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Universidade Federal do Rio de Janeiro Tradução comentada da Vida de Calígula do De Vita Caesarum, de Suetônio Braulio Costa Pereira 2016

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Tradução comentada da Vida de Calígula do De Vita Caesarum, de Suetônio

Braulio Costa Pereira

2016

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Letras

Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

Tradução comentada da Vida de Calígula do De Vita Caesarum, de Suetônio

Braulio Costa Pereira

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Letras Clássicas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro como

quesito para a obtenção do Título de Mestre em

Letras Clássicas.

Orientador: Prof. Dr Anderson de Araújo Martins

Esteves

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2016

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Faculdade de Letras

Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

Tradução comentada da Vida de Calígula do De Vita Caesarum, de Suetônio

Braulio Costa Pereira

Prof. Dr. Anderson de Araújo Martins Esteves

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Clássicas, da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Clássicas.

Rio de Janeiro, 29 de fevereiro de 2016

_____________________________________________________________________

Orientador, Prof. Dr. Anderson de Araújo Martins Esteves - UFRJ

_____________________________________________________________________

Prof. Dr. Amós Coelho da Silva – UERJ

_____________________________________________________________________

Profª. Drª Arlete José Mota – UFRJ

_____________________________________________________________________

Profª. Drª. Fernanda Messeder de Moura – UFRJ, Suplente

_____________________________________________________________________

Profª. Drª Regina Maria da Cunha Bustamante - UFRJ, Suplente

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Agradeço

A Deus;

Aos meus pais Maria e Oscar, minha irmã Barbara, minha tia Maria do Socorro e demais familiares pelo constante apoio;

Aos amigos que fiz na faculdade, que são também familiares;

A todos os professores que me ajudaram a chegar até aqui, desde a infância;

A Anderson Martins, que me orientou na Academia e na vida;

À UFRJ por tudo o que me proporcionou;

Aos professores da banca, pela paciência;

Àqueles que minha memória falha em reconhecer, mas não meu coração.

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Pereira, Braulio Costa

Tradução comentada da Vida de Calígula do De Vita

Caesarum, de Suetônio / Braulio Costa Pereira. - Rio de

Janeiro: UFRJ, 2016.

vii, 114 f. ; 30 cm.

Orientador: Anderson de Araújo Martins Esteves.

Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em

Letras Clássicas, 2016

Referências bibliográficas: f. 122-124.

1. Suetônio. De Vita Caesarum Liber IIII – Tradução para

o Português. I. Esteves, Anderson de Araújo Martins. II.

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras.

III. Título.

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RESUMO

Tradução comentada da Vida de Calígula do De Vita Caesarum, de Suetônio

Braulio Costa Pereira

Prof. Dr. Anderson de Araújo Martins Esteves

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação

em Letras Clássicas, da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro

como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras

Clássicas.

O presente trabalho apresenta uma proposta de tradução e comentários da Vida de

Calígula, biografia que faz parte do conjunto de doze biografias escritas por Suetônio

no século II d.C., conhecidas como De Vita Caesarum. Além da tradução e dos

comentários, são apresentadas reflexões a respeito do contexto histórico e literário de

produção da biografia e a respeito da biografia enquanto gênero literário na Roma

Antiga.

Palavras Chave: De Vita Caesarum, Suetônio, Calígula, Biografia, Tradução

Page 7: Universidade Federal do Rio de Janeiro - Pós Clássicas Letras · Tradução comentada da Vida de Calígula do De Vita Caesarum, de Suetônio Braulio Costa Pereira 2016 . Universidade

ABSTRACT

A commented translation of the Life of Caligula from Suetonius’ De Vita Caesarum

Braulio Costa Pereira

Prof. Dr. Anderson de Araújo Martins Esteves

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação

em Letras Clássicas, da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro

como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras

Clássicas.

ABSTRACT

This work presents a translation and comments proposition of the Life of Caligula, part

of the twelve biographies written by Suetonius on the II century A.D., known as De

Vita Caesarum. Other than the translation and the comments, reflections on the

historical and literary context of this biography and on the biography as a genre in

Ancient Rome are presented.

Keywords: De Vita Caesarum, Suetonius, Caligula, Biography, Translation

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SUMÁRIO

1 Introdução...................................................................................................................................9

2 O contexto histórico da obra de Suetônio..................................................................................12

2.1 O Império Romano e o sistema do Principado........................................................................13

2.2 Suetônio..................................................................................................................................20

3 A biografia enquanto gênero literário.......................................................................................25

3.1 Gêneros textuais na Antiguidade Clássica.............................................................................25

3.2 Historiografia e biografia em Suetônio: fronteiras entre gêneros..........................................32

4 Texto e tradução........................................................................................................................45

5 Conclusão................................................................................................................................118

6 Referências Bibliográficas.......................................................................................................122

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1 Introdução

No presente trabalho, nos propusemos a fazer uma tradução com comentários da

biografia de Calígula, parte integrante do conjunto de doze biografias de líderes romanos

escritas por Suetônio no século II d.C., e conhecidas em português como “Vidas dos Doze

Césares” – De Vita Caesarum, no original.

A relevância desse trabalho reside nas questões que são levantadas através das

reflexões feitas sobre o estilo do texto, pouco dado a malabarismos literários. Assim, ao

longo da tradução da vida de Calígula, procurou-se sempre manter o estilo mais próximo

daquilo que Suetônio tentou utilizar em latim – uma linguagem simples, seca, sem

rebuscamentos, mas nem por isso chã ou desprovida de ornamento. A tradução tentou

simular a maneira como Suetônio parece tentar apagar as marcas de sua própria escrita,

deixando que os fatos se apresentem, sumarizando o ocorrido quase sem fazer uso das

estruturas típicas de um texto narrativo. As rubricas de que o autor faz uso, ao colocar um

substantivo relevante logo no início das seções de anedotas que tratam de determinado

assunto, também foram respeitadas, mas é preciso ter em mente que a liberdade de

posicionamento das palavras em língua portuguesa não é tão grande quanto a que existe

em língua latina, o que muitas vezes exigiu algumas adaptações. Em nosso trabalho

também foram consultadas outras traduções, não somente em língua portuguesa, como

também em francês e inglês. Lembramos que a última tradução brasileira do De Vita

Caesarum foi a de Sady-Garibaldi, datada de 1937, que apresentou várias reedições.

Os comentários acrescentados à tradução possuem diversas motivações. Em

primeiro lugar, procurou-se fornecer explicações ligadas ao uso de vocábulos incomuns

na língua portuguesa, geralmente relacionados a realidades sociais e históricas que já não

fazem parte do cotidiano das pessoas no século XXI, e que podem acabar trazendo ao

texto um caráter enigmático que Suetônio não pretendia lhe conferir. Assim, forneceram-

se explicações sobre estruturas governamentais, eventos sociais, objetos ligados ao dia a

dia dos romanos do período imperial, termos ligados a práticas religiosas que já não são

facilmente reconhecidos pelos leigos, e principalmente sobre o vocabulário técnico de

que Suetônio parece muitas vezes abusar ao longo do texto.

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Além disso, a própria natureza erudita do autor fez com que ele buscasse não se

tornar repetitivo. Assim, como a vida de Calígula é o quarto texto de uma série de doze,

algumas referências que foram devidamente explicadas em biografias anteriores como a

de Tibério acabaram sendo suprimidas pelo autor na biografia de Calígula. Uma vez que

esse trabalho não se propõe a apresentar a tradução das doze biografias, alguns

esclarecimentos se fazem necessários.

Por fim, Suetônio também aparenta ter em mente o tipo de leitor que vai se

interessar por sua obra: sendo ele um membro da ordem equestre, um dos integrantes do

círculo literário de Plínio, que incluiu os principais autores de renome da época como o

historiador Tácito, e, à época da publicação do De Vita Caesarum, já um autor

devidamente estabelecido e experimentado, ele sabia que seu público leitor seria

constituído por membros da ordem senatorial e da ordem equestre – a aristocracia romana.

Esses leitores já teriam tido acesso a um nível de educação e envolvimento nas esferas

políticas e sociais de Roma que dispensaria a explicação, muitas vezes até mesmo a

menção a fatos históricos de importância. Mas o que antes era lugar-comum na Roma

Antiga, acaba por se tornar obscuro no século XXI. Esses comentários também tem a

função de preencher as lacunas deixadas por Suetônio de que o leitor não teria como saber

mesmo tendo lido as doze biografias. Suetônio é talvez um dos autores cuja tradução

exige ser comentada, sob a pena de o texto traduzido e desprovido de aparato crítico

fornecer ao leitor a falsa impressão de que a matéria tratada é um assunto para iniciados,

quando na verdade o autor tentou fazer com que seu texto fosse o mais simples possível

a falar daqueles mesmos assuntos, sobretudo se comparado a escritores de outros gêneros

como a historiografia.

A partir da tradução, foi impossível não se questionar a singular natureza das

biografias de Suetônio dentro do contexto histórico e literário em que se inserem. Por

exemplo, o fato de, não muito tempo antes da publicação dos primeiros livros do De Vita

Caesarum, Tácito ter publicado também textos pertencentes ao gênero historiográfico que

tratavam quase exatamente do mesmo período, leva-nos a questionar a relação de

contraste que pode ter sido formada entre os dois textos, e mesmo entre os dois autores,

pela necessidade que Suetônio teve de tornar seu trabalho diferente daquilo que Tácito já

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havia logrado escrever. Basicamente, a relação que se formou entre o trabalho do

historiógrafo e o trabalho do biógrafo.

Com isso, foi necessário buscar outros exemplos de biografia ao longo do

processo de constituição desse gênero na literatura latina para entender que tipo de

expectativas foram confirmadas ou subvertidas na escrita do De Vita Caesarum e como

essas expectativas dialogam com o cânone literário da antiguidade – uma análise que se

torna ainda mais complexa e interessante pelo fato de o gênero biográfico não ser

reconhecido formalmente como tal por nenhum dos autores da antiguidade clássica, tanto

grega quanto latina, cujos textos se dedicaram a tratar de gêneros literários.

Também o contexto histórico apresenta uma óbvia relevância para a obra de

Suetônio. Tendo ocupado cargos públicos de importância ao longo dos governos de

Trajano e Adriano, e fazendo parte do círculo literário de Plínio, que apresentava fortes

opiniões sobre a maneira adequada de governar o Império, ele não teria como ficar isento

de uma certa carga ideológica que pode transparecer em muitas de suas biografias,

principalmente aquelas que assumem um tom crítico mais acentuado. Muito embora

Suetônio não se subscreva à tradição de escrita biográfica filosófica (baseada nas ideias

dos filósofos peripatéticos), cujas principais aspirações incluíam fazer uma crítica moral

dos biografados, parece-nos que o uso de estruturas anedóticas para a melhor exposição

do caráter dos imperadores derivaria das práticas empregadas por essa mesma tradição.

Assim, o tom superficialmente imparcial de Suetônio não impede que se veja nas

entrelinhas uma opinião geral que o autor apresenta sobre os assuntos tratados. Esperamos

que a biografia de Calígula consiga demonstrar essa hipótese de maneira satisfatória.

O presente trabalho foi resultado de uma pesquisa que na verdade se iniciou antes

mesmo de meu curso de mestrado, uma vez que comecei a me interessar pela biografia

de Calígula ainda durante a graduação. Os primeiros resultados da pesquisa foram

essenciais para o desenvolvimento do que agora se segue. A tradução foi feita com base

no texto latino estabelecido por Henri Ailloud na edição Les Belles Lettres de 1931.

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2 O Contexto histórico da obra de Suetônio

Qualquer análise que se pretenda séria sobre uma obra literária tem de lidar com

o problema do contexto. Independentemente da posição teórica da qual se parte, nenhum

estudioso pode ficar alheio ao fato de que a obra literária não existe no vácuo, e que,

embora análises que se limitam apenas ao texto sejam perfeitamente possíveis, e em

alguns casos até mesmo recomendadas, algumas obras parecem exigir que se leve em

consideração o contexto de produção, o contexto de recepção e as implicações que esses

contextos podem trazer à leitura.

No caso de um texto da literatura latina, marcado antes de qualquer coisa pela sua

distância no eixo temporal em relação a nós, parece temerário debruçar-se sobre as obras

sem uma tentativa prévia de compreender o contexto que as ajudou a produzir. É leviano

achar que as mentes do século XXI são capazes de compreender os conflitos sociais da

República Romana, ou o drama do esfacelamento do Império, ou as relações familiares

entre senhores e escravos sem que haja um estudo razoavelmente aprofundado daquilo

que norteia as aflições das pessoas que viveram essas épocas. Apesar de sermos, enquanto

membros da civilização ocidental, os descendentes desses indivíduos, e ainda

carregarmos em nossas mentes muitas das questões que não foram respondidas por seus

pensadores originais (ou que foram respondidas diversas vezes, de maneiras diferentes),

a distância temporal nos impede de alcançar com propriedade aquilo que buscamos: o

outro. Toda tentativa de nos identificarmos com esse outro está fadada ao fracasso – o

que não nos escusa de tentar.

Pensando nessas questões, não seria possível iniciar uma análise da obra de

Suetônio sem antes tentar caracterizar, minimamente, o ambiente em que sua obra se

desenvolveu. Essa análise, é claro, não pode ser exaustiva, pois, do contrário, pode correr

o risco de perder o seu foco. Assim, tendo em conta que Suetônio foi um autor do século

II d. C., um cavaleiro romano, e que sua obra procura compreender e definir o

comportamento de diversos líderes políticos que foram chamados de ‘Césares’, é

necessário entender o que um homem do século II d. C., com acesso a uma educação que

poucos tiveram em seu tempo, entendia quando falava de um ‘César’. Seria o César um

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imperador? Mas o que é um imperador, afinal? No que ele difere de um ditador ou de um

rei do oriente? Como funciona a estrutura do seu governo? Até onde se estende sua

autoridade (política e geograficamente)? Mais do que isso, o imperador sempre foi o

mesmo? Será que Calígula, cuja biografia vamos traduzir, tinha os mesmos direitos e

deveres, tinha de lidar com as mesmas expectativas que os governantes da época de

Suetônio, como Trajano e Adriano?

E quais seriam os interesses de Suetônio em trazer à tona as biografias desses

líderes? Seria um simples exercício de erudição? Poderíamos falar aqui numa obra de

propaganda? Talvez numa obra que procura ser didática, apresentando exemplos do que

se deve ou não fazer quando se chega ao poder como imperador? Aliás, será que os futuros

imperadores leriam sua obra?

Todas essas questões serão abordadas nas linhas que seguem. Espera-se, com isso,

recriar o contexto de produção da obra de Suetônio, de modo a deixar mais claro aquilo

de que falaremos durante a tradução da Vida de Calígula.

2.1 O Império Romano e o Sistema do Principado

Levando em conta que a obra de Suetônio não só foi produzida no contexto

histórico do Império, mas também se dedica a trabalhar com a própria noção de César,

cabe aqui tentar compreender o que foi esse sistema de governo e como defini-lo. A

definição ideal para a análise da obra de Suetônio seria aquela que o próprio Suetônio nos

fornecesse. Mas, infelizmente, não fazia sentido para ele buscar uma definição de Império

ou uma definição de César. Tais categorias estavam relativamente claras no pensamento

do homem romano, sobretudo na época em que Suetônio viveu, quando o governo dos

Césares já era reconhecido como o poder oficial havia quase dois séculos. Falar dos

Césares era algo comum, tido como natural. Não havia necessidade de buscar uma

definição teórica para o assunto.

Isso faz com que nós, estudiosos do século XXI, tenhamos de nos valer de

trabalhos teóricos sobre o assunto que procurem esclarecer o que o senso comum dos

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homens daquela época entendia por Império, e como um César poderia ser reconhecido

legitimamente como tal.

Não é surpresa para ninguém o fato de que uma tentativa de definição sobre uma

categoria tão abstrata quanto o “Império” cause perplexidade: para começar, o termo

apresentava definições diversas para os próprios romanos1. Consultando o Dictionnaire

Etymologique de La Langue Latine, de Ernout & Meillet, é possível compreender de

maneira mais clara a evolução dos diferentes significados do termo:

Imperium designa o poder soberano (por exemplo, o do pai de família sobre

seus filhos, do senhor sobre seus escravos), imperare quer dizer “comandar

como senhor”. Daí, na linguagem política, o sentido de imperium “comando,

poder soberano de tomar todas as medidas de utilidade pública, mesmo fora

das leis2 (ERNOUT&MEILLET, 1951: 74)

Com essa definição, já é possível deixar de lado os usos mais corriqueiros de

imperium enquanto “ordem”, “comando”, que não nos servem para trabalhar com o termo

do ponto de vista político. A noção de comando militar é menos facilmente deixada de

lado, mas também é menos importante no momento. Cabe aqui entender o imperium como

o poder soberano exercido na esfera política, um poder tão absoluto que poderia até

mesmo ignorar as leis. Mas, para nossa frustração, essa definição ainda é muito vaga, e

não nos explica como esse sistema de governo funcionaria em suas estruturas mais

profundas, nem como o povo se permitia convencer da legitimidade de um governante

que recebesse um poder tão grande.

Além da confusão derivada da própria polissemia do termo imperium em latim,

não se pode esquecer que esse termo deu origem a palavras análogas nas mais diversas

línguas. Com a diferença de que palavras como “Império” ou “Empire” designam

1 Mesmo os dicionários mais concisos oferecem um número relativamente elevado de definições para o

termo imperium. Por exemplo, o Dicionário de Latim-Português/Português-Latim da Porto Editora, que

contém cerca de 26000 entradas em latim, oferece as traduções: poder; autoridade; ordem; mando; poder

supremo; hegemonia; soberania; comando militar; magistratura; Estado; Império. (PORTO EDITORA,

2012: 230) 2 “Imperium désigne le pouvouir souverain (par ex. du père de famille sur ses enfants, du mâitre sur ses

esclaves), imperare veut dire “commander en mâitre”. De lá, dans la l. politique, le sens de imperium

“commandement, pouvouir souverain de pendre toutes mesures d’utilité publique, même en dehors des

lois”.

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realidades que, embora análogas, reúnem diferenças fundamentais em relação ao tipo de

Império de que se fala quando estamos tratando da Roma Antiga. E as semelhanças entre

os sistemas de governo do Império Romano e o governo do Império Brasileiro, por

exemplo, em lugar de auxiliar o pesquisador, podem levá-lo ao engano.

Essa é uma preocupação expressa por diversos teóricos, como se pode observar

nesta afirmação feita por Patrick Le Roux, que observa os riscos de se tomar uma postura

anacrônica ao tratar do fenômeno político que foi o Império Romano como algo

essencialmente idêntico aos outros sistemas de governo que foram chamados de impérios

ao longo da História:

A expressão “o Império Romano” admite diversas definições parciais, e

teremos de combinar elementos de cada uma delas, caso queiramos nos

aproximar de um conceito mais completo. Todos acreditam saber do que estão

falando, mas captar esse conceito em sua totalidade é um verdadeiro desafio.

Antes de mais nada, para estabelecermos uma conceituação precisa, será

necessário libertá-la de todas as semelhanças enganosas que vem sendo

encontradas com o Império Britânico ou o Império Francês. Hoje em dia, se

pretendermos estabelecer qualquer comparação com o Império Americano,

seremos novamente levados a cair na armadilha de um anacronismo. (LE

ROUX, 2010: 7-8)

Alguns dos pontos de divergência entre esses diversos sistemas de governo saltam

aos olhos quando se faz uma observação mais detida. Há, por exemplo, a questão da

escolha do novo líder após a morte do atual. Enquanto em regimes mais modernos se

pode afirmar que essa escolha era baseada única e exclusivamente em critérios familiares,

sendo o governante legitimado por ser um descendente direto de seu sucessor, no Império

Romano isso não ocorria exatamente da mesma forma.

Se admitimos que o primeiro princeps foi Otávio Augusto, cujo governo durou de

27 a.C. a 14 d.C., fica claro que, embora o critério de parentesco seja relevante tanto para

a escolha do próprio Augusto como para a escolha de seu sucessor, ele não é determinante

ao ponto de que apenas aqueles reconhecidos como descendentes diretos sejam elegíveis

para o comando. Augusto recebeu o poder de Júlio César – que, apesar de seu comando

absoluto sobre Roma, nunca chegou a ser um imperador, governando sob as alcunhas de

cônsul e, mais tarde, ditador – que não era seu pai biológico. Ainda que pertencessem a

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um mesmo clã, a gens Iulia, seu grau de parentesco era originalmente mais afastado – o

então chamado Caio Otávio era sobrinho-neto de César. No entanto, ele foi adotado em

testamento por César, passando a ser seu filho de fato e assumindo o nome de seu pai

adotivo, e, por fim, após a derrota de Marco Antônio, o título de Augusto.

Quanto ao sucessor de Augusto, Tibério, não se pode afirmar sequer que pertencia

originalmente ao mesmo clã do pai adotivo. Pelo contrário, sua família vinha fugindo de

Otaviano quando ele próprio era ainda uma criança, já que sua mãe, Lívia Drusila tivera

como marido um aliado de Marco Antônio, Tibério Cláudio Nero, seu pai biológico.

Augusto, no entanto, acabou se apaixonando por Drusila e Tibério, quando da morte de

seu pai adotivo, terminou por assumir o governo.

Com apenas esses dois exemplos, é possível notar que, primeiramente, o

parentesco existente entre o imperador e seu sucessor não era necessariamente sanguíneo:

a adoção era vista como uma maneira legítima de se manter o comando do Império dentro

do mesmo clã. Em segundo lugar, não havia a necessidade de manter uma mesma família

no controle, bastando que o sucessor pertencesse de alguma forma ao mesmo clã, ou

melhor, à mesma gens de seu antecessor.

A verdade é que a legitimidade do imperador não era determinada,

ideologicamente, pelo seu parentesco. Ou, pelo menos, não somente por ele. Na teoria, o

imperador era apenas mais um cidadão como qualquer outro, ao qual eram fornecidos

poderes para administrar o Império. Tornar-se imperador era assumir uma

responsabilidade, quase como tomar um fardo muito pesado de garantir o bom

funcionamento de Roma e de suas províncias. Cabia a ele cuidar bem da república – sim,

porque a noção de república não se perdia no governo dos Césares.3 O que o fazia ser

reconhecido como tal era um consenso entre os membros da sociedade de que aquele

indivíduo seria capaz de cumprir sua árdua tarefa. A questão do parentesco, da

3 Como afirma Veyne: “No Império, a palavra república não deixará de ser pronunciada em momento algum

– e não se trata de uma ficção hipócrita. Sob o Antigo Regime, o indivíduo estava a serviço do rei; um

imperador, ao contrário, servia à República. Ele não reinava para a própria glória, como um rei, mas para a

glória dos romanos; suas conquistas e vitórias, celebradas nas moedas que cunhava, visavam única e

exclusivamente ao benefício da gloria Romanorum ou da gloria rei publicae. (...) O regime imperial não

mantinha sua fachada republicana por meio de uma ficção, mas à custa de um compromisso; o príncipe não

podia nem desejava abolir a república, pois esta lhe era imprescindível – sem a ordem senatorial, sem os

cônsules, os magistrados e promagistrados, o Império, destituído de sua coluna vertebral, ruiria. (VEYNE,

2009a: 8-9)

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hereditariedade do Império, era simplesmente uma maneira de tornar a sociedade mais

receptiva ao novo governante – não podemos esquecer que, para o romano, as virtudes de

um homem eram muitas vezes hereditárias, sendo mais fácil acreditar que um indivíduo

será um governante eficiente se ele for membro de uma gens na qual outros indivíduos já

se haviam provado capazes de fazer o mesmo4.

Esse consenso existente entre as diversas camadas da população não pode ser visto

como uma votação popular. Na verdade, como nos lembra Veyne, ele era muito mais uma

ferramenta ideológica, na qual diferentes setores da sociedade eram “representados” por

alguns indivíduos em particular que atuavam como a voz de camadas populares muito

mais numerosas.5 Basicamente, cabia ao senado e ao exército determinar quem era ou não

elegível para exercer a soberania, e com o reconhecimento destas duas forças, o imperador

era considerado legítimo.

Mas ainda assim, talvez ainda por influência da aristocracia existente já desde os

tempos da República, embora o imperador pudesse teoricamente ser qualquer um, havia

uma clara preferência por aqueles que faziam parte do mesmo clã. Assim foi que se

constituiu, com a passagem do governo de Augusto para Tibério, a primeira dinastia de

imperadores que Roma conheceu – a dinastia júlio-claudiana. Os primeiros imperadores

eram todos descendentes de Otávio Augusto, fossem eles de fato membros da família ou

simplesmente adotados pela gens Iulia. Assim ocorreu com Tibério (14-37 d. C.), que,

como já dissemos, não era seu filho legítimo, mas sim de um casamento anterior de

Drusila. Há um consenso entre os historiadores de nossa época e da própria antiguidade

de que Augusto não tinha grandes expectativas para Tibério6, mas, encurralado,

4 O mesmo também vale para os vícios, no entanto. Suetônio afirma que a filha de Calígula, ainda bebê, já

demonstrava traços da ferocidade do pai, chegando até mesmo a atacar as crianças que brincavam perto

dela. (Cal, XXV, 8). 5 “Como alguém se tornava imperador? Aqui, para compreendermos a questão, é preciso abrir mão de

buscar um direito público, regras, fundamentação legal; só havia um jogo de forças. O êxito, as

demonstrações de força e a submissão eram encobertos, após a vitória, pela ficção de um consenso de todos

os cidadãos.” (VEYNE, 2009a: 5). 6 Como afirma Grimal, Augusto pretendia deixar o governo para um de seus netos, Lúcio ou Caio, filhos

de Júlia e Vipsânio Agripa, mas: “Infelizmente esses dois jovens, que foram, desde a infância, cumulados

de honras e que todos consideravam sucessores do príncipe, morreram aos 20 anos. Lúcio pereceu primeiro,

em 2 d.C.; e Caio logo o seguiu. Augusto precisou resignar-se a buscar um sucessor entre os filhos de Lívia.

Dos dois irmãos, nesse momento, só o mais velho sobrevivera, Tibério (...) Augusto não sentia nenhuma

simpatia por ele. Só o escolheu porque não havia nenhum outro membro de sua casa capaz de assegurar,

melhor ou pior, a sobrevivência de sua obra.” (GRIMAL, 2011: 132).

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precisando de um herdeiro que pudesse cuidar de seu legado sem esfacelá-lo, foi

necessário que ele concedesse o poder a seu filho adotivo, mesmo a contragosto.

Entre Tibério e Calígula (37-41 d.C.), as relações não eram menos animosas. Basta

lembrar que, como se verá na tradução da vida de Calígula, o jovem que viria a ser o

terceiro imperador mais de uma vez se vangloriou de ter chegado perto de cometer

parricídio, matando seu familiar e então imperador, Tibério. Mais do que isso, a crença

geral era a de que Calígula havia chegado a perpetrar o ato, o que era escandaloso, mas

não necessariamente inesperado. Calígula mataria ou enviaria para o exílio ainda outros

membros mais próximos de sua família, e não seria o único imperador a fazê-lo. Essa

acabava se tornando praticamente uma exigência para os governantes desse regime

recém-instaurado, pois cada familiar que se destacava, ou que conseguia ser mais popular

que o próprio imperador, era um candidato a substituí-lo, e tão legitimamente elegível

quanto seu parente. O próprio Tibério percebeu isso, aparentemente, quando mandou

envenenar – de acordo com Suetônio – o pai de Calígula, Germânico, um excelente

general e homem extremamente carismático. Dessa forma, acabou abrindo caminho para

Calígula. E o processo de sucessão foi visto com legitimidade também pelo fato de

Calígula ser membro do clã: era sobrinho-neto de Tibério.

O sucessor de Calígula foi seu tio, Cláudio (41-54 d. C.), o penúltimo membro da

dinastia júlio-claudiana. É conhecida a narrativa de como os guardas pretorianos

responsáveis pela morte de Calígula foram até Cláudio, sempre retratado como um

homem de personalidade fraca, e praticamente exigiram que ele assumisse o poder. Prova

da importância do pertencimento ao clã para a legitimidade do governante: mesmo um

indivíduo reconhecido por todos como um idiota era um candidato qualificado por ser um

dos poucos membros restantes da gens. Depois dele, Nero (54-68 d. C.), outro sobrinho

de Cláulio, assumiu o poder. Em princípio uma figura de pouco destaque, Nero era

aconselhado por seu mestre, Sêneca. Não tardou, porém, para que seus delírios de

grandeza e sua paranoia o fizessem se voltar contra seu tutor, que acabou sendo morto

por sua ordem. O assassinato de Nero marcaria o fim da dinastia e o início de uma guerra

civil, já que não havia um consenso sobre quem deveria assumir o poder, uma vez que

Nero não deixara herdeiros. Começava o ano dos quatro imperadores, um período de

anarquia em que a ausência de herdeiros legítimos fez com que diversas figuras políticas

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tentassem sua sorte para alcançar a soberania. Galba, Oto e Vitélio tiveram sucesso, mas

por períodos de tempo extremamente curtos.

Depois disso uma nova dinastia, a dos Flavianos, foi instaurada por Vespasiano

(69-79 d. C.), continuada por Tito (79-81 d. C.), e encerrada com a morte de Domiciano

(81-96 d. C.). A narrativa da Vida dos Doze Césares, de Suetônio, se encerra com a vida

de Domiciano, e esse dado é importante para compreendermos o que pode ter motivado

esse recorte. Depois de encerrada a dinastia dos Flavianos, para evitar uma nova guerra

civil e mais um período de anarquia militar, o senador Nerva (96-98 d. C.) foi escolhido

como governante. Um homem já de idade avançada, considerado muito sábio pelos seus

pares, Nerva comprovou sua fama ao fazer uma escolha cuidadosa para seu sucessor:

Trajano (98-117 d. C.), um jovem soldado cujas virtudes ele havia reconhecido. Estava

fundada uma nova dinastia, a dos Antoninos, que seria caracterizada pelo fato de seus

membros escolherem os sucessores com base em suas virtudes pessoais, fazendo com que

o critério de escolha com base no pertencimento ao clã se tornasse menos importante.

Todos os imperadores dessa dinastia foram escolhidos pelos seus antecessores como

homens de grande valor pessoal e por eles adotados, para então assumirem o comando.

Os Antoninos, que por esse motivo ficaram conhecidos como os imperadores adotivos,

também não faziam parte das aristocracias romanas locais – alguns deles, como o próprio

Trajano, que era espanhol, vinham de províncias romanas relativamente distantes.

Sob o governo dos Antoninos, o Império prosperou de maneira nunca antes vista,

e também atingiu sua máxima expansão territorial. Sob o governo de Trajano, os romanos

conquistaram territórios na Ásia, frutos de conflitos bem-sucedidos com o Império Parta.

Em 116 d.C., Roma compreendia praticamente toda a Europa Ocidental (com exceção

dos territórios dos germanos, deixados em paz desde os tempos de Augusto), parte

considerável do norte da África e havia conseguido chegar ainda mais longe em direção

ao Oriente, numa tentativa de imitar as conquistas de Alexandre. O sucessor de Trajano,

Adriano (117-138 d. C.) pôs um fim ao impulso expansionista romano, por reconhecer

que o Império, conquistando ainda mais territórios do que aqueles que já administrava,

corria o risco de se esfacelar. Pacífico, intelectual e fascinado pela cultura grega, Adriano

seria lembrado como um grande líder pela maioria dos romanos. Mas, para Suetônio, ele

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acabaria sendo um fardo. Ao cometer uma falta contra Adriano que ainda hoje não fica

muito clara, Suetônio perdeu os cargos políticos que exercia.

É esse o período do Império Romano relevante para entender a obra de Suetônio.

Os primeiros césares até Domiciano foram biografados por ele, enquanto que sua carreira

política e a publicação de sua obra ocorreram durante os governos dos antoninos,

especificamente de Trajano e Adriano.

2.2 Suetônio

E como isso se aplica ao próprio Suetônio? O De Vita Caesarum se estende apenas

até o governo de Domiciano, muito embora Suetônio tenha vivido durante os governos

posteriores de Nerva, Trajano e Adriano. O recorte feito pelo autor foi provavelmente

motivado pela necessidade de não trazer à tona anedotas inconvenientes aos governantes.

Em alguns momentos das vidas mais recentes do De Vita Caesarum, Suetônio demonstra

já ter algum material polêmico a respeito dos imperadores que não biografou. Por

exemplo, na vida de Domiciano, ele conta que esse imperador poderia ter entretido

comércio sexual com Nerva, que governaria depois dele (Dom. I, 1). Ainda na mesma

biografia, num dos raros momentos em que parece assumir um tom elogioso em relação

ao biografado, Suetônio fala de como os magistrados posteriores a Domiciano não eram

tão justos e moderados quanto foram durante o governo rigoroso do mesmo:

Magistratibus quoque urbicis prouinciarumque praesidibus coercendis tantum

curae adhibuit, ut neque modestiores umquam neque iustiores extiterint; e

quibus plerosque post illum reos omnium criminum uidimus. (Dom. VIII, 2)7

Narrativas como essa podem ser feitas com alguma segurança a respeito dos

imperadores que morreram há mais de um século, mas certamente não daqueles cuja

influência ainda pode ser sentida.

7 E teve tanto cuidado para conter os magistrados das cidades e os governadores das províncias que eles

nunca mais foram tão honestos e justos; eles que, depois de seu governo, vimos em grande número como

réus de todo tipo de crime.

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No entanto, o fato do governo de Domiciano ser recente não impede Suetônio de

vituperá-lo. Na verdade, Suetônio dá a ele o mesmo tratamento dispensado a Calígula no

que diz respeito às expectativas criadas com seus primeiros feitos no governo: Domiciano

inicia seu mandato como um homem virtuoso, para então ceder, por medo, à avareza e

sobretudo à crueldade. Em Calígula, essa percepção é ainda mais acentuada, ficando mais

evidente no trecho em que o autor, tendo já narrado os prima acta do jovem imperador,

diz que “Até aqui se falou de um príncipe – deve-se agora falar de um monstro” (Cal.

