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Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro · EDITORIAL A QUESTÃO DO CORPO (Seção Especial: Kairós 2010) Dando continuidade ao trabalho que desenvolvemos desde 2007, apresentamos

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Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Instituto de Educação

Departamento de Psicologia

Reitor: Ricardo Motta Miranda

Vice-Reitora: Ana Maria Dantas Soares

Pró-Reitora de Ensino de Graduação: Nídia Majerowicz

Pró-Reitor de Extensão: José Claudio Souza Alves

Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-graduação: Aurea Echevarria

Diretor do Instituto de Educação: José Henrique dos Santos

Chefe do Departamento de Psicologia

Silvia Maria Melo Gonçalves

Coordenador do Curso de Psicologia

Denis Giovani Monteiro Naiff

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EDITORIAL

A QUESTÃO DO CORPO (Seção Especial: Kairós 2010)

Dando continuidade ao trabalho que desenvolvemos desde 2007, apresentamos mais um

Boletim Interfaces da Psicologia da UFRRJ, publicação voltada para documentar os

seminários promovidos pelo departamento de Psicologia da mesma instituição, assim como

publicar trabalhos no mesmo espírito interdisciplinar de nossos eventos. Centrado no caráter

multifronteiriço da Psicologia, nosso Boletim tem se dedicado à temas onde a interlocução

com outras disciplinas é uma necessidade. É assim que apresentamos nosso quarto volume,

dedicado à questão do corpo. A reflexão sobre o papel do corpo na constituição da psique,

cognição, comportamento, subjetividade ou como queiram denominar o objeto da Psicologia

retomou força nos últimos anos. O impacto, para muitos indesejado, do avanço contínuo do

conhecimento neurocientífico para o conhecimento psicológico não pode mais ser

negligenciado por pesquisadores. A Filosofia da Mente ganhou papel central na Filosofia

contemporânea, e nesta, o problema da relação mente-corpo é o problema central. Na

Psicologia Filosófica, a obra de Merleau-Ponty tem sido redescoberta, e considerada relevante

teoricamente por muitos psicólogos. Na psicoterapia, a ciência tem constatado que

intervenções meramente corporais como atividade física e uso de psicofármacos são eficientes

para a melhora consistente dos sintomas de vários quadros psicopatológicos. Neste número,

apresentamos uma série de avaliações teóricas sobre a questão do corpo na Psicologia,

centradas principalmente na interlocução entre a obra psicológica de Jung e a obra filosófica

de Nietzsche. Outras ideias de autores como Merleau-Ponty, Freud e Heidegger são avaliadas,

oferecendo ao leitor algumas novas considerações sobre o diálogo entre a Psicologia e a

Filosofia nesta questão fundamental.

Gustavo Arja Castañon

Professor Doutor da UFJF

Nota: O conteúdo de cada resumo ou artigo é da responsabilidade dos autores, assim

como, o material divulgado também foi disponibilizado pelos respectivos palestrantes.

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EDITOR

Professor Doutor Nilton Sousa da Silva

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ

COMISSÃO EDITORIAL

Professora Doutora Cecilia Raquel Satriano

Universidad Nacional de Rosario – UNR, Argentina

Professora Doutora Elena Moraes Garcia

Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ

Professor Doutor Flávio Pietrobon Costa

Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC

Professor Doutor Gustavo Arja Castañon

Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF

Professor Doutor Gustavo Corrêa Matta

Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – FIOCRUZ

Professor Doutor José Kalunsiewo Nkosi

Universidade Agostinho Neto – UAN, Angola

Professor Doutor Luiz Celso Pinho

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ

Professor Doutor Paulo Guilherme Domenech Oneto

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ

Professor Doutor Roberto Novaes de Sá

Universidade Federal Fluminense – UFF

Professor Doutor Vitor José da Conceição Teixeira Amorim Rodrigues

Instituto Superior de Psicologia Aplicada – ISPA, Portugal

Professor Doutor Walter Melo Junior

Universidade Federal de São João Del-Rei – UFSJ

Projeto Gráfico e Diagramação: Vicente da Rocha Lima

Revisão de Texto e Ortográfica: Andressa Lorena Medeiros Miron

Revisão Gráfica e Diagramação: Juliana Fontenele Silva

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Sumário

EDITORIAL…..………………………………………………………..……………………..2

O CORPO, A TERRA E O SENTIDO ÉTICO E ECOLÓGICO DA EXISTÊNCIA:

COLÓQUIO DA FILOSOFIA COM A PSICOLOGIA

Luiz José Veríssimo. .................................................................................................................. 5

A CRIAÇÃO DO GOSTO DA LEITURA: O CORPO MEDIANDO A FORMAÇÃO

DO SUJEITO LEITOR

José Ricardo da Silva Ramos ................................................................................................... 18

NIETZSCHE E A NOBREZA DOS INSTINTOS CORPORAIS

Luiz Celso Pinho ...................................................................................................................... 37

LINGUAGEM E CORPOREIDADE: UMA PERSPECTIVA NEURODINAMICA

(PÓS-REICHIANA)

José Ignacio Tavares Xavier ..................................................................................................... 48

OS GREGOS E JUNG

Alvaro de Pinheiro Gouvêa ...................................................................................................... 68

JUNG E A FILOSOFIA DA ALMA

José Carlos Leal ........................................................................................................................ 78

CIÊNCIA ROMÂNTICA E O PENSAMENTO JUNGUIANO

Maddi Damião Jr. ..................................................................................................................... 86

NOTAS SOBRE A PRESENÇA DO ZARATUSTRA DE NIETZSCHE NOS

ESCRITOS DE JUNG

Luiz Celso Pinho ...................................................................................................................... 99

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A Questão do Corpo

Boletim Interfaces da Psicologia da UFRRJ - ISSN 1983-5507 Vol. 3, Nº. 1, Janeiro - Junho de 2010 5

O CORPO, A TERRA E O SENTIDO ÉTICO E ECOLÓGICO DA EXISTÊNCIA:

COLÓQUIO DA FILOSOFIA COM A PSICOLOGIA.

THE BODY, THE EARTH AND THE ETHIC AND ECOLOGIC SENSE OF THE

EXISTENCE: DIALOGUE BETWEEN PHILOSOPHY AND PSYCHOLOGY.

LUIZ JOSÉ VERÍSSIMO - [email protected]

Psicólogo (PUC/RJ) e Doutor em Filosofia (UERJ), professor de Psicologia na Universidade

Veiga de Almeida (UVA), membro do Laboratório Social do Mestrado Profissional em

Psicanálise, Saúde e Sociedade da UVA (LAPSI UVA).

Resumo

Este artigo procura compreender a relação entre o corpo e o processo de individuação,

através de uma interlocução entre Nietzsche e Jung. O nosso estudo inclui a articulação do

corpo com a natureza e a terra, assim como do processo de individuação com o cuidado e o

habitar humano, segundo um sentido ético e ecológico. Para isso, incluímos algumas

considerações de Leonardo Boff e Martin Heidegger.

Palavras-chave: Jung e existencialismo; ética e ecologia; corpo e individuação.

Abstract

This article tries to understand the connection between the body and the individuation

process trough a dialog between Nietzsche and Jung. Our study includes the articulation of

the body with the nature and the earth, as well as the individuation process with the care and

the human inhabit from an ethic and ecologic sense. For this purpose we include some

considerations of Leonardo Boff and Martin Heidegger.

Key-words: Jung and existentialism; ethic and ecology; body and individuation.

Eu vos ensino o super homem. O homem é algo que deve ser

superado. Que fizestes para superá-lo? (Nietzsche)

INTRODUÇÃO

O nosso esforço neste artigo é uma tentativa para compreender como o corpo se insere

na existência humana trabalhada sob o prisma do processo de individuação, isto é, do ser

humano como vir a ser, da sua confrontação contínua com as possibilidades mais próprias,

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expressões do seu âmago, o si-mesmo. Pensar a relação entre o ser humano e o corpo se

expande para a ótica da relação do ser humano com a natureza, com a terra. A inspiração para

este trabalho veio da leitura do célebre texto de Nietzsche Assim falou Zaratustra. Nele, o

filósofo descortina um personagem, Zaratustra, que, por seu turno, propõe uma revolução nos

valores que culminam no nascimento do ―super-homem‖, aquele que resgata a dimensão do

corpo e da terra no barco pelo qual navega o existir humano.

Pelas nossas linhas, aparece uma interlocução de Nietzsche com Jung, seus pontos de

afinidade e de discussão. Ao pensar a inscrição do corpo no processo de constituição mais

próprio do ser humano, convidamos Leonardo Boff e Heidegger para participarem do

simpósio onde degustamos ideias e imagens reveladoras da condição humana e sua relação

com o corpo, que também é terra.

O SUPER-HOMEM E A INDIVIDUAÇÃO

O super-homem é, a nosso ver, um marco do processo de individuação. O

entendemos, antes do mais, como um símbolo do desejo de superação das condições a que

uma pessoa se encontre atrelada. Não se trata de um super-herói no estilo Clark Kent, ou seja,

não se trata de se propor a passagem do demasiado humano para um homem sobre-natural,

para um modelo de ser, que, por sua excelência, negue a imanência e a existência do ser

humano. Trata-se de atentar para o aspecto heróico do ser humano no que diz respeito a uma

atitude fundamental: a experiência da transcendência.

Essa é uma experiência arquetipicamente dionisíaca. Ela envolve a quebra dos limites

conhecidos e experimentados. Dionísio deseja a transgressão, sua medida é a desmedida. O

metron apolíneo é aquilo a ser ultrapassado. O processo de individuação apresenta uma esfera

dionisíaca, na medida em que se abre para a transformação e superação. O super-homem é

um símbolo do ser humano renascido, daquele que ―parte suas tábuas de valores, o destruidor,

o criminoso; - mas esse é criador‖ (Nietzsche, 1995, p. 39). A função transcendente é

justamente a condição de possibilidade dessa transformação. O símbolo abre um veio

estratégico de comunicação entre o consciente e o inconsciente, apresenta-se ele mesmo como

um complexo de opostos, cuja síntese eleva a psique a um nível mais integrado de

consciência.

Devemos não esquecer, que a individuação é um processo que se dá em torno de um

eixo, o si-mesmo, entendido por Jung como ―a totalidade humana‖ (1991, par. 20, p. 30). Ela

abarca tanto a esfera apolínea (a ordem, a medida, o senso e o estabelecimento de limites, a

consciência, a luz, a reflexão) quanto dionisíaca (a quebra dos limites, a experiência da

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transcendência, as paixões, o corpo). O processo de individuação envolve a necessidade de

uma integração dessas duas instâncias. Nesse ponto, começamos a nossa reflexão a partir da

contribuição do pensamento de Nietzsche para descrever não apenas uma fenomenologia do

corpo, como uma ontologia: para Nietzsche, o corpo está implicado indissociavelmente com o

próprio si-mesmo.

Se não devemos tomar Nietzsche ao pé da letra e adotar, acriticamente, a sua adesão

apaixonada a Dionísio em detrimento dos significados apolíneos, por outro lado, o filósofo

chama atenção, de várias formas, para o problema do esquecimento do corpo em favor de

valores supostamente ―superiores‖. Nessa via, ele integra a imagem do super-homem à

dimensão da natureza e do corpo. Parece-nos que Nietzsche quer fundamentar o ser humano

no corpo. Levando isso a ponto de uma análise mais acutiladora, a própria noção de homem

sofre uma severa desconfiança por parte de Nietzsche. Ousaríamos dizer que o que nos parece

mais acentuado na leitura de Nietzsche não é tanto uma série de marteladas na antropologia

quanto uma rigorosa análise crítica do antropocentrismo.

Apesar de nos instalarmos num campo minado por inúmeras dificuldades, acreditamos

ser possível tentar na leitura de Nietzsche um convite à compreensão acerca do corpo, que se

abre para alcançarmos a terra, e sua integração no processo de vir a ser. Trata-se de uma

hermenêutica acerca das implicações do corpo no processo do ―tornar-se quem se é‖.

Nietzsche fala através de seu personagem Zaratustra: ―O super-homem é o sentido da terra.

Fazei a vossa vontade dizer: ‗que o super-homem seja o sentido da terra!‘‖ (1995, p. 30).

Aqui, Nietzsche ressalta, quase em tom profético, a referência à terra. Essa passagem

inspirou-nos a ideia de que a terra pode ser a um só tempo entendida como corpo, matéria,

terra, natureza, planeta terra, o ethos (morada) do habitar humano no seu círculo de relações.

Sem querer magoar o espírito filosófico, acentuamos que o tom de Nietzsche é quase

―profético‖ porque por mais de um século antecede as preocupações e discussões

contemporâneas acerca do futuro do mundo.

Nietzsche entende a existência articulada a um sentido fundamental: o sentido da

terra. A experiência da transcendência, imaginada através da figura do super-homem, nada

mais é do que o próprio sentido da terra. Nesse ponto, deparamo-nos com um cruzamento da

transcendência com a imanência. Imanência: o sentido da terra, fundamental para se pensar o

ser humano e a sua superação. Transcendência o ir além, que resultará na morte do próprio

homem.

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É preciso ressaltar, nesse momento, uma distinção entre Jung e Nietzsche. Jung não

vê necessidade tanto da morte do homem quanto da de Deus. A morte do ―último homem‖

(expressão de Nietzsche) pode ser interpretada como a condição do homem que está diante de

sua própria crise, estagnação, diante da finitude, e é exatamente por isso que em termos

junguianos ele pode estar a um passo da transcendência. Destarte, a morte não é apenas

niilismo (negação do homem para afirmação dionisíaca do super-homem); é, em primeiro

lugar, metanoia: transformação radical da pessoa, que se desvela, por exemplo, na imagem de

teor alquímico, da transmutação do velho rei no ser renascido.

