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UFRRJ
INSTITUTO DE AGRONOMIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
AGRCOLA
DISSERTAO
HISTRIA DE VIDA DE UMA ALUNA COM BAIXA VISO:
CONSTRUO DE ITINERRIOS DE APRENDIZAGEM EM
CURSOS TCNICOS AGRCOLAS
HERIKA RENALLY SILVA PEREIRA
2014
UIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE AGRONOMIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO AGRCOLA
HISTRIA DE VIDA DE UMA ALUNA COM BAIXA VISO:
CONSTRUO DE ITINERRIOS DE APRENDIZAGEM EM CURSOS
TCNICOS AGRCOLAS
HERIKA RENALLY SILVA PEREIRA
Sob a Orientao do Professor
Dr. Denis Giovani Monteiro Naiff
e Coorientao da Professora
Dr Valria Marques de Oliveira
Dissertao submetida como requisito
parcial para obteno do grau de
Mestre em Cincias, no Programa de
Ps-Graduao em Educao Agrcola,
rea de Concentrao em Educao
Agrcola.
Seropdica, RJ
Setembro de 2014
INSERIR FICHA CATALOGRFICA
INSERIR FOLHA DE ASSINATURA
A Maria da Guia, minha me,
e a Maria Luiza, minha sobrinha,
fontes de motivao para viver e crescer.
AGRADECIMENTOS
A Deus, todo poderoso, que na sua infinita misericrdia me permitiu alcanar esta etapa e chegar ao
seu final com sucesso.
Ao professor Denis Giovani Monteiro Naiff, por assinar comigo esta pesquisa.
A Valria Marques de Oliveira, pela orientao sempre acurada e produtiva, mas, sobretudo, pela
pacincia, respeito e solidariedade com os quais me enxergou como pessoa, no somente como
mestranda. Minha sincera gratido, admirao e carinho.
A Saturnina Batista, pela disponibilidade e pela histria de vida que tanto me ensinou.
Aos usurios e profissionais do Instituto de Educao e Assistncia aos Cegos do Nordeste
Instituto dos Cegos de Campina Grande, pela acolhida calorosa e pelas experincias inesquecveis e
engrandecedoras.
A Olegrio Baldo, diretor do Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia de Mato Grosso,
Campus Cceres, pela oportunidade de olhar as pessoas com deficincia bem de perto.
Aos professores Allan Rocha Damasceno e Priscila Pires Alves, pela leitura cuidadosa da minha
pesquisa e pelas contribuies para seu aperfeioamento e continuidade.
Aos colegas do Programa de Ps-Graduao em Educao Agrcola da Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro, pelos momentos nos quais compartilhamos expectativas em comum. Em
especial, aos colegas do Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia de Mato Grosso,
Campus Cceres, pela cumplicidade, e a Giovana, do Instituto Federal de Educao, Cincia e
Tecnologia de Mato Grosso, Campus Fronteira Oeste, em Pontes e Lacerda, pelo encontro
verdadeiro, feliz e prazeroso, que certamente ir perdurar para muito alm deste programa de
qualificao.
A Rafael Resende Rodrigues, pela presena, pelo carinho e pelos puxes de orelha.
A Tnia Ftima Gonalves Atala Ramires, Luiz Antnio da Silva Campos, Marisol Costa Viegas
Muniz, Luiz Laudo Paz Landim e Elisabete Duarte Antunes Dutra, por seus cuidados profissionais e
apoio, sempre que necessrios.
A Jos Hlder Pinheiro Alves, por ter plantado em mim a semente da pesquisa.
A escuta respeitosa tenta apreender a especificidade do mundo pessoal. Nessa perspectiva, o pesquisador ,
antes de mais nada, aprendiz da verdade do outro. Ora, a alteridade por natureza irredutvel. Como alcanar
a viso que o outro tem de si e do seu mundo? Somente pelo dilogo... A dimenso dialgica da investigao
constitui a garantia da adequao do discurso produzido nesse encontro.
(AUGRAS, 1989, p. 14)
RESUMO
PEREIRA, Herika Renally Silva. Histria de Vida de uma Aluna com Baixa Viso: Construo
de Itinerrios de Aprendizagem em Cursos Tcnicos Agrcolas. 2013.94f. Dissertao
(Mestrado em Educao Agrcola). Instituto de Agronomia, Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, Seropdica, RJ. 2013.
Esta pesquisa buscou caracterizar os itinerrios de aprendizagem de uma aluna com baixa viso em
cursos tcnicos agrcolas do Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia de Mato Grosso
IFMT Campus Cceres. Fundamentados em autores como Bardin (2011), Bruner (1997, 2001),
Cyrulnik (2009) e Glat (2009), para alcanar tal objetivo partimos da anlise da histria de vida
desta aluna, coletada por meio de dois relatos. No que diz respeito compreenso da baixa viso,
nos apoiamos em estudiosos como Amiralian (2004, 2009) Caiado (2006, 2011) e Gasparetto
(2007, 2008). A pesquisa, de cunho qualitativo, um estudo de caso, do qual eclodiram sete
categorias de anlise, que nos levaram a reflexes sobre aspectos como: atendimento mdico,
estudo, famlia, direitos das pessoas com deficincia e marcas emocionais e acadmicas do IFMT
Campus Cceres. Sobressaiu-se na nossa anlise o processo de resilincia que a aluna com baixa
viso vivencia constantemente, construdo a partir de caractersticas prprias e da influncia de seu
entorno.
Palavras-Chave; Educao Inclusiva; Histria de vida; Narrativa; Deficincia visual; Baixa viso;
Educao agrcola
ABSTRACT
PEREIRA, Herika Renally Silva. Life History of a Student with Low Vision: Building Learning
Program in Vocational Agricultural. 2013. 94p. Dissertation (Master in Agricultural Education).
Agronomy Institute - Federal University of Rio de Janeiro, Seropdia, RJ. 2013.
This study aimed to characterize the learning program of a student with low vision in Agricultural
Technicians Courses Federal Institute of Education, Science and Technology thick bush - IFMT
Campus Cceres. Based on authors like Bardin (2011), Bruner (1997, 2001), Cyrulnik (2009) and
Glat (2009), to achieve this we start from the analysis of the life history of this student, collected
through two reports. As regards the understanding of low vision, we rely on scholars as Amiralian
(2004), Caiado (2006, 2011) and Gasparetto (2007, 2008). The research, in a qualitative way, is a
case study, which erupted seven categories of analysis that led to reflections on aspects such as:
medical care, study, family, rights of persons with disability and emotional and academic marks the
IFMT Campus Cceres. Stands out in our analysis the process of resilience that the student with low
vision, experiences constantly constructed from characteristics and influences of their surroundings.
Key words; Inclusive Education; Life History; Narrative, Visual disability; low vision; Agricultural
Education
LISTA DE SIGLAS
APAE Associao de Pais e Amigos dos Excepcionais
ASCOM Assessoria de Comunicao
AVD Atividades de Vida Diria
CEFAPRO Centro de Formao e Atualizao dos Profissionais de Educao da Rede Pblica
do Estado de Mato Grosso.
CNE Conselho Nacional de Educao.
DV Deficincia Visual
EAFC Escola Agrotcnica Federal de Cceres
EJA Educao de Jovens e Adultos
GESTAR II Programa Gesto da Aprendizagem Escolar II
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IFMT Instituto Federal de Educao Cincia e Tecnologia de Mato Grosso.
INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira
LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional.
LIDA Livro Digital.
LIDE Laboratrio Interunidades para o Estudo das Deficincias
MEC Ministrio da Educao.
NAPAN Ncleo Avanado do Pantanal
NAPNE Ncleo de Atendimento s Pessoas com Necessidades Especficas.
OMS Organizao Mundial de Sade
ONU Organizao das Naes Unidas.
PNE Plano Nacional de Educao
PPCT Processo, pessoa, contexto e tempo
SECADI Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao, Diversidade e Incluso
SETEC Secretaria de Educao Profissional e Tecnolgica.
TEC NEP Tecnologia, Educao, Cidadania e Profissionalizao para Pessoas com
Necessidades Especficas.
UFPB Universidade Federal da Paraba
UNEMAT Universidade do Estado de Mato Grosso.
UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura.
WHO World Health Organization
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Escala de Snellen ................................................................................................................ 14
Figura 2 Vista area do IFMT Campus Cceres ............................................................................. 344
Figura 3 Localizao de Cceres no Brasil ..................................................................................... 355
Figura 4 Vista area de Cceres ...................................................................................................... 355
Figura 5 Localizao de Cceres em Mato Grosso ......................................................................... 366
Figura 6 Entrada do Prdio Central do IFMT Campus Cceres ..................................................... 377
Figura 7 Vista lateral do Prdio Central do IFMT Campus Cceres. ............................................. 388
SUMRIO
MINHA HISTRIA DE VIDA: OS PORQUS DO OLHAR SOBRE A PESSOA COM
DEFICINCIA ................................................................................................................................... 1
1 A PESSOA COM DEFICINCIA E SUA INCLUSO NO CONTEXTO ESCOLAR .... 5
2 PROFISSIONALIZAO AGRCOLA DE ESTUDANTES COM BAIXA VISO: UM
ESTUDO ATRAVS DA NARRATIVA ....................................................................................... 10
2.1 Deficincia Visual (DV) e Baixa Viso .......................................................................... 10
2.2 Psicologia Cultural e narrativa ........................................................................................ 16
3 A AUTOBIOGRAFIA NA DESCOBERTA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO ... 22
3.1 Teoria Bioecolgica do Desenvolvimento Humano ....................................................... 22
3.2 Histria de vida ............................................................................................................... 24
3.3 Anlise de Contedo ....................................................................................................... 30
3.4 Objetivos ......................................................................................................................... 32
3.4.1. Objetivo geral ........................................................................................................ 32
3.4.2. Objetivos especficos ............................................................................................. 32
3.5 Sujeito ............................................................................................................................. 33
3.6 IFMT Campus Cceres: um pouco de sua histria ......................................................... 34
3.7 Materiais e mtodo .......................................................................................................... 38
3.8 Procedimentos ................................................................................................................. 40
4 HISTRIA DE VIDA DE UMA ALUNA COM BAIXA VISO: APRENDIZAGENS
PARA ALM DO CONHECIMENTO TCNICO AGRCOLA ............................................... 41
4.1 A luta por atendimento mdico ....................................................................................... 42
4.2 O sonho de estudar .......................................................................................................... 46
4.3 A influncia da famlia .................................................................................................... 52
4.4 O enfrentamento de si mesma e dos outros ..................................................................... 55
4.5 A defesa dos direitos das pessoas com deficincia ......................................................... 70
4.6 As marcas do IFMT no mbito emocional ...................................................................... 74
4.7 As marcas do IFMT no mbito acadmico ..................................................................... 78
5 OS PRAZERES E AS DESVENTURAS DE SER QUEM SE ........................................ 85
6 REFERNCIAS...................................................................................................................... 87
7 APNDICES ........................................................................................................................... 92
Apndice A -Termo de Concesso e Autorizao e a Pesquisa ..................................... 93
Apndice B-Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ........................................... 94
MINHA HISTRIA DE VIDA: OS PORQUS DO OLHAR
SOBRE A PESSOA COM DEFICINCIA
A escrita da narrativa remete o sujeito a uma dimenso de auto-escuta,
como se estivesse contando para si prprio suas experincias
e as aprendizagens que construiu ao longo da vida,
atravs do conhecimento de si. (SOUZA, 2006, p. 14)
Fazer uma pesquisa de mestrado no fcil. No apenas no sentido de recorrer
s concepes estabelecidas, de compreender o que outros estudiosos j demonstraram,
de empregar em nossa anlise o que j posto cientificamente. Para mim, os grandes
desafios so escolher o que estudar e, em seguida, dar meu prprio olhar ao objeto de
pesquisa, embora me fundamentando no que estudiosos j disseram. Que opo fazer
entre tantas possibilidades que nossa vida profissional e pessoal nos traz? O que
pesquisar? Depois de escolhido o objeto, como pesquisar? Que pesquisadores chamar
para dentro do nosso discurso?
