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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ CERES DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO CERES DHC HISTÓRIA BACHARELADO WESLEY HENRIQUE DE MOURA SIMÃO A MORTE CANTADA: INCELÊNCIAS PARA ANJOS NO MUNICÍPIO DE JUCURUTU (SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX) CAICÓ, RN 2017

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE HISTÓRIA … · Anjinhos. 3. Incelências. I. Andrade Junior, Lourival. II. Título. RN/UF/BS-CAICÓ CDU 94:2-557(813.2) Elaborado por

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ – CERES

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO CERES – DHC

HISTÓRIA BACHARELADO

WESLEY HENRIQUE DE MOURA SIMÃO

A MORTE CANTADA: INCELÊNCIAS PARA ANJOS NO MUNICÍPIO DE

JUCURUTU (SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX)

CAICÓ, RN

2017

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WESLEY HENRIQUE DE MOURA SIMÃO

A MORTE CANTADA: INCELÊNCIAS PARA ANJOS NO MUNICÍPIO DE

JUCURUTU (SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX)

Trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para obtenção do grau de bacharel em História.

Orientador: Prof. Dr. Lourival Andrade Junior.

CAICÓ, RN

2017

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Profª. Maria Lúcia da Costa Bezerra - ­ CERES­-Caicó

Simao, Wesley Henrique de Moura.

A morte cantada: incelências para anjos no município de

Jucurutu (segunda metade do século XX) / Wesley Henrique de

Moura Simao. - Caicó, RN: UFRN, 2017.

55f.: il.

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Universidade

Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ensino Superior do

Seridó - Campus Caicó, RN. Departamento de História. Curso de

História (Bacharelado).

Orientador: Dr. Lourival Andrade Junior.

1. Morte. 2. Anjinhos. 3. Incelências. I. Andrade Junior,

Lourival. II. Título.

RN/UF/BS-CAICÓ CDU 94:2-557(813.2)

Elaborado por Fernando Cardoso da Silva - CRB-15/759

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WESLEY HENRIQUE DE MOURA SIMÃO

A MORTE CANTADA: INCELÊNCIAS PARA ANJOS NO MUNICÍPIO DE

JUCURUTU (SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX)

Trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para obtenção do grau de bacharel em História.

Prof. Dr. Lourival Andrade Júnior – Orientador

UFRN – Caicó/RN

Prof. Dr. Helder Alexandre Medeiros de Macedo

UFRN-Caicó/RN

Prof. Dr. Evandro dos Santos

UFRN- Caicó/RN

CAICÓ,RN

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2017

Dedico este trabalho às fortes mulheres que aplacavam a dor da morte infantil cantando incelências.

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AGRADECIMENTOS

Ao Deus autor e consumador da minha fé;

A minha mãe, por toda nossa história e todo amor, carinho e exemplo de dedicação aos estudos;

Ao meu irmão Lindemberg, por aturar os meus estresses ao longo deste trabalho;

Aos meus amados irmãos em Cristo, pelo zelo e orações;

A Richiele, pela companhia e palavras de ânimo;

A Tamisiane, pelo carinho, hospedagem e companheirismo;

A Adriano, companheiro nas lutas acadêmicas;

A Liudmila, pela descontração nas aulas e companhia durante a monografia;

A Rafaela, Maciel e Poliana Valle, pela amizade;

A Gabi, dona Dilma e Hudson, pela hospedagem e carinho;

Ao professor Helder Macedo;

Ao professor Joel Andrade;

Ao professor Lourival Andrade Junior, que aceitou ser meu orientador, apesar das minhas

dificuldades, esse trabalho não se tornaria possível sem seu apoio e puxões de orelha;

Ao Departamento de História do CERES;

Ao CERES, UFRN;

A PROPESQ, FAEX;

Às narradoras, por manterem na memória as incelências que motivam este trabalho.

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RESUMO

O presente trabalho busca perceber as práticas ritualísticas em torno da

morte a partir das incelências cantadas para “anjos” na zona rural de Jucurutu/RN na

segunda metade do século XX. As incelências são cantos entoados em torno do

morto a fim de conduzir a alma do defunto no caminho para o céu e consolar os que

ficaram. No recorte espacial escolhido, encontra-se a variante dos cânticos de matriz

popular que, nesse caso, especificamente, são entoados apenas em velórios de

“anjos” (crianças), diferenciando-se da ocorrência desse mesmo fenômeno em

outras partes do Brasil. Utiliza-se a fonte oral, coletada por meio de entrevistas com

as senhoras que participavam diretamente dos velórios, além da recorrência à

historiografia acadêmica ligada ao tema. Faz-se uma explanação sobre as ações

humanas diante da morte, delimitam-se as idades da infância a serem trabalhadas e

analisam-se as letras e sentidos por trás delas para que, assim, seja possível

entender as representações em torno da morte infantil.

Palavras chave: Morte. Anjinhos. Incelências.

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ABSTRACT

The present work seeks to understand the ritualistic practices around death from the

“incelências” sung to “angels” in the rural area of Jucurutu/RN in the second half of

the twentieth century. “Incelências” are songs chanted around the dead in order to

lead the soul of the deceased on the way to heaven and to console those who

remained. In the chosen spatial cut is possible to see a variant of these chants of the

popular matrix which, in this case specifically, are chanted only in funerals of “angels”

(children), differing from the occurrence of this same phenomenon in other parts of

Brazil. Is use the oral source, collected through interviews with the ladies who

participated directly in the funerals, besides resorting to academic historiography

related to the theme. Making an explanation about human actions before death,

delimiting the ages of childhood to be work and analyzing the letters and senses

behind them is possible to understand the representations about child‟s death.

Key words: Death. Little angels. Incelências.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................... 8

CAPÍTULO 1 MORTE, MORRER E ENTERRAR. ........................................................................................ 10

CAPÍTULO 2 OS ANJINHOS E A PERCEPÇÃO DA MORTE INFANTIL ........................................................ 24

CAPÍTULO 3 A morte cantada ............................................................................................................... 36

3.1 As narradoras .............................................................................................................................. 36

3.2 O cenário ..................................................................................................................................... 38

3.3 Mortalhas .................................................................................................................................... 40

3.4 As incelências .............................................................................................................................. 44

5 CONCLUSÃO ....................................................................................................................................... 52

FONTES .............................................................................................................................................. 54

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................................................... 55

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa é fruto da inquietação diante dos rituais e cerimônias em torno

da morte, de modo que tal interesse foi aflorado à medida que se ouvia falar de

como as crianças mortas eram tratadas antigamente e sobre a possibilidade de

existir um rito específico distinguindo a morte infantil da morte de adultos. Somando-

se a isso, a curiosidade no que diz respeito aos ritos de passagem, entre eles, os

rituais fúnebres, fez parte do estímulo envolvido.

A peculiaridade dessas cerimônias se explica pelas incelências, músicas

cantadas em torno da criança morta, a qual era chamada de anjinho. Esses cânticos

compunham parte do arcabouço das cerimônias fúnebres para anjos na zona rural

do município de Jucurutu, Rio Grande do Norte, na segunda metade do século XX.

Associado a elas estava um conjunto de práticas que expressavam o imaginário

desse grupo social, tendo nos adornos confeccionados para o velório dos anjinhos a

materialização de como a morte era entendida e representada.

Desse modo, surgiu a preocupação de salvaguardar esse fragmento da

cultura popular que aos poucos se perdia pelo fato de não haver mais sua prática. E

bem mais do que realizar uma reprodução sonora destes cânticos, busca-se

problematizar as letras e os significados que elas carregam. Entender a relação

destas pessoas com a morte, a importância deste rito, dado o contexto no qual

estava envolvido, e como se moldavam as relações de sociabilidade nos velórios

destes anjinhos foram questionamentos elencados no início da pesquisa.

Para propor repostas a essas interrogações foi utilizada a metodologia da

História Oral aplicando-se o método de coleta de dados da seguinte forma: foi

selecionada uma colônia de narradoras, elaborou-se um roteiro para as entrevistas,

coletaram-se as fontes orais e realizou-se a transcrição. Com isso, é possível afirmar

que o material obtido é riquíssimo no que se trata de cultura e sensibilidade de um

povo, de modo que essas entrevistas têm muito a contribuir para os estudos sobre a

morte. Além disso, pensou-se que seria prudente pesquisar nos registros de óbitos

da cidade e, por isso, visitou-se o Segundo Cartório de Notas de Jucurutu e foram

encontrados dados que acrescentariam na pesquisa, como as quantidades de

óbitos, o que forneceu detalhes quanto às causas da morte, bem como as

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nomenclaturas dadas a essas crianças. Assim, partiu-se para uma análise horizontal

das fontes.

No capítulo 1, faz-se um apanhado geral da História da morte no Ocidente

partindo da fala de autores que estudam a morte em diferentes contextos, como na

Pré-História, na Antiguidade e no Medievo. Com isso, percebe-se como se

estabeleceram práticas que ainda são possíveis de notar presentes até os dias de

hoje. Depois que se entende como as ações do homem articulam-se diante da morte

pelos mais variados períodos históricos, observa-se o lugar das orações e da

interseção pelos mortos e entende-se como o papel dessas orações é fundamental

para a compreensão deste trabalho, uma vez que as incelências que permaneceram

até o século XX no município de Jucurutu são preces em forma de canto.

No segundo capítulo, discute-se acerca do que era ser criança e quais as

características da infância no contexto explorado e, para isso, o acesso aos

documentos que ditavam as idades das crianças e o conhecimento sobre em que

esses últimos estavam embasados eram necessários. Assim, restringiu-se a

entender qual o papel da criança morta no recorte espaço/temporal delimitado e

como se fundamentou o discurso sobre a utilização do termo anjinho para, assim,

fazer uma delimitação do que era entendido como morte infantil, dado o contexto

estudado. Dado isso, o leitor está situado em quando começar a leitura do terceiro

capítulo.

No terceiro capítulo, aborda-se o rito em si, desde o quarto dedicado para o

anjo, onde as pessoas se reuniam para esperar a criança morrer, passando pela

preparação do ambiente e confecção dos adereços que recobririam o anjo, até

chegar diretamente às incelências. Analisam-se as letras e os sentidos embutidos

nelas e entende-se o lugar desses cânticos no momento da morte e na vida das

pessoas.

Este trabalho é inovador do ponto de vista acadêmico a partir do momento em

que lança olhares para as incelências da zona rural de Jucurutu. Já se tem outros

estudos sobre a História da morte no Seridó e pertencentes ao Departamento de

História do CERES, mas nenhum voltado para as percepções de morte de crianças

no município de Jucurutu. Dessa forma, esta particular contribuição é oferecida para

os estudos sobre a morte, ampliando, assim, as ramificações da História.

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CAPÍTULO 1 MORTE, MORRER E ENTERRAR.

Neste primeiro capítulo fala-se das percepções sobre a morte a partir da

fala de autores que a analisam, por exemplo, desde a Pré-História, a Antiguidade e a

Idade Média até chegarem às noções que hoje permanecem, de certa forma, nas

estruturas sociais conhecidas, mesmo que de forma discreta. Salienta-se que esta

abordagem é referente à História das práticas em torno da morte no Ocidente

Católico. Para tanto, a análise bibliográfica está mais presente neste capítulo do que

nos demais. Sejam nos primitivos enterramentos Pré-Históricos ou nas pompas do

morrer Medieval, foram encontrados pontos em comum e, diante disso, confluem a

História e a Antropologia. Busca-se, aqui, entender como a morte é vista e sentida,

como se desenvolve a noção de morrer ou bem morrer e as práticas de

enterramento, voltando um olhar mais atento para as orações e preces em torno do

morto, uma vez que este trabalho destina-se a estudar as incelências, orações

cantadas em volta do morto.

Para o antropólogo Edgar Morin, a preocupação com a morte é inerente

aos seres humanos, e essa inquietação seria uma das características mais

humanas, distinguindo, assim, o homem.

É a característica mais humana, mais cultural, do anthropos. Mas se, nas suas atitudes e crenças perante a morte, o homem se distingue ainda mais nitidamente dos outros seres vivos, é aí mesmo que ele exprime o que a vida tem de mais fundamental (MORIN, 1970, p. 16).

Morin busca estudar a morte ao enaltecer a preocupação que o homem

destina ao seu fim e como isso o torna diferente dos outros seres vivos por atribuir

um sentido à morte e, principalmente, ao que pode acontecer após isso. Para o

antropólogo, os homens creem em certa continuidade, que é expressa nas

cerimônias que se estabelecem diante da morte.

Analisando o texto de Edgar Morin, vê-se o homem enquanto sujeito que

se preocupa com a morte e com os seus mortos. O autor provoca uma regressão à

Pré-História, onde já é possível identificar o cuidado com a morte nos mais

longínquos antepassados. Os Neanderthais “não eram os brutos que se dizia.

Deram sepultura aos seus mortos” (MORIN, 1970, p. 23).