Ao invés de quebrar a noção de homem a marteladas, Jung descreve, no processo de

individuação, a metanoia. Ela é uma morte do homem no homem, e não o seu fim. Ao longo

da existência somos chamados a passar por várias mortes e renascimentos, como o nascer e o

ocaso do sol, um ciclo não apenas psicológico, como cósmico, que se alterna. Jung é

indiferente às investidas contra o fundamento antropológico (a noção de homem), pois está

interessado na metanoia. Nesse sentido, ele traz à luz um dos princípios da experiência

religiosa, a que se refere como ―educação religiosa‖, ou seja, à formação do homem no prisma

religioso. Jung inclui nessa formação um campo bem extenso, desde o homem arcaico ao

plano da instituição religiosa. Nesse âmbito, Jung nota a exortação ao despojamento do velho

Adão (Cl 3, 9). Isso não visaria transformar o ser humano no homem novo?

A psicologia nos ensina que, em certo sentido, não existe nada que

possa realmente se extinguir, e o próprio Paulo continuou com um

espinho na carne [2 Cor 12,7]. Quem se protege contra o que é novo e

estranho e regride ao passado está na mesma situação neurótica

daquele que se identifica com o novo e foge do passado. A única

diferença é que um se alheia do passado e o outro do futuro. Em

princípio, os dois fazem a mesma coisa: mantém a própria consciência

dentro de seus estreitos limites, em vez de fazê-la explodir na tensão

dos opostos e construir um estado de consciência mais ampla e mais

elevada. (1986, par. 767, p. 343)

O SENTIDO E O CLAMOR DA TERRA

Voltemos ao sentido da terra como uma condição essencial do ser humano. De fato, é

preciso se falar sobre o sentido da terra, uma vez que esse parece soterrado por um modo de

vida calçado no tecnocentrismo. Ele cria e dá corda a uma sociedade de consumo, que parece

ter elegido o seu deus: o mercado.

A cultura narcísica oferece um vasto campo para o cultivo do eu, do

corpo-objeto, das sensações. A começar, ela é regida pelo ―mercado‖.

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Nada pode ser feito sem passar pelo crivo do mercado. Mercado

significa lucro, rendimento, ganho, vantagem, competição, sucesso.

Aos vencedores, o seu prêmio: o ―direito‖ de consumir. Os

perdedores também têm o seu prêmio: o desejo de consumir. E os

dois possuem um elo em comum: a demanda de nunca se sentir

satisfeito, e sempre, cada vez mais, perseguir e valorizar o que não se

tem. (Bassi e Veríssimo, 2007, p.128)

Tal quadro favorece o desenvolvimento de comportamentos estereotipados e

padronizados, regulados pelas ―tendências do mercado‖. Nesse caso, não é pouco comum o

desejo por uma vida que não se pode bancar, a negação da realidade mais própria em prol de

representações sociais idealizadas, a eleição de ―elevados‖ padrões corporais e estéticos que o

corpo não suporta, a ânsia por estar ―de bem com a vida‖, escamoteando a confrontação com

a angústia, a recusa sistemática a aceitar os próprios limites. Nesse contexto, o corpo é um dos

alvos prediletos da economia voraz do mercado. O sujeito tenta conformar o seu corpo e sua

consciência a padrões de grande eficácia persuasiva, sem qualquer elaboração reflexiva ou

crítica.

A alienação do ser humano de si mesmo admite uma correspondência com a alienação

do sujeito em relação à natureza. Como podemos cuidar da terra, se mal cuidamos de nós

mesmos? Como podemos nutrir o cuidado pela terra, leia-se, pela natureza, se mal

conseguimos nos sintonizar e responder afirmativamente aos apelos do si-mesmo? Será que

temos noção das implicações do nosso consumismo com a exploração da natureza num modo

tal que não devolve para ela o que retira e quer lucrar com ela?

Por Boff (1999), percebemos um alto índice de artificialismo a que ficou reduzida

nossa existência atrelada aos produtos da tecnociência e ao consumismo. É anunciado, aos

quatro cantos do globo, que somos a sociedade do conhecimento e da informação. Há um

ambiente de rede que, como sabemos, cria um ciberespaço, uma hiperestimulação de imagens

e mensagens, mas, espantosamente, nossa interação face a face, corpo a corpo parece estar

cada vez mais relegada a um plano de desinteresse. Podemos nos conectar com milhões de

pessoas sem nos encontrar face a face, sem apertar as mãos ou abraçar ninguém. Nossa

existência, cuja constituição é feita a partir da trama de relações que estabelecemos, é cada

vez mais uma realidade virtual, uma textura on-line.

A relação com o mundo não é apenas uma relação de ―informação‖, de um sobrevoo

sobre as coisas, como diria Merleau-Ponty (1989, p. 48), mas, é uma relação mediada pelos

cheiros, pelas cores, acolhida de forma fria ou calorosa, dá-nos a sensação do peso e

densidade, oferece resistência, provoca o nosso pensar. Essa relação fundamental é, cada vez

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mais, refém de uma apropriação exclusivamente virtual: ―o pé não sente mais o macio da

grama verde. A mão não pega mais um punhado de terra escura. O mundo virtual criou um

novo habitat para o ser humano, caracterizado pelo encapsulamento sobre si mesmo e pela

falta do toque, do tato e do contato humano‖ (Boff, 1999, p. 11).

Essa tomada de direção histórica cria uma cultura hedonista, narcisista, consumista,

imediatista, competitiva, que agride a natureza, que regula os corpos em padrões

massificados, e tenta torná-los como máquinas produtivas, e reprodutoras de ideologias

comprometidas com o poder econômico, que, enfim, parece dispensar o homem do cuidado.

Para a cultura tecnoindustrial de mercado, a natureza não passa de um objeto de interesse

econômico.

E isso nos leva a preocupações, como a que apontou o filósofo Mário Cortella. Ele

alerta que talvez sejamos a primeira geração na história do Ocidente que não cuida direito da

próxima geração. Estamos procedendo ao um ―saque antecipado do futuro‖. Estamos

gastando não apenas nossas economias no shopping: estamos gastando o próprio futuro,

gastando o futuro por antecipação. Considera Cortella (A criança em seu mundo) que, de

maneira geral na história humana, a geração atual cuida da próxima. Cuida dos recursos, da

sobrevivência, de propiciar os meios que sustentem a existência. ―No entanto, a voracidade do

nosso cotidiano, a maneira como nós desmontamos as condições da existência coletiva à

medida que o econarcisismo é mais presente à nossa frente, acabamos esgotando as condições

de existência no futuro‖.

Na contramão dessa tendência preocupante, há quem acredite que a natureza mais

própria do homem é o cuidado, e associa-o à terra, entre eles, Boff, Heidegger.

Acrescentamos à lembrança desses autores as impressões assinaladas de Nietzsche (p. 30): o

super-homem é o sentido da terra, permanecei fiéis à terra.

Há muito o mito já havia se dado conta do sentido da terra na genealogia do humano,

através de um complexo simbólico que integra a terra ao corpo, à matéria, ao barro, ao

cuidado, ao ser humano na constituição de sua essência. Certo dia, Cuidado ao atravessar um

rio, depara-se com um pedaço de barro e resolve dar-lhe forma. Concluída a sua obra, surge

Júpiter, e Cuidado solicita ao deus que sopre espírito na sua criação. Júpiter aceita e realiza o

desejo de Cuidado, mas exige que o nome da criatura seja o seu próprio. Júpiter e Cuidado

passam a discutir, quando aparece a Terra. Ela reclama o direito de dar o nome à coisa criada,

uma vez que fora feito dela, de seu corpo, do barro. E, assim, a discussão aumentou. Agora

eram três disputando o privilégio de dar um nome ao que fora criado. Em face da falta de

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acordo, decidiram apelar para Saturno, o deus ligado à noção de justiça, para que arbitrasse a

disputa. O deus deu, então, o seguinte veredicto:

Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito

por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo:

receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura

morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a

criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E uma vez que

entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta

criatura será chamada Homem, isto é, feito de húmus, que significa

terra fértil. (Higino citado e traduzido por Boff, 1999, p. 46)

Esse mito desvela que a origem do ser humano está ligada à terra, que lhe deu corpo.

Na verdade, o ser humano deve sua origem não só à terra, como a um quaternário, uma

totalidade onde participam céu e terra, mortais e imortais. O quaternário institui o próprio

habitar do ser humano, o modo como ele se apropria do mundo, e lhe dá sentido. O ser

humano se faz no mundo, faz o mundo, e é feito pelo mundo: é o habitar. O habitar precisa do

cuidado para que se mantenha o resguardo. ―Resguardar acontece quando deixamos alguma

coisa entregue de antemão ao seu vigor de essência, quando devolvemos, de maneira própria,

alguma coisa ao abrigo de sua essência‖ (Heidegger, 2002, p. 129). O cuidado com o

resguardo da própria essência significa o sentido mais pleno do processo de individuação.

Acreditamos que na individuação o sujeito deve abrir-se ao quaternário, conhecer-se e

experimentar-se a partir dessa totalidade.

O céu e, no mito relatado, Júpiter podem ser interpretados como o desejo de

transcendência, de realizar, seja pelo pensamento, seja pela imaginação, voos cada vez mais

ousados, que ultrapassem as medidas familiares, abrindo-se para um horizonte infinito que

contempla o universo, com os seus labirintos de luz e mistérios, coberto pelo brilho das

nebulosas e estrelas. Pela afinidade das imagens do céu e de Júpiter com o simbolismo da luz

(brilho, raios, estrelas, astros) podemos associá-los à consciência, ao espírito, à busca pelo

conhecimento em seus primeiros e últimos questionamentos.

Saturno volta e meia é representado como um símbolo do ideal de justiça e de ordem

que rege a sinfonia do universo. Por isso, pode também ser significado como a utopia, como

os valores éticos através dos quais o ser humano edifica um sentido de convivência com seus

pares, de tal forma que se possa abrigar o senso do bem comum. E, se passamos para o terreno

da ética, é preciso ter em conta que a ética hoje não mais permite omitir nem o corpo, nem a

terra. Pela redução do corpo a objeto de consumo, pela crise ambiental, pelos mandos e

desmandos de uma razão utilitária, somos cada vez mais apelados ao desenvolvimento de um

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sentido éticológico (ético e ecológico) de vida, somos apelados a desenvolver respeito e

veneração, atenção e resguardo, parceria e diálogo com a natureza.

A terra é interpretada, como dissemos, como a dimensão do corpo, da natureza, do

nosso planeta. Ela tem a ver também com a noção de que precisamos cultivar a ligação com o

self (si-mesmo), assim como a sintonia e a abertura às formas de expressão do self. Desse

modo, podemos simbolizar o self como a semente das possibilidades existenciais. Ela precisa

ser resguardada e cuidada. A semente para germinar, para que possamos assegurar o

afloramento de todas as suas potencialidades, precisa de cuidados. Precisa ser regada,

observada, acompanhada com zelo. Devemos cultivar a nossa natureza mais íntima como

quem cuida de uma planta. Uma planta sem cuidado, degenera e morre. “Sem cuidado o si-

mesmo mais cedo ou mais tarde manifesta a sensação nítida (...) e constante de desarmonia,

(...) de caos improdutivo, a paralisia das forças, a impotência e o ressentimento contra si

próprio e as pessoas através de projeções reativas.‖ (Veríssimo, 2005, p. 144)

E os ―deuses e homens‖ redigidos por Heidegger (1992)? Como podemos pensá-los?

A nosso ver, correspondem ao bailado dos planos da imanência (homens) e da transcendência

(deuses). Esse cruzamento já foi interpretado, em termos literais, como uma disposição

hierárquica que apontava o divino acima do mortal, sua razão de ser, ao mesmo tempo a causa

e a finalidade do existir. E mais: a transcendência já foi entendida como o abrigo de valores

superiores tais que a alma detinha uma ―natureza‖ (ou essência) em muito superior à do

corpo, enquanto Deus era estimado como não só superior, como distinto das criaturas. É o que

Nietzsche significa ao dizer ―Eu vos rogo, meus irmãos, permanecei fiéis à terra e não

acrediteis nos que vos falam de esperanças ultraterrenas! Envenenadores, são eles que o

saibam ou não.‖ (1995, p. 30). As ―esperança ultraterrenas‖ dizem respeito a um descaso para

com o mundo em sua tragicidade elementar (belo, fascinante, aterrador e tremendo). O

descaso com o mundo corresponde ao ocaso do corpo do mundo, da terra, que resiste,

fricciona-se e dá guarida a esse mesmo mundo porque o abriga.

A relação entre terra e mundo entranha-se. O mundo relaciona-se ao habitar humano

na terra. Os homens erguem o templo. O templo é desejado como a morada do deus, e o

revela em sua ocultação, que, graças ao templo, advém no tempo. O edifício repousa e resiste,

com suas formas metafísicas, ao devir da natureza. Ainda que só restem colunas, a obra se

mantém de pé, pois, os homens imaginam que lá se abre o portal para o divino. Enquanto isso,

a tempestade se abate com toda a sua fúria sobre o templo, enquanto as ondas rugem, lá ao

fundo. Percebemos como o mar está bravo pelo contorno que envolve a própria serenidade da

obra e sua leveza. É o que nos relata Heidegger ao tentar compreender a relação entre terra e

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mundo. Heidegger considera a physis ―a clareira daquilo sobre o qual e no qual o homem

funda o seu habitar. Chamamos isso a Terra‖ (1992, p. 33).

A MORAL ASCÉTICA E OS DESPREZADORES DO CORPO

Estávamos conversando sobre os valores superiores: aqueles valores que negam a

existência concreta, rejeitam a imanência e o mundo, esquecem-se do corpo e da natureza

para se projetarem num outro mundo, onde esperam obter a sua salvaguarda ou o preço a

pagar pelo sentimento de culpa que suscitam. Entre os valores superiores estão a apropriação

do sagrado, segundo doutrinas prontas e a moral ascética, que rejeita o corpo em favor do

espírito e da sua salvação em outro plano. Já se disse inclusive em rodas intelectuais, que

Deus não faz parte da natureza, pois, a criatura não pode se confundir com o Criador. A alma

era considerada o habitat do intelecto, enquanto o corpo navegava numa travessia perigosa no

mar das paixões. Na teleologia dos valores superiores, que germinavam com força antes da

emergência do homem de ciência, podia-se puxar um fio com Deus, a razão, a alma, o

espírito, a moral da contenção, da ascese a Deus, da negligência do corpo. Esse novelo

continha o que levava os créditos da essência do ser humano.

