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Universidade Federal do Rio de Janeiro POÉTICA DO CORPO NA POESIA DE FERREIRA GULLAR Priscila Nogueira Branco Rio de Janeiro 2019

Universidade Federal do Rio de Janeiro POÉTICA DO CORPO NA ... · Irene me presenteou quando eu ainda era um pequeno ser humano descobrindo a vida. A memória me faz chorar, chorar

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

POÉTICA DO CORPO NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

Priscila Nogueira Branco

Rio de Janeiro

2019

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POÉTICA DO CORPO NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

Priscila Nogueira Branco

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-graduação em Letras

Vernáculas da Universidade Federal do Rio

de Janeiro (UFRJ), como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título

de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura

Brasileira).

Orientador: Prof.ª Drª. Anélia Montechiari

Pietrani

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2019

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POÉTICA DO CORPO NA POESIA DE FERREIRA GULLAR

Priscila Nogueira Branco

Orientador: Anélia Montechiari Pietrani

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em

Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras

Vernáculas (Literatura Brasileira).

Examinada por:

________________________________________________

Presidente, Profª. Doutora Maria Lúcia Guimarães de Faria

________________________________________________

Prof. Doutor Gilberto Araújo de Vasconcelos Júnior – UFRJ

________________________________________________

Profª. Doutora Eleonora Ziller Camenietzki – UFRJ

________________________________________________

Prof. Doutor Adauri Silva Bastos – UFRJ, Suplente

________________________________________________

Profª. Doutora Stefania Rota Chiarelli – UFF, Suplente

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2019

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RESUMO

Ferreira Gullar foi um poeta de muitos corpos. Começou sua estrada poética

seguindo a forma clássica da poesia, pois não havia outro referencial de escrita

ao seu alcance. Ao entrar em contato com os modernistas, descobre que é

possível um outro modo de escrever. Poeta do espanto que era, na década de

50 entra em choque com a própria linguagem, e a partir desse processo nasce

seu primeiro corpo: uma mutação, em Crime na flora, em que o poema-corpo é

deformado, inquieto, assassinado, trocado de gênero, experimentação pura. Nas

décadas de 60 e 70, envolvido profundamente com questões de cunho social,

sua poesia se transforma em um corpo político, através de Dentro da noite veloz

e Poema sujo. No fim de sua vida, voltado para questionamentos internos, o

corpo de sua poesia se torna quase filosófico, questionador, mais uma vez

guiado pelo espanto, e é quando nasce Em alguma parte alguma. Nesses três

momentos distintos, o fazer poético gira em torno do corpóreo: primeiro, quando

à luz dos questionamentos sobre a linguagem pura, um corpo se torce e se

transforma; segundo, quando uma poesia política, um corpo coletivo se forma,

inseparável do ser humano e necessário à compreensão da realidade; por último,

um corpo voltado para dentro, gerando um estranhamento e separação entre

ontologia e estado físico no mundo. É a partir dessas três leituras que buscamos

apresentar a poética do corpo na poesia de Ferreira Gullar.

Palavras-Chave: Ferreira Gullar; Corpo; Poesia; Política; Estranhamento.

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ABSTRACT

Ferreira Gullar was a poet of many bodies. He has started his poetic road

following the classic form of poetry, because there was no other writing reference

at his fingertips. By getting in touch with the modernists, he realizes that another

way of writing is possible. As he was a poet of astonishment, in the 50’s he

conflitcs with the language itself, and from this process his first body is born: a

mutation, in Crime na flora, where the body-poem is deformed, restless,

murdered, gender-fluid, pure experimentation. In the 60’s and 70’s, deeply

involved with social matters, his poetry becomes a political body, through Dentro

da noite veloz and Poema sujo. At the end of his life, focusing on internal

questions, the body of his poetry gets almost philosophical, once more guided by

astonishment, and that is when Em alguma parte alguma is born. During these

three different moments, the poetry is about the corporeal: first, when questioning

about pure language, a body bends and transforms itself; second, when a political

poetry, a collective body appears, inseparable from the human being and

necessary to comprehension of reality; at last, a body aiming the inside, making

a strangeness and division between ontology and physical state in the world. It is

through these three ways of reading that we hope to present the corporeal poetry

of Ferreira Gullar.

Keywords: Ferreira Gullar; Body; Poetry; Politics; Strangeness.

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Para minhas avós Irene e Umbelina e para meu avô Alfredo.

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AGRADECIMENTOS

Se há uma coisa que tenho a fazer neste momento, essa coisa é agradecer.

Recuo alguns bons passos na memória para relembrar do livro que minha avó

Irene me presenteou quando eu ainda era um pequeno ser humano descobrindo

a vida. A memória me faz chorar, chorar muito enquanto escrevo. Quantas vezes

não li e reli aquele livro do Ziraldo que tanto me levava pra outro mundo. Foi ali

que a paixão pela literatura começou. Vó, eu não estaria aqui se não fosse por

você. Como eu gostaria que você pudesse ter visto sua neta se formar na

faculdade e fazer mestrado. Muito obrigada por tudo.

Mãe, obrigada por ter me ensinado a ler tão cedo. Eu lembro até hoje com muita

clareza, quando eu tinha por volta de quatro anos de idade, você me dizendo:

“agora é sua vez de ler pra mim!”. Aquilo me assustou e me encantou de uma

forma que você nem imagina. Mãe: eu acho essa palavra tão bonita. E é bonita

porque sei que tudo que sou é graças a você. Não tenho nem palavras pra

agradecer todo amor, confiança e força nas horas em que mais precisei. Pai,

muito obrigada também por torcer pela minha felicidade e estar sempre do meu

lado.

Rogério, você é a outra base de formação da minha vida, do meu caráter e, com

certeza, da minha paixão por literatura. Obrigada por ser meu irmão e um dos

melhores amigos que a vida poderia ter me dado. Todo apoio, presença,

conversas foram fundamentais e me ajudaram a chegar até aqui.

Ao meu irmão Robson, pelo carinho e cuidado em pensar na minha educação e

no meu futuro, contribuindo para minha formação escolar e enquanto ser

humano.

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À Anélia, a melhor orientadora do mundo, preciso agradecer um milhão de vezes.

Foram muitas conversas até no meio da madrugada. Aprendi em dois anos com

você coisas que poderia ter aprendido numa vida inteira. Obrigada por todo

incentivo, empurrões, conhecimento e atenção.

Paula, nem preciso dizer aqui porque você com certeza sabe o quão importante

foi sua presença na minha vida nessa trilha que decidimos seguir juntas. Eu

chorei tanto com você, perturbei por mensagens, tomamos porres, e aqui

estamos. Obrigada demais! Eu não sei onde eu estaria agora se você não tivesse

tomado o caminho junto comigo.

Raom, meu amor, companheiro e amigo, muito obrigada pela paciência e por

aguentar minhas loucuras interpretativas.

Preciso agradecer imensamente aos meus amigos queridos que foram me

assistir falando de literatura, me escutaram sobre minha pesquisa ou

simplesmente só me deram um abraço apertado de carinho: Lygia, Dandara,

Augusto, Thiago Tempo. Eu certamente teria surtado sem o apoio de vocês.

Agradecimento especial ao meus amigos poetas e loucos, que foram

fundamentais para meu processo criativo e me deram suporte emocional e

alcoólico ao longo do mestrado: Felipe, Fernando, Higor e Paula.

João Guilherme, obrigada pelos conselhos, ajuda e apoio antes de eu realizar a

prova para ingressar nessa caminhada. Prometo que devolvo seu livro, que já

está comigo há dois anos!

Obrigada aos professores Gilberto, Flávia, Eucanaã, Sérgio e Vera pelas aulas

incríveis em 2017. Aprendi muito e certamente minha pesquisa está repleta das

aulas que tive com vocês.

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E como não poderia deixar de agradecer jamais: ao Ferreira Gullar, poeta cuja

escrita será certamente lembrada por séculos, quiçá para sempre enquanto o

ser humano existir neste mundo. Escrever sobre sua poesia foi algo que partiu

de um espanto, com certeza.

Muito obrigada. Esta pesquisa foi concluída através do carinho e apoio que pude

contar de muitas pessoas queridas e maravilhosas na minha vida. Estou sentindo

uma plenitude esquisita ao terminar esta dissertação. Sigamos! Amo todos

vocês! Obrigada, obrigada, obrigada!

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Escrever o corpo.

Nem a pele, nem os músculos, nem

os ossos, nem os nervos, mas sim o

resto: um «isso» grosseiro, fibroso,

desfiado, separado, o casacão de um

palhaço.

(Roland Barthes)

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SUMÁRIO

1. Introdução .............................................................................................12

2. Crime na flora: um corpo em mutação ..............................................16

2.1. Crise poética de Gullar e (in)definição do poema em prosa........16

2.2. A metamorfose do corpo-escrita................................................. 23

3. O corpo social e coletivo: um grito da poesia ................................. 43

3.1 – Dentro da noite veloz: sujeira, resistência e agora ...................... 47

3.2 – Poema sujo: memória corporal ..................................................... 61

4. Corpo despróprio e intruso ............................................................... 72

4.1 – Em alguma parte alguma: corpo próprio corpo ........................... 77

5. Conclusão ............................................................................................ 98

6. Referências Bibliográficas ............................................................... 103

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1. Introdução

O que significa uma “poética do corpo”? Esse título foi escolhido pela

quantidade gigantesca de indícios do corpo na vasta obra de Ferreira Gullar e

também pelo fato de o próprio poeta afirmar que a escrita e sua técnica são uma

sabedoria corporal (2015, p. 30). Ou seja, não há apenas muitos elementos,

referências ao corpo em seus poemas, mas o próprio ato de fazer um poema já

parte da carne, da pele, do toque.

Compreende-se, então, a escolha desse título tanto como um estudo das

imagens poéticas corporais quanto também como um amplo esforço para

encontrar o que há de corpo na forma, nos temas, na estética, que é algo dentro

de uma plausível interpretação, ainda que mais sutil. Pensar o corpo e a poesia

será sempre uma forma de abrir portas para múltiplas possibilidades. Os dois

juntos trazem uma força motriz que conecta, ao mesmo tempo que diferencia, a

escrita do mundo, das coisas palpáveis.

Gullar foi um poeta do agora. O tempo aqui apresentado está diretamente

ligado às coisas materiais, ao que experienciamos diretamente do real, e isso só

é possível de ser feito em uma relação viva e direta com o corpo. Foi um escritor

engajado tanto com a vida literária quanto com a política, e esse engajamento

também se reflete na escrita de seus poemas. É difícil sintetizar, devido à grande

variedade de obras e de sua sempre tentativa de experimentação e superação

em face à escrita, sua poética com uma estética que se mantenha sempre

constante.

Começou sua vida de poeta seguindo a tradição clássica da lírica,

subverteu e questionou a métrica e a linguagem, seguiu por caminhos tortuosos

de criações inovadoras, envolveu-se na vida política, trazendo isso para dentro

de sua poética, e terminou a vida com poemas filosóficos e reflexivos. Sem

contar seu envolvimento com as artes plásticas, crítica literária e produção de

crônicas. Uma metamorfose. Dentro dessas constantes mudanças, busca-se

observar em algumas de suas obras o que há de corporal e como se dão as

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diferentes formas de enxergar e abordar o corpo a partir do momento de escrita

do poeta em que estão inseridas essas obras e poemas escolhidos.

Esta dissertação não tem como objetivo fazer uma leitura temporal da

poética de Ferreira Gullar. Apesar disso, foi possível traçar comparativos de

mudanças na forma de enxergar o corpo nas quatro obras escolhidas para

análise: Crime na flora, Dentro da noite veloz, Poema sujo e Em alguma parte

alguma. Essas mudanças, que se refletiram na temática corporal e na estética,

têm relação com o momento biográfico que o poeta estava vivenciando, assim

como seus respectivos engajamentos e modos de compreender o mundo à sua

volta.

Os capítulos de análise serão divididos em três, contendo em cada um

uma interpretação de diferente abordagem acerca da poética do corpo. O título

desta dissertação encontra-se no singular, pois, apesar das mudanças em sua

compreensão corporal em cada obra, o corpo permeia sua escrita e está sempre

presente, não gerando “poéticas” distintas, mas uma convergência corporal que

está sempre se ressignificando.

Existe uma teia de conexão entre os livros escolhidos: as múltiplas formas

de se escrever o corpo. O próprio texto, corporificação que é, se altera como um

organismo em movimento. Os elementos corporais apresentam-se vivos e

presentes também nos seus livros que não foram objetos de estudo desta

dissertação, estando em aberto o aprofundamento da análise de uma poética

corporal que permeie o conjunto de toda sua produção escrita de poesia. Não foi

o objetivo deste trabalho apresentar um estudo de toda a antologia do poeta,

mas recolher os elementos do corpo nos livros escolhidos, relacionando-os e

diferenciando-os.

O primeiro capítulo, intitulado “Crime na flora: um corpo em mutação”, gira

em torno de Crime na flora. Antes de entrar na análise do livro, será necessário

abrir uma discussão sobre sua forma. Sendo uma obra extremamente

experimental, são feitos apontamentos teóricos acerca do poema em prosa,

gênero bastante polêmico e de difícil definição. A bibliografia teórica levantada

no início desse capítulo deriva de críticos como Paul Valéry, Suzanne Bernard e

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Fernando Paixão, que pensaram a relação entre poema e prosa e teorizaram

acerca de uma possível localização desse gênero literário.

É importante refletir que nesse primeiro momento, Ferreira Gullar

encontrava-se em profundo questionamento sobre a linguagem e sobre o

significado de fazer poesia. O corpo, neste capítulo, adquire uma forma de

mutação e transformação, tanto em relação ao tema (o corpo presente no livro é

metamorfoseado de diversas formas) quanto à estética, que traz consigo toda a

confusão fragmentária e difusa do poema em prosa.

Como a bibliografia crítica anterior de análise desse livro é escassa,

busca-se trazer o pensamento de Michael Hamburguer e Octavio Paz no que

concerne à compreensão da linguagem e do fazer poético, uma vez que Gullar

se questiona o tempo inteiro sobre a possibilidade de uma escrita que seja neutra

em relação ao real, que seja ela mesma, sem nenhum tipo de infecção externa,

sua própria feitora.

O segundo capítulo, intitulado “O corpo social e coletivo: um grito da

poesia”, analisa dois livros: Dentro da noite veloz e Poema sujo. Já dentro da

fase de envolvimento político do poeta, apresenta-se, diferente do capítulo

anterior, o corpo se colocando como um ser conectado aos outros, revelando um

caráter de resistência e de coletividade. Ferreira Gullar estava envolvido, no

momento de escrita desses livros, com a luta de viés comunista e no exílio de

uma ditadura militar no Brasil.

Pensamentos de teóricos do campo da sociologia e da filosofia são

apresentados para ajudar a compreender os aspectos do corpo levantados

nesse capítulo, como David Le Breton, Marx, Engels e Trotsky. Além disso, usa-

se do estudo realizado pela pesquisadora Eleonora Ziller Camenietzki sobre a

trajetória política de Ferreira Gullar e a possível comparação entre poesia e

política para aprofundar a forma de ver o corpo relacionado à luta social no Brasil

travada pelo poeta.

No terceiro capítulo, intitulado “Corpo despróprio e intruso”, o livro

estudado é sua última obra enquanto vivo: Em alguma parte alguma. O corpo,

nesse livro, é visto como um outro em relação ao poeta. Apresenta-se como um

estrangeiro, separado de sua consciência. Além do estranhamento, estuda-se a

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formação de duplos do poeta a partir do processo de separação entre sujeito e

corpo.

Já afastado da vida política, o poeta volta-se para questionamentos

internos e filosóficos, o que mais uma vez transforma sua relação de ver e

escrever o corpo. Também já idoso, sua forma de estar no mundo se aproxima

da morte, fazendo com que o corpo, a pele e os ossos sejam sempre motivos de

espanto e de profundas perguntas e desdobramentos.

Para aprofundar a discussão do estranhamento do corpo, traz-se o estudo

de Freud acerca dessa questão, apresentando um apanhado psicológico sobre

o ato de estranhar-se com algo que antes era familiar e natural: um estado de

espanto e perplexidade. O filósofo e crítico Jean-Luc Nancy, estudioso da

questão do corpo, é fundamental para compreender o corpo como exteriorização

e alteridade em relação à consciência, e principalmente como uma forma de

escrita. Também são explorados alguns aspectos relacionados ao corpo e à

paisagem, recorrendo ao crítico Michel Collot, quando pensamos o ambiente que

envolve o corpóreo e sua possibilidade de expansão: uma conexão com o mundo

à sua volta.

O significado do corpo na poesia de Gullar se altera de acordo com as

situações de vida, seu pensamento em relação ao fazer poético e suas

experiências pessoais. Este não é um trabalho de cunho biográfico, o foco é

principalmente na interpretação dos poemas e no recolhimento dos elementos

corporais. Mas é fundamental compreender a História e os tempos em que

estamos inseridos para analisar qualquer obra poética.

Por fim, este trabalho tem como intuito apresentar uma leitura que

perpassa quatro livros de Ferreira Gullar, com o propósito de mostrar que os

elementos relacionados ao corpo são cruciais na compreensão de sua escrita,

de sua forma de pensar a poesia. Não aparecem de forma esparsa, como se

observará na interpretação dos poemas levantados, mas são parte intrínseca de

sua poética.

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2. Crime na flora: um corpo em mutação

2.1. Crise poética de Gullar e (in)definição do poema em prosa

Ferreira Gullar começou a escrever muito novo. Com apenas 19 anos,

publica seu primeiro livro de poemas, Um pouco acima do chão, em 1949.

Extremamente influenciado pelo Parnasianismo, escrevia, nessa idade, poemas

metrificados, ao ponto de até mesmo falar em versos decassílabos. Para ele,

distante do centro de produção poética modernista no Brasil, era isso e somente

isso que poderia ser a poesia.1

Um dia, depara-se com as poéticas de Carlos Drummond de Andrade,

Manuel Bandeira e Murilo Mendes e leva um susto, pois descobre que um poema

pode ser outra coisa para além dos versos metrificados e sublimes que conhecia

até então. Isso gera no jovem poeta Gullar um forte questionamento, e ele cria

quase que uma obsessão com escrever uma poesia completamente nova, livre

das âncoras do passado e que representasse a linguagem na sua forma mais

pura:

Não queria nada do passado, nada pré-estabelecido e queria que a própria linguagem nascesse com cada poema, o que é absolutamente impossível, mas me propus a isso. A Luta Corporal foi uma tentativa progressiva de realizar isso, até que, chegando a um determinado momento, percebi que não tinha caminhado um passo na direção de realizar esse ideal. Decidi que somente escreveria o poema que representasse um passo adiante no sentido de realizar o ideal da linguagem nascer junto com ele. E depois disso, praticamente, não consegui escrever mais. (GULLAR, 2006, p. 19-20)

É verdade que quase não conseguiu escrever mais por um longo período

após esse choque filosófico com a escrita. Mas é justamente nesse momento de

1 Informação retirada da entrevista direcionada a Ferreira Gullar, na Aula Magna ocorrida na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2006. O livro com a Aula Magna e a entrevista foi produzido pela Divisão de Mídias Impressas/Serviço de Publicações Institucionais da Coordenadoria de Comunicação da UFRJ, em setembro de 2006.

17

crise que nasceu seu livro Crime na flora, extremamente experimental e

seguindo os passos de Luta corporal. Esses dois livros foram tentativas

conscientes do autor de romper com o passado que o perseguiu, repleto da

poesia clássica.

Devido ao seu grau intenso de experimentalismo, nem o próprio Gullar

conseguiu definir que tipo de texto é esse que escreveu: “Não era um poema,

era outra coisa. Seria um conto, uma novela? Não me fiz essas perguntas: era

um texto de desenvolvimento imprevisível, que permitia explorar uma dimensão

fascinante da linguagem” (GULLAR, 1986, p. VII)2. Justamente sua dificuldade

de definição de seu texto é também a problemática que temos na discussão

sobre o poema em prosa. Encontramos, nesse livro, além do poema em prosa,

poemas em verso, poemas concretos, diálogos e também alguma narratividade,

dependendo da parte que observamos. A leitura de Crime na flora será feita

neste capítulo, portanto, trazendo à tona o que está ali presente de poema em

prosa. Antes de partirmos para a leitura minuciosa de seu texto, faz-se

necessário tecer algumas considerações teóricas sobre este gênero tão

ambíguo.

O que é um poema em prosa? É uma típica pergunta, como muitas outras

na vida, do ser inerente às coisas, e que fazemos quando nos deparamos com

algo desconhecido ou estranho. Muitas vezes, não obtemos a resposta

necessária para uma pergunta desse tipo, ou acabamos gerando outras

perguntas através dela. Definir o poema em prosa é uma tarefa que talvez beire

o impossível e com certeza absoluta nos gera mais questionamentos em vez de

soluções. Isso está longe de ser um problema, pelo contrário, abre-nos, como

críticos de literatura, muitas possibilidades de caminhos e interpretações. E, é

claro, de novas descobertas.

Primeiramente, peguemos o caminho da discussão da forma. Um poema

em versos se distingue de um texto em prosa justamente por um conter versos

e o outro não, os dois gêneros com a produção estética compreendida em suas

formas diferentes de escrita. Paul Valéry, em seu ensaio “Poesia e Pensamento

Abstrato”, diferencia o poema e a prosa do seguinte modo: a poesia é comparada

2 A paginação nessa parte do livro Crime na flora está em algarismos romanos.

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à dança, uma vez que seus movimentos se dão apenas neles mesmos, não

buscando alcançar um fim; a prosa, por outro lado, é comparada ao caminhar,

pois tem um propósito de chegada. A poesia, então, é o apreciar do próprio

movimento, sua construção de imagens que se apoiam em outras imagens,

enquanto a prosa usa das pernas para ir a algum lugar.

Caminhando ou dançando, é o mesmo corpo que faz esses movimentos

e os controla, mas com relações completamente distintas. O poema em prosa

está na tensão entre caminho e dança, pois é um corpo que levanta uma perna

para caminhar, porém a dança o toma de forma incontrolável. A visão desse

corpo, portanto, é a de uma contorção, um dançar que não é completamente só

isso, pois o movimento do caminho também está presente.

E a prosa poética? Este outro gênero, se ainda nos detivermos na

metáfora de Valéry, é um ser que caminha, com a música da dança ao fundo. O

corpo deste gênero permanece andando, como uma prosa não poética, mas a

música que gera a dança da poesia está tocando e sendo escutada. A música

tateia a prosa poética, mas não a movimenta, é como um gesto de presença em

sua escrita. O poema em prosa, por outro lado, é tomado pela música e dança

como o poema em versos, só que o gesto de caminhar não apenas o toca, como

tensiona seu próprio corpo, sua forma, nessa caminhada-dança.

O poema em prosa é, portanto, um gênero em tensão. É e não é poesia,

é e não é prosa: ele está no intervalo dessa compreensão dialética do que é e

também do que não é. Além disso, cada poema em prosa é muito distinto um do

outro: há os que são mais breves, há os que possuem muitas páginas, há os que

são mais filosóficos e próximos do ensaio, há os que se aproximam de cartas ou

diário. Além de um gênero em tensão entre poesia e prosa, é um gênero em

mutação na sua relação consigo mesmo.

Mas por que criar, em frases, imagens poéticas que poderiam se encaixar

perfeitamente na estética de um poema em versos? Essa é, talvez, uma

pergunta sem sentido, pois poderíamos nos perguntar também para que fazer

arte ou literatura, uma vez que não têm função óbvia ou prática. Porém, essa

pergunta só pode ser feita dentro do contexto da modernidade em que estamos

inseridos. É com o questionamento da necessidade da métrica como verdade

19

universal para se escrever um poema que surge tanto o verso livre quanto o

poema em prosa:

A gênese do poema em prosa na França – à qual ficaremos restritos na apresentação deste livro – remonta ao início do século XVIII, quando começou o questionamento do modelo clássico de composição poética. Àquele momento, a poesia ainda se encontrava subordinada a regras determinantes da harmonia métrica, mas o modelo começava a ser contestado por alguns autores, deflagradores de um movimento de crise do verso, insatisfeitos com o automatismo da rima e outras obrigações formais. (PAIXÃO, 2004, p. 39)

Mallarmé, em seu texto3 Crise de verso, diz que o verso é a própria

literatura. Podemos comparar a essa afirmação a noção linguística de sistema e

possibilidades. Dentro de uma língua, possuímos muitas formas de comunicação

presentes e previstas pelo sistema. A literatura é como se fosse um sistema que

englobasse todas as possibilidades: verso livre, verso metrificado, poema em

prosa, prosa poética, prosa, romance etc. Escrever de uma forma ou outra é

fazer literatura, dentro de suas múltiplas formas. A crise que ocorre, então, é

dentro do texto, da literatura mesmo, não apenas do verso metrificado.

