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Universidade Federal Fluminense Faculdade de Direito Curso de Graduação em Direito MARIANA SCHMIDT NEVES O DIREITO À CIDADE COMO UM DIREITO COLETIVO - UM ESTUDO SOBRE AS TRANSFORMAÇÕES DO RIO DE JANEIRO DESDE 1870 ATÉ OS DIAS ATUAIS Niterói 2017

Universidade Federal FluminenseTCC] O Direito à Cidade... · 2 . NITERÓI 2017 O DIREITO À CIDADE COMO UM DIREITO COLETIVO - UM ESTUDO SOBRE AS TRANSFORMAÇÕES DO RIO DE JANEIRO

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Universidade Federal Fluminense

Faculdade de Direito

Curso de Graduação em Direito

MARIANA SCHMIDT NEVES

O DIREITO À CIDADE COMO UM DIREITO COLETIVO - UM ESTUDO SOBRE

AS TRANSFORMAÇÕES DO RIO DE JANEIRO DESDE 1870 ATÉ OS DIAS

ATUAIS

Niterói

2017

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Universidade Federal Fluminense

Faculdade de Direito

Curso de Graduação em Direito

MARIANA SCHMIDT NEVES

O DIREITO À CIDADE COMO UM DIREITO COLETIVO - UM ESTUDO SOBRE

AS TRANSFORMAÇÕES DO RIO DE JANEIRO DESDE 1870 ATÉ OS DIAS

ATUAIS

Artigo científico apresentado ao Curso de Direito da

Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para

a obtenção do título de Bacharel em Direito.

Professor - Orientador: Leonel Alvim

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NITERÓI

2017

O DIREITO À CIDADE COMO UM DIREITO COLETIVO - UM ESTUDO SOBRE

AS TRANSFORMAÇÕES DO RIO DE JANEIRO DESDE 1870 ATÉ OS DIAS

ATUAIS

BANCA EXAMINADORA

Prof. Leonel Alvim (Orientador)

Universidade Federal Fluminense

Prof. Ronaldo Lobão

Universidade Federal Fluminense

Thaís Borzino Nunes

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito

Universidade Federal do Rio de Janeiro

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeço aos meus pais Flavia e Jarbas pelo apoio incondicional - desde o

dia em que escolhi deixar Minas Gerais e me mudar para Niterói, passando por todos os

momentos de incerteza, até quando entendi que meu caminho talvez não fosse somente por

meio do Direito, mas também da Arquitetura e do Urbanismo: ali eles estavam. Agradeço a

todas as amizades que florearam esses cinco anos de UFF - especialmente à Bárbara, Isabella,

Carol, Luisa, Duda e João - enriquecendo meus dias e contribuindo sempre para o meu

amadurecimento. À todos os mestres e funcionários, meu muito obrigada. É com imensa

felicidade que apresento este trabalho e concluo uma das mais importantes e decisivas etapas

da minha vida.

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RESUMO

O presente artigo busca abordar o direito coletivo à cidade e o fato desta ter se tornado local

de especulação financeira e imobiliária, onde a desigualdade é reproduzida na própria vida

social, na precariedade das condições de moradia e das relações de trabalho, em contrapartida

à conquista do marco legal que defende cidades justas e igualitárias, sem discriminação de

gênero, idade, raça, etnia e orientação sexual, política e religiosa, resultado da luta dos

movimentos sociais e de setores da sociedade civil. Buscou-se, ainda, traçar um paralelo entre

o processo pelo qual a cidade do Rio de Janeiro passou nos séculos XIX e XX e aquele vivido

a partir da escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014.

Palavras-chave: Cidade. Reurbanização. Direito Coletivo. Habitação. Especulação

Financeira.

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ABSTRACT

This study aims to approach the city’s collective right and the fact that it have become a place

of financial and real estate speculation, where the odds are reproduced in one's own social

life, in the precarious conditions of living and in working relationships. It also aims to draw a

parallel between the process in which Rio de Janeiro was introduced during the XIX and XX

centuries and after Brazil being chosen to host 2014 World Cup.

Key-words: City. Redevelopment. Collective Right. Habitation. Financial Speculation.

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SUMÁRIO

Introdução p. 8

Do mundo para o Brasil parte I: reformas europeias e a reforma de Pereira Passos p. 9

Pereira Passos p. 12

Caranguejo Overdrive p. 13

Do mundo para o Brasil parte II: a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 p.16

Elefantes brancos? p.17

A cidade como espaço de construção de direitos p.20

Conclusão p.21

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Introdução

Meados dos anos 1980 - pouco mais de um século após uma série de intensas

intervenções urbanas realizadas na cidade do Rio de Janeiro, iniciadas por Barata Ribeiro e

reafirmadas por Pereira Passos - os países desenvolvidos começam a viver a crise da chamada

reestruturação produtiva. Reduz-se a disposição dos Estados de bem-estar para manter

políticas sociais universais e gratuitas, hegemoniza-se a mudança para um modelo neoliberal:

os investimentos públicos tornam-se cada vez mais pontuais e exclusivistas. O modelo de

bem-estar social começa a se esfalecer, dando lugar ao ‘combate’ à chamada ‘degradação

urbana’, gerando uma nova onda de intervenções: a de transformar as áreas obsoletas dos

grandes centros - tão popularizados e que passaram a absorver milhares de imigrantes - por

meio da construção de grandes equipamentos culturais, ou seja, museus, óperas e afins. A

ideia, vinda do governo socialista do francês Mitterand (1916-1996), buscou erguer sinuosos 1

monumentos arquitetônicos com a finalidade de “aquecer” o mercado imobiliário e da

construção civil, dando um lustre “moderno” à figura do governante e revigorando o

“marketing da cidade”, ao preço de uma forte valorização e elitização.