Desenrolando essa lógica, constatamos que a mistura entre religião e ideal ascético

pode conduzir a uma desesperada tentativa de salvação da morte, do sofrimento, da angústia,

da falta. O sujeito pode usar Deus como desculpa para se defender do desejo e das culpas

advindas dele. Jung observa como seu pai, pastor luterano, tocava a vida a partir de sua

procura de sentido com bases numa moral rígida que impôs a si mesmo. Por ela, apagou-se o

brilho da juventude, e, em seu lugar, Jung via um ser sempre voltado para fora: a vida interior

fora esvaziada de energia e significado, enquanto a vida conjugal o decepcionara.

―Consequentemente, estava quase sempre de mau humor e sofria de irritação crônica. (...)

Como é fácil compreender, sua fé entrou em crise, por causa dessas dificuldades.‖ (1992, p.

89). Jung desenha em suas memórias o retrato de um homem que aderira ordeiramente aos

dogmas, sem questionar ou sentir a experiência do numinoso de forma mais plena, vale dizer,

não apenas no seu aspecto cândido e atrativo, como no seu aspecto assustador e tremendo.

Seu pai adotou uma moral (uma regra de conduta) de acordo com o que acreditava que a

Bíblia exigia como os seus pais o haviam ensinado. Jung se ressente de não poder ajudar o seu

pai, e começou a questionar a educação religiosa que seu pai lhe ministrava. Jung não

conseguia ouvir passivamente os sermões, estava sempre antenado às suas experiências mais

próprias. Enquanto as palavras da doutrina soavam insípidas e vazias, ―tal como as de uma

história contada por alguém que nela não crê ou que só a conhece por ouvir dizer.‖ (1992, p.

50). Queria ajudar seu pai, aproximar-se mais dele, mas, não sabia como. Quando Jung

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ensaiava um debate, acabava numa discussão ou num dar de ombros do pai de forma

resignada. ―Uma espécie de pudor impedia que lhe contasse minha própria experiência ou me

imiscuísse em suas preocupações pessoais.‖ (1992, p. 50).

A moral ascética é uma utopia, ela deseja um mundo melhor. Mas, parece-nos que não

começa do mundo para os sonhos, e sim, da idealização calcada em valores superiores para

uma imposição deles sobre o mundo e o corpo. Nietzsche aponta sua escrita para os

desprezadores do corpo. A lógica do ideal ascético estabelece uma hierarquia rígida, em que a

alma se promove como superior em tudo ao corpo, e olha desdenhosamente para ele,

orgulhando-se de tal contemplação. A alma ―era o que havia de mais elevado: queria [o

corpo] magro, horrível, faminto. Pensava-se assim, escapar-se dele e da terra.‖ (Nietzsche,

1995, p. 30). Não nos iludamos a pensar que o ideal ascético não passa de um romantismo

medieval. Em nossos dias o vemos a cada esquina, ou melhor, a cada 30 segundos, numa

considerável parcela das peças publicitárias, nas figuras esculturais que a televisão e o cinema

de entretenimento insistem em apresentar como a única estética possível. Enfim, pelos

símbolos da cultura de massa e narcísica observamos que ela também pode ser admitida entre

os ―desprezadores do corpo‖. Querem-no igualmente magro e faminto: eternamente jovem,

sem rugas, perfeito. Para isso, rasgam-no e despedaçam-no, torturam-no, submetem-no aos

maiores e impossíveis rigores, tentam discipliná-lo regiamente, metem-no numa coleira pela

vaidade e insegurança pessoal, põem em risco a própria vida, tudo isso para uma existência

ascética, nos modelos da moral narcísica. Assim, acreditam se livrar das ―inconveniências‖ do

corpo, quando ele não se encaixa nos padrões de beleza vigentes.

Nietzsche tenta inverter a hierarquia entre espírito e corpo. Não é mais o espírito que

se utiliza do corpo, como um instrumento da sua vontade de ascese, mas, ao revés, é o corpo

quem se utiliza do espírito. O espírito é instrumento do teu corpo, aliás, o corpo é, na verdade,

a grande razão. O que chamas ―espírito‖ nada mais é do que a tua pequena razão, ―pequeno

instrumento e brinquedo da tua grande razão.‖ (1995, p. 51). A seguir, Nietzsche faz uma

associação entre o si-mesmo e a dimensão corporal. Por trás dos instrumentos e brinquedos

que são o espírito e os sentidos (as bases do pensamento científico mecanicista) encontra-se o

ser próprio. Pois, ―aquilo que os sentidos experimentam, aquilo que o espírito conhece, nunca

tem seu fim em si mesmo. (...). O ser próprio procura também com os olhos dos sentidos,

escuta também com os ouvidos do espírito‖ (1995, p. 51).

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INTEGRANDO A TOTALIDADE HUMANA

Nesse ponto, não conseguimos deixar de cair na tentação de associar o pensamento de

Nietzsche ao de Jung, quanto à relação do ego com o si-mesmo (self). O que Nietzsche

chamou de alma, sobretudo, de ―espírito‖, fazemos uma ligação com a noção ego enunciada

por Jung. O ego tem relação com a nossa vontade de conhecer, de ser objetivo, de manejar

satisfatoriamente as tarefas práticas, com o desejo de dominar a si próprio, de afirmar-se no

mundo. O self é a ―totalidade humana‖, inclui o próprio ego. Por vezes, há uma dialética tensa

entre ambos, quando os cálculos egoicos acerca da ―realidade‖ prática e o seu conhecimento

não coincidem com as necessidades advindas do si-mesmo (expressas através dos mitos,

símbolos, sonhos, sintomas, intuições, imagens, sentimentos, ideias); o sujeito já não mais se

experimenta como uma totalidade, e começa a desenvolver ações e percepções parciais,

desenvolve uma armação racional tal que deixa para lá os avisos do corpo, as paixões e o

desejo. Isso não passa de uma capa sobre a natureza mais própria, o si-mesmo. Em face das

dissonâncias muito críticas entre a razão e a totalidade orgânica que é o sujeito, a razão se

perde num labirinto de explicações que não respondem mais à busca de sentido significativo

para a existência. Dessa forma, ―o espírito‖ pode se reduzir a um instrumento alucinado do

corpo, bem ao estilo do que nos mostra Nietzsche.

Em sua insistência na inversão de valores, podemos inferir, interpretando a

argumentação de Nietzsche, como o ego (o eu) pode se tornar uma presa fácil da nossa

totalidade. O self diz ao ego: ―agora, sente dor!‖. O ego, então, cogita e tenta achar uma saída

para como evitar o sofrimento. ―Agora, sente prazer!‖, diz, novamente o ser próprio ao eu

(ego). ―E, então, o eu se regozija e reflete em como poderá ainda regozijar-se muitas vezes – e

para isso, justamente, deve pensar.‖ (1995, p. 52). Observemos como o pensamento está

articulado à nossa totalidade, e deriva dela.

Nietzsche aposta todas as suas fichas numa ontologia a partir do corpo. ―Mas o

homem já desperto, o sabedor, diz: ―Eu sou todo corpo e nada além disso; e a alma é somente

uma palavra para alguma coisa no corpo‖. Nesse ponto, cabe uma discussão com respeito à

primazia da alma (tradição metafísica) ou do corpo na definição do que é o mais propriamente

o ser humano. E convidamos, uma vez mais, Jung para apresentar uma réplica às

considerações do filósofo.

Em primeiro lugar, parece-nos que Jung não estima a alma, como grande parte da

metafísica, como a sede da racionalidade. A alma, por vezes, aparece na obra de Jung como a

dimensão do feminino, outras vezes como a própria psique. E, se Nietzsche observa, com sua

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analítica afiada, os desprezadores do corpo, Jung, observa, por sua vez, o desprezo sistemático

pela alma, ao menos no Ocidente. ―Quem quer que fale da realidade da alma será censurado

por seu ―psicologismo‖ e quando se fala em psicologia é neste tom: ―é apenas psicológico...‖

(1991, par. 9, p. 22). De fato, quantas vezes já não ouvimos, inclusive nos bancos escolares da

filosofia, uma afirmação do tipo ―isso não é psicologia!‖. Como se fosse possível separar o

psíquico do filosófico. Como se a ordem do psíquico fosse somente uma interferência,

somente um obstáculo epistemológico ao pensar. Como se fosse possível pensar sem sentir,

imaginar, desejar. Como se fosse possível separar a psique do pensar, como se o pensar

pudesse se fundamentar única e exclusivamente no pensamento. Isso a nosso ver é mais uma

das formas do ideal ascético sinalizado por Nietzsche.

A existência humana, em todas as suas faces, inclusive a da construção do saber,

reside num habitar, num modo de ser no mundo que se dá como uma totalidade de sentido,

como enfatizam Nietzsche, Jung, Boff e Heidegger, cada um a seu modo, cada um se sentindo

tomado e tocado por algum aspecto dessa totalidade. Essa totalidade pode ser expressa sob

várias formas: o corpo e a terra (Nietzsche), o si-mesmo (Jung), o quaternário (Heidegger), o

Cuidado (Boff). Júpiter, o céu, a terra, Saturno, o Cuidado, os deuses e os homens, o corpo, a

alma expressam a trama que unifica e distende os opostos, numa contração e tensão que

resulta num ponto, ou, talvez, em inúmeros pontos de entrelaçamento da imanência com a

experiência da transcendência.

Nesse último pedacinho do fio que ora desenrolamos, que se encontra com o primeiro,

gostaríamos de trazer alguns trechos de uma criação que tem como título ―A Oração ao Deus

Desconhecido‖. Foi traduzida por Leonardo Boff, que não permite esquecer que ela foi feita

por quem ―fez a crítica mais violenta do cristianismo, mas o fez a partir da uma experiência

radical do Deus vivo‖.

Antes de prosseguir em meu caminho e lançar o meu olhar para a

frente uma vez mais, elevo, só, minhas mãos a Ti na direção de quem

eu fujo. A Ti, das profundezas de meu coração, tenho dedicado altares

festivos para que, em cada momento, Tua voz me pudesse chamar.

Sobre esses altares estão gravadas em fogo estas palavras: ‗Ao Deus

desconhecido‘. (...) Seu, sou eu, não obstante os laços que me puxam

para o abismo. (...) Eu quero Te conhecer, desconhecido.

Tu, que me penetras a alma e, qual turbilhão, invades a minha vida.

(...) (Nietzsche apud Boff, 2000, pp. 84-85).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2007.

BOFF, L. Saber cuidar. Ética do humano – compaixão pela terra. 4. ed. Petrópolis:

Vozes, 1999.

_______. Tempo de Transcendência. O Ser Humano como um Projeto Infinito. Rio de

Janeiro: Sextante, 2000.

CORTELLA, M. S. A criança em seu mundo. DVD. Produção: Espaço Cultural CPFL e

TV Cultura (Programa Café Filosófico), s.d.

HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte. Trad. de Maria da Conceição Costa. Lisboa:

Edições 70, 1992.

_______. Ensaios e conferências. Trad. de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, e

Marcia Sá C. Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002.

JUNG, C. G. A natureza da psique. Trad. do Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha, OSB. 2ª ed.

Petrópolis: Vozes, 1986 (O.C. vol. VIII/2).

_______. Psicologia e alquimia. Trad. de Maria Luiza Appy, Margaret Makray e Dora

Ferreira da Silva. Petrópolis: Vozes, 1991 (O.C. vol. XII).

_______. Memória, Sonhos, Reflexões. Trad. de Dora Ferreira da Silva. 14ª. ed. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. Trad. de Marilena de Souza Chauí. São Paulo,

Nova Cultural, 1989 (Os pensadores).

NIETZSCHE, F. W. Assim falou Zaratustra. Trad. de Mario da Silva. 8ª ed. Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.

VERÍSSIMO, L. J. A Psicologia do Self e a Função Religiosa da Alma. Um estudo a

partir de C.G. Jung. Campinas: Livro Pleno, 2005.

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A CRIAÇÃO DO GOSTO DA LEITURA: O CORPO MEDIANDO A FORMAÇÃO

DO SUJEITO LEITOR

Autor: José Ricardo da Silva Ramos

(Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)

Sem ser um meio para complemento ou uma compensação, a

literatura nos permite moldar ativamente o mundo e a nós mesmos, ao

propiciar o contato com alguma coisa que não podemos conhecer ou

vivenciar de forma consciente. (Gabriele Ichuvab)

Este trabalho buscará discutir as possibilidades da expressão corporal na formação do

leitor na escola. Sendo assim, tratará da importância do corpo mediando à aquisição da leitura

através da expressão corpórea. Entretanto, por que essa proposta é interessante para as

diferentes instâncias educacionais que procuram despertar o gosto pela leitura?

Participando de um curso de formação do leitor1, lendo os diferentes textos sugeridos

pelo curso, estudando e registrando suas palavras, fui buscando compreender as relações que

os autores estabeleceram para a criação do gosto pela leitura e do papel fundamental daquele

que deve mediar o livro ou o objeto a ser lido com a leitura. Os textos falavam como deve ser

prazerosa a leitura, de como deve ser importante despertar o gosto de ler, comentavam as boas

lembranças da leitura de distintos autores, o que suscitava neles, que ela não deve ser imposta

e que existem diferentes meios de orientar a leitura como por meio do computador, da pintura,

da poesia e das artes. Conheci histórias de lazer, prazer e de vontade de se apropriar da leitura.

Mas se os textos lembravam caminhos pedagógicos para criar o gosto de ler,

demonstrando pertinência e autonomia com relação a formas de apropriação e utilização de

recursos para leitura, a escola, por sua vez, desconhece as possibilidades para despertar o

hábito da leitura. Muitos colegas do curso relataram que a leitura na escola se fecha na leitura

dos livros didáticos, em resumos de histórias, em provas e que os alunos, na sua maioria, não

gostam de ler, tem aversão pelos textos literários, pela literatura que é ensinada na escola.

