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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO DIEGO RAOM SANTIAGO BEZERRA COSTA DA SILVA A POLÍTICA CRIMINAL DE DROGAS NO BRASIL: UMA ANÁLISE CRIMINOLÓGICA E CONSTITUCIONAL Orientadora: Prof. Dra. Mariana de Siqueira NATAL/ RN 2017

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ......incentivou a seguir no tema da presente monografia oferecendo o primeiro livro que utilizei para pesquisar o assunto. Obrigado! Aos

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

DIEGO RAOM SANTIAGO BEZERRA COSTA DA SILVA

A POLÍTICA CRIMINAL DE DROGAS NO BRASIL: UMA ANÁLISE CRIMINOLÓGICA E CONSTITUCIONAL

Orientadora: Prof. Dra. Mariana de Siqueira

NATAL/ RN 2017

!

DIEGO RAOM SANTIAGO BEZERRA COSTA DA SILVA

A POLÍTICA CRIMINAL DE DROGAS NO BRASIL: UMA ANÁLISE CRIMINOLÓGICA E CONSTITUCIONAL

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como pré-requisito para a obtenção do título de bacharel em Direito, do Centro de Ciências Sociais Aplicadas, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientadora: Prof. Dra. Mariana de Siqueira

NATAL/ RN 2017

!

Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA

Silva, Diego Raom Santiago Bezerra Costa da. A política criminal de drogas no Brasil: uma análise criminológica e

constitucional / Diego Raom Santiago Bezerra Costa da Silva. - Natal, RN, 2017.

68f. Orientador: Profa. Dra. Mariana de Siqueira.

Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande

do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Departamento de Direito.

1. Política Criminal de Drogas - Brasil – Monografia. 2. Criminologia - Monografia. 3. Constitucionalidade - Monografia. 4. Direito Penal do Inimigo - Monografia. 5. Direitos fundamentais - Monografia. I. Siqueira, Mariana de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BS/CCSA CDU 343(81)

AGRADECIMENTOS

Quando me disseram que este seria o momento mais difícil de toda a monografia, eu

não acreditei. É difícil, e eu diria talvez impossível, colocar em um texto com caracteres

finitos a quantidade de sentimentos positivos infidáveis que mantenho pelas diversas pessoas

com quem compartilhei esta caminhada. Apesar dessa dificuldade, tentarei fazê-lo, como

forma de honrar a quem me auxiliou sempre que eu precisei.

Agradeço, em primeiro lugar, a minha família pelo incentivo sempre constante, em

especial a minha mãe, Ana Karla, aquela cujos ensinamentos maiores me moldaram a chegar

a ter aqui e aquela que me inspira cada dia mais a me autodesafiar sempre, porque ela, muitas

vezes, possui mais fé em mim do que eu mesmo. Por isso, e por inúmeras contribuições e

lições de vida, eu a agradeço e digo que a amo mais que tudo no mundo!

Logo em seguida, meus dois irmãos, Daniel e Karol, e minha tia Adriana, os quais

sempre estiveram lá por mim, ao longo desses meus primeiros 22 anos de vida, e que, apesar

de todas os tropeços que venho dado e dos estresses que eu sei que causei, formou-se em mim

para com eles uma ligação que eu não consigo explicar em outro sentimento que não o amor.

Eu não saberia viver sem todos eles e agradeço sempre a presença e apoio deles, mesmo que

não transmita em palavras todos os dias.

Agora partimos para os amigos e amigas. Antes de mais nada agradeço imensamente

ao apoio de Amanda, que, assim como muitos outros, mas de uma maneira especial, acredita

em minha capacidade de uma forma impressionante. Foi ela quem me levantou quando eu já

tinha caído e desistido, e foi ela quem me empurrou para eu prosseguir nessa luta. Não falo só

da criação desta monografia, mas sim do melhoramento de mim mesmo como pessoa. Por

essas e outras tantas situações em que ela me fez feliz, agradeço-a de coração.

Aos amigos de batalhas diárias, Elisa, Bia, Caio, Fernando e Pedro, eles já sabem que

eu agradeço pela presença deles em minha vida constantemente, mas eu faço questão de

ressaltar que amo cada um deles, e que eles me ajudaram a finalizar esse curso com um

sentimento de realização incrível.

Aos amigos do Salesiano São José, de longa data, Felipe, Renato, Rogério e Ana

Luísa, eu agradeço ao apoio incondicional oferecido ao longo de toda essa jornada desde o

vestibular até o presente momento. Nesse caso, um agradecimento especial a Rogério, que me

incentivou a seguir no tema da presente monografia oferecendo o primeiro livro que utilizei

para pesquisar o assunto. Obrigado!

Aos companheiros de jogatinas, Segundo, Daniel, Kevin, Carol, Carlos, Bia Aguiar,

Ana Clara, Barbara, Victor, Mariana, Matheus, João, Severino, Marcello, Bia Horácio, André,

Vini e Autran, eu tenho a agradecer por demais a paciência que tiveram com a minha pessoa

diante das furadas e estresses que os fiz passar. Agradeço demais também a disposição que

possuíram em tentar me distrair quando eu precisava da distração! Aqui um agradecimento

especial à Milagros, Bárbara e Manu, que me apoiavam quando eu me encontrava indisposto

e me desafiavam, mesmo assim, a continuar! Obrigado de verdade a todos vocês!

Por fim, eu agradeço de coração à minha orientadora, a professora Mariana, pela

confiança que teve em minha capacidade e pela segurança e conforto que me passou ao longo

da construção dessa fase, que agora finda com um sentimento de alívio e de dever cumprido.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABORDA Associação Brasileira de Redução de Danos

ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária

CNI Confederação Nacional da Indústria

CPI Comissão Parlamentar de Inquérito

DEA Drug Enforcement Administration

DSM-5 Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais

IBOPE Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística

IDS Ideologia da Defesa Social

ISN Ideologia da Seguranca Nacional

MLO Movimentos de Lei e Ordem

PEC Proposta de Emenda à Constituição

PRD Política de Redução de Danos

SISNAD Sistema Nacional de Politicas Publicas Sobre Drogas

UNODC Escritório das Nações Unidas Sobre Drogas e Crime

RESUMO

O presente trabalho buscará avaliar, diante de uma perspectiva criminológica e constitucional os aspectos principais da Política Criminal de Drogas brasileira, conforme será explanado devidamente. Realizar-se-á uma investigação diante da essencial relação de temas como a superlotação de presídios, a sede da população por uma ação estatal punitiva mais rigorosa diante dos traficantes e, principalmente, como resposta à criminalidade, e a influência midiática no imaginário brasileiro, dentre outros assuntos correaltos. Isso será exposto de maneira simultânea ao se observar a progressão que a política proibicionista teve ao longo dos anos e sua influência na política criminal brasileira. Além disso, serão analisados, diante do enfoque crimonológico, os três pilares constituintes da referida política, o Direito Penal do Inimigo e a criminologia cautelar, todos relacionando com o aspecto das drogas hodiernamente. Por fim, será traçada uma exposição de três direitos fundamentais, quais sejam a autonomia da vontade, a saúde e a segurança pública, que se considerou aqui como importantes para um contraponto constitucional com a Política Criminal de Drogas. Palavras-chave: Política Criminal de Drogas. Criminologia. Constitucionalidade. Direito Penal do Inimigo. Direitos fundamentais.

ABSTRACT

The present paper will evaluate, regarding an criminological and constitutional perspective, the most important aspects of the Criminal Policy of Drugs in Brazil, as it will be properly explained. Through an investigation beholding the correlation between themes as the overpopulation of prisons, the thirst found in society for a more vigorous government action in face of drug dealers and, mostly, as an response to criminality, and the midiatic influence in the brazilian’s mindset, amongst other important topics. As this is unraveled, it will be properly analyzed the progression in which the prohibicionist policy had throughout the years, and its consequences in the brazilian criminal policy. Besides that, in a criminological approach, it will be observed the three cornerstones of said policy, the Criminal Law of the Enemy and the Academic Criminology, all in regard of the drugs situation nowadays. At last, this paper will trace the exposition of three fundamental rights, the autonomy of the will, the right to health and the security of the person, considered here as essential topics to be faced against the Criminal Policy of Drugs. Palavras-chave: Criminal Policy of Drugs. Criminology. Constitucionality. Criminal Law of the Enemy. Fundamental rights.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 8

2 PANORAMA DA CRIMINALIZAÇÃO DE DROGAS ............................................. 10

2.1 A EVOLUÇÃO DO MODELO INTERNACIONAL DE CRIMINALIZAÇÃO DAS

DROGAS ................................................................................................................ 10

2.2 O REFLEXO DO MODELO INTERNACIONAL NA POLÍTICA CRIMINAL DE

DROGAS NO BRASIL ............................................................................................ 15

2.3 A LEI 11.343/06: O CARRO-CHEFE DA POLÍTICA CRIMINAL DE DROGAS

BRASILEIRA .......................................................................................................... 18

3 A POLÍTICA CRIMINAL DE DROGAS NO BRASIL: UM OLHAR CRIMINOLÓGICO ..................................................................................................... 22

3.1 O BRASIL E SUA POLÍTICA CRIMINAL DE DROGAS

CONTEMPORÂNEA .............................................................................................. 22

3.1.1 A Ideologia da Defesa Social .................................................................. 23 3.1.2 A Ideologia da Segurança Nacional ....................................................... 27 3.1.3 Os Movimentos de Lei e Ordem ............................................................. 29

3.2 O DIREITO PENAL DO INIMIGO E A GUERRA ÀS DROGAS ..................... 31

3.3 UMA NOVA PROPOSTA FRENTE À REPRESSIVA POLÍTICA CRIMINAL

DE DROGAS NO PAÍS ........................................................................................... 37

4 A POLÍTICA CRIMINAL DE DROGAS BRASILEIRA: UMA ANÁLISE À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 .................................................................................. 42

4.1 A AUTONOMIA DA VONTADE E O “DIREITO ÀS DROGAS” ...................... 43

4.2 SAÚDE PRIVADA VERSUS SAÚDE PÚBLICA: HÁ CONFLITO QUANDO A

QUESTÃO ENVOLVE DROGAS? .......................................................................... 48

4.3 A GARANTIA AO DIREITO CONSTITUCIONAL À SEGURANÇA PÚBLICA E

A NECESSIDADE DE RESPOSTA FRENTE À VIOLÊNCIA .................................. 53

5 CONCLUSÃO ..................................................................................................... 59

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 63

!!

8!

1 INTRODUÇÃO

A Política Nacional de Combate às Drogas está extremamente conectada com

múltiplas facetas do âmbito jurídico e social, tais como a questão da superlotação dos

presídios, a face do preconceito racial embutido na sociedade brasileira e como isso afeta as

prisões em flagrante, a questão da situação financeira do acusado e até a situação da dignidade

da pessoa humana nessas searas, dentre outras.

Nessa linha de pensamento, faz-se extremamente válido analisar a referida política,

com o carro-chefe sustentado pela Lei 11.343/06, e suas nuances principiológicas, a fim de

verificar a fundo a constitucionalidade de suas normas e, ainda, em avaliar se, na prática,

estão sendo respeitados direitos e garantias fundamentais.

Diante disso, importante é compreender a estrutura balizadora dessa atual política,

como se chegou a ela, o que influenciou o Brasil a mantê-la, e a razão de sustenta-la nos dias

hodiernos. Sobretudo, torna-se essencial, para a sociedade como um todo e para seus

indivíduos, a verificação da necessidade de manutenção dessa referida política ou, em

contraponto, se seria necessária uma possível reforma desta visão.

A escolha do autor em selecionar tal tema foi embasada pelas constantes notícias, em

telejornais, revistas e na internet, referentes à situação conflitante que parece ter elementos em

comum, mas não discricionários: a situação financeira do acusado por porte de drogas e sua

cor de pele pareceriam ter mais respaldo que os elementos indicados na própria Lei

11.343/061. Um exemplo dessa situação seriam os casos antitéticos como os de Rafael Braga

e o de Breno Borges, os quais serão analisados no presente trabalho, onde tentar-se-á perceber

se existiriam realmente elementos subjetivos ao se julgarem ambos os indivíduos.

O objetivo geral do presente trabalho é, portanto, identificar os motivos por trás do

reforço e manutenção da atual política de combate às drogas, ao passo em que também é

criticar o elemento teleológico por trás da Lei de Drogas, tendo em vista que, na prática, é

necessário entender se a proteção da saúde pública e a segurança pública restariam protegidas.

Para isso, a análise realizada baseou-se em autores referências, isso, no estudo desse

tema, tais como Orlando Zaccone, Salo de Carvalho, Maria Lucia Karam, Rosa Del Olmo,

dentre outros cientistas da política criminal de drogas, bem como da percepção da realidade

fática transmitida por estudos estatísticos, a exemplo do Levantamento Nacional de

Informações Penitenciárias de 2014.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!1 BRASIL. Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006. Brasília: Presidência da República, 2006.

!!

9!

Desta feita, analisar-se-á, ainda, em âmbito específico as razões sociais e

criminológicas da progressão do proibicionismo no plano internacional do Ocidente e do

Brasil em relação à implementação das políticas referidas, bem como destrinchar momentos

notadamente mais importantes dessa linha do tempo. Além disso, considerações essenciais

acerca da atual Política Criminal de Drogas no país, procurando observar quais os elementos

finalísticos da Lei 11.343/06 também será de bom alvitre para o desenvolvimento ulterior da

presente monografia.

A discussão acerca desse tema e a maneira com a qual aqui será tratado, isto é, de

forma objetiva, indica a importância de se ter um diálogo entre as finalidades originárias e os

meios práticos da abordagem referente à Política Criminal de Drogas no país. Esta análise

será feita, tentando identificar, também, por meio da crimonologia, as estruturas fundantes da

Política Criminal de Drogas ao mesmo tempo em que se traça uma análise para compreender

se haveria resultados positivos a sua implantação e manutenção no país.

Além disso, outra análise específica pela qual o presente trabalho se baseia será a do

plano constitucional, qual seja uma abordagem jurídica concernente à autonomia da vontade,

à saúde e à segurança pública – elementos considerados pelos autores estudados como

principais em quaisquer estudos constitucionais acerca do tema. A exemplo disso, o art. 28 da

Lei 11.343/06, o qual trata acerca da posse e consumo pessoal de drogas, será avaliado diante

do direito constitucional à liberdade, a fim de se saber se haveria ou não respeito quando da

proibição aqueles verbos contidos no artigo.

Desta feita, cabe indicar que o estudo acerca do tema que se colocar em pauta ainda

permanece bastante tímido, com discussões esparsas sobre vários assuntos conectados entre

si. Ressalte-se que aqui não irá ser tratado acerca da descriminalização de uma substância

específica ou da legalização geral de uma específica, nem muito menos de todas as drogas

ilícitas, mas sim será feita uma análise concatenada com os ideais constitucionais de maneira

geral da Política Criminal em si. Além disso, não serão analisados julgados específicos acerca

do tema, mas sim elementos práticos presentes na sociedade como um todo, tendo em vista

constituir base muito mais interessante, aos olhos do autor, para a argumentação que se

pretende expor.

!!

10!

2 PANORAMA DA CRIMINALIZAÇÃO DE DROGAS

Aqui cabe indicar, em um primeiro momento, a necessidade de uma abordagem no

âmbito macro antes de se adentrar no micro, isto é, deve-se correlacionar a história estrangeira

de combate às drogas com a brasileira, tendo em vista que a política criminal internacional

tem seu reflexo na tupiniquim em diversos sentidos.

Sendo assim, tratar-se-á, de início, do modelo internacional de criminalização das

drogas, observando o contexto histórico por trás dos primeiros diplomas internacionais a

respeito das drogas, bem como entender a motivação dos países que os ratificaram e se as

finalidades de tais projetos foram atingidas atualmente.

Após, os deslindes acerca do reflexo de tal modelo internacional na forma com que o

Brasil tratou a criminalização em âmbito federal, especificando as leis e políticas voltadas

para este fim, ao mesmo tempo em que se observam as minúcias da história brasileira em

relação às drogas.

Em um último momento, por ser deveras importante ao presente estudo, avaliar-se-á o

a Lei 11.343/06, buscando compreender os aspectos fundantes de sua criação, bem como a

situação dos agentes envolvidos em sua execução – tanto o passivo quanto o ativo, além de

tentar entender o impacto em outros ramos da sociedade brasileira.

Essas análises serão de extrema importância para o estudo criminológico e

constitucional que se seguirá no presente trabalho.

2.1 A EVOLUÇÃO DO MODELO INTERNACIONAL DE CRIMINALIZAÇÃO DAS

DROGAS

Ao se pesquisar os passos dados ao proibicionismo das drogas no âmbito

internacional, pode-se constatar que o primeiro movimento global a favor da proibição de

uma substância se deu tão-somente no início do século XX, com a Comissão de Xangai, em

1909, e a Convenção Internacional de Haia no ano de 1912, ambas responsáveis a discutir

sobre a questão do ópio. Percebe-se tal proibição de substâncias psicoativas e entorpecentes

como sendo relativamente recente na história da humanidade, apesar de o uso de drogas não

!!

11!

ser algo originário das sociedades contemporâneas e modernas2, podendo ser datada desde os

tempos primitivos3.

Desta feita, importante avaliar as motivações à época das convenções internacionais

modernas a fim de compreender um motivo importante por trás do proibicionismo. Isso ganha

maior relevância quando se percebe o cenário político no começo do século XX, com os

Estados Unidos da América ganhando força como uma das mais promissoras potências

capitalistas da época e uma Inglaterra já fortalecida, com uma indústria e comércio bem

solidificados.

Todo esse evento, em resumo, seria resultado da corrida imperialista pela conquista de

mercado na Ásia. Sendo assim, o objetivo4 dos EUA com a proibição do comércio do ópio

seria o de enfraquecer o desenvolvimento do mercado inglês no continente asiático, ao mesmo

tempo em que estabeleceria relações comerciais mais contundentes no mercado asiático, em

especial com a China – tendo em vista o conflito entre este país e a Inglaterra na Guerra do

Ópio.

Nesse espaço, os EUA mantiveram-se à frente das discussões sobre tal vedação ao

comércio e uso do ópio – com justificativas veladas na ética e nos bons costumes. A referida

empreitada estadunidense resultou na convocação da Convenção de Haia (1912) e na

participação condicionada por parte da Inglaterra a incluir derivados do ópio, como a heroína

e a codeína, e até a cocaína.

Dessa forma, o ônus da proibição não recairia tão-somente sob o comércio inglês, mas

também sob o âmbito comercial alemão, francês e até holandês, os quais utilizavam as

substâncias vetadas na convenção referida. Assim se deu a primeira reunião internacional a

favor do proibicionismo das drogas, apesar de não haver, ainda, explicitamente a imposição

da criminalização do comércio das substâncias elencadas no referido diploma5.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!2 GOMES, Maria Tereza Uille; et al. Política sobre Drogas e a Política Criminal Brasileira, 2015, p. 1. Disponível em: <http://www.justica.pr.gov.br/arquivos/File/nupecrim/RelatorioPreliminar_Politica_sobre_ drogas_e_criminal_brasileira.pdf>. Acesso em: 9 out. 2017. 3 Medeiros, Regina. Construção social das drogas e do crack e as respostas institucionais e terapêuticas instituídas. Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.1, p.105-117, 2014, p. 107. 4 Entre outros motivos, antropólogos destacam o aspecto racial, indicando que com a proibição do ópio “a partir de 1900, começaram as primeiras campanhas de amendrontamento da população norte-americana com relação aos ‘perigos’ da drogas, correlacionados a específicos grupos étnicos, vistos como ‘ameaçadores’. Em território americano, a reprovação moral ao uso de substâncias psicoativas – representado pelas abstêmias ligas puritanas – era tradicionalmente acompanhada pela associação entre determinadas drogas e grupos sociais. Uma mesma lógica era aplicada: minorias e imigrantes tinham comportamentos moralmente reprováveis e ameaçavam valores clássicos da América branca e puritana. (RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra. São Paulo: Desatino, 2003, p. 31.) 5 KARAM, Maria Lucia. Drogas: legislação brasileira e violações a direitos fundamentais. Rio de Janeiro: LEAP/UFRJ, 2010, p. 3.