A crise instaurada é em relação a se compreender apenas como poesia o

que estivesse dentro de um padrão de métrica e rimas. Para Mallarmé, o verso

(como literatura) existe se houver dicção, ritmo e estilo. Logo, a poesia pode se

distender em várias formas distintas, que continuará sendo poesia. Não à toa, o

poema em prosa não surge como um desdobramento do verso livre, mas ao

mesmo tempo em que ele. É uma forma de expansão das possibilidades.

Voltemos à pergunta feita alguns parágrafos acima: Mas por que criar em frases

imagens poéticas que poderiam se encaixar perfeitamente na estética de um

poema em versos? Não há resposta para essa pergunta, talvez só a noção de

que é possível criar ou expressar-se de outra forma seja razão suficiente para

experimentar o novo. Como disse Fernando Paixão no fim de seu ensaio sobre

o poema em prosa, “Muitas vezes nem ao próprio escritor é dado saber por que

(e como) os poemas nascem em corpo de prosa” (PAIXÃO, 2013, p. 150).

3 Usa-se a palavra texto pois é difícil classificar esse escrito de Mallarmé. Poderia ser um poema em prosa, um ensaio, fragmentos filosóficos. São muitas as possibilidades de interpretação quanto ao gênero.

20

Novamente, tentar definir o poema em prosa pode beirar o impossível. É,

de fato, um gênero que se define por sua indefinição. Porém, alguns críticos,

principalmente os pioneiros, fizeram florescer o terreno vazio e baldio em que se

encontrava esse gênero perante os estudos literários, tentando dar algum tipo

de definição a ele. A crítica Suzanne Bernard, uma das mais relevantes autoras

que escreveu sobre o poema em prosa, tenta apresentar um tripé de definição

desse gênero, em seu livro Le poème en prose de Baudelaire jusqu'à nos jours:

unidade orgânica, gratuidade e brevidade.

A unidade orgânica seria essa relação de, mesmo curto e fragmentário,

cada poema em prosa representar um corpo inteiro. Se pegarmos um livro de

poemas em prosa, por exemplo, conseguiremos entender um dizer completo em

cada um deles que convergirá para um significado conectado entre eles. Além

disso, possui ritmo e imagens poéticas que dariam forma a essa unidade. O

problema é que podemos observar que cada poema em prosa se diferencia

muito um do outro, mesmo se estivermos falando de um mesmo autor. É um

gênero extremamente experimental, então cada poema vai se moldando de

forma muito distinta, e não há essa unidade orgânica se fizermos um estudo

comparativo.

Por outro lado, o poema em prosa se conecta, sim, com a ideia de

fragmento. Mesmo quando longos, como em Crime na flora, não há uma

narrativa concreta, portanto as imagens que lemos parecem estar flutuando no

tempo, e sequer somos avisados de que o poema chegou ao fim. O livro

Canções sem metro, de Raul Pompeia, por exemplo, conecta cada poema com

outro poema, e o livro é uma espécie de conjunto de fragmentos que, lidos

sequencialmente, apresentam mesmos gestos de significação. Então, talvez a

unidade orgânica que podemos encontrar no poema em prosa seja a de estar

sempre fragmentado.

A gratuidade do poema em prosa é uma das mais importantes e

significativas descobertas sobre o estudo desse gênero ao compará-lo com a

prosa poética. Voltemos para o ensaio do Valéry: a dança é gratuita. Ela não tem

a noção de marcação de caminho, começo e chegada. Não há, no poema em

prosa, essa ideia de narrativa temporal, pelo menos não de forma tão

21

desenvolvida ao ponto de ser uma prosa poética. Porém, também há no poema

em verso a presença da gratuidade e do fragmento. Essa perna do tripé não se

resume apenas a esse gênero, mas é importante quando direcionamos o olhar

para prosa e para poesia, tentando compreender suas diferenças.

A brevidade do poema em prosa é extremamente questionável, uma vez

que temos poemas em prosa que são bem longos. Se pensarmos, é claro, a

questão da síntese e da ideia do fragmento, até podemos compreender essa

brevidade não como simplesmente número de parágrafos, mas como imagens

que são jogadas no poema e rapidamente se desfazem, já seguindo outra

imagem logo após. A ideia de gratuidade, de não apresentar uma narrativa e

nem uma conclusão que atenda às expectativas do leitor, se apresenta mais

sólida do que pensar o poema em prosa como breve e sintético. Fragmentário,

sim; breve, não necessariamente.

Esse tripé de Suzanne Bernard, como pioneirismo nos estudos do poema

em prosa, é necessário, e foi a partir dele que podemos, hoje, fazer diversos

questionamentos e levantar mais e mais dúvidas sobre esse gênero. Porém, ele

é falho nos aspectos aqui levantados e precisamos aceitar que não

encontraremos uma fórmula para compreender o poema em prosa. É um gênero

que está localizado no “entre” – não é nem poema nem prosa, mas seu

nascimento, sua força vem da poesia. Definir um poema em versos é também

difícil, é claro, mas diferenciá-lo de um conto, por exemplo, é bem simples: um

conto não tem versos. Estar no espaço do “entre” é estar sempre gerando

dúvidas sobre as oscilações, é ser um fruto esquisito nascendo na normalidade.

Partindo desta ideia de o poema em prosa ser um gênero cuja essência

é sua falta de definição, ou seja, um gênero extremamente dialético, que carrega

consigo uma dualidade sempre em tensão, vejamos uma parte do ensaio

“Poema em prosa: Problemática (in)definição”, de Fernando Paixão, escritor e

professor de literatura, onde o autor desde o início de seu texto já parte da

dificuldade de definir o gênero, apresentando uma visão em busca da identidade

do mesmo que aceita sua própria dificuldade de definição:

De maneira sintomática, os três autores aqui citados recorrem ao princípio da dualidade para explicar o mecanismo obscuro de que se

22

alimenta a dinâmica do poema em prosa. Unidade anárquica (S. Bernard), recusa da representação (Todorov) ou da narração (D. Combe), em todos os argumentos predomina o eixo da ambiguidade. Explicações que revisitam o dualismo como princípio central do gênero. Uma alternativa para sair do impasse teórico seria justamente o de tomar essa característica como fator mesmo de identidade do poema em prosa – contradição expressa desde o nome. Ao promover a convivência de duas dimensões distintas da linguagem e com infinitas possibilidades de mistura, não haverá, afinal de contas, como antever os caminhos do imaginário. (PAIXÃO, 2013, p. 148)

Nesse ensaio, o autor lista alguns críticos e suas tentativas de descrever

o poema em prosa, comparando e questionando os pontos levantados por cada

um. A conclusão a que chega é a mesma do título de seu ensaio: a definição do

poema em prosa é sua própria indefinição. Ao termos um gênero que perpassa

na forma do que se é outros gêneros, encontramos uma gama de possibilidades

a serem levantadas. Junto com isso, abrem-se as portas para o grau de

experimentação que o poema em prosa tem.

Essa experimentação só é possível com a modernidade. O verso livre

também surge a partir do rompimento com a métrica clássica, e tem seu grau de

experimentalismo, mas ainda se detém nos versos. O poema em prosa carrega

consigo uma tensão que está sempre à beira de explodir, portanto seu próprio

nascimento é já um conflito. Compreendê-lo passa por não compreendê-lo, e

começar a fazer a crítica a partir da dúvida:

O ensaio é, aliás, com o fragmento e essa forma muito particular de poesia que é a do poema em prosa, um dos três gêneros que a certa altura – pelo menos desde Baudelaire – parecem configurar grande parte da escrita da modernidade. (BARRENTO, 2010, p. 90)

Falar do poema em prosa como fruto da modernidade, assim como o

ensaio, é pensar em algo que estranhamos. E de fato é um ser estranho, uma

quimera, é o nascimento de um corpo em crise, que se debate e busca nascer

em um mundo também deformado. Sua falta de definição é também a falta de

definição que temos em nossa busca pelo estar no mundo, tão (des)conectado

e fragmentado como é hoje. Ele é, com toda certeza, parte do processo de

tensão do momento em que vivemos.

23

2.2 – A metamorfose do corpo-escrita

Ferreira Gullar, em seu livro autobiográfico, refere-se à sua tentativa de

escrever de forma pura e sem amarras como uma “poesia essencial” (GULLAR,

2015, p.15). Em Luta corporal, tentou dar início a esse processo de escrita e, em

Crime na flora, é como se tivesse alcançado seu apogeu. Clarice Lispector, em

seu livro Água viva, também faz essa busca pela linguagem “neutra”:

E eis que percebo que quero para mim o substrato vibrante da palavra repetida em canto gregoriano. Estou consciente de que tudo o que sei não posso dizer, só sei pintando ou pronunciando sílabas cegas de sentido. E se tenho aqui que usar-te palavras, elas têm que fazer um sentido quase que só corpóreo, estou em luta com a vibração última. (LISPECTOR, 1998, p.11)

Pode soar estranho citar um trecho de Clarice Lispector para traçar uma

linha comparativa com Crime na flora. A maior parte das pessoas ainda tem a

visão de Gullar como um poeta que privilegiava mais o conteúdo político do que

questionamentos no âmbito da criação poética. Neste caso, não somente Crime

na flora se compara ao livro Água viva no eixo temático como também por serem

ambos livros experimentais, fragmentários e que perpassam a discussão sobre

poema e prosa e seus limites enquanto gênero.

Diferente de Clarice, que faz questão de que coloquem em seu livro a

marca de ficção, Gullar escritor afirma, discute e teoriza sobre a tentativa de fazer

uma escrita fluida, sem interferências e anterior ao próprio pensamento. Diz isso

não só em entrevistas, como também apresenta essa questão na seção

introdutória de Crime na flora nomeado de “Algumas Informações”. Obviamente

que quando sua teoria se transforma em poesia já se torna outra coisa que não

somente uma ideia biográfica.

Poderíamos usar diversos trechos do livro de Clarice para epigrafar esse

começo interpretativo, mas apresentamos um justamente que trata da questão

corporal. Em sua busca pela linguagem do “it”, ou seja, por uma linguagem

instintiva, animalesca, que preceda o raciocínio humano, o sujeito poético afirma

que só poderia expressar-se através do corpo. Ele é a forma de aproximação

24

mais pura possível com essa comunicação que se busca (se é que podemos

falar em comunicação). Trava-se uma luta nesse processo e, como o título do

livro de Gullar que o transforma também em iniciado nessa jornada, é uma luta

corporal.

Para aprofundar e finalizar essa comparação com Clarice, antes de

entrarmos na interpretação minuciosa de Crime na flora, vejamos um trecho de

Gullar em sua autobiografia acerca dessa linguagem tão desejada:

De um lado, surgira da rejeição minha de usar a técnica poética como algo exterior a mim, o que me parecia um procedimento acadêmico: o poema deixaria de ser determinado pelo que o poeta buscava exprimir para tornar-se o resultado de soluções já sabidas. Trata-se não de subestimar a técnica, o domínio da expressão poética, e sim de torná-la uma sabedoria do corpo. (GULLAR, 2015, p.30)

Atentemo-nos para o termo “sabedoria do corpo”. Assim como a citação

que Clarice escreveu, Gullar vai pelo exato mesmo caminho: essa escritura que

buscam só é possível de ser traçada através de uma linguagem que venha do

corpo. Quer dizer que ela vem do âmbito do desconhecido, do estrangeiro a nós.

Como veremos no próximo capítulo desta dissertação, dar-se conta de nosso

próprio corpo é, na verdade, perceber que não há nada de próprio nele.

Gullar é um poeta do espanto, da dúvida, do questionamento. Perceber a

linguagem pura como uma luta corpórea, ou seja, a luta de um Gullar com um

corpo estranho é compreender que essa escrita tem de vir desse corpo, uma

turista sem identidade, visitante e inquieta. Essa ideia fixa reverberou também

na forma como foi escrito Crime na flora, extremamente experimental e

fragmentário:

Foi então que me ocorreu o seguinte: comecei a escrever uma história absurda com tinta vermelha, deixando entre as linhas espaço suficiente para outro texto. Terminada essa primeira história, passei a escrever outra, com tinta verde, nas entrelinhas da anterior e, depois, datilografei tudo junto, como se fosse um texto só. Disso resultou, naturalmente, um texto incongruente, já que as frases de uma linha se juntavam à da linha seguinte, que pertencia à outra narrativa. (GULLAR, 2015, p. 28-29) Um texto de prosa desvairada, sem sentido e sem objetivo. De qualquer maneira, era a minha volta à escrita. (GULLAR, 2015, p. 37)

25

A narrativa que existe dentro do livro é bastante confusa e completamente

intemporal. Se pensarmos a questão da gratuidade do poema em prosa

levantada por Suzanne Bernard, podemos encontrá-la em basicamente todo o

poema. Não sabemos o momento que começa e termina cada situação nem

onde estão se passando os acontecimentos. Há alguns personagens, mas esses

não determinam nenhum tipo de foco narrativo ali dentro, pelo contrário, são

completamente arbitrários, a começar pelo nome deles mesmo, com até alguma

dificuldade de pronunciá-los: Oerz, Firsteta, Zarn.

Quando nomeamos alguma coisa, reconhecemo-nos enquanto humanos.

Um nome próprio é fruto de uma consciência que sabe que existe, que respira,

produz e faz uso da linguagem. Não reconhecer um nome, ter dificuldade de

pronunciá-lo é não dominar essa linguagem, é encontrar-se em um estado

anterior ao da nomeação e uso da língua para fins de enciclopédia. Portanto,

apresentar-nos nomes estranhos para chamar alguns personagens é uma forma

de dizer que esses personagens são também a linguagem pura, animalesca que

se busca e não uma criação pensada pelo poeta. Observemos a citação de um

ensaio de Daniel Gomes acerca dos nomes próprios:

Nesta relação entre espaço e fala, entre a paisagem natural e a instituição dos nomes, vale ressaltar que os nomes próprios dos entes no mundo não são uma mera expressão ou um reflexo do pensamento, mas antes existem por ordem das condições determinadas de pensamento em cada espaço cultural próprio, que condiz a um espaço linguístico. (GOMES, 2013, p. 137) [...] chega-se à conclusão, que podemos chamar de etnográfica, de que os nomes são sistemas linguísticos, desenvolvidos histórica e culturalmente no contexto prático e relacional de interpretação, que definem e criam o nosso modo de ver o mundo tal qual se nos apresenta. (GOMES, 2013, p. 152)

Esses nomes escolhidos por Gullar geram uma não-identificação no leitor.

Eles não pertencem a outra língua, não advêm de qualquer tipo de reflexo

cultural. Eles são parte da fluência mesma da escrita anterior ao pensamento.

Logo, os personagens desse livro surgem a partir do que se escreve, dos

fragmentos que se formam e não fruto da criação de um enredo.

26

Na capa do livro, o título que se lê é apenas Crime na flora. Ao abri-lo,

temos uma seção chamada “Algumas informações”, assinada por Gullar, como

se fosse necessário explicar a loucura de sua obra. Segue-se, então, novamente

pelo título, mas dessa vez modificado: Crime na flora ou Ordem e progresso. Se

conseguíssemos captar qualquer tipo de fio narrativo dentro do livro, este seria

em torno de um crime, o assassinato de um corpo. Mas não é em qualquer lugar

que este crime ocorre. É na flora, e por flora podemos compreender o que há de

natural-vegetal, não-cultural, inumano. O título não é “crime na natureza”, uma

vez que a natureza engloba também o ser humano. Falamos aqui de algo cuja

existência não pensa, não racionaliza, não sente fome, assim como a linguagem

que Gullar busca. O corpo assassinado não necessariamente pertence a ela,

mas está dentro desse espaço neutro que é a flora.

E o que seria essa outra possibilidade de título, Ordem e progresso?

Primeiramente, precisamos lembrar que esse é o sintagma pertencente à

bandeira do Brasil, portanto a questão da nacionalidade está presente aqui,

possível referência às tentativas modernistas de dar um uso político para a

linguagem ou até mesmo uma crítica aos poetas brasileiros. O uso da conjunção

“ou” dá a entender que o crime ocorrido na flora pode ser sinônimo de ordem e

progresso, ou seja, há uma intervenção nesse mundo das plantas por parte do

ser humano.

Há uma busca e uma frustração de Gullar por essa linguagem neutra,

animalesca, anterior à razão. A intervenção de formas classificatórias da poesia,

suas escolas literárias, suas regras, pensar a poesia como um “fazer” e não um

“ser feito”, tudo isso é uma forma de interferência na linguagem pura. É um crime,

o assassinato do corpo-poesia, a intrusão da ordem e do progresso do homem

na neutralidade da escritura. Essa frustração talvez fique clara através desse

crime que é cometido, a intrusão do criador na obra poética, o pensar e

transformar a linguagem, encostar o dedo real nesse corpo que não poderia

jamais ser intocado. Octavio Paz, em seu livro O arco e a lira, afirma que:

[...] As palavras não vivem fora de nós. Nós somos o mundo delas e elas, o nosso. Para capturar a linguagem não temos outra saída senão empregá-la. (PAZ, 2012, p. 39)

27

[...] A palavra não é idêntica à realidade que nomeia porque entre o homem e as coisas – e, mais profundamente, entre o homem e seu ser – se interpõe a consciência de si. A palavra é uma ponte mediante a qual o homem tenta superar a distância que o separa da realidade exterior. Mas essa distância faz parte da natureza humana. Para dissolvê-la, o homem tem de renunciar a sua humanidade, seja regressando ao mundo natural, seja transcendendo as limitações que sua condição lhe impõe. (PAZ, 2012, 43-44)

Ferreira Gullar compreende justamente a teoria levantada por Octavio Paz

acerca da linguagem. Ele não quer a representação, quer a palavra ela mesma,

sem a interferência de sua consciência humana. Assim como Clarice, busca

justamente esse regresso ao mundo natural. Ela, através do animalesco; ele,

através da flora. Ao mesmo tempo que faz essa busca, por outro lado,

compreende sua impossibilidade, assim como Octavio Paz continua:

A impossibilidade de confiar a criação poética ao puro dinamismo da linguagem se confirma quando constatamos que não existe um único poema sem a intervenção de uma vontade criadora. Sim, a linguagem é poesia e cada palavra esconde certa carga metafórica disposta a explodir no momento em que se toque na mola secreta, mas a força criadora da palavra reside no homem que a pronuncia. O homem põe a linguagem em marcha. A noção de um criador, antecedente necessário do poema, parece se contrapor à ideia da poesia como algo que foge ao controle da vontade. (PAZ, 2012, p. 45)

A linguagem não é uma forma mágica que surge sozinha. Mesmo quando

animalesca, vem de uma necessidade instintiva de comunicação. Ela diz algo. O

grito de um animal pode chamar um outro animal. No caso da poesia, a

linguagem tem uma autoria. Talvez seja exatamente isso que Ferreira Gullar

chama de crime: a existência do poeta como um ser que manipula a linguagem,

que mata, transmuta ou viola esse corpo que aparece de repente.

Não podemos dizer que há um começo e um fim neste livro. A linguagem

como ser vivo e independente de nosso pensamento dá uma ideia de infinitude

e fluidez constante, a busca por alcançar esse desejo se expressa até no branco

da folha antes de aparecerem as palavras. Há um espaçamento maior do que o

comum. O texto começa quase no meio da página e com uma letra minúscula, o

que podemos compreender como uma continuidade e um recorte.

28

Não à toa, há um “eu”, única palavra do primeiro verso4, em cima de um

muro. Um muro é sempre uma divisão, muitas vezes entre o que nos é íntimo e

uma paisagem ou um ponto de diferenciação. Há uma isomorfia do espaço da

página formar um muro entre o silêncio e as palavras, ou podemos dizer entre o

pensamento e a linguagem, e chamar de muro o local onde o “eu” se encontra.

Se pensarmos o lado biográfico do poeta, esse muro também pode ser a

representação de uma dúvida: o passado de uma escrita pensada, organizada

esteticamente, banhada na tradição, e a vontade por ruptura, a busca por uma

escrita livre até mesmo das amarras do “eu”. Ou este “eu” como o próprio muro

que divide a escrita pensada, que está em silêncio uma vez que é controlada, e

a escrita não pensada que é por onde se desenrola esse livro.

Nancy, em seu livro Corpus, afirma que “Corpo é a certeza siderada,

estilhaçada. Nada de mais próprio, nada de mais estranho ao nosso velho

mundo” (NANCY, 2010, p. 7). Já na primeira página de Crime na flora é onde

aparece uma relação de metalinguagem fortíssima, comparando o texto a um

corpo. Citamos Nancy pois, para ele, o corpo é fragmento, dito próprio, mas ao

mesmo tempo estranho, e é também assim a relação vista da linguagem e da

escritura por Ferreira Gullar. Observemos:

eu

sobre o muro castigado, a doença solar nas engre-

nagens da terra,

eu que,

em silêncio, falo por tua boca, onde trabalhas, verboso,

falas em meus lábios na podridão apodrecidos, no bri-

lho do sossego da dentadura que o mito firma de detrás

da garganta na poeira cintilante; cabelos de metal, lúzi-

dos, o focinho da ascendência noturno, pelas folhas do

amor; [...] (GULLAR, 1986, p. 3)5

4 Chama-se esta única palavra de verso, pois o livro é uma mescla de gêneros distintos: fragmento, diálogo, poema em prosa (em sua maior parte), versos e concretismo. Não encontrou-se outra forma melhor de chamar este dêitico flutuante no começo do texto. 5 Transcreve-se com o mesmo espaçamento e respeita-se a diagramação do livro original.

29

O sujeito poético se desdobra através de um corpo que é o próprio texto.

É o texto que trabalha as palavras, que detém o verbo. Os lábios do poeta estão

apodrecidos visto que, ao escrever da linguagem, ao se fazer a escritura, o

pensamento que se poderia dizer já está passado, velho, deteriorado. O texto

tem uma boca. Ele é um corpo.

Se pensarmos, como na citação de Nancy, o corpo como um estilhaço e

pedaço de estranheza, também não é assim o poema em prosa misturado com

esse texto experimental de Gullar? Retomemos novamente a imagem do muro,

pois abre um leque grandioso de interpretações e possibilidades: o sujeito

poético está em cima de um muro, está em um espaço entre, nem lá nem aqui,

assim como o poema em prosa é o gênero da dúvida e da dualidade.

Há um questionamento a ser levantado após visualizarmos esse trecho:

já há um certo tipo de frustração por parte de Gullar com essa busca pela escrita

neutra. Há um “eu”, mesmo que em cima do muro, mesmo que seja o muro ele

mesmo, ele está ali presente. Ele é apresentado como uma “doença solar”. Solar

pode aqui adquirir o significado espacial de castelo, de grande moradia. É uma

ocupação do homem, uma doença em cima do que deveria ser natural, “nas

engrenagens da terra”. Mas existe. A autoria, mesmo que considerada de forma

negativa no fazer poético para Gullar, está presente. Michael Hamburguer chega

a essa conclusão, mas não de forma negativa:

A própria linguagem garante que nenhuma poesia seja totalmente “desumanizada”, sem a necessidade de o poeta tentar projetar a pura interioridade exteriormente – como Rilke fez algumas vezes – ou de perder-se e achar-se nos animais, nas plantas e nas coisas inanimadas. O equilíbrio exato entre a expressão do sentimento e a penetração do mundo exterior talvez seja um problema para os poetas quando não estão escrevendo poesia, bem como para aqueles críticos cujos interesses são psicológicos e filológicos. Quando o poema é bem-sucedido, o problema se acha resolvido nele: em seus limites, uma correspondência mágica, de fato, predomina. Algo dessa intercambialidade parece ligar-se até mesmo às experiências mais recentes num tipo de poesia que nem expressa nem registra coisa alguma, mas torna as palavras e suas relações recíprocas seu único material; por significativo que pareça, esse tipo de poesia foi descrito como poesia “abstrata” e “Concreta”. (HAMBURGUER, 2007, p. 48)

Logo em seguida, há um trecho em itálico, que pode sugerir a existência

de outra voz, diferente do “eu” que abre o texto. Diz o seguinte: “Há um nome,

30

debaixo da pedra, na flora. As asas fundindo-se à terra, um anjo que nosso

esquecimento derrubou, é carregado pelo exército de formigas. Sobre o muro

descansa o homem” (GULLAR, 1986, p.4). Seguindo pelo viés da citação de

Hamburguer, pensemos o que significa este nome embaixo da pedra. Há, por

trás de toda linguagem, um ser que se nomeia. Mesmo que escondido, ele está

presente. Pode ser o rastro da autoria. O autor, seu pensamento, seu processo

de criação poética, por trás do texto. Falar que há um nome significa que há o

dedo da referenciação, é a linguagem interpretada e não neutra.

