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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENESE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO
CLAUDIA BARBOSA TEIXEIRA
A INFLUÊNCIA DO SENTIDO RELIGIOSO NA FORMAÇÃO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: DE VILLEGAIGNON AO VICE-REI
Niterói 2009
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CLAUDIA BARBOSA TEIXEIRA
A INFLUÊNCIA DO SENTIDO RELIGIOSO NA FORMAÇÃO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: DE VILLEGAIGNON AO VICE-REI
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: Espaço e Cultura
Orientador: Prof. Dr. NIREU OLIVEIRA CAVALCANTI
Niterói 2009
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Teixeira, Claudia Barbosa. A influência do sentido religioso na formação da cidade do Rio de Janeiro: de Villegagnon ao Vice-Rei/Claudia Barbosa Teixeira. - Niterói: [s.n.]. 2009. 172 f.: il., 30cm Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo – Universidade Federal Fluminense, 2009. 1. Religião. 2. Urbanismo. 3. Arquitetura. 4. Rio de Janeiro.
iii
CLAUDIA BARBOSA TEIXEIRA
A INFLUÊNCIA DO SENTIDO RELIGIOSO NA FORMAÇÃO DA CIDADE DO RIO
DE JANEIRO: DE VILLEGAGNON AO VICE-REI.
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: Espaço e Cultura
Aprovada em 17 de fevereiro de 2009.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________
Prof. Dr. NIREU OLIVEIRA CAVALCANTI – Orientador Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________________________
Prof. Drª MARLICE NAZARETH SOARES DE AZEVEDO Universidade Federal Fluminense
___________________________________________________________________
Prof. Drª ZENY ROSENDAHL Universidade do Estado do Rio de Janeiro
iv
A Deus, minha inspiração
v
AGRADECIMENTOS
Inicialmente, agradeço a Deus, que me inspirou e impulsionou para chegar até aqui. Agradeço por todos os que Ele colocou em meu caminho para minha edificação: Meus pais, meus principais formadores, que desde sempre me apoiaram em minhas escolhas, estando sempre presentes, do maternal ao mestrado. Meu marido Alessandro, companheiro e incentivador-mor desta jornada, que em nenhum momento me deixou esmorecer, me ajudou a superar os obstáculos e pela sua compreensão nos momentos de crise. Minha filha Camila, por ter suportado minha ausência mesmo quando eu estava presente. Meu orientador Nireu Cavalcanti, pela disponibilidade, generosidade e pelas conversas fascinantes que só um apaixonado pela História da nossa cidade poderia proporcionar. Meus mestres e formadores ao longo da vida, particularmente os da pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFF, por terem estimulado minha capacidade de produção. A Zeny Rosendahl por sua dedicação a um tema fascinante como o da Geografia da Religião, que tem inspirado a muitos a descobrir suas potencialidades. Meus colegas de mestrado que desde o início me apoiaram na escolha do tema e sempre se fizeram presentes ao longo desta jornada. Aos meus amigos por suas orações.
vi
RESUMO A cidade do Rio de Janeiro, mesmo depois de mais de 4 séculos desde a chegada dos primeiros cristãos portugueses, ainda carrega as marcas da hegemonia cristã do mundo de então. Este trabalho tem como objetivo apontar o sentido religioso como um dos fatores que influenciaram a formação urbana e a tipologia arquitetônica da cidade do Rio de Janeiro no período de 1555 (início da ocupação francesa) até 1763 (ano da elevação da cidade do Rio de Janeiro a capital do Vice-Reino). Para tanto, se investigou a representação espacial do sentido religioso na cidade, identificando o papel que coube a Igreja Católica e a cada uma das quatro grandes Ordens Religiosas que aqui chegaram: Companhia de Jesus, Ordem de São Bento, Ordem do Carmo e Ordem dos Frades Menores. O foco central desta pesquisa é desvendar as ações estratégicas executadas por estas instituições, bem como pelas Ordens Leigas, verificando de que maneira se apropriaram do território carioca e quais as consequências dessa ocupação. Da mesma forma foram analisados os conjuntos arquitetônicos de cada uma das quatro Ordens e da primeira Sé Catedral, de propriedade da Igreja secular.
Palavras-chave: Religião. Urbanismo. Arquitetura. Rio de Janeiro.
vii
ABSTRACT Rio de Janeiro city, even after more than 4 centuries since the first Christian portuguese arrival still remains the marks of Christian hegemony of the world. This work has as objective to point the religious sense as one of the factors that influenced the urban formation and the architecture typology of Rio de Janeiro city, between 1555 (French occupation) and 1763 (the year of the elevation of Rio de Janeiro city to Vice-Kingdom capital). For in such a way the spatial representation of the religious sense was investigated, identifying the paper of Catholic Church and each one of Religious Orders that became here: Companhia de Jesus, Ordem de São Bento, Ordem do Carmo e Ordem dos Frades Menores. The central focus of this research is to unmask the strategical actions executed by these institutions, including Layperson Orders, verifying the way they appropriate carioca’s territory and what the consequences of these occupation were. In the same way, the architecture set of each one of the four Orders and the first Cathedral, property of the Catholic Church, were analyzed.
Keywords: Religion. Architecture. Urbanism. Rio de Janeiro.
viii
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Brasão da Cidade do Rio de Janeiro - 1565............................................. 60
Figura 2 - Brasão da Cidade do Rio de Janeiro - 2009............................................. 60
Figura 3 – Planta do projeto da fachada de 1861................................................... 113
Figura 4 - Fachada do Colégio Jesuíta................................................................... 121
ix
LISTA DE MAPAS
Mapa 1 - Cidade do Rio de Janeiro - Localização de Territórios Religiosos .............. 3
Mapa 2 - Tratado de Tordesilhas...............................................................................20
Mapa 3 - França Antártica .........................................................................................56
Mapa 4 - Baía do Rio de Janeiro ...............................................................................63
Mapa 5 - Primeiro Núcleo Urbano da Cidade do Rio de Janeiro...............................65
Mapa 6 - Igreja Católica: Localização de Territórios Religiosos (até 1634) ............. 77
Mapa 7 - Localização de Edificações ligadas à Igreja Católica (meados do século
XVIII)..... ................................................................................................................... 81
Mapa 8 - Companhia de Jesus - Localização de Territórios Religiosos no Rio de
Janeiro........................................................................................................................88
Mapa 9 - Territorialidade Beneditina no centro da cidade (meados do séc. XVII) ....91
Mapa 10 - Territorialidade Carmelita no centro da cidade (meados do séc. XVII).....94
Mapa 11 - Territorialidade Franciscana no centro da cidade (meados do séc.XVII).97
Mapa 12 - Territorialidade das Ordens Religiosas no centro da cidade (meados do
séc.XVII).................................................................................................................... 99
Mapa 13 - Territorialidade das Ordens Leigas no centro da cidade (meados do
séc.XVIII)................................................................................................................. 105
x
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Níveis da Hierarquia da Igreja................................................................ 15
Quadro 2 - Paróquias no Brasil até 1551.................................................................. 28
Quadro 3 – Cronologia das Ordens Religiosas......................................................... 38
Quadro 4 - Freguesias da Cidade do Rio de Janeiro - 1569 a 1763......................... 72
xi
LISTA DE FOTOGRAFIAS
Foto 1 – Vista da igreja de São Sebastião (fachada frontal)................................... 113
Foto 2 – Vista da igreja de São Sebastião (fachada lateral)................................... 114
Foto 3 – Vista interna da igreja de São Sebastião.................................................. 114
Foto 4 – Vista da igreja de São Roque de Lisboa................................................... 118
Foto 5 – Vista da igreja de Santo Inácio.................................................................. 118
Foto 6 – Vista interna da igreja de Santo Inácio..................................................... 119
Foto 7 – Vista do complexo jesuítico no morro do Castelo..................................... 121
Foto 8 – Vista da igreja de Nossa Senhora de Monserrate.................................... 125
Foto 9 – Vista interna da igreja de Nossa Senhora de Monserrate........................ 125
Foto 10 – Vista do mosteiro de São Bento.............................................................. 126
Foto 11 – Vista geral do complexo dos carmelitas.................................................. 130
Foto 12 – Vista do convento do Carmo................................................................... 130
Foto 13 – Vista da igreja do Carmo no Porto, Portugal........................................... 131
Foto 14 – Vista da igreja do Carmo no Rio de Janeiro............................................ 131
Foto 15 – Vista interna da igreja do Carmo............................................................. 132
Foto 16 – Vista da igreja da Ordem Terceira do Carmo.......................................... 135
Foto 17 – Vista interna da igreja da Ordem Terceira do Carmo.............................. 135
Foto 18 – Vista geral do complexo franciscano (1893)........................................... 138
Foto 19 – Vista geral do complexo franciscano nos dias de hoje........................... 138
Foto 20 – Vista da igreja de Santo Antônio............................................................. 139
Foto 21 – Vista interna do convento - claustro........................................................ 139
Foto 22 – Vista interna da igreja de Santo Antônio................................................. 140
Foto 23 – Detalhe do altar-mor com a imagem de Santo Antônio.......................... 140
Foto 24 – Vista do órgão no interior da igreja......................................................... 141
Foto 25 – Vista da igreja de São Francisco da Penitência...................................... 144
Foto 26 – Vista interna da igreja de São Francisco da Penitência.......................... 144
Foto 27 – Aspecto do altar-mor............................................................................... 145
Foto 28 – Vista do teto com pintura em perspectiva............................................... 145
xii
SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................................01 Capítulo 1: O Sentido Religioso na Europa e na América Portuguesa na Passagem do Século XV para o XVI.......................................................................10 1.1 A religião como forma de expressão cultural......................................................10 1.2 O panorama religioso na Europa no final do século XV e início do XVI..............11 1.3 A Reforma Católica.............................................................................................22 1.4 O estabelecimento da Igreja no Brasil.................................................................24 1.5 As Ordens Religiosas..........................................................................................29
1.5.1 Companhia de Jesus..................................................................................31 1.5.1.1 A Companhia de Jesus no Brasil/Rio de Janeiro ..........................32 1.5.2 Ordem de São Bento..................................................................................33 1.5.2.1 A Ordem de São Bento no Brasil/Rio de Janeiro ...........................34 1.5.3 Ordem do Carmo........................................................................................34 1.5.3.1 A Ordem do Carmo no Brasil/Rio de Janeiro .................................35 1.5.4 Ordem dos Frades Menores..................................................................... 36 1.5.4.1 A Ordem dos Frades Menores no Brasil/Rio de Janeiro ................37
1.6 As Ordens Leigas................................................................................................39 1.7 A religião protestante no Brasil............................................................................40 1.8 A religiosidade dos índios....................................................................................41 Capítulo 2: Os Visitantes da Guanabara até a Fundação da Cidade...................44 2.1 Os visitantes da Guanabara dos primeiros anos..................................................45 2.2 Martim Afonso de Souza .....................................................................................48 2.3 Tomé de Souza ...................................................................................................50 2.4 Villegagnon e a França Antártica.........................................................................50 2.5 Mem de Sá...........................................................................................................57 2.6 Estácio de Sá.......................................................................................................58 2.7 Enfim, a ocupação definitiva da Cidade...............................................................62 Capítulo 3: A Territorialidade da Igreja Católica na Construção da Cidade do Rio de Janeiro...........................................................................................................66 3.1 A Igreja Católica – estratégia de ocupação.........................................................70 3.1.1 A construção da muralha de pedra .............................................................80 3.1.2. A imagem do padroeiro da cidade e a peregrinação da Sé........................82 3.2 As Ordens Religiosas - estratégias de ocupação ...............................................83 3.2.1 Companhia de Jesus....................................................................................83 3.2.2 Ordem de São Bento....................................................................................89 3.2.3 Ordem do Carmo..........................................................................................92 3.2.4 Ordem dos Frades Menores.........................................................................95 3.2.4.1 Os Frades Menores Capuchinhos ..................................................98 3.3 As Ordens Terceiras – estratégias de ocupação ..............................................100
xiii
Capítulo 4: O Sentido Religioso na Tipologia Arquitetônica.............................106 4.1 A primeira Sé.....................................................................................................111 4.2 As Ordens Religiosas........................................................................................115 4.2.1 Jesuítas.....................................................................................................115 4.2.2 Beneditinos................................................................................................122 4.2.3 Carmelitas.................................................................................................127 4.2.3.1 A Ordem Terceira .........................................................................133 4.2.4 Franciscanos.............................................................................................136 4.2.4.1 A Ordem Terceira..........................................................................142 Considerações Finais............................................................................................147 Referências Bibliográficas....................................................................................153
xiv
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. (Fernando Pessoa)
1
INTRODUÇÃO 1. Caracterização do problema Podemos verificar, ao longo da história, quantas transformações as cidades já
sofreram. Desde suas origens, como aldeias, passando pelas vilas, até as
metrópoles dos dias de hoje, as cidades se desenvolveram para atender às
necessidades do homem. A cada passo ou a cada salto tecnológico, a cidade se
adapta e se transforma para satisfazê-lo. Algumas mais rapidamente, outras mais
vagarosamente, mas todas, de uma forma ou de outra, são obrigadas a acompanhar
o processo evolutivo ao qual o homem se impõe. A verdade é que a cidade é um
espelho daquilo que o homem do seu tempo vê, apreende, vive e produz.
Dentre os diversos fatores que influenciaram o surgimento das cidades e seu
desenvolvimento, podemos citar o avanço tecnológico, o meio físico, as formas
econômicas de produção, a organização social e política e as estratégias militares,
entre outras. Mas não podemos deixar de ressaltar um aspecto discreto, porém,
bastante significativo, que é o sentido religioso. Para Chauí (2000) a religião é um
vínculo entre o mundo profano e o mundo sagrado, onde:
Nas várias culturas, essa ligação é simbolizada no momento da fundação de uma aldeia, vila ou cidade: o guia religioso traça figuras no chão e repete o mesmo gesto no ar. Esses dois gestos delimitam um espaço novo, sagrado (no ar) e consagrado (no solo). Nesse novo espaço ergue-se o santuário (em latim, templum, templo) e a sua volta os edifícios da nova comunidade (CHAUÍ, 2000, p. 380).
A formação de algumas cidades foi fortemente inspirada por motivos
religiosos. Assim ocorreu com determinadas cidades gregas e romanas da
Antiguidade e com algumas cidades maias, indianas, chinesas, muçulmanas, entre
outras. A religião sempre fez parte da vida do homem e este expressa sua
religiosidade de diversas formas, inclusive na configuração urbana e tipológica de
suas cidades. Este também parece ter sido o caso da cidade do Rio de Janeiro.
2
O processo de configuração urbana e tipológica inicial da cidade do Rio de
Janeiro, a partir do século XVI espelhou as influências culturais dos europeus,
particularmente dos portugueses, que deixaram suas marcas, especialmente no
centro da cidade, embrião de ocupação. A história da formação da cidade está
intimamente ligada com a crença católica que se materializou em seus núcleos
iniciais de ocupação, principalmente através de quatro Ordens Religiosas:
Companhia de Jesus (jesuítas), Ordem do Carmo (carmelitas), Ordem de São Bento
(beneditinos) e Ordem dos Frades Menores (franciscanos).
Neste sentido, podemos observar que todos os pontos estratégicos sobre os
quais a cidade do Rio de Janeiro nasceu, eram denominados por nomes de santos,
ou nomes relacionados à Igreja Católica. A própria cidade foi “batizada” de São
Sebastião do Rio de Janeiro. Topalov (2004, p.19) afirma que a cidade é constituída
de territórios “onde as identidades religiosas, culturais e sociais expressam-se,
revelam-se, mostram-se, traem-se ou se dissimulam, e interagem”.
Na região central do Rio de Janeiro este processo não foi muito diferente,
verificando-se que sua ocupação inicial se deu basicamente entre quatro morros,
sendo três deles abarcados pela Igreja, com a sede do poder eclesiástico (Sé) e
com colégios, conventos e mosteiros de propriedade das Ordens Religiosas. São
eles: Morro de São Januário (posteriormente Morro do Castelo), onde se localizou a
Sé de São Sebastião e a Companhia de Jesus; Morro de São Bento, ocupado pela
Ordem de mesmo nome; Morro de Santo Antônio, onde a Ordem dos Frades
Menores se fixou e o Morro da Conceição, onde foi construída uma capela de Nossa
Senhora da Conceição e, no início do século XVIII, o Palácio Episcopal da cidade.
Sobre esses morros foram construídos fortes e igrejas, em ambos os casos,
provavelmente, para efeito de dupla proteção: pelas armas e pela devoção. A cidade
metafísica ao lado da cidade terrena.
A Ordem do Carmo por não ter aceitado as terras referentes ao Morro de
Santo Antônio por se localizar nos “arrabaldes” da cidade fixou sua base de atuação
na região denominada Várzea, situada entre os quatro morros, conforme
demonstrado no Mapa 1.
3
MAPA 1
CIDADE DO RIO DE JANEIRO LOCALIZAÇÃO TERRITÓRIOS RELIGIOSOS
Elaborado por Claudia Teixeira a partir da base cartográfica de Barreiros (1965)
Morro da Conceição
Morro de Santo Antônio
Morro de São Januário
franciscanos
jesuítas Igreja Católica
Igreja Católica
Morro de São Bento
Várzea
carmelitas
beneditinos
4
Ao longo de cinco séculos, os vestígios dessa crença ainda são facilmente
identificados em um passeio pelas ruas do centro do Rio onde se localizam diversas
igrejas espalhadas em sua área territorial de 572,31 hectares1. São ao todo 34
templos católicos2 sendo uma catedral e diversas igrejas e capelas erigidas por
Irmandades ou Ordens Terceiras, a maioria construída entre os séculos XVI e XVIII.
São quase 6 igrejas por km2. Sem contar outros 15 templos que se localizam nos
bairros adjascentes como Saúde, Gamboa e Santo Cristo. Como em tantas outras
cidades seiscentistas, as torres das igrejas ainda podem ser reconhecidas na
paisagem do centro carioca com facilidade.
Com tantos símbolos, elementos e palavras associados à religião, a presente
dissertação pretende responder à seguinte questão:
o Qual a influência do sentido religioso na formação urbana da cidade do Rio
de Janeiro e na sua tipologia arquitetônica?
A hipótese deste trabalho compreende a seguinte assertiva: que o sentido
religioso, através da Igreja Católica, foi um vetor determinante da implantação,
expansão e configuração da cidade do Rio de Janeiro e de suas edificações no
período estudado.
Para entender o processo de formação da cidade é necessário recorrer aos
principais fatos históricos que assolavam a Europa no final do século XV e que tanto
marcaram a presença portuguesa em nossa terra.
Com o início da Renascença (fim da Idade Média), já nos tempos modernos,
pelo retorno às artes a ao conhecimento da antiguidade clássica helênica, verifica-se
uma ampla renovação cultural, social, econômica, política e religiosa (séculos XV e
XVI). O Renascimento colocou o homem como centro de tudo, em contrapartida com
o período da Idade Média onde o centro era Deus. O racionalismo característico da
época renascentista ocasionou um notável progresso científico.
_____________ 1 Como demonstra o portal do Instituto Pereira Passos em http://portalgeo.rio.rj.gov.br/bairroscariocas Acesso em 14 de abril de 2008. 2 De acordo com a relação encontrada no site http://www.arquidiocese.org.br da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Acesso em 14 de abril de 2008.
5
Inicia-se o ciclo das grandes navegações e a expansão mundial da civilização
européia. De acordo com Subirats (1998, p. 340), o mundo do Renascimento já era
redondo. Era um mundo global perfeitamente unificado teológica, jurídica e
tecnocientificamente. Esse processo se inicia na América pela apropriação do
território e de seu povo, por influência de um sentido religioso que se via respaldado
no mundo global homogeneizado pela mesma fé. E é nesse momento histórico que
se dá a chegada dos portugueses ao Brasil, no ano de 1500.
Desde sua descoberta até o fim do Império, em 1889, a religião católica foi
também a religião oficial do Estado. Ainda hoje os brasileiros, em sua maioria se
professam católicos. O Brasil é considerado o maior país católico do mundo,
possibilitando ao pesquisador interessado nas diversas formas de expressão dessa
religiosidade um vasto campo de investigação.
2. Objetivos gerais e específicos
Portanto, esta pesquisa propõe-se a estudar e investigar a influência e
representação do sentido religioso na formação urbana da cidade do Rio de Janeiro
e na sua tipologia arquitetônica, verificando-se o papel que coube a cada Ordem
Religiosa e à Igreja secular em geral. Buscou-se resgatar os primeiros séculos da
urbanização do Rio de Janeiro sob a perspectiva da religiosidade em seu contexto
territorial, verificando de que forma ocorreu a implantação das Ordens Religiosas no
espaço. Da mesma forma se pretendeu identificar, na estrutura espacial inicial da
cidade do Rio de Janeiro, elementos e símbolos que expressassem o senso
religioso de sua população no período estudado.
3. Justificativa e relevância
A formação da cidade do Rio de Janeiro já foi analisada sob a ótica
econômica, geográfica, sob a influência do modelo europeu de urbanização
largamente empregado em nossos primeiros núcleos urbanos, sob os aspectos
políticos, administrativos e históricos. Este estudo visa uma análise sob o ponto de
vista da religião.
6
4. Metodologia e/ou operacionalização
Nesta pesquisa se definiu o recorte temporal a partir de 1555, data da
ocupação da baía de Guanabara pelos franceses, liderados por Nicolau Durand de
Villegagnon com a idéia de implantar no Brasil a “França Antártica”. O objetivo da
empreitada era garantir a exploração do pau-brasil no litoral sul do Brasil e conseguir
um espaço onde os protestantes franceses perseguidos na Europa e católicos
pudessem exercer livremente sua religião.
Não se entrará no mérito se o insucesso da empreitada foi a conflituosa
convivência de fiéis das duas religiões. Porém, é curioso observar que graças a essa
investida com fins econômicos e religiosos dos franceses a cidade do Rio de Janeiro
finalmente foi fundada, pois a invasão representou uma ameaça aos interesses da
Coroa portuguesa ocasionando a vinda da primeira expedição organizada pelo
Governador Geral Mem de Sá em 1560 a fim de expulsá-los da cidade.
Não tendo a força luso-brasileira ocupado o território com a fundação de uma
cidade, permitiu que remanescentes dos franceses e índios tupinambás
reorganizassem suas fortificações e se instalassem novamente na região da baía de
Guanabara. Em 1565, Estácio de Sá, sobrinho do Governador Geral, contando com
reforços, entrou na baía com sua esquadra e lançou os fundamentos da cidade de
São Sebastião na várzea do morro Cara de Cão, para que a cidade servisse
inicialmente de base na luta contra os franceses e seus aliados indígenas. Nesta
conquista estavam juntos os bravos soldados de El-Rei e os “soldados de Cristo”, ou
seja, os missionários da Companhia de Jesus.
Com a fundação efetiva da cidade a primeiro de março daquele ano os
portugueses trouxeram seus hábitos, tradições, costumes, cultura e sua crença
religiosa. Era uma época em que a Igreja Católica dominava como instituição
religiosa o mundo ocidental. Várias Ordens Religiosas se instalaram na cidade. Elas
representavam naquele momento histórico os atores da implantação e expansão da
cidade para fora dos limites iniciais.
Pretendeu-se demonstrar por este estudo como ocorreu a territorialidade
católica desde o primeiro núcleo de ocupação e sua expansão urbana e
arquitetônica até 1763, ano em que o Rio de Janeiro se tornou a sede do Vice-
Reinado, trazendo novas concepções estéticas e ideológicas à cidade.
7
Para atingir os objetivos propostos nesta dissertação foi utilizada metodologia
de pesquisa histórica baseada em literatura relacionada com a História da Igreja,
com a trajetória das Ordens Religiosas em Portugal e como chegaram à América
Portuguesa. Da mesma forma foi apresentada uma visão geral do que foi o polêmico
projeto França Antártica através dos relatos de Andre Thevet (1960), Jean de Lery
(1978) e autores contemporâneos.
A pesquisa também se estendeu sobre a Geografia da Religião, destacando a
contribuição de Rosendahl (1996, p. 11) que já há algum tempo vem discutindo as
relações entre ambas, que no seu entender “se encontram através da dimensão
espacial, uma porque analisa o espaço, a outra porque, como fenômeno cultural,
ocorre espacialmente”. Igualmente este trabalho de entendimento sobre a Geografia
da Religião se entrelaçou com literatura sobre o modelo de urbanização executado
pelos portugueses e finalmente, sobre a tipologia arquitetônica utilizada em Portugal
pelas Ordens Religiosas e como se adaptaram na passagem para o Novo Mundo.
Buscou-se ilustrar o trabalho com mapas, fotografias e reprodução de
gravuras, desenhos, a fim de possibilitar o entendimento de alguns argumentos
apresentados.
Para uma melhor compreensão do tema proposto, a presente dissertação foi
estruturada em quatro capítulos. No primeiro capítulo o enfoque se dá sobre
religião. Apresentou-se um breve panorama religioso na Europa no final do século
XV e início do século XVI, época da chegada dos cristãos portugueses ao Brasil.
Para tanto se tornou necessário demonstrar a trajetória da Igreja Católica desde sua
fundação na Palestina até se tornar uma poderosa instituição mundial, em fase de
reformas profundas no momento da chegada às terras americanas.
Pretendeu-se demonstrar o papel exercido pela Igreja Católica através,
principalmente, das Ordens Religiosas e como essas Ordens se fizeram representar
no Brasil e no Rio de Janeiro. Não se poderia deixar de mencionar a relevante
participação das Ordens Leigas através das Irmandades e Ordens Terceiras. Da
mesma forma se buscou ilustrar as primeiras tentativas da religião protestante de se
estabelecer no Brasil e a religiosidade dos habitantes nativos da América
portuguesa.
O segundo capítulo destacou o processo de fundação da cidade do Rio de
Janeiro. Procurou-se demonstrar os principais visitantes que a Baía de Guanabara
recebeu e que dela não muito se ocuparam até a chegada dos franceses, em 1555,
8
acarretando a fundação definitiva da cidade em 1565. Foram 53 anos desde a
chegada do primeiro visitante oficial em 1502 até a ocupação efetuada pelos
franceses.
Realizou-se um breve histórico sobre a conflituosa permanência dos
invasores europeus na região da Guanabara, incentivados pelo projeto da França
Antártica. Encontra-se também relatado o primeiro assentamento na base do Morro
Cara de Cão e a posterior transferência para o Morro do Castelo em 1567 após a
ofensiva realizada por Estácio de Sá (ferido mortalmente nesse combate) contra os
inimigos que ainda se mantinham na região guanabarina.
No terceiro capítulo se pretendeu demonstrar a influência do sentido
religioso na formação da cidade, através da estratégia da Igreja Católica de
ocupação inicial do território carioca por intermédio das principais Ordens Religiosas
que aqui se instalaram desde o século XVI: Companhia de Jesus, Ordem do Carmo,
Ordem de São Bento e Ordem dos Frades Menores. Da mesma forma se buscou
evidenciar a ação de fiéis leigos, isoladamente ou em grupos, que se tornou
igualmente relevante no processo de configuração urbana da cidade. Esses
primeiros núcleos de ocupação foram considerados como territórios religiosos e se
buscou demonstrar que a cidade do Rio de Janeiro se desenvolveu entre estes
territórios. A partir daí foi investigado se as Ordens Religiosas foram autoras de
vetores de expansão para fora dos limites iniciais da região central da cidade.
Verificou-se que no período estudado nesta dissertação a paisagem urbana
da cidade do Rio de Janeiro era visivelmente impregnada por motivos religiosos.
Portanto, no quarto capítulo se apresentou a tipologia arquitetônica característica
das Ordens Religiosas nos primeiros núcleos de ocupação da cidade, bem como da
igreja de São Sebastião e se investigou quais as influências do sentido religioso no
programa, no partido e na modenatura dessas edificações. Igualmente foram
apresentados os elementos construtivos característicos de expressões artísticas do
período como o maneirismo, o barroco e o rococó. Optou-se pelo estudo dos
conjuntos arquitetônicos edificados com seus colégios, conventos e mosteiros e de
que maneira influenciaram as demais construções.
Nas considerações finais se procurou fazer uma reflexão a respeito da
religião como um fenômeno próprio do homem, que no caso da cidade do Rio de
Janeiro se manifestou através do estabelecimento da Igreja Católica e das Ordens
Religiosas e Leigas carregadas pelo sentimento de religiosidade. Esses territórios
9
religiosos eram o centro da vida colonial e foram se expandindo e se misturando aos
demais territórios ao longo do tempo. A pesquisa teve como foco o sentido religioso
e se buscou demonstrar que este tão presente no homem de todos os tempos,
exerceu forte influência na configuração urbana e tipológica da cidade.
CAPÍTULO 1
O SENTIDO RELIGIOSO NA EUROPA E NA AMÉRICA PORTUGUESA
NA PASSAGEM DOS SÉCULOS XV PARA O XVI
“Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei.” (Mt 28,19-20)
11
CAPÍTULO 1 - O SENTIDO RELIGIOSO NA EUROPA E NA AMÉRICA PORTUGUESA NA PASSAGEM DOS SÉCULOS XV PARA O XVI Para uma análise da influência da religião na formação da cidade do Rio de
Janeiro é necessário lançar um olhar sobre os acontecimentos do mundo ocidental à
época das grandes navegações e como se deu a colonização brasileira, em relação
a seu contexto cultural, “estabelecendo um elo entre religião e a organização
funcional e espacial da cidade” (ROSENDAHL, 1999).
Para tanto, torna-se necessário traçar um breve panorama religioso do
mundo ocidental no final do século XV e início do século XVI a fim de delinear as
motivações e interesses dos colonizadores quando chegaram às terras brasileiras,
destacando a efervescência religiosa que assolava a Europa naquele momento,
ameaçando a então religião dominante no Ocidente.
Da mesma forma busca-se ilustrar a íntima e conturbada relação
Estado/Igreja, particularmente em Portugal, com seu aparato jurídico que subsidiava
a ocupação das terras encontradas, com a forma de controle utilizada por ambos os
lados e com a colaboração mútua para enfrentar o desafio de colonizar de maneira
eficiente o vasto território brasileiro.
Ao utilizar o termo sentido religioso se pretende apontar a religião como um
dos vetores de implantação e expansão da cidade do Rio de Janeiro, através da
Igreja secular e do “braço” mais atuante da Igreja Católica naquele momento
histórico que eram as Ordens Religiosas.
1.1 - A religião como forma de expressão cultural
A religião é um fenômeno tipicamente humano que se manifesta em diversas
culturas, principalmente refletido nos períodos da História Antiga e Contemporânea.
Essas culturas se expressaram religiosamente. Como fenômeno cultural, a religião
também se expressa espacialmente.
12
A palavra religião vem do latim religio, cuja interpretação mais utilizada é
religare: religar. Religião seria a ligação ou a vinculação do homem com Deus
(BETTENCOURT, 1996).
Para Marilena Chauí (2000, p. 391), a religião realiza o “encantamento do
mundo, explicando-o pelo maravilhoso e misterioso. O grupo que detém este saber
misterioso, ao tornar-se detentor do poder, adquire o domínio de encantar,
desencantar e reencantar o mundo”.
Desde a pré-história verifica-se no homem o senso religioso constatado pelos
seus vestígios de ritos fúnebres e ofertas de sacrifício. Uma corrente de autores
afirma que os antigos santuários paleolíticos serviram de base de desenvolvimento
das cidades. Ao longo da História verifica-se a manifestação religiosa do homem
através da arquitetura e da arte em seus diversos segmentos, seja na escultura, na
pintura, na música...
No entender de Rosendahl (2003), a idéia de que o homem é religioso
significa dizer que o homem é motivado pela fé em sua experiência na vida. Essa
noção permite a leitura do poder sagrado na construção de territórios espaciais
religiosos.
1.2 - O panorama religioso na Europa no final do século XV e início do XVI
O cristianismo faz parte do bloco das três maiores religiões monoteístas do
mundo, juntamente com o islamismo e o judaísmo. A base da religião cristã é a
crença em Jesus Cristo como Filho de Deus e tem n´Ele sua maior referência e
prestação de culto e louvor. O cristianismo teve sua origem em Jerusalém, na
Palestina, onde viveu Jesus Cristo, e se espalhou por diversas regiões do Império
Romano através de doze apóstolos, testemunhas escolhidas e enviadas em missão
pelo próprio Cristo, de acordo com a Sagrada Escritura:
Jesus, aproximando-se deles, falou: ”Toda a autoridade sobre o céu e a terra me foi entregue. Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei.3
____________ 3 Bíblia de Jerusalém, p. 1.895 – 1.896 (Mt 28, 18 – 20a).
13
Essas primeiras comunidades fundadas pelos doze apóstolos e,
posteriormente, também por Paulo, se formaram e se desenvolveram pela Palestina
(judaísmo tradicional), pelo meio do helenismo (judaísmo da Diáspora) e junto aos
pagãos greco-romanos.