!!

12!

Apesar do fervor global no referido assunto, as reuniões internacionais foram

interrompidas devido ao início da Primeira Grande Guerra, que se estendeu do ano de 1914

até 1918. Logo em seguida, em 1921, foi criada a primeira organização internacional com a

finalidade de controlar o comércio de drogas – a Comissão Consultiva do Ópio e Outras

Drogas Nocivas, vindo a se tornar a Comissão das Nações Unidas sobre Drogas Narcóticas

duas décadas depois.

Enquanto isso, paralelamente, nos Estados Unidos da América, despontava o

surgimento de leis federais proibicionistas, com o Harrison Narcotic Act, em 1914, o qual se

destinava a proibir a produção, distribuição em geral e o consumo do ópio, dos derivados da

folha de coca e dos derivados da morfina6. Nesse ato, entretanto, estabelecia-se uma repressão

exclusivamente tributária, com a “mera” sanção de sonegação fiscal para os infratores.

Importante indicar, aqui, que esse ato federal americano foi o primeiro diploma a

introduzir os sujeitos do traficante e do viciado, e segundo Thiago Rodrigues7, professor e

mestre em relações internacionais, o primeiro seria “aquele que produz e comercializa drogas

psicoativas irregularmente” e o segundo “aquele que consome sem permissão médica”.

Já no ano de 1919, ainda em âmbito estadunidense, aprovou-se a Lei Seca, por meio

da 18a emenda constitucional, censurando a fabricação, armazenamento, exportação,

importação e venda de bebidas alcoólicas em solo americano. Mais tarde, catorze anos após a

aprovação de tal emenda, em 1933, ocorreu sua revogação8.

Posteriormente, no ano de 1937, estabelecia-se o Marijuana Tax Act, desta vez

criminalizando propriamente as condutas referentes à produção, distribuição e consumo da

cannabis sativa. Aqui se firmava, mais ainda, a política do governo americano de segregar

classes tidas como “estranhas” e “exóticas” ao padrão anglo-saxão e branco, ao estereotipar e

associar certas drogas a determinados grupos. Para ilustrar o caso em tela, traz-se citação do

doutor em ciência política, Orlando Zaccone, o qual, de maneira clara, explica a intenção

estadunidense segregacionista:

A associação de negros, hispânicos, chineses e irlandeses, percebidos como “anormais”, com as drogas que passavam à ilegalidade criava a possibilidade controle destas populações, sob a justificativa de combate ao tráfico. Todo este mecanismo de criação de estereótipos criminais, controle punitivo das classes perigosas e repressão ao tráfico de drogas ainda se encontra presente no modelo atual9.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!6 Ibidem, p. 3. 7 RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra. São Paulo: Desatino, 2003, p. 30. 8 D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone. Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas? 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2015, p. 84. 9 D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone, op. cit., p. 83.

!!

13!

O impacto desse modelo americano se refletiu claramente quando na Conferência de

Genebra, sediada em 1936, conhecida também como a “Convenção para a repressão do tráfico

ilícito das drogas nocivas”10, instituiu-se a obrigação de os países signatários “criarem

departamentos próprios de repressão ao tráfico de drogas”, conforme o modelo instituído nos

EUA11. Essa convenção internacional direcionou a política internacional mais adiante quanto

à repressão ao tráfico de drogas12.

As discussões sobre o tema no âmbito estrangeiro apenas retomaram após o fim da

Segunda Grande Guerra, posto que somente na década de 1950 os Estados Unidos da América

voltaram a aprovar leis proibicionistas referentes a drogas. São elas o Boggs Act (1951) e o

Narcotics Control Act (1956), que “instituíam medidas severas como, por exemplos, previsão

de cinco anos para traficantes primários (sem antecedentes criminais) e pena de morte para

traficantes maiores de idade que vendessem drogas ilícitas a menores de dezoito anos”, de

acordo com o professor Thiago Rodrigues13.

Já no panorama internacional, a volta do tema de políticas antidrogas se deu com a

Convenção Única sobre Entopercentes, realizada em 1961 em Nova Iorque e emendada por

meio de protocolo em 1972. O contexto dessa retomada se enquadra no movimento juvenil de

“contracultura” característico da década de 60, conforme indica a criminóloga venezuelana

Rosa Del Olmo:

Era o início da década da rebeldia juvenil, da chamada “contracultura”, das buscas místicas, dos movimentos de protesto político, das rebeliões dos negros, dos pacifistas, da Revolução Cubana, e dos movimentos guerrilheiros na América Latina, da Aliança para o Progresso e da Guerra do Vietnã. Estava-se transformando o ‘American Way of Life’ dos anos anteriores; mas sobretudo era o momento de estouro da droga e também da indústria farmacêutica nos países desenvolvidos, especialmente nos Estados Unidos. Surgiam as drogas psicodélicas como o LSD com todas as suas implicações, e em meados da década aumenta violentamente o consumo de maconha, já não só entre os trabalhadores mexicanos, mas também entre os jovens de classe média e alta14.

O supracitado acordo internacional impôs a criminalização de dezoito condutas,

enumeradas em seu artigo 36, contendo práticas que variam desde o cultivo e produção de

entorpecentes até ofertas de venda e entrega a qualquer título. Este estilo de tipificação iria

modelar as posteriores legislações penais de diversos Estados nacionais15, incluindo o Brasil.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!10 CARVALHO, Jonatas Carlos de. Uma história política da criminalização das drogas no Brasil: a construção de uma política nacional. Rio de Janeiro: UERJ, 2011, p. 6. 11 D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone, op. cit., p. 84. 12 CARVALHO, Jonatas Carlos de, op. cit., loc. cit. 13 RODRIGUES, Thiago, op. cit., p. 38. 14 DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p 33. 15 KARAM, Maria Lucia, op. cit., p. 3.

!!

14!

Sendo assim, a partir dessa mesma convenção, na década de 70, o modelo médico-

jurídico se instaurava nas discussões políticas sobre o tema, passando a tratar o traficante

como criminoso e inimigo público, e o consumidor como enfermo, conforme ensinamentos de

Rosa Del Olmo16. A consequência dessa ideologia passa a se estender para o mundo da

politicagem, quando o assunto das drogas começa a ser tratada como questão de segurança

nacional17.

Foi nessa época, em 1972 especificamente, que o presidente americano Richard Nixon

fez seu famoso discurso político declarando “guerra às drogas”18, com a justificativa de

proteção à juventude americana19, associando ameaças contemporâneas ao American Way of

Life, como o movimento comunista, à guerra aos narcóticos.

Nessa mesma década, criava-se um órgão específico para o combate às drogas em solo

americano, o Drug Enforcement Administration (DEA), ligado à polícia federal do

Departamento de Justiça, tendo, inclusive, competências de investigar o narcotráfico no

exterior. Ao mesmo tempo, ascendia outra ameaça entorpecente nos planos americano e

internacional: a cocaína, a qual servia para fortalecer ainda mais o discurso político

antidrogas20.

Já na década de 80, com o enfraquecimento dos países socialistas ao redor do mundo,

debilitava-se também a ideologia do discurso voltada à segurança nacional contra um inimigo

externo21. Desta forma, o movimento de “lei e ordem”, um discurso jurídico-político, ganhava

força a partir da fusão das ideologias da defesa social e da segurança nacional, passando a

declarar guerra não só a um inimigo vindo do exterior, mas também a um inimigo interno22.

Essa ideologia traz consequências no âmbito global e o cientista político Orlando Zaccone

resume bem o seu impacto nos países latino-americanos:

O novo modelo repressivo bélico passa a estabelecer sistemas penais potencialmente genocidas na América Latina, que ganham força a partir do incremento dos Movimentos de Lei e Ordem, os quais estabelecem o fomento do medo e terror para legitimar a “ideologia da diferenciação”, onde o traficante de drogas passa a ser considerado inimigo público número um, ao mesmo tempo em que a seletividade punitiva escolhe, através de estereótipos, alvos para as ações do sistema penal23.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!16 DEL OLMO, Rosa, op. cit., loc. cit. 17 Ibidem, p. 40. 18 D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone, op. cit., p. 92. 19 RODRIGUES, Thiago, op. cit., p. 42. 20 D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone, op. cit., p. 94. 21 Ibidem, p. 95. 22 D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone, op. cit., p. 97. 23 Ibidem, p. 99.

!!

15!

Prosseguindo na linha do tempo, no ano de 1988, o texto final da Convenção Contra o

Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas é concluído, com a intenção de

substituir os textos das Convenções de 1961 e 1972, entrando em vigor dois anos após sua

feitura24. Aqui cabe mencionar o “aprofundamento das tendências repressivas” em seu auge,

conforme indica Maria Lucia Karam25, posto que os diplomas anteriores iniciavam seus

títulos com a expressão “sobre entorpecentes” ou “sobre psicotrópicos”, ao contrário deste

último – o qual, com a expressão “contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias

psicotrópicas”, já demonstra por si só o direcionamento mundial nesse tema.

Anos mais tarde, em 1997, é constituída importante agência vinculada às Nações

Unidas no combate às drogas: o Escritório das Nações Unidas Sobre Drogas e Crime

(UNODC), a qual não se restringia tão-somente à temática em voga, mas também à corrupção

e tráfico de pessoas em âmbito internacional26. No entanto, tal agência e seus relatórios ainda

sofrem severas críticas por parte de estudiosos e pesquisadores, os quais entendem como falho

o modelo de “guerra às drogas” instituído até hoje, “que completou 100 anos sem surtir

qualquer resultado no sentido de reduzir a oferta no mercado mundial das drogas”27.

2.2 O REFLEXO DO MODELO INTERNACIONAL NA POLÍTICA CRIMINAL DE

DROGAS NO BRASIL

Diante das constatações históricas e sociais percebidas em âmbito internacional, é de

bom grado compreender o impacto dessas na sociedade tupiniquim, para, após, buscar a

ideologia da própria Política Criminal de Drogas brasileira – estudo que será abordado em

capítulo específico ulterior. Sendo assim, inicia-se indicando que atualmente neste país, “a

‘guerra contra as drogas’ é o carro-chefe da criminalização da pobreza, através de discursos

de lei e ordem disseminados pelo pânico”, conforme sábias palavras do cientista político

Orlando Zaccone28. Um estudo para entender essa situação se faz necessário.

Em se tratando de pesquisar o reflexo do modelo internacional no âmbito brasileiro,

deve-se começar, na cronologia, no ano de 1912, com a Convenção de Haia. Nesta seara, de

acordo com o professor Thiago Rodrigues, o Brasil, apesar de ter se comprometido

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!24 CARVALHO, Jonatas Carlos de, op. cit., p. 7. 25 KARAM, Maria Lucia, op. cit, p. 3. 26 CARVALHO, Jonatas Carlos de, op. cit., loc. cit. 27 Idem. 28 D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone, op. cit., p. 115.

!!

16!

prontamente em assinar o acordo, não o implantou na prática29. Contudo, após a retomada, no

pós Primeira Guerra Mundial, das discussões em âmbito mundial, o Brasil passou a cumprir

com suas obrigações internacionais – fazendo sancionar a primeira lei específica referente à

drogas no país30, quando antes havia apenas artigos esparsos sobre o tema31.

Tal decreto-lei, de número 4.294/1921 e sancionada pelo presidente Epitácio Pessoa,

conteria treze artigos especificando as penalidades para os tipos nela elencados, que poderiam

variar desde multa pecuniária até encarceramento até quatro anos. Após isto, o próximo

decreto referente a este tema só seria sancionado cerca de quinze anos depois, já no governo

ditatorial de Getúlio Vargas. Este decreto-lei seria a promulgação do texto instituído na

“Convenção para a repressão do tráfico ilícito das drogas nocivas”, sediada em Genebra no

ano de 1936, e aprovava a “Lei de Fiscalização de Entorpecentes”.

Esta lei, por sua vez, fazia a diferenciação das substâncias, indicando quais não seriam

consideradas entorpecentes e quais seriam. Além disso, pela primeira vez no país, estava-se

estabelecendo a proibição total do plantio, tráfico e do consumo das substâncias elencadas no

diploma, além do poder-dever legal à internação compulsória por parte do Estado frente

àquele que fosse considerado “toxicômano”32.

Já no ano de 1940, com a edição do novo Código Penal, foram integralizadas os

dispositivos criminalizadores, conforme a regra do art. 281: “Importar ou exportar, vender ou

expor à venda, fornecer, ainda que a título gratuito, transportar, trazer consigo, ter em

depósito, guardar, ministrar ou de qualquer maneira entregar ao consumo substância

entorpecente”. Esse dispositivo permanece em vigor, não fazendo a distinção explícita entre

as condutas do traficante de drogas e do usuário33.

Dessa forma, conforme Salo de Carvalho, é interessante afirmar que surge, no Brasil,

uma “política proibicionista sistematizada”34, somente a partir da década de 1940. Contudo, é

apenas na década de 1960 – quando o discurso internacional do

z modelo médico-jurídico de proibição das drogas ainda entrava em gestação e se

preparava para atingir seu auge nas discussões da década de 70 – que o Brasil integra

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!29 RODRIGUES, Thiago M. S. A infindável guerra americana: Brasil, EUA e o narcotráfico no continente. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 16, n. 2, p. 102-111. 30 CARVALHO, Jonatas Carlos de, op. cit., p. 8. 31 Um exemplo seria o Código Penal brasileiro de 1890, o qual apresentava um artigo indicando ser crime “expor à venda ou ministrar substâncias venenosas sem legítima autorização e sem formalidades previstas nos regulamentos sanitários”. 32 CARVALHO, Jonatas Carlos de, op. cit., p. 9. 33 D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone, op. cit., p. 89. 34 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 49.

!!

17!

definitivamente o cenário internacional no que tange aos debates referentes ao tema, com a

aprovação e promulgação da “Convenção única sobre entorpecentes”, por meio do decreto-lei

54.216/64. Quatro anos após, em 1968, foi editado o decreto-lei 385/68, alterando a redação

do Código Penal de 1940, ao estabelecer sanção idêntica para traficante e usuário35.

É somente nos anos 70 que o Brasil entra em relativa sincronia com as discussões e

guias internacionais referentes à matéria36, com o advento da lei 5.726/71. Contudo, no que

tange ao discurso médico-jurídico e à ideologia de diferenciação, o país não respeitava a

devida diferenciação entre o traficante e o sujeito que experimentava a droga de maneira não

habitual, refletindo um modelo híbrido da referida política internacional37.

A sincronia apenas se torna completa com o implemento da lei 6.368/76, conforme

indica Salo de Carvalho ao explicar que ela “instaura no Brasil modelo inédito de controle,

acompanhando as orientações político-criminais dos países centrais refletidas nos tratados e

convenções internacionais”38, onde se iniciava o modelo jurídico-político. Este, com uma

dimensão belicista, representava oficialmente o repressivismo brasileiro39.

Diante disso, Carvalho explica as consequências específicas da “institucionalização”

do referido discurso, como se percebe a seguir:

A institucionalização do discurso jurídico-político nos países produtores – ou, no caso do Brasil, país rota de passagem do comércio internacional –, a partir da transferência do problema doméstico dos países consumidores, redundará em instauração de modelo genocida de segurança pública, pois voltado à criação de situações de guerras internas40.

Após esse contexto, a partir da década de 1990 que o Congresso Nacional brasileiro

passou a discutir a necessidade de se reformar a referida lei, pois “a defasagem conceitual e

operacional do estatuto impunha reformulação global”41. Nessa época, vale salientar, o

movimento de “lei e ordem” já tinha se estabelecido em âmbito internacional, afetando de

maneira sensível os projetos de leis posteriores a este período. Neste mesmo período, com a

promulgação da Constituição Federal de 1988, ficou-se estabelecido que o tráfico ilícito de

entorpecentes e drogas afins seria considerado crime inafiançável e insuscetível de graça ou

anistia, conforme indica o art. 5o, inciso XLIII deste diploma.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!35 D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone, op. cit., p. 91. 36 Idem. 37 CARVALHO, Salo de, op. cit., 2016, p. 64. 38 Ibidem, p. 59. 39 Ibidem, p. 61. 40 Idem. 41 Ibidem, p. 91.

!!

18!

Ainda nesse âmbito, em 1991, uma Comissão Parlamentar de Inquérito instaurou-se a

fim de investigar uma rede de tráfico de drogas realizada na área da floresta amazônica,

denominada “Conexão Rondônia”42. A partir da referida CPI, o Projeto de Lei 1.873/91

(Projeto Murad) surgiu, marcando “a política de recrudescimento do sistema de controle das

teias de comércio, estabelecendo novas categorias de delitos, sobretudo daquelas condutas

associadas às organizações criminosas e suas políticas de financiamento”, de acordo com Salo

de Carvalho43.

Além disso, leis especiais relacionadas ao tema foram surgindo, nesta mesma década,

a exemplo da Lei 8.072/90, a qual tornava o tratamento ao tráfico de drogas mais rígido, posto

que proibia a liberdade provisória aos acusados, por exemplo; da Lei 9.034/95, que, por sua

vez, tratava da definição da criminalidade organizada; da Lei 9.613/98, responsável por

criminalizar a operação de lavagem de dinheiro; dentre muitas outras condutas que andam em

paralelo com a produção e comércio de drogas no país44.

Já no início do século XXI, a Lei 10.409/02 veio a surgir com a intenção de substituir

a antiga Lei 6.368/76. Contudo, diante dos inúmeros vetos, baseados principalmente na

inconstitucionalidade de seus artigos, apostos à referida lei nova, a finalidade da substituição

não vingou, permanecendo ambas as leis a disciplinar o tema em questão45.

Entra o ano de 2006, com a ansiedade de o Congresso Nacional garantir a aprovação

de novo diploma referente à temática, foi aprovada a Lei 11.343/06, a qual entrou em vigor

em outubro deste mesmo ano – revogando expressamente, em seu art. 75, a Lei 6.368/76 e a

Lei 10.409/02. Tal diploma acaba por instituir o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre

Drogas – SISNAD, além de reforçar o modelo médico-jurídico estabelecido anteriormente.

2.3 A LEI 11.343/06: O CARRO-CHEFE DA POLÍTICA CRIMINAL DE DROGAS

BRASILEIRA

Para construir o panorama da Lei 11.343/06, atual diploma vigorante referente à

temática de drogas no país, necessário é expor brevemente seu contexto histórico e analisar

pressupostos iniciais e finalidade máxima, para assim, poder ser feita a análise constitucional

mais adiante nessa pesquisa.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!42 Idem. 43 Idem. 44 KARAM, Maria Lucia, op. cit. p. 6. 45 Idem.

