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Universidade Federal do Rio Grande do Sul ‐ Faculdade de Veterinária Programa de Pós Graduação em Ciências Veterinárias Disciplina Seminários em Patologia Clínica (VET 000255) http://www.ufrgs.br/favet/lacvet Relatório de Caso Clínico IDENTIFICAÇÃO Caso Clínico n o 2018/1/04 Espécie: Canino (Canis lupus familiaris) Raça: Bichon Frisé | Idade: 8 ano(s) | Sexo: fêmea | Peso: 9,2 kg Alunos(as): Laura Victoria Quishpe Contreras Médico(a) Veterinário(a) responsável: Dr. Álan G. Pöppl ANAMNESE Foi atendida no serviço de Endocrinologia e Metabologia de cães e gatos do Hospital de Clínicas Veterinárias da URFGS (HCV/UFRGS) um cão fêmea, raça Bichon Frise, de 8 anos de idade, com queixa de aumento de peso e respiração ofegante. A paciente não apresentava mudanças no volume e frequência de consumo de agua nem da micção. De acordo com os tutores, a paciente apresentava convulsões e problemas hepáticos, motivo pelo qual estava sendo tratada com fenobarbital, S‐ adenosil metionina (SAMe) e um suplemento hepático, indicado em outras clínicas veterinárias. Também tinham realizado dois testes de supressão com baixa dose de dexametasona (LDDST) nela, que resultaram negativos (valores dos resultados indisponíveis). EXAME CLÍNICO Estado mental: alerta (nervosa), normohidratação, mucosas normocoradas, frequência cardíaca: 120 bpm, (VR: 70 – 160 bpm); respiração ofegante, temperatura retal: 37,8°C (VR: 38,5 – 39,3 °C), reflexos pupilar e palpebral preservados, reflexo de ameaça ausente. Exame neurológico sem alterações. Abaulamento abdominal acentuado, o que dificultou a palpação abdominal. Alopecia no ventre, pele enegrecida e presença de comedões, porém, sem atrofia evidente (Figuras 1, 2). EXAMES COMPLEMENTARES No ultrassom abdominal evidenciou bexiga com repleção adequada, mucosa lisa e conteúdo anecogênico com moderada quantidade de sedimento ecogênico. Também observou‐se hepatomegalia, com parênquima hiperecogênico homogêneo, e presença de lama biliar na vesícula biliar. Os órgãos restantes, incluindo as gandulas adrenais, conservavam aparente normalidade estrutural e ecogênica. Foram realizados testes de estimulação com ACTH e medições de TSH e T4 livre. Os resultados correspondentes apresentam‐se na Tabela 1.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul ‐ Faculdade de ... · levam a serem realizadas mensurações de TSH e T4 livre, além de hemograma e bioquímicos. Os resultados obtidos

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Un ive r s i dade  Federa l   do  R io  G rande  do  Su l   ‐   Fa cu ldade  de  Ve te r iná r ia  

P rog rama  de  Pós ‐Graduação  em  C iênc i a s  Ve te r iná r ia s  

D i s c i p l i na   Seminá r io s   em Pa to log ia  C l í n i c a   (VET  000255 )  

h t tp : / /www.uf rg s .b r / fave t / l a cve t

Relatório de 

Caso Clínico 

 

I D E N T I F I C A Ç Ã O  

Caso Clínico no 2018/1/04  Espécie: Canino (Canis lupus familiaris) 

Raça: Bichon Frisé  |  Idade: 8 ano(s)  |  Sexo: fêmea  |  Peso: 9,2 kg  

Alunos(as): Laura Victoria Quishpe Contreras Médico(a) Veterinário(a) responsável: Dr. Álan G. Pöppl 

  

A N A M N E S E  

Foi atendida no serviço de Endocrinologia e Metabologia de cães e gatos do Hospital de Clínicas Veterinárias da URFGS (HCV/UFRGS) um cão fêmea, raça Bichon Frise, de 8 anos de idade, com queixa de aumento de peso e respiração ofegante. A paciente não apresentava mudanças no volume e frequência de consumo de agua nem da micção. De acordo com os tutores, a paciente apresentava convulsões e problemas hepáticos, motivo pelo qual estava sendo tratada com fenobarbital, S‐ adenosil metionina (SAMe) e um suplemento hepático, indicado em outras clínicas veterinárias. Também tinham realizado dois testes de supressão com baixa dose de dexametasona (LDDST) nela, que resultaram negativos (valores dos resultados indisponíveis).   