Dando um salto para a última página do livro, percebemos um movimento

circular: volta para o cenário do muro, há uma referência novamente a este nome

sob a pedra, mas o “eu” que estava em cima do muro (não necessariamente o

mesmo, mas como marca referencial) está agora de um dos lados entrando pelo

terreno e o avistando. Não há um fim determinado neste livro, a última frase não

tem ponto final, e novamente há metade do espaço da página em branco. Há

exatamente o mesmo número de linhas da primeira página: vinte e um, o que

pode ser uma forma de expressar que o fim e o começo, mesmo que diferentes

(pois um está na parte de baixo e outro na parte de cima da página) se conectam

de forma simétrica, dando um continuidade ao outro.

Em qualquer interpretação literária, falar que o texto é sobre tal coisa, ou

narrar os acontecimentos dele, é uma forma de empobrecê-lo e também a

própria análise que é feita. Mesmo que se quisesse achar o ponto de explicação

narrativa desse poema, seria quase que impossível, mas podemos dizer que há

uma situação, ao longo de todo o texto e se repetindo de diversas formas: um

corpo é supostamente assassinado e vai se transformando a cada nova

descrição do que ele é, assim como a busca poética de Ferreira Gullar por uma

poesia completamente livre, próxima ao real, ser o real ela mesma. Mas é uma

poesia que se transforma ou que é assassinada? Esse é um crime de morte ou

de uma ação que se confunde com a morte, mas na verdade é outra coisa?

O poema é longo, tem por volta de setenta páginas, então a noção de

brevidade levantada pela teórica Suzanne Bernard anteriormente não está

presente, mas a de fragmento, sim. Os personagens que aparecem no livro vão

escrevendo um personagem que escreve outro personagem. Existe um “eu”

31

inicial que escreve outro e assim por diante. Passamos a ter um fragmento dentro

de outro fragmento, como um livro dentro de um livro, e tudo gira em volta do

corpo encontrado, que ora se torna um dos personagens ora já não é mais ele e

não se sabe mais o que é.

Como Gullar mesmo havia dito em sua autobiografia e citada aqui

anteriormente, ele foi fazendo colagens de textos e os conectando de alguma

forma em um tipo de unidade. Seria possível fazer uma leitura de Crime na flora

conectando os fragmentos que possivelmente foram escritos juntos, mas

separados na composição desse livro com outros fragmentos interpostos. Ou

seja, fazer leituras de apenas alguns fragmentos, separadamente. Mais uma vez

trazendo Clarice Lispector para esta dissertação, podemos observar que ela

também experimentou um processo criativo parecido:

Aproximando-se de algo como a escrita de um diário ou de uma carta, no qual anotações sobre acontecimentos do cotidiano ou reflexões sobre literatura são feitas, incluindo a técnica de montagem e colagem de textos anteriormente publicados e que reaparecerão ainda nas crônicas do Jornal do Brasil, este método se baseia na colagem de textos de diferentes estilos e material heterogêneo: crônicas, diário, poesia, narrativa de caráter fragmentário, sem definição de tema ou forma, apenas em justaposição paratática. Com isso, produz-se uma escrita na qual o objetivo é escrever o que vem à mão, concedendo-lhe caráter fragmentário e a-literário, com efeito de improvisação sem, contudo, deixar de praticar a reflexão sobre a escrita. (GUIMARÃES, 2007, p.7-8)6

Crime na flora, apesar de ser publicado em 1986, foi escrito trinta anos

antes. Essa citação sobre Clarice se refere ao seu manuscrito Objeto gritante,

escrito por volta da década de 70, que mais adiante deu origem ao livro Água

viva. O processo de colagem de textos fragmentários e o questionamento

temático sobre a linguagem apareceram, então, na poesia de Gullar antes da

escrita dos textos de Clarice. Essa informação é importante pois Ferreira Gullar

tende a ser observado apenas como um poeta político, sem apreço pela estética

e pela filosofia. Clarice, por outro lado, é reconhecida por uma escrita filosófica

e metapoética.

6 O artigo referido está sem paginação. A contagem foi realizada de forma manual.

32

Schlegel afirma que “Também na poesia cada todo bem pode ser metade,

e cada metade pode no entanto ser propriamente todo” (SCHLEGEL, 1997,

p.22). Se pensarmos a ideia do poema em prosa justamente como a ideia desse

fragmento escrito por Schlegel, em sua unidade orgânica, podemos entender

Crime na flora como uma construção espelhada em que cada fragmento olha

para o outro e se vê, adicionando, ao mesmo tempo, algo novo ao que já existe.

Os desdobramentos dos fragmentos acontecem repentinamente no livro.

Começa com o texto na primeira pessoa. Depois aparece em itálico a visão de

um narrador em terceira. Volta para a primeira pessoa. Reaparece o narrador na

terceira. Isso ainda sobre o mesmo personagem (se é que podemos chamar

dessa forma). Provavelmente, essa passagem é a criação de um duplo do sujeito

poético, que se transforma também em objeto. Então aparece em um fragmento

a figura de uma personagem mulher.

Aparentemente, essa personagem está em um outro plano narrativo. Há

sinais de choque entre a criação de uma narrativa e a busca pela linguagem

pura: “em que teu santo nome se esfacela”; “radiante e verbal”; “sorridente

solidão gramatical” (GULLAR, 1986, p. 4). Esse é o modo que se refere a essa

personagem, é como se ela não tivesse um nome próprio, logo se

desumanizasse, e fosse uma referência ao próprio texto. Ela é a linguagem, por

isso verbal, clara, gramatical.

Antes de continuar essa narração, há uma interrupção e a entrada de um

novo fragmento retomando a questão da busca pela linguagem pura e neutra:

“começa contigo, flubas, flânis, nalt, que começas aqui, a rua, a areia, o mundo

matinal, onde, sem a sexual energia que acende, onde surges,”(p.4) Essa ida e

vinda de fragmentos, descontinuação e retomada, acontece durante a escrita de

todo o livro. A estética e o conteúdo se combinam, nessa ideia inconstante e

incontrolada de costura textual.

Voltemos para a figura do corpo: o livro gira em torno dessa imagem que

aparece e reaparece, mudando de sexo, físico e localização, podendo ser

comparada com a forma do poema em prosa (ou do texto experimental a que

Ferreira Gullar está submetido). Pelo fato de ser um corpo em completa

experimentação, em mutação, em transformação constante, ele não tem uma

33

forma fixa, podendo até mesmo ser considerado nulo. Cada personagem no livro

é uma invenção de texto sobre texto, de mutação:

A chuva em pingos some na aura

branca da veste, detrás da qual, no centro dela, não há

corpo, oh Firsteta, não; chegarás molhada; no portão

retirarás o chapéu de fitas, pingando, os fios grudados

castanhos no teu riso. Caminhas na varanda, um sol

novo, sol jovem como um braço, trespassa as rótulas. (p.5)

Firsteta é um nome inexistente em nossa língua. Ela é uma personagem

nascida da origem da linguagem, por isso não foi alguém que a nomeou, mas a

linguagem mesma. Ela é uma parte do texto, há uma voz que narra exatamente

o que ela irá fazer. Ela não tem corpo, mas a paisagem que a envolve tem e a

toca. Michel Collot afirma que: “A experiência da percepção revela que o corpo

é, ao mesmo tempo, vidente e visível, tocante e tocado, sujeito e objeto; abre-

nos um mundo do qual ele mesmo faz parte” (COLLOT, 2013, p.37-38). Ou seja,

a paisagem criada é o que dará corpo à personagem, uma vez que tudo ali

representado é texto e está dentro dele.

Na mesma página, ainda, Gullar anuncia o rompimento com o passado:

“a humilde linguagem, esquecida, esfarelou-se pelas fendas do sentido sossego.

[...] as ruínas continuam a morrer” (p.5). A tentativa de trazer o novo, uma

linguagem independente, está presente a todo momento em Crime na flora, mas

nesse trecho é, de fato, anunciada. Fazer com que a poesia não seja um

discurso, mas a própria realidade, é algo impossível. Porém, sua tentativa, ao

fazer com que os personagens do livro sejam também autores de si mesmos, é

um passo de aproximação dessa sua vontade. Os personagens se tornam o

próprio texto. O que acontece, na verdade, é que o poeta cria duplos dentro de

duplos, e cada um se torna parte de um fragmento.

Ainda nesse trecho, há uma referência à transformação da memória em

poesia. Tudo que é lembrado é preciso estar esquecido. Por isso: “enrijecendo

as corbelhas fúnebres sobre cujas corolas de mofo uma tarde desabrochará seu

alarma” (p.5). Apesar da busca pelo novo e da ruptura levantada no parágrafo

34

anterior, há uma permanência ou, melhor dizendo, uma ressignificação desse

passado através da paisagem, que faz o papel de abrir a flor e o grito. Bachelard

afirma que:

A imagem poética não está submetida a um impulso. Não é o eco de um passado. É antes o inverso: pela explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos e não se vê mais em que profundidade esses ecos vão repercutir e cessar. Por sua novidade, por sua atividade, a imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio. Ela advém de uma ontologia direta. (BACHELARD, 2008, p.2)

A imagem que Gullar usa é justamente a de uma explosão realizada

pela paisagem da tarde. A memória ressoa, as ruínas não morrem de uma vez,

mas continuam a morrer, pois são ressignificadas. Não há um desprendimento

total com a linguagem anterior, visto que toda ruptura carrega consigo um rastro

do que se intenciona a ser rompido. A criação dos personagens criando outros

personagens, sua tentativa de duplos, cada fragmento deixa no próximo

fragmento um pedaço de si.

Se Firsteta não tem corpo ou “és a sombra dum corpo” (não há referência

ao nome da personagem, mas há a marcação no feminino quando diz “sentada”

logo após a frase citada), Zarn não tem osso, é um ser invertebrado, mas tem

pele: “a pele era real, a pele que o recobria, e as formas de expressão[...] as

suas mãos não tinham osso, todo ele como uma orelha, invertebrado feito uma

flor que desabrocha” (p.6-7). Esse trecho está junto ao aparecimento de Oerz,

como se ele estivesse narrando a criação do personagem Zarn. Há, em Zarn,

um corpo que se solta, que é desossado, é uma tentativa de buscar o que existe

para além da forma comum de corpo: pele, carne, osso e o que há dentro de nós

(nosso eu, separado do corpo):

O desprendimento tendencial da pele responde ao seu ser essencial, que não é simplesmente o de envolver mas de desenvolver o que ela envolve: de expô-lo, de colocá-lo para fora e para o mundo. [...] O corpo floresce, desabrocha na sua pele, a pele é sua eclosão. [...] A flor anuncia o fruto, que é a resposta para seu apelo, o inchamento de uma carne nova sob uma pele nova, uma outra intensidade cromática (chrôma designa primeiro a tez da pele) e a iminência de um sabor e de um suco, licor saído da carne. (NANCY, 2015, p. 57-58)

35

Zarn não tem um corpo completo para os padrões, mas ele desabrocha.

Sua pele e sua carne é o que o segura e, como na citação acima, o que o coloca

no mundo. Estar à flor da pele é aqui uma forma de colocar-se para além da

forma-corpo, é ter uma essência mesmo sem ossos. E o que seriam os ossos

dentro de um texto? Uma forma sem osso é uma forma vazia ou uma forma

contorcida, mole, fácil de moldar, como a pele ou a carne. Uma personagem tem

um corpo nulo ou a sombra de um corpo, e o outro um corpo que pode se

contorcer. Como o texto mesmo de Gullar: disforme, tensionado, desdobrável, e

como a definição do poema em prosa: uma forma indefinida.

Os fragmentos que apareceram até agora foram: o eu em cima do muro,

um narrador em terceira pessoa, Oerz como criador de Zarn, e este como criador

de Firsteta. Observemos este trecho:

onde Zarn a criou com seus dedos moles e alvos tecen-

do. Fui eu, diz Zarn, o olhar fincado nas peras, eu que

a fiz, a teci [...]

[...] Mas teceste tudo? “Tudo.” Quem teceu o ouro

Que te deu o ouro da saliva? quem te deu o fio que te

deu os fios que te deram os dedos que dariam as ma-

lhas? [...] (p. 7-8)

Zarn cria Firsteta, ou seja, um fragmento da escrita dando origem a outro.

Essa criação se dá através de um contato corporal. Tal ato é apresentado como

uma costura, Zarn detém agulhas para esse processo. Escrever é como costurar

um corpo. Já havíamos visto anteriormente que Oerz aparece como um narrador

do nascimento de Zarn, e, no trecho acima, o diálogo se dá entre os dois, como

se criador e criação discutissem a respeito de sua ontologia. Apesar dos

fragmentos existentes no livro, eles se conectam e invadem o espaço do outro.

Oerz também se questiona sobre o processo de criação: “Oerz coça o

pescoço, mira as mãos. Para quem recordo?” (p.8) Novamente a criação poética

através da memória, mas dessa vez a noção de que provavelmente ele não é

dono de seus próprios pensamentos. O homem em cima do muro, o “eu”, ou o

narrador criam este personagem, e ele tem noção disso. E quem cria o criador?

36

A própria linguagem? A interferência da criação em sua própria narrativa é o

crime que ocorre nesse livro?

A cor azul aparece muitas vezes ao longo da obra: “os dois olhos de

escurazul sem pupila” (p.7); “rompendo a luz azul” (p.31); “rosa azul apodrecido

na luz” (p. 32); “com meu capote de lã azul” (p.33); “Na rua era noite, azul e ferida

também” (p. 34); “Em sua farda azul-preto” (p.36); ”dois ponteiros azuis brotam-

lhe do cálice” (p.45); “no chão de poeira azul” (p. 70) entre outros trechos. Criar

um clima cromático em que a cor azul é o centro, quando pensamos sobre um

corpo, é dar a ideia de um corpo que morre, que está sufocando. Quando não

recebemos oxigênio suficiente, nossa pele começa a ficar com uma coloração

azulada. Pensar isso dentro da forma é gerar um entorno poético em que a

forma-corpo do poema sufoca. É necessário trocar de pele, matar o corpo ou

transformá-lo já em outro.

Pensando sobre a tentativa de Gullar de fazer a linguagem uma realidade,

ele tenta fazer, então, com que a linguagem não diga nada. Ela não pode dizer,

para ele, pois dizer já é representar. Ela precisa ser ela mesma a realidade.

Fazer isso é tentar matar sua forma ou deixá-la o mais maleável possível. Um

corpo morto não diz, portanto não representa. Mas e o que fica, para além do

corpo, não fala? Talvez seja o outro (no caso cada fragmento e o leitor mesmo)

que fale com esse corpo:

O nome “cadáver” não dura. O corpo cai ainda mais embaixo: ele não tem mais nome, torna-se carne pútrida mais terra, poeira, cinza, resolução em partículas. O nome não dura e com ele nem mesmo toda a linguagem. Não se pode mais falar. [...] Um corpo morto, é nada a dizer. Nada a dizer. Não obstante se fala com ele. Se diz: salve, adeus, toca-se e abraça-se essa pele dura e fria que não é mais uma pele mas um simulacro gelado. (NANCY, 2015, p. 54)

Apesar da coloração azul, e de terem achado um corpo, ele é um corpo

que está sempre em comunicação com o outro. Todos que o encontram o tocam,

o transformam em objeto e até mesmo realizam atos sexuais. É um corpo que

sufoca, mas que não chega completamente a morrer. Tenta não dizer a

linguagem, mas ser ele mesmo uma forma de linguagem, uma transformação

37

constante. Até mesmo o gênero (que aqui se confunde com o sexo) do corpo é

questionável:

[...] Juntei o cadáver, dobrei-o so-

bre o ombro e carreguei-o para fora. Ao atravessar a

cozinha, sabia que carregava o corpo dela e não o dele. (p.18 e 19)

[...] Desci-lhe mais a calça e observei que o sexo era de

uma moça, e belo demais para estar morto. Sem des-

pir-me, apenas arregaçando a perna do calção, debru-

cei-me sobre o seu corpo e, abrindo-lhe as pernas, fiz

penetrar meu sexo no seu. (p.29-30)

Este corpo indefinido, transformado e manuseado de formas distintas é

como o poema em prosa, que está sempre numa tensão entre prosa e poesia,

que se mistura e se experimenta com filosofia, ensaio, carta, poema em verso,

conto, a depender de quem o escreve, do livro em que está inserido ou em qual

geração surge. O poema em prosa não é uma poesia que morre, mas que sufoca

e extrapola o limite dos versos, da quebra, flui como um rio sem rumo, como um

corpo sem ossos, como uma sombra do corpo.

Esse processo de assassinato e de transformação do poema-corpo se dá

através do nascimento dos duplos de Gullar. Não só os personagens são seus

duplos, mas o próprio ato de desconstruir a linguagem, de largar para trás o jeito

de escrever antigo e experimentar o novo é uma forma de nascer e renascer do

poeta. Por isso o “eu” em cima do muro no início do livro, ele é um “eu”

intermediário, que consegue ver seus “eus” que morrem e se transformam.

Florencia Garramuño, em seu ensaio Frutos estranhos, diz que

“claramente o poema em prosa, concebido como o outro do poema em verso,

teria sido um dos lugares privilegiados da literatura onde a poesia exibia sua

vontade de crise” (2014, p.53). Não só Gullar cria um poema em prosa que é o

outro de sua escrita anterior, ligada à métrica e às rimas, como também gera

outros “eus” a partir desse rompimento. Não só o corpo é uma metáfora para o

poema, como também o é para os desdobramentos do próprio poeta:

38

movo-me

desligado do que penso; outro eu, parado, rumina. Ia e

o corredor aumentava, polido. Como se descesse por

um prisma. Lá fora, decerto, as folhagens cortavam as

laranjas e a aurora nova e mínima dos salutos astros.

Fui e no chão via meu corpo e do chão me via, contra

minha altura, indo. O corredor cruzava-se com outros,

que eu olhava de relance, indo. Por eles, por cada um,

ia sempre alguém, só, que passava por outros cruza-

mentos e olhava de relance, indo. E via, nesses, al-

guém, só, que passava por outros cruzamentos de cor-

redores e via, de relance, alguém indo, só, que passava

por outros cruzamentos de corredores. Ia para o quarto

onde o cadáver me aguardava, exangue. Lá fora, a cei-

fação vesperal. E eu ia, e passava por novos cruzamen-

tos de corredores que se perdiam, longe, e por onde ia

alguém, o mesmo sempre, e que era eu. Cumprimen-

tamo-nos. Depois reparei que a cada passo, na parede

do corredor, havia um azulejo deslocado. (p.10)

O trecho acima é uma representação da ideia fragmentária de Crime na

flora, como no livro Poliedro, de Murilo Mendes, que já pelo título parte da ideia

de um conjunto de fragmentos que formam um sólido. Só que este, diferente do

livro de Gullar, usa dos estilhaços para desconectar o padrão do próprio poliedro.

Os poemas em prosa apresentam-se estilhaçados, confusos, desconexos. Há

infinitas possibilidades de quebras. No caso de Gullar, um “prisma” é um poliedro

limitado, pois é envolto de paralelogramas, não há referência ao estilhaço. O que

acontece é que os duplos vão se colocando em fila labiríntica, entrando em

contato um com o outro, até formar paralelos espelhados. Porém, não são

idênticos. Cada corredor paralelo tem seu próprio azulejo deslocado. As duas

formas de apresentar a ideia do poema em prosa como um gênero fragmentário

confirma mais uma vez a indefinição de forma para a representação dele.

Estilhaçado ou não, o poema em prosa se faz presente na escrita desses dois

autores.

39

A vontade de Ferreira Gullar de matar a poesia presente em seu passado,

romper completamente com ela e trazer à tona uma escrita que não fosse a

representação do real, mas ele mesmo, talvez estivesse em crise não só através

da questão filosófica do contato com algo que é impossível de ser realizado como

também através de sua própria escrita. Apesar de haver um corpo em Crime na

flora, e já pelo título um corpo fruto de um crime, portanto provavelmente

assassinado, esse corpo não morre por completo. Ele é um ser mutante. Talvez

tenha sido essa a conclusão filosófica a que chegou e que se refletiu dentro de

sua escrita. A flora detém absolutamente tudo, como ele mesmo deixa claro em

uma sequência que dura mais de cinco páginas:

o elmo

na flora

a louça

na flora

a moça

na flora

a flor

na flora

a fome

na flora (p. 52)

Está tudo dentro das possibilidades da linguagem, pensada e

transformada em literatura. Podemos recordar então Mallarmé quando diz que

não é no verso que está a crise, mas na literatura, que é dicção, ritmo e estilo.

Abolir o verso não é matá-lo. O corpo não está morto, está se metamorfoseando

em outros, e nenhum gênero melhor para fazê-lo senão o poema em prosa, que

já em sua essência abarca a mutação e a indefinição:

[...] Abri a porta e entrei, para apanhar o

corpo, cujo rosto crivado de agulhas de aço era o mais

belo objeto feito pelo homem. Certamente, pensava,

ela não queria de fato matá-lo e sim, tão-somente, criar

com o seu rosto e as agulhas um objeto novo. Tanto

40

que não havia sangue, e os estiletes se alojavam na

carne do homem com extrema madureza. (p.18-19)

A personagem que, teoricamente, tentou matar Zarn, não realmente

queria fazê-lo. Através das agulhas, que nos dá a ideia de uma tentativa de

costura no tecido que é a pele, queria transformá-lo, exatamente como a vontade

de Gullar não era a de assassinar a poesia, mas fazê-la ser algo novo. Depois,

ela se transforma ainda na própria pessoa que o tentou matar, sujeito e objeto

de um crime se tornam um. O que passa a ser assassinado, então, é a vontade

de assassinar. O corpo, por outro lado, continua presente, se transformando. E

quem o carrega sabia desde sempre que o que estava sendo morto era outra

coisa que não um corpo.

O poeta faz referência ao seu próprio livro e a poetas que também

romperam com o verso tradicional, como Lautréamont, Crevel, Artaud e

Rimbaud. Isso representa que, mesmo Crime na flora sendo extremamente

experimental, e mesmo que os autores citados tenham escrito poemas em prosa,

essas escritas estão previstas dentro da literatura. O crime, portanto, de romper

com a poesia tradicional, de assassinar o que Gullar conhecia como poesia, na

verdade ainda está dentro dos limites do que chama de flora:

PLATÃO NA FLORA

ALFAIATE NA FLORA

Enterro e flora

Lautréamont Crevel

Artaud Rimbaud

na flora (p. 62)

Rimbaud, em sua carta a Izambard, afirma que “Eu é um outro” e “É falso

dizer-se: eu penso. Deveria dizer-se: sou pensado.” Crime na flora pode ser lido

à luz dessas duas afirmações, e com certeza essa é uma das razões desse

escritor ser citado no texto. Gullar se desdobra em vários, em espiral labiríntica,

e isso se reflete na forma como o livro é escrito e na criação dos personagens e

suas relações entre si. Não à toa o livro começa com um “eu” em cima do muro

que textualmente se transforma em outro. Sobre o pensamento, fica clara essa

41

busca por uma linguagem que é dona do poeta, e não o contrário: “E entrepensei:

movo-me desligado do que penso; outro eu, parado, rumina” (p.10).

