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1 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA IARA GOMES DE BULHÕES CARNAVAL, CARNIVAL: UMA ABORDAGEM COMPARATIVA ENTRE O CARNAVAL BRASILEIRO E O CARNAVAL INGLÊS ORIENTADOR: PROF. DR. MARCO ANTONIO DA SILVA MELLO Niterói 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

IARA GOMES DE BULHÕES

CARNAVAL, CARNIVAL:

UMA ABORDAGEM COMPARATIVA ENTRE O

CARNAVAL BRASILEIRO E O CARNAVAL INGLÊS

ORIENTADOR: PROF. DR. MARCO ANTONIO DA SILVA MELLO

Niterói

2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

IARA GOMES DE BULHÕES

CARNAVAL, CARNIVAL:

UMA ABORDAGEM COMPARATIVA ENTRE O

CARNAVAL BRASILEIRO E O CARNAVAL INGLÊS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Antropologia da Universidade

Federal Fluminense, como requisito parcial para

obtenção do grau de Mestre.

Vínculos Temáticos

Linha de Pesquisa do Orientador: Ritual e Simbolismo

Projeto do Orientador: Cultura, Identidade, Simbolismo e Rituais Afro-Brasileiros

Niterói

2007

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Banca Examinadora

___________________________________________

Prof° Orientador: Dr° Marco Antônio da Silva Mello

PPGA/ ICHF/ Universidade Federal Fluminense e LeMetro IFCS/ Universidade Federal do Rio de Janeiro

___________________________________________

Prof° Dr° Julio Cesar Tavares

PPGA/ ICHF/ Universidade Federal Fluminense

___________________________________________

Profª Drª Patrícia de Araújo Brandão Couto

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

___________________________________________

Profª Drª Mônica Dias de Souza

Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Bulhões, Iara Gomes de.

Carnaval, Carnival: uma Abordagem Comparativa entre o Carnaval Brasileiro e o Carnaval Inglês / Iara Gomes de Bulhões

148 pp.

Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal Fluminense – UFF, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Programa de Pós-Graduação em Antropologia – PPGA, 2007.

Orientador: Marco Antonio da Silva Mello

1. Carnaval. 2. Notting Hill. 3. Steelpan. 4. Social Drama. 5. Ritual. 6. Etnicidade. 7. Identidade Étnica. 8. Grupos Étnicos.

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Resumo:

Carnaval, Carnival: uma Abordagem Comparativa entre o Carnaval Brasileiro e o

Carnaval Inglês

Esta dissertação apresenta o carnaval de Notting Hill, realizado em Londres, na

Inglaterra, descrevendo-o e focalizando alguns de seus aspectos. Aponta questões acerca

da inserção no campo e da realização de trabalho de campo etnográfico, tanto em meio

aos grupos formadores do carnaval londrino, quanto junto às Escolas de Samba do

Grupo Especial do Rio de Janeiro, integrantes do desfile da Avenida Marquês de

Sapucaí. A partir da contraposição dos dois rituais carnavalescos, assinala algumas das

especificidades encontradas em tais rituais que acontecem em sociedades urbano-

industriais contemporâneas, e analisa alguns de seus significados. O objetivo principal é

lançar luz sobre o carnaval londrino. Estabelecido a partir de um drama social, ele traz

em seu bojo a co-presença de diversos grupos étnicos e pessoas de distintas

nacionalidades, o que proporciona uma conjuntura privilegiada para se observar e

analisar processos e situações sociais que ocorrem em metrópoles cosmopolitas das

dimensões de Londres. Encontram-se aí presentes a (re)construção, a manutenção, a

manipulação de aspectos distintivos por determinados grupos sociais e a afirmação das

chamadas identidades étnicas, que aparecem enfatizadas nesses rituais, por meio de

sinais diacríticos.

Palavras-Chave: Carnaval; Notting Hill; steelpan; social drama; ritual; etnicidade;

identidade étnica; grupos étnicos.

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Abstract:

Carnaval, Carnival: a Comparative analysis of the Brazil and English Carnivals

This dissertation presents the Carnival of Notting Hill that happens in London, England,

as it focuses and describes some of its aspects. Questions are pointed out on the field

insertion and on the ethnographic fieldwork inside the groups which constitute the

Carnival of London as well inside the Samba Schools of the Special Groups of Rio de

Janeiro which are members of the Avenida Marques de Sapucaí Parade. It emphasizes

some of the specifications of this ritual that happens in urban-industrial contemporary

societies, and analyses some of its meanings. The main purpose of this dissertation is to

understand the anthropological sense of the Carnival of London. As it is established as

a social drama, it shows the mutual presence of ethnic groups and people of different

nationalities. This a privileged conjuncture to observe and analyse social processes and

situations that occour in cosmopolitan metropolis such as London. It may be found in it

the (re)construction, maintenance, and manipulation of characteristic aspects of the

ritual by some specific social groups and the consolidation of the so called ethnic

identities which are stressed in these rituals, by means of diacritic signs.

Key words: Carnival; Notting Hill; steelpan; social drama; ritual; ethnicity; ethnic

identity; ethnic groups.

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Agradecimentos

“O que existe... além do horizonte? Sigo cantando... enfeitiçado Esta viagem... é uma ponte

Que vai ligar dois hemisférios e revelar O tesouro escondido que lá está”

“What lies beyond the horizon?

Sing with me a spell This voyage is a bridge

That is going to link two hemispheres and reveal All the buried treasure that is there”

(Samba Enredo de John Hicks, Cesar Filho, Lilliane Santos para a London School of Samba, 2006)

Agradeço e dedico este trabalho à minha Família: Ana, Ignacio, Barbara e a pequena

Sophia, que me ensinaram a Amar as letras, os papéis, os livros, os mapas, as viagens e,

na mobilidade, o gosto pelo novo e pelo “outro”; família que mostra e incentiva, na

prática, o movimento, a mistura, a adaptação; e ainda pelo longo financiamento. Às

avós Maria e Sulamita, pela sabedoria frente à vida e pelo precoce estímulo aos estudos.

Ao querido Orientador Prof° Marco Antônio da Silva Mello, que, com toda a

habilidade, sabedoria, experiência em pesquisas etnográficas, na arte da escrita e

inclusive na sua peculiar ‘dureza’, me ‘deu a mão’. Ensinamentos e sugestões que me

permitem estar aqui; me fazem alimentar o interesse específico e a satisfação encontrada

no exercício da antropologia, da pesquisa etnográfica e da escrita e que vão além do

campo acadêmico.

Ao Programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense,

que abriga a pesquisa desde o início, fomenta e possibilita sua realização.

Aos professores do curso de graduação em Ciências Sociais do IFCS/UFRJ, que

permitiram a descoberta o prazer e o sabor da ‘arte de pesquisar’.

Ao LeMetro e aos pesquisadores vinculados, onde e com os quais pude expor e discutir

algumas das indagações iniciais que se apresentam neste texto. Ao amigo Zé Renato

Baptista, que desde a primeira vez em que conversamos sobre o tema, estimulou seu

aprofundamento, deu dicas, ajudou a fazer trabalhos e ainda leu alguns pré-escritos. Ao

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Zé Colaço, que do mesmo modo, estimulo-me a problematizar a situação encontrada em

Londres e, quando em viagem, cumpriu meu papel junto ao PPGA/UFF.

À Beryl Eclair Taves, que tantas vezes leu, corrigiu, deu sugestões à meus escritos. À

Priscilla Gershon, pelo abrigo, em Niterói e no coração, no período final do trabalho e à

Adriana Valença, pelas preciosas sugestões e correções.

À Luciana Brandão, querida comadre, que me levou para a primeira viagem ao “mundo

do samba” e que tantas vezes foi meu porto seguro. Aos amigos de graduação e vida:

Tiffany Klaim, Rodrigo Folhes, Lucio Braga, Filipe Costa Coelho. À Adriana Gomes

do Nascimento, prima e madrinha, que tantas vezes me acolheu e estimulou. A Luciano

Saturnino Braga, com quem conversei inúmeras vezes por telefone enquanto estava em

Londres e sempre me estimulou e tranqüilizou, afirmando que era possível e bom. Ao

cão Bagulhinho, fidelíssimo companheiro durante todo o tempo em que me dediquei à

realização deste trabalho.

A querida e fundamental Verônica Gebara Muraro, suporte e norte, sem a qual não teria

chegado até aqui e agora.

Por fim, a todos as Instituições, Grupos, Organizações, Pessoas, que abriram suas portas

e permitiram minha entrada para a realização da pesquisa: no Brasil a Unidos do

Viradouro, LIESA, Estácio de Sá, em Londres a Paraíso, London School of Samba, Yaa

Asantewaa, Mangrove, Nostalgia, BAS, UEL, SOAS, New Bacon Books. A Marcelo

Sellaro que lá me recebeu em 2005 e fomentou meu interesse pela pesquisa sobre aquele

carnaval. Ao amigo John e Bárbara Hicks, que me receberam e hospedaram em

Londres, a Morgan, Frank Crichlow, Gerald Williams, Yan, Arthur Peters, Marshup,

Debi Gardner, Michael La Rose, Gregory Habess, Haroun Shan, Lionel McCalman e

por fim a Gerald Forsyth, que além de tudo, me abrigou nos dias finais de minha estada.

E a todos que não estão citados, entretanto fizeram-se imprescindíveis neste percurso e

empreendimento.

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Sumário INTRODUÇÃO

A Propósito de Um Carnaval Chamado Notting Hill ................................................ 11

CAPÍTULO I

Trabalho de Campo – “Familiares” e “Exóticos”

I. Trabalho de Campo e Escrita do Texto Etnográfico .................................................. 14

II. O Problema e seu Cenário - Entrada em Campo em Dois Tempos ......................... 24

II. a. Grupos Carnavalescos Cariocas – Participação Junto ao

Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Viradouro

- Bateria e Barracão Inserção e Aprendizado.................................................................25

II. b. Participação Junto à Uma Escola de Samba Inglesa em 2005 ............................. 38

II. c. Campo e Inserção Junto aos Grupos Carnavalescos de

‘Origem Caribenha’ em 2006 ....................................................................................... 46

III. ‘Tambores de Aço’ - Mangrove e Nostalgia Steelbands –

Primeiro Contato com os Steelpans ............................................................................ 52

IV. ‘Panorama’ ........................................................................................................... 56

V. Carnaval ‘On The Road’......................................................................................... 58

VI. Alguns Comentários Acerca da Criação dos Steelpans ........................................ 63

CAPÍTULO II

Carnaval: fantasia? Sedução?

Tempos do extraordinário e a abertura de um “mundo especial”

I. Carnaval Carioca – Desfile das Escolas de Samba do Grupo Especial na

Avenida Marquês de Sapucaí – Sambódromo – Espaço Ordinário para

dar vez ao Extraordinário ............................................................................................. 65

II. Carnaval de Notting Hill – Uma Descrição Sumária - Trajetos que se Entrecruzam

– o Percurso das Bandas e o Espaço Reservado para o Carnaval e para o Desfile em

Notting Hill no Ano de 2006 ........................................................................................ 69

III. Algumas Competições Carnavalescas em Londres

III. a. Competição entre os Grupos Musicais Steelbands – Panorama ....................... 73

III. b. Best Mas Band on the Road - Competição entre os Grupos de Fantasias ......... 75

III. c. A Rivalidade Entre as Escolas de Samba no Carnaval de Notting Hill ............. 76

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IV. Um Breve Histórico Acerca do Notting Hill Carnival ........................................ 78

IV. a. Claudia Jones - Uma Personagem .................................................................... 84

V. Reflexões Acerca dos Significados do Carnaval .................................................. 85

VI. O “Mundo da Loucura” – Impressões Iniciais .................................................... 99

VII. Drama Social – Londres dos anos 50 –

Considerações Acerca do ‘Início’ do Carnaval de Notting Hill................................. 101

CAPÍTULO III

Afirmação de Identidades Culturais e Pertencimento aos “Grupos Étnicos”

I. O Carnaval de Notting Hill Enquanto Local Propício para se Observar e

Discutir a Construção e a Afirmação das Chamadas Identidades Étnicas.

Nação, Origem, Tradição e Relações Sociais: a Construção de uma

“Comunidade Imaginada” .......................................................................................... 105

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................141

BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 144

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INTRODUÇÃO

A PROPÓSITO DE UM CARNAVAL CHAMADO NOTTING HILL

Neste estudo apresento o carnaval de Notting Hill, que acontece em Londres, na

Inglaterra, e procuro descrever, em linhas gerais, o contexto onde se realiza, oferecendo

uma perspectiva histórica acerca do mesmo. Busco expor, além disso, a competição

entre as bandas musicais, compostas por ‘tambores de aço’ (steelbands),1 e o desfile

carnavalesco. Em acréscimo apresento, de forma sucinta, as demais etapas do ciclo

carnavalesco londrino, compreendendo uma série de competições e elementos, que,

num crescendo, culmina com os dias de carnaval de rua.

Abordo o desfile das escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro,

relatando como se deu minha inserção na Escola de Samba Unidos do Viradouro e o

processo de aprendizado de (tocar) um instrumento musical, junto à ala da bateria

daquela agremiação. A contraposição entre os dois rituais carnavalescos contribui para

uma primeira entrada no tema, sabendo que tal contraposição pode ser enriquecida a

partir de investigações adicionais e da continuidade da pesquisa.

Tenho como objetivo principal discutir o ritual carnavalesco londrino - como

momento de afirmação das chamadas identidades étnicas -, e estabelecer uma

problemática com relação à inserção e permanência desses grupos, originários

principalmente do Caribe, no contexto de uma metrópole considerada multicultural.

Na cidade de Londres, minha inserção no campo etnográfico se deu em meio aos

grupos que compõem a parade (sejam eles escolas de samba, masbands2 ou steelbands),

durante o período de sua preparação para o carnaval de 2005 e 2006 e também na

ocasião do desfile; descrevo diversos aspectos dessa jornada que teve início no Rio de

Janeiro, desembocou em Londres e parece não ter, ainda, final definido. Minha reflexão 1Steelbands são formações ou orquestras musicais compostas principalmente por “tambores de aço”. Os steelpans foram criados na década de 30 em Trinidad, instrumentos cilíndricos, metálicos, percussivos, feitos de galões de petróleo e compostos por diferentes séries e números de notas musicais.Outros instrumentos conformam as bandas, entre eles o brake iron, confeccionado a partir de partes de motor de automóveis e utilizado como ponto de partida das melodias, chamando a atenção dos músicos e marcando o tempo. Em Londres a maioria das bandas é formada por cerca de dez a cinqüenta ou sessenta tambores (pans), dependendo da banda e do motivo da apresentação a que se refere. Os instrumentos, as fantasias e os diferentes elementos que compõem o Carnaval serão descritos em maiores detalhes nos capítulos I e II e eventualmente expostos por meio de imagens. 2Mas bands são grupos ou “bandas de fantasias”, as pessoas que integram tais grupos são conhecidas como “mascarados” ou mascaraders, tomando parte de algumas das etapas do Carnaval londrino. Esses blocos carnavalescos, como grande parte dos elementos constituintes daquele ritual, são inspirados, nomeados e fazem referência ao o carnaval de Trinidad e Tobago. Instrumentos, fantasias e outros aspectos do Carnaval serão abordados novamente nos capítulos I e II e eventualmente expostos por meio de imagens ao longo do texto.

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acerca da prática etnográfica baseia-se nessa experiência fundamental (no Brasil e na

Inglaterra).

No primeiro capítulo, abordo minha participação junto às escolas de samba

cariocas – principalmente na Unidos do Viradouro -, além de junto aos grupos que

formam o carnaval de Notting Hill – nomeadamente: Paraíso School of Samba, London

School of Samba, Yaa Asantewaa Mas Band, Mangrove Steelband & Mas Band e

Nostalgia Steelband. Relato também minha chegada ao ‘mundo do carnaval’, no Rio de

Janeiro, e os caminhos que me conduziram à Londres. Descrevo ademais, com detalhes,

o trabalho de campo desenvolvido em ambas as situações. Levanto ainda, neste

capítulo, questões relativas à prática etnográfica em campos ‘familiares’ e ‘exóticos’,

com as quais me deparo ao longo da pesquisa.

No segundo capítulo, abordo os contrastes entre os significados do carnaval

carioca e do londrino. Considero-os um momento especial de afrouxamento de

determinadas normas - experiências empíricas exemplificam o que se pode entender

como ‘momento extraordinário’-, podendo também exacerbar questões silenciadas ao

longo vida quotidiana e enfatizar atritos, fricções, conflitos, diálogos,

complementaridades entre os diferentes grupos sociais nelas implicados. Apresento,

ainda, um breve histórico acerca do carnaval de Notting Hill, no intuito de facilitar o

entendimento de alguns dos caminhos que vem percorrendo e dos processos sociais nos

quais está envolvido, desde seu início até os dias atuais: o que representa para aquela

sociedade e para os diferentes grupos sociais nela inseridos.

Em Londres, a pesquisa de campo apresenta dia-a-dia matizes indicativas da

importância das relações estabelecidas entre os diferentes grupos (étnicos) que

conformam aquela capital. O Carnaval observado, cada vez mais se revela

multifacetado, apresentando, além de seu caráter festivo, dramático, desafiador e

ritualístico, elementos que indicam que está conectado às intrincadas relações

interétnicas presentes naquele contexto. Por força de informações e depoimentos

obtidos em campo, essas questões não podem ser ignoradas, representando a ampliação

da abordagem inicialmente proposta.

No terceiro e último capítulo, levanto questões relativas aos diferentes grupos

presentes na cosmopolita Londres. Busco oferecer algumas pistas para a melhor

compreensão de como, no ambiente da metrópole inglesa, ocorrem as relações entre os

diferentes grupos sociais, nos quais coexistem etnias e nacionalidades distintas. A partir

de um contexto etnográfico, como o de Notting Hill, pode-se perguntar o que leva

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determinados grupos a estabelecerem distinções tão marcantes entre si, escolhendo e

afirmando ostensivamente tais distinções por meio de sinais diacríticos. De que modo

símbolos e referências nacionais são construídos e exibidos, manipulados e a eles são

dadas novas significações, no confronto e território de outras nações? O investimento e

a expressividade de símbolos culturais no contexto de Notting Hill visam a quais fins

específicos? No carnaval londrino o que são, como se estabelecem e se articulam as

chamadas ‘fronteiras étnicas’? Ademais, o que representa ‘pertencer’ a este ou àquele

grupo social; onde um começa, onde outro tem origem; onde este ou aquele se

extingüem? São estas algumas das indagações que permeiam principalmente esta parte,

mas também a dissertação como um todo. A partir das questões apontadas, busco

oferecer algumas pistas para a melhor compreensão de como se dão, no contexto

citadino da metrópole inglesa, as relações entre alguns dos vários grupos que a

compõem, marcados pela co-presença de grupos sociais de etnias e nacionalidades

distintas. Nesta seção, portanto, procuro evidenciar tais indagações com a intenção de

tê-las como ajuda para melhor compreender os sentimentos, pensamentos e idéias,

implicados na ação e performance ritual, que procuro estabelecer com o exercício

etnográfico a respeito do carnaval de Notting Hill.

Deixo o leitor a sós com o texto. Espero que seja de leitura agradável e que

realmente alcance meu desejo de proporcionar perspectivas múltiplas acerca dos

carnavais como um todo, além de mostrar a diversidade de relações sociais que se

estabelecem entre diferentes indivíduos e grupos sociais envolvidos nesses processos.

Meu objetivo é evidenciar seus aspectos contrastantes, buscando a emersão da diferença

específica de que se revestem, mesmo a partir da apresentação de apenas dois desses

aspectos, entre inúmeros realizados nas mais diferentes localidades no mundo de hoje.

Que todos são carnavais, não se discute, mas o que os torna particulares - suas história,

contextos sociais, econômicos e políticos -, são elementos distintivos que os tornam

únicos.

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CAPÍTULO I

“FAMILIARES” E “EXÓTICOS”

I. Trabalho de Campo e Escrita do Texto etnográfico

Afim de que o leitor possa ter um melhor entendimento da situação, apresento

minha participação junto às agremiações cariocas e aos grupos ingleses na seqüência em

que essa aconteceu, enfatizo como se deu meu percurso e inserção no ‘mundo do

carnaval’ e ofereço algumas considerações acerca do trabalho de campo. Comento as

dificuldades, dúvidas e inseguranças presentes no curso da pesquisa de campo; no

período de organização do material coletado; na audição de entrevistas gravadas; nas

leituras de textos, livros e materiais diversos; na elaboração e escrita do texto

etnográfico.

Em um flashback, volto ao início de meu envolvimento com escolas de samba, o

primeiro lugar onde percebi o ‘mundo do carnaval’ como objeto de estudos. Retorno à

cidade de Niterói, no estado do Rio de Janeiro, onde morava nos idos de 1999 - naquele

ano, pela primeira vez, visitei a ‘quadra’ de uma escola de samba. A partir de então, por

insistente convite de minha comadre, Luciana Brandão, começo a freqüentar

regularmente os ensaios do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Viradouro.

No meu primeiro ‘ensaio’, um dos diretores da ala da bateria, ‘Seu’ Arídio,

oferece-me um chocalho para tocar. Meu arremedo de incorporação se fez através

daquele inusitado instrumento, que integra a orquestra de percussão da Escola. Aceito

prontamente o convite, quase uma imposição para incorporar-me ao grupo, do qual a

partir de então não mais me afasto. Meu envolvimento crescente junto ao grupo musical

- muitas horas e dias de participação em ensaios, festas, almoços comunitários,

apresentações públicas, gravações em estúdio e quadra, assim como em quase sempre

infindáveis e previsíveis reuniões de quadra e desfiles em aparato - possibilita-me a

inserção no campo de forma gradual.

Ao mesmo tempo em que me reconheço como “nativa” e me reconhecem como

tal – enfrento, inclusive, dificuldades para me estabelecer como ritmista, (categoria pela

qual são tratados os percussionistas que integram as alas de bateria) e conseguir desfilar

como indivíduo pertencente à agremiação, parte integrante do grupo – tenho o olhar

questionador adquirido em minha consentânea graduação em ciências sociais.

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No curso da pesquisa, que inicio em 2003, conheço bem e encontro-me situada e

familiarizada com o local que pretendo observar e em contato com as pessoas que

planejo entrevistar. Assim, resolvo trazer o assunto à consideração do grupo, com a

intenção de estabelecer um diálogo mais franco, sobretudo com os responsáveis e

integrantes da bateria; também desejo, é claro, entrar em contato com membros das

mais altas posições na hierarquia da escola. Até então jamais me dirigira diretamente ao

presidente da agremiação, somente a pessoas que ocupavam cargos de diretoria, de

conselheiros, de intérprete ou outros. Estes se viam com agrado a pesquisa e com ela

concordavam, no entanto, apesar de considerar-se a possibilidade e necessidade de falar

com o presidente, nunca se encontrara um momento adequado ou ideal. Este exercício

de mudança revela-se muito enriquecedor, pois me obriga a mudar e distanciar-me da

posição de ritmista. Assumo, portanto, papel, status e principalmente olhar de

pesquisadora.

Como pesquisadora, ao tratar de conversar com atores sociais locais ou

entrevistá-los, advém uma série de facilidades, pois já está estabelecida uma confiança

por meio de relações sociais prévias ao longo do tempo. Entretanto, há momentos em

que o estágio anterior – de simples integrante da agremiação – predomina e confunde a

posição de pesquisadora com a de integrante da estrutura local: na quadra, apesar de ser

reconhecida como pesquisadora, sou identificada, de forma inalienável, como ritmista.

Posteriormente, a pesquisa se estende ao barracão da agremiação - isso ocorre

em 2005, ao voltar, pela primeira vez, de Londres, onde trabalhara na confecção de

fantasias e alegorias junto a uma escola de samba lá existente. Quando ingresso no

barracão da Viradouro, a realização da pesquisa torna-se explícita para um número

maior de atores; nesse ambiente, sou reconhecida como ritmista por algumas pessoas,

contudo, a maioria delas não me identifica como tal. Esse fato possibilita-me assumir

uma posição mais vinculada ao papel de pesquisadora, embora muitos me perguntem se

sou repórter, ou se escrevo um livro: assim constroem imagens a meu respeito.

No contexto do barracão, estão presentes, de forma mais ostensiva e constante,

pessoas ligadas aos altos postos da agremiação - até por ser um ambiente fechado e

presumir-se que quem está lá, trabalha. Nesse local, também se realizam as mais altas

transações financeiras, por conta da compra de materiais e pagamento dos funcionários3.

Desde o primeiro momento em que converso com o mestre da bateria, Ciça, sobre meu

3Ver também Castro, 1994.

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interesse pelo trabalho de campo no barracão, este prontamente se coloca à disposição

para me apresentar ao administrador local. Assim marca-se uma reunião, à qual o

administrador, Ciça e eu comparecemos. O administrador não se opõe ao trabalho: fica

acertado que posso freqüentar aquele espaço para tal finalidade. A seguir, na quadra de

ensaios, quando tenho a oportunidade de me dirigir ao novo presidente –assumira o

cargo após o falecimento do anterior -, esclareço ser a mesma pessoa que iniciara na

quadra, há algum tempo, a pesquisa que prossegue, agora, no barracão.

O trabalho, tanto no barracão quanto na quadra, estende-se até o final de 2005,

culminando com o desfile carnavalesco de 2006. Posteriormente, deixo de freqüentar o

barracão e a quadra, já que necessito dar andamento à parte escrita da dissertação, assim

como dedicar maior atenção às questões concernentes ao trabalho de campo e à

pesquisa desenvolvida na Inglaterra, o que passo a relatar.

Em junho de 2005, pela primeira vez, surge a oportunidade de minha ida a

Londres. Soubera da existência de um carnaval local ali, por intermédio de algumas

pessoas com as quais convivo, ligadas às escolas de samba cariocas, algumas delas

viajam todos os anos para participarem do carnaval inglês, do mesmo modo que, por

ocasião do carnaval carioca, muitos estrangeiros, principalmente ingleses e franceses,

deslocam-se para o Rio de Janeiro, a fim de freqüentarem os ensaios das escolas de

samba e participarem do desfile de tais agremiações na Avenida Marquês de Sapucaí.

O carnaval de Notting Hill pode ser visto como um ritual eminentemente urbano

que teve início no contexto daquela metrópole considerada ‘multicultural’ ou

‘multiétnica’ e é organizado anualmente,. Assim, a etnografia se dá em um universo

complexo e ‘exótico’ tanto em relação aos grupos sociais com os quais interajo, quanto

em relação à cidade e nação onde tal carnaval se realiza.

Devo lembrar que, no curso de 2005, envolvo-me fundamentalmente com uma

escola de samba londrina, Paraíso School of Samba. Nela, além de ter contato com

vários ingleses, passo grande parte do tempo trabalhando na confecção de fantasias,

como dito anteriormente, bem como integrando a ala da bateria, que conta também com

a presença de outros brasileiros. Em meu retorno a Londres, no ano de 2006, apesar de

freqüentar alguns ensaios de uma outra escola de samba, a London School of Samba,

meu envolvimento se dá basicamente com os grupos considerados caribenhos.

As pessoas que compõem tais grupos – steelbands e mas bands - vieram, em sua

maioria, de antigas colônias britânicas das ilhas do Caribe e Guiana Inglesa. Surgem,

em tal cenário, como uma primeira geração de imigrantes, por volta dos anos 50.

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Atualmente, as gerações posteriores, filhos, netos ou bisnetos, nascidos na Inglaterra,

dão continuidade a tal representação carnavalesca, que também se coloca como um

local de afirmação de determinadas identidades étnicas.

Em Londres, não me é possível observar os grupos carnavalescos “da porta da

minha barraca”, (Evans-Pritchard, 1978); afinal a observação se dá em um complexo

contexto citadino, hospedada no bairro de Richmond, a cerca de 40 minutos de distância

do local onde se concentram as sedes das bandas. Além desse fato, ao realizar a

etnografia em uma sociedade estrangeira, com os escassos recursos de linguagem que

possuo, não me é possível aquitalar bem os significados lingüísticos, ou seja, sou

testemunha da dificuldade encontrada em ajustar meus “próprios significados aos

significados correntes da sociedade investigada” (Vidich, 1955, in: Cicourel, 1969 –

1980) - exercício duplicado, já que se repete, incessantemente, quando necessito

traduzir termos do inglês para o português e vice-versa, ou compreender frases e

expressões em entrevistas ou filmagem. Como ajustar os significados e, a seguir, relatá-

los de forma acadêmica?

Desejo lembrar, principalmente aos leitores brasileiros, ou a participantes de

tipos específicos de carnaval - que eventualmente possuam um determinado

entendimento acerca de termos e categorias utilizadas em análises destes e também na

vida quotidiana – o quão fundamental é exercitar um distanciamento e evitar qualquer

rigidez com relação aos termos empregados. Uma vez que se impõe traduzir termos

como parade, band, e outros, é muito importante o empenho em não se enquadrar,

dentro dos padrões de carnavais brasileiros e, mais especificamente, das escolas de

samba do Rio de Janeiro, o que aqui denomino ‘desfile’, ‘blocos’, ‘bandas’, assim como

outros termos que emprego ao referir-me ao carnaval londrino. É fundamental estar

ciente que cada carnaval apresenta, além de algumas semelhanças gerais,

especificidades e singularidades.

Naquele mundo novo, sobre o qual possuo informações esparsas, onde tudo faz

parte de um sistema mais amplo, que pode se encaixar em algum lugar do quebra-

cabeça, preciso estabelecer os limites da pesquisa. Quais indagações devem ser

respondidas? O que é o foco, o alvo? Como posso eu, etnógrafa iniciante, estabelecer o

recorte que define o que é relevante ou não para a pesquisa, de modo a evitar construir

um grupo social inexistente e por demais fechado?

No decorrer dessa experiência, percebo claramente a diferença entre desenvolver

trabalhos com grupos familiares, como no caso da Unidos do Viradouro - um grupo ao

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qual, de certa forma, pertenço e venho observando há aproximadamente sete anos - e

trabalhar com grupos ou sociedades ditas exóticas: uma realidade ímpar sobre a qual é

imprescindível construir conhecimentos. Portanto, urge seguir desbravando a situação

social de novo e intrigante mundo ocidental contemporâneo.

De acordo com a perspectiva de Victor Turner, (1980) quando um antropólogo

se coloca em um campo de pesquisa, que a princípio é radicalmente diferente da cultura

à qual está conectado por meio de sua memória (no meu caso, também pelo contato com

alguns conhecidos que falam português, além de pelo uso do telefone e da internet), é

preciso “chegar a um acordo com aquilo que o envolve e o invade”.

“Ele é lançado nos acontecimentos da vida de um número de pessoas, que não só falam uma língua diferente, como também classificam o que nós chamaríamos de ‘realidade social’ de maneiras que, de início, são extremamente inesperadas. Ele é compelido a aprender, embora de modo hesitante, os critérios que proporcionam a ‘visão de dentro’”.

Durante minha estada em Londres e no decorrer do trabalho de campo, haver-me

disposto e, de fato, aventurar-me além mar a fim de realizá-lo, traz-me constantes

inquietações: convivo com a necessidade de concentrar-me na busca por informações,

porém, ao mesmo tempo, enfrento dúvidas com relação ao caminho estar sendo

construído de maneira correta; preocupo-me com a incerteza de o material coletado ser

suficiente para a elaboração da dissertação; e ainda com o fato de, ao retornar para casa,

aos meus pensamentos e indagações, sentir-me sozinha ao procurar soluções para

minhas questões e lidar com a ansiedade e a angústia, com os estímulos e a

necessidades de decisões, mesmo após haver estado entre muitas pessoas no campo.

Além da questão de ver-me inserida em um contexto onde a maioria dos atores é

desconhecida, tenho que me adaptar à cidade, língua, linguagem, aos modos de agir e

interagir e, com isso, delinear os contornos da pesquisa. Com o passar dos dias planejo,

decido aonde ir, busco maneiras de acessar a internet, tanto para estabelecer e manter

contato com pessoas que me indicam este meio de comunicação, quanto para obter

endereços e informações a respeito de bandas que devo conhecer, bem como para

acessar histórias sobre o carnaval caribenho em Londres, e também para me comunicar

com meu diretor de estudos, M.Mello, solicitando orientações.

Apesar de meu domínio na língua inglesa e, portanto capacitada a entender boa

parte do que é dito, começo a perceber que não compreendo tudo quanto me é

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necessário apreender. Junto aos caribenhos e seus descendentes, defronto-me com

gírias, expressões e musicalidades peculiares do accent do black britsh english, na plena

expressividade de suas construções, na exuberante oralidade de uma língua viva. A

despeito da saborosa experiência e das dificuldades com as quais realmente me

defronto, necessito comunicar-me, apresentar-me, estabelecer conversação, formular

questões, ouvir as respostas e, sobretudo, assegurar-me que efetivamente as

compreendo. Como se isso não bastasse, pelos mesmos motivos e razões, sou obrigada

a responder perguntas que a mim endereçam, às vezes embaraçosas para a etnógrafa, em

especial quando se trata de estabelecer comparações ou contraposições relativas ao

nosso carnaval (brasileiro).

Outro fator determinante para a maneira como a pesquisa se delineou, foi o

modo através do qual chego aos grupos caribenhos: em conversas com pessoas de uma

escola de samba de Londres (London School of Samba, LSS ou Unidos de Londres),

consigo referências, nomes e informações a respeito da existência de alguns grupos. Por

incrível que pareça, no entanto, foi a partir da propaganda de um concurso chamado

London Calypso Tent, que sozinha chego, em 2006, ao Yaa Asantewaa mas band,

primeiro grupo de fantasias (mas band), de estilo caribenho com o qual faço contato. A

partir daí, estabeleço algumas relações, que ao longo do tempo revelam-se importantes,

pois, por seu intermédio sou levada a outros grupos, tanto de fantasias, como musicais,

todos eles integrantes da concorrida parade de Notting Hill. As visitas freqüentes e a

especificidade de meu interesse como pesquisadora acabam me levando a estabelecer,

mais tarde, boas e bem esclarecidas relações com os administradores e lideranças dos

diferentes grupos. Descrevo os locais, ocasiões e situações, com maiores detalhes, nas

considerações do tópico seguinte.

Anoto algumas observações acerca do trabalho de campo. Definitivamente, este

se impõe em sua forma de exercício solitário do ofício. Como pesquisadora, por vezes

tenho algumas expectativas, o campo, porém, coloca-se à sua maneira, eventualmente

frustrando-as, embora em outras ocasiões as estimule, ao mostrar-me novos caminhos.

Acredito, em minha chegada àquele novo contexto, que devo ‘nadar a favor da

correnteza’, sem tentar impor-me: preciso obter determinadas informações, de um lado;

em contraposição, necessito observar e respeitar o tempo dos interlocutores, para criar

uma atmosfera de respeito e cumplicidade.

Freqüentemente as conversas acontecem de maneira informal, já que, em sua

maioria, as pessoas estão tendo contato comigo pela primeira vez. Considero assim não

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ser apropriado, num primeiro momento, solicitar a gravação de entrevistas; permito que

falem à vontade e deixo-as mais confiantes com a minha presença. Outro fato que

corrobora esta decisão é a questão de todos estarem em constante movimento,

trabalhando na confecção das fantasias e nos preparativos para as apresentações, não só

para o dia de carnaval, mas também para a competição entre fantasias.

Uma série de competições compõem aquele carnaval. A primeira elege os trajes

masculino e feminino mais representativos daquele ano e chama-se Costume Splash ou

Gala - em geral acontece em um final de semana anterior ao carnaval e dá aos

vencedores o título de Rei e Rainha, Príncipe e Princesa do carnaval. Uma segunda

competição acontece entre as steelbands, e denomina-se Panorama, realiza-se na noite

de sábado e antecede a abertura do carnaval. Por sua vez esta ocorre desde o início da

manhã de domingo até, aproximadamente, onze horas da mesma manhã; chama-se

Jouvay ou J’Ouvert (Jour Ouvert, termo vindo das raízes da língua francesa de

Trinidad). O carnaval, propriamente dito, começa com o desfile dos grupos infantis, a

partir do meio-dia até o início da noite de domingo. Por fim, o clímax se dá ao longo da

segunda-feira, com a apresentação competitiva dos desfiles dos grupos adultos. Tanto os

nomes quanto as estruturas das competições são ‘importadas’ do carnaval de Trinidad e

Tobago. Em geral, os grupos ‘brasileiros’ participam apenas do Splash e do desfile de

segunda-feira.

Ao término de minha estada em Londres, peço a alguns interlocutores a

permissão (verbal) para gravar algumas entrevistas. Ao perceber que a maioria

concorda, sinto-me muito bem, contudo preocupava-me pensar que deveria ter gravado

algumas conversas anteriores: fica a lição de tentar ser um pouco mais incisiva em

próximas ocasiões, porém sempre cuidando para não parecer coercitiva ou invasiva.

Algo semelhante acontece em relação às fotografias e à filmagem: geralmente

sou bastante cuidadosa no sentido de evitar assustar ou pressionar as pessoas com as

quais estou me relacionando; considero importante perguntar se permitem fotografar ou

filmar determinada circunstância. Não obstante o registro de diversas situações,

questiono-me se não teria possível um melhor aproveitamento com o equipamento

obtido com o intuito de complementar minha pesquisa, principalmente com imagens de

personagens importantes e pessoas entrevistadas.

Durante os dias de desfile, por exemplo, observo e filmo mais do que entrevisto

e fotografo. Há momentos em que me sinto extenuada: é preciso observar, caminhar,

carregar a mochila com os materiais necessários para os longos dias, procurar ângulos

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para as fotos e eventualmente trocar de câmera para filmar. Considero importante e

proveitosa a experiência, já que resulta em material fotográfico - ao ilustrar o trabalho

com fotografias, o leitor pode entender melhor o texto e o contexto. Há também material

em vídeo, brevemente disponível, embora não esteja finalizado para a primeira

apresentação desta dissertação. O material coletado, além de importante na elaboração

de descrições sobre o desfile, as danças, o ambiente, colabora na recuperação de alguns

aspectos que eventualmente possam ter sido esquecidos.

Em algumas circunstâncias, sinto-me constrangida ao solicitar permissão para

realizar registros com as câmeras: percebo, no correr do trabalho, que as legislações da

Inglaterra parecem ser mais restritivas quando se referem ao uso de imagens de pessoas,

sobretudo de crianças. Cito, como exemplo, um dia de ensaio do grupo infantil e juvenil

da Mangrove Steelband, no interior de The Tabernacle, sede da banda. Ao pedir

permissão à regente, arranger, para fotografar, ela me informa que devo dirigir-me ao

administrador da banda, band leader, Matthew Phillip. Sigo para o exterior do prédio

para encontrá-lo, indago sobre a possibilidade de fazer as fotografias e ele me responde

que não é possível fazer imagens de crianças dentro do Tabernacle, por haver legislação

que regulamenta e restringe o uso de imagens de menores de idade; acrescenta, porém,

que estando o grupo mais heterogêneo, durante os ensaios na rua, seria possível

fotografar ou filmar sem problemas.

Outro fato, que devo mencionar, ocorre alguns dias antes do desfile: ao chegar

ao Tabernacle, observo muitas fantasias prontas sobre as mesas e algumas pessoas

experimentando-as. Desejo fazer fotos daquele momento, que simboliza e parece

demonstrar que o grupo está pronto para o carnaval, depois de todo o tempo dedicando-

se ao trabalho. Pergunto a Athur, um dos designers da banda e participante antigo

daquele carnaval, se me permite fazer as fotos. Ele, diferentemente de outros dias em

que me dera permissão, informa-me que: “agora só pagando”. Fico muito

desconcertada, não insisto, nem pergunto a razão e dirijo-me a outra sala, onde estão

diversas pessoas.

Passam-se alguns dias e pergunto a outra pessoa se posso fotografá-la; a resposta

é idêntica: “só se você pagar”. Como já ouvira resposta similar, não fico mais tão

desconcertada; sinto-me intrigada com aquela colocação e considero fundamental e

viável, desta vez, perguntar se aquilo realmente se trata de uma condição. Sorrindo, ela

diz-me que não e se junta a um amigo, próximo dali, posando para a foto. Assim,

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percebo que provavelmente Arthur brincara de modo similar, porém eu não o entendera

e me retirara por conta de minha reação de total embaraço.

Ao chegar a Londres, necessito introduzir-me junto aos grupos caribenhos para

buscar mais informações acerca do carnaval por eles desenvolvido. Portanto, a

construção do corpus que embasa as discussões a respeito daquele ritual toma-me certo

tempo. Tal fato permite que a minha concepção daquele carnaval seja tecida in loco,

junto aos participantes e aos grupos que o compõem, no momento mesmo em que os

fatos estão acontecendo e não a uma distância abstrata.

Estar junto aos atores sociais locais no contexto ao qual pertencem, permite-me

situar-me, de certa forma, em posição próxima a eles. Percebo seus relacionamentos,

contradições e acusações, o modo como relatam sua história: como constroem, no

presente, acepções relativas a seu passado, seja ele mais próximo, quando já em

Londres, seja ele mais remoto, quando se referem a Trinidad, ou a outras ilhas do

Caribe; como justificam, ou não, suas atitudes, posições e alianças, de acordo com tais

circunstâncias.

Devo ressaltar que, embora tenha contato com os membros de órgãos do

governo que organizam tal ritual, com estes não estabeleço, com a mesma constância e

intensidade, relacionamento igual ao que mantenho com os participantes dos grupos

caribenhos. Dessa forma, as perspectivas aqui explicitadas fundamentam-se,

principalmente, nos pontos de vista destes últimos e, em menor proporção, a partir de

uma composição entre os diversos atores sociais, ou instituições, envolvidos no

Carnaval de Notting Hill. Para tanto, seria necessário permanecer maior tempo em

Londres, a fim de conseguir relações mais aprofundadas com os diferentes órgãos e

associações que fizeram, ou fazem parte, daquele evento.