XXII, 1). Seja como for, a crueldade dos dois príncipes é análoga.

O que permite a Suetônio maldizer tão veementemente um imperador cujo

governo ele até mesmo presenciou, ainda pequeno? O fato de ele não ser o único a fazê-

lo. Há toda uma tradição hostil às figuras de determinados imperadores, sobretudo de

Calígula, Nero e Domiciano. Autores oriundos da ordem senatorial, como Sêneca (4 a.C.

– 68 d.C.) e Tácito (56 – 117 d.C.) tinham uma opinião muito forte e não muito elogiosa

dos imperadores que tentaram diminuir o poder da aristocracia. Embora Sêneca

obviamente não tenha tido a oportunidade de tecer uma opinião sobre o governo de

Domiciano, não é difícil imaginar que o autor não o aprovaria. Já Tácito demonstrou por

via indireta na biografia de seu sogro Agricola que apenas os homens mais virtuosos

conseguiriam ser bem-sucedidos no governo de Domiciano sem se deixar corromper.

Pode-se pensar, então, numa espécie de ideologia que cercava as opiniões dos autores

sobre o comportamento e o governo de determinados imperadores particularmente

problemáticos. Mas, visto que Suetônio não pertencia à ordem senatorial, ainda é preciso

empreender uma análise de sua vida para termos a certeza de que ele se subscreve a esse

mesmo conjunto de ideias que pareceu nortear a opinião de autores daquela ordem.

Suetônio nasceu provavelmente no ano de 69 d.C., ou talvez 70. As principais

fontes que fornecem dados sobre sua vida são, tradicionalmente, o próprio Suetônio (que

acaba fazendo pequenos comentários em seus textos biográficos que revelam detalhes de

sua própria vida), a Suda bizantina e as correspondências trocadas entre Suetônio e Plínio,

bem como outras cartas de Plínio destinadas a terceiros mas que mencionam o autor.

Através dessas fontes, pôde-se reconhecer a filiação de Suetônio ao círculo literário de

Plínio (o que também se confirma pelo fato de o autor ter dedicado o De Vita Caesarum

a Septicius Clarus, outro membro desse grupo de intelectuais), a data aproximada de seu

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nascimento, o fato de ter vivido em Roma na maior parte de sua vida, e ter ocupado uma

série de cargos públicos (como os de responsável a studiis, a bibliothecis e ab epistulis,

que lhe deram acesso a muitos documentos históricos importantes).

Outra fonte ainda oriunda da Roma Antiga foi a Historia Augusta, que menciona

o fato de Suetônio e Septicius Clarus terem caído em desgraça durante o governo de

Adriano, talvez por um ato de indiscrição relacionado à imperatriz Sabina. Mais

recentemente, no século XX, uma inscrição encontrada na cidade de Hippo Regius no

norte da África lançava mais luz sobre a vida do autor: primeiramente por fazer menção

a outros cargos públicos ocupados por ele dos quais ainda não se tinha notícia; mas

principalmente por levantar a hipótese de que aquele mesmo lugar seria o local de

nascimento de Suetônio, e não Roma, como antes se pensava (muito embora a inscrição

não fale especificamente de um local de nascimento, não podendo ser considerada uma

prova irrefutável contra a hipótese original).

No que diz respeito aos familiares de Suetônio, pouco se sabe. As cartas de Plínio

informam que ele teria recebido o Ius Trium Liberorum, reservado, como o nome sugere,

aos cidadãos que tenham três filhos, mas que teria sido dado a ele de maneira excepcional

– posto que ele não tivera filhos. A vida de seus antepassados também é contemplada por

alguns comentários. Na vida de Calígula, que traduzimos, é interessante a passagem em

que Suetônio apresenta uma explicação para a construção da ponte entre Puteoli

(Puzzuoli) e Baiae (Baías), obra que marca o início das excentricidades de Calígula:

Sed auum meum narrantem puer audiebam, causam operis ab interioribus

aulicis proditam, quod Thrasyllus mathematicus anxio de successore Tiberio

et in uerum nepotem proniori affirmasset non magis Gaium imperaturum quam

per Baianum sinum equis discursurum. (Cal. XIX, 3)8

Algumas coisas podem ser ditas a respeito desse trecho. Primeiramente, ele ilustra

a riqueza de fontes a que Suetônio recorre para relatar os fatos que selecionou. Essa

8 Mas ouvi de meu avô, quando eu era menino, que a razão de tal obra, contada pelos seus cortesãos, era o

fato de o astrólogo Trasilo ter dito a Tibério – quando este se encontrava preocupado com seu sucessor e

se mostrava propenso a escolher o neto – que “Caio tinha tantas chances de ser Imperador quantas de

atravessar a cavalo o Golfo de Baías”.

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passagem é ilustrada não só pela opinião de seu avô, mas também por outras opiniões

correntes à época (e cujas fontes Suetônio não identifica) de que o ato seria uma tentativa

de emular Xerxes ou de aterrorizar a Bretanha e a Germânia. Mas, além disso, também

se identifica aqui uma certa relutância de Suetônio ao tratar de seu avô. Ao dizer que o

avô soube desse motivo através dos cortesãos de Calígula, pode-se inferir que Suetônio

acaba dando testemunho de uma origem mais humilde desse antepassado. Como explica

Esteves, que se refere ao avô de Suetônio como Maior:

Poderíamos esperar que se Suetônio Maior fosse um aulicus, este detalhe não

escaparia ao relato do neto biógrafo. Entretanto, a questão não é tão simples,

já que a função de aulicus está carregada pelo estigma do estatuto civil da

escravidão – os cortesãos eram, sobretudo na dinastia júlio-claudiana, ou

escravos, ou libertos da casa do princeps. (ESTEVES, 2015: 3)

Essa preocupação demonstra que Suetônio, embora tenha sido ele mesmo, assim

como o pai, um membro da ordem equestre, tinha antepassados menos louváveis, e que a

menção às condições sociais desses antepassados era um assunto delicado. Nessa pequena

hesitação seria possível enxergar uma insegurança que viesse a exigir de Suetônio que ele

próprio se reafirmasse enquanto cavaleiro em outras situações sociais.

Já se falou do contato que Suetônio tivera com Plínio. Pode-se dizer que Suetônio

foi seu protegido tanto na esfera política como na literária, e o próprio Plínio era também

um cavaleiro. A influência dele sobre a obra de Suetônio pode ser percebida em algumas

de suas cartas, quando pede ao autor que não se demore a publicar uma das obras que já

havia concluído (Ep. 5,10). Pode-se supor que sua influência política não tenha sido

menor, e que as ideias políticas de Plínio tenham sido assumidas também por Suetônio,

não só pela amizade existente entre os dois, mas também pela necessidade que Suetônio

tinha de se firmar na figura política mais consolidada que era Plínio. Se podemos falar

numa tal influência, então fica suficientemente explicada a facilidade com que Suetônio

fala mal de Domiciano, uma vez que seu padrinho também havia demonstrado pouca

simpatia por ele ao fazer o elogio de Trajano, onde a comparação entre os dois

imperadores era clara, e tendia a colocar em contraste as virtudes de Trajano e os vícios

de Domiciano.

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Assim, os detalhes da vida de Suetônio se tornam importantes para o entendimento

do tipo de tom que pode assumir a sua biografia, ainda que indiretamente, quando trata

de imperadores cujo posicionamento político obscurecia o papel do senado ou que se

comportaram de uma maneira análoga àquela como Domiciano se comportou. Podemos

esperar que seu relato da vida de Calígula, portanto, apresente um tom moralizante.

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3 A biografia enquanto gênero literário

3.1 Gêneros textuais na Antiguidade Clássica

Ao analisarmos os escritos deixados por Suetônio, uma problematização bastante

comum é aquela que diz respeito ao estatuto de gênero literário das biografias. Essa

questão surge de uma preocupação em evitar anacronismos durante o trabalho de análise,

o que pode ocorrer quando se classifica o texto através de critérios que pertencem às

sociedades modernas, mas não aos romanos ou gregos. Nossas definições de gênero

literário e de gênero textual são hoje mais amplas e complexas do que as definições da

Antiguidade Clássica (ou ao menos é o que nos levam a crer os esquemas de separação

dos gêneros presentes em autores como Aristóteles e Quintiliano), justamente porque elas

abarcam não só as noções já trazidas da Antiguidade Clássica pela tradição ocidental, mas

também uma série de gêneros que ainda não existiam na literatura ocidental anteriormente

ao medievo, ou que foram incluídos em nosso arcabouço literário através do contato com

culturas cuja literatura jamais alcançou os pensadores antigos. Além disso, o retorno

constante à literatura grega e latina, com renovado pensamento e inspiração intelectual,

nos fez enxergar categorias que, embora tornem mais acessível e inteligível o trabalho de

análise dos textos, não encontram (ou, ao menos, não aparentam encontrar)

correspondência imediata nas categorias reconhecidas pelos próprios autores desses

textos. Em resumo: os textos da Antiguidade que falavam sobre gêneros literários não

parecem reconhecer a biografia como um gênero em si. Utilizar a noção de biografia

como gênero literário para abordar os textos de Suetônio não seria, portanto, atribuir às

categorias de gênero literário da Antiguidade uma complexidade que não lhes pertence?

Não que essas categorias não apresentassem suas próprias complexidades, é claro.

Na verdade, é possível argumentar que muito das complexidades ali presentes não nos é

acessível, por não terem chegado até nossos dias textos que tratassem do gênero literário

de maneira mais aprofundada. Para melhor ilustrar esse ponto, observemos algumas das

classificações de gêneros literários que a Antiguidade Clássica nos oferece.

Em língua grega, A República, de Platão e a Poética de Aristóteles são as obras

nas quais a tradição ocidental se baseia para reconhecer uma primeira divisão entre os

gêneros literários. Ao justificar o seu conhecido ato de expulsar os poetas da república

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ideal, Platão, na voz de Sócrates, acaba por fazer uma reflexão a respeito dos diferentes

assuntos e dos diferentes modos de se representar encontrados na prática dos diferentes

poetas. Assim, o poeta é excluído porque, em seus trabalhos, aborda temáticas que não

condizem com os valores morais que se deve buscar na educação dos cidadãos. Quando

os valores que se pretende fazer prevalecer entre os cidadãos incluem a coragem diante

da morte, o apreço pela liberdade e o asco em relação à escravidão, ter no seio da

República poetas que cantam os horrores presentes no Hades e os sofrimentos que

aguardam as almas dos que morrem pode ser muito prejudicial. Logo:

Palavras como estas e todas as outras da mesma espécie, pediremos vênia a

Homero e aos outros poetas para que não se agastem se as apagarmos, não que

não sejam poéticas e doces de escutar para a maioria; mas, quanto mais

poéticas, menos devem ser ouvidas por crianças e por homens que devem ser

livres, e temer a escravatura mais do que a morte. (Plat. Rep, III, 387b)9

Quanto à maneira pela qual os poetas reproduzem o que foi dito ao longo de suas

narrativas, também aí o filósofo encontra motivos para censurá-los. Reconhecendo que

só o que fazem os poetas é narrar acontecimentos passados, presentes ou futuros, ele

delimita três modos de representação: a narrativa pura (ἁπλή διήγησις), na qual apenas se

narram os acontecimentos; a imitação (μίμησις), em que se reproduz a fala dos

personagens, em lugar de apenas contar o que foi dito; e ainda um terceiro modo, o misto,

em que o autor se utiliza ora de um recurso, ora de outro. Quando o poeta faz a imitação,

seja em sua forma pura ou em sua forma mista, corre o risco de se tornar prejudicial à

cidade, pois acaba por imitar não só os homens superiores, mas também os inferiores, que

jamais deveriam servir de exemplo a quem quer que fosse. Mas o que mais interessa aqui

é que a essa distinção entre modos de representação se aplica uma divisão entre gêneros,

já que Sócrates e Adimanto reconhecem em seu diálogo que:

(...) em poesia e em prosa há uma espécie que é toda de imitação, como tu dizes

que é a tragédia e a comédia; outra, de narração pelo próprio poeta – é nos

ditirambos que pode encontrar-se de preferência; e outra ainda constituída por

9 Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira.

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ambas, que se usa na composição da epopeia e de muitos outros gêneros, se

estás a compreender-me. (Plat. Rep, III, 394c)

A partir daqui, portanto, a tradição reconheceu uma divisão entre gêneros que

incluiria a tragédia – utilizando a representação puramente mimética – a epopeia –

utilizando a representação mista – e o ditirambo – utilizando a representação narrativa

pura.

Tal distinção influenciaria fortemente Aristóteles. Sobretudo no que diz respeito

ao modo de representação através da imitação, que viria a se tornar, para Aristóteles, um

traço distintivo comum à toda poesia, modificando sensivelmente a conceituação de

mímesis feita por seu antecessor. Assim, logo no início da Poética, o filósofo afirma que:

A poesia épica e a trágica, bem como a cômica, a ditirâmbica e a maioria da

interpretação com flauta e instrumentos de cordas dedilhados são todas,

encaradas como um todo, tipos de imitação. (Arist. Poet, 1447a)10

Repare-se que os “gêneros” que Platão havia separado de acordo com os modos

de representação estão todos agrupados agora sob a rubrica da imitação – mesmo o

ditirambo, do qual quase nada nos restou, mas que Platão havia considerado como o

representante principal, na verdade o único por ele citado, da narrativa pura.

Para distinguir esses gêneros, portanto, ele precisa se utilizar de outros critérios.

Investigando, pois, as diferentes manifestações da imitação artística, Aristóteles parece

reconhecer, num primeiro momento, três maneiras de diferenciá-las: primeiramente,

através dos meios de imitação, em que se podem reconhecer os diferentes suportes através

dos quais se faz a imitação (sendo que esta é uma maneira de diferenciar as imitações que

Aristóteles negligencia ao longo de sua obra, dando ênfase às duas seguintes); a segunda

maneira seria através dos objetos de imitação, criando-se aqui uma divisão entre a

imitação de homens superiores à média, de homens inferiores à média e de homens que

são “tal como somos” (Arist. Poet, 1448a). Desta última categoria de objetos também não

10 Tradução de Edson Bini.

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se voltará a falar profundamente, mas as duas primeiras são usadas por Aristóteles para

distinguir, através dos objetos de imitação, a Comédia e a Tragédia, sendo a primeira

dedicada à imitação dos homens inferiores e a segunda à dos homens superiores; por fim,

ainda é possível fazer uma distinção entre os diferentes modos de imitação, em que cabe

diferenciar as obras que se utilizam da narração ou da performance direta dos papéis –

Aristóteles não se esquece de salientar que Homero apresenta uma postura mista neste

ponto, ora fazendo uso da narração direta, ora assumindo as falas de um personagem. A

cada um desse modos (sendo deixado de lado o modo misto de Homero) pode-se chamar

de narrativo o que se utiliza da narração direta e de dramático o que se utiliza da

performance direta.

Somente se pode falar em gêneros na Poética de Aristóteles, no entanto, a partir

do momento em que se juntam esses diferentes critérios. Com isso, exclui-se,

primeiramente, a diferenciação entre os meios de imitação, restando apenas a separação

por duas instâncias superiores, os modos de imitação (em que o modo misto ficaria

excluído, restando apenas o narrativo e o dramático) e os objetos de imitação (em que

não se tratará da imitação dos homens médios, apenas dos homens superiores e dos

homens inferiores). Assim, quando se une o modo de imitação dramático e o objeto de

imitação homens superiores, tem-se a tragédia; dentro do mesmo modo de imitação, mas

tendo como objeto os homens inferiores, encontra-se a comédia; o modo de imitação

narrativo, quando aplicado aos homens superiores, dá origem à epopeia; por último, se

esse modo de imitação é aplicado aos homens inferiores, tem-se aí a origem das paródias

(um gênero bem menos determinado que os anteriores, sobretudo porque as obras que

Aristóteles cita como exemplos do mesmo não chegaram até nós).

Isso foi uma leitura resumida e superficial de alguns dos pontos principais das

duas obras. Por ser superficial, ela também ignora alguns problemas presentes nos textos

originais e, sobretudo, nas interpretações que esses textos receberam de teóricos ao longo

dos séculos. Por exemplo, percebe-se que as distinções entre gêneros apresentadas por

Platão e Aristóteles não servem para a análise da obra biográfica de Suetônio, tarefa a que

se propõe este trabalho, simplesmente porque em momento algum os dois filósofos se

referem à biografia enquanto gênero literário. No entanto, o mesmo poderia ser dito a

respeito da poesia lírica: o texto de Platão se limita a uma poesia representativa, o que

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não inclui o lírico. Também Aristóteles parece desprezá-lo (a não ser que se tenha

aprofundado nele ao longo da parte perdida de seu texto). A verdade é que, apesar daquilo

que durante muitos séculos a tradição ocidental afirmou, a famosa tripartição dos gêneros

em épico, lírico e dramático não parece ser uma criação da Antiguidade Clássica, já que,

como se viu, o lírico não é abordado por Platão nem por Aristóteles.

Um autor que trabalhou com esse tipo de questionamento sobre as fontes clássicas

da divisão entre gêneros literários reconhecida pelos teóricos do ocidente é Gérard

Genette que, abordando o mesmo assunto em sua obra Introdução ao Arquitexto,

desconstrói a tripartição dos gêneros, atribuindo-a a uma projeção da tradição romântica

sobre os textos clássicos, sobretudo a Poética de Aristóteles, da qual diz que:

(...) não se renuncia de moto fácil a projetar no texto fundador da poética

clássica uma articulação fundamental da poética moderna – de fato, como é

costume e como veremos, sobretudo romântica; e não talvez sem

consequências teóricas importunas, pois, ao usurpar essa longínqua filiação, a

teoria relativamente recente dos três gêneros fundamentais não somente se

atribui uma antiguidade, logo uma aparência ou presunção de eternidade, e

portanto de evidência: desvia, em proveito das suas três instâncias genéricas,

um fundamento natural que Aristóteles, e Platão antes dele, tinham, e talvez

mais legitimamente, estabelecido para alguma coisa de completamente

diversa. (GENETTE, 1986: 20-21)

Com isso, pretende-se apenas afirmar que, apesar de não serem mais do que uma

projeção, as análises literárias que se basearam nessa tripartição como se fossem de fato

um conceito clássico original não são por isso menos interessantes, nem menos

pertinentes. O próprio Genette, em seu livro, cita diversos autores que de alguma forma

se basearam nesse persistente engano, e entre eles encontram-se nomes muito

importantes, por exemplo, Northrop Frye. Isso poderia servir como uma desculpa para

afirmar que a biografia é reconhecida como um gênero literário sem buscar verificar se

ela figura ou não nas obras clássicas de poética. Mas tal argumento seria muito raso. Seria

mais conveniente tentar demonstrar que, na verdade, as obras poéticas dos autores

clássicos apresentam classificações que são, via de regra, feitas ad hoc, e que tomá-las

como uma classificação de caráter mais geral é um erro. Isso, esperamos, já foi

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suficientemente demonstrado para as obras de Platão e Aristóteles com o que foi afirmado

até aqui.

Vamos agora voltar-nos às obras da literatura latina com o mesmo espírito. Dentre

os autores que influenciaram nossa maneira de enxergar os gêneros literários, destacam-

se Horácio e Quintiliano.

Em sua Arte Poética, Horácio estabeleceu alguns dos princípios que norteariam

muitos dos movimentos classicistas surgidos posteriormente. Principalmente no que diz

respeito à adequação da forma do poema àquilo de que ele trata. Segundo esse princípio,

não caberia falar de coisas trágicas usando uma métrica típica de textos cômicos, ou vice-

versa. Singula quaeque locum teneant sortita decentem 11, diz o poeta ao falar dos versos.

Não é verdadeiro poeta aquele que não respeita essa adequação. Esse respeito, porém,

acaba por ignorar a existência de uma poesia de natureza mais híbrida.

O texto horaciano parece bastante consciente de que está construindo um tratado

de estética. Mas essa primeira impressão pode não ser inteiramente verdadeira. Para

começar, Ars Poetica é apenas um dos títulos pelos quais ficou conhecido. Já era assim

chamado por Quintiliano, mas, na verdade, tratava-se de uma das cartas escritas pelo

autor, sob o nome de Epistulae ad Pisones. Não seria tão absurdo imaginar que esse texto

não tivesse pretensões tão ambiciosas, mas ocorre que a posteridade, e mesmo uma

posteridade não muito tardia, encarou essa como uma obra que seguia os mesmos

caminhos das obras fundadoras dos gregos.

Mas é Quintiliano aquele dentre os autores romanos que mais nos interessa, por

uma série de fatores. Sobretudo, por sua carreira: tendo sido um Rethor, um professor de

retórica, ele tinha interesse em escrever de maneira didática, buscando uma clara

descrição dos gêneros que pretendia abordar. Os gêneros reconhecidos por ele ao longo

do livro X de sua Institutio Oratoria são os seguintes: a epopeia, a poesia elegíaca, a

poesia iâmbica, a poesia lírica, a poesia dramática, a história, a eloquência, a filosofia e a

sátira. Eis uma classificação que parece ser mais exaustiva e abrangente do que aquelas

feitas pelos filósofos gregos.

11 “Que tenham cada um o lugar que lhes convém” (Ars. 92). A tradução é minha, tanto aqui como em

outros trechos citados em latim, salvo nota em contrário.

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No entanto, seria um erro aplicar essa classificação à toda a literatura latina. Basta

para isso que se olhe com mais cuidado para o título da obra de Quintiliano: Institutio

Oratoria poderia ser traduzido como “A educação oratória”, ou “A educação do orador”.

Como já foi dito, Quintiliano foi um professor de retórica, preocupado com a formação

dos oradores de seu tempo, que havia, aparentemente, decaído bastante se comparada à

formação dos oradores na época de Cícero. Como afirma Zélia de Almeida Cardoso:

A oratória superficial e ornamentada que dominou o período júlio-claudiano,

e da qual temos suficientes exemplos nas Suasórias e Controvérsias de Sêneca,

o Rétor, vai encontrar um forte opositor em Quintiliano (...) Como Rétor e

mestre de alunos ilustres (...) Quintiliano se notabilizou tanto por ter procurado

reconduzir a oratória às suas dimensões legítimas, colocando-a a serviço da

pátria e do direito, como por ter-se preocupado sobremodo com questões de

ordem moral. (CARDOSO, 2011: 165 e 166)

Essa preocupação com a formação do orador romano é, talvez, o ponto principal

da Institutio Oratoria, e por isso mesmo permeia todos os pontos do texto, inclusive sua

classificação dos gêneros literários. De tal forma que, em diversos pontos, é possível

perceber que os gêneros por ele delimitados não são, na verdade, uma sistematização de

toda a literatura latina e grega, mas simplesmente uma sistematização dos gêneros que

um orador deveria ler e conhecer, em nome de sua melhor formação. Veja-se por

exemplo, esta passagem:

Nobis autem copia cum iudicio paranda est uim orandi non circulatoriam

uolubilitatem spectantibus. Id autem consequemur optima legendo atque

audiendo. (Quint. Inst. X, 1,8)12

Na qual Quintiliano censura aqueles que decoram listas de sinônimos no intuito

de terem um vocabulário amplo, sem considerar com cuidado o tipo de palavras que estão

memorizando. Para ele, é somente através da leitura dos bons autores (sobretudo de outros

12 “Devemos preparar um arcabouço (de palavras) com discernimento, pois buscamos a força do orador,

não a torrente de palavras do charlatão. Isto conseguimos lendo e escutando as melhores obras.”

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oradores) que se pode adquirir um bom vocabulário. Ainda com o mesmo raciocínio, ele

afirmará mais adiante, pouco antes de começar a tratar de cada um dos gêneros:

Sed nunc genera ipsa lectionum, quae praecipue conuenire intendentibus ut

oratores fiant, existimem, persequar. (Inst. X, 1, 45)13

Note-se que Quintiliano deixa muito claro que vai tratar dos gêneros que julga ser

mais convenientes (quae praecipue conuenire... ...existimem), dando a entender, portanto,

que haveria outros menos recomendáveis. E recomendáveis para quem? Para os que

querem se tornar oradores, especificamente. Poderia haver outros gêneros que, apesar de

suas qualidades inerentes, não seriam recomendáveis para um estudante de oratória. Nem

por isso seu estatuto de gêneros textuais estaria ameaçado.

Assim, fica claro que uma tentativa de buscar nas obras da Antiguidade Clássica

uma definição ou uma separação clara entre gêneros literários, embora seja muito

pertinente para este trabalho, de maneira alguma encerra a questão sobre a biografia.

Embora as obras mais conhecidas a tratarem do tema não a incluam no rol dos gêneros, a

própria natureza fragmentária dessas obras ou seu escopo menos generalista do que se

imagina não permitem tirar quaisquer conclusões sobre o estatuto de gênero do texto

biográfico.

3.2 Historiografia e biografia em Suetônio: fronteiras entre gêneros

Visto que não há como determinar se a biografia é ou não um gênero literário da

Antiguidade apenas com o que se viu a esse respeito nos textos clássicos, faz-se necessária

uma mudança de abordagem. Já não se pode apenas recorrer aos textos teóricos da

Antiguidade, é preciso procurar por textos que falem sobre a biografia ainda que en

13 “Mas agora vou expor os gêneros de textos que eu penso serem mais convenientes àqueles que pretendem

se tornar oradores.”

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passant. Talvez os autores que escreveram biografias na Antiguidade possam nos oferecer

o material necessário para debater as fronteiras entre gêneros.

Por onde começar, então? Seria interessante fazer um histórico, não da biografia

em si, mas sim dos textos que podem, de alguma maneira, assumir um caráter biográfico.

O que já leva a um outro problema: uma infinidade de textos se encaixaria nesse grupo.

Se entendermos caráter biográfico como uma narrativa que tem como base a vida de um

determinado personagem, então seremos forçados a admitir que textos tão antigos quanto

a Odisseia – que, afinal, narra a vida de Odisseu – fazem parte do conjunto de textos

biográficos da Antiguidade. Diversos textos narrativos se debruçam sobre aquilo que se

poderia chamar de “material biográfico”, posto que seu assunto está intimamente ligado

à vida de determinados personagens. E mesmo que se procure limitar esse conjunto

apenas aos textos que falam de personagens cuja realidade histórica é comprovada, seria

muito difícil separar a narrativa biográfica daquilo que se encontra em textos pertencentes

ao gênero historiográfico – as narrativas sobre a vida de Nero nos Annales, de Tácito,

sem dúvida poderiam ser consideradas material biográfico, mas trata-se de um gênero

textual diferente.

É preciso, portanto, começar definindo o que é texto biográfico, em oposição a

material biográfico. Essa definição tende a ser bastante intuitiva, como se pode ver na

breve explanação de Momigliano:

Um relato da vida de um homem do nascimento até a morte é o que eu chamo

de biografia. (MOMIGLIANO, 1993: 11)14

Tal critério já eliminaria a Odisseia, mas ainda é muito abrangente. Talvez a melhor opção

neste momento seria fazer uso da oposição construída por Stadter, na introdução de seu

capítulo sobre biografia e história:

Primeiramente, no entanto, é necessário distinguir biografia de interesse ou

material biográfico. (…) Biografia eu hesitantemente defino como um relato

14 “An account of the life of a man from birth to death is what I call biography.”

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autossuficiente do tipo de vida vivido por um personagem histórico que

também avalia o caráter, objetivos e as conquistas do sujeito. (STADTER,

2011: 529)15

A partir daí, tem-se que as verdadeiras biografias são em número bem mais

reduzido. Utilizando esse critério, alguns dos primeiros textos biográficos da Antiguidade

seriam os de Xenofonte (430-364 a.C.). Junto com os Diálogos, de Platão, que também

buscam retratar a vida de Sócrates, textos desse autor podem ser considerados a primeira

produção legitimamente biográfica da Antiguidade: Anabasis, tem um tom

autobiográfico, além de contar com as biografias de alguns combatentes, entre eles Ciro,

o Jovem, homônimo de Ciro, o Grande; deste último, Xenofonte escreveu também uma

biografia (Cyropaedia), de cunho mais filosófico, em que a vida do governante persa foi

relatada de maneira a apresentar as virtudes necessárias a outros homens que se pretendem

bons governantes. Foi o primeiro texto biográfico a conter uma clara finalidade

moralizante, e também o primeiro a retratar a vida de uma figura política de destaque.

Outro texto de natureza semelhante desse mesmo autor foi o encômio dedicado ao rei

espartano Agesilau.

Tais obras acabam por se tornar uma espécie de modelo para a biografia da

Antiguidade. Como afirma Stadter:

Em Xenofonte especialmente se vê os antecedentes da biografia como gênero:

tratamento (quando possível) da vida inteira do nascimento até a morte,

avaliação prática e moral do caráter e das conquistas e sua inter-relação,

atribuição do louvor e da culpa, uso da anedota ilustrativa, e uma tentativa de

constituir o retrato com detalhes verossímeis. (STADTER, 2011: 529)16

Após Xenofonte, houve um outro momento da produção biográfica grega que

influenciou fortemente os biógrafos da posteridade: a escola dos peripatéticos, discípulos

15“First, however, it is necessary to distinguish biography from biographical interest or material.(…)

Biography I tentatively define as a self-sufficient account of the kind of life led by a historical person that

also evaluates the subject’s character, goals and achievements.” 16 “In Xenophon especially one sees the antecedents of biography as a genre: treatment (when possible) of

the whole life from birth to death, practical and moral evaluation of character and achievements and their

interrelation, assignment of praise and blame, use of illustrative anecdote, and a willingness to flesh out the

portrait with verisimilar detail.”

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de Aristóteles, no século IV a.C., cunharam uma maneira particular de fazer biografias,

partindo do princípio de que o caráter das pessoas (ethos), imutável desde o nascimento,

revelava-se aos poucos através de suas ações (práxeis) ao longo da vida. Esse caráter

poderia ser revelado pelo biógrafo através de uma seleção de anedotas referentes à vida

do biografado. Embora não nos tenha restado qualquer das biografias desse grupo, pode-

se entrever o espírito de sua proposta na obra de Teofrasto, o sucessor de Aristóteles no

Liceu, que escreveu uma obra chamada Characteres, descrevendo uma série de

personalidades da sociedade e os traços típicos que revelavam seu caráter.

Houve também uma outra “escola” de biografia formada entre os eruditos de

Alexandria. Eles buscavam fazer biografias resumidas dos poetas cuja obra queriam

reeditar, à guisa de introdução aos seus textos. O caráter resumido e erudito desses textos

demonstra que não tinham pretensões literárias, ao contrário das biografias que se estuda

aqui. Talvez por isso mesmo, muito pouco desses textos chegou a ser conservado –

embora tenham provavelmente inspirado outras biografias de poetas com pretensões

literárias mais ambiciosas.

Além disso, um terceiro tipo de biografia que precede tanto alexandrinos quanto

peripatéticos é o costume, partilhado por gregos e romanos, de produzir textos

encomiásticos em honra de seus parentes falecidos. Nesse tipo de produção, retomam-se

os principais momentos da vida do indivíduo, chegando obviamente até o momento de

sua morte, mas com a distinta intenção laudatória que compromete sua imparcialidade. É

também nesse grupo que se encaixaria o trabalho de Xenofonte.

Esses seriam os três principais tipos de produção biográfica da Antiguidade

Clássica até a época da República romana, seguindo a divisão feita por Ronald Mellor no

capítulo dedicado à biografia romana em The Roman Historians. Ainda segundo o autor,

em se tratando de textos biográficos, o período da República romana não oferece

propriamente qualquer biografia à posteridade, muito embora alguns textos de oradores

como Cícero possam ser considerados algumas das primeiras formas biográficas em

Roma que chegaram até nós:

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Já que não sobrevive nenhuma biografia propriamente dita da República

romana, as longas passagens nos discursos de Cícero que descrevem os

antecedentes de seu cliente podem ser encaradas como os escritos biográficos

romanos mais antigos a sobreviver. (MELLOR, 1999: 136)17

Esses textos servem de modelo às biografias posteriores. Para não demorar mais

do que o necessário explicando que tipos seriam esses, vai-se usar aqui a útil divisão feita

por Stadter, feita com base no objeto e no propósito dos textos biográficos. Assim, tem-

se os seguintes tipos de biografia: a biografia filosófica (philosophical biography), que

se dedica a biografar filósofos, muitas vezes mantendo o foco do texto nos ensinamentos

deles; a biografia literária (literary biography), que, da mesma forma, se prestava a

biografar poetas e oradores; as biografias escolares e de referência (school and

reference biographies), de caráter enciclopédico; encômios (encomia); vidas dos recém-

falecidos (lives of those recently departed); autobiografias, comentários e memórias

(autobiographies, commentaries and memoirs); e, finalmente, a biografia

histórica/política (historical/political biography).

É o último tipo de biografia que mais interessa a este capítulo, justamente pela

facilidade com que ele se confunde com o gênero historiográfico. Também encontramos

nesse grupo os principais autores de biografia da Roma Antiga. É nele que vamos nos

concentrar para analisar as fronteiras entre esses gêneros, fazendo um recorte que inclua

os principais autores de biografia da literatura latina.

Retomando o ponto em que Mellor afirma não ter restado nenhuma biografia

romana do período republicano, basta seguirmos um pouco adiante na história de Roma

para encontrarmos um contemporâneo de Cícero que se dedicou a escrita biográfica:

Cornélio Nepos (100-24 a.C.). Conhecido pela dedicatória que Catulo faz a ele em seu

poema I, Cornélio foi um autor que se dedicou a escrever historiografia e também

biografou diversas personalidades romanas, gregas, persas e até mesmo cartagineses.