Através dessa reflexão em versos de cachoeira, ele chega à conclusão de

que a poesia não está morta. Está transformada. Para matar a poesia, só

parando de escrever, não dizendo mais nada. Mas continua dizendo, o processo

do livro é dizer alguma coisa, é falar de si mesmo, da mutação e do encontro

com o poema em prosa. Um pouco mais à frente, já no fim do livro, eis o que

acontece com o corpo:

[...] Foi aí que ela começou a morrer.

Esperei-a de noite, para matá-la, como de fato a matei,

com as minhas duzentas agulhas de aço, longas de dois

palmos, fiz de seu rosto um objeto novo, de carne e aço.

[...] e já ela

nascia metamorfoseada o corpo morto retirado onde

havia um jardim. (p.69)

A única morte presente de fato é a morte para o renascimento. Se a escrita

continua é porque há vida, há transformação. Gullar mostrou sua crise com a

poesia tradicional escrevendo um livro que rompeu com essa forma. Sua vontade

talvez fosse a de matar completamente a poesia. O que aconteceu, por outro

lado, foi dar a possibilidade do corpo-poema virar um monte de coisas,

atravessar seus duplos, suas dúvidas e labirintos. O corpo se dobra, é

desossado, costurado, enterrado, mas há nele a poesia, venha ela em forma de

versos ou em forma de prosa: “ajoelhei-me para observar e vi que eram letras e

algarismos, e que não havia uma parte de seu corpo sem eles, e que não eram

desenhados nem tatuados, mas próprios da epiderme, como as impressões

digitais” (p.29). Para que buscar uma poesia tão-só real, se temos a partir da

flora infinitas possibilidades para inventar?

Interpretar um poema não é fácil. É necessário um mergulho profundo e

uma quantidade de leitura e releituras múltiplas. Parte da interpretação de

qualquer obra de arte vem de organização de pensamentos, mas a outra parte

42

é uma grande amálgama do inconsciente casado com a memória e com

associações de outras obras ou experiências de vida. Interpretar Crime na flora

é uma tarefa ainda mais difícil, pois, além de ser um livro inovador, com

características de experimentação únicas e esquecido pela crítica, trouxe junto

consigo a necessidade da teoria sobre o poema em prosa.

Falar sobre esse gênero é andar na corda bamba. Classificá-lo ou amarrá-

lo não deve ser o caminho a ser trilhado. Entender o que há de poema e o que

há de prosa, o que há de outros gêneros junto dele, é por vezes confuso e

labiríntico. Captar a tensão desse gênero é também tensionar-se. Ele gera no

leitor sua confusão, sua indefinição, e acaba sendo um gênero que transpõe

muito o limite de um só eu. Também o leitor está presente e participa do crime.

Durante o processo de leitura e de escrita deste capítulo, perguntamo-nos

diversas vezes: mas será que esse livro pode ser considerado um poema em

prosa? Com certeza absoluta, fazemo-nos essa pergunta sobre vários outros

textos. Esse é de fato o gênero da dúvida e do questionamento. Independente

do que Gullar disse sobre seu livro, sobre não saber exatamente o que era e

onde se encaixava, trouxemos elementos que, de certa forma e na medida do

possível, se direcionassem para o poema em prosa, pois há essa possibilidade

em aberto em seu texto.

Um livro que gera fragmentos dentro de fragmentos, que metamorfoseia

a escrita, abrindo para ela múltiplos caminhos, que tenta narrar mas se perde no

tempo, que gera imagens poéticas em exaustão... o que seria? Além de algumas

partes em versos ou diálogos e de trechos de poemas concretos, podemos dizer

que é uma poesia em forma de prosa. É uma dança que se distorce pelo ímpeto

da caminhada, mas continua a dançar.

Talvez Ferreira Gullar tenha trazido a melhor (in)definição para o poema

em prosa: um corpo metamorfoseado, que, a cada novo fragmento ou a cada

nova leitura, muda de sexo, de forma, desaparece, reaparece. Um corpo em

mutação.

43

3 – O corpo social e coletivo: um grito da poesia

David Le Breton, em seu livro A sociologia do corpo, afirma que “antes de

qualquer coisa, a existência é corporal” (BRETON, 2012, p.7). Isso significa que

o corpo ou a relação que tecemos com ele não é desligada do meio sociocultural

a que estamos submetidos. Pensar o corpo individualmente, sem considerar os

aspectos do mundo em que estamos inseridos seria adentrar apenas no fator

biológico como algum tipo de verdade. Isso seria um erro, uma vez que

desconsideraríamos a característica mais marcante que nos faz sermos o que

somos: a interferência na natureza, a construção de uma vida em sociedade, o

pensamento e a capacidade de nos refazermos e de nos reconstruirmos

diariamente enquanto seres humanos que se conectam.

É a partir dessa compreensão que Breton nos traz que podemos pensar

a poesia de Ferreira Gullar nas décadas de 60 e 70 no Brasil sob o viés da

corporeidade. A entrada do poeta de forma participativa na vida política e cultural

do país reflete também uma mudança em seu fazer poético. Antes disso, estava

profundamente envolvido junto de Lygia Clark e Hélio Oiticica na fundação do

movimento neoconcreto, que o levava por um caminho de criação artística que

priorizasse a estética (apesar de Lygia e Hélio seguirem por um viés de

entendimento de que o corpo poderia servir como uma ponte sensorial para a

descoberta artística, independente de uma noção racional, enquanto Gullar

achava que isso ultrapassava a possibilidade de uma arte humana, pois

negavam a produção estética consciente7).

Pouco tempo depois, já na década de 60, acontece uma ruptura de Gullar

com o movimento neoconcreto, visto que a mudança da realidade e o começo

de sua militância política influenciam diretamente em sua poesia:

Muitos acreditavam estar a caminho um inevitável enfrentamento revolucionário. Esse sentimento trará uma modificação profunda na perspectiva crítica, teórica e artística de Ferreira Gullar, que, em 1960, encontrava-se em Brasília como diretor da Fundação Cultural do

7 Retirou-se essa ideia da autobiografia poética de Gullar, portanto é uma opinião do poeta em relação aos seus companheiros do Movimento Neoconcreto.

44

Distrito Federal. [...] Mais do que alterações no estilo de sua poesia, mais do que a ruptura com um determinado projeto estético, a sua mudança significou a “conversão” de um dos principais formuladores do projeto “esteticista” para o grupo dos “engajados”. Ferreira Gullar, que é ao mesmo tempo criador e criatura do Neoconcretismo, rompe com o grupo que ele próprio criou e por quem fora criado. (CAMENIETZKI, 2006b, p. 61-63)

Marx já apontava no livro A ideologia alemã que o pensamento e as ideias

de um indivíduo têm uma relação direta ao meio em que está inserido e à

produção em sociedade (MARX e ENGELS, 2005, p.51). Ferreira Gullar, ao

entrar em contato com as ideias comunistas e tomar parte ativa no processo de

construção cultural dentro do ambiente de luta política, transforma sua forma de

ver o mundo e, por consequência, sua forma de fazer poesia. Essa mudança se

dá não só em seus escritos mas, como apresentado na citação acima, também

no âmbito da vida social, uma vez que deixa para trás o movimento estético em

que era profundamente engajado.

Gullar afirmou diversas vezes em vida que seus poemas nascem do

espanto, por isso passou por períodos de longa pausa na atividade literária. O

espanto, dentro do contexto que estamos discutindo, surge a partir de um jogo

face a face com a dura realidade a que o Brasil estava (e ainda está) submetido.

O social afetou o poeta, e isso se refletiu em sua relação com o corpo e sua

produção. Poema sujo começa com “uma espécie de vômito do vivido”

(GULLAR, 2015, p. 58), é uma forma de o corpo mesmo reagir ao ambiente à

sua volta e produzir uma poesia que toca intimamente o real.

A poesia produzida pelo poeta nessa época é, então, diretamente ligada

à relação corporal dele no mundo, uma vez que a existência parte disso e, com

a descoberta e estudo dos ideais marxistas, passa a compreender as dores

corporais que a luta de classes inflige à maior parte da população brasileira de

origem mais humilde. Sua poética segue por esse caminho vivido e apresenta o

corpo de uma forma completamente diferente do que vimos no capítulo anterior.

O corpo, agora, é um sustentáculo, uma amálgama coletiva e dolorosa que

carrega consigo todas as mazelas sofridas dentro de uma sociedade capitalista

selvagem. É sujo, cheio de dejetos, mas é também uma muralha.

45

Sobre sua poesia nessa fase política, Gullar afirma que pouco pensou na

estética, no trabalho artístico do poema. Isso de certa forma foi uma frustração

para o poeta, que, em sua opinião, não conseguiu transformar as lutas sociais

ou suas vivências no âmbito da política e do marxismo em trabalhos artísticos

de qualidade, referindo-se aos poemas escritos entre 1962 e 1975. Porém,

refletindo sobre essa questão da poesia política e a construção estética do

poema, em 1975, já pensa a escrita de Poema sujo de uma forma distinta,

tentando combinar a vivência social com um fazer poético pensado e trabalhado

mais profundamente.

Trotsky teorizou sobre a poesia surgida pelos proletários envolvidos nos

processos de luta na época da União Soviética e, assim, como Gullar, também

questionou a qualidade da escrita produzida ligada diretamente às questões

sociais:

A arte dos poetas das fábricas está incontestavelmente muito mais ligada, e de maneira orgânica, à vida, às preocupações cotidianas e aos interesses da massa trabalhadora. Mas não representa uma literatura proletária. Trata-se somente da expressão escrita do processo molecular de elevação cultural do proletariado. [...] Sem dúvida: mesmo fracos, incolores e cheios de erros, os versos podem marcar o caminho do progresso político de um poeta e de uma classe, possuindo imensurável significação como sintoma cultural. Os poemas fracos — e mais ainda aqueles que revelam a ignorância do poeta — não constituem poesia proletária simplesmente porque não constituem poesia. (TROTSKY, 2007, p. 147)

Essa questão de poesia política versus poesia com valor estético talvez

esteja um pouco defasada ou superada no meio da geração de poetas e críticos

contemporâneos. Há os que afirmam que todo poema já é político. Mas, se assim

for, qualquer ato que realizamos em nossa vida já seria político, então nada

necessariamente teria esse viés. O que é pensar esteticamente um poema? Ir

por esse caminho de discussão voltaria necessariamente à pergunta de o que é

um poema e, mais ainda, o que é boa poesia. Por que, ao abordar sem desvios

o cotidiano e as preocupações do povo e suas vivências, um poema não seria

um poema? Talvez tanto Trotsky quanto Ferreira Gullar (apesar de este ter

afirmado em 2015 que “mais tarde me dei conta de que fazer má poesia não

servia pra nada” (GULLAR, 2015, p. 57), em seu livro autobiográfico) estivessem

46

ainda com um tipo de preconceito em relação à poesia que não se eleva, à

poesia que também pode nascer da rua e do povo.

De qualquer forma, pensar a política pelo lado do povo explorado e

transformá-la em poema é um fazer corporal, uma vez que a condição miserável

dos trabalhadores recai fisicamente sobre eles, através da fome, da pobreza e

da animalização. O corpo surge nos poemas de Gullar nessa fase como um

elemento não separado do homem, mas diretamente ligado à sua existência e à

vontade por mudanças sociais. Voltando para a afirmação de David Le Breton

citada no início deste capítulo, percebemos uma mudança que parte do campo

ideológico diretamente para o campo artístico do poeta, acerca do que significa

o corpo (como veremos mais à frente na interpretação dos poemas):

Para Villermé, Marx ou Engels, é mais importante revelar a condição da classe trabalhadora no contexto da Revolução Industrial. A corporeidade não é objeto de estudo à parte, ela é subsumida nos indicadores ligados aos problemas de saúde pública ou de relações específicas ao trabalho. A relação física do operário com o mundo que o cerca, sua aparência, saúde, alimentação, moradia, sexualidade, sua procura pelo álcool, a educação das crianças, são alternadamente consideradas para fazer um levantamento sem compaixão das condições de existência das camadas trabalhadoras. A constatação implícita do caráter social da corporeidade resulta no apelo às reformas e, mais radicalmente, no engajamento revolucionário. (BRETON, 2012, p. 16)

Logo, não só a poesia de Gullar se torna política, mas sua poética do

corpo, diferentemente do que vimos em Crime na flora, não é mais um ser em

mutação, buscando a experimentação, se deslocando, trocando de sexo. O

corpo aparece, nos livros Dentro da noite veloz e Poema sujo, como sustentáculo

e muralha do poema, uma vez que os males dos trabalhadores vêm daí, a partir

da condição material dentro de um mundo injusto e faminto. Neste capítulo,

interpretaremos essa mudança de compreensão do corpo, partindo de sua

conexão com as lutas políticas e com a resistência que o povo precisa alcançar

para sobreviver diariamente. O corpo, aqui, não é um duplo. É ele mesmo o ser

que sofre, passa fome, protesta e escreve.

47

3.1 – Um corpo sujo, resistente e presente.

Pensar o corpo é antes de tudo pensar seu processo de sobrevivência.

Há uma naturalidade nele que funciona sozinha e independente de nossas

vontades ou racionalidade. Sentimos fome: comemos (quando possível);

sentimos sono: dormimos; e é preciso falar também que ejetamos sujeira de

dentro do organismo. A respeito da imundície do corpo, palavra que evitamos,

Jean-Luc Nancy diz o seguinte:

Um corpo é para si mesmo, também, a sua devoração, a sua degradação, e até ao pus fedorento, ou até a paralisia. A existência não comporta apenas o excremento (como tal, elemento cíclico): mas um corpo é e faz também a sua própria excreção. Um corpo espaça-se, um corpo expele-se, de igual modo. Excreve-se como corpo: espaçado, é um corpo morto, expelido, é um corpo imundo. O corpo morto delimita o imundo e retorna para o mundo. Mas o corpo que se expele insere o imundo em pleno mundo. E o nosso mundo faz as duas coisas: dupla suspensão do sentido. (NANCY, 2010, p. 101)

É justamente isso que Ferreira Gullar faz em seu poema “A bomba suja”:

“excreve” com o corpo, ao usar da palavra “diarreia” em um poema. Não só faz

a escolha desse vocábulo, como o “introduz” dentro da escrita. Ou seja, expele

o dejeto do corpo diretamente no mundo, traz, como Jean-Luc Nancy afirmou na

citação acima, a imundície. A poesia política não é bela, não a poesia corporal

que vem da experiência com o real e sua sujeira: ela traz palavras pesadas,

como diarreia, que geram em nós, leitores, nojo e um encontro direto com a parte

de nós mesmos que evitamos.

Uma bomba serve para matar ou para criar algum tipo de ato, seja ele

terrorista, de medo ou até mesmo político. Ao dar ao seu poema o título de “A

bomba suja” e começar a primeira estrofe com “Introduzo na poesia/ a palavra

diarreia. / Não pela palavra fria/ mas pelo que ela semeia” (GULLAR, 1991a, p.

153), o poeta está ameaçando a poesia com uma possível explosão. Foi

introduzida, ou seja, propositalmente colocada no poema essa palavra que, além

de sua simples significação, carrega uma história, um peso no real que na escrita

cumpre o papel de perigo, de destruição.

48

O poema é um corpo que recebe, nesse momento, a imundície da palavra

diarreia. Expelir e excrever a diarreia: trazer para o poema-mundo a sujeira. Além

da palavra, sua semeadura: “Mais que palavra, diarreia / é arma que fere e mata”

(p. 153). Ou seja, em sua ação de bomba, o ato na realidade é que a diarreia

mata milhares de homens e crianças pobres no Nordeste do Brasil, mais até

mesmo do que uma arma ou uma bomba. É o próprio corpo se espaçando e

levando à morte.

Há, portanto, dois movimentos corporais da bomba dentro desse poema:

o primeiro se dá na relação entre palavra e poesia, ao introduzir “diarreia” como

um vocábulo que pode explodir, semente que é, a tradição de uma escrita que

nega a imundície; o segundo é o papel dentro da realidade que essa palavra

carrega, sendo extremamente corpórea e trazendo consigo fatos de doença e

aniquilação do ser humano em condições de pobreza.

A bomba também é relacionada ao tempo que o trabalhador gasta em seu

processo de produção. E o tempo de trabalho é o que vai ativando ao longo da

vida o funcionamento desta bomba-relógio. Há uma apresentação da exploração

e da mais-valia e de um autor que liga essa bomba no corpo do homem. A

respeito da relação do corpo com o trabalho na sociedade capitalista, Nancy diz

o seguinte:

Onde estão os corpos, antes de tudo? Os corpos estão antes de tudo no trabalho. Os corpos estão antes de tudo a penar no trabalho. Os corpos estão antes de tudo em deslocação para o trabalho, no retorno do trabalho, à espera do descanso, a pegá-lo e a rapidamente despegá-lo, e estão a trabalhar, a incorporar-se na mercadoria, eles próprios uma mercadoria, força de trabalho, capital não-acumulável, vendável, esgotável no mercado do capital acumulável, acumulador. (NANCY, 2010, p.107)

Ao trabalhar, vendemos nosso tempo. Além de uma bomba suja, temos

em nós todo tipo de bomba relacionada ao processo de exploração: miséria,

fome, estresse, depressão, injustiça social. O corpo e o trabalho, em uma

sociedade dividida em classes sociais, são sinônimos de degradação, marcada

pelo relógio. No poema, a bomba está plantada em nós historicamente, anterior

mesmo ao nosso nascimento físico:

49

Bomba colocada nele

muito antes dele nascer;

que quando a vida desperta

nele, começa a bater.

Bomba colocada nele

pelos séculos de fome

e que explode em diarreia

no corpo de quem não come. (GULLAR, 1980, p. 154)

Existe alguém que ativa essa bomba no corpo. Ela é, de certa forma, um

intruso dentro de nós. Assim como foi introduzida a palavra “diarreia” no poema,

também foi introduzida essa bomba em nosso coração. Esse processo de

questionamento se dá ao longo de algumas estrofes do poema, com construção

de perguntas retóricas, e afastando a responsabilidade de ativador da bomba

real das mãos do trabalhador. No poema, por outro lado, o ativador é o próprio

poeta, ao escrever usando esse vocábulo sujo.

Ao fim do poema, é apresentada a possibilidade de desarmamento da

bomba. Esse processo também se dá de forma corporal: através de nossas

próprias mãos. Não só a força de trabalho é representada aqui pela figura das

mãos, mas também o próprio ato de escrever esse poema. Introduzir a palavra

“diarreia” é então não um ato de armar a bomba, mas, pelo contrário, de tentar

desarmá-la fora do poema.

Este é o segundo poema de Dentro da noite veloz. O poema “Meu povo,

meu poema” que inicia o livro, dá a tônica da construção dessa obra. Ferreira

Gullar torna-se um operário, um canavieiro das palavras. Ele usa de sua força

de trabalho para criar poemas que se aproximem da bomba-relógio e sirvam

para detoná-la dentro da poesia e desarmá-la no mundo real. Os poemas são

como plantações a serem colhidos pelo leitor, carregando consigo toda a

imundície de um corpo que pena.

No poema “Homem comum”, podemos observar como a forma de

entender o corpo se dá a partir de uma interação direta com um coletivo social.

A começar pelo título, o poeta se apresenta como qualquer outro homem, uma

representação de um estereótipo do que é um sujeito brasileiro trabalhador

50

inserido no tempo em que foi escrito o poema. A relação entre “carne” e

“memória”, “osso” e “esquecimento” não surge a partir de um estranhamento,

mas de um reconhecimento. A memória existe no momento em que há vida, em

que há corpo, é uma forma de vivência corporal; o esquecimento vai ao fundo de

nós, nossos ossos, mostrando que até mesmo na morte, onde há ausência de

memória, é também nosso corpo, nossos restos que permanecem.

Na segunda estrofe, há uma tentativa de gerar empatia no leitor, ao

começar com o verso “sou como você”. Como no poema que abre essa obra

“Meu povo, meu poema”, Gullar quer falar diretamente com o povo, quer devolver

a poesia para o lugar de onde ela surgiu. Em “A bomba suja”, há um trabalho

direto com a palavra, de introduzir no poema algo que não lhe era comum e de

expor a sujeira e a miséria; em “Homem comum”, há uma proposta de

identificação e de chamado, quase como um panfleto empático acerca da

vivência e construção da personalidade do povo brasileiro.

Ao direcionar o poema a um outro que o lê, o corpo é colocado fora do

limite do individual para ocupar um espaço de endereçamento e de

espelhamento. A compreensão da existência de um homem coletivo surge

justamente de uma identificação corporal: compartilham os rostos, as mãos, a

carne e o osso (através da memória e do esquecimento), “tudo misturado”:

O que limita quem eu sou é o limite do corpo, mas o limite do corpo nunca pertence plenamente a mim. [...] Evidentemente, o fato de o corpo de uma pessoa nunca pertencer completamente a ela, de não ser delimitado e autorreferencial, é a condição do encontro apaixonado, do desejo, do anseio e dos modos de se endereçar e de endereçamento dos quais depende o sentimento de estar vivo. (BUTLER, 2017, p, 87)

Apesar de esta citação de Judith Butler estar inserida dentro de um

contexto de guerra, tortura e violência contra o corpo, podemos usá-la como

forma de ler esse poema de Gullar, quando nos atentamos ao diálogo que existe

dentro dele com um outro, a partir da corporeidade. É justamente por esse corpo

ser o de um “homem comum”, ou seja, ser um corpo social, coletivo, um símbolo

de um povo, que existe essa possibilidade de tocar o outro, de endereçar-se. Ao

51

mesmo tempo que fala para fora, também fala consigo mesmo: “Quero, por isso,

falar com você/ apoiar-me em você/ oferecer-lhe o meu braço” (p. 162).

Essa ideia de “falar com você” abre também espaço para uma poesia que

sai do pedestal. Assim como em “A bomba suja”, onde introduz uma palavra que

choca e que incomoda, nesse poema há um certo tipo de diálogo informal, como

se de fato estivesse conversando com alguém, explicando características de sua

vida e, além disso, tentando convencer o outro sobre um certo tipo de saída

estratégica (apesar de abstrata), ou seja, em ambos os poemas há uma busca

por uma desconstrução do que conhecemos como poesia clássica. Existe um

tipo de propaganda política embutida dentro deste poema, e o próprio poeta

deixa isso claro em “Homem comum”:

Sou um homem comum

brasileiro, maior, casado, reservista,

e não vejo na vida, amigo,

nenhum sentido, senão

lutarmos juntos por um mundo melhor.

Poeta fui de rápido destino.

Mas a poesia é rara e não comove

Nem move o pau-de-arara. (GULLAR, 1991a, p. 162)

O próprio poeta não se considera poeta em sua atual forma de escrever

poesia. Chega à conclusão de que o poema não pode mudar a realidade nem

alterar o destino do corpo no mundo. O poema não interfere na vida real, não

pode parar a tortura da época da ditadura militar. O que seria então esse texto,

esse livro que estudamos aqui? Um panfleto? De fato, um poema não muda o

mundo, mas quebra o silêncio. Em tempos de perseguições políticas, escrever

poesia, ainda mais de forma engajada, é dar um grito antes silenciado. A poesia

pode não comover ou mover o pau-de-arara, mas ela pode transformar essa dor

física em linguagem:

52

Al-Haj8 afirma que foi torturado e pergunta como pode combinar palavras e fazer poesia depois dessa humilhação. E são os próprios versos que em que questiona sua habilidade de fazer poesia que constituem sua poesia. O verso, portanto, representa aquilo que al-Haj não consegue entender. Ele escreve o poema e, no entanto, o poema nada mais pode fazer senão indagar abertamente a condição de sua possibilidade. [...] Suas palavras passam da condição de tortura, uma condição de coerção, ao discurso. Será que o corpo que sofre torturas é o mesmo que escreve aquelas palavras? (BUTLER, 2017, p. 89)

Gullar também questiona sua capacidade de escrever poesia a partir do

momento em que está profundamente engajado em uma luta política. A pergunta

é a mesma que Al-Haj se faz: como escrever poesia em um mundo decadente,

em que a dor física é imperiosa? “Lutar por um mundo melhor” é o único sentido

que vê no momento em que escreve esses versos. Porém, assim como na

citação, a poesia se dá justamente onde se acha que não é possível a presença

da poesia: nesse questionamento sobre o corpo, sobre a dor, sobre a realidade

pungente. Ela nasce justamente dessa tensão entre a vida e a arte.