evidente que nossa histria de vida influencia e muito em tudo isso. Peguei-me
analisando como cheguei at aqui. De que forma a Herika que nasceu h trinta e seis
anos, l em Campina Grande, na Paraba, est hoje enfocando a autobiografia de uma
aluna com baixa viso, estudante de cursos tcnicos agrcolas em Cceres, no Mato
Grosso?
Minha primeira lembrana sobre estudar vem em flashs na minha memria. Eu
ainda era muito pequena... Mas a minha me a reaviva sempre que falamos nisso e, eu
mesma, a realimento sempre. Ela me representa. Aos trs anos de idade comecei a
estudar. Minha me precisava trabalhar e sua melhor opo seria que eu frequentasse a
escola em um dos turnos. Ao chegar instituio escolhida, o Colgio Paroquial
Sagrado Corao de Jesus, a diretora alegou que eu era muito nova para estar em uma
sala de aula. Porm, minha me insistiu e combinaram que eu iria s aulas sem o
compromisso de passar de ano, apenas para brincar. J no primeiro dia na escola, e a
vem a lembrana da qual falei antes, eu trouxe uma atividade para casa. Lembro da
cena: eu e minha me sentadas no tapete caramelo da sala, usando uma mesinha de
centro de mrmore, ps de madeira, como apoio para eu realizar a tarefa. Acima de ns
um abajur redondo, de p comprido, iluminava as nossas ideias. Quando minha me
quis me ensinar como fazer a tarefa eu pedi que ela tirasse os culos, sasse e deixasse
que eu sabia fazer sozinha. Dou risadas lembrando disso.
Quanta ousadia, aos trs anos de idade, achar que no precisava dos outros... O
resultado daquilo no foi muito bom: nunca mais minha me quis me ensinar tarefa
nenhuma. Hoje sei que preciso e gosto de precisar, ou melhor, gosto de poder contar
com os outros, como foi o caso desse mestrado, para ampliar meus horizontes, para me
apresentar coisas sobre as quais eu nunca pensei, sobre as quais nunca li, nunca refleti.
Ou para me fazer pensar, ler e refletir de modo diferente a respeito do que eu j havia
pensado, lido e refletido antes. um desafio, mas tambm um grande prazer.
2
Ao final do ano letivo de 1980 l estava eu entre os alunos que aprenderam o
que a escola esperava e que deveriam passar de ano. Era assim que a gente falava...
Houve mais uma conversa entre a diretora e minha me: E agora? O que fazer com essa
menina? Ela conseguiu aprender tudo. Minha me disse o que para ela parecia o bvio:
Ora, passe ela para a prxima srie. Foi assim que aos quatro anos aprendi a ler e, penso
que desde aquela poca, a amar as palavras.
Aps os primeiros anos escolares no Paroquial, como costumvamos chamar a
minha primeira escola, ingressei no Colgio Alfredo Dantas, no qual permaneci nas
demais sries do Ensino Fundamental e at concluir o Ensino Mdio. No momento
dessa escrita me vem mente a fase pr-vestibular, na qual, aos quinze anos, eu
precisava escolher o que eu queria ser quando crescer. Mas eu j tinha crescido? Parece
que ainda havia tanto a viver antes dessa escolha... Ao mesmo tempo, aquele amor s
palavras falou mais forte. E veio a segurana de eleger o meu caminho.
Em 1993 iniciei minha vida acadmica ingressando no Curso de Letras, na
UFPB - Universidade Federal da Paraba, Campus Campina Grande. Fiz a opo por
cursar, simultaneamente, duas habilitaes: em Lngua Portuguesa e em Lngua
Francesa e suas respectivas literaturas, as quais conclu em 1998. Durante minha
permanncia na UFPB, constantemente estive engajada em programas de monitoria e de
iniciao docncia, nos quais atuei como bolsista de literatura brasileira, lngua
portuguesa e lngua francesa e pude tambm experimentar o universo da pesquisa
acadmica. Desta forma, participei de diversos eventos, como ouvinte e como
expositora/comunicadora, chegando a receber, inclusive, meno honrosa pela
apresentao da pesquisa A Poesia no Livro Didtico de Stima e Oitava Sries, que
veio a ser aprofundada e transformada em minha monografia de concluso da
graduao, sob a orientao do Prof. Dr. Jos Hlder Pinheiro Alves, a quem agradeci,
nesta dissertao, por ter plantado em mim a semente da pesquisa.
Aps o encerramento das duas habilitaes do Curso de Letras, me mudei para a
cidade de Cceres, no Mato Grosso, na qual iniciei minha vida profissional e onde moro
at hoje. Aqui lecionei francs e portugus por muitos anos. Senti os prazeres e as
desventuras de ser professora. Vivenciei as agruras e a felicidade de partilhar saberes e
trajetrias de aprendizagem no ambiente escolar. Quer dizer, leciono, sinto e vivencio.
A educao o meu universo. nela, por ela e para ela que eu sei caminhar.
De fevereiro de 1999 a janeiro de 2008 atuei como professora de Lngua
Francesa no Departamento de Letras do Campus Cceres, da UNEMAT Universidade
do Estado de Mato Grosso. Nesta instituio tambm assumi outras funes, como a de
Coordenadora do Centro de Lnguas, Coordenadora da Revista de Estudos Acadmicos
do Departamento de Letras/Cceres e Assessora do Diretor do Instituto de Linguagem.
Em 2000, a partir de concurso realizado no ano anterior, fui nomeada Professora
de Lngua Portuguesa da Rede Pblica Estadual de Mato Grosso. Fiquei lotada na
Escola Estadual Raimundo Cndido dos Reis, mais tarde unificada com a Escola
Estadual Unio e Fora, na qual lecionei at 2008 e onde tambm exerci a funo de
Coordenadora Pedaggica. Afastei-me por trs anos e desde agosto de 2013 voltei s
salas de aula de outra escola da Rede Estadual, desta feita, a Escola Estadual So Luiz,
na qual, desde ento, estou redescobrindo os prazeres e as desventuras de ser professora.
No ano de 2009, aps processo seletivo do qual participaram apenas professores
efetivos da Rede Estadual de Ensino, passei a exercer a funo de professora-formadora
da rea de linguagem, no CEFAPRO/Cceres Centro de Formao e Atualizao dos
Profissionais de Educao da Rede Pblica do Estado de Mato Grosso. Atuei,
sobretudo, como orientadora do Programa Gesto da Aprendizagem Escolar
3
GESTAR II, em cinco municpios prximos a Cceres. O trabalho foi feito com os
professores de Lngua Portuguesa, de quinta a oitava sries, e baseou-se no material
impresso distribudo pelo MEC, que deveria ser estudado e aplicado em sala de aula,
sob a nossa orientao.
Minha passagem pelo CEFAPRO/Cceres e, especificamente, minha experincia
como formadora deste programa, me proporcionaram decepes e preocupaes, frente
s dificuldades pelas quais passam nossas escolas, professores e alunos, mas tambm
imensa alegria, por ver que h muita gente querendo fazer algo para melhorar o ensino e
que h muitos alunos que querem aprender. Rememoro cenas que me emocionaram,
tanto no encontro com os professores, quanto na convivncia com seus alunos. Foi um
ano inteiro de novidades.
Em 2009 me submeti a concurso pblico para a Rede Federal de Ensino, para o
cargo de Tcnico em Assuntos Educacionais. Assumi este concurso em fevereiro de
2010, no IFMT - Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia de Mato Grosso,
Campus Cceres. Na minha chegada havia trs possibilidades de lotao. Mais uma vez
a escolha. E mais uma vez a deciso acertada. Optei pela coordenao do NAPNE
Ncleo de Atendimento s Pessoas com Necessidades Especficas.
E agora? Dvidas outra vez. Incertezas. O universo das pessoas com deficincia
sempre me chamou a ateno, mas no sabia nada sobre ele. Ao longo da minha carreira
docente j havia buscado formao nesta rea, por meio de cursos e eventos ligados
temtica. Porm, parecia to pouco. Na verdade, muito pouco e, por mais que eu
estude, sempre ser muito pouco. Acho que da a certeza comeou a brotar. Seria uma
oportunidade de descoberta.
No IFMT Campus Cceres tive possibilidade de desenvolver atividades
variadas, na rea de incluso de pessoas com necessidades especficas, pela qual eu j
nutria um forte interesse. As referidas atividades tiveram foco na formao continuada
de servidores, na sensibilizao de alunos e no atendimento comunidade. O objetivo,
atravs dos cursos, palestras e projetos efetivados ao longo desses mais de trs anos, foi
inserir a cultura da incluso e do respeito diversidade na comunidade escolar da qual
fao parte, de modo a fomentar em todos o compromisso de exercer o seu papel nesse
processo em construo.
