que descobrir que a liberdade de ações não se mostra suficiente para saciar os desejos. (Lins, 2006, 160).

Fazendo uma ligação entre as últimas descrições de Candido e Lins e as demais

observações gerais deste trabalho, percebemos que a fragmentação percebida dentro

do homem correspondia a algo semelhante do lado de fora do mesmo. O tempo, as

sensações, as emoções, as crenças, os pressupostos e até a verdade eram coisas

agora relativas, passíveis de se constatarem diferentes, inclusive em planos

semelhantes, mesmo quando aparentemente não havia razão para não ser uma das

verdades igual à outra.

As sensações e sentimentos que permeavam o homem de todo esse período o

levavam cada vez mais próximo do se sentir vazio, quase nada, sem amparo, de

futuro incerto. O que está por se evidenciar neste caso é a idéia concreta, se assim a

podemos nominar, de que ele de fato encontra-se sob intensa fragmentação interior.

Voltando a Lins, o que ele nos mostra é que vivemos um verdadeiro dilema interior

que tem um claro espelhamento exterior. Sós com relação a nós mesmos, tornamo-

nos solitários também nas metrópoles e nas concentrações humanas, deixando de

conviver naturalmente entre semelhantes para sobreviver entre dessemelhantes.

Mais uma vez, em suas palavras:

95

Caímos num dilema: por um lado, evitando os contatos pessoais (os estranhos insinuando-se como arredios e ameaçadores ou derrotados), agindo como dessemelhantes; e, por outro, no programa da uniformização, evitamos nos destacar no nível do gosto e das opiniões ou dos hábitos. Sublinhe-se que a identidade colocada em termos absolutos por um sistema de fundamentos comerciais, na sociedade de massa, não condiz com identidade individual, o reconhecimento do eu por si mesmo. (Idem, 173).

Em seu Tratado do desespero, Sören Kierkegaard escreve sobre o Eu fragmentado,

que ele chama de Eu-dividido como a doença mortal do desespero em que a vida é

vivida em estado de separação e de solidão. Para ele, é a partir do desespero que se

pode entender a esquizofrenia. O existente, só se sente existir se a sua existência for

confirmada pelo outro. Ele nos dá o seu rigoroso retrato em O Diário de um sedutor,

definindo-o como aquele que pede repetidamente um estímulo à realidade e que se

sente desarmado quando o perde, pois só é sensível ao prazer que cada situação lhe

traz.

96

Capítulo 5 - Machado e Lobato. Vidas e expressões

Até este ponto muito foi dito a fim de fortalecer a idéia de que ambos os autores de

interesse, Machado de Assis e Monteiro Lobato, cada um a seu tempo e ambos em

suas obras, foram influenciados pelos eventos específicos do Fin-de-Siècle e

tiveram a exposição do Eu fragmentado em seus contos. As idéias que cercavam os

autores foram, conscientemente ou não, externadas através de seus textos.

Entendemos que autores são expoentes de seu tempo e verdadeiras testemunhas

daquilo que viram e experimentaram.

É interessante notarmos a distância entre eles em paralelo aos fatos comuns que os

cercam. Procedências, famílias, genética e tempo: tudo pode ter sido diferente entre

eles, mas o fato é que são testemunhas e herdeiros de um mesmo processo. Um

viveu o ápice das transformações e o outro viveu o tempo em que elas se

consolidaram na sociedade. Foram pessoas marcantes e marcadas em seu tempo. E

também se propuseram a marcar os que viriam depois deles através de suas obras.

Nesta parte do estudo, migramos para a leitura mais objetiva da figura do Eu

fragmentado que aparece em alguns contos escolhidos de Machado e Lobato. O

pano de fundo da sociedade, da Filosofia, das artes e da geopolítica já foi

apresentado, servindo de base de compreensão de que há de fato representações

desse Eu fragmentado, desse homem sem mais verdades tão absolutas.

97

É importante também para este momento destacar trechos de suas falas,

relacionando seus ditos numa literatura ficcional com os episódios extraídos da

trama real que viveram individual e coletivamente.

Mais uma vez, creditamos o papel de testemunha de seu tempo aos autores das

literaturas nacionais, o que é confirmado pela opinião de Schwarz, citando o próprio

Machado, ao dizer que “numa fórmula célebre, que lhe serviria de programa de

trabalho, Machado afirma que o escritor pode ser ‘o homem do seu tempo e do seu

país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço’”. (Schwarz,

1990, 9).

5.1. Relação entre Machado e Lobato

Machado de Assis e Monteiro Lobato, bem o sabemos, não foram contemporâneos

na maior parte do tempo. Viveram parte de suas vidas num mesmo período, mas em

fases diferentes, tanto no que tange à evolução e maturidade pessoal, quanto a suas

produções intelectuais. Machado nasceu em 1839 e morreu em 1908. Quando

Lobato nasceu, em 1882, Machado já estava entrando na meia idade, com seus 43

anos. A morte de Lobato se deu em 1948, 40 anos após a morte de Machado. A

primeira publicação de Lobato deu-se em 1914, ou seja, começou a publicar

sistematicamente cerca de seis anos após a morte de Machado.

Machado viveu as transformações do Fin-de-Siècle e todas as questões que vimos

até aqui. Não apenas as viveu como testemunha de seu tempo, mas como intelectual

que percebia as mudanças e esperava por ver o que se daria a partir delas. Não viu

98

tudo, mas o que viu e experimentou foi o suficiente para uma das mais mordazes

manifestações literárias de nossa literatura nacional. A ética, a politicagem e as

fragilidades relacionais seriam meros casos do dia a dia, não fossem os dramas que

o homem vivia com a fragmentação do seu Eu.

Lobato foi da geração que não testemunhou as transformações diretas do Fin-de-

Siècle da mesma forma que Machado. Mas ele foi da geração que viu a consolidação

dos traços desse fenômeno quando o mesmo se tornou o ponto comum entre nós. A

derrocada do valor humano, a baixa estima por si e pelo outro e a luta exacerbada

por benefícios e ganhos - nem sempre obtidos de maneira ética - são apenas alguns

dos elementos que compuseram o que Lobato vivenciou desde seus primeiros anos.

E, ao se tornar maduro, foi o que percebeu na sociedade e o que deixou gravado em

seus contos.

Ambos eram brasileiros, filhos de brasileiros. Foram bem educados, cada um

segundo as posses dos seus tutores, mas é fato que tinham nível intelectual muito

bom para seu tempo. Machado fez parte de uma leva de gente que tinha poucas

opções na vida nacional: o homem para prosperar poderia ser sacerdote, militar,

político ou funcionário público. Em todas as possibilidades, inegavelmente havia

uma produção de favores em larga escala, mas essas eram as regras de seus dias.

Infelizmente, parte delas continua vigorando nos porões brasileiros em muitas áreas

da vida, principalmente aquelas que envolvem interesses públicos diretos. Machado,

portanto, segundo consta, entregou-se ao jornalismo e ao funcionalismo público, dos

quais obteve sustento para si e sua família.

99

Mais tarde, com algumas mudanças tendo se operado na sociedade brasileira,

Lobato já chegou a ver uma outra realidade que, se não anulava a anterior, pelo

menos passava a lhe apresentar outras opções como paralelas. O empreendedorismo

estava se fixando de maneira mais ostensiva no Brasil, deixando para pessoas

comuns, e não mais apenas para alguém como o Barão de Mauá, a possibilidade de

investimentos em diversas áreas de produção e serviços e a conseqüente colheita dos

frutos desse investimento mais tarde. Bastava que dispusessem de recursos e boas

relações. Lobato estava inserido nesse contexto, e assim o fez. Foi homem de

negócios, inaugurando fases, como o mercado editorial e a prospecção petrolífera

em terras brasileiras. Era homem que imaginava, acreditava e, de certa forma, estava

disposto a arriscar até obter sucesso em suas empreitadas.

5.2. Machado, seu mundo e suas percepções do homem fragmentado

“- Nada menos de duas almas.

Cada criatura humana traz duas almas consigo:

uma que olha de dentro para fora,

outra que olha de fora para dentro...”

(Machado, In: O espelho).

É de Alfredo Bosi (2006) um interessante texto cuja centralidade é a obra de

Machado a partir da re-leitura de outros críticos. Embora trate essencialmente de

100

romance, principalmente o Memórias póstumas de Brás Cubas, as análises nos

auxiliam a entender determinados pontos que eram comuns ao ser de Machado e

que, portanto, se faziam refletir em sua obra como um todo.

Na terceira parte do livro, cujo título é Raymundo Faoro leitor de Machado,

encontramos que, o Brasil, à época em que Machado desenvolveu sua percepção

social e política, era ainda o de transição do Segundo Império para a República, com

fortes traços de influência liberal, exatamente a mesma força que se via em descenso

conceitual em muitas partes da Europa, pelo menos no que tange ao modelo

clássico. A política, até pouco mais da metade do século XIX, era muito

conservadora e baseada em “influências”, as quais em geral orbitavam em torno de

fazendeiros ricos, do clero, da magistratura e do exército.

Na literatura, os textos nativistas de Alencar pareciam corroborar a escravidão que

dominava o cenário operacional, enquanto outros autores já ousavam defender a

libertação de homens escravizados, mesmo sob riscos financeiros para as classes

dominantes, o que era nítida influência através da política liberal. O autor relaciona

os eventos da política brasileira de então como uma espécie de corruptela do modelo

liberal, taxando-o de excludente numa posição em que ele, na verdade, tentava se

impor. Uma espécie de contra-senso, o que ele alcunha de modelo confuso e

fragmentário e que interessava diretamente à burguesia daqueles tempos.

Concluindo esse pensamento, o autor crê que, de fato, o Brasil viveu dois

liberalismos, um econômico e outro político. Machado, por ser contemporâneo a

ambos, viveu as crises de identidade que a sociedade experimentou enquanto ambos

101

os modelos denominados de igual forma coexistiram. A inconsistência ideológica

do poder no Brasil, particularmente dos defensores do liberalismo mais pragmático,

parece ter sido a causa maior para que Machado se mostrasse em movimento

intelectual e político, indo da militância liberal dos primeiros tempos de sua vida

pública a uma quase indiferença irônica sobre as questões da política nacional.

Por que Machado maduro, pessoalmente simpático aos novos liberais, acabou distanciando-se de uns e de outros? Por que não propôs, nem excogitou, nem ao menos entreviu o caminho de uma alternativa, uma terceira via? O fato a ser interpretado é que Machado de Assis, enquanto cronista (sua face visível de homem público), não militou em nenhuma das novas correntes nem sustentou nostalgicamente as antigas, porque, a certa altura, passou a descrer de toda e qualquer ideologia que pretendesse transformar o “barro humano” e a sociedade que nele se fundara. O seu desencanto profundo tê-lo-ia impedido de engajar-se animosamente na luta reformista dos companheiros de juventude e dos que os sucederam. Monarquista e liberal, em senso lato, e abertamente simpático aos abolicionistas, mas estranhamente cético, preferiu fixar o lado sombrio ou apenas risível dos que usavam o velho nome “liberal” para defender seus direitos à propriedade e aos cargos públicos. (Bosi, 2006, 114).

E, é exatamente nessa encruzilhada de idéias e pareceres de Machado, que mais uma

vez nos vêm à lembrança muitos de seus contos. Imagens fortuitas ou recorrentes,

como luzes, espelhos, insanidades e alterações constantes da capacidade perceptiva

de muitos personagens machadianos parecem querer apontar para o reflexo pessoal

do autor, sendo que ele mesmo talvez se percebesse fragmentado interiormente. É

por isso que Bosi coloca que

Apesar da remissão última à Natureza, a construção machadiana das personagens não será naturalista, em senso estrito, pois o mesmo desejo “natural” enfrenta o desafio das normas sociais. Daí a necessidade da máscara, do negaceio, da hipocrisia e, às vezes, da mentira. (Idem, 123).

102

Além disso,

O moralismo, universalizando os desejos e os interesses do eu (ainda que os considere, na origem, detestáveis, enquanto vaidade e ambição), irá, no limite, compreender a sede de igualdade que a nova sociedade liberal-individualista desperta no agregado e no independente. (Idem, 124).

É esse Machado fragmentado de certa maneira e optante por se manter fiel, antes a

um processo de sua mores interna que aos apelos de elementos externos, que é visto

como alguém moralista, no sentido pejorativo do termo, mas que, de fato o era, no

bom sentido da palavra. Sua moral era baseada em pressupostos que ele parece

haver vislumbrado e defendido aberta ou sutilmente através de seus textos.

A fragmentação exposta de e por Machado em seus contos está refletida em suas

atitudes, inclusive as de seu discurso literário. Schwarz (1989) trata de considerar

que ele apresenta traços de volubilidade quando se apresenta como o narrador de

suas obras. Sobre Machado, diz ele que

Este não permanece igual a si mesmo por mais de um curto parágrafo, ou melhor, muda de opinião, de assunto ou de estilo quase que a cada frase. Há um elemento de complacência nesta disposição mercurial, bem como no virtuosismo retórico de que ela depende para se realizar. São viravoltas sobre viravoltas, que invariavelmente se acompanham de uma satisfação de amor-próprio para o narrador. Esta tem a ver com o desejo de atenção que sublinhávamos atrás, ao analisar o texto, desejo decisivo para o nosso raciocínio. Uma vez que este movimento subordina tudo o mais, pode-se ver nele o princípio formal do livro. (Schwarz, 1989, 118-119).

O espelho, por exemplo, lembra claramente esse Machado em ebulição, querendo

falar de suas próprias metáforas quando expunha as metáforas da língua que

utilizava como veículo de idéias. As duas almas desse conto podem nos remeter a

103

um autor que gritava que as almas com as quais se relacionava em seu tempo eram

ambivalentes, incertas, voláteis e talvez inconstantes, tudo rumando a uma

fragmentação interior que, talvez ainda, fosse a expressão de si próprio na sombra

dos personagens modelados por Machado. “A lição última do conto é a vitória

indefectível do papel social que estrutura o eu”. (Bosi, 2006, 125). E segue dizendo

que “‘O espelho’ lembra, ainda uma vez, a fragilidade da alma, sendo mais um

dramático exemplo da precariedade da pessoa humana”. (Idem).

O Brasil, embora ainda em fase insípida de seu desenvolvimento social, havia

recebido por parte do Império inegável estímulo às ciências e às artes. Aquilo que se

fazia novo e recém-descoberto na Europa era abertamente aceito por aqui. Na

literatura, por exemplo, algo que chegava ao Brasil nos tempos de Machado com

maior força era o personagem com fortes traços psicológicos, fazendo coro ao que a

própria realidade humana apresentava naqueles dias.

O Brasil de Machado era aquele mesmo anteriormente citado, que vivia a

ambivalência de ser uma nação com base liberal, ao mesmo tempo em que insistia

em não abrir mão de sua realidade escravista. Nesse ponto, e com suas idéias que

migravam ao liberalismo e ao pensamento relativamente independente, Machado

deixava por vezes transparecer seus pensamentos de ordem social de maneira mais

aberta. No entanto, nos textos de Machado isso não necessariamente representa falar

diretamente ao leitor, mas apenas registrar sua posição, à sua maneira, como nos diz

Schwarz:

104

A presença de escravismo é determinante, conforme tratei de mostrar, embora as figuras de escravo sejam raras. Umas poucas anedotas esparsas bastam para fixar as perspectivas essenciais. A parcimônia nas alusões, calculada para repercutir, é enfática à sua maneira: um recurso caro ao o humorismo machadiano, mais amigo da insinuação venenosa que da denúncia. (Schwarz, 1990, 106).

Continua o autor mostrando que Machado teve condições de expor seu pensamento,

não poupando nenhum dos lados, nem mesmo o do ex-escravo que por qualquer

razão se tornava brutal após sua alforria, que, de forma geral, tenderia a ser

desconsiderado pelas circunstâncias anteriores de sua vida.