Fiquei conhecendo alguns métodos que os colegas construíram para romper com o desprazer,

a imposição e a obrigatoriedade de ler determinada pela escola. Nesse sentido, percebi que a

escola forma não-leitores, que os alunos não conseguem desfrutar do prazer de ler um livro e

1 O curso ―O leitor em questão: entre o texto e a leitura‖ é desenvolvido pela disciplina ―Análise da Interação‖

da Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Estudos da Linguagem da Universidade Federal Fluminense –

UFF, com a orientação e dinamização da Professora Maria Elizabeth Chaves de Mello

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que os mesmos têm medo, timidez e vergonha de ler para o outro, para a classe ou para o

professor e ser avaliado como mau leitor.

Como pode a intervenção pedagógica resolver esses problemas? Como não temer

diante dos textos literários? Drummond no texto ―O leitor e o lido‖ diz: ―Às vezes penso que o

leitor é alguém que deseja estar no meu lugar, um concorrente em potencial, um amigo-

inimigo.‖ Será que temos tido a oportunidade de fazer outros tipos de leituras na escola? Será

que estamos buscando outros tipos de leituras na formação do sujeito-leitor? Será que nós,

professores, temos tido a oportunidade de ler a postura, o corpo, ou seja, as escrituras

corporais dos nossos alunos? É possível tornar os nossos alunos, sujeitos que expressam

alguma coisa por meio dos seus corpos e ao mesmo tempo leitores daquilo que expressaram?

Como encontrar caminhos pedagógicos em que os alunos gostem de ler, passem a ler, voltem-

se para o livro e a literatura sem temer diante deles? Será que a expressão corpórea como uma

proposta de leitura pode ser útil na formação do aluno leitor?

Assumindo uma perspectiva que é a linguagem como ação, tenho como objetivo neste

trabalho, levantar algumas reflexões sobre o que significa compreender a leitura como

expressão corporal – uma linha de pesquisa que tenho discutido e estudado, buscando

interlocutores para construir caminhos pedagógicos comprometidos com a teoria e a prática

na formação de leitores. No contexto dessa perspectiva, analisaremos diferentes modos de

entender a leitura na escola como instrumento, necessidade, gosto, exercício ou mera

atividade curricular.

LENDO ALÉM DAS LETRAS

Tomando como possibilidade de intervenção pedagógica a metodologia criativa que

parte da proposição de atividades assemelhada às das várias artes, como experiência de

criação, coerente com aquilo que os alunos desejam para aprender para a sua vida, estudamos

a distinção que Bordini & Aguiar (1988) estabelecem entre constatar uma carência e

reproduzir histórias a partir de narrativas ouvidas. Desse modo, a literatura pode ser vivida,

experimentada e contada para o outro, compartilhada, se tornando leitura corporal, através do

caráter cênico expresso pelo que a dança pode devolver e despertar no aluno o gosto pela

leitura.

Divulgarei assim, que a leitura como uma forma de expressão corporal seja uma

prática pedagógica, em que o aluno possa interagir, criar, divertir-se, informar, comunicar e

partilhar saberes tanto para quem lê, quanto para quem propiciou a leitura, ao representá-la

corporalmente, crescer, ser desafiado, aprender e construir conhecimentos.

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A área pedagógica da leitura vem recebendo, durante séculos importantes

contribuições tanto no que se refere à procura de caminhos concretos para o ensino da leitura

quanto no que diz respeito a uma direção epistemológica para o assunto. Sartre (1989),

através da denúncia a uma pedagogia morta, a qual o livro é um objeto sem nenhuma ação,

nos apresenta a leitura ―engajada‖, em que a palavra é ação, que desvenda e procura

mudanças. Esta decide desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens,

a fim de que estes assumam em face do objeto (livro) a sua inteira responsabilidade. Desse

modo, a função de um professor ―engajado‖ é construir o como a leitura pode atingir a sua

máxima ressonância.

Com o impulso na área epistemológica, a mudança paradigmática parte da tentativa de

desconstruir a equivocada experiência da leitura conservadora: a leitura como uma destreza.

―Porque a leitura, ao contrário da carpintaria ou do bordado, não é meramente uma

habilidade; é uma ativa elaboração de significados dentro de um sistema de comunicação.‖

(DARNTON, 1986, p. 279). Desde Rousseau e sua compreensão de leitura como

sensibilidade romântica, entrando pelas correntes da filosofia, da psicologia, da sociologia e

da linguagem, vamos conhecendo os estudos do passado, que ora conservam ou enfrentam

questões ligadas ao prazer e o gosto pela leitura. Estes campos teóricos nos situam no espaço

da reflexão, da política, da ideologia e do problema de apresentar caminhos concretos para a

prática da leitura.

Chartier (1998), entre as limitações e a liberdade na leitura, chama a atenção para o

caráter histórico da experiência humana de ler, ostentando a aventura social da leitura.

Experiências humanas marcadas nos modos de lembrar e recordar dos sujeitos que

procuravam diferentes formas de leituras. Suas investigações indicam que a consideração do

livro como objeto vivo, do ambiente, como conteúdo educacional e da memória como

elemento de leitura do mundo, incorporou diferentes modelos explicativos de leitura na

dinâmica social de cada época, aumentando os processos relacionados à informação e a

comunicação humana, mudando o panorama estático, conservador para um panorama

modular e flexível. As ideias dos diferentes modos de leitura vêm repercutindo, durante

séculos, em desdobramentos pedagógicos significativos para que os indivíduos se apropriem

do ato de ler.

Entre os vários modos de leitura, Chartier (1998) pontua a revolução que os textos

eletrônicos vêm fazendo com as suas ideias contemporâneas ofertando mais comunicação e

informação, cujas contribuições promoveram impactos no delineamento de questões sobre o

ato de ler e novas propostas para apropriação do gosto de ler.

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No conjunto dessas contribuições teóricas e de busca por caminhos pedagógicos

concretos para que a escola se aproprie do gosto de ler é que se coloca o presente estudo. Ao

levantar questões sobre os modos de ler, de diferentes tipos de alunos e escolas, onde a leitura

de fato não acontece, sou direcionado também pelo problema do ―como‖ fazer. Na busca da

direção epistemológica e o como intervir, me desloco neste trabalho inquietante, observando

algumas manifestações corporais de negação com a leitura, estudando esses comportamentos,

entrevistando professores ―engajados‖ na busca de novas alternativas pelo gosto da leitura,

procurando compreender a escola, como também buscando caminhos e respostas. Ao longo

desse processo, encontro meus interlocutores e levanto as seguintes questões: o que é ler?

Qual a sua natureza? Como se lê o mundo? Como a escola entende a leitura? Existem outros

modos de ler e narrar o que leu? No emaranhado dessas questões é que estudo diversos

modos, conceitos e teorias para compreensão da leitura. Ler é uma destreza? É exercício? É

prazer, hábito, uma necessidade virtual para o mundo de hoje ou um instrumento para

apropriação de outros mundos? Pretendo apresentar algumas implicações dessas questões

suscitadas neste trabalho ao apresentar a leitura através da expressão corporal.

Para responder essas questões e tentar resolver esses problemas, faz-se necessário

inicialmente retomar os Parâmetros Curriculares Nacionais que orientam atualmente a lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96). Na orientação da lei, o ensino da

literatura e da área corpórea já está amplamente conhecido como área das linguagens,

inseparáveis no desenvolvimento de habilidades e competências do alunato. Julgo necessárias

retomá-las a fim de tornar transparentes os princípios, pressupostos e a metodologia que me

fundamento para responder as questões formuladas. Assim, busco as interferências dessas

linguagens no processo de aquisição da leitura na escola, distinguindo-se, para tornar o

trabalho mais explícito, duas faces dessas linguagens nesse processo: a apresentação da

linguagem não verbal, e o desenvolvimento da literatura na utilização do corpo para a

interação dessas linguagens.

No campo dos sistemas e linguagem, podemos delimitar a linguagem

verbal e não verbal e seus cruzamentos verbo-visuais, audio-visuais,

audio-verbo-visuais etc. A estrutura simbólica da comunicação visual

e/ou gestual como da verbal constitui sistemas arbitrários de sentido e

comunicação. A organização do espaço social, as ações dos agentes

coletivos, normas, os costumes rituais e comportamentos

institucionais influem e são influenciados na e pela linguagem, que se

mostra produto e produtora da cultura e comunicação social. (PCN‘s,

1999, p. 126).

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A partir da retomada de uma concepção da área da linguagem configurando relações

pedagógicas entre a Educação Física e a Língua Portuguesa pelos seus aspectos

interdisciplinares, ancoro minha proposta com a tentativa de responder às perguntas acima

formuladas, apresentando, sobretudo, a prática pedagógica de alguns professores que se

orientam e controlam o ensino e a aprendizagem literária nas suas ações. Com esta

consideração os PCN‘s orientam os professores da área das linguagens para que exerçam suas

ações nesta direção:

Podemos assim falar em linguagens que se confrontam, nas práticas

sociais e na história, e fazem com que a circulação de sentidos

produza formas sensoriais e cognitivas diferenciadas. (id. Ibid.).

Todos os professores que atuam na área das linguagens na escola devem considerar a

interferência de aspectos dos estudos da linguagem no ensino e aprendizagem de textos,

discurso verbais e não-verbais aqui destacados para apropriação da leitura.

No que se refere ao processo de apropriação literária, a linguagem corporal na

aquisição daquela, transformam o conceito de leitor fragmentado, que se apropria do texto por

associação para um leitor ator, autor e coautor que atua com e sobre a leitura, buscando

compreender um texto ou uma obra literária, levantando hipóteses sobre ela, submetendo a

prova essas hipóteses pela expressão corporal. O processo que rege esta orientação é a escrita

do texto em forma de dança – uma coreografia que conduzirá o aluno progressivamente por

uma prática de sucessivas correspondências entre o não verbal e o escrito nas sequências de

movimentos que suscitam os sentidos do texto. Sentidos que sugerem novas possibilidades de

leituras.

O aluno lê agindo e interagindo com um texto, experimentando corporalmente,

ousando a descrevê-lo, fazendo uso de técnicas corporais e testando hipóteses entre o gestual

e o escrito através de seus discursos motrizes organizados comparados às estruturas narrativas

a fim de tornar sua narração semanticamente interpretada.

As dificuldades enfrentadas pelos alunos nesse processo são consideradas como uma

prática refletida, e para isso acontecer, as expressões corporais são dinamizadas com

exercícios, técnicas corporais que associam texto ao discurso motriz. Nesse processo de

apropriação literária, as expressões corporais são consideradas constitutivas, sinalizadores no

processo de apropriação e construção de um texto, que o aluno vivência, revelando sua escrita

através da sua atuação, se identificando com a leitura.

Como apresentar o livro para os alunos? – é a questão central deste estudo neste

trabalho de curso, dando sequência ao tema: ―a formação do leitor em questão‖, a proposta de

trabalho foi construída considerando o projeto pedagógico e as questões postas pelo curso

ministrado pela professora Elizabeth Chaves.

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EXPERIMENTANDO O CORPO COMO LINGUAGEM: A HISTÓRIA DOS

CORPOS HUMANOS.

Procurando compreender a linguagem corporal na formação do leitor, podemos

começar na esfera pré-histórica do sistema da linguagem, pois o começar de tudo nos

remeterá aos atos de leitura dos nossos antepassados. Iser (1999), por exemplo, atribui a

estética da recepção a capacidade de ler que os seres humanos dispõem, traçando lacunas

ocultas entre textos de ficção à previsões futuras partindo da mobilidade do ser no modo que

lhe permita ler uma realidade de acordo com o seu contexto social e histórico. Nesse sentido,

a teoria da recepção no ato de ler, desde o momento da evolução, já estariam sinalizados nas

escrituras corporais da espécie humana.

Nesse sentido, a formação da leitura parte de uma trajetória sócio-ontológica. Desde a

pré-história, o homem reuniu pistas, conhecimentos indiciários que o formaram um leitor do

mundo. O homem pré-histórico construiu sua formação humana no seu modo de ler a natureza

para transformá-la e domesticá-la. Por uma série de experiências corporais, o homem como

leitor, afrontou mistérios, descobriu e criou coisas e se constituiu leitor que agiu, interagiu no

mundo e desvelou a linguagem humana.

Segundo Paulo Freire (1986), aprender a ler é antes de mais nada aprender a ler o

mundo; compreender uma realidade, interagir num espaço social, a partir da relação

linguagem e ação. O processo de leitura se realiza no movimento dinâmico de ler o mundo e

flui no corpo humano carregado de significação existencial: uma ―prática refletida‖ – a

tradução de leitura do ser humano. Do ponto de vista da Educação Física, podemos dizer que

ler o corpo é estudar a humanidade: sua construção histórica, cultural e social no seu discurso

motriz. Como instância da linguagem corporal, a dança é objeto do corpo de conhecimento da

Educação Física; disciplina que a analisa, interpreta e a explica, como resultante da cultura.

Assim, ler através da é uma prática de leitura. É pelo uso do corpo em movimento que o

homem se produz, se humaniza e se realiza na produção de uma cultura técnica que (a dança)

determina o tipo de leitura que produzimos2.

No livro A importância do ato de ler, Paulo Freire reconhece o seu mundo da infância

pela leitura. Ele revivia o seu quintal, lembrando objetos, conhecimentos, sentidos e sabores.

O modo com que ele lia o seu mundo precedia a leitura da palavra: ler é viver, conhecendo-se,

construindo o seu mundo em permanente interação. Dessa forma, as disciplinas das

2 O corpo é um território revelador, porque não pode nada esconder. Porque ele é o lugar da vida, cultura e

circulação, é o lugar das relações sociais, do trato entre os indivíduos e da manifestação total do ser. (Lopes, L.