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19!

De acordo com Carvalho, o sistema proibicionista brasileiro originário da Lei 6.368/76

acabou por ser reforçado na nova Lei de Drogas de 2006, apesar de “perceptíveis substanciais

alterações no modelo de incriminação, notadamente pelo desdobramento da repressão ao

comércio ilegal em inúmeras hipóteses típicas e pelo processo de descarcerização da conduta

de porte para o uso pessoal”46. Percebe-se, portanto, uma base ideológica inalterada entre

ambas as leis, no final das contas, deixando de lado políticas públicas baseadas na redução de

danos.

Dessa forma, o contexto da América Latina se insere, basicamente, de tal forma que os

países que a constituem seguem, de maneira cega, os passos dos Estados Unidos da América e

de outras nações do globo47, ao ponto em que a finalidade dos governos seria a de tão-

somente exterminar as drogas da sociedade por meio de medidas repressivas, sem considerar

as consequências trazidas por tal política à sociedade. É neste momento histórico que a Lei

11.343/06 é promulgada, no dia 23 de agosto de 2006.

O referido diploma normativo institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas Sobre

Drogas (SISNAD) no Brasil e, de acordo com o ensinamento do professor Salo de Carvalho:

Nivela a importância dos tratamentos penais entre usuários e traficantes, criando dois estatutos autônomos com respostas punitivas de natureza distinta: alta repressão ao traficante de drogas, com imposição de severo regime de punibilidade (penas privativas de liberdade fixadas entre 5 e 15 anos); e patologização do usuário e do dependente com aplicação de penas e medidas48.

Esse breve resumo introduzido pode ser expandido em suas especificidades. De início,

pode-se dizer que a Lei 11.343/06 contempla normas penais em branco, isto é, dispositivos

normativos os quais necessitam de complementação em seu conteúdo, apesar de já indicarem

as sanções respectivas. É o que se pode extrair da análise do artigo 1o, parágrafo único do

supracitado diploma: “(...) consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes

de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas

periodicamente pelo Poder Executivo da União”49.

Dessa forma, no país, quem faz a devida regulamentação das substâncias que são

consideradas drogas ilícitas é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), de

acordo com o art. 2o, III, da Lei 9.782/99, o qual estabelece a competência para essa agência

“normatizar, controlar e fiscalizar produtos, substâncias e serviços de interesse para a saúde”.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!46 CARVALHO, Salo de, op. cit., 2016, p. 104. 47 KARAM, Maria Lucia, op. cit., p. 13. 48 CARVALHO, Salo de, op. cit., 2016, p. 105. 49 BRASIL. Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006. Brasília: Presidência da República, 2006.

!!

20!

A lista das substâncias entorpecentes, feitas por tal agência, foi recentemente atualizada por

meio da Resolução da Diretoria Colegiada no 143 de março de 2017.

Prosseguindo no tema, os princípios do SISNAD encontram-se devidamente elencados

no artigo 4o da Lei 11.343/06, estando entre eles “o respeito aos direitos fundamentais da

pessoa humana” (inciso I), “o respeito à diversidade e às especificidades populacionais

existentes” (inciso II), a integração das estratégias nacionais e internacionais de prevenção do

uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e de repressão à

sua produção não autorizada e ao seu tráfico ilícito” (inciso VII)50.

Podem-se perceber princípios implícitos também, como o comprometimento com a

política de redução de danos e riscos associados ao uso de entorpecentes (art. 20), além da

integração e reinserção social do usuário ou dependentes de drogas (art. 21). Contudo, sobre

estes, princípios baseados na Política de Redução de Danos, ressalte-se a importância de

percebê-los como mera falácia, tendo em vista acabam sendo “ofuscados pela lógica

proibicionista, não representando senão mera carta de intenções direcionada ao sistema de

saúde pública”51.

Esta argumentação será devidamente analisada em tópico ulterior deste trabalho sobre

a análise constitucional em relação ao direito fundamental à saúde, onde poder-se-á perceber a

referida falta de comprometimento com a política supracitada.

Já sobre as finalidades de tal programa, interessante demonstrar que se resumem a

quatro objetivos básicos, os quais podem ser encontrados no artigo 5o da referida lei52.

Depreende-se desses incisos a valiosa atualização legislativa no que tange à diferenciação de

tratamento entre o traficante de drogas, o usuário e o dependente, oferecendo uma repressão

ao primeiro e um auxílio ao segundo e terceiro.

Importante ressaltar, também, que na referida lei “não ocorreu processo de

descriminalização do porte para consumo pessoal de drogas”53, conforme indica Salo de

Carvalho, e isso pode ser percebido em seu artigo 28, onde se encontram as condutas

criminalizadas e as respectivas sanções – dentre as quais podem-se observar a advertência, a

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!50 Idem. 51 CARVALHO, Salo de, op. cit., 2016, p. 225. 52 BRASIL. Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006. Art. 5o – O Sisnad tem os seguintes objetivos: I – contribuir para a inclusão social do cidadão, visando a torná-lo menos vulnerável a assumir comportamentos de risco para o uso indevido de drogas, seu tráfico ilícito e outros comportamentos correlacionados; II -promover a construção e a socialização do conhecimento sobre drogas no país; III - promover a integração entre as políticas de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e de repressão à sua produção não autorizada e ao tráfico ilícito e as políticas públicas setoriais dos órgãos do Poder Executivo da União, Distrito Federal, Estados e Municípios; IV - assegurar as condições para a coordenação, a integração e a articulação das atividades de que trata o art. 3o desta Lei. Brasília. Presidência da República, 2006. 53 Ibidem, p. 161.

!!

21!

prestação de serviços à comunidade e a medida educativa de comparecimento a programa ou

curso educativo. Sobre isso, o professor explicita ter havido, em realidade, uma

“descarcerização” dos delitos relacionados ao uso das drogas54.

Sendo assim, a partir do exposto, já é possível compreender uma breve visão geral da

Lei 11.343/06, tendo em vista que uma análise mais específica do referido diploma será

devidamente realizada nos capítulos seguintes.

Além disso, importante ressaltar influência essencial que a referida política

proibicionista causa na sociedade brasileira: a questão da superlotação de presídios. O Brasil

se classifica em quarto lugar no ranking dos países com maiores populações carcerárias,

permanecendo atrás apenas dos Estados Unidos, China e Rússia55. Contudo, o mais alarmente

dessa situação é o fato de haver cerca 377 mil vagas nos presídios brasileiros para atender a

necessidade dos mais de 600 mil presidiários – os quais necessitam urgentemente de

condições dignas nesses espaços56.

Nesse ínterim, o tipo penal de tráfico de entorpercentes foi considerado, segundo o

Levantamento Nacional de informações penitenciárias realizado em 2014, como o crime com

maior incidência entre os indíviduos encarcerados nos presídios brasileiros, constituindo cerca

de 27% de todos os crimes registrados57. Esse dado possui relevância maior ainda quando se

observa que 35,1% dos brasileiros presos ainda estão a espera julgamento por crimes

relacionados ao tráficos de drogas. Esses dados, aliados ao fato das condições antihigiênicas

(e por que não dizer desumanas?) dos presídios do país, deveriam evocar revolta extrema na

sociedade que se encontra em condições de lutar contra isso, de lutarem a favor do respeito à

dignidade da pessoa humana.

Contudo, o silênco resiliente e indiferente é perturbador, e esse tipo de cegueira deve

ter alguma causa específica, pois de fato não há o respeito à dignidade da pessoa humana –

princípio que deveria ser norteador da Lei 11.343/06, mas não é – tendo em vista o ostracismo

a que são levados os presidiários brasileiros, e neste caso especialmente, os derivados de

crimes relacionados às drogas. Resta, senão, entender se haveria influência de própria Política

Criminal de Drogas neste pensamento indiferente no brasileiro médio para não causar a

devida revolta nestas situações.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!54 Idem. 55 A BOMBA-RELÓGIO da população carcerária no Brasil. El País. 5 jan. 2017. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/05/politica/1483624203_712909.html>. Acesso em 18 set. 2017. 56 BRASIL. Levantamento Nacional de informações penitenciárias: INFOPEN – Junho de 2014. Brasília: Ministério da Justiça, 2014, p. 11. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf >. Acesso em: 3 set. 2017. 57!Ibidem,!p.!69.!

!!

22!

3 A POLÍTICA CRIMINAL DE DROGAS NO BRASIL: UM OLHAR

CRIMINOLÓGICO

Neste capítulo, o objetivo principal será o de destrinchar a maneira como é

estabelecida a atual Política Criminal de Drogas no país aos olhos da criminologia. Isso

determinar-se-á analisando os pilares ideológicos desta mesma política, bem como a maneira

com que se desenvolve e se perpetua na sociedade brasileira.

A apresentação detalhará, de forma mais concisa, conceitos antes trabalhados neste

mesmo trabalho, a exemplo da Ideologia da Defesa Social e dos Movimentos de Lei e Ordem,

indicados em capítulo anterior como meio introdutório do modelo internacional da política

criminal de drogas. Estes mesmos conceitos, aqui, serão determinantes para compreender a

influência que a sociedade tem na manutenção dessas próprias ideologias e vice-versa.

Em um segundo momento, destaca-se o Direito Penal do Inimigo como forma de

manutenção da própria tradição punitiva do Estado, assim como sua necessidade de se manter

um discurso de emergência legitimando excessos combativos. A ideia desse tópico seria a de

demonstrar que há um prolongado Estado de exceção sem legitimidade normativa e que,

apesar disso, apresenta aprovação de boa parte da sociedade.

Por fim, em um tópico quase que conclusivo nesse tema, entrega-se a ideia da

criminologia cautelar como mudança de paradigma do atual modelo repressivo alimentado

pelas agências estatais, pela mídia e pelo senso comum do cidadão, como consequência

desastrosa da Política Criminal de Drogas no país, sendo de vital importância a devida

compreensão e aplicação prática.

3.1 O BRASIL E SUA POLÍTICA CRIMINAL DE DROGAS CONTEMPORÂNEA

Não há como se falar em Política Criminal de Drogas no Brasil sem mencionar os

pilares formadores desta no mundo contemporâneo. Portanto, dedicar-se-á este tópico para

explicar a Ideologia da Defesa Social, a Ideologia da Segurança Nacional e os Movimentos de

Lei e Ordem, adentrando na temática brasileira de maneira simultânea.

Em primeiro lugar, deve-se tratar acerca da Ideologia da Defesa Social, conceito

importante para o estudo da Política Criminal de Drogas no país pois, como se perceberá a

seguir, esta noção constitui-se como ideologia dominante não apenas na ciência penal e nos

estudos da criminologia, mas principalmente no saber comum dos cidadãos, formando os

!!

23!

noções básicas e atuais em relação à criminalidade e à pena, especialmente quanto à solução

imediatista que tanto se busca58.

Além disso, tem-se a Ideologia da Segurança Nacional, cujos postulados acrescem à

Política Criminal de Drogas uma roupagem mais bélica do que a outra ideologia supracitada.

Isso não surpreende, tendo em vista que a visão de um “inimigo a ser eliminado” se

concretizou fortemente no pós-guerra e no início da Guerra Fria, espalhando-se pelos países

do globo ao longo do tempo, inclusive na América Latina.

Por fim, os Movimentos de Lei e Ordem restam como o terceiro pilar do viés perigoso

da referida política criminal, sendo que, dessa vez, apresenta-se como o plano de ação das

ideologias que se mantêm nas outras pontas do tripé. Isto é, sua função seria a de

instrumentalizar o direito penal como única solução para a crescente criminalidade,

utilizando-se da mídia para atingir seu objetivo – o que torna tal movimento igualmente

nocivo para a perpetuação da atual Política Criminal de Drogas no país, como veremos a

seguir.

3.1.1 A Ideologia da Defesa Social

De início, cabe destacar que o significado de ideologia, no contexto aqui referido, será

o de “falsa consciência das relações de domínio entre classes”, designado por Norberto

Bobbio como sendo o “significado forte” de tal palavra, o qual, por sua vez, foi atribuído por

meio do conceito de ideologia de Karl Marx59. Sendo assim, percebe-se como falsa

consciência pois não advém de fatos, mas sim de falsas representações, como se verá adiante.

Importante ressaltar, também, que o estudo da Ideologia da Defesa Social (IDS)

encontra respaldo teórico nos trabalhos de Alessandro Baratta, principalmente em seu livro

“Criminologia Crítica y Crítica del Derecho Penal”, indicando que esta adentra nas ciências

penais e também no senso comum do cidadão sobre a visão ordinária que se tem sobre a

criminalidade60.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!58 MOURA, Genilma Pereira de. Ideologia da Defesa Social e a construção da Ideologia da Punição, 2008, p. 1. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/bh/genilma_pereira_de_ moura.pdf>. Acesso em: 15 out. 2017. 59 BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de política. 12 ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2002. apud MOURA, Genilma Pereira de. Ideologia da Defesa Social e a construção da Ideologia da Punição, 2008, p. 2 Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/bh/genilma_pereira_de_mou ra.pdf>. Acesso em: 15 out. 2017. 60 CARVALHO, Salo de. A Polítiaca Criminal de Drogas no Brasil (do discurso oficial às razões da descriminalização). 1996. 331 f. Dissertação [Mestrado em Direito] - UFSC, Florianópolis, 1996, p. 159.

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24!

Além disso, o destaque maior é que esta ideologia não se confunde com os

Movimentos da Defesa Social, tendo em vista a diferença em suas essências: esta última

busca a instrumentalização dos ideais da primeira, por meio de ações político-criminais, a fim

de atingir a universalidade da tecnologia penal. Enquanto isso, a IDS se preocupa em definir a

forma de se interpretar o delito em si, e com isso, torna-se meio de formação dos saberes

penais, desde o seu início61.

Prosseguindo, conforme Baratta, a IDS se pauta conforme seis princípios básicos, os

quais devem – ou deveriam, e por isso ela advém de falsas representações – resultar em uma

sociedade sem delitos. São eles: o princípio do bem e do mal, o princípio da culpabilidade, o

princípio da legitimidade, o princípio da igualdade, o princípio do interesse social, o princípio

do fim ou da prevenção62. A fim de não se realizar uma digressão, em nota de rodapé63

encontra-se uma breve explicação acerca de cada um desses princípios, extraída dos estudos

realizados por Genilma Pereira de Moura, a fim de compreensão complementar do fenômeno

da Ideologia da Defesa Social.

Esses referidos princípios formam, de acordo com Vera Andrade64, o “paradigma da

beligerância”, aprimorando as justificativas que o Estado já possuía para implementar um

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!61 CARVALHO, Salo de, op. cit., 2016, p. 72. 62 MOURA, Genilma Pereira de, op. cit., p. 3. 63 De acordo com Moura, os trabalhos de Alessadro Baratta definem, nestes termos, a ideologia da defesa social mediante certos princípios, elencados a seguir: 1) Princípio do bem e do mal. Há um controle da criminalidade (mal) em defesa da sociedade (bem). O delito é um dano para a sociedade e o delinquente é um elemento negativo e disfuncional do sistema social. 2) Princípio de culpabilidade. O fato punível é expressão de uma atitude inferior reprovável, porque seu autor atua conscientemente contra valores e normas que existem na sociedade previamente à sua sanção pelo legislador. 3) Princípio da legitimidade. O Estado, como expressão da sociedade, está legitimado para reprimir a criminalidade, da qual são responsáveis determinados indivíduos. Isto se leva a cabo através das instâncias oficiais de controle do delito (legislação, polícia, magistratura, instituições penitenciárias). Todas elas representam a legítima reação da sociedade, dirigida tanto ao rechaço e condenação do comportamento individual desviante como à reafirmação dos valores e normas sociais. 4) Princípio da igualdade. O Direito Penal é igual para todos. A reação Penal se aplica de igual maneira a todos os autores de delitos. A criminalidade significa a violação do Direito Penal e, como tal, é o comportamento de uma minoria desviada. 5) Princípio do interesse social e do delito natural. No centro mesmo das leis penais dos Estados civilizados se encontra a ofensa a interesses fundamentais para a existência de toda a sociedade (delitos naturais). Os interesses que o Direito Penal protege são interesses comuns a todos os cidadãos. Somente uma pequena parte dos fatos puníveis representa violações de determinados ordenamentos políticos e econômicos, e é punida em função da consolidação destes (delitos artificiais). 6) Princípio do fim ou da prevenção. A pena não tem (ou não tem unicamente) a função de retribuir o delito, mas de preveni-lo. Como sanção abstratamente prevista pela lei, tem a função de criar uma justa e adequada contra motivação ao comportamento criminal, isto é, intimida-lo (prevenção geral negativa). Como sanção correta, tem como função a ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva). (MOURA, Genilma Pereira de, op. cit., p. 4). 64 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. O penitenciário aos olhos do penal/criminal: o modelo de guerra e o encarceramento simbólico do perigo. (Conferência). Salvador, I Encontro de Direito Alternativo do Nordeste e I Seminário de Alternativas ao Sistema Penal, nov., 1995 apud CARVALHO, Salo de, op. cit., 1996, p. 161.

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25!

modelo cada vez mais repressivo de combate à criminalidade. Apesar de terem sido

amplamente criticados por teorias sociológicas e por teorias psicanalíticas65, os princípios

supracitados, formadores da Ideologia da Defesa Social, encontram-se ainda arraigados até os

dias hodiernos – tendo em vista que, como já explicado, constitui parte do tripé da atual

Política Criminal de Drogas no Brasil.

A referida manutenção dessa ideologia atualmente é sustentada pela ideia de que o

Direito Penal protege “igualmente todos os cidadãos das ofensas aos bens essenciais e de que

todos são igualmente vulneráveis em receber a incidência das agências de controle penal”66.

Contudo, em realidade, há crimes e grupos sociais que não são estigmatizados pela sociedade

e, portanto, não se encontram vulneráveis a tais agências – a exemplo dos crimes de colarinho

branco, realizados por grupos estabelecidos em altas castas sociais.

Em tese, portanto, os traficantes e usuários de drogas deveriam receber o mesmo

tratamento (na mídia, pela sociedade e pela Justiça) que criminosos de alto escalão – contudo

isso não ocorre na prática e a causa disto é a manutenção da IDS no pensamento popular, o

que, por sua vez, verifica-se como deveras complicado de ser meramente retirada da

mentalidade brasileira. Isso porque o estigma criminal desses sujeitos está impregnado do

próprio preconceito racial, socioeconômico e elitista do brasileiro médio – fator que será

estudado no tópico da Ideologia da Segurança Nacional.

Sendo assim, fica perceptível, também, a intrínseca relação que a Ideologia da Defesa

Social mantém com a política de desenvolvimento capitalista, tendo em vista que o controle e

o aumento das desigualdades sociais entre classes é reflexo da defesa do capital monopolista,

como bem indica Juarez Cirino dos Santos67. Portanto, de maneira espelhada haverá distinção

entre os grupos sociais estigmatizados e os não-estigmatizados, e isso será abordado em

tópico ulterior, onde será tratada a questão da Teoria do Etiquetamento (Labelling Approach

Theory) na discussão constitucional acerca de segurança pública.