Em poucas ocasiões, ao sair com a intenção de prosseguir com o trabalho de

campo, deixo a caderneta de notas ou as câmeras de lado, porém tal fato só ocorre em

algumas circunstâncias, principalmente no início. Em alguns momentos, sinto-me

inquieta com tal situação, preocupa-me saber se serei capaz de lembrar-me de tudo ao

chegar em casa e retomar à escrita do caderno de campo; não fazê-lo, entretanto,

implicaria sem dúvida algum tipo de não-participação, de não-integração. Em outros,

vejo-me diante da necessidade de perceber, ao mesmo tempo, os momentos apropriados

para formular perguntas, após selecioná-las, além de anotar, filmar ou fotografar –

algumas pessoas nunca permitem o uso de gravadores ou câmeras em conversas

profissionais. Porém, quando me encontro integrada como ‘participante’, como ‘igual’,

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as conversas acontecem mais abertamente e me tratam com maior familiaridade, não

obstante sentir dificuldades, algumas vezes, para entender tudo o que se diz, sobretudo

quando há um grupo maior de pessoas conversando ao mesmo tempo, falando aquele

inglês de forma muito rápida.

Durante todo o período em que estive em Londres, deparo-me, somente em uma

ocasião, com alguém que diretamente me diz não concordar com a pesquisa. Tal fato se

dá no Tabernacle, um dia, em conversa com várias pessoas, todos sentados ao redor de

uma mesa. Pergunta-me uma mulher quem sou e o que faço ali – porém ela já sabia a

resposta. De modo um tanto ríspido, observa que outras pessoas, supostamente para

fazer pesquisas, haviam entrado em contato com o grupo, para depois se aproveitaram

da situação, ganhando dinheiro às suas custas com a venda de livros ou fotografias. Fico

muito surpresa e explico não ter essa intenção, assinalando ainda o fato de não ser

provável eu vir a ganhar muito dinheiro com fotos ou publicações. Felizmente, outro

integrante do grupo intervém em meu favor; garante que eu não tenho tal intenção, por

ela considerada nefasta, e acrescenta que sou ‘bacana’, ou algo do gênero. Acredito que

essa explicação se deva mais a simpatia pessoal por mim, do que por conhecimento

acerca de minha intenção profissional. Contudo, mediante sua intervenção, a mulher

para de argumentar e o ambiente volta à configuração anterior.

Como diria Foote-White, ter explicações por demais elaboradas em determinado

ponto da pesquisa não adianta; para minha aceitação, importam mais as relações

pessoais que desenvolvo, do que explicações minuciosas e profissionais acerca do que

pretendo fazer: “Se eu fosse uma boa pessoa, o projeto era bom, se não fosse, nenhuma

explicação poderia convencê-los (...) de que era uma boa idéia” (1980, p. 79). Assim, os

próprios integrantes do grupo avalizam, perante todos, minha permanência e

confiabilidade.

Em uma outra situação, ao redor da mesma mesa, já as vésperas do carnaval e

em um momento de tranqüilidade de todos que ali estão, em sua maioria pessoas mais

velhas, que não se encontram tão envolvidas no corre-corre dos preparativos, uma

mulher oferece um prato de fish and chips (peixe e batatas fritos), e pãezinhos variados

para todos saborearem. Com meu cuidado habitual, agradeço, mas não como. Ela então,

com toda assertividade, diz algo como – “Ou você está com a gente, ou não está. Está

ou não?”. Asseguro, evidentemente, que estou. Sorrio e saboreio aquele prato,

considerado típico em Londres, além dos pãezinhos, é claro! Interessante é perceber

que, ao mesmo tempo em que sou ‘de fora’, esse fato parece indicar uma maneira de me

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‘chamarem para dentro’ e demonstrarem que de fato permitem, ou aceitam de alguma

forma, minha entrada e permanência.

Em algumas ocasiões, como no próprio dia de carnaval, ao chegar em casa

extenuada, não consigo escrever nada. No dia seguinte, tenho que acordar cedo e me

deparo novamente com uma incrível quantidade de informações e acontecimentos;

algumas vezes, portanto, gravo minha própria fala acerca do que observo.

No que se refere à escrita do texto etnográfico, há demanda, por um lado, de

algum entendimento acerca do que se escreve e, por outro, de habilidade e esforço que

permitam dar às experiências empíricas uma forma antropológica e acadêmica, com a

intenção de transpor a distância entre o material coletado no campo e a apresentação

formal de tais observações. Assim, as descrições que aqui apresento estão detalhadas da

maneira mais clara possível.

II. “O Problema e seu Cenário” - Entrada em Campo em Dois Tempos

Apresento, em continuação, dois momentos que considero, de certa forma,

distintos na pesquisa. Primeiro, descrevo minha participação junto às agremiações que

tomam parte no carnaval do Rio de Janeiro, uma vez ser naquele contexto que introniza

meu contato mais íntimo com tal ambiente e é essa experiência, justamente, que me

possibilita, mais tarde, ter contato e conhecer melhor carnavais não-brasileiros. Em

seguida, retomo o relato de minha inserção junto ao setting inglês.

Sem dúvida, minha estada em Londres em 2005, além de me propiciar maior

facilidade de localização espacial e locomoção na busca de locais, informações, pessoas,

grupos, em visitas a bibliotecas, assegura-me certa tranqüilidade: desde o princípio,

sinto que não vou me perder definitivamente e que posso ficar bem, embora sozinha.

Ademais, não me disperso ‘fazendo turismo’, ou seja, tenho sempre presente o fato de

não estar ali para visitar monumentos e locais pitorescos, concentro-me no intuito de

realizar um trabalho de campo, para o qual não disponho de mais do que quarenta e

cinco dias.

Desse modo, focalizo as duas ocasiões em que estive em Londres e relato-as da

forma como se deram no tempo, não em grau de importância. Apesar de concentrar

minhas atenções no trabalho de campo desenvolvido em 2006 e nos grupos caribenhos,

são igualmente relevantes os momentos anteriores da pesquisa, tanto no Brasil quanto

em Londres, por imprimirem estímulo, e despertarem em mim confiança na

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possibilidade de viajar à Inglaterra pela primeira vez para, em seguida, retornar à

metrópole londrina, ocasião em que observo o carnaval com um olhar ampliado, ao

mesmo tempo em que percebo que algumas distâncias não são tão intransponíveis

quanto parecem ser.

II. a. Grupos Carnavalescos Cariocas – Participação Junto ao

Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Viradouro

Bateria e Barracão – inserção e Aprendizado

“Com seus instrumentos bárbaros,

as escolas conseguem verdadeiros

milagres, efeitos impressionantes”

(Convocação do “Mundo Esportivo” para o

primeiro desfile das Escolas de Samba do

Rio de Janeiro, na Praça Onze, Carnaval de 1932).

Vista por muitos atores sociais como ‘o coração da escola’, é na bateria que o

samba pulsa e é, a partir dela, que a música e o ritmo se expandem, aglutinando em seu

entorno todos os demais componentes da agremiação e os foliões em geral.

Na Escola de Samba Unidos do Viradouro, como em tantas outras, a ala da

bateria é a primeira que começa a ensaiar. Geralmente, a partir do mês de maio, todas as

terças-feiras do ano movimentam a quadra da agremiação, por conta dos chamados

‘ensaios técnicos’ que se seguem até o carnaval: é por volta desse período inicial que

pessoas ligadas à bateria – os ritmistas, os diretores e o mestre – assim como as pessoas

da chamada comunidade e os outros componentes reaparecem na quadra da Escola.

O período inicial do novo ciclo carnavalesco torna aquele espaço um local de

reencontros, conversas, aproximações e contatos; reestrutura-se o grupo e aparecem os

novos atores sociais que pretendem nele inserir-se. Os diretores e o mestre da bateria

podem ser ‘de fora’, ou seja, podem vir de outros bairros ou agremiações, mas a maioria

das pessoas que participa dos ensaios e freqüenta a quadra é integrante ‘da Viradouro’,

torce e é apaixonada pela escola. Geralmente, mas não exclusivamente, essas pessoas

moram nas cercanias da quadra.

Pessoas que pretendem tornar-se ritmistas, muitas vezes dirigem-se ao mestre

Ciça, ou a algum dos diretores, a fim de obterem o aval para a sua participação.

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Comumente, permite-se que ensaiem, contudo sem promessas de que elas efetivamente

participem do desfile oficial do ano.

Durante o período inicial dos ensaios, poucas pessoas freqüentam a quadra.

Alguns homens participam de jogos de futebol, as ‘peladas’ semanais; outros entretêm-

se com a ‘sueca’, jogo de cartas que ocorre ao longo de quase todo o ano, sempre antes

da realização dos ensaios. Com o futebol jogado após o ensaio, o mesmo não acontece,

pois é interrompido com o decorrer do tempo e com a proximidade das eliminatórias

dos sambas-enredo, previstas para o final de julho ou início de agosto.

Como relato anteriormente, minha ida a uma escola de samba, pela primeira vez,

deve-se a convite de minha amiga e comadre Luciana (sou madrinha de sua filha), que

conhece algumas pessoas de lá: o diretor de bateria, ‘Seu’ Arídio, além de alguns

ritmistas. Logo no primeiro dia, cumprimentamos algumas pessoas, entre elas, Seu

Arídio. O ensaio estava para começar e ele entrega um chocalho a cada uma de nós,

sinalizando para que nos juntemos ao grupo, já posicionado no local de ensaios. Nessa

ocasião, ainda não entendo o real significado e a dimensão de tudo aquilo. Começo a

tocar de forma bastante desajeitada, pois nunca havia tido contato com o instrumento,

nem com aquele contexto. Luciana me avisa: “seu braço vai começar a doer, não liga

não, esquece, que daqui a pouco passa”. De fato, os músculos do braço, não

acostumados ao peso da madeira e das platinelas, nem ao hábito do esforço repetitivo e

rítmico, começam a arder, porém ‘não podemos parar’: todos nos observam. Com o

tempo, felizmente, os músculos se acostumam e a dor cessa.

A atenção dos diretores, ajudantes do mestre (diretor principal, ocupante do

degrau mais alto na hierarquia da bateria), volta-se toda para os ritmistas. Há um diretor

para os chocalhos, outro para os tamborins, além de mais sete ou oito para a ‘cozinha’,

denominação empregada para os instrumentos mais pesados, pertencentes ao acervo da

escola, que se localizam na parte de trás da bateria; são estes, os repiques (ou

repiniques), as caixas (caixas-de-guerra) e os diferentes surdos (de primeira, de segunda

e de terceira). O mestre comanda as ‘paradinhas’, bossas ou convenções, que podem

acontecer por naipe de instrumentos, por mais de um naipe ao mesmo tempo, ou por

toda a bateria. O mestre é a pessoa que “dá a última palavra sobre assuntos referentes à

bateria” (CUNHA, 2001).

Certo dia, Mestre Ciça percebe que há pessoas que não sabem tocar muito bem;

toma o chocalho de uma ritmista em suas mãos, diz: “não é assim, não”, e imita o toque

atrapalhado dos novatos. “É assim, ó!”, mostra, tocando com força e ritmo, de modo a

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ensinar quem não sabe tocar – meu caso – a perceber perfeitamente o ritmo e o

movimento que seus braços descrevem; observo a demonstração de Mestre Ciça e,

finalmente, entendo como se deve tocar. Naquele local, apesar das brincadeiras e da

amizade, não se poupa seriedade para o trabalho que se realiza no curso dos ensaios –

leva quase um ano para tudo estar pronto e ser apresentado de forma impecável na

avenida Marquês de Sapucaí, a ‘Passarela do Samba’.

Tanto a imitação quanto a repetição são elementos fundamentais para a

aprendizagem na escola de samba; a repetição de trechos e músicas inteiras é uma

estratégia constante. Além do exercício de aprender a tocar e de tocar, é preciso suportar

a pressão psicológica que o mestre e os demais diretores empregam para que os

ritmistas alcancem seu melhor desempenho e para assegurar sua assiduidade aos

ensaios, sem falar na dor e no esforço físico, cada vez mais intensos, à medida que se

aproxima o carnaval (PRASS, 1998).

Consigo também superar outra grande dificuldade: coordenar o andar e o tocar

ao mesmo tempo. Verificando minha dificuldade em manter o ritmo do instrumento e

caminhar ao mesmo tempo, Luciana indaga: “você não está conseguindo tocar (e andar

ao mesmo tempo)?” Ao responder que não, ela me diz para prestar mais atenção ao

tocar e andar mecanicamente. Vejo que ela tem razão, sigo as instruções e consigo

realizar a manobra, nada fácil – é preciso ter persistência, disposição física e vigor para

permanecer de pé, tocando por mais de uma hora consecutiva.

Durante o período inicial dos ensaios de terça-feira, os ‘ensaios técnicos’, até a

escolha do samba enredo, somente a bateria participa. Posteriormente, também estão

presentes os dois casais, de mestre-sala e porta-bandeira, as alas de comunidade, as

baianas e os passistas. O tempo de ensaio aumenta gradativamente, de acordo com a

proximidade do carnaval. Por volta de julho ou agosto, iniciam-se os ‘ensaios abertos’

aos sábados, que começam por volta da meia-noite e se estendem até as quatro ou cinco

horas da manhã. Há ainda um ensaio semanal, a partir de dezembro, que se realiza aos

domingos, em ruas da cidade, totalizando três ensaios semanais fixos. Atualmente,

desde 2005, acontecem mais um ou dois ensaios na própria Marques de Sapucaí. No

ano de 2006, ocorrem ainda ensaios em algumas segundas-feiras na ‘Cidade do Samba’,

onde se localizam os barracões de todas as agremiações do Grupo Especial.

Durante os ensaios na quadra, a ala da bateria é alocada sobre uma espécie de

tablado, localizado na área lateral, à direita do palco principal. O tablado possui quatro

ou cinco degraus bastante largos, que são ocupados pelas pessoas que compõem a ala,

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com seus instrumentos. O primeiro degrau tem uma altura aproximada de 40cm e o

último fica a cerca de um metro e meio do chão.

Na parte da frente da ala, localizam-se os naipes de cuícas e chocalhos, que se

posicionam no chão; no primeiro degrau, ficam geralmente duas filas de tamborins; e

nos degraus posteriores, instalam-se as caixas, os repiques, taróis e surdos. Quando há

muitos ritmistas, os que tocam tamborins também ficam no chão. Em geral, os

instrumentos que dão início ao ensaio são as caixas-de-guerra, os repiques e os surdos,

depois entram os tamborins, os chocalhos e as cuícas. No começo dos ensaios, a bateria

toca sozinha, incessantemente, durante cerca de trinta ou quarenta minutos, sem

acompanhamento do intérprete e dos músicos; estes participam dos ensaios e se

apresentam no palco somente a partir da escolha do samba enredo. O momento inicial

(conhecido como ‘esquente’) é também uma demonstração: escuta-se apenas o ‘ritmo’,

(período em que apenas a ala da bateria toca) e as ‘paradinhas’, bossas ou convenções.

Quando a bateria pára, as pessoas que estão na quadra aplaudem, e o mestre, os

diretores, os ritmistas e o presidente da escola ficam satisfeitos e orgulhosos.

Nos ensaios abertos, os ritmistas ficam sobre o tablado, e o mestre fica sobre um

pequeno ‘palanque’, na frente da bateria, para melhor controlar a situação e ser mais

visível para os ritmistas. Quando acontecem os ensaios de rua, o mestre e os integrantes

da ala da bateria vem no chão, caminhando na frente e conduzindo o grupo. Os diretores

de cada naipe posicionam-se na frente dos ritmistas, ou de maneira estratégica, de modo

a poderem ser vistos, quando repassam as instruções e os comandos dados pelo mestre.

Aos sábados, a bateria geralmente tem menos integrantes, cuja presença é

cobrada de forma menos incisiva; algumas pessoas participam do início do ensaio e

depois saem para ‘curtir’ outros ensaios de escolas de sambas, ou tocar em baterias de

diferentes agremiações. Há pessoas que tocam em mais de uma bateria e, portanto,

desfilam em mais de uma escola. No entanto, caso sejam promovidos a diretores, devem

optar pela agremiação à qual se dedicarão com maior afinco ou exclusividade.

Há ritmistas fiéis a uma escola; outros acompanham a dinâmica dos mestres. Por

essa razão, quando um mestre de bateria passa a reger a ala de uma outra agremiação,

pode levar ou ser acompanhado por muitos ritmistas da agremiação anterior. Circular

entre as escolas é de grande importância para a versatilidade no aprendizado de breques,

bossas ou diferentes ‘macetes’ técnicos para lidar com os instrumentos. Esses fatores

formam cada grupo e definem sua identidade sonora, que não é estática e sim fluida,

transformada na proporção da circulação dos atores entre as escolas (PRASS, 1988).

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As eliminatórias dos sambas-enredo começam em meados de julho, ao mesmo

tempo em que se iniciam também os ensaios aos sábados. No primeiro dia, todos os

concorrentes apresentam seus respectivos sambas; nos ensaios subseqüentes, há uma

divisão dos sambas em duas ‘chaves’, por meio de sorteio. Em um dos sábados,

concorre a primeira metade dos sambas, no outro, a segunda. A cada eliminatória, duas

ou três composições são desclassificadas, até que restem cerca de cinco em cada sábado.

Nesse ponto, elas se unem novamente em uma só chave, com cerca de dez composições.

Assim, acontece a semifinal e, posteriormente, a final, geralmente com quatro sambas.

Dia de final é dia de festa!

Como acontece na maioria dos anos, em 2003 há uma camisa específica para tal

data, confeccionada especialmente para a ala da bateria. Dentro da sala onde se alocam

os instrumentos, com exceção das cuícas, tamborins e, atualmente, parte dos chocalhos,

que são pessoais, Ulisses e Seu Arídio (diretores de bateria), com mais duas pessoas,

organizam uma fila e retêm, uma a uma, a carteirinha dos ritmistas, enquanto outra

pessoa entrega as camisas, a serem usadas naquele momento. Após a verificação da

carteirinha, esta é devolvida e deve-se voltar para continuar tocando; no entanto, quem

porventura a esquece, não pode pegar a vestimenta naquele momento. Naquele 19 de

outubro, quando chego à quadra com o ensaio já iniciado, olho a bateria e fico

maravilhada com seu brilho – os ritmistas, com suas camisas estampadas, formam um

conjunto afinado, tanto audível quanto visualmente.

Embora a bateria deva ser imparcial, sempre há um samba considerado melhor,

por ter mais ritmo e ‘suíngue’ para ‘levantar o público na avenida’. Naquele ano, não foi

diferente; alguns dias antes da final, o mestre Ciça avisa que, mesmo que o samba

vencedor não seja o preferido pela maioria, devemos continuar tocando com

entusiasmo. A razão desse aviso deve-se ao fato de, na final do concurso dos sambas-

enredo de 2002, o primeiro colocado não ser o preferido, portanto vários ritmistas,

indignados, abandonaram os instrumentos sobre o tablado e se retiraram – a bateria

esvaziou-se, do mesmo modo que a quadra. O presidente então chamou a atenção de

Ciça, que repassa o recado para evitar a repetição daquela situação.

Com relação às carteirinhas, os ritmistas antigos, ou que desfilaram no carnaval

anterior, têm prioridade, e nem todos os que participam dos ensaios conseguem ter uma.

Em 2000, ano que começo a ensaiar no Viradouro, não consigo receber minha

carteirinha durante todo o ano; apesar de ensaiar o maior número possível de vezes, não

tenho certeza de recebê-la e tampouco a fantasia para desfilar. Um dos motivos para

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essa situação foi o fato de ser novata, torna-se necessário algum tempo para que me

aceitem como ritmista. A possibilidade de permanência na bateria passa a ser uma

construção quotidiana; requer, além de habilidade técnica, disciplina com relação à

freqüência, sendo de grande valia a concentração quando da participação nos ensaios

(PRASS, 1998).

Em todos os anos, percebe-se como alguns ritmistas barganham para

conseguirem a carteirinha, nem sempre a obtendo, porém. Estar de posse de uma

carteira oficial de escola de samba dá direito ao indivíduo de entrar nos ensaios das

demais escolas de samba, salvo em raras exceções.

Mesmo sem ter a carteira da Viradouro no dia da entrega das camisas, recebo

uma. Fico muito satisfeita e, nos ensaios seguintes, passo a usá-la: vestir a camisa da

bateria da escola confere status dentro do próprio grupo, além de afirmar o sentimento

de pertencimento a ele.

Logo começam os ensaios de rua, que acontecem no centro de Niterói, na

avenida Ernani do Amaral Peixoto e, eventualmente, em uma rua no Paraíso, em São

Gonçalo. A prefeitura da cidade fecha a avenida aos domingos, desde o primeiro de

janeiro até o último, antes do carnaval. Todo o conjunto da escola deve estar presente

nesses ensaios, desde a comissão de frente, passando pelas alas da comunidade, de

passo marcado, aos dois casais de mestre-sala e porta-bandeiras, à ala das crianças, à

velha guarda e aos passistas, à ala da bateria e, ao lado dela, ao grande caminhão de

som, que leva sobre ele os intérpretes, ou ‘puxadores’ do samba, e os demais músicos,

cavaquinista, percussionista, coro etc.

Ao contrário dos integrantes de outras alas que pagam pelas suas fantasias, os

integrantes da bateria as recebem de graça. O ritmista ‘compra’ seu passe para o desfile

com muito suor e trabalho (CUNHA, 2001). Há ritmistas que não ensaiam muito, como

os mais antigos, ou as mulheres, esposas ou ‘parceiras’ de alguém que tenha posição

mais elevada na hierarquia local. Esse direito não me cabe, evidentemente – além de

novata, não sou ‘local’, nem da ‘comunidade’.

Persisto ensaiando até o dia da entrega das fantasias, marcado para uma

segunda-feira, duas semanas antes do carnaval. Ciça avisa-me para ir à tarde, pois

entregaria pela manhã as roupas de quem estava com a ficha em situação regular (nas

fichas são preenchidos os dados dos integrantes e o tamanho ou medidas das fantasias).

Por estar apreensiva e desejar acabar logo com aquela situação e com a sensação de

incerteza, resolvo ir pela manhã. Ao chegar à quadra, posso visualizar as fantasias que

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estão penduradas ou deitadas no chão dos camarotes, colocadas em grandes sacos

pretos. Os camarotes abrangem um amplo espaço, de cerca de quarenta metros de

comprimento por oito ou dez de largura, situado em um nível superior ao restante do

espaço.

Seu Arídio logo se dirige a mim: “Não falamos para vir à tarde?” “Que droga”,

penso, volto meus olhos para cima e Ciça acena, indicando-me com gestos para voltar

mais tarde. Parto com Luciana, que me acompanha desde a manhã na situação descrita,

com ela retornando no início da tarde. O mestre olha lá de cima, sorri e acena para

irmos até ele.

Sinto meu coração disparar durante a subida, que me parece interminável. Ciça,

sentado junto a uma mesa, anota quem já recebera, ou não, a fantasia. Pergunta nossos

nomes e brinca, sorrindo, ciente de nosso nervosismo, tal como todos os outros diretores

que lá estão. Anota nossos nomes e explica que devemos pegar as fantasias com

Ulisses, Arídio ou Mauro, diretores de bateria, posicionados um pouco mais atrás.

Como nossas medidas não estão tomadas, perguntam o tamanho da roupa que usamos

(P, M, G ou GG) e o número que calçamos. Como se trata de bota, lembramos de pedir

um número maior, dica que nos deram ritmistas mais antigos – calçados apertados

provavelmente nos causem ferimentos nos pés durante o desfile. Ciça nos alerta também

para evitarmos consumir muita bebida alcoólica no dia do desfile.

Carregamos, desajeitadas, os grandes sacos (utilizados geralmente para coleta de

lixo, são feitos de plástico preto, com capacidade de 100 litros), contendo as fantasias, e

descemos para experimentá-las – havendo algum problema, uma costureira, no local,

encarrega-se do conserto. Vamos ao banheiro para vestir a calça, o casaco-capa e, por

cima de tudo, o resplendor, que se apóia nos ombros, com penas e uma espécie de

‘babador’, todo enfeitado. O chapéu tem uma estrutura de arame, que deve ficar bem

justo e preso à cabeça, para impedir que, no momento das coreografias, haja qualquer

risco de cair ou soltar-se, o que acarreta perda de pontos para a escola. O peso e a

pressão do chapéu incomodam e podem chegar a ferir. Tudo, porém, está em ordem

com nossas fantasias, mesmo sendo a roupa bastante quente, considerando as elevadas

temperaturas do verão carioca.

No dia do desfile, vários ônibus são cedidos, provavelmente pela prefeitura e por

empresas privadas, para transportar os componentes das escolas até a Marquês de

Sapucaí. Seguimos também em um dos ônibus, em direção ao nosso primeiro desfile

como ritmistas da bateria da Unidos do Viradouro.

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A concentração da escola realiza-se ao lado do ‘Balança’, prédio localizado à

esquerda do sambódromo, na esquina da Rua de Santana com a Avenida Presidente

Vargas; em determinado momento, os integrantes das escolas e os carros alegóricos

entram em uma área fechada, por uma espécie de alambrado, formando as alas da escola

na ordem estabelecida para o desfile – a bateria posiciona-se na frente desta formação.

É realmente emocionante ‘entrar na avenida’: sinto mesclarem-se ao tempo de

quase um ano de preparativos, tensão, responsabilidade; ao mesmo tempo, vibro com

sentimentos de euforia, de união do grupo, de disputa com as outras escolas, de

expectativas – é minha primeira vez! Não faço idéia de como acontecem os desfiles, não

conheço a dimensão da própria Passarela do Samba: seu tamanho, as luzes, o som, o

público ali presente.

A escola anterior deixa a avenida e, em seguida, é nossa vez de entrar. A bateria

da Unidos do Viradouro tem Mestre Ciça no comando e Luma de Oliveira como

Rainha. Passamos pela primeira arquibancada, viramos à direita, onde há um recuo;

nesse local a bateria se posiciona, enquanto uma parte do conjunto desfilante atravessa a

avenida. São muitos sons, muitas luzes; sentimos aumentar a expectativa acerca do que

o Mestre nos indicará fazer: apesar de todos os ensaios, a apresentação somente fica

‘pronta’ na hora do desfile oficial – tanto os diretores quanto os ritmistas devem prestar

muita atenção.

Em circunstâncias como as que envolvem as escolas de samba, pode-se perceber

o sentido de grupo e uma grande solidariedade entre todos. Diferentes trajetórias tecem

a história da escola: são experiências individuais, que formam uma história coletiva.

“Enquanto grupo, a escola de samba dá conta das diferenças, e permite que sejam

diferenças exercidas sob a aura da unidade carnavalesca” (PRASS, 1998).

A bateria desfila como um grupo compacto, com fantasias idênticas; reproduz o

que a escola possui de mais individual, embora eventualmente possa imprimir algumas

modificações na sonoridade, sua marca registrada: seu ritmo musical, produzido pela

percussão, e acompanhado pelo canto dos componentes da agremiação e dos intérpretes

(DAMATTA, 1997, p. 130).

É impressionante ver a enorme quantidade de pessoas que aplaudem e cantam o

samba! Uma parte do público fica bem próxima dos desfilantes e é possível olhar de

perto o rosto das pessoas que vibram, emocionadas com o espetáculo do carnaval. A

emoção do público mistura-se com a emoção dos componentes da escola; produz-se

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uma sensação indescritível; como bem coloca Prass, “era a maior platéia da minha vida”

(1998).

Após a passagem de boa parte do conjunto da escola, a ala sai do primeiro recuo

e se integra ao corpo desfilante, com ele evoluindo até parar para entrar no segundo

recuo, desta vez em uma rua à esquerda. Depois de o restante da escola passar, a ala

então se reintegra ao grupo, e fecha o desfile.

Na ‘dispersão’, um caminhão aguarda, com as pessoas responsáveis pelo

recebimento das ‘peças’ (instrumentos) a serem devolvidas pelos ritmistas. Alguns

ônibus esperam os integrantes da escola que desejam retornar à quadra, enquanto outros

deles permanecem nas imediações do Sambódromo; lá existem inúmeras barracas onde

se vendem bebidas, comidas variadas, camisas de escolas e onde ocorrem eventuais

‘encontros’. Existem, ainda, as pessoas que desfilam em mais de uma escola e ficam à

espera dos próximos desfiles – cansativo, porém gratificante.

Na ocasião posterior, no que diz respeito a minha inserção em campo, volto-me

ao barracão da Escola. Sou apresentada ao assistente do carnavalesco por uma também

ritmista do naipe de chocalhos - esposa de um dos diretores da ala da bateria e também

funcionária temporária da agremiação como ‘aderecista’ -, acompanho-o em meio à

aparente confusão e faço perguntas que são pacientemente, mas sem delongas,

respondidas.

Naquele espaço, estão presentes e desempenham diferentes e complementares

funções (utilizo as categorias nativas em relação aos cargos e funções desempenhadas):

o administrador do barracão; o conferente geral do barracão; o carnavalesco; o

figurinista; a confecção, o projetista que faz os desenhos dos carros e demais alegorias,

calculando materiais e maneiras de colocar os diferentes mecanismos em ação; o

responsável pela ferragem; o responsável pela madeira e carpintaria; pela pintura,

considerado pintor de arte; pela costura; pela resina e fibra; pela parte elétrica; pela

mecânica; pela placa; pelos adereços. Cada uma dessas pessoas, responsáveis por

determinados setores, tem sob seu comando outros funcionários.

Quando o enredo se refere a um fato histórico contratam um historiador que

realiza uma pesquisa acerca do tema (enredo). O enredo deve ser defensável frente aos

jurados, devendo convencê-los, a partir das fantasias e alegorias - que representam os

elementos presentes no desenvolvimento do enredo, apresentados ao júri por meio de

um texto e também de um mapa contendo não só a descrição, mas também a estrutura

da apresentação e as imagens das fantasias e alegorias -, que a agremiação apresenta e,

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por meio delas, traduzir o tema escolhido. A boa nota depende da capacidade de uma

‘tradução’ plausível.

Segundo o assistente do carnavalesco, convidado por este para integrar sua

equipe, pois trabalharam juntos em outra agremiação, há um trabalho de cerca de seis

meses que antecede a apresentação do enredo aos responsáveis pela agremiação.

Período necessário para a realização da pesquisa, escrita da sinopse - posteriormente

entregue aos compositores, que elaboram os sambas enredo baseados nela, sambas que,

por sua vez, participam das eliminatórias - e ainda para elaborar os figurinos. Neste

caso, o carnavalesco apresenta a idéia e os figurinistas a executam: primeiro em forma

de desenho, depois em moldes de papel e por fim, recortam tecidos e dão forma às

roupas.

Um enredo patrocinado leva a ‘escola’ a solicitar ao carnavalesco que apresente

um patrocinador. O carnavalesco contrata um ‘captador de recursos’, que recebe pelo

seu trabalho 20% do valor arrecadado. Além da verba dos patrocinadores, as escolas

recebem uma ‘subvenção’ da prefeitura e da LIESA (Liga das Escolas de Samba),

segundo relata o assistente. O montante ‘cedido’ por meio da subvenção depende da

colocação da escola no carnaval do ano anterior, quanto melhor a colocação, maior o

valor, podendo, (ainda de acordo com o relato), chegar a sete milhões de reais,

oferecidos à campeã do ano anterior. As escolas precisam justificar a utilização do

dinheiro da subvenção e também do originado a partir de contratos com empresas ou

instituições, principalmente se estiver vinculado a alguma lei de ‘incentivo à cultura’,

como a Rouanet4.

Atualmente enquadrar: a execução dos enredos; o quadro de trabalhadores

contratados pelas agremiações; as ‘fundações’ criadas pelos patronos e ‘sem fins

lucrativos’, voltadas ao atendimento da ‘comunidade’; o apoio aos funcionários, que

pode representar o trabalho nos quadros da escola, são alguns dos recursos utilizados

como justificativas para a necessidade e importância de liberação da verba. O governo

aceita as justificativas e leva organizações dessa categoria a angariar fundos

provenientes de ‘leis de incentivo à cultura’, dinheiro este, que é abatido das taxas

cobradas pelo governo às empresas, dinheiro público, portanto.

4 O Ministério da Cultura apóia projetos culturais por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei nº 8.313/91), Lei do Audiovisual (Lei nº 8.685/93) e também por editais para projetos específicos, lançados periodicamente.

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O exemplo da Mangueira é citado. A Escola recebe do patrocinador, em 2005,

uma verba de cinco milhões de reais. O enredo sobre ‘energia’: “Mangueira Energiza a

Avenida. Carnaval é Pura Energia e a Energia é o Nosso Desafio” é bancado pela

Petrobrás. Além dessa soma, acrescenta-se a subvenção. Expender quatro milhões e

meio de reais ou cinco milhões de reais pode levar uma agremiação ao campeonato,

com (dois milhões e quinhentos mil reais é possível fazer uma apresentação em aparatos

que a mantenha no Grupo Especial. O assistente diz que “aquela Sapucaí pode ser a

glória ou a derrota total do carnavalesco”.

No barracão, se trabalha com uma carga horária estipulada mais as horas extras.

O profissional avalia que essas compensam o não recebimento do décimo terceiro

salário. A maioria dos trabalhadores não é regularizada e é contratada na medida em que

o grupo necessita de seus serviços, configurando postos de trabalho sazonais que

crescem em número com a aproximação do carnaval.

Edward, assistente do carnavalesco, não pode ficar parado, precisa estar atento

ao encaminhamento dos afazeres e ao empenho dos trabalhadores. Conversamos

enquanto o acompanho em sua aturdida andança e cautelosa verificação ao longo

daquele amplo espaço. O andar inteiro abriga diferentes setores implicados na produção

e na confecção das fantasias e das alegorias ou ‘cenários móveis’, como bem coloca um

dos entrevistados.

Carnavalesco e projetista trabalham juntos, o projetista é um engenheiro que

pensa em como realizar as idéias do carnavalesco; resolve como instalar canos e

ferragens; determina como manter o carro equilíbrio, por exemplo, quando há uma peça

que deixa a alegoria mais pesada de um lado, precisa fazer algo do outro lado para

compensar o desequilíbrio; cria soluções para o amortecimento e a tração dos carros

alegóricos; e ainda resolve como e onde instalar extintores e proporcionar um sistema

contra incêndio eficiente, visto que materiais extremamente voláteis (como as madeiras

e os isopores), estão muito próximos das estruturas que são soldadas.

A ‘costura’ é composta por uma equipe de 18 costureiras, agregadas em um dos

cantos de um andar superior do barracão, que fazem tanto a ‘base’ das roupagens,

quanto alguns dos elementos que as compõem, também podendo incrementar as

alegorias. Uma ampla mesa fica instalada ao lado da equipe, instalada junto às máquinas

de costura, e nela são recortados os moldes em papel e também os tecidos, que, em

seguida, são trabalhadas pelas costureiras manualmente ou à máquina.

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O ‘adereço’ emprega os ‘aderecistas’. Esta categoria compreende cerca de até

duzentas e cinqüenta pessoas, que ornamentam e dão o acabamento final em todas as

fantasias e parte das alegorias confeccionadas no barracão: colam, encaixam, rasgam,

separam materiais, penas e plumas, sejam elas de avestruz, ganso, galinha, cegonha,

faisão ou sintéticas, cortam tecidos já preparados para serem itens das roupas, lidam

com pedrarias, fitas e toda sorte de material utilizado na composição das indumentárias.

A ‘placa’ é conduzida pelo ‘plaqueiro’, responsável por fazer as peças de resina.

As estruturas são aquecidas e amolecidas, podendo assim ser moldadas. De diferentes

tamanhos e formatos, são utilizadas como bases e decoradas tanto para composição de

fantasias, quanto para a composição de alegorias. A resina manipulada pode ainda

funcionar como molde para o que será, na seqüência, esculpido em gesso ou fibra de

vidro. As esculturas, na maioria das vezes, são partes ou detalhes dos carros alegóricos e

também podem integrar outras alegorias – estruturas menores que os carros, sem motor

e empurradas ou carregadas pelos próprios desfilantes, aparecem no desfile em meio ou

à frente da escola.

No ‘isopor’ inicia-se o processo de feitura de todas as esculturas, segundo relato

da artista plástica, a ‘escultora’ responsável por esse setor. A planta dos carros e dos

demais elementos componentes é recebida e então os escultores põem-se a dar forma a

pedaços de isopor compacto. Grandes ou pequenos bocados são manuseados,

recortados, serrados, lixados, queimados, colados, entalhados, até que aqueles angulosos

sólidos geométricos se transformem em alvos artefatos, são taças, pilares, cavalos,

palhaços gigantes, cristas de ondas, que trazem em sua brancura uma tranqüila palidez.

Prontas e acabadas, colocadas em seus devidos lugares, a transformação em objetos

coloridos e ornamentados provocam o contraste. Num espaço, horizontal e vertical, que

não comporta as por vezes enormes estruturas (de, por exemplo, oito metros de altura),

os artefatos são realizados em partes e conforme uns são levados em direção às suas

bases de sustentação (localizadas no andar térreo), outros ocupam seus lugares.

A ‘fibra’, pode ser o passo seguinte à manipulação do isopor. Segundo os atores

locais é o trabalho mais insalubre do barracão. O cheiro exalado pela composição

química expande-se por todo o lugar e a fibra de vidro em sua volatilidade é aspirada,

pela respiração, por quem trabalha nas imediações. Duas pessoas são responsáveis pelo

setor. As esculturas de isopor estando de posse dos ‘fibreiros’, são envolvidas por

aquela forma líquida, que endurece e dá ao material inicial uma resistência que não lhe é

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peculiar. A feitura dessa ‘capa’ mais adequada à pintura, à colagem de materiais e a

suportar intempéries climáticas, é acompanhada de perto pela escultora.

A ‘madeira’ e a ‘ferragem’ ficam localizadas no primeiro pavimento. Os carros

alegóricos são completamente ‘despidos’ dos apetrechos relativos ao carnaval anterior e

então podem começar a ser (re)montados, de acordo com as plantas referentes ao

carnaval do ano seguinte. O tempo do carnaval é vivido um ano à frente e com pressa.

No processo de desmontagem as madeiras (MDF), quase todas são jogadas fora, com a

exceção das mais amplas que não estão danificadas. Somente as maiores ferragens são

reutilizadas, a maior parte dos tubos e estruturas de metal é também descartada, o

mesmo acontecendo com os adereços (deles poucas penas são aproveitadas) e isopores.

O processo de reutilização ou venda de alguns materiais para escolas de samba menores,

de outras cidades, assim como doações ou trocas são possibilidades presentes.

O ano de 2006 é o meu último desfile, mas ainda não sei disso. Presente no

início da temporada de ensaios, deixo a quadra ao final de julho, quando vou para

Londres pela segunda vez. Aviso ao Mestre o meu afastamento, temporário e

necessário, ele compreende e diz aguardar a minha volta, reservando assim o ‘meu

lugar’. Na volta já não sei mais se é possível freqüentar os tantos ensaios semanais, virar

noites e ‘perder’ dias, tendo que concluir a elaboração da parte escrita da pesquisa.

Todas as informações de Londres fervilhando na cabeça, caderneta de campo, diários,

fotografias, fitas de áudio, vídeo, materiais publicitários, revistas, artigos, livros para

ler, informações para buscar... Não retorno mais à quadra, tampouco ao barracão.

Apenas vou à Cidade do Samba em duas ocasiões, dois ensaios com a ala da bateria e

músicos.

Não mais volto ao ‘território imaginado’ do samba. Território que se faz

presente, desde então, por meio dos dados, das observações lembradas, das inúmeras

anotações, objetivas ou fugidias, dos pensamentos, dos dedos e dos computadores e dos

papéis (milhares), no exercício da escrita. Território que me cerca e envolve, juntando

duas experiências intensas e reveladoras. A capital inglesa aparece como novo

momento, inusitado e complementar. Ver uma escola de samba desfilar pelas ruas de

Londres, desfilar em uma escola de samba em Londres... no primeiro ano aquilo me

parece uma intrincada confusão. No segundo ano, entretanto, observar a quantidade de

grupos que integram o carnaval, conhecer as pessoas que ‘fazem’ o carnaval, me

absorve. Carnaval multifacetado que apresento a seguir.

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II. b. Participação Junto a Uma Escola de Samba Inglesa em 2005

No ano de 2005 participei de um concurso de redação promovido pela produção

de um músico brasileiro, Lenine, e veiculado por uma rádio no Rio de Janeiro. Assim

conquistei o primeiro prêmio - passagens aéreas de ida e volta e alguns dias de estadia

em Paris, para assistir ao show do artista. Encontrava-me, inesperadamente, em uma

situação com a qual não havia contado. Considerando tal oportunidade irrecusável,

organizei minha vida acadêmica junto aos professores do mestrado da Universidade

Federal Fluminense, arrumei as malas e fui.

Contava com a possibilidade de alojar-me na casa de uma prima, Adriana

Nascimento, que estava em Paris por conta da realização de seu doutoramento

‘sanduíche’. De tal maneira estendi a data de retorno do bilhete aéreo e comuniquei-me

com o mestre de bateria da escola de samba Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, por meio

de correio eletrônico, acreditando que ele estivesse em Londres, pois havia viajado para

lá, por conta de seu envolvimento com a escola londrina Paraíso School of Samba,

como faz todos os anos. De fato, ele ainda ia passar alguns dias naquela cidade e

sinalizou que eu podia me receber, pois contava com um local para me hospedar, mas

que dentro de dois dias estaria voltando para o Brasil.