  

E X A M E   C L Í N I C O  

Estado mental: alerta (nervosa), normohidratação, mucosas normocoradas, frequência cardíaca: 120 bpm, (VR: 70 – 160 bpm); respiração ofegante, temperatura retal: 37,8°C (VR: 38,5 – 39,3 °C), reflexos pupilar e palpebral preservados, reflexo de ameaça ausente. Exame neurológico sem alterações. Abaulamento abdominal acentuado, o que dificultou a palpação abdominal. Alopecia no ventre, pele enegrecida e presença de comedões, porém, sem atrofia evidente (Figuras 1, 2).  

  

E X A M E S   C O M P L E M E N T A R E S  

 No ultrassom abdominal evidenciou bexiga com repleção adequada, mucosa lisa e conteúdo anecogênico com moderada quantidade de sedimento ecogênico. Também observou‐se hepatomegalia, com parênquima hiperecogênico homogêneo, e presença de lama biliar na vesícula biliar. Os órgãos restantes, incluindo as gandulas adrenais, conservavam aparente normalidade estrutural e ecogênica.  Foram realizados testes de estimulação com ACTH e medições de TSH e T4 livre. Os resultados correspondentes apresentam‐se na Tabela 1.         

    

UFRGS  |  Faculdade de Veterinária  |  Disciplina de Bioquímica e Hematologia Clínicas  |  Caso Clínico 2018/1/04  Página 2 

Tabela 1. 

Parâmetro (val. ref.)  Dia 0 13/11/2013 

Dia 166 28/04/2014 

Dia 232 03/07/2014 

Dia 313 22/09/2014 

Dia 505 02/04/2015 

Exames hormonais           Cortisol pós ACTH (60‐170 ng/mL)  66,8  132,2  71,3  78,4  17,9 Progesterona (<3,1 ng/mL)  19,12↑  15,80  2,14     Estrogênios totais (<70 pg/mL)  557,04↑  0,22       17‐OH Progesterona (<4,2 ng/mL)  3,71         T4 livre (0,80‐3 ng/dL)  0,16↓      0,30↓   TSH (0,05‐0,50 ng/mL)  0,18      0,16  0,12 T4 livre pós levotiroxina (25‐45ng/ml)          32   

  

U R I N Á L I S E  

 

Parâmetro (val. ref.)  Dia 232 03/07/2014 

Método de coletaA  cist Sedimento urinárioB   Células epiteliais  0‐3/campo Cilindros  Ausentes Hemácias  Ausentes Leucócitos  0‐3/campo Bacteriúria  ausente Outros  especificar Exame químico   pH (5,5 – 7,5)  5,0 ↓ Corpos cetônicosC  ausente   GlicoseD  ausente   BilirrubinaE  ausente   Urobilinogênio (0,2 mg/dL)  ≈0,2   ProteínaF  traços   SangueG  ausente   Relação prot./creat.  especificar Exame físico   Dens. espec. (1,020 – 1,040)  1,038 ? Cor  Amarela Consistência  Fluida Aspecto  Límpido Amic: micção natural | cat: cateterização | cist: cistocentese | out: outros (especificar em “Observações”) BNúmero médio de elementos por campo de 400 x Ctraços: ≈5 mg/dL | +: ≈15 mg/dL | ++: ≈40 mg/dL | +++: ≈80 md/dL | ++++: ≥160 mg/dL Dtraços: ≈100 mg/dL | +: ≈250 mg/dL | ++: ≈500 mg/dL | +++: ≈1000 mg/dL | ++++: ≥2000 mg/dL E+: leve | ++: moderada | +++: alta F+: ≈30 mg/dL | ++: ≈100 mg/dL | +++: ≈300 mg/dL | ++++: ≥2000 mg/dL Gnh: não hemolisado | h: hemolisado | +: leve | ++: moderada | +++: alto n.d.: não determinado. 