Essa “tendência” ao chamado urbanismo do espetáculo chegou ao Brasil, após

percorrer um longo caminho, a partir da mencionada crise da década de 80, atingindo o seu

auge com os megaeventos esportivos, culturais e tecnológicos usados como álibi para a

reunião de capitais internacionais. Mas o que se pode observar, no entanto, é essa mesma

onda atingindo o mundo em diferentes momentos da história, em que figuram sempre como

personagens principais as ‘grandes’ construtoras, os ‘grandes’ políticos e a classe

marginalizada: pobres, pretos, escravos, doentes, ambulantes e, agora, imigrantes, alvos

constantes das operações de intervenção - ou poderíamos dizer limpeza? - do espaço público.

A busca por inserção no modelo capitalista global, por modernidade e por mais

negócios tornam os países alvos de propaganda, colocando-os nas mãos de grandes

investidores sob o falso argumento do legado que restará em prol da população local. Vê-se,

na verdade, que esse legado desconsidera as reais necessidades daqueles que ali habitam,

como sempre fez ao longo dos séculos.

1 François Maurice Adrien Marie Mitterrand, político francês, presidente da França por 14 anos, entre 1981 e 1995.

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A partir disso, o presente trabalho acabou por assumir, no contexto de sua elaboração,

um aspecto histórico na primeira parte - com um apanhado geral das intervenções no Rio de

Janeiro a partir de 1870 - e, numa segunda parte, trouxe o paralelo com os megaeventos

globais e como estes resgataram a ideia da necessidade de reorganização do espaço urbano. A

consequência, ao final, e como veremos, é sempre a mesma: a supressão dos direitos

referentes à utilização do espaço urbano e, também, à manutenção e preservação de moradias.

Do mundo para o Brasil parte I: reformas europeias e a reforma de Pereira Passos

Anteriormente à nova tendência de re-urbanização das cidades advinda com a crise de

1980, o mundo vivia uma onda de modificação de grandes centros já em meados do século

XIX. Avenidas largas, ventiladas, com grandes parques e acomodações aos menos

favorecidos era a tendência de todas as grandes capitais europeias inseridas na modernidade 2

da qual o Brasil queria fazer parte. A economia crescia rapidamente e tornava-se importante a

agilidade das exportações e a maior inserção do Brasil no modelo capitalista internacional.

Já na década de 1870, a expansão demográfica e o crescimento industrial,

especialmente do setor têxtil, indicavam alterações na dinâmica da sociedade carioca, o que

se configurou como o início sistemático de um processo de modificação no espaço urbano,

dando início a um projeto de “cidade do futuro”. Dessa forma, era de urgência agilizar a

circulação das mercadorias no Rio de Janeiro, que pendia devido às características coloniais

do espaço da cidade, devendo esta ser cortada em todos os aspectos, afetando lugares e a vida

das pessoas que ali estavam.

A verdadeira operação de limpeza que se deu na cidade passou a incluir, também, o

afastamento das “classes perigosas”, da nação subterrânea, daqueles que enfeavam a cidade e

provocavam tumultos, entendidos como manifestações de uma “barbárie colonial”, de modo

que essas modificações no espaço urbano carioca começaram a excluir dela tudo aquilo que

já não poderia conviver mais com a modernidade, de forma a atender às necessidades das

classes dominantes da época.

Ao lado de todo o movimento civilizatório, essa cidade de contrastes que começou a

se formar viu, na sua área central, o crescimento das atividades do ambulantes e ofícios como

2 MONCAN, Patrice de; HEURTEUX, Claude. Le paris de Haussmann. Paris: Les Édition du Mécène, 2002. p. 29- 31

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o passeio dos perus e o comércio de verduras e leite, tornando-se o lugar do barulho e da

multidão, que carrega, no entanto, a marca do trabalho e o encontro de todos os tipos que

caracterizam sua complexa estrutura social. Vê-se que não é adequado manter o Centro como

o lugar por excelência do moderno: a ideia de urbanidade não se coaduna mais com a

existência de terrenos onde se criam animais nem com a agitação, o suor e a gritaria

características da região. Ao contrário, a ideia de urbanidade significa sossego e tranquilidade

para que se efetuem negócios de alto nível que não sujam e nem fedem.

Barata Ribeiro, o primeiro a ser indicado a prefeito após a autonomia do Distrito

Federal (em 20 de agosto de 1892), reforma a Praça XV, intensifica a vigilância sobre a

higiene e saneamento, e controla as habitações coletivas da cidade, entendidas como sínteses

da falta de higiene e do crime, ou seja, verdadeiros marcos da barbárie. A ação contra os

cortiços, que abrigavam cerca de 50% da população carioca no período entre 1850-1870

(CAMPOS, 2004, p.53), é tão intensa que se tornou um dos elementos centrais de sua

administração.