Dentre esses apóstolos, Pedro ocupa lugar especial por ter sido escolhido
como o fundamento sólido sobre o qual Jesus Cristo iria edificar a Igreja: “Também
eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (Mt 16,18).
Em diversas passagens do Novo Testamento verifica-se o primado de Pedro sobre
os demais apóstolos. O primado faz com que Pedro tenha as mesmas prerrogativas
que os demais apóstolos, porém, em âmbito universal, conduzindo a Igreja
nascente. Por volta do ano de 42, Pedro assume a comunidade de Roma, tendo sido
considerado bispo desta cidade.
A comunidade da cidade de Roma teria sido fundada pelos apóstolos Pedro e
Paulo e foi também a cidade onde os dois morreram martirizados, o que no entender
de Bettencourt (1996) conferiu a Roma uma autoridade singular. A partir de então, a
capital do Império, centro do poder temporal permaneceu como sede da Igreja e,
através de sucessão apostólica, após a morte de Pedro, o cristão que assumisse
seu lugar seria também reconhecido como bispo de Roma. No século VI é que os
cristãos passariam a denominar apenas o bispo de Roma como Papa4, legítimo
sucessor de Pedro.
Nos livros do Novo Testamento verifica-se também a existência de uma
estrutura hierárquica desde a época da Igreja primitiva. Os apóstolos, como dito
anteriormente, tinham a missão de evangelizar a “todas as nações”, portanto, após
formar uma comunidade cristã, eles deixavam em cada igreja um colegiado de
presbíteros (ou epíscopos)5, que governavam de imediato a comunidade, tendo
abaixo de si os diáconos. Segundo Matos (1987, p. 27):
Ao longo do século II, acabará prevalecendo o modelo destinado a se tornar definitivo: cada cidade terá um bispo (epíscopos), um presbitério (= um conselho de presbíteros) e vários diáconos. O bispo presidirá a liturgia
____________ 4 O nome vem do grego pappas, pai. Era o título de todos os bispos da antiga Igreja, visto que todos exerciam uma paternidade espiritual (BETTENCOURT, 1996). 5 Epíscopos não são ainda os bispos, mas presbíteros ou “anciãos” encarregados de dirigir a comunidade ou lhe dar assistência (Bíblia de Jerusalém, p. 2.205)
14
(batismo, eucaristia). Os presbíteros terão uma função de conselheiros e e juízes. Somente após o século IV, o presbítero poderá presidir sozinho a eucaristia, pregar e batizar.
A hierarquia da Igreja ainda hoje é composta apenas por bispos, presbíteros
e diáconos que podem receber titulações referentes ao exercício do cargo, conforme
disposto no Quadro 1.
15
Quadro 1 – Níveis da Hierarquia da Igreja
GRAU DA HIERARQUIA TÍTULOS FUNÇÃO
Bispo Papa
Cardeal
Arcebispo
Bispo
Chefe da Igreja
Colaborador e conselheiro imediato
do papa.
Possui jurisdição ordinária sobre os
fiéis de sua Arquidiocese ou sede
metropolitana
Possui jurisdição ordinária sobre os
fiéis de sua Diocese ou Circunscrição
Eclesiástica, composta por paróquias.
Presbítero (ou sacerdote,
ou padre)
Cardeal
Monsenhor*
Cônego*
Pároco
Vigário
Colaborador e conselheiro imediato
do papa
Responsável pela paróquia
Subordinado ao pároco
Diácono Cardeal Colaborador e conselheiro imediato
do papa
*Título honorário de homenagem e reconhecimento por serviços prestados à Igreja. Não indicam a posse de algum cargo ou posição dentro da Igreja.
Elaborado por Claudia Teixeira, 2009.
16
Pelo menos até o ano 70 os cristãos continuaram a freqüentar as sinagogas
judaicas e o Templo em Jerusalém, porém aos poucos foram desenvolvendo uma
tradição própria, definindo sua doutrina, desenvolvendo formas de culto e de vida
social. Para Matos (1987, p. 28):
Antes de tudo, parece claro que o cristianismo do século I (e mesmo dos séculos II e III) é uma religião urbana, espalhada nas cidades. A penetração no meio rural, particularmente no Ocidente, só se intensifica no final século IV. Um grande número de pobres, inclusive escravos, entra nas comunidades cristãs, que se distinguem por aceitar a todos, sem discriminação. [...] Mas nas comunidades paulinas, que conhecemos melhor, é certa a presença de alguns ricos, comerciantes e artesãos, talvez até altos funcionários. Essas pessoas colocaram a sua casa à disposição da comunidade cristã, que ali se reúne.
O termo Igreja Católica foi aplicado pela primeira vez por Inácio de Antioquia,
no século II da chamada era cristã, para expressar geral, universal. No entender do
bispo de Antioquia a Igreja seria para todos os homens e para todos os povos de
todos os tempos, independente de raça, cultura, estrutura política ou econômica.
Desde o seu surgimento, a partir da morte de Jesus Cristo, por volta do ano
30 e durante aproximadamente três séculos, os cristãos foram fortalecendo as
estruturas da Igreja, realizando uma penetração extensa de Jerusalém a Roma,
consolidando suas doutrinas e suas práticas, tanto no plano religioso como no
social. Porém, foram também perseguidos e muitos foram mortos por ordem dos
imperadores romanos, porque representavam uma ameaça a sua autoridade e até
mesmo pelo receio de que uma nova religião desagradasse aos deuses e trouxesse
desgraças sobre o povo. Essas perseguições, que no início eram esporádicas
passando a sistemáticas, acabaram por fortalecer a prática cristã, como afirmou
Tertuliano (século II): o sangue dos mártires é semente de cristãos.
No ano de 313 o cenário de perseguições começou a mudar quando o
imperador romano Constantino6 declara liberdade à prática cristã, ato conhecido
como Edito de Milão. Essa aproximação com o poder temporal trouxe alguns
inconvenientes para a Igreja. O imperador passa a se intrometer nos assuntos
____________ 6 Segundo alguns autores, no ano de 312 Constantino, em uma batalha contra Maxêncio pela disputa de um território, teria visto no céu uma cruz com a inscrição “Com este sinal vencerás” e teria mandado colocá-lo nas insígnias de seus soldados. A batalha da ponte Mílvia teve vitória de Constantino em 28/10/312. O imperador Constantino só viria a se converter ao cristianismo na hora de sua morte, pedindo para receber o sacramento do Batismo.
17
eclesiásticos convocando bispos para resolver problemas de unidade da Igreja (e do
Império) causados com cismas e heresias como foi o caso do primeiro Concílio
Ecumênico (universal) da Igreja que ocorreu em Nicéia no ano de 325 convocado
pelo imperador. A violência continuava a ser utilizada como forma de manter a
coesão do Império, o que não se traduz como prática cristã.
Por outro lado, Constantino também favoreceu aos cristãos com isenção de
impostos por parte do clero, com a abolição da crucificação e proibição das lutas de
gladiadores e pela permissão à Igreja de receber heranças, bens e terras. Também
por seu intermédio iniciaram-se as construções das principais basílicas7: São Pedro
e São João de Latrão em Roma, Santo Sepulcro, em Jerusalém, Natividade, em
Belém.
O catolicismo tornou-se religião oficial do Império Romano no ano de 380,
pelas mãos do Imperador Teodósio I. O Concílio Geral de Constantinopla, em 381
professou a Igreja una, santa, católica e apostólica, títulos conservados até hoje.
Essa aproximação com o Estado Romano permitiu ao cristianismo se
expandir pelas rotas de comércio do mundo romano. A partir desse momento, a
religião cristã cresceu vertiginosamente, podendo se afirmar que foi aquela que mais
se expandiu por todo o mundo conhecido de então.
Desde o Edito de Milão, por intermédio de diversas doações feitas à Igreja
por nobres ao morrer ou ao ingressar em um mosteiro, foi se formando o chamado
“Patrimônio de São Pedro”. No ano de 756, Pepino, rei dos francos doou ao Papa
Estêvão II todo o ducado de Ravena e o conjunto de cinco cidades conhecido como
Pentápolis: Rimini, Pesaro, Fano, Senigallia e Ancona, todas na Itália. Esses
territórios foram anexados ao Patrimônio de São Pedro, viabilizando a fundação do
Estado Pontifício. Graças a essa e a outras doações o território do Estado Pontifício
chegou a medir 41.000 km2. O Estado do Vaticano, hoje reduzido a 0,44 km2,
encravado na zona norte de Roma foi criado oficialmente em 19298 e é onde se
localiza a sede do governo da Igreja Católica denominada Santa Sé.
____________ 7 A palavra basílica vem do grego basiliké, adjetivo de basileus, Imperador, e significa imperial igreja. 8 A questão de disputas sobre o território entre o Estado e a Igreja, chamada Questão Romana só terminou em Fevereiro de 1929, quando o ditador fascista Benito Mussolini e o Papa Pio XI assinaram o Tratado de Latrão, pelo qual a Itália reconhece a soberania da Santa Sé sobre o território do Vaticano, declarado Estado soberano, neutro e inviolável.
18
Até a Idade Média houve forte hegemonia do cristianismo, que se fazia
presente seja pelas cruzadas, pelo número significativo de mosteiros e o surgimento
de diversas ordens religiosas, mendicantes, contemplativas, monásticas ou aquelas
que interagiam diretamente com a sociedade.
A Igreja Católica, no mundo ocidental, era considerada como o verdadeiro elo
entre o homem e Deus. Era referência moral e espiritual para aqueles que criam e
experimentavam, por meio dela, a sua relação com o sagrado e o alívio para as
dificuldades terrenas. Mas justamente por ter se expandido tanto pelo mundo, o
cristianismo não conseguiu ficar imune às suas vicissitudes.
A Igreja Católica na passagem do século XV para o século XVI é a Igreja do
Renascimento, a volta aos padrões clássicos, da exaltação do belo e também o
“período do neo-paganismo, da ‘mundanização’ da Igreja, do domínio do material
sobre o interesse espiritual” (RUBERT, 1981, p. 22).
Pela centralização da figura do homem e do mundo, o conceito de sagrado
perde sua primazia. Alguns papas do período renascentista se deixaram levar por
este pensamento, se entregando aos apelos do mundo de riquezas e ostentações.
Não eram mais encarados como referência espiritual, mas como autoridade
governamental.
Nesse meio tempo, Portugal e Espanha avançavam no domínio da tecnologia
das navegações, permitindo-lhes ultrapassar cada vez mais os limites do mundo
conhecido, o que deflagrou uma disputa pelo direito de ocupar as novas terras.
Em 1456 a Igreja Católica e a Coroa Portuguesa estreitaram suas relações
através da bula Inter Coetera, do papa Calisto III, que concedia a Ordem de Cristo,
pelos merecimentos na propagação e defesa da fé católica, amplos privilégios de
Padroado, exercendo jurisdição espiritual sobre as terras que viessem a ser
descobertas pelos portugueses.
No ano do descobrimento da América, por Cristóvão Colombo, mais uma vez
a íntima relação Estado-Igreja se fez presente. Para evitar maiores conflitos, os
governos de Portugal e Espanha solicitam ao papa Alexandre VI9, em 1493, que
redigisse um documento estabelecendo os limites de ocupação do novo território.
Nessa bula10 papal intitulada Inter Coetera, ficava estabelecido que as terras
__________________ 9 Alexandre VI era espanhol da família Borja, sobrinho do papa Calisto III, pai de Lucrecia Borja. O seu pontificado foi de 1492 a 1503. 10 Bula: Na Igreja Católica Apostólica Romana carta pontifícia de caráter especialmente solene.
19
situadas até 100 léguas a partir das ilhas de Cabo Verde seriam de Portugal e as
que ficassem além dessa linha seriam da Espanha.
Temendo a Coroa Portuguesa ter sido prejudicada no acordo, convence o
governo espanhol a aceitar a revisão desses limites de 100 para 370 léguas a oeste
de Cabo Verde, ficando as terras a oeste dessa linha para a Espanha. Alexandre VI
elabora o célebre Tratado de Tordesilhas (Mapa 2) que é assinado por ambos os
países em 1494, na cidade espanhola que leva seu nome.
20
MAPA 2
TRATADO DE TORDESILHAS
Fonte: www.igeo.ufrj.br/fronteiras/mapas/tordesilhas.gif . Acesso em 24/02/2008.
21
Como foi visto anteriormente, na passagem da Idade Média para o
Renascimento a autoridade papal estava em crise. O comportamento de diversos
papas já não condizia com a sua posição de chefe da Igreja.
No seio da própria Igreja havia um desejo de mudança, de uma reforma
espiritual, sempre postergada de um Concílio para o outro. O Concílio de Latrão
(1512-1517) foi convocado nesse sentido, para discutir algumas questões
pungentes, tais como a reforma da Cúria Romana e da Igreja, a acumulação de
cargos e da convocação de concílios e definir a imortalidade da alma (CECHINATO,
1996). Porém, o papa Júlio II faleceu durante o Concílio e o assunto ficou pendente.
Teria sido uma boa oportunidade para discutir algumas mudanças que se faziam
necessárias à Igreja naquele momento.
Já havia na Europa uma situação favorável à Reforma Protestante, que vinha
sendo preparada por nomes como o do teólogo leigo Marsílio de Pádua (Itália,
1326), pelos sacerdotes John Wyclef (Inglaterra, 1382) e Jan Hus (Tchecoslováquia,
1415) que apresentavam críticas ao sistema vigente, tais como: diminuição do poder
papal, participação dos leigos, rejeição de alguns sacramentos, abolição da prática
de culto às imagens, dentre outros. Suas idéias mais do que tentar reformar a
religião, ameaçavam o poder e os privilégios da nobreza e, por isso, foram
esmagadas não só pela Igreja como pelas autoridades laicas (HUBERMAN, 1974).
Em 1517, um padre agostiniano alemão chamado Martim Lutero iniciou um
embate dentro da Igreja Católica, que tinha como foco principal, dentre outras
questões, a “venda” de indulgências. Lutero tornou públicas suas idéias afixando
noventa e cinco teses contra as indulgências na porta da igreja do castelo de
Wittenberg, na Alemanha.
Embora se tratasse de um assunto interno da Igreja, Lutero acabou por
deflagrar a insatisfação de boa parte da monarquia européia que não via com bons
olhos o fluxo de dinheiro de seus países para Roma. Da mesma forma, monges e
sacerdotes aderiram às idéias protestantes, insatisfeitos com os rumos que a Igreja
Católica tomava.
Lutero foi excomungado em janeiro de 1521 pelo papa Leão X na bula Decet
Romanum Pontificem. Rompendo definitivamente suas ligações e obrigações de
sacerdote da Igreja Católica fundou a igreja luterana e traduziu a Bíblia para o
alemão. Apelava para o sentimento nacionalista de seus adeptos que coincidia com
os interesses do nascente Estado nacional contra a autoridade papal. E,
22
professando que a bíblia poderia ser lida e interpretada livremente, ocasionou o
surgimento de diversas denominações protestantes que se multiplicariam ao longo
dos séculos seguintes.
A primeira denominação a surgir foi liderada por Thomas Münzer (1521),
sacerdote católico apóstata. Essa denominação protestante ficou conhecida como
anabatistas, pois rebatizavam os adultos, acreditando que o verdadeiro batismo só
tem valor quando as pessoas se convertem conscientemente a Cristo.
A Reforma Protestante ganhou adeptos também na Suiça alemã por
intermédio do teólogo suíço Ulrico Zwingli (1523) e na Suíça francesa pelas mãos do
teólogo francês João Calvino (1533), reformador mais conhecido depois de Lutero.
Calvino fez de Genebra o centro de suas atividades. O cerne de sua pregação era a
predestinação absoluta, isto é, a pessoa já nascia predestinada a ser salva ou
condenada, independente de seus atos.
Suas idéias não tardaram a chegar a França, onde os calvinistas eram
chamados de huguenotes. Era basicamente uma seita política. Na Escócia, os
calvinistas foram organizados por Knox e se chamaram “presbiterianos, porque sua
igreja não tem bispos, apenas presbíteros” (CECHINATO, 1996, p. 250).
Huberman (1974) afirma que a Reforma Protestante, em essência, constituiu
a primeira batalha decisiva da nova classe média contra o feudalismo. Enfim, por
suas idéias virem ao encontro dos anseios de príncipes e intelectuais, o
protestantismo se espalhou rapidamente por todo o continente europeu, com menos
intensidade na Itália, Portugal e Espanha. Conseqüentemente, a partir de então, os
conflitos entre católicos e protestantes se acirraram em toda Europa, particularmente
na França.
1.3 - A Reforma Católica
No fim da Idade Média, os conventos também estavam em profunda crise.
Por ocasião da Reforma Protestante, muitos monges se casaram e passaram para o
lado de Lutero. Porém, foi exatamente nos mosteiros que se iniciou a renovação da
Igreja Católica. Antes do Concílio de Trento surgiram diversos institutos religiosos,
entre eles o dos Capuchinhos (1525), Ursulinas (1535) e os Jesuítas (1540), que já
haviam iniciado seu trabalho de evangelização dos povos.
23
A Reforma Católica, mais conhecida como Contra-Reforma se deu
oficialmente no Concílio de Trento, convocado pelo Papa Paulo III e que durou 18
anos (1545-1563), em decorrência de algumas guerras. A seção III das constituições
desse Concílio inicia afirmando o objetivo do mesmo:
Este sacrossanto Concílio Ecumênico e Geral de Trento, legitimamente reunido no Espírito Santo, [...], tendo em vista a importância das coisas a serem tratadas, principalmente daquelas que estão contidas nestes dois pontos: a de extirpar as heresias e a de reformar os costumes, motivo principal de estar reunido [...]11
Neste Concílio foram definidos temas cruciais para a doutrina da Igreja
Católica, tais como o símbolo da crença cristã católica, definição do cânon da
Sagrada Escritura, a doutrina da justificação, confirmação dos sete sacramentos
(Batismo, Confirmação, Eucaristia, Reconciliação, Unção dos Enfermos, Ordem e
Matrimônio). Decretou também medidas disciplinares tais como: obrigação que o
bispo residisse em sua diocese, proibindo o acúmulo de mais de um cargo
eclesiástico nas mãos de um só titular e estabelecimento de normas rígidas para a
formação do clero nos seminários. A constituição hierárquica da Igreja também foi
definida pelo Concílio Tridentino contra a tese de Lutero que sustentava não haver
outro sacerdócio além do sacerdócio comum dos fiéis.
Enfim, o Concílio de Trento elucidou e consolidou a doutrina católica em
todos os pontos ameaçados pela Reforma Protestante, tendo sido a base de
renovação do clero e do povo católico.
Na Península Ibérica a reforma estava na vanguarda, por iniciativa de alguns
bispos, cardeais e religiosos como Teresa de Ávila12 e João da Cruz12. Os reis, como
grãos-mestres das Ordens Militares, cuidavam de apresentar homens mais aptos
para os principais cargos da Igreja do Reino e Ultramar. Isso, porém, não impediu
que se misturassem interesses terrenos com espirituais.
Uma Igreja Católica em processo de reforma estava surgindo e com um
_____________ 11 Disponível na íntegra em http://www.universocatolico.com.br/content/category/2/36/3. Acesso em 24/02/2008. 12 Teresa d´Ávila e João da Cruz foram religiosos carmelitas que insatisfeitos com os rumos da vida monástica nos seus conventos efetuaram a reforma da Ordem do Carmo. Foram declarados santos da Igreja Católica nos anos de 1662 e 1726, respectivamente. Também Teresa de Ávila recebeu o título de Doutora da Igreja cerca de quatro séculos após sua morte, em 1970, e João da Cruz em 1926.
24
imenso desafio pela frente: evangelizar em novas terras, campo de ação intacto,
desconhecido, exótico, e com a mentalidade presa ao conceito de superioridade do
“Velho Mundo” sobre o “Novo”.
1.4 – O estabelecimento da Igreja no Brasil
A história da Igreja Católica no Brasil começa no ano de 1500, quando
chegam aqui as naus portuguesas com suas velas ostentando a cruz da Ordem de
Cristo, que patrocinou a expedição, com a anuência de D. Manuel, rei de Portugal,
Grão-Mestre da Ordem.
A Ordem de Cristo, ou Ordem da Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo foi
constituída com os fundos da riquíssima e extinta Ordem dos Templários. Esta era
uma dentre muitas Ordens Militares surgidas na época das Cruzadas, composta
principalmente por militares, geralmente leigos, sujeitos aos votos religiosos de
pobreza, castidade e obediência, que seguiam uma regra de vida aprovada pela
Santa Sé. Ao longo dos anos a Ordem dos Templários acumulou riquezas e bens
que foram cobiçados pelo rei Filipe IV, da França. Este pressionou o papa Clemente
V que decretou a suspensão administrativa da Ordem em 1312. Em Portugal, o rei
D. Diniz querendo aproveitar os bens da extinta Ordem, criou no ano de 1313 a
Ordem de Cristo, com sede em um castelo templário, na cidade de Tomar.
Como dito anteriormente, foi no ano de 1456 que a Ordem de Cristo recebeu
amplos privilégios de Padroado passando a exercer jurisdição espiritual sobre as
terras que viessem a ser descobertas. A partir desse momento a Igreja Católica e a
Coroa Portuguesa estabeleceram relações baseadas no jus patronatus:
O Jus patronatus (Direito de Padroado) é uma praxe canônica oriunda do direito Germânico, segundo a qual, por concessão pontifícia, os fundadores de igrejas dispunham da pregorrativa especial de apresentarem os ministros das igrejas à autoridade religiosa para a devida confirmação, e de receberem os dízimos das respectivas igrejas. [...] Porém, se lhes tocava exercer alguns direitos na área religiosa, cumpria-lhes erigir e dotar dioceses e paróquias, edificar templos, designar e subsidiar ministros e funcionários para o culto, incrementar missões entre os indígenas e manter os missionários. [...] (LIMA, 2004, p. 23).
Embora a jurisdição espiritual tenha sido concedida ao Prior de Tomar, cidade
portuguesa sede da Ordem de Cristo, o rei ao assumir a função de Grão-Mestre
25
acabou por se tornar extra-oficialmente o chefe da Igreja no que diz respeito à
missão evangelizadora nas terras a serem descobertas.
A chegada dos portugueses ao Brasil, imbuídos pelo espírito de aventura,
coragem e religiosidade é marcada por símbolos religiosos, expressão da fé
dominante à época. Fato facilmente comprovado pelos nomes com que iam
“batizando” os lugares por onde passavam: Monte Pascoal, Ilha de Vera Cruz, Terra
de Santa Cruz... A tripulação contava com dezessete religiosos, nove padres
seculares e oito frades franciscanos13, dentre os quais, frei Henrique de Coimbra,
capelão-mor, que celebrou a Primeira Missa a 26 de abril de 1500.
O Estado controlou as atividades da Igreja na colônia por meio do jus
patronatus. Pelo acordo do Padroado a missão primeira seria a de evangelizar os
habitantes da terra descoberta. Com isso a expansão pelo novo território luso se deu
através das missões com o objetivo inicial de catequizar os índios. Hoonaert (1977,
p. 211) argumenta que “os movimentos missionários são ligados aos movimentos
colonizadores e constituem a expressão simbólica destes”.
De acordo com Rubert (1981) missionários religiosos e do clero secular se
misturavam nas diferentes conquistas portuguesas, mas a documentação atesta
basicamente a ação missionária de frades, monges e jesuítas. Os nomes dos freis
franciscanos que viajavam com Cabral foram identificados, mas não foi possível
localizar, nas fontes consultadas, os nomes dos padres seculares presentes na
mesma viagem, apenas que tinham como superior o vigário14 destinado a Calecute,
na Índia.
O período que compreende a chegada dos portugueses ao Brasil até o
estabelecimento das Capitanias, é caracterizado por poucos registros, sejam da
história política como da religiosa. Os sacerdotes Francisco Garcia (espanhol) e
Francisco de Lemos (português) são os dois primeiros padres diocesanos
nominalmente conhecidos que exerceram seu ministério no Brasil até o ano de 1530
(RUBERT, 1981).
______________________ 13 Rubert (1981) cita além do frei Henrique os demais integrantes religiosos da tripulação: Fr. Gaspar, Fr. Francisco da Cruz, Fr. Luís do Salvador e Fr. Simão de Guimarães, todos pregadores e letrados; Fr. Mafeu, sacerdote, músico e organicista; Fr. Pedro Neto, corista, ainda não sacerdote e Fr. João da Vitória, irmão leigo. 14 De acordo com Rubert (1981, p. 32) é muito provável que esse sacerdote seja o Pe. João Fernandes, primeiro vigário de Cochim.
26
Até 1514, exerceu jurisdição eclesiástica sobre o Brasil o vigário de
Tomar (cidade portuguesa, sede da Ordem de Cristo). Com a instituição do Bispado
de Funchal (cidade portuguesa, ilha da Madeira) neste ano, fica incluído o Brasil na
jurisdição da nova diocese.
Quando se estabeleceram as feitorias como forma de ocupação das terras
brasileiras, existia assistência religiosa nas primeiras e rústicas capelas construídas.
Porém, até 1532 não houve presença marcante de religiosos no Brasil. Estes vieram
mais a serviço das expedições do que para a evangelização dos nativos.
Com a expedição de Martim Afonso de Souza, entre os anos de 1530 e 1532,
tendo como um de seus objetivos estabelecer núcleos de povoamento ao longo do
litoral brasileiro, chegou ao Brasil o padre Gonçalo Monteiro, capelão dos
expedicionários. Acompanhou Martim Afonso em toda a viagem, passando pelo Rio
de Janeiro e seguindo para a fundação de São Vicente, primeira Vila do Brasil
(1532). Teria sido o primeiro sacerdote a se fixar em terras brasileiras, antes mesmo
da criação das Paróquias, tornando-se extra-oficialmente o primeiro pároco do
Brasil. A paróquia de São Vicente só foi oficializada pela Corte após a fundação da
capitania.
Dessa mesma época data a criação por D. João III de um conselho
denominado Mesa da Consciência, com o intuito de tratar de assuntos ligados à
administração política e religiosa das colônias que exigiam decisões reais. Hoonaert
(1979, p. 164) descreve:
A Mesa funcionava como uma espécie de departamento religioso do Estado, ou em outros termos, como uma espécie de ministério de culto. Constava de um tribunal composto de um presidente e cinco teólogos deputados juristas.
Quando em 1551 foi incorporado à Coroa o mestrado das três Ordens
Militares (Santiago, Avis e de Cristo), passa a ser denominado Mesa da Consciência
e Ordens. Este conselho ampliou suas funções passando a julgar matérias e
processos relacionados, além da Igreja Ultramar, também aqueles das igrejas do
Reino sob o padroado das Ordens militares e seus membros, tais como prover
cargos eclesiásticos, administrar os bens das Ordens, examinar propostas de novas
circunscrições eclesiásticas, entre outros.
27
Foi a partir de 1534, ano da adoção do regime de Capitanias, que a Igreja se
fixou definitivamente no território brasileiro. Os colonos católicos vindos de Portugal
solicitavam assistência religiosa que tinham na pátria. O rei D. João III, filho de D.
Manuel, como Grão-Mestre da Ordem de Cristo, detentor dos dízimos eclesiásticos,
se obrigava a favorecer as ações da Igreja, pagando a côngrua (sustento do pároco)
e criando novas paróquias. É do mesmo ano a bula Aequum reputamus do papa
Paulo III que elevou Funchal à categoria de Arquidiocese. Desta forma as primeiras
freguesias do Brasil se tornaram paróquias, oficialmente.
Com a implantação do 1º Governo Geral com sede na cidade de São
Salvador, na Bahia, chegou acompanhando o Governador Geral Tomé de Souza, o
primeiro grupo de jesuítas requisitados por D. João III para a evangelização dos
gentios, tendo como superior o pe. Manuel da Nóbrega. Ele foi enviado ao Brasil por
ordem do padre Simão Rodrigues, primeiro Provincial da Ordem em Portugal (1546).
Devido à distância da Sé de Funchal, à necessidade de um bispo presente no
continente para regular a atividade do clero e sistematizar a ação evangelizadora, e
por insistência do padre Manuel da Nóbrega foi autorizada por D.João III a criação
do primeiro bispado do Brasil, com sede em Salvador no ano de 1551. O rei dirigiu-
se ao papa Júlio III que através da bula Super specula militantis Ecclesiae de 25 de
fevereiro de 1551 criou a nova diocese que tinha como área de jurisdição todo o
território brasileiro. A bula citava a presença do clero com 25 ou 30 sacerdotes
diocesanos acompanhados por 10 jesuítas. O primeiro bispo do Brasil foi D. Pedro
Ferandes, que chegou ao Brasil em maio de 1552. Lima (2004) aponta que até essa
data já haviam sido implantadas dez paróquias no Brasil, como demonstrado no
Quadro 2.
28
Quadro 2 – Paróquias no Brasil até 1551
PARÓQUIA ANO
São Vicente 1532
Olinda 1534
Igaraçu 1535
Porto Seguro 1535
Itamaracá 1536
Espírito Santo 1541
São Jorge 1545
Santos 1549
Salvador 1549
Santo Amaro 1550
Elaborado por Claudia Teixeira, a partir de Lima (2004, p. 26-27).
29
Com o passar do tempo, devido ao aumento da população das Capitanias do
Sul, a conversão dos indígenas e a longa distância que separava o Bispo na Bahia
do Rio de Janeiro, foi criada em 1575 a Prelazia do Rio de Janeiro pela bula In
supereminenti do papa Gregório XIII. O termo “prelazia nullius” significa dizer que a
autoridade maior é o prelado, que obtém os direitos e honras de um bispo,
eclesiasticamente subordinado ao Papa. Excetuam-se de tais poderes a ordenação
de diáconos, sacerdotes e bispos. A jurisdição dessa Prelazia compreendia a região
desde Porto Seguro até o rio da Prata.
O rei de Portugal, D. Sebastião, nomeia, em 1577, o padre Bartolomeu
Simões Pereira como o primeiro administrador eclesiástico com sede na cidade do
Rio de Janeiro. Chegou com o governador Salvador Correa de Sá, em 1578. Foi na
sua gestão (1577-1597) que se estabeleceram no Rio de Janeiro três importantes
Ordens Religiosas: os beneditinos, carmelitas e franciscanos.
No ano de 1676 foi erigida a diocese do Rio de Janeiro, por intermédio da
bula Romani Pontíficis pastoralis sollicitudo, do papa Inocêncio XI.
1.5 - As Ordens Religiosas
De acordo com o Decreto Perfectae Caritatis, um dos documentos elaborados
no Concílio Vaticano II, publicado em 1965, as Ordens Religiosas existiram desde os
primórdios da Igreja, através de:
Homens e mulheres que se propuseram pela prática dos conselhos evangélicos seguir a Cristo com maior liberdade, e imitá-lO mais de perto, e levaram, cada qual a seu modo, vida consagrada a Deus. Dentre eles, muitos, por inspiração do Espírito Santo, ou passaram a vida na solidão ou fundaram famílias religiosas, que a Igreja de boa vontade recebeu e aprovou com a sua autoridade. Surgiu assim, por divina providência, uma admirável variedade de grupos religiosos a qual muito contribuiu para que a Igreja não apenas esteja aparelhada para toda obra boa e organizada para as atividades do seu ministério em vista da edificação do Corpo de Cristo, mas apareça também ornamentada com os vários dons de seus filhos, como uma esposa adornada para seu esposo e por ela se manifeste a multiforme sabedoria de Deus.15
______________ 15 In: Compêndio do Vaticano II, p. 487.
30
Dessa forma, esse documento ratifica o surgimento das ordens religiosas
como imitação da maneira de viver das primeiras comunidades cristãs. E segue
afirmando que: Numerosíssimos são na Igreja os institutos, clericais e laicais, que se dedicam às diversas obras de apostolado que possuem dons diversos, segundo a graça que lhes foi outorgada: seja serviço quando servem, seja doutrina quando ensinam, seja exortação quando exortam, seja sem cálculo quando colaboram, seja irradiando alegria quando se compadecem16.
As ordens religiosas são parte integrante da Igreja Católica, ainda que
tenham autonomia própria para que cada instituto cultive o seu carisma.