Assim como no final do poema “A bomba suja”, “Homem comum” traz uma

estratégia corporal para superar os problemas sociais apresentados. É

necessário que esses milhares de corpos de homens comuns se juntem e

formem uma muralha. Essa muralha é apresentada tanto de forma física, de fato

há corpos lado a lado, como também ideológica: “e podemos formar uma

muralha/ com nossos corpos de sonho e margaridas.” A saída para a luta de

classes é a união dos indivíduos em um ser coletivo, forte e resistente. Essa

visão de um corpo coletivo é muito comum em sociedades de origem

comunitária, não à toa Ferreira Gullar passa a enxergar a corporeidade dessa

forma quando traz consigo uma ideologia de luta contra um sistema individualista

e explorador:

Nas sociedades tradicionais, de dominante comunitária, na qual o estatuto da pessoa subordina-se ao coletivo, misturando-a ao grupo e negando a dimensão individual que é própria das nossas sociedades, o corpo é raramente objeto de cisão. O homem e o corpo são indissociáveis e, nas representações coletivas, os componentes da carne são misturados ao cosmo, à natureza, aos outros. A imagem do corpo é aqui a imagem em si, alimentada pelas matérias simbólicas que mantém sua existência em outros lugares e que cruzam o homem

8 Sami Al-Haj foi preso e torturado nas prisões mantidas pelos Estados Unidos, Bagram e Kandahar, e depois transferido para Guantánamo.

53

através de uma fina trama de correspondências. [...] Em sociedades que permanecem relativamente tradicionais e comunitárias, o “corpo” é o elemento de ligação de energia coletiva e, através dele, cada homem é incluído no seio do grupo. (BRETON, 2012, p. 30)

Tendemos a relacionar a memória a algum tipo de lugar ou paisagem. Os

acontecimentos passados vêm à mente sempre recheados de pilastras, árvores,

salas vazias. Quando, porém, os acontecimentos se dão a partir de uma

compreensão do corpo no mundo, seja através da tortura, do trabalho ou do uso

exploratório profundo de nossos membros, não é a memória que retorna através

de imagens ou sensações, é o presente se colocando sempre em primeiro plano.

Se, como afirma Michel Collot, o “pensamento-paisagem é a obra de um

cogito corporal, pré-reflexivo e ancorado nos movimentos que anima o corpo e a

paisagem” (2013, p.41), ou seja, se há uma relação direta entre corpo e natureza

(ambientação) na formação da memória e dos sentidos à nossa volta, na poesia

de Ferreira Gullar a relação se dá entre o corpo e o local de trabalho, entre o

corpo e a prisão, entre o corpo e a rua. Esse contato do corpo com paisagens

(mesmo que não naturais) ligadas diretamente à exploração e objetificação do

ser humano gera poemas que retornam sempre ao presente, a partir de uma

compreensão corporal.

A âncora de um corpo que resiste só pode ser o agora. Não há

possibilidade de trazer a memória para o poema se ela se desmantela no ar

diante da situação do país e dos trabalhadores da época. Sim, é preciso

aprender historicamente com o passado para se construir um presente político,

mas a forma como Gullar transforma a luta política em poesia se dá guiada por

um corpo vivo, coletivo e resiliente no momento em que se escreve. Observemos

dois trechos do poema “Maio 1964”:

Na leiteria a tarde se reparte

em iogurtes, coalhadas, copos

de leite

e no espelho meu rosto. São

quatro horas da tarde, em maio.

[...]

Estou aqui. O espelho

não guardará a marca deste rosto,

54

se simplesmente saio do lugar

ou se morro

se me matam.

Estou aqui e não estarei, um dia,

em parte alguma. (GULLAR, 1991a, p. 163-164)

Não é por acaso que se escolhe para começar a primeira estrofe uma

leiteria: é possível reconhecer uma referência ao poema de Carlos Drummond

de Andrade, “A morte do leiteiro” (1945, p.108). Neste poema, a relação entre

“leite” e “sangue” se dá a partir de dois processos de violência: a do trabalho do

leiteiro e a de seu assassinato. Ambas as situações se conectam e se misturam

ao fim do poema porque, obviamente, a relação que tecemos com a exploração

é um certo tipo de deterioração invisível. Leite e sangue no poema de Gullar

também vão por um caminho parecido, mas metaforizados de formas distintas:

o trabalho (a leiteria) reparte o tempo, mas o sangue, representado pelo corpo

ao olhar o espelho, não se reparte.

Como já vimos anteriormente, o corpo nessa fase do poeta não é abertura

para duplos. Nem mesmo o olhar para o espelho gera a duplicidade do eu: não,

é apenas seu rosto que se visualiza no tempo presente. O tempo também não

se duplica em memória: ele é repartido em um processo de produção do

trabalho: iogurtes, coalhadas, copos. Corpo e tempo estão profundamente

ancorados às quatro horas de uma tarde de maio de 1964.

O presente é tão latente que a morte cumpre o papel de afirmá-lo. O corpo

está vivo e resistindo no momento em que se luta e se escreve o poema. Quando

a morte vier e varrer o corpo, de nada adiantará o reflexo no espelho. Este

mesmo eu que olha de volta só é possível a partir da presença corporal do poeta.

A morte, portanto, dá a essência fundamental, o nascimento desse “aqui” e

desse “agora”. É uma compreensão dialética e marxista sobre o tempo:

É o tempo, o passar do tempo que não é hora, que não tem medida e que é apenas o processo da vida e da morte, indiferente aos fatos e ao sujeito. [...] Em seus primeiros livros de poesia, a morte a deterioração das coisas, do corpo e da linguagem eram inerentes à passagem do tempo. A morte, agora, é ponto de partida. (CAMENIETZKI, 2006a, p. 106-107)

55

O fim do poema de Drummond traz uma junção entre sangue e leite

derramados, conectados e formando uma outra coisa: uma aurora. Isso

representa o começo de algo. A morte do leiteiro gerará revolta? Trará

resistência? O nascimento da aurora aponta para uma continuação. Aurora traz

esperança. O poema de Gullar termina da seguinte forma:

Que importa, pois?

A luta comum me acende o sangue

E me bate no peito

Como o coice de uma lembrança. (GULLAR, 1991a, p. 164)

O olhar para o espelho e o futuro não importam. Não importam sua

individualidade nem pensamento em outro momento senão o agora. A

coletividade e a luta fazem seu corpo pulsar – é de fato um corpo tomado pela

política, pelo social. Seu sangue está acendido como a aurora no poema de

Drummond. E não é a memória que faz isso: mas seu coice. Ou seja, o que fica

do passado no presente: uma dor trilhada, construída. O que a lembrança larga

no corpo do Gullar nada mais é do que a compreensão de que o corpo está vivo,

e está vivo nesse momento. Nada mais fácil de nos trazer de encontro à vida do

que um coice no peito.

Essa construção e fixação da poesia em um tempo presente ancorado,

através de um corpo vivo, são novamente explicitadas no poema “No corpo”. Já

pelo título percebemos que algo está contido dentro de nossa corporeidade. O

corpo substitui o lugar da memória. Não falamos aqui de uma arte sensorial,

como criticou Gullar as ideias criativas de Lygia Clark e Helio Oiticica. Mas de

uma poesia que vem do mundo, do material. Em vez de memória, o corpo

carrega a simbologia do estar no mundo:

O corpo é também uma construção simbólica. [...] O corpo é aqui o lugar e o tempo no qual o mundo se torna homem, imerso na singularidade de sua história pessoal, numa espécie de húmus social e cultural de onde retira a simbólica da relação com os outros e com o mundo. (BRETON, 2012, p. 33-34)

56

O corpo é uma ocupação local e temporal, substituindo lembranças e

colocando-se dentro do local de trabalho e de luta política. Não traz, através de

sua comprovação, cheiros, dores, emoções. Ele já é isso tudo por si só: uma

muralha estática que resiste e está. Observemos o poema:

No Corpo

De que vale tentar reconstruir com palavras

O que o verão levou

Entre nuvens e risos

Junto com o jornal velho pelos ares

O sonho na boca, o incêndio na cama,

o apelo da noite

Agora são apenas esta

contração (este clarão)

do maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente. (GULLAR, 1991a, p. 204-205)

Assim como no poema anterior, em que o que resta das lembranças em

sua poesia é apenas um coice, ou seja, uma presença da ausência, na primeira

estrofe de “No corpo”, fica ainda mais claro o abandono de uma poética que

nasce de uma memória. As notícias passadas tampouco interessam, o que

ocorre agora é diretamente no corpo.

O sonho, o incêndio e o apelo, três palavras profundamente conectadas

à luta política e que, se realizadas em atos, passam a tornar-se acontecimentos

históricos, logo memória, neste poema são uma contração ou um clarão dentro

de uma parte do corpo. Tanto “contração” e “clarão” seriam sintomas de

assombro e estranhamento com o corpo em sua fase de escrita que veremos no

capítulo seguinte, mas não em sua poética do corpo envolvido com o social e a

política.

Contração é algo involuntário, independente de nossas vontades, assim

como um clarão, que nem sabemos de onde vem. Nesse poema, em vez de

espanto, há a comprovação natural de que “a poesia é o presente”. O que resta

57

para o poeta está inteiramente ligado ao corpo e sua existência no mundo no

momento exato da escrita.

Pensando a biografia do poeta, podemos levantar a questão de que talvez

esse abandono da memória e fixação pelo agora seja uma forma de Gullar

romper também com a forma que escrevia anteriormente. Não há uma retomada

de suas inquietações acerca da linguagem, da construção de um poema e de

suas formas possíveis. Sua escritura, nessa fase, é voltada completamente para

os problemas da realidade, e a realidade é extremamente imediatista.

O corpo-político, o corpo-coletivo, o corpo-muralha passam a ser a fonte

de sua criação poética. Em vez de memória, o agora; e o agora só pode ser lido

como um respirar corporal. O corpo não lembra, ele vive, o corpo não vê o local

de trabalho, ele é intrinsicamente esse lugar. A paisagem não é olhada, ela é

construída junto aos braços, bocas, mãos.

Esse abandono da memória também pode estar relacionado ao encontro

de Gullar com os ideais marxistas. A compreensão de que é o material que nos

define e define também nossa memória acompanha a ideia de que o corpo

substitui as lembranças e é ele que leva o poeta a escrever uma poesia que

pretende ser do povo:

A produção de ideias, de representações e da consciência está, no princípio, diretamente vinculada à atividade material e o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio espiritual entre os homens aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo ocorre com a produção espiritual, tal como aparece na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica, etc., de um povo. São os homens os produtores de suas representações, de suas ideias, etc., mas os homens reais e atuantes, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e das relações a eles correspondentes, até chegar às suas mais amplas formações. A consciência nunca pode ser outra coisa que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real. [...] Não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, nem do que são nas palavras, no pensamento, imaginação e representação dos outros para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se, sim, dos homens em sua atividade real, e, a partir de seu processo na vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo vital. (MARX e ENGELS, 2005, p. 51-52)

58

Logo, ao depararmo-nos com os poemas “Maio de 1964” e “No corpo”,

vemos como a atividade laborial e corporal ocupam esse local de falar o homem

e gerar a consciência a partir desse processo que ocorre na realidade. A

memória não está presente como fazer poético, mas ela é construída no

momento em que se escreve um poema. O que lemos, sim, é memória, mas não

o que se escreve. No primeiro poema, a leiteria; no segundo poema, o ranger do

maxilar. Ambos terminam com o nascimento do agora: o primeiro, através de um

coice e da luta incendiária; o segundo, trazendo a afirmação urgente de que a

poesia é o presente. Ambos partem do cotidiano, do corpo, do estar vivo para

construírem um pensamento corporal envolvido com o mundo. A simbologia da

poesia nasce desse contato direto com o que respira e nos toca.

No poema “Madrugada”, partimos de um local extremamente individual (o

próprio quarto) mesclado também à propriedade de um corpo para a percepção

sensitiva de um coletivo dolorido. O título já nos remete à solidão e ao silêncio e

diretamente ao verbo “madrugar”, de onde vem sua etimologia. Esse verbo é

comumente usado quando nos referimos ao ato de acordar muito cedo e ir

trabalhar. Está presente nesse título, portanto, uma mescla de individual

(pensando nas reflexões que o vazio de uma noite quase dia pode nos trazer)

com o trabalho coletivo (principalmente se a leitura desse poema estiver ligada

ao conteúdo dos outros poemas da obra em que está incluso):

Madrugada

Do fundo de meu quarto, do fundo

de meu corpo

clandestino

ouço (não vejo) ouço

crescer no osso e no músculo da noite

a noite

a noite ocidental obscenamente acesa

sobre meu país dividido em classes (GULLAR, 1991a, p. 206)

59

O uso repetido de “do fundo” nos leva a um forte contato com o que é da

terra, com o que é material e está enraizado de alguma forma em algum lugar.

Esse lugar, no caso, é o quarto e o corpo. O primeiro demonstra que sua

paisagem neste momento está restrita a um espaço de uso individual; o segundo

nos leva novamente à construção entre corpo e momento-agora, um presente

latente que nasce junto de uma construção corporal. Está, portanto,

profundamente só e refletindo seus pensamentos que surgem na madrugada.

Ao continuar a estrofe com o verso “clandestino”, que pode tanto estar se

referindo ao quarto quanto ao corpo, traz à poesia uma percepção de seu

período de exílio fora do Brasil. Há poemas nesse livro que foram escritos ainda

em seu país e outros já fora dele, quando perseguido político. Diferente de

“Homem Comum”, que é um poema que fala diretamente com o outro, partindo

de situações e condições empáticas, “Madrugada” apresenta uma imagem nova

se o compararmos com os demais poemas de Dentro da noite veloz

interpretados neste capítulo. Esse poema reflete o que significa estar exilado,

estar sozinho, preso a um chão que não é seu.

Mesmo se sentindo clandestino tanto em espaço quanto em

materialidade, não há, como já dito anteriormente, estranhamento com o corpo

ou formação de um duplo. Pelo contrário, é a partir dessa clandestinidade que é

possível o contato com o mundo exterior, ou seja, a volta para o que é coletivo.

Afirma que “não vê”, pois está ainda dentro de seu quarto longe de seu país,

onde temos uma gigantesca luta política em meio a uma ditadura militar. O Brasil

no momento em que escreve esse poema está inalcançável para sua visão. Essa

relação entre ouvir e não ver nos lembra o poema de Francisco Alvim, em seu

livro Elefante:

Quer ver?

Escuta (ALVIM, 2000, p. 76)

Com epígrafe de Murilo Mendes (“Nasci nu”) e com um poema abrindo o

livro que questiona “qual o real da poesia?”, Chico Alvim escreve uma obra que

60

se tensiona o tempo inteiro com o real, despindo-se do foco na linguagem para

um encontro com o cotidiano. Diferente de Gullar, que apresenta um viés político

militante em seus poemas, esse poeta disseca as situações do povo brasileiro

pela tangente. É necessário escutar o poema profundamente para enxergar as

imagens ali presentes, o que dificilmente fazemos quando nos deparamos com

o cotidiano do povo brasileiro. No poema de Gullar, ver está inalcançável,

primeiro pela questão de estar em outro país, segundo porque, assim como

Chico Alvim, traz a necessidade da escuta da poesia, ambos de forma corporal.

Esse chamado à compreensão do leitor (em Alvim) e à escrita do poeta (em

Gullar) se dá através de um ato de abertura do corpo.

Partindo do ato de ouvir, Gullar sai de dentro de seu quarto para o mundo

e de dentro do seu corpo para o corpo da noite. O lado de fora também se localiza

e se encorpora, uma vez que o sujeito se espaça, nessa busca por sair de seu

isolamento-clandestino ao encontro do ser político-coletivo:

Neste ponto de indistinção entre a consciência e o mundo, não se sabe mais onde se situa o sujeito. [...] Pode-se, portanto, falar de um verdadeiro espaçamento do sujeito. Em geral, a palavra espaçamento apresenta, sobretudo, uma conotação negativa: ela designa uma interrupção na continuidade espacial ou temporal, que dá lugar a intervalos cada vez mais longos, que podemos assimilar ao vazio. O espaçamento do sujeito designaria, pois, em um primeiro tempo, uma perda ou um desperdício de sua substância, uma fissura em sua suposta unidade, em sua coerência ou coesão: seria sinônimo de dispersão, quiçá de dissipação. Mas essa disseminação pode aparecer também como uma expansão. O espaçamento do sujeito reveste-se, então, de um valor positivo. Se ele o faz escapar do estatuto de uma substância sempre idêntica a si mesma, revela dele uma dimensão absolutamente outra: a do jato ou do projeto, que o faz ek-sistere fora de si. O espaçamento designaria, então, sua projeção no espaço como a própria condição de sua existência. Ao contrário de toda uma tradição filosófica, que vê nesse “ser-lançado” o risco de uma decadência, vejo nele também a chance que oferece ao sujeito de se cumprir paradoxalmente, a partir do momento em que se recusa a permanecer em si mesmo. (COLLOT, 2013, p. 29-31)

É justamente isso que acontece no poema de Gullar: um sair de si mesmo,

de seu corpo e de seu quarto, ocorrendo uma mescla com o corpo-noite. A noite-

outra que cresce no espaço-noite é a que cai em cima dos trabalhadores

madrugando para ir trabalhar. Está “obscenamente” acesa, pois é irônico que já

61

tão cedo acorde o povo trabalhador e também porque é uma paisagem que

cotidianamente se repete indiferente à dor do mundo.

Termina seu poema, que começa com um corpo isolado e exilado,

alcançando a coletividade de seu país, o Brasil, dividido em classes sociais. A

luta política e o ser coletivo são aqui retomados. Essa transição do individual

para o geral se dá no poema a partir do encontro com a paisagem e com a escuta

da poesia pelo seu corpo. Junto com os outros poemas do livro, novamente é

explicitada a corporeidade coletiva, sem a duplicação e o estranhamento com

seu “eu”. Na verdade, o “eu” em Dentro da noite veloz surge junto com um corpo

que passa por todas as mazelas que todos os corpos suportam, dentro de uma

sociedade injusta e exploratória.

3.2 – Poema Sujo: memória coletiva

Em um vídeo no youtube Ferreira Gullar afirma o seguinte: "E o Poema

sujo nasceu assim: como a última coisa que eu poderia escrever"9. Esse livro foi

escrito durante seu exílio do Brasil em Buenos Aires, sem saber muito bem como

se sucederia o processo político em andamento na Argentina e quando poderia

retornar à sua terra natal. Estava incerto sobre seu destino de poeta político,

poderia amanhecer morto ou preso, então esse poema nasce em um momento

de profunda incerteza sobre que fim levaria sua vida daquele momento em

diante. Falamos aqui, portanto, de um corpo completamente clandestino, mas

ligado aos processos históricos que ocorriam na América Latina.

Se havia certo tipo de lamentação por parte do poeta em relação aos

poemas políticos de Dentro da noite veloz, por não haver uma preocupação

voltada ao tratamento da linguagem, como se isso se opusesse ao seu

engajamento social, em Poema sujo, Gullar parece finalmente encontrar a

9 O vídeo foi gravado e produzido pela Companhia das Letras em 25 de outubro de 2016, com o título de “Ferreira Gullar conta como escreveu Poema sujo". Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=atJKqa_sNOk

62

síntese e o equilíbrio entre as duas coisas. Em sua Autobiografia poética fala a

respeito da produção desse poema:

Isso me levou a elaborar melhor os poemas dessa fase e mesmo a tentar criar uma linguagem poética de qualidade a partir do vocabulário que o tema político-social inevitavelmente implica. Iniciei, então, uma nova trilha poética, que desembocou, em 1975, no Poema Sujo. De algum modo, procurei realizar uma espécie de alquimia vocabular entre palavras naturalmente poéticas e outras antipoéticas, ou não poéticas, como nomes de empresas internacionais que simbolizavam o capitalismo. (GULLAR, 2015, p. 58)

Poema sujo é, em sua maior parte, um poema em versos. Mas há toda

uma preocupação, assim como vimos em Crime na flora, sobre o uso de espaços

vazios na página e, além disso, momentos em que o texto se torna um poema

em prosa, incluindo diálogos, imitação de sons e alguns traços do

neoconcretismo. Apesar disso, não é o experimentalismo que dita o tom deste

livro, mas uma busca em relação ao processo vivido, com forte presença da

memória própria e da memória em relação ao outro, e um amadurecimento

acerca de seu fazer poético, juntando todas as fases da produção do poeta até

agora e formando um novo ser constituído de retalhos.

Diferente de Dentro da noite veloz, em que o tema da memória e seu

resgate é deixado de lado, pois há um contato direto com um corpo que vive o

agora como compreensão da realidade à sua volta, Poema sujo traz, a todo

tempo, as impressões que Gullar teve ao longo de sua vida no Maranhão. O que

resta para um poeta que está longe de seu povo e de sua história é convocar o

passado como tentativa de existir no momento atual. O resgate da memória,

ainda assim, se dá através de um processo corporal. Escreve-se com o corpo,

muito além das palavras:

tua gengiva igual a tua bucetinha que parecia sorrir entre as folhas de

banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta como

uma boca do corpo (não como a tua boca de palavras) como uma

entrada para (GULLAR, 1991b, p. 219)

63

A boca que fala o texto é o corpo inteiro. Os fragmentos relembrados ao

longo do livro, histórias de pessoas trabalhadoras e suas dores, contadas a partir

dos rastros das lembranças do poeta sempre surgem do material: a exploração,

a pobreza, o trabalho cotidiano, e também acerca da relação com a paisagem à

sua volta, que se diferencia do apenas “ser” da natureza. A memória é, portanto,

a possibilidade que tem, nesse momento, de permitir o corpo dizer. A poesia

deixa de ser o agora e se torna um retorno. É a forma que o poeta encontra de

tentar se aproximar da dura realidade que enfrenta, apesar de que toda memória

é, por si só, já uma invenção e um distanciamento daquilo que somos no

momento em que tentamos revivê-la:

O Poema sujo é escrito após uma sucessão de derrotas e perdas. Visto por esse ângulo, ou seja, como uma resposta necessária a uma experiência dramática, composta de tantos episódios emocionantes, o poema é o retorno à infância e à juventude de São Luís, uma viagem de volta à vida, com os amigos à beira da praia e o céu imensamente azul. [...] Um presente que não oferece nenhuma perspectiva de futuro o lançaria numa volta ao passado. [...] A memória recupera momentos, reconstrói destinos, mas não reproduz a realidade. O sujeito, ao lembrar, recolhe fragmentos. [...] Recordar é reconstruir o passado pelas experiências do presente, reescrevê-lo a partir da consciência adquirida no presente. Reconstruir os fatos tal como ocorreram é uma impossibilidade para o sujeito que lembra, assim como o é para o historiador. (CAMENIETZKI, 2006a, p. 127-128)

Memória é corpo e lugar. Gullar faz o retorno ao passado trazendo suas

percepções visuais, olfativas, de toque e até mesmo auditivas (há um trecho em

que fala diretamente com o leitor para acompanhar o poema escutando uma

música de Villa-Lobos). No poema “No corpo”, que interpretamos anteriormente,

Gullar mostra o que resta da memória no presente: uma contração do maxilar

dentro do rosto. No trecho citado acima de “Poema Sujo”, vimos como a boca

ocupa esse lugar de fala, não através das palavras, mas sendo o corpo nossa

possibilidade no mundo de expressão. “No corpo” traz também a mesma parte

do corpo para representar o que resta da memória. Apesar de afirmar que “a

poesia é o presente”, existe uma contração, um movimento que fica ali guardado.