A partir do ano de 2002, passei a freqüentar e participar dos ensaios da bateria

da Escola de Samba Estácio de Sá. Assim como era ritmista na Unidos do Viradouro,

conquistei a mesma posição tocando chocalho na ‘Estácio’. Posteriormente, por volta de

2004, um grupo de pessoas, inclusive eu, fundamos nesta agremiação um grupo

batizado de ‘Memória Berço do Samba’. Nossas atividades estavam voltadas para a

busca, reunião, recuperação e organização de fotografias, textos, músicas, depoimentos,

filmes e materiais diversos sobre a agremiação. Apesar de nosso desejo explícito de não

nos vincularmos politicamente a determinados grupos dentro da estrutura

organizacional da escola, em determinado momento, no ano de 2005, viemos a nos

tornar o ‘departamento cultural’ da escola. Mantivemos durante cerca de dois anos uma

sala na quadra da agremiação, aberta à visitação do público, de estudantes e

pesquisadores, onde ficava reunido o material que coletávamos e produzíamos. O

projeto realizou ainda, em parceria com a empresa ‘Bogotá Filmes’, um filme de média

metragem que explorou aspectos da história da agremiação, permeado com entrevistas,

fotografias, músicas, narrativas, imagens de desfiles e ensaios, chamado “O Rugido do

Leão”, visto que o símbolo da escola é um leão. Desta vivência, se deu minha relação

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com o mestre de bateria, também participante do grupo, e que ora me recebia em

Londres.

Acreditando que não passaria mais de dois dias naquela cidade, arrumei uma

pequena mochila, deixando grande parte da minha bagagem na casa da Adriana e

apressei-me em comprar a passagem mais barata que pude encontrar. No dia seguinte,

embarcava para Londres em um ônibus da Eurolines, que levaria cerca de oito horas

para chegar ao destino final.

O mestre havia explicado para levar e apresentar minha passagem de volta ao

Brasil, cartão de crédito e dinheiro, e “tentar a sorte” junto aos responsáveis pela

imigração, na fronteira da Inglaterra, que em determinadas circunstâncias veta a entrada

de estrangeiros. Assim, após uma agradável travessia de barco (ferry boat) sobre o

Canal da Mancha, tive que explicar o que estava indo fazer, onde ia ficar, se tinha

dinheiro, quem tinha pagado minhas passagens aéreas e coisas do gênero.

Cheguei à Londres por volta do dia 27 de junho de 2005. O mestre foi me buscar

na coach station pela manhã (algo como uma rodoviária). Fomos em direção ao

apartamento onde me instalei, no bairro de Chelsea. Chegando lá, percebi que o lugar

também era utilizado como espaço para confecção de objetos para a escola de samba.

Eu, o mestre - que na Paraíso ocupa a posição de ‘presidente de honra’ -, e seu

irmão caçula – carnavalesco e intérprete -, ficamos por ali até completarmos a

confecção das alegorias . Um carro veio buscá-las e também a nós. Fomos até o centro

comunitário onde fica o ‘barracão’. Naquele local – como um sótão - são guardados os

materiais que compõem as alegorias e fantasias, bem como são ali confeccionadas.

Alocamos as esculturas e rumamos para a casa do irmão mais velho, presidente da

agremiação e também carnavalesco. A organização da escola é arranjada, sobretudo, por

esses três irmãos brasileiros. O primeiro é o mestre de bateria e presidente de honra,

mora no Rio de Janeiro, os dois últimos moram em Londres.

Eu havia conhecido anteriormente algumas pessoas que participam daquela

escola, pois vão ao Brasil participar de ensaios e desfilar no carnaval carioca quase

todos os anos. Do mesmo modo, pessoas da agremiação carioca vão para Londres

participar e auxiliar na confecção das fantasias, alegorias, bem como dar aulas e realizar

workshops de percussão. Meu interesse era conhecer um pouco daquilo de que falavam

e participavam. Até então eu não sabia que o desfile carnavalesco aconteceria ao final

do mês de agosto. Apresentou-se mais essa oportunidade, mas não sabia se poderia

aproveitá-la.

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Naquela noite o meu anfitrião partiu de volta ao Rio, dando continuidade em

seus trabalhos junto à bateria da Estácio de Sá. Eu, recém chegada, estava receosa.

Porém o presidente da escola, e outros amigos e participantes da agremiação, inclusive

algumas pessoas que havia conhecido no Brasil, indicaram que estavam de saída para

um ensaio e me convidaram para acompanhá-los.

Fomos até o centro da cidade, onde haveria o ensaio em uma casa noturna e

restaurante, o Havana (Fiesta Havana). Lá chegando, percebi que era bastante diferente

do que vemos no Brasil. Tratava-se de uma aula para ritmistas, da qual participavam

alguns membros da Paraíso. Ocorreria também uma aula de dança. Ambas as aulas eram

pagas.

Toquei chocalho junto a eles durante pouco tempo. A situação era bastante

diferente das que eu havia participado no Brasil, tanto no G.R.E.S. Unidos do Viradouro

quanto no G.R.E.S. Estácio de Sá. Por conta do pequeno número de ritmistas, do

tamanho, da acústica, e por ser um local fechado, o toque tinha um volume

relativamente baixo e um ritmo um pouco mais lento. O fato de haver poucos tamborins

no conjunto da bateria fazia com que o som do chocalho sobressaísse. Na ocasião, eu

era a única pessoa a tocar aquele instrumento. Então, toquei apenas por um algum

tempo e saí do grupo a fim de observar para compreender melhor o funcionamento

daquele, para mim, novo esquema.

Durante aquela semana pude participar de um outro ensaio, em Liverpool (bairro

localizado na parte nordeste de Londres). Apesar de serem noturnos, em geral os

ensaios acabam por volta de 22:30h, pois os estabelecimentos fecham e um pouco mais

tarde o metrô, meio de transporte da maioria, pára de circular. Neste ensaio, que se

repetia semanalmente, também havia aula de dança. O número de pessoas era maior,

bem como o de ritmistas. De certa forma, tínhamos mais liberdade para tocar. Era

possível executarmos os sambas e convenções com maior vigor.

Por essa época, fiquei sabendo que o carnaval aconteceria no último final de

semana de agosto. Era início de julho e não sabia se poderia prolongar minha estada na

Europa por mais dois meses. No dia seguinte, eu voltaria a Paris e, além de não ter

disponibilidade financeira para nova viagem a Londres, minhas aulas do curso de

mestrado, iriam recomeçar no início do mês de agosto, sendo necessário ainda conseguir

remarcar a data da passagem de volta ao Brasil.

Passei cinco dias junto aos organizadores e integrantes da agremiação,

trabalhando junto a eles no barracão e nas apresentações da escola, como ritmista. O

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presidente gostou da minha presença e empenho, me incentivando a retornar e retomar

as atividades até o carnaval. Comprometeu-se a me apoiar, providenciando um local

para me hospedar, financiando minha alimentação e custeando meus gastos com

transporte dentro da cidade. Por fim, me deu cinqüenta pouds (libras) para o caso de

precisar comprar a passagem de Paris a Londres.

Depois de algumas conversas com meus pais e alguns malabarismos financeiros,

troquei minha passagem de retorno ao Brasil, remarcando minha saída direto de

Londres, em 30 de agosto de 2005. No dia seguinte ao desfile.

No dia 06 de agosto, desembarquei em Londres pela segunda vez. Ficaria no

mesmo apartamento onde já me hospedara. Ao chegar, o presidente da escola, o vice, o

carnavalesco e mais um destaque masculino me aguardavam com uma saborosa

feijoada. Senti-me reconfortada, pois percebi que estavam gostando da minha presença,

convivência e colaboração.

Na segunda-feira, fui ao ensaio no Havana. Eu me sentia mais à vontade e

conhecia um pouco melhor alguns dos integrantes do grupo e a cidade. Quando a aula

de dança acabou, a bateria continuou tocando, inclusive eu. O diretor - irlandês -,

responsável pela ala passou a indicar uma pausa para determinados instrumentos para

que apenas um naipe seguisse tocando. Silenciava surdos, tamborins, caixas, cuíca e

chocalho, mantendo apenas os repiques tocando e assim sucessivamente. Em dado

momento, sinalizou para mim - o único chocalho. Fiquei um pouco nervosa, mas não

tinha escolha, era o momento solo do chocalho. A bateria parou e eu segui tocando, com

um foco de luz sobre mim. Senti-me um tanto embaraçada. O intérprete que estava

cantando - também carnavalesco -, anunciou: “A ritmista da Escola de Samba Unidos

do Viradouro, do Rio de Janeiro: Iara”. Todos aplaudiram e a bateria voltou a tocar em

conjunto.

Ao final dos ensaios, os responsáveis pela agremiação oferecem uma bebida aos

ritmistas, prática corrente nas escolas cariocas, e os instrumentos são levados de volta

para as casas dos responsáveis, pois na casa noturna não há um local reservado para

alocá-los.

Um outro local de ensaios era no porão de uma igreja em Brixton, ao sul de

Londres. Bairro que em certo período também recebeu grande número de imigrantes

negros, vindos do Caribe e de outras áreas. Um bairro mais pobre, onde se vêem pelas

ruas pessoas vendendo drogas, com roupas surradas, e fui orientada a tomar cuidado

(“ficar esperta”), pois poderia ser um local ‘mais perigoso’, também conhecido (como

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alguns outros lugares) como “hot spot”. Naquele local, havia espaço para guardar alguns

dos instrumentos maiores, como os surdos. Os mais leves, em geral, são levados pelos

diretores de bateria, para as suas casas ou pertencem aos próprios ritmistas.

Retomei os trabalhos no barracão, recortando, colando, pintando, separando

materiais. Desta maneira, conheci mais sobre como confeccionam objetos

carnavalescos. Realizando funções que jamais havia realizado no Brasil. Aprendi a lidar

com a cola quente, a perceber que é utilizada para determinados tipos de materiais e não

para outros, que utilizam diversos tipos de colas para diferentes fins, aprendi a lidar com

arames, lonas, tecidos, pedrarias, plumas e penas, paetês, entre outros. Percebi que

muita coisa é feita habilmente, na base do improviso.

Os dias que seguiram foram de trabalho intenso. Eu e outro brasileiro – que

mora em Londres -comparecíamos com mais freqüência ao barracão. Os demais

trabalhadores eram inconstantes, porém sempre havia mais umas três pessoas realizando

atividades naquele local, sem contar com os integrantes que confeccionavam as

fantasias nas suas casas.

Apesar de não receber remuneração em dinheiro vivo, eu e o presidente

estabelecemos uma moeda de troca. De um lado meu trabalho, de outro minha estadia,

alimentação e transporte semanal. Desta forma, tive alguns dias livres para andar pela

cidade, visitar alguns museus, universidades, parques e outros. Acredito que foi

interessante também para eles, pois muitas vezes levam pessoas do Brasil para

executarem tais funções, pagando, além de estadia e alimentação, as passagens

internacionais.

A Paraíso realiza um show de lançamento do carnaval, Launch Carnival, que

aconteceria no Havana, era a última apresentação da escola, antes do desfile. Eu e o

presidente andamos pela cidade colando em muros e pilastras os cartazes de divulgação.

Como aquilo era uma atividade irregular, tivemos que tomar a devida cautela. Enquanto

ele colava os cartazes, eu (!) observava se havia movimentação policial.

Em 22 de agosto, o que seria o último dia de ensaio e aula, deu-se espaço ao

show de abertura do carnaval daquela agremiação. O intérprete, Dominguinhos do

Estácio, convidado vindo do Brasil especialmente para o carnaval, foi apresentado ao

público, cantando além do samba enredo da escola diversas músicas, de sua autoria ou

não, entre sambas e pagodes. Parece ter sido a exibição em forma de show, mais

completa da agremiação no período pré-carnavalesco. Excluídas a parada do Gay Pride

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(Parada Gay, que aconteceu nos primeiros dias de julho) e a competição entre as

fantasias, Gala.

Ao contrário das segundas-feiras anteriores, a entrada foi cobrada. O show

tomou conta da noite e contou com a participação dos presidentes, do carnavalesco, dos

intérpretes e músicos, de destaque e rainha de bateria - que foi escolhida em um

concurso promovido pela agremiação, entre várias candidatas, no dia 18 daquele mês -,

da ala da bateria, uniformizada, e do mestre de bateria brasileiro, que a conduzia.

Estavam presente ainda, um pai de santo e seu ajudante, que são convidados a irem a

Londres nessa época do ano para acompanhar a agremiação (e seus ‘filhos de santo’) e

preparar a feijoada que é servida após o desfile.

A sexta-feira, o sábado e o domingo que precederam o desfile foram um período

de trabalho ainda mais intenso. Como eu era integrante da ala da bateria da Estácio de

Sá e o presidente de honra em Londres era meu mestre no Rio de Janeiro, nos últimos

dias me voltei à confecção e, melhor dizendo, reparação das fantasias daquela ala. As

roupas e chapéus (‘cabeças’) da bateria foram ‘importados’ prontos do Brasil. Tinham

sido utilizados no desfile oficial da Estácio de Sá. A diretora de bateria e eu ficamos

responsáveis por passar a ferro todas as capas, desamassar as ferragens que formam as

estruturas dos chapéus, retirar palhas, colar penas e pedras, e, por fim, aprontar todas as

fantasias para o desfile.

No sábado e no domingo houve ensaios com a ala de passistas, bateria,

intérpretes e músicos. Algumas das pessoas que participariam do desfile usavam as

fantasias permanentemente. Meu lado ritmista achou engraçado. Causa estranheza aos

brasileiros que participam de escolas de samba, pois as vestimentas, apesar de

representarem um trunfo, uma participação e pertencimento, são associadas a uma

sensação de desconforto, algo desajeitadas. Geralmente são pesadas, grandes, quentes, e

feitas de materiais e maneiras que com o tempo de uso acabam machucando.

Os últimos ensaios foram durante o dia e do lado de fora do centro comunitário.

Nesses dias, havia mais gente do que nos anteriores, num clima de expectativa e

envolvimento com os preparativos para o desfile.

No domingo, dia anterior ao desfile, passei a manhã no barracão. Algumas

pessoas lidavam com fantasias, distribuição de crachás de identificação, venda de

camisas, objetos com o nome da agremiação, de CDs, de bebidas e de comidas, feitas

pelo pai de santo e seu ajudante. Haveria uma feijoada como almoço, vendida e servida

depois do percurso concluído.

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Após o trabalho no barracão, colando penas, pedras, plumas, espelhos,

recortando isopores e lidando com as colas, (inescapavelmente queimando mais do que

apenas os dedos), e desempenhando uma série de funções de um ‘aderecista’ (pessoa

que trabalha na parte final da confecção de fantasias e de alegorias), fui até o float dar

continuidade à sua preparação.

Dois carros alegóricos foram preparados para o desfile. Conhecidos como milk

float, pequenos caminhões originalmente utilizados para a entrega de leite nas casas da

cidade e movidos por meio de grandes baterias, carregadas com energia elétrica.

Movem-se lentamente, mas são respeitado justamente por serem milk floats, os demais

automóveis dão e aguardam sua passagem.

A pintura já estava pronta desde a apresentação na Parada Gay. Faltavam ser

adicionadas as esculturas e ser concluído seu adereçamento. Os ferros deveriam ser

cobertos com tecidos; a parte da frente iluminada; as esculturas bem presas na parte de

trás; seriam acrescentados flores e ornamentações ao longo do carro e longos panos

cobrindo as laterais; presas e instaladas as caixas de som; a bubble machine, máquina

que viria soltando bolhas de sabão durante o desfile e toda a instalação elétrica do carro.

As pessoas que cuidavam da confecção das estruturas de ferragens e madeiras,

discutiam o que estava sendo terminado. A equipe responsável pela instalação do

equipamento de som já estava lá iniciando seu trabalho.

Os pequenos caminhões haviam sido pintados de maneira uniforme e tiveram

suas estruturas preparadas de forma resistente, com as ferragens e as bases de madeira

soldadas ou parafusadas. A estrutura deveria suportar o peso e apoiar as esculturas e

demais adereços e as pessoas (destaques) que viriam sambando sobre ele. Eu, que em

princípio não me sentiria à vontade nas alturas, me vi sobre um dos carros, envolvendo

as ferragens com panos vermelhos, decorando suas laterais com os tecidos que

havíamos preparado durante os dias anteriores e utilizando tintas em spray para pintar

alguns objetos. Os carros são concluído no final da noite.

Na segunda-feira, retornei de manhã cedo ao local da concentração, o centro

comunitário e toda área ao seu entorno. Deveríamos deixar o lugar e rumar em direção

ao local das apresentações, por volta das dez da manhã. Por conta do longo percurso, os

organizadores da agremiação preferem desfilar cedo, a fim de realizarem o trajeto em

um tempo mais curto.

Não há uma ordem pré-estabelecida para a entrada dos grupos no percurso

oficial do desfile. Podendo haver mais do que cem grupos na competição, com variados

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números de componentes em cada um. Chegam ao local do desfile por meio de diversas

ruas e convergem e se encontram em um ponto um pouco antes de onde fica a cabine

dos jurados. Neste ponto, há cercas que separam o público das bandas. Dependendo do

horário que deixam suas concentrações e de entrada nesta área, o percurso pode ser

concluído de forma mais rápida ou mais demorada. Policiais e stewards, responsáveis

pela organização do carnaval, indicam o momento em que o grupo está liberado para

entrar na área do desfile. Quanto mais tarde a agremiação se coloca em posição para a

entrada no circuito, mais parece demorar a conseguirem essa entrada. Há um

‘engarrafamento’ dos blocos.

A Paraíso entrou no circuito oficial e parou em frente à plataforma dos jurados.

Apresentando a coreografia da comissão de frente; do casal de mestre-sala e porta-

bandeira; as convenções e bossas da bateria e soltou balões e ‘fogos de artifício’ -

pequenos pedaços de papel jogados para o alto por um mecanismo de ar comprimido

(fogos de artifício convencionais não são permitidos, por conta da insegurança que

representam).

Durante o longo trajeto, os desfilantes ficaram separados do público por meio de

uma grade de proteção, que se estendeu ao longo das ruas. Os integrantes da escola

estavam descontraídos e animados com a apresentação e com a recepção do público,

que foi bastante calorosa. Poucos grupos apresentam música e percussão ao vivo, a

maioria apresenta som mecânico. Ao final voltamos para o centro comunitário, para

devolvermos os instrumentos, conversar, ficarmos mais um tempo juntos e comermos a

feijoada ‘à brasileira’. Algumas pessoas passaram o resto do dia naquele local. Algumas

voltaram para o circuito carnavalesco aberto, para assistir aos outros grupos, encontrar

ou procurar amigos, comer e andar pelos arredores.

A Paraíso School of Samba, toma para si, em seu discurso, o papel de apresentar

e representar em Londres o ‘verdadeiro’ carnaval carioca. A verdadeira intenção e

formação de uma escola de samba do Rio de Janeiro. Porém é mais recente do que a

Unidos de Londres. Esta agremiação comemorou, em 2004, seu aniversário de vinte

anos. Seus integrantes a apresentam como a primeira escola de samba de Londres. A

Paraíso tem três ou quatro anos.

As funções desempenhadas dentro da agremiação, apesar de parecem bem

definidas, revelam-se variáveis. Além de desempenharem os papéis estabelecidos, o

presidente realiza ainda funções de carnavalesco e também é professor de dança, o

carnavalesco cumpre o papel de intérprete quando este ainda não está presente, os

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diretores de bateria se empenham na confecção das fantasias da ala. Trocam de papéis,

sobrepondo e circulando entre diversas das esferas daquela situação.

Como minha participação e observação, mais aprofundada, nas escolas de samba

cariocas deteve-se, sobretudo, em aspectos definidos da agremiação, como a bateria, eu

não havia tomado como objeto de estudos o trabalho de arregimentação de uma escola

de samba para o carnaval, O que de certo modo aconteceu junto à agremiação londrina,

seja pela dimensão do grupo, seja pela maneira pela qual me coloquei frente a eles e

pela maneira como fui recebida e envolvida dentro daquela estrutura.

Meu olhar sobre o carnaval, sobre as escolas de samba e os grupos

carnavalescos, jamais voltaria a ser o mesmo. Eu não estava interessada apenas em me

apaixonar pelos grupos e temas, participar com vistas ao campeonato, mas

principalmente estava percebendo as ligações, os fios invisíveis, mas sensíveis, que

tecem as infindáveis redes das relações sociais. Não há apenas o momento do carnaval,

há uma série de vidas, anos, inúmeras relações e mecanismos de funcionamento e

controle compassados (eventualmente descompassados?), geridas de maneira local, em

sua menor escala, ou em níveis transoceânicos. O fim do período carnavalesco é apenas

uma diminuição no ritmo daquelas relações, que muito em breve voltam a serem

aquecidas.

No ano de 2005, participando do carnaval londrino pela primeira vez, estive

muito envolvida com as atividades de apenas uma das escolas que tomam parte das

apresentações. Assim, pouco pude ver dos outros grupos que compõem o carnaval e

também do conjunto como um todo. Não tinha condições para descrever a área ou os

mecanismos mais abrangentes da organização e realização do carnaval. Isto pôde ser

feito a partir do meu retorno no ano seguinte. A explanação subseqüente trará mais

detalhes acerca do carnaval de Londres, de forma mais abrangente e também acerca de

diferentes grupos que dele participam.

II. c. Campo e Inserção Junto aos

Grupos Carnavalescos de “Origem Caribenha” em 2006

Em 2006 pude planejar com antecedência minha segunda viagem a Londres.

Ainda no Brasil, busquei informações acerca do carnaval londrino. Sabia da

participação de grupos de origem caribenha e que, provavelmente, haviam fundado tal

carnaval. Para entender o que ele representava, precisava me inserir junto a tais grupos.

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O retorno apresentava como finalidade última, fundamentar e dar corpo etnográfico às

discussões elaboradas nesta dissertação.

Com vistas a atingir a finalidade proposta, buscaria realizar um levantamento

bibliográfico; trabalho de campo de caráter etnográfico e pretendia estabelecer contato

com integrantes de órgãos e agências públicas e privadas que se ocupassem da

organização e realização do carnaval, além de realizar entrevistas com integrantes de

grupos participantes. Para tanto, acompanharia e observaria o período final de

arregimentação do carnaval e os desfiles dos chamados ‘grupos étnicos’.

Tendo estabelecido uma agenda preliminar, embarquei para Londres no dia 28

de julho. Fiquei grande parte do tempo hospedada em um bairro chamado Richmond, ao

sudoeste da cidade. Meu anfitrião, John Hicks, é músico e o compositor do samba

enredo oficial da Unidos de Londres para o carnaval de 2006. John viera algumas vezes

ao Brasil participar do carnaval carioca junto à Estácio de Sá e de ensaios e outras

atividades, como festas e almoços, nas demais escolas de samba.

Tive a oportunidade de recebê-lo na quadra da Unidos do Viradouro, quando lá

esteve pela primeira vez, cerca de dois anos antes. Em uma segunda ocasião, hospedá-lo

por alguns dias em minha casa, no Rio de Janeiro. Desta vez, ele me recebia em sua

cidade, casa e agremiação. John foi me buscar no aeroporto, jantamos em sua casa e ele

sugeriu que eu descansasse após as longas horas de vôo e conexões nos aeroportos.

Naquela noite, haveria uma festa da Unidos de Londres, entretanto eu só acordaria no

dia seguinte, Fomos a um ensaio da Unidos onde ele me apresentou a alguns dos

participantes e amigos. No outro dia, retornou à França, onde mora e trabalha

atualmente, deixando-me sozinha.

A Unidos de Londres é considerada a primeira escola de samba daquela cidade,

fundada no ano de 1984. Bosco de Oliveira - brasileiro e um de seus fundadores -

relatou em entrevista, que o nome ‘Unidos de Londres’ foi escolhido porque desejavam

demonstrar que a escola estava aberta à participação de qualquer pessoa. No primeiro

ano, não participaram como concorrentes, segundo Bosco, em respeito aos grupos

caribenhos. Desta maneira, o grupo de pessoas, portando seus instrumentos de

percussão, circulou livremente pelas ruas da área de Notting Hill, que são reservadas

para o carnaval.

O ensaio (workshop) da Unidos de Londres, de que participamos, aconteceu em

um centro comunitário, ao lado da estação de Waterloo, na área central da cidade. Como

John era o compositor do samba de enredo que seria apresentado pela agremiação

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naquele ano, perguntei se havia ganhado a competição entre os sambas de enredo. Ele

explicou que não. O campeão havia sido um compositor da Mangueira, escola do Rio de

Janeiro, que havia cobrado cinco mil libras para ceder os direitos de utilização do

samba. Alguns dos responsáveis pela LSS disseram que não podiam pagar tal quantia.

Procuraram John e propuseram a utilização de sua composição sem encargos

pecuniários, ele aceitou.

Na minha primeira visita à escola, conheci algumas pessoas que participam

daquele carnaval, assisti ao ensaio e toquei junto à ala de bateria. Os workshops de

percussão e dança são pagos, assim como as fantasias para o dia do desfile, entretanto

eu sempre fui eximida desses pagamentos. Algumas pessoas propuseram que eu

desfilasse junto deles, mas agradeci o convite, considerando que seria bastante

improvável e justificando que, por conta da pesquisa, precisava estar mais livre para

andar e observar diversos aspectos do carnaval, o que eu não havia feito no ano anterior.

O ensaio estava para começar e John se posicionou para cantar o samba.

Empunhando seu cavaquinho e acompanhado de outras duas pessoas, que formavam o

coro, entoaram o samba, repetindo-o por umas duas vezes. Em seguida, a bateria os

acompanhou. Fiquei sentada assistindo e quando dei por mim só eu estava parada. As

demais pessoas que estavam presentes tocavam, dançavam ou cantavam. Senti-me um

pouco constrangida e levantei-me para dançar.

Ao responder que não poderia desfilar e mesmo ao observar o ensaio, percebi

que algo havia mudado em relação a minha posição frente à situação carnavalesca. Eu

não era mais participante da agremiação, não era mais uma entusiasta, ao contrário de

todos os outros ensaios de escola de samba, dos quais eu havia participado até então em

tinha feito questão de tocar, - pois aquele era o ‘meu lugar’, eu era uma ritmista. Na

posição de observadora, ainda que tateando, às apalpadelas ou entrando ‘com passo

desajeitado’, minha posição havia mudado. Tomei consciência de que aquele seria um

grande treino e desafio de adaptação a tal posição. Ainda assim, após um breve intervalo

no ensaio, peguei um chocalho e fui tocar.

Ao final do ensaio algumas pessoas foram para um pub, em frente ao centro

comunitário para beber e conversar, como de costume. Em dado momento, juntou-se a

nós uma jovem jamaicana, de nome Chlöe. Trabalhava no workshop de fantasias da

mesma agremiação junto a Lynn, responsável por algumas tarefas ligadas à confecção

de fantasias. Estimulei este assunto e, por fim, combinamos um encontro durante a

semana, para irmos juntas até o ‘barracão’ da escola.

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Fiquei animada com esta ida até o local de ensaio da escola e principalmente por

ter estabelecido alguns contatos, passíveis de desdobramentos. Além de perceber que

conseguia me comunicar, verbalmente em inglês, relativamente bem.

Encontrei Chlöe na quarta-feira e fui conhecer o workshop de fantasias.

Chegando ao atelier me dirigi a Lynn, explicando que estava fazendo uma pesquisa

sobre o carnaval de Notting Hill e que gostaria de conversar sobre a LSS. Ela não

hesitou em pegar um rolo de tecido e dar para Chloë e eu recortarmos em tamanhos

diversos para as fantasias. Realizei a tarefa, mas confesso que fiquei um tanto entediada,

pois havia realizado um trabalho semelhante no ano anterior. As pessoas que

trabalhavam naquele local, muitas vezes foram evasivas e pouco objetivas ao dar

respostas. Pareciam mais interessadas em me fazer explicitar o que eu sabia sobre o

carnaval carioca do que me ajudar a entender o londrino.

Percebi que não estava onde desejava chegar, ou seja, junto aos grupos

fundadores e maioria naquele carnaval, os grupos de origem caribenha. Continuei a

minha busca e foi então que, em um panfleto falando sobre as atividades do período

carnavalesco, encontrei uma referência à London Calypso Tent, uma competição festiva

entre músicos que tocam e cantam calipsos, que elege o ‘Monarca’ do carnaval. As

eliminatórias aconteceriam em várias sextas-feiras durante o mês de agosto. Não sabia o

que encontraria naquele local, mas considerei que poderia ser um bom ponto de partida

em relação ao encontro que buscava junto aos grupos de origem caribenha.

Este festival tinha como sede o Yaa Asantewaa Arts and Community Centre, um

centro comunitário que abriga a Associação de Calipsonianos Britânicos, Association of

British Calypsonians, e é o local de confecção das fantasias da banda de mesmo nome,

Yaa Asantewaa mas band. Segundo dados que constam do livro “Claudia Jones, A Life

in Exile”, a primeira competição que daria o título de Monarca em Londres, se deu em

1957 (1999, p. 205). Assim como a maioria das atividades que acontecem no período do

carnaval, carnival season, esta também segue os padrões das competições que se

realizam em Trinidad.

Em uma tarde agradável, ensolarada e com um vento suave, dirigi-me ao local a

fim de saber o que era aquela associação e, principalmente, conhecer pessoas que dela

participavam, contando que eventualmente poderiam auxiliar na minha busca. Uma

simpática jamaicana, de nome Talibah, foi quem me recebeu. Apresentei-me e expliquei

o motivo de estar ali. Ela sugeriu que eu voltasse por volta das sete horas da noite, pois,

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a partir daquele horário, mais pessoas envolvidas com o carnaval estariam por ali, e

assim, poderia sentir melhor aquela atmosfera e ver como fazem as fantasias.

Quando eu voltei, ela me mostrou o local, disse para eu ficar a vontade e foi para

outra sala cuidar de seus afazeres, deixando-me novamente sozinha. Fiquei andando

pelo salão e pelas salas do local, me perguntando por onde começar. Foi quando

encontrei Morgan (artista plástico, professor e escultor daquela banda), em um salão no

segundo andar. Ele confeccionava algumas grandes cabeças de papel machê, que

comporiam algumas das fantasias do grupo. Iniciamos um diálogo enquanto ele colava

folhas de papel ensopadas de cola em uma das cabeças.

Morgan falou sobre as cinco formas de arte, arts carnival, que compõem aquele

carnaval. Apresento-as de forma extremamente simplificada: steelbands, bandas

musicais; mas bands, grupos voltados para a confecção de fantasias e participação no

desfile carnavalesco onde seus integrantes as utilizam - são chamados de masqueraders;

apresentações de calipso, música, geralmente satírica, considerada tradicional de

Trinidad, que é tocada e cantada pelos calipsonianos, nas ruas, associações e clubes,

antes e durante os dias do carnaval; os static sound systems, sistemas de som que ficam

alocados ao longo das ruas por toda a área reservada para o carnaval, animando e

sonorizando a região e os mobile DJs. Posteriormente voltarei minha atenção, com

maior acuidade, sobre as steelbands, as mas bands e suas respectivas competições.

Conversamos a respeito do início daquela festividade, principalmente em

Trinidad, e por fim combinamos que eu voltaria na quinta-feira, para que ele me levasse

para conhecer alguns “mas camp”. Passei os dias que seguiram a me perguntar: “o que

vem a ser um mas camp”?

Saí de casa, em direção ao Yaa Asantewaa, onde havia combinado o encontro

com Morgan, portando meu gravador de áudio, embora sem ter a certeza de que teria a

oportunidade de utilizá-lo. Cheguei atrasada, pois havia tomado o ônibus errado, o que

aconteceu diversas vezes, pois trocara o meio de transporte que utilizava. Passei de trem

e metrô, mais rápidos e caros, para ônibus, que demoravam mais, mas eram mais

baratos e me davam a chance de observar a cidade.

Entrei lentamente no espaço sede da Yaa Asantewaa, empurrando suas pesadas

portas. Havia crianças brincando, pessoas trabalhando e eu avistei, dentro da primeira

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sala à direita, meu ‘conductor’ Morgan. Ele indicou que eu devia ir até ele. Perguntou se

eu tinha vindo para ir conhecer os mas camp. Eu disse que se ele pudesse, sim5.

Naquele dia fomos até o mas camp – local onde se confeccionam as fantasias -

da Flamboyan Community Association; da Mangrove Steelband, da Glissandos Steel

Orchestra e da Metronomos Steel Orchestra. A primeira é de fato uma mas band, as

demais são mas e steelbands, ou seja, também voltadas para a música tocada em

tambores de aço, steel drums ou steel pans.

Antes de passar para o tópico seguinte, apresento o que me é relatado por

Morgan, em uma ocasião posterior, acerca da organização e estruturação de um mas

camp. No segundo andar do Yaa Asantewaa Comnunity Center, observo as pessoas que

confeccionam as diferentes e multicoloridas fantasias. Digo que não levantei

informações a respeito da organização interna da rede de trabalho dos grupos de

fantasias, como se conectam os diversos elementos que engendram o funcionamento

daquele ‘mecanismo’.

Morgan, além de artista plástico é professor em escolas em Londres, revela que

também dá aulas nas quais explica a ‘estrutura’, structure, dos mas camp. Toma minha

caderneta de campo em suas mãos e esboça um esquema, com um dos tipos de

organização possível, enquanto o explica verbalmente. Ressalta, todavia, que a Yaa

Asantewaa é diferente, nela as decisões são tomadas de forma coletiva pelos ocupantes

das posições ‘chave’. A Mangrove também possui uma estrutura mais ‘flexível’,

brevemente relatada no Capítulo I, parte III.

A estrutura, mapeada pelo artista plástico, responsável pela confecção das

esculturas do grupo, sculptor, começa pelo ‘líder da banda’, band leader. O ‘elo’ inicial

do grupo, a ‘ponta’ do esquema o organiza e representa, dá comandos e está em contato

direto com o administrador. O administrador, manager of mas camp, aparece em

seguida, esta figura faz o registros dos mascarados que vão participar do desfile e é

responsável pela aquisição do material utilizado pelo grupo na execução das fantasias,

lidando também com a parte financeira que se relaciona a esses assuntos. O tema,

5Na ocasião, conheci Gregory Rabess, integrante da Nostalgia Steel Band, que me levaria até ela e me

apresentaria a alguns de seus componentes. Posteriormente abriria para mim as portas da “Primeira

Conferência Internacional Européia sobre steellpans”, onde participei como ouvinte.

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theme, é escolhido por ambos e a decisão é repassada ao artista, artist, que idealiza os

costumes, develop costumes ideas. Segundo a explanação, algumas das bandas

contratam artistas ‘de fora’, outros, entretanto, fazem parte do grupo, seja por razões

afetivas ou de parentesco.

O administrador aparece novamente, desta vez, transformando a idéia concebida

em ‘realidade’, “artist who being the concept to reality”, pensa e decide que materiais

utilizar. Os técnicos vêm em seguida, profissionais ou artistas (não encontrei um termo

exato para traduzir craft people) que concretizam, dando forma e volume aos esboços e

desenhos. Esses se dividem em algumas especialidades, primeiro há os que executam as

estruturas de metal, fortes armações que sustentam toda a parafernália que pode compor

a fantasia – não posso afirmar com precisão que materiais são utilizados na confecção

dos costumes, pois, na maioria das vezes, meu singelo vocabulário não permitiu o

entendimento de alguns dos termos empregados -, essas estruturas – parecidas com

‘coletes de aço’ - são semelhantes para todas as fantasias maiores, que precisam de

sustentação, as menores e mais leves não utilizam esse apetrecho. A base de apoio e

fixação, dos demais elementos que compõem a indumentária, estando pronta, é levada à

complementação e finalização. Entram em cena o designer, structural person –

designer, e os decoradores de superfície, surface decorators, que, respectivamente, têm

a idéia do que será feito e executa as idéias. Os decoradores dão o feitio final aos

costumes, complementando-os com tecidos coloridos, estampados ou tingidos,

amarram, penduram, costuram panos, pedras, esculturas, revelando toda sua beleza e

esplendor.

III. “Tambores de Aço” - Mangrove e Nostalgia Steelband –

Primeiro Contato com os SteelPans

A primeira banda que visitamos foi a Mangrove. Sua sede fica localizada em

frente a Powis Square, em uma grande edificação, que outrora fora uma igreja Inglesa e

parece ter ficado abandonada durante certo período. Segundo informações dadas por

Clive ‘Mashup’ Phillip – antigo administrador e atualmente um dos responsáveis pela

banda, participante e organizador daquele carnaval desde seus primórdios, e que

atualmente cedeu o posto de administração da banda para seu filho Matthew Phillip –,

aquele espaço começou a ser reutilizado e restaurado pelos próprios caribenhos,

moradores daquela área e posteriormente passou por uma grande reforma. Chama-se

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The Tabernacle, local que abriga, na época de carnaval, o mas camp e o local de

ensaios, pan yard, da banda.

Segundo o artigo “40 years of the Notting Hill Carnival – an assessment of the

history and the future” escrito por Michael La Rose (2004), a banda foi fundada no

início dos anos oitenta, por Frank Critchlow um radical ativista político. Mashup relatou

em entrevista que alguns integrantes da Mangrove foram quem primeiro organizou a

competição Panorama em Londres, na All Saints Road. Portanto, nos primeiros anos não

participava como competidora e sim como organizadora.

Fiquei bem impressionada com a recepção que tive. Morgan, que conhecia

várias pessoas dali, explicou, ao seu modo, a alguns integrantes da banda o que eu

estava fazendo. Logo o jovem Gerard Williams chamou-me para junto dele, a fim de

explicar o tema do grupo e mostrar os desenhos e as fantasias que estavam em fase de

confecção e seriam utilizadas no desfile. O tema era The Victory of Rome, the Building

of one Empire.

A Mangrove possui tanto uma steelband quanto uma mas band. A primeira foi o

foco das atenções, no ano de 2006, no que diz respeito a um maior empenho com vistas

a atingir o campeonato do Panorama. A banda musical ensaiava constantemente e

também havia várias pessoas envolvidas na confecção das fantasias, que seriam

utilizadas no dia do carnaval on the road. O grupo não participaria da competição Gala,

então não estavam confeccionando as grandes fantasias para concorrer a Rei e Rainha

do carnaval.

Segundo Gerard, o tema foi pensado por Rudy, Mashup e Arthur Peters (Attah).

Em seguida, eles passaram a idéia para Ann, a designer do grupo, que após um

brainstorm (que pode acontecer em conjunto com outros integrantes), idealiza e desenha

as fantasias. Não há a apresentação de nenhum texto ou sinopse a respeito do tema aos

jurados, que avaliam a apresentação baseados apenas no visual e na consonância das

fantasias com o tema proposto. Não há a preparação de textos nem para eles mesmos, as

idéias permanecem no pensamento e se concretizam apenas nas fantasias.

Gerard explicou que aquela era uma das bandas mais antigas do carnaval, que há

algum tempo alguns de seus componentes haviam deixado a banda, para ir para outras,

consideradas mais proeminentes. Porém, atualmente estavam retornando. Ele mesmo

havia circulado por outros grupos, mas acabara retornando para a Mangrove, onde estão

seus amigos, seu povo. Ocupava uma posição na banda musical, como panplayer, mas

atualmente não estava tocando, estava responsável por alguns aspectos relativos à

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criação das fantasias e da organização do grupo. Seus companheiros de trabalho

solicitaram sua presença e eu atendi ao chamado de Morgan para irmos até o segundo

andar assistir ao ensaio da banda.

Eu jamais havia visto um único steel pan, muito menos uma steelband. Não

tinha noção do que encontraria. Por conta do bom tratamento acústico do espaço, do

lado de fora do salão de ensaios - um anfiteatro -, praticamente não se ouve som algum.

Morgan abriu uma pesada porta de madeira que dava acesso ao salão e aquele som

(então) estridente invadiu-me com toda sua novidade e vigor. Havia uma orquestra

inteira de steel pans. Cerca de uns cinqüenta instrumentos, tocados por moças e rapazes.

Fiquei muito impressionada com aqueles grandes e lindos instrumentos, de um prata

reluzente.

Há uma série de tambores diferentes, todos com formato circular e feitos do

mesmo material metálico. Porém, como uns são mais altos, outros mais baixos,

possuem diferentes números, disposição e escalas de notas, uns tocados com um só pan

(tambor), enquanto outros formam conjuntos de dois, três, ou até doze tambores. Há

uma enorme variedade sonora, dos mais agudos aos mais graves, sempre tocados com

duas baquetas. Os músicos, panistas, tocam, lado a lado, os mesmos conjuntos de

instrumentos. Como são feitos de grandes círculos metálicos, e apoiados (pendurados)

sobre cavaletes, os músicos ficam de pé. Além de balançarem o corpo de acordo com a

melodia, viram-se constantemente, para atingirem as diferentes notas que compõem

cada instrumento, que podem ter de duas a mais de dez notas cada um, e também para

alcançar os outros tambores, que porventura compõem o instrumento. Além dos

tambores, a formação possui uma bateria e mais dois ou três pequenos instrumentos

metálicos, um deles se chama brake iron, que dá a marcação para a entrada do restante

da banda.

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O grupo era regido por um rapaz, chamado Kyron, que ocupa a posição de

regente ou arranjador (arranger). Kyron nasceu em Londres, sua mãe chegou à cidade

aos nove anos, vinda de Barbados e seu pai da Guiana. Ele rege a banda, propõe a

música conhecida e faz seu rearranjo para a competição Panorama. Os ensaios se dão

com bastante intensidade e constância naquela época, pois no sábado anterior ao dia do

carnaval aconteceria a importante competição entre as bandas, como no carnaval de

Trinidad. Segundo alguns deles relataram, o termo utilizado não deveria ser ensaios ou

rehearsal, pois as practices são mais intensivas e constantes. Concentram sua atenção

em um rearranjo musical, que deve ser apreendido por cada músico até o dia da

competição.

Não há partitura nem nada escrito que possa guiar os músicos. As melodias e

exercícios são aprendidos e memorizados ‘de ouvido’, a partir das práticas musicais e

das muitas repetições. A melodia é iniciada e, em determinado ponto, Kyron sinaliza

uma pausa. Tocando algumas vezes o brake iron, batendo uma baqueta na outra ou uma

baqueta na borda de um dos tambores, dá a partida para o reinício. Assim seguem os

longos ensaios, parando e recomeçando, de diferentes pontos da melodia.