Tinha uma preocupação particular de “apresentar” o mundo civilizado, principalmente o

grego, ao povo romano que não falava nada além do latim. Por isso, ele acabou

escrevendo centenas de pequenas biografias que serviam como uma referência rápida a

17 “Since no proper biographies survive from the Roman Republic, the long passages in Cicero’s speeches

that describe his client’s background may be regarded as the earliest extant Roman biographical writing.”

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personagens importantes da História. O conjunto dessas biografias (mais de trezentas ao

todo, embora muito poucas tenham sido conservadas) foi chamada De viris illustribus.

Ao longo das biografias de Nepos que chegaram até nós, observa-se claramente a

preocupação do autor em educar o povo romano a respeito dos vultos históricos de maior

importância. Numa delas em particular, há também a preocupação de que seu trabalho

não se confunda com o do historiador:

Pelopidas Thebanus, magis historicis quam uulgo notus. Cuius de uirtutibus

dubito quem ad modum exponam, quod uereor, si res explicare incipiam, ne

non uitam eius enarrare, sed historiam uidear scribere, sin tantummodo

summas attigero, ne rudibus Graecarum litterarum minus dilucide appareat,

quantus fuerit ille uir. (Nep. Pel, 1, 1)18

Pode-se perceber que Nepos reconhece que uma biografia deveria conter os fatos

mais relevantes da vida do personagem (muito embora, no caso da biografia de Pelópidas,

isso pudesse resultar na dificuldade por parte dos leitores que não conhecem a cultura

grega em enxergar a grandeza daquele personagem). O que, na verdade, não vai muito

além daquilo que já havia sido visto até então. O valor da reflexão de Nepos para este

estudo reside principalmente no fato de encontrar-se no trecho citado uma menção clara

do termo latino utilizado para descrever a biografia, Vita, além da preocupação de manter

essa mesma “vida” num campo de produção textual diferente daquele ao qual pertencem

os textos dos historiadores (textos aos quais ele se refere usando o termo historia). É

importante lembrar que Nepos foi também um historiador, além de ter feito a biografia

de outros historiadores, o que faz com que ele tenha tido a necessidade de mostrar aos

seus leitores as diferenças entre essas duas maneiras de produzir textos.

Outro autor que também se dedicou tanto à historiografia quanto à biografia foi

Tácito (55-120 d.C.). Ele fez a biografia do próprio sogro, Agricola, na qual são narrados

muitos dos feitos militares do biografado. A diferença é que Tácito foi muito mais

18 “Pelópidas, o Tebano, é mais conhecido pelos historiadores que pelo vulgo. Hesito quanto ao modo como

devo apresentar suas virtudes, pois temo que se eu começar a contar os fatos, não estaria narrando sua vida,

mas sim pareceria antes estar escrevendo história; se pelo contrário eu tocar somente os fatos mais

importantes, temo que seja menos claro aos que não conhecem as letras gregas o quão grande foi aquele

homem.”.

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historiador do que biógrafo: ele narra fatos que muitas vezes se encaixariam melhor numa

obra historiográfica, por exemplo, ao fazer a descrição da Bretanha do ponto de vista

geográfico, além de descrever os combates entre as tropas de Agrícola e Calgacus (líder

militar da Bretanha) com tal riqueza de detalhes que chega até mesmo a reproduzir os

discursos de ambos aos seus homens. Assim, essa que foi uma das primeiras obras de um

futuro historiador, já dá sinais de como suas obras historiográficas serão estruturadas.

Por fim, o próprio Suetônio precisa ser devidamente analisado sob a luz da

comparação entre os dois gêneros. Não que ele tenha sido um historiador, apesar de sua

obra ter abarcado os mais diversos assuntos da antiguidade.19 Mas acontece que ele foi

contemporâneo de Tácito, e os dois autores publicaram suas obras em períodos de tempo

muito próximos. Quando da publicação dos primeiros livros do De Vita Caesarum (as

doze uitae foram publicadas em oito volumes, com os seis primeiros contendo apenas

uma uita cada, e os dois últimos contendo três uitae), Tácito já havia publicado suas

Historiae, que tratavam do período entre os governos de Nero e Domiciano e já se

preparava para publicar uma obra que trataria do período imediatamente anterior, o dos

júlio-claudianos. Assim, muito embora as duas primeiras biografias de Suetônio, a de

César e a de Augusto, não encontrassem correspondência imediata na obra de Tácito -

que viria a iniciar seus Annales pelo governo de Tibério - Suetônio sabia que suas uitae

corriam um grande risco de se tornarem redundantes se comparadas aos relatos de Tácito.

Sendo ele um erudito e não um historiador, e “competindo” com as obras de um

colega que foi sem dúvida o maior historiador do período, o estilo e a estrutura da obra

de Suetônio tiveram de se adaptar a essa realidade. Para começar, Suetônio fugiu do tipo

peripatético de escrita biográfica, que buscava se utilizar da vida do personagem

biografado para daí derivar lições de moral filosóficas, dando preferência ao estilo mais

enxuto e erudito das biografias alexandrinas (caminho inverso ao feito pelo Agricola, de

Tácito, que tinha inclusive um claro tom encomiástico). Nem por isso, no entanto, o seu

19 Segundo Mellor: “Suetônio escreveu uma grande variedade de livros sobre assuntos linguísticos, de

antiquário e biográficos, embora em sua maioria apenas os títulos tenham sobrevivido. Ele foi obviamente

um erudito de grande alcance, uma vez que escreveu livros sobre tópicos tão diversos quanto o ano romano,

o calendário, os nomes dos mares e as vidas de prostitutas famosas.” (Suetonius wrote a wide range of

books on linguistic, antiquarian, and biographical subjects, though for most only the titles survive. He was

obviously a scholar of great range, since he wrote books on such diverse topics as the Roman year, the

calendar, the names of seas, and the lives of famous prostitutes.) (MELLOR, 1999: 147)

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trabalho deixou de ter pretensões literárias: ele soube se utilizar do esquema de escrita

biográfica dos peripatéticos ao trabalhar com uma série de narrativas anedóticas sobre

seus biografados, a partir das quais se poderia chegar a uma conclusão sobre o caráter do

mesmo. A diferença entre essa prática e aquela presente nos trabalhos dos peripatéticos é

que Suetônio não tinha – ou aparentava não ter – a intenção de apresentar suas próprias

conclusões sobre a conduta dos imperadores. Como um verdadeiro erudito, ele

apresentava os fatos e deixava que o leitor tirasse suas próprias conclusões.

O que não o impede, é claro, de oferecer ao leitor narrativas anedóticas que o

deixem mais propenso a julgar cada imperador de um modo particular. Quem quer que

tenha conhecido Calígula exclusivamente através de Suetônio não terá dúvidas de que se

tratava de um homem cruel, egoísta, covarde, pervertido e provavelmente insano. A

realidade, no entanto, pode ser diferente, e muito embora Suetônio possa ser desculpado

por seus relatos difamatórios por conta do período de tempo que separa sua escrita do

governo de Calígula, algumas afirmações que o autor faz não deveriam ser levadas em

consideração por alguém que se considera um erudito e tenta escrever de maneira

imparcial. Por exemplo, a respeito das práticas sexuais incestuosas de Calígula,

Winterling afirma que:

A afirmação de que o imperador cometeu incesto com suas três irmãs é uma

informação imprecisa que vem à tona pela primeira vez em Suetônio. Sua

falsidade é facilmente comprovada: os dois contemporâneos do imperador,

Sêneca e Fílon, que eram familiares aos círculos aristocráticos em Roma e bem

informados, acumulam injúrias contra o imperador e dificilmente falhariam em

mencionar tal acusação se ela estivesse em circulação naquele tempo. Mas

claramente eles não sabiam nada a respeito. (WINTERLING, 2011: 3)20

Assim, Suetônio assume uma postura particular em sua escrita que o coloca ao

mesmo tempo distante das produções biográficas vistas até então em Roma e em contraste

com aquilo que Tácito vinha escrevendo sobre os mesmos períodos históricos em que ele

20 “The claim that the emperor committed incest with his three sisters is misinformation that surfaces for

the first time in Suetonius. Its hollowness is easily proved: The emperor’s two contemporaries Seneca and

Philo, who were both familiar with aristocratic circles in Rome and well informed, heap invective on the

emperor and would hardly have failed to mention such a charge had it been in circulation then. But clearly

they know nothing about it.”

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se concentrou. Para melhor ilustrar como isso se deu, observemos a separação feita por

Hadrill entre as Vitae de Suetônio e a historiografia.

Hadrill separa o De Vita Caesarum das obras historiográficas com base em três

critérios: estrutura, objeto de estudo e estilo. No que diz respeito à estrutura, ele afirma

primeiramente que a historiografia em Roma tinha uma estrutura cronológica e narrativa.

Cronológica, por influência dos Anais Pontificais, em que os sacerdotes registravam as

atividades diárias da cidade nas mais diversas esferas do governo e da religião. Sobre esse

costume de registro dos fatos se acrescentou a característica narrativa, derivada dos

grandes clássicos da literatura grega – as epopeias homéricas. Quanto às biografias, de

maneira geral, elas mantêm esses dois aspectos da estrutura historiográfica, com a

diferença de que sua cronologia não é derivada da mera passagem dos anos, mas sim

demarcada pelas fases da vida do biografado: sua família, local de nascimento, a narrativa

de sua morte, etc. Essa cronologia também é refinada pela vida social do biografado, e

grande ênfase é dada aos cargos políticos ocupados por ele.

Nas uitae de Suetônio, a diferença se faz ainda maior: ele busca renunciar à

narrativa. Obviamente seria impossível renunciar a ela por completo sem transformar seu

trabalho numa estranha versão dos Anais Pontificais, mas o processo de tessitura do texto

das uitae de Suetônio se dá, segundo Hadrill, por uma análise de um determinado fato

relevante, do qual são retirados todos os detalhes não essenciais (narrativos, em sua

maioria), e que depois é reconstituído a partir dos detalhes mais relevantes. É assim que,

na biografia de Júlio César, ao tratar das conquistas militares do imperador, ele não vai

fazer uma narrativa das batalhas pelas quais César teve de passar durante o período em

que esteve na Gália, mas vai simplesmente resumir todos os seus sucessos e revezes

durante as guerras gaulesas num único parágrafo. O objetivo de Suetônio é evitar fazer

uso de uma narrativa que se encontraria presente também numa obra historiográfica. Em

lugar de narrar as batalhas, portanto, ele se debruça sobre a personalidade de César

enquanto general e líder. As conquistas de César, além disso, são de conhecimento

comum, tendo restado inclusive a narrativa do próprio general que expõe esse assunto.

Seria desnecessário se demorar na narrativa de um material tão fartamente documentado.

No entanto, através desse processo de análise e eliminação dos detalhes ele

também acaba por eliminar alguns pontos do contexto que poderiam levar o leitor a uma

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interpretação diferente. Por exemplo, a famosa passagem em que Calígula teria dito que

pretendia tornar cônsul seu cavalo favorito, Incitato, poderia ganhar uma interpretação

bem diferente daquela que Suetônio oferece de maneira pretensamente imparcial, caso

outros detalhes do contexto político de seu governo tivessem sido incluídos junto à

anedota. Por exemplo, o fato de Calígula estar assumindo um forte posicionamento de

oposição aos aristocratas de sua corte. Segundo Winterling:

Não há como saber se todos em Roma entenderam essa piada. Nem podemos

dizer se Suetônio a entendeu posteriormente ou – o que parece mais provável

– falhou em entendê-la de propósito, já que faz uso dela para apresentar o

imperador como insano. (...) Chegar ao consulado permanecia o objetivo mais

importante da carreira de um aristocrata. Equipar o cavalo do imperador com

uma propriedade suntuosa e destiná-lo ao consulado satirizava o objetivo

principal das vidas dos aristocratas e o deixava exposto ao ridículo. Calígula

colocou seu cavalo no mesmo nível dos membros de mais alto escalão da

sociedade – e por implicação igualou-os a um cavalo. (WINTERLING, 2011:

103)21

Fora de seu contexto, o fato apresentado ganha uma interpretação bastante diversa.

No entanto, não há como dizer que Suetônio faltou com a verdade ao narrar essa anedota.

Ele apenas omitiu detalhes importantes, situando a anedota do cavalo em meio a outras

tantas que procuravam pintar uma imagem de Calígula como um imperador

completamente louco: o episódio do cavalo fecha o capítulo LV, em que Suetônio fala de

como Calígula “Quorum uero studio teneretur, omnibus ad insaniam fauit.” (Cal, LV,

1)22. Logo, o leitor será induzido a acreditar que Calígula fez o que fez por ser louco, e

não como provocação a seus adversários políticos.

Quanto ao objeto de estudo, Hadrill reconhece que a historiografia clássica tem

como objeto a pólis, os conflitos internos e externos que lhe dizem respeito (no campo

21 “There is no way to know whether everyone in Rome got this joke. Nor can we tell whether Suetonius

understood it later or – as seems more likely – failed to understand it on purpose, since he makes use of it

to present the emperor as insane. (…) Achieving the consulship remained the most important goal of an

aristocrat’s career. To equip the emperor’s horse with a sumptuous household and to destine it for the

consulship satirized the main aim of aristocrat’s lives and laid it open to ridicule. Caligula placed his horse

on the same level as the highest-ranking members of society – and by implication equated them with a

horse.”

22 “Cuidava daqueles que tinha em grande estima até o ponto da loucura.”

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militar) e a vida política de seus cidadãos. Já a biografia teria como objeto a vida de um

único homem, sua personalidade e suas conquistas.

Já as uitae de Suetônio fazem um distanciamento mais radical do objeto de estudo

da historiografia. Segundo Hadrill, Suetônio consegue atingir esse distanciamento de

maneira negativa e de maneira positiva: negativamente ao reduzir ao mínimo tudo o que

diz respeito à guerra e à política. Novamente, seria impossível abrir mão por completo

desses elementos, mas Suetônio tenta apresentar apenas aquilo que é mais essencial a

essas passagens e, como já se viu, eliminando sempre que possível a narrativa

historiográfica – mesmo quando se vê forçado a narrar uma ação militar específica, ele

não narra as batalhas em si, mas somente aquilo que é essencial, via de regra uma anedota,

para melhor traçar a personalidade do biografado; positivamente, ele procura se

concentrar naquilo que não é histórico – a vida privada do imperador é seu foco principal,

e mesmo quando abordar a vida pessoal é impossível sem falar também em política, ele

se mantém no campo das relações pessoais. Assim, as relações presentes na família do

imperador, que obviamente influenciam não só o governo presente, mas também definem

o que será feito do governo futuro, são tratadas como meras relações interpessoais. As

grandes maquinações políticas que tinham como objetivo destronar o imperador não

passam de desentendimentos entre familiares. Quanto ao trabalho do imperador em si,

por evitar mostrar os trabalhos mais “históricos” dos imperadores, como grandes

conquistas militares e políticas, ele prefere oferecer ao leitor uma visão do imperador em

seu dia-a-dia, o que é um ponto-de-vista muito interessante para os historiadores atuais,

mas que seria desprezado pelos historiadores clássicos como algo indigno da

historiografia.

É por isso que na vida de Calígula se encontram passagens bastante demoradas

que tratam da maneira como o imperador exerceu sua prodigalidade, oferecendo presentes

em dinheiro ao povo, grandes banquetes aos senadores, organizando diversos jogos, etc.

Suetônio chega até mesmo a falar das obras públicas que Calígula planejou, mas não

conseguiu realizar, como sua intenção de cortar o istmo da província da Acaia (Grécia),

que unia a Grécia continental à Península do Peloponeso, obra que facilitaria a passagem

de navios mercantes na região.

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Por fim, quanto ao estilo, Hadrill aponta para a necessidade existente na

historiografia de adequar seu estilo de escrita à natureza de seu objeto de estudo. Uma

vez que se trata de assuntos muito elevados, os mais importantes fatos políticos e militares

de um determinado período, o estilo precisa ser elevado ao mesmo patamar. Tem-se,

portanto, uma escrita muito trabalhada, que muitas vezes abusa de recursos literários para

embelezar o texto.

As uitae de Suetônio definitivamente não fazem uso desses recursos. Seu estilo é

seco, sem adornos, típico de um erudito. Embora não se possa dizer que ele tenha escrito

sem pretensões literárias, há muito pouco de literário no seu estilo de escrita. Do uso de

anedotas, deriva em Suetônio uma clara separação por tópicos ao longo do texto (o que

Hadrill chama de rubricas), que mais se assemelha a um catálogo do que à narrativa das

ações de um personagem.

Há três práticas da escrita de Suetônio que tornam clara sua postura como autor

erudito, afastando-o do rebuscamento literário dos historiógrafos: primeiramente, o uso

de vocabulário técnico. É o que aparece, por exemplo, em muitas das vezes em que se faz

menção a um gladiador. Ao longo da vida de Calígula, Suetônio cita diversos tipos de

gladiadores, mas nem sempre se referindo a eles pelo vocábulo gladiator, e sim utilizando

o vocábulo que melhor os descreve de acordo com sua função. Assim, no capítulo XXXII

ele fala no Murmulio, que usava um elmo adornado com a figura de um peixe; no capítulo

XXXV aparecem menções ao Thraex, o gladiador trácio, conhecido por usar as armas

típicas daquele povo; ao Hoplomachus, um gladiador que, ao contrário do que era

costume, usava uma armadura completa; e ao Essedarius, que lutava sobre um carro.

Outra prática bastante comum no estilo de Suetônio é o uso de citações em grego.

Para além de palavras isoladas, ele reproduz muitas vezes a fala de um personagem em

momentos cruciais. A famosa fala de César, “Até tu, Brutus, meu filho?”, dirigida a seu

antigo aliado pouco antes de sua morte, teria sido proferida pelo moribundo em grego

("καὶ σύ, τέκνον”, no capítulo LXXXII). Calígula também parece ter uma tendência a

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citar em grego textos clássicos, como quando faz uso do texto homérico para pôr fim a

uma discussão entre reis do oriente: “Εἷς κοίρανος ἔστω, εἷς βασιλεύς.”23.

Por fim, Suetônio também faz citações completas de documentos, fato que deriva

de sua posição particular na administração imperial durante os governos de Trajano e de

Adriano, e que lhe conferiu acesso a uma série de documentos que poucos privilegiados

poderiam consultar. Essa prática o torna uma fonte muito importante de documentação

histórica dos governos dos imperadores, em particular das correspondências de seus

biografados.

Tendo em vista o que foi apresentado até aqui, é possível observar que não há um

texto teórico oriundo da Antiguidade Clássica que reconheça a biografia como um gênero

literário. No entanto, não se deve considerar esse fato como uma afirmação de que a

biografia não é um gênero, já que os textos teóricos da Antiguidade, via de regra,

apresentavam classificações que não se destinavam a abarcar a totalidade das produções

literárias.

Ao observarmos as afirmações feitas por autores da literatura latina a respeito da

biografia e da historiografia, sua preocupação em se manter dentro de um esquema textual

específico que caracterizaria a biografia, fica claro que, se a biografia não foi reconhecida

formalmente como gênero literário, é ao menos uma categoria textual reconhecida pelos

escritores da época, que a opõem ao gênero historiográfico. Assumindo que esses

escritores não produziriam um texto sem antes refletir sobre o gênero a que ele pertence,

não seria absurdo considerar que a biografia foi, de fato, um gênero literário na

Antiguidade Clássica.

Por fim, mesmo que se possa questionar a última afirmação, fica óbvio que

Suetônio, ao escrever o De Vita Caesarum, estava consciente da necessidade de opor sua

obra aos textos historiográficos, e se dedicou a criar um contraste entre eles e suas

biografias de líderes romanos.

23 “Um só tenha o posto supremo; Um seja o rei.” (Cal. XXII). Calígula cita a Ilíada. A tradução é de

Carlos Alberto Nunes.

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4 Texto e tradução

LIBER IIII

C. CALIGVLA

I. 1Germanicus, C. Caesaris pater, Drusi et

minoris Antoniae filius, a Tiberio patruo

adoptatus, quaesturam quinquennio ante

quam per leges liceret et post eam

consulatum statim gessit, missusque ad

exercitum in Germaniam, excesso Augusti

nuntiato, legiones uniuersas imperatorem

Tiberium pertinacissime recusantis et sibi

summam rei p. deferentis incertum pietate

an constantia maiore compescuit atque

hoste mox deuicto triumphauit. 2Consul

deinde iterum creatus ac prius quam

honorem iniret ad componendum Orientis

statum expulsus, cum Armeniae regem

deuicisset, Cappadociam in prouinciae

formam redegisset, annum agens aetatis

quartum et tricensimum diuturno morbo

Antiochiae obiit non sine ueneni

suspicione. 3Nam praeter liuores, qui toto

corpo erant, et spumas, quae per os

fluebant, cremati quoque cor inter ossa

incorruptum repertum est: cuius ea natura

LIVRO IIII

C. CALÍGULA

I – 1Germânico, pai de Calígula, filho de

Druso e de Antônia, a jovem, adotado pelo

tio paterno Tibério, assumiu o cargo de

questor cinco anos antes do que era

permitido por lei e imediatamente depois

o consuladoI. Foi enviado ao exército da

Germânia e, anunciada a morte de

Augusto, conteve todas as legiões que se

voltavam pertinazmente contra o

imperador Tibério e ofereciam a ele

mesmo o poder supremo, não se sabe se

por maior piedade ou firmeza de caráterII;

pouco depois de derrotar o inimigo,

recebeu o triunfo. 2Foi feito cônsul depois,

pela segunda vez, e antes de receber o

cargo foi enviado de Roma com a missão

de pacificar o Oriente. Depois de derrotar

completamente o rei da Armênia,

submeteu a Capadócia como província e,

contando trinta e quatro anos de idade,

morreu na Antioquia de uma doença de

longa duração, não sem suspeita de

envenenamento. 3Pois, além das manchas,

que cobriam todo o corpo, e da espuma

I O trecho inicial (os primeiros sete capítulos) da vida de Calígula funciona, na verdade, como uma pequena

biografia de seu pai, Germânico (15 a.C. – 19 d.C.). II Os termos usados nessa passagem para descrever as virtudes de Germânico são pietas e constantia. Pode-

se traçar aqui um paralelo entre a piedade de Germânico em relação a seu pai adotivo Tibério e o futuro

comportamento de Calígula em relação à mesma figura (Calígula admite ter pensado em matar Tibério).

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existimatur, ut tinctum, ueneno igne

confici nequeat.

que lhe saía da boca, também foi

encontrado intacto entre os seus ossos o

coração do cremado: órgão que se

considera de natureza tal que, se repleto de

veneno, não pode ser destruído pelo fogo.

II. Obiit autem, ut opinio fuit, fraude

Tiberi, ministerio et opera CN. Pisonis,

qui sub idem tempus Syriae praepositus,

nec dissimulans offendendum sibi aut

patrem aut filium, quasi plane ita necesse

esset, etiam aegrum Germanicum

grauissimis uerborum ac rerum

acerbitatibus nullo adhibito modo adfecit;

propter quae, ut Romam rediit, paene

discerptus a populo, a senatu capitis

damnatus est.

II – Morreu, porém, como se acreditou,

por crime de Tibério, por trabalho e obra

de Cneu Pisão, que naquele mesmo tempo

comandava a Síria, e não escondendo que

ele tinha quase a necessidade de ofender

ou o pai ou o filho, indispôs o doente

Germânico com gravíssimas ofensas de

palavras e de gestos, sem qualquer

mesuraIII; razão pela qual, retornando a

Roma, tendo sido quase despedaçado pelo

povo, foi condenado à morte pelo Senado.

III. 1Omnes Germanico corporis animique

uirtutes, et quantas nemini cuiquam,

contigisse satis constat: formam et

fortitudinem egregiam, ingenium in

utroque eloquentiae doctrinaeque genere

praecellens, beniuolentiam singularem

conciliandaeque hominum gratoae ac

promerendi amoris mirum et efficax

studium. 2Formae minus congruebat

III – 1Consta que Germânico tinha todas as

virtudes do corpo e do espírito, e ninguém

as tinha em tão grande nívelIV: aparência e

força notáveis, talento extraordinário em

ambos os tipos de eloquência e

aprendizado, singular benevolência, e um

admirável e poderoso esforço de granjear

as boas graças dos homens e obter sua

afeiçãoV. 2As pernas magras não se

III Tácito acrescenta a isso ainda o uso de imprecações místicas contra Germânico (Tac. Ann. II.69.5). IV Como se pode notar, essa pequena biografia possui um acentuado caráter encomiástico. V Essas são as principais virtudes de germânico: forma (sua beleza física), fortitudo (sua robustez, uma

força que pode ser entendida no sentido físico e no moral), eloquentia (a eloquência, facilidade de

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gracilitas crurum, sed ea quoque paulatim

repleta assidua equi uectatione post

cibum. 3Hostem comminus saepe

percussit. 4Orauit causas etiam

triumphalis; atque inter cetera studiorum

monimenta reliquit et comoedias Graecas.

5Domi forisque ciuilis, libera ac foederata

oppida sine lictoribus adibat. Sicubi

clarorum uirorum sepulcra cognoscerent,

inferias manibus dabat. 6Caesorum clade

Variana ueteres ac dispersas reliquas uno

tumulo humaturus, colligere sua manu et

comportare primus adgressus est.

7Obtrectatoribus etiam, qualescumque et

quantacumque de causa nanctus esset,

lenis adeo et innoxius, ut Pisoni decreta

sua rescindenti, clientelas diuexanti non

prius suscensere in animum induxerit,

quam ueneficiis quoque et deuotionibus

impugnari se comperisset; ac ne tunc

quidem ultra progressus, quam ut

amicitiam ei more maiorum renuntiaret

mandaretque domesticis ultionem, si quid

sibi accideret.

harmonizavam com a aparência, mas ele

conseguiu repará-las gradualmente

montando a cavalo com frequência após as

refeições. 3Ele frequentemente matava o

inimigo em combate corpo-a-corpo.

4Defendia causas mesmo depois de ter

recebido o triunfo. E, entre outras

lembranças de seus estudos, deixou

também comédias gregas. 5Modesto

dentro e fora de casa, visitava as cidades

livres e as aliadas sem ser precedido por

litores. Se, em algum lugar, reconhecesse

os túmulos de homens ilustres, fazia

sacrifícios aos Manes. 6Quando estava

para enterrar em um único túmulo as

relíquias antigas e dispersas dos que

caíram durante a destruição de Varo, foi o

primeiro a tentar recolhê-los e reuni-los

com suas próprias mãos. 7Até mesmo com

seus inimigos, quem quer que fossem e

por grande que fosse o motivo de serem

seus desafetos, a tal ponto era brando e

inofensivo, que, enquanto Pisão anulava

seus decretos e maltratava sua clientela,

não conseguiu se convencer a se indispor

com ele antes que se descobrisse atacado

com venenos e maldições. E mesmo então

não foi além de renunciar a sua amizade

de acordo com os costumes dos

antepassados e de recomendar a vingança

expressar-se) e o que se costuma entender por civilitas (sua sociabilidade, cortesia e modéstia). Tudo isso

faz contraste com os defeitos de Calígula, com a possível exceção da eloquência.

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aos de sua casa, na eventualidade de algo

lhe acontecer.

IV. Quarum uirtutum fructum uberrimum

tulit, sic probatus et dilectus a suis, ut

Augustus (omito enim necessitudines

reliquas) diu cunctatus and sibi

successorem destinaret, adoptandum

Tiberio dederit; sic uulgo fauorabilis, ut

plurimi tradant, quotiens aliquo adueniret

uel sicunde discederet, prae turba

occurentium prosequentiumue

nonnumquam eum discrimen uitae adisse,

e Germania uero post compressam

seditionem reuertenti praetorianas

cohortes uniuersas prodisse obuiam,

quamuis pronuntiatum esset, ut duae

tantum modo exirent, populi autem

Romani sexum, aetatem, ordinem omnem

usque ad uicesimum lapidem effudisse se.

IV – Dessas virtudes ele colheu o fruto

mais fértil, pois era tão amado e estimado

pelos seus, que Augusto – omito, pois, os

demais parentes -, tendo hesitado por

longo tempo em fazê-lo seu sucessor, fez

com que fosse adotado por TibérioVI. Era

tão querido pelo povo que, como muitos

registram, todas as vezes que chegava a

algum lugar ou saía de lá, frequentemente

corria perigo de vida por conta da

multidão dos que iam ao encontro dele ou

dos que o seguiam. Enquanto voltava da

Germânia depois de ter contido a revolta,

todas as coortes pretorianas foram

encontrá-lo no caminho, ainda que se

tivesse decidido que apenas duas

poderiam ir, e os cidadãos romanos de

todas idades, classes e sexos foram até a

vigésima pedra miliar para recebê-lo.

V. 1Tamen longe maiora et firmiora de eo

iudicia in morte ac post mortem extiterunt.

2Quo defunctus est die, lapidata sunt

templa, subuersae deum arae, Lares a

V – 1E, no entanto, demonstraram-se ainda

maiores e mais seguros testemunhos de

estima por ele em sua morte e depois de

sua morte.VII 2No dia em que morreu, os

VI Os historiadores afirmam que Augusto não nutria grande estima por Tibério (GRIMAL, 2011, p.132). VII Novamente, cria-se um contraste entre a atitude do povo quando da morte de Germânico e sua aparente

indiferença quando da morte de Calígula (segundo Suetônio, o povo achou que Calígula estava simulando

a própria morte).

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quibusdam familiares in publicum abiecti,

partus coniugum expositi. 3Quin et

barbaros ferunt, quibus intestinum

quibusque aduersus nos bellum esset,

uelut in domestico comunique maerore

consensisse ad indutias; regulos quosdam

barbam possuísse et uxorum capita rasisse

ad indicium maximi luctus; regum etiam

regem et exercitatione uenandi et conuictu

megistanum abstinuisse, quod apud

Parthos iustiti instar est.

templos foram apedrejados, os altares dos

deuses foram derrubados, alguns lançaram

para fora de suas casas os deuses lares, e

expuseram os recém-nascidos.VIII 3E

dizem que até mesmo os povos bárbaros,

estando em guerra fosse conosco, fosse

entre si, como se estivessem sofrendo uma

tristeza doméstica e comum, fizeram uma

trégua. Alguns jovens reis tiraram a barba

e fizeram raspar as cabeças de suas

esposas em sinal de máximo luto. E até

mesmo o Rei dos ReisIX se absteve das

caças e dos banquetes, o que entre os

Partos é o equivalente ao luto público.

VI. 1Romae quidem, cum ad primam

famam ualitudinis attonita et maesta

ciuitas sequentis nuntios opperiretur, et

repente iam uesperi incertis auctoribus

conualuisse tandem percrebruisset, passim

cum luminibus et uictimis in Capitolium

concursum est ac paene reuolsae templi

fores, ne quid gestientis uota reddere

moraretur, expergefactus e somno

Tiberius gratulantium uocibus atque

undique concinentium:

VI – 1Em Roma, pois, quando a cidade

triste e consternada pelos primeiros boatos

de sua saúde aguardava as notícias

seguintes, e de repente, à tarde, se

espalhou o boato, de fonte duvidosa, de

que ele havia enfim se recuperado, o povo,

vindo de todas as direções, correu ao

Capitólio com vítimas e tochas, e quase

destruíram as portas do templo para que

nada impedisse os impacientes de

pagarem suas promessas. Tibério foi

despertado de seu sono pelas vozes dos

VIII Essa curiosa forma de protesto não era de todo incomum. Segundo VEYNE, 2009b: 23, quando da

morte de Agripina por Nero, um cidadão teria abandonado seu filho, pondo sobre ele um cartaz que dizia

“não te crio com medo de que mates tua mãe”. IX Título dado ao rei dos Partos, povo que habitava regiões do Oriente Médio que se estendiam pelos

territórios dos atuais Irã e Síria.

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Salua Roma, salua patria, saluus est

Germanicus.

2Et ut demum fato functum palam factum

est, non solaciis ullis, non edictis inhiberi

luctus publicus potuit durauitque etiam

per festos Decembris mensis dies. 3Auxit

gloriam desideriumque defuncti et

atrocitas insequentium temporum, cunctis

nec temere opinantibus reuerentia eius ac

metu repressam Tiberi saeuitiam, quae

mox eruperit.

que agradeciam e que cantavam por toda

parte:

‘Está salva Roma, está salva a pátria, pois

Germânico está salvo!’

2Mas, quando enfim se soube que ele

havia morrido, nenhum consolo, nenhum

édito pôde conter o luto público, que se

estendeu até mesmo pelos dias festivos de

dezembroX. 3A atrocidade dos tempos

seguintes aumentou a fama e a saudade do

falecido, pois todos acreditavam que a

crueldade de Tibério, que logo se mostrou,

estava sendo contida por medo e respeito

à sua figura.

VII. Habuit in matrimonio Agrippinam,

M. Agrippae it Iuliae filiam; ex ea nouem

liberos tulit: quorum duo infants adhuc

rapti, unus iam puerascens insigni

festiuitate, cuius effigiem habitu

Cupidinis in aede Capitolinae Veneris

Liuia dedicauit, Augustus in cubiculo suo

positam, quotiensque introieret,

exosculabatur; ceteri supérstites patri

fuerunt, tres sexus feminini, Agrippina

Drusilla Liuilla, continuo Trienio natae;

totidem mares, Nero et Drusus et C.

VII – Casou-se com Agripina, filha de M.

Agripa e Júlia, que lhe deu nove filhos;

dos quais dois morreram ainda crianças, e

um, conhecido por sua alegria, quando

estava se tornando rapaz, e cuja estátua

com trajes de cupido foi posta por Lívia no

templo de Vênus Capitolina, e Augusto

tinha outra em seu quarto, e sempre a

beijava ao entrar. Os demais viveram mais

que o pai, AgripinaXI, Drusila e Livila,

nascidas sucessivamente em três anos, e o

mesmo número de meninos, Nero, Druso

X As Saturnalia, festas em honra de Saturno, que se realizavam entre 17 e 23 de dezembro. XI A futura mãe do imperador Nero.