O clero pertencente a uma ordem religiosa é denominado de clero regular, ou
seja, aqueles que vivem em comunidades religiosas e que se submetem a uma
Regra de Vida, geralmente escrita pelo próprio fundador da Ordem, dentro dos
preceitos da Igreja Católica. Cada uma das ordens religiosas possui o seu carisma,
ou o seu modo de atuação junto à sociedade. Os Franciscanos seguem o carisma
da pobreza, os Dominicanos o carisma da pregação, os Carmelitas seguem o
carisma de Teresa de Ávila e João da Cruz, com ênfase na contemplação e na ação,
os Jesuítas têm um carisma voltado para trabalhos de evangelização e de estudo
teológico. Existem, ainda, as Ordens contemplativas, todas elas derivadas da Regra
de São Bento, cujo propósito na vida é viver em clausura, em contemplação.
Em todas as Ordens são exigidos os votos de pobreza, obediência e
castidade. Conseqüentemente, seus membros não podem possuir bens de
propriedade privada: ao ingressar em uma Ordem, o noviço abandona tudo,
inclusive o direito de herança familiar e passa a viver exclusivamente do que a
Ordem trabalha para sobreviver. Cada ordem tem seu Superior que reside em Roma
e se reporta diretamente ao Papa.
Ao contrário do clero regular, os padres diocesanos, não fazem voto de
pobreza e podem ter bens, viverem do próprio trabalho e só estão submetidos ao
Bispo da sua cidade.
_____________ 16 Idem, p. 492.
31
Para efeito desse estudo relativo à formação urbana da cidade do Rio de
Janeiro, serão mencionadas as Ordens Religiosas que exerceram papel
fundamental neste processo, determinando os primeiros núcleos de ocupação da
cidade. São reconhecidas por Hoonaert (1979) como as ordens “clássicas” do
período português: Companhia de Jesus (Jesuítas), Ordem do Carmo (Carmelitas),
Ordem de São Bento (Beneditinos) e Ordem dos Frades Menores (Franciscanos).
Elas serão apresentadas por ordem de chegada à cidade do Rio de Janeiro.
1.5.1 Companhia de Jesus (Jesuítas)
A Companhia de Jesus foi fundada por Inácio de Loyola (1491-1556),
pertencente a uma família da nobreza basca. Teve uma educação militar e
cavalheiresca. No ano de 1534, estudando na Universidade de Paris, junto com um
grupo de amigos decidiu fundar uma Ordem Religiosa, intitulada Companhia de
Jesus cujo lema é Ad majorem Dei Gloriam – “Para maior Glória de Deus”. Seus
membros são tidos como “soldados de Cristo”, daí o nome Companhia de Jesus.
Esta foi aprovada pelo papa Paulo III no ano de 1540 através da bula Regiminis
militantis Ecclesiae. A espiritualidade da Ordem é baseada no livro escrito por Inácio
de Loyola conhecido como “Exercícios Espirituais”. As idéias defendidas pelo autor
levaram-no a ser preso duas vezes em Alcala e Salamanca, vítima de suspeitas da
Inquisição, que no tempo da Reforma Protestante olhava com desconfiança
qualquer novo movimento espiritual. O objetivo dos Exercícios Espirituais é descrito
pelo próprio Inácio:
Pois, assim como passear, caminhar e correr são exercícios corporais, da mesma forma se dá o nome de exercícios espirituais a todo e qualquer modo de preparar e dispor a alma para tirar de si todas as afeições desordenadas e, afastando-as, procurar e encontrar a vontade divina, na disposição da vida para a salvação da alma (LOYOLA, 1966, p. 13-14).
Além dos votos de castidade, obediência e pobreza, os jesuítas fazem voto
de total obediência ao Papa, colocando-se à disposição dele como “milícia” da
Igreja. Possuem uma disciplina austera, se dedicando profundamente aos estudos.
O carisma da Ordem é o serviço da fé, e se destacaram principalmente por seu
32
trabalho missionário e educacional. Os jesuítas não possuem Ordens Segundas ou
Terceiras.
Nos reinos espanhóis, de onde procedia a maior parte dos primeiros
membros da Companhia nem Carlos V, nem seu sucessor Felipe II incentivaram o
trabalho dos inacianos (TERRA, 2000). Foi em Portugal que os jesuítas receberam
apoio significativo da parte de D.João III e rapidamente se expandiram com Colégios
em Lisboa (1541) e Coimbra (1542). O rei solicitou a Inácio de Loyola missionários
que viessem se instalar no Brasil (LIMA, 2004).
1.5.1.1 A Companhia de Jesus no Brasil/Rio de Janeiro
O primeiro grupo de jesuítas chegou ao Brasil com o Governador-Geral,
Tomé de Souza, em 1549. Eram quatro padres: o superior dos missionários Manoel
da Nóbrega, Leonardo Nunes, Antônio Pires, João de Aspilcueta Navarro; e dois
irmãos que viriam a ser ordenados posteriormente: Vicente Rodrigues e Diogo
Jácome.
O padre Manoel da Nóbrega nasceu em Portugal em 1517. Graduou-se em
Direito Canônico e Filosofia pelas universidades de Salamanca e Coimbra. Foi
ordenado padre da Companhia de Jesus no ano de 1544. No Brasil exerceu um
papel singular por ter participado ativamente na fundação das cidades de Salvador e
do Rio de Janeiro. As cartas redigidas por ele ao seu Provincial em Portugal Simão
Rodrigues são reconhecidas como documentos históricos sobre o Brasil colonial e a
ação dos jesuítas no século XVI. Entre seus escritos mais valiosos estão “Diálogos
sobre a conversão do gentio” (1554) e “Cartas do Brasil” (1549-1570). Estimulou a
conquista do interior, ultrapassando e penetrando além da serra do Mar.
A pedido do padre Manoel da Nóbrega foi fundado o primeiro bispado do
Brasil, a diocese de Salvador, na Bahia, criada em 1551. Auxiliou Mem de Sá na
expulsão dos franceses do Rio de Janeiro. Foi diretor do Colégio Jesuíta do Rio de
Janeiro e esteve com o padre José de Anchieta na fundação do Colégio, em São
Paulo (1554). Morreu no Rio de Janeiro, aos 53 anos, em 1570 (CECHINATO,
1996).
Os jesuítas, para evangelizar os índios, utilizaram o sistema de aldeamentos,
julgando dessa forma lhes proporcionar catequese eficaz e duradoura. Certamente,
havia nessa iniciativa uma tentativa de atraí-los para hábitos ditos “civilizados”, como
33
se fixar à terra e habituar-lhes ao trabalho. Porém, esses aldeamentos logo se
tornaram uma ameaça aos indígenas, que se transformaram em presas fáceis para
os colonos que pretendiam escravizá-los. Tal ameaça impelia os jesuítas a buscar
regiões cada vez mais afastadas dos “centros coloniais”. As principais aldeias
jesuíticas se localizaram na Bahia, no Espírito Santo, no planalto de Pirapitinga e no
Rio de Janeiro.
De 1549 até 1580 era a Ordem mais atuante no Brasil, sendo a única no Rio
de Janeiro desde 1565. A situação mudou quando Portugal se integra a União
Ibérica, após a morte do rei D. Sebastião, que não deixou descendência. O Brasil
enquanto colônia ficou sob o domínio espanhol, tendo Felipe II como monarca, que
conforme dito anteriormente, não era muito simpático à Companhia de Jesus.
Portanto, outras Ordens Religiosas foram enviadas paulatinamente à Colônia.
1.5.2 – Ordem de São Bento (Beneditinos)
No Ocidente o principal introdutor do monasticismo foi Bento de Núrsia (480 –
547), considerado Patriarca do Monasticismo Ocidental. Nascido na Itália estudou
em Roma desde jovem, tendo decidido, posteriormente, mudar-se para as
montanhas e grutas de Subiaco, onde viveu como eremita durante vários anos.
Fundou doze comunidades monásticas desenvolvendo conjuntos de regras de vida
para os monges (529), hoje conhecidas como Regras de São Bento, cujo princípio
fundamental é ora et labora, ou seja, reza e trabalha. A regra de São Bento foi
adaptada por muitos monges do Ocidente, se tornando a base da vida monástica.
A irmã de Bento, Escolástica, influenciada por sua maneira de viver,
ingressou em um mosteiro que posteriormente adotou a Regra de São Bento para
as mulheres, conhecidas como monjas beneditinas. Contam também com homens e
mulheres solteiros ou casados que se associam a uma comunidade Beneditina
vivendo a espiritualidade da Regra no meio da sociedade e são denominados
oblatos. Não se pode afirmar com exatidão a data da introdução da Regra Beneditina
em Portugal, sabe-se que os beneditinos se estabeleceram no país no final do
século XI. Depois do Concílio de Trento (1563), após algumas tentativas de reforma,
o rei D. Sebastião incentivou a reformação monástica. O Papa Pio V, com bulas de
1566 e 1567, executadas pelo Cardeal D. Henrique, instituiu a Congregação dos
34
Monges Negros de S. Bento dos Reinos de Portugal. A partir do Mosteiro de Tibães,
regido pelo Abade Geral, a Congregação fundou mosteiros em Lisboa, Santarém e
Porto, além de reformar alguns dos já existentes, contando com 22 abadias na
Metrópole, estendendo-se para o Brasil.
Os Beneditinos foram, ao longo do tempo, monges simples, dedicados à
agricultura, desenvolvendo um trabalho incansável no campo da produção agrícola.
Porém, a congregação contou também com monges de grande capacidade
intelectual, quer no ramo das Ciências Exatas quer no ramo Humanístico, onde se
destacaram monges escultores, arquitetos, pintores, escritores e músicos.
1.5.2.1 A Ordem de São Bento no Brasil/Rio de Janeiro
Desde 1575, monges beneditinos portugueses foram enviados às terras
brasileiras para avaliar a possibilidade concreta da fundação de um mosteiro em
terras de além mar. O local indicado seria a Cidade de São Salvador da Bahia.
Os monges fundadores, em número de nove, chegaram à Bahia na Páscoa
de 1581, oriundos do Mosteiro de São Martinho de Tibães, Casa Geral da
Congregação lusitana, fixando-se num terreno fora da cidade, onde já havia uma
pequena ermida dedicada a São Sebastião. No ano de 1584, o Mosteiro construído
foi elevado à condição de Abadia, circunscrição eclesiástica sob a jurisdição de um
abade, equivalente a de um bispo diocesano, e foi denominado São Sebastião da
Bahia, mas, popularmente, ficou conhecido como Mosteiro de São Bento da Bahia.
Os beneditinos vindos da Bahia chegaram ao Rio de Janeiro em 1586 e se
instalaram primeiramente na ermida de Nossa Senhora do Ó, na atual Praça XV, se
transferindo em 1590 para as terras doadas por Manuel de Brito de Lacerda, onde
fundaram o Mosteiro Beneditino do Rio de Janeiro. Ainda em 1596, no Capítulo
Geral da Congregação, o Mosteiro foi elevado à categoria de Abadia. A abadia
territorial é equiparada a uma Igreja particular. Chamava-se antigamente abadia
nullius, não pertencente ao território de nenhuma diocese. Hoonaert (1979, p. 56)
afirma que “a Ordem Beneditina no Brasil foi pouco missionária, pois se dedicava
antes a vida contemplativa”.
A Ordem Segunda composta por monjas chegariam muito tempo depois, no
ano de 1911, instalando-se inicialmente em São Paulo e posteriormente em diversas
cidades do Brasil.
35
1.5.3 – Ordem do Carmo (Carmelitas)
A Ordem dos Irmãos da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo,
ou Ordem do Carmo, foi uma das ordens mendicantes surgida na Idade Média,
provavelmente entre os anos de 1153 a 1159, formada por cruzados leigos que
chegaram ao Monte Carmelo, em Israel, onde acreditavam ser o local de habitação
do profeta Elias. Procuraram, a partir daí, viver uma vida de eremitas, aos moldes do
profeta do Antigo Testamento. A Regra da Ordem foi ditada por Alberto de
Jerusalém e só no ano de 1216 foi reconhecida pelo papa Honório IV através da
bula Ut vivendi norman. Devido à perseguição dos islamitas na Terra Santa seus
membros foram encorajados a voltar a seus países de origem na Europa. O carisma
da Ordem, de eremita passou a ser mendicante.
Chegaram a Portugal como Capelães dos Militares de São João de
Jerusalém, onde receberam um convento em Moura. Estabeleceram-se em Lisboa
no século XIV no recém construído convento do Carmo. Porém, no início do século
XVI pelo fato de terem se dispersado pela Europa, perdendo a essência do seu
carisma inicial, a Ordem encontrava-se em situação lastimosa. Os religiosos
espanhóis Teresa de Ávila e João da Cruz iniciaram o movimento de reforma. Houve
cisão na Ordem após o Concílio de Trento: os reformadores foram denominados
Carmelitas Descalços; os demais chamados de Carmelitas Calçados ou da Antiga
Observância.
Os carmelitas possuem Ordem Segunda e Ordem Terceira e diversas
Confrarias do Escapulário do Carmo.
1.5.3.1 Ordem do Carmo no Brasil/Rio de Janeiro
Foram os Carmelitas Calçados, representados por quatro religiosos que
chegaram ao Brasil junto com a expedição de Frutuoso Barbosa, que após uma
tentativa frustrada de atracar na Paraíba provavelmente devido a um temporal,
desembarcaram na cidade de Olinda em 1580, onde fundaram seu primeiro
convento provavelmente no ano de 1584.
Os carmelitas chegaram à cidade do Rio de Janeiro, vindos da cidade de
Santos no ano de 1590, e lhes foi oferecido o Morro de Santo Antônio, onde já
existia uma ermida com o nome do santo. Preferiram ocupar uma antiga ermida na
36
várzea na região conhecida como Nossa Senhora do Ó, onde posteriormente foram
construídas a igreja e o convento. Não se dedicaram às missões junto aos índios,
mas exerceram os ministérios ordinários junto à população branca.
A Ordem Segunda se estabeleceu no Rio de Janeiro no ano de 1750 com a
construção de um convento no atual bairro de Santa Teresa.
1.5.4 – Ordem dos Frades Menores (Franciscanos)
São Francisco de Assis (1181 - 1226), provavelmente é um dos santos mais
conhecidos e populares. Por seu amor e respeito à natureza é considerado o
patrono dos animais e do meio-ambiente. Seu estilo de vida simples foi imitado por
milhares de pessoas e, ainda hoje, é exemplo para diversos jovens, inclusive no
Brasil.
Nasceu na Itália, filho de rico comerciante. Na juventude participou da luta
entre Perúgia e Assis, tendo ficado aprisionado por um ano. Tempos depois no
caminho para mais uma empreitada militar decidiu voltar. Iniciou-se sua conversão e
depois de ter dito ouvir do próprio Jesus: "Francisco, vai e reconstrói a minha Igreja
que está em ruínas" iniciou com as próprias mãos a reforma da igrejinha de São
Damião, na sua cidade, que se encontrava em estado de abandono. Provavelmente
naquele momento não percebeu que a igreja que estava a restaurar não era a de
pedras, mas a própria Igreja Católica.
Renunciou aos bens materiais e à herança paterna. Passa a viver da esmola
e caridade da população da cidade, junto com os primeiros irmãos. Sua mensagem
e seu singular modo de vida totalmente voltado aos mais necessitados e doentes
atraíram diversos seguidores.
Fundou a Ordem dos Frades Menores, reconhecida oralmente pelo papa
Inocêncio III, no ano de 1209. Em 1221, com a Bula Solet Annuere, o Papa Honório
III aprovou definitivamente a Regra, documento base, em vigor até hoje.
Em Assis, Francisco fundou em 1212 com Clara de Assis a Segunda Ordem
Franciscana, a das Clarissas. Em 1221, fundou a Terceira Ordem dos Penitentes ou
terciários franciscanos, constituída por homens e mulheres leigos, mesmo casados,
desejosos de testemunhar o espírito de sua mensagem. Assim foi criada a primeira
Ordem Terceira sendo seguida mais adiante pelos dominicanos, agostinianos e
carmelitas.
37
O carisma da Ordem é a pobreza, virtude que Francisco de Assis privilegiava
e que, como se evidencia na Regra, prescrevia aos seus irmãos como condição de
vida. Na pobreza, na humilhação e no sofrimento, ele efetivamente encontrava a
"perfeita alegria". Foi canonizado dois anos após sua morte (1228) pelo papa
Gregório IX.
Os primeiros franciscanos chegaram a Portugal no ano de 1217, seguidos
pelas primeiras clarissas em 1258. As primeiras fraternidades apareceram em
Lisboa, Alenquer, Coimbra e Guimarães. Até 1272 implantaram-se 17 comunidades,
sob a dependência da Província de São Tiago, com sede no norte de Espanha. Em
1407 estabeleceu-se um Ministro da Ordem dos Frades Menores em Portugal.
1.5.4.1 A Ordem dos Frades Menores no Brasil/Rio de Janeiro
Os primeiros missionários a chegar ao Brasil foram os franciscanos que
vieram na esquadra de Cabral. A primeira missa realizada em território americano,
em 26 de abril de 1500, foi celebrada pelo frei franciscano Henrique de Coimbra.
A atuação da Ordem no Brasil foi registrada no ano de 1520 pela tentativa de
dois franciscanos de evangelizar os índios em Porto Seguro. Tempos depois, entre
1538 e 1547 foi a vez de dois membros espanhóis da Ordem atuarem junto aos
índios Carijós de Santa Catarina (RUBERT, 1981). Vários outros episódios avulsos
foram registrados em outros pontos do país sem a fundação de conventos, porém,
as missões junto aos indígenas não se realizavam de forma sistemática.
Em 1584, o governador de Pernambuco, Jorge de Albuquerque Coelho
solicitou ao Geral da Ordem em Portugal, com a permissão do rei Felipe II a
fundação de um convento em Olinda. Foi então criada a Custódia de Santo Antônio
do Brasil. Em 1585, na comemoração da festa de São Francisco de Assis, em 4 de
outubro, foi inaugurado o convento de Nossa Senhora das Neves de Olinda. Na
cidade de São Salvador, capital da Colônia, os franciscanos se instalaram por volta
de 1587.
Chegaram ao Rio de Janeiro em 1592, tendo permanecido por 15 anos na
capelinha de Santa Luzia, construídas por uma irmandade de pescadores. Em 1607
receberam as terras no Morro de Santo Antonio, onde em 1608 iniciaram a
construção do Convento e da Igreja de Santo Antonio. O serviço da Ordem no Rio
de Janeiro privilegiou mais os moradores do que as missões indígenas.
38
A Ordem Segunda se estabeleceu na cidade, em 1750, quando chegaram 4
freiras clarissas da Bahia, fundando o Convento da Ajuda.
Para fins de ilustração foram demonstradas no Quadro 3 as datas da
fundação de cada Ordem e sua chegada a Portugal, ao Brasil e ao Rio de Janeiro.
Quadro 3 – Cronologia das Ordens Religiosas
Ordem Religiosa Data chegada em Portugal
Data chegada ao Brasil
Data chegada ao Rio de Janeiro
Companhia de Jesus (1540)* 1541 1549 1565
São Bento (529) Final séc. XI 1581 1586
Do Carmo (1216)* Séc. XIV 1580 1590
Dos Frades Menores (1209)* 1217 1584 1592
(*) Ano da aprovação da Regra da Ordem pelo Papa.
39
1.6 As Ordens Leigas
No Brasil colonial, além das Ordens Religiosas, verificou-se a atuação
significativa dos leigos através das Ordens Terceiras e Irmandades, ambas de
origem medieval. Elas, através dos serviços de seus fiéis, também foram de valiosa
colaboração na construção e expansão da cidade do Rio de Janeiro.
Essas confrarias eram associações de caráter religioso onde se reuniam os
leigos com interesses afins, inseridos no catolicismo tradicional. De acordo com
Hoonaert (1979, p. 111) “tanto nas irmandades religiosas como nas ordens terceiras,
a participação dos leigos foi muito ampla, limitando-se os frades apenas à orientação
espiritual”.
Na maioria dos casos, as Ordens Terceiras eram compostas por irmãos
leigos, de classe abastada que por devoção e por identificação com o carisma de
uma Ordem Religiosa se organizavam em torno dela colaborando financeiramente
com a construção, ornamentação e manutenção das igrejas.
Até meados do século XVIII apenas duas Ordens Terceiras funcionaram no
Rio de Janeiro: a de São Francisco da Penitência (franciscanos) e a de Nossa
Senhora do Monte do Carmo (carmelitas).
As Irmandades, que advinham das antigas corporações de artes e ofícios da
Idade Média, se agrupavam em torno da devoção a um santo. Tinham cunho
beneficente e de ajuda mútua entre seus integrantes, e se organizavam de acordo
com sua classe social e profissão. Poderiam ser tanto de brancos, ricos ou pobres
quanto de negros, escravos ou libertos. Se houvesse ermida ou capela dedicada a
esse santo, os fiéis da Irmandade se comprometiam a manter o culto e promover a
festa. Se o culto fosse realizado em um pequeno oratório, seriam recolhidos fundos
para a construção do templo.
As Irmandades religiosas também garantiram os meios necessários ao culto
católico sem necessidade de estímulo por parte dos sacerdotes. Esse culto se
materializava em festas e cerimônias religiosas, tais como procissões, festas
devocionais, cortejos fúnebres, que davam vida à sociedade colonial. Cada
Irmandade possuía seu estatuto particular cuja aprovação competia ao rei de
Portugal, na figura de Grão-Mestre da Ordem de Cristo.
Destacaram-se, no período estudado, a Irmandade da Misericórdia, ligada à
Santa Casa, a de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos e
40
as do Santíssimo Sacramento das freguesias da Sé, Candelária, São José e Santa
Rita. Dentre essas Irmandades, a da Misericórdia possuía um caráter assistencial,
além do religioso. Cuidava de pobres, órfãos e enfermos. De acordo com Hoonaert
(1979) no Rio de Janeiro, a Irmandade da Misericórdia veio com o grupo de
fundadores da cidade, por volta de 1565, originários da cidade de Santos. Em 1582
já possuía seu próprio hospital, criado pelo jesuíta José de Anchieta para atender
uma frota que aportou no Rio com inúmeros enfermos.
As Irmandades do Rosário e de São Benedito, bem como a de Santa Efigênia
e Santo Elesbão, de São Domingos de Gusmão e Nossa Senhora da Lampadosa
eram integradas por negros africanos ou nascidos no Brasil e foram de grande
auxílio com relação a alforrias e apoio aos fugitivos.
Cavalcanti (2004, p. 213) relembra que também os pardos (livres e escravos)
por não encontrarem espaço nas diversas irmandades criadas na cidade por negros
e brancos decidiram fundar suas próprias instituições. A primeira delas foi a de
Nossa Senhora do Amparo (1654), seguida nove anos depois pela de Nossa
Senhora da Boa Morte e Assunção, sob a proteção dos frades carmelitas e,
posteriormente a de Nossa Senhora da Conceição (1700).
1.7 A religião protestante no Brasil
Como veremos no capítulo seguinte, a chegada de protestantes ao Brasil, de
acordo com a história oficial, se deu exatamente na Baía de Guanabara onde lhes
foi acenada a liberdade religiosa que não existia na Europa. Esses protestantes, de
denominação calvinista, vieram da França onde conforme dito anteriormente eram
reconhecidos por huguenotes. Sua estadia na cidade não ultrapassou os limites da
ilha onde se instalaram, tendo sido expulsos sem deixar registros de tentativas de
evangelização junto aos índios em terra firme.
Um período de influência protestante mais significativo foi o que ocorreu no
ano de 1630, com a chegada de holandeses calvinistas à capitania de Pernambuco,
tendo se expandido pelo território nordestino por 24 anos. Durante esse período de
dominação, os holandeses, que a partir de 1637 foram liderados pelo conde João
Maurício de Nassau-Siegen, impuseram o conceito calvinista de teocracia, segundo
o qual todos os aspectos da vida particular e pública seriam subordinados aos
mandamentos de Deus. Ofereceram certa liberdade religiosa, inclusive permitindo
41
que judeus construíssem “sinagogas e escolas talmúdicas, sendo as primeiras do
Novo Mundo” (HOONAERT, 1979, p. 139). Os sacerdotes católicos foram privados
de algumas de suas funções, como dar assistência espiritual aos condenados.
Foi um período turbulento para a Igreja Católica no nordeste. Bispos,
sacerdotes e fiéis se envolveram em diversos combates. Data desta época o
“Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda" do
padre Antônio Vieira. Os holandeses retiraram-se definitivamente em janeiro de
1654.
Foi no início do século XIX, com a vinda da Família Real portuguesa, que os
protestantes instalaram-se definitivamente no Brasil.
1.8 - A religiosidade indígena
No relato de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, a 1º de maio de 1500,
os índios e sua maneira de viver foram extensamente descritos, culminando no
pedido que a princípio poderia parecer ingênuo, mas que se tornaria mortal: [...] Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar [...] (CAMINHA, 2002).
A partir de então, os portugueses acreditaram que sua missão nas novas
terras era converter os índios ao cristianismo e fazer com que eles seguissem a
cultura européia, “inserindo-os à força em uma nova ordem mundial” (DIAS, 1998, p.
403). Por isso, cabe resgatar alguns aspectos culturais dos indígenas que aqui
viviam no momento da chegada dos portugueses ao Brasil, destacando sua
religiosidade.
Os índios habitantes da terra recém-descoberta pertenciam ao grande tronco
cultural tupi-guarani (ABREU, 2005). Deste grande tronco se originaram diversas
línguas e a denominação de cada nação também era diferente: potiguar, caeté,
tupiniquim, temiminó, tupinambá, tamoio. Estas duas últimas habitavam a costa do
Rio de Janeiro. Sendo as línguas faladas originárias de um tronco comum, Dias
(1998, p. 423) ressalta que “os colonizadores brancos, em especial os jesuítas,
42
valeram-se grandemente desta uniformidade para suas práticas de aculturação e
sujeição do indígena aos valores e ao domínio europeu”.
Os índios viviam em um grau de civilização primitivo se comparado ao do
europeu, e se distribuíam pelas diversas nações principalmente ao longo do litoral.
Praticavam agricultura de subsistência, caçavam, pescavam.
No caso dos habitantes da região do Recôncavo da Guanabara, como aponta
Dias (1998), predominavam as sociedades tribais, horticultoras, guerreiras e
expansionistas.
Abreu (2005) afirma que a célula principal da organização social tupi era a
vinculação a uma aldeia, pois determinava quem era amigo ou inimigo. Nos diversos
conflitos que eram travados entre as tribos, principalmente pela posse da terra, se o
inimigo fosse capturado seria devorado. A antropofagia era praticada para vingar a
morte de outro índio e resgatar a honra da comunidade.
Fabricavam bebidas fermentadas, as quais eram consumidas em demasia
nas festas. Eram polígamos, provavelmente para manter o número de pessoas
necessárias ao grupo já que o homem jovem tendia a morrer em combate na guerra.
As famílias poderiam ter numerosos filhos que viviam livremente, sendo bem
tratados pelos pais.
Cada nação indígena possuía crenças e rituais religiosos diferenciados.
Porém, todas as tribos acreditavam nas forças da natureza e nos espíritos dos
antepassados para quem faziam rituais, cerimônias e festas. De acordo com Rubert
(1981, p. 138):
Parece estar fora de dúvidas dever-se admitir que nossos aborígenes tinham vaga crença ou convicção num ser superior e mesmo supremo, senhor dos relâmpagos e dos trovões, a quem chamavam Tupan, que não se deve identificar apenas com a manifestação de tais fenômenos, como fizeram alguns. Criam, igualmente, nos espíritos do bem e do mal, sendo o mau espírito denominado Anhangá, espécie de demônio que lhes metia muito medo e que, segundo eles, se manifestava em determinados fenômenos naturais. Algumas tribos prestavam certo culto ao sol, que chamavam Guaraci, e à lua, que diziam Jaci, por cuja razão alguns autores falam de uma certa cosmogônia de caráter religioso. Não tinham, porém, ídolos, nem templos, nem sacerdotes, a não ser os pajés ou feiticeiros, [...] Aceitavam a sobrevivência da alma e uma espécie de prêmio para os valentes e castigo para os covardes. Isto, naturalmente, não em sentido moral e ascético, mas em concepção guerreira. Era, em resumo, uma religiosidade primitiva, supersticiosa e interesseira, restringindo-se, praticamente, à magia, não pleiteando em suas súplicas ou falas senão vingança contra o inimigo e ajuda nas necessidades do momento.
43
Algumas tribos chegavam a enterrar o corpo do índio quase em pé,
amarrando os braços em torno das pernas, em uma cova redonda e profunda. Dias
(1998) acrescenta que esta posição, denominada fetal, era um procedimento
preparatório para o nascimento do finado em uma nova vida. Além do cadáver, eram
enterrados objetos pessoais, indicando provavelmente que essas tribos acreditavam
em uma vida após a morte.
Após a ilustração do sentimento religioso que perpassava a Europa com a
cristalizada religião católica e seus interesses de propagação da fé em novas terras,
a recém-nascida religião protestante vislumbrando um universo de possibilidades,
sem deixar de lado a parca religiosidade da guerreira nação tupi guarani, está
esboçado o cenário da conflituosa fundação da cidade do Rio de Janeiro.
CAPÍTULO 2
OS VISITANTES DA GUANABARA ATÉ A POSSE DEFINITIVA
“Jesus lhes disse: todo reino dividido contra si mesmo
acaba em ruína e nenhuma cidade ou casa dividida contra si mesma poderá subsistir”. (Mt 12, 25 b)
45
Capítulo 2 – OS VISITANTES DA GUANABARA ATÉ A POSSE DEFINITIVA Tendo sido negligenciada por muito tempo a cidade do Rio de Janeiro teve
como causa mais pungente para sua fundação a ocupação francesa da Baía de
Guanabara no ano de 1555. A política da Coroa Portuguesa que privilegiava o
comércio com as Índias e a conseqüente falta de uma estratégia de ocupação do
território possibilitaram a tentativa dos franceses de ocupar as terras cariocas. Estes
tinham como objetivo implantar o Projeto França Antártica, cujo pano de fundo era
estabelecer uma colônia no Novo Mundo, onde cristãos católicos e calvinistas
pudessem conviver com liberdade.
Antes disso, porém, diversas expedições passaram pela região guanabarina
sem intentar nenhum esforço maior de ocupação definitiva.
Para entender melhor a tardia e conturbada fundação da cidade torna-se
necessário voltar ao tempo e fazer uma breve retrospectiva desde a época do
“descobrimento”. Neste trabalho serão relatadas somente as expedições mais
significativas.
2.1 Os visitantes da Guanabara dos primeiros anos
Nos primeiros anos após a chegada de Pedro Alvarez Cabral ao Brasil, a
Coroa Portuguesa parecia estar mais interessada no promissor e lucrativo comércio
com as Índias. A princípio, o negócio realizado no Oriente se tornava vantajoso pela
proximidade com o continente europeu e por se tratar de povos que apresentavam
um nível de civilização com o qual os lusos estavam mais familiarizados, facilitando
as relações comerciais. E esse comércio de especiarias como cravo, canela e
pimenta era muito mais lucrativo do que apenas a exploração do pau-brasil.
Fleiuss (1928, p. 21) cita a indiferença do rei de Portugal que com exceção
das duas primeiras explorações de 1501 e 1503 que enviou à costa do Brasil, “não
mais se preocupou de nossa terra até falecer em 1521, deixando-a inculta, ao
46
abandono, sem sequer tentar colonizá-la”. O autor segue afirmando que nem aos
seus títulos reais, D. Manuel se lembrou de acrescentar “Senhor de Santa Cruz do
Brasil”.
A primeira viagem exploratória do território brasileiro sob o comando de
Gaspar de Lemos, acompanhado de Américo Vespúcio, saiu de Portugal em 10 de
maio de 1501, para fazer o reconhecimento da costa brasileira. Lemos já conhecia o
itinerário, pois foi um dos comandantes da frota de Cabral. Começando pelo norte
desde o Cabo de São Roque, ponto da costa brasileira mais próximo do
continente africano, e descendo para o sul, passando por uma baía de estreita
passagem e confundindo-a com um rio, a armada de Gaspar de Lemos dava-lhe o
nome de Rio de Janeiro, pois era o dia primeiro de janeiro de 1502.
Cabe ressaltar que Serrão (1965) afirma que o topônimo Rio de Janeiro só
apareceu nos documentos a partir de 1522 como conseqüência da viagem ao
continente americano sob o comando do português Fernão de Magalhães, em 1519,
patrocinada pelo reino espanhol. Para o autor, datam da mesma época, as primeiras
indicações do sítio Rio de Janeiro nas cartas náuticas.
De qualquer forma, foi por intermédio da expedição de Gaspar de Lemos que
os principais acidentes geográficos encontrados no percurso receberam nomes
sacros de acordo com o calendário litúrgico, como era costume da época. Tal fato
traduz o sentimento religioso dos navegadores e sua crença no poder sobrenatural.