Estava estupefata e envolvida com aquele ambiente, quando Morgam me

perguntou se estava “allready?”. De fato poderia ficar ali por muito mais tempo, mas

havia outras bandas para conhecer, respondi que sim e nos retiramos. Naquela noite,

andamos pelas redondezas de Notting Hill, as mesmas onde se dá o espaço

carnavalesco. Morgam me mostrou o local exato onde seria o início das competições.

No final da noite, agradeço imensamente o mais que agradável e fundamental,

tour pela região e bandas. Morgan me acompanha até o ônibus, que me levaria de volta

para o sudoeste. Vou embora satisfeita com o proveitoso dia de trabalho, havia

descoberto, nada mais, que um ‘admirável mundo novo’.

Faltam apenas quatorze dias para o carnaval de rua quando tenho clareza, (ainda

que com alguma dúvida), que deveria me envolver com menos grupos ao invés de

saltear entre um e outro. Acreditava que, ao passar mais tempo com as mesmas pessoas

e no mesmo local, teria melhor chance de conhecer um pouco mais sobre eles e o sobre

carnaval. A partir desse pressuposto, passo a freqüentar mais a Mangrove, porém

continuo me encontrando e conversando com Morgan, bem como com as pessoas da

Nostalgia Steelband e estabelecendo contatos com integrantes de associações ou

instituições locais como a British Association on Steelbands (BAS) e o Arts Council

England, e pessoas como Gerald Forsythe, fabricante e afinador (tune) daqueles

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tambores, músico que introduziu o ensino de tais instrumentos, no sistema formal de

ensino inglês.

A Nostalgia é outra banda com a qual travo contato, embora de forma menos

sistemática. Havia conhecido Gregory Rabess, integrante do grupo, na sede da Yaa

Asantewaa e ele me convidou para acompanhar um de seus ensaios. Esta é a primeira

banda a que tenho acesso em minhas pesquisas, ainda no Brasil, uma das mais antigas

participantes daquele carnaval. Durante o período em que permaneço na cidade, seu

mais conhecido e antigo fundador, Stearlin Betancourt, não está atuando junto dela.

É em um ensaio da Nostalgia, ao lado de Gregory, que tenho a oportunidade de

tocar, pela primeira vez, um steelpan. Ele toca um guitar pan quando faz uma pausa e

me cede suas baquetas, sticks, para que eu tome seu lugar. Tamborilo sobre o

instrumento quando ele me mostra uma seqüência de notas. Aponta a localização de

cada nota com o dedo e eu sigo com a baqueta. Uma seqüência de cerca de onze toques

que eu repito lentamente, até que posso realizar a série sozinha. O ensaio começa, eu

devolvo as baquetas e fico observando. Esta banda não participa do campeonato como

competidora, por conta de seu pioneirismo e história no carnaval de Notting Hill, é

reconhecida como ours concours.

IV. Panorama

A Mangrove realizara, nos dias anteriores, os ensaios finais na rua. O caminhão

de som, que também leva sobre ele instrumentos e músicos, ficara estacionado, a rua

fechada ao trânsito e muitas pessoas assistindo. Na mesma All Saints Road, que outrora

fora palco de algumas das histórias que me contaram e sobre a qual li, me interando a

respeito dos primórdios daquele carnaval. Ali também foi realizado o primeiro

Panorama.

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A participação nos ensaios e a observação da confecção das fantasias da

Mangrove; minha circulação entre algumas outras bandas e pessoas, fazem os dias

passarem rapidamente. Logo chega o dia da competição entre as bandas. Gerard havia

dito para eu chegar mais cedo ao Tabernacle, pois poderia ir com eles até a área da

competição. Assim procedo.

No dia da competição, chego ao Tabernacle, e sinto que a movimentação é

diferente dos dias anteriores. O clima é festivo e todos se preparam para a saída. Vou até

a All Saints Road, onde o carro de som está estacionado e fico por ali até a hora da

partida. Um pequeno trator azul puxa a grande carroceria que abriga os instrumentos.

Os maiores e mais graves (bass) seguem em duas ou três pequenas carretas, que os

próprios músicos empurram, acompanhando o carro de som. Algumas pessoas,

inclusive eu, seguem a pé.

Duas ou três pessoas vão à frente do trator, indicando a direção para o motorista

e sinalizando, para os demais veículos, que vem aí um cortejo. Carros param para dar

passagem, ônibus se espremem em um dos lados da rua, pessoas param para olhar.

Saímos da All Saints Road, passamos pela Talbot Road e por fim chegamos a Ladbroke

Grove, uma rua maior e mais larga, por onde subimos lentamente até a Kensal Road.

Neste ponto, encontramos outros carros de som, de mesmo estilo, alguns também

puxados por um trator azul. Há muitas pessoas que vão se apresentar e espectadores.

Nove bandas participam da competição, que acontece de frente para uma grande praça,

chamada Horniman’s Pleasance Park, na Kensal Road.

Circulo pela área para ver e ouvir as outras bandas, que, assim como a

Mangrove, ainda ensaiam e fazem alguns ajustes. Quando o grupo se coloca em

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movimento, para entrar na área de apresentação, Gerard avisa que eu devo ajudar a

empurrar uma das carretas com os instrumentos. Assim posso entrar na área de

competição. Sorrio, pois não sei se era, de fato, para tomar tal atitude. Ele reforça: “é

sério, senão não te deixam entrar”. Entro na área de competição, junto a eles,

empurrando uma das carretas.

O caminhão fica estacionado na rua, permitindo que a banda fique disposta de

frente para a cabine de jurados. Esta, por sua vez, fica de frente para a rua e de costas

para a praça. Poucas pessoas assistem frente a frente às apresentações. Além de haver

uma pequena elevação atrás da cabine dos jurados, o público é contido por meio de

grades de ferro, de cerca de um metro e meio, instaladas ao redor da área. Há um telão

na praça, por meio do qual, a maioria dos espectadores acompanha as performances.

As apresentações começam por volta das sete horas da noite e duram cerca de

dez minutos cada uma. Ao final da apresentação da Mangrove, ouvimos muitos

aplausos e parece-me que todos estão satisfeitos. Fico por ali mais alguns instantes,

enquanto o grupo se dispersa. Afasto-me para comer um saboroso e peculiar frango

apimentado, considerado uma comida típica e vendido por inúmeras barracas ao longo

da área, mas não me demoro.

Muitas das pessoas com as quais converso, relatam que ficarão pela área, pois

nessa noite há uma série de festas e clubes, para onde se dirigem à espera do amanhecer,

para participarem do Jouvay, a abertura ou o ‘grito de carnaval’. Não considero

adequado permanecer sozinha pelas ruas ou clubes ao longo da madrugada. Além disso,

na manhã seguinte aconteceriam os desfiles infantis e eu precisava estar de volta.

V. Carnaval ‘on the road’

Tanto no domingo, desfile infantil, quanto na segunda-feira, saio de casa por

volta das nove horas da manhã. Oficialmente o carnaval de domingo tem início às

10:00h da manhã e duraria até o final da tarde. Vou munida de água, sanduíches, casaco

impermeável para o caso de chuva, gravador, máquina fotográfica, câmera de filmar e

caderneta de campo. Sei que serão longos dias, de atenção e multidão.

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Desfile infantil

Nas duas ocasiões utilizo o metrô como meio de transporte e a estação de

Latimer Road como destino, pois é próxima à área de início do desfile. O domingo é

mais vazio do que a segunda feira e, de fato, é possível circular mais livremente pelas

ruas. A impressão que tenho é de uma grande área, que compreende inúmeras ruas e

avenidas, fechadas ao trânsito e tomadas por milhares de pessoas, dos mais diferentes

tipos, com diferentes fantasias, que brincam o carnaval, pulam, e dançam ao som dos

sound sistems, DJs e bandas, há também repórteres, muitos policiais e stewards e ainda

o público que assiste, filma, fotografa.

No primeiro dia circulo livremente por toda a área, desde a Powis Square, onde

se localiza a sede da Mangrove até a Western Road, local do início das apresentações,

onde permaneço até os grupos infantis começarem a desfilar. Assisto aos primeiros

grupos, fotografo e filmo e depois vou ao encontro de meu anfitrião John Hicks e de

outras pessoas da Unidos de Londres. Estão abrigados em uma escola. Voltamos até a

Powis Square, assistimos à apresentação do bloco de samba ‘Verde Vai’ e novamente

nos separamos.

Mas uma vez adentro a sede da Mangrove, converso com as pessoas que haviam

dito que cederiam uma camisa da banda para que eu participar, junto deles, por todo o

percurso do desfile e para reafirmar minha presença no dia seguinte. A camisa está

sendo vendida por cerca de trinta libras, mas eu não pago por ela. Solicitam que eu

chegue cedo para poder apanhá-la. Sigo a andar pelas ruas e a observar a movimentação

das pessoas.

Na segunda feira, chego à área do carnaval por volta das 10:00h da manhã. Há

poucas pessoas nas ruas e cai uma chuva fina, que se torna granizo. As barracas que

vendem comidas já estão armadas (desde o dia anterior?), em funcionamento e suas

fumaças se espraiam adensando o tom acinzentado do dia. Há também policiais no

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local, alguns deles abrigados sob as árvores. As autoridades contam que os festejos

acabem por volta das 21:30h, com a suposta dispersão da multidão.

No Tabernacle, há muitos integrantes da Mangrove fantasiados ou vestindo

camisas da banda. Todos com ar festivo e na expectativa de irem para as ruas brincarem

o carnaval. O grupo de pessoas responsável pela organização da banda está, por sua vez,

muito atarefado. Andam de um lado para o outro tentando resolver o que falta. Precisam

conferir se todas as fantasias foram entregues; distribuir camisas ou fazer fantasias para

retardatários; entregar pulseiras de plástico que: identificam os integrantes do grupo,

permitem a entrada na área restrita aos componentes da banda no Tabernacle e também

na área fechada de desfile e vêm com tíquetes para almoço e bebidas dadas durante o

percurso.

Espero por algum tempo até que Gerard me entrega a camisa para desfilar,

recebo também a pulseira de identificação. Permaneço no local por algum tempo, mas

saio em seguida para ver outras bandas, andar e observar a movimentação nas ruas,

tomadas por foliões, espectadores, vendedores ambulantes ou não, policiais, bandas.

A minha caminhada por uma grande rua principal, Ladbroke Grove, começa pela

parte baixa. Ao chegar à parte mais alta, olho na direção oposta e fio assombrada com a

quantidade de pessoas que ali está, muitas bandas e inúmeras pessoas circulam com as

exuberantes fantasias. É interessante o fato de as pessoas poderem acompanhar as

bandas dançando ao seu lado, por uma grande parte do percurso. A barreira que separa o

público dos integrantes das bandas é, literalmente, um cordão, que depois que a banda

deixa a Ladbroke Grove, deixa de existir. O público é impedido de penetrar apenas na

área onde acontecem as competições, ainda assim não paga para assisti-las.

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Nesta primeira caminhada, não consigo chegar até o local onde se encontram os

jurados, por conta da distância e da multidão, muitas vezes maior do que a do dia

anterior. Também é necessário voltar até onde estava a Mangrove, o que não é rápido,

pois muitas vezes é difícil vencer a multidão circulante e fotografar, filmar e falar com

as pessoas.

No caminho de volta, encontro a ‘minha banda’, que percorre a mesma rua na

qual estou. As pessoas vêm dançando animadamente ao som de socas e calipsos,

tocados por um DJ no carro de som. O carro vem com a mesma formação e

instrumentos do dia do Panorama, porém ninguém toca, todos querem brincar. Além de

trazer e exibir os instrumentos, o caminhão serve como base para alocação das bebidas e

algumas pessoas, quando se cansam, sentam-se sobre ele e seguem o percurso desta

maneira. Na hora do almoço ainda abriga os recipientes com os alimentos. Fazemos

uma fila, ou melhor, uma aglomeração, para pegarmos nossas quentinhas. Os

mascarados destacam um tíquete da pulseira, dada no Tabernacle, entregam ao

responsável pela distribuição e recebem o almoço.

A banda inicia o percurso por volta de 13:00h e retorna ao ponto de partida

apenas por volta das 23:00h. Ao passarmos pelo local onde ficam os jurados, já é noite e

não há mais nenhum árbitro por ali, todos haviam ido embora. Contudo, isto não parece

ser problema, segundo o discurso de diversos integrantes, a intenção maior naquele dia,

é pular o carnaval (jump up). Alguns dos integrantes mais antigos dizem que o carnaval

tem a ver com liberdade, questões sociais, poder, “ser rei por um dia”, e não com

competições. Neste ponto, enfatizam a freqüência altamente competitiva do carnaval

das escolas de samba cariocas, considerando que sua posição era diferente.

Algumas pessoas da banda, com os quais eu tinha maior intimidade, repetiam-

me a todo momento: “enjoy yourself”, insistem para que eu fique à vontade, como eles.

Esta frase vinha sendo repetida por diferentes pessoas e em diferentes circunstâncias,

mas nesse dia são mais insistentes. A intenção, segundo eles, é “fazer o que der vontade

de fazer”, “fazer o que seu corpo quiser fazer, não pensar sobre isso, apenas fazer”, “just

do it!”, “it’s carnival!”.

A maneira como dançam me parece extremamente sensual. As mulheres

mechem os quadris vigorosamente, os homens as acompanham, muitas vezes de forma

libidinosa. Em algumas circunstâncias, um homem e uma mulher juntam seus corpos e

realizam movimentos que lembram movimentos sexuais, outras vezes uma mulher pode

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ficar no meio de mais de um homem ou o inverso, realizando movimentos de mesma

conotação.

Em certa altura, deixo minha mochila dentro do caminhão de som, com algumas

das mulheres que estavam sentadas sobre ele, para tentar ficar mais à vontade e afinal

“enjoy myself!”, porém percebo que para isso preciso me acostumar com aquele tipo de

música e de dança, não compartilho de determinados códigos que estão se apresentam

naquele momento. Sinto-me constrangida de executar tais movimentos e não sei se

dançar junto com alguém implica numa possível continuação da relação, depois de

findo o desfile.

Passam das 21:30h quando, por três vezes, policiais tentam desligar ou abaixar o

som do carro da Mangrove. Mashup revida aos brados e consegue que o som permaneça

ligado até o final do trajeto, de volta a All Saints Road. Apesar do longo dia e percurso,

as pessoas não param de dançar. Ao contrário das referidas escolas de samba, que dão

grande importância ao campeonato, como diversos grupos caribenhos, e procuram

concluir o percurso num curto período de tempo, os integrantes da Mangrove têm outra

perspectiva, desejam permanecer nas ruas pelo maior tempo possível. Se carnaval de rua

tem apenas um dia, deve ser aproveitado ao máximo. Em entrevista posterior, Debi

Gardner, integrante da BAS, considera que apesar de o grupo ter podido continuar a

desfilar, é possível que sofra algum tipo retaliação ou sanção no ano seguinte, 2007.

Vou para casa por volta de meia noite, poucas pessoas e muito lixo pelo chão

das ruas, não há latas de lixo. O proclamado sistema de transportes me parece precário.

O metrô está fechado e há uma longa caminhada até um ponto de ônibus, veículo raro

naquela ocasião.

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VI. Alguns Comentários Acerca da Criação e dos Steelpans

Pan oil drums, steelpans, tambores de aço, em Trinidad, a história deste

instrumento parece nos levar ao período colonial. Os escravos utilizavam instrumentos

de percussão, mas em determinado período sua utilização parece ter sido proibida. Com

a introdução de elementos religiosos cristãos, como dias santos e festas nos calendários

locais, os escravos passaram a utilizar tais períodos, como a quarta-feira de cinzas, para

celebrar, tocavam os tambores e outros objetos que pudessem ser utilizados como

instrumentos musicais.

No início de cada ano, havia uma celebração pela colheita da cana-de-açúcar.

Antes da noite de corte da cana, havia festejos processionais, ritmados sob sons

percussivos e iluminados por luzes de velas, candlelight, o Cannes Brulle ou

Camboulay parece ter sido, eventualmente, celebrado junto ao carnaval. Seu

remanescente atual parece ser, tanto em Trinidad quanto em Londres, o Jouvay, que

marca a abertura dos dias carnavalescos. Os participantes utilizam fantasias que eles

mesmos confeccionam e não há divisão pré-estabelecida entre os grupos. Tem um

caráter mais livre.

No início do século XX, havia em Trinidad banda de Tamboo Bamboo,

compostas por instrumentos feitos de bambus, este material parece ter sido lentamente

substituído pelo metal e algumas das bandas se tornariam famosas steelbands. Por volta

dos anos trinta nasce o steel pan. Algumas pessoas teriam percebido que se amassassem

de um dos lados de latões de metal, em diferentes graus, poderiam produzir uma

variedade de notas. Para a confecção dos instrumentos, ocorre um processo que

podemos considerar como bricolagem, pois utilizavam refugos de materiais.

Determinadas pessoas e bandas são proclamadas como inventoras dos steel pans ou

como precursoras das steelbands.

Em meio a um cenário onde se apresentava uma diversidade de instrumentos,

feitos dos mais diferentes materiais, o steel pan foi confeccionado a partir de latas de

óleo (petróleo) e de biscoito, que eram descartadas pelas fábricas. Isto acontecia em

uma área da cidade denominada John John, onde havia diversas fábricas de biscoitos,

velas, sabão e outras pequenas indústrias.

Serrados na horizontal, em diversas larguras, apresentam uma face que, por meio

de calor, se dilata e forma uma base côncava. Essa base é amassada por meio de

marteladas e cada uma das elevações criadas, de diferentes tamanhos e profundidades, é

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afinada, o que dá origem às diferentes notas, que compõem cada instrumento. Alguns

são mais altos, outros mais baixos, mais agudos ou mais graves. Na primeira vez que vi

e pude escutar um deles, no panyard da Mangrove, os grandes e brilhantes instrumentos

me pareceram não apenas lindos, mas incrivelmente intrigantes. Alguns são tocados em

tambores individuais, outros conformam conjuntos de dois, quatro, ou até doze

tambores.

Winston ‘Spree’ Simon aparece em alguns textos, como o inventor do

instrumento. Porém, não há concordância acerca de tal fato entre as diversas fontes que

pude consultar. O instrumento, inventado no século XX, primeiramente foi convexo e

não côncavo, como vemos nos dias atuais. O ping pong produzia duas notas musicais,

num segundo momento, teriam descoberto uma outra nota entre elas e posteriormente,

no início dos anos quarenta, fariam o melody pan, com oito e depois com quatorze

notas. A quantidade e disposição das notas e escalas continua mudando, dando aos pans

um caráter peculiar de constante movimento.

Atualmente podem ter duas, três, seis, doze ou mais notas, realizando melodias

das mais variadas. Originais, rearranjadas, calipsos, reggaes, músicas pop e mesmo

clássicos. Os instrumentos são definidos como: ping pong ou primeiro pan, double

second pan, guitar pan, triple cello, five bass entre outros. Os baixos são os mais graves

e sobem até os tenores altos, high tenor.

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CAPÍTULO II

CARNAVAL: FANTASIA? SEDUÇÃO? TEMPOS DO EXTRAORDINÁRIO E A

ABERTURA DE UM “MUNDO ESPECIAL”

“Carnaval doce ilusão

dê-me um pouco de magia de perfume e fantasia

e também de sedução.” (Trecho do samba “Os cinco bailes da história do Rio”

de Silas de Oliveira, Dona Ivone Lara e Bacalhau)

Nesta seção, apresento um olhar comparativo inicial sobre os dois carnavais. O

primeiro tópico descreve sumariamente o carnaval observado no Rio de Janeiro, o

segundo descreve da mesma maneira o carnaval londrino, acompanho a mesma forma

de apresentação, de acordo com minha inserção nos campos investigados. Em seguida,

apresento algumas reflexões acerca dos significados que podem ter o ‘carnaval’

enquanto ritual e abordo a questão dos dramas sociais.

I. Carnaval Carioca

Desfile das Escolas de Samba do Grupo Especial na

Avenida Marquês de Sapucaí – Sambódromo -

Espaço Ordinário para dar vez ao Extraordinário

No Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, pensar no desfile

carnavalesco das escolas de samba, nos remete à imagem do sambódromo, localizado na

Avenida Marquês de Sapucaí, no Centro da Cidade. O desfile do grupo especial

acontece em dois dias, e dura geralmente de por volta das sete da noite às sete da

manhã. Em cada dia, se apresentam seis ou sete agremiações.

As apresentações são regidas por normas estabelecidas pela LIESA (Liga

Independente das Escolas de Samba), e devem ser seguidas para que as agremiações

desfilantes possam atingir uma boa pontuação, buscando, cada uma, a conquista do

campeonato. A cada desfile, diversos juízes observam aspectos distintos das

performances e dão notas de acordo com os critérios (quesitos) estabelecidos pela Liga.

Tem-se um local de entrada restrita. Só adentra a avenida, para participar do desfile

quem faz parte de uma das agremiações. Além dessas pessoas, participam com

credenciamentos específicos alguns segmentos da imprensa - principalmente da Rede

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Globo, detentora de todos os direitos de imagem e transmissão do carnaval realizado na

Marquês de Sapucaí6 -, e convidados considerados vips, que margeiam as escolas. Nas

arquibancadas, fica o público, que precisa comprar ingressos relativamente caros e para

cuja compra encontram-se certas dificuldades. São colocados à venda em dias

específicos e geralmente se esgotam em poucos minutos. No ano de 2007, os ingressos

disponibilizados no dia 05 de janeiro e vendidos por telefone, esgotaram-se em um

minuto! Não há como afirmar que essas vendas sejam feitas de forma equânime. Muitos

dos ingressos acabam nas mãos de cambistas e de empresas de turismo.

O espaço do Sambódromo, construído em 1984, foi especificamente destinado a

acolher os desfiles das escolas de samba. Seu formato estabelece, por si só, uma forma

específica para as apresentações. Podemos dividir a organização e seqüência das

apresentações em três partes: a concentração, o desfile e a dispersão. Para cada

momento, há tempos determinados, geralmente estabelecidos em minutos. Fugir aos

tempos determinados acarreta a perda de pontos no cômputo geral da agremiação.

Podemos imaginar esta área como um grande T, onde a linha horizontal seria a área de

concentração das agremiações (Avenida Presidente Vargas) e a vertical seria a área do

desfile (Avenida Marquês de Sapucaí). Na base, teríamos a dispersão.

De acordo com a maneira como as apresentações se desenrolam, a única

possibilidade de os grupos percorrerem a avenida é em linha reta, com um mesmo local

de entrada e de saída para todas as agremiações. Há apenas dois locais denominados

recuos, feitos para o abrigo da ala de bateria de cada escola durante a apresentação e

assim dar passagem às demais alas, saindo e voltando a incorporar-se.

6 A empresa Globo, bem como outras instituições formais, assume posições ambíguas. Por um lado, divide o espaço carnavalesco com as escolas de samba – estabelecendo acordos com setores governamentais e com associações carnavalescas como a Liga, sejam eles diretos ou indiretos -, promove este estilo de carnaval e obtém retornos financeiros. Monopoliza (com consentimento de organismos oficiais) os direitos sobre as imagens de todo o carnaval que acontece no Sambódromo, inclusive sobre as transmissões internacionais. Por outro, eventualmente publica notícias sobre os contraventores, bicheiros que podem então, serem enquadrdos como “foras da lei”. Fatos esses que não implicam sua mudança de posição, nem estímulo a um amplo debate acerca do envolvimento de setores formais aos setores informais e ilegais. Tem sido noticiada a recente prisão do presidente da LIESA, Ailton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães; de Anísio Abraão David, presidente da Beija-Flor, várias vezes campeã do carnaval dos últimos anos e de Turcão, que parecem ser associados em jogos ilegais e patrocinadores de algumas agremiações. Prisões que podem parecer surpreendentes, pois muitas vezes são considerados intocáveis. Como bem coloca Cavalcanti (1994), é possível vermos - na inversão carnavalesca das escolas de samba cariocas - o patrono deixar seu ‘trono’ em direção à prisão; ou vê-lo ser cumprimentado com irreprimível admiração pelas autoridades oficiais e ser fervorosamente aplaudido por uma população maravilhada com o desfile de ‘sua’ escola; ou ainda, no caso do Capitão Guimarães, ser aplaudido pela ‘irrepreensível’ organização do espetáculo carnavalesco realizado no Sambódromo, carnaval ‘de nível internacional’.

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No dia do desfile, a movimentação das escolas começa muitas horas antes do

que é visto pelo público, tanto nas quadras quanto nos barracões. Muitos ônibus partem

das quadras levando grande número de componentes para o Sambódromo. Por

morarem, em sua maioria, nas cercanias da quadra, se dirigem para lá a fim de tomar a

condução gratuita para o desfile, com direito a ida e volta. Os carros alegóricos, na

maioria das vezes, são levados dos barracões para a Avenida Presidente Vargas, na

madrugada anterior ao desfile. Ao chegarem na ‘Avenida’ recebem os retoques finais,

têm seus funcionamentos checados e são vigiados por funcionários contratados pela

escola por todo o tempo.

A seqüência da entrada das agremiações na área de desfile é estabelecida por

meio de um sorteio organizado e realizado pela LIESA7. As escolas que são sorteadas

em posição de número par se armam de um lado da avenida Presidente Vargas,

enquanto as de número ímpar se colocam do outro, sobrando um espaço vazio entre elas

– o início da Av. Marquês de Sapucaí. Os lados são conhecidos como Balança e

Correios - respectivamente um grande prédio conhecido como “Balança, mas não cai” e

um edifício sede dos Correios no Rio de Janeiro. As escolas entram no espaço de desfile

uma após e de frente para a outra, a partir dos lados opostos.

A concentração é o local onde a agremiação se estrutura para o desfile. Neste

espaço, os diretores responsáveis pela harmonia, um dos quesitos avaliados, colocam

em ordem os setores que representam cada parte da história que se pretende contar, de

acordo com a sinopse do enredo. Cada carro alegórico, geralmente em número de oito,

vem seguido de diversas alas, formadas por pessoas fantasiadas de acordo com o tema.

Com a organização da escola, o grupo começa a caminhar, em conjunto, e entra na área

do desfile.

A Unidos do Viradouro, por exemplo, apresentou em 2006, um tema sobre a

arquitetura nacional, cujo título era Arquitetando Folias. O carro alegórico de número

sete representava uma favela contemporânea, o nome: Destruídos e Excluídos – Favela

dos meus Horrores. Após a alegoria que representava o título, seguiam as alas,

7Não me aterei sobre este aspecto, mas apesar da aparente neutralidade do sorteio, há muitos rumores e comentários sobre se de fato o é. Levar em consideração a liderança de contraventores e banqueiros do jogo do bicho e talvez não só por esse fato, não permite afirmar ou concordar que a aparente neutralidade exista. Há agremiações ligadas ao tráfico de drogas, geralmente este comanda a área onde estão sediadas. E outras lideradas por integrantes de forças policiais. Para ver mais sobre a ligação entre jogo de bicho e as escolas de samba cariocas ver: Chinelli e Machado da Silva 2004; Queiroz, Maria Isaura P. de, 1999; Cavalcanti, Maria L. V. de Castro, 1994; Leopoldi, José Sávio, 1977, além de periódicos como jornais de circulação nacional.

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explicando o tema, como um tópico frasal e seu posterior detalhamento. Este é, mais ou

menos, o padrão de ordem seguido por todas as escolas.

Uma vez iniciado o percurso, a escola não tem como voltar atrás, parar ou

dispersar-se, a não ser ao final da Passarela do Samba. Problemas com o andamento da

agremiação podem acarretar a perda de pontos em quesitos como ‘evolução’ ou

‘conjunto’, podendo comprometer todo aquele desfile e seu respectivo resultado.

Quando a escola se posiciona na Avenida e soa o sinal que estabelece o tempo do

desfile, há oitenta e cinco minutos para que cada agremiação finalize o trajeto. A

apresentação não pode ser descontinuada, nem em relação à sua uniformidade visual e

musical, nem em relação ao tempo, que jamais pode ser restabelecido.

Ao final do percurso, no espaço chamado dispersão há, novamente, um lugar

para a alocação temporária dos carros alegóricos, que devem ser retirados dali o mais

rápido possível, caso contrário, pode haver perda de pontos. Os desfilantes, por sua vez,

devem sair para a rua, uma área aberta que não mais pertence àquele espaço de controle,

ou podem dirigir-se ao interior da área reservada para o público, assistindo às demais

apresentações – no caso de possuírem ingressos ou credenciais – ou para retornarem à

área de concentração para desfilarem (“saírem”) novamente, em outra agremiação.

As regras estabelecidas pela Liga parecem ser bastante rígidas em alguns

sentidos. Uma delas impõe o fato de desfilarem no Grupo Especial, nos últimos anos,

apenas quatorze escolas afiliadas. Sete desfilam domingo e as outras sete na segunda.

Eventualmente o número de agremiações que participa em cada dia pode sofrer

alterações. As demais escolas de samba, pertencentes aos grupos inferiores, são afiliadas

à Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro (AESCRJ), outra

organização também majoritariamente gerida por contraventores. Atualmente, somam-

se ao espectro de pessoas vinculadas ao esquema carnavalesco (das escolas de samba)

policiais, que estão presentes em ambas as cenas.

Muitas vezes gira em torno dos resultados finais, tanto no que diz respeito ao

grupo gerido pela LIESA quanto pela Associação, uma suspeição em relação à

colocação das agremiações. Durante os últimos anos, eu presente em diferentes

agremiações dos vários grupos e também em outros espaços correlatos ao samba e ao

carnaval, obtive relatos e soube de casos de inúmeros atores sociais - inclusive alguns

representantes de agremiações, de outros tipos de associações carnavalescas, cantores e

artistas do gênero -, que questionam os resultados finais. Acreditam, muitas vezes, que o

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bom ou mau relacionamento – seja pessoal, seja familístico8, seja por associações nos

jogos ilegais, nos bingos, ou máquinas de caça-níqueis instaladas ao longo da cidade, do

estado ou mesmo do país - entre o presidente da Liga e o presidente da agremiação são

decisivos.

Uma ou duas agremiações ‘descem’ ou ‘sobem’ de um grupo para outro. Então,

apesar de estarem submetidas a um sistema hierarquizado, há possibilidades graduais e

eventuais de reclassificação. A competição abre espaço para uma fuga do ordinário,

visto que aparentemente imprime a possibilidade de um concurso igualitário, promotor

de igualdade e oportunidades idênticas, oposto ao sistema social brasileiro, tantas vezes

marcado pela hierarquização (DAMATTA, 1997).

Em 2006, duas agremiações ‘desceram’ para o grupo de acesso A, enquanto

apenas uma ‘subiu’ ao grupo de elite, reduzindo o grupo especial para treze afiliadas. A

atual intenção é a de que esse formato seja mantido até que haja apenas doze escolas no

grupo. Somam-se ao Grupo Especial os Grupos: A, B, C, D e E, além das ‘Escolas

Mirins’ que desfilam na sexta-feira. Os grupos A e B desfilam na Marques de Sapucaí,

respectivamente no sábado e na terça-feira, as demais apresentações foram levadas para

fora do Centro da Cidade. Realizam seus desfiles em Campinho, na Avenida Intendente

Magalhães. Os mecanismos de ascensão e decesso seguem, em todos os grupos, de

maneira semelhante.

II. Carnaval de Notting Hill – uma Descrição Sumária –

Trajetos que se Entrecruzam –

O Percurso das Bandas e o Espaço Reservado para o

Carnaval e para o Desfile em Notting Hill no ano de 2006

Retomemos às observações do ano de 2006, em Londres, quando minha inserção

se deu de forma mais constante junto aos grupos caribenhos.

8 “Nessa situação (das escolas de samba) é praticamente impossível fixar um regulamento interno simples, havendo grande dificuldade com a interpretação das regras” DaMatta 1997, p. 133, 134. Há estatutos internos nas agremiações e regras que gerem a totalidade, “iguais para todas”. Porém, como observamos, a interpretação das regras e a existência de um poder ‘absoluto’ dos presidentes ou dos patronos, eventualmente fazendo do presidente um ‘testa-de-ferro’, fará com que as normas possam ser seguidas de diferentes maneiras, modificadas arbitrariamente ou mesmo ignoradas. Eventualmente um grupo oponente, em relação ao grupo dominante, pode tomar o poder com ‘mão de ferro’, expulsando o grupo anterior ou mesmo eliminando alguns de seus personagens principais, como é possível perceber no caso de assassinatos de presidentes e outras figuras de algumas agremiações.

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Em Notting Hill, no último feriado do mês de agosto, uma grande área fica

fechada ao trânsito, configurando o amplo espaço reservado para o carnaval. Os únicos

automóveis autorizados a circular são os grandes caminhões de som que levam os DJs;

os pequenos tratores que puxam as longas carretas com os instrumentos – no caso das

steelbands –, ou que levam grandes sistemas de som – com amplificadores e demais

aparatos - e vêm seguidos pelos foliões que dançam no chão no entorno dos veículos;

além dos carros alegóricos e de som das escolas de samba.

Cada banda possui algumas pessoas responsáveis por manterem separados os

integrantes das bandas, masqueraders, do público geral, por meio de um cordão de

isolamento. Algumas vezes parece difícil conter a animação dos foliões mantendo cada

um onde, supostamente, deveria estar.

Segundo dados fornecidos por um relatório do Westminster City Council, a

administração regional, nos dois dias do carnaval de 2005, oitenta mas bands, quarenta

e cinco DJs móveis e quinze steelbands participaram das apresentações e tomaram

parte do carnaval e da competição on the road, que tem um percurso de cerca de cinco

quilômetros. Nos arredores, houve ainda quarenta e um sistemas de som, static sound

systems que animam as ruas da localidade e concentram grandes aglomerações nos

locais onde estão instalados.

Com diferentes tamanhos e estilos, as steel e as mas bands podem representar

diferentes “identidades” – no sentido de se basearem em diferentes carnavais, (como o

caribenho, ou o brasileiro) -; estilos musicais e estéticos, e aspirações. Alguns dizem

verbalmente que se empenham no sentido de vencer a competição. Outros dizem que o

mais importante do carnaval é “ser rei por um dia”, brincar o carnaval, “enjoy yoursel”.

Para outros, existe a preocupação em afirmar as chamadas identidades étnicas.

Desde o seu início, o carnaval de Notting Hill tem reunido mais e mais pessoas.

Indivíduos de diferentes nacionalidades participam das atividades e das artes que

envolvem tal celebração. É importante reafirmar que é um carnaval baseado

fundamentalmente no estilo caribenho, ainda que haja grupos como as escolas de

samba.

Diversos locais do mundo possuem carnavais com estilo semelhante,

principalmente cidades que possuem um grande número de imigrantes das Ilhas do

Caribe e Guiana. Como exemplo, podemos citar o Caribana que acontece em Toronto,

no Canadá; em Nova York o Labor Day; na Inglaterra, além do Notting Hill Carnival

outros como em Leicester, Nottingham, Reading e Manchester.

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Algumas das pessoas que conheci estavam em Londres especificamente para

julgar as competições daquele período carnavalesco. Algumas viajam ao redor do

mundo para participar de mais de um carnaval, que, em muitas das vezes, acontecem em

diferentes períodos. Alguns dos árbitros, tanto da competição entre as steelbands quanto

das mas bands, são convidados pelos organizadores e vêm, em geral de Trinidad, para

julgar as apresentações, são chamados ‘juízes internacionais’, adquirem tal reputação e

participam, muitas vezes, de vários desses carnavais, bandas, músicos e artistas que

fazem o mesmo.

Nos dias de desfile (domingo desfilam as crianças e segunda-feira os adultos), as

bandas deixam os centros comunitários, as escolas e demais locais de concentração e se

dirigem, em cortejo, vindas de diferentes direções, ruas paralelas, perpendiculares,

diagonais, até atingirem o local de entrada oficial do desfile, na Great Western Road. A

partir deste ponto, entram em uma área fechada ao público, onde cavaletes de ferro, de

cerca de um metro e meio de altura, estabelecem a barreira. Logo adiante do ponto

inicial do desfile, se localiza a tenda que abriga os jurados, judging point. O público se

debruça sobre as grades, para assistir às apresentações.

De forma processional, as bandas iniciam esta parte do percurso na Great

Western Road, passam pela Westbourne Park Road, em seguida pela Chepston Road e

Westbourn Grove, Kensinton Park Road, pela Elgin Crescent, continuando o percurso

até retornarem à Ladbroke Grove ou deixarem a área cercada em pontos que facilitem

seu retorno às suas sedes ou locais onde se concentram os foliões e integrantes, antes e

geralmente depois do desfile. Os foliões também não são obrigados a permanecerem

junto ao grupo durante todo o tempo.

Como dito anteriormente, não há uma ordem pré-estabelecida para a

apresentação das bandas aos jurados. As apresentações acontecem de acordo com a

ordem de chegada. Deixam os locais de concentração, tomam as ruas, espalhando-se ao

longo de toda a área, formando algo como enormes ‘filas’ de grupos carnavalescos,

confluindo, um após o outro, para o mesmo lugar. Quando surge um novo grupo, vindo

de uma rua transversal, os que já estão alinhados precisam abrir espaço para o recém

chegado. Parando e andando, parando, cedendo passagem e andando novamente, os

grupos se dirigem lentamente ao local das apresentações.

No domingo de carnaval, o “dia das crianças”, Children’s day, permaneci em

frente à tenda dos jurados por algum tempo, observando e filmando a entrada e

apresentação das bandas. Já na segunda feira, fiquei por perto do grupo da Mangrove,

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primeiramente com a intenção de conquistar minha camisa para participar ao longo de

todo o percurso, mas principalmente por querer observá-los e me integrar no momento

do desfile. Deixei de ir a alguns lugares por conta da imensa multidão que lotava a área,

por receio e precaução.

Os números indicam que nos dois dias de carnaval cerca de dois milhões de

pessoas circulam por aquela área. As ruas ficam surpreendentemente lotadas,

apresentando um ambiente ruidoso e muitas vezes enfumaçado pelas churrasqueiras das

centenas de barracas que vendem apimentados frangos marinados, arroz com ervilha,

cervejas vindas do Caribe e outras comidas típicas, além da fumaça dos variados tipos

de cigarro.

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Parece haver uma grande preocupação com a segurança e o sistema de transporte

das pessoas que ali se aglomeram. Segundo um boletim das administrações distritais,

The Royal Borough of Kensington and Chelsea e do City of Westminster, todos os anos

o Kensington and Chelsea Council e o Westminster City Council, trabalham juntos ao

London Notting Hill Carnival Ltd. (LNHC), à Polícia Metropolitana, ao corpo de

bombeiros, London Fire Brigade, à London Ambulance Service e St John Ambulance, à

Health Protection Agency, ao British Transport Police, ao Transport for London e à

Greater London Authority, a fim de garantirem a segurança e bem estar social. Há,

durante todos os dias, um grande contingente de policiais, Metropolitan Police, nas

ruas. Algumas estações de metrô permanecem fechadas, outras funcionam apenas como

saídas e, segundo proclamam, pode haver mais ônibus circulando, inclusive durante a

noite, o que na prática parece não se realizar.

III. ALGUMAS COMPETIÇÕES CARNAVALESCAS EM LONDRES

III. a. Competição entre os Grupos Musicais Steelbands - Panorama

Segundo a British Association of Steelbands (BAS), as competições, como a

Panorama, são um importante veículo de expansão e desenvolvimento da “cultura do

steel pan”, tanto em Londres quanto na Inglaterra. Essa competição entre as steelbands,

que acontece em Londres desde o ano de 1978, tem como modelo uma competição

semelhante que acontece em Trinidad.

Na competição de Trinidad, há diferentes segmentos de bandas, divididos por

número de participantes. Cada segmento é composto por um número de bandas, que por

sua vez, são compostas por diferentes números de pessoas. As maiores bandas podem

ser compostas por cerca de 120 participantes.

Em Londres, há apenas um grupo de competidores. No ano de 2006, era

composto por nove bandas com cerca de trinta a cinqüenta integrantes cada uma. Foram

elas: Croydon Steel Orchestra, com a música Good Times; Ebony Steelband, com

Colours Again; Mangrove Steel Band, com Soca Warrior; Metronomes Steel Orchestra,

com This one’s for you, Bradley; Pantasia Steel Orchestra, com Max It Up; Real Steel,

com High on the Pan; Southside Harmonics, com Musical Treat e Stardust Steel

Orchestra, com This one’s for you, Bradley.

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A participação de uma banda, nesta competição, por custar entre oito mil e vinte

mil libras ou mais. Durante o ano, elas se empenham em angariar fundos, que podem vir

de fontes variadas para cobrir seus custos. Segundo relatório cedido pela BAS, no ano

de 2006, algumas das bandas foram patrocinadas pela Polícia Metropolitana, pelo

Exército e pela Marinha, entre outros.

O National Panorama Championships acontece no sábado, anterior aos dois dias

de carnaval de rua. As bandas ensaiam arduamente para tal apresentação, que tem

repercussão na Inglaterra, em Trinidad e nos demais locais onde há carnavais

caribenhos, por conta da circulação dos atores sociais e das informações. Algumas

steelbands se dedicam mais a esta competição, do que à competição Best Steelband on

The Road – a competição específica entre essas bandas, no dia de carnaval. Os

campeões ganham reputação e prestígio, sabendo que o reconhecimento se dá também,

segundo relatos, em relação ao carnaval “original”, de Trinidad.

Esta competição, ao contrário de outras que requerem composições originais ou

clássicas, é baseada em rearranjos de calipsos. O regente escolhe uma música,

geralmente conhecida e faz um novo arranjo para ela. A partir daí, a banda irá ensaiá-la

constantemente, até o dia da apresentação. Os ensaios ganham maior ênfase – em

quantidade de dias e horas - quanto mais se aproxima a competição.