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Caesar. Neronem et Drusum senatus

Tiberio criminante hostes iudicauit.

e C. César. O Senado julgou inimigos a

Nero e Druso, sob acusação de TibérioXII.

VIII. 1C. Caesar natus est pridie Kal. Sept.

patre suo et C. Fonteio Capitone coss. 2Vbi

natus sit, incertum diuersitas tradentium

facit. 3CN. Lentulus Gaetulicus Tiburi

genitum scribit, Plinius Secundus in

Treueris uico Ambitaruio supra

Confluentes; addit etiam pro argumento

aras ibi ostendi inscriptas << ob

Agrippinae puerperium>>. 4Versiculi

imperante mox eo diuulgati apud hibernas

legiones procreatum indicant:

In castris natus, patriis nutritus in armis,

Iam designate principis omen erat.

5Ego in actis Anti editum inuenio.

6Gaetulicum refellit Plinius quasi

mentitum per adulationem, ut ad laudes

iuuenis gloriosique principis aliquid etiam

ex urbe Herculi sacra sumeret, abusumque

audentius mendacio, quod ante annum

fere natus Germanico filius Tiburi fuerat,

appelatus et ipse C. Caesar, de cuius

amabili pueritia immaturoque obitu supra

VIIIXIII – 1Caio César nasceu na véspera

das calendas de setembroXIV, sob o

consulado de seu pai e de C. Fonteio

Capito. 2O lugar onde nasceu é incerto,

devido ao desacordo entre os que o

narram. 3Cn. Lêntulo GetúlicoXV escreve

que ele nasceu em TiburXVI; Plínio, o

Jovem, diz que ele nasceu em TréverisXVII,

no vilarejo de Ambitárvio, ao norte de

Coblença; e acrescenta como prova um

altar lá erigido com a inscrição “ao parto

de Agripina”. 4Os versos divulgados

pouco depois de ele se tornar Imperador

indicam que ele teria nascido nos

acampamentos de inverno das legiões:

‘Nascido nos acampamentos, nutrido

pelas armas do pai,

Já era o presságio de ser destinado ao

Império.’

XII O próprio Suetônio narra o fato com maiores detalhes na vida de Tibério (Suet. Tib. LIV). XIII Tem início a narrativa do nascimento e dos primeiros anos de vida de Calígula. É o começo de sua

biografia propriamente dita. XIV Em 31 de agosto do ano 12 d.C. XV Contemporâneo de Calígula, que foi executado por ordem do mesmo em 39 d.C. XVI Atual Tívoli, comuna italiana da região do Lácio. XVII Atual Trier, na Alemanha

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diximus, 7Plinium arguit ratio temporum.

Nam qui res Augusti memoriae

mandarunt, Germanicum exacto consulatu

in Galliam missum consentiunt iam nato

Gaio. 8Nec Plini opinionem inscriptio arae

quicquam adiuuerit, cum Agrippina bis in

ea regione filias enixa sit, et qualiscumque

partus sine ullo sexus discrimine

puerperium uocetur, quod antiqui etiam

puellas pueras, sicut et pueros puellos

dictitarent. 9Extat et Augusti epistula, ante

paucos quam obiret menses ad

Agrippinam neptem ita scripta de Gaio

hoc (neque enim quisquam iam alius

infans nomine pari tunc supererat):

<<Puerum Gaium XV Kal. Iun., si dii

uolent, ut ducerent Talarius et Asillius,

heri cum iis constitui. Mitto praeterea cum

eo ex seruis meis medicum, quem scripsi

Germanico si uellet ut retineret. Valebis,

mea Agrippina, et dabis operam ut ualens

peruenias ad Germanicum tuum.>>

10Abunde parere arbitror non potuisse ibi

nasci Gaium, quo prope bimulus demum

perductus ab urbe sit. 11Versiculorum

quoque fidem eadem haec eleuant et eo

facilius, quod ii sine auctore sunt.

12Sequenda est igitur, quae sola [autor]

restat et publici instrumenti auctoritas,

praesertim cum Gaius Antium omnibus

5Eu mesmo encontrei nos Atos oficiais

que ele nasceu em ÂncioXVIII. 6Plínio

refuta Getúlico, como se ele houvesse

mentido com o intuito de bajular, para

acrescentar ao elogio de um príncipe

jovem e sedento de glória o fato de ter

nascido numa cidade consagrada a

Hércules, e mais audacioso foi no uso da

mentira porque quase um ano antes um

filho de Germânico havia nascido em

Tibur, também chamado Caio César de

cuja doce infância e morte prematura

falamos anteriormente. 7Contra Plínio

pesa o argumento do tempo. Pois aqueles

que ficaram encarregados das memórias

de Augusto consentem que Germânico foi

enviado à Gália depois de seu consulado,

quando Caio já havia nascido. 8E a

inscrição do altar em nada ajuda o

argumento de Plínio, pois Agripina teve

duas filhas naquela região, e o termo

“puerperium” designava qualquer tipo de

parto, sem distinção de sexo, já que os

antigos chamavam também às meninas de

“pueras”, assim como aos meninos de

“puellos”. 9Há também uma carta de

Augusto, escrita à sua neta Agripina

poucos meses antes da morte daquele,

sobre este Caio (pois naquele tempo não

lhe restava nenhuma outra criança com

XVIII Essa interessante passagem demonstra o espírito erudito de Suetônio. Ao longo deste capítulo, o maior

da biografia, ele irá apresentar uma série de provas documentais que contestam as afirmações de Tácito e

de Plínio.

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semper locis atque secessibus praelatum

non aliter quam natale solum dilexerit

tradaturque etiam sedem ac domicilium

imperii taedio urbis transfere eo

destinasse.

este nome): “Combinei ontem com

Talário e Asílio que eles levarão o menino

Caio, se os deuses permitirem, no décimo

quinto dia antes das calendas de junho.

Envio com ele, além disso, um de meus

médicos, sobre o qual escrevi a Germânico

que pode ficar com ele, se quiser. Fica

bem, minha Agripina, e esforça-te por

chegar saudável ao teu Germânico”.

10Julgo ser bastante evidente que Caio não

poderia ter nascido lá, já que somente

quando tinha quase dois anos, foi levado

para lá de Roma. 11Estes mesmos

argumentos retiram também a

legitimidade dos versos com a mesma

facilidade, visto que os mesmos são

anônimos. 12Deve-se seguir, portanto, o

único testemunho que resta e a autoridade

do arquivo público, sobretudo porque

Caio sempre preferiu Âncio a todos os

lugares e refúgios, da mesma maneira

como se prefere o solo natal e diz-se que,

cansado de Roma, quis transferir para lá a

sede e a morada do Império.

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IX. 1Caligulae cognomen castrense ioco

traxit, quia manipulario habitu inter

milites educabatur. 2Apud quos quantum

praeterea per hanc nutrimentorum

consuetudinem amore et gratia ualueri,

máxime cognitum est, cum post excessum

Augusti tumultuandis et in furorem usque

praecipites solus haud dubie ex conspectu

suo flexit. 3Non enim prius destiterunt,

quam ablegari eum ob seditionis

periculum et in proximam ciuitatem

demandari animadiuertissent; tunc

demum ad paenitentiam uersi reprenso ac

retento uehiculo inuidiam quae sibi fieret

deprecati sunt.

IX. 1O sobrenome “Calígula” se deve a

uma brincadeira dos soldados, pois ele foi

criado entre os militares vestindo um

uniforme de soldado rasoXIX. 2Essa criação

valeu-lhe em grande medida, entre outras

coisas, a dedicação e o amor junto às

tropas. Isso se viu sobretudo quando,

depois da morte de Augusto, por si só –

inegavelmente – abrandou os que haviam

sido levados à revolta somente com sua

aparição. 3Não deixaram a revolta, pois,

antes de perceberem que ele seria

afastado, por medo da sedição, e mandado

a uma cidade próxima; então, tomados de

remorso, tendo parado e detido seu carro,

imploraram que fossem poupados de tal

ofensa.

X. 1Comitatus est patrem et Syriaca

expeditione. 2Vnde reuersus primum in

matris, deinde ea relegata in Liuiae

Augustae proauiae suae contubernio

mansit; quam defunctam praetextatus

etiam tunc pro rostris laudauit. 3Transitque

ad Antoniam auiam et undeuicensimo

aetatis anno accitus Capreas a Tiberio uno

atque eodem die togam sumpsit

barbamque posuit, sine ullo honore qualis

X. 1Acompanhou também o pai na

expedição à Síria. Tendo voltado de lá,

permaneceu primeiro junto à mãe e,

depois que esta foi exilada, junto à bisavó,

Lívia Augusta. 2Da qual, depois de morta,

fez o elogio junto aos rostros,XX ainda

vestindo a toga pretextaXXI. 3Depois,

passou a morar com a avó Antônia e,

contando dezenove anos de idade, foi

trazido a CapriXXII por Tibério e no mesmo

XIX Caligula é o diminutivo de caliga, espécie de bota utilizada pelos soldados romanos. XX Tribuna utilizada pelos oradores romanos, ornada com os rostros dos navios dos povos conquistados. XXI Toga com uma faixa púrpura usada pelos patrícios até os 17 anos de idade, quando era substituída pela

toga viril. XXII Ilha do Golfo de Nápoles, no mar Tirreno.

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contigerat tirocinio fratrum eius. 4Hic

omnibus insidiis temptatus elicientium

cogentiumque se ad querelas nullam

umquam occasionem dedit, perinde

obliterato suorum casu ac si nihil cuiquam

accidisset, quae uero ipse pateretur

incredibili dissimulatione transmittens

tantique in auum et qui iuxta erant

obsequii, ut non immerito sit dictum

<<nec seruum meliorem ullum nec

deteriorem dominum fuisse.>>

dia vestiu a toga e raspou a barba, sem

qualquer das honras que acompanharam o

noviciado de seus irmãosXXIII. 4Lá, mesmo

tentado pelas armadilhas dos que o

aliciavam, não reclamou em nenhuma

ocasião, completamente obliteradas as

lembranças das desgraças dos seus, como

se nada tivesse acontecido a ninguém.

Aquilo que em verdade sofria, o escondia

com incrível dissimulação, e tamanha era

a submissão ao avô e aos que o

acompanhavam, que não sem mérito se

disse “não haver melhor escravo nem pior

senhor”.

XI. 1Naturam tamen saeuam atque

probrosam ne tunc quidem inhibere

poterat, quin et animaduersionibus

poenisque ad supplicium datorum

cupidissime interesset et ganeas atque

adulteria capillamento celatus et ueste

longa noctibus obiret ac scaenicas saltandi

canendique artes studiosissime appeteret;

facile id sane Tiberio patiente, si per has

mansuefieri posset ferum eius ingenium.

2Quod sagacissimus senex ita prorsus

perspexerat, ut aliquotiens praedicaret

XI. 1Nem então conseguia esconder a

natureza cruel e ultrajanteXXIV. Pelo

contrário, assistia com grande interesse

aos castigos e penas dos condenados, à

noite, frequentava as orgias e aos

adultérios, disfarçado com uma peruca e

uma veste longa, e dedicava-se com

grande esforço às artes do teatro, da dança

e do canto. Tibério tolerava essas coisas

com facilidade, na esperança de que,

através delas, pudesse abrandar seu gênio

feroz. 2O sagaz ancião tão profundamente

XXIII Honras que levaram Tibério a acusá-los e o Senado a julgá-los como inimigos públicos, resultando em

suas mortes. XXIV Nessa passagem é possível notar claramente a postura de Suetônio com relação à questão da fixidez

do caráter. Seguindo a mesma crença dos biógrafos peripatéticos, ele demostra que Calígula foi cruel desde

sempre, muito embora seu grande talento para a dissimulação o tenha permitido assumir a aparência de um

governante justo e generoso no início de seu governo.

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exitio suo omniumque Gaium uiuere et se

natricem [serpentis id genus] P.R.,

Phaethontem orbi terrarum educare.

o compreendera, que disse algumas vezes

que “Caio vivia para sua ruína e de todos”

e que ele criava “uma hidra para o povo

romano e um Faetonte para o mundoXXV”.

XII. 1Non ita multo post Iuniam

Claudillam M. Silani nobilissimi uiri F.

duxit uxorem. 2Deinde augur in locum

fratris sui Drusi destinatus, prius quam

inauguraretur ad pontificatum traductus

est insigni testimonio pietatis atque

indolis, cum deserta desolataque reliquis

subsidiis aula, Seianoque tunc suspecto

mox et opresso, ad spem successionis

paulatim admoueretur. 3Quam quo magis

confirmaret, amiss Iunia ex partu, Enniam

Naeuiam, Macronis uxorem, qui tum

praetorianis cohortibus praeerat,

sollicitauit ad stuprum polliticus et

matrimonium suum, si potitus imperio

fuisset; deque ea re et iure iurando et

chirographo cauit. 4Per hanc insinuatus

Macroni ueneno Tiberium adgressus est,

ut quidam opinantur, spirantique adhuc

XII.1Assim, não muito tempo depois

desposou Júnia Claudila, filha de M.

Silano, homem nobilíssimo. 2Então,

designado como áugure em lugar de seu

irmão Druso, antes de ocupar o cargo, foi

elevado por Tibério ao pontificado –

testemunho insigne de seu caráter e

piedade – que, como visse a corte deserta

e desprovida de seus apoios, e suspeitasse

de SejanoXXVI, que em breve seria

esmagado, aos poucos o guiava, na

esperança de que o sucedesse. 3Calígula,

para garantir isso, quando perdeu Júnia,

morta no parto, seduziuXXVII Ênia Névia,

esposa de MacrãoXXVIII, que então

comandava a guarda pretoriana e

prometeu casar-se com ela, se alcançasse

o Império, o que proveu com juramento e

com um documento escrito de seu próprio

XXV A Hidra de Lerna era uma serpente aquática muito perigosa que tinha a capacidade de se regenerar:

quando sua cabeça era cortada, duas outras cresciam. Já Faetonte, o filho de Apolo, convenceu o pai a lhe

deixar dirigir o carro que levava o sol através dos céus, mas perdeu o controle e teria incendiado a terra se

Zeus não o tivesse matado com um raio. É interessante que Calígula seja comparado a dois desastres ligados

a elementos opostos, o fogo e a água. XXVI Líder da guarda pretoriana e antigo aliado de Tibério, que permaneceu em Roma depois que o

imperador se mudou para Capri e viria a ser visto como um inimigo e executado, conforme Suetônio relata

aqui. XXVII No original, “sollicitauit ad stuprum”. É preciso lembrar que a palavra “stuprum” tinha um sentido

bastante lato, podendo ser usada para designar qualquer relação sexual ilícita, mesmo quando houvesse o

consentimento das partes envolvidas. XXVIII Sucessor de Sejano na guarda pretoriana.

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detrahi anulum et, quoniam suspicionem

retinentis dabat, puluinum iussit inici

atque etiam fauces manu sua oppressit,

liberto, qui ob atrocitatem facinoris

exclamauerat, confestim in crucem acto.

5Nec abhorret a ueritate, cum sint quidam

autores ipsum postea etsi non de perfecto,

at certe de cogitato quondam parricidio

professum; gloriatum enim assidue in

commemoranda sua pietate, ad

ulciscendam necem Tiberii dormientis et

misericordia correptum abiecto ferro

recessisse; nec illum, quanquam sensisset,

aut inquirere quicquam aut exequi ausum.

punho. 4Através dela se insinuou a

Macrão, envenenou Tibério, segundo

pensam alguns, retirou-lhe o anel

enquanto este ainda respirava e, como

suspeitava de que Tibério o retinha,

mandou que lhe fosse jogada uma

almofada e com sua própria mão o

sufocou. Um liberto que havia protestado

contra a atrocidade do crime, foi

imediatamente mandado à cruz. 5E isto

não está longe da verdade, uma vez que há

autores que afirmam que ele comentou, se

não ter cometido, ao menos ter pensado

em cometer tal parricídio; vangloriava-se

frequentemente de que sua piedade

deveria ser lembrada, que tinha entrado no

quarto de Tibério, com um punhal,

enquanto este dormia, para vingar a morte

da mãe e dos irmãos, e que, tomado de

misericórdia, jogou a arma fora e saiu de

lá; e que nem Tibério, mesmo notando sua

presença, não ousou acusá-lo nem o

castigar.XXIX

XIII. 1Sic imperium adeptus, P.R., uel

dicam hominum genus, uoti compotem

fecit, exoptatissimus princeps maximae

parti prouincialium ac militum, quod

XIII. 1Tendo assim chegado ao poder,

alcançou o desejo do povo romano, ou

antes de toda a humanidade, sendo ele o

príncipe desejado não só pela maior parte

XXIX Perceba-se o contraste entre a piedade de Calígula e a de Germânico. Mesmo a narrativa do próprio

Calígula é dúbia: vingar os parentes mortos seria um ato de piedade, mas para isso era preciso matar Tibério.

O dilema lembra o de Orestes. Seja como for, segundo Suetônio, Calígula só usava esse fato para contar

vantagem.

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infantem plerique cognouerant, sed et

uniuersae plebi urbanae ob memoriam

Germanici patris miserationemque prope

afflictae domus. 2Itaque ut a Miseno mouit

quamuis lugentis habitu et funus Tiberi

prosequens, tamen inter altaria et uictimas

ardentisque taedas densissimo et

laetissimo obuiorum agmine incessit,

super fausta nomina <<sidus>> et

<<pullum>> et <<pupum>> et

<<alumnum>> appelantium.

dos habitantes das províncias e dos

militares, dos quais muitos o tinham

conhecido ainda criança, mas também de

toda a plebe de Roma, por conta da

memória de seu pai, Germânico, e das

desgraças de sua casa, quase

despedaçadaXXX. 2Por isso, quando partiu

de Miseno, embora estivesse vestido de

luto e seguindo o funeral de Tibério, ainda

assim, entre altares, vítimas e tochas

ardentes, atravessou uma multidão densa e

felicíssima dos que vinham ao seu

encontro, e que o chamavam com nomes

auspiciosos, como ‘astro’, ‘menino’,

‘rapazinho’ e ‘pupilo’.

XIV. 1Ingressoque urbem, statim

consenso senatus et irrumpentis in curiam

turbae, inrita Tiberi uoluntate, qui

testamento alterum nepotem suum

praetextatum adhuc coheredem ei dederat,

ius arbitriumque omnium rerum illi

permissum est tanta publica laetitia, ut

tribos proximis mensibus ac ne totis

quidem supra centum sexaginta milia

uictimarum caesa tradantur. 2Cum deinde

paucos post dies in proximas Campaniae

insulas traiecisset, uota pro redita suscepta

XIV. 1Tendo chegado a Roma, o Senado,

em acordo com a turba que irrompia pela

cúria, e malgrado a vontade de Tibério –

que em seu testamento deixara como

coerdeiro outro neto seu, já vestido da

pretextaXXXI – deu a ele direito e governo

de todas as coisas. Tamanha foi a alegria

do povo, que nos três meses seguintes, e

um pouco mais, segundo consta, foram

sacrificadas mais de cento e sessenta mil

vítimas. 2Como, então, depois de poucos

dias, ele tivesse ido para as ilhas próximas

XXX Fica claro que o apreço do povo por Calígula se deve antes à sua família, seja pelo prestígio de

Germânico, seja pela tragédia famíliar, do que aos seus próprios méritos. XXXI Tiberius Gemellus (o “gemeozinho”) , filho de Druso, primo de Calígula que seria adotado por ele e

depois morto, sob acusações de planejar uma traição.

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sunt, ne minimam quidem ocasionem

quoquam omittente in testificanda

sollicitudine et cura de incolumitate eius.

3Vt uero in aduersam ualitudinem incidit,

pernoctantibus cunctis circa Palarium, non

defuerunt qui depugnaturos se armis pro

salute aegri quique capirta sua titulo

proposito uouerent. 4Accessit ad

immensum ciuium amorem notabilis

etiam externorum fauor. 5Namque

Artabanus Parthorum rex, odium semper

contemptumque Tiberi prae se ferens,

amicitiam huius ultro petiit uenitque ad

colloquium legati consulares et

transgressus Euphraten aquilas et signa

Romana Caesarumque imagines adorauit.

à Campânia, fizeram-se votos pelo seu

retorno, sem que ninguém se omitisse,

nem pelo mais breve momento, de fazer

testemunhar sua solicitude e cuidado na

conservação de Calígula. 3E, na verdade,

quando ele adoeceu, todos passaram a

noite ao redor do Palatino, e não faltaram

os que prometeram pegar em armas ou que

ofereceram suas cabeças pela saúde do

doenteXXXII. 4Acresce ao imenso amor dos

cidadãos também o notável favor dos

estrangeiros. 5Pois Artabano, rei dos

Partos, que sempre declarou seu ódio e

desprezo por Tibério, solicitou a amizade

de Calígula, uma entrevista com o legado

consular e, tendo atravessado o Eufrates,

prestou culto às águias e estátuas romanas

e às imagens dos Césares.

XV. 1Incendebat et ipse studia hominum

omni genere popularitatis. Tiberio cum

plurimis lacrimis pro contione laudato

funeratoque amplissime confestim

Pandateriam et Pontias ad transferendos

matris fratrisque cineres festinauit,

tempestate turbida, quo magis pietas

emineret, adiitque uenerabundus ac per

semet in urnas condidit; 2nec minore

XV. 1Ele próprio inflamava a devoção dos

homens com todo tipo de medidas

popularesXXXIII. Tendo feito as últimas

homenagens a Tibério e o elogiado

grandemente com muitíssimas lágrimas

diante do povo reunido, logo em seguida,

para ressaltar sua piedade, apressou-se a ir

a Pandatária e a PônciaXXXIV para trazer,

em meio a uma tempestade, as cinzas da

XXXII Um exagero retórico que viria a se mostrar arriscado: Calígula aparentemente fazia honrar a palavra

daqueles que prometiam morrer em troca de sua saúde. XXXIII Neste ponto se inicia o relato dos primeiros atos de Calígula como imperador. A partir daqui, nota-se

que ele também era capaz de se fazer querido pelo povo sem depender em demasia da memória de seu pai. XXXIV Como afirma Lindsay (2002, p. 79) estas ilhas eram o destino costumeiro dos exilados.

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scaena Ostiam praefixo in biremis puppe

uexillo et inde Romam Tiberi subuecto per

splendidissimum quemque equestris

ordinis médio ac frequenti die duobus

ferculis Mausoleo intulit inferiasque is

annua religione publice instituit, et eo

amplius matri circenses carpentumque

quo in pompa traduceretur. 3At in

memoriam patris Septembrem mensem

Germanicum appelauit. 4Post haec

Antoniae auiae, quidquid umquam Liuia

Augusta honorum cepisset, uno senatus

consulto congessit; patruum Claudium,

equitem R. ad id tempus, collegam sibi in

consulatu assumpsit; fratrem Tiberium die

uirilis togae adoptauit appelauitque

principem iuuentutis. 5De sororibus auctor

fuit, ut omnibus sacramentis

adiceretur:<<Neque me liberosque meos

cariores habebo quam Gaium et [h] ab eo

sorores eius>>; item relationibus

consulum:<<Quod bonum felixque sit. C.

Caesari sororibusque eius.>> 6Pari

popularitate damnatos relegatosque

restituit; criminum, si quae residua ex

priore tempore manebant, omnium

gratiam fecit; commentarios ad matris

fratrumque suorum causas pertinentes ne

cui postmodum delatori aut testii maneret

mãe e do irmão, chegando até elas

respeitosamente e depositando-as em

urnas ele mesmo. 2E não sem menor

pompa as transportou para Óstia, numa

birreme com um estandarte à popa e de lá

para Roma, através do Tibre, e as fez levar

ao MausoléuXXXV, em duas liteiras, em

pleno dia e diante de muitos, determinou

que fossem feitos sacrifícios públicos a

eles todos os anos e além disso jogos em

homenagem à mãe, aos quais sua imagem

seria levada num carro, com toda a pompa.

3E em memória do pai, deu ao mês de

Setembro o nome de Germânico. 4Depois

disso, concedeu a sua avó Antônia, através

de um decreto do Senado, todas as honras

que haviam sido concedidas a Lívia

Augusta. Ao tio paterno Cláudio, naquele

tempo um cavaleiro romano, fez com que

assumisse o consulado como seu colega.

Ao irmão Tibério chamou “Príncipe da

Juventude”, quando este assumiu a toga

viril e o adotouXXXVI. 5Quanto às suas

irmãs, foi responsável por fazer com que a

todos os juramentos se acrescentasse esta

fórmula: “Não colocarei a mim mesmo e

nem aos meus acima de Caio e de suas

irmãs”. E, da mesma forma, nas

deliberações dos cônsules: “Bem e

XXXV Trata-se do Mausoléu construído por Augusto, de que Suetônio fala em Aug. C XXXVI Por irmão, frater, deve-se entender aqui “primo” (Suetônio omite parte da expressão frater patruelis,

significando primo pelo lado paterno). Trata-se do mesmo Tiberius Gemellus, que se mostrava desde já um

forte candidato ao governo, e que Calígula provavelmente quis manter por perto desde o início.

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ullus metus, conuectos in fórum, et ante

clare obstestatus deos neque legisse neque

attigisse quicquam, concremauit; libellum

de salute sua oblatum non recepit,

contendens << nihil sibi admissum cur

cuiquam inuisus esset>>, negauitque se

delatoribus aures habere.

prosperidade a Caio César e suas

irmãs”XXXVII. 6Com igual intenção de

agradar ao povo, restituiu condenados e

exilados. Perdoou todos os crimes que

datavam do governo anterior. Queimou os

comentários pertinentes aos processos de

sua mãe e de seus irmãosXXXVIII, que

haviam sido levados ao fórum e, para que

nenhum delator ou testemunha o temesse,

jurou diante dos deuses que não havia lido

nem tocado nenhum deles. Recusou-se a

receber uma lista que tratava de sua

segurança, dizendo “não ter feito nada

para ser odiado por ninguém”XXXIX, e

negou dar atenção aos delatoresXL.

XVI. 1Spintrias monstrosarum libidinum

aegre ne profundo mergeret exoratus, urbe

submouit. 2Titi Labieni, Cordi Cremuti,

Cassi Seueri scripta senatus consultis

XVI. 1Expulsou da cidade os espíntriasXLI,

de monstruosas perversões, a muito custo

convencido de não os afogar. 2Permitiu

que os escritos de Tito LabienoXLII, Cordo

XXXVII Esta seção descreve o amor e apreço de Calígula pela própria família (o que se subverterá mais à

frente na narrativa), mostrando a reparação feita à honra de seus familiares mortos e o cuidado com os que

ainda viviam. XXXVIII Como se verá mais à frente, Calígula na verdade fez cópias desses documentos antes de queimá-los. XXXIX Ou seja, uma lista com os nomes de supostos conspiradores, que Calígula não imaginava serem reais,

já que ele não teria feito mal a ninguém para ser merecedor de ódio. XL Os delatores eram um problema muito grave na Roma Imperial, principalmente quando abusavam das

denúncias de crime contra a maiestas (por exemplo, falar mal do imperador). Nos Annales de Tácito consta

o episódio ocorrido no governo de Tibério em que quatro delatores da ordem senatorial, buscando ascender

socialmente por prestar serviços a Sejano, o guarda pretoriano, teriam convidado um homem de mesmo

status para o jantar e, tendo iniciado uma conversa difamatória a respeito de Sejano, aguardaram que esse

homem se juntasse aos comentários pouco elogiosos. Quando ele o fez, os outros o denunciaram, já que

três deles tinham ficado escondidos no teto para servir de testemunhas do “crime” (Tac. Ann. 4.69). XLI Homens que se prostituíam, e que teriam sido protegidos de Tibério em Capri. XLII Orador que viveu na época de Augusto, conhecido por atacar diversas figuras públicas em seus

discursos. Cometeu suicídio depois que o Senado ordenou que seus livros fossem queimados.

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abolita requiri et esse in manibus

lectitarique permisit, quando maxime sua

interesset ut facta quaeque posteris

tradantur. 3Rationes imperii ab Augusto

proponi solitas sed a Tiberio intermissas

publicauit. 4Magistratibus liberam iuris

dictionem et sine sui appellatione

concessit. 5Equites R. seuere curioseque

nec sine moderatione recognouit, palam

adempto equo quibus aut probri aliquid

aut ignominiae inesset, eorum qui minore

culpa tenerentur nominibus modo in

recitatione praeteritis. 6Vt leuior labor

iudicantibus foret, ad quattuor prioris

quintam decuriam addidit. 7Temptauit et

comitiorum more reuocato suffragia

populo reddere. 8Legata ex testamento

Tiberi quamquam abolito, sed et Iuliae

Augustae, quod Tiberius suppresserat,

cum fide ac sine calumnia repraesentata

persoluit. 9Ducentesimam auctionum

Italiae remisit; multis incendiorum damna

suppleuit; ac si quibus regna restituit,

adiecit et fructum omnem uectigaliorum et

reditum medii temporis, ut Antiocho

Commageno sestertium milies

confiscatum. 10Quoque magis nullius non

CremúcioXLIII e Cássio SeveroXLIV –

abolidos por um decreto do Senado –

fossem pesquisados, distribuídos e lidos

“uma vez que tinha grande interesse em

informar a posteridade acerca de tudo”.

3Fez a publicação das contas do governo,

que era comum no governo de Augusto,

mas que Tibério interrompera. 4Concedeu

aos magistrados total jurisdição, sem que

fosse necessário apelar a ele mesmo.

5Examinou os cavaleiros romanos com

severidade e escrutínio, mas não sem

moderação, e privou publicamente do

cavalo aqueles contra os quais havia algo

de infâmia ou ignomínia, e daqueles que

eram culpados de crimes menores,

simplesmente absteve-se de citar o nome

durante a chamada. 6Para tornar mais leve

o trabalho dos juízes, acrescentou às

quatro decúrias anteriores uma quintaXLV.

7Tentou até mesmo devolver ao povo o

direito de voto, trazendo de volta o

costume das assembleias de romanos para

a eleição de magistradosXLVI. 8Pagou

fielmente aos herdeiros designados de

Tibério, e sem fraude, embora o

testamento de Tibério tivesse sido

XLIII Historiador que foi acusado por Sejano de crime contra a maiestas e obrigado a tirar a própria vida. XLIV Professor de Retórica e amigo de Labieno, foi condenado ao exílio (onde viria a morrer depois de vinte

e cinco anos) pelas mesmas acusações que o colega. XLV Havia três decúrias de juízes no período republicano. Augusto acrescentou uma quarta durante seu

governo. XLVI Tais assembleias eram conhecidas como comitia, os “comícios”, e segundo o próprio Suetônio,

Augusto já havia pensado em retomar esse costume (Aug, XL).

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boni exempli fautor uideretur, mulieri

libertinae octingenta donauit, quod

excruciata grauissimis tormentis de

scelere patroni reticuisset. 11Quas ob res

inter reliquos honores decretus est ei

clipeus aureus, quem quotannis certo die

collegia sacerdotum in Capitolium ferrent,

senatu prosequente nobilibusque pueris ac

puellis carmine modulato laudes uirtutum

eius canentibus. Decretum autem ut dies,

quo cepisset imperium, Parilia uocaretur,

uelut argumentum rursus conditae urbis.

anulado, e também aos de Júlia Augusta,

embora Tibério os tivesse suprimido.

9Restituiu à Itália o imposto de meio por

cento nas vendas em hasta pública;

reparou muitos danos causados por

incêndios; e, se restituía a alguém o

reinado, acrescentava todo produto dos

impostos e rendimentos públicos

coletados neste ínterim, como fez a

Antíoco, rei de Comagena, a quem

devolveu cem milhões de sestércios

confiscados. 10E para que parecesse ainda

mais o promotor de bons exemplos, deu

oitenta mil sestércios a uma liberta que,

tendo sofrido gravíssima tortura, não

denunciou nenhum dos crimes de seu

patrono. 11Razões pelas quais, entre as

demais honras, foi-lhe concedido o escudo

douradoXLVII, que todo ano o colegiado

dos sacerdotes levava ao Capitólio,

seguidos pelo senado e por meninos e

meninas da nobreza que entoavam o

elogio de suas virtudes com um canto

cadenciado. Também se decretou que o

dia em que ele ascendera ao poder seria

chamado de PariliaXLVIII, sob o argumento

XLVII Semelhante ao clipeus aureus concedido a Augusto, que comemorava suas quatro virtudes, clementia,

iustitia, pietas e uirtus. Não há como saber se foram essas mesmas as virtudes comemoradas no escudo de

Calígula, no entanto. XLVIII Festas em homenagem ao deus Pales, ligado à vida pastoril (às vezes representado como uma

divindade feminina). Acreditava-se que Roma havia sido fundada durante o festival dedicado a esse deus,

em 21 de abril.

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de que neste dia a cidade fora fundada uma

segunda vez.

XVII. 1Consulatus quattuor gessit,

primum ex Kal. Iul. per duos menses,

secundum ex Kal. Ian. per XXX dies,

tertium usque in Idus Ian., quartum usque

septimum Idus easdem. 2Ex omnibus duos

nouissimos coniunxit. 3Tertium autem

Luguduni iniit solus, non ut quidam

opinantur superbia neglegentiaue, sed

quod defunctum sub Kalendarum diem

collegam rescisse absens non potuerat.

4Congiarium populo bis dedit trecenos

sestertios, totiens abundantissimum

epulum senatui equestrique ordini, etiam

coniugibus ac liberis utrorumque;

posteriore epulo forensia insuper uiris,

feminis ac pueris fascias purpurae ac

conchylii distribuit. 5Et ut laetitiam

publicam in perpetuum quoque augeret,

adiecit diem Saturnalibus appellauitque

Iuuenalem.