Em conclusão, as cenas onde entram escravos condenam a ordem social do país, fixam traços de caráter perniciosos, em que é patente a impregnação escravista da classe alta, e fazem ver o cativo segundo esquemas de psicologia universalista, estritamente os mesmos da humanidade em geral. Para apreciar o valor crítico deste universalismo, basta considerar que à sua luz as brutalidades de um escravo forro não são menos complexas e espirituais que os divinos caprichos de uma senhora elegante, contrariamente ao que pensariam o preconceito comum, ou também o racismo científico então em voga. (Idem, 107).

É o mesmo autor quem nos indica, em outra de suas obras, a continuidade desse

raciocínio, asseverando mais uma vez “que a independência brasileira não foi uma

revolução” (Schwarz, 1989, 42), em clara alusão ao estado de coisas que vivíamos

naqueles tempos. Explica isso dizendo que a única coisa que de fato mudou foram

“o relacionamento externo e a reorganização administrativa no topo” (Idem),

deixando dessa forma intacta “a estrutura econômico-social criada pela exploração

colonial (...), agora em benefício das classes dominantes locais” (Idem, 42-43). O

aspecto fragmentado da sociedade brasileira dos tempos de Machado é exposto,

assim, numa literatura pungente que não deixou de marcar seus dias.

105

Nesse mesmo pressuposto, e fazendo referência aos mesmos problemas e questões

em outras considerações suas, Schwarz segue seus comentários, citando como

notável o texto O abolicionismo de Joaquim Nabuco, datado de 1883. A

inconstância e as dificuldades de ter idéias referenciadas em algo equilibrado são

nitidamente percebidas no trecho selecionado. Vejo como algo interessante que a

diversidade de atitudes e a fragmentação de pressupostos, de certa forma, são

concordes com o período em que nos encontrávamos em termos de posicionamento

humano. Por essa razão, chega a ser aceitável a instabilidade e a fragmentação social

que Machado notava e transcrevia, a mesma observada por outros pensadores. Uma

forma paradoxal de se ver a realidade de então: criticamos hoje a sociedade

brasileira da mesma forma que criticamos a ambigüidade das relações humanas

consigo mesmo e as interpessoais, mas não devemos nos esquecer que tanto as

relações quanto as sociedades são formadas por pessoas, exatamente as pessoas que

se encontravam fragmentadas no período Fin-de-Siècle. Por isso, talvez, as notadas

dificuldades da “situação ideológica e moral” dos dirigentes do Brasil.

Embora sejam conhecidas, as dificuldades da situação ideológica e moral da camada dirigente brasileira, e especialmente da Coroa, não costumam ser levadas em muita conta. O assunto pode ser visto no livro notável de Joaquim Nabuco sobre O abolicionismo (1883). Obrigados pelo seu papel de representação externa, esses dirigentes liberais de um país de economia escrava diariamente tinham de pedir para a sua pátria e para si mesmos o reconhecimento do “mundo civilizado”, cujos princípios elementares, entretanto, dada a realidade social, eles tinham de infringir com igual constância. (Schwarz, 1989, 124).

106

Finalizando neste ponto as considerações de Schwarz sobre questões dessa natureza,

temos a sua opinião de que o período e os processos eram, de fato, assimétricos,

instáveis e, como era de esperar para a época, fragmentados em seus pressupostos.

De um lado, tráfico negreiro, latifúndio, escravidão e mandonismo, um complexo de relações com regra própria, firmado durante a Colônia e ao qual o universalismo da civilização burguesa não chegava; de outro, sendo posto em xeque pelo primeiro, mas pondo-o em xeque também, a Lei (igual para todos), a separação entre o público e privado, as liberdades civis, o parlamento, o patriotismo, o romântico etc. A convivência familiar e estabilizada entre estas concepções em princípio incompatíveis esteve no centro da inquietação ideológico-moral do Brasil oitocentista. A uns, a herança colonial parecia um resíduo que logo seria superado pela marcha do progresso. Outros viam nela o país autêntico, a ser preservado contra imitações absurdas. Outros ainda desejavam harmonizar progresso e trabalho escravo, para não abrir mão de nenhum dos dois, e outros mais consideravam que esta conciliação já existia e era desmoralizante. (Idem, 43).

Esse Machado que viveu intensamente o seu tempo tornou-se mais conhecido por

causa de suas grandes obras em formato de romance, como Memórias póstumas de

Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1889). Porém pode-se

dizer que, por seu estilo, Machado permanece essencialmente um criador de contos,

mesmo em pleno desenvolvimento de seus romances, o que o torna inserido tanto na

tradição do conto francês quanto na geração de autores nacionais cujos primeiros

modelos talvez fossem vultos como José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo.

Muitos textos de Machado, entre os quais O alienista, poderiam ser tidos por

romances pequenos ou por contos grandes, dadas as características híbridas de sua

escrita e de seu volume. Assim, podemos afirmar que ganham força os contos de

Machado de Assis, tão conhecidos e apreciados em toda parte. Contos fluminenses

107

(1869), Histórias da meia-noite (1873), Papéis avulsos (1877-82), Histórias sem

data (1884), Várias histórias (1896), Páginas recolhidas (1899) e Relíquias da casa

velha (1906) que nos mostram, sobretudo, a evolução do Machado narrador.

Machado vive intensamente as convulsões culturais de seu tempo, com todas as

experiências intelectuais daqueles tempos de transição de um Romantismo mais

clássico a um Realismo quase nu. No Brasil, assim como na Europa, isso é

característico da segunda metade do século XIX, exatamente o tempo em que

Machado estava em franca produção intelectual. Daí percebermos a posição crítica

ou a menção sistemática à religiosidade, ao evolucionismo, ao naturalismo e ao

cientificismo encontrados nos textos de Machado em toda a sua vasta produção.

Com tais pressupostos, torna-se possível fazer uma leitura integral dos contos de

Machado de Assis.

O primeiro e mais significativo para uma leitura de cunho psicanalítico no qual

podemos detectar traços de um Eu fragmentado é, sem dúvida, O alienista. Os

paradoxos e instabilidades humanas, além da crítica aos modelos psicanalíticos que

começavam a vigorar no Fin-de-Siècle, talvez por não ter havido tempo suficiente

para deles se perceber a real valia. Logo as primeiras letras do texto mostram as

inconseqüências que queria registrar, quando nos diz:

As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.

108

— A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo. (Machado, 2004, 253).

Ora, o que era a Itaguaí daqueles dias senão uma vila provinciana, mas que

representasse o “universo”, disputando as atenções com todo o resto do Brasil, com

Portugal e Espanha? Nem mesmo o rei tinha sido capaz de demover de Bacamarte a

idéia de se meter de volta a Itaguaí, numa alusão possível ao claustro que antes

abrigava a religião e que, então, passava a abrigar a ciência. Sendo este seu

“emprego único”, entendem-se ao longo do conto as motivações para o descuido

com as demais pessoas e com a própria família, na tradicional e utópica postura de

cientista asséptico de seu tempo.

O alienista aparece exatamente quando surge a dúvida sobre a infalibilidade da

ciência. Surge no momento em que cresce a incerteza sobre ser a ciência a única

resposta ansiada pela humanidade para suas questões interiores, bem em meio à

transição do Positivismo Fin-de-Siècle ao Neo-Realismo. O conto é malicioso,

mordaz, irônico, satírico como, aliás, costumava se mostrar Machado. Ele retoma de

maneira inquietante o velho tema da loucura, mas, desta vez, tendo como pano de

fundo a realidade que todos viviam, que era a sistematização de uma doutrina

científica que estudava de maneira diferente a mente humana: em paralelo, Machado

parece propor a reescritura da Psiquiatria.

É possível que Machado de Assis tivesse conhecimento dos muitos estudos e das

publicações notadas em todo o século XIX a respeito dos avanços da Psiquiatria

desde o século XVII. Machado nos propõe uma leitura às avessas dos conceitos de

109

normalidade e insanidade. Os habitantes de Itaguaí estão diante da estranha situação

de verem os loucos tidos por sãos e os normais tidos por insanos.

Foi adotada, sem debate, uma postura autorizando o alienista a agasalhar na Casa Verde as pessoas que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. E porque a experiência da câmara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ela a cláusula de que a autorização era provisória, limitada a um ano, para o fim de ser experimentada a nova teoria psicológica, podendo a câmara, antes mesmo daquele prazo mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por motivos de ordem pública. (Idem, 282).

Os habitantes da vila ficaram realmente assombrados, a ponto de se revoltarem,

quando descobriram que a todos os loucos da Casa Verde seria dada liberdade e que

ali seriam alojadas as pessoas tidas por normais. Ao ler o conto, até hoje em dia o

leitor costuma ficar extasiado diante da análise feita por Machado de Assis sobre o

conceito de normalidade. E a própria Casa Verde, conceituada como o templo da

sanidade, sofria com as oscilações da verdade relativa e da loucura.

Imagine-se a situação dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, à rebelião, à luta, ao sangue. Para acrescentar ao mal, um dos vereadores que apoiara o presidente, ouvindo agora a denominação dada pelo barbeiro à Casa Verde, — "Bastilha da razão humana", — achou-a tão elegante, que mudou de parecer. Disse que entendia de bom aviso decretar alguma medida que reduzisse a Casa Verde; e porque o presidente, indignado, manifestasse em termos enérgicos o seu pasmo, o vereador fez esta reflexão:

— Nada tenho que ver com a ciência; mas se tantos homens em quem supomos juízo, são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista? (Idem, 270).

Machado utiliza-se de um realismo duro e mordaz, cheio de tons de bom humor,

mas que deixam vir à tona aquilo que ele de fato cria ser a verdade dos fatos que o

cercavam. De fato, Machado “incluía em sua narrativa um elemento de pessimismo

110

e tensão social, que não chega a ser dominante, mas ao qual está ligada a sua parcela

realista” (Schwarz, 1992, 92). A loucura é um excelente modo de demonstrar a

fragmentação conceitual e social a partir do aspecto interior, psicológico.

Percebemos que não é somente no conto O alienista que ele se utiliza da parábola

da loucura, mas também o vemos com o mesmo artifício em outros contos muito

importantes, como A segunda vida, O enfermeiro e A causa secreta.

Quando retornamos a uma nova leitura de O espelho, percebemos que Machado

propositadamente quer falar ao interior desse indivíduo cujo Eu está fragmentado. A

começar de seu subtítulo Esboço de uma nova teoria da alma humana, Machado

nos deixa a todos pensativos e com olhares para dentro de nós mesmos ao enunciar

a multiplicidade ou fragmentação daquilo que carregamos dentro de nós e que

costumamos entender como nosso Eu.

— Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade; podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo: não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira: as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. “Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração”. Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...

— Não?

111

— Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, — na verdade, gentilíssima, — que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. (Machado, 2004, 346).

Se entendermos que o autor comumente se recria de forma constante em suas obras

a partir de seus personagens, poderemos ver um Machado de fato pensativo sobre

seu tempo, sobre o Fin-de-Siècle que avassaladoramente invadia a vida privada de

todo o Ocidente. Ele próprio, epiléptico, talvez se visse como um sujeito

inconstante, cujo equilíbrio fosse abruptamente interrompido sem qualquer controle

pessoal pelo distúrbio que, por séculos a fio na Europa, se entendia como algo

psíquico ou espiritual. A dualidade entre equilíbrio e desequilíbrio parece voltar

com força ao relermos que a Casa Verde era essa “bastilha da razão humana” (Idem,

270) quando a vemos exatamente de modo inverso.

Lembrando o que diz Lins, “cumpre amparar os sonhos numa base, e a base

oferecida pela cultura pressupõe a suspeita de uma essência suposta, emprestada ao

terreno das coisas e das idéias na confusão da alma dividida” (Lins, 2006, 52),

vemos que a essência, a alma do homem, parece de fato estar confusa em toda sua

extensão. Fala nesse momento não necessariamente de literatura, mas nela tocando

enquanto expressão dessa mesma confusa e fragmentada alma humana. Dois termos

centralizam o trecho destacado em seguida: inquietação e confusão. As revoluções

citadas como exemplos antecessores das convulsões interiores, por atingirem

112

também as mentes e os costumes, são o movimento de implantação de algo

profundo que se reflete no próprio indivíduo. O estado da alma dos personagens

refletia no texto aquilo que era o tornado comum entre as pessoas daquele Fin-de-

Siècle.

Ainda refletindo sobre O espelho, podemos notar um volume considerável de

elementos que nos remetem às incertezas do Eu, à fragmentação do ser interior. A

natureza da alma é o ponto de desequilíbrio e discordância entre os amigos reunidos

para o debate.

Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, — uma conjetura, ao menos.

— Nem conjetura, nem opinião, redargüiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas... (Machado, 2004, 346).

A relativização conceitual aparece espontaneamente no texto, quando Machado, ou

melhor, seu personagem, sugere que as opiniões podem divergir porque a verdade

pode divergir. Isso ele o afirma ao dizer “cada cabeça; cada sentença”. As incertezas

do Eu continuam dando seus ares a partir da inconsistência dos argumentos dos

amigos. Sob o pretexto de não provocar celeumas, Jacobina nega-se a demonstrar

sua real opinião, ao que ele cede, contanto que não tenha oposições. Em outras

palavras, ele demonstraria sua verdade, a partir do gesto de omissão das demais

113

verdades. Sua opinião não poderia ser, portanto, contraposta por outras opiniões. A

relativização apregoada exteriormente é refutada em gestos mais simples,

demonstrando a instabilidade e a inconsistência do Eu do homem ali exposto. A

necessidade de aceitar opiniões divergentes era uma espécie de pacto social e

relacional, mas o momento de verificação da real aceitação disso seria revestido de

negações desse mesmo pacto. O texto não nos leva a quais certezas um Eu assim

fragmentado poderia chegar, mas sugere que os pactos possíveis o deixariam tão

estável quanto possível aos olhos de todos, mesmo nas instabilidades reais vividas

pelo Eu interior.

Ele segue sua saga por denunciar interior do homem com perspicácia e perícia. Há

um trecho do conto em destaque que salienta enfaticamente o ponto central desta

discussão, ou seja, a fragmentação do Eu. Um homem estonteado entre duas

realidades possíveis: uma exterior, do Eu que vivia do lado de fora, e outra interior,

a do Eu que vivia dentro dele. Mas ele confessa não ter controle sobre as

manifestações desses dois Eus que ele chama de almas. O total descontrole, que se

abatia sobre ele a partir do sono, era, na verdade, o momento em que o Eu não

fragmentado, coeso, onírico e esperançoso, surgia diante dele. Mas não havia como

acessá-lo, se estava além de suas condições normais e humanas entrar nos sonhos

enquanto dormia. Da mesma forma, e paradoxalmente ao primeiro fato, ele acessava

facilmente os episódios físicos e naturais, exatamente os que ele gostaria de não

vivenciar, exatamente os que eram fragmentados. Vivia, portanto, em constante

114

dissabor, experimentando o que não gostaria e apenas sonhando com o que gostaria

de experimentar de fato.

Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: — o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único —porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. (Machado, 2004, 349-350).

Os exemplos mais graves dessa relação fragmentada surgem quando percebemos

sua denúncia contra a situação que vivia. O que o fazia viver era a verdade extraída

dos sonhos, da noite escura que lhe aclarava a mente. Ao amanhecer, quando o dia

se fazia claro, escureciam-se nele as idéias e as circunstâncias interiores se

embaçavam. A alma interior, o Eu que ele gostaria de viver, perdia a batalha mais

uma vez contra a alma exterior, o Eu que ele não gostaria de ser nem viver. Essa

constante alternância, a rotina de uma vida, demonstrava a profunda fragmentação

daquele Eu. E ele, acordado da realidade que não era a sua verdade objetiva, punha-

se a procurar por toda parte a sua verdade subjetiva, mas sem mais a encontrar até

novo momento de sono aliviador, de fuga da realidade prática de sua vida.

Fatos assim, que discutiam a interioridade humana, apareceram ao longo das

narrativas machadianas. Isso, de certa forma, conectava o homem de seu tempo aos

seus sentimentos. Haveria grande chance de perceber a si mesmo em textos nos

115

quais o leitor pudesse ver a representação de sensações que ele também tinha, como

se estivesse se olhando num espelho, mesmo que não pudesse notar isso de maneira

tão clara.