 Observações: 

    

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B I O Q U Í M I C A   S A N G U Í N E A  

 

Parâmetro (val. ref.)  Dia 0 13/11/2013 

Dia 166 28/04/2014 

Dia 313 22/09/2014 

Dia 505 02/04/2015 

Amostra  soro  soro  soro  soro Hemólise  ausente  ausente  ausente  ausente AnticoagulanteA  nenhum  nenhum  nenhum  nenhum Proteínas totaisC (60‐80 g/L)  92 ↑  72    76    72   Albumina (26‐33 g/L)  24,8 ↓  18,6 ↓  23 ↓  29,8   Globulinas (_g/L)  67,2    53,4    53    42,2   Glicose (60‐118 mg/dL)       79,62         99   Colesterol total (135‐270 mg/dL)  821 ↑  425 ↑  577 ↑  188   Ureia (21‐60 mg/dL)  21,16    49,63         35,5   Creatinina (0,5‐1,5 mg/dL)  1,15    0,42 ↓  0,77    0,72   FA (<156 U/L)  391 ↑  253 ↑  331 ↑  249 ↑ ALT (<102 U/L)  59    51    103    47,4   Triglicerídeos ((32‐138 mg/dL))  360 ↑  481 ↑  511 ↑  140 ↑ ACaso tenha sido usando outro anticoagulante não especificado na lista, discriminar em “Observações” BDeterminadas por refratometria; CDeterminadas por espectrofotometria 

 Observações: Soro discretamente lipémico em todos os exames, exceto o último.   

  

H E M O G R A M A  

 

Parâmetro (val. ref.)  Dia 0 13/11/2013 

Dia 166 28/04/2014 

Dia 313 22/09/2014 

Dia 505 02/04/2015 

Leucograma         Quantidade (6.000‐17.000/μL)  12.300    15.100    9.800    10.100   

Mielócitos (_/µL)                     (_%)             

Meta‐mielócitos 

(_/µL)                     (_%)             

Neutrófilos bastonetes 

(0‐300)                     (0‐3)             

Neutrófilos segmentados 

(3.000‐ 11.500/)  9.963/µL    11.778/µL ↑  6.860/µL    7.878/µL   (60‐77)  81%  78%  70%  78% 

Basófilos (_/µL)                     (_%)             

Eosinófilos (100‐1.250)  123/µL    1.057/µL    294/µL    101/µL   (2‐10)  1%  7%  3%  1% 

Monócitos  (150‐1.350)  984/µL    906/µL    294/µL    202/µL   

    

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(3‐10)  8%  6%  3%  2% 

Linfócitos 

(1.000‐4.800)  1.230/µL    1.359/µL    2.352/µL    1.919/µL   (12‐30)  10%  9%  24%  19% (val. ref. %)             (val. ref. %)             (val. ref. %)             (val. ref. %)             

Observações:    

Parâmetro (val. ref.)  Dia 0 13/11/2013 

Dia 166 28/04/2014 

Dia 313 22/09/2014 

Dia 505 02/04/2015 

Eritrograma         Quantidade (5,5‐8,5 milhões)  4,17 ↓  5,18 ↓  4,65 ↓  6,16   Hematócrito (37‐55%)  33 ↓  35 ↓  35 ↓  44   Hemoglobina (12‐18 g)  10,60 ↓  12,30    11,10 ↓  15,30   VCM (60‐77 fL)  79,14 ↑  67,57    75,27    71,43   CHCM (32‐36 %)  32,12    35,14    31,71    34,77   RDW (14‐17%)                     Reticulócitos (_%)                     Plaquetas         Quantidade (200.000‐500.000)  698.000 ↑  514.000    310.000    204.000   

Observações: Plasma discretamente lipémico em todos os exames, exceto o último.   

  