XVII. 1Exerceu quatro consulados, o

primeiro iniciado nas calendas de julho,

por dois meses, o segundo iniciado nas

calendas de janeiro por trinta dias, o

terceiro até os idos de janeiro, o quarto até

o sétimo dia antes dos idos daquele mesmo

mês.XLIX 2Dentre todos esses, os dois

últimos foram consecutivos. 3O terceiro,

porém, inaugurou sozinho, em LugdunoL,

não por sua soberba ou negligência, como

muitos pensam, mas porque, estando

ausente, não tinha como saber que seu

colega havia falecido durante as calendas

daquele mês. 4Duas vezes deu de presente

ao povo a quantia de trezentos sestércios

para cada um, mesmo número de vezes em

que deu farto banquete à ordem dos

senadores e dos cavaleiros, bem como às

esposas e aos filhos de seus membros. No

último destes, distribuiu também trajes

públicos aos homens e faixas de púrpura

às mulheres e às crianças. 5E para

aumentar a alegria do povo em caráter

permanente, acrescentou um dia às

XLIX Lindsay (2002, p. 88) afirma que Calígula recebeu do Senado uma oferta de consulado perpétuo, logo

que assumiu o poder. Sua dispensa dessa oferta pode ser vista como parte da chamada recusatio, em que o

imperador ritualmente recusava o poder que lhe era investido, como respeito à república. Depois dessa

recusa inicial, no entanto, Calígula atuou como cônsul em todos os anos de seu governo. L Atualmente Lyon, na França.

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Satunálias, ao qual chamou “Dia da

Juventude”.

XVIII. 1Munera gladiatoria partim in

amphitheatro Tauri partim in Saeptis

aliquot edidit, quibus inseruit cateruas

Afrorum Campanorumque pugilum ex

utraque regione electissimorum. 2Neque

spectaculis semper ipse praesedit, sed

interdum aut magistratibus aut amicis

praesidendi munus iniunxit. 3Scaenicos

ludos et assidue et uarii generis ac

multifariam fecit, quondam et nocturnos

accensis tota urbe luminibus. 4Sparsit et

missilia uariarum rerum et panaria cum

obsonio uiritim diuisit; qua epulatione

equiti R. contra se hilarius auidiusque

uescenti partes suas misit, sed et senatori

ob eandem causam codicillos, quibus

praetorem eum extra ordinem designabat.

5Edidit et circenses plurimos a mane ad

uesperam interiecta modo Africanarum

uenatione modo Troiae decursione, et

quosdam praecipuos, minio et chrysocolla

constrato circo nec ullis nisi ex senatorio

ordine aurigantibus. 6Commisit et subitos,

cum e Gelotiana apparatum circi

XVIII. 1Ofereceu jogos de gladiadoresLI,

fosse no Anfiteatro de Tauro, fosse na

cerca das eleiçõesLII, aos quais introduziu

grupos de lutadores da África e da

Campânia, os melhores de ambas as

regiões. 2E nem sempre presidiu ele

mesmo aos espetáculos, mas, às vezes,

confiava este papel aos magistrados ou a

amigos. 3Promoveu muitas peças de teatro

de variado gêneroLIII, certa vez durante a

noite, iluminando toda a cidade.

4Distribuiu também presentes de vários

tipos, que ele lançava ao povo, e deu a

cada pessoa cestos com víveres. Durante o

banquete, deu sua parte a um cavaleiro

romano que estava à frente dele e que

comia com alegria e avidez. Pelo mesmo

motivo, deu a um senador um documento,

através do qual o designava como pretor

extraordinário. 5Também instituiu jogos

circenses, que duravam da manhã até a

tarde, em cujo intervalo eram realizadas

caçadas africanas ou corridas troianas. Em

alguns jogos especiais, teve o circo

LI Pode-se notar aqui uma nova rubrica: Suetônio falará do tratamento dado por Calígula aos jogos. LII Saepta, que pode ser entendido como uma área cercada. Neste contexto, trata-se provavelmente de uma

grande área fechada localizada no Campo de Marte, onde o povo se reunia para votar, e onde se

encontravam várias lojas.

LIII É preciso lembrar que por jogos (ludi) os romanos entendiam não só o combate entre gladiadores, mas

também os jogos do circo (ludi circenses) e as peças de teatro (ludi scaeneci).

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prospicientem pauci ex proximis

Maenianis postulassent.

coberto por vermelhão e malaquitaLIV e

não permitiu que subisse às bigas quem

não fosse da ordem senatorial. 6Instituiu

até mesmo jogos improvisados, visto que,

enquanto observava do Palácio Gelociano

as estruturas do circo, algumas pessoas

dos balcões das casas vizinhas o pediram

que fizesse.

XIX. 1Nouum praeterea atque inauditum

genus spectaculi excogitauit. Nam

Baiarum medium interuallum [ad]

Puteolanas moles, trium milium et

sescentorum fere passuum spatium, ponte

coniunxit contractis undique onerariis

nauibus et ordine duplici ad ancoras

conlocatis superiectoque terreno ac

derecto in Appiae uiae formam. 2Per hunc

pontem ultro citro commeauit biduo

continenti, primo die phalerato equo

insignisque quercea corona et caetra et

gladio aureaque chlamyde, postridie

quadrigario habitu curriculoque biiugi

famosorum equorum, prae se ferens

Dareum puerum ex Parthorum obsidibus,

comitante praetorianorum agmine et in

essedis cohorte amicorum. 3Scio

XIX. 1Criou, além disso, um novo tipo de

espetáculo. Pois construiu, no espaço

entre Baías e o quebra-mar de Puzzuoli -

uma distância de quase três mil e

seiscentos passosLV – uma ponte, que foi

feita com navios de carga trazidos de toda

parte e postos, ancorados, numa fila dupla,

sobre a qual se colocou terra, moldando-a

até parecer com a Via Ápia. 2De imediato,

pôs-se a ir e vir, de lá para cá, durante dois

dias.LVI No primeiro dia, num cavalo

coberto de insígnias militares, usando uma

coroa de folhas de carvalho, um pequeno

escudo, uma espada e uma clâmide

dourada, e no dia seguinte, vestido como

um piloto de quadriga, num carro puxado

por dois cavalos célebres, levando à sua

frente Dário, um jovem refém do Império

LIV Esses materiais teriam dado ao circo uma decoração baseada nas cores vermelha e verde, e pode ser uma

referência às facções do circo (times de pilotos que participavam das corridas). A facção vermelha e a

facção verde eram as preferidas da plebe, e Calígula em particular torcia pelos verdes. LV Cerca de 2.95 km. LVI Essa é a primeira grande demonstração de excentricidade por parte de Calígula depois de assumir o

governo.

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plerosque existimasse talem a Gaio

pontem excogitatum aemulatione Xerxis,

qui non sine admiratione aliquanto

angustiorem Hellespontum

contabulauerit; alios, ut Germaniam et

Britanniam, quibus imminebat, alicuius

inmensi operis fama territaret. 4Sed auum

meum narrantem puer audiebam, causam

operis ab interioribus aulicis proditam,

quod Thrasyllus mathematicus anxio de

successore Tiberio et in uerum nepotem

proniori affirmasset non magis Gaium

imperaturum quam per Baianum sinum

equis discursurum.

Parta, acompanhado de uma tropa de

guardas pretorianos e uma companhia de

amigos que vinham em carros de

guerraLVII. 3Sei que muitos pensaram que

a idealização de tal ponte por Caio era uma

tentativa de rivalizar Xerxes, que, não sem

produzir considerável admiração, cobriu o

Helesponto, mais estreito. Outros acharam

que o fizera para aterrorizar a Germânia e

a Bretanha, que então ameaçava de guerra,

com o boato de tão imensa obraLVIII. 4Mas

ouvi de meu avô, quando eu era menino,

que a razão de tal obra, contada pelos seus

cortesãos, era o fato de o astrólogo Trasilo

ter dito a Tibério – quando este se

encontrava preocupado com seu sucessor

e se mostrava propenso a escolher o neto

– que “Caio tinha tantas chances de ser

Imperador quantas de atravessar a cavalo

o Golfo de Baías”LIX.

XX. Edidit et peregre spectacula, in Sicilia

Syracusis asticos ludos et in Gallia

Luguduni miscellos; sed hic certamen

quoque Graecae Latinaeque facundiae,

quo certamine ferunt uictoribus praemia

uictos contulisse, eorundem et laudes

XX. Também deu espetáculos fora de

Roma: em Siracusa, na Sicília, jogos

locaisLX; em Lugduno, na Gália, jogos

diversos. Mas em Lugduno ofereceu um

concurso de eloquência grega e latina, no

qual, dizem, os vencidos deveriam

LVII Essa representação o deixava parecido com um general triunfante. LVIII O ato poderia ser ameaçador para a Bretanha porque deixava claro que uma fronteira aquática não era

o bastante para fazer parar o imperador. LIX Essa passagem ilustra a variedade de fontes a que Suetônio recorre para compor seus relatos. Desde

documentos oficiais até os comentários de seus próprios familiares. LX Astici Ludi, jogos celebrados em honra a Baco.

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componere coactos; eos autem, qui

maxime displicuissent, scripta sua spongia

linguaue delere iussos, nisi ferulis

obiurgari aut flumine proximo mergi

maluissent.

conceder os prêmios aos vencedores, e

eram obrigados a fazer-lhes o elogio. Aos

que tinham se saído particularmente mal,

cabia, porém, apagar seus escritos com

uma esponja ou com a própria língua, se

não quisessem ser açoitados com varas ou

lançados a um rio próximoLXI.

XXI. 1Opera sub Tiberio semiperfecta,

templum Augusti theatrumque Pompei,

absoluit. 2Incohauit autem aquae ductum

regione Tiburti et amphitheatrum iuxta

Saepta, quorum operum a successore eius

Claudio alterum peractum, omissum

alterum est. 3Syracusis conlapsa uetustate

moenia deorumque aedes refectae.

4Destinauerat et Sami Polycratis regiam

restituere, Mileti Didymeum peragere, in

iugo Alpium urbem condere, sed ante

omnia Isthmum in Achaia perfodere,

miseratque iam ad dimetiendum opus

primipilarem.

XXI. 1Completou as reformas do templo

de Augusto e do teatro de Pompeu, que

não tinham sido terminadas no governo de

TibérioLXII. 2Deu início, além disso, à

construção do aqueduto na região de Tibur

e ao anfiteatro junto à cerca das eleições,

obras que foram, umas completadas,

outras abandonadas por seu sucessor,

Cláudio. 3Em Siracusa, reconstruiu as

muralhas e os templos dos deuses,

destruídos pelo tempoLXIII. 4Tinha também

planejado reconstruir o palácio de

Polícrates, em Samos, terminar o templo

de Apolo Didimeu, em Mileto, construir

uma cidade no cume dos Alpes, mas, antes

de tudo, cortar o istmo em AcaiaLXIV - e já

LXI Primeira demonstração de interesse pela retórica. Também se vê aqui um pouco da crueldade futura que

marcaria o governo de Calígula, de acordo com o relato de Suetônio. LXII Esse é o último trecho em que Suetônio tratará de Calígula como um bom governante. Aqui ele fala de

algumas de suas obras públicas. LXIII Segundo Lindsay, tais obras poderiam ter sido feitas em agradecimento à cidade por ter sido a primeira

a reconhecer a divindade de sua irmã Drusilla, depois de sua morte. LXIV Istmo em Corinto que une a Grécia continental à Península do Peloponeso. Calígula pensava em

construir um canal nessa pequena faixa de terra, que facilitaria a navegação no litoral do Peloponeso.

Tentada sem sucesso muitas vezes ao longo da Antiguidade, essa obra só veio a ser realizada no final do

século XIX.

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tinha mandado um centurião para fazer as

medidas necessárias à obra.

XXII. 1Hactenus quasi de principe, reliqua

ut de monstro narranda sunt.

2Compluribus cognominibus adsumptis –

nam et "pius" et "castrorum filius" et

"pater exercituum" et "optimus maximus

Caesar" uocabatur – cum audiret forte

reges, qui officii causa in urbem

aduenerant, concertantis apud se super

cenam de nobilitate generis, exclamauit:

Εἷς κοίρανος ἔστω, εἷς βασιλεύς.

Nec multum afuit quin statim diadema

sumeret speciemque principatus in regni

formam conuerteret. 3Verum admonitus et

principum et regum se excessisse

fastigium, diuinam ex eo maiestatem

asserere sibi coepit; datoque negotio, ut

simulacra numinum religione et arte

praeclara, inter quae Olympii Iouis,

apportarentur e Graecia, quibus capite

dempto suum imponeret, partem Palatii ad

forum usque promouit, atque aede

Castoris et Pollucis in uestibulum

transfigurata, consistens saepe inter fratres

deos, medium adorandum se adeuntibus

XXII. 1Até aqui se falou de um príncipe -

deve-se agora falar de um monstroLXV.

2Tendo assumido diversos nomes (pois era

chamado “pio”, “filho dos acampamentos

militares”, “pai do exército” e “César

Ótimo Máximo”), como certa vez tivesse

escutado um grupo de reis, que tinham

vindo à Roma numa visita cerimonial,

discutindo entre si sobre a nobreza de suas

estirpes, disse:

‘Um só tenha o posto supremo;

Um, seja o rei’LXVI

e por pouco não tomou a coroa naquele

momento, convertendo em realeza a falsa

aparência de principado. 3No entanto,

como o tivessem dito que ele havia

superado o mais alto grau dos príncipes e

dos reis, começou a atribuir a si mesmo a

majestade divina. E, tendo dado a ordem

de que fossem trazidas da Grécia as

estátuas de deuses mais distintas pela

devoção e pela arte, entre elas uma de

Júpiter Olímpico, às quais, retiradas as

cabeças, acrescentou sua própria imagem,

LXV Tem-se aqui a clara separação entre os dois principais momentos do texto: Suetônio inicia o relato das

anedotas que ilustram o mau caráter de Calígula, começando por seu orgulho e crueldade. LXVI Calígula cita Homero: εἷς κοίρανος ἔστω, εἷς βασιλεύς (Il, II, 204). A tradução é de Carlos Alberto

Nunes.

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exhibebat; et quidam eum Latiarem Iouem

consalutarunt. 4Templum etiam numini

suo proprium et sacerdotes et

excogitatissimas hostias instituit. 5In

templo simulacrum stabat aureum

iconicum amiciebaturque cotidie ueste,

quali ipse uteretur. 6Magisteria sacerdotii

ditissimus quisque et ambitione et

licitatione maxima uicibus comparabant.

7Hostiae erant phoenicopteri, pauones,

tetraones, numidicae, meleagrides,

phasianae, quae generatim per singulos

dies immolarentur. 8Et noctibus quidem

plenam fulgentemque lunam inuitabat

assidue in amplexus atque concubitum,

interdiu uero cum Capitolino Ioue secreto

fabulabatur, modo insusurrans ac

praebens in uicem aurem, modo clarius

nec sine iurgiis. 9Nam uox comminantis

audita est:

Ἤ μ᾽ ἀνάειρ᾽ ἤ ἐγὼ σέ,

donec exoratus, ut referebat, et in

contubernium ultro inuitatus super

templum Diui Augusti ponte transmisso

Palatium Capitoliumque coniunxit.

10Mox, quo propior esset, in area

Capitolina nouae domus fundamenta iecit.

ele fez com que uma parte do palácio se

estendesse até o Fórum e, transformando o

templo de Castor e Pólux num vestíbulo,

se punha frequentemente entre as imagens

dos deuses irmãos, e se oferecia à

adoração dos visitantes. E houve aqueles

que o saudassem como “Júpiter do Lácio”.

4E até consagrou um templo dedicado a

seu nume, com sacerdotes e vítimas muito

bem escolhidas. 5Nesse templo havia uma

estátua dourada sua, em tamanho natural,

que era vestida todos os dias com vestes

semelhantes às que ele mesmo utilizava.

6Os cidadãos mais ricos tentavam garantir

os cargos de sacerdotes desse templo,

alternadamente, com grande esforço e

com as ofertas mais altas. 7As vítimas

eram flamingos, pavões, tetrazes, galinhas

da Numídia, galinhas-d’Angola, faisões,

que eram imoladas uma espécie a cada dia.

8E de fato, à noite, convidava a lua cheia e

brilhante a abraçá-lo e a deitar-se com ele,

enquanto durante o dia conversava em

segredo com Júpiter Capitolino, às vezes

cochichando e prestando ouvidos a ele, às

vezes em voz alta, e não sem discutir.

9Ouviu-se, pois, a sua voz ameaçar:

‘Ou me levanta ou a ti faça eu o

mesmo’LXVII

LXVII Novamente uma citação de Homero: ἤ μ᾽ ἀνάειρ᾽ ἢ ἐγὼ σέ (Il, XXIII, 724). A tradução é de Carlos

Alberto Nunes.

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Tendo-o persuadido, por fim, segundo ele,

foi convidado pelo deus a habitar com ele,

e uniu o Palatino ao Capitólio através de

uma ponte que passava sobre o templo de

Augusto. 10Mais tarde, para que ficasse

ainda mais perto, ergueu as bases de um

novo palácio no Capitólio.LXVIII

XXIII. 1Agrippae se nepotem neque credi

neque dici ob ignobilitatem eius uolebat

suscensebatque, si qui uel oratione uel

carmine imaginibus eum Caesarum

insererent. 2Praedicabat autem matrem

suam ex incesto, quod Augustus cum Iulia

filia admisisset, procreatam; ac non

contentus hac Augusti insectatione

Actiacas Siculasque uictorias, ut funestas

p. R. et calamitosas, uetuit sollemnibus

feriis celebrari. 3Liuiam Augustam

proauiam "Vlixem stolatum" identidem

appellans, etiam ignobilitatis quadam ad

senatum epistula arguere ausus est quasi

materno auo decurione Fundano ortam,

cum publicis monumentis certum sit,

Aufidium Lurconem Romae honoribus

functum. 4Auiae Antoniae secretum

petenti denegauit, nisi ut interueniret

XXIII. 1Não permitia que se acreditasse

nem que se dissesse que ele era neto de

Agripa, por conta de sua baixa origem, e

se irritava se alguém, numa representação

em verso ou em prosa, o colocava entre os

ancestrais dos CésaresLXIX. 2Proclamava

que sua mãe havia nascido de um incesto

que Augusto houvera cometido com sua

filha Júlia. Não contente com esse insulto

a Augusto, proibiu que fossem celebradas

com festas solenes as vitórias nas batalhas

de Ácio e da Sicília, alegando que haviam

sido funestas e desastrosas ao povo

romano. 3Chamava a bisavó Lívia

Augusta de “Ulisses de estola”LXX, e

ousou declarar numa carta ao Senado sua

baixa origem, como se tivesse por avô

materno um decurião de Fondi, quando os

documentos públicos afirmam

LXVIII O culto a Calígula é usado por Suetônio como uma maneira de fazer o contraste entre a aparente

humildade do imperador no início do governo e seu verdadeiro caráter. LXIX Aqui Suetônio volta a falar das relações familiares de Calígula. LXX A estola era uma roupa tipicamente feminina (seria o equivalente de chamá-la “Ulisses de saias”). A

figura de Ulisses sempre foi ambivalente para os romanos. Apesar de ser um herói importante, sua esperteza

era vista com desconfiança.

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Macro praefectus, ac per istius modi

indignitates et taedia causa exstitit mortis,

dato tamen, ut quidam putant, et ueneno;

nec defunctae ullum honorem habuit

prospexitque e triclinio ardentem rogum.

5Fratrem Tiberium inopinantem repente

immisso tribuno militum interemit,

Silanum item socerum ad necem

secandasque nouacula fauces compulit,

causatus in utroque, quod hic ingressum se

turbatius mare non esset secutus ac spe

occupandi urbem, si quid sibi per

tempestates accideret, remansisset, ille

antidotum oboluisset, quasi ad

praecauenda uenena sua sumptum, cum et

Silanus impatientiam nauseae uitasset et

molestiam nauigandi, et Tiberius propter

assiduam et ingrauescentem tussim

medicamento usus esset. 6Nam Claudium

patruum non nisi in ludibrium reseruauit.

seguramente que fora Aufídio Lurco,

homem que exercera magistraturas em

Roma. 4Negou-se a ter um encontro

particular com a avó Antônia sem ser

acompanhado de Macrão, comandante da

guarda pretoriana, e através de afrontas e

desgostos deste tipo foi que causou sua

morte, embora há quem diga que lhe teria

dado veneno. E nem lhe prestou, morta, as

honras fúnebres, meramente observando

do triclínio sua pira funerária acesa.

5Mandou matar o desavisado irmão

Tibério por um tribuno militar. Da mesma

forma obrigou o sogro Silano a se matar

cortando a garganta com uma navalha.

Deu como motivo para essas mortes o fato

de Silano não o ter seguido quando entrou

no mar tempestuosoLXXI e ter permanecido

em terra, na esperança de governar Roma,

se algo lhe acontecesse por conta das

tempestades, e de Tibério ter tomado um

antídoto, como se estivesse se precavendo

de seu envenenamento – quando, na

verdade, Silano tinha permanecido em

terra para evitar a náusea e o enjoo da

navegação e Tibério havia tomado um

medicamento por conta de sua tosse

frequente que se agravava. 6Quanto ao seu

LXXI Isto é, quando foi buscar os restos mortais de seus parentes, logo no início do governo.

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tio paterno Cláudio, o manteve apenas

porque era motivo de risoLXXII.

XXIV. 1Cum omnibus sororibus suis

consuetudinem stupri fecit plenoque

conuiuio singulas infra se uicissim

conlocabat uxore supra cubante. 2Ex iis

Drusillam uitiasse uirginem praetextatus

adhuc creditur atque etiam in concubitu

eius quondam deprehensus ab Antonia

auia, apud quam simul educabantur; mox

Lucio Cassio Longino consulari

conlocatam abduxit et in modum iustae

uxoris propalam habuit; heredem quoque

bonorum atque imperii aeger instituit.

3Eadem defuncta iustitium indixit, in quo

risisse lauisse cenasse cum parentibus aut

coniuge liberisue capital fuit. 4Ac

maeroris impatiens, cum repente noctu

profugisset ab urbe transcucurrissetque

Campaniam, Syracusas petit, rursusque

inde propere rediit barba capilloque

promisso; nec umquam postea

quantiscumque de rebus, ne pro contione

quidem populi aut apud milites, nisi per

XXIV. 1Teve frequentes relações

incestuosasLXXIII com todas as suas irmãs,

e em pleno banquete, as colocava abaixo

de si, uma de cada vez, enquanto sua

esposa ficava por cima. 2Dentre elas,

acredita-se que tenha tirado a virgindade a

Drusila, enquanto ele ainda vestia a toga

pretexta, e foi pego deitando-se com ela

pela avó Antônia, que os havia criado;

mais tarde, a tomou do consular Lúcio

Cássio Longino, com quem ela havia se

casado, e a tratou abertamente como sua

esposa legítima. Quando ele ficou doente,

a escolheu como herdeira de seus bens e

do Império. 3Quando ela morreu, instituiu

um luto oficial, no qual quem risse, se

banhasse, jantasse com a família ou o

cônjuge, era condenado à morte. 4E,

incapaz de suportar a dor, partiu de Roma

à noite, repentinamente, atravessou a

Campânia e chegou a SiracusaLXXIV, de

onde voltou rapidamente com a barba e o

LXXII Suetônio afirma na biografia de Cláudio que este era sempre o último dentre os homens de status

consular a falar no senado (Claud. IX.2) LXXIII Novamente, o uso do termo stuprum nessa passagem não indica que as relações tenham ocorrido

necessariamente sem o consentimento das partes envolvidas. Além disso, segundo Winterling (2011, p.3),

é pouco provável que tais relações incestuosas tenham ocorrido de fato, já que Fílon e Sêneca não chegam

a mencionar nada a respeito. LXXIV Cf. nota LXIII.

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numen Drusillae deierauit. 5Reliquas

sorores nec cupiditate tanta nec dignatione

dilexit, ut quas saepe exoletis suis

prostrauerit; quo facilius eas in causa

Aemili Lepidi condemnauit quasi

adulteras et insidiarum aduersus se

conscias ei. 6Nec solum chirographa

omnium requisita fraude ac stupro

diuulgauit, sed et tres gladios in necem

suam praeparatos Marti Vltori addito

elogio consecrauit.

cabelo crescidos. E depois disso, não

importando a grandeza do assunto, nem

mesmo diante do povo reunido ou dos

soldados, não fez juramentos senão ao

nume de Drusila. 5Não amava as outras

irmãs com tanto desejo ou respeito, já que

frequentemente as prostituíra com os

jovens devassos. E com facilidade as

condenou no processo contra Emílio

Lépido, como adúlteras e cúmplices das

tramas que haviam sido planejadas contra

ele mesmo. 6E não só publicou todas as

cartas manuscritas de suas irmãs, através

de fraude e de desonra, como consagrou a

Marte Vingador as três espadas preparadas

para matá-lo, acrescentando-lhes uma

inscrição.

XXV. 1Matrimonia contraxerit turpius an

dimiserit an tenuerit, non est facile

discernere. 2Liuiam Orestillam C. Pisoni

nubentem, cum ad officium et ipse

uenisset, ad se deduci imperauit intraque

paucos dies repudiatam biennio post

relegauit, quod repetisse usum prioris

mariti tempore medio uidebatur. 3Alii

tradunt adhibitum cenae nuptiali

mandasse ad Pisonem contra

accumbentem: "Noli uxorem meam

premere," statimque e conuiuio abduxisse

XXV. 1Quanto a seus casamentosLXXV, é

difícil dizer se foi maior afronta tê-los

contraído, terminado ou mantido.

2Quando Lívia Orestila se casou com C.

Pisão, como ele próprio comparecesse à

cerimônia, ordenou que ela lhe fosse dada

como esposa e dentro de poucos dias a

dispensou, e dali a dois anos a exilou,

porque parecia que tinha retornado ao

marido anterior naquele meio tempo.

3Outros dizem que ele, tendo sido

convidado ao banquete do casamento,

LXXV Suetônio trata dos casamentos de Calígula nesta rubrica.

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secum ac proximo die edixisse:

“matrimonium sibi repertum exemplo

Romuli et Augusti.” 4Lolliam Paulinam,

C. Memmio consulari exercitus regenti

nuptam, facta mentione auiae eius ut

quondam pulcherrimae, subito ex

prouincia euocauit ac perductam a marito

coniunxit sibi breuique missam fecit

interdicto cuiusquam in perpetuum coitu.

5Caesoniam neque facie insigni neque

aetate integra matremque iam ex alio uiro

trium filiarum, sed luxuriae ac lasciuiae

perditae, et ardentius et constantius

amauit, ut saepe chlamyde peltaque et

galea ornatam ac iuxta adequitantem

militibus ostenderit, amicis uero etiam

nudam. 6Vxorio nomine [non prius]

dignatus est quam enixam, uno atque

eodem die professus et maritum se eius et

patrem infantis ex ea natae. 7Infantem

autem, Iuliam Drusillam appellatam, per

omnium dearum templa circumferens

Mineruae gremio imposuit alendamque et

instituendam commendauit. 8Nec ullo

firmiore indicio sui seminis esse credebat

quam feritatis, quae illi quoque tanta iam

tunc erat, ut infestis digitis ora et oculos

simul ludentium infantium incesseret.

mandou como recado a Pisão, que se

sentava à sua frente: “Não te deites com

minha esposa.”, e imediatamente a levou

consigo de lá e no dia seguinte afirmou

“ter contraído um matrimônio a exemplo

de Rômulo e de Augusto”LXXVI.

4Convocou repentinamente de sua

província Lólia Paulina, casada com C.

Mêmio, consular que comandava os

exércitos, depois de alguém ter comentado

que sua avó havia sido uma mulher muito

bela, e a tirou do marido, casou-se com

ela, e pouco tempo depois a mandou

embora, tendo-a proibido para sempre de

deitar-se com qualquer outro. 5Amou

Cesônia de modo ardente e com

perseverança, embora ela não fosse nem

bonita, nem jovem, e já mãe de três filhas

com outro homem, além de perdida de

devassidão e lascívia. Frequentemente a

exibia aos soldados vestida de clâmide,

peltaLXXVII e elmo, cavalgando ao seu

lado, e até mesmo nua, aos amigos. 6Deu-

lhe o nome de esposa quando ela teve um

bebê, e num único e mesmo dia disse ser

seu marido e pai do filho que dela nascera.

7Essa criança, porém, que foi chamada de

Júlia Drusila, ele levou aos templos de

todas as deusas e a deixou no colo de

LXXVI Rômulo, o lendário primeiro rei de Roma, teria ordenado o sequestro das esposas dos Sabinos para

que os primeiros romanos tivessem mulheres com as quais casar. Já Augusto era reconhecidamente dado

ao adultério, muito embora o fizesse sobretudo por razões políticas (Suet. Aug. LXIX.1). LXXVII Pequeno escudo trácio em formato e meia-lua.

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Minerva, a quem recomendou que a

criasse e alimentasse. 8E nenhum indício

de que era sua filha lhe pareceu mais

convincente do que a ferocidade da

menina, que já naquele momento era tão

grande que ela tentava atacar com os

dedos violentos os olhos e a boca das

crianças que brincavam perto delaLXXVIII.

XXVI. 1Leue ac frigidum sit his addere,

quo propinquos amicosque pacto

tractauerit, Ptolemaeum regis Iubae

filium, consobrinum suum – erat enim et

is M. Antoni ex Selene filia nepos – et in

primis ipsum Macronem, ipsam Enniam,

adiutores imperii; quibus omnibus pro

necessitudinis iure proque meritorum

gratia cruenta mors persoluta est. 2Nihilo

reuerentior leniorue erga senatum,

quosdam summis honoribus functos ad

essedum sibi currere togatos per aliquot

passuum milia et cenanti modo ad pluteum

modo ad pedes stare succinctos linteo

passus est; alios cum clam interemisset,

citare nihilo minus ut uiuos perseuerauit,

paucos post dies uoluntaria morte perisse

mentitus. 3Consulibus oblitis de natali suo

XXVI. 1Seria frívolo e trivial acrescentar

qualquer coisa ao modo como tratava seus

amigos e pessoas próximasLXXIX.

Ptolomeu, filho do rei Juba, seu primo

(era, também, neto de Marco Antônio,

pela mãe Selene) e, em particular, o

próprio Macrão e a própria Ênia, que o

ajudaram a chegar ao poder: todos eles

receberam como recompensa por seu

parentesco e pelos seus méritos uma morte

sangrenta. 2Não foi mais respeitoso ou

gentil em relação ao SenadoLXXX, cujos

membros que haviam ocupado os cargos

mais importantes ele deixou correr

vestidos de toga, junto a seu carro, por

alguns milhares de passos e ficar ora junto

de seu leito, enquanto jantava, ora junto de

LXXVIII Mais um indício da opinião de Suetônio sobre a natureza cruel de Calígula, que chega até mesmo a

ser hereditária. LXXIX Mais um indicativo da opinião pessoal de Suetônio sobre o assunto tratado. LXXX Aqui Suetônio relata o tratamento dispensado por Calígula às diferentes ordens sociais.

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edicere abrogauit magistratum fuitque per

triduum sine summa potestate res p.

4Quaestorem suum in coniuratione

nominatum flagellauit ueste detracta

subiectaque militum pedibus, quo firme

uerberaturi insisterent. 5Simili superbia

uiolentiaque ceteros tractauit ordines.

6Inquietatus fremitu gratuita in circo loca

de media nocte occupantium, omnis

fustibus abegit; elisi per eum tumultum

uiginti amplius equites R., totidem

matronae, super innumeram turbam

ceteram. 7Scaenicis ludis, inter plebem et

equitem causam discordiarum ferens,

decimas maturius dabat, ut equestria ab

infimo quoque occuparentur. 8Gladiatorio

munere reductis interdum flagrantissimo

sole uelis emitti quemquam uetabat,

remotoque ordinario apparatu tabidas

feras, uilissimos senioque confectos

gladiatores, proque paegniariis patres

familiarum notos in bonam partem sed

insignis debilitate aliqua corporis

subiciebat. 9Ac nonnumquam horreis

praeclusis populo famem indixit.

seus pés, usando vestes de linhoLXXXI;

outros foram mortos em segredo, e ele

insistia em chamá-los como se ainda

estivessem vivos, e poucos dias depois,

mentia dizendo que haviam cometido

suicídio. 3Quando os cônsules se

esqueceram de fazer uma proclamação

pública de seu aniversário, ele os afastou

de seus cargos, e deixou o estado sem sua

magistratura suprema durante três dias.

4Flagelou seu questor que havia sido

citado numa conjuração, tirando suas

vestes e colocando-as sob os pés dos

soldados, para que os que iam castigá-lo

pudessem firmar melhor os pés. 5Tratou as

outras ordens com semelhante violência e

soberba. 6Incomodado com o barulho de

algumas pessoas que vinham durante a

noite garantir seus lugares gratuitos no

circo, os expulsou a todos com bastões; na

confusão, foram pisoteados mais de vinte

cavaleiros romanos, o mesmo tanto de

matronas, e outras pessoas em grande

número. 7Nas peças de teatro, tentando

provocar a discórdia entre os cavaleiros e

a plebe, fez distribuir as décimasLXXXII

mais cedo que o normal, para que os

lugares dos cavaleiros fossem ocupados

pela ralé. 8Nos jogos de gladiadores, por

vezes ele mandava que se retirassem os

LXXXI Vestimenta que era associada à condição de escravo. LXXXII Termo usado para se referir a um presente concedido pelos governantes ao povo.

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toldos, num sol escaldante, e proibia a

quem quer que fosse de ir embora. Então,

retirado o equipamento comum, o

substituía por animais lânguidos, pelos

gladiadores mais baratos e acabados pela

velhice, e, como falsos gladiadores, pais

de família conhecidos [em boa medida]

mas acometidos de alguma doença. 9Às

vezes, ele anunciava a fome ao povo,

tendo fechado os celeiros.