O caso mais célebre, intensamente festejado pela imprensa, foi o da derrubada da

“Cabeça de Porco” – cortiço que ficava atrás da Central do Brasil, onde hoje é o túnel João

Ricardo. De proporções imensas, lá residiam cerca de quatro mil pessoas, “entre capoeiras e

criminosos”, e dele diziam ser de propriedade do conde D’Eu:

Então, na noite de 26 de janeiro de 1893, Barata, acompanhado de

cavalaria, infantaria e polícia civil, apareceu diante da ‘Cabeça de Porco’

com uma turma de operários e mandou começar a demolição. Saiu gente

que não acabava mais. Gente e bichos, carneiros, burros, cavalos de

cocheiras ocultas no meio das moradias. Uma rua, tapada pelas casas, foi

reaberta. Houve protesto, ameaças e choros. O prefeito ficou firme no

local até as 6 horas da manhã. Regressou empoeirado, sonolento, exausto

– mas a Barata roera a Cabeça de Porco.

(Macedo, 1943, p. 62).

A Revista Ilustrada, de fevereiro de 1893, versejava:

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Era de ferro a cabeça/De tal poder infinito/Que – se bem nos não pareça

–/Devia ser de granito./No seu bojo secular/De forças devastadoras/Viviam

sempre a bailar/Punhais e metralhadoras./Por isso viveu tranquila/Dos

poderes temerosos/Como louco cão de fila/ Humilhando poderosos./Mas eis

que um dia a barata,/Deu-lhe na telha, almoçá-la/E assim foi – sem patarata

– /Roendo, até devorá-la.

(Ibidem, p. 63).

Aqui, já vemos que o espírito dessas reformas é a de exercer uma pressão na parte

pobre da população, no sentido verdadeiro de limpar a cidade de tudo aquilo que incomoda e

que representa o atraso colonial. Nesse contexto de expulsar os que já não mais se adequam

ao novo espaço urbano, formam-se as primeiras favelas do Rio de Janeiro, tendo sido a

ocupação do Morro da Providência - ou Morro da Favela, como ficou conhecido na época -,

que ficava justamente atrás do cortiço “Cabeça de Porco”, o marco do início do processo de

formação destas. A tese mais difundida é a de que as encostas do morro foram ocupadas

pelos soldados que combateram na Guerra de Canudos (1896-1897) e, posteriormente, pelos 3

moradores dos cortiços expulsos de suas casas. Essa população, como Maurício Abreu

ressalta, buscou outras formas de se manter no centro da cidade, uma vez que não podia se

afastar do local de maior oferta de trabalho. A falta de mobilidade do pobre - que configura

um grave problema até os dias atuais - fez com que fosse fundamental se manter na zona

central do Rio de Janeiro independente da condição das habitações disponíveis. Trecho do

romance “Desde que o Samba é Samba” (LINS, 2012) descreve bem o movimento em função

da zona central da cidade e suas periferias, ao falar do compositor Ismael Silva (1905 - 1978):

“Silva era o melhor compositor do Estácio - bairro aonde chegara aos três anos de idade,

depois da morte do pai, porque sua mãe teria de arrumar emprego no Rio de Janeiro, já que

moravam em Jurujuba, onde ela nasceu, lugar que não lhe oferecia alternativa de trabalho.”

(Ibidem, p. 82).

O Morro de Santo Antônio, ocupado a partir de 1897 também por combatentes da

Guerra de Canudos foi, na década de 1950, quase que completamente destruído para fornecer

3 ABREU, Mauricio. Evolução Urbana do Rio de janeiro. IPLANRIO. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1988.

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material para a construção do Aterro do Flamengo, sendo sua população igualmente

removida do local, sofrendo um duplo processo de expulsão da cidade. Esse fato mostra

como os governantes sempre trataram a questão da habitação e do espaço urbano carioca,

assunto que será discutido a fundo mais adiante.

PEREIRA PASSOS

Na capital brasileira, com o governo de Pereira Passos (1902 - 1906) e o apoio do

então Presidente Rodrigues Alves, foi pensado um novo cenário que teria “a cara de Paris”,

assumindo características mais modernas e fugindo da imagem de atraso, de país

escravocrata. Passos havia estudado na França, era proprietário da Estrada de Ferro do

Corcovado e membro ativo do Clube de Engenharia, sendo, portanto, um verdadeiro

empreendedor, homem de comando e decisão, trazendo tudo aquilo que a cidade precisava.

Se até então a ideia de ordem era definida pelo contraste com a desordem, agora havia um

projeto palpável capaz de levar o Rio de Janeiro ao cenário da verdadeira modernidade, que

já existia no imaginário da elite carioca.

As reformas tiveram início em 1903 - período de definição institucional e cultural - e,

em sua gestão, Passos modernizou a Zona Portuária, criou a Avenida Central - hoje Avenida

Rio Branco - a Avenida Beira-Mar e a Avenida Maracanã. Além disso, buscou-se adaptar a

cidade também para os automóveis: é nessa fase que o Rio de Janeiro vê a chegada da luz

elétrica, a total reorganização do espaço urbano e a proibição da atuação dos ambulantes. A

ordem era tornar o Rio de Janeiro uma nova capital, exemplo para todas as demais cidades do

país, expressão dos valores e modos de vida cosmopolita e moderna da elite brasileira -

acabando com a noção de que a cidade era sinônimo de febre amarela e condições

anti-higiênicas.