A falta de referenciais também era algo intensificado pelos eventos do Fin-de-

Siècle, conforme já tivemos oportunidade de analisar. Um Eu sem referenciais

parecia ser um problema para D. Camila. Ela simplesmente não sabia o melhor

caminho a seguir por falta de exemplos aos quais se apegar. Não tinha absolutos

para seguir. A inconstância de seus pensamentos se refletia nos seus passos práticos.

Um dia, poucos meses depois, apontou no horizonte o primeiro namorado. D. Camila pensara vagamente nessa calamidade, sem encará-la, sem aparelhar-se para a defesa. Quando menos esperava, achou um pretendente à porta. Interrogou a filha; descobriu-lhe um alvoroço indefinível, a inclinação dos vinte anos, e ficou prostrada. Casá-la era o menos; mas, se os seres são como as águas da Escritura, que não voltam mais, é porque atrás deles vêm outros, como atrás das águas outras águas; e, para definir essas ondas sucessivas é que os homens inventaram este nome de netos. D. Camila viu iminente o primeiro neto, e determinou adiá-lo. Está claro que não formulou a resolução, como não formulara a idéia do perigo. A alma entende-se a si mesma; uma sensação vale um raciocínio. As que ela teve foram rápidas, obscuras, no mais íntimo do seu ser, donde não as extraiu para não ser obrigada a encará-las. (Machado, 2004, 425).

Casar ou não a filha não tinha qualquer relação com os sentimentos ou com as

posições almejadas pela moça. Ela preferia pensar em si mesma, extraindo de dentro

de si as razões para fazer isto ou aquilo, mas sem qualquer forma de ponderação de

lógica. Os motivos para não permitir o casamento da filha passavam pelos conceitos

pessoais que ela construía das pessoas que, segundo esses mesmos conceitos, são

“como as águas (...) que não voltam mais” que andam atrás de outras pessoas,

“como atrás das águas outras águas”. As qualidades do líquido mais importante para

116

nós mostram a razão do pensamento de D. Camila: fluido e sem gosto. Anteviu um

futuro em que o casamento daria a seqüência lógica do neto e este, quem sabe,

simbolizava enfado e cansaço. Era melhor não o ter a ter mais trabalho.

Como ela fez isso? Como tomou as decisões? Machado nos diz no conto que D.

Camila usou de suas sensações que valiam como raciocínio ao invés de pensar e

formular as resoluções que tomaria a partir daquele momento. Ela não arrazoou,

simplesmente se permitiu ser levada pelos sentimentos e pelos impulsos. Os seus lhe

serviram, mas não os de sua filha, pois mesmo ao lhe descobrir “um alvoroço

indefinível”, preferiu não atender aos seus anseios.

Mais uma vez, temos os princípios de um Eu fragmentado trabalhando no ser

humano com as ferramentas de um indivíduo confuso em si mesmo e em seus

sentimentos, além de ter uma visível ausência de referenciais aos quais poderia se

apegar para a seqüência de suas atitudes.

Por muitos episódios durante sua longa jornada como contista, Machado toca fundo

nas dúvidas e questionamentos da alma humana. Quando lemos o conto em Uns

braços, vemos um Machado que joga com a instabilidade dos conceitos conforme o

texto progride. Os princípios parecem se alterar sem que os personagens entendam

exatamente quais seriam seus papéis ou suas reações. As boas e as más reações

causam a mesma estranheza nos personagens centrais.

D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão. Inácio chegou ao extremo de

117

confiança de rir um dia à mesa, cousa que jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era ele que contava um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria. (Machado, 2004, 494).

Quais seriam as possibilidades reais de vida equilibrada de alguém cuja reação

frente ao mais simples bem pessoal, como o cuidado amoroso de sua própria mãe,

lhe causasse conturbação? Há uma aparente indicação de que o personagem buscava

a sua felicidade, a calma e a paz, mesmo em meio a seu desespero pessoal. Como

fazê-lo passa a ser a grande incógnita deixada para que cada um resolva seu próprio

dilema com base no individualismo que se firmava. Agora, como já vimos

anteriormente, cabe a cada um absorver a fragmentação de seu Eu e sobreviver a ela

da melhor maneira possível.

Machado não trata apenas de questões tão interiores e particulares quanto as da

citação anterior. O caráter humano, por exemplo, que mesmo brotando no interior

dá seus ares nas relações exteriores. A preocupação com o caráter aparece em

diversos momentos na obra machadiana, o que deixa evidente que ele de fato se

importava com os movimentos sociais que se ambientavam ao seu redor. Em Luiz

Soares, num pequeno trecho destacado, Machado levanta um homem cujo caráter

passa por desconcertado e instável, sem equilíbrio e sem afeto nem por si mesmo.

Os leitores terão visto que, apesar de certa argúcia da parte de Soares, não tinha ele a perfeita compreensão das cousas, e por outro lado o seu caráter era indeciso e vário.

Hesitara em casar com Adelaide quando o tio lhe falou nisso, quando era certo que viria a obter mais tarde a fortuna do major. Dizia então que não tinha vocação de papagaio. A situação agora era a mesma; aceitava uma fortuna mediante uma

118

prisão. É verdade que se esta resolução era contrária à primeira, podia ter por causa o cansaço que lhe ia produzindo a vida que levava. Além de que, desta vez, a riqueza não se fazia esperar; era entregue logo depois do consórcio. (Idem, 56).

Precisamos ter o cuidado permanente de não confundirmos as reações humanas

naturais de todos os tempos com aquelas que queremos identificar como sendo

resultantes do momento de fragmentação em que se via mergulhado o homem. A

fragmentação interior sempre existiu, mas após o Fin-de-Siècle ela se tornou

desvelada e reconhecida de todos nós. A instabilidade de caráter do ser humano, ou

sua corrosão, para utilizar o mesmo termo que Sennett (2005) utiliza no título de sua

obra, não passa ao largo no trecho acima. Luiz Soares parecia não ter perfeita

compreensão dos fatos que o cercavam, mas, alie-se a isso o fato de ele ter um

caráter “indeciso e vário”. Machado nos aponta duas circunstâncias que ele parece

diferenciar e distanciar: a circunstância natural, cuja culpa não deve recair sobre

Luiz Soares, já que ele não teve como optar por sua condição intelectual. Mas ele

parece nos indicar um outro caminho, esse sim lançado na conta de Luiz Soares:

aquele de seu caráter, no qual ele seria co-gestor de sua formação. Separa, portanto,

a capacidade intelectual inata do que é fruto de formação posterior. E o separa,

literalmente, pela expressão “e por outro lado”, o que deixa os gestos isolados entre

si. Luiz Soares era arguto, mas não conseguiu perceber que se tornava alguém

fragmentado e deformado.

Machado de Assis era um mestre em dizer nas entrelinhas o que gostaria de dizer

abertamente, o que lhe rende até hoje multidões de estudos e pesquisas. Quando

Roberto Schwarz fala de Machado em seu Um mestre na periferia do capitalismo,

119

ele faz análise não de contos, mas de romances machadianos. No entanto, não é

possível dissociar o autor de um e outro gênero, restando muitos fatos de

semelhança entre suas diversas obras. Parece então interessante lembrar que o

pesquisador diz que:

Em linha análoga, observe-se que a vivacidade das frases depende sem exceção da presença de algum pecadilho, que lhes dá o picante. Contar absurdos como se fossem verdade, desconsiderar o homem comum, sacrificar o eterno à novidade, desacatar a religião etc., são condutas ditas erradas, de que Brás faz praça enquanto tais. Como não julgar, ainda que para desculpá-lo? Nem o leitor atrabiliário, simpático aos abusos da personagem, esquece a norma que está sendo desrespeitada. (Schwarz, 1991, 23).

O Braz citado e estudado por Schwarz faz coro com Luiz Soares ao pilhar sobre

instituições consagradas e tidas por colunatas sociais. O caráter de muitos dos

personagens de Machado era sofrível, mas algo que nem sempre merecesse castigo

imediato. Aliás, propor algo assim tão severo seria contrário às perspectivas de

relativização conceitual que se instalava após o Fin-de-Siècle.

Há um outro conto de Machado, cujo título já nos motiva a perceber as oscilações

de caráter e equilíbrio que serão não apenas tratadas, mas enfaticamente sugeridas

como sendo corretas ao longo do texto. Trata-se de A Igreja do diabo, do qual um

interessante trecho é destacado:

Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório. Pois não há mulheres que

120

vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrado assim o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente. (Machado, 2004, 372-373).

Notamos uma divertida narrativa na qual o Diabo, dentro de uma lógica

estabelecida, sugere que o incorreto é, de fato, o correto. Um silogismo se estabelece

quando ele interpreta as questões de moralidade que somente podem ser

interpretadas à luz de uma noção diferenciada de moral e de caráter, como seria o do

próprio Diabo. Há pontos que certamente nos apontam o caminho de discussão de

um Eu absolutamente fragmentado em seus parâmetros e em suas concepções. O

Diabo percorre um caminho que vai do exterior, dos bens materiais possuídos

licitamente, ao bem interior, que também é lícito. Ambos, de certa forma, são

exeqüíveis, mas de maneiras diferentes. O bem material é ponderável objetivamente,

enquanto o bem interior só o é subjetivamente. O que o Diabo faz é sugerir que o

senso de pertencimento de ambos desconstrói a noção de bem e mal subjacentes.

Em outras palavras, o direito de posse é maior que a razão moral por trás de tudo.

Com isso, o Eu fragmentado por inúmeras noções relativas e conceitos arbitrados

por valores também relativizadores passa a suportar pressões antes não sofridas. A

proposta dada acima é a da inversão de valores, o que somente pode ser aceito

abertamente por um Eu sem pressupostos claros e bem definidos.

121

O Diabo mistura determinadas ações iniciadas apenas para o bem mas que rumaram

para o negócio a outras puramente comerciais, mas que em todos os casos, não

apresentavam ilegalidades, mas apenas pequenas nuances de interpretação moral,

estas já absorvidas completamente pela sociedade dos dias de Machado, ao que tudo

indica. Vejamos: vender cabelo é o mesmo que vender sangue para transfusão.

Parece que sim, se não nos afigurar que o comércio de sangue para salvar a vida é

menos moral que simplesmente doá-lo, já que o maior bem em jogo é a vida que

periga findar. É a mesma linha de raciocínio quando de sua proposta para que a

opinião, o voto, a palavra, a fé e a própria consciência fossem livremente

manuseadas e comercializadas, segundo os interesses e as necessidades do

momento. A sociedade fragmentada parece ter absorvido bem a argumentação

diabólica, principalmente algumas classes específicas de dirigentes e políticos.

Um texto interessante, que de certa forma traça um paralelo com o de Machado, é

Cartas de um diabo ao seu aprendiz (Lewis, 2005), composto de uma série de cartas

de Fitafuso, um diabo velho e sagaz, em seus trabalhos de orientação a um outro

diabo, seu sobrinho mais jovem, chamado Vermebile, ainda aprendendo melhor o

seu ofício. Fitafuso se dispõe a dar ao seu sobrinho instruções e conselhos sobre

como executar bem seus afazeres, haja vista a pouca experiência que o jovem tinha

então. A completa inversão dos valores éticos, morais e espirituais nos mostra muita

semelhança com a linha de raciocínio do conto de Machado.

A diferença é que no exemplo de Lewis, por mais que se ache graça, o autor

escolheu ambos os personagens sendo não humanos, trazendo-nos a percepção de

122

que seria possível uma correspondência dessa natureza a partir de quem eram os

personagens centrais do texto. Machado, por seu turno, alia um ser não humano que

influencia diretamente um ser humano com sua perspicácia e motivações dúbias.

Ao final do trecho em destaque, o Diabo sugere que o homem dissimule seus atos,

não por serem indevidos ou amorais, mas porque a sociedade seria preconceituosa.

Ou seja, o bem é algo relativo e a oposição ao desvio é tida como preconceito. Daí a

sugestão de agir com hipocrisia, o que lhe facultaria lucrar duplamente com seus

gestos.

5.3. A leitura de mundo e do Eu fragmentado de Lobato

“É honra penetrar na falange gorda dos carrapatos

orçamentívoros que pacientemente devoram o país:

é negocio lambiscar ao termo de cada mês um

ordenado fixo, tendo arrumadinha, no futuro,

a cama fofa da aposentadoria”.

(Lobato, In: Um suplício moderno).

Monteiro Lobato é personagem ímpar em nossa sociedade literária, com produção

intensa e farta atuação no cenário financeiro, econômico e político. Destaca-se

123

também como um dos gigantes de um Brasil que escreve, ao lado de muitos outros,

inclusive do próprio Machado de Assis.

Lobato via o Brasil como uma terra que poderia se tornar próspera, embora fosse

mal trabalhada. Foi defensor ferrenho das coisas nacionais, mesmo com um ponto

de vista essencialmente americanizado. Sua opção era pela luta de mercado, com

ênfase no trabalho e no risco badalados pelas sociedades capitalistas. É bem verdade

que a ética do capitalismo de seus dias era muito diferente do que vemos hoje.

Como pontos de separação do Capitalismo dos tempos de Lobato e dos atuais,

poderíamos destacar, de acordo com Sennett (2005), a perda dos laços de confiança,

o abalo do sentido de longo prazo, a troca da liderança focada pelas redes de

prestação de serviço interligadas através de projetos e a diferente percepção de

tempo individual. A continuada fragmentação do Eu parece ter sido fator de

importante ação para esse fenômeno, como nos faz refletir o pensamento do autor ao

dizer que “o distanciamento e a cooperatividade superficial são uma blindagem

melhor para lidar com as atuais realidades que o comportamento baseado em valores

de lealdade e serviço”. (Sennett, 2005, 25). Ora, isso equivale a dizer que o Eu

precisa se defender de ofensas constantes e que a melhor defesa é a superficialidade

nas relações e não mais os bons valores possíveis do íntimo do ser humano.

Em Lobato vemos a evolução de um cidadão de país subdesenvolvido, mas gerado

em berço abastado, com excelentes traços culturais para seu tempo, com

possibilidades de perpetuar a herança da família. No entanto, os tempos eram de

difícil economia, com o período entre as duas guerras mundiais modificando

124

totalmente as realidades econômicas em toda parte, o que se refletiu de maneira

intensa também no Brasil.

Era um Brasil que começava a abandonar sua política apenas agrícola e iniciava sua

carreira industrial, que tinha sonhos e líderes carismáticos, embora questionáveis

com relação à liberdade e à legalidade de seus atos. Um Brasil que via perspectivas

por um lado e barreiras de impedimento por outro, como era o caso da energia não

renovável, o petróleo, que foi uma de suas mais intensas bandeiras como cidadão e

empreendedor.

Num cenário como esse, Lobato é escritor ao mesmo tempo que é empresário,

articulador político, empreendedor financeiro, investidor de capitais, industrial, etc.

É nesse contexto múltiplo que ele chega com sua linha de textos do Sítio do Pica-

pau Amarelo, depois de já haver estreado como contista. Muito do que ele passa em

seus textos é a entrelinha do que ele quis deixar para as análises futuras, de suas

gerações ou das nossas. Ele denunciava um Brasil quase feudal e gritava por uma

possibilidade de mudança que ele, se não a via na prática, parecia pelo menos

sonhar com ela.

Lobato teve sua expressão literária cunhada na primeira metade do século XX. No

entanto, nota-se em sua obra uma indiscutível iniciativa por demonstrar seu apreço

pela cosmovisão de fins do século XIX, expondo sistematicamente os pontos de

vista atinentes ao período imediatamente anterior na cronologia de sua própria vida.

Aquilo que representasse evolução comportamental não era necessariamente bem

aceito por Lobato, como é o caso de sua manifestação pública contra as obras de

125

Anita Malfatti numa exposição que, de maneira histórica, antecedeu a Semana de

Arte Moderna de 1922. Vide Anexo 1, à página 159, para a leitura da íntegra do

texto Paranóia ou Mistificação?