XXVII. 1Saeuitiam ingenii per haec

maxime ostendit. 2Cum ad saginam

ferarum muneri praeparatarum carius

pecudes compararentur, ex noxiis

laniandos adnotauit, et custodiarum

seriem recognoscens, nullius inspecto

elogio, stans tantum modo intra porticum

mediam, "a caluo ad caluum" duci

imperauit. 3Votum exegit ab eo, qui pro

salute sua gladiatoriam operam

promiserat, spectauitque ferro dimicantem

nec dimisit nisi uictorem et post multas

preces. 4Alterum, qui se periturum ea de

causa uouerat, cunctantem pueris tradidit,

uerbenatum infulatumque uotum

reposcentes per uicos agerent, quoad

praecipitaretur ex aggere. 5Multos honesti

ordinis deformatos prius stigmatum notis

ad metalla et munitiones uiarum aut ad

XXVII. 1A crueldadeLXXXIII de seu caráter

se faz mostrar particularmente pelo que

segue: 2como tivesse achado muito caro

comprar gado para alimentar as feras

preparadas para os espetáculos, designou

dentre os criminosos alguns que deveriam

ser devorados e, inspecionando as celas,

sem conferir nenhum dos registros

criminais, mas simplesmente parando no

meio do pórtico, mandou que fossem

levados “cabeça por cabeça”. 3Exigiu o

cumprimento da promessa a um homem

que havia jurado, por sua saúde, lutar

como gladiador e o assistiu lutar com

espada em punho, e nem o dispensou até

que ele conseguisse a vitória, e só depois

de muitas súplicas. 4De um outro, que pela

mesma causa havia jurado se matar, mas

que hesitara, disse a seus escravos que

LXXXIII Nesta rubrica Suetônio trata especificamente da saeuitia, a crueldade de Calígula.

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bestias condemnauit aut bestiarum more

quadripedes cauea coercuit aut medios

serra dissecuit, nec omnes grauibus ex

causis, uerum male de munere suo

opinatos, uel quod numquam per genium

suum deierassent. 6Parentes supplicio

filiorum interesse cogebat; quorum uni

ualitudinem excusanti lecticam misit,

alium a spectaculo poenae epulis statim

adhibuit atque omni comitate ad

hilaritatem et iocos prouocauit.

7Curatorem munerum ac uenationum per

continuos dies in conspectu suo catenis

uerberatum non prius occidit quam

offensus putrefacti cerebri odore.

8Atellanae poetam ob ambigui ioci

uersiculum media amphitheatri harena

igni cremauit. Equitem R. obiectum feris,

cum se innocentem proclamasset, reduxit

abscisaque lingua rursus induxit.

“conduzissem-no pelas ruas adornado

com ínfulas e com ramos sagrados,

pedindo a todos que o juramento se

cumprisse, até que se precipitasse de uma

colina”LXXXIV. 5Muitas pessoas de alta

ordem foram primeiro desfiguradas com

marcas de ignomínia e depois condenadas

a trabalhar nas minas, ou na construção

das estradas ou foram jogadas às feras, ou

colocadas em jaulas, obrigadas a

permanecer de quatro, como animais ou

cortadas ao meio com uma serra. E tudo

isso não por motivos graves, mas por

terem falado mal de seus espetáculos ou

por nunca terem jurado pelo seu nume.

6Obrigava os pais a assistirem à morte dos

filhos, enviando uma liteira a um deles

quando disse que não poderia comparecer

por estar doente, e convidando um outro

para um banquete depois de assistir à

execução, tentando provocar-lhe o riso

com todo tipo de amabilidade. 7Um

administrador de jogos e de caçadas foi

espancado com correntes diante dele por

vários dias, e não morreu antes que ele se

incomodasse com o cheiro de seu cérebro

putrefato. 8Um compositor de

atelanasLXXXV foi queimado vivo no

anfiteatro, no meio da arena, por conta de

um versinho jocoso de duplo sentido. 9Um

LXXXIV Cf. nota XXXII. LXXXV Peças cômicas surgidas na cidade de Atela, na Campânia.

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cavaleiro romano que havia sido jogado às

feras, como tivesse gritado que era

inocente, foi trazido de volta, teve a língua

cortada e foi novamente jogado às feras.

XXVIII. 1Reuocatum quendam a uetere

exilio sciscitatus, quidnam ibi facere

consuesset, respondente eo per

adulationem: "Deos semper oraui ut, quod

euenit, periret Tiberius et tu imperares,"

opinans sibi quoque exules suos mortem

imprecari, misit circum insulas, qui

uniuersos contrucidarent. 2Cum discerpi

senatorem concupisset, subornauit qui

ingredientem curiam repente hostem

publicum appellantes inuaderent,

graphisque confossum lacerandum ceteris

traderent; nec ante satiatus est quam

membra et artus et uiscera hominis tracta

per uicos atque ante se congesta uidisset.

XXVIII. 1Quando perguntou a um homem

retornado do exílio o que fazia enquanto

ainda era exilado, ele lhe respondeu, para

bajulá-lo: “Pedia sempre aos deuses para

que acontecesse de Tibério morrer e tu te

tornares imperador.”. Achando, então, que

aqueles que ele próprio havia exilado

também pediam pela sua morte, mandou

soldados às ilhas para executar todos eles.

2Como quisesse que um senador fosse

partido em pedaços, subornou alguns

deles para que se lançassem sobre ele de

repente, quando entrava na cúria,

chamando-o de inimigo público, ferindo-o

com seus estilosLXXXVI, e que o levassem

aos demais para ser destroçado. E não

ficou satisfeito enquanto não viu os

membros e vísceras dele serem levados

pelas ruas e empilhados diante de si.

XXIX. 1Immanissima facta augebat

atrocitate uerborum. 2Nihil magis in

natura sua laudare se ac probare dicebat

XXIX. 1Os seus atos mais desumanos ele

agravava com a monstruosidade de suas

palavras. 2Dizia que a coisa mais

LXXXVI Objeto pontiagudo, geralmente feito de metal, usado pelos romanos para escrever sobre tábuas

cobertas com cera.

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quam, ut ipsius uerbo utar, ἀδιατρεψίαν,

hoc est inuerecundiam. 3Monenti

Antoniae auiae tamquam parum esset non

oboedire: "Memento," ait, "omnia mihi et

in omnis licere." 4Trucidaturus fratrem,

quem metu uenenorum praemuniri

medicamentis suspicabatur: "Antidotum,"

inquit, "aduersus Caesarem?" 5Relegatis

sororibus non solum insulas habere se, sed

etiam gladios minabatur. 6Praetorium

uirum ex secessu Anticyrae, quam

ualitudinis causa petierat, propagari sibi

commeatum saepius desiderantem cum

mandasset interimi, adiecit necessariam

esse sanguinis missionem, cui tam diu non

prodesset elleborum. 7Decimo quoque die

numerum puniendorum ex custodia

subscribens rationem se purgare dicebat.

Gallis Graecisque aliquot uno tempore

condemnatis gloriabatur Gallograeciam se

subegisse.

admirável na sua natureza era, para usar

suas próprias palavras, sua

ἀδιατρεψίανLXXXVII, ou seja, sua falta de

vergonha. 3À avó Antônia, que lhe dava

então conselhos, como se já não fosse o

bastante não a obedecer, disse: “Lembra-

te que posso fazer o que eu quiser a quem

eu bem entender.”. 4Quando estava para

matar o irmão, de quem suspeitava ter-se

munido de um antídoto, por medo de ser

envenenado, disse: “Existe antídoto contra

César?”. 5Ameaçava as irmãs exiladas

escrevendo-lhes que “não tinha apenas

ilhas, mas também espadas”. 6Depois de

ter mandado matar a um pretor que pedia

frequentemente que se estendesse seu

retiro em Anticíra, aonde tinha ido para

cuidar da saúde, acrescentou “que era

necessária uma sangria, a quem não pode

aproveitar tão longo tratamento com

heléboroLXXXVIII”. 7Quando assinava, a

cada dez dias, a lista de prisioneiros que

seriam executados, dizia estar “fechando a

conta”. 8Tendo condenado de uma só vez

vários prisioneiros gauleses e gregos,

gabou-se de “ter conquistado a

Galogrécia”.

LXXXVII “Adiatrepsia”, um conceito relacionado ao estoicismo, que diz respeito à atitude de imobilidade

diante dos fatos da vida. LXXXVIII Planta medicinal muito utilizada na antiguidade para o tratamento de doenças mentais.

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XXX. 1Non temere in quemquam nisi

crebris et minutis ictibus animaduerti

passus est, perpetuo notoque iam

praecepto: "Ita feri ut se mori sentiat."

2Punito per errorem nominis alio quam

quem destinauerat, ipsum quoque paria

meruisse dixit. 3Tragicum illud subinde

iactabat:

Oderint, dum metuant.

4Saepe in cunctos pariter senatores ut

Seiani clientis, ut matris ac fratrum

suorum delatores, inuectus est prolatis

libellis, quos crematos simulauerat,

defensaque Tiberi saeuitia quasi

necessaria, cum tot criminantibus

credendum esset. 5Equestrem ordinem ut

scaenae harenaeque deuotum assidue

proscidit. 6Infensus turbae fauenti

aduersus studium suum exclamauit:

"Vtinam P. R. unam ceruicem haberet!"

7Cumque Tetrinius latro postularetur, et

qui postularent, Tetrinios esse ait. 8Retiari

tunicati quinque numero gregatim

dimicantes sine certamine ullo totidem

secutoribus succubuerant; cum occidi

iuberentur, unus resumpta fuscina omnes

uictores interemit: hanc ut crudelissimam

caedem et defleuit edicto et eos, qui

spectare sustinuissent, execratus est.

XXX. 1Não admitia que qualquer um fosse

executado senão por meio de pequenos e

numerosos golpes, continuamente

expressando a conhecida ordem: “Mata-o

de modo que ele se sinta morrer.”. 2Tendo

um homem diferente daquele que

designara sido punido por uma confusão

entre nomes, ele disse que o próprio

merecia semelhante castigo.

3Frequentemente dizia estes versos

trágicos:

“Que me odeiem, desde que me

temam.LXXXIX”

4Frequentemente se voltava a todos os

senadores, chamando-os de clientes de

Sejano, de delatores de sua mãe e seus

irmãos, trazendo à tona os documentos,

que ele fingira ter queimadoXC, e defendia

a crueldade de Tibério como se fosse

necessária, em vista de quantos o

acusavam de ser cruel. 5Muitas vezes

atacou a ordem equestre, dizendo serem

devotos da arena e do palco. 6Irritado com

a turba que favorecia a um opositor, ele

disse: “Quem dera o povo romano tivesse

um só pescoço!”. 7Como o bandido

Tetrínio tivesse sido processado, ele disse

que “também os que o acusaram são

Tetrínios”. 8Um grupo de cinco retiários

LXXXIX Fragmento de uma peça de Ácio, autor do período republicano. XC Cf. nota XXXVIII.

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vestidos de túnicasXCI, lutando em grupo

contra o mesmo número de

perseguidoresXCII foram vencidos em

combate sem qualquer resistência; quando

se mandou que fossem mortos, um deles,

pegando novamente o tridente, matou

todos os vencedores: Calígula lamentou

este fato como uma crudelíssima matança

através de um édito e lançou imprecações

contra aqueles que haviam assistido ao

espetáculoXCIII.

XXXI. Queri etiam palam de condicione

temporum suorum solebat, quod nullis

calamitatibus publicis insignirentur;

Augusti principatum clade Variana, Tiberi

ruina spectaculorum apud Fidenas

memorabilem factum, suo obliuionem

imminere prosperitate rerum; atque

identidem exercituum caedes, famem,

pestilentiam, incendia, hiatum aliquem

terrae optabat.

XXXI. Costumava lamentar-se também

publicamente do estado das coisas de seu

tempo, que não era marcado por quaisquer

grandes calamidades, que o principado de

Augusto tinha sido marcado pelo desastre

de VaroXCIV, o de Tibério fora feito

memorável pelo desmoronamento do

anfiteatro em FidenasXCV, enquanto o seu

ameaçava ser esquecido por conta da

prosperidade. E repetidamente desejava o

massacre dos exércitos, a fome, a peste,

incêndios ou algum terremoto.

XCI Os retiarii tunicati eram aparentemente prisioneiros de caráter efeminado, destinados a servir de “alívio

cômico” durante as lutas. Numa sátira de Juvenal, Graco, um personagem da nobreza, luta como um desses

gladiadores, e é vituperado pelo autor (Juv. VIII, 200). Como os retiarii originais, usavam a rede e o tridente

como suas principais armas, além de uma manga de metal que lhes cobria o braço. Lutavam com a face à

mostra. XCII Os secutores eram um tipo de gladiador armado de espada, escudo, capacete e grevas. XCIII É difícil explicar a revolta de Calígula com o ocorrido, mas ela possivelmente deriva do papel atribuído

aos retiarii tunicati: eles não deveriam vencer os combates de que participavam. XCIV Referência ao episódio da perda das três legiões (XVII, XVIII e XIX) sob comando de Públio Quintílio

Varo, que foram massacradas na floresta de Teutoburgo, na Germânia. XCV Relatado por Suetônio em Tib. XL, esse desastre teria ceifado a vida de vinte mil pessoas.

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XXXII. 1Animum quoque remittenti

ludoque et epulis dedito eadem factorum

dictorumque saeuitia aderat. 2Saepe in

conspectu prandentis uel comisantis seriae

quaestiones per tormenta habebantur,

miles decollandi artifex quibuscumque e

custodia capita amputabat. 3Puteolis

dedicatione pontis, quem excogitatum ab

eo significauimus, cum multos e litore

inuitasset ad se, repente omnis

praecipitauit, quosdam gubernacula

apprehendentes contis remisque detrusit in

mare. 4Romae publico epulo seruum ob

detractam lectis argenteam laminam

carnifici confestim tradidit, ut manibus

abscisis atque ante pectus e collo

pendentibus, praecedente titulo qui

causam poenae indicaret, per coetus

epulantium circumduceretur.

5Murmillonem e ludo rudibus secum

battuentem et sponte prostratum confodit

ferrea sica ac more uictorum cum palma

discucurrit. 6Admota altaribus uictima

succinctus poparum habitu elato alte

malleo cultrarium mactauit. 7Lautiore

conuiuio effusus subito in cachinnos

consulibus, qui iuxta cubabant, quidnam

rideret blande quaerentibus: "Quid,"

XXXII. 1Mesmo enquanto relaxava, e se

dedicava aos jogos e aos banquetes, ainda

mostrava a mesma crueldade nos atos e

nas palavras. 2Frequentemente questões

sérias eram respondidas através de tortura

diante dele, enquanto jantava ou se

entregava a orgias, e um soldado

especialista em decapitações cortava as

cabeças de todos os prisioneiros. 3Durante

a inauguração da ponte em Putéoli, que

dissemos ter sido planejada por ele, como

chamasse para si muitas pessoas que

estavam à margem, de repente as fez cair

ao mar, e as empurrou com varas e remos

enquanto elas se agarravam ao leme.

4Durante um banquete público em Roma,

levou um escravo imediatamente ao

carrasco por ter roubado de dentre os leitos

uma bandeja de prata e fez com que ele

circulasse entre os que se banqueteavam

com as mãos decepadas em frente ao

peito, penduradas ao pescoço, precedido

de um escrito que indicava a causa de sua

punição. 5Atravessou com um punhal de

ferro um mirmilãoXCVI do colégio dos

gladiadores que lutava com ele usando

espadas de madeira, quando este se jogou

ao chão de propósito, e começou a correr

com a palma na mão, à maneira dos

XCVI O murmillo era um gladiador que se utilizada de um elmo adornado com a figura de um peixe. Era

muitas vezes colocado para lutar com o retiarius, criando-se assim uma representação da atividade de pesca.

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inquit, "nisi uno meo nutu iugulari

utrumque uestrum statim posse?"

vencedores. 6Tendo sido levada ao altar

uma vítima, ele, vestido como popaXCVII,

erguendo bem alto o martelo, sacrificou o

cutileiroXCVIII. 7Durante um banquete mais

luxuoso, começou a rir de repente e sem

parar. Como os cônsules que estavam ao

seu lado tivessem perguntado

educadamente por que ele ria, respondeu:

“Pelo que mais, se não pelo fato de que,

com um aceno de minha cabeça, cada um

de vocês pode ser degolado?”

XXXIII. 1Inter uarios iocos, cum assistens

simulacro Iouis Apellen tragoedum

consuluisset uter illi maior uideretur,

cunctantem flagellis discidit conlaudans

subinde uocem deprecantis quasi etiam in

gemitu praedulcem. 2Quotiens uxoris uel

amiculae collum exoscularetur, addebat:

"tam bona ceruix simul ac iussero

demetur." Quin et subinde iactabat

exquisiturum se uel fidiculis de Caesonia

sua, cur eam tanto opere diligeret.

XXXIII. 1Dentre seus variados

gracejosXCIX, certa vez, colocando-se ao

lado de uma estátua de Júpiter, perguntou

a um ator trágico chamado Apeles qual

dos dois lhe parecia maior. Como ele

hesitasse, mandou rasgá-lo com chicotes,

em seguida elogiando sua voz enquanto

ele suplicava, como se fosse agradável

mesmo quando ele gemiaC. 2Todas as

vezes em que beijava o pescoço da esposa

ou das amantes, dizia: “Tão bela cabeça

será cortada, assim que eu tiver dado a

ordem”. 3Mais do que isso,

frequentemente dizia “que procuraria

XCVII Popa, sacerdote encarregado de matar as vítimas com um golpe na cabeça. XCVIII Cultrarius, o ajudante do popa, era responsável por cortar a garganta das vítimas com uma lâmina. XCIX Nesse trecho vê-se como Calígula temperava suas crueldades com uma espécie de humor pervertido. C Há uma piada cruel subentendida aqui: “Apeles” pode ser entendido como o “sem-pele” (a+pellis).

Calígula ordenou que sua pele fosse rasgada com os flagelos.

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descobrir até mesmo com tortura de sua

amada Cesônia por que a amava tanto”.

XXXIV. 1Nec minore liuore ac

malignitate quam superbia saeuitiaque

paene aduersus omnis aeui hominum

genus grassatus est. 2Statuas uirorum

inlustrium ab Augusto ex Capitolina area

propter angustias in campum Martium

conlatas ita subuertit atque disiecit ut

restitui saluis titulis non potuerint,

uetuitque posthac uiuentium cuiquam

usquam statuam aut imaginem nisi

consulto et auctore se poni. 3Cogitauit

etiam de Homeri carminibus abolendis,

cur enim sibi non licere dicens, quod

Platoni licuisset, qui eum e ciuitate quam

constituebat eiecerit? 4Sed et Vergili ac

Titi Liui scripta et imagines paulum afuit

quin ex omnibus bibliothecis amoueret,

quorum alterum ut nullius ingenii

minimaeque doctrinae, alterum ut

uerbosum in historia neglegentemque

carpebat. 5De iuris quoque consultis, quasi

scientiae eorum omnem usum aboliturus,

saepe iactauit se mehercule effecturum ne

quid respondere possint praeter eum.

XXXIV. 1E com invejaCI e malignidade

não menor que sua soberba e crueldade,

lançou-se contra os homens de todos os

tempos. 2De tal forma destruiu e inutilizou

as estátuas de homens ilustres que haviam

sido levadas da praça do Capitólio para o

Campo de Marte por Augusto, por falta de

espaço, que elas não puderam ser

reconstituídas com suas inscrições

inteiras. E proibiu que dali em diante se

fizesse qualquer estátua ou imagem de

qualquer pessoa ainda viva, sem consulta

e ordem dele. 3Pensou até mesmo de abolir

os poemas de Homero, dizendo “Por que

não me será permitido fazer o que foi

permitido a Platão, que o expulsou da

cidade que ele havia idealizado?”. 4E por

pouco não removeu os escritos e imagens

de Virgílio e Tito Lívio de todas as

bibliotecas, os quais repreendia dizendo

que o primeiro não tinha qualquer gênio

ou instrução, e que o segundo era prolixo

e negligente com a história. 5Quanto aos

jurisconsultos, quase como se estivesse

para abolir todo o uso do conhecimento

deles, frequentemente dizia “por Hércules,

CI Aqui serão relatados os atos ligados à inveja que Calígula sentia da glória alheia, mesmo daqueles que já

haviam morrido.

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farei com que não possam dar consultas

que sejam contrárias a mim”.

XXXV. 1Vetera familiarum insignia

nobilissimo cuique ademit, Torquato

torquem, Cincinnato crinem, Cn. Pompeio

stirpis antiquae Magni cognomen.

2Ptolemaeum, de quo rettuli, et arcessitum

e regno et exceptum honorifice, non alia

de causa repente percussit, quam quod

edente se munus ingressum spectacula

conuertisse hominum oculos fulgore

purpureae abollae animaduertit. 3Pulchros

et comatos, quotiens sibi occurrerent,

occipitio raso deturpabat. 4Erat Aesius

Proculus patre primipilari, ob egregiam

corporis amplitudinem et speciem

Colosseros dictus; hunc spectaculis

detractum repente et in harenam deductum

Thraeci et mox hoplomacho comparauit

bisque uictorem constringi sine mora

iussit et pannis obsitum uicatim

circumduci ac mulieribus ostendi, deinde

iugulari. 5Nullus denique tam abiectae

condicionis tamque extremae sortis fuit,

XXXV. 1Ele retirou as velhas insígnias de

família dos homens mais nobres: o colar a

TorquatoCII, a cabeleira a CincinatoCIII, e o

sobrenome Magno a Cneu PompeuCIV,

que pertencia a essa antiga linhagem.

2Matou de repente a Ptolomeu, de quem já

falei, que ele havia mandado trazer de seu

reino e recebido com honras, por nenhuma

outra causa que não o fato de que, quando

entrou num anfiteatro em que oferecia

jogos públicos, percebeu que os olhos das

pessoas se voltaram a ele por causa do

fulgor de seu manto púrpura. 3Sempre que

encontrava homens belos e com belas

cabeleiras, tornava-os feios raspando-lhes

a parte de trás da cabeçaCV. 4Havia um

homem, filho de centurião, chamado Ésio

Próculo, conhecido como

“Colosseros”CVI, por sua aparência e pelo

tamanho de seu corpo; a este, arrastado de

seu lugar na plateia, e levado à arena,

CII Tito Mânlio Torquato venceu um gaulês em combate singular e retirou-lhe o colar de ouro como prêmio,

assumindo o sobrenome Torquatus, “aquele que carrega um colar”, que foi passado aos seus descendentes. CIII Lúcio Quinto Cincinato, ditador romano do V século a.C., ficou conhecido por sua falta de ambição

pessoal e virtude cívica, por ter renunciado à ditadura quando esta já não era mais necessária, efetivamente

renunciando ao governo absoluto de Roma. Cincinnatus significa “de cabelos anelados”. CIV Cneu Pompeu Magno foi aliado de Júlio César e mais tarde, durante as guerras civis, seu rival. Suas

conquistas militares lhe renderam o sobrenome Magnus, “grande”. CV A tradição diz que Calígula sofreu de calvície. CVI “Colosso” e “Eros” ao mesmo tempo. Tratava-se de um homem grande e belo.

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cuius non commodis obtrectaret.

6Nemorensi regi, quod multos iam annos

poteretur sacerdotio, ualidiorem

aduersarium subornauit. 7Cum quodam

die muneris essedario Porio post

prosperam pugnam seruum suum

manumittenti studiosius plausum esset, ita

proripuit se spectaculis, ut calcata lacinia

togae praeceps per gradus iret,

indignabundus et clamitans dominum

gentium populum ex re leuissima plus

honoris gladiatori tribuentem quam

consecratis principibus aut praesenti sibi.

Calígula fez confrontar um trácioCVII e em

seguida um hoplómacoCVIII, e mandou,

quando ele venceu os dois combates, que

fosse amarrado imediatamente, coberto de

trapos, conduzido por todas as ruas e

mostrado às mulheres, e depois degolado.

5Não houve ninguém de condição tão

abjeta ou de tão má sorte, que ele não

tenha atacado por inveja de seus

privilégios. 6Contratou um adversário

mais forte para matar o rei do BosqueCIX,

uma vez que este já ocupava o cargo havia

muitos anos. 7Quando certo dia, durante os

jogos, o essedárioCX Pório, que libertara

seu escravo depois de uma luta favorável,

tinha sido aplaudido com muito

entusiasmo, ele se arrancou da plateia tão

repentinamente que, pisando na aba da

toga, caiu pelos degraus de cabeça para

baixo, gritando e cheio de indignação

“contra o povo, senhor das gentes, que

pela coisa mais leve concedia mais honras

a um gladiador do que aos príncipes

divinizados e a ele próprio ali presente”.

CVII O Thraex era um tipo de gladiador que se utilizada de escudo e punhal semelhantes àqueles utilizados

pelo povo trácio. CVIII O Hoplomachus era um gladiador que usava armadura completa (normalmente os gladiadores só

usavam algumas partes de armadura, cobrindo a cabeça e ora os braços, ora as pernas). CIX O rex nemorensis era o sumo-sacerdote de Diana de Arícia, deusa que era cultuada no bosque sagrado

(nemus) de Arícia. Segundo o costume, qualquer um poderia ocupar este cargo, desde que fosse um escravo

fugitivo e matasse seu antecessor. CX O essedarius era um gladiador que combatia sobre um carro de guerra.

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XXXVI. 1Pudicitiae neque suae neque

alienae pepercit. 2M. Lepidum,

Mnesterem pantomimum, quosdam

obsides dilexisse fertur commercio mutui

stupri. 3Valerius Catullus, consulari

familia iuuenis, stupratum a se ac latera

sibi contubernio eius defessa etiam

uociferatus est. 4Super sororum incesta et

notissimum prostitutae Pyrallidis amorem

non temere ulla inlustriore femina

abstinuit. 5Quas plerumque cum maritis ad

cenam uocatas praeterque pedes suos

transeuntis diligenter ac lente mercantium

more considerabat, etiam faciem manu

adleuans, si quae pudore submitterent;

quotiens deinde libuisset egressus

triclinio, cum maxime placitam

seuocasset, paulo post recentibus adhuc

lasciuiae notis reuersus uel laudabat palam

uel uituperabat, singula enumerans bona

malaue corporis atque concubitus.

6Quibusdam absentium maritorum

nomine repudium ipse misit iussitque in

acta ita referri.

XXXVI. 1Não respeitou nem seu pudor,

nem o de outrosCXI. 2Diz-se que M.

Lépido, o pantomimo MnesterCXII, e

alguns reféns foram seus amantes em

mútua relação desonrosa. 3Valério

CatuloCXIII, jovem de uma família

consular, vociferou que tinha mantido

relações com Calígula e que seus flancos

estavam cansados de tanto se deitar com

ele. 4Além das relações incestuosas com as

irmãs e sobretudo com a prostituta

Pirálide, não se absteve de modo algum de

quaisquer das mulheres mais ilustres. 5As

quais, várias vezes, quando eram

chamadas para jantar junto com seus

maridos, avaliava diligentemente como

um mercador enquanto passavam junto ao

seu leito, até mesmo erguendo suas faces

com a mão, se alguma delas a abaixava por

pudor; e sempre que queria, ele deixava o

triclínioCXIV, chamando aquela que mais

havia lhe agradado e, voltando pouco

depois com sinais de recente lascívia,

abertamente elogiava ou criticava,

enumerando cada um dos pontos fortes e

fracos do corpo e do desempenho da

mulher. 6Para algumas mandou ele próprio

CXI Trata-se aqui da impudicícia de Calígula. CXII A pantomima não era uma arte bem vista pelos romanos, tanto por ser de origem grega como por seu

caráter efeminado. CXIII Possível descendente do poeta Catulo, e, segundo o próprio Suetônio, ele mesmo um autor, só que de

mimos. CXIV Salão de banquetes onde eram realizados os convivia. Era mobiliado com três leitos, sobre os quais se

deitavam os convivas, em número máximo de nove.

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uma carta de repúdio em nome dos

maridos ausentes, e mandou que constasse

nas atas públicas.

XXXVII. 1Nepotatus sumptibus omnium

prodigorum ingenia superauit, commentus

nouum balnearum usum, portentosissima

genera ciborum atque cenarum, ut calidis

frigidisque unguentis lauaretur,

pretiosissima margarita aceto liquefacta

sorberet, conuiuis ex auro panes et

obsonia apponeret, aut frugi hominem

esse oportere dictitans aut Caesarem.

2Quin et nummos non mediocris summae

e fastigio basilicae Iuliae per aliquot dies

sparsit in plebem. 3Fabricauit et deceris

Liburnicas gemmatis puppibus,

uersicoloribus uelis, magna thermarum et

porticuum et tricliniorum laxitate

magnaque etiam uitium et pomiferarum

arborum uarietate; quibus discumbens de

die inter choros ac symphonias litora

Campaniae peragraret. 4In exstructionibus

praetoriorum atque uillarum omni ratione

posthabita nihil tam efficere

concupiscebat quam quod posse effici

negaretur. 5Et iactae itaque moles infesto

XXXVII. 1Sua extravagânciaCXV em

relação às despesas superou os talentos

dos homens mais pródigos, tendo

inventado um novo uso para os banhos, e

tipos extravagantes de jantares e refeições,

banhando-se em óleos perfumados frios e

quentes, bebendo pérolas preciosíssimas

dissolvidas em vinagreCXVI, colocando

diante de seus convidados pães e outros

alimentos feitos de ouro, dizendo que ‘um

homem ou deve ser sóbrio ou ser César’.

2E durante alguns dias até jogou para a

plebe, do alto da basílica Júlia, uma

considerável soma de moedas. 3Também

fabricou navios libúrnicosCXVII de dez

fileiras de remos, com popas recobertas de

pedras preciosas, velas de cores variadas,

com grandes espaços para banhos, galerias

e triclínios, e ainda com grande variedade

de vinhas e árvores frutíferas, navios nos

quais ele, entre concertos e danças,

reclinava-se durante o dia enquanto

percorria as praias da Campânia. 4Nas

CXV É preciso entender as diferenças que Suetônio traz à tona entre liberalitas e nepotatus. A primeira é

uma virtude dos imperadores, que devem ser pródigos, dispostos a gastar dinheiro com seu povo. A segunda

é a extravagância, um vício, o gasto excessivo com aquilo que só diz respeito a si mesmo. CXVI A tradição atribui essa prática primeiramente à Cleópatra, que teria feito uma aposta com Marco

Antônio sobre quanto dinheiro ela poderia gastar num único banquete. CXVII Originários da Libúrnia, na Ilíria.

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ac profundo mari et excisae rupes

durissimi silicis et campi montibus aggere

aequati et complanata fossuris montium

iuga, incredibili quidem celeritate, cum

morae culpa capite lueretur. 6Ac ne

singula enumerem, immensas opes

totumque illud Ti. Caesaris uicies ac

septies milies sestertium non toto uertente

anno absumpsit.

edificações de palácios e de casas de

campo, desprezando toda contabilidade,

nada mais desejava fazer do que aquilo

que se dizia ser impossível. 5E assim

foram colocados diques no mar profundo

e hostil, destruídas as rochas mais duras,

igualados em altura os campos aos

montes, com aterro, e terraplanados os

cumes dos montes, com escavações, numa

velocidade verdadeiramente incrível, já

que o atraso era punido com a morte. 6E,

para não falar de cada gasto, esgotou em

menos de um ano imensas riquezas, e

todos os dois bilhões e setecentos milhões

de sestércios de Tibério.

XXXVIII. 1Exhaustus igitur atque egens

ad rapinas conuertit animum uario et

exquisitissimo calumniarum et auctionum

et uectigalium genere. 2Negabat iure

ciuitatem Romanam usurpare eos, quorum

maiores sibi posterisque eam

impetrassent, nisi si filii essent, neque

enim intellegi debere "posteros" ultra hunc

gradum; prolataque Diuorum Iuli et

Augusti diplomata ut uetera et obsoleta

deflabat. 3Arguebat et perperam editos

census, quibus postea quacumque de

causa quicquam incrementi accessisset.

4Testamenta primipilarium, qui ab initio

XXXVIII. 1Estando, pois, exaurido e

necessitado, voltou sua atenção à

pilhagemCXVIII, com variado e requintado

gênero de calúnias, leilões e impostos.

2Não permitia gozar o direito da cidadania

romana àqueles cujos antepassados o

haviam conquistado para si e para sua

posteridade, a não ser que fossem os filhos

destes, e dizia que não se devia entender

‘posteridade’ como nada para além desse

grau; e quando alguém lhe apresentava

documentos do Divino Júlio e do Divino

Augusto, desprezava-os como antigos e

obsoletos. 3E também acusava de terem

CXVIII Nessa rubrica, Suetônio fala das rapinae de Calígula.

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Tiberi principatus neque illum neque se

heredem reliquissent, ut ingrata rescidit;

item ceterorum ut irrita et uana,

quoscumque quis diceret herede Caesare

mori destinasse. 5Quo metu iniecto cum

iam et ab ignotis inter familiares et a

parentibus inter liberos palam heres

nuncuparetur, derisores uocabat, quod

post nuncupationem uiuere perseuerarent,

et multis uenenatas matteas misit.

6Cognoscebat autem de talibus causis,

taxato prius modo summae ad quem

conficiendum consideret, confecto

demum excitabatur. 7Ac ne paululum

quidem morae patiens super quadraginta

reos quondam ex diuersis criminibus una

sententia condemnauit gloriatusque est

expergefacta e somno Caesonia quantum

egisset, dum ea meridiaret. 8Auctione

proposita reliquias omnium

spectaculorum subiecit ac uenditauit,

exquirens per se pretia et usque eo

extendens, ut quidam immenso coacti

quaedam emere ac bonis exuti uenas sibi

inciderent. 9Nota res est, Aponio

Saturnino inter subsellia dormitante,

monitum a Gaio praeconem ne praetorium

uirum crebro capitis motu nutantem sibi

praeteriret, nec licendi finem factum,

quoad tredecim gladiatores sestertium

nonagies ignoranti addicerentur.

declarado falsamente sua riqueza aqueles

que, depois de o terem declarado, tivessem

acrescentado o que quer que fosse de

aumento sob qualquer justificativaCXIX.