Tendo a possibilidade de se vivenciar o agora, nasceram os poemas de

Dentro da noite veloz. Mesmo em “Madrugada”, já exilado, ainda há essa busca

por ouvir o tempo no momento em que se escreve, mas já se apresenta um

64

pouco do ritual memorialístico que evidenciamos em Poema sujo: o que se

escreve vem do fundo – do quarto e do corpo. Escrito dentro de seu apartamento

em Buenos Aires, é um poema que nasce das profundezas, vem das imagens e

percepções abandonadas. Retomá-las só pode se dar através de processos

forçados, como bem afirmou Gullar na citação no início deste capítulo, como um

vômito.

O título de Poema sujo carrega consigo um significado tanto em relação

à realidade quanto à linguagem. Pensar em sujeira nos remete às péssimas

condições de vida a que o povo brasileiro é submetido, principalmente no

Nordeste. Além disso, todo corpo apodrece, e sendo uma poesia corporal

carrega consigo esse possível apodrecimento. É sujo também quando

pensamos pelo viés do poema “A bomba suja”, introduzindo a palavra diarreia.

A linguagem é suja pelo real, o poema carrega consigo a sujeira das memórias

do poeta. É como se o poema tivesse sido mergulhado em um balde de água

contaminada e depois arrancado dali e colocado no sol para secar:

O poema é antes de tudo impuro e sujo de todas as marcas que a vida traz, seja nas reminiscências do poeta ou na luta política do militante. E, do ponto de vista ético, filosófico, estético, é a síntese do que representam as longas buscas do poeta: sujo de antipoesia, sujo pelas contradições políticas que encerra, sujo pelos debates filosóficos que expressa, sujo porque toda pretensão à pureza é antes de tudo ilusória e mistificadora. (CAMENIETZKI, 2006a, p.135)

Pensando a ideia de um poema sujo porque o corpo apodrece, há

diversas menções, assim como em Crime na flora, à cor azul. Como vimos no

capítulo anterior, usar dessa cor para definir um corpo é ter um corpo que morre

e sufoca. No caso de Poema sujo, um corpo que apodrece. Observemos dois

trechos do poema em que a cor azul está presente:

um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas

azul

era o gato

azul

era o galo

azul

65

o cavalo

azul

teu cu (GULLAR, 1991b, p. 218)

um rio não apodrece do mesmo modo que uma perna

- ainda que ambos fiquem

com a pele um tanto azulada –

nem do mesmo modo que um jardim

(pelo menos em nossa cidade

Sob o demorado relâmpago do verão) (GULLAR, 1991b, p. 246)

Ao longo do poema, existe um questionamento acerca da relação que a

natureza/animais exerce com a paisagem, diferenciando a relação da mesma

paisagem com o ser humano, ser social. No primeiro trecho apresentado, os

animais eram azuis, mas também uma parte do corpo do homem é associado

com essa cor, através do direcionamento com o outro: “teu”. “Cu” é uma palavra

que choca, e é introduzida logo no início de Poema sujo. Pode ser lido tanto

quanto uma parte que ejeta o que resta dos alimentos, que não são utilizados,

associado a algo sujo como também a uma porta para a realização do prazer. O

corpo dos animais também se deteriora, mas eles não têm a noção que temos

sobre isso. Sabemos que iremos apodrecer, reconhecemos o azul.

No segundo trecho, Gullar deixa mais explícita essa questão sobre serem

diferentes as formas de deterioração da natureza e de nós mesmos enquanto

seres sociais. O uso de rio e não de outra representação de um elemento da

natureza nos remete diretamente à ideia de passagem do tempo, de algo que

flui e que irá, algum dia, chegar necessariamente às portas da morte:

O destino das imagens da água segue com muita exatidão o destino do devaneio principal que é o devaneio da morte. [...] Toda água viva é uma água cujo destino é entorpecer-se, tornar-se pesada. Toda água viva é uma água que está a ponto de morrer. (BACHELARD, 2013, p. 49)

A forma de apodrecer de um corpo é necessariamente percebida pelo

corpo que apodrece. Por isso um rio ou um jardim se deterioram diferente de

uma perna. Além disso, “a cidade não está no homem/ do mesmo modo que em

66

suas/ quitandas praças e ruas” (GULLAR, 1991b, p. 274), ou seja, a paisagem,

seja ela natural ou construída, não sofre o peso do tempo da mesma forma como

nosso corpo. A cor azul pode estar presente em tudo, mas é no homem que

encontra significado, através da criação mesma do poema. Mais uma vez o peso

da memória aparece, pois só é possível o questionamento sobre o passar do

tempo através de uma perspectiva do que já passou. Retomar o passado é

sempre uma forma de constatar a morte.

Essa aproximação com a morte se dá justamente no momento de tensão

em que se encontra o poeta ao escrever Poema sujo. É um corpo clandestino

que se aproxima da incerteza da vida e isso acaba se refletindo também em seu

fazer poético, diferente de Dentro da noite veloz, onde a proximidade da morte

não encontrava espaço dentro do contato direto com a luta social e política.

No começo do poema, refere-se a “uma menina” que não sabe nomear:

“te chamo aurora/ te chamo água” (GULLAR, 1991b, p. 221). Se pensarmos

novamente o poema de Drummond, “A morte do leiteiro”, em que aurora

representa um novo dia, uma possível resistência, no poema de Gullar podemos

ter uma leitura que se aproxima: aurora e água – a primeira, a possibilidade do

novo; a segunda, a aproximação da morte, mas também um tempo que flui.

Essa “inominável” menina acompanha o poeta e “perdeu-se na confusão

de tanta noite e tanto dia/ perdeu-se na profusão das coisas acontecidas”

(GULLAR, 1991b, p. 219). Também “mudou de cara e cabelos mudou de olhos

e risos mudou de casa/ e de tempo: mas está comigo está” (p. 219). Essa menina

são duas: a poesia e a luta política, que, para Gullar, são uma coisa só. Ela está

perdida, sim, nesse seu novo fazer poético, principalmente pela retomada da

memória e, por isso, está diferente e transformada – agora é aurora e água,

quando antes era o presente, o momento agora. Apesar disso tudo, ela ainda

está caminhando junto do poeta.

Podemos observar uma conexão com o poema “Madrugada”, que

aprofunda o sentimento de exílio do poeta e afirma mais claramente a

interpretação apresentada aqui logo antes sobre essa menina inominável ser a

escrita e sua luta política, a quem ele se refere diretamente, como em uma

conversa:

67

E também rastejais comigo

pelos túneis das noites clandestinas

sob o céu constelado do país

entre fulgor e lepra

debaixo dos lençóis de lama e de terror

vos esgueirais comigo, mesas velhas,

armários obsoletos gavetas perfumadas de passado,

dobrais comigo as esquinas do susto

e esperais esperais

que o dia venha (GULLAR, 1991b, p. 221)

Ao contrário de “Madrugada”, em que o corpo do poeta se expande

através do ato de ouvir, podendo se amplificar até a luta de classes de seu país,

nesse trecho de Poema sujo, o corpo está enclausurado, portanto assim também

está sua poesia. Os verbos “rastejar” e “esgueirar” dão essa sensação de

enclausuramento. Ele não está mais “no fundo de seu quarto”, lugar, mesmo que

em exílio, de familiaridade. Está em túneis e embaixo de lençóis sujos e que o

levam a ter medo. Mesmo em sua cama, a sensação de incerteza é gigantesca.

Não há lugar familiar.

O ato de “esgueirar”, porém, apesar de ser uma resposta a esconder-se

do corpo, é uma possível solução para fugir de alguma coisa ou para passar

despercebido. É o que resta a Gullar nesse momento: acessar a memória

mesmo em túneis e sob lençóis sujos. Referencia-se à memória através de

objetos que representam o passar do tempo e que, apesar de obsoletos, são o

seu acesso direto à sobrevivência enquanto espera que o dia venha. Não há

informações se Gullar teve acesso à música de Chico Buarque, “Apesar de

você”, de 1978, durante a escrita desse poema, mas essa espera pelo dia diante

do céu estrelado remete-nos diretamente aos versos da canção: “Apesar de

você/ Amanhã há de ser/ Outro dia/ Você vai ter que ver /A manhã renascer/ E

esbanjar poesia.”

Assim como em “Homem comum”, em que o corpo aparece como uma

muralha e que se inicia com os versos “Sou um homem comum/ de carne e de

68

memória/ de osso e esquecimento” (GULLAR, 1991a, p. 161), em Poema sujo o

corpo é também um símbolo de resistência:

Do corpo. Mas que é o corpo?

Meu corpo feito de carne e de osso.

Esse osso que não vejo, maxilares, costelas,

flexível armação que me sustenta no espaço

que não me deixa desabar como um saco

vazio

que guarda as vísceras todas

funcionando

como retortas e tubos

fazendo o sangue que faz a carne e o pensamento

e as palavras

e as mentiras (GULLAR, 1991b, p. 223)

O corpo representa o sustentáculo do poeta no mundo. É o que o faz

permanecer em pé, é de onde vem a força para continuar vivo e lutando. É

também de onde emana sua poesia. Ao se questionar sobre o que é isso que é

o corpo, não se assusta ou se espanta com uma possível separação entre

consciência e carne, pelo contrário, o corpo funciona como parte fundamental do

todo que é o poeta: carne, osso, sangue, pensamento, palavras, mentiras.

Novamente a influência marxista aparece na poesia do Gullar: é através do

material que definimos nossa consciência, e não o contrário.

É a partir da sensação corporal que sua luta política, sua memória e sua

escrita encontram lugares possíveis de manifestação. De fato, tudo que nos resta

quando não temos mais nada somos nós mesmos, e esse “mesmo”, essa noção

tão viva de existirmos vem de nossa visão, de nosso tato, de nossa escuta e,

quando possível, de nossa fala. Apesar de isolado e fugitivo, o poeta ainda pode

falar, ainda tem um corpo que se expande.

Devido ao seu exílio na Argentina, país latino-americano fomentador de

lutas na época e ainda hoje, ao retornar às suas memórias nordestinas e à luta

política e social em que estava envolvido, o corpo de Gullar também tomou uma

face identitária. Coletivo que é, sente-se parte de um todo. O contato com o

69

outro, seus iguais, latino-americanos, trabalhadores, nordestinos, militantes, leva

a essa compreensão de um corpo que grita e que compõe uma muralha junto

com outros corpos. Observemos alguns trechos:

Mas sobretudo meu

corpo

nordestino

mais que isso

maranhense

mais que isso

sanluisense

[...]

combatente clandestino aliado da classe operária

meu coração de menino. (GULLAR, 1991b, p.

226)

[...]

um às minhas costas com o outro

diante dos olhos

vazando um no outro

através de meu corpo

dias que se vazam agora em pleno coração

de Buenos Aires (p. 235)

[...]

das trevas que já não sei

se são tuas se são minhas

mas nalgum ponto do corpo (do teu? do meu

corpo?) (p. 259)

A alteridade cumpre um papel fundamental nesse corpo que aparece em

Poema sujo, não no sentido de duplicar a noção do eu em outro, mas

compreendendo que esse corpo que fala é formado pela experiência com outros

70

corpos. Por isso a identidade de Gullar no primeiro trecho vai se moldando e se

expandido a partir de um processo de cachoeira: parte do indivíduo e da noção

de corpo próprio até chegar a uma noção de pertencimento a um lugar e a um

grupo. Logo depois, deixa mais clara ainda sua ideia de pertencimento: escolheu

o lado em que está inserido na luta de classes – e é o lado do operariado, do

trabalhador.

No segundo trecho, o verbo “vazar” nos remete novamente à noção de

água, do tempo a que um corpo está preso, sua compreensão de passar do

tempo e aproximação da morte. O local Buenos Aires nos traz de volta ao

momento em que o poema foi escrito, conectando a memória com o presente do

poeta. O corpo, nesse trecho, conecta o Gullar lembrado e já encontrado

identitariamente com o Gullar do tempo presente, exilado.

No último trecho, a noção de sujeito se dispersa, uma vez que as “trevas”

são coletivas. Ou seja, a dor que sente, sua resistência, seu isolamento, suas

memórias, nada disso é só seu. São muitos corpos existentes e resistentes que

geram a escrita de Poema sujo:

Dessa forma, a relação do corpo ultrapassa o campo do visível. A reversibilidade dessa carne que vê e toca ultrapassa, alarga-se no campo do visível, pois a corporeidade não é toda a carne, nem todo o corpo. O corpo, que já não me pertence mais, faz parte do mundo já falado. Por isso o sentiente está diante de um mundo sensível, ligado à outra visão, porque o que a experiência pode nos ensinar já está no mundo dos fenômenos, em uma profundidade inesgotável. Os fenômenos tornam possível uma abertura a outras visões, além da minha visão. Por isso o corpo é essa porosidade aberta ao mundo falado, aberta ao sentiente e ao sensível. Aberta aos fenômenos. [...] É como extrair do corpo tudo aquilo que ele mesmo nos ensina. Uma espécie de êxtase da experiência perceptiva. O corpo – meu corpo – visto como um dos objetos do mundo. A história – minha história – como resultado de um lugar objetivo de onde engendra uma projeção para a fala falante. Em atividade, viva, falante, a fala falante possibilita a operacionalidade do corpo como objeto atravessado pela alienação das relações sociais; possibilita ter seu desejo e sua maneira de pensar moldado pelo outro. Uma identificação como modelo. (BIANCHI, 2013, p.196-199)

É, portanto, um corpo que não pertence só a si mesmo. Através de seu

contato com o outro, com a coletividade, torna-se parte integrante do mundo.

Isso faz todo sentido quando retomamos a ideia de Breton aqui apresentada

sobre a representação do corpo em sociedades mais comunitárias. O corpo-

71

sujeito é corpo-coletivo, a noção de identidade se dá através da alteridade. No

caso de Gullar, da luta política, da classe trabalhadora, do Nordeste, do Brasil,

dos países latino-americanos.

Essa noção corporal coletiva gera uma poesia que conversa com o leitor,

que, partindo das experiências vividas dentro de situações já conhecidas por

muitos, gera em nós também um processo identitário. Emocionar-se, ao ler

Poema sujo, faz também parte de uma construção de nosso corpo enquanto

parte desse poema. Impossível não pensar na atual situação política do Brasil

ao interpretar esse livro e relacionar nossa vida cotidiana às memórias do poeta.

Esse poema, como colocado na citação de Márcia Bianchi, é uma forma de pegar

nossa história e dar-lhe voz. É necessário sujar a poesia muitas vezes para que

o invisível ganhe forma e a luta continue.

72

4. Corpo despróprio e intruso

Há dois versos de um poema de Mário Quintana que dizem o seguinte:

“Olho minhas mãos: elas só não são estranhas/ Porque são minhas. Mas é tão

esquisito distendê-las” (1994, p. 142). Somos familiares a nosso corpo, esse

punhado de carne, células vivas e ossos onde habitamos (ou fazemos parte da

própria habitação, da própria construção da casa, podemos nos reconhecer

como um ou como outro, quem sabe vários), mas o que é essa distensão que

nos leva ao estranhamento, que transforma a familiaridade em um momento de

encontro com o que é esquisito?

Acordamos com fome. Ou o corpo está faminto, e atendemos suas

necessidades básicas. Somos nós que temos fome, ou é algo que grita dentro

de nós? Algo que, conforme o passar do tempo e o ciclo sempre igual dos dias,

pede comida, cuja mastigação e ingestão é feita por dentes, saliva, processo de

engolir, e depois uma digestão já automatizada pelo estômago.

O último livro de Ferreira Gullar, Em alguma parte alguma, lançado em

2010, diferente do que foi visto no capítulo anterior, traz uma poesia em que o

corpo é apresentado como um estranho ao que chamamos de “eu” no sentido

de consciência e estar no mundo. Como nos versos de Mário Quintana, há uma

esquisitice percebida no processo de distensão desse corpo. Nos poemas de

Gullar que serão analisados neste capítulo, o espanto corporal é a fonte do

nascimento de sua escrita e também do surgimento de duplos.

Esse livro tem seu foco na filosofia e na metapoesia. Não há rastros do

poeta político que Ferreira Gullar havia sido outrora. Há cachoeiras de

questionamentos sobre a vida, a existência, a arte, o universo. Isso acaba se

refletindo em sua forma de enxergar o corpo. Antes, era um corpo coletivo e que

resistia; agora, um corpo estranho, que gera desdobramentos e espantos.

Pensar o processo político que o mundo vivenciava após a queda da

União Soviética é importante para compreender a mudança de visão de Ferreira

Gullar enquanto pessoa e poeta. Na década de 90, o socialismo/comunismo foi

73

dado como vencido na história. As classes dominantes, através das mídias e das

instituições, fizeram uma grandiosa campanha de que o capitalismo havia

vencido e o comunismo era uma ideia superada. Isso influenciou não só

pessoas, mas diversos partidos políticos, uniões sindicais e formas de se

enxergar a luta política. Hoje em dia, a maior parte dos jovens carrega a visão

de que a única possibilidade de mudança é por dentro do sistema capitalista,

transformando-o em mais humanitário.

É a partir dessa década que as saídas individuais ganham uma grande

força, em contraponto a todos os anos de luta coletiva anteriores e sonhos por

uma sociedade diferente. Uma mudança tão radical em relação a como se

enxergaria a realidade e como funcionaríamos no mundo obviamente se refletiria

também em nossa forma de lidar com o corpo, de entendê-lo. Apesar de, para a

sociologia, o modo de enxergar o corpo como um outro, um estrangeiro, seja

muito mais antigo à queda da União Soviética, é inegável que a força ideológica

comunista tenha feito com que gerações enxergassem suas relações e as

vivenciassem de forma coletiva, como vimos nos poemas de Gullar em sua fase

política. Porém, sem uma âncora ideológica que se encaminhasse para um corpo

comunitário, o individualismo toma conta e abraça nossa concepção corporal:

Uma nova sensibilidade individualista nascente foi necessária para que o corpo fosse visto como algo separado do mundo que o acolhe e dá significação e separado também do homem ao qual dá forma. Na maior parte das investigações, a concepção moderna do corpo é a que serviu de marco inicial para a sociologia, nascida na passagem do século XVI para o século XVII. Essa concepção implica que o homem esteja separado do cosmo (não é mais o macrocosmo que explica a carne, mas uma anatomia e uma fisiologia que só existe no corpo), separado dos outros (passagem do tipo de sociedade comunitária para a sociedade de tipo individualista onde o corpo encontra-se na fronteira da pessoa) e, finalmente, separado de si mesmo (o corpo é entendido como diferente do homem). (BRETON, 2017, p. 27)

Além da mudança em sua vida política, outro ponto importante a ser

destacado é que esse livro foi escrito por um Ferreira Gullar já idoso. Com cerca

de 80 anos e depois de um hiato de escrita, o poeta retoma sua atividade poética.

Vivemos um uma sociedade que valoriza a juventude e um corpo com “boa

aparência”. As mulheres são as que mais sofrem com a pressão para se

74

manterem sempre jovens e dentro do padrão de beleza, mas o peso dos anos

recai sobre todos os seres humanos. O corpo, dentro de uma sociedade

individualista, é nosso limite com o outro, mas, além disso, pode tornar-se, em

vez de uma muralha resistente, um peso e uma armadilha para nós mesmos

devido à força do passar do tempo.

Por essa razão, a estranheza, dada tanto por uma limitação física quanto

por uma proximidade da morte, pode gerar essa cisão entre consciência e

corporeidade. No poema de Adélia Prado, “Humano,” escrito pela poeta com

seus quase 80 anos, observamos também esse desdobramento do eu em dois

a partir do que podemos ler como uma certa fadiga corporal: “A alma se

desespera/ mas o corpo é humilde; ainda que demore, /mesmo que não coma,

/dorme” (2013, p. 19). Essa humildade do corpo é admitir que ele é deteriorável,

cansável, tem prazo. Por outro lado, a alma, nossa consciência, não adormece

nunca, está sempre em estado de produção:

Pensamos o corpo em oposição à mente, o velho em oposição ao novo, o idoso ao jovem, o gordo ao magro, a cultura se contrapondo à natureza, e o corpo conhecido em oposição ao corpo vivido. A mentalidade dualista penetrou tanto no ensino católico como protestante, com isto justifica-se que tenha se evidenciado durante séculos e que permaneça até os dias de hoje. A freqüente alusão à mente jovem e corpo velho é a comprovação da dissociação entre ambos, o que inviabiliza a compreensão da unidade do ser humano. Inclusive eqüivale a pensar o corpo como objeto, como algo fora de si. Se por um lado essa mentalidade dualista permite justificar que a pessoa não se sinta velha mentalmente, espiritualmente, apesar de reconhecer que o corpo está velho, por outro, pode revelar uma forma preconceituosa de conceber a velhice. (BLESSMANN, 2014, p. 24)

Essa quebra da unidade do ser humano relacionada à velhice também é

levantada por Otto Rank, em seu livro O duplo, quando analisa a obra de Oscar

Wilde, O Retrato de Dorian Gray (1980, p. 278)10. O personagem Dorian não

envelhece, ao passo que sua pintura vai ganhando o peso da idade e de seus

comportamentos imorais. O duplo se materializa em uma obra de arte. O quadro

carrega consigo também o passado e as memórias de Dorian. No caso desse

personagem, conviver com isso foi insuportável ao ponto de destruir seu duplo

10 A versão aqui utilizada é de um livro em formato de e-book, acessado pelo Kindle, então a paginação se dá pelo modelo de “posição”.

75

fisicamente. Gullar, por outro lado, apresenta o desdobramento como uma

espécie de reflexão, como podemos observar no poema “O duplo”:

Foi-se formando

a meu lado

um outro

que é mais Gullar do que eu

que se apossou do que vi

do que fiz

do que era meu

e pelo país

flutua

livre da morte

e do morto

pelas ruas da cidade

vejo-o passar

com meu rosto

mas sem o peso

do corpo

que sou eu

culpado e pouco (GULLAR, 2010, p.38)

Nesse poema, assim como o que ocorre com Dorian Gray, o duplo angaria

as memórias e os feitos passados. A diferença é que este outro não detém para

si o envelhecimento, como acontece na pintura. Comparando com o poema de

Adélia Prado, o corpo de Ferreira Gullar tem um peso, ao passo que no poema

da escritora o corpo dorme. O outro, o duplo, tem o poder de guardar os feitos

da consciência. Ao contrário do corpo pesado, flutua pelas ruas.

Se pensarmos no poema “Traduzir-se” (1991c, p. 309), que Ferreira Gullar

escreveu muitos anos antes, podemos observar uma grande diferença em

relação a esse poema de seu último livro. Ambos carregam consigo a marca da

76

duplicação do eu, visto que essa questão sempre perpassou a obra do poeta.

“Traduzir-se” não trata do limiar com a morte, o duplo que ali surge é entre o

mundo material, ainda conectado ao passado político do escritor, e suas

reflexões acerca do fazer poético e da estética: “Uma parte de mim/ é multidão:/

outra parte estranheza/ e solidão. [...] Traduzir uma parte / na outra parte/ - que

é uma questão/ de vida ou morte - / será arte?”

Em “O duplo”, por outro lado, a relação com o corpo é fundamental para

a duplicação do poeta: a corporeidade cumpre um papel de algo pesado, que

limita as possibilidades. Pensando a citação de Blessmann, podemos

compreender como a velhice exerce também em nós uma forma diferente de

enxergar o corpo. Ao passo que em “Traduzir-se” não há referência a um corpo

limitador, neste poema o corpo é o “pouco” que resta de Gullar, aquilo que está

com ele todos os dias em oposição ao outro que é “mais Gullar” do que ele

próprio.

Em seu livro, Em alguma parte alguma, a questão dos possíveis

desdobramentos e traduções do “eu”, o olhar para o próprio corpo como um outro

e a súbita aparição do que é estranho a nós e antes passava despercebido e

natural são temas que se reconhecem e reaparecem se complementando. Este

choque que é olhar para o corpo dito próprio, e perceber que talvez nós é que

sejamos próprios a ele (ou que não haja pertencimento algum em absoluto).