Mais do que descoberta terica, assumir o NAPNE e poder olhar mais de perto
as pessoas com deficincia me trouxe uma satisfao imensa. Aprender com as histrias
de vida dessas pessoas, ento, que riqueza.
Em 2011 surgiu a oportunidade de concorrer a uma vaga no Programa de Ps-
Graduao em Educao Agrcola da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
No tive dvidas quanto rea sobre a qual queria pesquisar: incluso de pessoas com
deficincia. A veio o desafio sobre o qual falei no incio desse texto: o que e como
pesquisar. Fiz uma escolha intuitiva que, mais tarde, em encontros de orientao, j
como aluna do programa, foi lapidada, burilada. O refinamento da ideia inicial de
pesquisa, por meio de conversas sobre o contexto do IFMT nessa rea, amadureceu o
desejo de trabalhar com as palavras, de ouvir o prprio sujeito. Toda a minha histria
alinhavada pelas palavras, pela magia do que elas podem transmitir e tambm ocultar.
O intuito, portanto, no s avanar em minha carreira acadmica e preparar-me
melhor para exercer a funo para a qual fui designada. , mormente, aprofundar-me
em aspectos relevantes do universo da pessoa com deficincia, contados por ela mesma.
dar voz queles que muitas vezes so calados pelo descaso ou pelo despreparo, pela
abundncia de piedade ou pela ausncia de igualdade, enfim, pela desesperana. Meu
4
objetivo maior , sem dvida, valorizar esse sujeito na construo de seus itinerrios de
aprendizagem escolar e, sobretudo, de vida.
Fica aqui o convite leitura dessas minhas descobertas, que, pretendo, iro
muito alm.
5
1 A PESSOA COM DEFICINCIA E SUA INCLUSO NO CONTEXTO ESCOLAR
A incluso do aluno deficiente na escola regular o eixo deste trabalho.
E essa opo de iluminar a reflexo sobre a incluso (...) revela,
uma vez mais, a necessidade de (re)aprendermos a olhar a realidade escolar,
de modo que enxerguemos, por dentro,
a trama que envolve a questo da incluso do aluno deficiente. (DE SORDI, 2006, p. 1)
O panorama mundial demonstra que h um empenho crescente em construir uma
sociedade solidria, na qual os direitos humanos sejam respeitados e promovidos. Neste
sentido, um dos maiores desafios pr em prtica, na educao, o princpio da incluso,
que vm sendo bastante debatido nos ltimos tempos, sobre o que podemos destacar sua
ampla adoo, a partir da Conferncia Mundial sobre as Necessidades Educativas
Especiais: acesso e qualidade, que originou a chamada Declarao de Salamanca, em
1994, documento de suma importncia nesse mbito de discusso. Mais tarde, no
Frum Mundial de Educao, em Dacar, em 2001 (UNESCO, 2001), este princpio foi
reafirmado, sendo tambm apoiado pelas Regras Bsicas das Naes Unidas em
Igualdade de Oportunidades para Pessoas Portadoras de Deficincias e, ainda,
debatidas durante a 48 Conferncia Internacional de Educao em Genebra, em 2008.
No Brasil, alm do respeito aos textos originados em tais eventos, documentos
legais, no que tange educao inclusiva, tambm vm sendo construdos e passam a
fazer da incluso um tema bastante debatido no pas e j posto em prtica em muitos
contextos, para que sejam assegurados os direitos sociais e individuais e para que a
imensa dvida social brasileira para com diversos segmentos da populao seja
devidamente resgatada.
Pensar uma escola capaz de atender a todos com qualidade e respeito
s diferenas um desafio a ser superado pela sociedade brasileira.
Construir uma cultura de valorizao da diversidade exige de quem
ocupa espaos de tomada de deciso, coragem e compromisso.
Coragem de enfrentar verdades cristalizadas e grupos politicamente,
edificados sobre o processo de segregao escolar e social da pessoa
com deficincia. Compromisso com a implementao dos documentos
internacionais ratificados pelo Brasil, relativos ao direito educao
inclusiva e, por fim, contribuir, efetivamente, para uma profunda
transformao social (SANTOS, 2008, p. 53).
O mote, portanto, uma educao, que pense e respeite as diferenas e na qual
as Polticas Pblicas e as prticas pedaggicas visem implementar a incluso. Porm,
mesmo com o aumento constante das matrculas de pessoas com necessidades
6
educacionais especiais nas redes regulares de ensino, as condies para que estes alunos
alcancem o sucesso escolar ainda continuam desiguais, na maioria dos casos. Uma das
razes para que esta desigualdade permanea diz respeito discriminao da qual so
alvo durante o processo de escolarizao.
Em outras palavras, o direito de no ser discriminado e de ter acesso
aos recursos e aos apoios de que necessitam para estudar em
condies de igualdade ainda permanece a marca predominante da sua
vida escolar, e por isso que se torna urgente a promoo da aquisio
de conhecimentos relevantes na rea de direitos humanos por parte de
educadores(as) e comunidades escolares (FERREIRA, 2009, p. 31).
No caso da Rede Federal de Educao Profissional, Cientfica e Tecnolgica,
que foi criada atravs da Lei 11.892, de 29 de dezembro de 2008 (BRASIL, 2008), as
principais secretarias responsveis por pensar estas polticas, atravs do Ministrio da
Educao (MEC), so a Secretaria de Educao Profissional e Tecnolgica (SETEC) e a
Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao, Diversidade e Incluso (SECADI),
que vm, ao longo do tempo, trabalhando com o intuito de promover uma educao
mais justa, no discriminatria e de qualidade para todos.
Desde julho de 2001, a SETEC promove a ao TEC NEP (Tecnologia,
Educao, Cidadania e Profissionalizao para Pessoas com Necessidades Especficas),
que visa constituir ncleos denominados NAPNEs - Ncleos de Atendimento s Pessoas
com Necessidades Especficas, que devem consolidar-se como centros de referncia
para garantir o sucesso do acesso, da permanncia e do encaminhamento desse pblico-
alvo ao mundo do trabalho, por meio de cursos de formao inicial e continuada,
tcnicos, graduao e ps-graduao.
O objetivo principal incentivar a cultura da "educao para a convivncia", que
a aceitao da diversidade e, principalmente, buscar a quebra das barreiras
arquitetnicas, educacionais, de comunicao e atitudinais, promovendo a justia social,
o respeito e a valorizao das diferenas na educao e no acesso ao trabalho.
Pretende-se uma maior abertura frente efetivao da incluso de pessoas com
necessidades educacionais especiais. O desenvolvimento de adaptaes na organizao
escolar, no currculo e nas estratgias de ensino/aprendizagem precisa ser empreendido,
para que se d a implementao das Polticas de Educao Inclusiva.
Consequentemente, argumenta-se que as escolas precisam ser
reformadas e a pedagogia deve ser melhorada, de maneira que possam
responder positivamente diversidade dos alunos, isto , abordando as
diferenas individuais no como problemas a serem consertados, mas
como oportunidades para enriquecer o aprendizado [...] o
desenvolvimento de prticas inclusivas pede queles envolvidos em
um contexto particular que trabalhem juntos no sentido de lidar com
as barreiras educao experimentadas por alguns alunos
(AINSCOW, 2009, p. 14).
Desta forma, luta-se para que no haja violao dos direitos das pessoas com
deficincia e para que estas usufruam oportunidades que possam lhes garantir uma vida
digna e produtiva. Ferreira (2009) nos indica que:
existe uma lacuna de conhecimentos sobre os direitos humanos e a sua
consequente violao (por exemplo, na forma de comportamentos,
7
procedimentos, sanes ou exigncias discriminatrias) na formao
dos educadores(as), a qual constitui slida barreira para o
desenvolvimento de escolas inclusivas para todos(as) quando se trata
especificamente do grupo social constitudo por crianas, jovens e
adultos com deficincia (FERREIRA, 2009, p. 26).
Porm, a incluso em educao pede conhecimento dos direitos humanos e o
enfrentamento das questes por meio de um processo de transformao de valores em
ao, que resulte em prticas e servios educacionais, em sistemas e estruturas que
incorporem estes valores na busca por uma educao inclusiva, que respeite a
diversidade presente no cerne das instituies de ensino (AINSCOW, 2009, p. 21).
Desde o advento da Declarao Universal dos Direitos Humanos, adotada pela
ONU (Organizao das Naes Unidas) em 1948, vm sendo desenvolvido
progressivamente o reconhecimento dos direitos das pessoas com deficincia, em todas
as suas vertentes, quais sejam: dos direitos civis, isto , referentes proteo da
integridade fsica, psicolgica e moral dos indivduos; dos direitos econmicos, sociais
e culturais, que propiciam s pessoas uma participao ativa na sociedade; e dos direitos
polticos, relativos ao exerccio de poder, em uma sociedade democrtica, nas atividades
pblicas da nao (FLEURI, 2009):
urgente, portanto, que olhemos o mundo de forma a ver
protagonizada, em nossas aes individuais e coletivas, a
possibilidade de transformao da sociedade excludente em que
vivemos e a afirmao dos direitos de todo cidado,
independentemente da sua condio sociocultural, poltica,
econmica, fsica, sensorial e mental (SILVA, 2009, p. 196).
No tocante educao inclusiva, este movimento teve incio nos pases
escandinavos, denominado como full inclusion, e foi sendo solidificado nos Estados
Unidos e no Canad, tendo se tornado presente na maioria dos pases da Europa, at
chegar ao Brasil, aonde vem sendo defendido desde 1970, visando o fim da segregao
das pessoas com deficincia e o favorecimento da interao destas com as demais, tanto
na vida social quanto educacional, o que justifica-se como princpio na medida em que
se refere aos valores democrticos de igualdade, participao ativa, respeito, direitos e
deveres socialmente estabelecidos (FLEURI, 2009, p. 69).
Evidencia-se que a insero ativa de pessoas com deficincias nos
processos institucionais escolares e empresariais requer, muito alm
de adaptaes circunstanciais, transformaes paradigmticas e
profundas no sistema organizacional, assim como o desenvolvimento
de concepes, estruturas relacionais e referenciais culturais capazes
de agenciarem a complexidade e a conflituosidade inerentes
interao entre diferentes sujeitos, linguagens, interesses, culturas
(FLEURI, 2009, p. 66).