João do Rio (1881-1921), grande cronista brasileiro, fala dos acontecimentos da

seguinte maneira: “Como queres tu originalidade, onde tudo é igual ao que há em outras

terras? As avenidas são a morte do velho Rio. Esse mercado fechado e higiênico pode ser

aquela antiga praça centro da miséria, da luxúria viscosa, de tantas e tantas tradições” (João

do Rio, 1952, p. 23).

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CARANGUEJO OVERDRIVE

Na peça “Caranguejo Overdrive”, de Pedro Kosovski, em que o território em disputa

é o mangue - cujos caranguejos ajudavam a conter a fome dos moradores - e na qual se traça

um claro paralelo entre as disputas do espaço urbano do séculos XIX e XX e àquelas para a

realização dos Jogos Olímpicos Rio 2016, o antigo catador de caranguejos Cosme percebe as

mudanças ocorridas na cidade do Rio de Janeiro após seu regresso da Guerra do Paraguai

(1864-1870), durante a construção do Canal do Mangue, primeira grande obra sanitária da

cidade: “Me desovaram no Rio de Janeiro, mas a cidade em que nasci era outra; resolvi ir

atrás do mangue e dos caranguejos, mas a Cidade Nova (como a chamavam agora) era um

corpo doente, um formigueiro de operários zanzando de um lado para outro, tudo disperso

pelos ares como fumaça.” ( KOSOVSKI, Pedro, editora Cobogó, 2016. p.36).

A referida peça apresenta a escuta de outras obras que discursam sobre a precária

condição de homens que se veem em condições abjetas, sem se diferenciarem de caranguejos

presos na lama a andando para trás, trazendo um Cosme rebaixado em sua condição social e

econômica, a fim de situar uma discussão crítica. Pode ser lida como uma resposta ao efeito

gentrificador que dois megaeventos - Copa e Olimpíadas - tiveram e vendo tendo sobre a

cidade. Ponto alto da obra, uma paraguaia exilada - tornada prostituta - em improviso,

apresenta para Cosme a história política do Brasil e fala sobre as transformações que a cidade

vinha sofrendo, em desabafo histórico:

Pra você se localizar, aqui é a baía e por ali fica o Mangal de São Diogo.

Estão construindo um canal desde o alto do São Diogo, passando pelo largo

do Rocio, pela rua do Sabão, pela Igreja de São Domingos, e no futuro vai

chegar até o Mosteiro de São Bento, nos arredores da baía. A ideia é criar

um canal que junte o centro do Rio até a zona portuária. A região do

mangue está sendo drenada para construírem um enorme aterrado. Eu

trabalho nas obras e vejo de dentro o que está impulsionando esse projeto

autoritário de cidade. As obras de revitalização, que supostamente iriam

integrar a região do mangue à cidade, são uma farsa! Há seis anos elas

começaram e até agora não finalizaram nem a primeira parte! E pode

apostar que daqui a vinte ou trinta anos nada vai estar pronto. E eu pergunto

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a vocês: pra onde vai todo o dinheiro? Porque o que está sendo drenado não

é o lodo do mangue, mas os cofres públicos! Quem está no comando desse

monstrengo é o chief engineer William Gilbert Ginty - eu vou citar nomes

aqui! Sim, eu vou citá-los! -, e as obras são bancadas - prestem bastante

atenção - pelo sr. Irineu Evangelista de Sousa, o barão de Mauá, que

conseguiu uma discutível - bem discutível! - concessão pública para ser

dono de uma parte de nossa cidade. Onde é que já se viu isso? Onde é que já

se viu alguém ser dono de uma parte da cidade e controlar tudo: água, luz,

transporte?! O que o dr. Irineu quer é encher o bolso de grana, o dele e o de

seus amiguinhos ingleses. A fortuna desse cidadão sozinho é maior do que

todo o Império! Mas essa história vai longe, e vem desde que d. João VI

ocupou o Palácio Real de São Cristóvão e trabalhava no largo do Paço. No

caminho entre a casa e o trabalho, d. João tinha que passar por um mangue

infestado de mosquitos e empestado por esse cheiro, que é onde eu moro. O

que ele pensou? O que qualquer um pensaria? Vamos limpar toda essa

merda, vamos sanear tudo! Mas como na época não havia dinheiro nem

interesse para uma obra desse tamanho, eles construíram um aterrozinho pra

passagem das carruagens de “Vossa” Majestade. Hoje, vocês sabem, tá

entrando muito dinheiro na cidade, tá entrando muito dinheiro da Inglaterra,

por causa da Guerra do Paraguai, e os ricos tão de olho no mangue,

expulsando todos os pobres pra fora do mapa, porque a cidade precisa

crescer, expandir, engordar. Porque quem tem fome de verdade é melhor

que se cale, senão vai acabar na vala, porra!