Retornando: a conclusão advinda aqui é a de que, por se encontrar ainda presente nos

dias atuais, a própria estrutura de princípios da referida ideologia encontra-se intimamente

ligada à sociedade no senso comum do cidadão. Isto ocorre posto que a veemente

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!65 A autora Vera Regina Pereira de Andrade resume os estudos teóricos de Baratta em três pontos principais acerca de crítica ao mito do Direito Penal igualitário, base da Ideologia da Defesa Social: a) O Direito Penal quando pune as ofensas aos bens essenciais, realiza tal punição de maneira desigual (de modo “fragmentário); b) a lei penal deveria ser, mas não é, igual para todos; c) tendo em vista que o status de “criminoso” varia de acordo com fatores externos ao delito em si, o grau de distribuição do status criminal independe do dano causado à sociedade. (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2003, p. 282.) 66 CARVALHO, Salo de, op. cit., 1996, p. 164. 67 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Curitiba: ICPC, 2006. P. 699.

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26!

autolegitimação do sistema repressivo em resposta direta à criminalidade demonstra, em

consequência, a transmissão ininterrupta de um discurso que vai de encontro à proteção dos

direitos fundamentais – “mantendo a estrutura hierarquizada e seletiva do sistema de controle

social”68.

Em outras palavras, a “resposta” que a opinião pública oferece em relação à

criminalidade advém em boa parte da ideia que a IDS transpassa. Um exemplo disso é a

opinião do instituto da pena de morte no país: com 49% dos brasileiros sendo favoráveis e

46% contrários, de acordo com estudo realizado pela Confederação Nacional da Indústria

(CNI) e pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) no ano de 201669.

Além disso, nessa mesma pesquisa percebe-se o seguinte: 3 em cada 4 brasileiros acreditam

que o aumento da rigorosidade das penas tem como consequência a redução da

criminalidade70. Paradoxalmente, entretanto, em uma análise do questionamento feito a esses

mesmos participantes acerca da efetivamente das ações sociais frente às ações repressivas do

Estado, 80% dos entrevistados votou favorável às primeiras como mais eficazes na redução da

violência nas cidades71.

Esses elementos demonstram, em realidade, a ausência de uma visão mais crítica da

sociedade em relação à criminalidade, entendendo possuir uma resposta simples e

monocromática – em contraste com os vários fatores determinantes para a sua ocorrência.

Mais do que isso, demonstra o já exposto: a íntima conexão da Ideologia da Defesa Social na

visão que a sociedade tem sobre si mesma.

Em se relacionando com a questão do tráfico e do uso de entorpecentes no país, a

ideologia em questão “simplifica” o tema no imaginário do cidadão brasileiro médio, de tal

forma que reduz a solução para o sistema penal. É a representação do senso comum: “o tráfico

acabará se a atuação da polícia for mais veemente”, “a tolerância deve ser zero”, “usuário de

drogas não é gente”. Esses não são pensamentos incomuns na mentalidade da população e o

problema neles é a falta de reflexão crítica – justamente por ser uma reprodução da Ideologia

da Defesa Social.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!68 CARVALHO, Salo de, op. cit., 2016, p. 77. 69 CNI. Retratos da Sociedade Brasileira: segurança pública. Confederação Nacional da Indústria, Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística. Indicadores CNI, Ano 6, N. 38, mar. 2017. Disponível em: <https://static-cms-si.s3.amazonaws.com/media/filer_public/7c/d5/7cd59272-ccfa-4a51-8210-33c31896 9a42/retratosdasociedadebrasileira_38_segurancapublica.pdf>. Acesso em: 1 de novembro de 2017. P. 13. 70 Ibidem, p. 10. 71 Ibidem, p. 6.

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27!

Contudo, como já explicitado, a IDS representa apenas um dos pilares da Política

Criminal de Drogas no país, a qual possui apoio dos outros dois sustentáculos para sua

atuação repressiva máxima, como se visualizará a seguir.

3.1.2 A Ideologia da Segurança Nacional

A peculiaridade da América Latina, e por consequência do Brasil, resta no fato de

coexistirem as duas ideologias referidas, as quais são complementares, “apesar da diferença

quanto à sua gênese e seus objetivos específicos”72: a Ideologia da Defesa Social e a Ideologia

da Segurança Nacional. Esta última, trazida aos países latino-americanos a partir da década de

1960, com sua potencialidade transnacional e lógica maniqueísta, se uniu à primeira para

formar um conglomerado ideológico bélico, cujas ideias acabaram por banalizar a violência

estatal – tornando-a natural em essência no combate à criminalidade.

Importante relembrar aqui que, neste contexto histórico, iniciou-se uma associação das

drogas à conotações libertárias e revolucionárias – a chamada “contracultura”, como já dito

em capítulo anterior deste trabalho. Sendo assim, explica, de maneira didática, a socióloga

Roberta Duboc Pedrinha:

entrou em cena a guerra fria, com o capitalismo industrial de guerra, fato que propiciou a militarização das relações internacionais no campo da geopolítica. Para o governo militar, a droga era ainda tida pelo DOPS-Rio como elemento de subversão, vista como arma da guerra fria, associada a uma estratégia comunista para destruir o Ocidente e as bases morais da civilização cristã73.

A Ideologia da Segurança Nacional (ISN) no Brasil se modelou oficialmente a partir

da adesão belicista adotada pelo país em conformidade com o paradigma internacional, isto é,

desde a aprovação da “Convenção única sobre entorpecentes” por meio do Decreto 54.216 de

196474. Iniciava-se a era em que a política criminal de drogas se vestia de uma roupagem de

guerra, com o intuito de eliminação do inimigo.

Esse modelo acompanhou o crescimento de um discurso punitivo muito mais

repressivo, de modo a alimentar “o desejo insaciável de poder punitivo, conformando aquilo

que poderia ser denominado como vontade de suplício, em virtude de sua expansão ilimitada

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!72 CARVALHO, Salo de, op. cit., 1996, p. 168. 73 PEDRINHA, Roberta Duboc. Notas sobre a política criminal de drogas no Brasil: elementos para uma reflexão crítica, 2008, p. 6 Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/ salvador/roberta_duboc_pedrinha.pdf>. Acesso em: 25 out. 2017. 74 PEDRINHA, Roberta Duboc, op. cit., p. 7.

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28!

e imune a qualquer tipo de controle”75. Isto é, instaurava-se uma política de extermínio

permanente nas agências de controle (as polícias civil e militar), posto que se encontravam

moldadas no estilo militar de ensino e atuação – com a seleção de um inimigo-alvo e um

objetivo simples: a sua erradicação.

Esse inimigo transformou-se de um inimigo político da época (sejam comunistas ou

hippies revolucionários) para um inimigo baseado nos fatores socioeconômicos e preconceitos

atuais do país. Conforme o fantasma do comunismo desaparecia lentamente, o alvo das

políticas repressivas necessitava de uma “atualização” para se manter a justificativa da

atuação estatal diante da perpetuidade da insegurança nacional. Esse novo público passava a

constituir-se de pobres, negros, prostitutas, moradores de favelas, mendigos, dentre outros

grupos considerados marginalizados pela sociedade.

Essa direcionamento atual encontra-se claramente demonstrado no levantamento de

dados realizado em conjunto entre o Departamento Penitenciário Nacional, a Secretaria

Nacional de Segurança Pública e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2014, acerca

da questão penitenciária brasileira. Nesse estudo, pode-se observar os seguintes elementos

dentre as 622.202 pessoas privadas de liberdade no país até dezembro de 2014: 61,67%

consiste em negros e pardos76; 75,08% possuem escolaridade baixa (analfabetas, alfabetizadas

informalmente ou escolarizadas até o ensino fundamental)77; e, para completar, 28% das

sentenças condenatórias privativas de liberdade correspondem a crimes referentes à Lei de

Drogas78.

Retornando da breve, mas necessária, digressão, de acordo com Joseph Comblin, é

importante demonstrar que o conceito de geopolítica e de bipolaridade estão fortemente

associados à ISN, além de haver uma forte ideia de maniqueísmo – assim como na Ideologia

da Defesa Social – e essa estrutura completa orienta o preparo militar na defesa de sua

nação79, utilizando como justificativa para as ações bélicas.

A diferença entre essas duas ideologias nesse contexto, a bem da verdade, resta no

seguinte: “enquanto na Defesa Social o antagonismo se reflete na separação entre os

indivíduos (criminosos e cidadãos), para a ideologia da Segurança Nacional, são

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!75 CARVALHO, Salo de, op. cit., 2016, p. 85. 76 BRASIL. Levantamento Nacional de informações penitenciárias: INFOPEN – Junho de 2014. Brasília: Ministério da Justiça, 2014, p. 36. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf >. Acesso em: 3 nov. 2017. 77 Ibidem, p. 46. 78 Ibidem, p. 33. 79 COMBLIN, Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: O poder militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 25 apud CARVALHO, Salo de, op cit., 2016, p. 82.

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29!

diametralmente opostas nações ou blocos políticos”80. Quem complementa esse pensamento é

Nilson Borges Filho ao explicar o que se segue:

A geopolítica dos militares latino-americanos visa não somente estabelecer os limites geográficos do Estado, mas trabalhar com as fronteiras ideológicas, um tipo de fronteira que não separa um Estado-Nação de outro Estado-Nação, mas uma parte do povo de outra parte do povo, no interior de cada Nação81.

Sendo assim, conclui-se que a junção de tais ideologias corresponde a um

supermodelo de repressão penal, com um objetivo de eliminação total de um inimigo externo

e de um inimigo interno – com a justificativa de que ambos têm como pretensão última a

corrupção da democracia e dos valores morais e cristãos da sociedade82.

Além do mais, tem-se que a fusão acima descrita e o objetivo último das referidas

ideologias direcionam para um desrespeito dos direitos fundamentais norteadores da nossa

própria sociedade democrática. Isso acontece devido à necessidade de se atingir a segurança

nacional idealizada, o que será sempre a justificativa principal de manutenção do estado

perpétuo de violência estatal aqui estudado.

3.1.3 Os Movimentos de Lei e Ordem

Considerado o último elemento do tripé da Política Criminal de Drogas brasileira, os

Movimentos de Lei e Ordem (MLOs) consistem na instrumentalização positiva, isto é,

referem-se a um plano de ação específico para as ideologias descritas até o momento. A

seguir, um panorama de seu desenvolvimento, bem como as consequências de sua

manutenção para a mentalidade do cidadão comum a respeito da criminalidade.

Sobre o aspecto do desenvolvimento, pode-se indicar sua origem a partir da década de

1960, de maneira quase simultânea à Ideologia da Segurança Nacional, restando sua diferença

desta na transmissão palpitante, ininterrupta e hipnótica, por meio do mass media, de um

“estado de perigo constante e iminente”83. A caracterização de “palpitante” e “ininterrupta”

ao mesmo tempo parece, em um primeiro olhar, paradoxais; contudo, a ideia aqui transmitida

é a de que existe, na mídia atual, uma marcante constância em fabricar o estereótipo do

criminoso.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!80 CARVALHO, Salo de, op. cit., 1996, p. 175. 81 BORGES FILHO, Nilson. Os militares no poder. Editora Acadêmica, 1994, p. 54. 82 CARVALHO, Salo de, op. cit., 1996, loc. cit. 83 CARVALHO, Salo de, op. cit., 2016, p. 86.

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30!

Isso coaduna com a informação já dita anteriormente no presente trabalho: a ideia do

crime e o criminoso passam a se instaurar na mente do cidadão comum por meio da mídia, a

qual instrumentalizará a imagem trazida pela Ideologia da Defesa Social e pela Ideologia da

Segurança Nacional, em conjunto. Isto é, conforme ensinamento de Eugenio Raúl Zaffaroni, a

catalogação dos criminosos que convêm à sociedade etiquetar como desviantes é transmitida

pela mídia constantemente, ao mesmo tempo em que deliberadamente não se preocupa em se

dar a mesma urgência de etiquetar, de forma proporcional, outros tipos de delitos, tais como a

delinquência de colarinho branco, dourada, de trânsito, dentre outras84.

Além disso, diante do fato de haver um fascínio da audiência brasileira por questões

relacionadas à criminalidade no país (as notícias policiais em revistas e periódicos são as mais

frequentemente lidas pelo brasileiro médio)85, a mídia se alimenta de forma voraz dessa sede

informacional por notícias envolvendo violência – produzindo em largas quantidades esse

conteúdo mais como forma de entretenimento, em detrimento do objetivo educacional e

crítico.

Assim, os Movimentos de Lei e Ordem são representados por este círculo vicioso e

lucrativo para as empresas privadas de comunicação social: enquanto houver público-alvo

necessitando e se entretendo com o conteúdo violento e sensacionalista oferecido pelo mass

media, haverá conteúdo de sobra a ser consumido. Dessa forma, é criado e retroalimentado o

“punitivismo popular”86, fazendo surgir um sistema de fabricação de estereótipos mais

poderosos (e mais perigosos) que os difundidos pelo próprio modelo jurídico estatal87.

Em outras palavras, o mass media bombardeia a população brasileira com a noção de

que o sistema penal é a solução suprema no combate à criminalidade e ainda vai além: repassa

a seus espectadores a sensação de insegurança na sociedade, noção esta que influencia e é

influenciada pelo resto do tripé da Política Criminal brasileira.

Adicionando a isso, os efeitos desse bombardeio na mentalidade do cidadão ordinário

se difundem facilmente e esparsas são suas consequências, como bem enumera Zaffaroni:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!84 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 130. 85 SOARES, Luiz Eduardo. Justiça: Pensando alto sobre violência, crime e castigo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 19. 86 DIAS, Fábio Freitas de; DIAS, Felipe da Veiga; MENDONÇA, Tábata Cassenote. Criminologia midiática e a seletividade do sistema penal. Universidade Federal de Santa Maria, 2013, Santa Maria: Anais…, 2013, p. 390. 87 CARVALHO, Salo de, op. cit., 1996, p. 188.

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31!

Estas campanhas realizam-se através da “invenção da realidade” (distorção pelo aumento de espaço publicitário dedicado a fatos de sangue, invenção direta de fatos que não aconteceram), “profecias que se auto-realizam”, (instigação pública para a prática de delitos mediante metamensagens de “slogans” tais como “a impunidade é absoluta”, “os menores podem fazer qualquer coisa”, “os presos entram por uma porta e saem por outra”, etc; publicidade de novos métodos para a prática de delitos, de facilidades, etc.), “produção de indignação moral” (instigação à violência coletiva, à autodefesa, glorificação de “justiceiros”, apresentação de grupos de extermínio como “justiceiros”, etc.)88.

Neste sentido, tem-se como exemplo o fenômeno do linchamento, o qual faz “parte de

um cenário de violência cotidiana, cuja tragédia maior consiste, justamente, na sua

banalidade”89. Essa forma de “justiça com as próprias mãos”, ou “cultura da justiça popular”,

que utiliza a vítima do linchamento como bode expiatório90 e resposta ao senso de

insegurança, transmitido incessantemente pela mídia, representa apenas uma das

consequências do poder devastador que a Ideologia da Defesa Social, a Ideologia da

Segurança Nacional e os Movimentos de Lei e Ordem, como pilares da Política Criminal de

Drogas no Brasil, causam no tecido da sociedade.

3.2 O DIREITO PENAL DO INIMIGO E A GUERRA ÀS DROGAS

Conforme analisado em tópico anterior, o tripé da Política Criminal de Drogas

brasileira se alastra não só na atuação das agências estatais repressivas e nas ciências

jurídicas, mas também no interior da mentalidade popular – seja por influência midiática, seja

pelos crescentes índices de criminalidade e, por consequência, de uma urgência maior de uma

resposta imediata acerca disso.

Neste meio, o Estado Social e Democrático vem dando lugar a um Estado Penal, onde

as ações repressivas são preferenciais aos investimentos sociais em educação, saúde e cultura;

onde a ultima ratio do Direito Penal é substituída pela prima ratio; onde direitos e garantias

individuais são preteridos pelo bem maior de um ideal de segurança pública; onde, por fim,

abrandar o fervor da opinião pública é mais favorável, em vez de se solucionarem problemas

estruturais da sociedade com políticas de longo prazo. Complementando este pensamento,

segue discurso de Iemini:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!88 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit. p. 129. 89 BENEVIDES, M. V. Linchamentos no Brasil: violência e justiça popular. In: MATTA, Roberto da. (Org.). Violência brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 97. 90 MARTINS. José de Souza. Linchamentos: a Justiça Popular no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015, p. 108.

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32!

A busca do imediatismo na punição de certos crimes, cria no legislador uma ânsia em contentar a sociedade que demonstra repúdio público, através dos meios de comunicação, às suas práticas. Desta maneira, leis são editadas para dar a falsa impressão de segurança restaurada, aplacando a ira da população instigada pelos meios midiáticos, o que, para o legislador, tem justificado a perda de alguns benefícios e até mesmo o cerceamento de outros91.

O que acontece, com esta mudança de paradigma, é uma verdadeira indiferença ao

separatismo social e à criação de estereótipos definidos pela mídia e pela Política Criminal. A

bem da verdade, essa espécie de cegueira crítica e narcisista é causada, majoritariamente, pela

falsa noção de insegurança permanente, transmitida hodiernamente aos cidadãos comuns.

Neste âmbito, entra o Direito Penal do Inimigo, doutrina formulada por Günther Jakobs, a

qual dissemina a “beligerância penal não apenas como reitora da política criminal mas,

igualmente, como base interpretativa do direito penal (dogmática penal) em suas mais

diferentes variantes (teoria e interpretação da lei penal, teoria do delito e teoria da pena)”92.

Entende o alemão que, existiriam dois tipos de sujeitos delinquentes na sociedade: o

criminoso-cidadão e o criminoso-inimigo. Indica-se, nesta teoria, que o primeiro não estaria

quebrando o pacto social firmado com o Estado quando da ocorrência do delito, posto que as

expectativas sociais voltadas a ele já se encontrariam resolutas e atendidas (seu papel na

sociedade seria devidamente cumprido), e seus delitos seriam considerados como “mera

reafirmação da ordem”93. Em contrapartida, o segundo praticaria crimes para desafiar a ordem

social e, por isso mesmo, deveria (como sanção) perder a qualidade de cidadão –

deteriorando, assim, seus direitos e garantias individuais – tornando-se inimigo do Estado.

Nesse sentido, quanto ao cidadão, o Estado mantém o “benefício” da dúvida até o

momento da efetiva prática delitiva – quando a ação estatal repressiva incidiria. Em

contrapartida, o inimigo não teria tanta sorte, posto que o Estado tomaria ações já baseado na

visão da incapacidade deste indivíduo de corresponder às expectativas sociais a si impostas94

– adentrando na justificativa estatal dessas ações repressivas à luz da segurança pública.

Apenas com uma breve introdução do tema do Direito Penal do Inimigo, pode-se

perceber como casos de soltura de usuários de drogas pertencentes à classe alta não ganham

tanto espaço na mídia global – nem causam proporcional revolta social quanto à insegurança

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!91 IEMINI, Matheus Magnus Santos. Direito penal do inimigo: sua expansão no ordenamento jurídico brasileiro. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 75, abr 2010, p. 5. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7619>. Acesso em nov. 2017. 92 CARVALHO, Salo de, op. cit., 2016, p. 110. 93 MAIA, Ana Clara de Araújo. Estigma e direito penal do inimigo: uma análise à luz da criminologia, antropologia e do cinema. 2016. 94f. TCC [Graduação em Direito] – UFRN, Natal, 2016, p. 65. 94 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas. Org e trad. André Luiz Callegari e Nereu José Giacomolli. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 36.