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Durante vários anos houve uma extrema valorização da sociedade pela

técnica de fabricação de utensílios, de modo que o Homo Faber ganha maior

visibilidade, fazendo com que a maior parte dos estudos fossem voltados para a

produção de utensílios. Para o francês Morin, essa supervalorização da técnica

causou um déficit na compreensão de outras áreas que são mais sensíveis, mas

que, de igual modo, são fundamentais para a compreensão das relações sociais

desses sujeitos.

As primeiras indicações sobre a nova orientação do homem foram dadas pelos utensílios de sílex em bruto e por vestígios de lares. Contudo, em breve surgiram outras provas de humanização, em minha opinião muito mais impressionante: as sepulturas. Não só o Neanderthal enterra seus mortos, como também os reúne por vezes (MORIN, 1970, p. 23).

Partindo de uma análise da relação do homem com a morte, Edgar Morin

compara a valorização dada aos utensílios com a valorização que, segundo ele,

deveria ser dada também aos ritos da morte. “Os mortos são a imagem dos vivos;

tem armas, caçadas, desejos, cóleras” (MORIN, 1970, p. 24). Assim, a sepultura

seria uma espécie de utensílio, mas com uma diferente aplicação: enquanto o

utensílio, em forma de ferramentas ou de armas, seria uma extensão do corpo, a

sepultura seria uma extensão da vida, tendo em vista a noção de continuidade que,

segundo o autor, está condicionada a todos os homens.

Nesse sentido, as sepulturas podem ser provas de humanização. Só é

possível compreender a humanidade da morte ao compreender a especificidade do

humano. Segundo o que atesta Morin ao classificar a sepultura como dado principal,

fundamental e universal da morte humana,

Os mortos musterianos são enterrados; amontoam-se pedras sobre seus despojos, cobrindo particularmente o rosto e a cabeça. Mais tarde, parece que o morto é acompanhado pelas suas armas, ossadas, alimentos. O esqueleto é besuntado com uma substância cor de sangue. As pedras funerárias estão lá para proteger o morto dos animais ou para impedir de reaparecer entre os vivos? O cadáver humano já suscita emoções que se socializam em práticas fúnebres e a conservação do cadáver implica um prolongamento da vida. O não abandono dos mortos implica na sua sobrevivência (MORIN, 1970, p. 24).

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Pode-se, assim, tentar entender as relações com os mortos na Pré-

História ao observar certa familiaridade com estas atitudes que, hoje, são chamadas

de fúnebres, quando se compreende o que diz Morin sobre esses rituais. Ele afirma

que nenhum grupo humano, por mais primitivo que seja, abandona seus mortos e,

se o faz, isso se dá através de rituais, como o exemplo utilizado pelo autor dos

Koriaks do leste siberiano, que depositam seus mortos no mar, os quais, nesse caso

específico, são confiados ao oceano, e não desprezados (MORIN, 1970, p. 25).

Nessas temporalidades passadas, a morte é a primeira impressão, uma

espécie de alongamento da vida, algo que se prolonga, seria uma imagem e não

uma ideia; não existia um conceito consolidado, mas se falava sobre um sono ou

uma viagem, por exemplo. “Até a era do progresso científico os homens admitiam

uma continuação depois da morte” (ARIÈS, 2014, p. 125).

Como já foi mencionado, Morin entende que os seres humanos têm um

anseio pela continuidade da vida e, sendo assim, o funeral seria esse momento de

aquisição da imortalidade unido a um conjunto de práticas mortuárias. Nesse

contexto, a sepultura seria uma espécie de marco dessa tão almejada imortalidade,

uma vez que, ali, o morto poderia ser visto e rememorado (MORIN, 1970, p. 26).

Partindo de uma abordagem antropológica e entendendo um pouco como

o homem pré-histórico se relacionava com a morte, nesse momento será observado

como se dava essa relação, ora de amor e proximidade, ora de terror e

distanciamento, em outros momentos da história.

Na Antiguidade, segundo Philippe Ariès, os mortos eram temidos e, por

isso, deveriam ficar distantes das cidades, de forma que os cemitérios eram sempre

construídos fora dos muros das cidades e/ou ao longo das estradas (ARIÈS, 2014,

p. 32). Porém, a historiadora carioca Claudia Rodrigues contrapõe-se ao historiador

francês quando afirma que, no mesmo período, o culto aos mortos era um costume

familiar e doméstico, tornando, assim, a sepultura em um local de encontro para a

realização do que a autora descreve como banquete funerário. Nesse contexto, as

famílias reuniam-se em torno do túmulo para ofertar toda piedade ao morto que

integrava o contexto da época, “oferecendo assim esses banquetes sobre as tumbas

– cada família possuía seu túmulo – ocasiões nas quais a „parentela‟ se reunia para

uma refeição funerária” (RODRIGUES, 2005, p. 41).

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Aprofundando e estreitando os laços com a morte, chega-se à Idade

Média, e é interessante retomar alguns pontos relativos à Antiguidade, quando

necessário, para a explicação de determinados contextos. Nesse momento,

constata-se o homem que, diante da morte, encontra maneiras de preparar sua

passagem para o outro mundo. O que, segundo o historiador francês Philippe Ariès,

seria uma relação muito íntima com a morte, a ponto de senti-la, orquestrá-la e

domá-la.

São encontrados variados exemplos medievais de como se devia esperar

a morte, quais medidas tomar e quais posições adotar. Além disso, a aparelhagem

em torno das cerimônias fúnebres ia especializando-se ao longo dos primeiros anos

do período Medieval com a ampliação dos ritos e pompas fúnebres, fomentados pelo

cristianismo principalmente no Ocidente.

Eles não morriam de qualquer maneira: a morte era regulamentada por um ritual costumeiro descrito com benevolência. A morte comum, normal, não se apoderava traiçoeiramente da pessoa, mesmo quando era acidental em consequência de um ferimento, mesmo quando era causada por uma emoção demasiada, como muitas vezes acontecia. Sua característica essencial é que ela dava tempo para ser percebida (ARIÈS, 2014, p. 6).

Os vínculos entre o morrente e sua companheira, a Morte, eram estreitos

ao ponto de que “só o moribundo avaliava o tempo que lhe restava” (ARIÈS, 2014,

p. 6). Logo, é por perceber essa relação íntima do homem diante da morte que o

autor faz uso do termo „domada‟. Essa proximidade desencadeou um processo de

romantização da morte, fortemente ligada à emotividade, fato que em períodos

anteriores não era perceptível e que perdurou até o período do barroco (ARIÈS,

2014, p. 6).

A morte era sentida e anunciada por meio de presságios muitas vezes

visíveis, como no exemplo citado por Ariès, em que “tristão sente que sua vida se

perdia, compreendeu que ia morrer” (ARIÈS, 2014, p. 7). A cena utilizada aqui

remete à forte emotividade viril que foi mencionada anteriormente, pois perceber que

a morte que se aproximava era, acima de tudo, um sinal de nobreza, mesmo que no

decorrer dos anos esse pensamento tenha se invertido (ARIÈS, 2014, p. 7).

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Segundo a mentalidade medieval, os mortos sempre rodeavam os vivos,

entretanto, essa presença mística só era perceptível ao que estava prestes a morrer,

como afirma Ariès: “Alguns pressentimentos tinham caráter prodigioso: um deles,

especialmente, não enganava: aparição de uma alma do outro mundo, mesmo que

apenas em sonho” (ARIÈS, 2014, p. 7). Ademais, esse acontecimento poderia se

dar com bastante antecedência. Associado a isso, estavam o surgimento e o

fortalecimento dos tabus em torno da morte e do além e a idealização de presságios

horripilantes que compunham o ritual de morte, como, por exemplo, o aparecimento

das aves que dão azar, os móveis que estalam, os números maléficos, entre outros.

E é interessante notar que esse costume perdurou e é comum até hoje, ainda que

acontecendo ou sendo comentado de maneira muito discreta (MORIN, 1970, p. 30).

Sendo a morte sentida, essa era vivenciada veementemente pelo

morrente, além de acompanhada de sinais e longos preparos. Entre esses métodos,

o moribundo organizava o calendário para sua morte, desde ordenar

antecipadamente as missas a planejar todo o serviço fúnebre, como afirma Ariès, ao

falar da morte da Madame Rhert, que “mandou preparar as pompas fúnebres,

revestir o lar de negro e antecipadamente dizem-se missas pelo repouso da sua

alma (...) tudo isso antes de sentir qualquer mal” (ARIÈS, 2014, p. 10).

Em contrapartida a esse pensamento, no século XVIII, a Mors repentina

não era vista com bons olhos, era considerada “feia e desagradável” (ARIÈS, 2014,

p. 12). A morte nobre, ao contrário, deveria ser anunciada, e essa declaração

compunha os padrões classificadores da nobreza, uma vez que “a mors repentina

era considerada infame e vergonhosa” (ARIÈS, 2014, p. 12).

Quando não podia ser prevenida, deixava de aparecer como necessidade temível, mas era esperada e aceita de boa vontade ou má vontade. Ela rompia então a ordem do mundo, na qual todos acreditavam, como um instrumento absurdo do acaso, por vezes disfarçado da cólera de Deus (ARIÈS, 2014, p. 12).

Por haver, na época, certa familiaridade com a morte, como explica

Philipe Ariès, essa seria a razão pela qual a morte súbita era entendida como uma

morte “desonrosa, que aterrorizava, parecia estranha e monstruosa, e dela não se

ousava falar” (ARIÈS, 2014, p. 13). Se fosse assim, não dava tempo de o indivíduo

presidir as cerimônias que encerrariam sua vida terrena. Cerimônias essas que,

além de status e prestígio social, davam ao morto fácil acesso ao divino.

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Com essa familiaridade com a morte, os ritos fúnebres tornavam-se

intrínsecos à realidade medieval. Para o moribundo desse período, ao pressentir a

morte era necessária a realização de certo protocolo: entender e aceitar a

proximidade da morte eram essenciais para que esse momento fluísse bem e sem

maiores complicações post mortem. Após assimilar que o seu fim terreno estava

próximo, o moribundo tomava certas atitudes que compunham o ritual, e essas

ações detinham um caráter cerimonial (ARIÈS, 2014, p. 23).

Existia, diga-se, certo domínio sobre a morte, e, por isso, a ideia de domar

sugerida por Phillipe Ariés. Ao perceber seu fim o moribundo,

deitou-se com o rosto para o céu, voltado para o oriente, as mãos cruzadas sobre o peito, que tinham caráter cerimonial, ritual. Era preciso ainda uma profissão de fé, a confissão dos pecados, o perdão dos sobreviventes, as disposições piedosas que lhe diziam respeito, a recomendação da sua alma a Deus, a escolha da sepultura (ARIÈS, 2014, p. 23).

Após esse momento, restava ao agonizante esperar a morte e, durante

essa espera, não deveria dizer coisa alguma, esperaria o grande momento em

silêncio e jamais pronunciaria outra palavra. Sobre esse silêncio pela espera do

último suspiro acreditava-se que poderia ser controlado pela vontade humana,

prolongando um pouco mais o tempo de vida ou partindo de vez para o além

(ARIÈS, 2014, p. 23). Enquanto agoniza em silêncio, os familiares que assistiam à

morte deveriam interceder pela alma do que estava prestes a partir, e a invocação

de todos os santos e anjos católicos era fundamental. Afinal, era necessário que a

alma fosse conduzida ao céu, e nada melhor que a boa companhia dos santos.

Ainda no século XVIII, entre as características da morte estavam a

simplicidade familiar e o morto acompanhado de seus familiares, dos quais se

despedia. Outro fator era a publicidade (no sentido de tornar pública a morte), em

que o moribundo deveria atrair todas as atenções. Segundo Philippe Ariès, essa

última característica permanece até os fins do século XIX, uma vez que morrer

sozinho era uma das piores coisas que se poderia acontecer. Nesse contexto, o

moribundo deveria ser o centro das atenções. As preparações começavam cedo, e

quando o indivíduo sentia que ia morrer tratava de pedir perdão aos que estavam a

sua volta, como no caso da Madame de Montesan descrito por Ariès, que pediu

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perdão até ao mais simples dos empregados que lhe fazia quarto durante toda a

noite, pois cabia ao moribundo presidir a cerimônia de morte (ARIÈS, 2014, p. 23).

Entretanto, com o advento dos médicos higienistas no fim do século XVIII,

começam a surgir os alertas contra as grandes multidões que assistiam aos últimos

momentos dos moribundos, mas esse discurso demora a tomar forma, pois, ainda

no início do XX, qualquer pessoa poderia acompanhar o viatico até o quarto do

agonizante. Morrer era algo público e admirável. Além da ideia de interseção, a fé

católica orienta os fiéis a prestarem assistência uns aos outros e, nesse sentido,

estar presente na morte do outro também era encarado como sinal de unidade.

Assim, os que acompanhavam os últimos momentos do moribundo, além de estarem

unidos fisicamente, também estariam unidos espiritualmente em orações.