( KOSOVSKI, Pedro, editora Cobogó, 2016. p.40)

Esse mangue faz juntar o Rio de 1870 ao Rio dos tempos atuais. Duas cidades

transpassadas por processos de gentrificação que carregam e expulsam os que estão à

margem dos seus lugares de origem. Uma percepção mais além consegue ver nas entrelinhas

desse empurrão os moradores da favela do Vidigal, que aos poucos foram, também, sendo

“empurrados” de seus espaços para impulsionar a especulação imobiliária fortalecida pela

Copa do Mundo e pelas Olimpíadas.

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Remete, também, à Cidade Nova que recebia os descendentes de escravos, após uma

recente abolição da escravatura, que ali viveriam quase tão isolados quanto mais tarde estarão

os favelados nos morros. A mesma Cidade Nova que viveu um processo de efervescência

cultural com o nascimento e ascensão do samba que conhecemos hoje, com a criação da

primeira escola de samba - a Deixa Falar - e que foi ignorada por décadas quanto à questão da

violência, tráfico de drogas e prostituição. Um século depois da reinvenção do nosso

carnaval, pouca coisa mudou: grandes empresas chegaram, sinuosos prédios, que abrigariam

grandes negócios, foram erguidos, restaurantes e centros comerciais surgiram e, ainda assim,

nas vielas mais afastadas, ainda sobrevivem os mesmos cortiços, os mesmos casarões que,

hoje, são ocupadas por dezenas de famílias que convivem com a falta de tratamento de

esgoto, com a evasão escolar dos mais novos, com a prostituição precoce. Uma outra cidade,

onde o convívio social é no meio da rua, no entrecruzar das esquinas, dos bares, nas feiras, no

ir e vir das calçadas. Grandes espelhos que revelam o contraste com uma população pobre 4

que ainda resiste naquele local. Mas até quando?

O Rio, na época da volta de Cosme, no início dos anos 1870, é a cidade que assiste ao

declínio da economia cafeeira e o início de um forte e expansivo processo de industrialização,

que vê a olho nu as contradições entre progresso e miséria, que vê a pobreza e a fome de

quem vive à beira do rio cujas águas se misturam com o esgoto e a lama. O Rio de Cosme (o

anterior e o posterior à guerra) é atemporal, subverte a medida dos anos e do espaço; é

também o contemporâneo. 5

E o perfil psicológico do personagem nos leva a reflexão do que esse processo de

reorganização do espaço causa à população, especialmente à marginalizada. Qual o preço

dessa intervenção no espaço urbano, na paisagem, na vida das pessoas? O ex-combatente da

Guerra do Paraguai, que vivia no mangue a catar caranguejos para sobreviver, retorna a um

Rio desconhecido, novamente como um nada, por ter enlouquecido durante a guerra. É

engolido por ela, pelo progresso e pela fome, deixando que seu estômago fale no lugar da

boca:

4 Trecho da obra Desde que o samba é samba (LINS, Paulo - Rio de Janeiro, 2012), que remete ao Rio de Janeiro de 1928 mas que aqui se encaixa pelo verdadeiro teor atemporal da oração, que revela um cenário quase que idêntico no Rio de Janeiro de 2017. 5 Homem Caranguejo, mito e anti-herói, disponível em http://teatrojornal.com.br/2016/06/homem-caranguejo-mito-e-anti-heroi/

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Não se pode dizer que sou eu que falo, as palavras valem muito pouco

diante da força do apetite, porque apetite e palavras são coisas que se

resolvem na boca, as palavras existem em função da defesa, (...) e assim

passam-se os dias onde tento me engordar com os restos que a cidade

descarta, por isso não sou eu que falo essas palavras, é o meu apetite que me

força a continuar por mais que eu não queira (...)

(KOSOVSKI, Pedro, Editora Cobogó, 2016, p.23)

Sua terra natal agora é desconstruída pela modernização e já não tem nada a lhe

oferecer. Cosme somos nós que nos espantamos com a cidade devastada, os cais a caírem, os

portos de cimento que anunciam a atualidade falida. Cosme é o combatente de Canudos, que

regressa ao Rio de Janeiro e se instala nas encostas de um morro ansiando por trabalho. É o

indivíduo convocado a lutar, retirado de seu ambiente, que retorna sem qualquer perspectiva;

é novamente expulso, jogado para a periferia e, posteriormente, expulso dela quando a área se

torna conveniente e interessante ao poder público. Cosme é o morador de um trecho do

território que permaneceu isolado por quase duzentos anos e que viu a prefeitura passar como

um trator modificando tudo a sua volta.

Do mundo para o Brasil parte II: A Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016

Revitalização, reabilitação, revalorização, requalificação, reforma, não importa o

nome dado ao processo que reúne capitais internacionais “especializados” no urbanismo do

espetáculo e que utiliza como álibi megaeventos esportivos, culturais ou tecnológicos: com

frequência, são as mesmas instituições financeiras, as mesmas megaconstrutoras e

incorporadoras e os mesmos arquitetos do star system que promovem um arrastão

empresarial a fim de garantir certas características a um pedaço da cidade que se assemelha,

no mais das vezes, a um parque temático. Endividamento, especulação imobiliária e 6

6 MARICATO, Ermínia. A Copa do Mundo no Brasil: tsunami de capitais aprofunda a desigualdade urbana, texto integrante da obra Brasil em Jogo: O que fica da Copa e das Olimpíadas? Rio de Janeiro, Boitempo Editorial e Carta Maior, 2014, p 17.