No ano de 2006, a competição contou com três jurados considerados

internacionais, pois participam de outras competições entre steelbands em outros

lugares do mundo. Podem morar em Londres, Caribe ou outro lugar, e vir como

convidados para a competição. Todas as bandas possuem representantes que participam

de reuniões e conversas, a fim de estabelecerem um acordo entre os juízes que irão

arbitrar a disputa. É necessário que todos concordem com a indicação dos jurados, caso

contrário o juiz deve ser substituído por outro.

Em uma entrevista posterior, com integrantes da BAS e em conversas com

participantes dos grupos, ficou claro que pode haver dificuldades em conseguir opinião

unânime entre os grupos e ao mesmo tempo encontrar juizes hábeis, dispostos a

despender algumas horas - ou eventualmente viajar a Londres - em função da

competição.

De acordo com as cópias das planilhas utilizadas pelos jurados, eles levam em

conta diferentes critérios e dentro de cada critério diferentes quesitos. São eles: arranjo;

performance geral; performance do músico; tom; ritmo e apresentação. São ainda

observados quesitos como introdução, execução e balanço, perfeita entonação,

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rearmonização, desenvolvimento melódico; interpretação, dinâmicas como cor e

textura, criatividade e balanço; harmonização dos instrumentos, qualidade do som;

tempo, coesão, a habilidade de tocarem juntos com precisão e balanço e aplicação

respectivamente, aos quais são feitos comentários e dadas notas.

Apesar de haver um espaço para as justificativas dos jurados, estas não são

obrigatórias. Após a divulgação dos resultados, ao conversar com uma integrante da

BAS e responsável pela convocação do júri, ela revelou que as justificativas geralmente

são consideradas insuficientes. Vários espaços são deixados em branco e nem sempre as

justificativas expressam com clareza o motivo das notas. Sempre há satisfação para uns

e insatisfação para outros.

III. b. Best Mas Band on the Road –

Competição entre os Grupos de Fantasias

Os grupos que participam da competição por meio da apresentação de seus

integrantes em fantasias, são denominados mas bands. Seguem padrões organizacionais

e de desenvolvimento dos costumes baseados no carnaval de Trinidad. Os foliões,

mascarados usam a expressão “playn mas”, para se referirem ao fato de “brincarem” ou

“pularem” o carnaval.

Somam-se às menores, utilizadas pela maior parte dos mascarados, as grandes

fantasias que necessitam de estruturas de ferro para sustentá-las. As estruturas parecem

coletes de aço e são forradas com algum tipo de borracha e outros materiais para

protegerem o corpo da pessoa que a veste. Assim os resistentes coletes podem

comportar a parafernália que completa e dá forma à fantasia. Diferentes tamanhos,

cores, formas de materiais, tecidos e esculturas concluem as fantasias, se for necessário,

são implementados “carrinhos” com rodas na parte de trás, para auxiliar na sustentação.

Algumas delas participam da competição Splash, ou Gala, onde as vencedoras são

intituladas Rainha e Rei, Princesa e Príncipe do Carnaval.

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Na carnaval parade, são julgados aspectos como o tema, as fantasias, se as

fantasias se articulam bem com tema, o impacto visual, a apresentação do grupo, o

espírito dos participantes e o melhor grupo histórico. No ano de 2006 - segundo dados

obtidos junto ao guia para o carnaval de Notting Hill de 2006, da Unidos de Londres -,

pela primeira vez foram introduzidos quesitos específicos para as escolas de samba.

Entre eles, a avaliação da comissão de frente, do casal de mestre-sala e porta-bandeira,

da evolução, da harmonia, da bateria e do samba enredo e representação do tema

(enredo). Todos estes critérios existem no carnaval do Rio de Janeiro. Acredito que

algumas pessoas envolvidas em ambos os carnavais devem ter proposto tal alteração.

Para que possam fazer suas avaliações, os julgadores se baseiam nos aspectos

visuais, pois não há sinopse dos temas nem explicação dos mesmos. Geralmente as

bandas trazem à sua frente uma grande faixa com o título do tema escolhido, que é

sustentada por alguns de seus componentes ou disposta na frente do carro/caminhão que

abre o desfile. Em seguida vem o carro de som, geralmente com um DJ e por fim, atrás

dele, os mascarados. Excetuando-se as escolas de samba, não há critérios de julgamento

para as músicas utilizadas pelos grupos, a avaliação se dá exclusivamente sobre os

aspectos relativos às fantasias.

III. c. A Rivalidade Entre as Escolas de Samba no Carnaval de Notting Hill

Em relação às agremiações brasileiras, em Notting Hill, além da rivalidade entre

elas e as bandas de modo geral, adversárias que são na competição, há uma rivalidade

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entre uma escola e outra. Disputam além da primeira colocação no desfile, status e

reconhecimento acerca de qual é a mais brasileira, a mais antiga, a que melhor

representa a suposta identidade de Brasil e brasilidade, a que traz para a Inglaterra o

“espírito” e a “tradição” brasileiras, supostamente representados pelas escolas de samba

do Rio, consideradas legítimas espécimes (representantes) da cultura nacional.

A Paraíso School of Samba toma para si o papel e o discurso de apresentar e

representar em Londres o verdadeiro carnaval carioca, com a mesma intenção e

estrutura organizacional quase idêntica a de uma escola de samba do Rio de Janeiro.

Porém é mais recente do que a Unidos de Londres, que comemorou em 2004 o

aniversário de vinte anos de sua fundação e é apresentada como a primeira escola de

samba fundada em Londres, em 1984, contra três ou quatro anos da anterior.

A Paraíso é apresentada como uma organização comunitária sem fins lucrativos

e ligada a grandes escolas de samba do Rio de Janeiro as quais lhe oferece apoio. Por

isso, a agremiação acredita que ocupa uma posição única na Europa. Além disso, seria

conduzida por artistas que cresceram “dentro da cultura carnavalesca carioca”, como

descrito em um texto escrito por seus organizadores.

Colocam como objetivos do grupo conduzir a “autêntica cultura das escolas de

samba cariocas a Londres”, considerando que esta cultura inclui uma excelência

artística e um envolvimento muito próximo ao que entendem por comunidade. Em

seguida, apresentam o objetivo de tornarem-se um “centro de excelência para o

desenvolvimento do autêntico samba brasileiro no Reino Unido”, aí estariam incluídos

os ensinos de percussão, música, dança e confecção de fantasias de carnaval.

Esta agremiação recebe recursos financeiros do Conselho de Artes da Inglaterra,

Arts Council England. Entretanto a maior parte dos fundos parece ser adquirida por

meio de atividades e apresentações da agremiação, bem como pela continuidade das

aulas de samba (samba dance) ao longo do ano e dos workshops de percussão, além de

projetos de educação infantil, que consideram parte importante do seu trabalho

comunitário.

No ano de 2005, após algum tempo de volta ao Brasil, fui informada de que a

Paraíso havia sido a campeã daquele carnaval. O presidente, orgulhoso, disse que pela

primeira vez o Brasil escreveu seu nome na história do carnaval londrino.

Apesar da rivalidade latente entre as escolas, algumas das pessoas envolvidas

com o carnaval, com o samba e algumas expressões culturais brasileiras correlatas, tanto

em Londres quanto na Europa, muitas vezes não deixam de se relacionarem por conta

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de tal rivalidade. Desfilam em associações semelhantes, trabalhando, estudando e

viajando juntas. Há pessoas, entretanto, inclusive de outros grupos carnavalescos, que

não se relacionam com e até mesmo discordam da maneira pela qual alguns atores lidam

com o carnaval e com determinados aspectos dessa festividade, estilo musical e de vida,

bem como com suas posições em relação ao samba, às escolas e aos demais grupos que

se referem ao samba.

IV. Um Breve Histórico Acerca do Notting Hill Carnival

O carnaval de Notting Hill, como vimos anteriormente, é um ritual que acontece

todos os anos no mês de agosto, desde aproximadamente 1959 ou 1965,

respectivamente, se considerado, o início nos festivais organizados pela West Indian

Gazzete, WIG, ou se considerado o início o carnaval nas ruas da área.

Desde seus primeiros anos até os dias atuais, sua forma de organização,

participação, número de implicados e variedade de instituições e organizações

envolvidas mudaram bastante. Naquela época, acontecia em halls e na mesma época

que o carnaval de Trinidad, organizado por editores e participantes do periódico West

Indian Gazzete. Em 1965, foi levado às ruas durante o período do verão.

Atualmente compreende um espaço de tempo chamado de Carnival season, que

abrange cerca de dois meses de atividades e culmina com o dia da apresentação das

bandas pelas ruas abarcando uma grande variedade de cidadãos de diferentes

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nacionalidades, grupos que representam diferentes “identidades nacionais” e

organizações.

No final do século XIX, a área de Notting Hill, próxima ao centro da cidade,

começou a receber maior contingente populacional, principalmente imigrantes da

Irlanda e trabalhadores ingleses da área têxtil. Por volta dos anos 50, depois da II Guerra

Mundial, era uma região que compreendia cortiços, casas degradadas e intensamente

povoadas, vielas e ocasionalmente esgoto a céu-aberto.

Os proprietários ou senhorios, landlord e landladies dessas casas por muitas

vezes discriminavam determinados imigrantes e não os aceitavam em muitas das suas

moradias, eventualmente apresentando os dizeres: “No coloureds, no dogs, Irish not

require”. Tais imigrantes eram, então, obrigados a se instalarem nas áreas pobres, num

tempo em que não havia leis contra discriminações raciais na Inglaterra. Proprietários e

senhorios exploravam seus inquilinos e muitas vezes os expulsavam de suas moradias.

Havia ali uma população transitória, vinda da Polônia, da Europa Oriental e da Ásia e

parte dos habitantes era composta pelos imigrantes do Caribe9.

Atualmente a área de Notting Hill comporta cerca de 150.000 habitantes, de

diversos segmentos sociais e étnicos, sendo conhecida por sua diversidade. Cortada por

duas das maiores ruas comerciais da cidade, abriga também o mercado de antigüidades

e inúmeros objetos na Portobello Road. Recebe inúmeros londrinos e turistas, que

visitam as suas lojas, as barracas do mercado aberto, os restaurantes, os pubs e as casas

noturnas ali localizadas.

No início do verão de 1958, em meio a problemas de desemprego, com uma

classe trabalhadora empobrecida e prejudicada e sob influências do fascismo, os

ingleses – chamados ou auto-intitulados Englishman ou Briton - tinham que conviver

nas ruas, com seus vizinhos caribenhos. Por volta de julho daquele ano, começaram a

aparecer, nas cercanias de Notting Hill, pichações de cunho fascista. As agressões

seguiram um ritmo crescente até se traduzirem em violências físicas e morte.

A primeira geração de imigrantes caribenhos que habitavam a área de Notting

Hill sofreu diversos ataques racistas de grande violência (conhecidos como race riots),

geralmente organizados e iniciados por jovens e trabalhadores brancos contra os negros.

Os ataques contavam pichações, ofensas verbais e a utilização de armas, como garrafas,

tijolos, facas, navalhas, correntes, pernas de mesa, barras de ferro e coquetéis molotov.

9London Psychogeography (1998); La Rose (2004); Cohen (1993); Encyclopediae Britannica (1977).

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No início, esporádicos e inesperados, tornaram-se mais constantes, violentos e em maior

escala.

Os ataques contra os negros começaram por volta de julho de 1958.

Compreendendo o período em que hoje acontece o carnaval. Em agosto gangues,

principalmente as conhecidas e formadas por Teddy Boys, atacaram casas ocupadas por

negros e também pessoas nas ruas. Determinada noite, deixou um saldo de cinco

homens negros inconscientes no chão das ruas da localidade de Notting Hill. Os

agressores estavam armados e declaravam o início de uma ‘caçada aos negros’, nigger

hunting, no caso os moradores de Notting Hill e Notting Dale.

Segundo a declaração de um policial, publicada pelo jornal The Guardian10,

cerca de trezentas ou quatrocentas pessoas brancas (seguindo o princípio: “Keep Britain

White”) ocuparam as ruas da área gritando: “Nós queremos matar todos os negros

bastardos. Por que não os mandam para casa?”. Além disso, alguns teriam dito aos

policiais: “Prestem atenção em seu próprio trabalho, policiais. Fiquem fora disso. Nós

vamos colocar esses negros no seu lugar. Nós vamos matar esses bastardos”.

Com o passar dos dias e a continuidade das violências, alguns imigrantes

passaram a revidar. A ferocidade das brigas chocou a Inglaterra e as confusões

continuaram a acontecer. Alguns dos órgãos ligados à Polícia Metropolitana,

reivindicavam o fim da política das “portas abertas” para a imigração negra. O National

Labour Party defendia uma nação de classe-média inglesa, a ‘Mosley’s Union

Movement’ convocava a população britânica a “agir agora”, a “lutar pelo seu país”, a

“proteger seus trabalhos”, e pedia para “pararem com a imigração de negros”11,

revelando - ao contrário do que pregam alguns atores sociais que dizem que os tumultos

eram gerados por jovens, desorganizados ou espontâneos - o seu caráter político.

Um dos fatos marcantes daquele período, já em 16 de maio de 1959, foi a morte

do antiguano Kelso Cochrane, um carpinteiro de 33 anos. Seis homens brancos o

cercaram e apunhalaram, causando sua morte. Seu funeral aglomerou um cortejo de

mais de mil pessoas e foi descrito como “o grande evento que encerra os anos 50 e

inicia a década caribenha de Notting Hill” (em Notting Hill in the 60’s, de Mike

Phillips).

10Texto de Alan Travis (home affairs editor), publicado no “The Guardian” de sábado, 24 de agosto de 2002.

11London Psychogeography.

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O carnaval aparece, para alguns autores e atores sociais, como uma estratégia

social e política de um grupo estrangeiro no solo britânico. Diversos povos vindos das

ilhas do Caribe se uniram em torno de uma forma de expressão cultural, entre outros

tipos de associações, a fim de se tornarem mais coesos e poderem se expressar em sua

nova – e por vezes hostil - pátria.

Em janeiro de 1959, a West Indian Gazette, maior jornal “negro” editado na

Inglaterra no período pós-guerra, fundado por Cláudia Jones, organiza o primeiro

carnaval caribenho de Londres. Com o princípio: “A arte do povo é a gênese de sua

liberdade”. O St. Pancras town hall abrigou, naquela tarde, o encontro entre diversos

caribenhos, seus amigos, companheiros e familiares, cantaram calipsos, dançaram,

fizeram e comeram comidas típicas. Depois desse ano, o carnaval, Caribbean Carnival,

foi transferido para o Seymour Hall, alternando entre este e o Lyceum até 1963 e

tornando-se maior a cada ano12.

Russ Henderson, músico de steelbands, havia tocado no primeiro carnaval

organizado por Claudia Jones. Posteriormente participou com sua banda de um festival

organizado pela ativista comunitária Rhaune Laslett, que morava em Notting Hill. Era

verão e o festival acontecia na rua.

Laslett não conhecia Jones nem os carnavais caribenhos, quando foi falar com

um policial local sobre a possibilidade de organizarem uma festividade de rua. Com

uma festa inglesa em mente, convidou diversos grupos étnicos – ucranianos, espanhóis,

portugueses, irlandeses, caribenhos, africanos – para contribuírem com o festival,

programado para o último final de semana de agosto, o mesmo feriado que o abriga até

os dias atuais. A festividade organizada por Laslett (Notting Hill Fair Parade, ou

inspirada em uma festividade antiga de mesmo nome), era mais identificada com

Notting Hill do que com os caribenhos. Certamente há imprecisões e discrepâncias nos

relatos e literatura a respeito do tema13.

Em 1965, depois da morte de Claudia Jones (em 1964), Rhaune Laslett propôs

aos organizadores do carnaval caribenho, que engajassem seus elementos aos do festival

que ela organizava, mais insulanos teriam se agregado e nesse ano as festividades

12Sherwood, 1999. 13 Diversos atores sociais apontam em suas narrativas Claudia Jones como uma pessoas chave daquela situação, enquanto Rhaune Laslett aparece como personagem secundária. Cohen (1993), por sua vez, apresenta Laslett como organizadora dos primórdios do carnaval.

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acontecidas em conjunto14. Em 1970, Rhaune Laslett teria assumido a liderança do

carnaval15.

O número de participantes cresceu até cerca de 10.000 pessoas e uma mistura de

interferência policial e o crescimento da afirmação do movimento negro fizeram com

que diferentes grupos se interessarem. A polícia, com receio de perder o controle das

ruas naquele dia, se colocava em posição contrária.

“O carnaval, no estilo trindadense, sem cobrança de entrada,

era aberto para todos. As linhas entre espectadores e participantes eram indistintas, o que impulsionava tanto o carnaval, quanto a sua organização. Massivo no tamanho, composto pela classe trabalhadora, espontâneo em sua forma, subversivo na sua expressão e natureza política – os ingredientes do carnaval eram explosivos. As autoridades tinham que contê-lo, controlá-lo ou cancelá-lo”.16

Segundo reportagem do The Guardian, o corpo de policiais informou que o

carnaval de 1975 atraiu 150.000 pessoas, lembrando que foi a primeira vez que a

presença policial se impôs. Para Michael La Rose17, a enorme concentração de pessoas

fez aumentarem as vozes contra o carnaval, reclamavam que o governo parasse ou

banisse aquele festejo. As pessoas envolvidas na produção e organização e partidárias

da sua continuidade fundaram o primeiro corpo administrativo do carnaval, chamado de

“Carnival Development Committee” (CDC), a primeira organização das Carnival

Bands.

De acordo com entrevistas e conversas com atores sociais locais, algumas das

organizações criadas com o intuito de organizarem o carnaval eram de fato a favor dele.

Outras teriam sido fundadas por membros de instituições governamentais ou ligadas a

elas e tinham o intuito de melhor dominá-lo ou contê-lo. Entre as organizações posso

citar: o Carnival Arts Committee, o Carnival Enterprise Committee, o Notting Hill

Carnival Trust, o Notting Hill Carnival Ltd (NCL) e atualmente o London Notting Hill

Carnival Ltd. (LNHC)18.

14 Sherwood, 1999. 15 De La Rose (2004). 16 Texto de Gary Younge para o jornal The Guardian de sábado, 17 de agosto de 2002. 17 De La Rose (2004). 18 Ver também: De La Rose (2004); Cohen (1993).

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Kwesi Owusu e Jacob Ross explicitam em seu livro ‘Behind the Mascarade: the

story of Notting Hill Carnival’ que

“o carnaval sofre um constante processo de negociação, há

inevitáveis conflitos acerca de sua orientação econômica e sua função política. É o mais expressivo e volátil território cultural, onde há a batalha entre as posições da comunidade negra e do Estado, que são ritualizadas”.

No final dos anos 50, a primeira geração de imigrantes caribenhos teria utilizado

o carnaval para protestar contra o racismo e a utilização de leis com aquela conotação.

Nos anos 70, havia outras questões envolvidas. Em meados daquela década, 40% da

população negra havia nascido na Inglaterra. Para eles, o carnaval não era apenas uma

herança cultural, ou uma lembrança de um lar diferente e distante, significava um

clamor acerca do único lar que conheciam. Não havia outro episódio com conotação

racial maior que o carnaval de Notting Hill. Um oficial da polícia Metropolitana

declarou a um repórter do The Guardian que: “O carnaval é o dia deles”. “Durante o

resto do ano, a polícia os pára em um ou dois pelas ruas, onde eles são a minoria. Mas

por um final de semana eles são a maioria e tomam as ruas”. Também esses “novos

ingleses”, em entrevistas e conversas, muitas vezes se referem aos países das Antilhas

como home.

Tensões e questões diversas sempre envolveram o carnaval. O que é? Deve ser

descartado? Está sendo estrangulado e próximo da morte por conta dos recursos

financeiros ou da inércia burocrática? Deveria ser realizado em outra parte de Londres?

Atualmente a linguagem dos questionamentos parece estar mais “moderada”. Os

organizadores apontam algumas necessidades para que as condições de realização do

carnaval melhorem, entre elas estão: a cooperação entre organizadores e as autoridades

responsáveis pela ordem e problemas civis - como a Polícia Metropolitana -, as

administrações dos bairros envolvidos – Westminster, Kensington e Chelsea e a Greater

London Authority, consideram que seria necessário ainda estabelecer: melhores relações

com autoridades como o Arts Council; maneiras de angariar fundos; investir no

treinamento dos stewards; estabelecer uma discussão sobre o futuro do carnaval;

desenvolver estudos sobre seu impacto econômico, pois estimam que possa se auto

financiar e repensar questões como merchandising e turismo.

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IV. a. Claudia Jones – Uma Personagem

Ofereço, de forma breve, informações sobre a personagem Cláudia Jones,

visando uma melhor compreensão das posições que ocupava no contexto londrino e

como se deu sua participação nos períodos de estabelecimento inicial do carnaval.

Claudia Jones nasceu em Trinidad, foi morar nos Estados Unidos ainda criança,

lá vivendo seus anos de formação. Comunista e organizadora política foi exilada pelos

Estados Unidos e do Harlen vai para Londres por volta de 1955. Os contextos políticos

e raciais dos países eram diferentes. Nos EUA, ela defendia grupos de afro-americanos

e, como estavam em uma época de início dos direitos civis, os afro-americanos e negros

em geral começavam a ter novas perspectivas e esperanças.

Jones vai para a Inglaterra e busca encontrar os grupos imigrantes caribenhos.

Divididos pelas lealdades às ilhas de origem, tinham como pano de fundo a “unidade da

identidade racial”, eram estigmatizados por parte dos ingleses, que os reconheciam

como um grupo único e indiferenciado, west indians. Em março de 1958, Jones lança a

West Indian Gazette (WIG), com a intenção de dar coesão aos grupos dispersos a partir

de suas experiências com o racismo.

Em 18 de agosto de 1958, em meio aos atos de violência que aconteciam em

Nottin Hill, a Ku Klux Klan enviou uma carta WIG dizendo que: “Nós, os cavaleiros

arianos, não perdemos nada”. Poucas noites depois uma mulher sueca seria

“descoberta” por uma gangue de jovens brancos, perseguida e agredida, porque era

noiva de um jamaicano. Havia se iniciado a “caçada aos negros” (nigger hunting). Para

Stuart Hall, “1958 foi um grande momento. Antes os indivíduos tinham que suportar a

discriminação. Mas naquele ano o racismo se tornou massivo, uma experiência coletiva

além do já visto”.

Merika Sherwood (biógrafa de Cláudia Jones) considera que Jones tinha uma

combinação de confiança e maturidade política que a impulsionaram a lançar um

carnaval naquelas circunstâncias. “Sua experiência de campanha contra o racismo e o

macarthismo na América a colocaram em um nível diferente dos caribenhos daqui”, se

referindo à Inglaterra.

Trevor Carter, um dos organizadores do primeiro carnaval concorda:

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“Claudia era diferente de nós, entendia o poder da cultura como instrumento de resistência política. O espírito do carnaval veio do seu conhecimento político, para tocar um momento particular onde estávamos amedrontados por conta das confusões”. Carter relembra que “este é o nosso caminho para dizer à cultura dominante, ‘nós estamos aqui – vejam, nós estamos aqui’”.

V. Reflexões Acerca dos Significados do Carnaval

Ambos os carnavais observados acontecem em sociedades contemporâneas,

industriais e complexas. O curso da pesquisa apresentou algumas similaridades entre

eles e também uma série de contrastes e contradições, levando-me, no processo da

descoberta (que segue), a exercitar um olhar dinâmico sobre as diferentes sociedades

envolvidas e a ousar no sentido de tentar desmistificar alguns dos aspectos observados.

Ressalto, entretanto, que para uma discussão mais aprofundada é necessário mais tempo

de convivência, principalmente na sociedade inglesa, além do alargamento das

discussões teóricas.

Em seu trabalho comparativo acerca do carnaval brasileiro e do carnaval de

Nova Orleans, DaMatta se pergunta se, por estarem em sociedades diferentes, eles

seriam o mesmo fenômeno, “o que acontece quando temos dois ‘carnavais’ em

sociedades visivelmente diferentes em termos de instituições, história e ideologia?”

(1997, p. 156). Por minha vez, apresento algumas peculiaridades concernentes a ambos

e às sociedades da qual fazem parte, para que possamos estabelecer uma reflexão e

contraposição preliminar a respeito de tais rituais.

A palavra carnaval pode nos remeter a uma série de perspectivas, diferentes

emoções, possibilidades e ainda teorias sobre sua origem, funcionamento e motivos de

permanência. No Brasil, conhecemos diversos tipos de celebrações carnavalescas, que

acontecem em diferentes cidades ou estados. Na maioria das vezes, acontecem no

período que compreende os dias precedentes à quarta-feira de Cinzas, mas há ainda uma

série de “carnavais fora de época” em diferentes cidades.

A principal e mais recorrente definição ou entendimento sobre o carnaval,

pressupõe a consonância deste com o calendário litúrgico. Os dias imediatamente

anteriores à quarta-feira de Cinzas, que compreendem o período carnavalesco, são um

período onde determinadas normas sociais são afrouxadas, invertidas ou neutralizadas19.

19Turner, 1974; Van Gennep, 1978; Leopoldi, 1977; DaMatta, 1997.

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Segundo a definição do dicionário brasileiro Novo Aurélio Séc XX:

“CARNEVALE – 1. No mundo cristão medieval, período de festas profanas que se iniciava, geralmente, no dia de Reis (Epifania) e se estendia até a quarta feira de Cinzas, dia em que começavam os jejuns quaresmais. [Consistia em festejos populares e em manifestações sincréticas oriundas de ritos e costumes pagãos, como as festas dionisíacas, as saturnais, as lupercais, e se caracterizava pela alegria desabrida, pela eliminação da repressão e da censura, pela liberdade de atitudes críticas e eróticas]. 2. Os três dias imediatamente anteriores à quarta feira de cinzas, dedicados a diferentes sortes de diversões, folias e folguedos populares, com disfarces e máscaras, tríduo de momo (entrudo)”.

Durante o período que precede o carnaval, os grupos, as bandas, os blocos ou as

escolas de samba movimentam-se e preparam-se para o festejo. O período pode

compreender poucos dias, meses, ou quase o ano todo, reservado para a definição e

preparação dos enredos, themes, das fantasias, das coreografias e também para a

captação de recursos financeiros, culminando nos dias do “reinado de momo”.

Em Londres, ao contrário do Rio de Janeiro, o carnaval de Notting Hill acontece

no último final de semana do mês de agosto. O final de semana é prolongado até a

segunda feira, configurando o último feriado do ano, antes do Natal. É designado como

um bank holiday (feriado bancário)20.

O carnaval londrino de estilo caribenho, em princípio, acontecia no mesmo

período que o carnaval de Trinidad, em consonância com o calendário litúrgico, porém

era restrito, realizado em halls, durante o frio período do inverno Inglês. Depois da série

de atentados e violências, que tiveram como um dos palcos principais as ruas de Notting

Hill, cometidas contra os negros e nos anos seqüentes, o carnaval passou a acontecer

durante período de verão, nas mesmas ruas de Notting Hill, que outrora foram arena

dos conflitos e também da resistência da população imigrante. Esse é um dos motivos

principais - indicados pelos atores sociais – para sustentarem sua posição contra o

deslocamento do carnaval para algum parque ou outro local de Londres: a importância

de lembrar por que o carnaval acontece ali.

20Denominação estabelecida em 1871 e 1875 pelo Bank Holidays Act, havia um número maior de feriados no Reino Unido, mas com o passar dos anos este número foi reduzido. Encyclopediae Britannica, volume I. The University of Chicago, 1977.

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Muitas festividades são embaladas ao som de músicas ritmicamente

estimulantes, levando os foliões a danças coletivas ou individuais e configurando um

período de maior licenciosidade, erotismo e sátira. Além da dança e da performance, a

imagem que surge quando pensamos em pessoas ‘brincando’ o carnaval, são indivíduos

vestidos em trajes característicos – as fantasias –, que podem revelar desejos e

peculiaridades e inversões individuais, ou, se utilizados de forma coletiva, podem

revelar as ‘identidades’, inversões e desejos dos grupos.

Carnavais de rua, como o do Rio de Janeiro, o de Trinidad e Tobago ou o de

Londres, se dão em espaços públicos. Ruas, avenidas, parques e praças se transformam

em grandes áreas de lazer, encontros e relações sociais recebendo inúmeros foliões,

grupos carnavalescos e bandas musicais. Transformam determinadas áreas das cidades,

em grandes centros de aglomeração e folia. Preocupação e organização, entretanto,

também estão sempre presentes.

O espaço reservado para abrigar o carnaval precisa ser preparado, fechado ao

trânsito e às atividades rotineiras, blocos, escolas de samba, foliões, grupos

carnavalescos e demais envolvidos ocupam aquele espaço “sem problemas”. Podendo

participar de diversos tipos de encontros, as pessoas convergem àquele ponto da cidade

para brincar o carnaval. As diversas ruas fechadas ao trânsito de automóveis muitas

vezes abrigam diferentes palcos, shows, barracas de comidas, pontos de encontro, todos

eles tendendo seguir o bem humorado, espetaculoso, satírico e contestador, por vezes

grotesco, mas fundamentalmente festivo estilo carnavalesco. Em Londres, algumas ruas

residenciais ficam fechadas inclusive ao público, vigiadas por policiais que indicam ao

transeunte a necessidade de tomar outra direção.

Ainda que haja momentos nos quais as pessoas se dirigem para um ponto

específico – como quando precisam se encontrar com um determinado grupo para

participar de um desfile -, em geral caminham com destino aleatório, gozando do prazer

da viagem e das horas ali despendidas. Olham-se com uma “cumplicidade

carnavalesca”, de prazer e alegria de poder participar daquele tempo e espaço especiais,

tempo de inversão, de folia e também de afronta e desafio21.

O carnaval cria seu próprio plano, que embora possa estar determinado dentro de

um tempo e espaço segue uma lógica própria. Pode esta lógica ser oposta à do mundo

quotidiano, reforçando-o e confirmando-o (DAMATTA, 1997), visto que em longo

21 Vogel, Mello, Barros, 2001.

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prazo salientar as definições daquele grupo tende ratificá-las (TURNER, 1974). Para

este autor a eficácia do rito depende da “dramatização” ou da “representação” de um

conflito empírico. A eficácia da ação simbólica é confirmada na medida em que permite

esclarecer o conflito – sendo reconhecido coletivamente – e a sua natureza. DaMatta

bem assinala, que inverter não quer dizer aniquilar com as hierarquias ou igualdades

sociais, mas sim submetê-las a uma breve recombinação. Experimenta-se um mundo

invertido, sem que se corra, entretanto, o risco da inversão ser permanente (1997).

Como observa Turner, rituais fixados pelo calendário, como nos casos

observados, geralmente ocorrem entre grandes grupos sociais, podendo configurar

rituais totais e ainda, freqüentemente, serem de inversão de posição social. O rito indica

uma contradição estrutural que “regras” e processos políticos não conseguem resolver,

dependendo, sua eficácia, da “dramatização” ou “representação”, de um conflito

empírico (1974).

A eficácia da representação é provocada na medida em que esta consegue deixar

claro e coletivamente reconhecido o conflito e a sua natureza, apontando, inclusive, para

responsabilidades, sanções e reparações. O rito, portanto, “desmascara”, “revela”,

“torna público o que é privado e oculto” (TURNER, 2005), uma vez que, segundo a

abordagem de Leach (1996), as sociedades reais nunca estão em equilíbrio; os processos

rituais, por meio de uma linguagem especial, dizem coisas acerca da ordem da qual

fazem parte e geram, ainda, estruturas peculiares às situações práticas.

Em geral os foliões, carnavalescos ou brincantes22 desejam extravasar, “perder

as estribeiras”, “curtir”, “se acabar”, - enjoy yourself’, como me diziam em Notting Hill

-, num tempo que congrega fantasia e ambigüidade e, por isso mesmo, permite maior

liberdade. Nessa ocasião, as pessoas estão livres para transgredir normas sociais ativas

na vida quotidiana. O homem pode se vestir de mulher, a mulher pode vestir-se de

forma libidinosa, provocativa e tem licença para demonstrar seu interesse e desejo pelo

sexo e pelos prazeres da carne sem sofrer retaliações. O pobre pode se fantasiar de rei, o

rico pode se vestir de pobre e brincar o carnaval junto à massa disforme que ocupa as

ruas e alamedas da cidade.

Indivíduos que ocupam posições subalternas, discriminadas ou inferiores

mobilizam símbolos e revertem seus status. Ocupam as ruas e se tornam predominantes,

22Para ver mais sobre algumas das categorias utilizadas nas análises acerca do carnaval carioca ver, entre outros: Goldwasser, 1975; Leopoldi, 1977; Cavalcanti, 1994; DaMatta, 1997.

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poderosos, reis, num reinado que dura um, dois ou três dias. Os estruturalmente

dominantes, por sua vez, aguardam o fim daquela “loucura”, suportando “pacientemente

a agressão simbólica (...) praticada contra eles pelos estruturalmente inferiores. (...) o

grupo ou a categoria a que se permite agir como se fosse estruturalmente superior (...)

está de fato situado perpetuamente com um status mais baixo” (TURNER, 1974, p.

212). Rituais de reversão de status, ao mesmo tempo em que confirmam a estrutura,

parecem também restaurar as relações entre os grupos sociais envolvidos, expurgando

os sentimentos provenientes das relações estruturais acumulados durante o ano.

As ruas não estão ocupadas por veículos, os sinais de trânsito podem ser

esquecidos ou desligados, pois a rua é invadida pelos pedestres. A maioria das lojas,

escritórios e estabelecimentos comerciais das áreas reservadas para o carnaval, fica

fechada. Anualmente o carnaval permite a abertura de um “mundo especial”, um tempo

e um espaço extraordinários. Para DaMatta (1997), a invenção de um espaço social,

onde há regras e lógicas diferentes das ordinárias, muitas vezes nos faz parecer um

mundo da loucura23.

O ritual observado, “carnaval”, marca as diferenças e processos históricos nos

quais os diversos grupos, que daquela sociedade fazem parte, estão inseridos. Rituais

desse tipo revelam, definem e acentuam fronteiras sociais, exaltando as relações entre os

atores a partir de sua carga afetiva. Oferecem, portanto, uma perspectiva e leitura

privilegiada acerca das relações sociais ali travadas, pois “a compreensão do conflito

como dimensão positiva do processo de elaboração, reprodução e representação dessas

identidades é incontornável” (VOGEL, MELLO, BARROS, 2001, p. 127, 128).

A ocupação massiva de um espaço público, a presença sonora de potentes

decibéis, os múltiplos estilos musicais, as variadas melodias, a performance executada

pelos mascarados, a variedade de sensações olfativas, a inversão de normas usualmente

praticadas na vida quotidiana, expressam um desafio24. A maneira pela qual caminham,

dominando as ruas, sua expressão corporal, o desejo explícito de chamar atenções e

olhares, a imposição visual, tátil, sonora e olfativa, e ainda a presença concreta de vários

estímulos disponíveis ao paladar, lembram e ressaltam o confronto entre as diversas

23Para ler mais sobre ritos de passagem, processos, deslocamentos: Turner, 1974; Van Gennep, 1978; Vogel, Mello e Barros, 2001; Leopoldi, 1977; DaMatta, 1997. 24 Vogel, Mello e Barros, 2001.

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identidades sociais. O carnaval londrino explicita e marca ordens sociais construídas ao

longo dos séculos.

O desafio, portanto, se refere à ordem social expressa na vida quotidiana, se

refere a uma série de papéis desempenhados pelos atores sociais e a posições que

ocupam ordinariamente, e, de certa forma, é também o reconhecimento desses papéis.

Um ritual de tal magnitude é um “tapa na cara”, é o despertar de um sono às categorias

sociais que se deparam e convivem com ele. E não há como ficar indiferente.

A co-presença de muitos imigrantes faz de Londres uma capital marcada por um

cosmopolitismo exuberante, que coloca frente a frente diferentes grupos sociais. Sob o

manto da convergência e da hospitalidade, revela-se, em momentos como esse, a

existência de conflitos latentes. “Na romaria (...) revela-se de modo brusco, e

desconcertante, o avesso desse idílio de acolhimento e convergência. A romaria reabre,

pois, uma das mais profundas feridas simbólicas da nossa sociedade” (brasileira), e

também da londrina, “marca de seus inícios e estigma de sua formação. De um só golpe

esse rito singulariza uma identidade problemática (‘estrangeiros de dentro’) e define os

limites de suas relações com a identidade social dominante” (VOGEL, MELLO,

BARROS, 2001, p. 153).

A situação londrina, por sua vez, é igualmente marcada por encontros e misturas,

diálogos, confrontos e conflitos. No carnaval, estão presentes e representados, ‘ingleses

do caribe’, amparado pela Commonwealth, e seus descendentes, verdadeiros

“estrangeiros de dentro”, marcados pela sua ancestralidade.

É necessário, portanto, que haja arrogância25 suficiente para o grupo minoritário

sair às ruas e clamar pelo seu acomodamento legítimo na ordem vigente. Lugar social

impossível de ser atingido por outros meios, é ostensivamente reivindicado por meio da

espetacularização da própria condição do grupo. Não há meios pelos quais não se possa

perceber, no momento ritual, a eventualmente silenciada distância que separa os

diferentes grupos componentes da sociedade da metrópole inglesa.

Os dias de carnaval de rua, em Londres, representam a situação de culminância

ritual. Além deles, nos dias que antecedem a “afronta” final, uma série de ritos parecem

compor o quadro. Esse carnaval, assim como o de Trinidad, compreende uma série de

competições e festejos, momentos de clímax que agregam os participantes daquele

25Vogel, Mello, Barros, 2001.

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”ciclo de ritos”. Cada uma das etapas parece ter uma função simbólica (emocional,

valorativa) peculiar.

No primeiro encontro do período carnavalesco que também é a competição

inaugural entre os grupos e acontece cerca de uma ou duas semanas antes do desfile, o

Costume Splash ou Gala, tomam parte os grupos relativos às fantasias, mas bands. No

interior de um grande salão, acontecem as apresentações, nos seus arredores imediatos

se reúne um número não muito grande de pessoas que podem ou fazer parte das bandas,

ou ter comprado ingressos para assistirem às competições.

O Costume Splash elege o Rei e a Rainha, o Príncipe e a Princesa do carnaval.

Oferece, com isso, a máxima (ou dominante26) titulação simbólica em relação às

fantasias. Naquele momento, são exibidos os mais ricos, luxuosos e elaborados

costumes, conferindo reconhecimento ao designer e ao artista plástico, responsáveis,

respectivamente, pela concepção e execução dos mesmos e também às bandas das quais

os campeões fazem parte.

Na circunstância do National Panorama Championship, realizado em praça

pública e franqueado ao público, no sábado que antecede os dias de carnaval de rua,

aglomera-se grande número de pessoas, tanto integrantes das bandas musicais, quanto

amantes do gênero e curiosos. O Panorama elege a melhor apresentação e banda

musical daquele ano, conferindo o reconhecimento mais desejado pelos integrantes das

steelbands. O arranger, que escolhe e rearranja uma melodia e lidera os ensaios, e os

instrumentistas, pan players, são os elevados, na vitória, ao ponto máximo dessa etapa.

A banda, por sua vez, é alçada à primeira colocação frente às demais, o que fica inscrito

e armazenado nos anais e no ranking da BAS e memorado na história do carnaval.

O J’Ouvay, Jour Ouvert, Jouvert é o momento simbólico de abertura do

carnaval, porém, como não estive presente, não tenho meios para relatar minha

impressão acerca da participação quantitativa (nem de outra natureza) de público e de

foliões. O que posso dizer, de acordo com diversos relatos, é que no “grito de carnaval”

os mascarados vão para as ruas com fantasias elaboradas ou escolhidas por eles

próprios, muitas vezes demônios azuis, máscaras e adornos que imitam figuras políticas

e representam uma crítica bem humorada, mas não pouco contundente, à atitude de

governantes e altos personagens políticos da atualidade, ou ainda lambuzados por todo o

26Turner, 2005.

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corpo com uma substância marrom que aparenta, mas não é, chocolate derretido. Tudo

leva a crer que este é o momento mais livre, irreverente e satírico27 do carnaval.

O Jouvert, que acontece no início da manhã de domingo, situado entre o

Panorama e o desfile das crianças, tem um histórico de acontecimento intermitente ao

longo dos anos. Muitas vezes é questionado pelas autoridades e residentes da área, pois

“perturba a ordem”, levando muitos foliões a ficarem pelas ruas ao longo da noite,

depois do término da competição entre as bandas musicais, aguardando o Jouvert.

Ressalto, todavia, que não é possível afirmar que este seja o único motivo de sua

intermitência, para tal são necessárias investigações adicionais. Em alguns anos, foi

realizado pelo bastante fato do desejo de explosão simbólica dos indivíduos no

momento de abertura de um período de licenciosidade, de liberdade, de afrouxamento

de regras sociais e de tomada ostensiva do espaço público. Eventualmente há jurados

avaliando os grupos presentes, como no caso de 2006. Indico, entretanto, que - pelo

menos até agora e a partir de informações diretas que obtive junto aos participantes - a

competição não parece ser, para a maioria, o ponto focal daquela ocasião.

A competição infantil, no domingo, acontece nas mesmas ruas e conta com o

mesmo espaço reservado para o carnaval de segunda–feira. Há cerca de um milhão de

pessoas circulando pela área, entre elas crianças, desfilantes, foliões, curiosos, policiais,

mercadores ocasionais, que transformando suas varandas, portarias e halls de entrada

em stands, vendendo desde comidas e bebidas, até camisas e panôs com motivos que

fazem referência às ilhas caribenhas e às bandeiras desses países ou com estampas do

Bob Marley e outras figuras consideradas representativas como cachimbos, boinas,

entre outros itens -, e inúmeros barraqueiros – formalmente registrados e autorizados -,

que fazem e vendem comidas conhecidas como oriundas das nações do Caribe,

acrescentando a todo o clima festivo, sonoro, visual e tátil, o aroma e o sabor do “local”

que ali representam. São vendidas também cervejas e spirits importados – formal e

informalmente – diretamente das ilhas e há ainda ambulantes oferecendo e vendendo

apitos aos passantes, objetos que também marcam presença na cena, espalhando aos

quatro ventos seu som característico.