Mas como era vista a morte? No início da Idade Média, a morte era

entendida como repouso ou descanso: “o repouso é ao mesmo tempo a imagem

mais antiga, mais popular e mais constante do além” (ARIÈS, 2014, p. 23). E esse

repouso aconteceria em um jardim florido como uma réplica do paraíso, ao contrário

do tormento que acontecia, simultaneamente, no inferno, e a Idade Média trata disso

com maestria por intermédio da arte e ensina ao povo o destino da alma após a

morte. O céu seria o lugar para onde iriam os justos e era descrito como um “lugar

de refrigério, satisfação e alegria” (ARIÈS, 2014, p. 32).

A atitude antiga que vê a morte ao mesmo tempo próxima, familiar e diminuída, insensibilizada, opõe-se demais à nossa, onde nos causa tanto medo que ousamos dizer-lhe o nome. E por essa razão que, ao chamarmos essa morte familiar e morte domada, não queremos dizer com isso que antes ela tenha sido selvagem e, em seguida domesticada. Queremos dizer, pelo contrário, que ela se tornou hoje selvagem, enquanto anteriormente não era. A morte mais antiga era domada (ARIÈS, 2014. p.32).

Essa atitude de familiarização com a morte e o morto não nasceu de uma

hora para outra e, portanto, como todo processo histórico, leva tempo para se

concretizar. Tem início com a penetração dos cemitérios nas cidades ou vilas,

momento de transição do pensamento ligado à Antiguidade, que afastava os mortos

das cidades, para Medievo, período em que os mortos eram muito estimados e a

morte, muito planejada.

Para a historiadora Claudia Rodrigues, o combate da Igreja às práticas

antigas greco-romanas colocou os mortos sob seu domínio “direto e simbólico”

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(RODRIGUES, 2005, p. 43), conseguindo, gradativamente, o monopólio das

sepulturas e sepultamentos, introduzindo-os nas cidades, depois nas basílicas e,

posteriormente, nas igrejas. Tal instituição ainda introduzia de forma progressiva a

prática dos sepultamentos ad sanctos, apud eclesiam como expressão da nova e

crescente fé na ressurreição (RODRIGUES, 2005, p. 43).

O cristianismo é, segundo Edgar Morin, “o ódio da morte” (MORIN, 1970,

p. 194), e tem nessa última um ponto fixo de onde emergem variadas doutrinas,

girando em torno da morte do “Cristo, [aquele que] só existe para e pela morte, trás

consigo a morte e vive da morte” (MORIN, 1970, p. 194). Nesse sentido, Jesus

aparece como a “salvação do homem à encarnação e a redenção do Cristo”

(MORIN, 1970, p. 194) e a Igreja propaga esse ensinamento autodenominando-se

caminho para essa salvação. A partir disso, então, existe a necessidade de

privatização de tudo que fosse relacionado às formas de tratamento nos momentos

antes, durante e depois da morte (MORIN, 1970, p. 194).

Além do medo do momento da morte, o que mais aterrorizava os fiéis dos

séculos XVII e XVIII era o que poderia acontecer-lhes depois desse momento, e

para onde iam suas almas era um questionamento pertinente, haja vista que a Igreja

católica era, obviamente, a grande propagadora dos discursos post mortem. É

possível notar, por exemplo, nos testamentos, que, para a época, ela era

fundamental como meio facilitador da salvação: “Temendo-me da morte e não

sabendo o que Deus será servido dar-me faço esse testamento” (RODRIGUES,

2005, p. 40).

A Igreja passa a exercer controle sobre as atitudes dos fiéis diante da

morte e um dos fatores relevantes para isso foi a elaboração da liturgia dos mortos

durante a Idade Média, a partir do qual o clero se torna o principal interlocutor entre

os vivos e os mortos (RODRIGUES, 2005, p. 40).

A Igreja católica começa a intervir nessa relação apetitosa entre os vivos

e os mortos a partir do século IV, condenando eclesiasticamente os banquetes

fúnebres, alegando constituírem práticas pagãs. Isso acontece a partir do Edito de

Milão, quando o imperador Constantino começa a promover a oficialização do

cristianismo (RODRIGUES, 2005, p. 42).

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A partir do final do século IV, surgiram as primeiras condenações de eclesiásticos ao banquete como forma de culto aos mortos e aos santos, por serem vistos como expressão de „mentalidade pagã‟, devido ao ato de se comer e beber e de se cantar e dançar junto as sepulturas dos santos mártires, encaradas como local sagrado. Apesar destas proibições, os banquetes funerários permaneciam como elemento essencial do culto aos mortos entre os leigos. (RODRIGUES, 2005. P. 42).

Nesse processo, “a sepultura eclesiástica seria considerada como uma

das condições básicas para a obtenção da salvação da alma, como um pilar do

dogma da ressurreição” (RODRIGUES, 2005, p. 43). Existia, porém, o medo de

morrer sem ser sepultado e não ser salvo, uma vez que, pela crença em vigor, a

sepultura era fator condicionante para a ressurreição do corpo. Para que o corpo

ressuscitasse glorioso na volta de Cristo, seria necessário que ele estivesse inteiro,

sendo esse o principal motivo do surgimento dos enterramentos ad sanctos, pois

asseguravam, além de proteção espiritual, a integridade física do corpo

(RODRIGUES, 2005, p. 43).

Mas, para combater as práticas pagãs nos banquetes funerários, a Igreja

providenciou uma estrutura de trocas, recebendo os banquetes como forma de

doações em troca de preces pela alma dos mortos. Numa espécie de intercâmbio,

os vivos realizavam boas ações, e alimentar os pobres era equivalente a sanar a

necessidade de preces aos mortos (RODRIGUES, 2005, p. 44).

Paralelamente ao incentivo da prática de dar esmolas aos pobres no dia do sepultamento, a igreja substituiu a refeição funerária pela refeição eucarística, o que cada vez mais implicaria a presença do clero como realizador das cerimônias, no sentido de normatizar a liturgia fúnebre (RODRIGUES, 2005, p. 44).

Nos séculos XI e XII, segundo Claudia Rodrigues, ocorreu uma

acentuação da clericalização do culto aos mortos, e o clero assegurou a

exclusividade na celebração dos ritos fúnebres, de modo que essa “se tornaria uma

das tarefas principais de todo o clero” (RODRIGUES, 2005, p. 44). Aconteceu,

assim, no século XII, a institucionalização do culto aos mortos no dia 2 de novembro.

Isso se deu, em grande parte, nas comunidades monásticas, que, durante esse

período, especializaram-se e monopolizaram o culto e a comemoração dos mortos.

Nessa perspectiva, a missa passa a ser entendida como o principal sufrágio, o que

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expressa de forma clara o posicionamento da Igreja sobre a mediação entre vivos e

mortos promovida pelo clero, pois o intuito, nesse momento, era o de impedir a

realização de ritos ou cerimônias domésticas tidas como supersticiosas.

No século XIII, o cuidado dos mortos seria estendido a todos os padres, e

não apenas as comunidades monacais. A partir desse momento, os leigos começam

a orar pelos mortos. Se nos séculos anteriores estava bem delimitada a função dos

leigos de doar alimentos e dos monges, de orar pelos seus mortos, nesse momento

esse pensamento começa a ser diluído e os leigos começam a orar pelos defuntos,

respaldados nas confrarias que surgiam com o intuito de ofertar uma boa morte aos

seus confrades. A boa morte era entendida, nesse contexto, como todo o conjunto

de práticas voltadas para o bem estar espiritual do morto (RODRIGUES, 2005, p.

44).

Nessa perspectiva, surge o terceiro lugar: a partir da elaboração da

doutrina do purgatório e da liturgia dos mortos, as orações pelas almas tendem a

ampliar-se. O purgatório, nesse sentido, seria compreendido como um além

intermediário, no qual os mortos passariam por uma provação temporária que

poderia ser abreviada pelos sufrágios dos vivos, aumentando, assim, as chances de

salvação da alma e intensificando fortemente as relações de trocas entre vivos e

mortos, uma vez que, a partir de agora, os vivos poderiam amenizar os castigos

temporários do purgatório, expurgando com preces os pecados veniais, ou seja,

aqueles que, segundo a Igreja, são perdoáveis. O morto passaria, então, por uma

espécie de purificação passiva (RODRIGUES, 2005, p. 48).

Este além intermediário estaria estreitamente ligado à concepção de um tipo de pecado intermediário, ligeiro, quotidiano, que passou a ser identificado como „pecado venial‟, ou seja, perdoável. Assim, o Purgatório surgiria essencialmente como lugar de purgação dos pecados veniais. Esta concepção de purificação depois da morte far-se-ia acompanhar do investimento que a Igreja fez, a partir das séculos XII e XIII, em torno da confissão auricular como elemento primordial do processo penitencial (RODRIGUES, 2005, p. 46).

O purgatório aparece como acentuador dos medos referentes aos últimos

instantes, e entra em cena o que ficou conhecido como pedagogia do medo. Os

padres intensificaram, nesse momento, os sermões que falavam sobre a morte e,

principalmente, sobre o purgatório, servindo, assim, como meio de a Igreja controlar

as atitudes dos fiéis diante da morte, o que levava os vivos a refletirem sobre a sua

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própria morte. Essa pedagogia do medo foi impulsionada pela chamada escatologia

individual, que instruía que, após a morte, haveria um julgamento individual,

indicando imediatamente o destino da alma para o céu, para o purgatório ou, na pior

das hipóteses, para o inferno.

Para Jacques Le Goff, o sistema do purgatório teve duas consequências:

a primeira foi dar uma renovada importância ao período que compreendia a morte; a

segunda implicou numa definição e estreitamento dos laços entre vivos e mortos, no

caso, os sufrágios (LE GOFF, 1993, p. 346-347).

A quem aparecem as almas do Purgatório? Para pedir socorro? Primeiro, a família carnal, ascendentes ou descendentes. Depois ao cônjuge – e especialmente nos séculos XIII é importante o papel das viúvas dos mortos do Purgatório (LE GOFF, 1993, p. 347).

Sendo o período entre os séculos XII e XIII fundamentais para o

fortalecimento da doutrina do purgatório, essa ideia ganha raízes mais profundas a

partir dos séculos XV e XVIII, aprofundando-se nas crenças da sociedade cristã

católica e assinalando um reforço à doutrina, posteriormente, no Concílio de Trento

e com as ações contra a reforma protestante (RODRIGUES, 2005, p. 50).

No empreendimento da pedagogia do medo, o direcionamento para as

penas do purgatório e o fogo feroz do inferno tinham lugares especiais e foram

pontos fortes que, séculos depois, ainda ocupariam lugar fundamental no imaginário

do homem sobre a morte.

Não foi por acaso que nos séculos XIV e XV surgiram, segundo Michel Volvelle, como o período de ouro das representações em torno da imagem do inferno, justamente no momento em que os temas medievais, dominados pela imagem da punição coletiva – em torno do juízo final –, cederam lugar ao julgamento particular, que se fez acompanhar, com força, do medo da punição e do castigo. Nesta pedagogia do medo, os pregadores mendicantes tiveram lugar essencial e cada vez mais importante nos séculos seguintes (RODRIGUES, 2005, p. 50).

Os mendicantes seriam aqueles que zelavam pelo moribundo, redigindo o

testamento, bem como registrando suas últimas vontades. Seriam eles os principais

propagadores da crença no purgatório. Associados à pedagogia do medo,

multiplicavam-se tratados de pregação, que eram escritos e divulgados pelos

mendicantes e que incentivavam os fiéis a não se surpreenderem pela morte, mas,

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sim, prepararem-se para esse momento. Utilizavam estratégias para essa

preparação para a morte e recomendavam a administração dos sacramentos a fim

de livrar o moribundo das chamas infernais (RODRIGUES, 2005, p. 51).

No processo de clericalização da morte, foram estabelecidos pela Igreja

recursos para garantir a salvação da alma no momento do juízo, ou seja, a “boa

morte” (RODRIGUES, 2005, p. 51). Essa se dava por intermédio de ritos

tranquilizadores que apelavam para a proteção dos santos, diminuindo, assim, os

impactos causados pela pastoral do medo.

Nesse processo de tranquilizar os fieis, exercia importante função, dentre outros fatores o culto dos santos, que eram vistos como intercessores especiais diante da morte. Com efeito, um dos traços mais fortes da religião nessa época foi a proliferação das formas de devoção à Virgem Maria e a toda uma rede de santos funcionando como intermediários diante de Deus, por ocasião do julgamento da alma imediatamente após a morte (RODRIGUES, 2005, p. 52).

Mesmo a Igreja fazendo uso do medo, ela oferecia a esperança e a

segurança por intermédio do culto aos santos, principalmente aqueles que tinham

especial importância na hora da morte, a exemplo de São José, que era considerado

patrono da boa morte, aquela acontecida na velhice e em tranquilidade.