T R A T A M E N T O   E   E V O L U Ç Ã O  

Dia 0 (13/11/2013) A paciente estava recebendo tratamento com fenobarbital (barbitúrico) para o controle das convulsões. Neste dia foi realizado o primeiro exame clínico, e foram coletadas amostras para hemograma e bioquímicos, para painel esteroide completo após estimulação com ACTH, TSH e T 4 livre. Após obter os resultados desses exames, adiciona‐se ao tratamento ácido ursodesoxicólico (ácido biliar secundário) e um protetor articular manipulado. Por causa do hiperestrogenismo e hiperprogesteronismo, é indicada a castração, que é realizada no dia 47. A paciente consegue se recuperar do procedimento cirúrgico satisfatoriamente.   Día 166 (28/04/2014) Na primeira consulta no serviço após a castração (dia 166), observou‐se que a paciente apresentou uma discreta repilação na área abdominal, mas não teve uma melhora significativa nos outros sinais clínicos. Os donos julgam à paciente pouco ativa e ocasionalmente friorenta. São coletadas amostras para hemograma, bioquímicos, e mais uma prova de estimulação com ACTH. Nos resultados persistiu o hiperprogesteronismo na paciente, mesmo após ter sido castrada. Considerando esses resultados, foi instaurado ao tratamento trilostano (inibidor da enzima 3‐βHSD) que diminui a síntese de esteroides adrenais sem os efeitos colaterais dos tratamentos ao longo prazo de outros fármacos como o mitotano.   Día 3 232 (03/07/2014) Após o início do tratamento com o trilostano, a repilação abdominal tornou‐se mais evidente (Figura 3) e o abaulamento abdominal começou a diminuir progressivamente (Figura 4). Realizam‐se hemograma, bioquímicos, urinálise e mais um teste de estimulação com ACTH, cujos resultados mostram que o tratamento 

    

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tem sido efetivo, normalizando a concentração de progesterona.   Día 313 (22/09/2014) Os sinais clínicos dermatológicos têm resolvido, porém, os tutores acham que a paciente ainda permanece friorenta, e sumamente inativa. Isto, somado às alterações bioquímicas compatíveis com hipotireoidismo, levam a serem realizadas mensurações de TSH e T4 livre, além de hemograma e bioquímicos. Os resultados obtidos levaram ao início do tratamento com levotiroxina (hormônio sintético).   Día 505 (02/04/2015) Após o tratamento com levotiroxina, a paciente começou se mostrar mais alerta e ativa, mostrando uma melhor tolerância à atividade física, e mudando seu comportamento em relação aos primeiros dias. São realizados hemograma, bioquímicos, TSH e T4l. Estes últimos encontram‐se dentro do intervalo de referência, e a anemia da paciente resolveu, demonstrando uma adequada resposta ao tratamento (Figuras 5, 6).  

  

N E C R O P S I A   E   H I S T O P A T O L O G I A  

  

  

D I S C U S S Ã O  

Hemograma Uma das alterações mais persistentes no hemograma foi a anemia. A causa mais provável da anemia é o hipotireoidismo, teoria respaldada pela normalização dos parâmetros avaliados no eritrograma após o tratamento com levotiroxina (dia 505). Segundo a literatura, 50 até 75% dos cães hipotiroideos podem apresentar anemia leve ou moderada, geralmente normocítica e normo ou hipocrômica, que resolve após o tratamento. A causa exata da anemia no hipotireoidismo ainda é debatida, e vários mecanismos têm sido propostos, como diminuição na síntese e resposta dos tecidos à eritropoietina ou a diminuição do estímulo hormonal tireoidiano nas células precursoras dos eritrócitos (Boretti et. al., 2003; Parry, 2013). De acordo com a história, a paciente não apresentava deficiências nutricionais, era alimentada com ração de boa qualidade, e não foram reportados problemas nutricionais, gastrointestinais ou hemorragias que possam contribuir ao quadro anêmico persistente da paciente. Na maioria dos casos de HAC tende a haver um aumento no hematócrito e na contagem total de eritrócitos, devido a que o cortisol estimula a proliferação de células precursoras eritrocitárias, seja em condições fisiológicas ou patológicas, nos casos de hipóxia ou hipovolemia. Porém, num estudo realizado por Miller et al. (2014), identificaram‐se anticorpos contra os fosfolipídeos de membrana eritrocitária. A anemia também pode se dever à doença crônica.   Nos leucogramas antes do início do tratamento com trilostano, observou‐se elevação na contagem relativa de neutrófilos, e na contagem absoluta no dia 166. Nestes exames, a contagem relativa de linfócitos esteve abaixo do intervalo de referência. Estes dois achados correspondem ao denominado leucograma de stress, característico de pacientes com altas concentrações circulantes de cortisol, como nos casos de HAC. Não tem sido descrito algum mecanismo que explique se outros hormônios esteroides adrenais podem gerar leucograma de stress. No caso do HAC “clássico”, a neutrófila é causada pela desmarginalização capilar destas células, e a linfopenia por múltiplas causas como diminuição do efluxo dos linfócitos desde os linfonodos, diminuição de citosinas proliferativas e de ativação, e nos casos mais graves, estimulo do apoptose dos linfócitos circulantes. Por outro lado, a trombocitose é reportada comumente em pacientes com hiperadrenocorticismo, mas ainda não tem sido esclarecido o mecanismo que explique por que acontece essa anormalidade. Num estudo desenvolvido por Woolcock e colaboradores (2017) observou‐se que 47% dos 