No Brasil, o conceito de necessidades educacionais tomou corpo a partir da
Declarao de Salamanca (UNESCO, 1994) e os direitos das pessoas com deficincia
foram retomados em documentos legais nacionais. Algumas aes do poder pblico e
da sociedade em torno do direito de todas as pessoas educao escolar de qualidade, a
partir, por exemplo, de prticas pedaggicas que priorizem a incluso, esto sendo
8
desenvolvidas, pois, devem constituir meta governamental e estar no centro da agenda
das polticas pblicas (federal, estadual e municipal), dos projetos polticos pedaggicos
e das misses de organizaes do terceiro setor (FERREIRA, 2009, p. 32).
A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDB) - Lei n 9394/96 j
trazia em seu Captulo V que os alunos com necessidades especiais deveriam ser
matriculados preferencialmente nas escolas regulares e institui o dever do Estado de
estabelecer os servios, os recursos e os apoios necessrios para garantir escolarizao
de qualidade para esses estudantes (BRASIL, 2001, Art. 3). Em 2001 e em 2004,
respectivamente, as Diretrizes Nacionais para a Educao Especial na Educao Bsica
CNE n 02/2001 e o Plano Nacional de Educao PNE tambm corroboraram com
este compromisso, com vistas a responder aos problemas de desigualdades no acesso,
permanncia e sucesso escolar, por parte de grupos vulnerveis social e
educacionalmente.
Buscando redimensionar as possibilidades de interao e reconhecimento civil
das pessoas com necessidades especficas, por meio do foco na aprendizagem, e no nos
diagnsticos mdicos, no lugar da nfase nas deficincias, o que se pretende salientar
a relevncia de adequaes das condies de aprendizagem oferecidas pelas escolas,
que devem rever seus saberes e fazeres, em prol de uma educao que favorea a todos,
em sua diversidade, respeitando suas diferenas e necessidades especficas, seus tempos
e seus modos de aprendizagem:
Em vez de se atribuir ao estudante a origem de um problema, define-
se seu tipo de insero no contexto escolar pelo tipo de resposta
educativa e de recursos e apoios que a escola deve proporcionar-lhe
para que obtenha sucesso escolar. Em vez de esperar que o estudante
se ajuste unilateralmente a padres de normalidade para aprender,
interpela-se a prpria organizao escolar, no sentido de que se
reestruture para atender diversidade de seus educandos (FLEURI,
2009, p. 69).
De forma que:
Hoje, impem-se modificaes estruturais nos sistemas escolares a
fim de consolidar o carter universal e plural da escola que se deseja
construir em nosso tempo. nessa direo que polticas nacionais e
internacionais vm sendo proclamadas para combater a segregao
escolar e edificar, os alicerces de uma escola para todos (SANTOS,
2008, p. 52).
O que se persegue a aceitao de que mltiplos contextos devem ser
articulados na busca de equidade socioeducacional, de modo que pessoas e grupos
diferentes tenham oportunidades semelhantes de percorrer seus diversos caminhos,
garantindo o protagonismo de cada um, pois acreditamos que:
A construo de uma cultura social respeitadora dos Direitos
Humanos pode formar a base social que garanta o xito que as
polticas de incluso necessitam na direo de no serem vistas como
um compromisso a mais do universo escolar (VIOLA, 2008, p. 55).
9
Segundo Fleuri (2009):
Este nos parece ser justamente o desafio intercultural que se coloca
nas prticas de educao inclusiva: articular a diversidade de sujeitos,
de contextos, de linguagens, de aes, de produes culturais, de
modo que a potencializao de suas diferenas favorea a construo
de processos singulares e de contextos socioeducacionais crticos e
criativos (FLEURI, 2009, p. 76).
H que pensarmos, portanto, a incluso como uma mola mestra, que permite
sociedade, alavancar a vida dos pertencentes a grupos minoritrios, de modo a diminuir
as diferenas. A incluso deve ser vista no apenas como o fato de admitirmos pessoas
com necessidades especiais nos ambientes de uso comum. Incluir dar condies para
que esta participao se realize o mais plenamente possvel, sem barreiras, propiciando
igualdade de cidadania, porm, respeitando as diferenas, as individualidades, como
deve acontecer com qualquer pessoa, com necessidades educacionais especiais ou no.
A educao inclusiva de qualidade se baseia no direito de todos
crianas, jovens e adultos a receberem uma educao de qualidade
que satisfaa suas necessidades bsicas de aprendizagem e enriquea
suas vidas. [...] Em um pas to diverso e complexo como o Brasil, a
educao no pode representar mais um mecanismo para excluir as
pessoas cujas necessidades de aprendizagem exigem uma ateno
especial. Na educao para todos, inaceitvel que se qualifique
todos (FVERO, 2009, p. 6).
Comprometido com este ideal o Instituto Federal de Educao, Cincia e
Tecnologia de Mato Grosso (IFMT), Campus Cceres, tem em seu histrico acadmico
a matrcula de uma aluna com baixa viso, em cursos tcnicos agrcolas. O estudo em
pauta situa-se na rea de pesquisa Educao e Gesto no Ensino Agrcola e pretende
compreender a construo do processo de ensino/aprendizagem desta aluna enquanto
estudante dos cursos Tcnico em Florestas (2009/2010) e Tcnico em Agricultura
(2011/2012), a partir da narrativa de sua histria de vida acadmica neste perodo.
Este estudo baseia-se na abordagem scio-cultural ecolgica, defendida por
Bronfenbrenner (1996), que concebe a constituio do sujeito numa perspectiva
dialtica e complexa, numa interrelao entre a histria individual, a histria social, a
cultura, isto , numa interrelao entre os indivduos e o ambiente. Desse ponto de vista
a deficincia no enxergada sob o prisma da perda, da limitao, mas sim da urgncia
de modificao do meio para atender s necessidades da pessoa com deficincia.
A pesquisa foi organizada inicialmente com a discusso dos conceitos de baixa
viso e educao inclusiva, assim como da narrativa na perspectiva da Psicologia
Cultural. Na sequncia, enfocamos a Teoria Bioecolgica e a histria de vida,
procurando traar o papel da autobiografia na descoberta do desenvolvimento humano e
depois tratamos da metodologia da pesquisa. Por fim, sero apresentadas as sete
categorias de anlise que emergiram do discurso da entrevistada. Por sua vez, nossas
consideraes finais evocam os prazeres e as desventuras de ser uma pessoa com
deficincia.
10
2 PROFISSIONALIZAO AGRCOLA DE ESTUDANTES COM BAIXA VISO: UM ESTUDO
ATRAVS DA NARRATIVA
Compreender a baixa viso nas dimenses mdica, educacional e psicossocial
fundamental para os educadores. Estes no tm a responsabilidade do especialista,
mas muito podero fazer para que sejam encontradas
as respostas educativas necessrias ao bom desempenho do aluno
e s atitudes de respeito condicionantes da aprendizagem
e do desenvolvimento humano. (ORMELEZI, CORSI e GASPARETTO, 2007, p.69)
A escolarizao inclusiva do estudante com necessidades especiais promove no
apenas uma adaptao, mas uma revoluo na compreenso sobre a construo do
conhecimento. Valorizar a diversidade e desenvolver o indivduo no significa negar o
coletivo, mas exercitar a convivncia. Da mesma forma, valorizar as potencialidades e
reconhecer as necessidades especficas do estudante, no significa negar as dificuldades,
mas respeit-las e super-las.
A baixa viso insere-se na categoria da deficincia visual, contudo, possui
caractersticas especficas que necessitam ser conhecidas e reconhecidas para que o
estudante nesta condio receba os recursos e apoios educacionais necessrios que
favoream um ambiente inclusivo que colabore com o seu processo de
desenvolvimento. A coleta de informaes a partir do prprio estudante nesta condio
alimenta a reflexo e fortalece a consolidao da proposta inclusiva deste iderio
educacional. A psicologia cultural oferece ferramentas para esta empreitada, destaca-se
o uso da narrativa como instrumental metodolgico de pesquisa, que ao mesmo tempo
funciona como ferramenta de desenvolvimento pessoal.
2.1 Deficincia Visual (DV) e Baixa Viso
Conforme o Parecer n 17/2001, do Conselho Nacional de Educao, h trs
grupos de pessoas com necessidades educacionais especiais, formados por: 1) pessoas
com dificuldades acentuadas de aprendizagem, vinculadas ou no a alguma causa
orgnica especfica ou a condies, disfunes, limitaes ou deficincias; 2) pessoas
que apresentam dificuldades de comunicao e sinalizao ou distrbios acentuados de
linguagem, diferenciados dos demais estudantes 3) pessoas que apresentam altas
habilidades/superdotao (FLEURI, 2009, p. 70).
A pesquisa em tela toma como ponto de partida a investigao da histria de
vida de uma aluna com deficincia visual denominada baixa viso. O Instituto
11
Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) investigou entre as caractersticas das
pessoas, no Censo Demogrfico 2010, a existncia dos seguintes tipos de deficincia:
visual, auditiva, motora e intelectual. Segundo os resultados preliminares da amostra,
divulgados no final de 2011, no Brasil, dos 190.755.799 de habitantes, 45.623.910
reportam possuir algum tipo de deficincia. Destes, 35.791.488 afirmam ter deficincia
visual, isto , dificuldade permanente de enxergar, mesmo com o auxlio de culos ou
lente de contato, sendo que 528.624 no conseguem de modo algum, 6.056.684 dizem
ter grande dificuldade e 29.206.180 declaram enfrentar alguma dificuldade. Os dados
referentes ao Estado de Mato Grosso, no qual a presente pesquisa ser realizada,
apresentaram os seguintes resultados: das 3.035.122 pessoas investigadas, 669.010 tm
pelo menos uma das deficincias citadas pelo IBGE, sendo que 549.731 identificaram-
se como pessoas com deficincia visual, entre as quais 5.276 se declararam
permanentemente incapazes de enxergar, 91.404 disseram ter grande dificuldade e
453.051 alguma dificuldade.
Portanto, os dados acima apresentados dizem respeito no s s pessoas cegas,
mas tambm as que tm baixa viso. interessante percebermos que nem sempre foi
esta a denominao empregada, mas que ela se modifica, ao longo do tempo, conforme
o foco que os tericos do questo. Na dcada de 50, por exemplo, a preocupao
estava centrada na falta da viso e as pessoas com deficincia visual eram chamadas por
muitos autores de cegos, parcialmente videntes e parcialmente cegos. J na dcada de
70, o Brasil adotou o termo viso reduzida, considerando que este valorizava mais o que
restava da viso do que a sua ausncia. Entretanto, passou-se a perceber que o ponto
principal para enfrentamento deste problema era a limitao, por condies orgnicas,
na capacidade de captar visualmente o mundo, o que levou especialistas a adotarem o
termo viso subnormal. Embora este termo ainda esteja presente no discurso de muitos
especialistas e, at mesmo em documentos oficiais, ele carrega um trao que pode levar
ao preconceito e discriminao, o que faz com que, atualmente, considere-se mais
apropriado a adoo do termo baixa viso, at mesmo porque vem se tentando operar
uma mudana no foco para a possibilidade de ver, e no mais para a cegueira.