Entre as práticas de ensinar a bem morrer surge uma espécie de leitura devocional o Breve aparelho e modo fácil de ensinar a bem morrer o cristão, do Jesuíta Estevam de Castro, a Igreja assim incentivava ao fiel a se preparar para a morte. Para o pensamento da época a preocupação se voltava para o que poderia acontecer com a alma naquele momento de fragilidade. Apesar de ter sido produzido no contexto das artes moriendi do periodo pós tridentino, que valorizavam a preparação longínqua e cotidiana para a morte, o breve aparelho apresentou maiores semelhanças com os últimos momentos. Esta preocupação pode ter influído na organização do texto em torno da doença. Afinal, em se tratando de coisa repentina e certa, como afirmou Estevam de Castro, a hora da agonia ou a iminência da morte seriam ocasiões em que a alma do fiel, por passar por uma grande tribulação, deveria ser ajudada no seu combate contra as forças demoníacas (RODRIGUES, 2005, p. 63).

Contudo, havia uma preocupação dos sacerdotes para que os fiéis não

deixassem para a última hora essa preparação, mas que fosse programada durante

toda a vida. Antes de tudo, o manual do bem morrer orientava o sacerdote ou quem

estivesse acompanhando o moribundo a induzi-lo a fazer o testamento, além de

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ensinar como elaborá-lo, buscando os sacramentos, em contrição, orações, preces e

atitudes convenientes.

No Seridó, dispõe-se de alguns trabalhos que exploram a História da

morte, como a monografia de Cristina Galvão Ribas e Maria das Neves Santos

Medeiros, intitulada “Os mortos vistos pelos vivos: fragmentos do imaginário sobre a

morte na Comarca do Príncipe (Século XIX)”, na qual as autoras versam sobre as

narrativas presentes nos testamentos da antiga Comarca do Príncipe como sendo

representações do imaginário, tendo as ações descritas nesses documentos o

almejo de uma boa morte.

Esse apanhado geral feito sobre a História da morte foi necessário para

se entender o lugar que o objeto do trabalho ocupa. Se entre as ações do homem

diante da morte as orações e súplicas ocupam um lugar de destaque, como foi visto

acima, é importante compreender os percursos históricos que essas preces

percorreram até chegarem ao município de Jucurutu em forma de incelências, uma

vez que essas são orações cantadas em torno do morto a fim de conduzi-lo ao céu e

consolar os que ficam.

Como se percebe ao longo desse capítulo, as ações do homem em torno

da morte dão-se pela ideia de continuidade e é o motivo pelo qual o homem se

preocupa com a mesma; surgem os rituais fúnebres, que, como foi visto, mesmo

sendo estruturalmente simples são carregados de significados, e esses são

materializados nos enterramentos, nos adornos confeccionados para vestir o morto,

na sepultura, além de serem demonstrados no momento do morrer, quando o morto

é cercado de súplicas em favor da alma, nos ritos e nas preces dos momentos

antes, durante e depois da morte.

No capítulo seguinte, busca-se entender quais documentos regiam as

idades das infâncias e quais discursos davam fomento a essas regras. Dessa forma,

propõe-se uma discussão sobre a morte infantil, tentando entender qual papel que a

criança morta ocupa na sociedade, delimitando, assim, as idades da infância e

problematizando os ritos que se realizavam em volta da criança morta, que era

chamada de anjinho.

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CAPÍTULO 2 OS ANJINHOS E A PERCEPÇÃO DA MORTE INFANTIL

No capítulo anterior, observou-se o desenrolar dos comportamentos humanos

perante a morte no Ocidente. Desde os desdobramentos físicos, como os

enterramentos, aos sensíveis, como as orações, as quais, no presente trabalho,

ganham maior visibilidade, percebe-se como as preces em torno do morto

desenvolveram-se e como se estabeleceram no conjunto ocidental de práticas

ritualísticas em torno da morte. Viu-se como se deu o processo de apropriação por

parte da Igreja católica dos ritos fúnebres e quais as implicações desse processo

nas atitudes do homem diante da morte, até chegar ao resquício dessas orações, as

incelências, que perduraram até meados do século XX no município de Jucurutu.

Neste segundo capítulo, é feita uma análise do que se denomina “anjinhos”.

Busca-se compreender como se delimitou, ao longo dos anos, a ideia da infância e

da morte infantil e quais são os documentos que estipulam e ditam as regras para a

percepção por parte da sociedade do que é e não é criança – e neste caso,

especificamente, do que pode ser considerado como morte infantil. É feita também

uma análise dos aspectos que caracterizam a criança morta e que lhe conferem o

título de anjo. Em seguida, examina-se uma amostra documental referente ao

obituário do Segundo Cartório de Notas de Jucurutu, além das falas das narradoras

envolvidas nesta pesquisa sobre os anjos para que se tenha real noção da

quantidade de mortes infantis no recorte espacial aqui delimitado.

Já foi visto como se estabeleceram as orações e preces em torno do morto,

de modo que, agora, propõe-se entender como a criança morta foi entendida ao

longo da História. Luiz Lima Vailati, no livro “A morte menina: infância e morte infantil

no Brasil dos oitocentos (Rio de Janeiro e São Paulo)”, fala de como os viajantes da

Europa Central e dos Estados Unidos reagiam ao se depararem com as ações

fúnebres em torno do morto em terras brasileiras, o que classificavam como sendo

algo de cunho espiritual primitivo, atribuindo, de modo geral, a culpa desses atos à

Igreja católica. Segundo Vailati, quando esses viajantes comparavam os rituais

fúnebres de adultos e crianças, eles ficavam ainda mais surpresos devido ao

contraste entre as duas práticas: para os mortos adultos, “Cerimonial

circunspecto/tristeza x morte de criança/cerimonial/festivo/júbilo” (VAILATI, 2010, p.

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18). Essa conotação festiva em torno da morte infantil e os motivos desse

rejubilamento são comentados mais adiante.

Vailati constatou uma característica entre os ritos infantis e adultos nos anos

mil e oitocentos que os distinguia. Com o objetivo de identificar onde se localizava

essa diferença, “viu-se que eram dedicadas à criança morta práticas diferenciadas,

discriminando-a de forma privilegiada, dos outros mortos” (VAILATI, 2010, p. 75).

Primeiramente, é importante atentar-se para o fato de que a ideia que se tem

de criança nos dias atuais é bem distinta do que se entendia por criança alguns anos

atrás. Segundo Ariès, parecia não haver lugar para a infância no mundo medieval,

por exemplo. Dessa forma, fazendo uma análise das obras de arte desse período,

Ariès constata que: “Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a

infância ou não tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à

incompetência ou falta de habilidade” (ARIÈS, 1978, p. 52).

A criança não estava excluída da Idade Média, pelo menos não a partir do

século XIII, como afirma Ariès. Isso pode ser explicado pelo fato de que as figuras

do anjo infantilizado e das infâncias santas remontam a esse século e, mesmo

assim, a infância aparecia como uma “fase sem importância” (ARIÈS, 1978, p. 56).

As crianças morriam em grande número e as práticas observadas em torno dessas

mortes (enterramentos em casa ou no jardim, por exemplo) fizeram com que

Phillippe Ariès levantasse o seguinte questionamento: “Ou será simplesmente as

crianças mortas muito cedo eram enterradas em qualquer lugar, como hoje se

enterra um animal doméstico, um gato ou um cachorro?” (ARIÈS, 1978, p. 57). Essa

questão alimenta o pensamento sobre qual o lugar que a criança ocupou na

sociedade e, principalmente, onde se localiza, socialmente, a criança morta,

atentando-se para as classificações em torno desses sujeitos sociais.

Para tanto, faz-se necessário entender quais eram os limites que definiam o

que era ser criança no Brasil dos anos mil e oitocentos, pensamento que, de certa

forma, pelo que foi possível perceber por meio de relatos orais coletados para esta

pesquisa, permaneceu até a temporalidade delimitada para a execução deste

trabalho. As Ordenações Filipinas, o corpo de leis que regia o comportamento tanto

jurídico quanto religioso em torno da morte, davam indicações quanto aos

testamentos e impunham que o menino menor de quatorze anos e a menina menor

de doze não poderiam testar. Seria esse já um marco na demarcação do que seria o

fim da infância.

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Ainda nos documentos de cunho regulador, vê-se que as Constituições

Primeiras do Arcebispado da Bahia fizeram poucas referências à existência de um

limite etário para a aplicação dos ritos, com exceção da extrema unção, que é

negada aos meninos que não fazem uso da razão. Entretanto, tais Constituições

ainda fixam o limite de sete anos para o toque diferenciado dos sinos pelos defuntos.

A idade de sete anos parece ser a mais aceita pelos códigos reguladores, como é

possível observar no Ritual do Arcebispado da Bahia, do padre Lemos (1863),

determinando a aplicação da extrema unção a todo aquele maior de sete anos de

idade. Essa demarcação etária também definiu os procedimentos referentes ao uso

de mortalhas, adereços para o corpo, preces e uma série de cuidados que foram

fundamentais para a percepção da infância (VAILATI, 2010, p. 77).

Esse corpus documental dá condições para verificar como as práticas efetivas dessa sociedade se comportam frente às normas expostas nos manuais eclesiásticos relacionados aos limites de idade que devem ser observados nos comportamentos em torno da morte (VAILATI, 2010, p. 78).

Sendo assim, fica claro que a idade do defunto é fundamental na definição de

quais práticas fariam parte do rito fúnebre. Além disso, como é possível observar

nesse corpus documental, além de estipular o limite etário definindo um conjunto de

práticas fúnebres voltadas para os menores de sete anos, dá as diretrizes para os

registros dos mesmos, fixando, dessa maneira, “o limite de idade em que nas

práticas fúnebres se exerce tal distinção entre adultos e crianças, está localizado ora

por volta dos sete anos, ora entre os doze e quatorze anos” (VAILATI, 2010, p. 81).

O limite etário usado nesta pesquisa para definir a criança morta é a idade de sete

anos. Os motivos dessa escolha deram-se a partir da discussão sobre os registros

civis que foram utilizados como fonte e atrelados à narrativa das pessoas

entrevistadas.

Essas fronteiras entre a infância e a vida adulta marcam um momento de

transição em que o sujeito é conclamado a assumir seu lugar social, tomando

consciência dele. Nessa transição, o indivíduo passa a ocupar espaço no mundo dos

adultos e a ser percebido como um deles.

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O que significa a idade de sete anos? O que ela traz de novo, para que seja possível condiciona-la, por esse viés, ás peculiaridades da infância? No Brasil, durante o período abordado [oitocentos], a idade de sete anos figura como marco importante no processo de inserção da criança no mundo dos adultos (VAILATI, 2010, p. 86).

O conjunto de características que definiam a infância podia ser caracterizado,

por exemplo, pela competência para trabalhar. Entretanto, a inserção da criança no

mundo do trabalho não era o principal motivo dessa demarcação. Esse conjunto de

características era regido, sobretudo, pelo elemento fundamental na concepção de

criança: o uso da razão.

A malícia, no seu traço mais visível, isto é, a capacidade de discernir entre o bem e o mal, aparece, com efeito, como aquilo que configura o fim da infância e cuja ausência diz respeito ao seu principal predicado a inocência (VAILATI, 2010, p. 90).

A compreensão entre o bem e o mal seria o demarcador desse limite entre

infância e vida adulta, sendo a primeira caracterizada pela inocência dos atos ou a

incapacidade de fazer o mal ou pecar premeditadamente. Ainda nos anos mil e

oitocentos, este era o ponto de vista adotado nos âmbitos religioso e jurídico: a partir

dos sete anos de idade já seria possível que o indivíduo pecasse sem a inocência

dos anos anteriores.

Quanto às idades dos doze e quatorze anos, elas são consideradas o fim

efetivo da infância, marcando um momento de socialização entre a vida infantil e

adulta em que o sujeito aparece preparado para o trabalho, atendendo, assim, às

expectativas da sociedade. Seria um encerramento do processo de transição entre a

infância e a vida adulta, sendo esse período a “plenitude da malícia”, segundo a

qual, além da capacidade de pensamento próprio e de distinguir entre o bem o mal,

esse indivíduo já tem a capacidade de realizar relações sexuais. Para a Igreja, a

possibilidade de discernimento, e, para o Estado, o início da vida sexual atuava

como condicionante do limite entre infância e vida adulta.

Estritamente falando tudo isso denotava, em definitivo, a perda da inocência ou em outros termos, daquilo mesmo que resultava de uma

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natureza ainda imaculada que se atribui á criança e que em última instância a definia (VAILATI, 2010, p. 93).

Portanto, o que realmente definia o limite entre ser adulto e ser criança era a

competência para pecar. Na presente pesquisa, isso ficou bem claro, mesmo sendo

o recorte temporal pertencente aos meados do século XX. Percebe-se, por meio das

falas das pessoas entrevistadas, o quanto tem peso esse discurso do anjo que não

tem pecado. Tal pensamento pode até ser percebido na rigidez da escrita do registro

civil, que exprime a ideia de anjo, anjinho e corpinho ao classificar essas

nomenclaturas no registro de óbito.

E é por esse motivo que se delimita a idade de sete anos como marco

classificatório da infância. Essa demarcação é imposta pela documentação a que foi

possível o acesso, os registros de óbito do Segundo Cartório de Notas de Jucurutu.