4Os testamentos dos centuriões, que nada

deixaram a ele ou a Tibério desde o início

do principado deste, anulou sob pretexto

de ingratidão; e da mesma forma anulou o

testamento das demais pessoas, sob

pretexto de serem vazios e sem efeito, se

houvesse alguém que dissesse que elas

haviam designado César como seu

herdeiro. 5Razão pela qual, provocado o

medo, já era nomeado abertamente como

herdeiro pelos estranhos entre seus amigos

íntimos e pelos pais entre seus filhos, os

quais ele chamava de aduladores, porque

insistiam em continuar vivos depois de

nomeá-lo, e a muitos enviou guloseimas

envenenadas. 6Ele instruía o processo de

tais causas, tendo já estabelecido

previamente a soma que considerasse que

se deveria atingir, e somente depois de

atingida tal soma ele se retirava. 7E para

que não se demorasse nem um pouco,

certa vez condenou quarenta réus

acusados de crimes diferentes à mesma

sentença, e se vangloriou dizendo a

Cesônia, despertada do sono, ‘o quanto ele

havia feito, enquanto ela dormia’.

8Organizando um leilão, ele expôs e

CXIX O que lhe dava o direito de confiscar as propriedades dos supostos criminosos.

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vendeu as coisas que restavam de todos os

espetáculos, solicitando os preços ele

mesmo, e aumentando-os a tal ponto, que

alguns que foram coagidos a comprar

algumas coisas por um preço imenso e

tiveram seus bens esgotados cortaram as

próprias veias. 9É conhecida a história de

Apônio Saturnino, que cochilava nos

bancos. Caio tinha avisado ao pregoeiro

que não deixasse de lado o pretor que lhe

acenava frequentemente com a cabeça, e o

leilão não chegou ao fim até que fossem

atribuídos ao pretor desavisado treze

gladiadores vendidos por nove milhões de

sestércios.

XXXIX. 1In Gallia quoque, cum

damnatarum sororum ornamenta et

supellectilem et seruos atque etiam

libertos immensis pretiis uendidisset,

inuitatus lucro, quidquid instrumenti

ueteris aulae erat ab urbe repetiit,

comprensis ad deportandum meritoriis

quoque uehiculis et pistrinensibus

iumentis, adeo ut et panis Romae saepe

deficeret et litigatorum plerique, quod

occurrere absentes ad uadimonium non

possent, causa caderent. 2Cui instrumento

distrahendo nihil non fraudis ac lenocinii

XXXIX. 1Também na Gália, depois de ter

vendido os ornamentos, móveis, escravos

e até mesmo os libertos de suas irmãs

condenadas por imensas quantiasCXX,

incitado pelo lucro, mandou trazer da

cidade tudo o que havia de material do

antigo palácio, tomando veículos alugados

e os jumentos dos moinhos para o

transporte, de modo que, por vezes, faltou

pão a Roma, e muitos perderam a causa de

seus processos, porque não podiam

comparecer às suas obrigações. 2E para

vender esse material não fez uso de nada

CXX Desde o período republicano, a propriedade dos condenados era confiscada pelo ditador e mais tarde

pelo imperador. Esse processo, no entanto, era muitas vezes visto com desconfiança.

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adhibuit, modo auaritiae singulos

increpans et quod non puderet eos

locupletiores esse quam se, modo

paenitentiam simulans quod principalium

rerum priuatis copiam faceret.

3Compererat prouincialem locupletem

ducenta sestertia numerasse uocatoribus,

ut per fallaciam conuiuio interponeretur,

nec tulerat moleste tam magno aestimari

honorem cenae suae; huic postero die

sedenti in auctione misit, qui nescio quid

friuoli ducentis milibus traderet diceretque

cenaturum apud Caesarem uocatu ipsius.

além de fraudes e janotice, ora censurando

cada um dos compradores de não se

envergonharem de serem mais ricos do

que ele, ora fingindo ter pena de tornar em

objetos de particulares as coisas que

pertenceram ao príncipe. 3Tinha sido

informado de que um rico provincial tinha

oferecido duzentos mil sestércios aos seus

escravos, para que fosse admitido em seu

banquete clandestinamente, e não achou

ruim que alguém tivesse em tão alta estima

a honra de estar presente ao seu jantar; no

dia seguinte, fez com que este mesmo

homem, que estava num leilão, pagasse

duzentos mil sestércios por qualquer coisa

de frívolo e lhe disse que jantaria com

César, a convite do próprio.

XL. 1Vectigalia noua atque inaudita

primum per publicanos, deinde, quia

lucrum exuberabat, per centuriones

tribunosque praetorianos exercuit, nullo

rerum aut hominum genere omisso, cui

non tributi aliquid imponeret. 2Pro

edulibus, quae tota urbe uenirent, certum

statumque exigebatur; pro litibus ac

iudiciis ubicumque conceptis

quadragesima summae, de qua litigaretur,

nec sine poena, si quis composuisse uel

donasse negotium conuinceretur; ex

XL. 1Cobrou impostos novos e jamais

vistosCXXI, primeiro pelos publicanos, e

daí, como o lucro era abundante, pelos

centuriões e tribunos pretorianos, sem

deixar de lado nenhum gênero de coisa ou

pessoa a quem não tivesse imposto um

tributo. 2Aos comestíveis, que vinham de

toda a cidade, exigia-se uma cobrança fixa

e estabelecida; nos litígios e processos

judiciais, onde quer que fossem

realizados, exigia-se a quadragésima parte

da soma em disputa, e não sem punições

CXXI Esta nova rubrica, ainda ligada às rapinae, trata dos impostos injustos de Calígula.

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gerulorum diurnis quaestibus pars octaua;

ex capturis prostitutarum quantum

quaeque uno concubitu mereret;

additumque ad caput legis, ut tenerentur

publico et quae meretricium quiue

lenocinium fecissent, nec non et

matrimonia obnoxia essent.

para aqueles que ficasse comprovado

terem entregado ou deixado de lado a

causa; exigia-se a oitava parte dos ganhos

diários dos carregadores; dos proveitos

das prostitutas, o quanto cada uma delas

conseguia a cada encontro; havia um

acréscimo à lei, para que fossem

enquadrados nesse imposto público

aqueles que já tivessem trabalhado como

prostitutas ou proxenetas, e também os

casamentos ficavam submetidos a ele.

XLI. 1Eius modi uectigalibus indictis

neque propositis, cum per ignorantiam

scripturae multa commissa fierent, tandem

flagitante populo proposuit quidem legem,

sed et minutissimis litteris et angustissimo

loco, uti ne cui describere liceret. 2Ac ne

quod non manubiarum genus experiretur,

lupanar in Palatio constituit, districtisque

et instructis pro loci dignitate compluribus

cellis, in quibus matronae ingenuique

starent, misit circum fora et basilicas

nomenculatores ad inuitandos ad

libidinem iuuenes senesque; praebita

aduenientibus pecunia faenebris

appositique qui nomina palam

subnotarent, quasi adiuuantium Caesaris

reditus. 3Ac ne ex lusu quidem aleae

XLI. 2Anunciados desse modo os

impostos, mas não afixados, como muitas

infrações tivessem sido cometidas por

ignorância do texto, afixou a cobrança a

pedido do povo, mas em letras minúsculas

e num lugar escondido, para que ninguém

as pudesse copiar. 2E para que não

deixasse de experimentar todo tipo de

pilhagem, construiu um prostíbulo no

palácio, com diversos cômodos separados

e mobiliados de acordo com a dignidade

do lugar, nos quais se encontravam

matronas e rapazes jovens, e enviou seus

escravosCXXII pelos fóruns e basílicas para

convidar os jovens e os velhos à

libertinagem. Oferecia dinheiro

emprestado aos que vinham e mandava

CXXII Esses escravos são chamados por Suetônio de nomenculatores, um tipo de escravo de companhia cujo

dever era lembrar aos seus senhores o nome das pessoas.

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compendium spernens plus mendacio

atque etiam periurio lucrabatur. Et

quondam proximo conlusori demandata

uice sua progressus in atrium domus, cum

praetereuntis duos equites R. locupletis

sine mora corripi confiscarique iussisset,

exultans rediit gloriansque numquam se

prosperiore alea usum.

que seus nomes fossem anotados

abertamente, como se fossem

contribuintes da renda de CésarCXXIII. 3E

não desprezando mesmo o lucro dos jogos

de dados, ainda por cima ganhava por

meio da mentira e até mesmo do perjúrio.

E certa vez, dando a vez a um jogador que

estava perto dele, saiu ao átrio da casa e

viu dois cavaleiros romanos ricos, os quais

sem demora mandou que fossem presos e

tivessem seus bens confiscados, e voltou

ao jogo exultante, e gabando-se de que

‘nunca tinha tido tamanha sorte nos

dados’.

XLII. 1Filia uero nata paupertatem nec iam

imperatoria modo sed et patria conquerens

onera conlationes in alimonium ac dotem

puellae recepit. 2Edixit et strenas ineunte

anno se recepturum stetitque in uestibulo

aedium Kal. Ian. ad captandas stipes, quas

plenis ante eum manibus ac sinu omnis

generis turba fundebat. 3Nouissime

contrectandae pecuniae cupidine incensus,

saepe super immensos aureorum aceruos

patentissimo diffusos loco et nudis

pedibus spatiatus et toto corpore

aliquamdiu uolutatus est.

XLII. 1Nascida sua filhaCXXIV, queixando-

se de sua pobreza e não apenas das

despesas de governante, mas também das

de pai, aceitou contribuições para o

sustento e para constituir o dote da

menina. 2Também divulgou que receberia

presentes de ano novo, e ficou de pé na

entrada das casas no primeiro dia de

janeiro para receber o pagamento, que a

turba de todo tipo de gente diante dele lhe

jogava com as mãos cheias ou tirando da

toga. 3Por fim, aceso pelo desejo de tocar

o dinheiro, muitas vezes caminhou de pés

CXXIII Dião Cássio faz um relato diferente: segundo ele, esses membros da aristocracia não foram

prostituídos, mas apenas forçados a viver no palácio pagando uma quantia exorbitante em troca, embora,

segundo o próprio autor, alguns o tenham feito espontaneamente (Dio. LIX. 21) CXXIV Júlia Drusila, a filha de Cesônia.

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descalços sobre montes de moedas de ouro

espalhadas num vasto espaço ou rolou

sobre elas com todo o corpoCXXV.

XLIII. 1Militiam resque bellicas semel

attigit neque ex destinato, sed cum ad

uisendum nemus flumenque Clitumni

Meuaniam processisset, admonitus de

supplendo numero Batauorum, quos circa

se habebat, expeditionis Germanicae

impetum cepit; 2neque distulit, sed

legionibus et auxiliis undique excitis,

dilectibus ubique acerbissime actis,

contracto et omnis generis commeatu

quanto numquam antea, iter ingressus est

confecitque modo tam festinanter et

rapide, ut praetorianae cohortes contra

morem signa iumentis imponere et ita

subsequi cogerentur, interdum adeo

segniter delicateque, ut octaphoro

ueheretur atque a propinquarum urbium

plebe uerri sibi uias et conspergi propter

puluerem exigeret.

XLIII. 1Teve apenas uma experiência

militarCXXVI, e não de propósito

deliberado, mas quando tinha ido à

MevâniaCXXVII para ver o bosque e o rio de

Clitumno, advertido de que deveria

completar o número de soldados

batavosCXXVIII, que trazia ao seu redor,

tomou o impulso de fazer uma expedição

à Germânia; 2e sem fazer diferença, reuniu

legiões e tropas auxiliares vindas de toda

parte, recrutados em todo lugar e

conduzidos com grande rigor, e arrecadou

mantimentos de todo tipo em quantidade

jamais vista, pôs-se a caminho e saiu com

tanta pressa e rapidez que as coortes

pretorianas puseram suas insígnias sobre

os jumentos – o que era contrário ao

costume – e assim foram obrigadas a

acompanhá-lo. Às vezes era tão lento e

vagaroso, que se fazia transportar numa

liteira carregada por oito homens e exigia

do povo das cidades próximas que

CXXV Esse é um dos indícios da insanidade de Calígula apresentados por Suetônio. CXXVI Nessa rubrica, Suetônio trata dos militia, os feitos militares de Calígula. CXXVII Hoje Bevagna, na Itália. CXXVIII Oriundos da Batávia, hoje correspondente, em parte, ao território da Holanda.

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varressem as estradas para ele e as

aspergissem para evitar a poeiraCXXIX.

XLIV. 1Postquam castra attigit, ut se

acrem ac seuerum ducem ostenderet,

legatos, qui auxilia serius ex diuersis locis

adduxerant, cum ignominia dimisit; at in

exercitu recensendo plerisque

centurionum maturis iam et nonnullis ante

paucissimos quam consummaturi essent

dies, primos pilos ademit, causatus senium

cuiusque et imbecillitatem; ceterorum

increpita cupiditate commoda emeritae

militiae ad senum milium summam

recidit. 2Nihil autem amplius quam

Adminio Cynobellini Britannorum regis

filio, qui pulsus a patre cum exigua manu

transfugerat, in deditionem recepto, quasi

uniuersa tradita insula, magnificas

Romam litteras misit, monitis

speculatoribus, ut uehiculo ad forum

usque et curiam pertenderent nec nisi in

aede Martis ac frequente senatu

consulibus traderent.

XLIV. 1Depois de chegar aos

acampamentos, para se mostrar um

general cruel e severo, dispensou com

ignomínia os embaixadores que haviam

trazido as tropas auxiliares de diversas

localidades com atraso; e ao fazer a revista

do exército retirou do comando da

primeira companhia muitos dos centuriões

mais velhos - e alguns já a pouquíssimos

dias de cumprir seu tempo de serviço – sob

o pretexto de sua velhice e fraqueza de

espírito; acusando a avareza dos outros,

reduziu o estipêndio dos soldados

veteranos à soma de seis mil

sestérciosCXXX. 2E não conseguiu nada

mais do que a rendição de Admínio, filho

de Cunobelino, rei da Bretanha, que tinha

sido expulso pelo pai e fugira com uma

pequena tropa. E mandou cartas suntuosas

a Roma, como se houvesse capturado toda

a ilha, aconselhando aos batedores que

fossem num carro até o Fórum e a cúria, e

não entregassem a mensagem antes de

CXXIX Nota-se como Suetônio evita fazer quaisquer comentários sobre as possíveis batalhas travadas nessa

campanha. Ele se limita a usá-la para melhor traçar a personalidade de Calígula. CXXX O texto original fala em ‘sescentorum milium’, ou seja, seiscentos mil. No entanto, trata-se

provavelmente de um erro, já que, de acordo com Dion Cássio (Dio. LV. 23), o valor na época de

Augusto seria de doze mil sestércios.

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chegar ao Campo de Marte e diante do

senado e dos cônsules.

XLV. 1Mox deficiente belli materia

paucos de custodia Germanos traici

occulique trans Rhenum iussit ac sibi post

prandium quam tumultuosissime adesse

hostem nuntiari. 2Quo facto proripuit se

cum amicis et parte equitum

praetorianorum in proximam siluam,

truncatisque arboribus et in modum

tropaeorum adornatis ad lumina reuersus,

eorum quidem qui secuti non essent

timiditatem et ignauiam corripuit, comites

autem et participes uictoriae nouo genere

ac nomine coronarum donauit, quas

distinctas solis ac lunae siderumque specie

exploratorias appellauit. 3Rursus obsides

quosdam abductos e litterario ludo

clamque praemissos, deserto repente

conuiuio, cum equitatu insecutus ueluti

profugos ac reprehensos in catenis

reduxit; in hoc quoque mimo praeter

modum intemperans. Repetita cena

renuntiantis coactum agmen sic ut erant

loricatos ad discumbendum adhortatus est.

Monuit etiam notissimo Vergili uersu

"durarent secundisque se rebus seruarent."

5Atque inter haec absentem senatum

populumque grauissimo obiurgauit edicto,

quod Caesare proeliante et tantis

XLV. Pouco tempo depois, faltando-lhe

motivo para a guerra, mandou que alguns

poucos reféns germanos atravessassem o

Reno e se escondessem, e que se

anunciasse a ele com grande tumulto,

depois do jantar, que o inimigo estava

perto. Razão pela qual se arrancou com

alguns companheiros e parte da cavalaria

pretoriana para uma floresta próxima, e

depois de cortar algumas árvores e adorná-

las como troféus, retornou com archotes e

censurou os que não o haviam seguido por

sua covardia e indolência, mas aos seus

companheiros e participantes da vitória

presenteou-lhes com coroas de um novo

tipo e novo nome, as quais chamou

‘exploradoras’, e que eram adornadas com

a imagem do sol, da lua e dos astros. Outra

vez sequestrou reféns de uma escola e os

mandou secretamente à sua frente, depois

do que ele repentinamente abandonou um

banquete e os perseguiu com o auxílio de

uma cavalaria como se fossem foragidos e

os trouxe de volta acorrentados.

Excessivamente desregrado também nesta

encenação, depois que voltou ao jantar,

exortou os soldados que vinham informá-

lo de que o exército estava reunido a se

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discriminibus obiecto tempestiua

conuiuia, circum et theatra et amoenos

secessus celebrarent.

sentarem à mesa do jeito que estavam,

vestidos com suas armaduras. E também

os aconselhou com o conhecido verso de

Virgílio para que ‘resistissem e

esperassem dias melhores’CXXXI. E,

enquanto isso, repreendeu o senado e o

povo ausentes em Roma com um édito

muito severo, pois ‘enquanto César lutava

e era objeto de tantos perigos, celebravam

banquetes suntuosos, aproveitando os

jogos circenses, teatros e retiros amenos’.

XLVI. Postremo quasi perpetraturus

bellum, derecta acie in litore Oceani ac

ballistis machinisque dispositis, nemine

gnaro aut opinante quidnam coepturus

esset, repente ut conchas legerent

galeasque et sinus replerent imperauit,

"spolia Oceani" uocans "Capitolio

Palatioque debita," et in indicium

uictoriae altissimam turrem excitauit, ex

qua ut Pharo noctibus ad regendos nauium

cursus ignes emicarent; pronuntiatoque

militi donatiuo centenis uiritim denariis,

quasi omne exemplum liberalitatis

supergressus: "abite," inquit, "laeti, abite

locupletes."

XLVI. Por fim, como se estivesse para pôr

um fim a uma guerra, levou o exército às

margens do Oceano e armou catapultas e

máquinas de guerra, sem que ninguém

soubesse ou pudesse imaginar o que ele

faria, e de repente mandou que fossem

recolhidas conchas e que os soldados

enchessem os bolsos e os capacetes,

chamando-as de ‘espólios do Oceano,

devidas ao Capitólio e ao Palatino’, e

ergueu uma altíssima torre em sinal de

vitória, da qual, como em Faros,

brilhariam luzes para guiar o caminho dos

navios durante a noite; e anunciando ao

exército uma recompensa de cem denários

para cada homem, como se tivesse

ultrapassado todo exemplo de

CXXXI Calígula cita uma passagem da Eneida (I, 207).

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generosidade, disse-lhes: ‘Ide em alegria!

Ide enriquecidos!’CXXXII.

XLVII. 1Conuersus hinc ad curam

triumphi praeter captiuos ac transfugas

barbaros Galliarum quoque

procerissimum quemque et, ut ipse

dicebat, ἀξιοθριάμβευτον, ac nonnullos ex

principibus legit ac seposuit ad pompam

coegitque non tantum rutilare et

summittere comam, sed et sermonem

Germanicum addiscere et nomina

barbarica ferre. 2Praecepit etiam triremis,

quibus introierat Oceanum, magna ex

parte itinere terrestri Romam deuehi.

3Scripsit et procuratoribus, triumphum

appararent quam minima summa, sed

quantus numquam alius fuisset, quando in

omnium hominum bona ius haberent.

XLVII. 1Voltando-se ao cuidado do seu

triunfo, além dos cativos e dos fugitivos

bárbaros, escolheu os mais eminentes de

cada uma das Gálias e, como ele mesmo

dizia, ‘os mais dignos de triunfo’, e alguns

dentre os príncipes e os reservou à

cerimônia, coagindo-os não somente a

tingir de vermelho os cabelos e a deixá-los

crescer, mas também a aprender a língua

dos germanos e adotar nomes bárbaros.

2Instruiu também que se trouxessem para

Roma as trirremesCXXXIII nas quais ele

havia adentrado o Oceano, e isso foi feito

na maior parte pelo caminho terrestre. 3E

também escreveu aos procuradores ‘que

preparassem um triunfo com o menor

gasto, mas maior do que jamais houvera,

pois tinha autoridade sobre os bens de

todos os homens’CXXXIV.

XLVIII. 1Prius quam prouincia decederet,

consilium iniit nefandae atrocitatis

XLVIII. 1Antes de deixar a província,

planejou a nefanda atrocidade de destruir

CXXXII Essa passagem pode ter sido, segundo Winterling (2011: 118), o resultado de um motim por parte

das tropas que acompanhavam Calígula, que teriam se recusado a atravessar o mar até a Bretanha. O gesto

de Calígula de fazer com que recolhessem conchas como espólios e dar a eles uma recompensa minúscula

poderia ser uma tentativa de ridicularizá-los por sua covardia. CXXXIII Embarcação de guerra que dispunha de três ordens de remos. CXXXIV Possível tentativa de fazer pouco do triunfo, que era uma instituição regulada pelo Senado, com

quem Calígula parecia indisposto.

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legiones, quae post excessum Augusti

seditionem olim mouerant, contrucidandi,

quod et patrem suum Germanicum ducem

et se infantem tunc obsedissent, uixque a

tam praecipiti cogitatione reuocatus,

inhiberi nullo modo potuit quin decimare

uelle perseueraret. 2Vocatas itaque ad

contionem inermes, atque etiam gladiis

depositis, equitatu armato circumdedit.

3Sed cum uideret suspecta re plerosque

dilabi ad resumenda si qua uis fieret arma,

profugit contionem confestimque urbem

petit, deflexa omni acerbitate in senatum,

cui ad auertendos tantorum dedecorum

rumores palam minabatur, querens inter

cetera fraudatum se iusto triumpho, cum

ipse paulo ante, ne quid de honoribus suis

ageretur, etiam sub mortis poena

denuntiasset.

as legiões que outrora haviam promovido

uma sedição depois da morte de Augusto,

porque assediaram tanto a seu pai e

comandante deles, Germânico, quanto a

ele mesmo, ainda meninoCXXXV. E com

dificuldade foi dissuadido de tão

precipitado pensamento, mas não se pôde

convencê-lo de modo algum a desistir de

dizimá-los. 2Depois que, desarmadas, elas

foram chamadas à reunião, e até mesmo já

com as espadas depostas, cercou-as com

uma cavalaria armada. 3Mas, vendo que

muitos, suspeitando, escapavam-se para

recuperar as armas caso houvesse

contenda, fugiu da reunião e

imediatamente voltou para Roma,

despejando todo o ódio sobre o

senadoCXXXVI, que ameaçava abertamente

para distrair dos rumores de tantas

vergonhas, alegando entre outras coisas

que fora privado de seu justo triunfo,

quando ele próprio, pouco antes, havia

proibido sob pena de morte que se fizesse

algo a respeito de suas honras.

XLIX. 1Aditus ergo in itinere a legatis

amplissimi ordinis ut maturaret orantibus,

quam maxima uoce: "ueniam," inquit,

XLIX. 1Tendo sido encontrado no

caminho por um membro daquela distinta

CXXXV Como afirma Winterling (2011, 119) é muito pouco provável que os soldados daquele tempo ainda

fizessem parte das legiões depois de quase trinta anos. O mais plausível seria imaginar que Calígula

pretendia castigar os responsáveis por um novo motim. CXXXVI Sêneca afirma que Calígula planejava destruir todo o senado. (Sen. De Ira III.19.2).

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"ueniam, et hic mecum," capulum gladii

crebro uerberans, quo cinctus erat. 2Edixit

et reuerti se, sed iis tantum qui optarent,

equestri ordini et populo; nam se neque

ciuem neque principem senatui amplius

fore. 3Vetuit etiam quemquam senatorum

sibi occurrere. 4Atque omisso uel dilato

triumpho ouans urbem natali suo

ingressus est; intraque quartum mensem

periit, ingentia facinora ausus et aliquanto

maiora moliens, siquidem proposuerat

Antium, deinde Alexandream commigrare

interempto prius utriusque ordinis

electissimo quoque. 5Quod ne cui dubium

uideatur, in secretis eius reperti sunt duo

libelli diuerso titulo, alteri "gladius," alteri

"pugio" index erat; ambo nomina et notas

continebant morti destinatorum. 6Inuenta

et arca ingens uariorum uenenorum plena,

quibus mox a Claudio demersis infecta

maria traduntur non sine piscium exitio,

quos enectos aestus in proxima litora

eiecit.

ordemCXXXVII, que lhe pedia que

apressasse seu retorno, respondeu-lhe em

alto e bom som: ‘Voltarei, sim, e isto aqui

estará comigo’ e batia na ponta do cabo da

espada, que lhe pendia da cintura. 2E

mandou dizer que ‘retornava, mas

somente para aqueles que desejavam seu

retorno, o povo e a ordem equestre, pois

ele não mais seria concidadão nem

príncipe do senado’. 3Até mesmo proibiu

que qualquer membro do senado fosse até

ele. 4E, tendo atrasado ou desistido do

triunfo, entrou na cidade no dia de seu

aniversário em meio a uma ovação; e

dentro de quatro meses morreu, tendo

ousado cometer crimes enormes, e

planejando cometer outros ainda maiores,

visto que pretendia se mudar para

ÂncioCXXXVIII, e depois para

AlexandriaCXXXIX, depois de matar os

mais importantes membros de cada

ordem. 5E para que quanto a isto não

pareça haver dúvida a quem quer que seja,

em seus documentos particulares foram

encontrados dois livrinhos com títulos

diferentes: um chamado ‘espada’, e o

CXXXVII Ou seja, da ordem senatorial. Esse trecho dá ainda mais indícios da relação conturbada entre

Calígula e a aristocracia romana. CXXXVIII Outro indício de que esta seria a localidade natal de Calígula. CXXXIX Desde os tempos de Augusto, que criticava a aproximação entre Marco Antônio e Cleópatra, tornou-

se um lugar-comum que os governantes que não recebiam aprovação da aristocracia fossem acusados

posteriormente de tentar “orientalizar” o Império. Pode-se supor que isso também se encaixa com as

alegações de relações incestuosas entre Calígula e suas irmãs (que seriam mais naturais no Egito) e o

estabelecimento de um culto ao seu próprio nume.

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outro ‘punhal’CXL; ambos continham

nomes e marcas distintivas dos que

estavam destinados à morte. 6Também foi

encontrada uma imensa arca cheia de

vários venenos, os quais, dizem,

contaminaram os mares, não sem matança

de peixes, que as ondas lançaram, mortos,

nas praias próximas depois que Cláudio

jogou seu conteúdo na água.

L. 1Statura fuit eminenti, colore expallido,

corpore enormi, gracilitate maxima

ceruicis et crurum, oculis et temporibus

concauis, fronte lata et torua, capillo raro

at circa uerticem nullo, hirsutus cetera.

2Quare transeunte eo prospicere ex

superiore parte aut omnino quacumque de

causa capram nominare, criminosum et

exitiale habebatur. 3Vultum uero natura

horridum ac taetrum etiam ex industria

efferabat componens ad speculum in

omnem terrorem ac formidinem.

4Valitudo ei neque corporis neque animi

constitit. Puer comitiali morbo uexatus, in

adulescentia ita patiens laborum erat, ut

tamen nonnumquam subita defectione

ingredi, stare, colligere semet ac sufferre

uix posset. 5Mentis ualitudinem et ipse

L. 1Era de alta estatura, cor pálida, corpo

enorme, mas com pescoço e pernas

extremamente magros, têmporas e olhos

côncavos, testa larga e ameaçadora, cabelo

ralo e calvo no topo da cabeça, mas com

um corpo peludo. 2Razão pela qual era

considerado crime e motivo de pena

capital falar em bodes, sob qualquer

pretexto, ou olhá-lo de cima quando ele

passava. 3Seu rosto já naturalmente feio e

horrendo ele tornava ainda mais bestial,

treinando diante do espelho todo tipo de

terror e espantoCXLI. 4Não era saudável

nem de corpo, nem de espírito. Quando

menino, fora acometido por epilepsia, e

durante a juventude suportava sofrimento

tal que, muitas vezes, tomado por súbito

desfalecimento, mal conseguia caminhar,

CXL Que seriam carregados por um liberto seu, Protógenes. CXLI Este retrato de Calígula entra em contraste com o de Germânico. De acordo com as tradições de

fisiognomia da Antiguidade, o fato de ter um corpo grande e membros magros era sinal de sua feiura. A

palidez era vista como sinal de covardia. Os olhos de Calígula davam a impressão de estupidez. (LINDSAY,

2002, p. 153).

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senserat ac subinde de secessu deque

purgando cerebro cogitauit. 6Creditur

potionatus a Caesonia uxore amatorio

quidem medicamento, sed quod in

furorem uerterit. 7Incitabatur insomnio

maxime; neque enim plus quam tribus

nocturnis horis quiescebat ac ne iis

quidem placida quiete, sed pauida miris

rerum imaginibus, ut qui inter ceteras

pelagi quondam speciem conloquentem

secum uidere uisus sit. 8Ideoque magna

parte noctis uigiliae cubandique taedio

nunc toro residens, nunc per longissimas

porticus uagus inuocare identidem atque

expectare lucem consuerat.

ou ficar de pé, se recompor ou se sustentar.

5Ele próprio tinha tomado consciência de

sua saúde mental, e pensou

frequentemente de se retirar e limpar seu

cérebro. 6Acredita-se que tenha sido

envenenado pela esposa Cesônia com

algum filtro de amor, mas que se

transformara em loucuraCXLII. 7Era

atormentado sobretudo pela insônia; pois

não descansava mais do que três horas

durante a noite, e não eram essas horas de

um repouso plácido, mas sim aterrado por

imagens terríveis, de modo que, entre

outras coisas, pareceu-lhe, certa vez, ver a

si mesmo conversando com o espírito do

mar. 8E, por isso, durante a maior parte da

noite, cansado de permanecer deitado sem

dormir, tinha o costume de ora sentar-se

no leito, ora, vagando através de muitos

pórticos, invocar e esperar

incessantemente pela luz do dia.

LI. 1Non inmerito mentis ualitudini

attribuerim diuersissima in eodem uitia,

summam confidentiam et contra nimium

metum. 2Nam qui deos tanto opere

contemneret, ad minima tonitrua et

fulgura coniuere, caput obuoluere, at uero

maiore proripere se e strato sub lectumque

LI. 1Eu posso atribuir não injustamente à

sua saúde mental os dois muito diferentes

vícios nele presentes, uma petulância

exacerbada e, por outro lado, uma

covardia demasiada. 2Pois aquele que

tanto desprezava os deuses costumava, ao

perceber o menor trovão ou raio, fechar os

CXLII Embora a tradição tenha sempre considerado Calígula um governante louco, a maioria dos

especialistas de hoje discorda dessa hipótese. (WINTERLING, 2011: 6).

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condere solebat. 3Peregrinatione quidem

Siciliensi irrisis multum locorum

miraculis repente a Messana noctu

profugit Aetnaei uerticis fumo ac

murmure pauefactus. 4Aduersus barbaros

quoque minacissimus, cum trans Rhenum

inter angustias densumque agmen iter

essedo faceret, dicente quodam non

mediocrem fore consternationem sicunde

hostis appareat, equum ilico conscendit ac

propere reuersus ad pontes, ut eos

calonibus et impedimentis stipatos

repperit, impatiens morae per manus ac

super capita hominum translatus est. 5Mox

etiam audita rebellione Germaniae fugam

et subsidia fugae classes apparabat, uno

solacio adquiescens transmarinas certe

sibi superfuturas prouincias, si uictores

Alpium iuga, ut Cimbri, uel etiam urbem,

ut Senones quondam, occuparent; unde

credo percussoribus eius postea consilium

natum apud tumultuantes milites

ementiendi, ipsum sibi manus intulisse

nuntio malae pugnae perterritum.

olhos, cobrir a cabeça, e quando estes

eram estrondosos, arrancar-se do estrado e

esconder-se sob o leito. 3Durante sua

peregrinação pela SicíliaCXLIII, riu-se dos

milagres em muitos lugares, mas fugiu de

repente de Messana, durante a noite,

aterrorizado com a fumaça e com o ruído

no topo do Etna. 4Embora ameaçador

contra os bárbaros, quando fez o caminho

de carro para atravessar o Reno e ficou

entre os desfiladeiros com seu exército

cerrado, e alguém disse que não seria

pequeno o tumulto se o inimigo

aparecesse, imediatamente subiu num

cavalo e correu de volta para as pontes, e

como as encontrasse bloqueadas por

criados e bagagens, impaciente com a

demora, fez-se ser levado sobre as cabeças

dos homens, sustentado pelas suas mãos.

5E pouco depois, tendo ouvido falar da

rebelião na GermâniaCXLIV, preparou a

fuga e uma esquadra com mantimentos

para fugir, tendo como único consolo o

fato de que lhe restariam as províncias de

além-mar, se os vencedores tomassem o

topo dos alpes, como os CimbrosCXLV

haviam feito, ou até mesmo a própria

Roma, como os SenonosCXLVI certa vez.

Razão pela qual, creio, seus assassinos

CXLIII Logo após a morte da irmã Drusila. CXLIV Segundo Lindsay, não há registro desse episódio. Talvez seja uma referência à conspiração de

Getúlico. (LINDSAY, 2002: 157). CXLV Povo da Germânia. CXLVI Povo da Gália Cisalpina.