    

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pacientes com endocrinopatias e trombocitose tinham HAC, sem que houvesse diferença estatisticamente significativa dependendo da origem (pituitária ou adrenal).    Bioquímica sanguínea A hipoalbuminemia da paciente pode se dever à diminuição da síntese pela diminuição da função hepática, derivada da hepatopatia esteroidal característica do HAC. Na hepatopatia esteroidal acumula‐se uma grande quantidade de glicogênio nos hepatócitos, gerando também dano nas membranas celulares e, consequentemente, elevação da ALT sérica. A elevação da fosfatase alcalina foi uma das alterações mais persistentes na paciente, e pode ser devido ao aumento da concentração da isoenzima induzida por esteroides, que antigamente foi considerada uma ótima ferramenta de diagnóstico devido a sua termoestabilidade, mas essa utilidade foi questionada depois que foi demonstrado que a elevação dessa isoforma também acontece em outras doenças hepáticas, limitando seu uso só em pacientes que tivessem sinais clínicos e resultados hematológicos e bioquímicos compatíveis com a doença (Teske et al., 1989). Em alguns pacientes com hipotireoidismo pode se apresentar colestase, o que contribui ao aumento total da fosfatase alcalina, sendo neste caso liberada pelas membranas celulares dos canalículos. O uso crônico do fenobarbital também se encontra associado ao aumento da atividade desta enzima (Müller et al., 2000).  A hipertrigliceridemia e hipercolesterolemia são alterações no metabolismo lipídico características tanto do hiperadrenocorticismo quanto do hipotireoidismo. No caso do hiperadrenocorticismo, pode acontecer uma diminuição à sensibilidade da insulina que ocasiona um incremento da gluconeogênese, glucogenólise e lipólise (pela estimulação da ação da lipase hormônio sensível), junto com lipomobilização excessiva e incremento na síntese de VLDL. Fatores dietários podem impactar também negativamente no perfil lipídico da paciente, como consumo de petiscos ou fontes de gordura. No caso do hipotireoidismo também ocorre incremento da síntese de VLDL, e diminuição na atividade da lipoproteina lipase, diminuindo o aproveitamento dos quilomicrons e a VLDL por parte dos tecidos. Estas anormalidades podem se refletir na aparência do soro e do plasma, que vai se tornar lipémico, gerando interferências físicas e químicas que podem favorecer erros na leitura de alguns analitos nos analisadores automatizados, especialmente naqueles que funcionam com espectrofotometría. As hiperlipidemias derivadas de doenças endócrinas são suscetíveis a melhora após início do tratamento correspondente à doença.   Urinálise A aciduria pode acontecer em casos de acidose metabólica. O rim tem uma participação ativa na manutenção do equilíbrio ácido‐base do organismo, incrementando a eliminação de íons H+ em caso de acidose metabólica, porém, a avaliação de gases sanguíneos é uma prova mais fiável para avaliar o estado ácido base do paciente. A presença de proteína na urina deve ser interpretada em conjunto com o pH e a densidade urinária. É possível encontrar traços de proteína em urina com densidade acima de 1,025 sem ser um achado patológico, em situações como estrese, exercício ou convulsões (Rizzi et al., 2017). Outras causas de proteína na urina como presença de sangue ou infeção urinária foram descartadas na prova realizada à paciente.   Testes hormonais Hiperprogesteronismo: A fisiopatologia do hiperadrenocorticismo atípico (AHAC) não tem sido completamente esclarecida, e acredita‐se que a elevação dos hormônios esteroides per se não seja a causa, levando em conta que animais com elevações fisiológicas destes hormônios não apresentam os sinais clínicos dos pacientes com AHAC. Porém, é conhecido que a progestina tem reação cruzada nos receptores do cortisol, ativando‐o, o que poderia explicar o desenvolvimento de sinais clínicos como poliuria, polidipsia, polifagia e pele fina em pacientes com tumores secretores de progesterona (Frank et al., 2015). Em mulheres, altos níveis de progesterona podem deslocar o cortisol da transcortina (CBG), incrementando a fração livre, encarregada de exercer a atividade biológica do hormônio. De acordo com o definido pelo consenso para o diagnóstico do hiperadrenocorticismo espontâneo, do American College of Veterinary Internal Medicine (ACVIM) no ano 2012, o AHAC ou oculto é definido como uma síndrome na qual o histórico, o exame físico e achados clínicos e laboratoriais sugerem HAC, mas os resultados dos testes de LDDST, relação cortisol:creatinina urinária (UCCR) e estimulação com ACTH encontram‐se dentro dos intervalos de referência (Behrend et al., 2013).  A alopecia bilateral não pruriginosa característica de doenças endócrinas tem sido relatada em pacientes com 