Eles mostram que a maioria dos óbitos infantis acontecia antes de um ano de vida

(essa informação também é confirmada pelas narradoras), e o que era definido

como criança nesses registros estende-se até os sete anos. É interessante observar

a perpetuação desse discurso através dos anos, uma vez que o que se propunha

nos anos mil e oitocentos sobre a morte da criança acaba chegando até o século

XX. Mesmo que com algumas mudanças, a ideia principal, de cunho religioso,

permanece adotando o título de anjo, considerada a inocência do infante.

No Seridó, as idades da infância já foram discutidas por Cintia Medeiros de

Araújo no seu trabalho monográfico, no qual ela fez um acurado trabalho

relacionando as práticas em torno da morte infantil em Acari/RN entre 1835 e 1907.

A autora problematizou o fato de crianças serem enterradas com hábito preto,

fazendo, assim, uma análise do imaginário da morte, bem como de seus rituais.

Em Acari, por exemplo em 1836 e 1852 foi encontrada exatamente essa distinção(etária), que aos olhos dos contemporâneos parece estranho, mas é um fato real em que duas „crianças‟, uma de oito e outa de nove são descritas como adultas” (ARAÚJO, 2012, p. 57).

Agora que já é sabido como se define a criança no contexto colocado, é

importante entender as diferenças entre os rituais fúnebres de adultos e de crianças.

Percebe-se o caráter distintivo entre as duas práticas e os motivos pelos quais

promovem essa dissimilitude: “a morte da criança, na quase totalidade das atitudes

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situadas em torno dela, deslocada de um outro conjunto a que poderíamos chamar

de morte adulta” (VAILATI, 2010, p. 101). Entretanto, a criança estaria, segundo

Vailati, ausente das prescrições fúnebres.

Nas questões relativas aos procedimentos funerários, em especial aqueles que implicam uma participação mais direta dos padres e que são sistematicamente regulamentados, a criança se vê notavelmente excluída. A morte infantil aparece aqui como a situação na qual se deve dispensar a quase totalidade dos cuidados prescritos ao morto adulto” (VAILATI, 2010, p. 102).

Vê-se, assim, uma lacuna quanto ao que se podia/devia fazer a criança

morta. Se, por um lado, estaria bem claro o que não era permitido, por outro, nada

informava o que deveria ser feito. E isso abre uma imensidão de possibilidades,

fazendo com que os ritos em torno da criança morta ganhem traços bem peculiares.

O mais significativo de tudo, no entanto, é que, nas constituições, a decisão de proscrever para uma determinada faixa etária uma série de procedimentos rituais, vistos como inapropriados para esse grupo, não significou, como se poderia esperar, que as autoridades eclesiásticas esclarecessem o que havia de ser feito para o pequeno defunto (VAILATI, 2010, p. 102).

Essa exclusão da criança nos ritos referentes à morte por parte da Igreja

católica justifica-se, entre outros motivos, pela falta de mão de obra humana, visto

que os ritos que são dispensados para a criança morta são aqueles que têm ação

direta de um sacerdote, como administração dos sacramentos e missas. Para isso, a

saída da Igreja era afirmar que apenas o batismo era necessário para salvar a

criança e esse poderia ser feito por qualquer leigo.

O Concílio estava de acordo com a crença de que bastava apenas o batismo para a criança ser salva... nesse sentido, não é absurdo atribuir essa exclusão feita a morte infantil à situação da Igreja nos primeiros tempos de sua atuação no Brasil, entre outros motivos. Visto que a maior parte dos procedimentos rituais que são proibidos à criança diz respeito àqueles que pedem participação direta dos representantes da Igreja (VAILATI, 2010, p. 103).

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Portanto, sem a presença de um padre a morte infantil torna-se um “lugar em

que se pode quase tudo” (VAILATI, 2010, p. 104). As pessoas aproveitam-se dessa

não oficialização e criam ritos próprios e formas distintas de cuidar espiritualmente

de seus pequenos mortos.

Entretanto, é possível perceber que, mesmo não havendo uma oficialização

do que se podia fazer no momento da morte infantil, essa última não era

negligenciada. Talvez essa falta de oficialização gerasse nas pessoas um

sentimento que projetasse na morte infantil esmero, ocasionando a grande

festividade em torno da criança morta, além do cuidado no preparo dos adornos e

mortalhas. Se o cerimonial era deixado de lado pelas autoridades religiosas, as

pessoas apropriavam-se desse momento e faziam a manutenção das suas

representações coletivas.

A morte infantil é permeada por uma terceira característica: um investimento exagerado. O que aí se observa é um zelo significativo em proporcionar à criança morta uma série de procedimentos que essa sociedade julgar indispensáveis (VAILATI, 2010, p. 106).

A morte infantil revestiu-se de informalidade, o que lhe atribuiu um formato

festivo. Isso não quer dizer, entretanto, que o velório dos anjinhos fosse uma

festividade como outra qualquer, pois existiam formas específicas para esse tipo de

evento que se diferenciavam dos ritos para adultos. O evento voltado para a criança

era mais estético, enquanto que o rito do adulto era mais voltado para o espiritual

dogmático, que, por sua vez, era controlado pela Igreja.

Falou-se que uma das principais características dos funerais de crianças era o caráter festivo com o qual eles se apresentavam, destoando significativamente do clima lúgubre dos rituais de morte dos adultos. Também nesse aspecto, é notável uma nova configuração geral das práticas fúnebres pueris (VAILATI, 2010, p. 111).

É nesse sentido que Vailati comenta como era entendida de forma

comemorativa a morte infantil, uma vez que, sem pecado, o infante morto estaria,

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imediatamente, compondo a milícia de anjos celestes. Para o historiador João José

Reis, a criança não era considerada parte da sociedade civil e, pelo motivo de não

ter capacidade de discernimento, tornar-se-ia um anjo ao morrer desde que fosse

batizada. E talvez esse sentido festivo significasse, entre outras coisas, que a morte

infantil não era considerada tão grave quanto a morte adulta (REIS, 1991, p. 123).

É no batismo que a criança estaria segura, podendo desfrutar, após a morte,

dos privilégios angelicais que teria no céu. Como os códigos reguladores dos rituais

fúnebres deixavam, de certo modo, ladeados os cuidados com a morte infantil, o

batismo torna-se quase que o único rito que seria seguido à risca, acompanhado da

confecção e vestimenta da mortalha e de outros adornos que recobririam o corpo do

infante morto. “A exceção do batismo, os rituais da morte infantil se concentravam

no momento imediato após a consumação da morte” (VAILATI, 2010, p. 127).

Havia uma maior preocupação com a vestimenta do defunto tanto na época à

qual o estudo de Vailati se restringe quanto no recorte temporal selecionado para

esta pesquisa. No caso da criança morta, essa indumentária ganharia formas e

cores diferentes, fato que estaria ligado diretamente às superstições que se tinham e

também à representação que se fazia do outro mundo. Existia a crença de que o

corpo deveria estar paramentado conforme os padrões do reino celeste, e as

vestimentas ajudariam aquele que passava para o outro mundo a se localizar na

geografia celeste. Ou seja, a roupa mortuária tinha grande importância, pois ditava a

direção que a alma seguiria após chegar ao outro mundo.

Tendo origem em tempos nos quais a crença na separação entre corpo e alma após a morte não era algo bem definido, a ideia de que a forma como se era enterrado era também como se estaria no além chegou ao século XIX no Brasil (VAILATI, 2010, p. 127).

Como já mencionado, a morte infantil, ao mesmo tempo em que, de certa

forma, era negligenciada, conquistava certa liberdade perceptível nas roupas e

adereços fúnebres que enfeitavam o corpo. Era comum nos anos mil e oitocentos

um cuidado excessivo com o enxoval do morto, e nas crianças essa característica

ganhou ainda mais força, prova é o fato de

[...] que a mortalha da criança em nada devia a dos adultos mortos. Já nesse aspecto, os visitantes estrangeiros se mostraram

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favoravelmente surpresos pelo esmero que esses pequenos defuntos eram arrumados e expostos” (VAILATI, 2010, p. 128).

O caráter festivo em torno da morte infantil se dava, entre outros fatores, pela

inexistência do pecado, e o pouco interesse da legislação sobre esse tipo de morte

leva a certa liberalidade, como já apontado anteriormente, de forma que as pessoas,

então, viam na morte da criança certo consolo. Isso porque, no lugar do choro em

grande quantidade visto na morte dos adultos, na morte infantil esse sentimento dá

lugar ao júbilo e à certeza de mais um integrante na corte celestial. “Devido ao

estado de inocência com que se morria, não tinha necessidade de qualquer causa

expiatória, e só deveria haver, pois lugar para o rejubilamento” (VAILATI, 2010, p.

138). Essa afirmação também pode ser vista na fala das pessoas entrevistadas,

para as quais o momento era festivo pelo motivo de mais um anjinho estar ao lado

de Jesus.

“Nessa ocasião, torna a ficar evidente a associação feita entre a criança e a

figura do anjo, paralelo já constatável no uso do termo anjinho para designar a

criança morta” (VAILATI, 2010, p. 141). A roupa de anjo, além de reafirmar os

valores que eram projetados na criança morta – como a pureza, que ganha forma,

especificamente, nas vestes angelicais –, associa-se ao conjunto de rituais fúnebres,

materializando-se na mortalha de anjo, expressando, assim, entre outras coisas, a

representação do imaginário desta sociedade. “A ideia desse ingresso na Corte

Celeste está bastante de acordo com uma conduta ritual que, como vemos

mostrando, associa a morte infantil à boa morte” (VAILATI, 2010, p. 144).

A criança morta, ou melhor, o anjinho teria vantagens no além que

precisariam ser conquistadas aqui na Terra. Portanto, é interessante observar a

ligação da morte infantil com a “boa morte”, a necessidade de preparar o caminho

para o morto, mesmo que esse indivíduo, no caso, o anjinho já tivesse passe livre,

dada ausência de malícia. Dentro desse contexto, torna-se possível entender os

discursos em torno da morte infantil, como o da exigência do batismo e das

facilidades que a criança tem de, após a morte, estar no céu: “a exigência do

batismo para a salvação espiritual da criança que morre e o entendimento de que

ela é incapaz de pecar e, por conseguinte, está em melhores condições de ingresso

entre os eleitos” (VAILATI, 2010, p. 213).

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A mortalidade infantil passa ser vista com mais importância em meados do

século XX (RAGO, 1997, p. 126). Contudo, deve-se lembrar de que a cólera matou

inúmeras pessoas nos anos mil e oitocentos, como se pode notar na monografia de

Rosinéia Ribeiro de Almeida Silva, de 2003, “O Seridó em tempos de cólera:

doenças e epidemias na segunda metade do século XIX”. Além disso, observa-se

que essas mortes, inclusive de centenas de crianças, não foram efetivamente

registradas como foram no século XX. Um dos motivos para isso foi a quantidade

excessiva de mortes ocasionadas pela cólera. Apesar disso, a partir do XX os

registros civis tornar-se-iam mais comuns e com uma facilidade maior de acesso,

sendo também nesse século em que a sociedade começa, de certa forma, a

preocupar-se mais com a memória dos mortos. Portanto, ainda que o século XX

tenha um ápice de registros fúnebres, o auge da mortalidade infantil foi no período

devastador da cólera.

Ademais, ainda é possível localizar como causa dos elevados números de

mortalidade infantil os transtornos digestivos, distúrbios respiratórios, causas natais

e pré-natais (RAGO, 1997, p. 126). Dentro das documentações utilizadas nesta

pesquisa, os registros de óbito do Cartório de Jucurutu, encontram-se como as

causas mortis que mais aparecem nos registros a colerina, o crup, a congestão e a

dentição.

O que chama atenção é a grande quantidade de registros de crianças mortas,

tendo em vista todos esses fatores já elencados, apesar da circunstância de as

crianças estarem à margem da sociedade civil e das dificuldades de acesso a esses

registros. Foram analisados quinhentos e três registros de óbito pertencentes ao

Segundo Cartório de Notas de Jucurutu referentes aos anos de 1931 a 1935, dos

quais trezentos e vinte e três registros foram de mortes infantis e apenas cento e

oitenta foram de adultos mortos, como se pode constatar no gráfico abaixo.

Tem-se a certeza do número elevado de óbitos infantis tanto por causa da

documentação escrita analisada quanto pela fala das mulheres entrevistadas. Um

exemplo desse último meio de informação é parte da entrevista concedida por Maria

José Feliciano, conhecida por dona Zezinha, quando diz: “Tinha dias que sabe

quantos anjos se enterravam aqui? Seis! Por dia, morria menino demais...”

(FELICIANO, 2017). Segundo os relatos, era possível ouvir o sino da Igreja tocando

o dia todo por causa da quantidade de mortes infantis, e era-se sabido que mais um

anjinho tinha morrido pelo toque diferenciado dos sinos, como informado por

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Petronila Luca de Araújo, dona Nila, de 104 anos: “O sino de anjo é chamado de

repique” (ARAÚJO, 2017). Os números de mortes são alarmantes, como observado

no quadro a seguir.