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33!

pública – quanto nos casos envolvendo indivíduos de classe baixa sendo presos, linchados ou

executados, mesmo sendo praticantes do mesmo delito.

Continuando na análise da teoria, cabe mencionar que Jakobs indica o seguinte: os

indivíduos considerados “inimigos do Estado” decidiram se afastar, de modo permanente, do

Direito e, por consequência, da vida em sociedade – a exemplo de grupos terroristas e

organizações criminosas. Dessa forma, analisa o autor, a extensão da punibilidade não poderia

se limitar a ser sanção de fatos já cometidos, mas deveria ir além, assegurando fatos futuros95.

É dizer que o Estado não deveria aguardar o cometimento do delito dos indivíduos em relação

aos quais já haveria uma “expectativa delitiva”96.

Percebe-se, no Direito Penal do Inimigo, uma proteção da norma per se em detrimento

da proteção a bens jurídicos – como se a lei penal servisse a sua própria segurança normativa.

Nisso influi-se que na determinação de um inimigo não se necessitaria do ataque a um bem

jurídico específico, bastando que o sujeito provoque abalo na ordem social protegida pelo

Estado – o qual, “reconhecendo sua incapacidade em promover a pacificação social, extirpa

os cidadãos que aparentemente lhe sejam prejudiciais apenas por suposições sem conteúdo

fático”97. Significa dizer que o Direito Penal do Inimigo não é um direito penal do feito, mas

sim do autor, pois suas diretrizes não estabelecem normas – mas sim grupos infratores98. O

que se pode notar aqui seria a “assunção formal”99 daquilo trazido em tópico anterior: o

maniqueísmo e a beligerância como conteúdo-guia das ciências jurídicas penais.

Neste ponto, já compreendidas as questões básicas relativas à teoria em voga, cabe-se

questionar: afinal, quem seria o tão citado inimigo? Em relação a essa pergunta, Jakobs indica

que o inimigo incorporaria todos aqueles indivíduos cujas ações possam resultar em reiteração

delitiva100. Contudo, essa definição, mesmo ampliando em aparência o norte penal aos

indivíduos ligados a grupos terroristas – por ser uma categoria, por si só, deveras aberta –

oferece margem para ações estatais desmedidas, posto que na prática essa ideologia não se

limita às instâncias jurídicas, irrigando também as esferas de intervenção policial, onde, em

sua atuação, encontra-se boa parte do desrespeito aos direitos fundamentais.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!95 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Derecho Penal del Enemigo. Madrid: Editorial Civitas, 2006, p. 40-41 apud GRECO, Rogerio. “Direito penal do inimigo”. JUSBRASIL. Disponível em: <https://rogeriogreco.jusbrasil.com.br/artigos/121819866/direito-penal-do-inimigo>. Acesso em: 4 nov. 2017, p. 6. 96 Ibidem, p. 6. 97 IEMINI, Matheus Magnus Santos, op. cit., p. 4. 98 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Derecho Penal del Enemigo. Madrid: Editorial Civitas, 2006, p. 93-94 apud CARVALHO, Salo. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 8a ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 113. 99 CARVALHO, Salo de, op. cit. 2016, p. 113. 100 Idem.

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34!

Todas as questões relacionadas aos direitos e garantias constitucionais, considerados

fundamentais à dignidade da pessoa humana, serão abordados em tópico ulterior e específico

deste mesmo trabalho, dada a complexidade do tema. Doravante, retorna-se à análise do

Direito Penal do Inimigo.

Para melhor compreensão de como age o Direito Penal do Inimigo hodiernamente,

observe-se a seguir os casos do catador de material reciclável Rafael Braga e do empresário

Breno Fernando Solon Borges.

Em 2013, o jovem Rafael (24 anos), negro e, à época, morador de rua, encontrava-se

coletando materiais recicláveis no Centro do Rio de Janeiro (RJ), quando foi abordado por

policiais – os quais acompanhavam as manifestações de junho daquele ano. Ao analisarem

que o jovem portava uma garrafa de água sanitária e outra de desinfetante, concluíram

rapidamente que Rafael as utilizaria para fabricar o infame “coquetel molotov” – diante da

proximidade com a manifestação política da época – e o prenderam naquele mesmo

instante101.

Ressalte-se que o laudo do Esquadrão Antibombas da Polícia Civil do Rio de Janeiro,

no processo de Rafael, negou a possibilidade de os materiais encontrados em posse do jovem

serem considerados ingredientes para fabricação da arma caseira indicada102. Apesar disso, o

rapaz foi condenado a cumprir cinco anos em pena privativa de liberdade, conseguindo,

contudo, em 2015, a progressão para o regime semiaberto e, após, o direito à prisão domiciliar

com tornozeleira eletrônica103.

Quase três anos após sua prisão em flagrante, em janeiro de 2016, no complexo de

favelas da Penha (RJ), onde passou a morar o catador de recicláveis, policiais o abordaram e,

novamente, ocorreu sua prisão em flagrante – dessa vez, foi supostamente encontrado com

0,65 gramas de maconha e 9,3 gramas de cocaína. Emprega-se, aqui, a expressão

“supostamente” pois sua defesa alegou que o jovem foi intimidado e incriminado pelos

oficiais responsáveis por sua prisão. Inclusive, a única testemunha ocular da situação, sua

vizinha Evelyn Barbara, afirmou que observou o rapaz, sem conter nenhum objeto em suas

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!101 TERTO, Amauri. “A campanha de financiamento coletivo que quer entregar uma casa para Rafael Braga”. Huffpost Brasil, 4 nov. 2017. Disponível em: <http://www.huffpostbrasil.com/2017/11/04/a-campanha-de-financiamento-coletivo-que-quer-entregar-uma-casa-para-rafael-braga_a_23263861/>. Acesso em: 5 nov. 2017. 102 ENTRE Rafael Braga e Breno Borges mora a seletividade penal. Yahoo, 14 ago. 2017. Disponível em: <https://br.noticias.yahoo.com/entre-rafael-braga-e-breno-borges-mora-seletividade-penal-131432587.html>. Acesso em: 4 nov. 2017. 103 BIANCHI, Paula. “Caso Rafael Braga: Justiça nega liberdade a catador condenado por tráfico”. UOL, 8 ago. 2017. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/08/caso-rafael-braga-justica-nega-liberdade-de-catador-condenado-por-trafico.htm>. Acesso em: 4 nov. 2017.

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35!

mãos, sendo abordado pelos policiais até que estes o levaram a um local longe do seu campo

de visão.

Contudo, o magistrado do caso decidiu considerar irrelevantes tanto o depoimento do

réu quanto a declaração da testemunha, além do fato de a defesa afirmar que não teve acesso a

conteúdos probatórios importantes, tais como as câmeras da viatura – julgando o juiz tão-

somente baseado nas palavras dos oficiais atuantes104. Assim, em abril de 2017, o jovem

catador de materiais recicláveis foi condenado por tráfico, associação ao tráfico e colaboração

com o tráfico, com a pena de reclusão por 11 anos.

Em setembro de 2017, ao rapaz Rafael Braga, que contraiu tuberculose na prisão onde

cumpria pena, foi concedida a prisão domiciliar por decisão liminar e monocrática do ministro

Rogério Schietti, do Superior Tribunal de Justiça, devido ao estado de saúde agravado105.

Esse é o caso do jovem Rafael Braga. Agora, antes de se analisar os elementos do

Direito Penal do Inimigo presentes na situação exposta, observe-se um caso diametralmente

oposto: o do empresário branco, dono de serralherias e metalúrgicas de 37 anos, Breno

Fernando Solon Borges106.

Filho da desembargadora Tânia Garcia – e também presidente do Tribunal Regional

Eleitoral do Mato Grosso do Sul (TRE-MS), o empresário foi detido e preso pela Polícia

Rodoviária Federal na BR-262 em Água Clara (MS) ao ser apreendido com 129,9kg de

maconha, 199 munições de calibre 7.62 (para fuzis) e 71 de calibre 9mm107. A autuação em

flagrante ocorreu em 8 de abril de 2017, e Breno encontrava-se preso desde então após a

Polícia Federal ter requerido sua prisão preventiva – concedida em primeira instância.

Contudo, em julho do mesmo ano, foi concedido a Breno, já na segunda instância, o

benefício de aguardar seu julgamento em liberdade, diante da apresentação da defesa de laudo

médico que atestava o réu possuir síndrome de personalidade limítrofe – transtorno

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!104 CONDENAR Rafael Braga apenas com base na palavra policial viola o processo penal brasileiro. Justificando, 22 abr. 2017. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2017/04/22/condenar-rafael-braga-apenas-com-base-na-palavra-policial-viola-o-processo-penal-brasileiro/>. Acesso em: 4 nov. 2017. 105 STJ autoriza prisão domiciliar para Rafael Braga. Rede Brasil Atual, 13 set. 2017. Disponível em: <http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2017/09/stj-autoriza-prisao-domiciliar-para-rafael-braga>. Acesso em: 4 nov. 2017. 106 ENTRE Rafael Braga e Breno Borges mora a seletividade penal. Yahoo, 14 ago. 2017. Disponível em: <https://br.noticias.yahoo.com/entre-rafael-braga-e-breno-borges-mora-seletividade-penal-131432587.html>. Acesso em: 4 nov. 2017. 107 JUSTIÇA livra da prisão filho de desembargadora preso com 129 kg de maconha e 199 munições. JC Online, 23 jul. 2017. Disponível em: <http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/mundo/brasil/noticia/2017/07/23/ justica-livra-da-prisao-filho-de-desembargadora-preso-com-129-kg-de-maconha-e-199-municoes-296993.php>. Acesso em: 4 nov. 2017.

!!

36!

reconhecido108 no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), um

livro técnico no qual se encontram diversas categorias de doenças mentais reconhecidas por

profissionais da área.

Dessa maneira, o empresário ganhou o benefício de responder em liberdade, a fim de

cumprir tratamento psiquiátrico devido, sob a tutela de sua mãe. O resto do caso, contudo,

permanecesse sem novas atualizações, tendo em vista que os advogados de defesa requereram

segredo de justiça, cujo pedido foi concedido109.

Finalmente pode-se analisar devidamente os casos descritos, apesar de já restar

evidente a diferença gritante do tratamento estatal em ambos.

Percebe-se, em duas situações concretas, a influência do Direito Penal do Inimigo na

intervenção policial e no próprio Judiciário, constatando-se, principalmente, a punibilidade

seletiva acarretada por tal concepção – gerando, em consequência, um Estado de exceção

permanente e a conta-gotas. Se, por um lado, observamos o “cidadão” da doutrina, Breno, em

relação ao qual o Estado oferece o benefício da dúvida até que seja cometido o crime; por

outro, tem-se o “inimigo”, cujo extermínio é poder-dever estatal para a segurança geral da

nação e, porque ele não oferece sua parcela de contribuição para a sociedade, já se encontraria

“destinado ao delito”.

Aqui observa-se, também, de maneira gritante, que o Direito Penal do Inimigo é um

direito do autor e não um direito do feito, no momento em que a quantidade da substância

psicotrópica apreendida (129 quilogramas de maconha) no caso de Breno é cerca de duzentas

vezes maior que as meras 0,65 gramas que supostamente encontravam-se em posse de Rafael

na hora do flagrante. Dessa maneira, as características relevantes não seriam as drogas

apreendidas em si, mas quem as está portando.

Poder-se-ia indicar que Rafael possuía 9,3 gramas de cocaína no momento da autuação

policial e que somente essa quantidade em si poderia ser suficiente para o tráfico, contudo,

segundo estudo técnico da Secretaria do Estado de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do

Paraná, ao aplicar na população carcerária desse estado o parâmetro português de referência

com duas gramas por dia, multiplicado por dez dias, chegou-se à conclusão de que até vinte

gramas de cocaína seria considerada “pequena quantidade”110. Por outro lado, a quantidade de

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!108 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM-5. Porto Alegre: Artmed, 2014. 109 FILHO da desembargadora solto na madrugada de sexta é considerado de alta periculosidade pela PF. Blog do Rovai, 23 ju. 2017. Disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/blogdorovai/2017/07/23/filho-da-desembargadora-solto-na-madrugada-de-sexta-e-considerado-de-alta-periculosidade-pela-pf/>. Acesso em: 4 nov. 2017. 110 GOMES, Maria Tereza Uille; et al, op. cit., p. 15.

!!

37!

maconha considerada pequena pelo mesmo estudo seria a de vinte e cinco gramas, limite o

qual foi superado significativamente na apreensão da quantidade em posse de Breno.

Dessa forma, percebe-se de maneira clara que o Direito Penal do Inimigo seleciona

grupos infratores, em vez de normas, para determinar em quem o Estado deve focar sua

atuação repressiva. Assim, a consequência disso é se pensar que outros iguais a Rafael Braga

nasceram desafortunados e permanecerão assim, pois raramente verão as benesses que os

iguais a Breno Borges recebem diariamente. A manutenção desse Estado de exceção

permanente que guerreia contra jovens estereotipicamente selecionados é o malefício maior

advindo da atual Política Criminal de Drogas, sendo imperativo e urgente uma mudança nesse

paradigma.

3.3 UMA NOVA PROPOSTA FRENTE À REPRESSIVA POLÍTICA CRIMINAL DE

DROGAS NO PAÍS

Diante do exposto nos tópicos anteriores, pôde-se perceber a problemática atual da

Política Criminal de Drogas: a complexa malha ideológica envolvendo as agências

repressivas, a mídia e a mentalidade do cidadão brasileiro médio oferecem subsistência para a

manutenção do atual ciclo de violência – direcionada ao sujeito considerado como inimigo,

invisível aos olhos da sociedade.

Com isso, reflete-se acerca da possibilidade de a criminologia, como ciência jurídica,

auxiliar a romper essa estrutura, não apenas focando nos aspectos acadêmicos, mas também –

e principalmente – arquitetando uma comunicação dialética entre as principais peças desse

jogo de xadrez chamado Política Criminal brasileira, sejam eles “políticos, autoridades

públicas, policiais, peritos, vítimas e jornalistas”111. Nesse sentido, complementa Eugenio

Raúl Zaffaroni:

a política criminal que impera no mundo necessita urgentemente girar em sentido inverso, vindo a se converter em um fator que acabe com o alto nível de conflitividade, ou, pelo menos, que a partir da periferia não podemos nos curvar e copiá-la na forma suicida com que a criminologia midiática o faz112.

Observa-se que as ideologias elencadas acima (a IDS, a ISN, os MLOs e o Direito

Penal do Inimigo) encontram-se tão severamente imbricadas na estrutura das ciências penais

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!111 ALVES, Fábio Wellington Ataíde. Viver a teoria: um ensaio de Criminologia Cautelar. Revista Transgressões, Natal, v. 2, n. 1, 2014, p. 10. 112 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal. Rio de Janeiro: Revan. 2013, p. 261.

!!

38!

que quaisquer soluções para uma mudança de paradigma devem ser pensadas e repensadas

com afinco, com o intuito de fornecer uma ruptura verdadeira e sólida para com esse sistema

violento hodierno.

Neste sentido, em concordância com o professor Zaffaroni, indica-se a necessidade de

se haver uma criminologia que – ao investigar a densa realidade descrita – previna os

massacres que ocorrem de maneira sistêmica na sociedade, neutralize a criminologia

midiática, analise os conflitos violentos de acordo com suas especificidades e particularidades

locais, e busque desmotivar comportamentos violentos113.

Postas estas diretrizes, a resposta se encontra na chamada criminologia cautelar, a qual

tem a capacidade de criticar as instâncias estatais no âmbito penal, além de ser mais

pragmática – no sentido de enfrentar e se questionar sobre os massacres invisíveis, sobre as

condições pútridas e desumanas dos presídios brasileiros, sobre a política de extermínio das

agências estatais, e sobre a indiferença da população quanto a essas questões. Ela vai de

encontro à criminologia midiática, já citada aqui, cujo discurso apelativo se utiliza da

informação, da subinformação e da desinformação – aliando preconceitos, medos e crenças.

Esta última é a criminologia incutida no pensamento do brasileiro médio, mantendo forte

conexão com os Movimentos de Lei e Ordem, tratados em momento anterior neste trabalho.

Assim, em contraste claro com a criminologia midiática, e com atitude diferente da

acadêmica – destinada a permanecer confinada nos corredores das faculdades de ciências

humanas e em trabalhos e artigos daí originados – a criminologia cautelar oferece sustento

para combater a violência com outra estratégia: compreendendo “as suas variações, as

múltiplas violências alocadas de acordo com as especificidades regionais de poder”114 e com

uma atuação militante, baseada na comunicação115.

Nesse âmbito, cabe indicar pensamento do professor Fábio Ataíde Alves, o qual

ressaltou que as técnicas da “Doutrina das Janelas Quebradas” (Broken Windows Theory)

poderiam auxiliar a criminologia cautelar como “programa de prevenção de massacres,

auxiliando a formatação de táticas de neutralização dos riscos sociais, ou melhor dizendo, que

identifiquem as janelas por onde agentes massacradores passam”116. Em breve resumo, essa

doutrina instituía a noção de que, para eliminar os delitos mais ofensivos, dever-se-ia eliminar

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!113 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit., 2013, p. 262. 114 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Palavra dos Mortos: conferências de criminologia cautelar. Coordenação de Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 491, apud ALVES, Fábio Wellington Ataíde. Viver a teoria: um ensaio de Criminologia Cautelar. Revista Transgressões, Natal, v. 2, n. 1, 2014, p. 17. 115 ALVES, Fábio Wellington Ataíde, op. cit., p. 18. 116 ALVES, Fábio Wellington Ataíde, op. cit., p. 16.

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39!

os crimes com menor potencial lesivo117. Apesar de ser considerada verdadeiro placebo

criminológico por estudiosos como o professor acima citado, tendo em vista a ausência de

comprovação empírica do resultado último a que busca atingir, a sua importância, aqui, reside

nos efeitos que possui sobre a ordem urbana no que concerne à questão comunicacional.

Isso pode ser explicado com o próprio fenômeno histórico que fundamentou a teoria:

um programa de segurança instituído em Nova Jersey nos anos 1970. Esse programa

propunha melhorar a qualidade de vida de seus habitantes, sendo o meio para tanto uma

revisão dos conceitos de segurança pública. Dessa maneira, o policiamento a pé foi a peça-

chave para a concretização dos objetivos do programa. O resultado? Apesar de não ter havido

redução da violência e de crimes, a sensação de segurança cresceu significativamente, o que,

“por vias transversas, foi interpretado pela população como diminuição das taxas de

criminalidade”118.

Na situação descrita, ocorreu o contrário dos efeitos da criminologia midiática sobre a

sociedade, posto que apesar de ainda haver uma máscara que esconde as verdadeiras taxas de

criminalidade, a consequência não necessariamente foi maléfica – tendo em vista o aumento

da sensação de segurança e o reflexo apaziguamento dos ânimos furiosos da população quanto

à questão da violência. Assim, a criminologia cautelar poderia se beneficiar de estudos

sociológicos como o acima descrito, no que tange à questão do pacificação social e controle

da influência que a criminologia midiática ainda possui.

Todavia, colocar em prática a criminologia cautelar constitui tarefa árdua, tendo em

vista o amplo espectro de crimes violentos, sem contar a quantidade ainda maior de variáveis

a serem compreendidas no concernente aos fatores de risco que causariam tal violência

específica, a exemplo da influência que a idade que se cometem os primeiros delitos, a

ingestão de álcool, o meio-ambiente envolvido na formação daquele indivíduo, dentre outros.