A expressão de Lobato era a de um homem racionalista e pragmático, para a qual

muito colaboravam os pontos de vista do cientificismo do qual também era

partidário e defensor. Na opinião de Neto (2004), ao analisar tais pontos no autor,

temos que:

Lobato era um assíduo leitor e admirador confesso dos ideólogos e propagandistas da “forma mentis” objetivante do século XIX. Isto contribuiu para que ele mantivesse sua postura cientificista, em meio a um mundo fragmentado pela visão relativista da arte moderna e da filosofia da primeira metade do presente século. (Idem, 3).

Paradoxalmente a algumas posições tidas por retrógradas, Lobato demonstrou ao

longo de sua vida uma incansável busca pelo novo, pela tomada de decisões que

levam as pessoas e as instituições a alcançarem novos patamares de sucesso. A

própria expressão intelectual de Lobato o comprova quando ele se atira à literatura

voltada a crianças e adolescentes em tempos em que isso era incomum no Brasil.

Além disso, ele foi altamente competitivo nos processos comerciais de vendagem de

sua produção, o que até nossos dias continua sendo fator de dificuldade ou

impedimento das novas gerações de autores nacionais. Monteiro Lobato foi

inovador em diversos aspectos. Diferindo da maioria dos demais autores, ele não foi

apenas autor de sucesso ainda em seu tempo, mas foi profissional do livro, editor e

dono de editora.

126

A que realidade Lobato teria se prendido ao escrever seus contos ainda no início do

século XX, logo após o auge do Fin-de-Siècle? Haveria uma verdade à qual se

prender? A impressão que nos fica é que, enquanto Machado se despedia de certezas

que estavam por ser abandonadas, Lobato já não as tinha, e delas mantinha apenas

as sombras que serviriam de novos batentes para uma outra realidade, essa sim em

formação ainda.

Muitas das declarações, claras ou sutis, soam como o estar preso a conceitos

passados, como a questão da inferioridade de determinadas raças, a minoração de

classes sociais menos favorecidas, a idéia de orbitar em torno de nações mais

desenvolvidas como fator de crescimento econômico, e outros procedimentos

comuns à época. Por outro lado, apresenta a visão quase paternalista e de piedade

com relação aos pobres, aos negros ex-escravos, aos caipiras e aos menos

esclarecidos. Para tais posicionamentos, certamente o pensamento cientificista

contribuiu bastante. O tom era um misto de compaixão, resignação, compreensão e

ironia sarcástica quanto ao destino dos infelizes. Mesmo assim, quando lemos

Lobato hoje em dia, temos sentimento que aflora, temos sentimento de repulsa por

certos conceitos e temos algo remexendo em nós por causa dos miseráveis que ele

descreveu e que, infelizmente, ainda nos cercam.

Lins (2006) num trecho em que fala não de um início de século XX, mas no qual

trata de questões atinentes ao que convencionamos denominar de pós-modernidade,

ou seja, de fins do século XX e início do XXI, diz-nos algo que parece ter sido

vivenciado pelo próprio Lobato em suas atitudes. O individualismo e a

127

fragmentação, quando comparamos as posturas assumidas por Lobato e algumas

falas de Lins, parecem fugir de um período determinado e aplicarem-se a quaisquer

momentos das relações humanas.

Num panorama de dominações embutidas nos costumes, postas de súbito na condição de escolha da cidadania, o patrão e empregado se assemelham, quase idênticos, apesar das diferenças de posição antes consideradas como fundamentais. Opressor e oprimido, colonizador e colonizado, tudo se mistura, sabendo-se que os comportamentos se repetem e se reproduzem por processos de imitação. Para vencê-los, cumpriria proceder a uma reviravolta no caráter das atitudes. (Idem, 211).

Ora, esse trecho de Lins parece nos remeter diretamente às questões de dubiedade

expostas por Lobato, frutos possíveis da fragmentação experimentada pelo homem

do Fin-de-Siècle. Poderíamos afirmar que se trata de analisar Lobato e parte de seus

contos, se não soubéssemos que se trata de analisar outro ponto da História. Por qual

razão se dá a semelhança? Provavelmente o que Lobato experimentava em termos

de instabilidade e fragmentação é o que nós, na pós-modernidade, ainda estamos a

experimentar. Nossas dúvidas, conceitos e pré-conceitos ainda são muito parecidos.

Em todo o tempo parece haver antagonismo explícito em Lobato. Quando fala de

religião e virtude, seu exemplo é degradador. Quando trata de bondade, podemos

ver a prática da maldade. E assim segue o texto em muitos casos, o que pode ser

reflexo da percepção que tinha o autor sobre um ser humano que se encontrava em

frangalhos por dentro, sem estabilidade, com seu Eu fragmentado por completo.

Esse ser humano, talvez externo ao livro na figura do leitor, via-se sempre na

128

iminente busca pela identidade. Enquanto dizia uma coisa e fazia outra, buscava

algo e indicava o avesso.

Bons exemplos disso encontramos em Negrinha. Logo de início, surge algo

diferente: o narrador posta-se ao lado de Negrinha, a desvalida do conto. Ela

apresentava todos os “problemas” que o autor quis apontar na sociedade que o

cercava: era negra, mulher, criança, pobre, ex-escrava e órfã. Trata da psicologia de

Negrinha com dura descrição, quase pondo o leitor como co-algoz por não haver

interferido na situação. A protagonista é o retrato do sofrimento feito gente, alguém

que nasceu para ser infeliz e para morrer sem marcar a vida, apenas para alimentar

os vermes da terra no dia de sua morte.

O vai-e-vem de informações demonstra as contradições da fragmentação interior

dos seres sociais. Dona Inácia era “excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do

mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado

no céu” (Lobato, 1982, 3). Segundo o padre que constantemente a visitava para

conversas, ela, além de caridosa e piedosa, era “dama de grandes virtudes

apostólicas, esteio da religião e da moral” (Idem), o que a tornava, entendamos, uma

quase-santa nesta terra. No entanto, ela, que assim aparentava e assim se via, era a

grande tortura da pobre menina. Tratava-a por adjetivos os mais variados, um pior

que o outro, como peste, diabo, epidemia, mosca morta, pinto gorado, coisa ruim,

trapo. Além, é claro, de infligir à menina toda sorte de torturas física, sempre

constantes, com cascudos, surras ou pondo-lhe ovo cozido saído da fervura na

pequena boca que impedida de gritar a sua dor.

129

A mulher, tratada sempre de excelente e bondosa, que tinha sido senhora de

escravos no tempo da escravidão, ressentia-se de não mais poder tê-los oficialmente,

mas o texto nos mostra que os serviçais, na verdade, continuavam em grande

medida, a desempenhar o mesmo papel de antes da abolição. Não os tinha

oficialmente, mas tinha-os na prática, como sabemos ter sido a sorte de milhares de

ex-escravos no Brasil que, após a sua libertação, tornaram-se serviçais semi-

escravizados de seus ex-donos, agora feitos senhores absolutos de suas vidas.

Lobato assim narra o episódio:

O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:

- Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados…

Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! gostoso de dar) e a duas mãos, o sacudido. A gama inteira de beliscões: do miudinho, com a ponta da agulha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma - divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para “doer fino” nada melhor!

Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de vez em quando vinha um castigo maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. (Lobato, 1982, 5).

A mesma D. Inácia que era o alvo dos maiores louvores do padre - leia-se de uma

religiosidade apenas aparente - era a que oferecia diariamente o suplício à pobre

menina. A dicotomia, esse Eu incomum que funcionava como dois Eus diferentes,

um público diante do padre e outro privado em sua intimidade do lar, são

demonstrativos da fragmentação em que se via mergulhada a senhora em questão.

130

Um Eu tinha deixado o azorrague que antes estava em mãos; outro Eu jamais tinha

perdido a gana alimentada na alma. Os Eus conviviam e se retroalimentavam com

soluções que os mantivessem vivos mesmo que não abertamente em todos os pontos

almejados, mesmo que fosse com coisa miúda, com meros níqueis.

Ela sabia os valores de sua fé e os valores da lei. Mas o que ela queria mesmo era a

sensação do bem estar advindo da liberação do seu estado de agitação. Isso era

alcançado com pelo menos um remédio que ela conhecia bem: o castigo alheio,

mesmo a troco de nada. “Como alivia a gente uma boa rodada de cocres bem

fincados”. Com essa sentença vemos que o remédio de um era o mal do outro. Há a

completa descrição do receituário para se sentir melhor, com cascudos, beliscões,

puxões de orelha, varadas e esfregadelas: tudo aplicado como bom remédio ao

dispor da senhora da casa. E Negrinha, nas palavras de Lobato, era “conservada em

casa como remédio para os frenesis”. Ela era, assim, o meio de desafogo dos

problemas pessoais de D. Inácia.

Do outro lado havia outra pessoa, ainda em formação, mas sem qualquer chance de

superar seu destino, numa quase evocação à resignação que finalmente a levaria à

morte tranqüila de um passarinho triste. Negrinha não tinha nem nome nem alma.

Pelo menos era o que ela cria, ou pensava crer, até que em dado momento percebeu

que tinha sim uma alma dentro de si. Foi em meio a brincadeiras permitidas com as

sobrinhas da patroa que a visitavam, após ficar deslumbrada com as brincadeiras de

boneca, que “Negrinha, coisa humana, percebeu (…) que tinha uma alma”. Ela

ainda “sentiu-se elevada à altura de ente humano”. E veio o perigo que, para ela foi

131

fatal, pois descobriu empiricamente sua fragmentação interior e jamais, depois

disso, foi a mesma pessoa: “Cessara de ser coisa - e doravante ser-lhe-ia impossível

viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!” (Idem, 8).

Os paradoxos não param nem mesmo na descrição da morte de Negrinha, que

“morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais,

entretanto, ninguém morreu com maior beleza”. (Idem, 8-9). O texto deixa marcas

no leitor, que fica com sentimento de pesar ao lê-lo e, certamente, não haverá de o

esquecer. Mas o conto finda por dizer o oposto, dando a entender que apenas más

lembranças ficaram da pobre menina.

Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira - uma miséria, trinta quilos mal pesados…

E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas.

- “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”

Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.

- “Como era boa para um cocre!…” (Idem, 9).

Interessante em Negrinha que Lobato trabalha a questão da fragmentação do Eu dos

personagens de maneira intensa, mesmo em meio ao humor negro do conto. D.

Inácia tinha tudo para ser equilibrada e bondosa, dadas a formação e a posição que

tinha em casa e na sociedade. Mas era insensível, relativizando suas posturas de

acordo com o objeto de seus afetos. Fica evidente que não se posicionava da mesma

forma com relação a todos os seres humanos, sendo uma com Negrinha e outra,

oposta à primeira, com suas netas. D. Inácia, com tudo ao seu dispor, parece ter

vivido sem alma todo o tempo.

132

Negrinha era o contrário. Não sabia ao certo se era gente ou coisa. Não tinha

nenhuma razão para ter sentimentos bons, mas desenvolveu lampejos de candura e

amor que são expressos ao longo do texto. Poderia ser iracunda, mas era calma e

quieta, mesmo que a poder de surras e maus-tratos. Negrinha, sofrendo toda a curta

vida e não tendo condições aparentes para isso, descobriu-se como alguém, não

mais como algo, que tinha alma dentro de si. Dava-se o caminho inverso ao da

patroa, fechando o círculo de demonstrativos da ambigüidade e duplicidade

relacionados a um Eu fragmentado. Se D. Inácia era boa para os de fora e má para

os serviçais e tinha alma que ansiava por maldade, Negrinha era boa por dentro e

mesmo para os da casa, mas tida por má por sua senhora. O dentro e o fora da

experiência humana mais uma vez se mostravam paradoxais.

Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste... (1982, 4).

Parece que a “alma de criança” que Lobato viu em Negrinha não era percebida em

adultos. Talvez daí venha o futuro interesse que o autor demonstrou em escrever

sobre fantasias e mundos mágicos, falando de crianças que não viviam neste mundo

fragmentado. Falava dessas crianças e falava às crianças, fossem elas crianças por

fora, por dentro ou por ambos os lados. Esse mundo pueril, sim, era estável, pois a

fantasia e a magia não precisam ser explicados com base nas convenções sociais.

133

A ambivalência e a instabilidade das relações humanas fica muito evidente no texto

acima. Características de um tempo e de uma era de transformações interiores de

intensidade agigantada. Não que o homem nunca tenha experimentado

ambivalências e antagonismos de atitudes antes, mas após o Fin-de-Siècle isso se

tornava padrão, dados os postulados da relativização que foi se estruturando melhor

ao longo do século XX.

Um outro conto destacado é Quero ajudar o Brasil, que, se bem atentarmos ao estilo

do texto, mais se parece a uma crônica que a um conto. Mais parece uma declaração

do que andava nos corações brasileiros naqueles primeiros anos de século XX. Não

é criação com base em percepções, mas é a própria narrativa de um fato ocorrido

com Lobato e seus sócios no andamento da campanha da nova Companhia Petróleos

do Brasil e, segundo ele, era luta deles contra todos: “Tudo contra. O governo

contra. Os homens de dinheiro contra. Os bancos contra. A ‘sensatez’ contra”.

(Idem, 164).

As inconsistências mostradas nesse texto, se por crer nelas Lobato ou se por crítica

indireta, passam sempre pelos ambientes do abismo social e da segregação de raças.

O sucesso das vendas das ações no projeto de alto risco não era dos mais

estrondosos, mas o senso de nacionalismo parecia falar alto em alguns corações.

“Certo dia entrou-nos pela sala um preto modestamente vestido, de ar humilde.

Recado de alguém, certamente” (Idem, 165). Com essa fala, Lobato confessa como

era a primeira análise feita sobre uma pessoa negra e modesta. O homem, na

verdade, apenas tinha visto no projeto da Companhia a possibilidade de ajudar o

134

Brasil. “Ficamos a olhar uns para os outros, sem palavras. Que palavras

comentariam aquilo? Essa coisa chamada Brasil, que é de vender, que até os

ministros vendem, ele queria ajudar…” (Idem, 167).

O que se crê, o que se vê e o que mostra de fato ser a realidade torna-se uma

constante nos contos de Lobato. A instabilidade de um Eu fragmentado emerge em

textos como esses, nos quais a essência humana aflora sem pudor e, se ela anda

inconstante e relativizada, nada poderá ser condenado, apenas em níveis

interpessoais. Essa é uma leitura possível dos contos de Lobato. Não é tanto a

estética crua do exterior, mas a estética moral que importa. O difícil será, após o

Fin-de-Siècle, definir o que é essa estética moral.

Diferentemente de Machado, os textos de Lobato são por vezes mais difusos

enquanto avançam, tornando-se necessário ler trechos um pouco maiores para a boa

compreensão de seu contexto. Em Bugio Moqueado, ele faz uso sistemático de

representar um indivíduo sem referenciais claros e objetivamente demonstrados.

Lembrou-me logo o célebre Panfilo do Rio Verde, um de “doze galões”, que “resistiu” ao tenente Galinha e, graças a esse benemérito “escumador de sertões”, purga a esta hora no tacho de Pedro Botelho os crimes cometidos.

Mas, importava-me lá a fera! — eu queria gado, pertencesse a Belzebu ou a São Gabriel. Expus-lhe o negócio e partimos para o que ele chamava a invernada de fora.

Lá, escolhi o lote que me convinha. Apartamo-lo e ficou tudo assentado.

De volta do rodeio, caía a tarde e eu, almoçado às oito da manhã e sem café de permeio até aquel’hora, chiava numa das boas fomes da minha vida. Assim foi que, apesar da repulsão inspirada pelo urutu humano, não lhe rejeitei o jantar oferecido. (Lobato, 1982, 23).

135

O personagem narrador do episódio não tem qualquer tipo de referencial claro,

bastando-lhe satisfazer necessidades imediatas para tomar suas decisões, que

tampouco são duradouras. Apenas circunstanciais e para o momento. Assim é que

ele diz e repete que não se importava em absoluto com quem estivesse se

relacionando, bastando apenas que atingisse seus intentos. Diz não querer saber, por

exemplo, quem seria seu interlocutor nos negócios que queria fazer, se Belzebu ou

São Gabriel, se o mal ou o bem que ambos simbolizam e personificam. Trata de

meio e resultados, fala de ética e equilíbrio.