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gentrificação são marcas que, com raras exceções, acompanham essas custosas

transformações; exatamente o que se pode observar do Rio de Janeiro de 2017, sendo quase

que uma releitura do processo vivido por aquele Rio de Janeiro do começo do século XX.

Aos grandes capitais internacionais ligados aos megaeventos, somam-se capitais

nacionais e locais das áreas de construção civil, mercado imobiliário, turismo, gastronomia e

hotelaria, amparados pelos chamados políticos de plantão que apostam na visibilidade de seus

atos e no apoio econômico para futuras campanhas e, tudo isso, sob o argumento do “legado”

que restará em benefício de toda a população. Essa tendência de combinar a organização de

megaeventos com processos de transformação urbana começou a ganhar força no início dos

anos 1980, associada a políticas de construção de infraestrutura em zonas centrais como

estratégia de renovação do centro das cidades. No entanto, a prática mostra que, ignorando as

reais necessidades populares, esse cenário resta como um conjunto de “elefantes brancos”,

como aconteceu com o Ninho de Pássaros em Pequim, com o estádio construído na Cidade

do Cabo para a Copa do Mundo de 2010 - e cuja demolição chegou a ser cogitada - ou ainda

com o próprio estádio Mané Garrincha, em Brasília.

ELEFANTES BRANCOS?

Sobre o estádio Mané Garrincha, uma operação da Polícia Federal investiga um

superfaturamento da obra que pode chegar a R$ 900 milhões. Dados de 2015 apontam que o

estádio abriu suas portas apenas nove vezes, gerando prejuízos que são cobertos com o

dinheiro do contribuinte, já que a administração é feita pela Secretaria de Turismo estadual.

Tornar o Mané Garrincha uma arena lucrativa é desafiador por uma série de razões, que

incluem a colossal capacidade de 72.788 pessoas, que faz com que a manutenção fique cara;

as partidas de times locais, como o Brasília e o Gama, que não atraem público suficiente para

gerar renda; e a baixa frequência com que os clubes cariocas levam os jogos de primeira e

segunda divisões para o DF, apenas sob condições favoráveis a eles – ou seja, se o Estado

aliviar no preço do aluguel.

Para citar mais alguns exemplos nacionais, as arenas Pantanal, em Cuiabá, e da

Amazônia, em Manaus, também se desdobram em estratégias para diminuir o prejuízo

mensal com o baixo número de partidas nos últimos dois anos. Com custos médios de R$

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700 mil por mês, a Arena Pantanal não consegue cobrir 10% disso, de acordo com números

da Secretaria Adjunta de Esportes e Lazer. A final do torneio estadual de 2016, por exemplo,

teve uma renda pífia, de R$ 167 mil.

Como solução em todos os três casos, cogita-se uma concessão à iniciativa privada,

conjuntamente a uma ação federal, caindo em um eterno “jogo do empurra”.

Todo esse cenário nos mostra um verdadeiro processo de “assalto às economias

nacionais”, que não acontece exclusivamente em função dos grandes eventos: estes se

configuram apenas como estratégias da globalização neoliberal. Aqui, esse plano estratégico

cumpre o papel de desregular, privatizar e fragmentar o espaço urbano, dando ao mercado um

espaço absoluto e reforçando a ideia de cidade autônoma que necessita instrumentar-se para

competir com as demais na disputa por investimentos. A perplexa conclusão a que chegamos

é a de que os centros passam, agora, a funcionar como uma verdadeira máquina urbana de

produção de renda, devendo agir corporativamente e assumindo o seu novo papel de

“cidade-mercadoria”ou “cidade-empresa”, devendo, portanto, ser gerida como tal.

Essa sociedade, moldada e inaugurada pelo modelo de produção capitalista, apresenta

como principal característica a criação do dinheiro como equivalente universal de troca e a

fixação do valor das coisas por intermédio da noção de mercado. Áreas públicas tornaram-se 7

temporariamente privadas; no caso de São Paulo, a Prefeitura interrompeu um processo de

negociação com os ambulantes que atuavam principalmente na área central da cidade iniciado

em maio de 2012, tendo sido canceladas todas as 5.137 licenças destes. E já não foram esses

mesmos trabalhadores “varridos” das áreas comuns no Rio de Janeiro de 1903?

Por falar nisso, lembremo-nos de José Afonso de Oliveira Rodrigues, Raimundo

Nonato Lima Costa, Fábio Luiz Pereira, Ronaldo Oliveira dos Santos, Marcleudo de Melo

Ferreira, José Antônio do Nascimento, Antônio José Pitta Martins e Fabio Hamilton da Cruz,

mortos nas obras dos estádios, e das cerca de 170 mil famílias removidas compulsoriamente

de suas casas (segundo dados dos Comitês Populares da Copa) para dar lugar às obras

destinadas à realização do evento em Cuiabá, Curitiba, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife,

Manaus, São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza. Pois não é esse o mesmo processo de 8

higienização que o Brasil viveu - especialmente o Rio de Janeiro - no começo do século XX?