Cabo de São Jorge, baía de Todos os Santos, rio São Francisco, rio de São Miguel,
cabo de Santa Maria, ilha da Quaresma, cabo de São Roque, Angra dos Reis, Ilha
de São Vicente... a esses nomes seriam somados muitos outros ao longo do tempo.
Lemos regressou a Portugal com a certeza de que as terras encontradas por
Pedro Alvarez Cabral eram muito mais do que simples ilhas, que se tratava na
verdade de “quase um continente” (FLEIUSS, 1928, p. 26).
Os índios tupinambás, naturais das nossas terras, já conheciam o “rio”
encontrado por Gaspar de Lemos como guanã-mbará17, vocábulo tupi que significa o
seio semelhante ao mar. A denominação indígena que os portugueses traduziram
por Guanabara era apropriada, pois a baía é a terceira maior do mundo em volume
de água e apresenta realmente a grandiosidade de um mar. A Baía de Guanabara, a
________________ 17 Guanã = enseada do rio, e mbará = mar (SILVA, 1961, p. 51).
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partir desse momento, sai do anonimato e passa a ser visitada com mais freqüência,
provavelmente por verem em seu seio a melhor defesa natural e resguardo
estratégico para embarcações de passagem com fins exploratórios.
Acredita-se que foi por intermédio de Gaspar de Lemos que os portugueses
receberam o primeiro carregamento de amostras do pau-brasil, a ibirapitanga dos
índios, madeira corante que faria da posse das terras um empreendimento lucrativo.
A segunda e última viagem exploratória realizada no reinado de D. Manuel
ocorreu no ano de 1503, sob o comando de Gonçalo Coelho. Graças a esta
expedição foi fundado um arraial na Baía de Guanabara, situado na “Ilha da
Carioca”, formada pelo mar e os dois braços do rio de mesmo nome. Este arraial
“limitava-se a uma espécie de acampamento ou de alojamento rústico erguido na
praia, formado de choças e casas de pau-a-pique, de taipa, cobertas de folhas de
palmeira e rebocadas a tabatinga” (FLEIUSS, 1928, p. 28). Em função deste fato o
rio recebeu a denominação indígena de carioca, ou casa de branco.
Portugal limitou-se a explorar em seu novo território a única riqueza que
aparentemente possuía, o pau brasil, cujo corante viria a ser utilizado nas tinturarias
de Flandres (atual Bélgica), tornando-se lucrativo não só para os portugueses como
para os traficantes de outros países da Europa, entre eles, espanhóis e franceses.
Por conta da extração do pau-brasil, realizada com a ajuda imprescindível
dos nativos, a terra passou a ser arrendada a alguns particulares, cristãos novos e
comerciantes, com a condição de fundarem forte ou feitoria militar e nela se manter
por um período de 3 anos (FLEIUSS, 1928). Foram instaladas nesse período as
feitorias, primeiros núcleos rústicos de povoamento que serviam de “base” e
depósito para aqueles que vinham explorar a preciosa madeira. Em 1502 já havia
uma feitoria militar e uma fortaleza em Cabo Frio. A denominação “brasileiro” foi
dada inicialmente aqueles que exploravam o comércio do pau-brasil, tendo se
tornado designação permanente.
Nem mesmo as feitorias coibiram que comerciantes e piratas espanhóis e
franceses assolassem o Recôncavo do Rio de Janeiro. Foram então realizadas duas
expedições “guarda-costas”: a primeira de 1516 a 1519 e a segunda em 1526 com
retorno em 1528, ambas sob o comando de Cristóvão Jacques e designadas por D.
João III, filho de D. Manuel.
48
Na segunda viagem, o navegador chega à Bahia no final de 1526 com seis
embarcações sendo uma nau e 5 caravelas e, a partir daí, percorre toda a costa, até
o Rio da Prata. Na volta, próximo ao litoral baiano, afunda três navios franceses.
Esse fato somado à notícia de que os espanhóis haviam descoberto metais
preciosos do seu lado das terras americanas, alarmou a Corte portuguesa, que
decidiu iniciar a colonização oficial das novas terras.
2.2 Martim Afonso de Souza
A primeira expedição de caráter colonizador foi designada por D. João III ao
fidalgo português Martim Afonso de Souza que deixa Portugal com uma esquadra de
seis embarcações e cerca de 400 pessoas em 3 de dezembro de 1530. O objetivo
da empreitada era combater os traficantes franceses, percorrer a região do Rio da
Prata em busca de metais preciosos e estabelecer núcleos de povoamento ao longo
do litoral.
Chegaram a Baía de Guanabara em 30 de abril de 1531. Entre os integrantes
da expedição de Martim Afonso estava seu irmão Pero Lopes de Souza e o padre
Gonçalo Monteiro, que veio como capelão dos expedicionários e foi, provavelmente,
o primeiro religioso a se fixar por algum tempo na região guanabarina (RUBERT,
1981, p. 57).
Junto à desembocadura do Rio Carioca construíram uma casa de pedra, a
primeira casa portuguesa na Guanabara (CAVALCANTI, 2004). Durante a estadia,
Martim Afonso enviou um destacamento ao interior para reconhecimento da
existência de ouro e pedras preciosas. Teve boa acolhida dos nativos. Pero Lopes
informou que “a gente deste rio he como a da baía de todolos santos, senam quanto
he mais gentil gente” (SERRÃO, 1965, V.II, p. 13). Enquanto o relacionamento com
os indígenas se dava por intermédio do escambo, o trato entre as duas culturas era
amigável.
Após um período de três meses de permanência em solo carioca,
continuaram sua viagem rumo ao sul do país onde Martim Afonso fundou a primeira
vila da América portuguesa no dia 22 de janeiro de 1532, festa de São Vicente,
levando a vila o mesmo nome do santo, padroeiro de Lisboa. Foi iniciada a
plantação da cana-de-açúcar e a instalação de engenhos para a manufatura do
mesmo. No entender de Abreu (2005, p. 12) o estabelecimento dos engenhos
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“determinou o controle não apenas da terra como da força de trabalho americana,
atiçando a guerra euro-indígena”.
Como provavelmente não havia recursos para manter dois núcleos de
povoamento tão distantes entre si, a região da Guanabara, mais uma vez, foi
deixada de lado por outra mais promissora. Os portugueses negligenciaram, naquele
momento, a fundação definitiva da cidade, o que evitaria os conflitos que se
seguiriam.
Devido a insistentes ataques dos franceses às naus portuguesas e decidido a
diminuir o custo da colonização, o governo luso decide iniciar o processo de
ocupação das terras brasileiras pelo sistema de Capitanias18 que ficariam sob a
responsabilidade dos donatários, o mesmo modelo utilizado com sucesso nas
Índias. Porém, após 14 anos (1534-1548) se comprovou que o regime não trouxera
nenhuma vantagem. Os recursos dos donatários não eram suficientes para a
missão, faltava experiência de administração, sem contar a dificuldade de transporte
e comunicação.
Diante da constatação de que apenas a Capitania de Pernambuco e a de São
Vicente lograram alcançar relativa prosperidade, o Rei de Portugal decidiu criar um
Governo Geral destinado a auxiliar os donatários, especialmente na luta contra os
índios, que não paravam de atacar vilas e engenhos, destruindo as plantações dos
colonos.
Os portugueses haviam optado pela ocupação das “capitanias do norte”, ao
longo da costa, a partir de Porto Seguro, deixando parte do litoral sudeste
“descoberto”. Foi exatamente nessa faixa, de São Vicente ao Espírito Santo que os
franceses perceberam o vácuo e aproveitaram para realizar seu comércio de pau-
brasil, pimenta, algodão, entre outros.
Abreu (2001, p. 17) afirma que neste mesmo período os franceses deixavam
alguns homens em terras brasileiras, especialmente os intérpretes, para prepararem
com os índios os carregamentos de pau-brasil e outros itens.
____________ 18 As Capitanias Hereditárias eram 15 faixas de terra com cerca de 350 km de largura que se estendiam do litoral até a linha imaginária do Tratado de Tordesilhas. Tratava-se na verdade de imensos latifúndios. A extinção do sistema ocorreu formalmente em 28 de fevereiro de 1821.
50
2.3 Tomé de Souza
Em 1548, foi nomeado o fidalgo português Tomé de Souza primeiro
Governador Geral do Brasil. Desembarcou na Baía de Todos os Santos em 1549,
fundando a cidade de São Salvador, a primeira capital do Brasil. Veio acompanhado
do padre Manuel da Nóbrega, superior da primeira missão jesuítica no Brasil, a qual
compreendia a catequese dos indígenas e a consolidação, através da fé, do domínio
do território pela Coroa portuguesa.
Também com a missão de fortalecer as defesas da colônia e supervisionar os
esforços dos donatários, Tomé de Souza recebeu ordens da Coroa portuguesa para
construir uma fortificação na Guanabara, região mais atingida pelos corsários.
De passagem pelo Rio de Janeiro, em dezembro de 1552, vindo de Salvador
rumo a São Vicente, Tomé de Souza alega não haver um número suficiente de
pessoas para a construção de um forte, porém, sugere ao rei que mandasse
recursos humanos e materiais para estabelecer ali “uma povoação honrada e boa“
(SERRÃO, 1965, V.II, p. 26). Na mesma carta Tomé de Souza, se dirige a D. João
III, exaltando sua admiração pela baía de Guanabara: "tudo é graça que dela se
pode dizer".
Leite (1945, p. 25) afirma que nessa breve passagem pela região o loyolista
Manoel de Nóbrega considerou o Rio de Janeiro como “fruta verde”, por ser “a
conquista do Rio não a de uma cidade já feita, mas a de uma floresta virgem, onde
iria nascer a cidade”.
Mais uma vez não se estabeleceu um núcleo fixo de povoamento, ficando a
Guanabara à mercê dos franceses, que até esse período mantinham um bom
relacionamento com os índios tamoios, maioria na região, o que não acontecia com
os portugueses. A conquista do território contra os tamoios implicaria em custos que
a Coroa não pretendia naquele momento.
2.4 Villegagnon e a França Antártica
Tomé de Souza foi substituído no Governo Geral do Brasil por Duarte da
Costa no ano de 1553. Nessa nova administração também nada foi feito com
relação à posse da Guanabara, contrariando as ordens da Coroa portuguesa que a
essa altura já tinha consciência do perigo eminente.
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Percebendo os franceses o vácuo deixado pela administração portuguesa,
vislumbraram o seguinte cenário: o Rio de Janeiro, tendo como cartão de visitas a
baía de Guanabara. A paisagem natural exuberante apresentada pelo mar cristalino,
a fauna e a flora e, especialmente, o exotismo de seus habitantes. A imagem da
baía de Guanabara espelhando a visão do Paraíso Terrestre medieval. Talvez o
local ideal para livre convivência religiosa. Porém, não foram só as belezas naturais
que insistentemente atraíam os franceses à região desde 1503, mas o comércio de
pau-brasil e outras espécies .
Desde o Tratado de Tordesilhas, de 1494, que estabeleceu os direitos de
Portugal e Espanha sobre as terras do Novo Mundo, a França sempre se colocou à
frente na negação dos direitos ibéricos com relação a esse monopólio. O rei da
França, Francisco I, não se conformou com tal situação e teria questionado em um
comentário: “em que cláusula do seu testamento Adão legou o mundo para Portugal
e Espanha?”
Na verdade, a França nunca aceitou sua exclusão do direito de comercializar
em terras americanas e tal fato se evidenciou ao longo de todo o século XVI,
especialmente no Rio de Janeiro.
É então que surge o personagem francês que faria a história da nossa
Guanabara mudar: Nicolau Durand de Villegagnon, o Cavaleiro da Ordem de Malta.
A diferença da sua presença na região, ao contrário dos demais visitantes, é que
tudo indicava que ele havia chegado para ficar, confirmando a mentalidade francesa
de que só era dono da terra quem a ocupasse de fato.
Muito já se escreveu sobre esse homem e sua polêmica personalidade. Não
caberá nessa dissertação estabelecer julgamentos a respeito de Villegagnon e dos
demais homens que com ele conviveram. Mas certamente sua determinação em
fundar uma cidade nos trópicos com fins econômicos foi o que levou a Coroa
portuguesa a se posicionar com relação ao Rio de Janeiro.
“Villegagnon foi um universitário de formação e um militar de temperamento,
misto de homem culto e de aventureiro, interessando-se pelo Direito cesário, mas
vindo a realizar-se como soldado e diplomata” (SERRÃO, 1965, V.I, p. 57). Formou-
se em Direito pela Universidade de Paris, onde estudou com João Calvino.
Ingressou na Ordem Militar dos Cavaleiros de São João de Jerusalém, ou Ordem de
Malta, com sede na cidade de mesmo nome. De acordo com grande parte dos
relatos feitos sobre sua biografia, era um líder nato.
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De acordo com Abreu (2005) desde 1553, Villegagnon começou a alimentar a
idéia de abandonar a França e se estabelecer em terra distante com o objetivo de
garantir uma parcela do mercado de produtos tropicais para seu país.
Para convencer o rei francês Henrique II a investir em sua custosa
empreitada, conta com o apoio do almirante Gaspar de Chatillon – Conde de
Coligny, um dos ministros do rei, protestante calvinista e chefe dos huguenotes.
Coligny provavelmente imaginou que uma terra distante seria um refúgio perfeito
para seus irmãos de fé que vinham sendo perseguidos fortemente na Europa.
Nesse período, como foi visto no Capítulo I, na França, assim como na
Alemanha e Suíça eclodia o crescimento do protestantismo, iniciado por Martim
Lutero. Paul Gaffarel (LERY, 1960, p. 17)19 afirma que “a França parecia
predestinada à Reforma. De há muito Universidade e Parlamento atacavam o
despotismo pontifical e reclamavam a criação de uma Igreja Nacional”. João Calvino
era então o líder protestante na França, mas acabou se transferindo para Genebra,
na Suíça. Cabe ressaltar que a Reforma Católica também se fortalecia na Europa
ainda que não houvesse terminado o Concílio de Trento. O clima era de tensão
religiosa.
Coligny foi o viabilizador do projeto de Villegagnon, convencendo o rei a
apoiá-lo e financiá-lo. Além do patrocínio real, a empreitada contou com o apoio de
armadores normandos e bretões. Villegagnon iniciou os preparativos para a viagem
com o inédito apoio oficial da Coroa francesa. Mas contou também com a benção do
Bispo de Lorena, de quem era muito amigo. Não se pode esquecer que Villegagnon
saiu da França como católico e membro da Ordem de Malta cujo lema é “Tuitio Fidei
et Obsequium Pauparum”, ou seja, “A Defesa da Fé e o Serviço aos pobres e
necessitados”.
Nessa viagem acompanharam Villegagnon: Bois-le-Comte, seu sobrinho, o
sacerdote franciscano André Thevet, cosmógrafo, Nicolas Barré, dois monges
beneditinos e na tripulação cerca de 600 homens, a maioria advinda das prisões de
Havre e Rouen (ABREU, 2001, p. 21).
É pelo relato de Thevet (1978, p. 18)20 que se justifica sua presença na
viagem:
_______________ 19 Publicado em 1578 em La Rochelle pelo editor Chuppin. 20 Publicado em 1558 em Paris pelos herdeiros de Maurice de La Porte.
53
A principal causa de nossa navegação as Índias americanas deveu-se ao seguinte: o Senhor de Villegagnon, Cavaleiro da Malta, homem generoso e que alia uma vasta experiência náutica à prática da virtude, recebeu ordens de Sua Majestade no sentido de empreender uma determinada viagem, tendo-as aceito após madura reflexão. Estando suficientemente informado de minha excursão à região do Levante, assim como da colaboração que eu poderia prestar a seu empreendimento, solicitou-me instantemente que o acompanhasse, autorizado que estava por El-rei, meu Senhor e Príncipe (ao qual devo toda honra e obediência), que me ordenara expressamente assistí-lo na execução de sua empresa.
Saíram do porto de Havre, na Normandia, em 6 de maio de 1555, chegando a
Guanabara em 10 de novembro do mesmo ano (LERY, 1960).
Instalaram-se, inicialmente, em um rochedo que ficou conhecido como
Rattier, mas devido à instabilidade marinha logo se transferiram para uma ilha que
era conhecida pelos índios como Serigipe (atual ilha de Villegagnon). Nela se iniciou
a construção de um forte que foi denominado por Villegagnon como Coligny, mesmo
nome dado por ele à ilha que ocuparam.
Esse empreendimento só foi possível graças à amistosa relação que se
travava há algum tempo entre os franceses e os índios tupinambás. Ajudou o fato
estratégico de que Villegaganon com tantos sítios para se instalar em terra firme,
optou por uma ilha, evitando a invasão do espaço dos nativos.
André Thevet permaneceu pouco tempo na Guanabara, uma doença o fez
retornar à França em fevereiro de 1556. Porém, esses três meses de sua estadia na
região foram suficientes para que o franciscano fizesse um relato minucioso sobre a
maneira de viver dos índios aliados que ficaram registrados no seu livro.
Após a partida de Thevet, acompanhado por Bois-le-Comte, Villegagnon se
deparou com a dura realidade que dificultaria seus projetos dali por diante. O
Cavaleiro da Malta sofreu um atentado por parte dos seus conterrâneos, revoltosos
com sua forma de governar. Conseguiu escapar da investida graças a sua leal
guarda pessoal composta por escoceses. Puniu severamente os traidores, mas não
poderia ter deixado de lado os motivos da rebelião.
Não se pode esquecer que os homens que recrutara eram prisioneiros na
França, portanto, em nada se comportavam semelhante ao nobre cavaleiro. Esses
homens certamente não compactuavam com sua rigidez moral e se tornava cada dia
mais difícil controlá-los nas suas investidas com as índias americanas. Não havia
mulheres no forte Coligny.
54
Além disso, os europeus não conseguiam entender e muito menos aceitar a
antropofagia indígena, o que também levou Villegagnon a se indispor diversas vezes
com seus aliados nativos. Por fim, no ano de 1557, no dia 10 de março, chegaram
reforços sob o comando de Bois-le-Comte.
Essa viagem trouxe diversos protestantes enviados por João Calvino. De
acordo com Lery (1960, p. 79) vieram para “erigir a nossa igreja reformada concorde
com a palavra de Deus”. Partiram em 3 navios e uma tripulação de cerca de 300
pessoas entre elas 6 meninos, 5 raparigas e 1 governanta.
Phillippe de Corguilleray, senhor Du Pont, amigo de Coligny era o
responsável pelo grupo de missionários calvinistas enviados pela igreja de Genebra.
Entre eles estavam os pastores Pierre Richier e Guillaume Chartier e quatorze
genebrinos artesãos, dentre os quais, Jean de Lery, que era sapateiro e estudioso
de Teologia. Além destes, embarcou também Jean de Cointa, senhor de Bolés, a
quem os genebrinos não viam com bons olhos.
Embora Villegagnon os tenha recebido com entusiasmo, Lery (1960, p. 80)
afirma que logo na chegada “mandaram-nos carregar pedras e terra para as obras
do forte de Coligny, que se achava em construção”.
Ainda no relato de Lery as dissensões religiosas começaram quando
Villegagnon e Cointa, os quais o autor afirma terem abjurado publicamente o
papismo, iniciaram discussões e disputas doutrinárias, principalmente no que diz
respeito à Ceia Eucarística. Como a maioria dos homens que acompanharam
Villegagnon na viagem era católica, provavelmente se iniciou a desarmonia interna
do forte Coligny. O convívio no pequeno território francês logo se tornou
insustentável.
Villegagnon ordenou em fins de outubro de 1557 que os calvinistas se
retirassem para terra firme. Após oito meses de difícil convivência se transferiram
para o continente e esperaram dois meses até que um navio viesse carregar pau-
brasil e os levasse de volta. Partiram a 4 de janeiro de 1558. Nesse meio tempo,
instalaram-se na praia ao lado do rio que denominavam Guanabara, num lugar
chamado pelos franceses de Briqueterie (olaria).
Certamente a intenção de Villegagnon era estender a conquista até terra
firme para nela fundar a França Antártica, cuja capital seria chamada de Henriville,
em homenagem ao soberano da França. Porém, cedo se verificou que seria
55
impossível viabilizar no Brasil o que não se conseguia realizar na França: a
tolerância religiosa.
Jean de Cointa também abandonou o forte, não se sabe se expulso ou por
vontade própria, tendo se instalado junto aos índios. Sua instável personalidade e
confissão religiosa o haviam transformado em um dos responsáveis pela falta de
harmonia entre católicos e protestantes.
Em 1559, Villegagnon retorna definitivamente a Europa. Deixou Bois-le-
Comte no comando dos franceses no forte. Coincidentemente é desse mesmo ano a
decisão da Coroa portuguesa de mandar reforços para expulsão definitiva.
Lery (1960, p. 226) aponta a responsabilidade sobre o vice-Rei da França
Antártica, a respeito do fracasso do projeto:
E creio que se Villegagnon tivesse permanecido fiel à religião reformada, cerca de dez mil franceses estariam hoje instalados no Brasil; assim não só teríamos aí uma boa defesa contra os portugueses, em cujas mãos não cairia o forte, como caiu depois de nosso regresso, mas ainda boa extensão de terras pertenceria ao nosso rei e esse pedaço do Brasil com toda a razão continuaria a chamar-se França Antártica.
Mas a França Antártica sucumbiu aos dissabores religiosos e a outros
visitantes de fibra que vieram de Portugal para reconquistar de vez o território
carioca.
No Mapa 3 consta a planta da Baía de Guanabara que figura na 2ª edição
(1580) da obra de Jean de Lery elaborada a partir de sua viagem ao Brasil, onde
aparece pela primeira vez, em mapa, a denominação da baía (BARREIROS, 1965).
56
MAPA 3
FRANÇA ANTÁRTICA
Fonte: Disponível em www.serqueira.com.br/mapas/frances.htm . Acesso em 24/02/2008.
57
2.5 Mem de Sá
Cavalcanti (2004) afirma que desde a invasão francesa em 1555 e durante
quase cinco anos o governo português tentou negociar, em vão, a retirada dos
franceses da região guanabarina. Como também não foi tomada nenhuma
providência no Governo de Duarte da Costa para expulsar os franceses da região, o
rei católico D. João III, pouco antes de falecer, nomeia Mem de Sá novo
Governador-Geral do Brasil.
Mem de Sá chegou à cidade de São Salvador em dezembro de 1557 e tomou
posse em 3 de janeiro de 1558. Tendo sido colocado a par da verdadeira situação
que ocorria no sul do país, aguardou reforços da Coroa, sabendo que não seria
possível expulsar os franceses com um número insuficiente de homens.
Porém, a decisão do Conselho Régio para liberar a frota solicitada só se
formalizou em 3 de setembro de 1559, já no governo de D. Catarina da Áustria que
sucedeu D. João III.
Portugal envia uma esquadra comandada por Bartolomeu de Vasconcelos da
Cunha que chegou a Bahia em 30 de novembro de 1559. A essa frota Mem de Sá
somou mais duas naus e oito embarcações de menor porte. Arrebanhou o maior
número de homens de armas. Partiram para o Rio de Janeiro em 16 de janeiro de
1560 acompanhado pelos já conhecedores da Guanabara padre Manuel da Nóbrega
e o francês Jean Cointa, antigo correligionário de Villegagnon, que prestou
informações valiosíssimas a Mem de Sá sobre o forte Coligny.
Chegaram ao Rio no dia 21 de fevereiro e foram atacados pelas duas
fortificações inimigas por franceses e índios tamoios, todos treinados no uso de
armas.
A idéia do Governador Geral era atacar o forte de surpresa porque a
estratégia inicial de encaminhar um guia para direcionar a armada para o forte
Coligny não havia dado certo e denunciou a presença dos portugueses na baía. Os
franceses ganharam tempo para se preparar para o ataque, ao mesmo tempo em
que os portugueses se assustaram com a imponência do forte Coligny.
Diante disso, Mem de Sá encaminhou por escrito uma ordem de rendição a
Bois-le-Comte, então comandante do forte francês. Este não a aceitou. Nesse meio
tempo o padre Manuel da Nóbrega partia para São Vicente a fim de reunir reforços,
e não tardou a retornar. A nova expedição era composta por canoas tripuladas por
58
portugueses, mamelucos e índios conhecedores da costa, tendo sido guiados por
dois religiosos da Companhia de Jesus, Fernão Luiz e Gaspar Lourenço.
Finalmente, Mem de Sá ordenou o ataque no dia 15 de março de 1560.
Depois de dois dias, os franceses abandonaram o forte Coligny. O governador
mandou derrubar o forte, temendo que os gauleses retornassem para ocupá-lo.
Em 3 de abril, Mem de Sá seguiu para Bahia. Porém, escreveu à rainha
argumentando a necessidade urgente de um povoamento permanente na
Guanabara. Igualmente preocupado com a situação, o padre Manuel da Nóbrega
insistiu através de carta ao cardeal D. Henrique, que dividia a Regência com D.
Catarina, que fizesse do Rio de Janeiro outra cidade, como a de São salvador, na
Bahia. Serrão (1965, p. 80) afirma que este foi o motivo pelo qual “o grande Jesuíta”
deveria ser considerado um inspirador, dos mais constantes, da fundação da cidade.
Após a saída das tropas portuguesas, os franceses voltaram a se fortificar no
interior e litoral da Baía da Guanabara, nas regiões de Uruçumirim (entorno do rio
Carioca) e Paranapuam, atual Ilha do Governador.
2.6 Estácio de Sá
A Coroa portuguesa, com fins de povoar definitivamente a região, enviou uma
esquadra sob o comando de Estácio de Sá, sobrinho do Governador Geral do Brasil.
Partiram de Lisboa rumo à Bahia no início de 1564. Tal qual havia feito Mem de Sá
anteriormente, desceu a costa em direção ao Rio de Janeiro parando no Espírito
Santo em busca de reforços. Foi onde encontrou o cacique dos índios temiminós
conhecido como Araribóia (batizado posteriormente pelo nome de Martim Afonso),
que há muito esperava uma oportunidade para se confrontar com os índios tamoios,
seus rivais.
Estácio de Sá chegou à Baía de Guanabara, mas percebendo que os
franceses se encontravam estrategicamente refugiados, tal qual ocorrera
anteriormente, seguiu para São Vicente para pedir reforços. De lá recebeu apoio dos
jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta, arregimentando colonos,
mamelucos e índios.
A esquadra finalmente entrou na baía e numa nesga de praia no sopé do
morro Cara de Cão, em 1º de março de 1565, Estácio de Sá estrategicamente
lançou os fundamentos da cidade para que esta servisse, inicialmente, de base na
59
luta contra os franceses e seus aliados indígenas. O local escolhido era uma faixa
de terra protegida, próxima à entrada da baía que oferecia boa visibilidade e
facilidade de acesso às suas embarcações. Ao mesmo tempo em que se defendia
dos ataques dos inimigos, Estácio de Sá tratou de providenciar uma estrutura
mínima para instalar seus homens. No relato de Fleiuss (1928, p. 42-43):
Para esse fim, mandou roçar a terra e cortar madeira e fez construir uma forte cerca ou tranqueira em torno do arraial, para defendê-lo contra as surpresas do inimigo. E, só havendo no local uma lagoa infecta, mandou o capitão-mor abrir na praia uma cisterna, que em pouco se encheu de água abundante das chuvas. Em poucos dias cresceu o arraial, com a construção de ranchos e tujupares de taipa de sebe, à maneira das malocas selvagens, e fizeram-se algumas roças de milho, inhame e mandioca. Cada homem da tripulação, desde Estácio de Sá, em pessoa, ao último grumete, todos, sem exceção, inclusive os padres José de Anchieta e Gonçalo de Oliveira, trabalharam com entusiasmo nas construções, lenhando, cavando fossos, carregando aos ombros pedrouços e troncos de madeira, batendo a estacaria, levantando casas de pau-a-pique, com paredes rústicas, cobertas com folhas de coqueiro.
Outra providência foi mandar erigir uma rústica ermida em homenagem a São
Sebastião, onde se venerava a sua imagem de barro trazida de Portugal por Estácio
de Sá e era “mantido o culto por uma irmandade religiosa que também foi criada”
(Fleiuss, 1928, p. 44). Os padres José de Anchieta e Gonçalo de Oliveira, primeiro
superior jesuíta da missão no Rio, administravam os sacramentos. A presença de
Gonçalo de Oliveira no entender de Serrão (1965, p. 113) “além de constituir um
estímulo para os homens de Estácio, outorgava à fundação do povoado raízes
espirituais que se iriam manter ao longo dos séculos”.
Enfim nasceu a cidade, batizada de São Sebastião do Rio de Janeiro, em
homenagem ao santo mártir, seu padroeiro, e em memória ao rei de Portugal, D.
Sebastião. O Rio de Janeiro apresentou uma característica singular dentre tantas
outras cidades fundadas desde o descobrimento: já nasceu com nome de cidade e
não de vila. A cidade recebeu um brasão (Fig. 1) onde se encontrava representado
um molho de três setas, alusivas ao sofrimento de São Sebastião e às armas
utilizadas pelos índios tamoios. O atual brasão da cidade (Fig. 2) ainda conserva
referências ao primeiro.
60
FIGURA 1 – BRASÃO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO - 1565
Fonte: pt.wikipedia.org/wiki/Bras%C3%A3o_da_cidade_d... Acesso em 24/02/2008.
FIGURA 2 – BRASÃO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO – 2009
Fonte: pt.wikipedia.org/wiki/Bras%C3%A3o_da_cidade_d.. . Acesso em 24/02/2008.
61
Ao mesmo tempo, o Governador promoveu atos administrativos a fim de
formalizar a fundação de uma nova cidade. Nomeou juiz ordinário, Provedor da
Fazenda Real, tabelião, escrivão de sesmarias e oficial de armas e outros cargos
menos importantes.
Também distribuiu sesmarias visando a posterior ocupação da cidade.
Destacam-se a que foi doada a Companhia de Jesus em julho do mesmo ano, que
de acordo com Cavalcanti (2004) media duas léguas em quadra. A segunda,
contígua à primeira, media uma légua e meia por duas e foi destinada por Estácio de
Sá como território da futura cidade. Interessante observar que a demarcação dessas
sesmarias tinha como ponto de partida a casa de pedra construída em 1531 por
Pero Lopes de Souza. Durante quase dois anos continuaram os conflitos contra os franceses e seus
aliados indígenas. Estácio de Sá e seus colaboradores resistiram bravamente,
mantendo o pequeno núcleo a salvo. Por esta razão Estácio de Sá recebeu no
Brasil, por ordem do rei de Portugal, o hábito de noviço da Ordem de Cristo.
Em 1566, mais uma esquadra foi enviada de Portugal, comandada por
Cristóvão de Barros. Da Bahia, Mem de Sá incorporou mais navios, aumentou o
contingente, reunindo todos os reforços possíveis e embarcou para o Rio de Janeiro
em novembro do mesmo ano. Na viagem vieram também o bispo da diocese de São
Salvador, Pedro Leitão e o padre jesuíta Inácio de Azevedo. Chegaram ao Rio em
18 de janeiro.
O dia 20 de janeiro de 1567, dedicado a São Sebastião, foi a data escolhida
por Mem de Sá para o ataque definitivo. Depois de sangrentas lutas, os portugueses
neutralizaram os franceses em seus dois principais redutos, na Glória e Ilha do
Governador. Nesta conquista estavam juntos os bravos soldados de El-Rei
comandados por Mem de Sá e os “soldados de Cristo”, ou seja, os missionários da
Companhia de Jesus, tendo à frente o padre José de Anchieta.
Nesse combate, Estácio de Sá foi ferido no rosto por uma flecha e um mês
depois venho a falecer. Curioso o fato do herói português ter morrido vítima de
flecha fatal, tal qual o padroeiro da cidade, São Sebastião. Mas por sua bravura e de
seus conterrâneos e aliados, finalmente ocorre a ocupação definitiva da cidade do
Rio de Janeiro, sessenta e cinco anos após a primeira expedição de Gaspar de
Lemos à região.
62
2.7 Enfim, a ocupação definitiva da Cidade
A Mem de Sá coube a decisão de escolher o melhor lugar para o
assentamento definitivo da cidade. Optou pelo alto de um morro, encravado na
planície encharcada em frente à ilha de Villegagnon, chamado inicialmente de Morro
do Descanso, devido à difícil tarefa de ocupá-lo.
A escolha por um lugar elevado era comum nos primeiros núcleos urbanos
portugueses. No caso da cidade do Rio de Janeiro, devido às invasões francesas
dos últimos anos, tornou-se uma obrigação, como estratégia de defesa. É
interessante observar que a escolha por sítios elevados é bem antiga. De acordo
com Tuan (1980, p. 81):
Povos em diferentes partes do mundo consideravam a montanha como o lugar onde o céu e a terra se encontravam. Era o ponto central, o eixo do mundo, o lugar impregnado de poder sagrado, onde o espírito humano podia passar de um nível cósmico para outro.