Para melhor compreensão dos aspectos aqui trazidos, é interessante e mais didático

exemplificar com uma situação médica extraída de um episódio do seriado americano

House119. O protagonista, com nome homônimo ao título da série televisiva, é um

infectologista e nefrologista que trabalha em um hospital na cidade de Princeton (Nova

Jersey) como Chefe do Departamento de Diagnósticos. Isso significa que, assim que um

paciente é admitido no hospital com uma doença difícil de se diagnosticar, a equipe de

Gregory House, baseada em rigorosa avaliação de sintomas e diferenciais médicos, deve

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!117 MAIA, Ana Clara de Araújo, op. cit., p. 68. 118 ALVES, Fábio Wellington Ataíde, op. cit., p. 15. 119 SHORE, David. House. [Série de TV]. Estados Unidos; Califórnia, EUA: Netflix, 2006.

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40!

estabelecer um tratamento adequado. Caso o diagnóstico não seja o correto, o tratamento para

a doença específica não surtirá efeito e, por consequência, entra em risco a vida do paciente.

Um exemplo disso na série é o ocorrido no vigésimo episódio da terceira temporada,

nomeado “House Training”. Em resumo, uma paciente de 28 anos de idade é admitida com

um sintoma denominado de abulia, a inabilidade de tomar decisões, e a equipe do especialista

House – correndo contra o tempo – encontra-se em dúvida acerca do diagnóstico correto da

paciente. Por meio de testes, o time médico percebe que os glóbulos brancos da jovem moça

estão atacando seu próprio corpo – caracterizando uma dentre várias doenças autoimunes,

para as quais o tratamento específico é baseado em remédio esteroides.

Logo após administrar a dosagem de esteroides na paciente, esta começa a apresentar

defeitos no fígado, e ficaria constatado eventualmente que ela necessitaria de um transplante

desse órgão. A partir desse novo sintoma, foi descartada a possibilidade de ser uma doença

autoimune e, principalmente pela rápida progressão de sintomas em um curto período de

tempo, um médico da equipe, Eric Foreman, desenvolve uma teoria de a paciente possuir um

tipo de câncer raro – sendo o tratamento específico, e urgente para a situação, uma

radioterapia em todo o corpo – tomando a decisão de tratá-la para essa doença.

Contudo, o referido método não surte efeito, fazendo a equipe perceber que, em

realidade, a paciente possuía uma espécie de infecção (e não um câncer ou uma doença

autoimune). Sendo assim, a decisão equivocada do tratamento com a radioterapia, ao nulificar

seu sistema imunológico, acabou por sentenciá-la à morte. Está posta uma analogia perfeita às

soluções diversas dadas (seja por políticos, pela mídia ou pelo senso comum) à criminalidade:

tratar a questão da violência sem saber de onde vem a violência, em determinada localidade,

tem o mesmo resultado na sociedade da situação descrita acima.

Então, da mesma maneira que Gregory House e sua equipe necessitam de precisão em

seus diagnósticos, com o objetivo de oferecer o tratamento adequado, o criminólogo também

deve agir com a mesma cautela – palavra-chave na questão aqui explicada. Sobre essa

necessidade de se achar um diagnóstico correto acerca da situação de violência de

determinada localidade, Zaffaroni finaliza brilhantemente: “ninguém pode prevenir se antes

não se esgotarem os recursos técnicos para saber o que é que se deve prevenir. Não há tática

possível sem um quadro da situação”120.

Sendo assim, como exemplo de uma entre diversas abordagens que a criminologia

cautelar deve tomar, tem-se a necessidade de dignificação dos agentes policiais, os quais

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!120 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit., 2013, p. 308.

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41!

deveriam se formar em universidades; receber treinamento específico para lidar com situações

do cotidiano violento de maneira anticonflitiva; aproximar-se da comunidade com mais

diálogo, a fim de romper o ciclo do medo e insegurança já existente; e, principalmente,

quebrar a visão verticalizada que se tem entre policial e cidadão. Aqui, outro importante

complemento à discussão com análise específica de Zaffaroni:

É altamente recomendável que a criminologia cautelar reúna os dados sobre cada organização policial em forma de survey, valendo-se de todos os meios tecnicamente conhecidos: documentos e informação oficial, entrevistas anônimas com pessoal subalterno, com as cúpulas, com as vítimas de delitos, as pessoas que tenham sofrido detenção, a população, análise dos soldos para estabelecer se houve deterioração da capacidade real de compra, análise das sanções e das baixas, entrevistas com pessoal aposentado etc. Só depois deste inquérito seria prudente ensaiar uma tática de transformação com menores riscos121.

Alterar a estrutura das agências policiais, apesar de ser fundamental, significa tratar

um sintoma específico dentre vários da operabilidade do sistema penal e da violência. A

criminologia cautelar ainda necessita cuidar da questão midiática, da questão política, da

questão do senso comum, para evitar que contrastes como os casos de Rafael e Breno não se

repitam Brasil a fora. A tarefa do criminólogo neste tema é árdua, como já dito, mas os frutos

dela obtidos irão reverberar por gerações. Somente por isso, é bom dizer que vale a pena

estudar-se mais sobre a criminologia cautelar e, principalmente, colocá-la em prática – a fim

de torná-la uma criminologia preventiva de Estado122.

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!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!121 Ibidem, p. 312. 122 Ibidem, p. 306.

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42!

4 A POLÍTICA CRIMINAL DE DROGAS BRASILEIRA: UMA ANÁLISE À LUZ

DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Todos os elementos vistos, até o momento, disseram respeito à Política Criminal de

Drogas no que tange a sua influência na sociedade de maneira macro – até quando foram

abordados os casos de Rafael Braga e Breno Borges a análise se manteve na questão dos

estigmas e no agir das agências estatais frente a tais estigmas, e não na questão individual dos

direitos fundamentais desrespeitados ao longo do processo. Em síntese, o estudo feito a partir

da criminologia difere-se da discussão constitucional, por esta ser focada mais no indivíduo e

seus direitos essenciais, sem deixar de lado a análise também social do tema.

Sendo assim, neste capítulo, a intenção será a de avaliar a Política Criminal de Drogas

no que tange às ações no âmbito da vivência em si de sua aplicação prática, a fim de estudar a

constitucionalidade dos mais expoentes dispositivos da Lei 11.343/06, em conjunto com seus

princípios, para verificar sua devida influência na sociedade.

Para tanto, abordar-se-á, para uma melhor didática, três princípios fundamentais e

direitos constitucionais relacionados ao tema, aqui considerados como os mais frequentes em

discussões acadêmicas quando entra em pauta a questão de drogas – ressaltando-se que a

argumentação antiproibicionista não se esgota apenas nestes. Prosseguindo, há a necessidade

imperativa de se analisar a Política Criminal de Drogas em conjunto com a autonomia da

vontade, com o direito constitucional à saúde e com a segurança pública – elementos

essenciais para a compreensão constitucional do tema em voga. Isso porque, a partir do

fenômeno da Constitucionalização do Direito Penal, o respeito às normas constitucionais deve

ser máximo e irrestrito.

Sobre essa análise a seguir, ressalte-se, neste momento oportuno, que a Constituição

Federal Brasileira, desde sua entrada em vigor, mantém base normativa que deve irradiar para

os outros campos do Direito, seja a área cível, a área empresarial e até a área penal. Isto

significa dizer que o respeito a seus princípios deve ser máximo quando da elaboração de leis

e interpretação destas, a fim de manter a coesão do sistema jurídico brasileiro.

Contudo, como bem se observará, muitas vezes o legislador não entra em consonância

com a principiologia constitucional e nisso resta a importância da análise a seguir.

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43!

4.1 A AUTONOMIA DA VONTADE E O “DIREITO ÀS DROGAS”

Diante da vasta literatura e informação acerca da autonomia da vontade, retrata-se aqui

que não será esgotada toda a análise desse elemento jurídico-social, mas tão-somente o

importante para se compreender sua influência diante do assunto em voga, qual seja a atual

Política Criminal de Drogas no país.

Cabe indicar que o princípio da autonomia da vontade, ou o direito fundamental à

liberdade, não se encontra apenas em um dispositivo constitucional, isto é, ele é representado

por uma gama de artigos123 – demonstrando o espectro variado de sua influência na estrutura

da Carta Magna brasileira. Como elemento introdutório, importante destacar também a

proximidade que a autonomia da vontade mantém com o próprio princípio da dignidade

humana, norteador de toda a ciência constitucional no que diz respeito aos direitos

fundamentais. Neste ponto, Leonardo Martins complementa a discussão indicando o seguinte: A dignidade da pessoa humana tem caráter geral e absoluto. Uma parte dos autores alemães vê nos direitos fundamentais garantidos pela Constituição simples desdobramentos da dignididade da pessoa humana. Assim, o Estado teria para cada direito fundamental os deveres de observar e proteger. A observância refere-se à abstenção de comportamento lesivo próprio, ou seja, refere-se à obrigação de não intervenção das esferas individuais protegidas124.

Uma atenção especial a esta última parte do exposto pelo professor, diante da sua

importância destacada referente ao respeito que o Estado deve manter em face da autonomia

individual dos indivíduos, expondo um direito de status negativus – um direito de resistência

à intervenção estatal125, devendo o sujeito possuidor de tal direito resistir com os amplos

caminhos que o sistema jurídico deve oferecer.

Ainda sobre a autonomia da vontade, dizem o professor Luís Roberto Barroso e a

professora Letícia Martel que “a visão da dignidade como autonomia valoriza o indivíduo, sua

liberdade e seus direitos fundamentais. Com a autonomia da vontade são fomentados o

pluralismo, a diversidade e a democracia de uma maneira geral”126. Contudo, apesar de esses

últimos dois autores entenderem que a dignidade da pessoa humana possa ser confundida com

o princípio da autonomia, aqui se fornecerá visão dicotômica, por entender que a última

constitui apenas um dos múltiplos aspectos da primeira. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!123 A título exemplificativo, tem-se os arts. 1o, III e IV; art. 170, II, IV e parágrafo único, dentre outros, todos da Constituição Federal Brasileira, restando sua maior expressão no caput do artigo 5o. 124 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p. 114. 125 Ibidem, p. 49. 126 BARROSO, Luis Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. In: Gozzo, Débora, LIGIERA; WILSON, Ricardo (Org.) Bioética e Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 21.

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44!

Portanto, para fins didáticos, será utilizado, em linhas gerais, o conceito de autonomia

da vontade indicado por Fernanda Cantali, qual seja, “o poder de autodeterminação que a

pessoa exerce sobre si mesma, autorregulamentando seu corpo, seus pensamentos, seus

comportamentos, sua vontade, tanto na ação como na omissão, determinando os valores que

são válidos para si próprio”127.

Assim, independente do posicionamento a ser tomado, inegável é a que a autonomia

reflete a esfera pessoal do indivíduo e sua capacidade de autodeterminação, cuja atuação não

deve sofrer interferências coercitivas externas, nem violar a esfera de terceiros. Nisso, os

autores acima comentados, Barroso e Martel, complementam com uma definição própria

também cabível aqui: A dignidade como autonomia envolve, em primeiro lugar, a capacidade de autodeterminação, o direito de decidir os rumos da própria vida e de desenvolver livremente a própria personalidade. Significa o poder de realizar as escolhas morais relevantes, assumindo responsabilidade pelas decisões tomadas. Por trás da ideia de autonomia está um sujeito moral capaz de se autodeterminar, traçar planos de vida e realizá-los128.

Sendo assim, posto que esses aspectos serão devidamente analisados em momento a

seguir, importante frisar que a autodeterminação de um indivíduo acaba onde a de outrem

começa, além de se indicar que nela devem estar presentes todos os elementos para sua

consecução plena. Isto é, o quadro volitivo do sujeito – o qual envolve a integridade

psicofísica, condições cognitivas, condições socioeconômicas, dentre outros aspectos – tem

que estar em perfeito funcionamento para o bom desenvolvimento da autodeterminação da

vontade129.

Além desses elementos específicos da autonomia da vontade, ressalta-se que a

inexistência de hierarquia entre direitos fundamentais – não havendo direitos absolutos, mas

sim mais ou menos importantes de se proteger em determinadas situações – constitui

informação deveras essencial ao estudo que se segue, tendo em vista que será imperativa a

análise de limites e colisões entre esses direitos na questão da Política Criminal de Drogas.

Apresentados, em apertada e necessária síntese, os principais aspectos da autonomia

da vontade, passa-se ao destaque de sua influência na dogmática jurídico-penal, posto que a

referida Política Criminal encontra seu respaldo nessa seara do Direito. Neste âmbito, entram

em cena os princípios penais da proporcionalidade, da subsidiariedade, da humanidade, dentre

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!127 CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da personalidade: disponibilidade relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 210. 128 BARROSO, Luis Roberto, op. cit., p. 19. 129 Idem.

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45!

outros, a fim de evitar limitações excessivas e perigosas ao exercício da liberdade individual

do sujeito em questão.

Aqui, esses princípios adquirem especial atenção, posto que, em teoria, o Direito Penal

deve estar em conformidade com a Constituição, mas na prática – como visto anteriormente –

a Política Criminal de Drogas é afundada em estigmas, preconceitos e atitudes repressivas,

indo de encontro à vontade constitucional. Portanto, com base nos princípios da

proporcionalidade e da subsidiariedade (ultima ratio), o Direito Penal não pode infligir

restrições excessivas à liberdade individual quando há outros meios, menos gravosos, para se

atingir o objetivo específico. Sendo assim, a liberdade e autonomia do indivíduo somente

poderá ser restringida pelas normas penais em casos de notável gravidade130.

Nesse linha, Heráclito Barreto Neto indica que o Direito Penal deveria servir para

proteger as vulnerabilidades a que alguns indivíduos podem ser expostos e evitar que outros,

“sob o manto da autonomia”, explorem e lucrem sobre essas fraquezas131. Contudo, nesse

elemento teleológico descrito ausenta-se um complemento importantíssimo: as normas penais

não devem ser as primeiras a serem procuradas pelo legislador quando se necessita proteger

os indivíduos. Para isso, tem-se normas civis, normas de trânsito, normas administrativas e

afins. A ultima ratio do Direito Penal deve ser respeitada para a autonomia da vontade ser

respeitada. Este é o primeiro fator a ser considerado ao se analisar a Política Criminal na

perspectiva dos direitos e garantias fundamentais.

Ainda a respeito do tratamento devido ao Direito Penal, a questão da autolesão e

ausência de lesividade de terceiros é trazida à tona. Nesse aspecto, entra em cena outro

princípio do Direito Penal, de acordo com as normativas constitucionais: o princípio da

lesividade, corolário dos já mencionados princípios da subsidiariedade e da

proporcionalidade. Tendo em vista o amplo fervor que a sociedade possui em aliar os valores

morais ao âmbito jurídico, o princípio da lesividade impede que o Direito Penal seja atingido

por este clamor, significando que o legislador somente poderá instituir normas penais que

lesionem ou ameacem lesionar um bem jurídico penalmente tutelado, sendo este pertencente a

outrem. Constitui-se, desta feita, o segundo fator para a análise recorrente da Política aqui

estudada.

Sendo assim, a autolesão não poderia ser punível, justamente em razão de a lesão à

integridade física não ameaçar nem lesionar bem jurídico de outrem. Portanto, apesar de a !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!130 BARRETO NETO, Heráclito Mota. Reflexos da bioética sobre o tratamento jurídico do uso de drogas no Brasil: autonomia x paternalismo. 2014. 159 f. Dissertação [Mestrado em Direito] – UFBA, Salvador, 2014, p. 93. 131 BARRETO NETO, Heráclito Mota, op. cit., p. 99.

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46!

conduta de lesão corporal encontrar-se devidamente tipificada no art. 129 do Código Penal de

1941, não poderia o agente ser punido, posto que a “vítima” seria ele mesmo. Em relação

específica com a legislação de drogas no país, os dispositivos criminalizadores que envolvem

as condutas autolesivas e que não violem direitos de terceiros são eivados de ilegitimidade

punitiva, sendo considerados “crimes sem vítima”132.

Neste momento, está a se analisar, em linhas abstratas, a inconstitucionalidade do art.

28 da Lei 11.343/06133, o qual retrata cinco tipos penais em um dispositivo voltado a ilicitude

do consumo pessoal, estabelecendo penas alternativas para o fim de correção do indivíduo.

Ressalte-se aqui, que a referida Lei de Drogas afasta a pena de prisão para quem incide nos

tipos do artigo acima descrito, mas mantém a ilicitude da conduta.

Tome-se nota que, apesar da interessante e extensa discussão que autores criminalistas

contemporâneos mantêm acerca de ter ocorrido ou não os fenômenos da descriminalização

formal (a extinção do caráter criminoso do fato) ou da despenalização (ausência de sanção

penal referente à prisão) da conduta de trazer ou adquirir drogas para consumo próprio, não

será tratada com afinco essa questão no presente trabalho, tendo em vista a ausência de

instrumentalidade para o objetivo aqui buscado. Aqui, fica claro, entende-se que o art. 28

despenalizou, ou descarceirizou, a conduta tipificada, entretanto não a deixou

descriminalizada.

Um terceiro fator determinante para a argumentação aqui em voga é o próprio

princípio da igualdade. Importante destacar, então, que as fundamentações da atual Política

Criminal de Drogas e da Lei 11.343/06 em proibir a posse e o consumo pessoal são de duas

ordens: em primeiro lugar, a intervenção estatal em manifesta defesa da segurança pública,

com a justificativa de o tráfico de drogas estar correlacionado com uma expansão da

periculosidade nas ruas; e em segundo lugar, o poder-dever de proteção da saúde pública de

maneira geral.

É a partir desse momento em que o legislador entra em hipocrisia moral quando faz

distinção de tratamento penal entre as drogas ilícitas e drogas lícitas tão nocivas quanto as

proibidas (a exemplo do cigarro e do álcool em contraste com a maconha134). Aqui entende-se

que: ou é determinado um estudo científico que especifique a nocividade das substâncias !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!132 CARVALHO, Salo de, op. cit., 2016, p. 211. 133 BRASIL. Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006. Art. 28 - Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Brasília: Presidência da República, 2006. 134 MEDIAVILLA, Daniel. “Maconha é menos viciante do que álcool ou nicotina”. EL PAÍS. 2014. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2014/10/06/ciencia/1412618575_595889.html>. Acesso em 18 nov. 2017.

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47!

entorpecentes conhecidas e, a partir disso, seja criminalizado o uso de todas aquelas que

apresentem o denominado perigo à saúde individual do sujeito (em nome da proteção desse

direito); ou é liberado o consumo de todas as substâncias sem distinção valorativa de ordem

moral, em respeito ao princípio da igualdade.

A conclusão retórica a que se chega aqui é a seguinte: existe um pensamento moral

(leia-se fundado no senso comum) do brasileiro médio que fuma carteiras e carteiras de

cigarro durante a semana, e bebe socialmente nos finais de semana, e, ainda assim, condena

usuários das drogas denominadas ilícitas tão-somente no argumento de serem ilícitas e

estigmatizadas – sem a possibilidade de a avaliação crítica aqui fundamentada modificar seu

posicionamento.