Figura 1 Resultado da análise de 503 registros de óbitos do Segundo Cartório de notas de

Jucurutu referentes aos anos de 1931 a 1935.

Foi encontrada, nos registros de óbitos, a utilização de termos como anjo,

anjinhos e corpinho. Sendo esse último o mais comum nos registros, é interessante

notar que, mesmo o registro civil sendo, notoriamente, mais rígido quanto à escrita

formal, esses termos tornam possível entender que havia certa sensibilidade no trato

da criança morta.

A seguir, têm-se os registros fotográficos de três casos diferentes em que

essas nomenclaturas aparecem, sendo eles os casos de Anastácio Candido da Silva

(foto 01), tendo como causa da morte espasmos e falecendo aos 25 dias do mês de

maio de 1931, com dezenove dias de idade, classificado como anjo; Leonel

Fernandes de Freitas (foto 02), tendo como causa da morte colerina, falecendo aos

18 dias de fevereiro de 1931, com quatro meses de idade, classificado como

anjinho; Manoel Marciano Ferreira (foto 03), de cor preta, causa da morte colerina,

morto aos 9 dias do mês de novembro de 1931, com três dias de vida, classificado

como corpinho.

Adultas 36%

Infantis 64%

Registros de óbitos de 1931 a 1935

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Logo, com esses registros é possível observar quais elementos

caracterizavam a infância desde os anos mil e oitocentos até o recorte temporal

delimitado, além de entender quais documentos regulamentavam o limite etário dos

anjos, atentando para os discursos que davam subsídios para esse corpus

documental. Junto à análise dos registros de óbito e à narrativa das entrevistadas,

pode-se perceber o elevado número de mortes infantis. Dessa forma, é possível

compreender a noção de infância e morte infantil e delimitar quais são as idades

usadas aqui quando se trata de anjos.

No terceiro capítulo, vê-se a morte infantil inserida no contexto rural do

município de Jucurutu no século XX e, nessa linha de raciocínio, busca-se entender

quais representações formulam-se em torno dessa criança morta, como aconteciam

as cerimônias que rompiam a noite, os atores, os adornos produzidos ali mesmo

para enfeitar o anjinho, os ritos fúnebres, as vozes que cantavam e as letras

pesarosas que faziam a mãe da criança morta prantear por toda noite. Além disso,

faz-se uma análise dessas músicas fúnebres, buscando ir além das letras para

perceber as sensibilidades que elas carregam.

Foto 01: Trecho da transcrição do registro de óbito de Anastácio Cândico da Silva; “...Que o anjo será hoje sepultado no cemitério desta Vila...” Acervo do autor.

Foto 02: Trecho da transcrição do registro de óbito de Leonel Fernandes de Freitas; “...Que o

anjinho será hoje sepultado no cemitério desta Vila...” Acervo do autor..

Foto 03: Trecho da transcrição do registro de óbito de Manoel Marciano Ferreira; “...Que o

corpinho será hoje sepultado no cemitério desta Vila...” Acervo do autor.

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CAPITULO 3 A MORTE CANTADA

No capítulo anterior, foram entendidas as características que qualificavam

a criança morta para se tornar anjinho e quais documentos subsidiavam a discussão

em torno dos limites etários. Percebeu-se como a morte infantil era tratada pelo

Estado e pela Igreja, acessou-se a documentação oficial em busca das causas do

elevado índice da mortalidade infantil no século XX e constatou-se a existência de

registros para crianças mortas, mesmo havendo toda a discussão em torno do lugar

da criança na sociedade. E, por fim, delimitou-se a faixa etária utilizada nesta

pesquisa.

Neste terceiro capítulo, observa-se o conjunto ritualístico em torno da

morte no município de Jucurutu em meados do século XX, o cenário simples onde

ocorriam as cerimônias, as características das comemorações em torno da morte

infantil e a indumentária confeccionada pelas mulheres que cantavam, além de uma

análise das letras das incelências entoadas por toda a noite em torno da criança

morta.

As incelências podem ser entendidas como remanescentes das orações

para os mortos, aquelas acompanhadas no primeiro capítulo. A Igreja católica

abarcava os rituais fúnebres dentro da liturgia oficial, e, o interior do Seridó, lugar

onde se apoia esta pesquisa, tinha, culturalmente, a maioria da população

pertencente à fé católica. Entretanto, havia um fator condicionante que implicava nas

pessoas a necessidade de elas próprias tratarem do culto divino, que era a falta de

sacerdotes. Esse fato, como já foi visto, deu espaço para a informalidade e

rusticidade dos ritos em torno da morte de anjinhos. As incelências eram, portanto,

cânticos ministrados pelos que ali estavam e isso permitia certa comodidade na

realização do rito.

3.1 AS NARRADORAS

Recorre-se à história oral para ter acesso às memórias sobre as incelências e

os velórios dos anjinhos. Foi selecionada uma colônia de narradoras, as quais

obedeciam a alguns critérios antes estipulados, como ter participado dos velórios

cantando ou ouvindo as incelências. As entrevistas foram pautadas em um roteiro

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elaborado com esse intuito. De início, a rigidez das perguntas atrapalhou um pouco

o andamento das pesquisas e, por isso, decidiu-se, então, deixar as entrevistadas

mais à vontade, permitindo que as participantes conduzissem a conversa, de modo

que só havia a intervenção quando surgia alguma dúvida sobre o que estava sendo

falado.

Foram entrevistadas nove mulheres que participavam dos velórios de

anjinhos, seja cantando ou apenas ouvindo. Essas senhoras, como já dito, atendiam

aos critérios já mencionados, entre eles, ter um bom repertório de incelências. A

seguir, portanto, é feita uma descrição de quem são essas mulheres e em quais

sítios moravam ou moram.

Maria das Neves Valentim da Silva, 54 anos, foi a única entrevistada que não

cantou as incelências, mas que, apesar disso, também participou dos velórios. Ela

teve oito filhos, mas conseguiu criar apenas três. Maria Francisca da Silva, dona

Neguinha, 62 anos, hoje reside na cidade, mas acompanhou as incelências até os

12 anos. Dona Maria Socorro, conhecida como Socorro Rabicó, cantou as

incelências e amortalhou os anjinhos.

No sítio Cacimbas: Teresinha Maria de Jesus, 71 anos, acompanhou as

incelências até os 12 anos, quando saiu do Sítio Cacimbas e veio morar na cidade.

Maria Francisca da Silva, dona Nêna, solteira de 57 anos, ainda reside no mesmo

sítio.

No distrito de Boi Selado: Petronila Luca de Araújo, dona Nila, 104 anos, teve

11 filhos e apenas quatro sobreviveram. Ela se tornou viúva muito nova e sustentou

os filhos e a casa vendendo bolachas e bolos. Apesar da idade avançada, dona Nila

tem uma memória e lucidez impressionante. Francinete Cardoso Batalha de Souza,

costureira e filha de dona Nila, tem 68 anos e teve oito filhos, dos quais dois

tornaram-se anjinhos. Segundo ela, acompanhou as incelências até os quinze anos.

Ainda em Boi Selado, tem-se Maria José Feliciano, conhecida como dona

Zezinha, 68 anos, a qual disse que acompanhou as incelências até os 25 anos e que

teve 3 anjinhos, mas só permitiu que cantassem incelência para dois deles. Dona

Zezinha tem a voz rouca, provocada pelo uso excessivo de cigarro, já que ela

começou a fumar com nove anos de idade. Francisca Francina da Silva, com 59

anos de idade, teve sete filhos e apenas um anjinho. Porém, por considerar as

incelências muito penosas, não deixou que cantassem para aqueles os seus que

partiram.

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É interessante notar que algumas das mulheres que cantavam incelências

nos velórios de anjos não permitiam que cantassem para os seus anjos por

considerar as incelências “muito penosas”. Entretanto, faziam de tudo para cantar

quando se tratava de outras crianças que não as suas.

3.2 O CENÁRIO

As casas simples de taipa no meio da caatinga, fronteadas apenas por

uma porta e uma janela, ambas rústicas, na penumbra das primeiras horas da noite,

certa movimentação de pessoas começa a mudar os arredores da casa, a noite traz

consigo o lamento da morte de mais um anjinho, as vizinhas começam a chegar,

esse acontecimento já era corriqueiro. Roupas modestas vestiam quem se

aproximava da casa, tantas muitas mulheres que já passaram por momentos

semelhantes.

Dentro da casa, pouca iluminação, apenas uma lamparina abastecida

com óleo de mamona e um pavio de algodão. No meio da sala, sobre uma esteira de

palha, estava o centro de todas as atenções: um caixão simples, enfeitado com

flores de papel colorido. O cheiro do café, o aroma dos chás e o barulho da borbulha

do caldeirão de batatas compõem a cena. Mulheres cantam e enfeitam o féretro, o

pranto da mãe, que pode ser ouvido ao longe. Do lado de fora, no terreiro, os

homens conversam, as crianças brincam de anel, moças e rapazes namoram à luz

da lua e de uma coivara que ofusca luz singela da lamparina no interior da casa.

É necessário realizar esse exercício de visualização da cena, como o que

foi feita acima, para se ter noção de como aconteciam essas cerimônias fúnebres.

As entrevistadas deste trabalho relatam de forma muito detalhada como se

estruturavam essas ações em torno da criança morta. Segundo dona Francisca

Maria da Silva, conhecida como dona Neguinha, de 61 anos de idade, “quando

morria o anjinho, juntava aquelas vizinhas, moças e crianças (...) mais ou menos

umas 15 mulheres, dependia da vizinhança” (SILVA, 2017). Dona Neguinha, hoje,

mora na cidade, mas ainda lembra-se de forma muito saudosa dos tempos em que

morava no sítio Cacimbas, um dos lugares onde foi detectada a prática das

incelências no século passado.

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Dona Neguinha ainda afirma que as mulheres estavam alegres quando se

reuniam para cantar as incelências, e a ideia da criança inocente, como já detalhada

anteriormente, é percebida. Por isso, segundo a mesma entrevistada, os anjinhos

não precisavam de orações em sufrágio da alma que tornassem a morte infantil um

motivo de júbilo, pois mais um anjo estaria compondo as milícias celestes.

“Cantavam como se fosse um momento de alegria, era aquela coisa alegre porque

aquela criança era mais um anjinho para Jesus” (SILVA, 2017).

Como já foi visto, as incelências estavam ligadas à noção de “boa morte”

e, sendo assim, diz respeito aos cuidados antes do momento final, durante o velório

e após o enterramento. Desse modo, a fala das entrevistadas vai de encontro a essa

ideia já debatida anteriormente por autores como Philippe Ariès. Dona Terezinha de

Jesus afirma:

A gente ficava fazendo quarto. Quarto era quando o menino ainda estava vivo até a hora de expirar e a velinha acesa para colocar na mão (...). Ficava o povo tudo olhando, aí quando dizia “Está morrendo! Está com a ânsia!”, “né”, aí trazia uma vela e colocava na mão do menino. (...) Era a ladainha que cantava, as pessoas mais velhas que sabiam cantar (JESUS, 2017).

Além de prática espiritual, as incelências serviam como modo de

interação social, uma vez que o ritual movimentava a comunidade durante toda a

noite, como confirma mais uma das participantes, dona Francinete, e conta um

pouco da relação social nesses velórios: “A gente ficava no terreiro no claro da lua,

conversando, contando história de „trancoso‟, brincando de anel, quem estava

disposto ficava lá dentro cantando, nos terreiros costumava fazer uma coivara, um

foguinho para clarear” (SOUZA, 2017).

Esse lado festivo das incelências é confirmado por Dona Teresinha de

Jesus, e ela reconhece: “Era muita gente, e quem achava bom eram os namorados

que ficavam lá fora, e tome café a noite todinha, porque não era para ficar ninguém

dormindo, todo mundo acordado” (JESUS, 2017). Esse momento podia ser

entendido como uma comemoração por dois motivos: o primeiro, por ter mais um

anjo compondo a corte celeste, e o segundo, que, apesar de parecer estranho, é

confirmado, em meio a gargalhadas, por dona Zezinha: “Gostava, adorava, achava

bom quando morria um menino” (SILVA, 2017). Era um momento em que as

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pessoas podiam divertir-se, seja cantando, jogando conversa fora ou namorando em

um lugar com pouca ou quase nenhuma opção de lazer.

O evento estendia-se durante toda a noite, e as participantes pontuam

que o café era em grandes quantidades, pois ajudava a manter os convidados deste

rito acordados. Mas não era somente isso: batatas cozidas e chás também

integravam o cardápio modesto dessas reuniões, e em alguns velórios ainda eram

servidas bolachas junto ao café caso a família tivesse mais condições, como

declarou dona Neguinha.