Já noite, o dono do gado em negociação o convida para jantar e ele, apenas com um

café da manhã das oito horas, aceita, mesmo sem se agradar do cicerone. Nova

situação em que a alma humana entra em crise e o Eu fica em desequilíbrio.

Alimentar o corpo que chia de fome ou manter sã a alma que reclama o afastamento

daquela situação?

Como a morta-viva permanecesse imóvel, o urutu repetiu o convite em voz baixa, num tom cortante de ferocidade glacial.

- “Sirva-se, faça o favor!” - E fisgando ele mesmo a nojenta coisa, colocou-a gentilmente no prato da mulher.

Novas tremuras agitaram a mártir. Seu rosto macilento contorceu-se em esgares e repuxos nervosos, como se o tocasse a corrente elétrica. Ergueu a cabeça, dilatou para mim as pupilas vítreas e ficou assim uns instantes, como à espera dum milagre impossível. E naqueles olhos de desvario li o mais pungente grito de socorro que jamais a aflição humana calou...

O milagre não veio - infame que fui! - e aquele lampejo de esperança, o derradeiro talvez - que lhe brilhou nos olhos, apagou-se num lancinante cerrar de pálpebras. Os tiques nervosos diminuíram de freqüência, cessaram. A cabeça descaiu-lhe de novo para o seio; e a morta-viva, revivida um momento, reentrou na morte lenta do seu marasmo sonambúlico.

136

Enquanto isso, o urutu espiava-nos de esguelha, e ria-se por dentro venenosamente...

Que jantar! Verdadeira cerimônia fúnebre transcorrida num escuro cárcere da Inquisição. Nem sei como digeri aqueles feijões! (Idem, 25).

Os paradoxos são constantes. A mulher que sofre devia algo, depois se lê no texto.

Mas aqui é como que mártir diante da situação, o que não deixa de induzir o leitor a

uma piedade mórbida e desconhecedora de pormenores: apenas nosso emocional é

tocado quando lemos algo assim. O homem, por sua vez, sistematicamente chamado

de urutu, uma cobra temida no interior, “ria-se por dentro”, o que só pode ser

conhecido de um narrador onisciente, que quer nos informar e nos educar em seus

sentimentos com respeito aos personagens. A religiosidade e a malignidade andam

como luz e sombra todo o tempo do texto selecionado, assim como a ambivalência

de um ser humano que vive em constante alternância de bem e mal, reflexão e

sentimentalismo. O jantar, por fim, compara-se a um funeral.

E a mulher é chamada de morta-viva, o que podemos entender como a forma pela

qual Lobato nos informa de sua duplicidade. Morta por fora, sem mais valores e

sentimentos, sem vontade própria e sem qualificações para definir seu futuro. Viva

por dentro, onde ainda poderia haver alguma esperança de sobrevida e de milagre,

como o que não aconteceu naquele momento do jantar. Mas a vida não parava ali,

como a vida do homem daqueles tempos não parava por ele ser alguém cujo Eu

estava fragmentado.

137

Do ser sem referenciais, Lobato também extrai exemplos em seus contos de um

homem de seu tempo que não tinha mais suas certezas. As dúvidas eram a forma de

seguir vivendo de algumas das pessoas retratadas por ele. Era assim com um tal

João Teodoro, surgido como personagem central em Um homem de consciência.

Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens. Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro.

Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis nem sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra melhor. (Lobato, 1955, Vol. II, 185).

O mais impressionante é que no caso de João Teodoro, a menor valia de si partia de

dentro de si. Seu nome era curto, como que mostrando pouca origem, pouca

informação de suas origens. Tinha alguns valores interiores que permitia que

saíssem ao mundo exterior quando eles se voltassem a sua relação com o outro. O

superlativo para honesto e leal não deixam dúvida na preocupação de João para com

o próximo. É bem verdade que o texto não explica as reais motivações de sua

lealdade e honestidade, mas o fato é que assim vivia. Pecava, no entanto contra si

mesmo. Sua autodesvalorização era exacerbada e demonstrava que havia algo

bastante anormal com relação a sua autoestima.

Havia um João por dentro, que quase se menosprezava e mutilava as possibilidades

apresentadas ao longo da vida. Havia um outro João por fora, honesto e leal, que

fazia de tudo para manter tais adjetivos. Esse mesmo João era dois em um. Sua

lealdade para fora mostrava verdadeira traição para dentro e sua honestidade para

138

com os demais mostrava ainda mais claramente o quão desonesto era consigo

mesmo.

A vida, no entanto, parecia querer testar João e lhe dar novas possibilidades de ser

aprovado também por seu Eu interior. Uma nomeação inesperada para delegado o

deixou em verdadeira crise de sentimentos.

Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio. Delegado, ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, não se julgava capaz de nada... (Idem, 186).

O novo delegado tinha uma só coisa em mente: fugir da realidade que o convidava a

ser alguém além do que sempre tinha sido. O ser e o nada eram aqui uma só pessoa,

um só homem. Um lutava com o outro por conta de sua falta de consistência. O

desenrolar do conto é interessante, pois João Teodoro continuou até o final sendo

coerente com seu pensamento desde o início. O texto nos diz:

João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada botou-as num burro, montou no seu cavalinho magro e partiu.

Antes de deixar a cidade foi visto por um amigo madrugador.

- Que é isso João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens?

- Vou-me embora - respondeu o retirante. - Verifiquei que Itaóca chegou mesmo ao fim.

- Mas, como? Agora que você está delegado?

- Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado eu não moro. Adeus.

E sumiu. (Idem, 186).

139

Notemos que João meditou profundamente antes de tomar sua decisão. Interessante

notar que, diferentemente de outros fragmentados que serviram de personagens para

Lobato, João pensou. Ele queria ser o que tinha decidido ser, mesmo que isso lhe

custasse a viabilidade de melhorar seu projeto de vida. E ele resolve fugir da

realidade de ser delegado, como não podendo reagir face a eleição da cidadezinha.

Talvez pela primeira vez ele estivesse demonstrando honestidade e lealdade para

com seus sentimentos, embora isso representasse ser desonesto e desleal com outra

parte de sua vida. Um Eu mantinha cativo o homem honesto e leal; o outro Eu o via

indo embora. Talvez, por isso, seu amigo tenha lhe dito com espanto, diante da

notícia de sua partida: “agora que você está delegado?” - para o que utilizou o estar

em lugar do ser, denotando a fugacidade de suas ações.

O bom marido é outro de seus contos com bons exemplos desse homem de início de

século XX, com seus pressupostos abalados e a sua premente necessidade de

exercitar suas novas convicções.

A fama do bom marido correu mundo. Todas as mulheres apontavam-no como exemplo a seguir.

Os homens exemplares, porém, enfureciam-se.

— Um vagabundo daqueles! Um miserável chopim!

— Que tem isso? disse uma. Eu, franqueza, preferia que fosses também chopim, mas que me desses o carinho que ele dá a Isabel.

— É o cúmulo! Pois não vês que aquilo é da profissão? Tipo asqueroso!... Agrada à mulher porque vive dela. É o seu negócio. (Lobato, 1982, 138).

Percebemos o ressalto de algumas questões interiores do Eu fragmentado que

aparecem destacando-se no trecho. No entanto, o que mais se torna aparente é o fato

140

de todo o conto passar a idéia de que um malandro como era o marido da narrativa

era alguém adulado pela esposa. Esta, por sua vez, cegada pelo marido aproveitador

que lhe comprava o coração com algumas palavras bem encaixadas e com

promessas que nunca eram cumpridas, era o motivo de inveja conjugal das demais

mulheres.

Os maridos normais, se assim os podemos chamar, não eram alvo dos suspiros de

suas mulheres, não satisfeitas com a vida de família e sustento. Ele era

estranhamente o alvo dos desejos de outras, mesmo quando ele era o típico

malandro que faz tudo a descoberto, mas que nunca é incriminado por nada do que

faz. Os pais da moça e os maridos das demais mulheres falaram em vão. Até que a

exploração em múltiplos sentidos a levou à morte. Morte sofrida por fora e feliz por

dentro. Exaurida e acabada, mas fiel ao seu marido até o fim. E ele, sem nenhum

problema de consciência, seguiu depois a sua jornada. Enquanto para a mulher a

relação conjugal era afetiva e responsável, para o bom marido era apenas o exercício

de sua profissão.

Este homem nos faz lembrar de Sennett (2005) e seus postulados sobre o homem

cujo caráter foi transformado por conta dos processos de tempo e trabalho. Em meio

a contextos que fogem ao controle do indivíduo, este se torna capaz de se amoldar

às mudanças que se operam ao seu redor, capaz de não ter qualquer apego ao que

edifica com seu trabalho, que faz emergir mais um elemento da flexibilidade do seu

caráter: torna-se tolerante, senão receptivo, a sua própria fragmentação. A aceitação

141

resignada da fragmentação do seu Eu torna-se um dos pontos essenciais do caráter

que é formado dentro de um mundo absolutamente flexibilizado.

Na mesma linha vemos que Lobato também trata do caráter de seus personagens,

sempre afeitos ao discurso desse homem que se via fragmentado.

Terminado o jantar, saímos em direção ao Triângulo, e lá nos abancamos num sórdido café. O meu amigo voltou ao assunto.

– Caso notável, o daquele homem! Caso merecedor de novela ou conto, já que a justiça não tem forças para metê-lo na cadeia. (...)

Pequetita! Bem posto apelido, que não era bem mulher aquela isca de gente. Miudinha, magrinha, sequinha, sem cadeiras, sem ombros, sem seios, Pequetita não passava de um desses restolhos enfermiços que aparecem ao lado das espigas viçosas – sabuguinho débil, um grão aqui, outro ali. Apesar dos seus vinte e cinco anos, representava treze, e ao escolhê-la Pânfilo – chama-se Pânfilo Novais o meu facínora – espantou a todos, a começar pela moça. Como, porém, era ele pobre e ela arranjada, explicou-se financeiramente a união. (Lobato, 1982, 77).

A questão do caráter foi magistralmente trabalhada por Lobato no texto Barba azul.

Nesse conto surge um homem com formação na área médica que utiliza seus

conhecimentos para proveito próprio, mesmo que para isso as vidas de suas esposas

sejam sistematicamente subtraídas. Sim, esposas, pois o conto mostra um homem

que planeja como se beneficiar com as mortes das mesmas. E de tal modo o faz que,

no fundo, não as matava, mas as conduzia à morte.

– ...até que os separou a morte. Pequetita não resistiu ao primeiro parto; faleceu após cruel intervenção cirúrgica.

Pânfilo, dizem, chorou amargamente a morte da esposa, embora viessem consolá-lo os trinta contos de um seguro por ela constituído em seu favor.

A meu ver é daqui por diante que surge o criminoso. O desastre do primeiro casamento criou-lhe no cérebro um pensamento sinistro – pensamento que o iria nortear pela vida afora e que o fez, como te disse, rico e poderoso. A morte de

142

Pequetita ensinou-lhe um crime inédito, não previsto pelas leis humanas. (Idem, 77).

A ética e a razão são exaustivamente abordadas no conto. Tenhamos em vista,

mesmo assim, que Lobato não se dispôs a escrever um tratado filosófico, mas uma

obra literária. Pessoas assim podem existir, principalmente se o berço de sua cultura

for desregrado e sem parâmetros éticos absolutos. O início do século XX foi, em

seqüência aos eventos de Fin-de-Siècle, um tempo sem maiores equilíbrios éticos,

coisa que vemos perdurar até hoje.

O benefício pessoal que se desenvolve por parte do marido é avesso a qualquer

relação ética, em qualquer que seja a cultura, a menos que tratemos de algum tema

patológico ou insanamente criminoso. Isto posto, no entanto, não confere com o

texto, em cujas linhas é apresentado um vilão consciente do que faz e sem nenhuma

forma aparente de arrependimento ou de tentativa de subtrair de sua vida atos tão

hediondos.

Escolhia uma mulher previamente identificada como inapta ao parto, casava-se com

ela, engravidava-a, gerava algum tipo de benefício para uso após a morte da mulher

- como um seguro - e pacientemente aguardava a morte da infeliz. E o gesto se

repetia em outra parte, com outra mulher, como se fosse outro homem começando

tal prática escusa.

Depois, imagina o sadismo dessa alma ao ver desenvolver-se no ventre da vitima, não o filho que ela docemente esperava, mas a bolada gorda que viria acrescentar os seus cabedais. Afez-se a tal caçada e nela aperfeiçoou-se de maneira a nunca errar o bote.

143

A quarta, soube-o logo depois, fora pelo mesmo caminho das outras em seguida a uma nova intervenção cirúrgica. E entraram os duzentos contos. Vês tu que monstro?...

No outro dia lá estava na mesma mesa o doutor Pânfilo. Entraram na sala várias moças, e pela força do hábito, o seu olhar mortiço mediu num relance as ancas de cada uma. Bem feitas de corpo que eram, nenhuma o interessou – e seu olhar desceu calmamente para o jornal que lia.

– Está viúvo – pensei comigo. – Anda evidentemente tocaiando a quinta mal conformada... (Idem, 77).

E o homem, fragmentado em si mesmo, prosseguia em suas exemplificações e

aparições nos textos lobatianos. Esse é o mesmo ser que busca freneticamente a

felicidade, mas, de fato, parece não saber como obtê-la. Num outro conto, Fatia de

vida, Lobato exemplifica tal situação.

Não era homem querido o doutor Bonifácio Torres. Não era querido pela ponderosa razão de pensar com sua própria cabeça. Para ser querido, é força pensar como toda gente.

“Toda gente?!”

Moloch social cujos mandamentos havemos de seguir de cabecinha baixa, sob pena dos mais engenhosos castigos. Um deles: incidir na pecha de esquisitice. (Lobato, 1982, 154).

Chama a atenção que Lobato trata o dr. Bonifácio de “Moloch1 social” e depois,

mais à frente na mesma página, volta a dizer que ele tinha “a mentalidade do

Moloch”. O conto narra as desventuras que Isaura, uma lavadeira, sofre por causa de

1 Moloc ou Moloch Entregar as crianças a Moloc (Melek) era queimá-las em sacrifício ao deus cananeano. (...) Crianças vivas eram queimadassobre o altar do deus ou nos flancos da estátua de bronze que lhe era consagrada, enquanto os sacerdotes encobriam os gritosdas vítimas com o barulho de clamores e tambores. (...) Sem dúvida, deve-se ter em Moloc a velha imagem do tirano,ciumento, vingativo, sem pena, que exige de seus súditos obediência até à morte e confisca todos os seus bens, até mesmo osfilhos, destinados à morte na guerra ou no sacrifício. (...).Nos tempos modernos, Moloc tornou-se o símbolo do Estadotirânico e devorador. (Chevalier, 1993, 614).

144

“bondades” que lhe são feitas em seguidos momentos de sua vida e, por causa das

caridades que lhe foram feitas, a senhora padece tremendamente. Com isso, surge a

justificativa do dr. Bonifácio em não fazer caridade a fim de evitar o mal alheio.

Mais à frente, Lobato migra o codinome para o cônego Eusébio, chamando-o de

“conspícuo representante legal do Moloch” (Idem, 155).

O dr. Bonifácio sorrira e o padre olhara-o de revés, com saudades, quem sabe, do bem-aventurado tempo em que sorrisos assim recebiam a réplica do fogo pio.

- Sorri-se o hereje (sic)? - interpelou o padre. Nega até a caridade?

- Não nego - respondeu mansamente o filósofo - porque não nego nem afirmo coisa nenhuma. Negam e afirmam os atores, os que se agitam no palco da vida. Eu tenho meu lugar na platéia e, como não represento, observo. E como observo, sorrio - sorrio para não chorar...

- Seja mais claro.

- Serei. Quando o reverendo se abriu em louvores à caridade, não desfiz nessa cristianíssima virtude. Apenas me lembrei de certo drama a que assisti - e, repito, sorri para não chorar...

Depois de breve pausa de interrogativa expectação, o dr. Bonifácio principiou.

- Isaura a minha lavadeira... (Idem, 155).

Isaura sofre muito ao longo de toda a narrativa. Sua pobre vida se desfaz como que

por encanto sem que nada seja feito em seu favor. Na verdade, tudo lhe ocorre por

causa dos favores recebidos. Favores indesejados e não buscados, mas favores

mesmos assim.