Diante disso, avaliando que personagens sociais já possuem direito e autonomia de

consumir drogas lícitas, é cabível o questionamento: existiria um “direito geral às drogas”?

Ou melhor dizendo, um “direito à intoxicação”? Thomas Szasz entende que sim, pensamento

em concordância com o exposto aqui. Veja-se a seguir análise desse interessante tema

complementar à questão da autonomia da vontade.

Esse estudioso, em suas obras de referência (Our Right to Drugs: the Case for a Free

Market135 e Ceremonial Chemestry136, ambos do fim do século XX), aponta em um sentido

liberal “agudo”, compreendendo que a “liberdade de automedicação” constitui um tipo de

liberdade civil corolária da autonomia da vontade e das liberdades de expressão e propriedade

consagradas constitucionalmente137. Ele ressalta a tese da ilegitimidade de democracias

liberais ao limitar o exercício da autonomia da vontade de adultos em utilizar-se de quaisquer

substâncias, independentemente do dano causado ao próprio corpo. Sendo assim, utilizam-se

os argumentos aqui já explicados, desde a injusta criminalização da autolesão no que tange ao

uso de drogas, até a hipocrisia moral em eleger substâncias lícitas e ilícitas baseadas em um

puritanismo irracional.

Nesse âmbito, Szasz prossegue, indicando que além da liberdade de consumo das

drogas, deveria haver também a abertura do mercado – devendo ocorrer a extinção do tipo

ilícito do tráfico de drogas – posto que Estados denominados democráticos e liberais seriam

essencialmente respeitosos no que tange à liberdade dos indivíduos em produzirem,

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!135 SZASZ, Thomas. Our Right to Drugs: the Case for a Free Market. Syracuse: Syracuse University Press, 1996. 136 SZASZ, Thomas. Ceremonial Chemistry: The Ritual Persecution of Drugs, Addicts, and Pushers. Syracuse: Syracuse University, 1975. 137 CARVALHO, Salo de, op. cit, 2016, p. 216.

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48!

venderem, comprarem e consumirem as substâncias que bem entenderem138. Evitar tal

liberdade seria atitude paternalista por parte do Estado, o qual estaria fundindo as esferas

moral e jurídica, “estrutura própria dos Estados pré-modernos ou modernos totalitários”, de

acordo com Salo de Carvalho139.

Além disso, importante analogia é feita por Szasz quando indica que “não

responsabilizamos a obesidade de gordos a quem lhes vende comida, mas atribuímos os

hábitos dos dependentes a quem lhes vende droga”140. Neste caso, quis se explicar que, na

mentalidade comum, o consumo de drogas existiria devido à existência tráfico, sendo que a

assertiva verdadeira constitui o inverso. Sendo assim, a autonomia e o direito à intoxicação,

isto é, para se consumir drogas, por si só já constituiria como argumento para indicar a

autonomia para se vender tais substâncias.

Justamente por isso que o tema envolvendo uso e tráfico de entorpecentes não é

questão de polícia ou política criminal, mas sim de saúde pública, porque o consumo de

drogas sempre existiu – e sempre existirá – na sociedade cabendo ao Estado a função de

reduzir os danos causados aos indivíduos com investimentos na área da saúde e não na

inflação das normas penais, além de determinar a descriminalização e – eventual e

possivelmente – a legalização.

Sendo assim, o entendimento aqui exposto é pela inconstitucionalidade de quaisquer

leis e artigos que venham a criminalizar a autolesão – e isto inclui o consumo pessoal de

drogas. Além disso, por pura consequência lógica do que se compreende como “direito à

intoxicação”, argumento este que se entende sustentar em si mesmo, é-se favorável à ideia de

abertura do mercado também para a venda de drogas – desde que haja a devida

regulamentação e cuidado necessário com a saúde dos consumidores.

4.2 SAÚDE PRIVADA VERSUS SAÚDE PÚBLICA: HÁ CONFLITO QUANDO A

QUESTÃO ENVOLVE DROGAS?

Sem delongas, indica-se que os bens jurídicos a que a Lei 11.343/06, por meio do art.

28 da Lei no 11.343/06, o qual trata do consumo pessoal, visa proteger seriam a saúde pública

e a segurança pública141. Neste tópico, tratar-se-á do primeiro, a fim de se concluir se essa

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!138 CARVALHO, Salo de, op. cit., 2016, p. 218. 139 Idem. 140 SZASZ, Thomas. Our Right to Drugs: the Case for a Free Market. Syracuse: Syracuse University Press, 1996, p. 12. 141 CARVALHO, Salo de, op. cit., 2016, p. 339.

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49!

justificativa de proteção da referida Lei é válida, isto é, verificar se encontra-se em

consonância com as diretrizes constitucionais. Aqui, novamente necessita-se indicar que o

conteúdo acerca da saúde pública correlacionada à questão das drogas constitui assunto

amplamente extenso, sendo essencial um estudo específico sobre o tema para esgotar a sua

complexidade.

Sendo assim, buscará destrinchar ao máximo o que importa para uma avaliação dos

elementos que interessam neste presente estudo. Para isso, o melhor curso de ação seria

compreender se os efeitos advindos da Política Criminal de Drogas afetam de maneira

benéfica ou prejudicial a saúde pública, ou seja, se o bem jurídico tutelado encontra na Lei a

pretensa defesa buscada.

Segundo o Ministro Celso de Mello, em sede de Agravo Regimental de Recurso

Extraordinário decidido pelo Supremo Tribunal Federal142, o direito à saúde constitui-se como

um direito público subjetivo, o que gera, por consequência, um dever prestacional positivo

por parte do Estado. Complementa Gilmar Mendes, ressaltando que “há um direito público

subjetivo a políticas públicas que promovam, protejam e recuperem a saúde”143.

Constituindo-se como direito social apresentado na Carta Magna, principalmente nos

artigos 6o, caput e artigo 196, o direito à saúde apresenta-se como verdadeiro pilar da

dignidade da pessoa humana e, tendo em vista a natureza dúplice de ser tanto um direito

individual quanto coletivo, sua importância aqui não deve passar despercebida.

Para o assunto fluir de maneira didática, cabe indicar que a deflagração da questão dos

efeitos das drogas no viés da saúde pode ser destrinchada em dois vieses: a) os efeitos

conectados às consequências da criminalização das drogas em relação à dificuldade de

assistência médica voluntária por parte de quem necessita; b) os efeitos relacionados aos

danos causados ao próprio organismo e mente do sujeito em decorrência da própria

ilegalidade das drogas.

Por fim, antes de entrar em detalhes acerca da temática, ressalte-se que a distinção

feita entre consumidores eventuais e indivíduos toxicodependentes será de extrema

importância para a discussão – tendo em vista que a Política Criminal visa a proteção última

da saúde pública, e que não foi feita essa distinção explicitamente no tratamento que a Lei

11.343/06 oferece aos usuários em geral.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!142 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, AgR-RE 271.286-8, Relator (a): Min. CELSO DE MELLO, PUBLIC 12/09/2000. 143 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 623.

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50!

Dessa forma, os primeiros não serão analisados aqui, tendo em vista a característica da

eventualidade no consumo pessoal de drogas, marcada pelo uso “para seu deleite e em

momentos de angústia [sendo que] a droga nunca se transforma na razão maior de suas

existências144”, portanto a questão da saúde neste caso dependeria essencialmente do

malefício que outras substâncias que se encontram misturadas nas drogas vendidas pelo

mercado ilegal (não regulamentado) – assunto a ser tratado ulteriormente. Os segundos

interessam mais ao estudo, neste momento, devido ao elemento da dependência tóxica e o que

a atitude repressiva da Política Criminal causa a tais sujeitos. Analisa-se, a seguir, esse

enfoque.

A bem da verdade, a Lei 11.343/06 oferece uma característica paradoxical, para não

dizer hipócrita, quanto ao tema, qual seja a inexistência de possibilidade de os

toxicodependentes espontaneamente se utilizarem das instâncias provedores de saúde com

êxito, sejam estatais ou privadas, sem que tenham o eterno receio de serem capturados pelas

agências repressivas penais – adicionando, para além do estigma a ele infligido, a

preocupação de seu tratamento ocorrer de maneira não voluntária, caso não se sinta preparado

para tanto. É o que complementa Helena da Costa com o seguinte pensamento:

A tentativa de imposição de tratamento pela via penal também não costuma levar a bons resultados, pois a voluntariedade do paciente é essencial e muitas vezes existem recaídas – próprias e inerentes ao tratamento – que acabam levando à suspensão de benefícios, retomada do curso do processo penal etc.145”

Diante do exposto, apesar de não se constatar na Lei 11.343/06 a figura do tratamento

coercitivo e obrigatório para usuários de drogas, a previsão de “meras” medidas alternativas

ao cárcere entra em conflito com a Política de Redução de Danos – cujos ideais estariam

incutidos de forma meramente ilustrativa na referia lei – por não considerar a questão

importante da voluntariedade do sujeito ao iniciar e continuar o tratamento.

Assim, não obstante ter sido indicado na referida lei, em essência no seu artigo 22,

inciso III, que, dentre os princípios a serem seguidos pelas atividades de reinserção social

deve estar a ideia da redução de danos, isto entra vai de encontro à diretriz do próprio art. 28

do mesmo diploma – o qual estabelece as penas alternativas de advertências sobre os efeitos

das drogas, prestação de serviços à comunidade e comparecimento à programa ou curso

efetivo, que, a princípio, aparentam serem inofensivas à saúde do usuário.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!144 BIRMAN, Mal-Estar..., p. 23. APUD CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 186. 145 COSTA, Helena Regina Lobo da. Análise das Finalidades da Pena nos Crimes de Tóxicos, p. 113, apud CARVALHO, Salo de, op. cit., 2016, p. 186.

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51!

Explicando o exposto, a razão de haver o referido conflito encontra-se nas próprias

diretrizes da própria Política de Redução de Danos, a qual, no país, mantém um de seus

maiores apoios diante da Associação Brasileira de Redução de Danos (ABORDA), fundada

no fim dos anos 1990. Essa e outras associações Brasil a fora entendem, em linha contrária à

atual Política Criminal, pela abstinência como meta (pactuada) que pode ser alcançada e não

como finalidade principal (e imposta) do tratamento de toxicodependentes. Em resumo, a

redução de danos constitui em “ampliar as ofertas de cuidado dentro de um cenário

democrático e participativo”146, e não menos importante, em um cenário realista.

Analogamente, pode-se comparar com a situação da relação entre professor e aluno

antigamente e nos dias hodiernos. Tempos atrás, seria inimaginável que um aluno poderia

complementar os ensinamentos de seu professor, cuja função principal era transmitir de

maneira dogmática e unidirecional o seu conhecimento. Por outro lado, atualmente, devido à

globalização e aos avanços da tecnologia, o pensamento é outro: a dialética de transmissão de

ideias entre professor e aluno constitui evolução da didática, porque parte do princípio de não

haver conhecimento absoluto por nenhuma das partes, estando ambas a contribuir para o

mútuo aprendizado de quaisquer assuntos que possam ser discutidos.

Da mesma maneira age a Política de Redução de Danos (PRD), evitando a imposição

de tratamentos específicos que visem à abstinência completa como objetivo único, preferindo

a pactuação junto ao paciente para traçar o melhor caminho, para o objetivo que escolher,

evitando que prejudique de forma irreparável a sua saúde (e sua autonomia) – observando

assim a necessidade da voluntariedade do sujeito. Isso significa dizer que a PRD entende que

sempre haverá usuários de drogas e dependentes de drogas, sendo imperativo que haja a

assistência médica e educacional devida para que o uso delas não inflija danos maiores à

saúde daqueles. Um exemplo disso é a distribuição, por agências, de seringas descartáveis

para comunidades onde há toxicodependentes, a fim de evitar a contaminação e transmissão

de doenças, como HIV e hepatite, por meio das drogas injetáveis; outro exemplo seria um

Centro Médico dedicado ao tratamento por redução de danos permitir e monitorar o uso

controlado de drogas em quartos separados, a fim de evitar contaminação por

compartilhamento de seringas; dentre outros.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!146 PASSOS, Eduardo Henrique; SOUZA, Tadeu Paula. Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de "guerra às drogas". Psicologia & Sociedade, 23 (volume 1): 154-162, 2011, p. 161.

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52!

Sendo assim, a atual Política Criminal de Drogas do país “sacrifica a saúde concreta

dos sujeitos envolvidos com drogas”147 em detrimento da saúde pública abstratamente

protegida pela Lei 11.343/06. Percebe-se, apenas com o exposto até o momento, que a saúde

pública não se encontra devidamente protegida com a atual Política. A bem da verdade, a

ofensa a esse direito por meio do uso pessoal de drogas constitui factível aporia. Em relação

ao direito constitucional à saúde, cabe ressaltar que os seus sujeitos finais (os indivíduos),

para verem concretizado o referido direito, necessitam de pautas programáticas e ações

específicas que direcionem os agentes estatais em suas atividades, o que não se presencia na

Lei de Drogas atual, por motivos de ordem moral, eivados de acientíficidade, do legislador.

É perceptível, para finalizar esse primeiro assunto, o impedimento à Política de

Redução de Danos quando se observa o artigo 33, §2o da Lei 11.343/06, o qual criminaliza a

instigação, indução e auxílio do uso de drogas por outrem. Isso ressalta, mais uma vez, que o

“tratamento” buscado pela lei seria o de completa e imediata abstenção, considerada surreal e

inviável nos aspectos realistas da sociedade brasileira toxicodependente.

No segundo assunto relacionado à saúde, trata-se da influência da ilegalidade no

mercado de drogas e como isso, além de já ir de encontro às diretrizes e princípios da PRD,

afeta negativamente os consumidores e toxicodependentes. Isso significa dizer que, partindo

da noção realista de que sempre haverá consumidores de drogas148, sejam elas lícitas ou

ilícitas, a atitude proibicionista causará mais dano social e à saúde dos consumidores do que a

ação de redução de danos. A falha do discurso proibitivo encontra-se baseada essencialmente

em dados empíricos, a exemplo do aumento no número de pessoas (entre 15 e 64 anos de

idade) que utilizaram alguma droga ilícita, pelo menos uma vez, nos últimos anos, com um

aumento de 22% do ano de 2006 ao ano de 2015, segundo dados analisados pelo UNODC149.

Essa constatação, por si só, ressalta a ideia de que o uso de drogas não está sendo controlado

pela política proibicionista e que medidas de redução de danos são imperativas para o respeito

ao direito constitucional à saúde.

Ressalte-se, também, que a ilegalidade do mercado influencia diretamente nas

substâncias que se misturam com as drogas em si, além de conterem concentrações

adulteradas que afetam diretamente nos riscos de intoxicações graves e overdoses – a

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!147 COSTA, Helena Regina Lobo da Costa, op. cit,, p. 114-115, apud CARVALHO, Salo de, op. cit., 2016, p. 191. 148 KARAM, Maria Lucia. Drogas: além da descriminalização do consumo. Recife: Liberdade na Estrada, 2015. Disponível em: <http://www.leapbrasil.com.br/site/wp-content/uploads/2017/04/126_Drogas-Recife.pdf>. Acesso em 18 nov. 2017. 149 UNITED NATIONS. World Drug Report 2017. Viena: United Nations Office on Drugs and Crime, 2017, p. 13. Disponível em: <http://www.unodc.org/wdr2017/field/Booklet_2_HEALTH.pdf>. Acesso em: 6 nov. 2017.

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53!

contrariu sensu do que poder-se-ia imaginar que seriam as próprias drogas que causariam tais

problemas ao usuário150. Sendo assim, o binômio uso-dependência das drogas torna-se vago,

justamente pela adulteração citada e, principalmente, por cada indivíduo reagir de maneira

distinta à exposição de drogas – caso contrário, a dependência de substâncias lícitas como

cigarro e álcool, ou até de ilícitas, como a maconha, teria correlação com o uso nos níveis

próximos a 100%, o que não constitui a realidade: a taxa de dependência (pelo total de

usuários) da nicotina atinge 32%; do álcool, 15%; e da maconha, 10%151.

Dessa forma, diante do alto custo, social e relacionado à saúde, que a criminalização

mantém, como pôde-se observar, é praticamente essencial concluir, mesmo que

minimamente, que a solução reside na questão da regulamentação de uma Nova Política De

Drogas. Esta, importante indicar, não constituiria uma política penal, mas sim uma política de

saúde pública, voltada a estabelecer parâmetros específicos para o controle de qualidade de

drogas oferecidas no mercado de drogas, além de atender aos toxicodependentes de maneira

mais adequada.

4.3 A GARANTIA AO DIREITO CONSTITUCIONAL À SEGURANÇA PÚBLICA E A

NECESSIDADE DE RESPOSTA FRENTE À VIOLÊNCIA

Por fim, mas não menos importante, a questão da segurança pública entra em pauta

quando o assunto é criminalização do consumo e tráfico de drogas no país, tendo em vista

constituir o outro pilar argumentativo-constitucional para a manutenção da atual Política

Criminal de Drogas. Imperativo, então, verificar aqui a validade de tal argumento com base na

análise constitucional desse direito (elencado nos capita dos arts. 5o, 6o e 144 da Lei Maior

brasileira). Importante ressaltar, então, que a segurança, como direito fundamental e social

elencado na Constituição Federal, possui ampla conexão com a criminalização das drogas,

mas não da maneira que o senso comum indica. É o que se tentará analisar a seguir.

Antes de mais nada, desmitificar a ideia de que o dever de garantir a segurança pública

é tão-somente das agências policiais é essencial para o que se busca concluir aqui. A efetiva

garantia dela parte da ação conjunta entre investimentos estatais em “educação, saúde,

geração de emprego e renda, e oportunidades de lazer (...) [além de se considerar] o papel da

sociedade civil”152, mas, para além disso, o estudo das questões que envolvem a segurança

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!150 CARVALHO, Salo de, op. cit., 2016, p. 232. 151 MEDIAVILLA, Daniel. “Maconha é menos viciante do que álcool ou nicotina”. EL PAÍS. 2014. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2014/10/06/ciencia/1412618575_595889.html>. Acesso em 18 nov. 2017. 152 ROLIM, Marcos Flávio. A síndrome da rainha vermelha. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 14.

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54!

deve ser feito em momento anterior às ações direcionadas a sua melhoria. Tome-se como

base o pensamento de Goldstein para o reforço dessa ideia:

A polícia tem sido tradicionalmente ligada ao crime assim como os médicos têm sido relacionados à doença. Mas, no campo médico, a relação é muito mais específica: as doenças têm sido classificadas, os fatores que as causam têm sido isolados, programas preventivos têm sido desenvolvidos e testados, e a real capacidade do pessoal médico em prevenir e controlar males específicos tem sido demonstrada. Em contraste, no que toca à polícia e à criminalidade, muito do que se fala em relação à criminalidade permanece em um nível muito geral de, como expressão, “crime” não ser mais significativo do que “doença”, O problema é agravado porque a palavra é utilizada livremente – seja por políticos, pelos policiais e pela população em geral – como se tivesse um significado uniforme153.