7 MAIOR, Jorge Luiz Souto. Lei Geral da Copa: explicitação do estado de exceção permanente, texto integrante da obra Brasil em Jogo - O que fica da Copa e das Olimpíadas? Rio de Janeiro, Boitempo Editorial e Carta Maior, 2014. p. 33 8 MAIOR, Jorge Luiz Souto. op. cit, p.37.

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Retira-se famílias das áreas estratégicas sob o argumento de modernização, inserção no

modelo capitalista global, maior competitividade, legado.

De acordo com Raquel Rolnik, a lógica desse “legado” dos megaeventos “pode ser

entendida no âmbito do que ocorreu com o mercado imobiliário e de terras que, com a

globalização, passou a ser parte fundamental do circuito financeiro internacional.” Ainda de

acordo com suas palavras, “vivemos uma ‘financeirização’ do processo de produção de

moradia e de cidades. Isso significa que os ativos imobiliários, mais do que representarem um

valor de uso para as cidades, são um ativo financeiro passivo de especulação. Não é possível

entender o projeto do Porto Maravilha, no Rio de Janeiro, ou o da Cidade da Copa, no Recife,

senão nesse contexto.” 9

Em países emergentes como o Brasil, onde existem muitos assentamentos informais

de baixa renda, como favelas, a valorização imobiliária, muito acima da renda dos moradores,

e os processos de gentrificação de áreas da cidade se dão sobre um tecido urbano marcado

pela precariedade de seu território e pela ambiguidade da condição de inserção de seus

cidadãos. Observa-se uma verdadeira dualidade da condição urbana: parte da cidade está

plenamente inserida na regulação urbanística e jurídica, enquanto que a outra, não raramente

maior do que a primeira e majoritariamente habitada pela população de baixa renda, é

autoproduzida pelos próprios moradores.

No contexto da realização dos grandes projetos urbanos - seja no passado, com Barata

Ribeiro ou Pereira Passos, seja no presente, no contexto dos megaeventos globais - essas

áreas informais são exatamente aquelas marcadas para morrer. Afinal, por não serem

“oficiais”, não carecem receber os altos valores de indenização; por serem “precárias”,

passam a significar, com sua eliminação, um ganho para todos, cidade e moradores. A

realidade desse processo, no entanto, é a de famílias inteiras sendo removidas de suas casas,

sem nenhum respeito por seus direitos ou pela vida construída naqueles locais. E, ainda, com

a justificativa da “ilegalidade”, as remoções se dão sem o pagamento de indenização que,

quando existem, contemplam apenas o valor da casa - ignorando o valor da terra, mesmo este

sendo um direito garantido pela Constituição e legislação brasileira.

9 ROLNIK, Raquel. Megaeventos: direito à moradia em cidades à venda, texto integrante da obra Brasil em Jogo - O que fica da Copa e das Olimpíadas? Rio de Janeiro, Boitempo Editorial e Carta Maior, 2014. p. 67

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A CIDADE COMO ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO DE DIREITOS

Faz-se importante frisar que as cidades são espaços de verdadeira construção de

direitos: o Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001) defende cidades justas e igualitárias,

sem discriminação de gênero, idade, raça, etnia e orientação sexual, política e religiosa, que

tem a perspectiva de construir uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de

classe, etnia e gênero. Travestidas de desenvolvimento econômico, no entanto, tanto a

especulação imobiliária quanto a implantação de grandes empreendimentos urbanos - que

recriam a despossessão e perpetuam privilégios - potencializam as violações dos direitos

humanos, deslocando grupos vulneráveis e discriminados em razão da origem social e

econômica para longe dos centros e de áreas valorizadas, desrespeitando totalmente qualquer

garantia constitucional e legislativa.

Neste ponto é mister refletir que tratar da questão urbana é um dos mais complexos

desafios no campo das políticas públicas no Brasil. É necessário construir não uma

“cidade-mercadoria” ou “cidade-empresa”, mas sim voltar-se para uma verdadeira direção

democrática para a organização e gestão dos centros urbanos, baseada nos princípios de

liberdade, igualdade e direitos - não em especulação, endividamento e gentrificação. Tais

princípios que norteiam essa direção democrática serão capazes de promover, no futuro,

condições dignas de habitabilidade, o que significa acesso à terra urbanizada, aos serviços

públicos essenciais e de qualidade, efetiva segurança na posse, acesso universal à água,

energia e saneamento básico, além de respeito à identidade cultural e à diversidade dos

grupos tradicionais. O direito à cidade implica a construção da possibilidade de viver

dignamente, no reconhecimento de ser parte da identidade e da vontade coletiva, na

convivência dos diferentes, no enfrentamento de lutas e conflitos que resultam em

solidariedade e urbanidade. O direito à cidade é um direito coletivo. 10

No intuito de perseguir essa cidade mais igualitária, surgem grupos e coletivos que

organizam uma ocupação seguindo os princípios da colaboratividade, co-criação e

compartilhamento. O coletivo Trama é um excelente exemplo desse movimento em direção à

ocupação dos centros urbanos. Entende-se que, apesar do cenário carioca possuir diversas

opções de lazer ao ar livre, elas acontecem de forma dispersa pelos espaços públicos da