    

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excesso de hormônios sexuais e, após a castração, uma alta proporção dos casos é resolvida satisfatoriamente. Em um estudo realizado em cães de raça Spitz, encontrou‐se que os pacientes que apresentavam alopecia tinham concentrações de 17‐OHP superiores aos animais sadios, mas não houve diferencia significativa na concentração de outros hormônios como a progesterona. Em humanos, uma das possíveis causas é a deficiência da enzima 21‐hidroxilase, necessária para a síntese do cortisol. Sendo deficiente, os precursores acumulam‐se, principalmente androgênios e 17‐OH. Nos cães do estudo, a concentração de cortisol era normal, o que levou a propor que a deficiência nestes casos fosse parcial e não completa (Behrend e Kennis, 2010).  TSH e T4 livre: Quanto ao hipotireoidismo, inicialmente foi descartado que fosse causado pelo AHAC. Na literatura tem sido amplamente descrito o hipotireoidismo causado pelo HAC, que geralmente resolve após o início do tratamento. No caso da paciente isso não aconteceu, o que fez considerar que fosse derivado do tratamento crônico com fenobarbital. O fenobarbital é um barbitúrico que em ratos ativa o receptor constitutivo do androstano, aumentando a glucuronidação hepática de T4 e sua eliminação biliar, na maioria das vezes, sem gerar elevação na concentração de TSH. Acredita‐se que o mecanismo seja similar em humanos e em cães (Richardson, 2013).   

  

C O N C L U S Õ E S  

O histórico, sinais clínicos, achados ao exame físico e resultados hematológicos e bioquímicos sugeriam o diagnóstico de hiperadrenocorticismo. É diagnosticado hiperadrenocorticismo atípico levando em conta os achados mencionados anteriormente na paciente, que teve resultados negativos para os testes diagnósticos de hiperadrenocorticismo, e que adicionalmente respondeu adequadamente ao tratamento.  

  

R E F E R Ê N C I A S   B I B L I O G R Á F I C A S  

1. BEHREND, E.N.; KENNIS, R. Atypical Cushing’s syndrome in dogs: arguments for and against. Veterinary Clinics of North America Small Clinical Practice, v. 40, n. 2, p. 285‐296, 2010.  

2. BEHREND, E.N.; KOOISTRA, H.S.; NELSON, R.; REUSCH, C.E.; SCOTT‐MONCRIEFF J.C. Diagnosis of Spontaneous Canine Hyperadrenocorticism: 2012 ACVIM Consensus Statement (Small Animal). Journal of Veterinary Internal Medicine, v. 27, n. 6, p. 1292‐1304, 2013.  

3.BORETTI, F.S.; BREYER‐HAUBE, I.; KASPERS, B.; REUSCH, C.E. Klinische, hämatologische, biochemische und endokrinologische Aspekte bei 32 Hunden mit Hypothyreose. Schweizer Archiv für Tierheilkunde, v. 145, p. 149‐159, 2003.  

4. Cornell University College of Veterinary Medicine. Stress Leucogram. Disponível em: http://www.eclinpath.com/hematology/leukogram‐changes/leukogram‐patterns/. Acesso em: 09/05/2018. 