(AMIRALIAN, 2004)
Para a deficincia visual ser classificada como baixa viso ou viso subnormal,
preciso que a acuidade visual do indivduo, no melhor olho e com a melhor correo
tica, esteja entre 6/18 (0,3) e 3/60(0,05), conforme preconiza a OMS Organizao
Mundial de Sade (World Health Organization WHO). Essa perda grave de viso
caracteriza-se pela impossibilidade de correo clnica ou cirrgica e pode comprometer
funes como acuidade e campo visual, sensibilidade a contrastes, percepo de cores e
adaptao luz e ao escuro (GASPARETTO, 2008). A dificuldade visual da pessoa
com baixa viso interfere na sua habilidade visual, podendo trazer alguma espcie de
incapacidade funcional. Entretanto, h diversos fatores ambientais que influenciam a
maior ou menor utilizao dos resduos visuais, por parte das pessoas com esse tipo de
deficincia, fazendo com que o grau de autonomia para as atividades cotidianas,
inclusive as escolares, possa ser aprimorado.
Alguns exemplos de atividades que encorajam a autonomia de pessoas com
deficincia visual so os cursos de Orientao e Mobilidade e de Atividades de Vida
Diria (AVD). O curso de Orientao e Mobilidade visa trabalhar a constituio e
organizao do espao, ou seja, a pessoa com deficincia visual aprende a lidar com a
noo de onde ela est e onde esto os objetos, em relao a ela e aos demais objetos.
Essa construo da noo de espao tambm interfere na coordenao dos movimentos
e na locomoo da pessoa. So ainda atividades pertinentes orientao e mobilidade:
12
identificar as dimenses e as caractersticas de um ambiente, verificar a presena de
outras pessoas neste ambiente (AMIRALIAN, 2004).
As AVDs dizem respeito rotina de cuidado pessoal, cuidado com outras
pessoas e com o ambiente domstico e externo, como o escolar, o profissional e outros
ambientes sociais (ARRUDA, 2008). Essas orientaes pelas quais as pessoas com
baixa viso devem passar atravs do trabalho de profissionais especializados, que
lanaro mo de tcnicas apropriadas a cada caso, esto diretamente relacionadas com a
qualidade de vida proporcionada por tal reabilitao, que motiva a interao da pessoa
com baixa viso. Segundo Arruda:
(...) no cotidiano, pratica-se a AVD com diferentes finalidades, desde
a satisfao de necessidades biolgicas, localizao e adequao do
espao fsico at a aquisio de conhecimentos, habilidades e atitudes
(ARRUDA, 2008, p. 156).
So, portanto, atividades rotineiras, como tomar banho e lavar a cabea, fazer
compras, ler, escrever, cozinhar, assistir televiso, manejar dinheiro, organizar
objetos, comer, beber e vestir-se, para as quais, quanto mais a pessoa com baixa viso
sentir-se segura para realizar, mais positivo ser para sua autoconfiana e
independncia.
Outras formas de otimizar a capacidade funcional de pessoas com baixa viso
a utilizao de recursos pticos, que so aqueles que possuem lentes e so prescritos por
oftalmologistas ou ortoptistas, como telescpios, lupas, culos especiais, e recursos no
pticos, ou seja, que no pressupem o emprego de lentes, a exemplo do uso de
ampliao, contrastes, iluminao, recursos de informtica, como ampliadores e
programas de voz, que auxiliam no contato da pessoa com os textos em tinta. A pessoa
com baixa viso geralmente recorre ao Braille apenas quando possui alguma doena
degenerativa, que mais tarde acarretar em sua condio de pessoa cega, ou para
auxili-la em dias em que as condies ambientais no estejam favorecendo a utilizao
dos resduos visuais que ela possui. O livro digital (LIDA) outra ferramenta que
auxilia a escolarizao destes estudantes.
A utilizao de tecnologias assistivas, como as que citamos anteriormente
definida a partir da avaliao de uma equipe multidisciplinar especializada, na qual o
mdico oftalmologista e o ortoptista devem juntar-se ao psiclogo, ao assistente social e
ao pedagogo, entre outros profissionais habilitados para realizar tal atendimento, de
forma a melhor aproveitar o potencial visual da pessoa acompanhada e orient-la para
seu melhor desempenho.
Quando pensamos em explorar a viso residual de pessoas com baixa viso,
devemos levar em considerao que o desempenho visual que elas iro apresentar no
sempre uniforme, mas sim varivel e depende de fatores fsicos, emocionais,
ambientais. Portanto, as condies de sade, a familiaridade com a tarefa proposta e
com as pessoas nela envolvidas e o estresse, por exemplo, fazem variar o nvel do
desempenho visual da mesma pessoa (GASPARETTO, 2008).
As causas da baixa viso podem ser congnitas ou adquiridas, isto , a pessoa
pode nascer com este tipo de deficincia ou pode adquiri-la ao longo da vida. Algumas
das causas da baixa viso podem advir de doenas como sarampo, rubola, glaucoma,
catarata, ceratocone, entre outras.
Amiralian (2004) se reporta a uma pesquisa realizada no LIDE Laboratrio
Interunidades para o Estudo das Deficincias, da Universidade de So Paulo, na poca,
13
sob sua coordenao. Por meio desta pesquisa, baseada no tema A criana deficiente
visual com problemas de aprendizagem: um modelo para atendimento integral,
comprovou-se que as pessoas com baixa viso possuem caractersticas diferentes das
pessoas cegas, assim como seus problemas e necessidades tambm so particulares.
Peculiares so ainda os modos de desenvolvimento e de organizao da personalidade
destas pessoas, que merece um tratamento especfico, diferente daquele que demandam
os cegos. As pessoas com baixa viso no so facilmente identificadas como tal, alm
do que frequentemente o problema por elas enfrentado deslocado para outras reas:
Em relao questo da falta de identificao do aluno como
possuidor de baixa viso, um aspecto notado foi que quase nunca eles
so tratados como pessoas que possuem capacidade limitada para
perceber visualmente o mundo. ao seu redor. So tratadas s vezes
como pessoas cegas e em outros momentos como pessoas visualmente
normais. Parece no existir uma compreenso clara e definida do que
sejam pessoas com baixa viso (AMIRALIAN, 2004, p. 20).
Segundo a autora, como se as pessoas s admitissem duas possibilidades: ser
cego ou enxergar. Diante deste fato, no procuram se inteirar sobre os modos como a
pessoa com baixa viso percebe o mundo e as potencialidades de seu relacionamento
com ele. A falta de clareza sobre o que realmente significa enxergar menos leva a uma
fragilidade do conceito que identifica o que e como se constitui a pessoa com baixa
viso (AMIRALIAN, 2004, p. 21). Ainda retomando a pesquisa empreendida no
LIDE, Amiralian (2004) destaca, acerca da investigao que teve como foco propor
aes de interveno, para minimizar problemas de aprendizagem de alunos com
deficincia visual, em escolas regulares:
A ausncia de clareza sobre como essas crianas percebem o mundo
os levavam a considerar as dificuldades da criana como decorrentes
de outras incapacidades pessoais, e no de sua limitao para
enxergar. As dificuldades de realizao, tanto as que se referiam s
tarefas escolares como a comportamentos sociais eram, na maioria das
vezes, computadas ineficincia, incapacidade mental ou falta de
vontade. (AMIRALIAN, 2004, p.20)
Outros aspectos inerentes condio de pessoa com baixa viso, observados a
partir da pesquisa desenvolvida por Amiralian (2004) e seu grupo do LIDE dizem
respeito questo da identidade e da pertena:
A identidade pessoal a condio bsica para o desenvolvimento
psquico do ser humano. A constituio dessa identidade e seu
fortalecimento e definio, conquistados durante o percurso do
desenvolvimento, so a base sobre a qual se constri a personalidade
individual (AMIRALIAN, 2004, p. 22).
Neste sentido, a identidade, o si mesmo, vm se constituindo, alicerados pelas relaes
com o outro e com o meio em que vivemos que demandam nossas aes. De modo que as
experincias de vida de cada um e o tipo de relaes interpessoais vividas influenciam o porvir:
A definio da identidade pessoal vai se fortalecendo e se
enriquecendo no seio das relaes interpessoais pelo espelho que o
14
olhar do outro oferece, pela confiana no ambiente que realimenta a si
mesmo e pela reafirmao das competncias pessoais que fortalecem
o ego (AMIRALIAN, 2004. p. 23).
Acerca do sentimento de pertena, Amiralian afirma ser ele o responsvel por
nossa identificao com um ou outro grupo, com aqueles que so nossos iguais daqueles
que no so. Ela destaca:
O ser humano um ser social por natureza, ele s se constitui na
presena de outro ser humano, e s se desenvolve pela interao com
os outros e, como um indivduo essencialmente social, tem
necessidade de sentir-se como pertencente a um grupo (AMIRALIAN,
2004, p. 26).
Sobre a interrelao entre a construo da identidade e a deficincia visual, a
autora nos chama a ateno para o fato que, no caso das pessoas com deficincia, entre
elas as pessoas com baixa viso, a limitao fsica ou funcional vem a ser o principal
fator de reconhecimento para ela mesma e para o outro. A condio visual no deveria
ser um fator relevante na construo da identidade, mas sim, as caractersticas
orgnicas, fisiolgicas, psquicas e mentais, constitudas pelas interaes vivenciadas
numa dada cultura, que deveriam ser mais relevantes. Contudo, do primeiro modo
que a realidade da pessoa com baixa viso se apresenta na maioria dos casos.
O Manual de Orientao de Triagem de Acuidade Visual, publicado pelos
ministrios da sade e da educao, conceitua acuidade visual como (...) o grau de
aptido do olho para identificar detalhes espaciais, ou seja, a capacidade de perceber a
forma e o contorno dos objetos. A mesma publicao indica a tcnica da medida da
acuidade visual:
A forma mais simples de diagnosticar a capacidade da viso medir a
acuidade visual com a Escala de Sinais de Snellen. A escala utiliza
smbolos em forma de Letras ou apenas a E, organizados de maneira
padronizada, de tamanhos progressivamente menores, chamados
optotipos. Em cada linha, na lateral esquerda da tabela, existe um
nmero decimal, que quantifica quanto a pessoa capaz de enxergar.