Os gregos também utilizaram a parte mais alta do relevo de suas cidades,
chamada acrópole, onde os templos dedicados aos deuses e os palácios dos
governantes eram construídos e eram rodeados de muralha circular. Tuan (1980, p.
179) afirma que “todas as divisões da cidade e do país partiam deste ponto”. Para
eles, além do valor estratégico visando a defesa, também apresentava valor
simbólico, para elevar e enobrecer os valores humanos.
E assim também aconteceu com esse núcleo urbano, a partir do qual se
irradiaria a nova cidade. O pequeno núcleo construído por Estácio de Sá, junto ao rio
Carioca, ficou conhecido como Cidade Velha, como demonstra o Mapa 4, conhecido
como "Roteiros de todos os Sinais, Conhecimentos, Fundos, Baixos, Alturas e
Derrotas que há na Costa do Brasil" de autoria do cartógrafo real Luís Teixeira por
volta de 1573-1578. Esta foi a primeira planta conhecida da Guanabara feita pelos
portugueses.
63
MAPA 4
BAÍA DO RIO DE JANEIRO
Fonte: http://www.serqueira.com.br/mapas/bonit.htm. Acesso em 24/02/2008.
64
A missão de ocupar o morro foi penosa. Ele perfazia uma área de cento e
oitenta e quatro mil metros quadrados, com uma altitude de 63 metros e seus limites
eram charcos, lagoas e pântanos. Cortar a mata que o cobria, derrubar árvores,
implantar um acesso que levasse as pessoas ao seu topo, aplainar o futuro sítio da
cidade, foram tarefas executadas com muita determinação, empenho e, certamente,
muita fé.
Era necessário que se elevassem as construções rapidamente para alocar os
moradores e dar continuidade ao processo de povoamento da cidade. Assim, logo
foi construído o muro com 4,40 m de espessura e altura (CAVALCANTI, 2004) para
cercar a área que seria habitada. Ainda no primeiro ano foi erigido o forte de São
Januário, localizado na parte superior do morro, com visão privilegiada da baía de
Guanabara. O nome do forte posteriormente batizaria o próprio morro. Ao mesmo
tempo elevaram-se os baluartes, providos de artilharia.
Também se iniciaram, por autorização régia de março de 1568, as
construções da igreja e da residência dos padres da Companhia de Jesus. Da
mesma forma Mem de Sá deu início à construção da igreja de São Sebastião,
primeiro templo da Igreja Católica na cidade que ficaria conhecida posteriormente
como Sé.
Para exercer a administração laica da cidade foram construídos a Casa do
Conselho de Vereança (Câmara Municipal), a Cadeia, os Armazéns da Fazenda
Real e demais edificações destinadas a moradia.
Executou-se o primeiro acesso que ligava a várzea ao morro: a Ladeira da
Misericórdia. Em seguida, tornou-se necessário outro acesso que viabilizasse a
busca de água potável junto ao rio Carioca ao qual denominaram ladeira da Ajuda
ou do Poço do Porteiro.
Assim se constituiu o embrião de ocupação da nova cidade, como
demonstrado no Mapa 5, com cerca de 600 pessoas, entre elas os fundadores que
vieram com Mem de Sá e seu sobrinho, os padres da Companhia de Jesus, alguns
índios e poucas mulheres.
Em junho de 1568, Mem de Sá retornou à Bahia deixando seu sobrinho
Salvador Correia de Sá como Capitão-Governador da cidade do Rio de Janeiro.
65
MAPA 5
PRIMEIRO NÚCLEO URBANO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
Fotografia da maquete do Morro do Castelo que se encontra no Museu da Cidade
Fonte: Era uma vez o Morro do Castelo (NONATO; SANTOS, 2000, p. 16). Identificação das construções e logradouros realizada por Claudia Teixeira.
Forte de São Januário
Complexo dos jesuítas
Igreja de São Sebastião Forte de são Tiago
Baluarte da São Januário
Ladeira da Misericórdia
Rua da Misericórdia
Ladeira do Castelo
Praia de Santa Luzia
Praia do Boqueirão
Ponta do Calabouço
Rua São José
Rua Direita
Praia da Piaçaba
Praia de D. Manuel
Ladeira da Ajuda
CAPÍTULO 3
A TERRITORIALIDADE DA IGREJA CATÓLICA
NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
“Fundada sobre as montanhas sagradas, o Senhor ama as portas de Sião mais que todas as moradas de Jacó. Ele conta glórias de ti, ó cidade de Deus”. (Sal 87, 2- 3)
67
CAPÍTULO 3 - A TERRITORIALIDADE DA IGREJA CATÓLICA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO Foi no pequeno núcleo instalado no morro de São Januário, posteriormente
denominado como do Castelo que a Igreja Católica fincou suas raízes no Rio de
Janeiro. A construção da igreja matriz de São Sebastião e da igreja dos jesuítas21
definiu o início da estratégia da Igreja Católica de ocupação do território carioca. A
partir daí a instituição foi se difundindo em novos territórios que também se
tornariam irradiadores da fé católica.
Dentre as várias definições para a palavra território, a idéia central é de que
se trata de uma área delimitada sob o controle de um indivíduo ou um grupo. O
conceito de território religioso foi definido por Rosendahl (2006, p. 3) como o
“território demarcado, no qual o acesso é controlado e dentro do qual a autoridade é
exercida por um profissional religioso. É dotado de estruturas específicas, incluindo
um modo de distribuição espacial e de gestão do sagrado”. Como complementação
desse conceito, a autora também definiu o que é territorialidade religiosa:
Territorialidade religiosa na abordagem da geografia cultural significa o conjunto de práticas desenvolvidas por instituições ou grupos religiosos no sentido de controlar pessoas e objetos num dado território religioso. É uma ação para manter a existência, legitimar a fé e a sua reprodução ao longo da história da Igreja Católica no Brasil. (ROSENDAHL, 2008, p. 57).
Portanto, territorialidade deve ser entendida como uma ação, uma estratégia
de controle sobre o espaço exercido pela Igreja Católica possibilitando que a religião
se estruturasse enquanto instituição no Brasil durante o período colonial.
Rosendahl (2006, p. 4) também afirma que “a estratégia territorial da Igreja
Católica visava garantir a apropriação do amplo território para a religião oficial do
_____________ 21 Embora alguns historiadores lhe dêem a denominação de Igreja de Santo Inácio desde sua construção no ano de 1567, o certo é que nesta data o fundador da Ordem ainda não havia sido canonizado, portanto não era ainda chamado de santo. A canonização de Inácio de Loyola só ocorreu em 12 de março de 1622 pelo papa Gregório XV.
68
Estado, operando em regime de monopólio, com exclusão de qualquer outra fé
religiosa”.
É partindo desse conceito de territorialidade religiosa que se lançará um olhar
sobre o processo de ocupação inicial da cidade, desde o primeiro núcleo no morro
de São Januário até os demais núcleos que se estabeleceram ainda no século XVI.
No caso do Rio de Janeiro essa territorialidade foi tão marcante que a cidade,
até o início do século XIX, se limitava à área da várzea configurada entre os quatro
morros que receberam nomes de santos e que foram ocupados pela Igreja católica e
pelos seus braços mais atuantes na época pós-Tridentina que eram as Ordens
Religiosas.
Como foi visto anteriormente, desde 1567 a igreja secular e a Companhia de
Jesus ocupavam o Morro de São Januário; a partir de 1590 a Ordem de São Bento
ocupou o morro que recebeu o nome do santo; o Morro de Santo Antônio, rejeitado
pelos frades carmelitas foi ocupado em 1607 pela Ordem dos Frades Menores e o
quarto morro que já possuía uma ermida dedicada a Nossa Senhora da Conceição
(que lhe deu o nome) passou a ser a sede do governo eclesiástico no Rio de
Janeiro, no início do século XVIII com a construção do Palácio Episcopal. A Ordem
do Carmo que chegou à cidade em 1590 optou por ocupar uma área estratégica na
várzea, em frente ao porto, onde existia uma ermida dedicada a Nossa Senhora do
Ó e que, posteriormente, daria lugar à igreja dos carmelitas.
Enfim, naquele período histórico, a fé católica encontrava-se tão
intrinsecamente ligada à cultura e aos costumes dos portugueses que a própria
ocupação e expansão urbana da cidade também se impregnaram da ação territorial
da Igreja Católica. Nesse sentido Hoonaert (1979, p. 246) afirma que:
A cultura medieval portuguesa que formou o conceito que se tinha da Igreja no Brasil identificava religião e sociedade. [...] Vieira afirma repetidas vezes nos seus sermões que todos os portugueses são “missionários” e com esta afirmação exprime exatamente a auto compreensão de seus contemporâneos. Camões identifica portugueses com cristãos e assim fazem todos na época [...].
É exatamente essa relação amalgamada Igreja/Estado/sociedade que se
“espacializou” nos primeiros núcleos urbanos da cidade. Neste estudo foi
considerada como território religioso cada região ocupada pela Igreja secular e pelas
primeiras quatro Ordens Religiosas que chegaram às terras cariocas.
69
As Ordens Religiosas receberam propriedades assim que chegaram à cidade.
E não apenas áreas dentro da malha urbana inicialmente estabelecida. Para além
deste traçado urbano entre os morros, estas instituições religiosas receberam
doações de terras em regiões bastante afastadas para sua produção agrícola, o que
permitiria seu sustento. Alguns “caminhos” foram implantados para viabilizar o
acesso a estes novos territórios religiosos, a partir dos quais também foram se
configurando novas malhas urbanas.
No entender de Fridman (1999, p. 80) “cada ordem religiosa dominava uma
determinada parcela dos territórios urbanos e rurais” e acrescenta:
O clero impôs normas expressas para os assentamentos dos edifícios e das propriedades sagradas. O uso do solo carioca mostrou, portanto, um jogo de forças que teve expressão jurídica e política (FRIDMAN, 1999, p. 13).
A autora complementa em outro momento que:
A ocupação da cidade pela população e pelos diversos agentes econômicos foi, portanto, decorrente da influência econômica, política e ideológica exercida pela Igreja Católica. Consideramos serem as ordens religiosas, seus patrimônios imobiliários e fundiários os elementos fundamentais nesse processo (FRIDMAN, 1999, p. 60).
A Igreja secular e as quatro grandes Ordens Religiosas que aqui se
instalaram utilizaram estratégias distintas de ocupação. Algumas ordens
expressavam no espaço seu carisma original e também foram as responsáveis pelas
missões que iam abrindo caminhos do litoral para o interior da cidade. A busca da
territorialidade de cada Ordem, que se dirigia diretamente ao seu superior em Roma,
ocorria independente da vontade da Igreja secular. Esta por sua vez, atrelada ao
regime de padroado, onde quem governava era o soberano português, se restringia
a relação dual Igreja-Rei.
Portanto, como será demonstrado, se pode afirmar que o sentido religioso
atuou como um agente modelador do espaço, influenciando a formação e expansão
da cidade do Rio de Janeiro.
70
3.1 A Igreja Católica – estratégia de ocupação
A Igreja Católica se estrutura em três níveis de hierarquia para controle do
espaço: a sede do poder no território do Vaticano, a diocese e a paróquia. Dentro
desses níveis se encontram sub-níveis onde também se desenvolve a ação
missionária da Igreja, como foi demonstrado no Quadro X do Capítulo I. Para cada
um desses níveis existe um profissional religioso com autoridade sobre o território
correspondente. Portanto, o Papa em Roma exerce o poder central sobre todos os
territórios, o arcebispo sobre a arquidiocese, o bispo exerce o poder sobre o território
da diocese e o pároco tem jurisdição sobre o território da paróquia a qual pertence.
É desta forma que até hoje a Igreja Católica consolida sua doutrina e suas
práticas, seja no plano religioso seja no plano social. Deste modo vai se difundindo a
fé católica dentro de uma organização administrativa que possibilita as ações
eclesiásticas dentro do seu limite territorial.
A primeira igreja a ser construída dentro deste regime foi a paróquia de São
Sebastião, no morro de São Januário onde foi iniciado o processo de implantação da
fé católica no Rio de Janeiro, no ano de 1567, constituindo-se no primeiro território
religioso. Foi ereta em paróquia e Comarca eclesiástica em 1569 pelo bispo de
Salvador D. Pedro Leitão, sendo seu primeiro pároco o padre Mateus Nunes.
Também nesse mesmo ano de 1569 foi criada a freguesia de São Sebastião,
que abrangia inicialmente toda a extensão do então território do estado do Rio de
Janeiro, com exceção de Cabo Frio e Campos. A divisão por freguesias limitava o
território de jurisdição religiosa. Embora de aspecto eclesiástico, estas freguesias,
após um breve período, passaram a abranger também os territórios de jurisdição
administrativa. Estas delimitações por freguesias foram utilizadas por muito tempo e
até hoje ainda vigoram, constando nas certidões emitidas nos cartórios. Mais uma
vez os instrumentos de controle territorial do poder temporal e eclesiástico se
misturavam.
Na igreja de São Sebastião também se implantou, na mesma época, a
Irmandade do Santíssimo Sacramento, composta apenas de homens e tinha a
finalidade de promoção do culto ao Santíssimo Sacramento da Eucaristia. Era
responsável pela maior procissão que se passou a celebrar durante o ano, a de
Corpus Christi. Com o passar do tempo, outras Irmandades prestaram culto ao seu
santo protetor em altares elevados nesta igreja.
71
No caso do Brasil, no período colonial, a criação de dioceses tinha iniciativa
no seio da Igreja, mas a aprovação dependia da Coroa portuguesa, em função do
regime de Padroado. A diocese do Rio de Janeiro só foi criada em 1676, porém, a
cidade foi elevada à condição de Prelazia no ano de 1575, como foi visto no Capítulo
I. Esta estratégia da Igreja Católica visava concessão ao prelado Bartolomeu Simões
Pereira de jurisdição sobre igrejas e territórios e o poder de consagrar altares, o que
antes só poderia ser executado pelo bispo de Salvador. Mesmo não se tratando
ainda de uma diocese, o dízimo que era cobrado pela Coroa implicava na
propagação da fé católica, no pagamento das despesas do culto, no sustento dos
sacerdotes e na construção de igrejas.
Para melhor controle por parte da Igreja, a partir do momento em que a
cidade foi crescendo, tanto em população como em unidades habitacionais, se
tornou necessária a criação de outra freguesia. Em 1634, ocorreu a instituição da
freguesia da Candelária que abrangia parte do território do centro, nos quarteirões
de entorno da igreja da Candelária, que por sua vez foi elevada à paróquia matriz
dessa nova freguesia. O território foi, portanto, dividido em duas jurisdições: São
Sebastião e Candelária.
Ao longo do tempo, com o consequente aumento da população, mais duas
freguesias foram criadas na região: a de Santa Rita, abrangendo o território da atual
zona portuária, incluindo os morros ali situados, e a de São José, que partia do
centro e abrangia toda a zona sul da cidade até a Gávea.
Esses novos territórios-freguesias possibilitaravam maior controle por parte
do governo central religioso, com relação às igrejas e demais templos neles
situados, número de unidades habitacionais e contingente populacional. Era
instituído um sacerdote responsável pela área de abrangência da freguesia que
geralmente se fixava na paróquia-matriz.
Até o ano de 1763 foram criadas no Rio de Janeiro dez freguesias, sendo
quatro delas inseridas na região do centro e adjascências, como demonstrado no
Quadro 3.
72
Quadro 4 - Freguesias da cidade do Rio de Janeiro - 1569 a 1763
FREGUESIA ANO
SÃO SEBASTIÃO 1569
CANDELÁRIA 1634
IRAJÁ 1644
JACAREPAGUÁ 1661
CAMPO GRANDE 1673
ILHA DO GOVERNADOR 1710
INHAÚMA 1749
SÃO JOSÉ 1751
SANTA RITA 1751
GUARATIBA 1755
ENGENHO VELHO 1762
Elaborado por Claudia Teixeira a partir de Santos (1965).
73
Igualmente, a partir da paróquia de São Sebastião, as ações da Igreja
Católica envolveram as relações sociais que eram tecidas no espaço da igreja e por
ele se emanavam em novas práticas devocionais, que foram incorporadas pela
pequena população, confirmando a estratégia da Igreja em estabelecer territórios em
núcleos urbanos com potencialidade para se tornarem grandes centros urbanos.
Nesta época, predominava o aspecto devocional, expressado através das
procissões, festas dedicadas aos santos, orações em torno das ermidas e oratórios,
entre outros. Coaracy (2008) chama a atenção que estas festas e celebrações eram
as únicas atrações que a cidade oferecia, no meio de um ambiente ainda hostil, com
muito trabalho a ser realizado e pouco conforto. A Igreja católica iniciou um processo
de alianças com a população, principalmente com a elite dirigente. A religiosidade da
pequena população portuguesa os levava a erigir ermidas e capelas dedicadas aos
santos de sua devoção. Por sua vez estas capelas eram mantidas por irmandades
ou confrarias. O leigo passou a ocupar uma posição mais participativa na igreja do
Brasil, ao contrário do que acontecia na Europa (Hoonaert, 1979).
Cabe aqui uma pequena observação sobre as características destas
edificações. O oratório era um nicho onde se colocava a imagem de um santo.
Poderia ser colocado no interior das casas ou do lado externo das mesmas,
possibilitando a aproximação de transeuntes. A ermida é uma construção
geralmente executada por um devoto, que abrigava uma imagem de santo em seu
interior. Não possuía altar ou sacrário por isso não eram celebradas missas neste
local, porém os fiéis a ela se dirigiam com freqüência, gerando as chamadas
romarias. Geralmente também se erigia em anexo à ermida uma pequena
hospedaria para repouso dos fiéis que estivessem de passagem, a qual
denominavam hospício ou casa dos romeiros.
A capela caracterizava-se por uma construção mais ampla que a ermida e
menor que uma igreja. Possuía altar e sacrário e as celebrações litúrgicas eram
realizadas pelo capelão. Prescindia para seu funcionamento da ajuda financeira dos
fiéis, tanto para manter o templo como o sacerdote. Geralmente eram as irmandades
que assumiam estes templos, honrando com suas despesas.
Tanto as ermidas quanto as capelas eram tipos de construção muito comuns
à época colonial e no caso da cidade do Rio de Janeiro muitas foram abandonadas
com o tempo e outras foram sendo reformadas e por força da devoção ao santo a
74
elas dedicado e/ou pelo seu posicionamento estratégico vieram a se transformar em
igrejas.
Para melhor entendimento da territorialidade católica implantada a partir das
ermidas que surgiram na paisagem carioca, fruto da devoção dos cristãos católicos
que aqui vieram morar, será demonstrado a seguir que a implantação destes
pequenos templos foi responsável pelo reconhecimento da região na qual se
situavam e pela abertura de trilhas ou caminhos que originaram a malha viária da
cidade. A partir da base cartográfica de Barreiros (1965), mapas foram
desenvolvidos para melhor visualização destes territórios religiosos.
Uma das ermidas mais antigas erigidas na cidade, de acordo com alguns
historiadores, é a dedicada a Nossa Senhora do Ó, que se localizava em frente à
praia da Piaçaba, região da atual Praça XV22. De acordo com Coaracy (2008) não se
tem informações sobre quem a construiu. A ermida ganhou destaque por,
juntamente com a casa de romeiros em anexo, terem sido as primeiras edificações
situadas na região da Várzea. Esta ermida, como será descrito adiante, também
serviu de primeira residência para alguns membros de ordens religiosas recém-
chegados à cidade.
A ermida de Nossa Senhora da Ajuda também remonta de meados do século
XVI e foi construída junto à base do morro de São Januário, bem próxima ao
acesso da ladeira do Poço do Porteiro. Igualmente não há registro sobre quem a
construiu, mas graças à devoção e aos constantes cultos dedicados à santa foi
aberto o Caminho da Ajuda que contornava parte do morro acima mencionado.
Posteriormente este caminho daria lugar a Rua da Ajuda.
A primeira ermida dedicada a Nossa Senhora da Conceição foi construída por
volta do ano de 1582 por Aleixo Manuel no morro de propriedade de Manuel de
Brito. Em 1590, o morro foi doado a Ordem de São Bento, tendo a ermida ficado sob
a responsabilidade dos monges beneditinos, que depois a substituíram pela de
Nossa Senhora de Montserrat. Nesse momento já se encontrava delineado o
primeiro caminho da cidade ligando o morro de São Januário à propriedade de
Manuel de Brito que ficou conhecido, inicialmente, por Caminho de Manuel de Brito
__________________ 22 Essa região era inicialmente conhecida como Nossa Senhora do Ó, tendo sido renomeada posteriormente por Terreiro da Polé, Largo do Carmo, Terreiro do Largo do Paço, Largo do Palácio, Praça D. Pedro II e, a partir de 1870, como Praça XV de Novembro.
75
(Barreiros, 1965) e, posteriormente em rua Direita, um dos principais logradouros do
Rio setecentista.
Provavelmente em 1634, o devoto Miguel Carvalho Cardoso ergueu outra
ermida dedicada a Nossa Senhora da Conceição no morro de sua propriedade que
pouco tempo depois recebeu o mesmo nome da santa.
Data de 1584 a inauguração de uma capela denominada Misericórdia
construída provavelmente por iniciativa do padre jesuíta José de Anchieta, ao lado
do hospital de mesmo nome, localizada no sopé do morro de São Januário, junto à
antiga ladeira da Misericórdia, que dava acesso ao Morro. No início do século XVIII
recebeu o nome de igreja de Nossa Senhora do Bonsucesso.
Pela mesma época, provavelmente em 1592, foi erigida por pescadores bem
de frente para a baía de Guanabara, também na base do morro de São Januário, a
ermida de Santa Luzia, como devoção dos navegantes à santa. Estava constituída
outra irmandade. Foi neste templo que os freis franciscanos se instalaram quando
chegaram à cidade e ali permaneceram por cerca de 15 anos até sua transferência
para o Morro de Santo Antônio. A praia em frente à ermida recebeu o nome da
santa. Em 1752, devido à proximidade com o mar, este templo foi demolido e outro
foi erguido no local onde hoje se encontra a igreja de Santa Luzia.
A pequena ermida de São José teria sido erguida por Egas Moniz por volta de
1608 na região da várzea, entre a base do morro de São Januário e a ermida de
Nossa Senhora do Ó. Foi mantida por irmandades que tiveram como membros
diversos governadores. De acordo com Coaracy (2008), em 1659 já havia se
transformado em igreja.
A ermida dedicada a Nossa Senhora do Desterro, construída por iniciativa do
devoto Antônio Gomes do Desterro, em torno da segunda década do século XVII
também se consubstanciou em um importante território religioso. Mesmo localizada
em um morro bastante afastado do núcleo central, que recebeu o nome de Desterro
(atual bairro de Santa Teresa), a freqüência com que era visitada por devotos era
bastante significativa. Originou outro caminho - Caminho do Desterro - que foi se
implantando desde a base do morro de São Januário até a região (atual rua Evaristo
da Veiga). No início do século XVIII o hospício ao lado da ermida serviu de
residência para freis capuchinhos italianos que aí permaneceram por muitos anos.
Entre os anos de 1623 e 1628, no local onde anteriormente havia sido
erguido o Forte de Santa Cruz, localizado no Caminho de Manuel de Brito, os
76
militares pediram autorização para iniciar a construção de uma capela a qual
denominaram Santa Vera Cruz. Nesta capela funcionaram duas Irmandades e
chegou a ser, por um período de quatro anos, a Sé Catedral do Rio de Janeiro por
força da teimosia do então bispo da cidade D. Antônio de Guadalupe.
Desta mesma época data a construção de mais duas ermidas em local bem
afastado do núcleo inicial: a de São Cristóvão, em frente à praia de mesmo nome e
a de São Lourenço, no aldeamento dos jesuítas no atual município de Niterói.
Abriram-se, portanto, mais dois importantes núcleos de ocupação onde a autoridade
religiosa se fazia presente.
Provavelmente na primeira década dos setecentos, Antônio Martins da Palma
construiu em sua propriedade uma capela dedicada a Nossa Senhora das Candeias
ou da Candelária, localizada na proximidade da rua Direita, em frente à praia. Em
pouquíssimo tempo esta capela foi elevada a paróquia matriz da nova freguesia
criada pela Igreja Católica em 1634, se tornando a segunda paróquia da cidade. Em
1639, Martins da Palma transfere a propriedade à Irmandade da Misericórdia. Em
1775 a Irmandade do Santíssimo Sacramento que recebeu a administração do
templo pela irmandade anterior decidiu pela construção de um templo maior em vista
do péssimo estado em que se encontrava. A conclusão das obras e a conseqüente
inauguração da nova igreja só ocorreram em 1898.
Em outra região também um pouco fora do perímetro urbano da cidade,
Crispim da Costa e sua esposa Isabel de Marins mandam erguer a ermida dedicada
a Santo Antônio nas terras que lhes pertenciam, situada às margens da lagoa que
viria a receber o nome do santo. Esta ermida juntamente com as terras que a
circundavam seria oferecida mais tarde aos carmelitas, porém quem as ocupou
efetivamente foram os franciscanos no ano de 1607. Interessante observar que
Santo Antônio foi um frei franciscano e foi na ermida dedicada a ele que a Ordem de
São Francisco escolheu para se fixar na cidade.
O primeiro tecido territorial da Igreja até a criação da freguesia da Candelária
se delimitou pela igreja de São Sebastião, situada no morro de São Januário e pelas
ermidas descritas acima que o cercavam em sua base, como demonstrado no Mapa
6.
77
MAPA 6
IGREJA CATÓLICA: LOCALIZAÇÃO DE TERRITÓRIOS RELIGIOSOS (ATÉ 1634)
Elaborado por Claudia Teixeira a partir da base cartográfica de Barreiros (1965).
78
Da base deste morro nasceram os primeiros caminhos da cidade. A várzea
era arenosa e em grande parte encharcada com lagoas, pântanos e manguezais.
Trilhas foram construídas numa tentativa de contornar a base do morro para escapar
de terrenos úmidos. Muitas delas com o objetivo de interligar o núcleo urbano a
esses pequenos, mas significativos territórios religiosos. Dentre estes caminhos se
podem citar o da Ajuda, o de Santa Luzia, o do Desterro e o que ia até a ermida de
Santo Antônio. No caminho conhecido como Manuel de Brito que interligava a base
do morro de São Januário à ermida de Nossa Senhora da Conceição, se
localizavam mais três ermidas.
Cavalcanti (2004, p. 29) afirma que estes templos situados na região da
várzea, de acesso mais fácil, acabaram por atrair sucessivamente os fiéis que aos
poucos foram deixando a difícil subida do morro do Castelo. Em 1637, os
vereadores se renderam a nova realidade e decidiram construir a Casa da Câmara e
Cadeia na parte baixa da cidade.
Novas capelas foram sendo construídas na Várzea como a de Nossa
Senhora do Bom Parto, no ano de 1649, na esquina das atuais ruas São José e
Rodrigo Silva.
Em 1671, o devoto Antônio Caminha erigiu uma ermida, no alto do morro do
Leripe, região de Uruçumirim, a fim de abrigar uma imagem de Nossa Senhora da
Glória que havia sido esculpida por ele. Também em torno da imagem da santa se
fortaleceu a devoção atraindo diversos fiéis até o local. Em 1699, Cláudio Gurgel do
Amaral, proprietário das terras onde se encontrava a ermida doa o outeiro à uma
Irmandade que quisesse assumir o culto à Nossa Senhora da Glória e nela construir
uma capela permanente. A data mais provável para início da edificação do templo é
de 1714. A Irmandade de Nossa Senhora da Glória foi instituída oficialmente a 10 de
outubro de 1739, pelo bispo D. Frei Antonio de Guadalupe, ano em que se concluiu
a construção do templo.
Outra ação estratégica que fortaleceu a territorialidade da Igreja Católica
ocorreu em 1676, com a criação da Diocese da cidade do Rio de Janeiro, segunda
do Brasil. Com a presença de um bispo na cidade, embora com longos períodos de
vacância, devido à grande extensão territorial da diocese, se pode perceber o
incentivo à criação de novos espaços religiosos e ampliação dos já existentes. Como
foi o caso da implantação de conventos para mulheres e seminários (até então
79
inexistentes) que possibilitariam a formação do clero diocesano independente do
seminário jesuíta.
Em 1678, por iniciativa do administrador eclesiástico Francisco da Silveira
Dias, seu irmão frei Cristóvão de Madre de Deus e da viúva Cecília Barbalho, ao
lado da pequena ermida de Nossa Senhora da Ajuda foi construída uma casa de
recolhimento para mulheres. Até 1705 aguardaram a licença para o funcionamento
de um convento feminino, que finalmente foi concedida. Apenas em 1750 se
inaugurou o convento, quando chegaram da Bahia quatro freiras clarissas. O
convento se chamou Nossa Senhora da Conceição da Ajuda, da Ordem de Santa
Clara. O Convento da Ajuda, como ficou conhecido, ocupava todo o quarteirão que
hoje compreende a área da Cinelândia.
Cabe observar que nesse meio tempo, no ano de 1702, o então bispo da
diocese do Rio de Janeiro D. Frei Francisco de São Jerônimo decidiu se instalar na
área do Morro da Conceição, que serviu de residência para os freis capuchos
franceses, que pouco tempo antes haviam sido expulsos do país. Através de
recursos próprios, da Fazenda Real e de donativos mandou iniciar a reforma do
antigo hospício, transformando-o em Palácio Episcopal, residência permanente do
bispo da cidade até início do século XX. O Morro da Conceição se reafirma dessa
forma como outro importante território religioso.
O seminário São José, provavelmente o primeiro do Brasil, foi fundado em 5
de setembro de 1739, pelo bispo Dom Frei Antônio de Guadalupe, na encosta do
Morro do Castelo, nos fundos da Capela de Nossa Senhora da Ajuda. Por essa
razão, a antiga Ladeira do Poço do Porteiro passaria a ser denominada pela
população como Ladeira do Seminário.
A antiga ermida de Nossa Senhora do Desterro deu lugar a outro convento, o
das carmelitas, sob a regra de Santa Teresa de Jesus. Sua construção foi iniciada
em 1750 e até hoje lá permanece, emprestando o nome de Santa Teresa ao bairro.
Nesse mesmo ano consta a fundação do Seminário de Nossa Senhora da
Lapa do Desterro por iniciativa do padre Ângelo Siqueira, e anuência do bispo D.
Frei Antônio de Guadalupe. O seminário se localizava nas terras que pertenceram a
Antônio Rabelo Pereira, próximas à Lagoa do Boqueirão, na região do atual bairro
da Lapa. À época, esta região ainda era inóspita e, certamente a implantação de um
seminário e uma capela foram os responsáveis pelo reconhecimento do local.
Quando da chegada da Família Real, que ocupou o convento dos carmelitas, estes
80
passaram a ocupar as instalações do seminário e, no ano de 1810, transformaram a
antiga capela em igreja, dedicada a Nossa Senhora do Carmo da Lapa do Desterro.
3.1.1 A construção da muralha de pedra
Cabe ressaltar que devido às invasões francesas de 1710 e 1711 que
ocasionaram sérios prejuízos morais e materiais aos moradores da cidade, o rei
decidiu enviar ao Rio de Janeiro um especialista em fortificações chamado João
Massé, que chegou à cidade em 1713. Entre diversas obras visando a defesa da
cidade, Massé projetou uma muralha de pedra que serviria de proteção para
possíveis novas invasões, cujos limites eram: [...] faixa de terreno que corria junto ao mar, com início na ponta da Fortaleza de São Tiago, localizada no sopé do morro do Castelo, e término no trapiche da Prainha que ficava na base do morro da Conceição. Pelo interior, corria por sobre uma linha imaginária que unia o morro do Castelo ao da conceição, passando por detrás da capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos [...] (CAVALCANTI, 2004, p. 49).
Cavalcanti (2004, p. 47-54) descreveu sucintamente os percalços relativos a
construção dessa muralha. Porém, alguns aspectos se tornam relevantes para o
presente estudo, como por exemplo, o fato da capela de Nossa Senhora do Rosário,
de uma Irmandade de negros ter ficado incluída na área considerada como território
da cidade. Igualmente interessante o fato do morro de Santo Antônio não constar da
circunscrição, deixando uma região estratégica desguarnecida.
Outro aspecto curioso ocorreu em meados do século XVIII quando finalmente
a Coroa portuguesa concordou com a construção da nova Sé Catedral, cujo terreno
escolhido se localizava fora dos limites da muralha, por detrás da igreja do Rosário.