O desfile infantil, organizado e liderado por adultos e por jovens, insere,

incentiva e “ensina” as crianças a participarem dos festejos, a representarem – vestindo

27 Explicitamente satíricos também são os calipsos.

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fantasias e dançando apropriadamente ao som de músicas peculiares – os países e a

cultura de seus ancestrais, incentivando a permanência do ritual.

A segunda-feira conta com a mesma configuração do dia anterior, porém há

menos crianças e uma multidão de mais de um milhão de pessoas circulando pela área.

De acordo com dados veiculados por autoridades locais, pela imprensa e demais

associações e grupos envolvidos no festejo, os dois dias de carnaval de rua somam cerca

de dois milhões de pessoas nas redondezas. Além dos elementos descritos em domingo,

e dos inúmeros grupos de desfilantes, marcam sua participação: os sistemas e carros de

som instalados pelas ruas - como no dia anterior, mas aparentemente em menor número

-; e os músicos calipsonianos, que fazem suas animadas apresentações, alegrando e

fazendo rir o público presente, geralmente em coretos ou palcos abrigados nas praças.

O desfile dos adultos, que aglomera a maior multidão da qual já participei, por

sua vez, mistura e destaca o ideal desejado de liberdade, a transgressão e crítica social e

a folia que o carnaval pode representar; a forma estabelecida pela parade; a

possibilidade de atingir o campeonato; a representação de um povo e de sua história

dentro de um determinado contexto; bem como, a mélange e a oposição entre os grupos

(étnicos) que dele participam, na sua forma mais contemporânea.

Há ainda competições entre os sistemas de som, static sound sistems, - que ficam

instalados em diversos locais ao longo da área -, e entre os DJs móveis, mobile DJs, que

parecem participar do desfile, entretanto, como não tive tido acesso a informações

suficientes em relação a este ponto, não o abordarei em maiores detalhes.

É importante lembrar que, em ambos os dias de desfile, os carros de som que

integram as steelbands permanecem com configuração semelhante ao da noite de

sábado, abrigando em sua carroceria os instrumentos que formaram o conjunto utilizado

na apresentação do Panorama. Em ambos os dias, a presença policial e de stewards é

notável e ostensiva, revelando uma grande preocupação das autoridades com a “ordem”

e o “bem estar” social.

Em relação ao percurso, na vida quotidiana em geral, o que mais importa é o

ponto de chegada e o de partida. Nos momentos rituais sobre os quais nos detivemos, é

justamente a marcha que se torna importante. A caminhada ritualizada é o momento

onde se dá a plena consciência dos atores envolvidos. “No caminho consciente do ritual,

o alvo e a jornada se tornam mais ou menos equivalentes” (DAMATTA, 1997, p. 103).

Invertendo a norma quotidiana, onde o alvo geralmente é o ponto de chegada, aqui

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também será o próprio caminhar, marcando em ambos os carnavais, o brasileiro e o de

Notting Hill, o clímax de um longo processo carnavalesco.

Ao abrandar as formalidades das situações sociais quotidianas, o período

carnavalesco propicia um momento de communitas (TURNER, 1974). Não podemos

esquecer, todavia, que a communitas carnavalesca compreende ainda relações

estruturadas, como é o caso das escolas de samba, dos grupos presentes no carnaval de

Notting Hill e das demais instituições, associações e organizações implicadas. Dessa

maneira, este momento ambíguo não revela necessariamente a ausência de status ou de

relações sociais estruturadas. Pelo contrário, como ressalta Leopoldi (1977), a

ambigüidade pode se mostrar como uma marca de status evidente.

Se o caráter da estrutura é modificado, há relações estruturadas subjacentes ao

contexto carnavalesco que afloram naquele período. Uma série de mecanismos de

controle e normas regulamenta o communitas, revelando múltiplos status que

diferenciam os participantes entre si, apesar de, sob o olhar da sociedade mais

abrangente, vivenciarem um mesmo papel e desfrutarem de um mesmo status.

O carnaval consiste em um tempo especial onde a maioria dos participantes,

muitas vezes marginalizados na sociedade na qual estão inseridos, podem se tornar os

atores principais daquela representação, daquele espaço e tempo especiais. Pode parecer

paradoxal, no entanto, que ao ser uma construção social, a situação carnavalesca, livre,

se erija sob o controle e influências do sistema social do qual faz parte. Sistema este que

imprime a ela, ao longo do processo histórico, político, social, econômico, determinada

forma e conteúdo.

Ambos os carnavais observados, apesar de serem momentos extraordinários,

estão sob o jugo de instituições, órgãos, mecanismos sociais que os influenciam. A

respeito do carnaval do Rio de Janeiro, diz-se que é um momento de communitas, de

congregação e igualdade, entretanto, se por um lado há uma participação de pessoas de

diferentes segmentos sociais e uma inversão nos papéis desempenhados, por outro lado

os integrantes das agremiações (escolas de samba, por exemplo) devem subordinar-se a

uma série de hierarquias e comandos internos e, apesar de muitas vezes não estarem de

acordo, tendem à obediência.

Na situação apresentada, é imperativo o risco de as pessoas serem seriamente

repreendidas, sofrerem sanções, serem afastadas da agremiação ou mesmo mortas no

caso de assumirem posições ou atitudes discordantes em relação à dominante,

controversas, ou ainda, por cometerem algum “erro” – ainda que mecânico - dentro do

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esquema carnavalesco, circunstâncias que puderam ser observadas de perto e em

diferentes situações, ao longo do período de meu envolvimento com as escolas de

samba. Retaliações e repreensões podem aparecer de forma mais ou menos explícita,

mas em geral são veladas, sabidas, mas pouco ditas, ou ditas “à boca miúda”.

Em Londres, em uma conversa com um integrante da London School, falamos a

respeito de alguns dos mecanismos de funcionamento e administração do carnaval. Ele

considerou, o que tendo a concordar inteiramente, que se no Rio de Janeiro o carnaval

está irremediavelmente atrelado (pelo menos atualmente) a “jogos ilegais” (“ilegal

games”) – que estão, por sua vez, direta e indiretamente unidos a instituições formais e

governamentais -, em Londres o carnaval está atrelado a “jogos burocráticos”

(“bureaucratic games”).

Ainda que de forma geral aquela sociedade pareça ser organizada, no sentido de

os direitos e deveres atingirem com maior igualdade, seus membros; capital social,

redes de parentesco e outros tipos de influências contam para o resultado final das

situações. Pude perceber, entretanto, principalmente durante a Conferência sobre

steelpans, que as pessoas parecem poder falar mais abertamente e diretamente, a

indivíduos situados em diferentes posições e status, que não concordam com

determinadas decisões ou atitudes. Parece-me não ser possível, como acontece no Rio

de Janeiro - e no Brasil em diversas situações -, estariam correndo o risco de tão graves

sanções por terem posições divergentes à da maioria ou à de um indivíduo em

particular, ou por cometerem algum erro mecânico.

Apesar de serem momentos especiais, acompanho a perspectiva proposta por

DaMatta (1997), que afirma os momentos rituais não possuírem matérias-primas

divergentes das matérias-primas do quotidiano. Se o mundo ritual é um universo de

relacionamentos, ele está inexoravelmente relacionado ao sistema social abrangente

dessas sociedades complexas, em uma longa disputa por poder.

A categoria ritual possui o aspecto de momento especial, entretanto não é

inteiramente deslocado do sistema social total. Se virmos a sociedade como um mar

relativamente calmo, com pequenas ondulações, o momento ritual pode ser visto como

uma vaga mais proeminente. Em seu conteúdo, permanecem a mesma água salgada,

peixes e substâncias de toda a amplitude marinha, ainda que eventualmente deslocados.

A busca se volta à tentativa de compreender “como os elementos triviais do mundo

social podem ser deslocados e, assim, transformados em símbolos que, em certos

contextos, permitem engendrar um momento especial ou extraordinário” (1997, p. 76).

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Um dos elementos do ritual é destacar determinados aspectos do mundo social,

tornando-os mais salientes do que outros, levando, nesse vai-e-vem, as “coisas do

mundo” a assumirem diferentes sentidos e a exprimirem mais do que exprimem nas

situações quotidianas. Sob esta perspectiva os momentos rituais colocam em close-up

elementos do mundo social, podendo revelar o que é marginal em determinados

sistemas e evidenciando com maior coerência alguns de seus aspectos. Os rituais

aparecem como instrumentos que possibilitam “maior clareza às mensagens sociais”

(DAMATTA, 1997, p. 83).

Além de ajudar a construir e a criar o tempo, os rituais também possibilitam

cortes nas rotinas sociais, portanto as situações extraordinárias ou especiais sempre são

acompanhadas de uma consciência sobre elas. Segundo DaMatta, “não há ritualização

que não esteja utilizando um mecanismo cujas intenções são neutralizar, reafirmar ou

pôr tudo ‘de cabeça para baixo’” (1997, p. 83), como é o caso do carnaval.

No caso de Notting Hill, tanto no capítulo II quanto no III, apresento algumas

perspectivas históricas e dos atores sociais envolvidos em tal processo, que justificam,

de certa forma, a existência e o surgimento e desse carnaval ao final dos anos 50. Os

imigrantes caribenhos, percebidos como marginais no sistema social inglês, no curto

espaço de tempo que compreende aquele período ritual, tornam-se o centro das

atenções, os personagens principais, os dominantes.

Não há como dissociar o período carnavalesco do contexto social no qual se

situa, o que ressalta a importância de “prestarmos mais atenção às relações sociais e aos

sistemas dessas relações do que aos efeitos de suas combinações, como parece ser o

caso dos rituais” (DAMATTA, 1997, p. 84).

Formas observáveis e concretas, utilizadas como símbolos rituais, como os

surdos e os tamborins, no caso das escolas de samba e os steelpans no caso dos grupos

caribenhos, foram criados e utilizados inicialmente em seus contextos nacionais, sob

condições históricas peculiares, tornando-se, em ambos os locais, marcadores de grupos

subalternos. Naquelas situações sociais, passaram a representar a resistência, a

importância e a existência de determinados grupos frente aos dominantes, marcando um

lugar e momento ‘seus’. O símbolo ritual, é algo encarado “pelo consenso geral como

tipificando ou representando ou lembrando algo através da posse de qualidades análogas

ou por meio de associações em fatos ou pensamentos. (...) empiricamente, objetos,

atividades, relações, eventos, gestos e unidades espaciais em uma situação ritual”

(TURNER, 2005, p. 49).

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Nas sociedades estudadas, muitas vezes as pessoas que tocavam os instrumentos

e participavam de associações correlatas, podiam ser vistas como malandros, trapaceiros

ou de má índole. Os instrumentos – e não só os instrumentos -, foram (e são) entendidos

como remanescentes de uma herança cultural africana e também indígena,

simbolizando-as, portanto – em ambos os contextos.

Não apenas os instrumentos podem ser vistos como simbólicos. As fantasias

lembram máscaras utilizadas por “tribos” africanas, remetendo a uma brava

ancestralidade guerreira e às origens do grupo; os calipsos tecem comentários satíricos à

ordem mundial e às elites dominantes, desnudando o escárnio dos praticantes em

relação a ambas; a sensual dança desempenhada pelas mulheres, colocam-nas numa

posição mais livre do que a praticada no dia-a-dia, acentuando a dominação que

exercem momentaneamente. Esses também figuram como tipos simbólicos no ritual

carnavalesco inglês.

Até os dias atuais, o “povo” é quem faz o carnaval, quem toca os instrumentos,

quem executa as fantasias, quem lava o chão das quadras e dos banheiros. As elites,

entretanto, assistem, promovem, administram, financiam e lucram com o festejo popular

- afirmativa que se refere especificamente ao carnaval das Escolas de Samba do Grupo

Especial carioca. Não posso afirmar que o mesmo aconteça, de forma idêntica, em

Londres.

Levados à Inglaterra, os instrumentos, as danças, os estilos musicais e

dramáticos, os sentimentos e os valores, as formas de expressão e de percepção se

transformam e são reafirmados (no contexto mundial) como símbolos de culturas

nacionais, tendo sido e sendo trabalhados ao longo do tempo e de acordo com as

circunstâncias e as conjunturas nas quais se inserem – no que diz respeito aos artefatos e

elementos que remetem tanto às nações caribenhas, que acabam por misturar-se como

se, uma, (como já foi dito e será retomado no capítulo III), quanto no que diz respeito à

brasileira.

O encadeamento temporal, nas quais os elementos simbólicos estão envolvidos,

deve ser levado em conta, pois ao longo do tempo, os grupos se ajustam e se adaptam

tanto às mudanças externas, quanto às internas, como coloca Turner (2005). Os próprios

rituais revelam e representam determinadas fases dos processos sociais, assim como

eles, também os símbolos fazem parte dos mesmos processos. Dessa maneira,

“transformam-se em um fator de ação social, em uma força positiva num campo de

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atividade. (...) A estrutura e as propriedades de um símbolo são as de uma entidade

dinâmica, ao menos dentro de seu contexto de ação apropriado” (2005, p. 49, 50).

Ao abordar a proposição de Van Gennep sobre os ritos de passagem e os

conceitos de movimento, processo e deslocamento, DaMatta considera importante

percebermos os momentos rituais como algo construído, assim como os símbolos. A

questão pertinente é como tais objetos se transformam em símbolos, que condições

proporcionam tal fato e tornam um conjunto de ações sociais em um rito. Uma vez que

ambos os processos (de simbolizar e ritualizar) andam juntos e implicam num processo

consciente de deslocamento do objeto, trazem “uma aguda consciência na natureza do

objeto, das propriedades do seu domínio de origem e da adequação ou não do seu novo

local” (1997, p. 99). O mundo social dos atores é o que está sendo ali representado, por

isso os mobiliza.

Na luta e nas contradições dos processos e das esferas sociais, os processos de

deslocamento possibilitam o exagero, a inversão e a neutralização, permitindo a tomada

de consciência acerca tanto dos processos quanto das esferas sociais. Os processos

rituais – deslocamentos de objetos – nas sociedades industriais criam símbolos que

servem como referência para todo o sistema.

Em relação aos componentes simbólicos significativos nas situações rituais,

Turner pergunta, a partir de sua observação acerca dos Ndembu, para quem são

significantes (2005). Um símbolo pode ser pensado como uma “expressão possível de

um fato relativamente desconhecido, um fato, entretanto, que é, não obstante, postulado

como existente”, (o autor cita Jung, 1949). Turner continua sua argumentação,

ressaltando que, se o antropólogo pode “situar esse ritual no seu campo significante e

descrever a estrutura e as propriedades desse campo” (2005, p. 57), por sua vez, os

atores sociais, que tomam parte do processo, encaram-no, cada qual, de acordo com seu

ponto de vista. Cada ator envolvido no ritual o percebe a partir de seu ângulo de

observação, a partir da posição específica que ocupa, ainda que ocupe várias posições e

mesmo que estas sejam situacionalmente conflitantes. Sua percepção está, dessa

maneira, circunscrita tanto pelos papéis que desempenha na ocasião ritual, quanto pelas

posições que ocupa na estrutura social. O autor entende que por estar o ator atrelado a

uma série de sentimentos e interesses, que mais uma vez estão sujeitos as posições, fica

comprometida a sua compreensão da situação total. Os atores tendem a encarar “como

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axiomáticos os ideais, valores e normas que são abertamente expressos ou simbolizados

no ritual” (TURNER, 2005).

Apresentarei a seguir mais alguns dos aspectos fundamentais relativos aos

carnavais estudados, de modo a complementar as descrições anteriores e buscando

auxiliar a compreensão e problematização de tais rituais.

VI. O “Mundo da Loucura”? Impressões Iniciais

O fato de não estar familiarizada com a performance, a dança, a música, as

fantasias, a quantidade de pessoas, tanto civis quanto policiais, espectadores e

desfilantes, crianças e adultos dos mais diferentes tipos e aspectos, presentes no

carnaval londrino, fê-lo, em alguns momentos, assustador e também fascinante, fazendo

o carnaval parecer o “mundo da loucura28”.

Assustador, pois sabia que com uma quantidade tão grande de pessoas, se

irrompesse alguma grande briga, se houvesse correrias, se explodisse uma bomba ou

algo do gênero, apesar do enorme número de policiais presentes na área, seria muito

difícil conter a multidão, somado a massa e ao volume sonoro, as danças e as

performances. Fascinante e intrigante, pois a participação da população é mais contígua

em relação ao que a que estou acostumada a ver no carnaval carioca. As fantasias, as

músicas, as maneiras de dançar e dramatizar, as expressões corporais, a utilização de

apitos pelos foliões, as comidas e bebidas são peculiares, naquele momento, uma

novidade para mim.

Apesar de as pessoas precisarem pagar por uma fantasia para desfilarem junto a

um determinado grupo, o público tem a oportunidade de caminhar junto deles por um

longo percurso, aberto, antes de o grupo entrar no circuito fechado do desfile. A única

contenção entre desfilantes e público, naquele momento, é o cordão de isolamento, que

seguro por suas extremidades por integrantes do grupo, cria uma espécie de retângulo

que contém os foliões, limitando as fronteiras de quem pertence ou não ao determinado

bloco.

O público acompanha os blocos por todo o percurso que precede a área fechada,

e também depois que saem dela, mantendo-se equipamentos de som ligados, nesse

ponto, a maioria dos mascarados e o público continuam dançando animadamente.

28 DaMatta, 1997.

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Fiquei impressionada ao ver que, após o longo dia de esperas e caminhadas, bebidas,

comidas e fumaças, sob potentes decibéis e uma dança intensa e constante, as pessoas

ainda tinham energia, muitos não paravam de dançar e seguiam os carros de som até que

fossem desligados.

No caso do carnaval brasileiro, quanto mais me entranhei nas organizações das

escolas de samba, o que poderia parecer apenas uma grande festividade, cada vez mais

me apresentou situações ambíguas, opressivas, ditadas por comandos variados,

quebrando uma visão romantizada e positivamente apoteótica daquela situação.

Nas escolas estudadas, em geral o Presidente da agremiação imprime seu mando

a todos. Cada subdivisão de comando – diretoria de carnaval, carnavalescos,

administrador do barracão, administrador da quadra, representantes na Liga ou

Associação, presidente da velha-guarda, diretoria de harmonia, intérpretes, presidentes

de alas, diretoria dos compositores, diretoria da bateria, diretoria da ala das baianas, das

alas de comunidade, da ala de passistas, da comissão de frente, mestre-sala e porta-

bandeiras, diretoria da ala da força, de destaque, de composição de carros, entre outras -,

apresenta por sua vez a autoridade de quem ocupa um posto mais elevado sobre os

demais integrantes do núcleo. Aprendi a me comportar dentro de tal esquema, a fim de

não causar a impressão de dúvida ou desconfiança.

Como exemplo de uma situação onde determinado indivíduo utilizou-se de

mecanismos opressivos para tentar desmobilizar algum tipo de resistência ou

discordância, citarei o caso específico da criação do departamento cultural na Estácio de

Sá, onde vim a me tornar diretora cultural. Eu e um dos integrantes, que ocupava na

situação uma posição de status mais elevado e há mais tempo na agremiação, entramos

em desacordo. Parte do grupo desejava fundá-lo sob bases democráticas – no caso os

idealizadores do projeto -, acreditando que seria possível resistir à estrutura

hierarquizada da escola de samba, todos teriam os mesmos direitos e deveres, mesmo

poder e abertura para sugestões e questionamentos. Por ingenuidade nossa em relação à

estrutura das escolas, ou por um desejo pessoal de tentar estabelecer (em geral) relações

igualitárias, nos vimos depois de certo tempo, sob a pressão de tal integrante. Diversas

vezes o ouvimos dizer que se não fizéssemos as coisas da maneira que ele entendia

como corretas, colocaria sua mão de ferro sobre o grupo e tomaria o comando. O que de

fato nunca aconteceu, criou uma série de desentendimentos entre os demais integrantes

e fomentou um clima quase permanente de desconforto e divisão em dois grupos

opostos dentro daquela equipe.

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101

Um momento de grande preocupação e clareza em relação ao tipo de

conseqüências que podem levar à firmação de posições discordantes ou não claras em

relação a um determinado segmento foi o assassinato do presidente da agremiação. A

investigação policial parece ter concluído que a morte foi decorrente de um assalto ou

não houve como determinar os motivos da morte. O histórico da agremiação é marcado

pela morte de algumas pessoas que ocupavam postos de comando e em algum momento

sofreram algum tipo de motim, não necessariamente declarado. No caso abordado,

alguns dos integrantes da agremiação, que permaneceram em posições de alto comando,

consideraram que a “saída” do presidente foi melhor para a escola, segundo eles, o

mesmo não participava aos demais diversas das transações financeiras que estabelecia,

dividindo apenas os problemas.

Uma outra circunstância se deu em outra agremiação. No ano de 2005, houve

uma falha do motorista de um dos carros alegóricos. Ao conduzir o carro para o local do

desfile, houve um choque (batida) que quebrou o eixo das rodas. Danificada por conta

do acidente, a alegoria não pode participar do desfile, o que acarretou a perda de pontos

no somatório das notas e levou a agremiação a ser classificada em uma posição

insatisfatória, na concepção de seus integrantes e gestores. Quando fui ao barracão no

ano seguinte e após receber essa explicação, indaguei sobre o que havia acontecido ao

motorista. Responderam-me (à “boca miúda”): “nem existe mais...”. Aquela pessoa não

voltaria jamais a representar problemas para a escola.

Situações como as descritas acima revelam como pode ser delicada a relação

entre integrantes e setores de escolas de samba. Não digo que todas funcionam de forma

idêntica, mas há muitos casos semelhantes em diferentes agremiações.

Tais considerações passaram cada vez mais a estarem presentes nas minhas

avaliações e a ressaltarem a ambigüidade de um momento da vida social brasileira

considerado imensamente festivo, porém permeado por tamanhas atrocidades e

ambigüidades.

VII. Drama Social – Londres Nos Anos 50

Retomando as questões apresentadas em relação ao estabelecimento do carnaval

de Notting Hill, e me dirigindo especificamente àquele contexto, acompanho a

perspectiva proposta por Victor Turner (1980), onde os rituais, as linhas de conduta dos

atores nos eventos observáveis, assim como os cenários e seus estilos de desempenho

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cultural, são influenciados por características já firmadas das estruturas sociais de

determinadas sociedades. Segundo sua abordagem, os “dramas sociais” são elementos

que se apresentam de forma espontânea nos processos sociais, estão presentes na vida

de qualquer sociedade humana e na vida de qualquer pessoa e dividem os dramas

sociais em quatro fases discerníveis: ruptura, crise, reforma e reitengração. Ocorrem

entre grupos que possuem um mesmo background histórico real ou suposto e que

compartilham valores e interesses comuns.

O momento de tensão e a exacerbação dessas tensões tornam visíveis, de uma

forma cada vez mais nítida, a crise que se coloca. “Uma vez tornada visível,

dificilmente essa ruptura pode deixar de ser reconhecida. Seja como for, a crise vai num

crescendo e configura um momento de tensão ou de decisão nas relações entre os

componentes do campo social – no qual a paz aparente se transforma em evidentes

conflitos, tornando visíveis os antagonismos latentes” (TURNER, 198029).

Os mecanismos acionados a fim de restabelecer certa ordem variarão de acordo

com a profundidade, o significado, a abrangência social da crise, e por outro lado a

natureza e a autonomia do grupo social nela implicado. Segundo ele, os líderes dos

grupos atingidos pelas rupturas disporiam de “mecanismos adaptativos e reformadores,

informais e formais”, que seriam postos em funcionamento em contraposição à crise.

Entre esses mecanismos adaptativos ou afirmadores estaria o desempenho de rituais

públicos.

Se “a maquinaria tradicional de conciliação e coerção pode mostrar-se

inadequada para lidar com novos tipos de assuntos e problemas e com novos papéis e

estatutos. E, naturalmente, a reconciliação pode ter sido alcançada apenas na aparência,

com conflitos reais encobertos, mas não resolvidos”, o estabelecimento do carnaval de

Notting Hill - que sucede à série de violências contra os negros -, cada vez mais o firma

como um ritual daquela sociedade (inglesa) e garante, num certo sentido, a conquista de

um espaço de representação social do grupo de origem caribenha.

Na ritualização, entretanto, as fronteiras tendem a ser mais uma vez e

exacerbadamente marcadas, conferindo seu caráter de permanência. De forma explícita,

todos os anos (as fronteiras) são simbolicamente ratificadas e desta maneira se

reafirmam as oposições entre os grupos sociais, mesmo que em outras situações os

29As demais citações deste tópico se referem ao mesmo texto.

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atores interajam “intergrupos”, durante o carnaval a dualidade é colocada em evidência.

Nessa circunstância, quem ressalta suas diferenças e qualidades é o grupo minoritário.

Diversos atores sociais ou mesmo de determinadas instituições, inclusive órgãos

do governo como o Arts Council England, têm a intenção de transferir o carnaval das

ruas para um parque (provavelmente o Hyde Park, localizado na área central da cidade),

que imaginam - os proponentes - ter dimensões e condições ideais para abrigar a

festividade. Tendo a concordar com o autor quando este afirma que os dramas sociais

representam um desafio ao anseio das sociedades em relação a uma suposta

possibilidade de perfeição na sua organização social e política, tornando aparente a

conexão dialética entre dramas sociais e gêneros de desempenho cultural.

Em relação ao desempenho cultural, Turner coloca que “os vencedores de

dramas sociais positivamente requerem desempenhos culturais para continuar a

legitimar seu sucesso” assim sendo criam seus “tipos simbólicos”, desde os heróis até os

vilões. Como desempenho cultural, temos o próprio carnaval; como personagens

destacados que aparecem na sua história, faço referência a Claudia Jones, em

contraposição a grupos como os Teddy Boys e a Mosley’s Union Movement, que

aparecem como importantes grupos vilões.

Para o autor, os dramas sociais continuam a existir, mesmo nas sociedades

complexas, apesar de os modos de atribuição de significados dados a eles poderem

multiplicar-se: “o drama permanece até o fim, simples e inextinguível, como um fato da

experiência social de todos e um nódulo significativo no ciclo de desenvolvimento de

todos e quaisquer grupos que aspiram à continuidade”. Continuidade esta marcada pela

dinâmica que envolve e é produzida pelos atores e grupos implicados, e posicionados,

nas diferentes situações sociais que se apresentam no curso da vida.

Até que ponto se pode classificar vitórias e derrotas, não estou certa. Mas é fato

que um número de caribenhos instalou-se em Londres e obteve o reconhecimento de

seus direitos legais (do tipo dos juridicamente regulamentados), como cidadãos

ingleses. Porém, ao longo do tempo transcorrido, as ilhas tenderam a se tornar

independentes e com este acontecimento (somados às demais questões concernentes à

imigração), passaram a serem tratados legalmente como estrangeiros.

Atualmente muitos caribenhos enfrentam as mesmas dificuldades que os

cidadãos de grande parte dos países não europeus ao tentarem entrar na Inglaterra – que

costuma ser mais restritiva, nesse sentido, do que os demais países da União-Européia -,

e principalmente em permanecerem naquele país por mais de alguns meses, tendo que

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deixar oficialmente o território em um curto período de tempo, segundo relato de um

ator local que passou por tal situação.

O fechamento de fronteiras e o estabelecimento de normas, que permitem ou não

a entrada de determinados indivíduos ou grupos, são o desdobramento de um amplo

processo histórico que levou à construção da idéia das comunidades nacionais, -

Anderson (2006) as reconheceu como “comunidades imaginadas”, termo que viria a ser

dilatado para os demais grupos humanos que se sentem pertencentes, de alguma

maneira, a um mesmo mundo, compartilhando a idéia de fazerem parte desse algo crido

como sólido que os pode amparar, envolver e situar dentro do contexto mundial - e da

expansão da idéia do nacionalismo e dos estados-nação.

O estabelecimento de fronteiras jurídicas precisas (delimitadas) e fechadas, não

só na Inglaterra, marca de forma bastante incisiva um entendimento do que seja o

nacional frente ao estrangeiro. Parece pressupor que exista alguma maneira – e inclusive

há sua exegese concreta, traduzida e fincada na forma das leis e regulamentos – de

algumas pessoas estabelecerem quais seres humanos fazem, ou não fazem e podem, ou

não podem fazer parte daquele pedaço de terra, pertencente – sabe-se lá por que razões

– a um determinado contingente populacional.

A luta atual parece ser mais em função de se repensar a questão das fronteiras

nacionais, de o quanto e para quem são cerradas e as maneiras pelas quais lidamos com

as diferenças presentes num mesmo território, do que de defender o cerramento das

fronteiras e limitar a entrada de estrangeiros para continuar soberano. Alternativa que

vem sendo largamente empregada e não tem ajudado a equilibrar – na medida do

possível – ou a pacificar a relação entre os seres humanos. Mudanças nas políticas de

imigração poderiam estabelecer mecanismos maleáveis para o fluxo de pessoas,

gerando diferentes e novos tipos de relações. Parece ser marca de alguns tipos de

dramas, conflitos e relações sociais o gosto pelo poder; pela valorização de um

determinado sentimento de poder e pelo status que lhe é peculiar.

O cabo de guerra estabelece um elo entre os poderosos que instituem as leis e as

fazem cumprir – somados a outros tipos de poderes, que podem se sobrepor às

regulamentações, tomando decisões a despeito delas -, e por outro lado e de forma

complementar na dinâmica social, os que procuram ser ouvidos e levados em conta no

resultado final das situações e tramas sociais.

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CAPÍTULO III

AFIRMAÇÃO DE IDENTIDADES CULTURAIS E

PERTENCIMENTO AOS “GRUPOS ÉTNICOS”

I. O Carnaval de Notting Hill Enquanto Local Propício para se Observar a

Construção e Afirmação das Chamadas Identidades Étnicas. Nação, Origem e

Relações Sociais: a Construção de uma “Comunidade Imaginada”

Trato agora da questão do estabelecimento do carnaval londrino anteriormente

descrito, observando-o e considerando-o como um ritual realizado em uma metrópole

contemporânea. A partir de tal pressuposto, serão apresentadas perspectivas de diversos

autores que tratam de temas sobre a formação das chamadas identidades étnicas em

contextos citadinos considerados multiculturais ou poliétnicos. O aspecto central de

suas análises são os grupos que compõem tais sociedades e as relações estabelecidas

entre si; aspectos relativos à migração de diferentes grupos para tais contextos urbanos

industriais; o agrupamento de indivíduos em um meio complexo e nem sempre

hospitaleiro; além, é claro, de levantar questões concernentes às relações sociais

estabelecidas entre os grupos locais, de certa forma já estabelecidos naquele espaço, e

os novos grupos imigrantes. As questões atinentes ao estabelecimento dos imigrantes

caribenhos em Londres, e às suas relações com o grupo majoritário local, bem como os

novos tipos de atividades e agrupamentos que surgem entre os próprios caribenhos das

diversas ilhas, serão então colocados frente às demais teorias apresentadas e discutidos à

luz delas.

O carnaval de Notting Hill se revela um local propício para se observar e discutir

algumas das dinâmicas que envolvem os chamados grupos étnicos que dele participam.

Permite investigar o que poderiam ser considerados processos de (re)construção de

identidades étnicas, uma vez que estes perpetuam, reforçam e constroem aspectos

distintivos que se referem a carnavais tidos como “originais”; nações e lugares dos quais

as pessoas que deles participam são naturais ou descendentes de. Esse Carnaval é

composto por diversos imigrantes das ilhas caribenhas, antigas colônias inglesas,

seguidos por descendentes de segunda e terceira geração e imigrantes de épocas

posteriores.

Esses imigrantes foram trazidos à Inglaterra, ou estimulados a se deslocarem

para lá na década de cinqüenta, após a Segunda Guerra Mundial. Eram mão-de-obra

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para ocupar cargos como funcionários de meios de transporte, dos correios, da

construção civil e principalmente ocupações sem necessidade de qualificação, apesar de

no contexto anterior (ilhas do Caribe) muitos serem considerados mão-de-obra

especializada. Ao chegarem à antiga metrópole enfrentaram a resistência de grupos

sociais locais, que se opunham ao seu estabelecimento, não obstante os caribenhos

estarem amparados pela Commonwealth, considerados, portanto, ingleses. A série de

conflitos foi seguida por diversos acontecimentos, entre estes a formação de associações

étnicas, algumas das quais estavam presentes e organizaram o primeiro carnaval

caribenho (Caribbean Carnival) em Londres. Um acontecimento marcante, que desde

seu início vem conquistando crescente atenção, mantendo-se até os dias atuais na forma

do Carnaval de Notting Hill.

Antes de prosseguir, acredito seja profícuo apontar algumas definições acerca do

termo ‘étnico’ e após, abordar as perspectivas oferecidas pelos autores em relação às

indagações sobre o ‘étnico’. 1) etn (o) – do grego ethnos – raça, povo; ethinikós –

étnico. Dele se derivam outros termos introduzidos na linguagem científica, a partir do

séc. XX: etnia, etnografia, etnocentrismo, etnologia etc. 2) a. étnico – [do grego

ethnikós, do latim ethnicu.] Relativo ou pertencente a uma etnia. Idólatra, pagão (nos

autores eclesiásticos). b. Derivado da palavra ethnikós, que originalmente significa

gentio, idólatra, selvagem ou pagão. 3) ethnikós – (adjetivo) particular a uma nação, a

um povo. 4) éthnos – (substantivo) povo; raça, classe de homens; tribo, sexo. Pergunta-

se se o termo não tem sua raiz em éthos (costume, uso, instituição) que por sua vez

poderia ter sua raiz no verbo étho (ter costume, fazer habitualmente)30.

Na língua inglesa, é utilizado com este sentido, de meados do século XIV a

meados do século XIX. A partir de então, sua significação aparenta tender a uma

conotação com características raciais. Nos Estados Unidos, o termo passou a ser

utilizado por volta da Segunda Guerra Mundial, como um termo “polido” para se fazer

referência a judeus, italianos, irlandeses, assim como a outros grupos considerados

inferiores pelo grupo dominante, majoritariamente descendente de ingleses. Na

antropologia social, o termo se refere a aspectos de relacionamentos entre grupos, que

são considerados por outros grupos, e se consideram também, culturalmente distintos.

Está sempre relacionado à classificação de povos ou pessoas e às relações de grupos. 30Respectivamente: Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, 2ª ed rev e ampliado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997; Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa/ Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. 3ª edição. Curitiba: Positivo, 2004; 3 e 4 Bailly, Dic de Grego-francês. Citações 1, 3 e 4 com alterações.

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Tais tipos de relação podem ser observados em todas as sociedades (T. ERIKSEN,

1993, p. 4).

O autor considera que é na interação cotidiana que a etnicidade é criada e

recriada. Antropologicamente é a observação de aspectos da vida social que nos habilita

a explorar os caminhos pelos quais tais relações são definidas e estabelecidas. Ao

observar como as pessoas envolvidas falam e pensam a respeito dos grupos dos quais se

consideram membros, bem como dos demais grupos, pode-se apontar de que maneira

uma visão de mundo particular é mantida e contestada.

Principalmente após a Segunda Guerra Mundial, cresceu em escala mundial a

importância política de conceitos como etnicidade e nacionalismo - isso porque

fenômenos relacionados a eles passaram a ser observáveis em diversas sociedades.

Segundo Eriksen, os conflitos étnicos podem aparecer de formas violentas ou não. A

construção de nações, com uma coesão política e uma identidade nacional nas colônias,

ao longo do mundo, se tornou altamente pertinente, inclusive no que diz respeito aos

fluxos migratórios, incluindo o de refugiados para a Europa e América do Norte. Tais

fluxos estabeleceram minorias étnicas permanentes naquelas áreas. Quando identidades

étnicas se tornam status imperativos, não é possível escapar inteiramente delas, porém

raça e cor de pele não são variáveis decisivas em todas as sociedades. (T. ERIKSEN,

1993, p. 6).

Fredrik Barth (199531) argumenta que os grupos étnicos se formam a partir de

diferenças culturais, o contraste entre “nós” e “eles” é basilar e intrínseco às questões

concernentes à etnicidade. Em seu ponto de vista, a cultura é algo (ou tudo) que é

aprendido, gerada ininterruptamente por meio de experiências que produzem

aprendizados.

Barth sustenta que a cultura, além de ter uma grande variação, é contínua. As

idéias que compõe cada cultura extravasam seus limites e se disseminam sem seguir

modelos pré-estabelecidos, gerando uma variedade de “agregados” e “gradientes”; ela é

também distribuída por meio das pessoas, tornando-se diferentemente difundida entre os

grupos e os indivíduos; flui, em movimento constante, gerado a partir de experiências

pessoais.

31Texto traduzido para o português por Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto. Originalmente apresentado na conferência “Rethinking Culture”, sob o título “Etnicidade e o Conceito de Cultura”, na Universidade de Harvard, 1995.

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Assim, o autor afirma que o objeto da organização cultural pode ter fronteiras

bem definidas. Os grupos sociais podem ter claras distinções em relação aos outros,

enquanto que o objeto da cultura, não. Dentro de um grupo a participação dos atores

pode ser uniforme, todos possuem os mesmos direitos e deveres. A despeito da

mudança de pessoal, o grupo pode ser estável em relação a sua estrutura, tendo como

base um sistema específico de recrutamento de seus membros (1995).

As fronteiras são permanentes e também implicam processos de exclusão e

incorporação, mesmo com o fluxo de pessoas que as atravessam, das distinções entre

categorias étnicas e mudanças individuais de participação e pertencimento. Relações

sociais, muitas vezes estáveis e vitais, podem atravessar fronteiras étnicas mesmo que

estejam baseadas essencialmente na dicotomia entre os grupos (2000).

Barth considera que os grupos étnicos são uma forma de organização social.

Uma auto-atribuição e uma atribuição pelos outros, que tem como fundamento, uma

identidade básica geral, entendida como algo que gira em torno de sua origem e

conformação. Quando a finalidade é a interação, os indivíduos utilizam identidades

étnicas para consegui-la, categorizam a si mesmos e aos outros, formando os grupos

étnicos.

Nessa perspectiva, as características a serem levadas em conta em relação aos

grupos étnicos são justamente aquelas que os integrantes dos grupos consideram

significativas. As pessoas buscam e exibem sinais e signos diacríticos a fim de

manifestarem suas identidades, em geral por meio de vestimentas, da língua, do estilo

de vida. Complementarmente as performances são julgadas com base em valores e

padrões de moralidade peculiares e relevantes ao grupo.

A atenção do pesquisador deve se deitar sobre as fronteiras sociais e a partir daí,

sobre as formas de recrutamento dos membros do grupo, bem como sobre as maneiras

pelas quais este se expressa e o que valida, conforme salienta o autor. Pressupõe-se que

os componentes de um mesmo grupo étnico estejam “jogando o mesmo jogo”, dentro de

uma mesma fronteira étnica que estabeleça, internamente, o compartilhamento de

modelos de comportamento, de valores, de performances, de critérios de avaliação e de

julgamento.

Para Tomas Eriksen a etnicidade é um aspecto de relacionamento e suas

fronteiras não correspondem necessariamente às fronteiras culturais, as quais não são

precisas por sua vez. O propósito é investigar como algumas pessoas podem ser

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classificadas como étnicas e outras não; onde se estabelece o final de um grupo étnico e

o começo de outro.

A etnicidade vincula semelhanças e diferenças entre categorias de pessoas,

complementarização e dicotomização. Nesse sentido, pode-se perceber que o critério

que constitui a etnicidade varia. Barth, por exemplo, delimita o status étnico com

fundamento em uma permanência duradoura e em uma clara identidade cultural,

baseada em um parentesco ou semelhança imaginada (ERIKSEN, 1993).

Na perspectiva de Barth, a dicotomização pressupõe que estar diante dos

“outros” é estar frente ao estranho: as formas de compreensão são limitadas e a

interação é restrita a setores específicos. Porém, a manutenção das fronteiras implica,

necessariamente, situações de contato entre indivíduos de diferentes culturas. É

justamente a interação, em algumas situações da vida social e não em outras, que

assegura a manutenção de elementos culturais que não se modificam. As “diferenças

culturais persistentes” são comportamentos marcantes, específicos e mantenedores de

cada grupo étnico. As relações entre os grupos são regidas por uma série de prescrições

e interdições, as quais limitam o tipo de relação que pode haver entre os grupos e os

indivíduos nas diferentes situações sociais, e ainda que situações são ou não permitidas.

Integrar um grupo étnico é ter uma identidade étnica imperativa, da qual não se pode

escapar, pois forma estereótipos acerca de tal identidade.

Partilhar a perspectiva sobre grupos étnicos possuírem fronteiras culturais

definidas traz dois problemas, apontados por Eriksen sobre o argumento de Barth:

primeiro, ao estabelecer uma falsa proposição no sentido de aparecerem como entidades

isoladas fatores primordiais dos grupos, quando ao contrário, sob a perspectiva destes, a

cultura pode ser vista como implicação de processos sociais de longo prazo, ou deles

resultante. Segundo, as definições baseadas nesse tipo de noção de cultura estabelecem

um pressuposto enganoso: a de que a manutenção de fronteiras culturais não é

problemática. Considera Barth ser necessário levar em conta tanto a manutenção quanto

as conseqüências das fronteiras étnicas; os grupos estão em contato contínuo e sob este

ponto de vista o fato persistente da variação cultural deve ser considerado (1993).