Apresentaremos aqui reflexões sobre essa forma de duplicação em

Ferreira Gullar, a partir da corporeidade, mas, como já vimos nos capítulos

anteriores, esse poeta apresenta uma grandiosidade de possibilidades de

enxergar tanto o corpo quanto o contato com o outro, seja ele duplicado de si

mesmo ou ligado à linguagem ou ao coletivo:

E poesia, sempre, em busca do outro, ou melhor, de muitos outros: o outro que habita o eu, ou seja, a porção desconhecida e indomada de cada um de nós mesmos; o outro como protagonista do poema, no discurso solidário que se abre transitivamente para a aceitação do “ele” no universo anti-solipsista do “eu”; e o outro como leitor/interlocutor, na medida em que, para Gullar qualidade e comunicabilidade não são fatores excludentes. (SECHIN, 2003, p. 206)

77

4.1 – Em alguma parte alguma: corpo próprio corpo

Se no capítulo anterior observamos o corpo como uma forma de

reconhecimento, resistência e luta, e a leitura do eu se dá conectada com a carne

e os ossos (“Sou um homem comum/ de carne e de memória / de osso e

esquecimento” (1991a, p.161), no livro Em alguma parte alguma a percepção de

uma parte do corpo como o osso é razão de susto e estranhamento, formando

uma cachoeira de perguntas e reflexões acerca de um corpo próprio.

Observemos o poema “Reflexão sobre o osso da minha perna”:

A parte mais durável de mim

são os ossos

e a mais dura também

como, por exemplo, este osso

da perna

que apalpo

sob a macia cobertura

ativa

de carne e pele

que o veste e inteiro

me reveste

dos pés à cabeça

esta vestimenta

fugaz e viva

sim, este osso

a mais dura parte de mim

dura mais do que tudo o que ouço

e penso

mais do que tudo o que invento

e minto

este osso

dito perônio

é, sim,

78

a parte mais mineral

e obscura

de mim

já que à pele

e à carne

irrigam-nas o sonho e a loucura

têm, creio eu,

algo de transparente

e dócil

tendem a solver-se

a esvanecer-se

para deixar no pó da terra

o osso

o fóssil

futura

peça de museu

o osso

este osso

(a parte de mim

mais dura

e a que mais dura)

é a que menos sou eu? (2010, p. 31)

O estranhamento com o osso acontece no momento em que o poeta

percebe que um dia morrerá, mas seus ossos permanecerão. É sua parte mais

“durável”. Dura mais que tudo, até mesmo que esse eu que se questiona agora

sobre os ossos. Como podem os ossos serem nossos, serem próprios, se,

mesmo após o apagamento de nós mesmos enunciantes e também enunciados,

eles permanecerão? Neste poema, também os ossos duram mais do que tudo

que ouve e pensa e até mesmo mais do que a própria arte que produz: “mais do

que tudo que invento/ e minto".

O osso dura, mas não a carne, a pele: “fugaz e viva”; tampouco a

consciência. Ele é a parte que representa a aproximação com a morte e o que

79

restará após alcançá-la. Além da dicotomia que vimos em Blessmann, entre

corpo e mente, há aqui um terceiro elemento que é o osso. O corpo se deteriora;

a consciência é a parte que surge e desaparece, sempre viva, sempre jovem, se

renovando sempre sem o peso do tempo; e o osso é não só a parte que

permanecerá se desconectando da carne e do eu, mas também a que traz a

certeza de que haverá a morte.

O título do poema é uma reflexão. É a busca pelo sentido da pergunta

feita por Nancy no início de seu livro Corpus: “O que é isto que é o corpo?” No

caso de Ferreira Gullar, o que é isto que é o osso? De tão distante de si, nem

afirma que lhe pertence, mas pertence à sua perna. Como tentar explicar esse

estranhamento com osso, que permanecerá independente de o eu estar vivo ou

não? A escritura, a poesia podem cumprir esse papel de busca. Mas talvez seja

apenas uma forma de confessar o que já sabe, e permanecer sempre nessa

dúvida:

Escrita não quer dizer mostrar, ou demonstrar uma significação. Mas indica um gesto para tocar no sentido.[...] O seu próprio toque - que é deveras o seu - é-lhe por princípio retirado, espaçado, apartado. E é isso a escrita: que o contacto estranho advenha, e que o estranho permaneça estranho no contacto.[...] Escrever endereça-se assim. Escrever é o pensamento endereçado, enviado ao corpo – àquilo que o aparta, àquilo que o estranha.[...] Já que é a partir do meu corpo que eu estou endereçado ao meu corpo[...] É a partir do meu corpo que tenho o meu corpo como algo que me é estrangeiro, expropriado. (NANCY, 2010, p. 18-19)

O poeta “apalpa” a perna. Ou seja, tenta reconhecer através do tato, da

escrita, este corpo, este osso que se diferencia tanto de quem ele é. Mas esse

toque é espaçado, como disse Nancy na citação, e o osso torna-se estrangeiro

a partir desse próprio endereçamento.

Por outro lado, reflexão também pode ser o reflexo do eu enunciante

quando olha o osso. O reconhecimento de si, nele. Reflexo, porém, é outra coisa

que não mais nós mesmos. Até o tempo em que nos olhamos no espelho difere

do eu que olha para o eu que é olhado – a luz demora um tanto de tempo para

ser transportada e recriar uma imagem.

Um osso é tão distante de nós que o associamos sempre à morte. Ao

contrário da veia, que transporta a vida dentro do corpo, o osso é o que resta,

80

mesmo quando o corpo apodrece. O osso é o “fóssil”, o que há de mais primitivo,

que ultrapassa a própria consciência. Ele também é, na verdade, o que supera

a morte. É o que de nós ainda fica no mundo. “Este osso/ dito perônio/ é, sim,/ a

parte mais mineral/ e obscura/de mim” - como explicar um osso? Tem vida

própria quando existe sem nós?

O poema termina com a pergunta: “o osso/ este osso/ (a parte de mim/

mais dura/ e a que mais dura)/é a que menos sou eu?” Há um espanto a partir

de algo que lhe é familiar. No poema, esse susto só é possível a partir da própria

reflexão, da consciência, da escrita. É esse processo de consciência, talvez

superefêmero, sobre um eu que enuncia e uma parte de si que é outra – o osso.

O desdobramento de um duplo, justamente ao caminho da morte: o osso irá

durar, será peça de museu, enquanto o eu que enuncia já não mais existirá.

O osso é o que permanece após a morte do eu enunciante, e não é a

poesia também isso que permanece? Ao escrevermos um poema, já não

encontramos mais em nós o que transportamos para ali, é uma duplicação, uma

tentativa de alcançar o sentido. No fazer poético, apalpamos a poesia, mas há

essa carne e essa pele entre nós e ela. Há um eu que fica e um eu que vai. Ao

escrever, a poesia é o que menos somos?

A PROPÓSITO DO NADA

sou

para o outro

este corpo esta

voz

sou o que digo

e faço

enquanto passo

mas

para mim

só sou

se penso que sou

enfim

se sou

81

a consciência

de mim

e quando

vinda a morte

ela se apague

serei o que alguém acaso

salve

do olvido

já que

para mim

(lume apagado)

nunca terei existido (2010, p.69)

Em seu poema “A propósito do nada”, Gullar tece a relação entre corpo e

alteridade e corpo e desdobramento. Alteridade no momento em que delimita,

como Breton já sugere na Sociologia do corpo, o contato com o outro, seja no

plano físico como no do fazer poético, através do limite do próprio corpo:

o corpo é o elemento que interrompe, o elemento que marca os limites da pessoa, isto é, lá onde começa e acaba a presença do indivíduo. O corpo funciona como se fosse uma fronteira viva para delimitar, em relação aos outros, a soberania da pessoa. (BRETON, 2017, p. 30)

Essa delimitação, no poema de Gullar, se dá através de seu corpo e

também do corpo de seu poema. Ele é para o outro um corpo e uma voz. A voz

poética só pode ser compreendida por um interlocutor que lê, e há também uma

limitação entre o poeta que pensa e esse outro que escuta. Ao usar do verbo

“olvido”, refere-se não só à memória que permanecerá após sua morte nos vivos

que ficarão, mas também, através de um jogo fonético com o verbo “ouvir”, à voz

do poeta no poema, restando ao leitor o ato de escutar. É, portanto, através do

outro que se dá a permanência da poesia, mesmo depois que o corpo já não

está mais vivo.

82

Além da delimitação do corpo com um outro, há também essa mesma

delimitação com o próprio enunciante. Se por um lado é-se para o outro através

da corporeidade e do fazer poético, só há a possibilidade de ser parar si mesmo

através da reflexão. Pensar, então, separa-se da compreensão corporal. Seu

corpo não é imediatamente quem se é, já é outro uma vez que só há identificação

com si mesmo através da consciência.

Novamente, como vimos nos poemas “O duplo” e “Reflexão sobre o osso

da minha perna”, existe a aproximação da morte. Neste poema, em vez de um

osso durável como resquício (mesmo que estranho) de seu ser no mundo, o que

de estranho ficará é a sua voz, sua poesia. Como perguntamos no fim da

intepretação do poema anterior, há um duplo de estrangeiridade no fazer poético.

Escrever poesia é o susto com o ranger do osso, ao passo que é o que nos dá

permanência.

Por outro lado, se Gullar se duplica, no momento em que enxerga o corpo

como um estranho, e a única forma de ser é através da consciência, como se

daria a percepção da realidade apenas corporal? Excluindo a consciência do

processo de duplicação, o que restaria do poeta ao perceber-se apenas corpo?

Observemos o poema “Repouso”:

pouso o rosto

na mesa

que

alívio

ser apenas

tato

só este

macio

contato

o corpo –

corpo

defeso

dos esplendores

83

da vida (2010, p 62)

A começar pelo título do poema, “repouso” pode adquirir dois significados:

a possibilidade de descansar, representando uma pausa. Se há pausa para

descanso, quer dizer que há, em outro momento, cansaço devido a um ritmo

acelerado. Podemos compreender o cansaço relacionado ao ato de reflexão, de

pensar, a consciência do poeta que se apresenta no poema anterior como única

forma de encontrar seu ser; também pode ser uma repetição do ato de pousar.

Pousar é um verbo diretamente ligado aos pássaros. Ora, diferente do ser

humano, os animais não encontram abertura para o ser no mundo, uma vez que

eles não refletem, não raciocinam. Gullar começa esse poema, então, trazendo

no primeiro verso uma aproximação com um agir animalesco. Logo, é um

repouso do ser, um esvaziamento da consciência e o agir apenas com o sentido

corporal tão presente nos animais.

Esse descanso da consciência é um “alívio”, é “macio”, não há

preocupação em relação à reflexão. Outra observação importante é que este

pouso se dá na mesa e com seu rosto. O rosto é a forma mais fácil de

identificação de um indivíduo pelo outro e por nós mesmos ao espelho, é a

definição clara de um ser humano, e é justamente o rosto que descansa:

As qualidades do homem são deduzidas da feição do rosto ou das formas do corpo. Ele é percebido como a evidente emanação moral da aparência física. O corpo torna-se descrição da pessoa, testemunha de defesa usual daquele que encarna. O homem não tem poder de ação contra essa “natureza que o revela; sua subjetividade só pode acrescentar pormenores sem reflexos sobre o conjunto. (BRETON, p.17, 2017)

Gullar, portanto, coloca para descansar aquilo que o faz identificar-se

enquanto ser humano: o rosto, a representação de sua consciência. Além disso,

a mesa pode ser um lugar que nos colocamos a escrever, mas neste momento

é um local de descanso. Há uma pausa, então, ao descasar a consciência,

também em seu fazer poético.

84

Ao repetir a palavra “corpo”, enfatiza que ali está presente apenas o corpo,

e não há presença de um eu. Esse momento de repouso possibilita que o corpo,

descansando tranquilamente, seja apenas isto: um animal que pousa, sem

preocupar-se com o mundo, com filosofia ou com a escrita. Assim como no

poema de Adélia Prado, o corpo é humilde: dorme (ou repousa).

No momento em que se dá essa pausa, o corpo perde contato com o ser,

não se duplica, pois adormecido ou pacificado. Portanto, está completamente

distante das coisas do mundo, pensadas e percebidas pela razão do homem.

Está “defeso” a isso tudo. Defeso pode significar tanto que está isento a alguma

coisa quanto que está proibido de acessar. Devido à calmaria do poema,

poderíamos ler esse verbo como liberdade, uma vez que o corpo está em

repouso. Por outro lado, ele se afasta dos “esplendores”, o que não é positivo,

pois deixa de ter contato real com os prazeres mundanos, com a compreensão

da vida, para ter apenas um contato macio com a superfície em que pousa.

O duplo deste poema é implícito e está no próprio enunciador. O ato de

escrever sobre esse momento de pacificação do corpo já traz consigo a reflexão

de que a exploração apenas dos sentidos é somente uma pausa, uma quebra

na agitação do pensar. Porém, a consciência está produzindo esse poema, e

alcança o esplendor a que o corpo está defeso.

ACIDENTE NA SALA

movo a perna esquerda

de mau jeito

e a cabeça do fêmur

atrita

com o osso da bacia

sofro um tranco

e me ouço

perguntar

aconteceu comigo

ou com meu osso?

85

e outra pergunta:

eu sou meu osso?

ou sou somente a mente

que a ele não se junta?

e outra:

se osso não pergunta,

quem pergunta?

alguém que não é osso

(nem carne)

em mim habita?

alguém que nunca ouço

a não ser quando

em meu corpo

um osso com outro osso atrita? (2010, p. 39)

Em seu poema “Acidente na sala”, podemos nos deter por um momento

no título. Um acidente é algo que pode causar horror, sofrimento ou acontecer

de forma inesperada. Nunca prevemos um acidente, justamente por isso ele é o

que é – uma coisa que vem sem aviso, no susto, e pode muitas vezes nos levar

a um estado de choque tanto físico quanto psicológico. Contrastando com esse

acontecimento, temos um lugar de cotidiano, que gera aproximação e um

ambiente familiar: na sala. Logo, um absurdo que surge dentro do simples, do

ordinário da vida.

Freud, em seu artigo O estranho, se questiona sobre o que nos leva à

estranheza de alguma coisa ou alguma situação, fazendo estudo da amplitude

significativa do vocábulo “Heimlich”, que pode significar tanto algo que nos é

íntimo como algo que nos é desconhecido, secreto. Logo, em um determinado

momento, o que é dito como familiar pode tornar-se quase seu oposto, o que nos

é absurdo:

O que mais nos interessa nesse longo excerto é descobrir que entre os seus diferentes matizes de significado a palavra ‘heimlich‘ exibe um que é idêntico ao seu oposto, ‘unheimlich‘. Assim, o que é heimlich vem a ser unheimlich. (Cf. a citação de Gutzkow: ‘Nós os chamamos ‘unheimlich”; vocês o chamam “heimlich”.’) Em geral, somos lembrados de que a palavra ‘heimlich‘ não deixa de ser ambígua, mas pertence a dois conjuntos de idéias que, sem serem contraditórias, ainda assim

86

são muito diferentes: por um lado significa o que é familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e se mantém fora da vista. ‘Unheimlich’ é habitualmente usado, conforme aprendemos, apenas como o contrário do primeiro significado de ‘heimlich‘, e não do segundo. (FREUD, 1925, p. 5-6)

Ora, no título do poema visualiza-se justamente a questão do

extraordinário (um acidente) sendo transportado para dentro de um ambiente

extremamente familiar, intimista, que é uma sala. Este acidente pode causar o

estranhamento em nossa própria casa. Um ambiente que, à primeira vista, é

seguro, pode tornar-se palco do que normalmente acontece na rua, lugar de

ninguém, e nos assusta, quebrando a faixa de normalidade dada ao cotidiano da

vida. As escolhas dessas palavras no título parecem divergir, mas, como no

vocábulo apresentado por Freud, vão com seus diferentes significados uma de

encontro à outra, não para colidirem, e sim para se complementarem.

O poema começa com o maior osso do corpo, o fêmur esquerdo (que é

inclusive ligeiramente maior que o direito na anatomia humana) atritando com o

osso da bacia. A escolha de um osso longo pode ser lida como a representação

de uma parte do corpo que tem vida própria, que se destaca no espaço e na

noção do eu, já que é o contato desse osso com outro osso que passa a ser o

motivo de um conjunto de questionamentos do poeta sobre o que ou quem ele é

ao longo do poema.

Ele não roça, mas atrita, o que, na Física, ocorre quando dois corpos

entram em choque para dar origem a um movimento. Movimento tal que leva ao

susto do poeta e a um monte de perguntas que seguem como em uma cachoeira.

Ou seja, seu pensamento está em turbilhão. O osso não está mais estático, e

tampouco o pensamento em relação à existência desse osso.

As perguntas, ao mesmo tempo que são feitas, são também ouvidas.

Como se um perguntasse, fosse o agente da dúvida e do assombro, e o outro

(que ainda não é o corpo, mas o desdobramento do poeta) ouvisse. Há a

separação entre esses dois “eus” (um agente e outro paciente) e também entre

o osso. O atrito aconteceu com ele ou com seu osso? E então a separação entre

mente e corpo, como se nosso pensamento fosse parte separada de nossa

constituição física. De acordo com Freud, “provavelmente, a alma ‘imortal’ foi o

87

primeiro ‘duplo’ do corpo” (1925, p. 12), ou seja, aqui também se duplica, a partir

do estranhamento com o corpo, um outro, que “sofre um tranco”.

Assim como no poema anterior, há uma fragmentação do corpo: o osso

cumpre o papel de ser um elemento separado, quase com vida própria, e

causador de espanto. O processo de consciência, gerado a partir do susto

corporal, é algo efêmero em ambos os poemas, comparado à duração do osso.

Um osso dura mais que um corpo e que um pensar o corpo, é a única

possibilidade de permanência, representando a ideia de morte:

A constante presença do corpo fragmentado é uma metáfora da perda de totalidade que caracteriza a modernidade. O homem é apenas efêmero, um fragmento do mundo contingente e errante. A essência humana desprovida de sua origem divina, apresenta-se como finitude e transitoriedade. [...] Diante da falta de sentido de qualquer valor absoluto, a atenção voltava-se para o detalhe, para o momentâneo. (MATESCO, 2009, p. 335)11

Essa fragmentação do corpo dentro do corpo (porque, além do corpo se

duplicar em relação ao eu enunciante, ele se desdobra, diferenciando-se, entre

carne e osso) é completamente oposta ao corpo que vimos na poesia de Gullar

em sua fase política. No capítulo anterior, o corpo era íntegro e parte de um todo,

carne e osso eram o sujeito e não um duplo. Antes, se havia um espelho, esse

espelho era o mundo; agora o espelho está despedaçado até mesmo em sua

moldura.

Na última estrofe, há o deslocamento do sentido das perguntas sobre o

osso para sobre quem está perguntando. Já que ele ouve perguntar, e está em

choque com seu osso de forma independente criando atrito, quem é esse outro

que pergunta? Este outro, que é o próprio estranhamento, só surge e se faz ouvir

com o osso atritando com outro osso, gerando também um atrito entre o eu que

escuta e um outro que pergunta. Atrito entre duas coisas é o que leva ao

movimento, que sai da estática. Logo, fruto de reflexões.

Há um jogo de palavras quando o poeta usa “osso” e “ouço” e o uso de

osso com “outro” osso. O sentimento esquisito surgiu somente quando seu

fêmur, até então parte de si mesmo e constituição do corpo que é seu, encosta

11 Também retirado de um e-book do Kindle, a paginação se refere ao “posicionamento”.

88

em outro osso, já diferenciando ambos (os ossos). Há um tríplice jogo no poema

– o primeiro é o osso; o segundo, o outro que pergunta; e o terceiro, quem ouve.

Por isso o uso duas vezes de “e outra” e “e outra”: uma pergunta em relação ao

eu que escuta e o osso; e a outra em relação ao eu que escuta e a esse eu que

pergunta.

Ao terminar a leitura do poema, podemos chegar à conclusão de que esse

acidente dito no título pode ter dois significados: à primeira vista, o atrito dos dois

ossos, que levou a todos os questionamentos e sensação de estranheza por

parte do poeta; ou a geração desse outro eu que pergunta, que questiona. E que

nasceu graças ao estranhamento do eu que escuta tanto as perguntas como

também o barulho de um osso atritando com outro osso.

Em ambas as possibilidades, o poeta ainda está em sua sala que, como

dito anteriormente, é um ambiente familiar e cotidiano. Poderia ser considerada

como o seu “Heimlich” que se transfigura em suas próprias possibilidades

significativas de um sentimento de conforto para um sentimento de

desconhecido. Se pensarmos a paisagem da sala como essa abertura do que é

simples e natural até alcançar o estranhamento, e esse estranhamento como

causa do desdobramento em outros, podemos relembrar, como vimos no

capítulo anterior, o espaçamento do sujeito a que Michel Collot se refere (2013,

p. 31). Anteriormente, o espaçamento se deu através de um processo do

individual para o corpo da noite até encontrar-se com a lembrança da luta de

classes. Neste poema, se dá o espaçamento do familiar para o estranho.

O sujeito se expande a partir do acidente, uma exterioridade que invade

sua casa, seu pequeno ambiente confortável que é a sala. O acidente é a

abertura, o fora que invade a morada, que arranca o eu fechado dentro de si

mesmo, em sua sala. Ele se desdobra em algo que antes era indesdobrável,

comum e enclausurado em si mesmo – seu osso, que já é outro. E a partir desse

desdobramento gera outro desdobramento que é o eu que pergunta. O espaço

que invadiu o ambiente familiar permitiu essa abertura, e não à toa através de

questionamentos, de perguntas, como Collot mesmo chega à conclusão: “O

espaço é uma dimensão essencial dessa abertura, em que uma das

modalidades não é outra senão o pensamento”. (2013, p. 31)

89

RELVA VERDE RELVA

Dentro de mim – mas onde?

no céu

da boca? debaixo

da pele? –

fulge de repente um largo verde esquecido

dentro de mim

ou fora

(em algum lugar nenhum)

de mim

um largo como se fosse um lago

e quase a transbordar de verde

ouvia a miúda algazarra da relva

rente ao chão

ah aquela inesperada toalha verde viva

em meio à cidade em ruínas!

(o relâmpago me atinge agora numa cozinha da rua Duvivier)

De tais espantos somos feitos. (2010, p.40)

A partir de nenhuma causa específica, uma relva verde, em forma de

memória, retorna. Porém, de onde surge essa lembrança? Onde ela se

encontrava para de repente surgir brilhando? As perguntas já na primeira estrofe

mostram o estranhamento do poeta em relação ao pensamento, a redescoberta

de uma paisagem, ter origem em seu corpo. É dentro dele que se encontra esta

relva, mas que parte de seu corpo a trouxe de volta?

O corpo, representado por boca e pele, é o que traz de volta toda a

paisagem formada ao longo do poema, um retorno do que havia sido esquecido.

É no céu, céu da boca, debaixo da pele, lugares possíveis ao renascimento da

memória paisagística. Segundo Collot (2013, p. 40), a troca realizada na

90

paisagem entre homem e mundo é feita através de metáforas corporais, como

se a noção de “carne no mundo” fosse levada ao pé da letra. No poema de Gullar,

a relação entre homem e memória é realizada através dessas metáforas, do

corpo tomado como parte do que faz ressurgir a paisagem antes esquecida.

Essa entrada no corpo leva novamente, como no poema “Acidente na

sala”, a um desdobramento do eu e um estranhamento com o corpo que, à

primeira vista, faz parte desse eu, ou pelo menos pertence a ele. O atrito dos

ossos fez surgir perguntas sobre quem é o eu que fala e o eu que escuta e ainda

o que é esse osso que atrita em outro osso. Em “Relva verde relva” é a memória

que causa o atrito, pois o poeta se questiona de onde é que ela vem, já que seu

surgimento é repentino, como um acidente, não há como prever.

A memória, nesse poema, surge a partir de uma noção corporal. Se

pensarmos memória como paisagem, e esse lugar como morada ocupacional de

nós mesmos, só é possível relembrarmos com nosso corpo. Qualquer reflexão,

lembrança, pensamento se torna um ato corporal, assim como transformar isso

tudo em poesia:

Ora, o que sucede, no acto da escrita, é que a consciência se torna consciência do corpo. Pensamento e corpo são um só, physispsyché, e qualquer movimento físico é igualmente movimento mental do pensamento. Quando se escreve que alguém se senta e também nos encontramos sentados, o nosso pensamento senta-se conosco e com aquele(a) que foi escrito(a), quando lemos o mergulho de Moby Dick, o nosso pensamento mergulha com a baleia branca, à semelhança dos traços dinâmicos apontados por Deleuze e Guattari. O corpo presentifica-se no pensamento. (SILVA, 2007, p.48.)