5. FRANK, L.A.; HENRY, G.A.; WHITTEMORE, J.C.; ENDERS, B.D.; MAWBY, D.I.; ROHRBACH, B.W. Serum cortisol concentrations in dogs with pituitary‐dependent hyperadrenocorticism and atypical hyperadrenocorticism. Journal of Veterinary Internal Medicine, v. 29, n. 1, p. 193‐199, 2015.  

6. HAMMOND, G.L. Plasma steroid‐binding proteins: primery gatekeepers of steroid hormone action. Journal of Endocrinology, v. 230, n. 1, p. R13‐25, 2016.  

7. MILLER, A.G.; DOW, S.; LONG, L.; OLIVER, C.S. Antiphospholipid antibodies in dogs with immune mediaten hemolytic anemia, spontaneous thrombosis, and hyperadrenocorticism. Journal of Veterinary Internal Medicine, v. 26, n. 3, p. 614‐623. 

8. MÜLLER, P.B.; TABOADA, J.; HOSGOOD, G.; PARTINGTON, B.P.; VAANSTEENHOUSE, J.L.; TAYLOR, H.V.; WOLFSHEIMER, K.J. Effects of long‐term phenobarbital treatment on the liver in dogs. Journal of Veterinary 

    

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Internal Medicine, v.14, n.2, p. 165‐171, 2000.  9. PARRY, N.M. Hypothyroidism in dogs: laboratory findings. Companion Animal, v. 18, n. 3, p. 101‐105, 2013. 10. RICHARDSON, V.M. Effects of nuclear receptor agonists on thyroxine metabolism in rat and human 

hepatocytes. In: In vitro thyroid hormone metabolism: Effects of nuclear receptor activation on the metabolic profiles of thyroxine in rat and human hepatocytes. Dissertation submitted to the faculty of the University of North Carolina for the degree of Doctor of Philosophy in the Curriculum of Toxicology, 2013. Cap 3, p. 75‐120.  

11. RIZZI, T.E.; VALENCIANO, A.; BOWLES, M.; COWELL, R.; TYLER, R.; DENICOLA, D.B. Urine Chemistry. In: Atlas of Canine and Feline Urinalysis. New York (USA): Wiley Blackwell, 2017.  Cap. 3, p. 53‐66. 

12. SYME, H.M.; SCOTT‐MONCRIEFF, J.C.; TREADWELL, N.G.; THOMPSON, M.F.; SNYDER, P.W.; WHITE, M.R.; OLIVER, J.W. Hyperadrenocorticism associated with excessive sex hormone production by an adrenocortical tumor in two dogs. Journal of American Veterinary Medical Association, v. 219, n. 12, p. 1725‐1728.  

13. TESKE,E.; ROTHUIZEN, J.; DE BRUIJNE, J.J.; RIJNBERK, A. Corticosteroid‐induced alkaline phosphatase isoenzyme in the diagnosis of canine hypercorticism. The Veterinary Record, v.125, n. 1, p. 12‐14, 1989.  

14. WOOLCOCK, A.D.; KEENAN, A.; CHEUNG, C.; CHRISTIAN, J.A.; MOORE, G.E. Thrombocytosis in 715 dogs (2011‐2015). Journal of Veterinary Internal Medicine, v. 31, n. 6, p. 1691‐1699, 2017.   

 

  

F I G U R A S  

  Figura 1.Abaulamento e alopecia abdominal. Pele enegrecida e presença de comedões, pelagem de má qualidade. (©  2013 Dr. Álan G. Pöppl.) 

  Figura 2.Abaulamento abdominal. Pelagem preservado em membros, cabeça e pescoço. (©  2013 Dr. Álan G. Pöppl.) 

 

    

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  Figura 3.Repilação abdominal. Crescimento de pelo em múltiplas áreas e diminuição do abaulamento abdominal. (©  2014 Dr. Álan G. Pöppl.) 

  Figura 4.Diminuição da distensão abdominal. É evidente a diminuição do abaulamento abdominal e a melhora na qualidade da pelagem. (©  2014 Dr. Álan G. Pöppl) 

 

    

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  Figura 5.Atitude no primeiro dia. A paciente mostrava‐se deprimida permanentemente. (©  2013 Dr. Álan G. Pöppl) 

  Figura 6.Atitude após o tratamento. De acordo com os tutores, a paciente teve uma melhoria evidente no comportamento, mais ativa, tentando pular e brincar. (©  2015 Dr. Álan G. Pöppl)