Segundo todas as entrevistadas, as incelências causavam grande

comoção nas mães, e isso é unanimidade na fala delas. Algumas das colaboradoras

comentam que quando se morria um filho delas, não deixavam que cantassem por

ser muito penoso, mas faziam questão de cantar para os anjinhos das vizinhas. Os

cânticos estendiam-se durante a noite toda, acompanhados dos lamentos da mãe

que perdia a criança, para que somente durante as primeiras horas da manhã todos

se preparassem para a despedida. Quase rompendo a aurora das três para as

quatro horas da manhã, saia o enterro, e um homem adulto levava a criança morta

num caixão ou telha, enfeitado com flores, e até certo ponto do caminho era

acompanhado, como assegura dona Maria Francisca: “A gente saía acompanhando

o caixãozinho cantando até lá em coisa” (SILVA, 2017).

3.3 MORTALHAS

As mortalhas assumem papel fundamental no rito fúnebre, uma vez que

elas têm uma “ligação direta com o Santo Sudário, o pano que envolveu o cadáver

de Cristo e com o qual ele mais tarde ressuscitou e ascendeu ao céu” (REIS, 1952,

p. 118). Era comum, segundo Reis, que as crianças vestissem-se com roupas de

santos, e a mortalha tinha relação com o estado de pureza da criança e a posição

que ela ocuparia ao chegar ao céu. Em consonância com o que Reis diz, dona Das

Neves, uma das entrevistadas, afirma que, em alguns casos, “se fazia uma coroa de

papelão e cobria com areia brilhosa” (SILVA, 2017). O relato da confecção dessa

coroa encimada por uma cruz lembra bastante a coroa de São Miguel Arcanjo, santo

bem visto na hora da morte, principalmente nas mortes de crianças (REIS, 1952, p.

119).

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A produção dessas mortalhas obedecia a regras que faziam parte do rito

fúnebre e que estavam impregnadas de superstições, como é possível notar no

relato de dona Socorro Rabicó:

Antigamente, meu filho, a pessoa só amortalhava o anjo. Olhe, tinha que saber onde era o direito do pano, porque, se tivesse, abastava ter uma manga feito pelo avesso, sonhava uma pessoa dizendo que tinha que endireitar, porque tinha que ser tudo bem direitinho. Olhe, morreu um menino, aí apareceu uma pessoa dizendo: diga à mamãe que mande o pedaço do bico que faltou na minha mortalha, botar um biquinho em baixo, faltou um pedacinho, mande o pedacinho do bico que faltou. E ela: e por quem eu vou mandar? (no sonho), Aí ele foi e disse: amanhã o portador passa lá na sua porta. Aí quando foi no outro dia a mulher ficou... Aí mandou comprar o pedaço de bico. Quando deu fé, lá vem uma pessoa com um anjinho (pia, me arrepiei todinha), aí foi, ela botou na mão do anjo o pedaço do bico e não sonhou mais não (SOUZA, 2017).

Geralmente, as mortalhas eram brancas e feitas de morim, que era um

tecido ao qual as pessoas pobres tinham acesso, tendo em vista seu baixo custo. O

modelo das mortalhas era simples e a confecção constituía parte das ações em

torno da morte infantil. “Vamos fazer a mortalhinha: costurava, e quando não tinha a

máquina era tudo na mão. Comprava morim. Eu vendi muito (silêncio) branca toda

de morim. Quando era de menina fazia a roupa branca e o manto azul, cobria a

cabecinha. O traje de nossa Senhora, pronto, era azul e branco” (JESUS, 2017),

como atesta dona Teresinha de Jesus.

Pegava o morim, dobrava e costurava. A gente num tem essa cava? (a entrevistada demonstra na própria roupa), só que não existia, costurava assim direto, reto, que hoje a costureira sabe. A mulher: “eu queria uma blusa manga de mortalha”, porque não tem cava, aqui era o morim, “nera”? Cavava o buraquinho aqui, para enfiar a cabeça, agora aqui cortava assim, no que você vestia aí ficava a manguinha, aí tudo era branco. Agora a menina que colocava o paninho azul que cobria a cabecinha nela aí descia, ficava mais ou menos aqui o azul. (...) Do menino era só branco, depois começou a fazer São Francisco, aí era a “mortalhinha” marrom com o cordão de São Francisco na cintura (JESUS, 2017).

A simplicidade do rito, aliada à informalidade, permitia que as mortalhas e

os caixõezinhos fossem bastante enfeitados, e esses adornos eram produzidos com

os materiais a que essas pessoas, em meio a toda dificuldade financeira, tinham

acesso. O caixão podia ser de caixa de sabão reaproveitada. Antigamente, segundo

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os relatos coletados, o sabão era vendido em caixas de madeira e essas caixas

eram reaproveitadas de muitas maneiras, inclusive na confecção dos caixões para

anjinhos. Quando não se tinha a caixa de madeira, uma telha servia de suporte para

o frágil corpinho. O caixãozinho ou a telha era enfeitado com flores coloridas durante

a noite, como foi contado por dona Nêna: “Homem, aqueles caixõezinhos ficavam

tão bonitinhos, tudo enfeitadinho” (SILVA, 2017). O caixãozinho ficava em cima de

uma mesa ou esteira de palha na sala e era “enfeitado com papel de anjo azul,

amarelo, verde (papel seda)” (SILVA, 2017).

Havia uma quantidade considerável de adereços que poderiam ser

usados junto à mortalha, desde a coroa de papelão à fita que envolvia a cintura da

criança e amarrava as mãos postas, ou até mesmo, como informado por dona Maria

Petronila, de 104 anos de idade: “O anjinho, com as mãos postas, fazia um livrinho

[papel dobrado ao meio], o anjinho ficava com os olhos abertos [havia a ideia de não

precisar fechar os olhos da criança], parecia que estava lendo a noite toda até o

amanhecer” (ARAÚJO, 2017). Junto a esses elementos, ainda existia a confecção

de rosas para ornar o féretro. A produção dessas rosas estava inserida no rito das

incelências, e tanto a feitura das rosas quanto o grude servia de cola, como afirma

dona Terezinha de Jesus:

“Pegava goma, fazia tipo, botava água e fazia como

leite, aí derretia e botava no fogo para engrossar, aí ficava

aquele grude para você passar nas flores e pregar na

“mortalhinha” e no caixãozinho. Ainda pegava um paninho,

“nera”, Maria? E jogava um paninho quadrado e jogava um

monte de florzinha pregada” (JESUS, 2017).

Foto: 04 Foto: 05

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Na imagem 04, vê-se uma mortalha confeccionada em morim branco, sem

cava, apenas com a abertura para a cabeça, finalizada com bico. A fita servia para

ataviar a cintura ou amarrar as mãos do anjo de forma que ficassem postas. O

modelo obedece às informações oferecidas pelas narradoras.

Vê-se, na imagem 05, o detalhe da abertura para a cabeça e o

acabamento feito com bico de algodão. O modelo também obedece às informações

oferecidas pelas narradoras.

É possível observar, no modelo ilustrativo costurado por dona das Neves,

as características apontadas anteriormente, como o morim, a manga sem cava, a

abertura para passagem da cabeça, o bico, que também servia como ornamento, e

a fita que cingia a cintura dos anjinhos.

Vê-se, na imagem 06, a mortalha com um dos adornos mais comuns, as

flores feitas em papel seda ou papel de anjo, como chamavam. O modelo de pétalas

pontiagudas podia enfeitar desde a mortalha até o caixãozinho. O modelo obedece

às informações oferecidas pelas narradoras.

Foto 04: Mortalha em

morim, confeccionada

por dona das Neves.

Acervo do autor.

Foto 05: Detalhe da abertura

para a cabeça, com o

acabamento em bico de

algodão. Acervo do autor.

Foto 06: Flores dispostas sobre

a mortalha. Acervo do autor.

Foto 07: Flores aproximadas. O

modelo foi produzido pelas

narradoras. Acervo do autor.

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Na imagem 07, vê-se, de forma mais aproximada, as rosas produzidas

para ornamentar o anjinho. Nessa foto também se percebe a fibra do morim. O

modelo obedece às informações oferecidas pelas narradoras.

Nessas imagens pode-se ver parte dos adornos que enfeitavam os

anjinhos mortos, e esse modelo de flores foi apresentado por uma das entrevistadas

(a disposição das flores na primeira foto obedece à informação da narradora). Vale

lembrar que todo caixão era coberto com essas flores, e enquanto cantavam-se as

incelencias, algumas mulheres enfeitavam o caixãozinho. Outro detalhe que é

interessante mencionar é que, após enfeitado o caixão e a mortalha, ainda

colocavam, em certos casos, uma folha de papel seda cortado como que formando

uma renda para cobrir o anjinho.

3.4 AS INCELÊNCIAS

As incelências estão ligadas às orações e preces em torno do morto.

Nesse caso, especificamente, por tratar-se de crianças e, portanto, não haver a

necessidade de purgação de pecados, essas músicas ora festejam – não a morte

dos pequenos, mas o acesso deles ao reino dos céus –, ora consolam as mães e os

pais que perdiam os filhos.

As letras eram simples e refletiam o imaginário católico, sendo “os cantos

[...] de estrutura melódica simples e despojada, com o predomínio do estilo silábico e

os sons repetidos, ao lado do defunto, cantados pelos parentes, amigos e vizinhos”

(SANTANA, 201, p. 91).

Isso é possível observar nas incelências cantadas por dona Socorro

Rabicó. (Para facilitar a divisão das letras, as incelências são numeradas conforme

suas aparições no texto).

Incelência 01

No entrar da glória O sino tocando

Senhor São Miguel As almas pegando Senhor São Miguel As almas pegando

Incelência 02

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Eu vou uma viagem no céu Dois anjos veio e me levou Eu vou ver Nossa Senhora Eu vou ver Nosso Senhor

Incelência 03

São Joaquim, quando morreu

Deixou seu mundo de luz Deixando nós com memória

Louvores da Santa Cruz

Incelência 04

Doze incelências

Meu Deus, que só é José Quem vai para o céu vai sorrindo Porque em Deus tem grande fé

Jesus, Jesus, Jesus Maria e José

Incelência 05

Lá vem a barra do dia Lá vem a virgem Maria

Desceu doze anjos do céu Para sua companhia

Incelência 06

Oh meu Deus, eu vou pro céu

Doze anjos vei me levou, Do mundo eu vou me esquecendo

Só de Deus vou me lembrando Nossa Senhora da Guia

Também vai me acompanhando

Pode-se observar a ênfase dada à relação entre São Miguel e as almas,

na incelência 01, pois esse santo do panteão católico é entendido como general dos

exércitos de anjos e pune os pecadores com o fogo do inferno (REIS, 1952, p. 121).

Além disso, vê-se a invocação de outros santos que intermediam a passagem para o

céu, como a figura da Nossa Senhora (incelências 02, 04 e 05), que é tida como

arquétipo de mãe cristã (REIS, 1952, p. 120). Ademais, ainda aparecem outros

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santos intercessores, como na incelência 03, que cita São Joaquim (embora tenha

forte ligação com a velhice), e o próprio Senhor Jesus Cristo.

Teve-se acesso a outras incelências, como as cantadas por dona

Socorro na entrevista por ela concedida. Dona Socorro começa cantando com o

número doze, porque, segundo ela, quando se começa a cantar obedecendo à

sequência numérica, tem que cantar até o fim. Ou seja, se começa cantando “Uma

incelência, meu Deus...”, teria que cantar até completar as doze e, caso não fizesse

isso, a incelência tornar-se-ia um mau agouro. Isso porque as incelências seguem

uma sequência numérica específica: algumas são ordenadas de um até doze e

outras de um até sete. As informações acerca da sequência das incelências foram

dadas pelas entrevistadas, e o que realmente importa não é saber se o padrão era

repetir doze ou sete vezes, mas, sim, perceber que existia uma métrica nesses

cantos. Contudo, mesmo havendo essa divergência quanto ao número de vezes que

se cantava, a superstição em torno de cantar fora de um velório de anjinho

começando por um número que não seja o número um é levada em conta por todas

as entrevistas.

Uma característica primordial das incelências cantadas em Jucurutu em

meados do século XX é a composição das letras com termos infantis e voltados para

a consolação dos entes que perdem as crianças. As incelências que seguem foram

cantadas por dona Neguinha.

Incelência 07

Mamãe, não chores por mim Por mim não deves chorar

Quem bota um anjinho para o céu Aí só deve se consolar

Mamãe não sabe da sina Que Deus tinha para me dar

Incelência 08

Adeus, papai

Adeus, mamãe Adeus, meus irmãos

Até quando Deus quiser Uma incelência que é

Para o senhor São José

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Dona Neguinha, além de fornecer informações sobre a composição dos

velórios para anjinhos, informou ainda essas duas incelências, nas quais é possível

observar as letras voltadas para amenizar a dor e o sofrimento dos familiares que

perdiam seus anjinhos. Logo, é comum que expressões como “mamãe, não chores

por mim” sejam encontradas nas letras. Além desse caráter consolador, as

incelências serviam também como cantos de despedida: “Adeus, papai; Adeus,

mamãe; Adeus, meus irmãos”. Talvez esse apelo à despedida servisse para que as

famílias assimilassem a morte dessas crianças, tendo em vista que era um

acontecimento corriqueiro.