(BRASIL, 2008, p. 4 e 5 )
Figura 1 Escala de Snellen
15
Tomando como base o estudo de Lucas et al (2003), realizado com pacientes
atendidos por especialistas em baixa viso, no Estado de Pernambuco, com vistas a
determinar os principais diagnsticos etiolgicos e indicar condutas de reabilitao
adequadas a cada caso em particular, esclarecemos critrios utilizados para anlise da
acuidade visual:
Para anlise da acuidade visual utilizou-se da classificao oficial do
Sistema de Sade dos Estados Unidos (ICD-9-CM) que dividida em
viso normal, baixa viso e cegueira. A baixa viso por sua vez
subdividida em: baixa viso moderada, em que o indivduo apresentou
acuidade visual entre 20/80 e 20/150; baixa viso grave, entre 20/200
e 20/400; baixa visual profunda, entre 20/500 e 20/1000 no melhor
olho com melhor correo. Nesta classificao, cegueira foi
subdividida em: prximo cegueira entre 20/1200 e 20/2500 e
cegueira total onde o paciente no possua percepo luminosa (SPL).
Outro conceito utilizado nesta anlise foi o de cegueira legal no qual o
paciente portador de acuidade visual igual ou menor que 20/200, ou
campo visual menor ou igual que 20 graus em seu melhor olho, com
melhor correo (LUCAS et al, 2003, p. 78).
Com vistas a sabermos o quantitativo de alunos com necessidades especficas
como esta, matriculados em nossas escolas, tomemos como base os dados do Censo
Escolar 2012. Todos os anos, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Ansio Teixeira INEP, que ligado ao Ministrio da Educao - MEC, realiza o
Censo Escolar da Educao Bsica, por meio do qual o levantamento de dados
estatsticos acerca da educao feito com a participao das escolas pblicas e
particulares de todo o territrio nacional. O Resumo Tcnico do Censo Escolar da
Educao Bsica 2012, que traz entre seus dados o quantitativo de alunos por
deficincia matriculados nas escolas brasileiras, e ainda leva em considerao classes
comuns e classes regulares para seu levantamento, indica o seguinte a esse respeito:
A poltica de educao especial adotada pelo Ministrio da Educao
estabelece que a educao inclusiva seja prioridade. Essa iniciativa
trouxe consigo mudanas que permitiram a oferta de vagas na
educao bsica, valorizando as diferenas e atendendo s
necessidades educacionais de cada aluno, fundamentando a educao
especial na perspectiva da integrao. Constata-se um aumento de
9,1% no nmero de matrculas nessa modalidade de ensino, que
passou de 752.305 matrculas em 2011 para 820.433 em 2012. Quanto
ao nmero de alunos includos em classes comuns do ensino regular e
na EJA, o aumento foi de 11,2%. Nas classes especiais e nas escolas
exclusivas, houve aumento de 3% no nmero de alunos devido ao
aumento da EJA (51,4%) Os importantes avanos alcanados pela
atual poltica so refletidos em nmeros: 62,7% das matrculas da
educao especial em 2007 estavam nas escolas pblicas e 37,3% nas
escolas privadas. Em 2012, esses nmeros alcanaram 78,2% nas
pblicas e 21,8% nas escolas privadas, mostrando a efetivao da
educao inclusiva e o empenho das redes de ensino em envidar
esforos para organizar uma poltica pblica universal e acessvel s
pessoas com deficincia (INEP, 2012, p. 27, 28).
16
Segundo este mesmo relatrio, 94% dos alunos com deficincia matriculados na
Educao Bsica brasileira esto em classes comuns, ou seja, estatisticamente so tidos
como alunos includos. Os outros 6% continuam em classes especiais, isto , aquelas
dedicadas apenas s pessoas com deficincia. Sobre a matrcula de pessoas com
deficincia na educao profissionalizante, que ora nosso foco neste trabalho, houve
um crescimento das matrculas desse pblico, seno vejamos: Em 2007 eram 395
alunos; j em 2008 passaram a 546; No ano de 2009 foram a 718; Em 2010 tivemos
1.096 matriculados; O ano de 2011 contou com 1.361 estudantes e, por fim, em 2012
tivemos 1.659. (INEP, 2012)
2.2 Psicologia Cultural e narrativa
Todo relato uma defesa, uma legtima defesa.
Sempre que pensamos em nosso passado, procuramos redefini-lo.
Basta enderear esse relato aos outros para modificarmos nossas relaes,
para deixarmos de nos sentir como sentamos antes.
(...) Todo relato um projeto de libertao (CYRULNIK, 2009, p. 11).
Jerome Bruner (1997) traz tona a busca por uma psicologia humana, popular,
cultural, na qual o significado e os processos envolvidos na construo deste significado
tm lugar de destaque:
Essa convico se baseia em dois argumentos correlatos. O primeiro
que para entender o homem voc deve entender como suas
experincias e seus atos so moldados por seus estados intencionais, e
o segundo que a forma desses estados intencionais se realiza apenas
atravs da participao em sistemas simblicos da cultura. De fato, a
prpria forma das nossas vidas _ o esboo grosseiro e em perptua
transformao da nossa autobiografia que carregamos em nossas
mentes _ compreensvel para ns mesmos e para os outros apenas
em virtude desses sistemas culturais de interpretao. Porm, a cultura
tambm constitutiva da mente. Em virtude dessa atualizao da
cultura, o significado atinge uma forma que pblica e comunal, em
vez de privada e autista (BRUNER, 1997, p. 39).
Tais abordagens de psicologia valorizam as crenas, os desejos, os significados,
inerentes condio humana, assim como o contexto, um mundo que nos exterior e
que modifica a expresso das nossas crenas e dos nossos desejos: Essa relao
recproca entre estados percebidos do mundo e os desejos da pessoa, cada qual afetando
o outro, cria uma dramaticidade sutil sobre a ao humana que tambm anima a
estrutura narrativa da psicologia popular (BRUNER, 1997, p. 44). De forma que o si-
mesmo cresce a partir da experincia com as outras pessoas, determinada pelos vnculos
sociais, e da experincia com os smbolos, as imagens que fazem parte do contexto
scio-cultural, desembocando numa psicologia de natureza narrativa, em vez de lgica
ou categrica (BRUNER, 1997, p. 46).
17
A narrativa, como forma de discurso e organizao da experincia, se estrutura
conforme a propriedade de sequencialidade, que diz respeito organizao do enredo a
partir de uma sucesso de eventos, sejam eles reais ou imaginrios:
Quer dizer, o significado e a referncia da histria guardam um
relacionamento anmalo entre si. A indiferena da histria realidade
extralingstica sublinha o fato de que ela tem uma estrutura interna
ao discurso. Em outras palavras, a seqncia das suas sentenas, e no
a verdade ou falsidade de quaisquer dessas sentenas, o que
determina sua configurao geral ou enredo. (BRUNER, 1997, p. 47)
Ela tambm se estrutura segundo sua potencialidade de relacionar e tornar
legtimo o que cannico, comum, previsvel, usual, ordinrio, e o que excepcional,
desviante, incomum, inesperado:
Os significados negociados, encarados pelos antroplogos sociais
ou crticos da cultura como essenciais para a conduta de uma cultura,
so possibilitados pelo aparelhamento do narrador para lidar
simultaneamente com canonicidade e excepcionalidade. Dessa forma,
embora uma cultura deva conter um conjunto de normas, ela deve
tambm conter um conjunto de procedimentos interpretativos para
tornar o abandono dessas normas significativo em termos dos padres
estabelecidos pela crena. (BRUNER, 1997, p. 49)
Bruner (2001) nos chama a ateno para o fato de que a narrativa guarda uma
caracterstica dual, no sentido de que eventos mentais, de um mundo particular, pessoal,
prprios da conscincia do narrador, coexistem junto a eventos e aes de um mundo
real, que supomos verdadeiro. De modo que todas as narrativas so o relato de um
mundo possvel, no qual assumimos uma posio moral, mesmo que seja uma posio
moral contra as posies morais (BRUNER, 1997, p. 51):
(...) as histrias tm relao com a maneira como o protagonista
interpreta as coisas, com o significado das coisas para ele. Isso est
embutido nas circunstncias da histria _ envolvendo tanto uma
conveno cultural como um desvio da mesma, explicvel em termos
de um estado intencional individual, o que empresta s histrias no
apenas um estatuto moral, mas tambm epistmico (BRUNER, 1997,
p. 51).
Segundo a concepo de Bruner (1997):
Uma histria, em suma, uma experincia vicria, e o tesouro de
narrativas no qual podemos entrar inclui, ambiguamente, tanto
relatos de experincias reais como o produto de uma imaginao
culturalmente modelada. (...) Uma histria sempre a histria de
algum. (...) as histrias inevitavelmente tm uma voz narrativa: os
eventos so vistos atravs de um conjunto especfico de prismas
pessoais. (...) As histrias so, portanto, instrumentos especialmente
viveis para a negociao social. E seu estatuto, mesmo quando elas
so vendidas como histrias verdadeiras, permanecem para sempre
no domnio intermedirio entre o real e o imaginrio (BRUNER,
1997, p. 53,54).
18
Da a qualidade dramtica da narrao, que (...) focaliza os desvios do cannico
que apresentam conseqncias morais e afastamentos relacionados legitimidade, ao
compromisso moral, aos valores. (BRUNER, 1997, p. 51)
Organizao da experincia a denominao dada por Bruner (2001) para a
narrativizao inerente ao papel da psicologia popular. Segundo ele, a esquematizao e
a regulao do afeto so traos distintivos da estruturao narrativa. A partir da
esquematizao, que social, e no apenas individual, pois tem seu aporte na cultura
partilhada com o outro, construmos, organizamos o mundo e o fluxo de seus eventos, a
nossa experincia. Por sua vez, a regulao do afeto conduz nossas escolhas narrativas,
pois a tendncia evocarmos em nossa memria aquilo que no ameaa nossa
estabilidade emocional ou nossa vida social, evitarmos o conflito, o embarao, e
prezarmos por algo agradvel, simptico a ns e ao nosso interlocutor. Caractersticas
como estas fazem da narrativa um meio natural para a psicologia popular, j que:
Ela lida (...) com o material da ao e da intencionalidade humana. Ela
intermedeia entre o mundo cannico da cultura e o mundo mais
idiossincrsico dos desejos, crenas e esperanas. Ela torna o
excepcional compreensvel e mantm afastado o que estranho, salvo
quando o estranho necessrio como um tropo. Ela reitera as normas
da sociedade sem ser didtica. (...) ela prov a base para uma retrica
sem confronto. Ela pode at mesmo ensinar, conservar a memria ou
alterar o passado (BRUNER, 1997, p. 52).