P. M. Discurso, corpo e identidade: masculinidade hegemônica com comunidade imaginada na escola Revista

Gragoatá, Niterói p. 207-226, 2, sem. 2001, UFF organizada pela professora Elizabeth Chaves)

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linguagens precisam considerar um leitor do mundo que se interroga, interpreta, pensa e

captura recortes do mundo nas suas experiências corporais. Ao propor a dança para a

apropriação da leitura, buscamos dar visibilidade à condição de ler necessariamente implicada

no corpo dos sujeitos que dançam uma escrita coreográfica que a literatura atravessa.

EXPERIMENTANDO A DANÇA COMO LINGUAGEM

A dança como objeto da linguagem estuda o corpo virtual, resultante das obras de

artes dos homens. A dança é uma prática usada, de natureza cultural, para dar movimento ao

viver-fazer artístico do homem. O ato de ler o homem se reflete também no território da

dança, o que nos possibilita definir metaforicamente o corpo como uma escrita virtual de uma

obra literária.

Assim, entender a leitura do ponto de vista corporal é interpretá-la como um mundo

virtual, a partir da produção técnica de um sistema de ações que caracterizam as danças

coreográficas. O caráter da dança nos possibilita entende-la como um sistema de ações que

leva a criação de objetos técnicos que se encontra no corpo seu espaço para se expressar.

A linguagem corporal é considerada importante e fundamental na apropriação da

leitura. Basta considerar que a dança é na sua maioria, baseada em situações que dependem

prioritariamente de encenações corporais sobre conteúdos literários. Uma pesquisa

interessante de pesquisa sobre leitura, na qual Foucault (1987) a partir de uma obra: ―Las

Meninas‖ de Velásquez procura investigar a integração da informação sígnica na leitura

visual do quadro, o qual, autor, personagens e cenário são integrados como prova da própria

obra de arte. Ao pesquisar aspectos estruturais, visuais em um quadro de pintura, Foucault

admite a dificuldade de ler e dos cuidados que devemos ter com a leitura devido à enorme

polissemia sígnica enviadas pelo texto do autor. Rousseau (apud DARNTON, 1986) também

menciona a leitura de Jean-Jacques por trás dos textos, para o reconhecimento das faces e da

descrição corporal dos autores, o que rompe as barreiras que separam o escritor do leitor e

sugere em seu livro Émile ir além daquilo que pode ser apenas posto na escrita (p. 301). Essa

tendência rosseauísta nos estudos passados sobre a leitura examinou autobiografias,

depoimentos, expressões corporais, em que leitor e escritor comunicam-se, cada um deles

assumindo a forma ideal imaginada nos textos.

Se a comunicação entre o leitor e o escritor é seguramente real e provavelmente

possível (DARNTON, 1986); a leitura não se reduz à mera introspecção ou a um texto vazio,

mas ao compartilhar com outros. Assim, a leitura guarda no seu bojo literário, características e

especificidade corporais com relação dinâmica entre a comunicação, linguagem e as artes que

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não têm sido pedagogicamente exploradas nos programas de leitura ou na educação formal. O

que se pode ler na experiência de dizer pelo próprio corpo? Qual o papel da linguagem

corporal na construção do conhecimento literário no interior da escola?

Na concepção de leitura rousseauísta, identificamos a comunicação discursiva,

ecológica e experimental, com uma atenção explícita na construção, e a divulgação da leitura

relacionada à imagem e a dinâmica sócio-cultural do leitor. Suas propostas teóricas e

metodológicas orientam-se fundamentalmente para a pesquisa sobre a leitura coletiva, em voz

alta, na família, em reuniões sociais, enfim em contextos naturalmente diferenciados, com a

elaboração do imaginário individual, por meio da relação leitor/escritor.

Iser (1999) nos adverte para o desenvolvimento de ―instrumentos interpretativos‖ do

ato de ler, através dos quais diferentes estruturas de constituição de sentido são examinadas e,

logo, decodificadas, ou seja, o analista deve fornecer uma certa interpretação para um

determinado texto (p. 11). Ele propõe a estética da recepção, referindo-se a um esforço

heurístico que podemos conceber na leitura de um texto, percebendo sinais, conceituando

fatos organizar modos de interpretação, caracterizados na experiência de ler, que não se

restringem apenas a um funcionamento estrutural indicado pelo texto. Pelo contrário, na

abordagem iseriana se almeja um sistema de referências no âmbito do qual as realizações de

leituras adquiram sua especificidade. Não se trata de elaborar métodos particulares de

interpretação, mas de mapear as disposições mais básicas no interior dos quais o ato

interpretativo se torna concebível e necessário.

JOGANDO E APRENDENDO COM AS LINGUAGENS

No processo de inserir os aparatos de referência teórica e metodológica, vamos

apresentar o nosso material empírico, com entrevistas e análise de aulas em situações

literárias, registradas em um contexto de dança na escola, a qual a literatura foi tematizada e

apresentada através do corpo. Procuramos investigar o desenvolvimento da leitura na dança,

enfocando as relações de ensino e aprendizagem de textos literários representados na dança-

educação. Colhemos os dados da literatura em entrevistas e filmagens em três escolas, com

três professoras de dança, em horários previamente combinados. Sendo assim, as práticas

corporais a partir da dança foram pensadas e postas em ação, uma vez que correspondiam aos

nossos interesses de mostrar a apropriação e a apresentação da leitura pelo corpo.

A discussão sobre ―como ler‖ mostrou-nos de uma forma geral uma certa

concordância com a necessidade da transformação da leitura escolar. As professoras3 as quais

3 As professoras Arabel e Liliam Mattos são professoras Educação Física do Ensino Fundamental e possuem um

conhecimento acumulado sobre literatura e dança construídos num fazer leituras que possuam sentido na escola.

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estabeleci diálogos tinham muito claro o que é um novo paradigma de leitura e mostraram os

seus saberes sobre ―como fazer‖ leitura na escola de uma forma diferente.

Este foi o ponto de partida. A leitura com os seus conhecimentos corporais e os seus

diferentes modos de apreender um livro e as possibilidades de ampliação, transformação da

leitura. Tomamos a dança nas leituras vividas, como o fio condutor dos nossos encontros,

tecido pelo modo de olharmos as diferentes práticas de leitura no cotidiano escolar.

As discussões travadas ao longo dos encontros sobre suas práticas e suas

possibilidades de despertar o gosto da leitura através da dança se basearam em perguntas

abertas sobre ―um diferente modo de ler‖ que as professoras buscavam responder, surgiram

práticas interessantes com coreografias e leituras. Eis as questões: como apresentar um outro

tipo de leitura para o aluno? Como fazer diferente? Como fazer diferente e o aluno se

apropriar do gosto de ler? Como garantir que cada aluno tenha as oportunidades de se

expressar corporalmente? Como construir uma ação pedagógica em que o corpo seja

reconhecido no ato de ler? Como criar espaço na escola para a leitura corporal? As ações das

professoras na condução do processo de leitura através da dança mostram, nesse sentido, a

literatura orientada para traduzir os possíveis significados coreográficos na produção de várias

leituras. É isso que buscaremos mostrar nesse ensaio.

A preocupação com a inclusão de entrevistas e filmagens como forma de registro

remontou a literatura pelos gestos capturados como leitura, substituindo o objeto livro no

percurso da coreografia. A sucessão de movimentos elaborados, de imagens corporais ganham

nova materialidade na leitura e o sólido conhecimento do texto é dissolvido na ação corporal.

Essa forma de leitura considera uma especificidade de lembrar e capturar o texto. Certos jogos

corporais falam as formas transcrever o texto, de análise, de leitura e de interpretar os atos

corporais No trabalho de dirigir a coreografia, a professora e os alunos têm a intenção de

prescrever as minuciosidades dos movimentos técnicos a partir do texto, de estudar a

coreografia e do cenário. No trabalho de sentir o texto, nós (leitores), buscamos captar e

distinguir o enfoque literário, os ditos corporais com música no fundo. Numa nova abordagem

da fita de vídeo, trabalhamos com as possibilidades de significação dos bailarinos, o que

buscavam dar relevo, realce e destaque na obra literária. O detalhe do movimento vira um

acontecimento, o que é invisível no texto torna-se tema, narrado apenas no corpo.

Em uma outra forma de exercício literário, a professora apresentou a dança sem o som.

Registramos o corpo dos bailarinos conduzidos pelos recortes dos textos literários, buscando

falar corporalmente na cena, os movimentos e as ações dos bailarinos que dançam, interagem

entre eles, sentam, levantam, correm, aproximam-se do público, apontam para o cenário e

usam segmentos corporais para dizer alguma coisa. Em alguns momentos passamos a

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observar o cenário, os elementos do palco e os materiais disponíveis e percebemos a

possibilidade da leitura de uma história. Na movimentação dos bailarinos, alguns sinais

corporais nos indicaram um tema em andamento. As atenções dirigem-se para os corpos dos

bailarinos que os nossos olhos também focalizam como forma de leitura, modos de dançar, de

falar corporalmente imprimem a relevância do tema. São seus modos de significação literária.

O dizer corporal orienta e restringe a leitura e o olhar do público. O cenário limita a leitura do

público.

Depois, iniciamos outra forma de leitura com uma pergunta: Como surge um

determinado espaço na dança?4 Fala-se do espaço? Como é que se fala do espaço

corporalmente? Perto, longe, dentro, fora como se aprende a pensar o espaço e representá-lo?

Nomear o espaço, conhecer o espaço, marcar o espaço e registrá-lo corporalmente. São

objetivos na leitura de uma obra de arte na dança. Como o corpo demarca, circunscreve, se

situa no palco, ordena, organiza, refere-se a algo. Nas formulações corporais de um grupo de

dança contemporânea identificamos o espaço marcado na dança. Marcas de um desenho

geométrico socialmente constituído e vivenciado nos corpos dos bailarinos forjando os

conceitos de limitação espacial, de pausas nos traços e linhas do desenho, dando ao público a

possibilidade de leitura dos desenhos ortogonais da obra de Mondrian através da dança.

O espaço, como tema e modo de ler pela recepção visual de uma dança, incorpora na

atuação coreográfica o espacial inscrevendo outros modos de leitura. O espaço produzido

corporalmente trás uma referência fundamental nas atividades artísticas. São outras formas

culturais de registro que também deixam marcas de leituras para o público. O espaço marcado

pela dança, conduzido como linguagem. O corpo transformado e constituído pelos modos de

fazer leituras, de agir e pensar através de fontes artísticas. Essa forma de uso da linguagem

insiste e persiste na busca da leitura.

Nesse sentido, analisamos caminhos diferenciados de leituras, que podem advir

constructos teóricos distintos, com intervenções concretas que estão relacionadas com a

constituição do sujeito leitor. Da identificação e a discussão dessas questões foram surgindo

caminhos pedagógicos de produção e organização da leitura no espaço escolar; sobre a

constituição da literatura corporal; sobre a transformação das práticas de leitura sem sentido

para os alunos.

O trabalho parte desse quadro pedagógico interpretativo como um todo, tratando do

intercâmbio entre a linguagem corporal, da literatura e os estudos da linguagem, buscando

4 Uma série de espetáculos de dança vem sendo mostrada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) no mês de

abril de 2004, com uma programação variada sobre os conceitos de espaços em que as coreografias são feitas

para influenciar na leitura de temas especiais a partir da dança contemporânea com o tema: ―O espaço que nos

inspira‖.

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compreender e conceituar modos de elaboração e transmissão literária nas práticas corporais,

principalmente no contexto escolar. Entendendo a linguagem corporal com atividade sígnica e

constitutiva da experiência estética, da cultura, patrimônio histórico e artístico, analisamos

situações corporais vivenciadas pela literatura enfocando a dança como expressão prática

interativa entre o fictício e o imaginário do aluno.

Proponho uma concepção pedagógica em que a leitura precisa ser apropriada como

vivência, como experiência necessária importante, lúdica com envolvimento prático. É a ação

da leitura que mais nos interessa como atribuição de significados de ordem corporal tentando

entendê-la como narrativa, como relatos para um grupo que seja praticado como algo que

possa ser realizado e ao mesmo tempo vivido e assim supere o caráter utilitário da leitura

escolar.

A leitura utilitária é aqui denunciada como uma leitura em fragmentos, onde os textos

para leitura são incompletos, curtos: mensagens, trechos, resumos e informações. São partes

inacabadas, sem sentido que marcam o ato de ler em pedaços freqüentemente interrompidos

pelo aluno que não consegue estabelecer com o texto, a fruição, o divertimento e a

interlocução. Este tipo de leitura se caracteriza pela falta de espaço de leitura na escola. Falta

espaço para o contato com textos, obras literárias e práticas corporais que incentivem a leitura

como vivência. Eis o problema. Apesar de se falar muito sobre leitura na escola e muitas

propostas serem apresentadas, mas que tipos de livros são lidos pelos alunos? Existem

livrarias em todos os bairros e municípios brasileiros? Qual o modo mais frequente do aluno

obter um livro? Existem bibliotecas em todas as escolas? Além do paradoxo, as novas

tecnologias com sua modernidade e a quantidade de informações e estímulos que chegam aos

alunos estão cada vez mais afastando os alunos da experiência corporal. Isto torna a leitura

uma atividade estática e sem sentido. A leitura imediata, a-temporal que não permite a

reflexão, a criticidade, relacionamento com o escritor, e depois nada se fala, a história fica

fragmentada, o aluno não se sente parte dela e não pode continuá-la ou modificá-la.

A leitura corporal impressiona de um modo diferente quem lê. Ela move as ideias,

ações, valores e sentimentos que nos são afetados corporalmente, quando a praticamos. Levar

essa prática para o contexto escolar é o desafio que lançamos para os professores. Essa

prática, por considerar o processo de apropriação da leitura como vivência engendra atos,

técnicas e formas como uma prática refletida, fundamental para a leitura compartilhada com o

escritor, professor e alunos.