A busca da felicidade encontra dois aspectos neste conto. O de quem outorga a

felicidade e de quem apenas a busca, seja em terceiros, seja nas circunstâncias da

vida. Moloc parece surgir como elemento mitológico evocado por Lobato para nos

informar que ser feliz em geral não é possível. Pelo menos não em sua totalidade.

145

Algo veio devorar a felicidade da pobre mulher que, mesmo sem grandes posses,

tinha para si seu bem maior, seus filhos. Estes lhe foram arrebatados por esse

Moloch da vida que se levantou ferozmente e lhe tirou dois dos filhos, além de

deixar os outros dois em situação muito ruim. Ela própria, depois dos episódios,

integra um trio com os dois filhos aos quais Lobato chama de “três miseráveis

molambos” (Idem, 159). Assim como o ente mitológico, este do conto também veio

reclamar os filhos dos seres humanos para si.

- “Depois? Depois a gripe declinou, a normalidade foi se restabelecendo e os dois filhos restantes voltaram à casa materna. Em que estado! O menino, semimorto, cadavérico e a Inês (só ao vê-la chegar soube Isaura qual das duas morrera) e a Inês com uma tosse de tuberculosa. E ali ficaram, destroços de horrível naufrágio, aqueles três miseráveis molambos de vida, sob a assistência da negra enfermeira - a Fome. Continuaram a viver sem saber como, por instinto - num desvario, numa alucinação...

Da última vez que vi a pobre Isaura, disse-me ela, entre dois acessos de tosse:

-Tudo porque me levaram de casa os filhos. Se ficassem, nada lhes teria acontecido. A nossa vizinha, tão boa, coitada, quis fazer o bem e fez a nossa desgraça. É um perigo ser muito bom. (Idem, 159).

A busca pela felicidade parece não ter fim em nós. Sabemos que jamais a

atingiremos, compondo tal estado um sonho permanente em nós. No entanto, a

desventura exacerbada parece roubar até mesmo o sonho que Isaura poderia ter de,

em sua simplicidade, viver momentos felizes junto a seus filhos.

146

Considerações Finais

Após este trabalho a respeito do Eu e suas caracterizações básicas a partir do Fin-

de-Siècle é possível perceber com mais clareza a importância real do papel que

temos a desenvolver em meio à sociedade na qual estamos inseridos. Quem sou? De

onde vim? Para onde vou? Questões assim acompanham o homem e povoam suas

idéias e conceitos desde tempos imemoriais. As respostas, essas são inúmeras e

inexistentes ao mesmo tempo. Mas o homem não desiste de as buscar

permanentemente.

Como análise final deste estudo, proponho a resposta à questão que gerou a

problematização, a qual me serviu como incentivo de pesquisa. Os contos de

Machado e Lobato realmente indicam uma percepção refinada e externada de modo

particular que cada um teve desse homem cujo Eu era fragmentado. Não o fazem,

talvez, por gesto premeditado, mas o fato é que seus textos indicam uma percepção

fina às questões sociais e humanas que os cercavam. E ao fazê-lo, deixaram para nós

uma indelével marca que nos é muito útil para a percepção do mundo de seus dias.

Como foi devidamente exposto ao longo do trabalho, Machado e Lobato foram

contemporâneos, por certo espaço de tempo, mas não o foram no que tange à

criação e à vida produtiva, pois Machado já declinava a vida quando Lobato

começava a viver a sua. Esse paralelo e esse quase-encontro despertaram a atenção

para o fato de ambos terem recebido fortes influências dos processos de Fin-de-

Siècle a partir dos quais tiveram suas próprias visões de mundo formadas. Assim,

147

Machado viveu os períodos de transformação diretamente enquanto Lobato

representa a geração seguinte, a que realmente começou a experimentar os primeiros

resultados práticos das conquistas e dos problemas decorrentes de seus tempos.

Tenho, portanto, algumas conclusões após a elaboração destes estudos, a começar

pela afirmação objetiva de que a leitura feita nos contos de Machado de Assis e de

Monteiro Lobato realmente deixa à mostra toda a influência que sofreram como

pessoas que viveram durante os anos que representam nosso alvo de estudos, o Fin-

de-Siècle. É claro, também, que não teria sido diferente com outros bons autores e

outros modelos de transformação sofrida pela humanidade. Refiro-me ao fato de os

autores serem intérpretes de seu tempo e da História que viveram e ajudaram a

construir. Quero dizer com isso que eles não foram mais espetaculares que nenhum

outro autor por representarem em seus textos o que viveram. Mas poderiam também

ter sido pífios a ponto de pouco transparecerem em seus textos todos os movimentos

e episódios que os cercavam e findaram por influenciar suas vidas particulares e

seus postulados intelectuais e filosóficos.

O fato, o qual certamente é de nosso interesse particular, é que o Fin-de-Siècle e

seus modelos transformadores, com a fragmentação do Eu, com as verdades

tornando-se mais relativas a cada momento, com as inconstâncias e incertezas que

lhe foram peculiares, de fato, aparecem de forma clara nos contos de Machado de

Assis e Monteiro Lobato. Personagens, relações interpessoais, pressupostos, temas

filosóficos, tramas, tudo - com seus sucessos e revezes - tem um ponto de convecção

ao Fin-de-Siècle. O que poderia destacar nesta conclusão como pontos recorrentes

148

que, se devidamente acondicionados, poderiam ser considerados como confirmação

das influências do Fin-de-Siècle e de um Eu fragmentado nos contos de ambos?

De modo direto, podemos listar as seguintes características que são vistas em seus

textos: instabilidade de opiniões e de caráter, demonstrando um ser humano

absolutamente sem referenciais, com seu Eu fragmentado; uma intensa dose de

baixa auto-estima, a partir da qual muitos personagens deixam passar a vida diante

de si numa estranha resignação; por outro lado, demonstrando oscilações de

comportamento, um elevado índice de busca por benefícios e ganhos pessoais,

mesmo em detrimento de outras pessoas ou da felicidade delas; uma dificuldade em

demonstrar ou em ter referências objetivas de relacionamentos com base em ética e

moral; um intenso movimento de clientelismo e favorecimentos sociais; a

relativização de conceitos, deixando-os ao sabor do momento; a Ciência e o

cientificismo como desculpas ou pontos de apoio para a perpetuação da

diferenciação interpessoal; uma exagerada dose de individualismo; um verdadeiro

menosprezo, ou derrocada do ser humano da posição que lhe seria devida; um

possível choque entre a moral e a ética interiores dos autores e as que

exteriorizavam em seus personagens.

Tanto Machado quanto Lobato foram pessoas ativas em seus tempos de vida,

deixando claras marcas do que viviam como funcionário público e empresário

enquanto labutavam nas letras e na cultura nacional. Isso lhes propiciava inigualável

condição de testemunhar fatos e atestar evidências que estavam à vista de todos,

149

mas que somente pessoas de grande sensibilidade poderiam tê-los registrado da

forma que o fizeram.

Percebemos ao longo das análises que as influências sofridas por eles e, portanto,

salientadas em suas obras, foram preponderantes para a formatação de seu caráter

literário. O Eu fragmentado parecia de fato incomodar ambos os autores. Machado,

primeiro com atitudes liberais e depois com atitudes mais independentes, faz do

humor, muitas vezes cínico e até mordaz, uma porta aberta para a entrada num

mundo de perguntas para as quais não necessariamente haveria respostas adequadas.

A impressão constantemente deixada é a de não mais se importar com as coisas,

como o crítico do folhetim, que tece o comentário duro e frio apenas por força do

ofício. Dirigia-se em paralelo a pessoas comuns, que poderiam também ser pessoas

de caráter duvidoso, de gestos pouco éticos, de crises estranhas consigo e com os

demais. Ou seria isso uma forma de mexer com os falsos moralistas e com os

hipócritas de sua época, que, por conta de começarem a apreciar os efeitos da

fragmentação do Eu, abandonavam as regras mínimas de civilidade e de

relacionamento interpessoal?

Lobato, empreendedor, filho bem-nascido e bem situado, nacionalista, defensor do

Brasil e da brasilidade, embora adotasse o modelo americano para o fazer, com fala

e discurso fácil entre adultos e crianças, parece ter entendido que as pessoas tinham

sentimentos. Pelo menos, parece que isso é verdadeiro em seus textos.

Estranhamente a isso, a formação cientificista sugere ter deixado nele a idéia clara

de uma separação ideal entre castas sociais, origens ou raças, o que notamos quando

150

fala de Negrinha ou do negro Timóteo, por exemplo. Ou será isso uma perturbação

proposital provocada no seu leitor, tanto o de ontem quanto o de hoje? Ou quem

sabe Lobato pretendia com isso estabelecer um desconforto no leitor a tal ponto que,

assim, ele poderia reverter a mente de pelo menos mais um ser-leitor ao qual

pudesse atingir com seus textos?

Machado e Lobato parecem inseridos num contexto em que, para falar do mundo,

precisaram sair do mesmo. Precisavam sentir de outra forma, não a forma prática e

corriqueira apenas, mas a forma universal, antropológica, aquela que poderia ser

sentida depois deles, simplesmente pelo acesso aos seus textos, os quais

representavam não o que se via com os olhos da razão comum, mas os do coração.

Não havia melhor meio de nos deixar sua mensagem que através de um legado que

fosse extemporâneo, que sobrevivesse aos tempos e aos homens. Assim trabalharam

outros antes e depois deles, e, graças aos seus esforços, até hoje nos deleitamos com

os textos dos grandes vultos da literatura de todos os tempos, sociedades e

circunstâncias humanas.

Cada vez que temos acesso a Machado e Lobato queremos chegar mais e mais perto

do que eles foram e viveram. Se não os compreendemos bem numa primeira leitura,

temos para nos ajudar uma possível radiografia estética e psicológica de autores de

seu nível, muito bem trabalhada por Pessoa em seu poema Isto:

Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação. Não uso o coração.

151

Tudo o que sonho ou passo, O que me falha ou finda, É como um terraço Sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio Do que não está ao pé, Livre do meu enleio, Sério do que não é. Sentir? Sinta quem lê

(Pessoa, 2006, 43)

O modelo e a estrutura em que Machado e Lobato se viam mergulhados certamente

não lhes permitiu ver de fora o que sofriam. Experimentaram e souberam conviver

com as transformações a que se submeteram. Como todos nós, eles tinham diversos

referenciais, quase todos de culturas diversificadas, como a européia e a norte-

americana. Souberam, contudo, apreciar a arte e a literatura de fora e conseguir falar

delas em português e em brasileiro. Ou seja, falaram ao brasileiro em cultura e em

língua que eles entenderam. E continuamos a entendê-los até hoje.

É comum, num confronto entre culturas, vermos abertamente as perguntas sobre

qual modelo ou paradigma é o melhor. Como sociedade colonizada, geralmente

pensamos que o que vem de fora, da estranja, para utilizar uma boa nomenclatura

lobatiana, é o melhor, o mais correto, o mais saudável. Mas, nesse aspecto, a própria

discussão dos paradigmas ocorrida durante o Fin-de-Siècle nos é salutar, haja vista a

abertura de possibilidades de se reconsiderar as verdades e os axiomas.

Um outro elemento que salta aos olhos nas leituras dos contos de Machado e Lobato

é um sentimento de indefinição ou de mistura de sentimentos. Por um lado, o que é

152

brasileiro, a terra, as pessoas, as instituições, a nação, o brio e tudo que cerca um

povo saltam como possibilidades a serem perseguidas. Ao mesmo tempo, e em

paralelo, a pequena relação de boa vontade e de brasilidade notada nas estruturas

maiores do país deixa claro nas obras que o Brasil enfrentava naqueles tempos - e

continuaria a enfrentar depois, até chegar aos nossos dias - tempos severos e

difíceis. A corrupção, a má vontade com as questões públicas, o clientelismo, o

charlatanismo político e toda sorte de males éticos e morais acanhavam de certa

forma a esperança que por vezes vislumbrava em seus textos.

Com tudo o que foi pesquisado e exposto, posso dizer que tanto Machado de Assis

quanto Monteiro Lobato descreveram de maneira ostensiva o que viveram,

conforme já descrito no início desta conclusão. Fizeram-no cada qual a seu modo e

a seu tempo. Deixaram-nos um farto legado de narrativas de ricos detalhes e enorme

valia. Por outro lado, parece-me que nenhum dos dois teve a intenção de deixar

receituários para que as gerações futuras às suas tivessem menos problemas ou

tivessem prontas as soluções para tudo aquilo que eles próprios tinham vivido e

experimentado. Tudo o que nos deixaram nos serve de base de reflexão e

parâmetros de experimentação que, como referenciais, poderão nos ajudar. No

entanto, a cada geração e a cada tempo da História o homem precisa aprender a lidar

com seus próprios meios os problemas que enfrenta, seus vazios, suas

fragmentações interiores e suas sociedades - muitas vezes, falta de ética e estética.

Afinal de contas, como poderiam eles, que se sentiram fragmentados e sem

parâmetros concretos, em franca definição de pressupostos, dizer para alguém o que

153

fazer? Puderam, no entanto, deixar seus registros e deles podemos avaliar os

benefícios e malefícios vividos e, quem sabe, extraindo boas considerações,

amadurecer nossas atitudes futuras.

É bem verdade que ainda não alcançamos a maturidade em alguns pontos de nossa

carreira humana, mas certamente já crescemos em algo. Hoje vivemos a realidade

de uma sociedade pós-moderna, que se globaliza - ou mundializa, como diriam

alguns - a passos rápidos. Pudemos observar ao longo deste trabalho que boa parte

da estrutura social e interior que vivemos em nossos dias tem seu ponto de partida

nos tempos do Fin-de-Siècle. Ali, as coisas se mostraram mais claras, pois o homem

conseguiu tomar para si a responsabilidade de muitos elementos que antes eram

simplesmente tidos por transcendentes.

Que as amostras desse passado recente do Fin-de-Siècle nos sirvam de exemplo e

modelo e que, a partir de nós, enquanto indivíduos que somos, possamos tomar

como nossa a parte que nos toca encenar nesse grande teatro que é a vida. Creio que

o Fin-de-Siècle ainda não terminou. Não em sua essência mais profunda,

motivadora. Sua evolução continua e suas perspectivas ainda batem à nossa porta.

Cabe agora a cada um descobrir e assumir seu papel, sabendo que toda a sociedade é

um modelo vivo do qual fazemos parte.

O Eu que vivemos está desvalorizado, fragmentado. Seria tolo e singelo afirmar que

toda essa desvalorização se deu isoladamente a partir dos eventos do Fin-de-Siècle,

mas foi nesse período que se percebeu o maior índice concentrado de alterações do

Eu de que temos conhecimento. Na razão humana, a sistematização, quer seja

154

científica, artística, jornalística ou a do senso comum, parece ter sido algo que

ressaltou a desvalorização do Eu e nos permitiu acesso a fatos documentais que nos

ajudaram a entender melhor o que se deu com as pessoas a partir de então.

Talvez o Eu do homem sempre tenha sido desvalorizado e fragmentado, mas o saber

consciente disso é o ponto principal para esta leitura e do que pode vir a partir de

seu entendimento. Talvez algumas das respostas mais primitivas voltem a satisfazer

esse homem de Eu desfigurado.

155

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As referências a seguir tiveram a última verificação de acesso na Rede Mundial de Computadores

(Internet) no dia 20 de julho de 2007.

BELISÁRIO, Roberto. Viena Fin-de-Siècle: política e cultura. Carl E. Schorske. Cia das Letras/Ed. Unicamp, 1988. Resenha. s.l.; s.d. Disponível em <http://www.comciencia.br/resenhas/viena.htm>.