Ainda observa-se, na letra fornecida por dona Neguinha, a menção a São

José, santo que, no Seridó, região seca e árida, é bastante cultuado por ser o santo

das chuvas. O dia 19 de março, dia de São José, em se tratando de inverno, é o

mais esperado do ano, uma vez que, segundo a cultura popular, chovendo no dia

desse santo era a certeza de um inverno abundante. Sendo assim, quando se

oferece “uma incelência que é para o senhor São José”, observa-se parte da

devoção a esse santo. Isso porque as incelências carregam mais significados do

que as letras mostram e portam, sobretudo, a sensibilidade de um povo sofrido pela

seca, fome e doenças. Nesse sentido, mais um anjinho estaria intercedendo junto a

São José por chuvas para o sertão.

Outro sentido peculiar das incelências é o da interseção no sentido de

que o anjinho logo estaria no céu intercedendo pelos familiares. Nesse contexto, a

morte já não era mais motivo de preocupação, e, sim, de alegria, pois seria um

reforço na mediação com o divino, como é possível perceber nas incelências que

dona Zezinha apresentou em entrevista.

Incelência 09

Botei um cravo na mão E fui levar ao senhor

Agora eu vou rogar é por pai Padrinho e avô

Mamãe, não chore por mim Por mim não deve chorar Se é de chorar por mim Chore por quem fica cá

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Mamãe não sabe da sina Que Deus tinha para me dar

Outro objetivo das incelências era o de guiar o anjinho no caminho para o

céu e, por esse motivo, as letras invocavam santos e anjos para a condução do

anjinho pelo caminho celeste. Pode-se perceber que aos que ficavam eram

imputadas algumas responsabilidades, como no caso da mãe, que deveria abençoar

o filho antes da morte e preparar com adornos o pequeno féretro, expresso nas

incelências que dona Zezinha cantou.

Incelência 10

Um anjinho serafim Que a Deus que possa levar

Desse sete tira um Para esse anjo vir buscar

Desse sete tira um Para esse anjo vir buscar

Incelência 11

Oh, mamãe, a bênção

Me queira botar Um anjinho me chama

Não queira esperar Um anjinho me chama

Não queira esperar

Incelência 12

O galo cantou

Jesus Cristo nasceu Um manjar do céu

Quem mandou foi eu

Outra característica das incelências que se pode perceber nessas letras é

a repetição. Exemplificando: “um anjinho me chama, não queira esperar”. Conforme

contavam, o número ia aumentando até chegar às sete repetições ou às doze,

ficando desta forma: “um anjinho me chama... dois anjinhos me chamam... três

anjinhos me chamam” [...] e assim sucessivamente até completar o número

pretendido.

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Uma ligação comum na morte infantil era feita com relação à maternidade

da virgem Maria, a imaculada Conceição, por ser padroeira da fertilidade e que,

além disso, “presidia simbolicamente o nascimento e morte das crianças” (REIS,

1952, p. 121). Como se pode ver na incelência acima, a questão da maternidade

está atrelada, nessa letra, ao nascimento de Jesus.

Dona Maria Francisca apresentou algumas incelências que falam da

dor materna ao perder um filho, mas que, ao mesmo tempo, já garantem a

companhia de santos na nova morada daqueles que se foram. A incelência que se

segue já foi mencionada acima na fala de dona Neguinha. Entretanto, quando dona

Nena apresentou esse canto, ela cantou com mais repetições.

Incelência 13

Adeus, papai Adeus, mamãe

Adeus, meus irmãos Até quando Deus quiser

Uma incelência que é para Senhor São José Uma incelência que é de Senhor São José

Adeus, papai Adeus, mamãe

Adeus, meus irmãos Até quando Deus quiser

Incelência 14

Sexta feira da paixão

Seus filhos sentindo a dor Sua mãe no coração

Espera anjinho do céu Quando eu morrer também vou Quando eu morrer também vou

Sexta-feira da paixão Seus filhos sentindo a dor

Sua mãe no coração

Incelência 15

Tenho dois rosários para nele eu rezar

Mas, Nossa Senhora, quando eu lá chegar Minha mãe me chama, eu não posso ir Meu corpo é pesado, não posso aluir

Tenho três rosários para nele eu rezar

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Mas, Nossa Senhora, quando eu lá chegar Minha mãe me chama, eu já posso ir Meu corpo é maneiro, já posso aluir

Incelência 16

Oh, minha mãe, eu vou para o céu

Sete anjos vão me levando Do mundo eu vou me esquecendo E só de Deus vou me lembrando

Incelência 13 Nossa Senhora me disse Nosso Senhor me avisou

Que eu só andasse em caminho Que seu bento filho andou

Algumas incelências apresentam repetições e é possível pensar que as

entrevistadas tenham misturado as letras, tendo em vista os processos de

memorização e seleção das camadas da memória, além do fato de não ser mais

comum o canto dessas músicas. Mesmo assim, observa-se um variado leque de

cânticos que eram entoados durante as cerimônias fúnebres relacionadas à criança

morta.

Como se pode perceber na maioria das incelências coletadas, existe a

utilização de termos infantis. Em algumas incelências, há o cuidado com o amparo

materno, o que evidencia uma das funções desse rito, que era o de aliviar a

sociedade do peso da constante mortalidade infantil. Essa preocupação de deve ao

fato de que, se essas pessoas parassem para viver profundamente o luto por cada

criança, a vida pararia e, apesar disso, algumas outras mães continuariam a perder

filhos pequenos na mesma semana. Dessa forma, compreendem-se as incelências

como paliativos para esse momento de dor atrelados às crenças da época, como a

de não chorar muito sobre o anjinho para não molhar as asas e impedir a subida.

Diante de tal crença, por exemplo, as mães deveriam conter o choro e o luto para

não atrapalhar a ascensão do anjinho.

Analisando as letras, pode-se perceber a representação do imaginário

coletivo da comunidade refletida nas incelências e materializando-se nos adornos

que envolviam o corpinho das crianças mortas. Segundo Sandra Jatahy Pesavento,

essas representações podem ser entendidas como geradoras de identidades, dando

sentido às coisas (PESAVENTO, 2003).

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Neste caso, especificamente, dão sentido à morte das crianças com uma

ligação muito tênue com o imaginário, que ora se sobrepõe à representação, ora o

inverso. Por exemplo, nas incelências que narram o percurso do anjo para o reino

celeste, os cantos, nesse caso, são representações de como a comunidade entende

o mundo espiritual. Ainda torna-se possível analisar como a realidade social é

construída por intermédio dessas formas de representação do imaginário

(CHARTIER, 1990).

Observa-se, durante este capítulo, o cenário onde aconteciam essas

cerimônias fúnebres com toda a simplicidade e rusticidade narradas pelas

colaboradoras, a discussão sobre os adornos que eram produzidos para enfeitar os

anjos, sejam mortalhas, rosas ou até mesmo o caixão, e qual o papel desses

adereços relacionados ao imaginário coletivo acerca da relação com o divino que

essa comunidade tinha. Dessa forma, houve uma preparação para refletir sobre as

letras e quais os sentidos que elas davam à morte infantil, como eram cantadas e

qual a ligação com os santos invocados durante o rito. Percebe-se que as

incelências compõem as preces desse grupo social, carregando, sobretudo, a fé, a

força e a esperança do povo. Veem-se orações ritmadas que rompiam a noite,

mostrando que até nos momentos de dor, como na morte infantil, o sertanejo desvia-

se das adversidades e ainda festeja.

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5 CONCLUSÃO

Chega-se ao fim deste trabalho com a certeza de que se cumpriu aquilo que

tinha sido proposto no início. Isso é motivo de alegria, pois esse tema é muito

importante no que diz respeito à História da morte no Seridó, em especial, para o

Departamento de História do CERES. Entender as práticas ritualísticas em torno da

morte infantil e quais as representações que estão contidas nela impulsionam as

pesquisas relacionadas ao tema. Os rituais fúnebres e as ações humanas em torno

da morte integram e demonstram as noções dos homens no que diz respeito à

morte, e entender esses rituais é fundamental para a compreensão do grupo, uma

vez que esses são constituídos ao longo do tempo e carregam consigo, além da

história, os sentimentos desse povo.

Em Jucurutu, as crianças mortas, “os anjinhos”, recebiam um tratamento

especial e eram, praticamente, festejados. Imaginar como aconteciam esses ritos foi

possível graças às falas das narradoras, que explicaram com riquezas de detalhes

como se davam esses velórios. Cada enfeite apresenta, simbolicamente, o

imaginário do grupo, sejam as rosas de papel seda, a mortalha de morim e bico, as

fitas ou os adereços. Todos esses elementos representam como essa sociedade

imagina e se relaciona com o divino.

Conseguiu-se entender, partindo da análise bibliográfica sobre a morte, como

se estabeleceram, ao longo da História, a relação entre o homem e a morte. Dentro

do recorte trabalhado entendeu-se o papel das orações e como as incelências eram

aplicadas no cotidiano das pessoas como forma de consolo e interseção.

A preocupação inicial de salvaguardar esses cânticos foi sanada, uma vez

que, além das entrevistas gravadas, transcreveram-se essas estruturas melódicas.

Após esse processo, problematizaram-se e analisaram-se as letras e os sentidos

dos quais tais canções estão revestidas. Entendeu-se como o homem se comporta

diante da morte e como se estabelecem as relações entre os sujeitos e o divino no

que diz respeito à morte. Além disso, discutiu-se como as pessoas relacionavam-se

com as crianças mortas na zona rural do município de Jucurutu, dado o contexto do

elevado índice de mortalidade infantil. Esclareceu-se também como se davam as

relações de sociabilidade nos velórios desses anjinhos.

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A importância deste trabalho está em alargar os estudos relacionados à morte

no Seridó, fazendo com que as ramificações da História ampliem-se, além da

relevância do fato de ser a primeira pesquisa que trata das incelências para anjos no

munícipio de Jucurutu. Dessa forma, as incelências que foram recolhidas por meio

das entrevistas são tão valiosas quanto os relatos sobre o rito em si, ou seja, tanto

as letras dessas músicas quanto as preparações que eram feitas em torno do corpo

infantil são de elevado valor e importância para o estudo histórico. Isso porque elas

estão sendo esquecidas aos poucos, de modo que já se perdeu muito dessa

história. Apesar disso, ainda permanecem alguns fragmentos desse rito na memória

dessas mulheres, e, agora, ganham um espaço na História escrita.

Já se perdeu muito dessa parte da História e as incelências continuam sendo

esquecidas aos poucos. O conteúdo desse rito, como foi visto, é impressionante,

uma vez que, em meio a tantos problemas, as pessoas envolvidas encontraram um

meio de escapar das dificuldades da vida. A fome, a seca e o elevado índice de

mortalidade infantil eram constantes no cotidiano da zona rural de Jucurutu.

Contudo, este povo interiorano, em meio a tantas adversidades, faz da morte de

crianças um momento de celebração na esperança de alcançar interseção junto a

Deus contra as mazelas que o oprimia. Diante do exposto, os poucos fragmentos

que ainda resistem na memória das mulheres que passaram por esses momentos

agora ganham um lugar na História.

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REFERÊNCIAS

FONTES

ARAÚJO, Petronila Luca de. Entrevista . 19 de Abril de 2017. Entrevistador: Wesley Henrique de Moura Simão . Jucurutu- RN. (20 min) FELICIANO, Maria José. Entrevista . 19 de Abril de 2017. Entrevistador: Wesley Henrique de Moura Simão . Jucurutu- RN. (40 min) JESUS, Teresinha Maria de. Entrevista . 19 de Abril de 2017. Entrevistador: Wesley Henrique de Moura Simão . Jucurutu- RN. (40 min) SILVA, Francisca Maria da. Entrevista . 20 de novembro de 2016. Entrevistador: Wesley Henrique de Moura Simão. Jucurutu-RN, 2016. (15 min). SILVA, Maria Francisca da. Entrevista . 19 de Abril de 2017. Entrevistador: Wesley Henrique de Moura Simão . Jucurutu- RN. (40 min) SLVA, Francisca Francina da. Entrevista . 19 de Abril de 2017. Entrevistador: Wesley Henrique de Moura Simão . Jucurutu- RN. (20 min) SOUZA, Fracinete Cardoso Batalha de. Entrevista . 19 de Abril de 2017. Entrevistador: Wesley Henrique de Moura Simão . Jucurutu- RN. (20 min) SOUZA, Maria do Socorro. Entrevista . 17 de novembro de 2016. Entrevistador: Wesley Henrique de Moura Simão. Jucurutu-RN, 2016. (10 min). VALENTIM, Maria das Neves da silva. Entrevista . 20 de Janeiro de 2016. Entrevistador: Wesley Henrique de Moura Simão. Jucurutu-RN, 2016. (30min).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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