Outra importante veia a ser considerada no que diz respeito narrativa a sua
literariedade, pois, como veculo de uso da linguagem, valendo-se de sentidos figurados,
alegricos, ela prope uma interpretao do significado daquilo que foi narrado:
A narrativa no , contudo, apenas enredo estruturador ou
dramatizao. Nem apenas historicidade ou diacronia. Ela
tambm um meio de usar a linguagem. Pois ela parece depender, para
sua efetividade (...) da sua literariedade, mesmo na repetio de
histrias cotidianas. Em um grau notvel, ela confia no poder dos
tropos da metfora, metonmia, sindoque, etc. Sem eles ela perde seu
poder de expandir o horizonte das possibilidades, de explorar a
extenso completa de conexes entre o excepcional e o comum. [...] O
tipo de significados interpretativos que estamos considerando
metafrico, alusivo, muito sensvel ao contexto. Mesmo assim, eles
cunham a cultura e as narrativas de sua psicologia popular
(BRUNER, 1997, p. 57-58).
Ao narrar determinados acontecimentos que viveu, o sujeito formula seu
conceito de si-mesmo, como uma qualidade da experincia humana construda
interativamente e refletivamente:
(...) o si-mesmo no na rapidez da conscincia privada imediata, mas
tambm em uma situao cultural-histrica. (...) o si-mesmo tambm
deve ser tratado como um constructo que, por assim dizer, procede
tanto de fora para dentro quanto de dentro para fora, tanto da cultura
para a mente quanto da mente para a cultura (BRUNER, 1997, p. 95).
19
Sob esta concepo do si-mesmo se encerra uma interpretao da realidade que
alguns movimentos histricos, da sociologia e da antropologia, j preceituavam antes
mesmo que a psicologia atingisse essa revoluo do pensamento:
(...) a ao humana poderia no ser plenamente ou apropriadamente
explicada de dentro para fora, fazendo referncia apenas a disposies
intrapsquicas, traos caractersticos, capacidades de aprendizagem,
motivos, ou seja l o que for. A ao requeria para sua explicao que
ela fosse situada, que ela fosse concebida em continuidade com um
mundo cultural. As realidades que as pessoas construam eram
realidades sociais, negociadas com outros, distribudas entre eles. O
mundo social no qual vivamos no estava, por assim dizer, na
cabea nem l fora, manifestando-se em alguma forma de
positivismo aborgene. E tanto a mente quanto o si-mesmo faziam
parte daquele mundo social (BRUNER, 1997, p. 93).
De forma que Bruner (2001) retoma a caminhada do psiclogo Kenneth Gergen,
quando este props uma abordagem mais interpretativa, construtivista e distributiva
dos fenmenos psicolgicos (p. 95). A partir de suas pesquisas sobre autoestima e
autoconceito Gergen (apud BRUNER, 2001) observou dois (...) universais
relacionados com o modo como o homem se orienta em relao cultura e ao passado
(p. 96): as capacidades de reflexividade humana e de visualizao de alternativas.
Acerca da primeira generalizao, ele explica que ns conseguimos alterar o presente ao
lanarmos nosso olhar rumo ao passado, assim como alteramos o passado ao nos
valermos do presente, agindo por meio de uma reviso reflexiva ou de uma
reconceitualizao. Sobre a capacidade de visualizar alternativas, Gergen explica que
nosso intelecto possibilita concebermos outros modos de ser e de agir. Assim,
O si-mesmo, ento, como qualquer outro aspecto da natureza humana,
se posiciona tanto quanto como um guardio da permanncia quanto
como um barmetro que responde ao clima cultural local. A cultura
nos prov igualmente de diretrizes e estratagemas para encontrar um
nicho entre estabilidade e mudana: ela exorta, probe, atrai, nega,
gratifica os compromissos que o si-mesmo assume. E o si-mesmo,
usando suas capacidades para a reflexo e para projetar alternativas,
evita, adota, ou reavalia e reformula o que a cultura tem a oferecer
(BRUNER, 1997, p. 96).
Fica posto que, para se compreender a natureza e as origens do si-mesmo
preciso valer-se de uma postura interpretativa. Encarar o si-mesmo como um contador
de histrias, dotadas de uma verdade narrativa, e interessar-se por seu processo de
construo e no apenas por sua substncia ou contedo tambm so posturas
esperadas. De maneira que se impe a importncia de focalizar os significados
atribudos ao si-mesmo, tanto pelo indivduo quanto pela cultura na qual ele est
inserido, como tambm o modo como estes significados so colocados em uso:
Em nossa prpria cultura, (...) as vises do si-mesmo so moldadas e
sustentadas (...) por uma sociedade, uma economia e uma lngua,
todas possuindo realidades histricas que, embora sujeitas reviso,
criam um andaime par apoiar nossas prticas como agentes
humanos. [...] Para ser vivel em uma psicologia cultural, os conceitos
(inclusive o de si-mesmo) devem especificar como eles devem ser
20
usados tanto em ao como na revelao e no discurso que cercam a
ao. (...) no h causas definitivas a serem incorporadas ao ato de
criar significado, apenas atos, expresses e contextos a serem
interpretados (BRUNER, 1997, p. 101-102).
Souza (2006) trata essa questo da seguinte forma:
A construo e o conhecimento de si propiciados pela narrativa
inscreve-se como um processo de formao porque remete o sujeito
numa pluralidade sincrnica e diacrnica de sua existncia, frente
anlise de seus percursos de vida e de formao. (SOUZA, 2006, p.
16)
Retomemos, ento o que para Bruner (2001) representa o cerne da psicologia
cultural, nesse mbito de produo e interpretao de significados, intermediados pelo
ato de narrar:
Uma psicologia cultural uma psicologia interpretativa, no mesmo
sentido em que a histria, a antropologia e a lingstica tambm o so.
Isso no quer dizer, contudo, que ela precise ser isenta de princpios
ou mtodos, at mesmo de mtodos inflexveis. Ela busca as regras
que os seres humanos aplicam para a produo de significado em
contextos culturais. Esses contextos so sempre contextos prticos:
sempre necessrio perguntar o que as pessoas esto fazendo ou
tentando fazer num certo contexto. Esse no um ponto sutil: o
significado cresce a partir do uso, mas apesar de ser frequentemente
transformado em slogan, suas implicaes so frequentemente
inesperadas (BRUNER, 1997, p. 102).
Nesse contexto, salientemos o que Cyrulnik (2009) declara acerca do relato
autobiogrfico. No seu dizer, tal relato torna-se, deste modo, uma quimera. Vejamos
como o autor descreve esta metfora empregada para tratar da narrativa de histria de
vida:
(...) todo relato verdadeiro assim como so verdadeiras as quimeras:
o ventre de um touro, as asas de uma guia e as patas de um leo.
Tudo verdadeiro e, no entanto, o animal no existe! Eu deveria ter
escrito: tudo parcialmente verdadeiro e o animal, totalmente falso.
Ou ento: todos os pedaos so verdadeiros, nunca menti ao lembrar
minhas recordaes, mas, conforme as circunstncias ou conforme
meu humor, eu poderia ter evocado outros episdios igualmente
verdadeiros que teriam composto uma outra quimera. A quimera de si
um animal maravilhoso que nos representa e nos identifica. D
coerncia ideia que temos de ns mesmos, determina nossas
expectativas e nossos pavores. Essa quimera faz de nossa existncia
uma obra de arte, uma representao, um teatro de nossas lembranas,
de nossas emoes, das imagens e das palavras que nos constituem.
(...) Por sorte, nossas quimeras fazem de nossas vidas aventuras
romanescas. Organizamos nossas representaes passadas e futuras
para compor uma verdade narrativa. Como todo animal vivo, a
quimera evolui, adota formas diferentes segundo os momentos,
adapta-se s pessoas que encontra e aos contextos culturais nos quais
21
vagueia. A verdade histrica tem uma natureza diferente da verdade
narrativa que nos encanta ou deprime. (...) A quimera narrativa mais
dinmica: triste ou alegre, corre ao encontro dos outros para lhes
contar sua histria. Mas a maneira como o outro reage modifica o
estilo de sua expresso. O entorno participa do relato autobiogrfico!
Um dia, um acontecimento nos fornece a oportunidade de agarrar as
rdeas da representao quimrica e dirigir o espetculo de nossa vida.
A partir de ento, passamos a ser capazes de modificar o sentimento
provocado pela nova representao de ns mesmos (Cyrulnik, 2009, p.
12, 13, 14)
A narrativa apresenta, pois, a histria do indivduo e de sua coletividade. Ela
plstica e atualizvel, se modifica em relao ao lugar e ao tempo. O sentido atribudo
resultado do significado negociado e construdo na interao sujeito-ambiente.
22
3 A AUTOBIOGRAFIA NA DESCOBERTA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
Um relato no a volta ao passado, uma reconciliao com a prpria histria.
Monta-se uma imagem, d-se coerncia aos acontecimentos,
como se sanssemos uma injusta ferida.
A fabricao de um relato de si preenche o vazio das origens que perturbava nossa identidade.
(CYRULNIK, 2009, p. 12)
3.1 Teoria Bioecolgica do Desenvolvimento Humano
A respeito da Abordagem Ecolgica do Desenvolvimento, Alves (1997) ressalta
o enfoque em aspectos saudveis do desenvolvimento, assim como a observao do
sujeito engajado em um maior nmero possvel de ambientes naturais e interaes
sociais. Embora no negligencie fatores biolgicos, esta abordagem valoriza os
processos psicolgicos em sua relao com o contexto, j que se acredita que este
dilogo responsvel pela construo da identidade. Para isso, quatro aspectos
dinamicamente interrelacionados norteiam a anlise do desenvolvimento: o processo, a
pessoa, o contexto e o tempo (ALVES, 1997). Eschiletti Prati et al. destacam que:
(...) a anlise destes mbitos de interao possibilita o acesso s
oportunidades de crescimento, aos momentos de estabilidade e
instabilidade dos contextos nos quais as pessoas esto inseridas, as
interaes afetivas e as relaes de poder na dinmica interpessoal
(ESCHILETTI PRATI et al., 2008. p. 160).