Caso Dreyfus. Enciclopédia Jurídica Soibelman. Disponível em <http://www.elfez.com.br/elfez/Dreyfus.html >

CODINA, Graciela Deri de. Ilusão e mal-estar: um retrato de nós mesmos. In: Revista Mack. Arte - Edição de agosto de 2005, páginas 75 a 79. São Paulo, 2005. Disponível em <http://www.mackenzie.br/editoramackenzie/revistas/eahc/Revista%20Mack.%20Arte%20graciela%20deri%2007.pdf>

DIAS, Edson dos Santos. Resgatando o movimento modernista urbano: a expressão de uma conjuntura histórica que marcou as cidades do Século XX. In: Revista GeoNotas, Universidade Estadual de Maringá, Número 4, Vol. 4. Maringá, 2000. Disponível em <http://www.dge.uem.br//geonotas/vol4-4/dias.shtml>.

DRUMMOND, Virgínia S. O Capital Humano como elemento estratégico para as organizações. 2001. (Palestra em Jornada de Psicologia).

GOMES, Antonio Máspoli de Araújo. Solidão: uma abordagem interdisciplinar pela ótica da Teologia bíblica reformada. In: Revista Fides Reformata 6/1, São Paulo, 2001. Disponível em <http://www.mackenzie.br/teologia/fides/vol06/num01/Maspoli.pdf>

MAGALHÃES, Josiane. O que é consciência crítica? In: Urutágua - revista acadêmica multidisciplinar do Departamento de Ciências Sociais. Ano 1. Número 2. Maringá, UEM, 2001. Disponível em <http://www.uem.br/~urutagua/02_consciencia.htm>

MUNK, Leonardo. Paris, Viena: dois espectros de uma sociedade em crise. Rio de Janeiro, UFRJ, s.d. Disponível em <http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/ensaios/munk.doc>.

NASCIMENTO, Maria Ercília. Linguagem literária e o Rio de Janeiro fin-de-siècle: Trajetos da cidade, trajetos da exclusão. s.l. s.d. Disponível em < http://www.lpp-uerj.net/olped/documentos/ppcor/0253.pdf.>

158

NETO, José Apóstolo. O Discurso Cientificista no Livro a Chave do Tamanho de Monteiro Lobato. In: Revista Digital Art&. Ano II. Número 01. s.l. 2004. Disponível em <http://www.revista.art.br/site-numero-01/trabalhos/pagina/20.htm>

ROCHA, João Cezar de Castro. A formação da leitura no Brasil: esboço de releitura de Antonio Candido. Rio de Janeiro: UFRJ, s.d. Disponível em <http://www.calem.hpg.ig.com.br/leituranobr.htm>.

SILVA, Lorena Dantas da. Caráter e flexibilidade. In: Par’a’iwa – revista de pós-graduação de Sociologia da UFPB. Número 1. João Pessoa, UFPB, 2001. Disponível em <http://chip.cchla.ufpb.br/paraiwa/01-dantasdasilva.html>

159

Textos adicionais recomendados

ANDRADE, Mário de - Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo, Livraria Martins Editora/INL, 1972.

BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão. Trad. Márcio Seligmann-Silva. São Paulo, Edusp, 1993.

BÍBLIA. Sociedade Bíblica Brasileira.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, gestos, formas, figuras, cores e números. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1993.

GRUNBECHT, Hans Ulrich. Space reemerging. Five short reflections on the concepts “Postmodernity” and “Globalization”. In: MATRAGA: Revista do Programa de Pós-graduação em Letras/ Universidade do Estado do Rio de Janeiro. - ano 9, n. 14 - Rio de Janeiro, Caetés, 2002.

HOLANDA, Sérgio Buarque. O espírito e a letra. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

________ Raízes do Brasil, 9a edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1976.

LEWIS C. S. Cartas de um diabo a seu aprendiz. Trad. Juliana Lemos. São Paulo, Martins Fontes, 2005.

MENDES, Candido. (org.). Hégémonie et civilisation de la peur. Rio de Janeiro, EdUCAM, 2003.

SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

160

Anexos

Anexo 1: Paranóia ou mistificação?1

Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem normalmente as coisas e

em conseqüência disso fazem arte pura, guardando os eternos ritmos da vida, e

adotados para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos

grandes mestres. Quem trilha por esta senda, se tem gênio, é Praxíteles na Grécia, é

Rafael na Itália, é Rembrandt na Holanda, é Rubens na Flandres, é Reynolds na

Inglaterra, é Leubach na Alemanha, é Iorn na Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga

na Espanha. Se tem apenas talento, vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam

em torno daqueles sóis imorredouros. A outra espécie é formada pelos que vêem

anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão

estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva.

São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são

frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um

instante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do

esquecimento. Embora eles se dêem como novos precursores duma arte a vir, nada é

mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranóia e com a

mistificação. De há muito já que a estudam os psiquiatras em seus tratados,

documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos

1 Texto de Monteiro Lobato publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo em dezembro de 1917. Texto completo

disponível em http://www.jayrus.art.br/LitBrasil_Simbol_Premoderno.htm>

161

manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios esta arte é sincera,

produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora

deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e absorvidas por

americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo

mistificação pura.

Todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não

dependem do tempo nem da latitude. As medidas de proporção e equilíbrio, na

forma ou na cor, decorrem do que chamamos sentir. Quando as sensações do mundo

externo transformam-se em impressões cerebrais, nós “sentimos”; para que sintamos

de maneira diversa, cúbica ou futurista, é forçoso ou que a harmonia do universo

sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em “pane” por virtude de

alguma grave lesão. Enquanto a percepção sensorial se fizer normalmente no

homem, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato

não poderá “sentir” senão um gato, e é falsa a “interpretação” que do bichano fizer

um “totó”, um escaravelho, um amontoado de cubos transparentes.

Estas considerações são provocadas pela exposição da Sra. Malfatti, onde se notam

acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das

extravagâncias de Picasso e companhia. Essa artista possui um talento vigoroso,

fora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida para má direção, se

notam tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se de qualquer daqueles

quadrinhos como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva,

em que alto grau possui um sem-número de qualidades inatas e adquiridas das mais

162

fecundas para construir uma sólida individualidade artística. Entretanto, seduzida

pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum

impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova

espécie de caricatura.

Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de

outros tantos ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura a regiões onde não

havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma - caricatura que

não visa, como a primitiva, ressaltar uma idéia cômica, mas sim desnortear,

aparvalhar o espectador. A fisionomia de quem sai de uma dessas exposições é das

mais sugestivas. Nenhuma impressão de prazer, ou de beleza, denunciam as caras;

em todas, porém, se lê o desapontamento de quem está incerto, duvidoso de si

próprio e dos outros, incapaz de raciocinar, e muito desconfiado de que o mistificam

habilmente. Outros, certos críticos sobretudo, aproveitam a vaza para épater les

bourgeois. Teorizam aquilo com grande dispêndio de palavrório técnico, descobrem

nas telas intenções e sub-intenções inacessíveis ao vulgo, justificam-nas com a

independência de interpretação do artista e concluem que o público é uma

cavalgadura e eles, os entendidos, um pugilo genial de iniciados da Estética Oculta.

No fundo, riem-se uns dos outros, o artista do crítico, o crítico do pintor, e o público

de ambos.

Há de ter essa artista ouvido numerosos elogios à sua nova atitude estética. Há de

irritar-lhe os ouvidos, como descortês impertinência, esta voz sincera que vem

quebrar a harmonia de um coro de lisonjas. Entretanto, se refletir um bocado, verá

163

que a lisonja mata e a sinceridade salva. O verdadeiro amigo de um artista não é

aquele que o entontece de louvores e sim o que lhe dá uma opinião sincera, embora

dura, e lhe traduz chãmente, sem reservas, o que todos pensam dele por detrás. Os

homens têm o vezo de não tomar a sério as mulheres. Essa é a razão de lhes darem

sempre amabilidades quando pedem opiniões. Tal cavalheirismo é falso, e sobre

falso, nocivo. Quantos talentos de primeira água se não transviaram arrastados por

maus caminhos pelo elogio incondicional e mentiroso? Se víssemos na Sra. Malfatti

apenas “uma moça que pinta”, como há centenas por aí, sem denunciar centelha de

talento, calar-nos-íamos, ou talvez lhe déssemos meia dúzia desses adjetivos

“bombons”, que a crítica açucarada tem sempre à mão em se tratando de moças.

Julgamo-la, porém, merecedora da alta homenagem que é tomar a sério o seu talento

dando a respeito da sua arte uma opinião sinceríssima, e valiosa pelo fato de ser o

reflexo da opinião do público sensato, dos críticos, dos amadores, dos artistas seus

colegas e... dos seus apologistas.

Dos seus apologistas sim, porque também eles pensam deste modo... por trás.

164

Anexo 2: Tabela de comparação simplificada entre os fatos do mundo e os fatos

biográficos de Machado e Lobato, incluindo as bibliografias de ambos.

Tema e Período

Décadas Anos Interesse Geral Interesse Cultural Machado Lobato

1839 - Teoria celular de Scheiden e Schucann

Nasce a 21 de junho, no Rio de Janeiro, Joaquim Maria Machado de Assis, filho legítimo de Francisco José de Assis e Maria Leopoldina Machado de Assis. Pouco se sabe de sua infância: cedo perdeu a mãe e a única irmã; foi amparado, até o segundo casamento do pai, pela madrinha, senhora abastada. Após a morte do pai, ficou em companhia da madrasta, Maria Inês. Talvez tenha sido auxiliar do culto na igreja da Lampadosa.

1850 - Inauguração da linha de vapores do Rio de Janeiro para a Europa. - Lei Eusébio de Queiroz sobre a proibição de tráfico de escravos.

- Fundação da Sociedade Acadêmica Ensaio Filosófico, em São Paulo.

1850-1860

1851 - Guerra do Prata (Brasil, Argentina e Uruguai).

165

1852 - Inauguração do telégrafo. - Voa o primeiro dirigível na França, com Gifford.

- Relatório de Gonçalves Dias sobre a situação da instrução.

1854 - Criação e inauguração da primeira estrada de ferro do Brasil.

- Abertura de livro de registro de solicitações à Biblioteca Nacional. - Abertura de loja de livros de Garnier (Rio de Janeiro). - Abertura da Livraria Clássica, filiada a Bertrand e a Aillaud.

1855 - Hughes cria o telégrafo impressor.

- Loteria de livros na Garnier. - Criação no Rio de Janeiro da escola de Emílio Zaluar.

Publica seu primeiro poema, Ela. Até 1861, colabora na Marmota Fluminense.

1856

Aprendiz de tipógrafo na Tipografia Nacional até 1858.

1857 - Pouncy: Dorsetshire photographically illustrated (primeiro livro ilustrado por fotolitografia).

- Criadas as cadeiras de História e Geografia do Brasil e a de História da Literatura Portuguesa e Nacional (esta no 7º ano) no Pedro II. - Fundação da Associação Culto à Ciência.

1858 - Inauguração da estrada de ferro D. Pedro II.

- Fundação do Instituto Acadêmico - Instituto Científico - Clube Literário. - Catálogo do Gabinete Português de Leitura organizado por Silva Ramalho.

Até 1859 escreve em O Paraíba, de Petrópolis. Auxilia o escritor francês Charles de Ribeyrolles na tradução de O Brasil Pitoresco. Colabora no Correio Mercantil.

166

1859 - Charles Darwin publica A Origem das Espécies - Primeiro poço de petróleo é perfurado, nos EUA. - Kirchhoff e Bunsen lançam a análise espectral. - Monturiol lança o 1º submarino.

- Fundação da Sociedade Ensaios Literários. - Frei Francisco de Mont'Alverne: Compêndio de filosofia (Rio de Janeiro).

Estréia como crítico teatral na revista O Espelho até 1860.

1860 - Eleição de Abraham Lincoln (Estados Unidos da América). - Invenção da fotografia colorida por James Clerk Maxwell. - Primeiro motor a explosão - Levoir.

- Fundação da Academia Pedagógica.

Convidado para redator do Diário do Rio de Janeiro até 1867. Escreve ainda no Diário até 1869. Até 1875, atua como redator de A Semana Ilustrada.

1861 - Início da Guerra da Secessão (Estados Unidos). - Rompimento de relações entre Brasil e Inglaterra (Questão Christie).

Publica Desencantos e Queda que as Mulheres têm para os Tolos.

1862 - Lançamento da Biblioteca Brasileira organizada por Quintino Bocaiúva.

Sócio do Conservatório Dramático Brasileiro, como auxiliar da censura. Até 1863 aparece em todos os números da revista O Futuro.

1863 - Máquina frigorífica - Tellier.

- Fundação do Instituto dos Bacharéis em Letras. - Projeto de uma Associação de Homens de Letras.

Publica o Teatro de Machado de Assis, (duas comédias, O Protocolo e O Caminho da Porta). Até 1878, com interrupção em 1867 e 1868, colabora no Jornal das Famílias.

1861-1870

1864 - Declaração de guerra do Paraguai ao Brasil.

Publica seu primeiro livro de versos, Crisálidas.

167

1865 Estados Unidos: - Assassinato de Abraham Lincoln. Fim da Guerra da Secessão. Libertação dos escravos. - Mendell lança estudos sobre as leis da hereditariedade.

1866 - Relatório relativo à instrução e à Biblioteca Nacional (Almanaque Laemmert). - Propriedade sobre a obra literária pelos herdeiros do autor: 50 anos após sua morte. Depois torna-se de domínio público.

Publica Os Deuses de Casaca. Publica a sua tradução do romance Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo.

1867 - Nobel apresenta a Dinamite. - Máquina de escrever - Sholer e Soule.

1868 - Inauguração de bondes de tração (Rio de Janeiro).

1869

- Classificação periódica dos elementos - Mendeleev.

Casa-se com Carolina Augusta Xavier de Novais, moça portuguesa havia pouco chegada ao Brasil.

1870 - Criação do Partido Republicano (São Paulo). - Fim da Guerra do Paraguai.

- Inauguração das corridas de cavalos, às quais o bibliófilo Martius atribuía o desaparecimento do gosto pela leitura.

Começa a publicar no Jornal da Tarde uma tradução do romance Olivier Twist, de Dickens. Publica Falenas e Contos Fluminenses.

168

1871 - Lei do ventre livre. - Organização, no antigo Hospital da Ordem Terceira do Carmo (Rio de Janeiro), dos livros trazidos na bagagem da Família Real.

- Criada a Escola Americana - Mackenzie. - Criada a Biblioteca Pública de Porto Alegre. - Aberto ao público o Gabinete de Leitura de Pernambuco.

1872 - Autorização ao Visconde de Mauá para construção de cabo submarino entre Brasil e Portugal. - Primeiro recenseamento no Brasil

- Chegada ao Brasil de Francisco Alves de Oliveira, sobrinho de Nicolau Alves, da Livraria Clássica. - Novas instruções para o despacho alfandegário de livros impressos.

Publica Ressurreição (romance). Faz parte da Comissão do Dicionário Marítimo Brasileiro

1873 - Fundação da Tipografia Franco-Americana de Batista Luís Garnier (curta duração). - Centrais hidrelétricas - Berger.

- Lançamento da Biblioteca Universal e da Biblioteca de Algibeira que publica Musset, Droz, Gauthier, Sardou,Verne, Montepin, Gaboriau até 1875.

Publica Histórias da Meia-Noite e a tradução de Higiene para uso dos Mestres-Escolas, do Dr. Gallard. Nomeado primeiro-oficial da Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas.

1871-1880

1874 - Inauguração da iluminação a gás (Rio de Janeiro). - Inauguração do cabo submarino entre Brasil e Europa. - União por telégrafo das províncias do norte com a Corte. - Início da comercialização da máquina de escrever por E. Remington.

- Plágio teatral de O Guarany por Vicente Coaracy e Pereira da Silva, com música de Carlos Gomes e sob protestos de Alencar.

Publica, em O Globo, o romance A Mão e a Luva.

169

1875 - Cromossomos - Strosburger e Fleming.

- 15º aniversário da Sociedade Brasileira de Ensaio Literários, comemorado com a oferta de A mão e a Luva, de Machado, e discurso de Fagundes Varela.

Publica Americanas.

1876

- Alexander Graham Bell inventa o telefone.

Até 1878, escreve em todos os números da revista Ilustração Brasileira. Publica em O Globo o romance Helena. É promovido a chefe de seção da Secretaria de Agricultura.