Compreender a leitura a partir desse olhar superador, tem implícito o reconhecimento

da importância da leitura como vivência na escola, movimenta o que podemos fazer com e

sobre os livros, textos que lemos, trocamos e refletindo corporalmente. A professora Liliam

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Mattos diz que sempre partiu dos livros para criar situações corporais de contos, poesias

através da dança partilhando sentimentos e reflexões junto com seus alunos, representando

para o leitor a arte narrada corporalmente. Assim a professora assevera: ―O que trás vida para

a leitura é entrar numa prática que a leitura pode ser partilhada com os seus interlocutores,

tanto para que lê quanto para quem pode proporcionar a leitura, coreografando a literatura, a

poesia, os textos com uma dimensão artística de clássicos literários, diferentes gêneros e

estilos.‖

O modo de realização dessa prática é capaz de inserir uma prática refletida no

momento que acontece e se situar em qualquer espaço da escola onde se podem concretizar

situações em que o grupo assume o caráter de narrar corporalmente uma história construída

coletivamente, uma música, registrar ações de personagens ou grupos que foram lidos por

aqueles que coreografam, seja uma autobiografia, relatos ou histórias de vida. A isso

chamamos de vivência da leitura, a leitura em ação, real e corporal permitindo fazer e refazer

o processo de ler, sistematizando e suavizando-a através da dança.

Nesse sentido, ler, para nós, significa representar, interferir no processo de

apropriação, deixar as marcas corporais nos traços da escrita. Dançar textos e histórias

interpretadas pela própria experiência corporal, singular e coletiva, engendrando novos

sentidos para a superação da dureza da leitura instrumental.

É preciso lembrar que no âmbito da rede eletrônica, os jovens têm outros modos e

lugares de ler. Lê-se nos jogos eletrônicos, nas aventuras do RPG, nos blogs, na internet, em

toda uma produção atual que faz uso de meios tecnológicos que favorecem que lêem e

escrevem. Essa é uma prática de leitura experimentada que a escola precisa reconhecer e

também com ela aprender.

Minha escolha se insere na linguagem como ação e se caracteriza no discurso motriz.

Iser, Rosseau, Austin, Vygotisky e Fihs são os que mais ostentam as dimensões da linguagem

constitutiva, social, enunciativa e performativa do ser e tem investigado esta como atividade

social, coletiva, motivada e contextualizada, pelos quais, o discurso motriz pode intervir como

educação e cultura. Desse modo, esses autores ressaltam a ―linguagem como ação‖,

destacando o uso da enunciação geral que tem como principal finalidade a comunicação social

e histórica do ser. Eles estão atentos para a produção de sentidos em fatos e eventos,

entendendo que as ideias significativas expostas nos panoramas comunicativos dentro da

linguagem humana devem ter algum modo de leitura ou representação social que se alicerça

na performance cultural de quem as usa.

Iser (1999), ao falar da teoria da recepção, sugere a leitura perceptiva do leitor com

relação direta com suas bagagens culturais ou autobiográficas. O autor diz que a formação do

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―eu‖ do leitor está no encontro de várias vozes e nas suas representações sociais. Ele também

menciona que os efeitos da recepção na ficcionalidade devem ter algum tipo de efeito na

realidade sócio-psicológica do sujeito.

Essa direção fundamenta a relação entre a ficção, a realidade psicológica do sujeito, a

linguagem e a literatura. Nesse sentido, as questões relacionadas aos modos da construção

literária, da leitura, da instância ficcional buscam diversas possibilidades pedagógicas para a

produção da leitura, espaços e tempos singulares para a construção literária e variados

contextos para a linguagem ficcional se manifestar.

Tais possibilidades surgem tanto no texto, quanto das disposições

peculiares do leitor: o texto permite diferentes opções, as tendências

próprias do leitor, diferentes insights. E como não há sentido

específico no texto, essa aparente deficiência é, na verdade, a matriz

produtiva que torna o texto significativo, que lhe permite fazer sentido

em diversos contextos históricos. (ISER, 1999, p. 33)

Portanto, quero argumentar que analisando os movimentos corporais em forma de

dança, dentro de uma perspectiva literária, podemos ler corporalmente o funcionamento de

um texto coreográfico, e podemos também estabelecer elos entre a literatura e a linguagem

corporal.

A maneira como Vygotsky, fala do funcionamento do signo e o modo educacional de

se interpretar a interação semiótica na história social do sujeito nos sugerem que a dimensão

sígnica não pode estar ausente das questões de ordem literárias no interior da escola. A

realidade inter e intrapsicológica do sujeito são de natureza histórica e social,

fundamentalmente mediadas e construídas por signos. As atividades corporais expressas pela

dança têm uma significação social, constituem-se com atos específicos na linguagem

educacional, de modo que a corporeidade do sujeito, sua história de vida, suas leituras de

mundo tornam-se possíveis no seu discurso motriz. Assim, a cultura do sujeito, construída

significativamente pelos signos nos apresenta um caminho específico para a compreensão de

ler as escrituras corporais do ser humano.

O uso de signos conduz os seres humanos a uma estrutura específica

de comportamento que se destaca do desenvolvimento biológico e cria

novas formas de processos psicológicos enraizados na cultura.

(VYGOTSKY, 1991, p.45)

Compreendendo que os signos são representações mentais que substituem os objetos

do mundo real, podemos considerar o corpo como um elemento mediador do livro, do texto,

da escrita, da palavra, com uma ação para significar algo, como atividade constitutiva

coreográfica de um evento literário. Concebemos assim, a dança como um modo de ler

situado, contextualizado, em que podemos analisar versões de fatos literários com efeito

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estético corpóreo e expressivo, compreendendo a leitura como produção cultural de signos e

sentidos. Queremos experimentar a leitura integrada com os processos de significação

corporal dos alunos. Os pressupostos teóricos dos signos, os autores da linguagem e da

estética da recepção cooperam para o nosso estudo.

A conclusão a que chegamos, pois, é que todos os objetos são

construídos e não descobertos e que são construídos através das

estratégias interpretativas que colocamos em funcionamento. Isto, no

entanto, não implica a subjetividade, pois os meios através dos quais

os objetos são construídos são sociais e convencionais. Ou seja, o ‗eu‘

que realiza o trabalho interpretativo, que dá vida a poemas, indicações

de leituras e listas é um eu público e não um indivíduo isolado.

Ninguém acorda de manhã e (à moda francesa) reinventa a poesia ou

elabora um novo sistema educacional ou decide rejeitar a série em

favor de uma outra forma de organização totalmente original (FISH,

1993, p. 162)

É assim que a leitura atua na cultura, desenvolvendo em nós formas cada vez mais

complexas de interpretação de fatos e eventos, transformando assim a leitura em construções

coletivas. O efeito da dança é semelhante a um ato de leitura, cria a transmissão de

experiências, implementa um grande número de signos visuais complexos e convencionais e

abre inúmeros tipos de leituras para o ‗eu‘ realizar o trabalho interpretativo. Desse modo,

assumir pedagogicamente a ideia de mediação semiótica leva-nos a uma posição educacional

entre leitura, dança e as artes em de que o fenômeno da leitura é humano, social, coletivo e ao

mesmo tempo individual.

Da dança, passa-se à leitura. Do esforço de significação que o leitor faz ao querer

interpretar as construções artísticas pela apropriação e utilização de recursos semióticos que

este dispõe na sua vida cultural. As suas condições sociais são determinantes e vão se

constituindo em categorias que organizam diferentes modos de ler. Nessa pressuposição de

significação, Fish (1993) apresenta o olhar como um valor significativo no ato de ler:

De fato estas categorias são a própria forma do ato de ver, no sentido

de que há como se imaginar um fundamento perceptual mais básico

do que aquele que elas oferecem. Ou seja, não há como se imaginar

um momento em que os meus alunos ‗apenas vejam‘ uma

configuração física de átomos e só então atribuam a esta configuração

uma significação, de acordo com a situação em que eles se encontrem.

Estar em uma situação (esta ou em qualquer outra) significa ‗ver‘ com

os olhos dos interesses, objetivos, valores, normas e práticas

estabelecidas desta situação, e significa, portanto, conferir significação

ao ver e não depois de ver (p. 163).

Podemos ver nos corpos dos sujeitos que dançam indícios das obras de artes,

inscrevendo-se nos seus corpos os produtos de estruturas de pensamento sociais e culturais:

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poesias, textos, desenhos, rituais e pinturas (FISH, 1993, p. 162). Podemos observar o público

apropriando-se ativamente daquilo que os seus corpos transmitem. Eles vêem, apontam,

discutem as práticas motrizes. Além do sistema da leitura apresentando uma configuração

física de textos literários e desenhos, o sistema da escrita funciona como forma de registro

coreográfico e auxílio para a representação corporal. As leituras do público são interiorizadas

na medida em que vão presenciando os atos motrizes dos bailarinos, interagindo com eles,

para ler seus corpos. Pode-se ler pela escritura corporal do outro o que ainda não conhece,

pode-se vir a saber o que ainda não sabe pelo corpo do outro. Desse modo, a dança e os seus

saberes se interpenetram então na elaboração coletiva da leitura pela transmissão artística

inserida em um livro, na pintura, nas palavras e objetos.

Mas se os ‗eus‘ são constituídos por formas de ver e de pensar que são

inerentes às organizações sociais, e se estes ‗eus‘ constituídos, por sua

vez, constituem textos de acordo com estas mesmas formas, então não

pode haver relação de adversidade entre textos e ‗eus‘ porque ambos

são produtos correlatos das mesmas possibilidades cognitivas (FIHS,

1993, p. 165).

A possibilidade de conhecimento de algo pela leitura, em uma determinada situação

depende da ajuda dos signos. Os usos dos signos permitem ao leitor ampliar seu ‗eu‘, mediar

suas leituras. Atuando externamente ao homem, os signos realizam a constituição do ‗eu‘. Isto

é, a mediação semiótica (a mediação pelos signos) acontece no nível intrapsicológico, no

plano cognitivo, revelando a essência da leitura humana.

Nesse sentido, a leitura exige como recurso constitutivo do ‗eu‘, os signos como

instrumento que fundam uma nova maneira de se compreender o funcionamento das formas

mais complexas de leitura do ser humano, que media, regula, transforma-se e constitui uma

atividade meramente humana. A relevância fundamental das práticas corporais da leitura parte

da constituição das funções psicológicas superiores do ‗eu‘, que se organizam e regulam as

condutas simbólicas dos que dançam, cujo efeito se manifesta no jogo sedutor que as práticas

corporais constituem entre os interlocutores. Segundo Luria (1987) um aspecto importante da

cognição é o sentido que o leitor elabora e vive: ―O sentido é o elemento fundamental da

utilização viva, ligada a uma situação concreta efetiva por parte do sujeito‖ (p. 46).

Os sentidos do dizer corporal se transformam em leitura significativa, aprofundam a

busca ativa do ler, mudam os modos de elaborar a leitura, operam com signos para estabelecer

relações e interlocuções. A intenção se transforma em texto e a atenção em leitura, emergindo

na cognoscitividade o poder de constituição do seu ‗eu‘. Serão os signos motrizes que

apontarão para o leitor os objetos culturalmente significativos e que dirigirão sua leitura com

gestos literários. Será através da interação com os outros, com o livro ou com outro objeto

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significativo que o sujeito poderá desenvolver seu ‗eu‘. ―As relações sociais ou relações entre

as pessoas estão na origem de todas as funções psíquicas superiores‖ (VYGOTSKY, 1985 p.

54). As práticas corporais humanizam a leitura, tornando-a mais visceral e sedutora, lúdica

por excelência, que possibilita o planejamento literário/coreográfico, age no plano concreto

interpsicológico e se torna intrapsíquica quando forja o posicionamento do leitor.

Por essas considerações podemos dizer que os temas literários tratados na escola

podem expressar um sentido/significado onde dança e literatura se interpenetram

disciplinarmente. As atividades de literárias podem dar oportunidades para que o aluno

reconheça a possibilidade de usar o seu corpo como forma de expressão e comunicação, o que

sugere o estabelecimento de situações pedagógicas de construção de textos corporalmente.

Essas situações em que a expressão corporal se apresenta como um dizer textual, desejo de ser

lido, e os destinatários, seus leitores buscam descobrir as propostas, os temas de leitura foram

apresentados anteriormente: nas atividades de leituras de diferentes espaços na mostra de

dança do CCBB; a proposta de produção coletiva de um texto entre os alunos e a professora; a

proposta de produção corporal das obras de Clarice Lispector com a professora Carlota

Portela. Segundo esta professora, para a construção de textos nos moldes corporais, os atores

sociais devem se guiar por atividades de avaliação e interpretação. São atividades em que os

alunos e professor discutam as características de gênero do texto que serão trabalhados, se o

dizer corporal tem dissonância com o texto, se há coerência no desenvolvimento das ideias

expressas no texto, se o nível do conteúdo literário corresponde às bagagens culturais do leitor

escolhido, se os recursos corporais são utilizados de forma que possa se apropriar do texto, se

a obra literária pretendida é adequada à classe, aos objetivos interdisciplinares, a situações de

interlocução professor/aluno. A professora Arabel concorda também que essas atividades

devam ser discutidas coletivamente entre professores, alunos e texto e que a revisão da obra

literária e da coreografia são procedimentos pertinentes para a reflexão e a apreensão da

prática da leitura.

Para Carlota Portela, o contato com a coreografia na produção do texto parte de uma

análise criteriosa do texto coletivamente (alunos e professor), dos problemas e dificuldades

enfrentados pelo grupo na construção do texto. Isto permitirá possíveis caminhos pedagógicos

de estruturação do texto, o uso de outros recursos de articulação dança/texto, de orientação na

comunicação e exercícios para a construção corporal do texto: exercícios para apreensão do

texto, experimentar e produzir o texto com o corpo. O fato de experimentar diferentes tipos de

espaços apresentado na mostra de dança do CCBB (descrição do espaço e do ambiente com o

corpo), segundo a professora Liliam Mattos é um bom exemplo de atividade de construção de

um texto, é um exercício de leitura para aprender a estruturar um texto relações espaciais e

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temporais (conceitos como antes, depois, aqui, agora, longe e perto), usando o corpo como

instrumento de leitura. ―Ao lado dos exercícios corporais, que são de extrema importância na

produção do texto, devemos levar o aluno a formas mais elaboradas, ao domínio das normas

cultas, das características de um texto escrito, fazer menção do gênero do texto‖.