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posteriormente tiveram a ideia de inventar

para os seus soldados revoltados que ele

próprio tinha tirado a vida, com medo da

notícia de uma derrota.

LII. 1Vestitu calciatuque et cetero habitu

neque patrio neque ciuili, ac ne uirili

quidem ac denique humano semper usus

est. 2Saepe depictas gemmatasque indutus

paenulas, manuleatus et armillatus in

publicum processit; aliquando sericatus et

cycladatus; ac modo in crepidis uel

coturnis, modo in speculatoria caliga,

nonnumquam socco muliebri; plerumque

uero aurea barba, fulmen tenens aut

fuscinam aut caduceum deorum insignia,

atque etiam Veneris cultu conspectus est.

3Triumphalem quidem ornatum etiam ante

expeditionem assidue gestauit, interdum

et Magni Alexandri thoracem repetitum e

conditorio eius.

LII. 1Nunca usou roupas e calçados e

outras vestimentas à moda nacional, nem

dos cidadãos, nem dos chefes de família,

e, por fim, nem dos seres humanos.

2Frequentemente vestia-se com capas

coloridas e adornadas com pedras, saía em

público com túnicas de manga e com

braceletes, às vezes usando sedas e

cícladeCXLVII, às vezes sandálias ou

coturnos, às vezes botas de batedor, ou

ainda borzeguins femininosCXLVIII; foi

visto várias vezes usando uma barba

dourada, segurando um raio, um tridente

ou um caduceu, insígnias dos deuses, e até

mesmo vestido de VênusCXLIX. 3Em

muitas ocasiões vestiu os ornamentos

triunfais mesmo antes de sua campanha

militar, às vezes usando a couraça de

Alexandre MagnoCL, tirada de seu túmulo.

CXLVII Peça do vestuário feminino. CXLVIII Essa descrição é uma tentativa de reforçar a natureza efeminada de Calígula. CXLIX Aqui, acrescenta-se ao seu caráter efeminado sua húbris ao se comparar com os deuses. CL Outro sinal da fraqueza de Calígula pelas tradições orientais.

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LIII. 1Ex disciplinis liberalibus minimum

eruditioni, eloquentiae plurimum attendit,

quantumuis facundus et promptus, utique

si perorandum in aliquem esset. 2Irato et

uerba et sententiae suppetebant,

pronuntiatio quoque et uox, ut neque

eodem loci prae ardore consisteret et

exaudiretur a procul stantibus.

3Peroraturus stricturum se lucubrationis

suae telum minabatur, lenius comptiusque

scribendi genus adeo contemnens, ut

Senecam tum maxime placentem

"commissiones meras" componere et

"harenam esse sine calce" diceret.

4Solebat etiam prosperis oratorum

actionibus rescribere et magnorum in

senatu reorum accusationes

defensionesque meditari ac, prout stilus

cesserat, uel onerare sententia sua

quemque uel subleuare, equestri quoque

ordine ad audiendum inuitato per edicta.

LIII. 1Dentre as disciplinas liberaisCLI,

dedicou-se pouco à erudição, e mais à

eloquência, sendo facundo e disposto ao

falar com alguém. 2Quando irado, as

palavras e as frases ficavam à sua

disposição, assim como a voz e a

pronúncia, de tal modo que não parava no

mesmo lugar de tão empolgado, e era

ouvido mesmo pelos que estavam longe.

3Quando estava para discursar, ameaçava

que ‘sacaria um dardo de suas

lucubrações’, de tal forma desprezando o

estilo de escrita mais ameno e burilado,

que dizia que Sêneca, então muitíssimo

apreciado, havia composto ‘meras obras

de ocasião’, e que era ‘areia sem cal’CLII.

4Também costumava compor respostas

aos discursos dos oradores de sucesso, e

elaborar acusações e defesas dos grandes

réus no senadoCLIII, e, conforme concedia

seu estilo, tornar-lhes a sentença mais

pesada ou mais leve, convidando até

mesmo a ordem equestre, por meio de

éditos, para que o ouvissem.

CLI A saber: retórica, filosofia, música, poesia e jurisprudência. O interesse de Calígula pela retórica já havia

sido demonstrado nos jogos que ele havia realizado em Siracusa (Cf. nota LXI). CLII Visão que possivelmente não diferia muito da de Suetônio, que afirma que Sêneca teria privado o jovem

Nero do contato com oradores mais recentes (e melhores) para fortalecer a admiração que o futuro

imperador tinha por ele. (Ner. LII.1). CLIII O que não difere muito dos exercícios de controuersiae e de suasoriae praticados pelos alunos de

retórica.

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LIV. 1Sed et aliorum generum artes

studiosissime et diuersissimas exercuit.

2Thraex et auriga, idem cantor atque

saltator, battuebat pugnatoriis armis,

aurigabat exstructo plurifariam circo;

canendi ac saltandi uoluptate ita

efferebatur, ut ne publicis quidem

spectaculis temperaret quo minus et

tragoedo pronuntianti concineret et

gestum histrionis quasi laudans uel

corrigens palam effingeret. 3Nec alia de

causa uidetur eo die, quo periit,

peruigilium indixisse quam ut initium in

scaenam prodeundi licentia temporis

auspicaretur. 4Saltabat autem

nonnumquam etiam noctu; et quondam

tres consulares secunda uigilia in Palatium

accitos multaque et extrema metuentis

super pulpitum conlocauit, deinde repente

magno tibiarum et scabellorum crepitu

cum palla tunicaque talari prosiluit ac

desaltato cantico abiit. 5Atque hic tam

docilis ad cetera natare nesciit.

LIV. 1Mas também exerceu

diligentemente artes bem diferentes, e de

outros gêneros. 2Como trácioCLIV ou piloto

de biga, ou mesmo como cantor ou

dançarino, batia-se com armas de lutador,

e conduzia a biga nos diversos lugares em

que se havia construído um circo; era tão

afetado pelo desejo de cantar e de dançar,

que nem mesmo durante os espetáculos

públicos conseguia impedir-se de

declamar junto com o ator de tragédia ou

de imitar os gestos do histrião, como se o

elogiasse ou corrigisseCLV. 3E não parece

ter sido por outro motivo que, no dia em

que morreu, tinha determinado um culto

noturno com vigília, para que inaugurasse

o início de seu aparecimento no palco,

usando a ocasião como desculpa.

4Dançava muitas vezes até durante a noite;

e certa vez, durante a segunda vigíliaCLVI,

colocou sobre os bancos três consulares –

que temiam coisas extremas e diversas -

que ele havia mandado trazer ao palácio, e

então, de repente, com o grande estrondo

das flautas e escabelosCLVII, saltou diante

deles com uma túnica que ia até os

tornozelos e vestes de ator trágico e, tendo

feito seu canto e sua dança, foi embora. 4E

CLIV Cf. nota CVII. CLV Todas essas práticas iam de encontro aos valores da aristocracia romana, e foram atribuídas a Calígula

e a Nero de maneira análoga. CLVI Os romanos dividiam as horas sem sol em quatro vigílias de três horas cada. O período da segunda

vigília seria entre nove horas e meia-noite. CLVII Scabellum, um pequeno tamborete que se tocava com o pé.

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este homem, tão versado em outras

matérias, não sabia nadar.

LV. 1Quorum uero studio teneretur,

omnibus ad insaniam fauit. 2Mnesterem

pantomimum etiam inter spectacula

osculabatur, ac si qui saltante eo uel leuiter

obstreperet, detrahi iussum manu sua

flagellabat. 3Equiti R. tumultuanti per

centurionem denuntiauit, abiret sine mora

Ostiam perferretque ad Ptolemaeum

regem in Mauretaniam codicillos suos;

quorum exemplum erat: "ei quem istoc

misi, neque boni quicquam neque mali

feceris." 4Thraeces quosdam Germanis

corporis custodibus praeposuit.

5Murmillonum armaturas recidit.

6Columbo uictori, leuiter tamen saucio,

uenenum in plagam addidit, quod ex eo

Columbinum appellauit; sic certe inter alia

uenena scriptum ab eo repertum est.

7Prasinae factioni ita addictus et deditus,

ut cenaret in stabulo assidue et maneret,

agitatori Eutycho comisatione quadam in

LV. 1Cuidava daqueles que tinha em

grande estima até o ponto da loucura.

2Mesmo durante os espetáculos beijava o

pantomimo MnesterCLVIII, e se alguém

fazia um leve ruído enquanto ele dançava,

mandava que se retirasse e o flagelava

com suas próprias mãos. 3Mandou a um

cavaleiro romano que fazia barulho,

através de um centurião, que ele fosse sem

demora para Óstia e levasse até o rei

Ptolomeu na Mauritânia seu bilhete, que

tinha como minuta: ‘Não farás nada de

bom ou de mal àquele que enviei para

aí’CLIX. 4Pôs alguns gladiadores tráciosCLX

à frente de sua guarda germânicaCLXI.

5Diminuiu a armadura dos mirmilõesCLXII.

6Depois que ColomboCLXIII foi vencedor,

embora tivesse sido ferido de leve, ele

colocou veneno em sua ferida, veneno que

chamou de columbino por conta dele; com

esse nome ele foi encontrado na lista de

CLVIII Novamente há uma crítica ao caráter efeminado de Calígula, não sem menção ao seu comportamento

favorável às tradições gregas. CLIX Um plano demasiadamente complexo para simplesmente exilar o cavaleiro. Outra amostra do estranho

senso de humor de Calígula. CLX Cf. nota CVII. CLXI O que demonstra seu apreço pelos gladiadores enquanto grupo, o que obviamente não era visto com

bons olhos pelos seus críticos. CLXII Cf. nota XCVI. O fato de Calígula ter diminuído a armadura desse tipo de gladiador pode ser sinal de

sua preferência pelos seus rivais, sobretudo os trácios, que ele havia acrescentado à sua guarda particular. CLXIII Um gladiador contemporâneo de Calígula. Esse ato novamente atesta o interesse desmesurado do

imperador pelos jogos de gladiadores.

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apophoretis uicies sestertium contulit.

8Incitato equo, cuius causa pridie

circenses, ne inquietaretur, uiciniae

silentium per milites indicere solebat,

praeter equile marmoreum et praesaepe

eburneum praeterque purpurea tegumenta

ac monilia e gemmis domum etiam et

familiam et supellectilem dedit, quo

lautius nomine eius inuitati acciperentur;

consulatum quoque traditur destinasse.

venenos escrita por Calígula. 7Era tão

favorável e dedicado à facção

prásinaCLXIV, que muitas vezes ceava nos

seus estábulos ou lá permanecia, e deu ao

condutor Eutico, durante uma orgia, dois

milhões de sestércios como presente.

8Costumava usar soldados para forçar o

silêncio nas vizinhanças quando da

véspera dos jogos circenses, para que seu

cavalo Incitato não fosse incomodado,

além ter-lhe mandado construir um

estábulo de mármore e uma manjedoura

de marfim. Também cobriu-lhe de

púrpura, deu-lhe colares de pedras

preciosas, uma casa, escravos e mobília,

para que pudesse receber com maior

suntuosidade os convidados; diz-se

também que planejava fazê-lo cônsulCLXV.

LVI. 1Ita bacchantem atque grassantem

non defuit plerisque animus adoriri. 2Sed

una atque altera conspiratione detecta,

aliis per inopiam occasionis cunctantibus,

duo consilium communicauerunt

perfeceruntque, non sine conscientia

potentissimorum libertorum

praefectorumque praetori; quod ipsi

LVI. 1Por tamanha devassidão e tantos

assaltos, não faltou quem quisesse

derrubá-loCLXVI. 2Mas quando uma ou

outra conspiração havia sido descoberta e

outros esperavam pela ocasião necessária,

dois homens dividiram o mesmo plano e o

executaram, não sem o conhecimento dos

seus libertos mais poderosos e dos

CLXIV Cf. nota LIV. Na época de Calígula, os pilotos dividiam-se em quatro facções representadas por cores

diferentes, os verdes, os azuis, os brancos e os vermelhos. CLXV Conforme afirma Winterling (2011: 103), essa paixão pelo próprio cavalo, e principalmente a intenção

de torná-lo cônsul, provavelmente foi uma maneira de criticar e humilhar a aristocracia, equiparando seus

membros a cavalos. CLXVI Nessa rubrica, Suetônio começa a tratar da morte de Calígula.

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quoque etsi falso in quadam coniuratione

quasi participes nominati, suspectos

tamen se et inuisos sentiebant. 3Nam et

statim seductis magnam fecit inuidiam

destricto gladio affirmans sponte se

periturum, si et illis morte dignus

uideretur, nec cessauit ex eo criminari

alterum alteri atque inter se omnis

committere. 4Cum placuisset Palatinis

ludis spectaculo egressum meridie

adgredi, primas sibi partes Cassius

Chaerea tribunus cohortis praetoriae

depoposcit, quem Gaius seniorem iam et

mollem et effeminatum denotare omni

probro consuerat et modo signum petenti

"Priapum" aut "Venerem" dare, modo ex

aliqua causa agenti gratias osculandam

manum offerre formatam commotamque

in obscaenum modum.

membros da guarda pretoriana, porque

eles próprios também quase foram

falsamente acusados de participar de uma

conspiração, e percebiam que Calígula

suspeitava deles e os odiava. 3Pois ele

criou imediatamente grande hostilidade

para alguns deles, a quem havia chamado

de lado e, puxando da espada, dito que ‘ele

mesmo se mataria, se a eles parecesse que

ele merecia a morte’, e não cessou de fazer

com que um acusasse o outro de desejar

matá-lo, nem de colocar todos contra

todos. 4Como tinham decidido atacá-lo ao

meio-dia quando ele voltaria dos

espetáculos nos jogos do Palatino, Cássio

Quérea, tribuno da coorte pretoriana,

exigiu ser o primeiro a atacar, pois Caio

costumava difamá-lo – ele que já era um

homem de idade – com todo tipo de

ultraje, como fraco e efeminado. Também

dava a ele como senha, quando ele pedia,

palavras como “PriapoCLXVII” e “Vênus”,

e quando por algum motivo precisava

agradecê-lo, Caio lhe oferecia a mão para

beijar, movendo-a e fazendo com ela

gestos obscenos.

LVII. 1Futurae caedis multa prodigia

exstiterunt. 2Olympiae simulacrum Iouis,

LVII. 1Houve muitos prodígios que

prediziam sua morteCLXVIII. 2A estátua de

CLXVII Priapus, divindade originalmente ligada à fertilidade, era um deus cuja característica mais notável

era ter um pênis de tamanho descomunal. CLXVIII Esses prodígios são reveladores dos crimes e do caráter de Calígula.

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quod dissolui transferrique Romam

placuerat, tantum cachinnum repente

edidit, ut machinis labefactis opifices

diffugerint; superuenitque ilico quidam

Cassius nomine, iussum se somnio

affirmans immolare taurum Ioui.

3Capitolium Capuae Id. Mart. de caelo

tactum est, item Romae cella Palatini

atriensis. 4Nec defuerunt qui coniectarent

altero ostento periculum a custodibus

domino portendi, altero caedem rursus

insignem, qualis eodem die facta quondam

fuisset. 5Consulenti quoque de genitura

sua Sulla mathematicus certissimam

necem appropinquare affirmauit.

6Monuerunt et Fortunae Antiatinae, ut a

Cassio caueret; qua causa ille Cassium

Longinum Asiae tum proconsulem

occidendum delegauerat, inmemor

Chaeream Cassium nominari. 7Pridie

quam periret, somniauit consistere se in

caelo iuxta solium Iouis impulsumque ab

eo dextri pedis pollice et in terras

praecipitatum. 8Prodigiorum loco habita

sunt etiam, quae forte illo ipso die paulo

prius acciderant. 9Sacrificans respersus est

phoenicopteri sanguine; et pantomimus

Júpiter em Olímpia, que ele havia

ordenado que se desmontasse e trouxesse

para Roma, de repente, começou a rir tanto

que os andaimes caíram e os operários se

puseram a fugirCLXIX; e então chegou lá

um homem chamado Cássio, afirmando

que recebera em sonho ordens para

sacrificar um touro em honra de

JúpiterCLXX. 3O Capitólio em Cápua tinha

sido atingido por um raio no quinze de

março, assim como o quarto do guarda do

átrio do palácio, em RomaCLXXI. 4E não

faltou quem concluísse por um desses

presságios que um perigo era anunciado

ao senhor através de seus guardas, e que o

outro se referia à morte de um outro

homem insigneCLXXII, que se dera certa

vez naquele mesmo dia. 5E também o

matemático Sula, com quem Calígula

consultou seu horóscopo, afirmou-lhe que

sua morte certíssima se aproximava. 6Os

oráculos de ÂncioCLXXIII também o

advertiram de que devia tomar cuidado

com um homem chamado Cássio, razão

pela qual ele mandou que matassem

Cássio Longino, então procônsul da Ásia,

esquecendo de que Quérea se chamava

CLXIX O primeiro prodígio se refere ao crime de húbris cometido por Calígula. Pode-se pensar aqui em

Júpiter se regozijando com sua vingança que estava prestes a se dar. CLXX Um homem que tinha o mesmo nome de Quérea. Calígula aparece como a vítima a ser sacrificada em

honra (e vingança) de Júpiter. CLXXI A simbologia é clara: o raio de Júpiter atinge lugares ligados à figura do imperador. CLXXII Trata-se de Júlio César, morto em quinze de março de 44 a.C. CLXXIII Região de importância, já que era o local de nascimento de Calígula.

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Mnester tragoediam saltauit, quam olim

Neoptolemus tragoedus ludis, quibus rex

Macedonum Philippus occisus est, egerat;

et cum in Laureolo mimo, in quo a[u]ctor

proripiens se ruina sanguinem uomit,

plures secundarum certatim

experimentum artis darent, cruore scaena

abundauit. 10Parabatur et in noctem

spectaculum, quo argumenta inferorum

per Aegyptios et Aethiopas explicarentur.

Cássio. 7No dia anterior à sua morte,

sonhou que estava no céu, junto ao trono

de Júpiter e que era lançado à terra pelo

dedão do pé direito do deus.CLXXIV

8Também foram tidas como prodígios

algumas coisas que aconteceram por acaso

um pouco mais cedo naquele mesmo dia.

9Enquanto sacrificava um flamingo, o

sangue lhe respingou; e o pantomimo

Mnester dançou uma tragédia que outrora

Neoptolemo havia encenado durante os

jogos teatrais nos quais Filipe, rei da

Macedônia, havia sido morto. Na farsa

chamada ‘Lauréolo’, na qual o ator, que se

precipitava para a própria ruína, vomitava

sangue, uma vez que muitos dos atores em

papéis secundários queriam dar

testemunho de sua arte, o palco se inundou

de sangue.CLXXV 10Também se encenou à

noite um espetáculo, cujo argumento

relacionado aos infernos seria apresentado

por egípcios e etíopes.

LVIII. 1VIIII. Kal. Febr. hora fere septima

cunctatus an ad prandium surgeret

marcente adhuc stomacho pridiani cibi

onere, tandem suadentibus amicis

egressus est. 2Cum in crypta, per quam

LVIII. 1Nove dias antes das calendas de

fevereiro, por volta da sétima horaCLXXVI,

ele hesitou entre levantar-se para ir ao

almoço, porque tinha o estômago ainda

pesado da refeição do dia anterior, mas,

CLXXIV O que confirma ainda mais a noção de que sua morte foi uma punição divina. CLXXV Esse sinal, bem como o fato de o sangue do flamingo ter respingado em Calígula, indicava uma morte

sangrenta iminente. CLXXVI Ou seja, no dia 24 de janeiro, por volta das 13h.

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transeundum erat, pueri nobiles ex Asia ad

edendas in scaena operas euocati

praepararentur, ut eos inspiceret

hortareturque restitit, ac nisi princeps

gregis algere se diceret, redire ac

repraesentare spectaculum uoluit. 3Duplex

dehinc fama est: alii tradunt adloquenti

pueros a tergo Chaeream ceruicem gladio

caesim grauiter percussisse praemissa

uoce: "hoc age!" Dehinc Cornelium

Sabinum, alterum e coniuratis, tribunum

ex aduerso traiecisse pectus; alii Sabinum

summota per conscios centuriones turba

signum more militiae petisse et Gaio

"Iouem" dante Chaeream exclamasse:

"accipe ratum!" Respicientique maxillam

ictu discidisse. 4Iacentem contractisque

membris clamitantem se uiuere ceteri

uulneribus triginta confecerunt; nam

signum erat omnium: "repete!" 5Quidam

etiam per obscaena ferrum adegerunt. 6Ad

primum tumultum lecticari cum asseribus

in auxilium accucurrerunt, mox Germani

corporis custodes, ac nonnullos ex

percussoribus, quosdam etiam senatores

innoxios interemerunt.

com o convencimento dos amigos, retirou-

se. 2Na passagem coberta, pela qual teria

de passar, meninos de nobre nascimento

chamados da Ásia eram preparados para

apresentar obras no palco. Ele parou para

inspecioná-los e animá-los, e pretendia

voltar para representar o espetáculo, se o

líder da tropa não tivesse dito que sentia

frio. 3A partir daqui há duas versões para

o que aconteceuCLXXVII: alguns dizem que

Quérea o atacou por trás enquanto ele

falava com os meninos, acertando-o na

parte de trás do pescoço com a espada, a

pesados golpes de talho, ao sinal de ‘Faz

isto!’, e daí Cornélio Sabino, outro dos

conjurados, que estava à sua frente,

perfurou-lhe o peito. Outros dizem que

Sabino, fazendo a turba se dispersar com

ajuda de centuriões que sabiam do plano,

pediu-lhe a senha, como fazem os

militares, e quando Caio disse ‘Júpiter’,

Quérea exclamou: ‘Aceita o que te é

devido!’ e partiu-lhe o maxilar com um

golpe quando ele se viravaCLXXVIII. 4Os

demais lhe atingiram trinta vezes enquanto

ele jazia ao solo, com os membros

contraídos, gritando ‘estou vivo’; pois a

senha de todos eles era ‘ataca outra vez’.

5Alguns até mesmo enterraram a espada

em suas partes íntimas. 6No início do

CLXXVII As duas versões, de acordo com Lindsay (2002: 169), seriam a de Sêneca e a de Flávio Josefo. CLXXVIII Essa versão coroa a vingança de Júpiter sobre Calígula.

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tumulto, os carregadores de liteira

correram ao seu auxílio com seus bastões,

e depois os seus guardas germanos, e eles

mataram muitos dos assassinos, e também

alguns senadores inofensivos.

LIX. 1Vixit annis uiginti nouem, imperauit

triennio et decem mensibus diebusque

octo. 2Cadauer eius clam in hortos

Lamianos asportatum et tumultuario rogo

semiambustum leui caespite obrutum est,

postea per sorores ab exilio reuersas

erutum et crematum sepultumque. 3Satis

constat, prius quam id fieret, hortorum

custodes umbris inquietatos; in ea quoque

domo, in qua occubuerit, nullam noctem

sine aliquo terrore transactam, donec ipsa

domus incendio consumpta sit. 4Perit una

et uxor Caesonia gladio a centurione

confossa et filia parieti inlisa.

LIX. 1Viveu vinte e nove anos, governou

por três anos, dez meses e oito dias. 2O

cadáver dele foi levado secretamente aos

jardins da família Lâmia, e depois de

parcialmente queimado numa fogueira

improvisada, foi enterrado num pedaço de

terra levemente coberto de relva. Depois

foi desenterrado, queimado e devidamente

sepultado pelas irmãs que retornaram do

exílio. 3Antes de elas terem feito isso,

consta que os guardas dos jardins eram

incomodados por assombraçõesCLXXIX; e

na mesma casa em que ele havia falecido,

não se passou uma noite sem que algo de

terrível acontecesse, até que a própria casa

foi consumida num incêndio. 4Pereceu ao

mesmo tempo sua esposa, Cesônia,

atravessada pela espada de um centurião e

sua filha, esmagada por uma paredeCLXXX.

CLXXIX Os costumes da Antiguidade em relação aos mortos ditavam que as almas dos mortos indevidamente

sepultados estavam condenadas a vagar como fantasmas. CLXXX O assassinato da linhagem de Calígula possivelmente teria motivações políticas (muito embora o

próprio relato de Suetônio apontasse para o fato de sua filha ter herdado seu caráter vicioso).

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LX. 1Condicionem temporum illorum

etiam per haec aestimare quiuis possit.

2Nam neque caede uulgata statim

creditum est, fuitque suspicio ab ipso Gaio

famam caedis simulatam et emissam, ut eo

pacto hominum erga se mentes

deprehenderet; neque coniurati cuiquam

imperium destinauerunt; et senatus in

asserenda libertate adeo consensit, ut

consules primo non in curiam, quia Iulia

uocabatur, sed in Capitolium conuocarent,

quidam uero sententiae loco abolendam

Caesarum memoriam ac diruenda templa

censuerint. 3Obseruatum autem

notatumque est in primis Caesares omnes,

quibus Gai praenomen fuerit, ferro

perisse, iam inde ab eo, qui Cinnanis

temporibus sit occisus.

LX. 1Alguém poderia ter uma ideia da

condição daqueles tempos através disto:

2pois nem quando a notícia do assassinato

se espalhou acreditou-se que havia

acontecido, e suspeitou-se que o próprio

Calígula havia forjado e espalhado o

boato, para com isso saber o que as

pessoas pensavam deleCLXXXI. Os

conjurados não tinham designado

ninguém para substituí-lo. E o senado

estava tão decidido a reclamar a liberdade,

que fez a primeira convocação dos

cônsules não na Cúria, porque tinha o

nome de Júlia, mas no Capitólio, e alguns

propunham, como parecer, que se abolisse

a memória dos Césares e se destruíssem os

seus templos. 3Também se observou e

notou que todos os primeiros Césares cujo

primeiro nome era Caio haviam morrido

pela espada, desde aquele que tinha sido

morto nos tempos de CinaCLXXXII.

CLXXXI Cf. nota VII CLXXXII Caio Júlio César Estrabão, morto durante as guerras civis em 87 a.C.

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5 Conclusão

O trabalho apresentado foi uma proposta de tradução da biografia de Calígula,

extraída do De Vita Caesarum, de Suetônio. Sua principal motivação foi a de empreender

um trabalho de tradução e comentários, que juntos forneceriam ao leitor a capacidade de

ler a vida de Calígula do ponto de vista aproximado de um leitor da época de Suetônio –

conhecendo os detalhes que o autor havia deixado de lado por serem lugares-comuns em

seu tempo, ou simplesmente porque já os havia mencionado em outras de suas biografias.

No entanto, essa proposta acabou por se transformar em algo mais complexo. Ao finalizar

a tradução, surgiu uma série de questionamentos que não poderiam ser ignorados e que

exigiam uma pesquisa mais minuciosa a respeito de aspectos ligados ao contexto de

produção da biografia de Suetônio, tanto do ponto de vista histórico como do ponto de

vista literário, bem como do gênero biográfico como um todo.

Devido a esses questionamentos, procurou-se investigar em primeiro lugar a

maneira como o contexto histórico afetou a obra de Suetônio. Viu-se que isso se deu de

duas maneiras: primeiramente, no nível da obra em si, as biografias oferecem um relato

do período histórico vivido pelos biografados. Muito embora Suetônio não seja um

historiógrafo, suas atitudes enquanto autor de biografias o colocam, ironicamente, mais

próximo daquilo que se esperaria de um historiador moderno do que estariam autores

como Tácito ou Tito Lívio. Diferentemente do que fazem os historiógrafos da

Antiguidade, Suetônio procura reproduzir os fatos sem adorná-los, faz uso de

documentação histórica relevante (como documentos escritos de próprio punho pelos

imperadores que biografou), contesta os relatos de outros colegas eruditos, etc. Um bom

exemplo disso, que se pode ver na biografia de Calígula, é como Suetônio chega à

conclusão do local de nascimento do imperador (Cal VIII). Ele começa por reconhecer

que existe um desacordo entre os autores sobre onde exatamente ele teria nascido: Cneu

Lêntulo Getúlico diz que ele nasceu em Tibur, enquanto Plínio afirma que ele teria

nascido em Tréveris. Estabelecidas as duas versões, ele entra em detalhes sobre a

documentação apresentada por Plínio para sustentar seu argumento. Depois, uma terceira

versão, do próprio Suetônio, é apresentada: os Atos oficiais diriam que ele nasceu em

Âncio. A partir daí ele pesa as diferentes versões e aquilo que as sustenta, atestando que

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Plínio já havia descartado a hipótese de Getúlico, considerando-a uma tentativa de bajular

o imperador ao sugerir que ele havia nascido numa cidade consagrada a Hércules. Mas o

argumento de Plínio também não se sustenta, já que a inscrição citada por ele não contém

o nome de Calígula, e poderia se referir tanto a um menino quanto a uma menina.

Finalmente, Suetônio defende sua própria posição, citando não só os documentos oficiais,

mas também uma carta de Augusto que corrobora a hipótese do nascimento em Âncio.

Além disso, outras passagens de caráter histórico relevante são perdidas pela falta

de detalhamento típica de Suetônio. Por exemplo, embora a biografia de Calígula

mencione o guarda pretoriano Sejano (20 a.C. – 31 d.C.) em mais de uma ocasião, não se

fala da relevância que essa figura teve durante o governo de Tibério, enquanto o

imperador se submeteu a uma espécie de exílio na ilha de Capri. Assim, para compreender

melhor todas as referências trazidas pelo texto, é necessário entender o funcionamento do

governo romano durante a época do Principado, sobretudo, mas não exclusivamente, o de

Calígula.

A segunda maneira pela qual o contexto histórico afeta a obra de Suetônio é aquela

comum a todos os autores de qualquer período: todo texto é um produto de seu tempo. E

o tempo em que Suetônio viveu e compôs o De Vita Caesarum afeta sensivelmente o

resultado final do seu processo de composição. Assim, ao observar a relevância que o

círculo literário de Plínio, o Jovem (o mesmo cujas observações sobre o nascimento de

Calígula foram contestadas por Suetônio) teve para a vida pessoal do autor, somos

levados a concluir que muito daquilo que se apresenta sobre os imperadores biografados

deveria estar de acordo com as ideias gerais partilhadas por figuras como Plínio e Tácito

a respeito do que faz um imperador ser um bom ou mau governante. Não admira, portanto,

que a sua biografia de Calígula acabe fazendo parte do conjunto de textos que constituem

uma tradição bastante hostil ao período de seu governo, postura motivada pelos

constantes conflitos em que Calígula se envolveu com a própria aristocracia. Sendo

Suetônio um cavaleiro, um seguidor de Plínio e um amigo de Tácito, seu ponto de vista é

fortemente influenciado pela opinião da ordem senatorial. E é assim que relatos que antes

poderiam ser vistos como provocações à aristocracia (como o favoritismo que Calígula

demonstrava por seu cavalo, Incitato) são encarados ao pé da letra, e usados como base

para a construção da ideia de que Calígula fora um homem louco.

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Ainda pensando no contexto de produção da obra, viu-se a necessidade de

entender melhor o contexto literário em que as biografias de Suetônio se inseriam. Sua

produção literária é um dos grandes momentos da biografia na Antiguidade, e para melhor

compreender as estruturas de suas biografias, é preciso colocá-las em contraste com

outras obras. Foi observando o contraste entre as biografias de Suetônio e as obras

historiográficas de Tácito que pudemos perceber a influência que esse autor teve sobre o

resultado final do texto de Suetônio, posto que Suetônio procurou de diversas maneiras

se distanciar daquilo que Tácito tinha a dizer sobre os mesmos assuntos. Assim, vimos

que Suetônio procurou começar sua obra com a biografia de dois líderes que não foram

abordados por Tácito: Júlio César e Augusto. Essa escolha já lhe garantia alguma

originalidade em relação à Tácito. Mas, mesmo na biografia dos imperadores de que

Tácito falou em suas obras, Suetônio se mostrou diferente. Seu estilo de escrita erudito e

simples se distancia muito da prosa rebuscada de Tácito. A ênfase que Tácito deu aos

assuntos típicos da historiografia clássica, como as grandes batalhas, foi evitada por

Suetônio, que se limita apenas a utilizar as batalhas relevantes dos imperadores para traçar

sua personalidade enquanto líderes militares e chegar a uma conclusão sobre seu caráter

através de suas escolhas e seu comportamento no campo de batalha.

Mas o distanciamento maior entre as duas obras se fez na escolha do gênero

literário dos textos de Suetônio. Ele escreveu uitae, e não historia. O que levou nossa

investigação a se questionar sobre a existência da biografia enquanto gênero literário.

Investigação que demonstrou que os principais “teóricos da literatura” da Antiguidade,

como Platão, Aristóteles, Horácio e Quintiliano não reconheciam a biografia como um

gênero literário à parte. Mas a mesma investigação também concluiu que os textos desses

teóricos raramente tratavam dos gêneros literários de maneira exaustiva: geralmente suas

classificações tinham um caráter mais restritivo, e eram feitas ad hoc. Além disso,

também concluiu que os textos biográficos da Antiguidade muitas vezes apresentavam

reflexões que deixavam clara a intenção de escrever algo que não era história, mas sim

biografia, e que, portanto, apesar de não haver textos teóricos da Antiguidade que

corroborem esse posicionamento, a afirmação de que a biografia foi considerada um

gênero literário pelos autores da época de Suetônio, incluindo o próprio, não é uma

afirmação leviana.

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Dessa forma, esperamos que o trabalho tenha conseguido, através das

investigações teóricas, da tradução e dos comentários, apresentar satisfatoriamente o

contexto histórico da época retratada por Suetônio na biografia de Calígula; o contexto

histórico em que o próprio autor viveu e escreveu; o contexto literário em que a obra de

Suetônio se situa, influenciada pelos autores de seu tempo; e a possibilidade de encarar

os textos de caráter biográfico produzidos na Roma Antiga como pertencentes a um

gênero literário próprio, separados daqueles textos que são agrupados sob a rubrica da

historiografia.

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