Em 1769, quando se decidiu pelo estudo para construção de uma nova
muralha, tanto o morro de Santo Antônio como o terreno da nova Sé foram incluídos
na delimitação. Entretanto, devido aos elevados custos da obra, essa segunda
muralha jamais foi construída.
A partir da base cartográfica de Barreiros (1965) e da bibliografia levantada,
se concluiu que até 1763 o centro da cidade contava com 40 edificações com fins
religiosos entre ermidas, capelas, igrejas, conventos, como demonstrado no Mapa 7,
onde também se encontra implantada a muralha de pedra.
81
MAPA 7
LOCALIZAÇÃO DE EDIFICAÇÕES LIGADAS A IGREJA CATÓLICA (MEADOS DO SÉCULO XVIII)
Elaborado por Claudia Teixeira a partir da base cartográfica de Barreiros (1965). NOTA: Nesta área limitada pelo mapa não constam as igrejas de N. Sra. do Livramento e N. Sra. da Saúde.
82
3.1.2 A imagem do padroeiro da cidade e a peregrinação da Sé
Embora muito citada por diversos autores, não se poderia deixar de
mencionar a peregrinação da sede do poder eclesiástico pelas igrejas da cidade. Em
1676 quando o Rio de Janeiro é elevado à categoria de Diocese, a segunda a ser
criada no Brasil, a então paróquia de São Sebastião é elevada a categoria de
catedral ou Sé, como ficou conhecida. Como já foi visto, na hierarquia territorial,
depois do Vaticano, a Sé, abreviatura de Sedes Episcopalis, era a sede do poder da
Igreja Católica no Rio de Janeiro e a igreja de São Sebastião, a principal igreja da
cidade, onde ficava a imagem do padroeiro trazida de Portugal por Mem de Sá.
Estando a matriz de São Sebastião em péssimo estado de conservação, e
considerando a íngreme subida ao morro, em 1659 o então prelado Manuel de
Souza e Almada decidiu transferir a Sé para a igreja de São José que a esta época
estava inteiramente reformada. Depois de muitas pendengas com a Câmara, o
prelado transfere apenas o sacrário e a pia batismal para a igreja de São José onde
permaneceram por cerca de 70 anos.
Em 1734 o então bispo D. Antônio de Guadalupe que não se conformava em
celebrar missas no alto do morro de São Januário em uma igreja em estado de
abandono, transferiu-se no meio da noite para a igreja de Santa Vera Cruz, levando
consigo além dos demais pertences relativos ao culto, a imagem de São Sebastião.
Após quase quatro anos de conflito com as duas irmandades aí instaladas decidiu o
bispo mudar a Sé para a igreja de Nossa Senhora do Rosário, também a
contragosto da irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.
Com a chegada da família real portuguesa, em 1808, e por decisão do
príncipe regente D. João, a Sé Catedral foi transferida para a Igreja de Nossa
Senhora do Carmo, de onde os carmelitas foram convidados a se retirar. A igreja foi,
portanto, elevada à condição de Catedral da cidade e assim permaneceu por 168
anos.
Em 1976 foram concluídas as obras da Catedral Metropolitana do Rio de
Janeiro localizada na Av. Chile. O arcebispo da cidade exerce seu governo
eclesiástico no prédio da Mitra Arquidiocesana localizado a Rua Benjamim Constant,
na Glória.
83
Atualmente a imagem de São Sebastião se encontra na Igreja de São
Sebastião do Rio de Janeiro, sob a guarda dos frades capuchinhos, assim como o
marco de Fundação da Cidade e os restos mortais de seu fundador.
3.2 As Ordens Religiosas – estratégias de ocupação
Como em outras cidades seiscentistas, também no Rio de Janeiro a Igreja
Católica contou com a participação bastante significativa das Ordens Religiosas para
garantir a apropriação do território carioca. Algumas dessas instituições religiosas se
beneficiaram de seu próprio carisma para exercer sua territorialidade, ou seja, o
conjunto de práticas características de cada identidade religiosa funcionou para
assegurar a fixação no território que neste estudo foi considerado como religioso e, a
partir dele, se expandir por novos territórios.
Todas as quatro grandes Ordens Religiosas também contaram com a
generosa doação de fiéis e da administração pública, seja de bens imóveis, seja
financeira, o que possibilitou a conquista e desbravamento de novas áreas na
cidade.
Os cinco territórios religiosos considerados neste estudo, como os morros de
São Januário, São Bento, Santo Antônio e Nossa Senhora da Conceição, além da
área ocupada na Várzea pelos carmelitas, se mantiveram inalterados dentro do
período estudado.
Não foi possível depreender pela bibliografia levantada se houve invasão de
um território sobre o outro. As cartas de doação de propriedades às Ordens eram
bem claras e suas delimitações bem definidas. Além disso, as identidades religiosas
de cada Ordem parecem ter sido bem distintas e demarcaram os seus limites sem
que houvesse maiores conflitos.
3.2.1 Companhia de Jesus
Como foi visto no capítulo 2, foi no alto do morro de São Januário, dividindo o
território com a Igreja secular que a Companhia de Jesus iniciou sua territorialidade
religiosa a partir da construção do Colégio e a da igreja. Foi neste complexo que a
Ordem estabeleceu as estratégias de ocupação dos demais territórios que
receberam na cidade. Certamente foi a Companhia de Jesus a que mais estendeu
84
suas ações no sentido de ocupar de forma mais eficiente e produtiva o território
carioca.
Um dos primeiros aspectos a se considerar a respeito da influência da Ordem
jesuíta sobre a nascente história da cidade foi a construção do Colégio, como era de
costume em todos os lugares onde os jesuítas se instalavam, tanto no Brasil como
nos demais países. O carisma da Ordem jesuíta é o ensino. Foram certamente os
pioneiros na educação do Brasil. Segundo Hoonaert (1979, p. 213) “a maior parte do
trabalho e do pessoal foi despendido na criação e organização dos colégios”.
Esse pessoal ao qual se refere o autor era extremamente bem formado. Os
jesuítas eram sacerdotes filhos da elite européia, intelectuais, professores,
engenheiros, filósofos, com uma enorme capacidade física e mental. Foram eles os
responsáveis pelo estudo da língua tupi, traduzindo orações cristãs para a
catequese junto aos índios, estabelecendo uma língua geral na vida cotidiana da
colônia, ao lado do português. O tupi só teve sua utilização proibida por uma
Provisão Real da segunda metade do século XVIII.
O colégio, inaugurado em 1573, tinha não só a função de formar futuros
jesuítas como também se transformou no grande educador da elite moradora na
cidade do Rio de Janeiro durante o período colonial. Em 1662 já era considerado o
mais próspero do Brasil (HOONAERT, 1979, p. 194). Era em suas instalações que a
vida cultural carioca ganhava forma através da música, do teatro, da poesia.
Também receberam lotes de terrenos entorno da área do Colégio onde
implantaram uma praça e a sua cerca. Além disso, construíram um embarcadouro
fronteiro ao morro, na praia da Piaçaba, que ficou conhecido como Porto dos
Padres, assim como uma espécie de plano inclinado, para transporte de material
para o alto do morro.
O segundo aspecto referente à abrangência do território religioso jesuíta diz
respeito à sesmaria próxima à cidade que receberam por doação de Estácio de Sá,
logo depois da fundação, em 1º de julho de 1565, tornando-os um dos primeiros
proprietários de terras cariocas. A história referente a esta data de terras foi
amplamente discutida por diversos autores. A questão que se busca demonstrar
com este trabalho se refere à influência dessas propriedades na formação e na
expansão da cidade.
A sesmaria do Iguassu, como ficou conhecida, abrangia a região dos atuais
bairros do Rio Comprido (parte), São Cristóvão, Andaraí, Engenho Novo, Méier,
85
Engenho Velho e Inhaúma. Cavalcanti (2004) cita que nesta sesmaria instituíram,
além do cultivo da cana-de-açúcar, fazendas de gado, lavouras, olarias, madeireiras
e caieiras, todas com altíssimo nível de produção.
Foi na região do Engenho Velho que instalaram seu primeiro engenho de
cana-de-açúcar. Nesta fazenda erigiram uma ermida por volta de 1572, que
posteriormente, deu lugar a uma igreja sob o título de São Francisco Xavier23 e se
tornou o berço do atual bairro da Tijuca.
Foram implantados ainda dois engenhos: o de São Cristóvão e o do Engenho
Novo. Na Fazenda de São Cristóvão os estudantes do Colégio usufruíam o feriado
semanal e as férias anuais.
Possuíam, além dos engenhos já citados, a Fazenda de Santa Cruz, “de dez
léguas de terra em quadra, que ia desde a marinha à Serra de Matacães de
Vassouras” (LEITE, 1945, p. 55). Esta fazenda apresentava características de
grande estabelecimento agrícola-industrial.
Destaca-se, igualmente, na ação territorial da Companhia de Jesus a
aquisição da Fazenda de Campos de Goitacazes, no limite dos Estados do Rio de
Janeiro e Espírito Santo. Leite (1945, p. 88) afirma que esta fazenda se caracterizou
como “principal propriedade do Colégio do Rio e sua primeira fonte de receita”. Ficou
conhecida como Fazenda do Colégio. Apresentava estrutura similar a de outras
fazendas como igreja, residência dos padres, fábrica de cerâmica, plantação de
cana-de-açúcar, hospital.
Percebe-se, portanto, que os jesuítas se tornaram os agentes da ocupação
inicial dos subúrbios da cidade, cujos caminhos abertos por eles para interligação de
suas propriedades e estas ao morro de São Januário originaram a base da malha
viária da cidade. Destacam-se no centro da cidade a Rua da Alfândega (conhecida
como Caminho de Capueruçu) e a Rua do Riachuelo (conhecida como Caminho
para o engenho dos Padres).
Entre outras obras de engenharia, abriram canais, construíram diques para a
regularização do rio Guandu e pontes para o escoamento da produção da fazenda
Santa Cruz.
____________ 23 Cabe salientar que o jesuíta Francisco Xavier só foi declarado santo pelo Sumo Pontífice Gregório XV em 1622, junto com Inácio de Loyola.
86
Outro aspecto relevante das ações jesuítas ocorreu no ano de 1582, quando
o padre José de Anchieta, para atender a frota de Diogo Flores Valdez que havia
sido atacada pela peste, sendo forçada a aportar no Rio de Janeiro, mandou erigir
um barracão coberto de sapé, junto à orla marítima na base do morro do Castelo.
Nessa rústica construção foi realizado o atendimento aos doentes e se constituiu no
embrião da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Dois anos depois foi
inaugurada uma capela, posteriormente denominada de Nossa Senhora do
Bonsucesso.
Esse ponto da cidade passou a ser conhecido como bairro da Misericórdia,
que de acordo com Fleuiss (1928), teria sido o mais antigo da cidade, na várzea. A
partir desse pequeno núcleo foi se irradiando a ocupação ao longo do caminho de
Manuel de Brito (rua Direita, atual Primeiro de Março) que ligava essa região até o
Morro de São Bento. Neste logradouro se instalou, aos poucos, o primeiro centro de
comércio da cidade.
Como foi visto no Capítulo I, outra característica da ação estratégica dos
jesuítas estava totalmente voltada com o carisma da Ordem, que além da educação
envolvia a ação missionária junto aos indígenas com o objetivo de catequizá-los, nos
chamados aldeamentos. Leite (1945, p. 95) ressalta que eles possuíam um “tríplice
fim: catequese, educação pelo trabalho e defesa militar”. Neles quase sempre havia
uma igreja, a residência dos padres da Companhia e um compartimento para a
catequese e o ensino da leitura e escrita (RUBERT, 1981).
Destacaram-se três aldeamentos: o de São Lourenço (Niterói), o de São
Francisco Xavier (Igtinga-Itaguaí) e o de São Barnabé (Macacu). O posicionamento
estratégico desses aldeamentos visava à defesa, “à roda do incomparável centro
geográfico fluminense, que é a Guanabara, uma de cada lado da baía, e outra no
fundo dela, formando o triângulo defensivo da cidade” (LEITE, 1945, p. 95).
O aldeamento de São Lourenço foi estabelecido por volta de 1570, pelo padre
Gonçalo de Oliveira, capelão do exército da conquista e fundação do
Rio de Janeiro. Também na região eram possuidores de grandes extensões de
terras, como a Fazenda São Francisco Xavier, também conhecida por Fazenda do
Saco, que deu origem ao bairro conhecido apenas por São Francisco, no atual
município de Niterói.
Outro aldeamento, o de São Pedro da Aldeia, mais afastado do núcleo
central, foi instituído por solicitação real, para povoação e defesa contra os inimigos
87
estrangeiros (principalmente franceses e holandeses), que insistiam na exploração
do pau-brasil na região de Cabo Frio. Fundou-se a Aldeia de São Pedro, em 1617,
pouco tempo depois o forte de Santo Inácio24. Logo a seguir foi fundada a cidade de
Cabo Frio, no dia 13 de novembro (LEITE, 1945).
Além de todos esses aspectos relacionados à ação territorial da Companhia
de Jesus, eles receberam diversos incentivos da Coroa portuguesa, tais como a não
cobrança do dízimo sobre a utilização de suas terras, a diminuição da idade de
ingresso na Ordem, isenção de vistoria em seus navios, entre outros.
Desta forma a Companhia de Jesus foi a Ordem que mais cresceu e se
fortaleceu na cidade e também se tornou proprietária de imóveis para aluguel. De
acordo com Cavalcanti (2004, p. 65) os jesuítas “possuíam imóveis nas ruas da
Alfândega, Candelária, Direita, Dom Manoel, Ouvidor, Rosário e das Violas, como
também nas travessas do Guindaste, da Quitanda e na Praia do Peixe. Ao todo
somavam 71 prédios [...]”.
A Ordem dos jesuítas estabeleceu uma estratégia intimamente ligada ao
carisma da ordem, que é o serviço da fé através da educação e da evangelização
dos indígenas. No caso da cidade do Rio de Janeiro, não só estabeleceu sua
territorialidade, a partir do morro do Castelo, como permeou, com sua identidade
religiosa, todos os aspectos da vida sócio-cultural até 1759, quando foram expulsos
da Colônia.
_____________ 24 Mais uma vez torna-se necessário ressaltar que o nome de Santo Inácio dado ao forte só iria prevalecer após a canonização do jesuíta em 1622.
88
MAPA 8
COMPANHIA DE JESUS
LOCALIZAÇÃO DE TERRITÓRIOS RELIGIOSOS NO RIO DE JANEIRO
Fonte: Leite (1945).
89
3.2.2 Ordem de São Bento
Após quase trinta anos desde a chegada dos jesuítas ao Rio de Janeiro,
outra Ordem Religiosa, representada por dois integrantes aportou na cidade no ano
de 1586: a Ordem de São Bento. Instalaram-se inicialmente na ermida de Nossa
Senhora do Ó, na várzea.
O governador da cidade, Cristóvão de Barros (1571-1575) havia concedido
uma sesmaria ao fidalgo português Manuel de Brito, em 1575, que compreendia
uma vasta zona de terras orladas pela praia, no meio da qual estava encravado o
morro (que viria a ser ocupado pela Ordem), iniciando da atual rua Visconde de
Inhaúma até a Praça Mauá, abrangendo a vertente do morro da Conceição.
No ano de 1590, os beneditinos receberam por doação essa sesmaria de
Manuel de Brito que durante certo tempo deu nome ao morro e à praia que o
circundava. Logo se iniciou a construção de um hospício para servir de residência
dos monges. No alto deste morro que logo ficou conhecido como São Bento, havia
água potável e uma horta, que os beneditinos cuidavam. Era o seu sustento.
No ano de 1633 se iniciou a construção da igreja de Nossa Senhora de
Montserrat, em substituição à ermida existente dedicada a Nossa Senhora da
Conceição. A nova igreja do Rio teria sido inaugurada em 1641. Apenas em 1652
deu início a construção do mosteiro. No ano de 1596, no Capítulo Geral da
Congregação, o Mosteiro foi elevado à categoria de Abadia, o que lhe dava total
autonomia de gestão, pois não pertencia ao território de nenhuma diocese.
A partir desta sesmaria já se configurava o segundo território religioso na
cidade do Rio de Janeiro. O antigo caminho de Manuel de Brito formado no século
XVI, que ligava o primeiro território religioso - o morro de São Januário - até o morro
dos beneditinos daria lugar à rua Direita, que se tornaria a principal via de circulação
e de comércio da cidade. Além disso, não se pode deixar de mencionar a
similaridade entre os dois morros por sua localização estratégica junto ao porto, o
que facilitava o recebimento e o escoamento de mercadorias.
Fridman (1999) em seu livro “Donos do Rio em Nome do Rei” através de
intensa pesquisa junto ao Arquivo do Mosteiro de São Bento aponta a expansão e a
estratégia adotada pelos monges que foram descendo o morro, horizontalizando sua
territorialidade.
90
A autora descreve as seguintes doações: a Ilha da Madeira (atual Ilha das
Cobras) que se situa em frente ao mosteiro, onde os beneditinos exploravam
madeira e pedra. Na localidade, compreendida entre os bairros da Carioca e
Botafogo, a Ordem comprou e ganhou diversas propriedades. Uma delas se
localizava no fim da praia do Sapateiro (Flamengo) onde existia uma pedreira (Morro
da Viúva) de onde extraíram as pedras para construção do mosteiro. Na Rua Direita
construíram casas para aluguel que eram ocupadas pela população “não-nobre”.
Destaca-se, entre suas propriedades, a Fazenda do Iguaçu, no atual
município de Duque de Caxias, onde fabricavam cal e tijolos, em duas olarias ali
existentes, para viabilizar suas construções. Igualmente importantes foram as terras
que receberam por doação, em 1646, em Campos dos Goitacazes, que a partir de
meados do século XVII superou os rendimentos da Fazenda de Iguaçu.
Em 1667 receberam por doação os Engenhos de Nossa Senhora do Desterro
em Jacarepaguá, terras na cabeceira do rio Guandu em Vargem Grande, bem como
em Vargem Pequena e Camorim, onde criavam gado e possuíam engenhos
(FRIDMAN, 1999). Ainda no final do século XVII a Ordem recebeu também um
engenho de açúcar na atual Ilha do Governador.
No ano de 1697 adquiriram terras onde hoje se situa o Campo de São Bento
no atual município de Niterói, com o intuito de que esta propriedade servisse de
descanso para o gado proveniente da fazenda de Campos dos Goitacazes.
Entre 1651 e 1750, na área central da cidade, já eram cerca de trinta e sete
terrenos e quarenta e oito casas de aluguel. A Ordem de São Bento exerceu sua
territorialidade em consonância com os avanços da política econômica colonial,
como demonstra Fridman (1999, p. 62):
É interessante perceber que o Mosteiro acompanhava os movimentos da economia colonial, de base açucareira, como também as necessidades impostas pelo processo de urbanização da cidade, principalmente através do fornecimento de matérias-primas para construções, além das próprias moradias.
Desta forma a ação estratégia espacial da Ordem foi viabilizada em grande
parte por sua atividade no campo da produção agrícola, que era uma das
características dos beneditinos. Através destes recursos e das propriedades que
receberam para o cultivo da cana-de-açúcar e criação de gado, tornaram-se um dos
principais agentes imobiliários da cidade.
91
MAPA 9
TERRITORIALIDADE BENEDITINA NO CENTRO DA CIDADE (MEADOS DO SÉC. XVII)
Elaborado por Claudia Teixeira a partir da base cartográfica de Barreiros (1965).
92
3.2.3 Ordem do Carmo
Entre os dois territórios religiosos mencionados – morro de São Januário e
morro de São Bento - existia a área da Várzea, ainda coberta de charcos, pântanos
e manguezais. Mas foi exatamente nessa região, no sítio próximo ao porto, que os
carmelitas optaram pela implantação do que se considerou neste estudo como o
terceiro território religioso.
Quando chegaram em 1590, se instalaram na ermida de Nossa Senhora do
Ó. Logo na chegada deixaram claro que sua intenção era construir um convento na
cidade e para tal necessitariam de ajuda financeira e de terras para a execução do
projeto.
Dentre as várias ofertas que lhes foram feitas consta, em 1591, a doação por
parte de Crispim da Costa e Isabel Marins de uma área de terras de 50 braças ao
longo da Lagoa de Santo Antônio e morro acima. Os padres, por considerarem o
local “afastado”, preferiram permanecer à beira-mar, junto à ermida. A Câmara, em
1611, procedeu a oficialização da doação da ermida e do terreno anexo com as
dimensões necessárias para erguer o convento e sua “cerca”. Coaracy (2008) cita
os limites da propriedade:
A frente, ininterrupta, pois ainda não existia a Rua do Cano, estendia-se da travessa que hoje separa a Catedral da Igreja do Carmo até quase a esquina da atual Rua da Assembléia. E os fundos atingiam uma azinhaga que, por esse motivo, tomou o nome de Rua Detrás do Carmo e é hoje simplesmente do Carmo. Além disso, de acordo com o direito da época, consideravam-se os frades posseiros dos “acrescidos”, isto é, dos chãos que o mar no seu contínuo recuo ia deixando descobertos25. (COARACY, 2008, p.15).
Em 1589, a Câmara doou esta capela aos frades carmelitas, que alteraram
sua invocação para a Virgem do Carmelo. Em 1611 obtiveram um terreno do lado
esquerdo do templo, onde em 1619 iniciaram a construção de um convento, com
pedras tiradas da Ilha das Enxadas. No século XVII a capela estava em ruínas e foi
reconstruída, permanecendo com as mesmas dimensões. Assim ficaram
estabelecidos os carmelitas até o século XVIII. A construção da igreja só foi iniciada
em 1761.
_______________ 25 O autor cita (p. 15) que escreveu o livro no ano de 1954, por isso alguns logradouros se encontram com nomenclatura antiga. A Rua do Cano é a atual Sete de Setembro.
93
Coaracy (2008) afirma que os carmelitas foram os primeiros a construir casas
ou tendas de aluguel no local onde posteriormente se ergueu o Paço. Cabe registrar
que a Câmara se apossou de parte da área localizada em frente ao convento para
transformá-la em praça pública. Nela foi erguido o pelourinho (ou polé). Foi também
nesta área que construíram sua nova sede, ao lado da igreja de São José. Anos
mais tarde, em 1683, a Câmara decidiu parcelar essa área em lotes para venda. Se
tal fato se concretizasse os frades perderiam sua visão livre para o mar. Graças à
interferência régia conseguiram impedir esse intento da Câmara e outro ocorrido no
século seguinte. Portanto, no exercício de sua territorialidade os carmelitas
conseguiram preservar a área da atual Praça XV.
Fridman (1999, p. 58) aponta além dos prédios alugados no perímetro
urbano, outros bens da Ordem localizados no atual Largo da Carioca, e no
Boqueirão da Carioca – entre as atuais ruas Senador Vergueiro e Marquês de
Abrantes e terras agrícolas no atual bairro de Irajá. No termo, o engenho da Pedra,
localizado na freguesia de Guaratiba.
Cabe ressaltar que no ano de 1764 receberam por doação uma vasta
extensão de terras na região denominada Campo de São Domingos. Esta “chácara”
compreendia o perímetro formado pelas atuais ruas Senhor dos Passos, Gonçalves
Ledo, Visconde do Rio Branco e Praça da República.
Logo depois da chegada da Família Real ao Rio de Janeiro, em 1808, foram
obrigados a deixar seu território para dar lugar ao novo uso imposto para
acomodações reais. Os carmelitas se transferiram para o seminário de Nossa
Senhora da Lapa do Desterro, seu novo convento e, em 1810, reformaram a igreja
existente que passou a ser denominada Nossa Senhora do Carmo da Lapa do
Desterro.
Observa-se que a Ordem do Carmo, como as demais Ordens já citadas
também irradiou suas ações por territórios fora da área central. Porém, em nada se
aproximou com o carisma de oração e contemplação inerente aos Carmelitas
Calçados que aqui chegaram. Pelo contrário, sua ação vigorosa com relação a
algumas questões, como os entraves com a Ordem Terceira e com a Câmara, fez
com que fossem denominados por Coaracy (2008) como “frades turbulentos”. O que
parece demonstrar que com relação ao seu território os carmelitas não estavam
dispostos a negociar.
94
MAPA 10
TERRITORIALIDADE CARMELITA NO CENTRO DA CIDADE (MEADOS DO SÉC. XVII)
Elaborado por Claudia Teixeira a partir da base cartográfica de Barreiros (1965).
95
3.2.4 Ordem dos Frades Menores
Beneditinos e jesuítas localizavam-se nos morros, carmelitas na Várzea. As
três Ordens escolheram pontos estratégicos para se estabelecer. Porém, uma nova
Ordem Religiosa chegaria à cidade para se implantar em uma região fora da então
considerada área urbana.
Dois freis da Ordem dos Frades Menores chegaram ao Rio de Janeiro em
1592 e se dirigiram à praia de Santa Luzia, no sopé do Morro do Castelo, onde havia
uma capelinha dedicada à santa mantida por uma irmandade de pescadores. Este
local permaneceu como território franciscano por cerca de 15 anos.
Em 1607, chegaram ao Rio de Janeiro o custódio da Ordem, frei Leonardo de
Jesus, acompanhado com mais três franciscanos. De acordo com Fleuiss (1928)
neste mesmo ano o governador Martim Correa de Sá doou por escritura pública de 9
de abril a frei Leonardo de Jesus o morro do Carmo (posteriormente Morro de Santo
Antônio), área assim conhecida por ter sido recusada anteriormente pelos
carmelitas.
Interessante observar que dessa escritura de doação consta obrigações por
parte da administração pública que delimitariam a configuração urbana da cidade
dentro do período estudado. A primeira delas seria abrir um logradouro com 30
palmos de largura (aproximadamente 6,00m) que possibilitasse aos franciscanos um
acesso rápido e direto ao mar. Daí resulta a implantação da atual rua São José, uma
das principais vias de circulação do centro da cidade à época. Este logradouro
também se caracterizou por ser a ligação entre dois territórios religiosos: o Morro de
Santo Antônio e o Morro de São Januário.
Em segundo lugar, a Câmara se comprometeu a abater o mato da várzea, o
que também aproximou ainda mais os territórios religiosos e possibilitou que
construções fossem iniciadas nesta região dando início ao processo de ocupação da
área plana.
Outra obrigação do poder público era sanear a região em torno do morro de
Santo Antônio através de uma vala que escoasse a água da lagoa, dando início ao
processo de drenagem. Esta vala aberta interligava o referido morro até desaguar no
mar,no trecho entre o morro de São Bento e o de Nossa Senhora da Conceição.
Naturalmente os habitantes passaram a percorrer as margens desta vala dando
origem a outro importante logradouro da cidade que foi denominado rua da Vala
96
(atual rua Uruguaiana). É importante ressaltar que este logradouro interligava o
Morro de Santo Antônio ao Morro de Nossa Senhora da Conceição, outro território
religioso considerado neste estudo, além de ser o limite da zona urbana da cidade
até o final do século XVIII.
Outro detalhe interessante com relação à escritura foi o pedido feito pelos
religiosos para que a propriedade do imóvel fosse cedida ao Papa, uma vez que o
caráter de pobreza da Ordem não permitia que bens fossem colocados em seu
nome.
Feita a transferência para o morro do Carmo, logo os freis se mudaram para
a ermida de Santo Antônio. Inicialmente edificaram uma residência provisória com
claustro e capela no sopé do morro. Para sua sobrevivência e sustento prepararam
a horta e o pasto. Em 4 de junho de 1608 iniciaram a construção do Convento e da
Igreja de Santo Antonio, que teve inaugurada sua primeira parte em 1615.
O carisma da Ordem dos Frades Menores é a pobreza e o serviço aos mais
necessitados. Até o século XVII esta área ocupada por eles ficava fora das portas da
cidade, numa região considerada suja e mal freqüentada. Mesmo assim, com ações
coerentes com sua identidade religiosa, tais como o atendimento aos doentes e o
enterramento de escravos em suas terras, conseguiram manter seu território
religioso.
Pela bibliografia consultada parecem ter sido os franciscanos os que menos
terras receberam, talvez pelo impedimento imposto pela própria Ordem de não
possuir bens, ao contrário do que viria a acontecer com a Ordem Terceira de São
Francisco da Penitência, que muito prosperou e se expandiu pela cidade. Porém, o
território franciscano no morro de santo Antônio, quarto território religioso
considerado neste estudo, colaborou na definição dos limites da cidade e na
implantação de dois importantes logradouros – ruas São José e Uruguaiana - que
interligavam a região à Várzea e ao Morro da Conceição.
97
MAPA 11
TERRITORIALIDADE FRANCISCANA NO CENTRO DA CIDADE (MEADOS DO SÉC. XVII)
Elaborado por Claudia Teixeira a partir da base cartográfica de Barreiros (1965)
98
3.2.4.1 Os Frades Menores Capuchinhos
A Ordem dos Frades Menores Capuchinhos surgiu em 1525 como uma
dissidência da Ordem dos Frades Menores. O nome se refere ao longo capuz que
os religiosos utilizavam. O que a princípio era um apelido acabou por se tornar o
nome oficial da Ordem, que também tem São Francisco de Assis como seu
fundador. Os freis capuchinhos franceses chegaram ao Rio de Janeiro em 1653 e se
estabeleceram na ermida de Nossa Senhora da Conceição, no morro de mesmo
nome.
Próximo à ermida construíram um hospício, plantaram pomar e horta.
Dedicaram-se às missões junto aos índios e o seu território no alto do morro servia
como repouso entre essas missões. Em 1701, devido aos persistentes conflitos
entre Portugal e França, foram forçados a deixar o país. Como foi visto
anteriormente, o território já ocupado pelas benfeitorias que ali construíram, chamou
a atenção do bispo D. Frei Francisco de São Jerônimo que no ano de 1702 deu
início à transformação do pequeno hospício em Palácio Episcopal, onde passou a
manter residência.
Os capuchinhos franceses mesmo tendo permanecido na cidade por apenas
48 anos demarcaram um importante território religioso – o morro da Conceição - que
estabeleceria o perímetro urbano da cidade por quase três séculos. No Mapa 12, de
meados do século XVII, se encontram configuradas as territorialidades das Ordens
Religiosas que demarcaram esse perímetro urbano.
99
MAPA 12
TERRITORIALIDADE DAS ORDENS RELIGIOSAS NO CENTRO DA CIDADE (MEADOS DO SÉC. XVII)
Elaborado por Claudia Teixeira a partir da base cartográfica de Barreiros (1965)
100
3.3 As Ordens Terceiras – estratégias de ocupação
Como foi visto anteriormente, a iniciativa individual de alguns devotos
também contribuiu para a expansão territorial da Igreja Católica e da própria cidade
do Rio de Janeiro. Estas iniciativas se agregavam as demais ações da instituição
para exercer de forma mais eficiente sua territorialidade.
Da mesma forma, a aglomeração de fiéis sob uma mesma devoção deu
origem às Ordens Leigas, que também foram fundamentais na apropriação dos
espaços na cidade transformando-os em territórios religiosos. A estes a população
se dirigia com freqüência, particularmente na época das festas, onde a Irmandade
ou Ordem Terceira manifestava toda a sua força vital em torno da imagem do
padroeiro ou padroeira. Ao citar a importância das confrarias religiosas na era
setecentista, Hoonaert (1979, p. 387) afirma que: Todo o espaço da igreja convergia para a imagem e os percursos do povo também. Em torno da imagem se construía a igreja, se celebrava a festa. Toda a vida da confraria era uma caminhada, uma “procissão” em torno da imagem do santo ou da santa.
A respeito da participação das Ordens Leigas no processo de formação da
cidade do Rio de Janeiro, além dos trabalhos de diversos autores como Cavalcanti
(2004, p. 206-215), muito há o que se descrever. Porém, neste trabalho serão
citadas apenas aquelas de maior destaque no período estudado.
Como visto no capítulo I, até meados do século XVIII apenas duas Ordens
Terceiras se implantaram na cidade: a de São Francisco da Penitência
(franciscanos) e a de Nossa Senhora do Monte do Carmo (carmelitas). A localização
e a abrangência dessas Ordens Terceiras estavam intimamente ligadas ao território
das Ordens Religiosas as quais estavam vinculadas.
A Ordem Terceira de São Francisco da Penitência foi instaurada no Rio de
Janeiro em 1619 pelo português Luís de Figueiredo e sua mulher. Os freis
franciscanos lhes cederam o direito de construir uma capela, em anexo à igreja
conventual. Em 1622 já se encontrava concluída a Capela da Imaculada Conceição.
Com o passar do tempo os Irmãos acharam que a capela era pequena e adquiriram
da Ordem Regular uma área de terras ao lado do convento onde iniciaram a
construção da nova igreja no ano de 1657. Em 1715, por causa de desavenças na
101
Irmandade e com os freis, os membros da Ordem Terceira abandonaram o morro de
Santo Antônio e adquiriram uma capela na várzea, depois adquirida pela Irmandade
dos homens pardos (atual igreja de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte).