A abordagem de Barth ressalta que a acepção de um grupo étnico deve partir da

sua perspectiva êmica e que a etnicidade é uma descrição categórica que classifica os

indivíduos em termos de sua “identidade básica, mais geral”. Sob esta visão, a

descontinuidade entre os grupos é mais social do que cultural. O grupo étnico é definido

por conta das suas relações com os outros e é reforçado pela delimitação das fronteiras

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que, por sua vez, são também produtos sociais, podem ter importância variável e sofrer

mudanças ao longo do tempo. Tanto as formas de organização social quanto a cultura

podem mudar, sem que isso implique remoção da fronteira étnica. Algumas vezes,

fronteiras culturais adormecidas são acionadas por conta de situações específicas, em

que são apresentadas diferenças culturais relevantes, que se presumiam anteriormente

irrelevantes. Portanto, a variação cultural pode ser um efeito e não uma causa das

fronteiras. Assim, diferenças culturais se relacionam com etnicidade apenas se tais

diferenças forem importantes na interação social (ERIKSEN, 1993).

No caso londrino, os diversos grupos imigrantes, dispersos na cidade, por

contingências da organização social encontrada, se viram submetidos a residirem em

áreas degradadas, ocupar habitações precárias, enfrentar a necessidade de se colocar no

mercado de trabalho, conviver em meio a grupos oponentes e inospitaleiros e se

acomodar na vida social, passaram a se organizar de diferentes maneiras, a fim de ali se

estabelecerem.

Ao falar em um carnaval típico, onde se representam simbolicamente

determinadas nações ou grupos, é perceptível a existência de um número de símbolos

culturais acionados e utilizados como sinais diacríticos. O emprego das fantasias,

confeccionadas de determinadas maneiras e a partir de certos materiais, o uso de

músicas características e a utilização de instrumentos musicais, além das comidas

servidas naquele período, materializam um amplo processo histórico e social.

Determinadas imposições contextuais – inclusive a relação enfrentada frente a

grupos como os Teddy Boys, ou a Oswald Mosley’s White Defense League -,

colocavam o grupo numa situação de opressão, levando-o a elaborar, naquela

conjuntura e de acordo com seus backgrounds, maneiras que pudessem fazê-lo mais

aparente e reconhecido. Impelidos a criarem alternativas, passaram a realizar encontros

e a criarem associações que buscavam reforçar suas semelhanças e os aproximar.

A festividade organizada pela West Indian Gazzete, caribbean carnival, em

1959, aparece como centelha inicial de um processo que estabeleceria marcas, símbolos

e principalmente, um novo grupo social. Uma nova comunidade imaginada32 que, ao

longo do tempo, utiliza símbolos culturais como elementos distintivos do grupo e ao

mesmo tempo como objetos e elementos passíveis de implicarem na sua valorização.

32 Como proposto por Anderson (2006).

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A participação de indivíduos de diferentes grupos sociais no carnaval é

crescente, mas nem por isso os elementos culturais deixaram de ser reconhecidos como

étnicos. Pelo contrário, diferentes símbolos remetem às nações a que se referem – como

os instrumentos e fantasias peculiares às escolas de samba brasileiras e os steelpans e

costumes referentes ao carnaval caribenho. Mesmo havendo mudanças nas relações e na

organização social carnavalesca, os grupos seguem reconhecidos como étnicos, distintos

e com fronteiras mais ou menos flexíveis, que os distinguem e separam. Como aponta

Eriksen, fronteiras étnicas são antes sociais e não necessariamente territoriais. Fronteiras

entre grupos são mantidas a despeito dos fluxos contínuos de informações, interações,

trocas e inclusive pessoas.

Parece a Barth que a existência de características étnicas, consideradas básicas, é

o ponto de partida para a propagação de outras características culturais que tornam os

grupos distintos. Em sociedades poliétnicas, possivelmente os atores sociais agem de

modo a manter tais dicotomias e diferenças. Assim, a interdependência e a

complementaridade dos grupos se dá de acordo com o sistema social abrangente do qual

fazem parte e onde se estabelecem as “áreas de articulação”. Sistemas poliétnicos

complexos são baseados na existência de diferenças culturais padronizadas e

estereotipadas, importantes e complementares. Características que devem ser estáveis

para, apesar dos contatos interétnicos, os grupos interagirem com base nas identidades

étnicas (2000).

O foco dos estudos étnicos se coloca sobre a relação entre os grupos, a partir do

estabelecimento do conceito de fronteira étnica, uma linha divisória invisível entre eles.

Os diferentes grupos se relacionam e marcam suas identidades frente ao outro. Por um

lado, a etnicidade pode funcionar como categoria descritiva ou como rotulação para

classificar indivíduos; por outro, a organização étnica pode arranjar aspectos

fundamentais da vida do indivíduo e ter grande importância social (ERIKSEN, 1993).

Exponho três análises paradigmáticas, pioneiras e inspiradoras acerca das

relações sociais baseadas em diferenciações étnicas em sistemas sociais complexos.

Proponho que, ao lermos as considerações acerca das situações estudadas, nos

remetamos, permanentemente, ao caso londrino. Uma situação onde também se

apresentam: mobilidade e fluxos sociais e culturais, estabelecimento de categorias

étnicas, conflitos e complementaridades entre indivíduos e grupos. Utilizo os conceitos

relativos à raça e cor do mesmo modo como os autores os empregam em seus textos.

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O primeiro deles é o importante estudo sobre relações sociais entre diferentes

grupos étnicos, cuja pesquisa apresentada em “Análise de uma Situação Social na

Zululândia Moderna” (1958), se dá em uma seção territorial da África do Sul. A análise

situacional se estabelece a partir da observação da cerimônia de inauguração de uma

ponte. O autor ressalta, entretanto, que padrões observados naquela área são parecidos

com os de qualquer outra reserva daquele país.

A cooperação entre os grupos zulu e europeu, com a finalidade da inauguração

da ponte, ocorria pela primeira vez, colaboração interpretada como a explicitação de

uma comunidade única, com relações e modos de comportamentos próprios. A

concomitância de ambos os grupos explica-se pela união em torno de um interesse

particular comum.

Na época em que Gluckman permaneceu na Zululândia, cerca de dois quintos

dos africanos da África do Sul moravam em áreas de reservas ao longo do país. Poucos

europeus - administradores, técnicos do governo, missionários, comerciantes e

recrutadores - viviam em tais áreas. Os homens africanos que moravam nas reservas

muitas vezes migravam para trabalharem para industriais, fazendeiros brancos ou para

serem empregados domésticos. Ao final do período trabalhado, retornavam às suas

casas.

A cerimônia de inauguração da ponte é considerada importante, justamente por

ter envolvido grupos diversos. O autor nomeia o acontecimento como uma situação

social, pois considera que “uma situação social é o comportamento, em algumas

ocasiões, de indivíduos como membros de uma comunidade, analisado e comparado

com seu comportamento em outras ocasiões” (GLUCKMAN, 1958, p. 238).

A organização da cerimônia foi baseada pelo limite de determinadas tradições e

também pela inserção de inovações de acordo com as condições locais. Os grupos se

dividiam com base na questão racial e as relações entre eles eram marcadas por

separação e reserva. Era impossível confrontarem-se em condições de igualdade.

De acordo com Gluckman, a cisão entre os grupos era em si o fator de sua

maior integração em uma só comunidade, baseada em posições de dominância e

dominação. Por meio de tais relações, pode-se apresentar separação, conflito e

cooperação em formas de comportamentos socialmente definidos.

Em situações onde brancos e negros necessitavam se associar, adaptavam seus

comportamentos dentro de padrões socialmente estabelecidos. Há uma maneira regular

no que diz respeito à reação de um grupo frente às práticas costumeiras do outro.

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Alguns costumes zulus, assim como europeus, estavam sempre marcados pelas relações

que transpassam os grupos - os zulus sob a égide de um governo europeu, e a cultura

européia marcada por sua inescapável relação social com os africanos.

O autor enfatiza que, dentro da complexidade das relações que conectam zulus e

europeus, os integrantes dos dois grupos podiam, ainda, pertencer a diferentes

segmentos. Cada grupo abrangente estava subdividido em conjuntos secundários,

formais ou não, que levavam a alianças distintas, de acordo com interesses, valores e

motivos peculiares a cada situação. As pessoas modificavam suas participações de

acordo com as situações.

O autor deixa claro o sentido situacional da evocação de identidades. Os

indivíduos participam de situações em posições que os permitam estar em consonância

com os motivos e valores que o influenciaram em tal circunstância. “Os indivíduos

podem, assim, assumir vidas coerentes através da seleção situacional de uma miscelânea

de valores contraditórios, crenças desencontradas, interesses e técnicas variadas” (1958,

p. 261).

Por estarem, os dois grupos, inseridos em um sistema social em que ocupavam

lugares socialmente definidos, com fronteiras que os mantinham em posições opostas, o

grupo zulu, na posição de dominado, apresentou resistências ao sistema. A

contraposição às inovações trazidas pelos europeus, levou ao renascimento de antigos

costumes e provocou intensas mudanças na estrutura social local - o intento das

oposições era angariar vantagens para o grupo zulu. Por outro lado, o governo europeu

passou a estimular tal atividade, a fim de fortalecer suas políticas de segregação e

desenvolvimento paralelo.

Em relação aos grupos sociais, quando indivíduos possuem culturas

características e quando um conflito se estabelece, aparecem novos tipos de cooperação,

que possibilitam diferentes formas de relação entre os envolvidos e geram novos grupos

e posições individuais. Tais movimentos ressaltam aspectos culturais, ou uma cultura

em particular, a fim de estabelecer seus limites e, dessa maneira, expressar e definir o

foco de seus interesses. As mudanças sociais são proclamadas em termos de cultura.

Os movimentos sociais, segundo tal perspectiva, aparecem na superfície das

estruturas sociais, sob novas configurações, e constituem valores mediante os quais os

integrantes do movimento racionalizam forças e interesses, mesmo sem deles terem

consciência - em todas as sociedades, as culturas tendem a se manter. Provavelmente

cada costume continuará a ser praticado, assumindo tanto novas formas de expressão

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quanto desenvolvendo novos valores sociais que estejam de acordo com o sistema

social do qual faz parte, também em mudança. Em qualquer sociedade que passa por

transformações, “os conflitos entre os grupos tendem a ser equilibrados pela cooperação

dos membros destes grupos em outros agrupamentos” (GLUCKMAN, 1958, p. 294).

Em sua tese, Edmund Leach (1996) procura demonstrar que sistemas sociais

geralmente não são estáveis e, com o intuito de subsidiar tal argumentação, analisa

rituais e relações entre grupos sociais da Região das Colinas Kachin. Em sua visão, a

cultura é o produto de um acidente histórico e aparece como forma de uma determinada

situação social. Por tal razão, diversidades culturais serão expressas por meio de ações

rituais compostas por traços e elementos culturais, como vestimentas e língua, para

sinalizarem as diferenças. Os elementos que compõe o ritual aparecem como conjuntos

delimitados de símbolos33.

Para Leach, ambientes sociais, em constante mudança, assinalam o fato de as

sociedades reais existiram no tempo e no espaço. Todas as sociedades são processos no

tempo, e as mudanças resultantes desses processos podem ser coerentes com a

continuidade da ordem formal já existente, ou podem fomentar alterações que

efetivamente reflitam mudanças nas estruturas sociais formais.

O uso das tradições geralmente é empregado como justificativa para

determinadas situações sociais, como casos de brigas, validação de costumes, ou

acompanhamento de performances religiosas. Para o autor, cada conto tradicional terá

diferentes versões, dependendo do tipo de interesse que esteja inclinado a legitimar.

Portanto, não se pode dizer que haja uma “versão autêntica” das tradições: é importante

ter em mente que, além da diferença entre os grupos envolvidos nas situações, há

diferenças internas em cada grupo, os indivíduos também não são uniformes. Em tais

processos, os atores se defrontam permanentemente com uma série de alternativas e

provavelmente, sob tais circunstâncias, fazem escolhas de acordo com as vantagens que

cada uma delas possa lhes oferecer.

Sob a ótica de Leach, o tipo de relação entre a estrutura social e a cultura34

decorre de tal fato - as situações culturais são dadas a partir de acidentes da história, e a

33 Para uma reflexão acerca dos símbolos e rituais, ver capítulo II. 34Leach (1993) utiliza a definição de Firth (1951, p. 27), onde os conceitos de cultura e sociedade são absolutamente distintos. “Se se considera a sociedade como um agregado de relações sociais, então a cultura é o conteúdo dessas relações. A sociedade encarece o componente humano, o agregado de pessoas e as relações entre elas. A cultura enfatiza o componente dos recursos acumulados, tanto imaterial quanto material, que as pessoas herdam, empregam, transmutam, aumentam, transmitem”.

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cultura fornece a “roupagem” das situações. A manutenção das diferenças culturais e a

insistência nessas diferenças podem fazer que as ações rituais sejam expressivas no que

diz respeito às relações entre grupos de culturas diferentes. A forma é cultural e a

expressão é ritual.

Uma vez mais, a questão da diferenciação interna dos grupos é aparente. O autor

considera que a questão é concernente às dinâmicas sociais e aos diferenciais distintivos

de uma categoria e da outra, que não são fixos. Em relação às referidas tribos o autor

salienta que muitas destas, encontradas por antropólogos, não passam de ficções

etnográficas, no sentido de eles terem pressuposto a existência de fronteiras nítidas,

quando na realidade tal não acontecia.

Outro estudo esclarecedor e, de acordo com seu autor, inspirado nos contornos

do anterior, é o “The Kalela Dance – Aspects of Social Relationship among Urban

Africans in Northern Rhodesia”, de Clyde Mitchell (1956), onde é apresentada a

formação, ou reestruturação de grupos étnicos em contextos urbanos industriais. O autor

apresenta a dança Kalela como um elemento de agregação de indivíduos pertencentes a

determinados grupos ou tribos, e pretende compreender inteiramente seu significado.

Ao buscar aspectos de relacionamentos entre os africanos na área do Cooperbelt,

considerou que seria, antes, necessário compreender as relações entre os brancos e os

negros que interagem em tal situação, do mesmo modo que Gluckman, contextualizam

a situação observada.

Nas cidades recém criadas, situações sociais específicas que nelas se

desenvolviam reforçavam os sentimentos tribais. A mão-de-obra para o trabalho,

angariada em regiões vastas, no Cinturão de Cobre era recrutada, principalmente, em

certas localidades. O significado do tribalismo nas relações cotidianas era visível,

podendo-se observar, em diversas ocasiões, a oposição entre tribos (MITCHEL, 1956).

Quando o indivíduo chegava à cidade, de sua vila ou tribo, nenhum dos padrões

anteriores, como afinidade ou parentesco, era seguido, principalmente no que diz

respeito ao estabelecimento das moradias: os indivíduos eram distribuídos de acordo

com listas de espera em seus postos de trabalho. Cada vez que mudavam de emprego,

mudavam também de local de moradia; dessa maneira, as tribos eram desarticuladas e

espalhadas pelo tecido urbano. Com a composição do distrito em constante mudança,

havia também poucas chances de se estabelecerem estruturas comunitárias definitivas.

A conjuntura colocava em relevo a distinção entre os povos. A língua era o fator

fundamental de diferenciação, mas vestimentas, alimentação, músicas e danças também

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forneciam indicadores, ou símbolos de pertencimento étnico. Classificar por tribos

permitia a um africano qualificar qualquer outro africano - ambos em uma situação onde

os contatos deviam ser, por necessidade, superficiais. “Definir a situação” permitia a

cada indivíduo saber como agir em relação ao outro, a partir da categoria na qual aquele

é classificado. Mitchell ressalta, todavia, que quanto maior a distância entre um grupo e

outro, social e geograficamente, maior é a tendência de reconhecê-lo como uma

categoria indiferenciada e colocá-lo sob uma rubrica geral, apesar de abarcarem

diferentes grupos e pessoas.

Especificar a categoria a que uma pessoa pertence pressupõe um reconhecimento

preliminar em relação a ela. Assim, similaridades culturais e familiaridades são capazes

de unir pessoas em um contexto onde existem tantos desconhecidos, mesmo que, em

uma situação anterior, ocorressem hostilidades entre eles. O autor relaciona dois

princípios que funcionavam como classificadores das relações entre membros de tribos

distintas em uma área urbana: a similaridade e a familiaridade cultural. Porém, em um

local onde fronteiras culturais são pouco nítidas, as culturas tendem a se misturar,

fazendo com que, na prática, estes dois princípios estejam sobrepostos.

A categoria mais significativa nas relações sociais entre os africanos era o

“tribalismo”; ela se referia, no entanto, a agrupamentos formados com base em grandes

diferenças culturais. Essa tendência de reduzir a diversidade de tribos em poucas

categorias aparecia como parte de um amplo processo sociológico, por meio do qual as

relações superficiais entre os povos eram determinadas por categorias principais, dentre

as quais não se reconheciam as diferenças.

As distinções étnicas específicas da situação rural, quando no contexto urbano,

eram prontamente substituídas ou modificadas, pela multiplicidade de tribos que

estavam em contato. As distinções étnicas tinham, portanto, na cidade, sua importância

exacerbada e, a partir daí, formavam uma base sobre a qual os indivíduos interagiam

com integrantes de outros grupos. No caso de haver um retorno ao contexto rural, as

categorias peculiares a esse espaço viriam à tona novamente.

No contexto rural, falar em tribo indicava a referência a um grupo de indivíduos

integrantes de um mesmo sistema político e social, onde eram compartilhados crenças e

valores. Por outro lado, ao falar em tribalismo em áreas urbanas, a referência não fazia

alusão a um grupo de pessoas unidas por um dado sistema social, mas sim, a uma

subdivisão de pessoas em termos de seus sentimentos em relação ao pertencimento a

certas categorias comuns, estabelecidas a partir de discernimentos étnicos. Neste

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sentido, o tribalismo aparece como categoria de interação que faz parte de um sistema

mais amplo.

No Cinturão de Cobre, o tribalismo fornecia um mecanismo por meio do qual as

relações sociais com estranhos podiam organizar-se segundo a situação social fluida;

dessa forma, era uma categoria na interação social cotidiana. Em um local onde muitos

homens, de diversas tribos, estavam alocados em uma área restrita, os sindicatos, o

Congresso Nacional Africano e instituições afins reuniam africanos -

independentemente de sua origem tribal - e operavam em um campo no qual estavam,

fundamentalmente, em oposição aos europeus.

A dança Kalela se apresenta como o resultado contemporâneo de diversos

aspectos daquela sociedade, aparecendo como uma característica da vida urbana no

sudoeste africano. A dança enfatiza a unidade dos Bisa frente às demais tribos da área.

Mitchell considera um aparente paradoxo a Kalela ser tribal, enfatiza (a dança) as

peculiaridades da tribo, e ao mesmo tempo utiliza, na linguagem de suas canções e nas

vestimentas dos dançarinos, elementos retirados da vivência urbana, o que tende a

abafar as diferenças tribais e a revelar uma mobilidade social fictícia.

“Misturando caricaturas e roupas dos executivos superiores brancos, textos de cantos de caráter jocoso interétnico, ritmos e sons militares do exército colonial britânico – que, reunidas, produzem uma dança “étnica”, na medida em que a “tribo” (...) se tornou uma categoria híbrida própria ao sistema social do Cooperbelt”35.

Três situações são apontadas por Mitchell quando trata de afiliações tribais.

Estas podem se dar: em locais onde a população foi retirada de muitas tribos diferentes,

algumas pessoas terão vindo de mesmo local ou áreas correlatas, possuindo um mesmo

background geral podem organizar suas relações com base em padrões comuns; quando

se trata de relações com outras tribos, características como língua e estilo de vida

permitem aos indivíduos enquadrarem uns aos outros; e por fim, onde o pertencimento

tribal pode funcionar como meio de se aproximar da autoridade local. O tribalismo

permanece sendo uma categoria importante na interação social no campo social das

relações entre os africanos, embora este campo conviva simultaneamente com muitos

outros.

35 Angier, 2001, p. 3.

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Eriksen ressalta que o estudo acerca das relações sociais no Cinturão de Cobre é

esclarecedor, pois indica que, em casos como o descrito, a categoria “nós” pode ser

expandida ou contraída de acordo com as circunstâncias (1993), de forma semelhante

Gluckman também enfatiza essa questão. Cada indivíduo pode possuir identidades e

status diversos, acionados a partir de situações empíricas, quando e como as identidades

étnicas se tornam relevantes.

A questão ressaltada por Eriksen, é que fatos como o relatado, exemplificam a

fluidez e ambigüidade da vida social, podendo ser as categorias sociais, de certa forma e

até certo ponto, manipuladas pelos próprios indivíduos. Portanto, a etnicidade é um

aspecto relevante para a vida social em contextos onde ela “faz a diferença” (1993).

Tanto indivíduos como pequenos grupos podem mudar lealdades, moradia,

formas de subsistência e políticas, por conta de situações econômicas e políticas em

relação à sua posição original e em meio ao grupo que o assimila. Ainda que tais

situações modifiquem as identidades étnicas, elas não afetam a dicotomia entre os

grupos. Em diferentes ocasiões, as performances utilizadas pelos grupos podem, ou não,

serem favorecidas. Barth lembra que, quando os limites que tornam as performances

cabíveis são ultrapassados, as identidades étnicas tendem a não se manterem, pois as

performances aparecem de forma inadequada (2000).

Recorro ao exemplo, apresentado por Barth (1995), de uma situação, que ocorre

na Noruega e diz respeito aos grupos de imigrantes paquistaneses, na qual pessoas de

uma determinada nacionalidade se agrupam como semelhantes por conta da

especificidade de serem do Paquistão. Uma nova identidade é provocada e construída

em solo estrangeiro, ela estabelece (procura estabelecer) modos de ação para seus

integrantes, ativos nas situações inter-grupos e também dentro do próprio grupo.

A experiência comum a todos os paquistaneses, apesar das diferenças existentes

entre eles, é o fato de serem diferentes dos demais noruegueses e convergirem a uma

comunidade paquistanesa, que serve como refúgio, solidifica a rede de solidariedade

entre eles e ajuda a construir uma auto-imagem mais positiva. Barth considera que, sob

tais circunstâncias, forma-se o mito central da etnicidade (o non sequitur36), que induz o

“nós” - ao compartilhar inúmeras diferenças em si próprio, “nós” minoritário, em

contraposição ao “eles" dominante -, a aceitar, ou acreditar, que possui semelhanças

36 Non sequitur: “inferência que não deriva das premissas; falácia”. Conforme esclarece Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, para melhor evidenciar o problema.

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entre si. Semelhanças estas que estabelecem uma cultura compartilhada e oposta à

“deles”.

A tendência é haver, dentro da comunidade “nós” e dos grupos étnicos em geral,

formas de controle e mecanismos de pressão coletiva que modelem os comportamentos

e as atitudes dos seus membros (BARTH, 1995). Cada grupo possui diversidades

internas, em relação às identidades individuais, que também podem mudar; estas se

estabelecem a partir da relação entre o conjunto de características herdadas das culturas

“originais” e as culturas atuais, gerando variações e ambigüidades. Apesar da

possibilidade de uma grande variação objetiva, do feedback entre as experiências

individuais e das categorias empregadas, são mantidas dicotomias étnicas simples e

reforçados diferenciais acerca dos comportamentos estereotípicos. Isso porque os atores

lutam para manterem as definições convencionais no curso das incidências sociais

(BARTH, 2000).

Mudança e fluxo são constantes sobre a cultura, porém as variações não são

ilimitadas, pois aquela (a cultura) está submetida a formas de controle e estas

(variações) são balizadas por tais mecanismos. A cultura da população imigrante –

Barth se refere às crianças paquistanesas, mas podemos considerar outros tipos de

imigrantes e sociedades - é balizada por três artifícios: processos de controle,

silenciamento e apagamento das experiências.

Processos de controle podem se apresentar na tentativa da diminuição dos

contatos interétnicos, fontes permanentes de conflito, por exemplo, quando os pais

negam aos filhos a possibilidade de freqüentarem a casa de colegas de escola

noruegueses. No silenciamento, as pessoas tendem a esconder as experiências que

passam junto a indivíduos de outros grupos étnicos, tentando minimizar os contatos e

experiências intergrupais, o que pode gerar sérios conflitos. Se este mecanismo não

funciona, podem recorrer ao apagamento ativo, quando efetivamente negam tanto a

participação em determinadas atividades ou contatos, quanto a possibilidade de falarem

de tais experiências (BARTH, 1995).

Não posso dizer que o mesmo ocorra no caso dos imigrantes das Índias

Ocidentais, em relação aos princípios indicados por Barth, entretanto, podemos observar

similaridades no que diz respeito à formação de um grupo único, diferenciado

internamente, que reúne pessoas cujo pano de fundo comum é sua nacionalidade.

Caribenhos que vão e são estimulados a ir para a Inglaterra não são enquadrados

exatamente à nacionalidade comum, mas sim a uma categoria geral, como se. O

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pertencimento a este espaço imaginário que compreende, abriga e situa os diferentes

nacionais, incentiva o compartir de determinados elementos simbólicos, que podem

configurar sinais diacríticos, utilizados e matizados de acordo com as situações.

Ao chegarem à cidade de Londres, como força de trabalho para serviços não

especializados, geralmente procuravam bairros onde os preços de habitações não eram

caros: assim era o bairro de Notting Hill, uma área degradada e basicamente composta

por uma série de cortiços e moradias deterioradas (slums), que não possuíam água

encanada ou banheiros individuais. Ao se estabelecerem em tais moradias, ficavam à

mercê dos landlords, proprietários ou senhorios, que eram responsáveis pelos aluguéis,

e os submetiam a uma série de constrangimentos e opressões, podendo inclusive retirá-

los do espaço que estavam ocupando, caso atrasassem os aluguéis, ou agissem de modo

que não os agradasse, em alguns, casos nem mesmo eram aceitos como inquilinos.

De maneira consentânea, ocorria uma série de reações de grupos britânicos,

formados principalmente por uma classe média trabalhadora empobrecida, que se

opunha à presença dos imigrantes e tentava, de forma ostensiva, enviá-los de volta “para

casa”. Grupos nacionalistas deram início à série de ataques racistas, que se espraiaram

pela Inglaterra nos finais dos anos 50, mais especificamente por volta de 1958 - época

em que não havia leis contra práticas racistas naquele país. Uma série de reações se

seguiu até que as autoridades locais conseguissem acalmar tais manifestações violentas.

Na seqüência desses fatos, os grupos vindos do Caribe, marginalizados e

colocados sob uma mesma categoria indiferenciada – de imigrantes west indians

(expressão usada para nomear antilhanos ou caribenhos) - intensificaram sua união.

Assim, além de diversas atitudes auto-afirmativas, surgiu a proposta de realizarem um

carnaval que reunisse as pessoas das diferentes ilhas e as colocasse em um espaço de

reunião, confraternização e resistência.

Vindos das diversas ilhas e dispostos em uma nova situação urbana, constroem e

vêem ser construídas novas identidades. Em suas conjunturas anteriores, reportavam-se

às identidades nacionais em oposição às demais ilhas, entretanto, ao se depararem, com

um contexto onde aparecem em oposição ao grupo dominante, por serem vistos como

west indians, em uma categoria geral de semelhança, passam, de certa forma e em

algumas situações, a se ver da mesma maneira e a se apresentar como um grupo único.

O ritual desempenhado em Notting Hill materializa e ressalta o que é percebido

como “semelhança e igualdade” e o que se entende como “diferença”: no que diz

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respeito ao que o “outro” percebe acerca deles, ao que eles entendem por si próprios, e

também em relação à maneira pela qual se colocam frente ao “outro” majoritário.

Com o passar dos anos e com a permanência e o crescimento do episódio

carnavalesco, os grupos passaram a ter maior visibilidade, mas nem por isso deixaram

de ter problemas e conflitos com o dominante. Os carnavais “originais” foram

transplantados, por assim dizer, para uma outra sociedade e ali se estabeleceram em

relação a ela. Em consonância e por conta daquela realidade social, gerou-se mais um

peculiar carnaval.

Atualmente, no momento das apresentações durante o período do carnaval,

também aparecem outros grupos étnicos, como chineses, indianos e brasileiros, que

podem exibir, durante todo o tempo, bandeiras dos países de origem. Pessoas de um

mesmo grupo caribenho podem levar bandeiras de diferentes nações do arquipélago.

Apesar das dificuldades enfrentadas naqueles tempos, das contendas presentes

na vida social inglesa e ainda, de seus membros nem sempre serem tratados com

igualdade, (apesar de ser baseada em normas que devem ser igualmente seguidas e

quando não, igualmente julgadas), algumas das pessoas entrevistadas consideraram

Londres, em sentidos como serviços públicos, respeito aos direitos individuais,

qualidade de vida, o melhor lugar para se viver.

Processos sociais como os citados, na Noruega e em Londres, corroboram na

criação de descontinuidades culturais e

“de uma isomorfia relativamente maior entre o social e suas divisões, e o cultural com sua tendência inconveniente em transbordar, variar e misturar. O campo desordenado de variações e interrupções ocasionais das descontinuidades resultante é adicionalmente distorcido em termos conceituais pelo mito da homogeneidade e compartilhamento cultural, de modo a permitir que ele ofereça um melhor mapeamento e justificativa para a construção das identidades sociais e dos pertencimentos ao grupo” 37

Assim sendo, alguns itens culturais são selecionados e utilizados como marcas

distintivas das identidades étnicas, e a variação cultural é manipulada e serve como base

dos diferentes grupos como fenômeno social. A construção do pertencimento a um

grupo étnico é realizada sem fazer referência à real diversidade cultural,

37 Barth, 1995, p. 9.

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“mas por meio de um mito exagerado de contraste e compartilhamento (...), dramatizado por (...) emblemas culturais contrastivos e um certo grau de seleção, relatos históricos de situações nas quais grupos (e não ‘culturas’) entraram em conflitos e praticaram injustiças uns contra os outros”38.

Sob a perspectiva de Eriksen, as identidades étnicas são cunhadas a partir de

seleções situacionais e de imperativos impostos de fora, são uma inter-relação entre

escolhas e constrangimentos ou obrigações impostos aos atores. O caráter das

identidades é relativo e situacional, resultante da complexa relação entre variações

culturais e formações de grupos étnicos. Assim, diferenças culturais e processos de

manutenção de fronteiras advêm de aspectos da organização social e não, de “diferenças

culturais objetivas” (1993).

No caso das situações onde se encontram minorias étnicas, provavelmente há

traços da rejeição fomentada pela população receptora, como no caso da imigração

caribenha para a Inglaterra. Porém, há atividades que colocam em contato e interação os

grupos. Os valores e facilidades organizacionais, entretanto, são díspares, e geralmente

os objetivos mais valorizados não estão dentro do campo cultural e das categorias das

minorias.

Fredrik Barth avalia que é importante analisar os agentes das mudanças - quando

há mudanças no grau das diferenças culturais e na sua correlação com as identidades

étnicas - observando-se as estratégias que aparecem como significantes, e quais

implicações organizacionais fomentarão tais escolhas.

Em busca de novas formas de participação na sociedade mais ampla, os agentes

provavelmente têm maior acesso aos bens e organizações daquela e podem ser

chamados de “novas elites”. O autor identifica algumas estratégias que os citados

agentes podem seguir e seus prováveis resultados: a) tentarem incorporar-se ao grupo

cultural e à sociedade dominante, o que acarretará a perda da diversificação interna e a

tendência a serem conservadores, pouco articulados e a estarem situados em baixa

posição hierárquica na sociedade; b) participarem em alguns setores da sociedade

quando possível, e quando não, a se referirem aos diferenciais culturais de seu grupo,

aceitando o status de minoria, o que implica o não-surgimento de uma organização

poliétnica explicitamente dicotomizada; e c) enfatizarem sua identidade étnica e, dessa

forma, criarem e ampliarem posições e padrões, a fim de atenderem novos objetivos,

38 Ibidem.

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resultando no que se pode observar como os movimentos nativistas e os novos Estados

(BARTH, 2000).

Algumas formas, mediante as quais as identidades étnicas podem assumir maior

relevância organizacional dentro do novo contexto no qual se inserem, são descritas

pelo autor como tendo duas vertentes possíveis. Na primeira, em geral, os inovadores

optam por ressaltar determinados níveis de identidade, dentre os conhecidos no interior

das sociedades tradicionais. Algumas dessas características são potencialmente

ajustadas à finalidade de se tornarem referências básicas para o grupo. A possibilidade

de serem aceitas por outras pessoas, além de algumas questões táticas, definirão qual

delas será adotada. Por outro lado, as formas pelas quais as identidades étnicas assumem

relevância criam variações, tanto na maneira pela qual o grupo está organizado, quanto

na articulação interétnica. Movimentos contemporâneos, baseados no campo político,

não são menos étnicos: são maneiras de se tornar as diferenças culturais relevantes, no

que diz respeito ao aspecto organizacional, bem como de se criarem formas de articular

os grupos dicotomizados.

A direção da mudança cultural é afetada por essa opção do grupo étnico pelo

caráter de oposição política. Tende, assim, a se tornar estruturalmente semelhante aos

demais partidos, com vistas a estabelecer um debate de fato, deixando as diferenças se

estabelecerem por meio de alguns sinais diacríticos. Por conta do estabelecimento de

tais sinais, os inovadores se ocupam em selecionar quais marcas identitárias serão

utilizadas e em afirmá-las em detrimento de outras. É provável que se atenham ao

reavivamento de aspectos culturais tradicionais e que estabeleçam tradições históricas, a

fim de justificar e aclamar as identidades adotadas (BARTH, 2000).

Eriksen, por sua vez, questiona o fato de - ao terem os grupos étnicos, ou

categoria, a noção de uma cultura comum compartilhada - tenderem a se reportar a uma

ancestralidade comum, como justificativa para sua unidade - perguntando até que ponto

se poderia recuar, para falar de uma ancestralidade compartilhada. Traços culturais

tendem a ser utilizados como provedores de identidade e legitimam, por sua vez,

reivindicações por direitos, ou estratégias na competição por bens ou recursos escassos

(1993).

Noções de origens comuns são, em geral, cruciais para o estabelecimento de

uma identidade étnica particular; interpretações da história, portanto, são fundamentais

para ideologias que procuram justificar, reforçar e manter identidades étnicas - assim o

passado é utilizado como fornecedor de sentido para o presente. A partir daí, o autor

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argumenta que classificações étnicas, além de produtos sociais, são também culturais, e

estão diretamente relacionadas às necessidades dos classificadores. Funcionam como

ordenadores do mundo social e criam mapas cognitivos padronizados acerca de

categorias relevantes de “outros”. Estas classificações podem ser consideradas como

maneiras de criar ordem no universo em que estão inseridas. Sistemas de classificação e

princípios de inclusão e exclusão criam ordem; o tipo de ordem criada, porém, está

sempre relacionado a determinados aspectos de amplos sistemas sociais (ERIKSEN,

1993).

O autor refere-se ao Cinturão de Cobre, argumentando que, naquela situação,

indivíduos pertencentes a diferentes “tribos” foram englobados em categorias gerais. Na

Europa, da mesma forma, é comum pensar a respeito de “africanos”, ou de “índios

norte-americanos”, como categorias étnicas, sem levar em conta que cada um desses

“grupos” compreende muitas categorias étnicas mutuamente exclusivas.

Uma classificação genérica ocorre em relação aos caribenhos. O

estabelecimento, no passado, de categorias que perduram até hoje, como west indians,

foi imposto a tais grupos. No ambiente social londrino, são colocados sob esta mesma

categoria étnica e assim classificados. Passam a ter interesses políticos compartilhados e

a realizar atividades com objetivos comuns, também em virtude do tratamento idêntico

e estigmatizante,que recebem. Um elemento presente na construção de tal identidade foi

a aceitação, ou melhor, a utilização de tal classificação pelos próprios integrantes do

grupo em determinadas situações. Eventualmente apresentam-se sob tal papel, como no

caso do carnaval estudado, mas sem deixar de lado a lealdades às suas categorias de

origem (trindadenses, barbadianos, jamaicanos, etc), que aparecem em diferentes

situações em Londres, e no retorno a seus países de origem, por eles tratados como

home”.

A categoria “imigrante” pode englobar, como ocorre na Inglaterra, categorias

étnicas altamente discrepantes, podendo alocar grupos chilenos, vietnamitas,

caribenhos, etc. Eriksen, reforçando minhas considerações anteriores, ressalta a

utilização da categoria west indian: ela vem sendo aplicada há décadas aos imigrantes

das diversas ilhas do Caribe, ainda que seu background cultural seja bastante diferente.

Sob essa perspectiva, são considerados, mas necessariamente não se consideram,

membros de um mesmo grupo étnico. Eventualmente, essa categoria atributiva britânica

pode tornar-se parte de sua própria identidade, o que os levaria a considerarem a si

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próprios como west indians, ainda que, como dito anteriormente, tal classificação não

tenha a menor relevância em seus países de origem (1993).

O autor usa o termo “anomalias étnicas”, seguindo Mary Douglas, para se referir

a grupos, categorias ou indivíduos aos quais considera difícil atribuir determinada

identidade étnica. Pode aparecer algo como “nem isso, nem aquilo” (neither-nor), ou

“ambos, e” (both-and), dependendo da situação. Segundas e terceiras gerações de

imigrantes, na Europa, podem constituir um ótimo exemplo do que considera categorias

étnicas “anômalas”: os filhos, netos e bisnetos dos imigrantes podem considerar-se, e

serem considerados por outros, como integrantes do mesmo grupo étnico que seus pais;

podem julgar-se, em adição, bem adaptados à cultura majoritária. Muitos são bilíngües e

têm, inúmeras vezes, dupla cidadania, enfrentando situações de conflito entre lealdades

aos diferentes grupos - são minorias permanentes (1993).

Com relação a estes grupos, podem ocorrer alguns tipos de desdobramento de

tais situações: assimilação ao grupo dominante, ou incorporação étnica. A segunda

alternativa, por sua vez, desdobra-se em outras duas: podem separar-se e declararem a si

mesmos como uma categoria étnica, ou continuarem leais à categoria étnica de seus

ascendentes, apesar de terem consciência de variações culturais. Como exemplo da

primeira alternativa, o autor aborda a questão da formação de uma categoria étnica,

conhecida como “black British”, que abrange pessoas que não são africanas nem

caribenhas, embora seus ancestrais o fossem. Essas pessoas não têm outro país senão a

Grã-Bretanha, não possuem outra língua vernácula a não ser aquela classificada pelos

lingüistas como “black British English”; tais pessoas freqüentam os mesmos clubes e

associações informais, além de muitas vezes compartilharem um senso comum de

solidariedade, fato este que leva Eriksen a considerá-las, portanto, como uma categoria

étnica.

Continuando sua análise, o autor sugere que a perspectiva de Barth, relativa à

auto-atribuição mutuamente exclusiva de categorias étnicas, seja ligeiramente

modificada, apontando para a questão de as atribuições empreendidas pelos “outros”

também poderem contribuir na criação de identidades étnicas, como no caso de

indivíduos serem “obrigados” a aceitarem determinada identidade étnica, mesmo que

preferissem não o fazer.

Pessoas colocadas entre categorias já reconhecidas são nomeadas “pelo sistema”

como anômalas, podendo ser identificadas como “outsider”, moralmente suspeitas.

Pessoas em tais posições (between and betwixt), podem tomar tais ambigüidades em

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proveito próprio, passando a serem chamadas de entrepreneur”, ou empreendedores

culturais (ERIKSEN, 1993).

Ao contrário do que se supôs na antropologia (o eventual desaparecimento de

categorias étnicas, ou da própria questão da etnicidade), Eriksen assinala que o fato de

muitas sociedades estarem submetidas a amplos e rápidos processos de mudança social

acabou por criar novas formas de etnicidade, muitas vezes mais poderosas, claras e

articuladas.

Um conjunto de símbolos, referente a antigas línguas, religião, sistema de

parentesco ou estilo de vida, é considerado por Eriksen como fundamental para a

manutenção de uma determinada identidade étnica em tempos de mudança social.

Fatores como migração, alterações demográficas, industrialização, ou outras mudanças

econômicas - integração ou encapsulamento a um sistema político mais abrangente -

podem aparecer como ameaças a determinadas identidades étnicas: nos casos onde as

fronteiras estão sob pressão, as formas de mantê-las se tornam mais importantes. Assim

identidades étnicas, ao corporificarem um sentido de continuidade com o passado,

podem servir individualmente como tranqüilizadores em momentos de convulsão social.

De acordo com tal pressuposto, a formação de novas categorias étnicas pode

ocorrer de duas maneiras: a primeira, com a extensão das identificações existentes; a

segunda, com a redução do grupo, presumindo-se uma ancestralidade compartilhada. Se

uma identidade étnica pressupõe uma ancestralidade compartilhada, a quantas gerações

se pode voltar a fim de se encontrar a semente (embrião) das identidades atuais? O autor

esclarece que não há resposta modal - ambas delineiam suas identidades a partir de uma

invariável reinterpretação do passado. Dessa maneira, descortina-se o importante caráter

de as identidades étnicas serem “construídas”: são invenções sociais.

Agrupar diferentes grupos sob uma mesma categoria étnica, bem como

presumir uma ancestralidade compartilhada, acaba por reduzir o número de grupos

étnicos que poderiam existir e se formar a partir das novas configurações da vida social

nas diferentes sociedades ou processos sociais. Variações étnicas não correspondem a

variações culturais, contudo é primordial para o seu funcionamento que sejam

convincentes para os integrantes dos grupos; por outro lado, estes devem ser

reconhecidos como tais pelos não membros. Para que um grupo mais contido possa

existir em determinado contexto, ele precisa ser “socialmente relevante”: precisa ter

bens ou benefícios para distribuir, e estes devem ser percebidos como valiosos pelo

grupo alvo (ERIKSEN, 1993).

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Tendo em vista tais considerações, o autor avalia que a interpretação da cultura,

com relação aos grupos sociais de modo geral, pode torná-la manipulável. Conhecer sua

própria história e imputar aboriginalidade e continuidade com o passado podem ser

formas importantes de modelagem étnica e legitimação política, respectivamente.