Porém, essa noção de que a memória parte do corpo, e este sendo um

estranho, gera então no poeta um espanto fruto dessas perguntas acerca do

surgimento da memória. Pois, se o corpo é um outro nesta fase de Gullar,

diferente da citação acima, a memória é também estrangeira ao eu enunciante

do poema, pois o corpo já está deslocado do eu.

Essa relva está dentro dele ou está fora? Se o dentro é o corpo que já não

é um só com o poeta, como pode sua memória surgir de um local exato? E se

fora é onde está esse eu que se desloca pelo próprio estranhamento com o corpo

causado pela memória, como pode ela surgir fora se esse próprio

91

questionamento vem com seu retorno e diferenciação do eu com o dentro de si?

Talvez esteja em algum lugar nenhum, expresso pela isomorfia dos parênteses.

Mas ainda assim essa alguma parte alguma “de mim”:

Ele (o corpo) é eu mesmo, sim, ego extraneus. Eu mesmo de fora, eu mesmo fora, enquanto fora de mim, eu-mesmo enquanto divisão de um dentro e um fora, o dentro em si mesmo obscurecido ao ponto de uma concentração obscura, opaca e abissal em que o espírito se dilacera entre um “eu” abstrato [...] e um “eu” proferido [...] Sim, eu-fora. Não “fora de mim” pois, na verdade, dentro não há “eu” mas a lacuna onde todo meu corpo se recolhe e pressiona para fazer voz e declarar-“se”, se reclamar e chamar, se desejar desejando o eco que talvez outros corpos emitirão em torno dele. Estranho estrangeiro para si mesmo em seu apelo de si mesmo; senão, ele não poderia chamar-se, ele não poderia exprimir em toda sua extensão o pedido de encontrar esse estranho estrangeiro. (NANCY, 2015, p. 47)

O estranhamento com o corpo neste poema é apresentado com uma

diferenciação espacial: o dentro e o fora. O corpo deixa de ser um corpo próprio

do poeta e passa a ser ele mesmo (o corpo) o seu próprio. Como disse Nancy

na citação, ele é “eu mesmo” e não eu, só que é o eu que vê de fora, que está

fora, olhando para dentro. A relva, no poema, está nesse intermédio entre o

dentro e o fora: em alguma parte alguma.

E ela vai tomando forma, é confundida, transfigurada, pois é lembrança,

em largo e lago. A memória normalmente é relacionada a uma paisagem e

sempre retorna através dos sentidos do corpo. Pode ser um cheiro, um som,

uma textura. No poema, é uma cor. Esse verde que é mato, mas também poderia

ser água de lago, só é possível de ser redescoberto pois um dia houve o contato

com os olhos. Ao mesmo tempo, toma forma de toalha, o pano que, justamente

depois de molhados, usamos para nos secar. Se nosso corpo relembra a relva

também como água de lago, é ela mesma que toma outra forma e nos envolve

nos secando.

Os sentidos do corpo exploram a memória: o verde, através da visão; a

algazarra, através da audição; e a toalha, através do tato. A relva é representada

de várias formas, e é necessária a presença do corpo em todas elas para fazê-

la fulgir. Ao mesmo tempo, toda a cidade onde se encontra esta relva está em

ruínas. É o resto que não é possível ser relembrado, é o que permanece apenas

92

como vestígio. O corpo não conseguiu trazer tudo completamente de volta a

partir de suas experiências sensoriais.

Por fim, há um relâmpago, dentro de parênteses, o que traz novamente a

ideia de falta de pertencimento a um lugar, um entre, atinge o poeta na cozinha

de sua casa. Mais uma vez, a ideia de um acidente, de algo que vem de fora do

ambiente familiar. Essa representação do relâmpago é também o acidente que

ocorre na sala do outro poema. A cozinha de sua casa é invadida por algo

externo, que leva o poeta ao estranhamento. Voltemos ao início do poema, em

que o poeta começa a se questionar de onde vem a memória da relva – é onde

precisamente vê seu corpo como outro, se desdobra para além de sua pele e

sua boca.

O último verso está na voz passiva e na primeira pessoa do plural. Nós

somos feitos de tais espantos. Esse “nós” pode tanto se referir ao ser humano,

o relâmpago pode atingir qualquer pessoa em qualquer ambiente familiar,

podemos ser tomados do estranhamento repentinamente. Ou ainda fazer

referência ao eu do poeta que está “fora” e a seu corpo que está “dentro” – os

dois juntos formam esse “nós” oculto no verbo.

O estranhamento com o corpo aqui é acendido pelo retorno da memória:

“fulge de repente um largo verde esquecido”:

Em primeiro lugar, se a teoria psicanalítica está certa ao sustentar que todo afeto pertencente a um impulso emocional, qualquer que seja a sua espécie, transforma-se, se reprimido, em ansiedade, então, entre os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna. Essa categoria de coisas assustadoras construiria então o estranho; e deve ser indiferente a questão de saber se o que é estranho era, em si, originalmente assustador ou se trazia algum outro afeto. (FREUD, 1925, p. 16)

No poema, esse algo que retorna, que fora esquecido outrora, ressurge

não como algo que é assustador ou estranho. Não é a relva que nos causa

estranheza, mas é o próprio ato de relembrar a relva e a dúvida sobre o seu

processo de acontecimento que geram, no poeta, o desdobramento de

espacialidade e a distensão com seu próprio corpo. E novamente é algo que vem

93

de fora, um acidente, um relâmpago, que toma a representação de invasão do

ambiente familiar: uma sala, uma cozinha.

PERPLEXIDADES

a parte mais efêmera

de mim

é esta consciência de que existo

e todo o existir consiste nisto

é estranho!

e mais estranho

ainda

me é sabê-lo

e saber

que esta consciência dura menos

que um fio de meu cabelo

e mais estranho ainda

que sabê-lo

é que

enquanto dura me é dado

o infinito universo constelado

de quatrilhões e quatrilhões de estrelas

sendo que umas poucas delas

posso vê-las

fulgindo no presente do passado (2010, p.40)

O título “Perplexidades” nos remete mais uma vez à ideia de espanto. Se

em “Acidente na sala”, foi o atrito do osso que causou o estranhamento, e em

“Relva verde relva” a memória trazida de volta através do corpo, neste, o

causador do susto, do estado de perplexidade é a consciência da existência, do

ser no mundo. Ora, a nossa noção de ser em algum lugar, no espaço à nossa

volta, só pode ser dada através da relação de nosso corpo com essa paisagem:

94

Uma filosofia da encarnação como a de Merleau-Ponty considera que a própria consciência tem lugar no espaço, e este lugar é o corpo. O corpo apresenta uma topologia análoga á fita de Moebius, cujas faces internas e externas são indiscerníveis; assim, ele desempenha o papel de uma interface entre a consciência e o mundo: “O próprio corpo está no mundo, como o coração no organismo [...], forma com ele um sistema. [...] A coisa e o mundo me são dados com as partes de meu corpo [...] numa conexão viva comparável; ou melhor, idêntica àquela que existe entre as partes de meu próprio corpo”. (COLLOT, 2013, p. 38)

Aqui, é o corpo em contato com o mundo que leva ao estranhamento do

sujeito. E há novamente, como no poema “Acidente na sala”, o desdobramento

do eu em três partes: a consciência, que é sua parte mais efêmera, logo é algo

que se transforma, que muda a todo tempo; o eu que passa a saber o espanto

quando adquire essa consciência; e o corpo, que é o mediador e é mais durável

que essa consciência que surge.

Se compararmos os dois poemas, percebe-se que o eu que pergunta

naquele é também uma consciência de percepção neste. E o eu que ouve passa

agora a ser o eu que sabe. O osso que atrita, e é a causa do acidente, do espanto

dentro de uma sala, aqui é o corpo em atrito com o mundo, gerando também um

acidente, um relâmpago: a reflexão que surge, a partir do movimento gerado pela

própria força de atrito.

A estranheza se dá de três formas: a partir do surgimento da consciência;

perceber-se outro além da consciência, o eu que a sabe; e a diferenciação da

consciência e desse eu com o fio de cabelo, com seu corpo. No poema “Relva

verde relva”, é a memória reconstituída através dos sentidos do corpo que gera

a estranheza, visto que seu corpo se desprende do eu que sabe, do eu que ouve

ou do eu que está fora; neste poema, o desprendimento entre corpo e esse eu é

feito através do surgimento, também repentino, da consciência, só possível

também a partir de um corpo que se separa do eu e se coloca no mundo.

Mais estranho ainda que o surgimento da consciência e sua diferença com

o eu que sabe e o corpo que permanece, é ainda o contato, somente possível

na duração dessa consciência, desse eu, através do corpo, com outros corpos.

Como no poema “Acidente na sala”, o sujeito se expande. O acidente é o que

traz a rua para dentro de casa, e aqui é a consciência que traz o universo para

95

perto dos olhos do sujeito poético. O universo lhe é dado, ele passa a olhar para

além do próprio mundo:

Os corpos são estranhos uns aos outros pela estranhice do espírito que os anima. Essa estraneidade constitui também a sua estranheza: os corpos são não apenas estranhos. Só dificilmente é que se reconhecem e se aproximam, obrigando-se a superar uma desconfiança, por vezes um temor ou mesmo uma repulsa. Um corpo não toca facilmente outro corpo por saber que essa proximidade ameaça a ambos com a possibilidade de explodirem juntos numa nova chama do desejo do espírito. [...] Um corpo não é somente estranho para os outros. Ele só o é sendo igualmente estranho para si mesmo. (NANCY, 2015, p. 45 e 46)

Essa última estranheza é dada então não na percepção de um corpo e de

um eu que se separam somente, mas também no corpo de um ente com outros

corpos, as estrelas. Esse estranhamento só surge na duração da consciência,

um “enquanto”, que se contrasta, por ser efêmera, primeiramente com o eu que

sabe e o fio de cabelo, e agora com o universo que é infinito. A expansão do

sujeito é tão grande que alcança as constelações.

Apesar da expansão e do encontro com outros corpos, não é possível

alcançar o todo do universo. Através da visão, há o contato com as estrelas,

porém só algumas, e mesmo essas só são vistas pelo passado, não o do sujeito,

que está no presente durável de sua consciência, mas no delas próprias. Como

no poema “Relva verde relva”, a memória surge “fulgindo”. A relva fulge de

repente, e aqui são as estrelas que estão fulgindo. O que vemos no céu já são

estrelas mortas, e o que alcança nossos olhos são o seu passado. A distância

entre uma estrela e nossa visão é tão imensurável, que, quando a luz de sua

imagem chega a nosso contato, as estrelas já não existem mais.

O interessante do uso desse verbo em ambos os poemas é justamente a

morte, a inexistência do que antes havia sido. O que fica é a percepção sensorial

por parte de nossos corpos. No outro poema, o corpo que traz a luz de volta, e

nesse é a luz que nos alcança sendo já uma memória.

Explorar o espanto através do corpo e com o próprio corpo é desapropriar-

se das certezas, é expandir o eu a inúmeras possibilidades e desdobramentos.

O corpo pode gerar estranhamento entre o sujeito e ele mesmo, e também ser o

intermediário para outros assombros. O repentino cumpre um papel fundamental

96

e sem explicação. De repente, olhamos para nossas mãos e já não as

reconhecemos como nossas. Existe maior susto do que deparar-se com partes

estrangeiras de si mesmo?

O corpo tem um funcionamento independente de nossa consciência. Até

quando há morte cerebral, e há a impossibilidade de um eu que ali habita voltar

a ser, o corpo continua trabalhando, com suas sinapses, seu processo

respiratório e cada pequena célula que nasce e recria. É como uma morada:

podemos limpar a casa, mas a poeira se acumula quer queiramos ou não, e há

portas e janelas que rangem de madrugada sem explicação.

Os últimos três poemas de Ferreira Gullar escolhidos tratam, cada um

com seus questionamentos, do corpo de formas distintas, mas que se

complementam. “Acidente na sala” traz o assombro direto com o osso, quando

esse atrita com outro osso. É o desdobramento dos eus a partir desse choque

de escutar e sentir algo dentro de si rangendo. “Relva verde relva” é a memória

sendo renascida pelos sentidos do corpo, e, através desse processo de

redescoberta de algo esquecido, o estranhamento sobre o corpo ser o contato

que possibilitou vivê-la e trazê-la de volta. “Perplexidades” mostra o ser no

mundo, a consciência de existirmos, como algo que causa perplexidade. Só nos

localizamos no mundo através do corpo, ele é nosso intermédio, e por ser

intermediário entre nossa consciência e nós mesmos já há o deslocamento entre

esse corpo e o eu.

Nos três poemas, não é só o corpo que sofre uma desfamiliarização, mas

também a paisagem. Um acidente que ocorre na sala, quebrando a sensação de

proteção e bem-estar de nossa casa. Um relâmpago que atinge o sujeito poético

dentro da cozinha, transportando uma catástrofe também para dentro de casa,

exteriorizando um pouco o mundo familiar. E no último poema, a expansão do

eu que sai do mundo à sua volta e passa a observar o infinito universo, levando

inclusive ao estranhamento do corpo com outros corpos.

Escrever o espanto talvez seja a melhor forma de tentar compreendê-lo.

Ou talvez seja uma tentativa inútil, pois o estranhamento com o corpo e através

dele tende a expandir-se e aprofundar os desdobramentos do eu em outros

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desdobramentos, não chegamos provavelmente a lugar nenhum, mas em

alguma parte alguma:

Um homem coloca sua mão sobre uma parede de rocha e sopra ao seu redor um pó colorido; ele retira sua mão e contempla a impressão clara e definida pelo pó de ocre ou de carvão. Ou então ele levanta um pé e bate no chão de modo a conferir ao seu corpo não o pulso da marcha mas o impulso de um suspenso para além do solo, de modo que uma linha envolta e desenvolta por si mesma aparece como nuvem ou cipó. Essa dança e essa imagem carregam a estranheza de um corpo que se sabe – ou que se surpreende – estranho estrangeiro para si mesmo. Com isso a “arte” não doma ou reduz a estranheza desse corpo. Bem ao contrário: ela a expõe e escava, a acentua e exagera segundo a necessidade, exasperando-a e capturando-a somente para melhor deixá-la escapar. Para dizer tudo, ela lhe abre o espaço de uma expansão ilimitada. (NANCY, 2015, p 51)

A poesia de Ferreira Gullar, ao tentar capturar o assombro com o próprio

corpo, causa em nós, leitores, um estranhamento ainda maior com ele. É como

se ao lermos seus poemas lembrássemos que respiramos, e a partir dessa

lembrança não conseguíssemos mais respirar sem pensar no ato de fazê-lo.

Como no poema “Perplexidades”, essa consciência é passageira, logo

esquecemos e voltamos a respirar normalmente. Mas, ah, durante esses

momentos de consciência, quantas estrelas e relvas não vemos fulgir!

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Conclusão

A conclusão desta pesquisa está longe de fechar as possibilidades de

estudo do corpo na poesia de Ferreira Gullar, tanto pela quantidade de

elementos dentro das obras escolhidas como objeto de interpretação quanto

pelas obras deixadas de fora desse estudo. Como poeta das coisas palpáveis,

vivas e materiais, o corpo cumpre um papel de ponte entre o mundo e a poesia

escrita por Gullar. É a corporeidade que gera a conexão necessária para a

criação do poema – sua poética corporal.

Cada capítulo nos levou por um caminho distinto acerca da manifestação

do corpo em seus livros, ao longo das mudanças que passou em sua vida e na

forma de compreender e pensar o processo de criação artística. A escrita

também se transforma ao passo que nossa vida transcorre, assim como nosso

corpo sofre alterações, amadurece e percebe o mundo de outras formas. Se o

corpo é essa ligação, na poesia de Gullar, entre a percepção da realidade e a

possibilidade de transformá-la em poema, obviamente que com o passar do

tempo essa ponte perde pedaços, se reconstrói, muda de cor, vivencia

temporais, e isso gera também uma mudança na partida e na chegada do poeta.

Por isso, no começo desta dissertação, logo em sua introdução, falou-se

sobre “indícios” do corpo. São sinais corporais encontrados em suas obras, dos

menos óbvios aos mais claros e perceptíveis, fragmentos do corpo que são

lançados e reencaixados a cada nova leitura, e, como sinais, abrem

possibilidades para a descoberta de sua origem e de sua história. A poética do

corpo é uma poética da movência, do crescimento, da oxigenação da vida. Cada

indício do corpo não fecha um caminho, mas abre inúmeras possibilidades de

interpretação:

Por que indícios? Porque não há totalidade do corpo, não há unidade sintética. Há peças, zonas, fragmentos. Há uma ponta depois da outra, um estômago, uma sobrancelha, uma unha do polegar, um ombro, um seio, um nariz, um intestino delgado, um canal colédoco, um pâncreas: a anatomia é interminável, antes de acabar na enumeração exaustiva das células. Tampouco essa última forma uma totalidade. É preciso bem ao contrário recomeçar toda a nomenclatura para encontrar, se

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possível, o vestígio da alma impressa em cada pedaço. Mas os pedaços, as células vão se modificando enquanto essa conta continua enumerando em vão. (NANCY, 2015, p. 96)

Esses indícios, observando a citação de Nancy, são apresentados de

formas fragmentárias. São muitos ossos, cabelos, mãos que aparecem e

desaparecem na poesia de Ferreira Gullar. Assim como não há totalidade do

corpo, tampouco há totalidade da vida ou da poesia. Esses três elementos (vida

– corpo – escrita) estão o tempo inteiro se ressignificando, e é o corpo o

intermediário responsável por essa ressignificação, sendo ele mesmo parte

desse processo de transformação.

O corpo se descobre ao mesmo tempo em que se escreve. Ele é uma

experiência que traz para a escrita a possibilidade de abertura sensível ao

mundo, e vice-versa. É através do corpo que os poemas nascem, uma vez que

Gullar mesmo afirma que sua poética vem daí, do “vômito do vivido” ou da

corporeidade. Os indícios são formas de mostrar caminhos, de sugerir

descobertas. Juntando-os, abrimos a porta para a leitura feita da poesia de Gullar

nesta dissertação.

O livro Crime na flora foi a tentativa de Ferreira Gullar de transformar o

corpo, que é a ponte e o caminho, na própria escrita. A sua vontade de fazer da

linguagem algo vivo e independente do pensamento é a busca por uma escrita

animalesca, sensorial e, certamente, corporal. Como dito no início desta

conclusão, o corpo cumpre um papel de ponte. Escrever o corpo e com o corpo

deve partir de uma compreensão de que ele se expande e se transforma em

outra coisa quando posto em um poema, quando feito literatura. Um poema é,

certamente, um corpo, mas um corpo poético.

Esses questionamentos acerca da linguagem se refletem na forma que

esse livro toma: completamente experimental, de difícil definição. Não à toa, os

indícios do corpo presentes em Crime na flora são como mutações. Todos os

aspectos possíveis de um corpo são explorados: dejetos, sexo, putrefação,

estranhamento, nascimento, morte, violência. Sua falta de certeza sobre a

poesia, sobre a linguagem, se reflete em uma falta de certeza sobre o corpo.

Devido ao seu forte caráter experimental no que concerne à forma e a sua

própria feitura ter sido realizada com colagens de fragmentos, como o próprio

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Gullar afirmou, focamos bastante nas mudanças súbitas e espantosas na

estética da escrita ao longo dessa obra. Sendo o corpo a linguagem pura que

Gullar tenta alcançar, é compreensível observar como ele vai criando um livro

fragmentário sem um tempo cronológico. Não sabemos muito bem o que é esse

corpo, assim como nos perdemos na leitura.

Dentro da noite veloz e Poema sujo já trazem outro momento distinto do

corpo na poesia de Ferreira Gullar. Toda nossa vida, nossas decisões, nosso

existir no mundo estão envoltos de política. Escrever poesia, certamente, tem

um caráter de resistência perante a derrocada da arte e a vitória do produto e do

capitalismo. Tudo é dinheiro e utilidade na sociedade atual, então em que lugar

estaria salva a poesia? Escrever, portanto, é resistir. Mas a resistência dos

poemas de Gullar dentro dessas duas obras é também um sinônimo de ação, de

ato político. Existe uma movência em torno do fazer poético, e ela se dá de forma

combativa, propagandista e chamando todos à esperança.

O corpo, então, é resistência, muralha e muitos homens comuns. É um

corpo representativo, coletivo, de caráter militante. É justamente a pergunta que

Judith Butler faz a respeito da poesia que surge depois de Al-Haj ser torturado:

“Será que o corpo que sofre torturas é o mesmo que escreve aquelas palavras?”

(2017, p. 89). Será que o corpo militante de Gullar é o mesmo que escrever seus

poemas políticos? Pensando novamente o corpo como uma ponte entre mundo

e poesia, pode-se dizer que sim. E essa ponte carrega consigo buracos, rastros,

que moldam o caminho e a dificuldade ou facilidade da passagem.

Poema sujo ainda apresenta a capacidade de retomada da memória

através das percepções sensoriais corporais, sejam do próprio poeta consigo

mesmo quanto de sua relação com o outro. O corpo nos traz à tona, em Gullar,

uma poesia do agora, das coisas tocáveis e materiais. Mas perante um

isolamento forçado de sua vida, entregue ao exílio, a memória é retomada a

partir do corpo presente no momento em que se escreve.

Ao contrário desses dois livros, Em alguma parte alguma nos traz um

corpo que é um estranho para o poeta. Existe uma clara diferenciação entre o

“eu”, a consciência, e seu corpo, e isso se dá a partir de um profundo

estranhamento, gerando questionamentos, espantos e duplos. Último livro

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escrito por Gullar, explora outros aspectos relacionados ao corpo que não

haviam sido claros em sua fase anterior, como a aproximação da morte e o

distanciamento com o corpóreo.

Ao comparar a fase política de Gullar com esse último momento de escrita

de sua vida, observa-se como o corpo se apresentou de formas completamente

distintas. A contribuição do teórico David Le Breton, com seu livro A Sociologia

do corpo, foi fundamental para compreender melhor essa distinção: em

sociedades de cunho comunitário, o corpo era visto como um só com a

consciência, enquanto que, nas sociedades modernas ocidentais, ele é visto

como um outro, separado do “eu”.

Gullar não mudou de sociedade, mas se envolveu com o marxismo, que

prega a luta por um mundo igualitário e comunitário, o que podemos relacionar

com o corpo coletivo que aparece em sua fase política. O corpo estranho surge

após não ter mais envolvimento com os ideais marxistas, além de esse último

livro apresentar uma poesia mais voltada para questionamentos filosóficos,

estéticos e de cunho individual.

O corpo de Gullar se apresenta de diversas formas, pois são inúmeras as

formas imagéticas de se escrever poesia. Uma poética do corpo se dá no

momento em que os indícios abrem a possibilidade para uma conexão entre eles

mesmos e se repetem, gerando ressignificações ao longo do percurso. Esta

dissertação procurou reunir esses indícios ao longo de quatro obras do poeta,

mostrando que o corpo é parte fundamental de sua poética.

Seja um corpo que se transforma e reflete isso na forma do poema,

gerando confusões ao longo da leitura; um corpo que é resistência, que luta e

chama o outro para uma profunda identificação corporal, formando uma muralha

de corpos; seja um corpo que é um estranho para nós mesmos, que se atrita e

gera espantos. As formas distintas de manifestações do corpo na obra de

Ferreira Gullar só demonstram a capacidade gigantesca desse poeta de sempre

se reinventar, ainda que partindo do mesmo corpo que sempre esteve ali.

Enquanto houver corpo, há poesia. E quando não houver mais o corpo que

escreveu o poema, restam seus rastros ali presentes no poema-corpo e a

certeza de que outros corpos estarão sempre em contato com essas palavras,

102

transformando-se, resistindo e estranhando-se. Que a poesia seja sempre um

osso e que preservemos sempre nossa história em museus vivos e moventes,

abertos ao mundo, que resistem até mesmo ao poder de um incêndio.

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