Como se isso não bastasse, o emprego de terminologias como “criminoso”,

“delinquente” e “bandido”, também afeta a estrutura belicista, repressiva e imediatista da

atual Política Criminal de Drogas. Isso porque a construção dos efeitos estigmatizantes sobre

os indivíduos desfavorecidos é criada (e mantida) pelos grupos dominantes, a fim de fazer

permanecer a divisão entre sujeitos intocáveis e sujeitos estigmatizados aos olhos das

agências repressivas. É o que indica a Teoria do Etiquetamento (Labelling Approach Theory),

com o principal expoente sendo Howard S. Becker, cujos estudos analíticos perceberam que

“os grupos sociais dominantes ditam as regras que regem a coletividade”154 e isso poderia, a

partir de certo ponto, reforçar a identidade dos próprios indivíduos, que passariam a se

conformar com o encaixe dessa rotulação155.

Percebe-se, na verdade, uma conexão bem profunda da referida teoria com o próprio

tema do Direito Penal do Inimigo, estudado anteriormente, tendo em vista a separação clara

entre, essencialmente, dois grupos em ambos os fenômenos: os intocáveis e os etiquetados; e

os cidadãos e os inimigos. Por isso mesmo que a criminologia é um importante aliado no

estudo constitucional da segurança pública acerca da temática da Política Criminal de Drogas,

posto que o assunto se conecta com amplas áreas ativas da sociedade.

Isso significa dizer que, assim como a Política de Redução de Danos está para a área

da saúde, a Criminologia Cautelar está para a segurança pública, sendo inconcebível pensar

em modificar a estrutura cíclica da violência e da sensação constante de insegurança sem

pensar nos diversos setores da sociedade que necessitam de mudança de pensamento – seja a

mídia, os políticos, as escolas e universidades, as polícias etc. Então, todas as questões

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!153 GOLDSTEIN, Herman. Policiando uma sociedade livre. São Paulo: Ford Foundation/NEV/EDUSP, 2013, p. 48. 154 MAIA, Ana Clara de Araújo, op. cit., p. 58. 155 ROLIM, Marcos Flávio, op. cit., p. 169.

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55!

abordadas já em momento anterior acerca dessa criminologia entram em voga aqui também,

não sendo necessário repeti-las, mas apenas ressaltar que se conectam com o exposto a seguir.

Vale constatar, também, que a conexão entre delinquência e o uso de droga expõe

interessante paradigma no que tange à segurança, especialmente quando se percebe, por

intermédio de pesquisas, que a vontade de obtenção da droga e as condições socioambientais

influenciam na prática de delitos156. Contudo, a constatação mais importante é a de que

inexistiria relação direta entre o uso de drogas de maneira excessiva (resultando em

dependência química) e as práticas delitivas157, isto é, o usuário dependente não teria atitudes

agressivas tão-somente por se utilizar de determinadas drogas.

Ademais, se, por um lado, o uso da dependência química de drogas consideradas

ilícitas atualmente não mantém a referida correlação direta com a violência e criminalidade

em si, o consumo de bebidas alcoólicas vai em sentido contrário – de acordo com estudos

realizados nos EUA entre os anos de 1934 e 1995 por Parker e Carmill158. Restou

demonstrado que as taxas de homicídios por jovens e adolescentes teria relação diretamente

proporcional com o consumo de bebidas contendo álcool, tais como cerveja e destilados, isto

é, se ocorresse aumento no consumo, aumentar-se-iam as taxas de homicídios – e vice-versa.

Isso atesta para o fato de que a segurança pública é uma questão muito mais complexa

do que se é vendido pelo moralismo do mass media, pelas políticas populistas e oportunistas,

e pelo transmitido boca-a-boca da população, restando imperativa a necessidade de mais

estudos para compreender a teia de fatores que regem tal sistema – a fim de concretizar o

direito social, e fundamental, elencado na Constituição brasileira.

Sendo assim, a conclusão que se toma é a de que a proibição do acesso as drogas pelo

toxicodependente já constitui-se como um fator social importante para o aumento da

criminalidade, e consequente insegurança pública. Não fosse o estigma que lhe é posto pela

sociedade, pelas agências policiais, pelo legislador, a tão almejada segurança pública poderia

ser alcançada sem sacrificar a saúde (e a vida) de inúmeros cidadãos.

Inclusive, toda essa questão vai muito além das simples definições trazidas pela mídia

e por leigos em um assunto considerado complexo demais para ter apenas uma solução de

pronto. Um exemplo disso é a própria definição de “crime”. Não se pode reduzir um tema tão

cheio de riqueza de detalhes e teorias a um mero tipo penal. Dessa forma, Rolim indica que

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!156 CARVALHO, Salo de, op. cit., 2016, p. 243. 157 ROLIM, Marcos Flávio, op. cit., p. 168. 158 PARKER, R. N.; CARMILL, R. S. Alcohol and in the US 1934-1995: Or One Reason Why US Rates of Violence May Be Going Down. In Homicide: Journal of Criminal Law & Criminology, vol.88, 1998, p. 4.

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56!

“crime” seria “aquilo que, em determinado momento histórico, as pessoas reprovam e

consideram grave o suficiente para receber uma sanção jurídica”159.

Dessa forma, os formadores de opiniões influenciariam de forma significativa na

mentalidade coletiva, a exemplo da mídia, das universidades e até o diálogo com amigos e

família – contribuindo de forma positiva ou negativa para a manutenção dos estigmas e, por

consequência, da sensação constante de insegurança. No que tange à Política Criminal de

Drogas em si, deve-se entender que: há uma (falsa) segurança constitucionalmente respeitada

pela prática repressiva policial e há uma insegurança (real) por parte da população

socioeconomicamente desfavorecida sendo gerada pela mesma atuação das agências

repressivas. E esse problema não é mencionado nas notícias televisionadas, o que evidencia

de forma mais absurda o descaso que é dado ao tema.

Como se pode observar, tudo isso mencionado até o momento indica que o direito

constitucional à segurança está repleto de nuances, concluindo que a questão necessita muito

mais de poderio intelectual do que pura força física. Nisso entra a crítica feita à ausência

legislativa que regulamente o artigo 144 da Constituição Federal brasileira, referente à

segurança pública. Sobre esse aspecto, o responsável pela Secretaria da Segurança Pública do

Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, ressalta que essa falta de regulamentação “mostra o

desinteresse que existe na segurança pública (...) [e que] o próprio conceito de ordem pública

é extremamente subjetivo”160.

O resultado, aliando-se à política criminal proibicionista, é no sentido inverso ao

idealizado pela legislação de drogas. Conforme, indicação de Carvalho, depreende-se que:

o proibicionismo apenas potencializou efeitos colaterais à incriminação: a promessa de contramotivação do crime fomentou a criminalização secundária; ao reprimir o consumo estigmatizou o usuário; e com o intuito de eliminar o tráfico deflagrou a criminalização de setores vulneráveis da população. A manutenção da ilegalidade da droga produziu sérios problemas sanitários e econômicos; favoreceu o aumento da corrupção de agentes do poder repressivo; estabeleceu regimes autoritários de penas aos consumidores e pequenos comerciantes; e restringiu os programas médicos e sociais de prevenção161.

Dessa maneira, um assunto importante que vem à tona seria a desmilitarização da

polícia, a fim de – explicando de maneira simples – retirar o pensamento de que há um

“inimigo” a ser exterminado a todo e qualquer custo, até por meio da força. Tal ideia viria a se

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!159 ROLIM, Marcos Flávio, op. cit., p. 158. 160 REPRESSÃO às drogas e os efeitos na segurança pública. Jornal do Comércio. 23 ago. 2016. Disponível em: <http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2016/08/cadernos/jornal_da_lei/516469-repressao-as-drogas-e-os-efeitos-na-seguranca-publica.html>. Acesso em: 18 nov. 2017. 161 CARVALHO, Salo de, op. cit., 2016, p. 226.

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57!

concretizar apenas por meio de uma Emenda à Constituição, baseada na retirada da Polícia

Militar do quadro taxativo de órgãos elencados como responsáveis pela segurança pública, no

art. 144 – a qual, atualmente é treinada com base nas diretrizes e comandos do Exército

brasileiro.

Desmilitarizar, pois, para os direitos fundamentais dos próprios policiais serem

respeitados, seja com direitos trabalhistas em condição digna, seja com maior liberdade de

expressão e diálogo no campo onde atuam. Isso refletiria de maneira imensa na própria

atuação nas ruas, pois, além de terem seus direitos constitucionais respeitados, teriam

estrutura de ensino civil com a possibilidade de serem treinados não para a guerra contra um

inimigo latente, mas para a promoção e manutenção da dignidade da pessoa humana, da

segurança pública e da ordem social como um todo.

Sendo assim, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de número 51/2013 traz a

ideia de unificação das atuais polícias civil e militar, além da desmilitarização do corpo de

bombeiros162. A justificativa da proposta baseou-se essencialmente nas ideias aqui expostas,

adicionando-se os fatores de maior pressão aos olhos dos organismos internacionais, qual seja

a posição do Brasil referente à quantidade de pessoas em presídios (cerca de 607 mil presos

em 2014, garantindo ao país o quarto lugar no ranking mundial da população carcerária)163 e a

liderava, em 2016, no ranking quanto à taxa de homicídios absolutos (cerca de 61 mil

assassinatos ocorreram neste ano)164.

Contudo, a desmilitarização seria apenas um dos fatores que ajudariam a compreender

e a diminuir o fenômeno da criminalidade e, principalmente aqui, diante do trabalho em voga,

a desassociação com o uso de drogas.

O que infelizmente acontece e se perpetua é o que Hannah Arendt descreveu como “a

impotência tornada ativa”: quando a sociedade urge por medidas imediatistas e violentas para

conter a própria violência, sustentando que a violência seria elemento antagônico ao poder,

posto que este seria a capacidade de agir em comunidade165 – aqui supondo que seria o agir

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!162 BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição no 51, de 24 de setembro de 2013. Brasília: Senado Federal, 2013. 163 BRASIL. Levantamento Nacional de informações penitenciárias: INFOPEN – Junho de 2014. Brasília: Ministério da Justiça, 2014, p. 12. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf >. Acesso em: 17 nov. 2017. 164 BRASIL registra o maior número de assassinatos da história em 2016; 7 pessoas foram mortas por hora no país. G1-SP. 30 out. 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/brasil-registra-o-maior-numero-de-homicidios-da-historia-em-2016-7-pessoas-foram-assassinadas-por-hora-no-pais.ghtml>. Acesso em: 18 nov. 2017. 165 ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, apud ROLIM, Marcos Flávio, op. cit., p. 165.

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58!

com conhecimento do objeto a ser estudado, o que entra em completa consonância com os

elementos já expostos até agora.

Por fim, resta indicar que a questão da segurança pública, assim como a da autonomia

da vontade e da saúde foram analisadas neste trabalho em separado para se manter a didática,

contudo, como pôde-se perceber ao longo da exposição, a aplicação prática do entendimento

aqui elencado deve manter uma harmonia com o respeito desses e outros princípios

constitucionais. Do contrário, a Política de Redução de Danos e a Criminologia Cautelar

nunca chegarão a solucionar o mínimo de dano já causado pela política proibicionista

implantada.

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5 CONCLUSÃO

A realização do presente estudo possibilitou uma análise de como a Política Criminal

de Drogas pode e deve ser reavaliada diante da realidade social do Brasil, cujos estigmas

mantidos pela sociedade prejudicam o respeito a direitos fundamentais de diversos sujeitos,

sejam eles usuários de drogas, toxicodependentes, moradores de favela, catadores de

recicláveis, negros, pessoas com condições econômicas desfavoráveis, e afins. Além disso, a

pesquisa também permitiu que, por meio da criminologia, fossem averiguadas as condições

estruturais dessa referida política.

Para tanto, perpassou-se, em um primeiro momento, pelos principais pontos históricos

a fim de se entender a progressão do proibicionismo formador do pensamento que perpassa a

atual política de drogas no plano internacional e nacional. Nesta parte, pôde-se identificar a

influência de diversas situações tais como: a Guerra do Ópio, o estabelecimento do Marijuana

Tax Act nos EUA, o movimento de “contracultura” da década de 1960, a Guerra Fria, para

citar alguns exemplos – percebendo-se o grau proibicionista atingido após mais de cem anos

do primeiro ato contra as drogas.

Em outro momento, percebeu-se a específica extensão das ações proibicionista

internacionais no próprio Brasil, o qual integrou o cenário global em definitivo na década de

1960, com a aprovação e promulgação da “Convenção única sobre entorpecentes”, mediante o

decreto-lei 54.216/64. Assim, era incorporado o modelo médico-jurídico de controle sobre as

drogas em conjunto com a ideologia da diferenciação, porém de maneira híbrida, pois o país

não passaria, ainda, a distinção entre o traficante e o indivíduo que experimentava a droga de

forma não habitual.

Como visto, foi só cerca de dezesseis anos depois que o Brasil acompanhou o novo

discurso: o modelo jurídico-político, com uma atitude mais belicista – representando, de vez,

o repressivismo brasileiro, o qual se instauraria até a atual conjuntura – institucionalizando-o

a criação de uma guerra interna entre traficantes e cidadãos de bem. Além disso, vale ressaltar

que esta batalha não afetava apenas os sujeitos que realmente traficavam drogas, mas também

aqueles “criminosos em potencial” – ideia perigosa, como visto no presente trabalho, pois o

pensamento encontra-se impregnado dos preconceitos comuns do brasileiro médio.

A partir disso, foi realizada uma avaliação necessária da atual Lei 11.343/06, o carro-

chefe da Política Criminal de Drogas brasileira, a fim de compreender seus aspectos

teleológicos fundantes – para, mais tarde no trabalho, poder-se criticá-la. Sendo assim, foi

explicado o SISNAD e os princípios norteadores deste, as normas penais em branco que

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60!

compõem a referida lei, e as finalidades básicas do programa. Neste ponto, tem destaque a

atual diferenciação o tratamento que se dá ao traficante de drogas em contraponto com o

usuário e o dependente, qual seja, a sanção penal da prisão para aquele, e de penas alternativas

(e auxílio) para estes.

Mais adiante, foram destrinchados elementos estruturantes da Política Criminal

brasileira, por meio da criminologia. Sendo assim, em primeiro lugar, analisou-se a ideologia

da defesa social, a ideologia da segurança nacional e os movimentos de lei e ordem. Percebeu-

se que o primeiro e o segundo formavam o pensamento de que o Direito Penal protegeria de

forma igualitária todos os cidadãos, e que todos estariam vulneráveis igualmente das possíveis

repressões das agências estatais. Diante disso, restaria “justificado” e “legitimado” o sistema

repressivo e bélico em resposta ao fenômeno da criminalidade – inimigo maior da sociedade.

Já o terceiro, percebeu-se no estudo, conectar-se-ia com a influência da mídia na

reprodução do ciclo de violência criado pelos dois primeiros, incitando um estado de

constante insegurança e de perigo iminente na sociedade. Dessa maneira, uma forma de raiva

popular é alimentada constantemente, a qual só seria saciada com a resposta penal no combate

à criminalidade.

Em outro momento, mais adiante, o Direito Penal do Inimigo entrou em pauta. Com

ele, observou-se que a Política de Drogas estaria contaminada com uma beligerância penal

nociva, própria de sistemas autoritários. Isto é, o Direito Penal discriminaria os indivíduos

entre criminoso-cidadão e criminoso-inimigo, estando este último às margens de proteção que

o Estado oferece ao primeiro.

A influência negativa deste ideal na referida política é vista claramente na realidade

brasileira de muitos negros, pobres e moradores de favela, como observada no presente

trabalho. Foram colocados em perspectiva o caso do jovem Rafael Braga – o qual sofreu as

injustiças causadas pelos estigmas e atitudes beligerantes que a Política Criminal de Drogas

brasileira possui; e, em contraponto, o do empresário branco e rico, Breno Borges, não foi

tratado da mesma maneira pelo Estado, recebendo as benesses de não possuir pele negra e ter

condições financeiras favoráveis. Sendo assim, foi percebida o Direito Penal do Inimigo em

uma análise prática da realidade social brasileira.

Após isso, foi a vez de se analisar uma nova proposta acerca da problemática trazida

em tópicos anteriores. Constatou-se que a solução seria a expansão da criminologia cautelar,

capaz de criticar de forma voraz as agências estatais, a transmissão midiática desinformativa e

os massacres invisíveis. Além disso, ela não estaria fadada a definhar nos corredores

acadêmicos, tendo em vista que sua finalidade seria a de oferecer resposta pragmática aos

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61!

questionamentos apresentados por ela mesmo. Dessa forma, sua atitude estaria voltada a

pesquisar as inúmeras causas da criminalidade para, somente depois, oferecer possíveis

soluções – ao contrário das políticas públicas que tratam a criminalidade como algo subjetivo

e simples a ser exterminado por meio da força. Assim, a criminologia cautelar na questão das

drogas restaria como uma solução substitutiva para o caminho que a atual Política Criminal de

Drogas percorreu.

Terminada a análise criminológica, o estudo mudou o foco para a constitucionalidade

da supracitada política, procurando compreender se esta respeitaria a autonomia da vontade

dos indivíduos, bem como se a saúde restaria protegida e se a segurança pública estaria

afetada pelas drogas.

Em primeiro lugar, o respeito à autonomia da vontade foi analisada, concluindo-se que

a criminalização da autolesão, estabelecida no art. 28 da Lei 11.343/06, não estaria em

consonância constitucional sobremaneira. Neste ponto, foi colocada em contraponto a

distinção arbitrária feita entre drogas lícitas e ilícitas, constatando-se que, diante do próprio

direito fundamental à liberdade, haveria de existir um “direito à intoxicação” como corolário

daquele, garantindo aos indivíduos a livre atitude a respeito das drogas.

Em segundo lugar, o direito fundamental e social à saúde passou a ser o tópico da

discussão, sendo observado que a criminalização do consumo causa mais danos do que a

liberação do uso de drogas. Dessa forma, a Política de Redução de Danos entraria em pauta, a

fim de que o Estado buscasse soluções que amenizassem os efeitos causados pela utilização

de substâncias entorpecentes, ao vez de reprimir o uso por meio da atual política

proibicionista.

Por fim, a questão do direito constitucional à segurança restaria conectada

extremamente com a análise criminológica já realizada, constituindo o estudo mais complexo

dentre os três analisados. A sua complexidade restaria diante da necessidade de se perceber

que a criminalidade é como uma malha cheia de nuances, sendo essencial estudos

criminológicos, estatísticos e sociais para chegar-se a uma solução viável acerca da violência

na sociedade – não sendo possível e favorável uma atuação randômica estatal, cujas diretrizes

devem estar de acordo com estudos programáticos.

Cabe destacar, aqui, que a escolha dos métodos de aferição da conformidade entre a

Política Criminal de Drogas, a criminologia e os princípios constitucionais avaliado

submeteu-se unicamente a um juízo baseado em amplos textos referentes ao tema – citados ao

longo da pesquisa – os quais convergiam nestes três principais direitos, bem como acerca da

própria solução referente à criminologia cautelar para a atual situação.

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62!

Todavia, a abordagem realizada no presente trabalho, como já se ressaltou, de maneira

alguma esgota inteiramente o complexo tema, nem pretendeu fazê-lo. A finalidade, aqui,

restaria em oferecer uma visão didática sobre o tema a fim de colocar em foco a problemática

exposta perante a sociedade acadêmica.

A importância da presente pesquisa à sociedade geral restou na própria essencialidade

de se manter uma sociedade democrática e igualitária, cuja busca pelo respeito à

individualidade do outro ao mesmo tempo em que se respeita a diversidade constitui elemento

imprescindível para a justiça no país.

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