Razões políticas delineiam a forma como será escrita determinada genealogia, seja ela

cultural ou pessoal. Eriksen aponta para o importante aspecto, ressaltado pelos estudos

de Leach (1956), que revela nunca haver uma adequação perfeita entre ideologias e

práticas sociais. Sob tal perspectiva, Eriksen considera que não se está olhando para o

passado, mas sim para uma construção do passado, dos dias atuais. O autor interpreta a

afirmativa de Barth - devemos “perguntar a nós mesmos o que é preciso para fazer

distinções étnicas surgirem em uma área” - como uma forma de chamar atenção para a

perspectiva histórica da etnicidade, embora enfatize que o próprio Barth não o faz

(1993).

Eriksen (1993) apresenta alguns aspectos da análise de Don Handelman (1997)

acerca da etnicidade e sua variabilidade organizacional, por considerar pertinente a

tipologia, criada por este último, relativa aos diversos graus de incorporação étnica.

Descreverei-as brevemente, por acreditar que possam ser uma boa maneira de se pensar

as relações entre os imigrantes caribenhos, seus descendentes nascidos em solo inglês e

os britânicos brancos que se opunham, ou seguem opondo-se a eles. Eriksen considera

que tais tipologias lidam com a etnicidade como um tipo de organização social, portanto

exemplificam a questão central de Barth, na qual o conteúdo social da etnicidade é

altamente variável.

“Categorias étnicas” contrastivas são utilizadas para identificar membros do

grupo e outsiders. Nelas se colocam, na perspectiva dos integrantes do grupo,

comportamentos apropriados, conhecimentos acerca de suas origens e legitimação da

existência da categoria étnica, esta precedendo os demais tipos de incorporação étnica.

A rede étnica, além dos atributos da primeira, possui a habilidade de distribuir recursos

entre seus integrantes e é acionada, por exemplo, quando se dá preferência a membros

do grupo para determinados tipos de trabalho. Ela é descentralizada e, ao contrário da

primeira, articula canais de interação ao longo de linhas étnicas. Podem-se tratar, como

associações étnicas, categorias que identificam interesses compartilhados e

desenvolvem aparatos organizacionais para expressá-los. Esse tipo de associação

corporifica os interesses da categoria étnica em um nível coletivo. Por fim, as

comunidades étnicas são o mais alto grau de incorporação étnica. Além das redes

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étnicas e das organizações políticas compartilhadas, este grupo possui um território com

fronteiras mais ou menos permanentes.

Na perspectiva de Eriksen, sistemas poliétnicos podem conter tanto aspectos

verticais quanto horizontais, no que diz respeito à classificação social. Ao considerar o

aspecto horizontal da etnicidade, parece ser importante focalizar a competição por

recursos escassos, e no processo de dicotomização e manutenção de fronteiras, por outro

lado, o vertical imputa maior relevância na observação das relações de poder. Ambos os

aspectos variam em sua importância situacional, histórica e entre sociedades.

Hierarquias sociais podem ser justificadas a partir de ideologias étnicas, porém o

pertencimento étnico não estabelece por si só o nível hierárquico que o indivíduo ocupa;

a etnicidade será acrescida de gênero, classe, idade e outros critérios para que se possa

definir a posição da pessoa. Apesar de haver uma alta relação entre pertencimento à

classe social e à identidade étnica em algumas sociedades poliétnicas, como é o caso de

imigrantes não europeus em sociedades industriais européias, onde geralmente ocupam

postos de trabalho em posições hierárquicas mais baixas. As hierarquias sociais se

referem a diferentes categorizações e se articulam diversamente em diferentes

sociedades (ERIKSEN, 1993).

Na ótica de Barth, para lidar com os conflitos étnicos em suas configurações

contemporâneas, é necessário analisar os processos por meio dos quais alguns líderes

acionam as identidades étnicas na ação política coletiva. O autor defende que este fato

aparece como resposta das pessoas a determinados arranjos do Estado e às

oportunidades políticas criadas por tais arranjos. Uma vez que o conflito étnico gera

dinâmicas políticas em relação a ele, é fundamental perceber que tais dinâmicas são

resultantes de ações estratégicas realizadas pelos agentes políticos.

Barth ressalta que as mobilizações étnicas que surgem como respostas a tipos de

interação dentro de determinados contextos, os quais abrangem relações com

instituições estatais e internacionais, não são necessariamente como as do nacionalismo,

onde a competição por liderança política é mais aberta e o campo de ação dos agentes

políticos tende a ser maior. O autor argumenta que fomentar a criação de grupos étnicos

e sustentá-los tende a ressaltar suas oposições e separações, ao invés de gerar

aproximação. Por fim, propõe que a expansão de aspectos comuns aos grupos e a

exploração de questões compartilhadas poderiam gerar a superação das fronteiras

étnicas (1995).

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Em cada caso, as fronteiras étnicas são estabelecidas e mantidas por meio de

determinadas características culturais. Barth ressalta que a manutenção de tais

características e diferenças é o que permite que haja a persistência da unidade do grupo.

As matérias culturais, contudo, não são estáticas e tampouco limitadas pelas fronteiras

entre os grupos. Elas variam, são modificadas e também aprendidas, nem por isso

desmantelando as fronteiras dos grupos étnicos. Portanto, reconstituir a história de tais

grupos não é descrever a história de uma cultura. O autor acredita que os aspectos

culturais atuais não são simples reconstituições de aspectos culturais de momentos

anteriores daquele grupo (2000).

Barth considera, ainda, que pode ser esclarecedor pensar em termos de correntes

(streams) de tradições culturais, apesar de elas poderem se misturar, cada uma agrega

elementos de maneiras diferentes, formando conjuntos de características que geralmente

persistem ao longo do tempo, todas possuindo dimensões históricas. O critério

fundamental, para o estabelecimento e a manutenção das diferentes correntes de

tradição, é que apresentem um determinado grau de coerência em relação ao tempo

histórico e, também, que possam ser reconhecidas nos demais locais em que se

apresentam e convivem com outras correntes diferentes. As questões fundamentais a

serem respondidas dizem respeito ao “tipo” de consistência que pode ser encontrada nos

padrões específicos e no “porquê” de, justamente nesse local e momento, essa forma

ter-se desenvolvido.

Em consonância, Ulf Hannerz (1997) considera que a cultura aparece, também,

como um processo no tempo, não estanque e em constante movimento, que deve

carregar e tornar duradouros significados e formas significativas. Para se manter em

movimento os atores, que formam os grupos sociais, devem a todo o momento

interpretá-la, recriá-la, pensar sobre ela recordá-la e transmiti-la.

Hannerz considera palavras como fluxos, fronteiras e híbridos, algumas das

palavras – chave da antropologia que trata de assuntos transnacionais que abordam o

encontro de pessoas de diferentes pátrias e culturas. Termos como hibridismo aparecem

freqüentemente quando se trata de comunidades diaspóricas e das fronteiras, que ao

invés de estancar movimentos, são atravessadas, permeadas, vencidas, como é o caso

observado. Na perspectiva do autor, os fluxos sempre têm direções e no caso dos fluxos

culturais, percebemos que o que a cultura “original” ganha em seu novo local, não

necessariamente a faz perder o que possuía anteriormente, sendo reorganizada a partir

dos novos elementos e situações com os quais se depara. A partir dessa perspectiva não

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é possível deixar de distinguir os centros das periferias “Esse complexo de assimetrias

tomou forma séculos atrás na Europa e tendo-se acelerado neste século, também criou

por si mesmo algumas das condições para os posteriores contrafluxos e fluxos

entrecruzados” (HANNERZ, 1997).

Barth, por sua vez, oferece um script acerca da abordagem das correntes

identificadas. Cada corrente identificada deve ser tomada como um universo de discurso

e devemos distinguir seus padrões mais enfatizados; devemos mostrar como mantém

suas fronteiras e como se produz e reproduz; a partir daí, descobrir o que leva tal

sistema a ter coerência, o que será solucionado de modo empírico. “Devemos (...)

identificar os processos sociais pelos quais essas correntes se misturam, ocasionando

por vezes interferências, distorções e mesmo fusões. Além disso, pode ser que cada

corrente siga uma dinâmica básica diferente. (...) Temos que tentar mostrar como se

geram socialmente as formas da cultura” (2000, p.127). Isso é o que venho tentando

fazer nesta dissertação, quando perpasso aos aspectos do contexto atual, alguns

episódios que constituem a sua história social e seus desdobramentos.

Para Barth questões acerca da cultura e da sociedade, enquanto categorias

utilizadas nas análises antropológicas, estão marcadas por pressupostos questionáveis de

holismo e integração. Vemos a cultura como algo que possui muitos detalhes e que é

imensamente emaranhada, o etnógrafo deve dar conta de entendê-la e explicá-la, por

outro lado existe um ideal de ousadia ao se abstrair e revelar a essência subjacente a tais

detalhes e emaranhados. Na perspectiva do autor é mais proveitoso explorarmos os tipos

e graus de conexão observados no campo da cultura, que se apresenta em diferentes

sociedades, sabendo que “não há cultura que não seja um conglomerado resultante de

acréscimos diversificados” (Linton 1936, citado por Barth 2000, p. 109).

Em “A Palavra dos Dogon”, publicado em Social Sciences Information n° 7, N.

6 (1968, 55, 61), pela primeira vez como uma resenha do famoso texto de Calane –

Griaule, “Etnologie et Langage, la Parole chez le Dogon”, Victor Turner, a propósito de

sua extensa e bem fundada etnografia realizada na década de 50 entre os Ndembu

declara:

“Na realidade encontrei entre os Ndembu tão pouca coerência no nível da cultura abstrata que tendi a considerar o sistema [social] como principalmente resultante de interesses concretos e volições interativas ao invés de algo existente ‘lá fora’ em um mundo de crenças e valores. Tendi, antes a considerar estes últimos como flutuando livremente e desencaixados. Esta mesma qualidade permitiu-lhes mais prontamente o

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serem recombinados em Gestalten que variavam segundo a situação, de acordo com os objetivos e desígnios de facções e grupos de interesse ‘no terreno’. Em resumo, vi a ação social como sistemática e sistematizadora, mas a cultura como mero estoque de itens desconexos. A ordem vinha do propósito e não da connaissence”.

Parafraseando o etnógrafo, “este ponto de vista” alerta o próprio Turner sobre si

mesmo, “é obviamente extremo e portanto falso, mas”, tal como a ele ocorreu,

“possibilitou a mim, no campo, voltar a minha atenção para os processos sociais, para o

movimento e o conflito nas relações concretas”, tal como afigurou-se estrategicamente

como dispositivo de estranhamento permitindo colocar sob descrição o que de outro

modo poderia ter se perdido no emaranhado de considerações culturalistas precipitadas.

Integrantes dos diferentes grupos sociais agem e reagem a partir da sua

percepção de mundo, e impregnam-no com os produtos de suas construções culturais.

Tais construções são sustentadas por meio do consentimento mútuo, incrustado nas

representações coletivas, e também por causas materiais. Barth (2000) argumenta que

possivelmente são determinados processos sociais que levam ao estabelecimento de

padrões culturais. Ademais, há uma gama de padrões parciais, além dos tidos como

fundamentais, que se sobrepõem e se interferem mutuamente.

A construção cultural que as pessoas fazem acerca da realidade, não surge de

uma só fonte, nem é monolítica. Os atores sociais fazem parte de diferentes universos e

constroem mundos diversos entre os quais se movimentam. Para Barth, ao estudar

sociedades complexas o pesquisador deve procurar a interdependência entre os fatores

que fazem parte de tais conglomerados.

Tanto o desenvolvimento da etnicidade com base em organização política,

quanto movimentos de massa fundamentados em identidades étnicas são recentes.

Nesse sentido, geralmente há emergência de movimentos étnicos em contextos políticos

coloniais ou do Estado-nação. Lutas e migrações conectam diferentes grupos ao redor

do mundo, levando categorias estabelecidas em períodos coloniais a estarem ativas até

os dias atuais (Eriksen, 1993). A relação entre identidade étnica e nacionalismo também

é bastante complexa, mesmo porque, ambos os termos possuem uma importante

variedade de sentidos.

O nacionalismo assinala similaridades culturais, que reverberam na delimitação

de fronteiras entre o grupo “nacional” e os “outros”, que podem ser considerados

outsiders. Em relação ao nacionalismo, sua marca distintiva será, por definição, sua

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relação com o Estado. Muitos grupos étnicos não demandam o comando de um Estado,

mas algumas fronteiras políticas ligadas à questão do nacionalismo podem ter fronteiras

culturais que coincidam com elas. A partir do momento que lideranças políticas de

caráter étnico demandam políticas nesse sentido, o movimento passa a ser nacionalista e

assim deve ser considerado. (ERIKSEN, 1993).

Eriksen expõe que seguindo a integração de populações chamadas tradicionais

nos modernos Estado-nação, há também a integração de diversos aspectos de seus

universos simbólicos. Tais pessoas se tornam mais semelhantes em termos de

representações e práticas sociais. Assim passam a refletir mais e objetivar seus estilos de

vida como uma cultura ou uma tradição, se tornando um povo, no sentido de terem tanto

um senso abstrato de comunidade, quanto uma história compartilhada. As sociedades

complexas contemporâneas parecem implicar processos de identidade e de manutenção

de fronteiras que são sentidas de maneira mais aguda e que são modeladas de forma

mais auto-consciente do que em outros tipos de sociedades.

Devemos levar em conta que, apesar de as identidades, os grupos étnicos e suas

histórias serem “criadas”, seguindo a perspectiva de Eriksen, é necessário ter em mente

que são criadas sob determinadas circunstâncias históricas, por atores estratégicos ou

como conseqüências não intencionais de determinados projetos políticos. Nesse sentido,

a construção de categorias étnicas terá lugar em espaços restritos, onde algumas das

novas categorizações serão viáveis, enquanto outras não. A história cultural dos povos

pode iluminar as origens da etnicidade contemporânea e não devem ser vistas

meramente como aspectos do presente.

O autor cita o trabalho de Benedict Anderson acerca do nacionalismo e sua

definição de nação como sendo uma “comunidade política imaginada”, e ressalta o fato

de que não devemos pensar que “imaginada” signifique “inventada”, mas sim que

signifique que seus membros constituintes se imaginam como integrantes de uma

mesma comunidade, num espaço onde supostamente vivem em comunhão. Anderson

argumenta que o nacionalismo é derivado da combinação entre legitimação política e

poder emocional. No nacionalismo as organizações políticas podem ter caráter étnico. O

Estado-nação forja um importante aspecto de sua legitimidade política ao convencer as

massas que as representam como unidade cultural. Dessa maneira não é possível

imaginar um nacionalismo não-étnico (ERIKSEN, 1993, p. 100, 101).

Anderson ressalta que após a Segunda Guerra Mundial, todas as revoluções

triunfantes se basearam em termos nacionais e que na atual conjuntura política a

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nacionalidade é vista como o valor mais universalmente legítimo. Assim como Eriksen,

o autor também considera termos como nação, nacionalidade e nacionalismo, altamente

difíceis de definir e analisar. Em seu livro “Comunidades Imaginadas – reflexiones

sobre el origem y la difisión del nacionalismo” (2006) procura traçar, a partir da

perspectiva da emergência histórica do nacionalismo, uma interpretação “mais

satisfatória” do que considera uma “anomalia”.

Define por nação: “uma comunidade política imaginada como inerentemente

limitada e soberana” (Anderson, 2006, p. 23). Considera-a imaginada, pois por menor

que seja a nação, é bastante provável que seus membros não se conheçam entre si e

talvez nem mesmo tenham ouvido falar a respeito uns dos outros, mas ainda assim

consideram e vivem com a imagem de sua comunhão.

Podemos pensar nos “estados nacionais” como construções sociais mais novas e

históricas; a nação por sua vez remete a um passado imemorial e na possibilidade de

buscar um futuro ilimitado. Este ponto de vista propõe que o nacionalismo seja

entendido a partir de seu alinhamento aos grandes sistemas sociais que existiam antes de

seu aparecimento, de onde emergiu por oposição. Apesar de muitas nações se

imaginarem como antigas, na verdade são modernas.

O nacionalismo enfatiza solidariedades entre pobres e ricos, entre despossuídos e

capitalistas. Sua ideologia tem como base um princípio de inclusão e exclusão política

que segue as fronteiras da nação, que comporta categoria de pessoas definidas como

membros de uma mesma cultura. O uso de símbolos étnicos no nacionalismo -

presumidos como típicos -, intentam estimular a reflexão de sua própria distinção

cultural e desse modo criar o sentimento de nacionalidade. O nacionalismo reifica a

cultura no sentido em que habilita as pessoas a falarem dela como se fosse constante.

Sob a perspectiva de Anderson (2006) a nacionalidade ou “qualidade de nação”

são aspectos culturais de uma determinada classe. A criação de tais artefatos, aos fins do

século XVIII, se deu em conseqüência de um complexo arranjo de forças históricas.

Uma vez criados se tornaram “modulares” e puderam ser transplantados para diversos

campos sociais, mesmo que cada terreno tivesse grandes diferenças políticas e

ideológicas. Assim nações seriam inventadas em locais onde antes não existiam.

Todas as comunidades seriam imaginadas e deveriam distinguir-se pelo estilo

pelo qual são imaginadas. Cada nação se imagina limitada, pois possui fronteiras finitas,

ainda que mais ou menos flexíveis, nas quais se encontram outras nações. A despeito de

desigualdades e explorações mais ou menos incisivas, a nação é concebida como tendo

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um profundo e horizontal companheirismo. “Em última instância, é esta fraternidade

que tem permitido, durante os últimos séculos, que tantos milhões de pessoas matem e,

sobretudo, estejam dispostas a morrer por imaginações tão limitadas” (ANDERSON,

2006, p. 25).

No nacionalismo, como nos movimentos étnicos, aparecem mecanismos de

manutenção de fronteiras. Da mesma forma estão presentes em ambos usos inventivos

da história que criam uma impressão de continuidade. A discrepância entre ideologia

nacional e prática social é tão aparente no caso da nação quanto no caso de outros

grupos étnicos, o que é peculiar ao nacionalismo é sua relação com o Estado e sua

abrangência que atinge larga escala (ERIKSEN, 1993).

O contexto histórico onde emerge o nacionalismo o coloca como uma ideologia

que surge em reação à industrialização e ao deslocamento de populações de suas

comunidades locais. A industrialização gerou uma grande mobilidade geográfica e um

vasto número de pessoas se tornou participante de um mesmo sistema econômico e

posteriormente político. Sob tais condições tornou-se necessário estabelecer uma

ideologia capaz de criar coesão e lealdade entre indivíduos que participavam de

sistemas sociais tão amplos. O nacionalismo era capaz de atender a tais necessidades. A

existência de uma comunidade imaginada baseada em uma cultura compartilhada,

embebida no Estado, era bastante funcional para o próprio. Em contrapartida, a noção

de nacionalismo parece oferecer segurança e estabilidade num momento de

fragmentação social (ERIKSEN, 1993).

A imprensa aparece, na análise de Anderson, como um elemento de fundamental

importância e uma das bases para o estabelecimento de uma consciência nacional. A

imprensa escrita - ao evocar elementos comuns ou familiares aos seus integrantes,

remetendo a lugares e a questões sociais relevantes ou sedutoras -, proveria a

confirmação da solidez daquela comunidade imaginada. Oferece “el embrión de la

comunidad nacionalmente imaginada” (2006, p. 73) ao dar maior consistência à

linguagem e permitir a construção de uma imagem de antiguidade daqueles grupos

sociais, que seria fundamental para a idéia subjetiva de nação.

Recentemente, meios de comunicação como jornais, televisão e rádio têm sido

elementos importantes na padronização de representações e linguagens, bem como os

meios de transporte modernos, que facilitam a integração das pessoas em vastos

sistemas sociais, levando-as a se sentirem como membros de uma nação. Ao fazerem

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parte de uma nação, estão, como no caso dos grupos étnicos, em oposição aos outros

(ERIKSEN, 1993).

Seguindo a perspectiva abordada, acredito que podemos dimensionar a

importância da fundação e das edições periódicas da West Indian Gazette, o principal

jornal inglês escrito e dirigido à população negra no período pós-guerra39. Não a

considerando como um episódio de um passado remoto, mas sim como algo com força e

possibilidades de, nesse sentido, dar coesão e representar a união daquelas pessoas,

desmobilizadas como grupo, constrangidas, ameaçadas e perseguidas pelos grupos

ingleses.

O nacionalismo pode ainda reforçar ou impor determinadas ideologias. Baseado

mais nos “direitos civis” do que nas raízes culturais compartilhadas. Certas categorias

de pessoas ficam em uma zona “cinza”, entre as categorias étnicas e a nação. Ao serem

politicamente conduzidas por determinados grupos, algumas nações trazem à tona o

conflito entre dominantes e dominados (ERIKSEN, 1993).

A modernização e os sistemas de Estado-nação são conjunturas que têm criado

condições para a emergência novas formas de etnicidade, as “minorias étnicas” e os

“povos indígenas”. As minorias étnicas são definidas como “um grupo numericamente

inferior ao do resto da população em uma sociedade, este não é politicamente dominante

e pode ser reproduzido como uma categoria étnica” (ERIKSEN, 1993, p. 121). Os

termos utilizados são relativos e relacionais, uma minoria só existe “em relação a” um

grupo majoritário e da mesma sociedade, podendo ser maioria aqui e minoria acolá.

Como é o caso dos imigrantes, minorias nos países que os recebem, mas, muitas vezes e

provavelmente, maiorias nos seus países de origem (1993).

A identidade nacional, como coloca Stuart Hall, é um aspecto da vida social que

se forma e transforma a partir das representações (2005, p. 48). No carnaval de Notting

Hill, a identidade que está sendo apresentada, articulada e rearticulada constantemente

(conscientemente ou não), e que por fim, cria parâmetros de identificação e

reconhecimento deste grupo em relação à sociedade em que está inserido e em relação

aos demais grupos com os quais interage, é uma identidade que se refere a um conjunto

de nações. Baseia-se e faz referência principalmente ao carnaval de Trinidad, mas que

acaba por criar e sustentar um elo entre as ilhas caribenhas, enfatizado no contexto

inglês.

39 Sherwood, 1999.

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Naquela sociedade, ser west indian é representar simbolicamente e ser

reconhecido socialmente por meio de uma série de aspectos particulares e de sinais

diacríticos peculiares. A dança, a música e as fantasias utilizadas no momento da

expressão dramatizada representam empiricamente aquela “comunidade imaginada”,

que de maneira efêmera emerge com vultuosidade.

Em um primeiro momento os grupos - vindos das diferentes ex-colônias

britânicas - estavam dispersos, parecem ter se aproximado e integrado com maior

intensidade, por causa dos conflitos raciais dos anos 50. A partir daí, o grupo mais

coeso constituiria uma nova comunidade imaginada, referente a um local de origem que

não apenas uma nação. Comunidade, em determinadas situações, vista como derivada e

representante de uma mesma fonte.

Desde que algumas formas de variação cultural e étnica aparecem como

“questão fora de lugar” (matter out of place) para os nacionalistas, a variação étnica é

definida pelos grupos dominantes como um problema, como algo que se tem que

vencer, opor ou aturar, (cope with). Os Estados geralmente usam alguns tipos de

procedimentos para lidar com as minorias. No primeiro procedimento, o Estado pode

insistir na assimilação e, em último caso, levar ao desaparecimento da minoria; o Estado

pode optar pela dominação, que geralmente gera segregação e acarreta a remoção física

das minorias; na terceira opção o Estado opta por assumir uma política de

multiculturalismo, transcendendo a ideologia nacionalista baseada no caráter étnico da

população, então a cidadania e os direitos civis não estão sujeitos a identidades culturais

particulares (ERIKSEN, 1993, p. 123).

Como conseqüência da primeira alternativa, a assimilação – que aparece como

um processo bastante comum e à qual geralmente os grupos não podem escolher -,

muitas pessoas se tornam vítimas das classificações étnicas; a segunda opção pode levar

as minorias a se submeterem à subordinação ou a tentar coexistir pacificamente com o

Estado-nação, em alguns casos alguns grupos podem reproduzir suas identidades e

fronteiras de maneira informal; a opção final de saída ou êxodo da minoria é sempre

incompatível com as políticas do Estado. O autor ressalta que tais definições são típicas-

ideais, e salienta que, empiricamente, as relações entre minorias e Estados podem ser

diferentes arranjos entre as opções descritas, levando à participação das minorias em

diversas instituições sociais, ao mesmo tempo em que reproduzem fronteiras étnicas e

identidades do grupo. Quando a integração é mais ou menos realizada, ela pode

conduzir a ações complementares de assimilação e incorporação étnica. Após a Segunda

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Guerra Mundial e em algumas sociedades, status étnicos e assertivas do tipo “nós temos

nossa própria cultura” puderam conduzir a vantagens políticas para as minorias

(ERIKSEN, 1993).

Grupos migrantes tendem a ocupar posições mais baixas na divisão do trabalho,

conflitos entre imigrantes e trabalhadores domésticos (nacionais) podem levar a racismo

e distúrbios. O autor enumera cinco aspectos acerca das situações das minorias que têm

recebido maior atenção: a discriminação e desqualificação por parte da população

dominante; as estratégias de manutenção de identidade do grupo; as competições entre

os grupos, o conflito étnico e a mudança cultural por parte dos grupos imigrantes; e a

quinta alternativa e a menos estudada, se refere às relações entre o país de origem e o

país que recebe os imigrantes.

Nas sociedades modernas, cada indivíduo possui os mesmos direitos, por outro

lado, as minorias étnicas podem ser habilitadas a reterem suas identidades, o que dá luz

à questão acerca da igualdade e da diferença. A segunda e a terceira geração de

imigrantes nas cidades européias - não europeus considerados culturalmente distintos -

experimentam problemas de identidade causados pelo fato de “viverem duas culturas”,

podendo ser considerados anomalias, pois não se ajustam às categorias dominantes da

classificação social.

Quando diferenças culturais acarretam diferenças sociais contribuem para a

criação da etnicidade. A questão que se coloca é acerca dos usos que se fazem dos

símbolos culturais. Os recursos culturais de um grupo imigrante são transformados a

partir do contato com a cultura e o grupo dominante, levando a novos usos de aspectos

culturais do grupo, possibilitando a modificação de sua importância social (ERIKSEN,

1993).

Em muitas sociedades multiculturais, o Estado pode ser acusado de injustiça,

tanto quando promove a igualdade quanto quando promove a diferença. Freqüentemente

é negado às minorias o direito de serem iguais e às elites o direito de serem diferentes.

Eriksen ressalta que isto pode ser conhecido como o paradoxo do multiculturalismo.

Conseqüentemente os cidadãos não só tem o direito de “ter uma cultura”, como muitas

vezes são positivamente forçados a se adornarem com marcas étnicas, podendo haver

tratamento desigual baseado em distinções étnicas.

No que diz respeito aos imigrantes urbanos, as migrações e situações sociais das

quais fazem parte criaram condições para a articulação da etnicidade. A dicotomização

étnica e os processos de manutenção de fronteiras são variáveis presentes em todos os

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casos. Muitas comunidades locais estão integradas em grandes sistemas globais, num

nível político, econômico e cultural.

O autor ressalta que, a existência das anomalias ou categorias étnicas liminares,

a existência de grupos que estão betwixt and between, que não são nem isso nem aquilo,

ou um pouco de ambos, relembram que a manutenção da fronteiras entre os grupos é

problemática. O pertencimento a determinado grupo pode ser situacional, pode ser

atribuído pelo grupo dominante ou o grupo pode estabelecer uma categoria étnica

separada. Além disso, o critério de pertencimento a grupos não-étnicos é

situacionalmente relevante em qualquer sociedade e nas sociedades modernas

complexas eles proliferam e podem ser identificados com múltiplas identidades. Formas

diferentes de lealdades e pertencimento a grupos podem ser congruentes com o

pertencimento étnico, ou podem cruzá-lo.

Na vida real, em geral as pessoas não se identificam exclusivamente a partir de

sua cidadania, há outros critérios relevantes. As pessoas são um pouco disso e um pouco

daquilo. As identidades sociais são negociáveis, fluidas, situacionais, analógicas ou

graduais e segmentarias, porém esta elasticidade não é infinita. Todas as categorizações

acerca de determinados grupos, para ter sentido, são feitas em relação aos outros.

Apesar de aparecerem nos mais diversos contextos, o meio urbano seria o lugar

mais fecundo para o aparecimento das identidades étnicas, pois ali se erigem

construções híbridas, bricoladas e heterogêneas, resultados do encontro de diversos

indivíduos, grupos ou redes, que desejam e geralmente encontram dificuldades em

mostrar aos outros o que realmente reivindicam. Também para Angier, a identidade

cultural tem um “caráter construído, processual e situacional” (2001). O autor aponta o

processo de “criatividade cultural” que se daria dentro das relações dialéticas de

determinados contextos e situações. Tais relações seriam um componente das atividades

culturais do mundo globalizado.

O carnaval de Notting Hill é uma construção social que, se entendida como uma

resposta às violências, com o decorrer do tempo, passou a fazer parte de uma agenda

política de demandas por direitos civis, por educação, pelo acesso a bens variados e

subsídios financeiros e organizacionais, inclusive para efetivar a realização da

festividade.

No contexto citadino, o objeto identitário se tornou um recurso político (e

possivelmente também econômico) de afirmação de um grupo (ou rede) em uma

sociedade moderna. Este carnaval teria se transformado na “expressão cultural de uma

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nova declaração de identidade” (HALL). Os steel pans e as fantasias, trazidas do

carnaval de Trinidad, se tornariam grandes “emblemas identitários” do carnaval de

Notting Hill.

Os contextos aparecem como “base e precondição” (termos de Mintz e Price

1992, p. 82, assim utilizados por Angier) das trocas simbólicas, e é aí que as

identidades, que poderiam ser esquecidas ao longo do tempo, não deixam jamais de

modificar e “trabalhar” profundamente a cultura dos lugares em questão.

Na Inglaterra, que apresentava contornos estabelecidos ou desejados por conta

de uma identidade nacional, o aparecimento de novas culturas constituiu movimentos

contrários ao seu estabelecimento. Dificuldades, entraves, diálogos e conflitos inerentes

ao contexto, trouxeram à tona a resistência britânica em relação à diversidade cultural e

às pressões impostas pela diferença e pelas alteridades (HALL, 2005, p. 83). A

afirmação e a permanência dos grupos caribenhos - assim como de grupos provenientes

de diferentes fluxos migratórios -, colocaram em cheque antigas hierarquias e certezas

da identidade britânica.

As violências praticadas por grupos ingleses, explicitam o quanto tais grupos

desejavam a exclusão dos imigrantes. Hall identifica em atividades dessa natureza, o

que chama de “racismo cultural” e assinala que as comunidades afetadas poderem

produzir identidades defensivas e re-identificações relativas às culturas de origem

(2005).

O drama vivido à época e o estabelecimento desse ritual carnavalesco, se por um

lado revela a possibilidade - ou conquista - da permanência desse grupo no Reino

Unido, por outro, desnuda o fato de o sistema formal britânico permanecer tentando

regular, conter, dar forma a essa representação coletiva.

O constante ir e vir de pessoas, individualmente ou em grandes números, entre

nações e através das fronteiras, tornaram as sociedades contemporâneas, sociedades em

mudança permanente (HALL, 2005). As experiências de convivência em ambientes

múltiplos possibilitam formas altamente reflexivas de vida, levando as práticas sociais a

movimentos contínuos. Os deslocamentos, ao abalarem as estruturas - tidas como

estáveis - de um passado não distante, possibilitam novas articulações, como a criação

de novas identidades, novos sujeitos e a rearticulação daquelas estruturas.

A sociedade é algo em constante movimento, não seria diferente com a

identidade. Formada ao longo do tempo, permanece incompleta, sempre em formação,

“em processo”. “Tudo que dizemos tem um “antes” e um “depois” – uma “marge”’ na

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qual outras pessoas podem escrever. O significado é inerentemente instável: ele procura

o fechamento (a identidade), mas é constantemente perturbado (pela diferença)”

(HALL, 2005, p. 38).

A estabilidade relativa dos significados parece ser o que se pretende em

situações como o carnaval estudado, os grupos buscam constantemente demonstrar uma

determinada identidade, onde deseja estabilizar o significado tanto daquele ritual,

quanto dos próprios grupos e atores que dele fazem parte, mesmo que haja posições

internas divergentes. Dentro dessa representação se estabelece uma identidade caribenha

na cidade inglesa.

Aspectos distintivos daquele grupo são reforçados ao contarem histórias sobre

suas pátrias de origem, (home, como pude escutar em suas falas, inúmeras vezes). Tais

histórias proporcionam e constroem, tanto para si mesmos quanto para os outros,

aspectos distintivos que os tornam identificáveis. Ao produzirem sentidos a respeito de

suas terras pátrias, contam histórias e estabelecem uma permanente conexão entre

passado e presente.

Em uma sociedade considerada multicultural, os grupos que participam do

carnaval devem apresentar aspectos distintivos, afirmando diferenças, peculiaridades e

exotismo, ao mesmo tempo em que apresentam, internamente, certa coerência e

homogeneidade. Nos desfiles, são apresentados características e sinais diacríticos

utilizados para exibirem tais identidades à sociedade. Músicas, danças, vestimentas,

performances caracterizam o estilo e remetem aos grupos sociais.

Na ocasião do desfile, entretanto, os grupos carnavalescos são submetidos a

critérios de avaliação sob os quais são julgados. Apresentam-se como peculiares,

referentes a uma ancestralidade comum que os diferencia de outros grupos presentes

naquela situação. Marcas de peculiaridade e diferença são reforçadas por critérios de

avaliação, que também pontuam referências à história do grupo (best historical group).

No caso observado, a maioria dos grupos é de origem caribenha, mas há também

outros grupos, entre eles os brasileiros, que para a ocasião do desfile se agregam em

torno das escolas de samba. Além dos (novos) ingleses, imigrantes de primeira geração

e seus filhos ou parentes, participam das apresentações brasileiros, europeus, cidadãos

ingleses de ascendência britânica e pessoas de diferentes nações.

Podemos tomar as considerações de Gustavo Lins Ribeiro, sobre sua observação

acerca do Carnaval Parade, Califórnia, como um reforço e estímulo ao lançar olhar

sobre carnavais, que acontecem por todo o mundo na atualidade. Esses locais são

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cenários ótimos “para estudar a (re) construção de essencialismos e hibridismos típicos,

por sua vez, dos processos de (re) construções identitárias” (1998, p. 246).

Para Ribeiro a identidade nacional brasileira, em um contexto como o

apresentado, se transforma em identidade étnica, onde também os participantes

brasileiros colocam os grupos integrantes daquele carnaval como grupos étnicos. Essa

situação, assim como a londrina, faz com que a alteridade dos grupos se imponha como

fator fundamental para a participação no desfile.

Tais lugares sociais agregam brasileiros que estão envolvidos em suas vidas

cotidianas e na situação de imigrantes. As agremiações têm um papel importante na

construção e na reprodução de imagens sobre o Brasil, bem como apresentam uma

reinvenção ou reinterpretação da identidade de brasileiro dentro de parâmetros

britânicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As observações apresentadas nessa dissertação dizem respeito a dois carnavais,

mas se atêm principalmente a um deles, um carnaval majoritariamente de estilo

caribenho. Realizado em Londres desde os finais dos anos 50, atualmente agrega

diferentes grupos étnicos, que se articulam e relacionam naquela metrópole urbana.

Em certo período da história mundial, países como a Inglaterra invadem e

colonizam inúmeros outros territórios. Impõem-se, saqueiam, pilham, dominam política

e economicamente, desestruturam e reestruturam, a partir da interação com as

populações locais, as sociedades nas quais se inserem.

As colonizações européias, ao longo de diversos territórios no mundo, levaram à

coexistência grupos colonizadores e contingentes populacionais locais. Em seguida, a

recorrente utilização de mão de obra escrava, insere em diferentes localidades, grupos

majoritariamente formados por negros de origem africana.

Os grupos nativos se somam, agregam, re-combinarm, imbricam, de formas

variadas, aos europeus e africanos. Novos tipos de relações sociais, trocas, disputas,

conflitos, sociabilidades se apresentam nas diversas sociedades receptoras e a mesma

coisa ocorreu com rituais e simbolismos. Floresceram novas formas culturais, frutos do

encontro e do confronto, permanentemente re-combinadas e atualizadas.

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No período pós-colonial, é inescapável que países europeus se vejam obrigados

a lidarem com as conseqüências de suas invasões e apoderamentos. Entre os

desdobramentos desses longos processos históricos, figuram os fluxos migratórios, mais

ou menos intensos, que partem de diferentes (ex) colônias em direção às cidades

metropolitanas.

Governos e grupos metropolitanos procuram, mais cedo ou mais tarde e de

diferentes maneiras, controlar e regular a entrada e o estabelecimento dos grupos

estrangeiros no seu território e sociedade. No processo de influência mútua dos grupos

imigrantes e locais, nas conjunturas das grandes cidades, ambos aprendem, mesmo que

forçadamente, a lidarem uns com outros - em relação às formalidades legais, e também

no que concerne aos contatos empíricos travados nas relações e situações quotidianas.

Novamente foram geradas, diferentes formas de sociabilidade e

complementaridade. Desde então (ou desde sempre?) as relações sociais entre os

ingleses e os estrangeiros, bem como a relação do governo Inglês frente à imigração e

aos grupos imigrantes segue se modificando.

Os carnavais observados, tanto no Brasil quanto na Inglaterra, revelam o saldo

(não estanque) das interações, fricções, conflitos, arranjos, entre os diferentes grupos

implicados nas colonizações. Situações geradas naquela época são percebidas na

atualidade. Os carnavais estudados explicitam, em sua forma performática e observável,

o desdobrar de tais processos em uma brilhante roupagem contemporânea.

No Brasil, o carnaval aparece como uma articulação entre elementos culturais

europeus, africanos e eventualmente indígenas. Em Trinidad, segundo a literatura e as

narrativas (por mim escutadas em Londres) ocorre de maneira semelhante, guardadas as

peculiaridades dos locais e das populações envolvidas. Ao ser “levado” para Londres,

estabelece-se como marca de uma população e com o decorrer do tempo, agrega grupos

que representam, naquela situação, diferentes nacionalidades. As novas relações e

situações, presentes em tal conjuntura, abarcam indivíduos, grupos minoritários e

majoritários e poder central. Mais uma vez a mistura provoca formas culturais inéditas.

Um acontecimento que me proporciona reconforto e acolhimento, mas também

indagações, se dá quando um dos integrantes da Mangrove dirige-se a mim e diz:

“pronto, agora a sua banda é a Mangrove”. Havia transposto aquela linha imaginária

que separa o “nós” do “eles”, de certa forma era também parte “deles”, ainda que ao

mesmo tempo, “outro”. Não sou caribenha, tampouco explicitamente negra, dessa

maneira o caso deixa claro a permeabilidade da fronteira étnica.

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O que os faz considerarem que, ainda que de maneira fugaz, fiz (ou faço) parte

do grupo? A participação nos ensaios, a observação durante a confecção das fantasias,

estar presente durante a competição entre as steelbands, participar do desfile junto à

banda naquela segunda-feira de carnaval, ser nativa de um país colonizado, que também

apresenta um carnaval grandioso. Detalhes e peculiaridades que me permitem tal

integração.

Acredito que o material aqui disposto se integra no sentido de tornar explícitos

os caminhos por mim percorridos do começo ao final da pesquisa, mostrar

especificidades encontradas nos campos observados, auxiliar na compreensão dos

rituais carnavalescos no Rio e em Londres e abordar a problemática acerca dos

diferentes grupos étnicos na metrópole inglesa.

As experiências relatadas se somaram em um grande tirocínio em relação à

realização da pesquisa de campo etnográfica e suas nuances, revelando diferenças no

realizar pesquisas etnográficas, em meio a grupos familiares, ou em meio a grupos

quase completamente desconhecidos. Percebo, ainda, a importância do afastamento dos

campos observados e dos atores sociais neles envolvidos, o que permite ao pesquisador,

se concentrar nos dados obtidos, na literatura e na análise do problema estudado e, por

fim, na escrita do texto.

A coleta de materiais variados, a tentativa de organizá-los e analisá-los, acaba

por deixar lacunas, dúvidas e imprecisões. Indagações apresentadas no curso da

pesquisa desdobram-se e necessitam de maior aprofundamento, ressaltado a

importância de investigações adicionais acerca do tema.

A possibilidade de realizar uma continuidade no trabalho, indo também para

Trinidad, a fim de poder contrapor o escopo aqui prenunciado, melhor e mais

apropriadamente, estaria em uma tese de doutorado.

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2. Association for a People’s Carnival. Londres. Números:

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2. MAS Notting Hill – documents in the struggle for a representative and democratic carnival 1989/90. Compilada por Michael La Rose. New Beacon Books e People War Carnival Band. Londres. 1990.

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3. Steel Pan History & Heritage Trinidad All Steel Percussion Orchestra (T.A.S.P.O.) performing at the Festival of Britain – 26th July, 1951, the first steelband to visit England! Londres.

4. PanPodium – The Official Magazine of the British Association of Steelbands. Londres.

Publicações (issue): 11 – verão 2005 12 – primavera 2006 13 – verão 2006

5. Soca News. Londres. Agosto de 2006.

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/setembro. Londres. 2006. Revista: “G.R.E.S. Unidos do Viradouro”. Ed. Ala dos Artistas, 2001. Revista Ensaio Geral – informativo da Liesa: Ano X – n° 15 – setembro 2005 Ano X – n° 16 – dezembro 2005 Ano VII – n° 9 - setembro 2002 DICIONÁRIOS E ENCICLOPÉDIAS: Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua

Portuguesa, 2ª ed rev e ampliado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997 Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa/ Aurélio Buarque de Holanda

Ferreira. 3ª edição. Curitiba: Positivo, 2004. Bailly, Dic de Grego-francês. Encyclopediae Britannica, volume I. The University of Chicago, 1977. SITES PESQUISADOS: µwww.liesa.com.br§ µwww.paraisosamba.co.uk§ µwww.unidosdoviradouro.com.br§ µwww.mynottinghill.co.uk§ µwww.theguardian§. µwww.bbc.co.uk§