Iser (1993) faz menção dos exercícios estruturantes do texto, faz menção da coautoria

que o leitor deve ter como responsabilidade social quando busca os recursos de coesão, de

identificação e preenchimento de lacunas de informatividade do texto, de estruturação, de

variedades de registros ao gênero literário. Tais lacunas vão sendo preenchidas através de

aproximações sucessivas do sujeito que pensa com o texto e se envolve com ele, podendo

representá-lo e mediá-lo nas suas ações corpóreas.

Na escola, essa concepção de leitura pode orientar o horizonte dos educadores

comprometidos com a formação plena do aluno, dos que buscam uma prática consubstanciada

em teorias nas áreas dos estudos da linguagem, da literatura e das práticas corporais

significativas. Desse modo, para organizar sua ação pedagógica partindo da construção

coreográfica / literária, é preciso que os professores estabeleçam bem as relações entre dança

e literatura, compreendam as práticas corporais como caminhos possíveis de representação

literária, sejam capazes de identificar a variedade artística impressa num texto e, assim prever

a polissemia de significados que os alunos enfrentarão de acordo com as suas bagagens

culturais, mas também com a intervenção que orienta para ação de preencher lacunas nos

indivíduos, comporta alguns momentos interativos, conforme menciona Iser:

Em princípio, as lacunas organizam os segmentos num campo de

mútua projeção interativa, que conduz a uma estrutura do tipo ‗figura

e fundo‘. Cada segmento lido pode ser visto como figura contra o

fundo do segmento lido antes, e o fundo, por sua vez, necessariamente

molda a figura. Essa interação latente atualizada durante o processo de

leitura, leva a uma instabilidade que se encerra com a produção de

uma gestalt 5 (1993, p. 30).

Por outro lado, é necessário que os educadores conheçam o processo sígnico da

aprendizagem de um texto literário. Este conhecimento deve estar associado à compreensão

das relações entre a literatura e a dança, permitindo ao professor orientar as coreografias

literárias, o que pode ser dito corporalmente, identificar como o processo de leitura e o aluno

se encontram, interpretando hipóteses com que o grupo opera, levando-os a confrontar essas

hipóteses com a experiência corporal, com as convenções literárias, os gêneros, etc.

5 Pedagogicamente, a teoria gestalt supõe atividades de diferentes naturezas em que o sujeito possa falar do seu

mundo, ser espontâneo, mostrar a sua situação psicológica e social, e assim atuar com e seu mundo buscando a

compreensão de si mesmo e ao mesmo tempo sendo acompanhado por um professor facilitador da sua

aprendizagem.

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Desse modo, a sequência de ideias que se forma na mente do leitor

com base na estruturação prefigurada do texto, isto é, nas suas

operações estruturantes previamente determinadas, é a maneira pela

qual o texto é traduzido na imaginação do leitor (ISER, 1993. P. 31).

Além disso, para definir a ação pedagógica na direção e orientação da apropriação da

leitura literária pelos alunos, o professor precisa compreender e assumir a linguagem como

ação, de leitura como atividade coletiva, precisa ter clareza da expressão corporal, do que é

arte, o que é uma coreografia. Precisa compreender os princípios que falam das relações

escritor / leitor, texto / leitor e precisa conhecer as peculiaridades de diferentes gêneros

literários, os níveis de tratamento pedagógico de diferentes textos.

Urge a necessidade de uma mudança significativa na concepção dura de leitura e é o

que vem ocorrendo desde o século XVII, e é interessante que essa mudança também deva

chegar às escolas, sobretudo às escolas públicas do ensino de jovens. Todavia, as respostas

que o nosso trabalho tentou dar às questões no início do nosso estudo parecem deixar claro a

função social que tem a escola na orientação do processo de apropriação da leitura,

conduzindo os alunos da exploração corporal dos textos à leitura, com a dança levando-os a

conhecer melhor a literatura para a interlocução e a expressão cultural.

É importante ressaltar que a concepção de leitura que defendemos se faz presente em

algumas manifestações artísticas em nível nacional, especialmente àquelas integradas no

quadro de novos caminhos para a arte contemporânea neste momento, ensinando a arte, a

literatura, a dança; assim como as professoras mencionadas, que deram uma direção e

algumas orientações pedagógicas, que podem ser exercidas e fundamentadas em uma teoria

segura, culminando num processo sólido para formação do leitor. Acreditamos que a

socialização desse trabalho fornecerá os elementos de base, para a construção de uma

perspectiva pedagógica, de formação do leitor, via a dança que supere a dureza das práticas

fragmentadoras e que venha responder os desafios para o gosto da leitura nos nossos dias.

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NIETZSCHE E A NOBREZA DOS INSTINTOS CORPORAIS

Luiz Celso Pinho6

―Outrora, a alma olhava desdenhosamente o corpo; e esse desdém era

o que havia de mais elevado; queria-o magro, horrível, faminto.

Pensava, assim, escapar-se dele e da terra‖ (NIETZSCHE, Friedrich.

Assim falou Zaratustra, Prólogo, # 3).

Resumo

Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche se refere a um tipo de indivíduo que considera

todos os instintos sagrados. Pretende, com isso, ressaltar a indelével aliança entre Corpo,

Terra e Vida, que o pensamento metafísico desfaz ao distinguir dois tipos de mundo: o da

experiência sensível, e outro inacessível aos sentidos. Mas seu intuito reside também em

assinalar que o aspecto instintivo é a base – segura e precisa – a partir da qual nos damos

conta do que somos e daquilo que nos rodeia (função esta que Descartes atribui à

Consciência).

Palavras-chave: corpo, vida, fisio-psicologia nietzschiana, metafísica.

Résumé

Dans Ainsi parlait Zarathoustra, Nietzsche se rapporte à un type de personne qui croit

que tous les instincts sont sacrés. Il s‘agit donc de souligner l'alliance indélébile entre le

Corps, la Terre et la Vie, que la pensée métaphysique défait en distinguant deux types de

monde: celui de l'expérience sensible et d'autre inaccessible aux sens. Mais son but c‘est

également de signaler que l'aspect instinctif est la base – à la fois plus sûr et précise – à partir

de laquelle nous nous rendons compte de que nous sommes et de ce qui nous entoure (une

fonction qui Descartes assigne à la Conscience).

Mots-clés: corps; vie, physiopsychologie nietzschéenne, métaphysique.

I. UM PONTO DE PARTIDA: DELEUZE

Uma passagem da Ética (1667)7 de Espinosa retrata, de acordo com Deleuze, em pelo

menos duas ocasiões – Nietzsche e a filosofia (1962) e Espinosa e o problema da expressão

(1968)8 –, uma linha de investigação praticamente deixada de lado ao longo da História da

Filosofia: ―O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a

6 Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da UFRRJ / Pesquisador APQ-1 da FAPERJ.

7 Spinoza, Benedictus de. Ética. Edição Bilígue: Latim-Português. 3ª ed. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo

Horizonte: Autêntica, 2010. 8 Deleuze, Gilles. Spinoza et le problème de l'expression. Paris: Minuit, 1968.

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experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo (...) pode e o que não pode fazer.

Pois, ninguém conseguiu, até agora, conhecer tão precisamente a estrutura do corpo que fosse

capaz de explicar todas as suas funções (...)‖ (Terceira Parte, Proposição 2, Escólio, p. 167).

Do ponto de vista deleuzeano, perguntar sobre o que pode um corpo, implica compreender

toda e qualquer ―materialidade‖ como expressão de um ―campo de forças‖ múltiplo (que,

acrescente-se, tanto não se expande ou se contrai como é regido pelo princípio do Acaso). Tal

leitura, de inspiração nietzschiana, parte do pressuposto de que o organismo somático resulta

do conflito entre ―forças superiores ou dominantes‖ e ―forças inferiores ou dominadas‖

(DELEUZE, 1962, p. 45)9. Estas últimas são Reativas, e se caracterizam por querer se

conservar, se adaptar, se defender. As primeiras, diversamente, buscam a apropriação, o

subjugar, o dominar. Deleuze afirma que o corpo deve ser entendido a partir de seu poder de

afetar e ser afetado, dos encontros que proporcionam alegria ou tristeza, de sua capacidade

intrínseca de agir, em suma, do conjunto de relações que lhes são constitutivas.

Tomando como referência tais assertivas a respeito do binômio Corpo-Força,

pretendemos desenvolver uma discussão voltada para a elucidação do que vem a ser Instinto

para Nietzsche10

. Em O nascimento da tragédia (1872), instintos designam o elemento a

partir do qual irrompe uma sabedoria mais profunda através da conciliação entre as potências

apolínea e dionisíaca. Mais adiante, com A gaia ciência (1881-2), e em diversas passagens

que a antecedem, eles são diretamente confrontados com a racionalidade científico-filosófica.

Na Genealogia da moral (1887), por sua vez, a interiorização dos instintos – através da ação

inibidora do Estado ou da Religião – resulta no surgimento da Consciência (e das noções

correlatas de ―alma‖, ―eu‖, ―subjetividade‖ etc.). No entanto, o que se pretende aqui é discutir,

parodiando a indagação deleuzeana, a seguinte questão: ―O que podem os instintos

corporais?‖. Sabe-se que o termo instinto remete invariavelmente a uma instância biológica, o

que lhe confere um sentido naturalista. Essa compreensão – correta, porém limitativa – não

distingue um desejo desenfreado (estado primitivo, bestial, selvagem) de uma condição vital,

ou ainda, da expressão de uma ―vontade mais fundamental‖, na qual, como procuraremos

demonstrar, agir instintivamente equivale a entrar em consonância com o fluxo da Vida, com

o efetivar-se das forças que compõem o mundo a cada instante, com aquilo que se apresenta

como mais visceral em nós. Esse será o fio condutor do presente ensaio introdutório.

9 Deleuze estende tal ideia aos organismos sociais e políticos, e mesmo aos processos químicos (cf. DELEUZE,

1962, p. 45). O que tanto se mostra em consonância com o caráter abrangente da noção nietzschiana de Vontade

de Potência [Wille sur Macht] quanto ―explica a apreciação de doutrinas e sistemas de pensamento (...) em

termos de saúde ou doença‖ (WOTLING, 2001, p. 20). 10

Instintos, impulsos, pulsões e impulsões podem ser considerados sinônimos (cf. Machado, R. Nietzsche e a

verdade, p. 102).

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II. A IMAGEM DOS CHIFRES E DAS PRESAS

O interesse nietzschiano pelo aspecto fisiológico remonta a um dos principais textos

redigidos após O nascimento da tragédia: ―Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral‖

(1873). Nesse provocante ensaio (que em muito antecipa problemáticas típicas do período

genealógico e adota juízos incompatíveis com evidências detectadas pelos filósofos que o

antecederam) a origem do pensamento racional não é explicada a partir de algum processo de

aprimoramento, mas como uma forma de ―disfarce‖, cujo efeito principal reside na tentativa

de prolongar a existência da humanidade. Sentencia Nietzsche: somente através desse artifício

enganador ―os indivíduos mais fracos, menos robustos, se conservam, aqueles aos quais está

vedado travar uma luta pela existência com chifres ou presas aguçadas‖ (NIETZSCHE, 1983,

p. 45, grifos meus).

Ora, essa alternativa indica, sem dúvida, uma alegoria. Não corresponde a um episódio

que possa ter ocorrido em algum momento da trajetória humana. No entanto, sua dimensão

diagnosticadora se revela bastante precisa: pensar não remete à busca natural da verdade,

como apregoava Aristóteles, ou à descoberta de essências imutáveis, numa abordagem

platônica. O pensamento consiste no meio através do qual surge ―o lisonjear, mentir e

ludibriar, o falar-por-trás-das-costas, o representar, o viver em glória do empréstimo, o

mascarar-se, a convenção dissimulante, o jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo‖

(Ib., p. 46). Nietzsche pretende destacar, através dessa imagem, que a interação com mundo e

com nós mesmos não pode ficar restrita à mediação da linguagem – no seu entender,

superficial, antropomórfica e pragmática. Utilizar ―chifres e presas‖ significa, pois, agir de

forma instintiva. Seu intuito consiste em contornar as astúcias do intelecto (da lógica dos

discursos) para poder expressar o que autenticamente o indivíduo sente ou pensa. Não se trata

de uma volta a uma animalidade originária ou de uma apologia da brutalidade física, mas sim

de denunciar um erro que passou despercebido à análise filosófica da linguagem e que fica

patente num simples exemplo: alguém diz ―‗sou rico‘, quando para seu estado seria

precisamente ‗pobre‘ a designação correta‖ (Ib., p. 46).

Se adotarmos um referencial ―demasiado humano‖, a condição de riqueza indica algo

externo ao indivíduo: suas propriedades, seus bens materiais, sua renda mensal etc. Por sua

vez, para a análise fisio-psicológica de Nietzsche (que procura dar conta dos instintos

tomando como referência os valores aos quais eles estão associados), o trabalho filosófico

envolve o diagnóstico de determinada modalidade de existência a partir de uma dinâmica de

acumulação ou de transbordamento. Uma frase lapidar, encontrada no Segundo Pós-escrito de

O caso Wagner (1888), traduz o que se pretende aqui explicitar: um artista tanto ―cria a partir

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da abundância‖ quanto porque ―tem sede da abundância‖ (NIETZSCHE, 1999, p. 40). Deste

modo, a atividade criativa pode ser movida por um excedente de energia vital que impulsiona

sempre além a cada momento ou, num sentido diametralmente oposto, pela necessidade de

retê-la, pois ela está praticamente ausente ou mesmo se exaurindo.