Sobre o processo, a abordagem ecolgica indica como fator principal o que
Bronfenbrenner (1996) denominou de processo proximal, que seriam eventos
regulares, duradouros e recprocos de interao, imprescindveis para o
desenvolvimento das capacidades biopsicossociais das pessoas. Da o desenvolvimento,
por parte de Cecconello e Koller (2003, apud ESCHILETTI PRATI et al., 2008), da
chamada Insero Ecolgica, concepo na qual o pesquisador tambm se desenvolve
naquele determinado contexto de pesquisa, que, por sua vez, gera novos processos
proximais. Eschiletti Prati et al. afirmam, nesse sentido:
(...) que o processo proximal surge atravs da interao recproca,
complexa e com base regular de pesquisadores, participantes, objetos
e smbolos presentes no contexto imediato, constituindo a base de toda
23
investigao que adota a Insero Ecolgica. O processo proximal,
alm de ser o foco da investigao, o que permite o desenvolvimento
da pesquisa. O processo de investigao-no-contexto, como o
proposto pela Insero Ecolgica, envolve o compartilhamento de
informaes, percepes e sentimentos dentro da equipe, na qual as
experincias individuais e os aspectos observados no ambiente so
comunicados (ESCHILETTI PRATI et al., 2008, p. 161).
As autoras destacam, ainda, que a concepo defendida por Bronfenbrenner
acerca do que interao vislumbra um desenho em espiral, no qual o processo
multicausal,
ou seja, o desenvolvimento humano ocorre atravs de ampliaes e
aproximaes entre a pessoa e os diversos elementos do contexto que
se influenciam mutuamente de forma no linear e dinmica, alterando-
se qualitativamente ao longo do tempo. (...) Interao significa mais
que uma relao simples e pontual, porque implica alteraes em
ambas as partes envolvidas. como se a pessoa se desenvolvesse em
inter-ao, no inter-jogo, em constante troca com os outros e com o
ambiente. (ESCHILETTI PRATI et al., 2008. p. 161-162)
Bronfenbrenner admite que as influncias exercidas pelo ambiente no sejam
apenas de ordem fsica, mas tambm, de ordem social e cultural e, para efeito de
anlise, promoveu uma subdiviso em quatro nveis de interao: o microssistema, o
mesossistema, o exossistema e o macrossistema (ALVES, 1997, ESCHILETTI PRATI
et al., 2008).
necessrio que a Insero Ecolgica ocorra nos microssistemas
(onde acontecem os processos proximais) e que sua compreenso
possa ser relacionada com os demais sistemas, ampliando o campo de
investigao. (...) fundamental que os pesquisadores tenham clareza
de seus objetivos para elaborar um programa de trabalho que permita
o acesso aos sistemas mais adequados. Para cada investigao,
dependendo dos objetivos, os pesquisadores delimitaro seu foco de
estudo e elegero o contexto mais apropriado para a anlise almejada
(...) Mesmo focando um ou outro sistema, os pesquisadores no
devem perder de vista a existncia dos outros, que interagem e
influenciam o desenvolvimento de todos os envolvidos (ESCHILETTI
PRATI et al., 2008. p.162).
Ao debruar-se sobre a varivel tempo, que considera fator essencial na
constituio de processos proximais e, consequentemente, em suas anlises,
Bronfenbrenner estruturou um conceito que ele chamou de cronossistema:
(...) que possibilita examinar as influncias no desenvolvimento da
pessoa e as mudanas (e continuidades) ao longo do tempo no
ambiente no qual a pessoa vive. (...) O tempo exerce um papel no
desenvolvimento, a partir de transformaes e continuidades
caractersticas do ciclo vital. As interaes ocorridas no cronossistema
exercem uma influncia cumulativa nos processos significativos de
desenvolvimento humano (ESCHILETTI PRATI et al., 2008, p. 162).
24
Portanto, se o pesquisador pretende adotar como procedimento metodolgico a
insero ecolgica, deve ter sempre em primeiro plano a interrelao entre os elementos
acima descritos, a saber: processo, pessoa, contexto e tempo, isto , o modelo PPCT,
que evoca uma viso dinmica e complexa (ESCHILETTI PRATI et al., 2008):
os pesquisadores ecolgicos esto preocupados em compreender o
processo de desenvolvimento das pessoas. Ou seja, pretendem
investigar as relaes (processos) que elas estabelecem durante seu
crescimento pessoal ou social, no curso de sua histria (tempo) em um
determinado contexto.(...) Os pesquisadores ecolgicos so pessoas
em desenvolvimento (processo), fazendo parte do cenrio da pesquisa
(contexto), em um momento de sua histria pessoal (tempo).
(ESCHILETTI PRATI et al., 2008, p. 163).
Para o estabelecimento de processos proximais, indispensveis realizao de
uma pesquisa no vis ecolgico inspirado por Bronfenbrenner e difundido por
Cecconello e Koller (2003, apud ESCHILETTI PRATI et al., 2008), preciso que a
insero-no-contexto (ESCHILETTI PRATI et al., 2008) ocorra de modo que fiquem
claras, entre pesquisador e sujeito da pesquisa, as condies, objetivos, expectativas
inerentes investigao. Ao estabelecer uma espcie de contrato entre os participantes,
uma relao de reciprocidade deve ser construda, na qual implica troca e, para que isso
acontea da forma esperada, h necessidade de se estabelecerem diversos encontros, que
aproximem as pessoas participantes do estudo. O pesquisador deve garantir presena
constante, significativa e estvel (ESCHILETTI PRATI et al., 2008) no contexto de
investigao:
Esta forma de trabalhar com a coleta de dados, no deixa de lado a
importncia do seu rigor, sistematizao e consistncia, que
caracterizam a formalidade da coleta. (...) Atravs da Insero
Ecolgica, a equipe de pesquisa pode chegar o mais perto possvel da
obteno de acurcia compartilhada dos achados, uma vez que
devolve, no aconchego da percepo dos participantes, as suas
impresses (ESCHILETTI PRATI et al., 2008, p. 165).
Trabalhar com a pesquisa qualitativa utilizando a insero metodolgica exige
rigor cientfico, ao considerar a subjetividade, tanto do pesquisador quanto do sujeito da
pesquisa, novas portas so abertas para a coleta de dados, o que pode contribuir para o
estudo do tema.
3.2 Histria de vida
A escolha da Histria de Vida, como concepo terico-metodolgica de
pesquisa, incentivada pelo desejo de conhecermos a trajetria desta aluna com
necessidades especficas, no mbito de cursos tcnicos agrcolas, segundo a viso da
protagonista, ela mesma. De modo a identificarmos as estratgias adotadas pela aluna
em questo e pelos profissionais da educao envolvidos em seu processo de
ensino/aprendizagem, para sua formao tcnica, e avaliarmos se estas vm ao encontro
da perspectiva de educao inclusiva defendida pelas polticas pblicas de educao.
25
Alm disso, a metodologia de pesquisa narrativa possibilita percebermos os elementos
de construo da identidade da pessoa com deficincia visual em sua incluso escolar.
A pesquisa, de cunho qualitativo, obteve seus dados por meio de entrevistas
biogrficas do mtodo histria de vida, dirigida aluna de baixa viso sujeito de
pesquisa. A perspectiva adotada para a entrevista narrativa de histria de vida, que
pretendia compreender o processo de profissionalizao em cursos tcnicos agrcolas,
pela aluna de baixa viso, sujeito desta pesquisa, baseia-se naquela defendida por Glat
(2009), quando ela afirma que o objetivo desse tipo de estudo justamente apreender e
compreender a vida conforme ela relatada e interpretada pelo prprio ator (p. 30).
Glat e Pletsch (2009) tambm indicam que (...) como referencial terico-metodolgico
o Mtodo de Histria de Vida (...) utiliza como instrumento principal de coleta de dados
a entrevista aberta, sem um roteiro pr-determinado (GLAT; PLETSCH, 2009, p. 139).
A autora salienta que, por mais objetivo, isento, que o relato pretenda ser, por se
tratar de um mergulho na memria, sempre reinventado, reconstrudo, com maior ou
menor proximidade com a realidade, segundo a seleo que o prprio sujeito faz do que
vai narrar. Glat caracteriza esse relato da histria de vida como uma reconstruo
imaginativa (2009, p. 30) e diz que, embora ele se refira ao passado, sempre
determinado pelas exigncias do presente. Ela ressalta, ainda, que a subjetividade
inerente ao ato de contar, narrar, algo que vivenciamos e resgatamos da memria no
pe em xeque esta metodologia, mas, ao contrrio, lhe atribui singularidade. Esta
subjetividade garante metodologia histria de vida lugar na construo do
conhecimento cientfico, que no se pauta puramente em objetividade, mas que
pressupe o pesquisador imbricado em seu objeto de estudo, de forma a seguirem
intimamente implicados entre si: A interferncia do pesquisador, ento, em vez de ser
considerada uma varivel no controlada, podendo contaminar os resultados da
pesquisa, , ao contrrio, a prpria essncia do mtodo histria de vida (...) (GLAT,
2009. p. 34)
Basear-se na histria de vida de um sujeito ou de um determinado grupo nos
leva a conhecer no apenas quem a contou, mas, sobretudo, nos d um panorama da
sociedade, da cultura em que os narradores esto inseridos:
Isso porque o indivduo existe, e desenvolve sua identidade pessoal
como parte de um grupo de referncia. , portanto, atravs do relato
de histrias de vida individuais que se pode caracterizar a prtica
social de um grupo. (...) Toda entrevista individual traz luz direta ou
indiretamente uma quantidade de valores, definies e atitudes do
grupo a qual o indivduo pertence (GLAT, 2009. p. 31).
Sendo assim, Caiado (2006) destaca:
Ao lembrarem, ao falarem sobre as marcas que os constituram nicos,
os entrevistados, na realidade, falam de um tempo que foi construdo
por homens reais, falam de um lugar social que foi ocupado nas
relaes estabelecidas entre esses homens reais. Ento, os fatos
relatados de sua vida, sua memria individual, trazem o germe de uma
memria social, se analisarmos esse relato enquanto parte de uma
totalidade formada por mltiplas e complexas determinaes
(CAIADO, 2006, p. 48).
Alm disso, ao contar sua histria de vida, o sujeito no apenas enumera
cronologicamente fatos por ele vividos, nem to somente descreve episdios pelos quais
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passou. Ele reflete sobre o que viveu e est narrando, ele avalia o que ocorreu, m