10 Conselho Federal de Serviço Social. O direito a cidade é um direito coletivo. 2009

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cidade. Por isso, objetiva-se tecer uma rede orgânica para verdadeiramente conectar as

pessoas que ali habitam, por meio de encontros artísticos e culturais no próprio espaço

público, por exemplo. Dessa forma, fortalecemos, reforçamos e agrupamos os pontos da

trama da cidade com a ocupação de espaços abandonados, revitalização de um muro ou a

fachada de um prédio, rodas de conversa e debates, oficinas, exposições fotográficas, prática

de esportes e tudo o mais que a população considerar atrativo, de forma gratuita e acessível a

todos, fazendo com que qualquer um se torne um agente transformador da cidade. Nota-se

que a ocupação cultural possibilita, ainda, a exposição de diversas ideias de jovens

empreendedores, mostrando que têm algo a oferecer, fortalecendo toda e qualquer iniciativa

criativa e independente. O interessante de toda essa mobilização é descobrir a rede que existe

nas nossas relações e como elas podem interagir. 11

Conclusão

A partir do paralelo traçado entre as reformas de Pereira Passos e as que se deram

durante o mandato de Eduardo Paes, levando em consideração todo o contexto das duas

épocas e os processos ocorridos entre os dois períodos, buscou-se trazer à tona a discussão do

real papel das cidades e como nós nos relacionamos com ela, estando inseridos em um espaço

que sofre com processos cíclicos de intervenção baseados, em sua maioria - e como exposto

ao longo do presente estudo - em interesses políticos e econômicos, culminando com a

supressão de direitos - de moradia, habitação digna - e da cultura local.

A partir de 1870, a cidade do Rio de Janeiro passou pela primeira transformação

significativa, um plano estratégico proposto e implementado que fez com que a cidade

caminhasse em uma nova direção, desregulando, privatizando e fragmentando o espaço

urbano. É importante entender que essas transformações não afetam somente o espaço físico

mas também - e principalmente - a forma como as pessoas se relacionam, como as relações

de trabalho se dão, como a cultura se desenvolve e se manifesta dentro dos centros urbanos.

E até aqui outros processos de transformação foram acontecendo; alguns naturais,

como a migração para a zona sul da cidade e, posteriormente, a ocupação da zona oeste, com

o desenvolvimento e crescimento de bairros como a Barra da Tijuca e o Recreio dos

11 Coletivo Trama, disponível em http://trama.net.br/

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Bandeirantes, por exemplo, mas as mais grandiosas e incisivas se deram baseadas em

interesses políticos e econômicos, tendo os megaeventos como grande álibi para sustentar

essas reformas, atingindo o auge no mundo e chegando ao Brasil com a Copa do Mundo e os

Jogos Olímpicos.

O que se propôs aqui foi mostrar como esse processo e a história são cíclicos, como

os mesmos eventos acontecem em períodos distintos da nossa história e como os problemas

do passado, relativos à locomoção, à falta de uma rede que integre os pontos da cidade, à

desigualdade social, à violência, às precárias relações de trabalho, entre outros, persistem no

nosso cotidiano. Vê-se que tais problemas nunca receberam a devida atenção do poder

público: busca-se um marketing e uma modernização dos grandes centros ao mesmo tempo

em que se ignora os reais problemas da cidade e de sua população. Com isso, deixamos de ser

um corpo vivo dentro dela e nos tornamos reféns dos próprios centros, do vai e vem de

operários, de grandes obras, consumindo o que é fabricado e imposto a nós. O espaço urbano

vira alvo de especulação, as desigualdades se acentuam e o direito coletivo à cidade (de ir e

vir, ocupar, usufruir) fica suprimido. O abismo social que configura uma grave consequência

de todo esse processo afeta o marginalizado - que não se vê como parte integrante da cidade

ou dos processos pelos quais ela passa - e alcança a todos, de uma maneira geral, que passam

a temer a violência causada por essas desigualdades.

Todas essas questões merecem um olhar mais atento e a reflexão de como vamos lidar

com o Rio de Janeiro que temos agora, pós Jogos Olímpicos. Os movimentos de ocupação do

espaço público - inclusive o dos coletivos que visam organizar e instigar iniciativas para a

mobilização de pessoas e espaços, criando conexões e catalisando ações colaborativas - são

de suma importância para entendermos esse processo e nos tornarmos os verdadeiros agentes

transformadores da cidade. É necessário repensar e ter em mente a relação que criamos com

as pessoas, de forma a evitar que novos grupos se tornem vulneráveis e sejam, mais uma vez,

deslocados para áreas abjetas.

Qual o preço dessas transformações impostas pelos interesses dos governantes? A que

preço estamos transformando a cidade? A despossessão e a perpetuação de privilégios não

pode mais ser recriada. O momento é de encarar os grandes desafios e buscar entender a

complexa questão urbana do Rio de Janeiro e do Brasil - entendendo que ela atinge não só o

espaço físico dos centros urbanos mas também as relações entre a população, economia e

cultura locais.

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Universidade Federal Fluminense Superintendência de Documentação

Biblioteca da Faculdade de Direito

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O direito à cidade como um direito coletivo: as transformações do Rio de Janeiro desde 1870 até os diais atuais / Mariana Schmidt Neves. – Niterói, 2017.

1. Cidade. 2. Habitação. 3. Urbanização. 4. Interesse coletivo. 5. Especulação.

Indexação – Artigo Científico

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