1877 - Thomas Edison inventa o microfone e o fonógrafo. - Otto lança o motor de quatro tempos.

1878 - Iluminação elétrica - Thomas Edison.

Publica, em O Cruzeiro, o romance Iaiá Garcia.

1879

Escreve na Revista Brasileira onde publica o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas. Escreve na revista A Estação onde publica o romance Quincas Borba.

1880 - Revolta do vintém (Rio de Janeiro). - Fundação da Sociedade Brasileira contra a Escravidão. - Fundação da Associação Central Abolicionista.

170

1881 - Reforma Saraiva: estabelecimento do voto universal. - Fundação da Sociedade Central de Imigração.

- Congrès Pèdagogique em Paris (após a guerra de 70, que a França perde, a vitória alemã é creditada à Educação alemã). - A Gazeta de Notícias oferece a seus assinantes de 6 meses ou o Almanaque do jornal ou livros de autores contemporâneos: França Jr., Araripe, Júlio Verne, José do Patrocínio.

Publica em volume as Memórias Póstumas de Brás Cubas.

1881-1890

1882 - abril e setembro: Rui Barbosa dá pareceres sobre a Instrução Pública à Câmara.

Publica Papéis Avulsos.

18 de Abril: nasce numa chácara de Taubaté, zona rural do rio Paraíba, São Paulo, José Renato Monteiro Lobato, filho primogênito de José Bento Marcondes Lobato e Olímpia Augusta Monteiro Lobato, e neto de José Francisco Monteiro, “Visconde de Tremembé” herdeiro da Fazenda Buquira. Desde pequeno é chamado pela mãe e familiares por “Juca”. É criado entre a fazenda Santa Maria, em Ribeirão das Almas, e a residência, em Taubaté.

171

1883 - Início da Questão militar. - Organização da Confederação Abolicionista.

- Congresso da Instrução Pública no Rio de Janeiro sob presidência do Conde d’Eu. - Fundação da Associação dos Homens de Letras.

1884 - Libertação dos escravos no Ceará e Amazonas.

Publica Histórias sem Data.

1885 - Emancipação dos escravos de mais de 60 anos através da Lei de Saraiva-Cotegipe (Lei dos Sexagenários). - Gottlieb e Daimler produzem o primeiro carro movido a gasolina

1886 - Fundação da Sociedade Promotora da Imigração. - Estabelecimento na convenção de Berna da proteção internacional dos direitos de autor.

- Representante de Aliança Francesa no Brasil. - Invenção do linotipo por Ottmar Mergenthaler.

Sai o volume Terras, Compilação para Estudo.

1887 - Recusa do Exército em ser utilizado para captura de escravos fugidos. - Ondas eletromagnéticas - Herth.

1888 - Abolição da escravatura. - Eastman lança o filme fotográfico.

- Vinda de Ramalho Ortigão ao Brasil para inaugurar a nova sede do Gabinete Português de Leitura. - Abertura do Colégio Sion do Rio de Janeiro.

1889 - Proclamação da República.

- Transformação da Editora Corazzi em Companhia Nacional Editora.

172

1890 - Crise do encilhamento. - Convocação e eleição da Constituinte.

- Criação da Sociedade dos Homens de Letras.- Suprime-se o ensino religioso nas escolas públicas - São Paulo.

1891 - Promulgação da Constituição. Deodoro da Fonseca: - Eleito com Floriano Peixoto. - Fecha o Congresso - Renuncia - Floriano Peixoto toma posse.

Publica em volume o Quincas Borba.

1892

- Grande greve ferroviária na Central do Brasil.

Passa a diretor-geral do Ministério da Viação.

1893

- Revolta da armada. - Revolução federalista no sul. - Elster e Geitel lançam a célula fotoelétrica. - Diesel lança o motor que leva seu nome.

1891-1900

1894

- Eleição e posse de Prudente de Morais. - Invasão do Rio Grande do Sul pelas forças federalistas: capitulação dos rebeldes.

173

1895

- Primeiras expedições contra Canudos. - Röentgen descobre o raio-X. - Os Lumière constroem o aparelho cinematográfico. - Popov e Marconi apresentam o telégrafo sem fio. - Criação do Nobel da Paz.

Até 1898, escreve na Revista Brasileira.

1896

- Novas expedições contra Canudos. - Primeiros Jogos Olímpicos modernos, em Atenas. - Becquerel: a radioatividade do Urânio.

- A Lei No 489, de 29 de dezembro de 1896 “torna obrigatório o ensino da língua nacional”.

Publica Várias Histórias. Aclamado para dirigir a primeira sessão preparatória da fundação da Academia Brasileira de Letras, tem importante papel em sua criação e o preside até morrer.

1897

- Destruição de Canudos.

- Fundação da Academia Brasileira de Letras.

1899

Publica Dom Casmurro e Páginas Recolhidas.

1900

- Início da política dos governadores no Brasil.

1901

Publica Poesias Completas.

1902

- Eleição de Rodrigues Alves. - Radiofonia - Stubbefield.

Passa a diretor-geral de Contabilidade do Ministério da Viação.

1901-1910

1903 - Transmissão de imagens por telégrafo - Korn.

174

1904

- Revolta popular contra medidas sanitárias (Rio de Janeiro).

- Impressão off-set.

Publica Esaú e Jacó. Morre Carolina dias antes de completarem 35 anos de casados.

1905

- Queda nos preços internacionais do café. - Einstein: Teoria da Relatividade. - Marconi lança a antena de rádio.

1906

- Conferência Interamericana (Rio de Janeiro). - Santos Dumont voa com o 14 Bis.

Publica Relíquias de Casa Velha.

1907

- Aprovação de lei que permite expulsão de estrangeiros acusados de agitação. - Irmãos Lumière inventam a fotografia colorida.

- Picasso e Braque inventam o cubismo.

1908

- Aprovação de lei do Serviço Militar Obrigatório. - Teoria dos vôos interplanetários - Tsiolkovsky.

Publica Memorial de Aires. Entra em licença para tratamento de saúde. Na madrugada de 29 de setembro, às 3h20min, morre em sua casa, à Rua Cosme Velho, 18. É sepultado como tinha pedido, na sepultura de Carolina, jazigo perpétuo 1359, Cemitério de São João Batista.

1909

- Disputa da presidência por Hermes da Fonseca e Rui Barbosa na campanha civilista.

- Marinetti publica o Manifesto Futurista

175

1910

- Vitória de Hermes da Fonseca. - Início dos governos das salvações nacionais. - Revolta da Chibata no Rio de Janeiro.

1911

- Francisco Alves compra a massa falida da Laemmert. - Estrutura planetária do átomo - Rutherford. - Teoria cromossômica da hereditariedade - Morgan.

1912

- Paralisação de 10 mil trabalhadores em greves operárias (São Paulo).

1913

- Decreto de Estado de sítio. - Ford desenvolve a linha de produção nas suas fábricas.

1914

- Eleição e posse de Venceslau Brás.

Publica Velha Praga e Urupês em O Estado de São Paulo.

1915

- Protestos operários contra a Primeira Guerra Mundial.

- Griffith filma O Nascimento de Uma Nação, primeiro longa-metragem com tons modernos.

1911-1920

1916

- Criação da Liga de Defesa Nacional.

Colabora na Revista Brasil.

176

1917

- Grandes greves operárias (São Paulo). - Bombardeio de navio brasileiro na costa francesa, resultando em declaração de guerra à Alemanha. - Começa a Revolução Russa.

Funda, em Caçapava, a revista Paraíba. Organiza para O Estado de S. Paulo uma pesquisa sobre o Saci. Publica crítica desfavorável à exposição de pintura de Anita Malfati.

1918

- Fim da Primeira Guerra Mundial. - Eleição de Rodrigues Alves. - Estudos sobre os elétrons - Thomson.

Compra a Revista Brasil. Publica em volume Urupês. Funda a Editora Monteiro Lobato & Cia. com o título O Problema Vital. Publica O Saci-Pererê.

1919

- Eleição de Epitácio Pessoa e derrota de Rui Barbosa. - Assinatura do Tratado de Versalhes. - Fundada a Liga das Nações.

Rui Barbosa evoca a figura do Jeca Tatu. Publica Cidades Mortas e Idéias do Jeca Tatu.

1920

Publica Narizinho Arrebitado e Negrinha.

1921

- Grandes greves (Rio de Janeiro e São Paulo). - Telefotografia - Belin.

Publica O Saci, Fábulas de Narizinho e A Onda Verde.

1922

- Posse de Arthur Bernardes. - Motim no Forte de Copacabana. - Criação do Partido Comunista (Rio de Janeiro).

- Semana de Arte Moderna (São Paulo)

Publica O Marquês de Rabicó e Fábulas.

1921-1930

1923

- Revolução libertadora (Rio Grande do Sul).

177

1924

- São Paulo sofre bombardeamento aéreo durante a revolta tenentista. - Começa a Coluna Prestes.

Incorpora à sua editora uma moderna gráfica. Publica A Caçada da Onça, Jeca Tatu, O Garimpeiro do Rio das Garças e Mundo da Lua.

1926

- Posse de Washington Luís (Getúlio Vargas é Ministro da Fazenda).

Publica em folhetim O Presidente Negro e How Henry Ford is regarded in Brazil.

1927

- Lindenberg realiza a primeira travessia aérea do Atlântico. - Cinema sonoro é apresentado.

Nomeado adido comercial brasileiro em Nova York para onde se muda. Planeja a fundação da Tupy Publishing Company. Publica As Aventuiras de Hans Staden e Mr. Slang e o Brasil.

1928

- Eleição de Getúlio Vargas para governo do Rio Grande do Sul. - Stálin assume o poder na União Soviética.

Organiza uma empresa brasileira para produzir aço. Publica O Noivado de Narizinho, Aventuras do Príncipe, O Gato Félix e Cara de Coruja.

1929

- Quebra da Bolsa de Valores de Nova York - Disputa da Presidência por Getúlio Vargas e Júlio Prestes.

Perde tudo o que tem na quebra da Bolsa de Nova York. Publica O Irmão de Pinóquio e O circo de Escavalinho.

1930

- Vitória de Júlio Prestes. - Assassinato de João Pessoa. - Revolução e golpe de Getúlio Vargas. - Dissolução do Congresso.

Vende suas ações da Companhia Editora Nacional para cobrir perdas com a Bolsa. Publica A Pena do Papagaio e Peter Pan.

178

1931

- Queima de café para manutenção de preço.

Funda a Companhia de Petróleo do Brasil. Organiza a publicação de várias histórias infantis no volume Reinações de Narizinho. Sai O Pó de Pirlipimpim.

1932

- Promulgação de leis trabalhistas pelo Governo Federal. - Revolução Constitucionalista (São Paulo). - Conquista do direito de voto pelas mulheres brasileiras. - Microscópio eletrônico - Knoll e Ruska.

Publica Viagem ao Céu e América.

1933

- Início do New Deal nos EUA. - Hitler torna-se o 1o ministro alemão.

Publica História do Mundo para Crianças, Caçadas de Pedrinho e Na Antevéspera.

1934

- Eleição de Getúlio Vargas pela Assembléia Constituinte. - Promulgação da nova Constituição.- Fundação da Universidade de São Paulo.

História do Mundo para Crianças sofre críticas e censura da Igreja Católica. Publica Emília no País da Gramática.

1931-1940

1935

- Aprovação da Lei de Segurança Nacional. - Insurreição comunista (Natal e Recife). - Prisão dos militares revoltosos. - Invenção do radar - Wattson-Watt.

Publica Aritmética da Emília, Geografia de Dona Benta, História das Invenções.

179

1936

- Criação do Tribunal de Segurança Nacional. - Guerra Civil Espanhola. - Primeira transmissão televisiva, na Inglaterra.

Ingressa na Academia Paulista de Letras. O governo proíbe e recolhe o recém-publicado O Escândalo do Petróleo. Publica Dom Quixote das Crianças e Memórias de Emília.

1937

- Golpe de Getúlio Vargas. - Nova Constituição. - Estado Novo. - Criação do Instituto Nacional do Livro

- Conferência sobre Evaristo da Veiga, no Instituto Histórico (12 de maio).

Publica O Poço do Visconde, Serões de Dona Benta e Histórias de Tia Nastácia.

1938

- Tentativa de golpe integralista. - Início da legislação sobre livro didático.

Cria a União Jornalística Brasileira. Publica O Museu de Emília.

1939

- Início da Segunda Guerra Mundial: ocupação alemã da Polônia. - Fim da Guerra Civil Espanhola. - Fissão do Urânio - Hahn e Meitner.

Publica: O Picapau Amarelo e O Minotauro.

1940

- Segunda Guerra Mundial: invasão alemã da Noruega, Dinamarca, Holanda, Bélgica e França. - Assassinato de Leon Trotsky no México. - Instituição do Salário Mínimo no Brasil.

- Charles J. Fox Bunbury: Narrativa de viagem de um naturalista inglês ao Rio de Janeiro e Minas Gerais (1833-1835) (Anais da Biblioteca Nacional).

Recusa convite de Vargas para dirigir o Ministério de Propaganda. Pelo teor de sua carta-resposta, é tido por subversivo e desrespeitoso.

180

1941

- Fundação da Companhia Siderúrgica Brasileira. - Ataque japonês a Pearl Harbour: entrada dos EUA na Guerra. - Primeiro avião de turborreator - Wittle.

Preso pelo Estado Novo. Publica O Espanto das Gentes e A Reforma da Natureza.

1942

- Declaração de guerra do Brasil à Alemanha e Itália.

Publica A Chave do Tamanho.

1943

- Visita de Franklin D. Roosevelt ao Brasil. - Instituição da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

É realizada uma grande comemoração pelos 25 anos de publicação de Urupês.

1944

- Desembarque aliado na Normandia - Dia D.

Recusa indicação para a Academia Brasileira de Letras. Publica Um Sonho na Caverna, Os Doze Trabalhos de Hércules e 2 volumes de A Barca de Gleyre.

1941-1950

1945

- Fundação dos partidos políticos. - Deposição de Getúlio Vargas. - Eleição de Gaspar Dutra. - Fim da Segunda Guerra Mundial (Europa). - EUA lançam bombas atômicas no Japão. Fim da Guerra na Ásia.

Convidado pelo PCB para integrar a bancada de candidatos. Recusa, mas saúda Prestes. Integra a delegação de escritores paulistas no Congresso Brasileiro de Escritores. Fica famosa a entrevista em que exige a democracia no país.

181

1946

- Posse Gaspar Dutra. - Instalação da Assembléia Nacional Constituinte. - Promulgação da nova Constituição.

Contrário à fundação do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Publica Prefácios e Entrevistas.

1947

- Eleições estaduais em todo o Brasil. - Proibição do Partido Comunista Brasileiro (PCB). - Rompimento das relações Rússia-Brasil. - Proibição da CGT. - Avião supersônico - Ind. Bell.

Publica Zé Brasil e La Nueva Argentina.

1948

- Cassado o mandato dos parlamentares eleitos pelo PCB. - Criado o Clube do Livro. - Criação do Estado de Israel. Criação do transistor - Barden e Brattain.

Sofre, em abril, um primeiro espasmo vascular que afeta sua motricidade. Na madrugada de 5 de julho, morre. Seu corpo é velado na Biblioteca Municipal SP) e o sepultamento realiza-se no Cemitério da Consolação. Postumamente foram publicados os textos inéditos: Literatura de Minarete; Conferências, Artigos e Crônicas; Cartas Escolhidas (em 2 volumes); Crítica e Outras Notas; Uma Fada Moderna; A Lampréia; No Tempo de Nero; A Casa de Emília e O Centaurinho.

182

1949

- Candidatura de Getúlio Vargas. - Soviéticos explodem sua primeira bomba atômica. - China torna-se comunista. - Assinado o Tratado do Atlântico Norte (Otan).

1950

- Inauguração do Maracanã (Rio de Janeiro). - Começa a Guerra da Coréia. - Vargas é eleito presidente.

- Inauguração da TV Tupi (São Paulo).

Exclusivamente para este quadro: http://www1.uol.com.br/bibliot/linhadotempo/index5.htm http://www1.uol.com.br/bibliot/linhadotempo/index6.htm