Houve paralisação das obras entre 1716 e 1726. Somente no ano de “1772 os
Irmãos consideravam terminada a sua grande obra arquitetônica, artística e
religiosa” (BARATA, 1975, p. 68).
Cabe ressaltar que a localização da igreja da Penitência não era das mais
nobres à época em que foi construída. Porém, a Irmandade sempre contou com
homens e mulheres de prestígio e com alto poder aquisitivo e certamente foi uma
das que mais prosperou na cidade. O patrimônio da Ordem Terceira da Penitência
contava, além da igreja, com o hospital construído no século XVIII no largo em frente
ao morro. No início do século XX, durante as reformas promovidas pelo prefeito
Pereira Passos, o hospital foi transferido para a rua Conde de Bonfim, na Tijuca, e o
edifício demolido. Somam-se ao patrimônio da Ordem, cento e setenta prédios no
centro da cidade e um trapiche próximo ao mar (Coaracy, 2004).
A Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, fundada em 1648,
também estabeleceu seu território em terreno contíguo ao da Ordem do Carmo, na
rua Direita (atual Primeiro de Março). Por muito tempo se reuniram na igreja do
convento. Em 1669 inauguraram a Capela da Paixão, dentro do terreno dos
carmelitas. Conflitos ocorridos entre os frades e os irmãos durante quase noventa
anos geraram uma divisão territorial entre as duas instituições. Em 1755, a Ordem
Terceira, através de recursos próprios, adquiriu lotes junto às casas que já possuíam
na rua Direita e deram início à construção da sua própria Igreja de Nossa Senhora
do Carmo, ao lado da que era conventual. Antes mesmo da construção da igreja, os
Irmãos já possuíam um hospital na atual rua do Carmo, que posteriormente daria
lugar à Biblioteca Real (COARACY, 2008). Em 1850, a Ordem Terceira, proibida de
executar os sepultamentos de seus membros dentro do templo, implantou um
cemitério na Ponta do Caju, junto ao da Misericórdia.
A Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia foi provavelmente a primeira
a se estabelecer na cidade. A instituição já possuía por volta de 1582 seu próprio
hospital, criado pelo jesuíta José de Anchieta. Coube também a Misericórdia a
função dos enterramentos. Pelo seu caráter assistencial cuidando de pobres e
enfermos recebeu inúmeras doações, sendo a Irmandade que mais estendeu sua
102
territorialidade, adquirindo inúmeras propriedades, residenciais e comerciais,
perfazendo um patrimônio notável.
Outra antiga Irmandade, a do Santíssimo Sacramento, foi instituída entre os
anos de 1567 e 1569 e se localizava na igreja de São Sebastião. Quando em 1734,
a Sé deixou a igreja do Morro de São Januário passando para a Santa Cruz dos
Militares, a pequena Irmandade do Sacramento se transferiu para a igreja de São
José, onde permaneceu até 1737. Tempos depois se instalou na Igreja do Rosário,
na mesma ocasião em que foi também para ali transferida a Sé do Rio de Janeiro.
Só se estabeleceu em território próprio quando construiu sua igreja do Santíssimo
Sacramento, no século XIX, na atual Avenida Passos. Ao longo do tempo
instalaram-se outras Irmandades do Santíssimo Sacramento nas freguesias da
Candelária, São José e Santa Rita. A Irmandade da freguesia da Candelária foi a
que mais prosperou.
Cabe salientar que as Irmandades que representavam a elite, como a da
Misericórdia e do Santíssimo Sacramento se estabeleceram em territórios
considerados nobres, perto do porto ou nos topos dos morros. O contrário
aconteceria com as Irmandades de negros e pardos que se implantaram em regiões
afastadas do núcleo central, como será demonstrado a seguir. Hoonaert chama a
atenção para esse aspecto:
O local da igreja da confraria dentro da cidade era uma questão de prestígio. A confraria mais prestigiosa conseguia construir sua igreja no topo de um morro, ou no centro da cidade para onde convergiam as ruas. [...]. Por isso observamos que, nas cidades setecentistas do Brasil, as igrejas do Rosário dos pretos e as dos ”moços pardos” ocupam um lugar mais discreto, menos central. (HOONAERT, 1979, p. 387)
A Igreja de São Sebastião no Morro do Castelo abrigou em suas
dependências, as Irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito,
integradas exclusivamente por homens negros. Quando ocorreu a unificação das
duas instituições, em 1667, esta passou a se denominar Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos. Após a elevação da Igreja
de São Sebastião à Catedral da cidade, em 1676, a Irmandade resolveu abandonar
as dependências daquele templo por conta de desavenças com o bispo, embora não
possuíssem uma Igreja para abrigá-los. Em 1708, Francisca Pontes, uma devota de
Nossa Senhora do Rosário, doa à Irmandade um terreno situado à Rua da Vala, em
103
frente à Rua André Dias (atual Rua do Rosário). Teve início a construção da Igreja
de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Em 1737, suas obras já estavam
praticamente concluídas. Embora estivesse localizado no extremo limite da área
urbana da cidade, esse território religioso ganhou notoriedade quando emprestou
suas dependências até 1808 à Catedral da cidade.
Data de 1740 a iniciativa de um grupo de negros africanos, entre homens e
mulheres, libertos ou não, de solicitar ao bispo D. Antônio de Guadalupe a instituição
de uma Irmandade sob a invocação de Santa Efigênia e Santo Elesbão, ambos
negros africanos. Após quatro anos juntando recursos conseguiram inaugurar seu
próprio templo na atual Rua da Alfândega, entre a Avenida Passos e a Rua
Gonçalves Ledo.
Os negros que formaram a irmandade de São Domingos de Gusmão
prestavam sua devoção inicialmente em um altar dedicado ao santo na igreja de São
Sebastião, da mesma forma que os do Rosário. Por conta de desentendimentos com
o bispo, decidiram erguer seu próprio templo em uma área cedida pela Câmara, no
chamado Campo da Cidade26 no início do século XVIII. Por ser a igreja ali construída
a única da região, esta se tornou conhecida pelo nome de Campo de São Domingos.
A Irmandade de Nossa Senhora da Lampadosa exercia sua devoção
inicialmente na igreja do Rosário. Provavelmente por desacordos entre as
irmandades, Pedro Coelho da Silva e sua esposa lhes doaram, em 1748, um lote
para erguerem seu próprio templo, situado na atual av. Passos, próximo à rua Luís
de Camões. Esta irmandade era integrada por negros africanos ou nascidos no
Brasil e foram de grande auxílio com relação a alforrias e apoio aos fugitivos.
Desde 1700 a Irmandade dos Pardos da Conceição estava constituída,
utilizando as dependências da Sé, no Morro de São Januário. Porém, pelo mesmo
motivo que as demais tiveram que procurar seu próprio espaço. Assim conseguiram
adquirir a capela que pertenceu a João Machado e que já havia servido de abrigo a
diversos hóspedes, inclusive aos Irmãos da Ordem Terceira da Penitência. A
propriedade se localizava na rua André Dias (atual rua do Rosário) esquina com a
rua Miguel Couto e incluía o hospício e chãos anexos.
________________________
26 O Campo da Cidade correspondia a uma “planície alagadiça, que compreendia toda a vasta área desde o mar às encostas do Morro do Desterro (Santa Teresa), estendendo-se até o Mangue, era a boca do sertão” (COARACY, 2004, p. 42).
104
No ano de 1734 se agregaram a esta Irmandade os pardos de Nossa
Senhora da Boa Morte, que desde 1663 estavam instalados no convento do Carmo
(OLIVEIRA, 2008, p. 220). Ambas as Irmandades arrecadaram recursos e
construíram novo templo, no local da antiga capela, concluído em 1785, denominado
igreja de Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte. Cavalcanti (2004, p. 214)
destaca a importância das Irmandades de pardos:
Não resta dúvida de que o estudo das irmandades de pardos é importantíssimo para a história urbana do Rio de Janeiro, uma vez que delas participaram pessoas famosas, pelo trabalho realizado de embelezamento da cidade e pelo aprimoramento da vida cultural da sociedade da época.
Mesmo tendo se localizado fora da área urbana, estas Irmandades de negros
e pardos também exerceram sua territorialidade, influenciando a configuração da
cidade. Cavalcanti (2004, p. 206) afirma que a implantação desses templos: (...) levou ao melhoramento dessas áreas e incremento das construções de casas ao seu redor. Dessa forma, a cidade se expandia à medida que os fiéis procuravam embelezar os templos dos santos de sua devoção, alinhar e aplainar as ruas que lhes davam acesso e construir residências nas imediações da morada de seus padroeiros.
A ação territorial da Igreja católica contou com a participação efetiva de fiéis
nesse primeiro período da colonização do Rio de Janeiro. Graças a essa forte
religiosidade que se expressava espacialmente, a cidade foi se cobrindo de
oratórios, ermidas, capelas e igrejas formando uma rede de territórios religiosos que
se interligavam. No mapa 13 se encontram configurados os templos das Ordens
Leigas citadas nesse trabalho.
Até a transferência da capital do Vice-Reinado de Salvador para o Rio de
Janeiro, a área urbanizada restringia-se à extensão de terras entre os quatro morros
que neste estudo foram considerados territórios religiosos.
105
MAPA 13
TERRITORIALIDADE DAS ORDENS LEIGAS NO CENTRO DA CIDADE (MEADOS DO SÉC. XVIII)
Elaborado por Claudia Teixeira a partir da base cartográfica de Barreiros (1965)
CAPÍTULO 4
O SENTIDO RELIGIOSO NA TIPOLOGIA ARQUITETÔNICA
“Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a constroem”. (Sal 126, 1)
107
CAPÍTULO 4 – O SENTIDO RELIGIOSO NA TIPOLOGIA ARQUITETÔNICA No período estudado nesta dissertação a paisagem urbana era visivelmente
impregnada por motivos religiosos. Igrejas, mosteiros, conventos, oratórios, ermidas,
procissões. Eram os sinos das igrejas que ditavam a rotina dos moradores da
cidade. Eram as festas religiosas que permeavam a vida social desde os menos
favorecidos até os mais abastados. Enfim, a igreja era o centro da vida comunitária,
animada pelas diversas Irmandades leigas.
A igreja enquanto templo para os cristãos é o local da oração por excelência,
por se tratar do lugar sagrado onde é celebrado o sacrifício de Jesus Cristo,
apresentado no ritual litúrgico. A certeza da presença de Deus dentro do templo foi
herdada dos judeus para quem o próprio Deus havia fornecido ao rei Salomão27 as
instruções para a sua construção e serviria de local sagrado onde permaneceria a
Arca da Aliança, conforme descrito na Bíblia:
Quando os sacerdotes saíram do lugar santo, a nuvem encheu o templo do Senhor, de modo tal que os sacerdotes não puderam ali ficar para exercer as funções de seu ministério; porque a glória do Senhor enchia o templo do Senhor. Então disse Salomão: “O Senhor declarou que habitaria na obscuridade. Por isso, edifiquei uma casa para vossa residência, um lugar onde habitareis para sempre.28
Este templo foi construído no monte Sião, em Jerusalém. A ele os judeus que
se encontravam dispersos pelo país ou em outros países acorriam em pelo menos
três grandes festas: da Páscoa, de Pentecostes e dos Tabernáculos.
0s primeiros cristãos se encontravam aos sábados nas sinagogas junto com
os judeus para leitura das Sagradas Escrituras (Celebração da Palavra) e depois se
dirigiam às suas casas para celebração do pão (Eucaristia). Porém, a partir do
_____________ 27 O reinado do rei Salomão se estendeu de 950 a 931 a.C. 28 Bíblia de Jerusalém, p. 520 (1Rs 8, 10-13).
108
Imperador Constantino, como foi visto no Capítulo 1, com a construção das
primeiras basílicas, os cristãos passaram a se reunir também em seu próprio templo.
O templo cristão, a partir daí, teve sua tipologia arquitetônica bem
diversificada. Passou pelo estilo bizantino, pelas modificações da planta da igreja
que assumiu a forma da cruz grega (braços com mesmo comprimento), pelo estilo
românico, onde foram acrescentados mais espaços dentro do templo para colocação
de relíquias e altares para os santos. Como construção, atingiu seu ápice, a partir do
século XII, com as catedrais góticas na Europa, que pareciam revelar o senso
religioso de elevação espiritual, característico da época. O Papa João Paulo II
(1999), em sua Carta aos Artistas, descreve essa relação entre a arte e a religião: O patrimônio artístico, que se foi acumulando ao longo dos séculos, conta um florescimento vastíssimo de obras sacras de alta inspiração, que deixa cheio de admiração mesmo o observador do nosso tempo. Em primeiro plano, situam-se as grandes construções do culto, onde a funcionalidade sempre se une ao gênio artístico, e este último se deixa inspirar pelo sentido do belo e pela intuição do mistério. Nascem daí estilos bem conhecidos na História da Arte. A força e a simplicidade do românico, expressa nas catedrais ou nas abadias, vão-se desenvolvendo gradualmente nas ogivas e esplendores do gótico. Dentro destas formas, não existe só o gênio dum artista, mas a alma dum povo.29
No Renascimento, a partir do século XV, as igrejas receberam a influência
dos elementos da arquitetura clássica da Grécia e Roma Antigas, tais como os
capitéis coríntios, arcos plenos, superfícies das colunas ricamente ornamentadas. A
Basílica de São Pedro (1506-1626), em Roma, um dos expoentes do período, teve
entre seus autores Miguelangelo, que projetou a cúpula, uma obra-prima. Outro
arquiteto, Carlo Maderna, transformou a planta dessa igreja de cruz grega para cruz
latina, o que definiu a importância do altar-mor para onde todos que entrassem
deveriam dirigir sua atenção.
No final da chamada Alta Renascença italiana, pouco antes da metade do
século XVI até o início do XVII é o período considerado por muitos autores como o
Maneirismo, uma transição entre o estilo renascentista e o barroco. No momento em
que os portugueses iniciaram suas construções definitivas na cidade do Rio de
Janeiro, a partir de 1567, Portugal já vivia o período chamado de Maneirismo.
____________ 29 Encontra-se disponível em http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/letters/documents/hf_jp-ii_let_23041999_artists_po.html. Acesso em 15/01/2009.
109
Para esse estudo foi adotado o termo “Maneirismo” de acordo com a
definição de Alvim (1999, p. 318): “a produção arquitetônica lusa, erudita ou não,
ligada às formas clássicas, cujo caráter predominante é a simplificação, a rusticidade
e o peso”. Para o caso específico da cidade do Rio de Janeiro a autora acrescenta:
No Rio de Janeiro, a arquitetura maneirista tem grande penetração, cria raízes e torna-se protótipo formal. No que se refere às plantas e fachadas, guia o caráter rígido das obras até o século XIX. A palavra que melhor a exprime é austeridade, a qual se associa fortemente às dificuldades econômicas da cidade nos dois primeiros séculos de sua existência (ALVIM, 1999, p. 318).
Dentro do período estudado nessa dissertação dois outros estilos
arquitetônicos se fizeram presentes nas construções religiosas: o barroco e o
rococó. O barroco, em Portugal, só conseguiu se estabelecer por volta do final do
século XVII. Caracterizou-se por uma “linguagem clássica de tradição renascentista,
mas com um novo significado, à medida que usa formas exuberantes e recorre ao
movimento, ao teatral e ao monumental”. (ALVIM, 1999, p. 312). Para alguns
autores, o barroco, por ter surgido na época pós-Tridentina, teria sido uma reação à
Reforma protestante. Seria uma arte que intensificaria a expressão religiosa católica,
caracterizada pelo apelo dramático.
Externamente, o barroco se materializava “nas formas grandiosas das
construções, com ornamentação abundante e desenho variado e complexo de
plantas e fachadas, com emprego de secções curvilíneas” (OLIVEIRA, 2008, v. 1, p.
119). Internamente se verificava o contraste de luz e sombra, o “revestimento
integral das superfícies e uso de materiais nobres e preciosos, como os mármores
policromos e o bronze dourado” (OLIVEIRA, 2008, V. 1, p. 119). Destacam-se,
igualmente no interior das igrejas, as imagens dos anjos e santos, particularmente
da Virgem Maria, sob diversas invocações. Oliveira (2008, v.1, p. 121-122) ressalta
que essa proliferação de imagens poderia ser vista “como uma reação direta ao
iconoclasmo protestante, que varrera as imagens do interior de seus templos para
se ater apenas à leitura do texto bíblico”. A autora salienta a importância da cidade
do Rio de Janeiro para a História da Arquitetura Religiosa no Brasil: No século XVIII, fase áurea da arquitetura religiosa, foi a primeira cidade brasileira colonial a assimilar a talha joanina e a pintura de perspectiva,
110
novidades importadas da Itália que revolucionariam o barroco português na época de D. João V (OLIVEIRA, 2008, v. 1, p. 13).
O termo rococó - ou Luis XV – vem da palavra rocaille, ou decoração com
conchas. Esse estilo surgiu na França em meados do século XVIII, sendo
identificado pelas curvas, ondulações e assimetria. O estilo se caracterizava pela
leveza, com uma decoração menos opulenta, ambientes claros e arejados pela
implantação de amplas janelas e “nos retábulos e revestimentos ornamentais o
douramento se restringiu aos ornatos, postos em evidência por fundos lisos pintados
de branco, bege ou tonalidades suaves de rosa, azul ou amarelo” (OLIVEIRA, 2008,
v.1, p. 141). Chegou ao Rio de Janeiro em meados do século XVIII, principalmente
nos ornamentos internos das igrejas e em elementos isolados das fachadas,
influenciando pouco a arquitetura. Alvim (1999, p. 318) explica essa singularidade:
Portugal não consegue filiar-se integralmente a este estilo, por sua leveza, assimetria e por negar a clareza das estruturas arquitetônicas, tão caras ao gosto luso. O mesmo ocorre no Rio, onde as decorações de caráter rococó são pesadas e a assimetria e leveza, próprias desta estética, são obtidas com sucesso apenas em pequena escala.
A arquitetura religiosa do período colonial é um tema vasto e muito estudado.
A bibliografia sobre essa matéria é rica em informações e existem pesquisas
extensas sobre as igrejas representativas da época. Devido a este vastíssimo
universo, o objetivo deste trabalho se restringiu à identificação, na paisagem urbana
inicial da cidade, dos conjuntos arquitetônicos de cada Ordem Religiosa com suas
igrejas, conventos e mosteiros logo que se estabeleceram e a construção da
primeira Sé Catedral, no Morro de São Januário, verificando se houve influência
destes conjuntos sobre as demais edificações da cidade.
Para uma análise do ponto de vista dessas construções se buscou
apresentar, na medida do possível, o programa, o partido e a modenatura das
mesmas. Desta forma, para cada Ordem Religiosa, se especificará cada um desses
componentes de análise.
111
4.1 - A primeira Sé
A construção da primeira igreja do Rio de Janeiro, a de São Sebastião,
ocorreu na elevação de um morro, o que dificultou naquele momento uma edificação
com caráter permanente. Foi construída no ano de 1567 por Mem de Sá.
Ainda no século XVI, foi a primeira igreja construída com tipologia de três
naves e coberta de telha. Tempos depois, coube ao novo governador Salvador
Correa de Sá a reconstrução da igreja que se encontrava em ruínas. O novo templo
foi inaugurado em 1583, com características renascentistas. Seu projeto manteve a
composição de três naves, apresentando capela-mor e demais dependências. A
fachada era sóbria, retilínea, o que lhe dava o aspecto maneirista. O corpo central
encimado por frontal triangular com óculo, era ladeado por duas torres arrematadas
por pirâmides. Apresentava uma porta central e três aberturas na altura do coro. As
torres apresentavam duas aberturas em arco voltadas para a fachada principal.
Alvim (1999, p. 239) descreveu o interior do templo: seu corpo se dividia em seis tramos, e as naves eram separadas por arcos sobre pilares octangulares de ordem toscana. Baixa, escura e simples, continha estreita cimalha em madeira, arco cruzeiro sóbrio, altar-mor e quatro altares laterais, todos com ornamentação muito singela.
Não havia iluminação natural no interior da igreja. Foi construída com pedra e
cal. A cobertura em telhas de barro era sustentada por tesouras de madeira sobre o
forro.
Como visto no Capítulo 3, depois do abandono por parte dos membros da
Igreja, que preferiram se instalar na Várzea, este templo foi ocupado pelos freis
capuchinhos italianos que realizaram obras de reforma e ampliação no ano de 1861.
Segundo Moreira Azevedo:
Nessas reformas foram elevadas todas as paredes da igreja e capela-mor, reconstruíram-se as torres, abriram-se janelas no corpo da igreja e na capela-mor, levantou-se o coro, transformaram-se em colunas os pilares que dividiam as naves do interior do templo; fizeram-se de novo os forros, os assoalhos, portas e grades; construíram-se duas capelas fundas pelo que ficou a igreja tendo nove altares, em vez de sete; preparou-se um púlpito e ornou-se o templo com obra de talha.30
_________________ 30 In: Cavalcanti, 1998, p. 94.
112
Esta reforma deu à fachada um aspecto ainda mais pesado, pois as aberturas
das torres foram transferidas para as fachadas laterais, como mostra a Foto 1, ao
contrário do que havia sido estabelecido pelo projeto da fachada do ano de 1861
(fig. 3).
Desta forma permaneceu a igreja e os freis capuchinhos até a demolição, em
1922, tendo os freis se transferido para seu novo templo à rua Haddock Lobo, na
Tijuca.
113
Figura 3 – Planta do projeto da fachada de 1861
Fonte: Cavalcanti, 1998, p. 94
Foto 1 – Vista da Igreja de São Sebastião (fachada frontal)
Fonte: Alvim, 1999, p. 213
114
Foto 2 - Vista da Igreja de São Sebastião (fachada lateral)
Fonte: Nonato; Santos, 2000, p. 264
Foto 3 – Vista interna da Igreja de São Sebastião
Fonte: Alvim, 1999, p. 52
115
4.2 - As Ordens Religiosas
Certamente os mais expressivos exemplares da arquitetura religiosa na
cidade do Rio de Janeiro remontam ao período colonial, particularmente os
conjuntos arquitetônicos referentes às quatro grandes Ordens Religiosas, três deles
ainda remanescentes. O complexo jesuítico, juntamente com a igreja de São
Sebastião foram demolidos quando do desmonte do morro do Castelo (1922).
Esses conjuntos sofreram modificações e acréscimos com o passar dos anos.
Nem sempre guardaram uma unidade do seu interior com o seu exterior, sob o ponto
de vista artístico da obra, porém suas linhas conservaram um período histórico
importante sobre a formação da cidade e até hoje se destacam na paisagem urbana.
4.2.1 Jesuítas
Assim que foi transferida a cidade para o alto do Morro de São Januário, Mem
de Sá, de acordo com a ordem do Cardeal D. Henrique, tratou de viabilizar o início
das obras para instalações dos inacianos. Foram iniciadas as construções da igreja
e do colégio já no ano de 1567, porém, devido à precariedade dos recursos e a falta
de mão de obra minimamente especializada, beirando à improvisação, se tornaram
necessárias reformas constantes ao longo do tempo. Pelo crescimento das ações
estratégicas dos jesuítas, no exercício de sua territorialidade na Colônia, se fez
necessário um tipo de construção com caráter permanente.
O programa de necessidades das construções jesuíticas basicamente
limitava-se a organizar espaços para “o culto, a igreja com o coro e a sacristia; para
o trabalho, as aulas e oficinas; para a residência, os “cubículos”, a enfermaria e mais
dependências de serviço, além da “cerca”, com horta e pomar” (COSTA, 1978, p.
17).
Para atender a essas necessidades, os jesuítas utilizavam partido
arquitetônico, composto por uma quadra, com pátio central descoberto, distribuindo
as diversas funções do edifício em torno desse pátio. Contíguo a uma das faces do
pátio se implantava a igreja. Assim foi executado o primeiro e único complexo
religioso monástico na cidade do Rio de Janeiro no século XVI.
A primeira igreja era pequena, construída com taipa e cobertura de telhas.
Provavelmente o Colégio foi construído com os mesmos princípios, porém, por se
116
tratar de um edifício de grande porte para a época, as obras fluíram mais
lentamente.
A Companhia de Jesus tinha como membros homens extremamente
preparados e habilidosos que ingressavam na Ordem dominando um ofício ou
aprendiam no colégio, de acordo com as necessidades de cada local. Assim
exerciam os ofícios de pedreiros, carpinteiros, cozinheiros, sapateiros, médicos,
arquitetos, engenheiros, entre outros.
Dentre estes, se destacou no Brasil colonial o jesuíta português Francisco
Dias que dentre os muitos ofícios que possuía era pedreiro, carpinteiro, mestre-de-
obras, arquiteto. Já havia participado das obras da igreja da Companhia de Jesus de
São Roque de Lisboa31, em Portugal, onde trabalhou com o arquiteto italiano Filipe
Terzi. Chegou ao Brasil em 1577 e iniciou a reconstrução da igreja e do colégio no
morro de São Januário em 1585, concluída três anos depois. Foi pelas mãos do
irmão Francisco Dias que se deu a influência da arquitetura do Reino sobre a
Colônia. Costa (1978) destaca a importância da sua presença no Brasil:
A presença de um arquiteto profissional de sua categoria no Brasil daquele tempo foi sem dúvida decisiva, não só no sentido de fixar, de forma definitiva e logo de início, as características de estilo próprias da nossa arquitetura jesuítica, como também no de influir nas construções contemporâneas não jesuíticas (COSTA, 1978, p. 43).
No projeto da igreja se verifica certa similaridade com o da igreja de São
Roque de Lisboa, constituído por nave única. A diferença é que na igreja carioca não
havia capela-mor, característica essa que a diferenciou das demais igrejas
estudadas. O altar-mor se situava na parede de fundo da nave, caso único nos
templos jesuítas (ALVIM, 1999). Também não existiam galilé ou pórtico: o fiel
entrava diretamente no salão da igreja e se deparava com o púlpito elevado
(celebração da Palavra) e, mais a frente o altar-mor (celebração da Eucaristia), o
que valorizava a visibilidade desses elementos, bem de acordo com as disposições
litúrgicas Tridentinas. Embora o projeto previsse capelas laterais, estas não foram
executadas, ficando em seu lugar três altares laterais.
___________________________________
31 Primeira igreja da Companhia de Jesus em Portugal (1565 – início da construção).
117
A semelhança com a igreja de São Roque também se verificava nos
elementos da fachada, com características renascentistas, como o frontão triangular
despojado, com um óculo no centro do frontão e a sobreverga também triangular
sobre a porta principal. Na altura do coro três aberturas com vergas retangulares,
únicos vãos de iluminação da igreja. A fachada era arrematada por cunhais de
pedra, dando-lhe aspecto rústico e simplificado.
A técnica utilizada para construção era alvenaria de pedra com argamassa de
barro. As paredes internas e externas eram caiadas e o teto da igreja era em telha
sobre estrutura de madeira. A estrutura se desenvolvia por paredes portantes,
recebendo as cargas da cobertura.
A torre sineira, que se localizava entre a igreja e o colégio apresentava
pequenas janelas retangulares alinhadas verticalmente, finalizando, na altura do
sino, com duas aberturas em arco pleno. O acabamento do telhado era em pedra e
cal em forma de pirâmide.
118
Foto 4 – Vista da igreja de São Roque de Lisboa
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Igreja_de_S%C3%A3o_Roque_(Lisboa)
Foto 5 – Vista da igreja de Santo Inácio
Fonte: Nonato; Santos, 2000, p. 36
119
Foto 6 – Vista interna da igreja de Santo Inácio
Fonte: Nonato; Santos, 2000, p. 34
120
Em seu artigo sobre o Real Colégio de Jesus, Carvalho (N/C, p. 54) afirma
que “entre 1573-1579 o colégio inaugurara as partes destinadas ao trabalho, à
residência e à subsistência dos padres”. Encontrava-se disposto na fachada no
mesmo plano da igreja e da torre sineira.
O projeto, como dito anteriormente, era composto por uma quadra ao redor
do pátio central onde se distribuíam as diversas funções estabelecidas no programa:
culto (com a já mencionada igreja), trabalho e residência. Destaca-se a botica “que
fornecia remédios às demais farmácias da cidade, das aldeias e das fazendas”
(CARVALHO, N/C, p.57).
Construído em pedra e cal, apresentava nas fachadas o mesmo acabamento
da igreja, contrastando a cor dos cunhais de pedra com a pintura caiada.
A austeridade e a disciplina características dos jesuítas se expressavam na
paisagem da cidade por seu complexo arquitetônico de feições maneiristas com
moderação de linhas e muita simplicidade. A concepção da forma vinha ao encontro
da função estabelecida pela Igreja Católica a partir do Concílio de Trento que era de
aproximação com os fiéis.
Para a história da arquitetura religiosa brasileira, ficarão registrados o caráter
sóbrio e as composições renascentistas, características das igrejas jesuítas dos
séculos XVI e XVII que influenciaram o programa, o partido, a técnica e a
modenatura das igrejas coloniais. A singularidade da obra jesuíta foi certamente um
marco, como afirma Costa (1978, p. 13): (...) apesar das mudanças de forma, das mudanças de material e das mudanças de técnica, a personalidade inconfundível dos padres, o “espírito'' jesuítico, vem sempre à tona: - é a marca, o cachet que identifica todas elas e as diferencia, à primeira vista, das demais.
121
Figura 4 – Fachada do Colégio Jesuíta
Fonte: Nonato; Santos, 2000, p. 25
Foto 7 – Vista do complexo jesuítico – Morro do Castelo
Fonte: Nonato; Santos, 2000, p. 131
122
4.2.2 Beneditinos
O complexo beneditino composto pela igreja e o mosteiro é o mais antigo
remanescente do período colonial e certamente um dos mais belos.
Assim que ocuparam o morro que pertencia à sesmaria doada por Manuel de
Brito, os dois monges beneditinos trataram de erigir, com a ajuda de alguns poucos
moradores da cidade, um dormitório, de taipa de pilão, próximo à ermida existente
de Nossa Senhora da Conceição. Pouco tempo depois, os monges iniciaram as
reformas na ermida, aumentando-lhe as dimensões. No mesmo ano em que se
transferiram para o morro, em 1590, foi considerado “o ano da fundação do Mosteiro
de São Bento do Rio de Janeiro” (ROCHA, 1991, p. 54).
O programa estabelecido pelas outras Ordens Religiosas não diferenciava em
muito do programa jesuítico: espaços para o culto, para o trabalho, para a
residência, dependências de serviço e apoio, além da cerca. Atendendo ao
programa, os arquitetos ou engenheiros também utilizavam um partido composto
geralmente por prédio com dois pavimentos com galerias cobertas, abertas em
arcadas ao redor de um pátio interno descoberto. Contíguo a uma das faces do pátio
se implantava a igreja.
Normalmente, a Ordem de São Bento também empregava arquitetos e
artistas do seu próprio mosteiro. Porém, o projeto original da igreja de Nossa
Senhora do Monserrate, que viria a substituir a ermida de Nossa Senhora da
Conceição, pertenceu ao engenheiro militar Francisco Dias Mesquita e data
provavelmente de 1618 (ROCHA, 1991). As obras só foram iniciadas no ano de
1633 tendo sido concluídas em 1641. O tratamento do frontispício, que constitui a
parte mais antiga do conjunto, é atribuído a Francisco Dias embora só tenha sido
levantado entre 1666 e 1669.
A igreja do projeto original possuía nave única com capela mor, sacristia e um
corredor lateral, contíguo às futuras instalações do mosteiro, que até então possuía
apenas uma ala. Somente no ano de 1670 sofreu a primeira grande reforma, com
acréscimos, executada pelo arquiteto beneditino frei Bernardo de São Bento. A
planta que era retangular, de nave única, passou ao partido de três naves, utilizado
pela primeira vez no século XVII. As duas naves laterais eram mais baixas que a
principal. Foram introduzidas capelas laterais interligadas e tribunas no pavimento
superior que se abrem para o corpo da igreja por meio de arcadas, da mesma forma
123
como foi inserido o púlpito. A capela-mor foi aprofundada e a sacristia ficou situada
atrás da capela-mor. O coro foi disposto sobre a galilé. Os tetos das naves laterais
são abobadados, com arestas, entre arcos transversais.
Internamente se destacam os trabalhos de pintura da abóbada da nave
central exibindo apainelados geométricos imitando diferentes texturas de
marmorizados, característico das igrejas maneiristas do século XVII (OLIVEIRA,
2008). Igualmente importantes são as pinturas de santos da Ordem Beneditina nas
paredes e teto da capela-mor do pintor frei Ricardo do Pilar, entre 1669 a 1684.
Complementando esses acréscimos foram executados pelo beneditino frei
Domingos da Conceição, entre 1680 e 1717, os revestimentos em talha dourada nas
paredes, na capela-mor, no arco cruzeiro e pilastras que separam as naves, que
identificam a primeira fase do barroco luso-brasileiro.
Porém, depois destas obras, outras modificações e acréscimos ocorreram ao
longo dos séculos XVIII, XIX e XX, como as talhas barrocas das imagens de Nossa
Senhora de Monserrate, de São Bento de Núrsia e Santa Escolástica, todas elas
atribuídas aos entalhadores Simão da Cunha e José da Conceição e Silva. Cabe
ressaltar a introdução do estilo rococó, na capela-mor e no arco cruzeiro, realizada
por Mestre Inácio Ferreira Pinto, entre 1788 e 1794. Portanto, a igreja de Nossa
Senhora de Monserrate apresenta elementos característicos dos três estilos:
maneirismo, barroco e rococó e, mesmo assim, conseguiu manter a harmonia do
seu conjunto.
A fachada principal é marcada por sua austeridade, com uma composição de
um retângulo encimado por frontão triangular, com uma janela no tímpano, cujas
únicas ornamentações são as pilastras e as cimalhas com acabamento em pedra e
os vazios em alvenaria caiada. Apresenta três arcadas em arco pleno, formando a
galilé que se tornou uma característica beneditina da época.
As duas torres, simétricas, ligeiramente recuadas, apresentam duas arcadas
na altura do pavimento dos sinos, cujo fechamento é arrematado por pirâmides.
A iluminação da igreja só é obtida por intermédio das janelas do coro que se
situam na fachada frontal, entre as duas torres sineiras. Sobre a capela-mor, no final
do século XVIII foi implantada uma clarabóia. A falta de iluminação no interior do
templo seguia os moldes da religiosidade da época.
Todo o templo foi construído com arenita retirada das pedreiras dos
beneditinos na ilha das Enxadas e no morro da Viúva. A madeira utilizada foi
124
extraída da Ilha das Cobras. As paredes externas eram caiadas em contraste com a
cantaria.
As obras do mosteiro, iniciadas em 1652 só foram concluídas em 1755. Pelo
mesmo projeto de Frei Bernardo, a partir de 1668 se completou a quadra
conventual. O mosteiro se distribui em três blocos, em planta quadrangular, com
pátio central descoberto, sendo que uma das faces contíguas à igreja apresentava
pavimento superior. A arquitetura também é sóbria, harmonizando com a igreja.
Cabe salientar que esse mosteiro sofreu diversos danos ao longo do tempo:
foi alvejado por tiros de canhão, saqueado por tropas francesas, se incendiou, enfim,
quase foi destruído por completo diversas vezes. Consequentemente foi alvo de
muitos projetos e reformas sempre realizados por membros da Ordem, o que
viabilizou a harmonia do seu conjunto.
Os beneditinos se diferenciaram dos jesuítas pela qualidade da construção,
porém a austeridade e a disciplina dos beneditinos também se refletem na
arquitetura com a economia de linhas e muita simplicidade. Porém esta simplicidade
só se verifica externamente. A igreja de Nossa Senhora do Monserrate apresenta
em seu interior uma riqueza abundante de ornamentos dourados. O fiel ao passar da
claridade do adro, pela penumbra da galilé e adentrar a igreja se depara com um
dos mais singulares templos da arquitetura religiosa colonial. Para os monges beneditinos as paredes brancas, simples e despojadas do
mosteiro são um prenúncio da sua arquitetura interna, destinada à habitação
quotidiana dos monges, em total contraste com o esplendor dourado da igreja. Para
eles o raciocínio é simples: “enquanto esse despojamento está de acordo com a vida
pobre abraçada pelos monges, o máximo de beleza está reservado ao templo, que é
a casa de Deus”31.
_________________ 31 Comentário apresentado no site oficial da Ordem de São Bento no Rio de Janeiro, disponível em http://www.osb.org.br/. Acesso em 15/01/2008.
125
Foto 8 – Vista da igreja de Nossa Senhora de Monserrate
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Mosteiro_de_S%C3%A3o_Bento_(Rio_de_Janeiro)
Foto 9 – Vista interna da igreja de Nossa Senhora de Monserrate
Fonte:http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=378687
126
Foto 10 – Vista do mosteiro de São Bento
Fonte: Ferrez, 1989, p.37
127
4.2.3 Carmelitas
Única Ordem a se instalar na várzea, os carmelitas, assim como os
beneditinos se diferenciaram dos jesuítas pela qualidade da construção. Também se
diferenciaram dos demais por terem construído inicialmente o convento para
posteriormente iniciar a construção da igreja, tendo permanecido por quase dois
séculos na capela construída sobre as bases da antiga ermida de Nossa Senhora do
Ó.
O programa do convento se concentrou no uso de moradia e trabalho dos
carmelitas, além da cerca. Foi construído sobre o antigo hospício que se localizava
ao lado da antiga ermida de Nossa Senhora do Ó. O partido adotado: um claustro,
inicialmente distribuído por dois pavimentos, com alas dispostas em “L”, em torno de
um pátio interno.
As obras do convento só foram iniciadas em 1619. O terreno ocupava a
quadra formada pelas atuais ruas Primeiro de Março, Assembléia, do Carmo e Sete
de Setembro. A fachada era simples, apresentando janelas em toda a sua extensão,
em todos os pavimentos, com sacadas protegidas por guarda-corpos de ferro. Ao
longo do tempo, a construção foi acrescida de mais um pavimento. O jardim claustral
se estendia até a rua do Carmo, por onde a edificação se abria, no pavimento térreo
por meio de arcadas de cantaria. Sofreu diversas alterações na fachada no século
XVIII, porém, foi restaurada em seus elementos originais pelo SPHAN, na década de
70 do século XX. Na década seguinte, foi ocupada a área do jardim pelo
desproporcional edifício de 43 andares denominado Centro Empresarial Cândido
Mendes.
A construção da atual igreja só se iniciou em 1761, seis anos após o início
das obras da igreja dos irmãos da Ordem Terceira, situação bastante singular.
A planta da igreja adotou o partido de cruz latina, que na cidade do Rio de
Janeiro, só é encontrada na Igreja da Candelária, e se constituía por nave única
retangular, capela-mor, seis capelas laterais profundas com tribunas no pavimento
superior e púlpito. Cabe ressaltar a inclusão de tribunas no programa arquitetônico
dos templos, “local nobre que evidencia, no espaço da nave e da capela-mor, a
posição do fiel na irmandade” (ALVIM, 1999, p. 95).
128
O projeto original da fachada da igreja de Nossa Senhora do Carmo, não
concluído, apresentava uma linguagem clássica, com pouca decoração. O
frontispício apresentava três portas na entrada, em estilo pombalino português, que
foram mantidas. Igualmente possuía três aberturas na altura do coro. A composição
de alvenaria caiada em contraste com a cantaria era similar às demais igrejas já
estudadas. Era marcada por sua assimetria devido à localização da torre sineira,
afastada do corpo central. Na altura do coro se localizam três janelas de
sobrevergas curvas, com balcões e balaustres. Acima das janelas, na direção da
porta principal foi colocada em um nicho uma imagem de São Sebastião.
O frontispício só foi concluído no reinado de D. Pedro I, pelo projeto do
arquiteto Alexandre Cravoé, ganhando um terceiro pavimento. Provavelmente
recebeu influência da igreja de Nossa Senhora do Carmo, do Porto, construída em
1756. Porém, a fachada sofreu alterações no início do século XX, perdendo suas
características originais. Também nesta época, a torre, que ameaçava ruir, foi
substituída por uma de sessenta metros de altura, projetada pelo arquiteto italiano
Rafael Rebecchi. É coroada por uma imagem de bronze de Nossa Senhora da
Conceição.
Internamente, destacam-se os trabalhos de talha dourada, no estilo rococó,
executados, a partir de 1785, pelo escultor Inácio Ferreira Pinto que cobre a capela-
mor, capelas laterais, nave, teto e o arco-cruzeiro que apresenta dossel com
emblema da Ordem do Carmo. Alvim (1999) afirma que a elaboração da talha
“conforma o espaço interno de maior harmonia e unidade formal da segunda metade
do século XVIIII no Rio de Janeiro” (ALVIM, 1999, p. 286).
Dentre diversos acréscimos executados no interior do templo, a partir da
chegada da Família Real, figuram as telas ovais com pinturas dos Apóstolos
situadas no alto das paredes laterais da nave entremeando as tribunas. São de
autoria do pintor colonial José Leandro de Carvalho.
A iluminação natural do interior do templo se distingue das igrejas já
analisadas por apresentar lunetas no teto, além das três aberturas na altura do coro.
Essas lunetas representavam um novo processo de captação de luz identificando a
evolução do uso da iluminação natural nos templos a partir do século XVIII.
Entre o convento e a igreja havia uma ligação por intermédio de passadiço.
Esse elemento arquitetônico foi implantado quando ocorreu o prolongamento da rua
129
do Cano até a rua Direita, cortando parte do convento. No final do século XIX, o
passadiço foi retirado definitivamente.
Os carmelitas foram os últimos das quatro Ordens estudadas a construir seu
templo e foram os que menos o usufruíram. Logo depois da chegada da Família
Real ao Rio de Janeiro, em 1808, foram obrigados a deixá-lo para dar lugar ao novo
uso imposto pela rainha de capela Real (1808-1822), Capela Imperial (1822-1889) e,
posteriormente, Catedral da cidade (1889-1976). A partir de então diversos
acontecimentos relacionados à monarquia fizeram com que esta igreja ficasse
registrada para sempre na história da cidade.
130
Foto 11 - Vista geral do complexo dos carmelitas (ainda havia o passadiço)
Fonte: Ferrez, 1989, p. 50
Foto 12 - Vista do Convento do Carmo
Fonte: http://picasaweb.google.com/lh/photo/jOxtmdpV9ESSvzUkdlAt7Q
131
Foto 13 – Vista da igreja do Carmo no Porto, Portugal
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Igreja_do_Carmo_(Porto)
Foto 14 – Vista da igreja do Carmo no Rio de Janeiro
Fonte: http://www.rio.rj.gov.br/sedrepahc/proj_igreja_nscarmo.shtm
132
Foto 15 – Vista interna da igreja do Carmo
Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=378687
133
4.2.3.1 A Ordem Terceira
Como foi visto no Capítulo 3, em 1755, a Ordem Terceira iniciou a construção
da sua própria Igreja de Nossa Senhora do Carmo, ao lado da que era conventual.
Segundo Alvim (1999) o projeto é atribuído ao Irmão Francisco Xavier Vaz de
Carvalho e o construtor do edifício foi Manuel Alves Setúbal. As obras se
estenderam até 1770, ficando as torres inacabadas.
De acordo com Alvim (1999), a igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora
do Carmo é:
dentre os monumentos religiosos edificados na cidade na segunda metade do século XVIII, um dos mais importantes, afirmativa que se justifica pela planta, fachada, espaço e talha. Sua planta, além de apresentar uma elaboração gráfica ímpar no contexto das plantas retangulares locais, é um exemplo do que se conceitua planta estruturada, pela organização dos espaços, que forma um contorno externo retangular (ALVIM, 1999, p. 282).
Esses espaços internos aos quais a autora se refere constituem-se de uma
das maiores naves retangulares do século XVIII, ladeada por corredores laterais e
tribunas, capela-mor profunda circundada por anexos, seis altares laterais, púlpito e
demais dependências.
Internamente apresenta talhas douradas em estilo rococó iniciadas pelo
entalhador Luiz da Fonseca Rosa que, anos depois, foi auxiliado por Valentim da
Fonseca e Silva (Mestre Valentim). No século XIX as paredes da nave foram
preenchidas com talha pelo escultor Antônio de Pádua e Castro, o que deu ao
interior um aspecto mais homogêneo.
A fachada, de primorosa cantaria, com cinco tramos, é encimada por frontão
contracurvado típico do barroco, com acrotério e cruzeiro. Os tramos centrais se
delimitam por pilastras duplas com capitel invertido. Apresenta uma única porta de
acesso, com portada de lioz vinda de Lisboa, encimada por um medalhão com a
imagem da Virgem. Percebe-se sua influência sobre as portadas das igrejas dos
Terceiros de São Francisco, de Ouro Preto e de São João del Rei, sob o risco de
Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Compõem a fachada, três janelas na altura
do coro.
Essa igreja é a única, dentre as igrejas coloniais do Rio de Janeiro,
totalmente revestida com pedra, sem o contraste entre a cantaria e o reboco branco,
134
característica da maioria dos templos da época. Tal a igreja da Ordem Primeira, a
qualidade e a elaboração da cantaria revelam uma melhora nas condições
econômicas da cidade.
As torres atuais, com suas cúpulas bulbosas revestidas de azulejos, só
seriam construídas, entre 1847 e 1850, pelo arquiteto Manuel Joaquim de Melo
Corte Real.
A cobertura é em abóboda de berço, com arcos duplos e lunetas que
permitem a iluminação natural da nave, além das três janelas do coro e a cúpula
esférica, sobre o presbitério, introduzida no século XIX, também para permitir
entrada de luz.
Ambas as igrejas do Carmo foram erigidas em um período em que as Ordens
Religiosas se encontravam bem instaladas na cidade e com recursos suficientes
para uma construção mais aprimorada, principalmente no que diz respeito à
realização técnica e formal. Junte-se a isso o fato do desenvolvimento da economia
colonial, a partir do final do século XVII, com a descoberta do ouro em Minas Gerais,
ter propiciado o uso do ouro nos acabamentos internos. Além disso, os estilos
barroco e rococó prescindiam de artesãos mais qualificados para sua execução.
135
Foto 16 - Vista da igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Igreja_da_Ordem_Terceira_do_Carmo_(Rio_de_Janeiro)
Foto 17 - Vista interna da igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo
Fonte: http://www.marcillio.com/rio/encepmig.html
136
4.2.4 Franciscanos
Atendendo ao programa estabelecido pela Ordem, o conjunto dos
franciscanos apresenta o partido arquitetônico com igreja, contígua à casa
conventual, em torno de um pátio interno descoberto, além da cerca.
O projeto original do convento previa apenas um pavimento quando foi
concluído em 1615. Constava de um claustro com planta quadrada. Ao longo do
tempo se tornou necessária a sua ampliação, o que aconteceu a partir de 1748,
concluída em 1780. Constituiu-se de um bloco com três pavimentos cuja fachada
apresenta pequenas janelas, de forma quase quadrada, em toda a sua extensão. É
revestido com cunhais de pedra e alvenaria caiada. A cobertura é com telhas de
barro, destacando-se o pináculo encimado em uma das extremidades do prédio.
Para o claustro central, o corredor do térreo se abre em arcadas de cantaria,
enquanto nos andares superiores, aparecem as pequenas aberturas das janelas.
O conjunto foi construído de 1608 até aproximadamente 1620, data da
conclusão da igreja, sob o risco do Frei Francisco dos Santos. O projeto da igreja de
Santo Antônio seguiu o partido de nave única alongada, capela-mor, três altares
(sendo dois laterais), púlpito e sacristia. A nave, no final do século XVII, foi acrescida
pela galilé, projeto de Frei Francisco da Porciúncula, com três arcadas em arco
pleno sob o coro. Sofreu diversas alterações nos séculos XVIII, XIX e XX.
A fachada original da igreja apresentava frontão triangular com um óculo no
tímpano, três portas de acesso e três janelas na altura do coro, com verga curva. O
frontispício era em cunhais de pedra e alvenaria caiada. No século XVIII, Frei
Martinho de Santa Teresa reformou as arcadas em arco pleno que foram
substituídas por portas com alizares, em mármore de lioz, trazidos de Portugal.
O interior da Igreja, refletindo o espírito franciscano, era muito simples.
Apresentava retábulos em estilo maneirista e pinturas que ornavam a capela-mor.
Da mesma época são os dezoito bustos de santosa franciscanos martirizados no
Japão que se localizam no parapeito do coro da igreja. No início do século XVIII
houve a ampliação e ornamentação da capela-mor e altares, com talha dourada
barroca, em estilo nacional português, executados por Frei Lucas de São Francisco.
O teto da capela-mor foi decorado com pinturas ilustrando a vida de Santo Antônio.
Destaca-se, igualmente, a sacristia, pela notável composição arquitetônica, sendo
considerada por diversos autores como a mais bela da cidade.
137
No início do século XX o frontão foi modificado, tendo aumentado em altura,
perdendo as características maneiristas, adotando um estilo mais aproximado do
neocolonial. Data da mesma época a pintura em azul-claro da superfície do arco-
cruzeiro, que destoa do conjunto. A iluminação natural se faz pelas janelas do coro.
A igreja não possui torre sineira, apenas um campanário sobre a portaria do
convento.
Pelo lado direito da nave se dá o acesso à primitiva capela de Nossa Senhora
da Conceição, da Ordem Terceira, também com talha barroca, porém, de fase
posterior.
138
Foto 18 - Vista geral do complexo franciscano (1893)
Fonte: Ermakoff, 2006, p. 195
Foto 19 - Vista geral do complexo franciscano nos dias de hoje
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Convento_de_Santo_Ant%C3%B4nio_(Rio_de_Janeiro)
139
Foto 20 – Vista da igreja de Santo Antônio
Fonte: http://www.franciscanos.org.br/noticias/noticias_especiais/conventorio_08/02_21.php
Foto 21 – Vista interna do convento – claustro
Fonte: http://www.franciscanos.org.br/noticias/noticias_especiais/conventorio_08/02_21.php
140
Foto 22 – Vista interna da igreja de Santo Antônio
Fonte: www.zahar.com.br/catalogo_exclusivo.asp?id=12..
Foto 23 - Detalhe do altar-mor com a imagem de Santo Antônio
Fonte: http://www.franciscanos.org.br/noticias/noticias_especiais/conventorio_08/02_21.php
141
Foto 24 – Vista do órgão no interior da igreja
Fonte: br.geocities.com/organistas.brasil/
142
4.2.4.1 A Ordem Terceira
A Ordem Terceira de São Francisco iniciou a construção da igreja de São
Francisco da Penitência no ano de 1657 ao lado da que era conventual. No ano de
1747 já havia sido quase totalmente concluída. Como visto no capítulo anterior, os
irmãos consideraram terminada a obra em 1772.
O projeto da igreja seguiu o partido de nave única alongada, capela-mor, seis
altares e tribunas laterais, sacristia e dois púlpitos. A igreja não apresenta torres
sineiras, por exigência dos freis à época de sua construção.
A fachada se destaca das demais igrejas por sua proporção: maior na largura
do que na altura. Caracteriza-se por três corpos unidos, compartimentados
verticalmente por quatro pilastras em cantaria, arrematadas por pináculos, que eram
ligados por cimalha corrida, com óculo no centro do frontão barroco. Na segunda
década do século XX a parte central da cimalha foi retirada. Apresenta três portas,
sendo a principal trabalhada em lioz, vinda de Portugal, encimada por medalhão oval
incluindo as armas da Ordem. Sobre cada uma das portas se posicionam duas
janelas, na altura do coro.
A igreja, que ocupa o corpo central do conjunto, se distingue das demais,
apresentando-se totalmente revestida em talha dourada da fase áurea do barroco
luso-brasileiro. Oliveira (2008, p. 113) destaca que “o visitante recebe de imediato o
impacto da harmonia de todo o conjunto ornamental, onde nada foi deixado ao
acaso. Talha, pintura e imagens escultóricas estão em perfeita sintonia, por
pertencerem a um único estilo, o barroco D. João V”. A partir da 2ª década do século
XVIII, dois artistas portugueses deram início à execução das talhas: Manuel de Brito,
entalhador e Francisco Xavier de Brito, escultor. A Manuel de Brito coube a
execução do retábulo do altar-mor, de um dos púlpitos e as talhas que recobrem as
paredes da nave. Francisco Xavier de Brito fez a talha do arco cruzeiro até a cimalha
e os seis altares laterais.
Destaca-se, igualmente, a pintura dos tetos da nave e da capela-mor que foi
executada por Caetano da Costa Coelho, que utilizou a técnica da pintura em
perspectiva ilusionista, considerada uma das mais perfeitas do Brasil. No século
XIX, a pintura sofreu restaurações que não a adulteraram.
143
A iluminação do templo é obtida pelas janelas do coro. O teto da nave e
capela mor é com abóboda de berço. A cobertura do templo é feita com telha canal
sobre tesouras de madeira.
144
Foto 25 - Vista da igreja de São Francisco da Penitência
Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=378687
Foto 26 – Vista interna da igreja de São Francisco da Penitência
Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=378687
145
Foto 27 - Aspecto do altar-mor
Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=378687
Foto 28 – Vista do teto com pintura em perspectiva
Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=378687
146
Como espelho do patrimônio que a Ordem Terceira adquiriu ao longo dos
anos, esta igreja se caracteriza por ser uma das mais ricas da cidade, e até mesmo
do país. Como é um dos templos de construção mais recente recebeu forte
influência do estilo barroco, sendo considerada por Alvim (1999) uma das
composições mais elaboradas da arquitetura luso-brasileira, pela riqueza e coesão
formal de seu interior, no qual a talha e a pintura se integram.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Um pouco de ciência nos afasta de Deus. Muito, nos aproxima”. Louis Pasteur
148
CONSIDERAÇÕES FINAIS O breve estudo da territorialidade religiosa da Igreja Católica e das Ordens
Religiosas e Leigas na cidade do Rio de Janeiro, no período colonial, revelou ações
distintas das instituições, porém, com um mesmo fim: apropriação do espaço para
manutenção da fé. Ao longo do tempo novos espaços foram sendo contemplados
pelas estratégias eclesiais (re) configurando a organização territorial da Igreja como
um todo.
Verificou-se que a Igreja secular e as Ordens Religiosas se implantaram em
sítios estratégicos da cidade, a maioria em pontos mais elevados, como que
dominando o território. Até 1608 as quatro Ordens já estavam instaladas na cidade.
Jesuítas, Beneditinos, Carmelitas e Franciscanos tornaram-se grandes proprietários
de terras urbanas e rurais.
Foi visto que, em muitos casos, a configuração da malha urbana se vinculou
à edificação religiosa, fosse ela uma ermida, uma capela, uma igreja ou um
convento. O traçado de várias ruas, largos, terreiros, foi concebido a partir da
implantação destes territórios religiosos, que funcionaram como pólos
centralizadores em torno dos quais a cidade foi se estruturando. No período
estudado nesta dissertação a cidade compreendia basicamente o perímetro formado
pelos quatro morros considerados territórios religiosos.
Igualmente como foi visto no capítulo 3, para além desse traçado urbano, as
Ordens Religiosas receberam terras em regiões mais afastadas do centro, onde
instalariam engenhos, olarias, fazendas de gado, induzindo os caminhos de
expansão da cidade.
Em 1763, com a elevação da cidade do Rio de Janeiro à capital do Vice-
Reino, diversas ações administrativas por parte do 1º Vice-Rei Conde da Cunha
(1763-1767) visaram melhoramentos da cidade para que esta se amoldasse ao
status de capital. Constavam entre essas ações a edificação de quartéis, do Arsenal
de Marinha e a abertura e saneamento de diversos logradouros. Dentre esses, o
149
Vice-Rei mandou cobrir a vala com lajes de pedra, no logradouro que até então era
considerado o limite da cidade. Sua intenção era atrair para o núcleo central os
moradores de classe mais abastada que permaneciam em seus engenhos e
fazendas, o que favoreceu o adensamento populacional. Tais iniciativas foram
modificando os aspectos da cidade que ultrapassou os limites da Rua da Vala (atual
Uruguaiana), da mesma forma que novas concepções estéticas foram modificando a
tipologia das construções, como o estilo neoclássico.
Ao mesmo tempo, a segunda metade do século XVIII marcou para a vida
religiosa uma fase de crise progressiva, que em alguns casos se estendeu até a
proclamação da República. O secretário de Estado do Rei D. José I (1750-1777),
Marquês de Pombal, se empenhou no fortalecimento do absolutismo régio e no
combate a setores e instituições que poderiam enfraquecê-lo. Uma dessas ações foi
a expulsão da Companhia de Jesus de Portugal e suas colônias em 1759, com o
conseqüente confisco de seus bens, após a conclusão da Reforma da Ordem
estabelecida pelo papa Benedito XIV (CAVALCANTI, 2004). Atitude paradoxal,
quando se verifica que Portugal foi quem primeiro recebeu os jesuítas, de forma
efusiva, para posteriormente os banirem de forma tão violenta.
Igualmente carmelitas e franciscanos enfrentaram crises em seus conventos,
principalmente quando em 1855 ficaram proibidos de receberem noviços e abrirem
novas casas.
Com o advento da República, em 1889, houve a separação da Igreja do
Estado. A Igreja Católica se reestruturou e novas estratégias territoriais foram sendo
implantadas visando a missão espiritual da instituição. No Rio de Janeiro,
permanece exercendo seu controle territorial através da hierarquia espacial diocese-
vicariatos-paróquias. Atualmente, a Diocese se subdivide em 7 Vicariatos
Episcopais32, cada um abrangendo uma determinada região da cidade. Cabe
ressaltar que o Vicariato Episcopal de Jacarepaguá33 foi criado em 2005, tendo em
vista o crescimento da região Oeste da cidade. Uma ação recente da Igreja Católica,
visando melhor administração e controle do território por parte do poder religioso,
acompanhando o crescimento da cidade. _______________ 32 A saber: Urbano (20 paróquias), Sul (25 paróquias), Norte (38 paróquias), Leopoldina (38 paróquias), Suburbano (53 paróquias), Oeste (58 paróquias) e Jacarepaguá (19 paróquias). 33 O novo vicariato foi formado com dez paróquias que pertenciam ao Vicariato Suburbano e nove que eram do Vicariato Sul. Engloba as regiões da Rocinha, São Conrado, Itanhangá, Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes, Vargem Grande e Jacarepaguá.
150
As Ordens Religiosas também passaram por um processo de mudanças e
ainda hoje exercem sua territorialidade na cidade.
O Papa Pio VII restaurou a Companhia de Jesus em 1814. Em 1873
retornaram os primeiros jesuítas ao Rio de Janeiro, reiniciando o exercício de sua
territorialidade através de seu carisma de formação em dois grandes bairros da zona
sul da cidade: em Botafogo, com o Colégio Santo Inácio, desde 1903, e na Gávea,
com a Pontifícia Universidade Católica, fundada em 1941 pelo arcebispo da cidade
D. Sebastião Leme e pelo padre jesuíta Leonel Franca, cujo campus ocupa uma
área considerável.
Os carmelitas, embora tenham perdido seu primeiro território religioso na
Várzea, quando da chegada da Família Real, ocuparam na Lapa o espaço que lhes
foi cedido e lá permanecem até hoje com o Convento do Carmo e a igreja de Nossa
Senhora do Carmo da Lapa.
A Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo ainda é a responsável, ao
lado da Santa Casa da Misericórdia (que se manteve em seu território original),
pelos enterramentos na cidade, ocupando os cemitérios no bairro do Caju, inclusive
sendo proprietários do único cemitério vertical da cidade, o Memorial do Carmo.
Os beneditinos ainda hoje despertam interesse por seu estilo de vida
monástica, principalmente em tempos tão turbulentos. Também na área da
educação se destacam com o colégio São Bento, fundado em 1858, que formou
personalidades como Pixinguinha, Benjamin Constant, Noel Rosa, Antônio Silva
Jardim, Villa-Lobos, entre outros.
Os franciscanos mantiveram seu território embora tenham perdido
parcialmente sua área devido ao desmonte do morro de Santo Antônio, no século
XX. Ainda hoje os fiéis lotam a igreja de Santo Antônio na festa do padroeiro.
A Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, como foi dito
anteriormente, acumulou um patrimônio razoável ao longo do tempo. O forte
crescimento da Ordem trouxe também conseqüências negativas uma vez que os
ideais religiosos foram sendo relegados cada vez mais para um segundo plano.
Porém, a administração mais recente tem realizado um importante trabalho na área
da educação, com creches, escolas, centros comunitários, além da manutenção do
hospital da Ordem Terceira, na Tijuca. Desde 2002 atua no “Projeto Humanização
da Zona Portuária”, região onde concentra a maior parte de suas ações.
151
Atualmente, o morro da Conceição já não guarda muitos vestígios de território
religioso. O antigo Palácio Episcopal se transformou, no início do século XX, em
sede da 5ª Divisão de Levantamento do Serviço Geográfico do Exército.
Portanto, dos cinco territórios religiosos apontados no capítulo 3 deste
trabalho, as edificações de quatro deles permaneceram, e apenas o conjunto
jesuítico foi demolido com o arrasamento do morro do Castelo. Esses conjuntos
arquitetônicos permanecem em destaque na paisagem, como heranças que
embelezam e enaltecem a cidade até hoje. Todos foram tombados pelo IPHAN
(Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Igualmente importantes são os templos da Igreja secular e das Irmandades
que foram preservados, tais como: a Igreja de Nossa Senhora do Outeiro da Glória,
Nossa Senhora da Candelária, São José, Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores,
Santa Rita, Nossa Senhora da Conceição e Boa Morte, entre outros.
Como foi visto no capítulo 4, a arquitetura no período colonial, expressou o
conteúdo ideológico de uma cultura impregnada de religiosidade, refletindo as
disposições apresentadas pelo Concílio de Trento (1545-1563). Concluiu-se, por
este estudo, que os exemplares estudados receberam influência das disposições
eclesiais da época em que foram construídos, tais como a valorização do altar e da
pregação, visando atrair novos fiéis e trazer de volta os desgarrados. Enfim, o
templo funcionou como um importante emissor da mensagem religiosa. A arquitetura
religiosa dos conjuntos estudados influenciou outras igrejas e até mesmo edificações
civis com suas técnicas construtivas. As construções mais elaboradas, utilizando
tecnologia mais moderna se realizaram em templos religiosos e militares.
A arquitetura como forma de expressão religiosa foi reconhecida pelo Papa
João Paulo II (1999):
A Igreja precisa de arquitetos, porque tem necessidade de espaços onde congregar o povo cristão e celebrar os mistérios da salvação. Depois das terríveis destruições da última guerra mundial e com o crescimento das cidades, uma nova geração de arquitetos se amalgamou com as exigências do culto cristão, confirmando a capacidade de inspiração que possui o tema religioso relativamente também aos critérios arquitetônicos do nosso tempo. De fato, não raro se construíram templos, que são simultaneamente lugares de oração e autênticas obras de arte.34
_____________ 34 Encontra-se disponível em http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/letters/documents/hf_jp-i_let_23041999_artists_po.html. Acesso em 15/01/2009.
152
Passados mais de cinco séculos, as marcas da religiosidade na formação do
espaço urbano brasileiro ainda se fazem presentes. Em 1960, Lúcio Costa disse a
respeito do primeiro esboço do Plano Piloto da cidade de Brasília: “nasceu de um
gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-
se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”.
Em julho de 2007, em pleno século XXI, o Cristo Redentor, no morro do
Corcovado, Rio de Janeiro, foi eleito uma das Sete Maravilhas do mundo moderno.
Há anos símbolo da cidade o monumento é a marca dos cariocas. Numa pesquisa
envolvendo 50 cidades de diversos países, a cidade do Rio de Janeiro foi
considerada a mais solidária e ainda hoje recebe seus visitantes de braços abertos.
Em 2009, no dia 20 de janeiro, cerca de 30.000 fiéis35 caminharam em
procissão em homenagem ao seu santo padroeiro, São Sebastião, num percurso
que ia da igreja de São Sebastião, na rua Haddock Lobo até a Catedral
Metropolitana, na avenida Chile.
Longe de se prender à ignorância e ao atraso, a religião parece ter sido um
poderoso estímulo à cultura. Artistas como Miguelangelo, Da Vinci, Rafael, Bernini,
Borromini, Maderno, Mozart, Schubert, cada qual em sua modalidade produziram
obras de valor artístico inigualável. Não se pode deixar de mencionar os artistas que
atuaram no Rio de Janeiro como Inácio Ferreira Pinto, Manuel de Brito, Mestre
Valentim, e os religiosos Francisco Dias, Bernardo de São Bento, Lucas de São
Francisco, entre outros.
Assim, respondendo à questão apresentada na Introdução se concluiu por
este estudo que houve efetivamente uma forte influência do sentido religioso na
formação da cidade do Rio de Janeiro, não só na configuração urbana como
também na tipologia de suas construções e a cidade reflete ainda hoje as marcas
dessa influência.
____________ 35 Informação obtida no jornal Testemunho de Fé, nº 572, p.3 (de 25 a 31 de janeiro de 2009).
153
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