Esse tema não é abordado explicitamente em ―Sobre verdade e mentira no sentido

extra-moral‖. Além disso, o termo instinto, quando aparece nesse ensaio, remete

inevitavelmente a uma necessidade de conservação, como já afirmamos, a uma artimanha – na

qual a figura do Intelecto representa seu símbolo maior. A alusão aos ―chifres e presas‖

permite justamente abrir caminho para uma discussão que se tornará central no pensamento

nietzschiano, notadamente por ser um dos pilares de sua recusa à reflexão filosófica

tradicional. De acordo com Foucault, o que está em jogo é o confronto entre uma avaliação

que toma como referência a estrutura corporal (―o sistema nervoso, os alimentos e a digestão,

as energias‖) e uma valorização da esfera espiritual (―as formas mais elevadas, as ideias mais

abstratas, as individualidades mais puras‖): de um lado, acontecimentos que remetem ao

―próximo‖ e inauguram uma Filosofia do Presente; de outro, que apontam para o ―longínquo‖,

em direção ao campo da Metafísica (FOUCAULT, 1994, p. 149).

III. ZARATUSTRA E A INVERSÃO DE PRIORIDADES

Dois capítulos, no início da Primeira Parte de Assim falou Zaratustra (1883-5), são

fundamentais para o entendimento dos motivos que levam Nietzsche a combater a oposição

metafísica entre a vivência sensível cotidiana e uma realidade que, além de inacessível aos

sentidos, caracteriza-se por sua superioridade ontológica (lugar das essências), epistemológica

(fonte da verdade), genética (momento originário, antes da ―queda‖ no reino dos simulacros)

e, até mesmo, axiológica (envolve o que é considerado de maior valor): ―Dos ultramundanos‖

[Von den Hinterweltlern] e ―Dos desprezadores do corpo‖ [Von den Verächtern des Leibes].

Ambos não apenas se sucedem diretamente na ordem dos discursos de Zaratustra como

também são mutuamente complementares ao afirmarem categoricamente que ―enfermos e

moribundos‖ são todos aqueles ―que desprezaram o corpo e a terra e inventaram o céu‖

(NIETZSCHE, 1989, p. 49). Daí serem nomeados de os ―pregadores da morte‖ (Ib., p. 50).

Expressão esta contemplada com um capítulo homônimo também na Primeira Parte e

aplicável aos que se sentem atraídos ―para fora desta vida‖, que propagam as ―doutrinas do

cansaço e da renúncia‖, e para os quais a existência terrena não passa de ―árduo trabalho e

inquietação‖ (NIETZSCHE, 1989, p. 61-2).

Essa desqualificação do mundo terreno e da existência corporal reflete uma atitude

predominante no âmbito filosófico e religioso, o que leva Nietzsche a realizar, nas duas

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passagens acima destacadas, uma ―imponente defesa da imanência‖ (GIAMETTA, 1996, p.

22). Sendo que tal postura se mantém inalterada até seus últimos escritos. Conceder primazia

ao corpo significa, pois, adotar a perspectiva da Terra e da Vida como princípio de avaliação

da forma como vivemos e interpretamos o mundo e a nós mesmos, assim como as teorias

filosóficas. Eis porque a perspectiva fisio-psicologia define a Alma como má (cf. Genealogia

da moral, Primeira Dissertação, # 6, p. 29), como uma noção que permitiu ―à grande maioria

dos mortais, aos fracos e oprimidos de toda espécie, enganar a si mesmos com a sublime

falácia de interpretar a fraqueza como liberdade‖ (Ib., # 13, p. 45), como superstição (Além do

bem e do mal, Prólogo, p. 7), como ―causa imaginária‖ (O anticristo, # 15, p. 20), como

―instrumento de tortura [e] sistema de crueldade‖ (Ib., # 38, p. 44), como ―conceito auxiliar

de moral‖ (Ecce homo, ―Aurora‖, p. 116).

No Prefácio tardio de A gaia ciência (1881-2), redigido em 1886, fica claro o erro de

se ter atribuído a Alma um estatuto superior em relação ao Corpo: ―por trás dos mais altos

juízos de valor, pelos quais até agora a história do pensamento foi guiada, estão escondidos

mal-entendidos sobre a índole corporal, seja de indivíduos, seja de classe, ou de raças

inteiras‖ (NIETZSCHE, 2001, p. 12). Além de alertar criticamente que a Alma ―foi até o

momento o mais sólido artigo de fé sobre a terra‖ (NIETZSCHE, 1988, p. 45), Nietzsche, no

capítulo ―Dos preconceitos dos filósofos‖, de Além do bem e do mal, insiste que se faz

necessário elaborar novas hipóteses para defini-la: algo ―mortal‖, uma ―pluralidade do

sujeito‖, a ―estrutura social dos impulsos e afetos‖ (NIETZSCHE, 1992, p. 19).

Os defensores de um mundo superior, situado no Além, sempre ―desprezaram o corpo:

não o levaram em conta: mais ainda, trataram-no como inimigo‖ (NIETZSCHE, 2008, p.

136). Já Zaratustra considera que ―o homem já desperto, o sabedor, diz: ‗Eu sou todo corpo e

nada além disso; e alma é somente uma palavra para alguma coisa no corpo‘‖ (NIETZSCHE,

1989, p. 51). Temos aqui uma clara distinção em relação a Descartes, que defendia justamente

o oposto: ―eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste no pensar, e que, para ser,

não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material‖.11

É preciso ressaltar, como assinala Wotling, que, ―longe de defender uma posição

materialista, Nietzsche repensa o estatuto do corpo fora de qualquer referência à matéria

(WOTLING, 2001, p. 34). Deleuze reforça essa concepção ao pensar a dinâmica biológica

norteada por um conjunto de forças heterogêneas num estado permanente de tensão entre si:

―o corpo é um fenômeno múltiplo, sendo composto de uma pluralidade de forças irredutíveis‖

(DELEUZE, 1962, p. 45). Tal entendimento está em consonância com o aspecto monista do

11

Descartes, René. Discurso de método [para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências].

Introdução de Gilles-Gaston Granger; prefácio e notas de Gérard Lebrun; tradução de J. Guinsburg e Bento

Prado Júnior. 2ª ed. São Paulo: DIFEL, 1973, p. 67 (Quarta Parte).

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pensamento nietzschiano, que é reforçado pela seguinte advertência: ―a nós, filósofos, não nos

é dado distinguir entre corpo e alma, como faz o povo (...)‖ (NIETZSCHE, 2001, p. 12).

Deste modo, pode-se afirmar que, num caminho inverso ao que foi reiteradamente dito desde

os primórdios da cultura ocidental, tanto a Alma consiste numa ―espiritualização do corpo‖

quanto o Corpo representa uma ―somatização da alma‖ (GIAMETTA, 1996, p. 23): ―alma e

corpo são, em suma, a mesma coisa, (...) não são contrários, não se opõem‖ (IZQUIERDO,

2000, p. 55).

A inversão nietzschiana dos valores fica patente quando Zaratustra define o corpo a

partir de dois aspectos incompatíveis com o que tem sido propalado através da História da

Filosofia: ―soberano poderoso‖ e ―sábio desconhecido‖ (NIETZSCHE, 1989, p. 51). Essas

definições associam o corpo, por um lado, ao exercício de um poderio; por outro, a uma

forma de sabedoria. Mas o que significa essa modalidade de Poder-Saber?

Em primeiro lugar, como já indicamos, isso não implica reduzir (a exemplo de um

materialismo simplório) o orgânico à sua estrutura visível, pois ―o que repousa oculto atrás da

consciência, o que se chama corpo, é um território extenso cujos limites não podem ser

verificados‖ (IZQUIERDO, 2000, p. 56). Zaratustra concebe o corpo como uma instância que

―compara, subjuga, conquista, destrói. Domina e é, também, o dominador do eu‖

(NIETZSCHE, 1989, p. 51). Mais ainda, não apenas através dele obtemos ―a solução dos

problemas fundamentais‖ (GRANIER, 1988, p. 92) como ele ―atravessa a história (...) e o

espírito é o eco de suas lutas e vitórias‖ (NIETZSCHE, 1989, p. 89-90). Nesse sentido, o

corpo, além de poder ser definido como ―superfície de inscrição dos acontecimentos‖

(FOUCAULT, 1994, p. 143), constitui a matriz a partir da qual todo querer se expressa, ou

ainda, nas palavras de Zaratustra, corresponde a uma modalidade de racionalidade superior:

―‗Eu‘ – dizes; e ufanas-te dessa palavra. Mas ainda maior – no que não queres acreditar – é o

teu corpo e a sua grande razão: esta não diz eu, mas faz o eu‖ (NIETZSCHE, 1989, p. 51,

grifos meus). Em suma, através da inversão operada por Zaratustra, a Alma perde seu estatuto

milenar de fonte de conhecimento.

IV. INSTINTOS NOBRES E INSTINTOS DECADENTES

O diagnóstico fisio-psicológico realizado por Nietzsche denuncia que todo o processo

civilizatório resulta de uma série de ―mentiras oriundas dos instintos ruins de naturezas

doentes, nocivas no sentido mais profundo‖, ou ainda, de conceitos mentirosos como: ―Deus‖,

―alma‖, ―virtude‖, ―além‖, ―verdade‖, ―vida eterna‖, entre tantos outros (NIETZSCHE, 1986,

p. 77), o que resultou numa insidiosa ―reinterpretação dos instintos naturais como vícios‖

(NIETZSCHE, 2008, p. 103).

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Temos aqui duas formas de compreender o emprego do termo Instinto: uma ligada à

decadência do pensamento ocidental e outra que procura resgatar valores historicamente

desqualificados por estarem vinculados à esfera mundana. No entanto, faz-se necessário

destacar que, do ponto de vista estritamente conceitual, a terminologia nietzschiana não

obedece a critérios bem delimitados. Inicialmente, Nietzsche se refere a instinto tanto no

singular quanto no plural. Encontramos expressões do tipo: ―instinto de rebanho‖ (Genealogia

da moral, Primeira Dissertação, # 2) e ―instinto teológico‖ (O anticristo, # 9), ambos

designado um apequenamento da Vida. Mas há referências destoantes como: ―instintos

reguladores inconscientes‖ (Genealogia da moral, Primeira Dissertação, # 10), ―instinto de

auto-restabelecimento‖ (Ecce homo, Prólogo, # 2), cujo teor se mostra afirmativo e expansivo.

Independente desses usos heterogêneos, trata-se de um ―centro de perspectiva a partir da qual

se elabora uma interpretação (...) – uma expressão particular da vontade de potência‖

(WOTLING, 2001, p. 34).

Nietzsche ora se refere a um estado de nobreza (cf. O anticristo, # 59, p. 76) ora a um

estado de decadência, de modo que a efetiva vitalidade do homem depende de suas condições

orgânicas. Não no sentido de algo que possa ser mensurado quantitativamente (e mesmo

qualitativamente), mas em função de um princípio de intensidade, onde se ―manifesta o

instinto aristocrático e o vulgar‖ (COLLI, 1996, p. 110). São duas modalidades distintas de

expressar as forças inerentes à materialidade corpórea.

Uma demonstração exemplar desses ―processos pulsionais hierarquizados‖

(WOTLING, 2001, p. 19) reside na análise fisio-psicológica do regime elaborado por Luigi

Cornaro12

, cuja repercussão no século XVI foi notável. Seu cardápio consistia da ingestão

mínima de alimentos, somente do estritamente necessário (pão, uma gema ovo e um pouco de

carne e sopa por dia bastavam para adoecê-lo severamente)13

. Não se ―exceder‖ nas refeições

seria, para Cornaro, um método seguro para uma existência longeva e virtuosa. Porém,

Nietzsche, ao avaliar tal prática alimentar, chega a uma conclusão destoante:

O bom italiano via em sua dieta a causa de sua longa vida: ao passo

que a precondição para uma longa vida, a extraordinária lentidão do

metabolismo, o baixo consumo, era a causa de sua exígua dieta. Ele

não tinha a liberdade de comer pouco ou muito, sua frugalidade não

era um ―livre-arbítrio‖: ele ficava doente quando comia demais

(NIETZSCHE, 2006, p. 39).

12

Nasceu em Veneza por volta de 1457-1468. Faleceu em Pádua, no ano de 1566. Diz-se que viveu até os 103

anos de idade, mas existem inúmeros relatos destoantes. Autor de Discurso sobre a vida comedida (Discorsi

della vita sobria, 1558). 13

Cf. Cornaro, Louis. The Art of Living Long. Tradução de Willian F. Butler (a partir da edição de 1903).

Nova York: Springer Publishing Company, 2005, p. 13-14.

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A longevidade de Cornaro resulta de um instinto de conservação, ou melhor, de

limitação diante dos jogos de força vitais. Para isso, ele recorre a uma digestão minimalista

calcada numa argumentação generalizante (a dieta em questão seria universalmente válida) e

moralista (ou se segue o caminho da alimentação correta ou se está fadado a constantes

doenças ou à morte prematura). Seu discurso racional não lhe permite se dar conta de sua

debilidade fisiológica, de sua morbidez crônica.

De acordo com Nietzsche, a fórmula da decadência se resume ao seguinte postulado:

―ter de combater os instintos‖ (NIETZSCHE, 2007, p. 22). Mas se pode afirmar também que

―o decadente é um aleijado dos instintos que tenta compensar suas deficiências através de

uma hipertrofia da lógica e da consciência do puro Dever‖ (GRANIER, 1988, p. 93). É nesse

sentido, como salienta Löwith, que as objeções nietzschianas ao estado consciente ―são parte

integrantes de seu esforço para reinserir o homem na Natureza e, consequentemente, na vida

do mundo‖ (LÖWITH, 1967, p. 75), tendo em vista que houve uma ―redução por princípio de

todos os sentimentos integrais do corpo a valores morais‖ (NIETZSCHE, 2008, p. 136). Daí

Zaratustra ensinar que ―de modo mais honesto e mais puro fala o corpo são, perfeito e

quadrado‖ (NIETZSCHE, 1989, p. 50, grifos meus)14

. Valorizar a dimensão física do homem

– ao invés de sua ―espiritualidade‖ – inaugura um era na qual ―todos os instintos tornam-se

sagrados‖ (NIETZSCHE, 1989, p. 91), pois não há milagre maior do que a complexidade do

organismo, e seu poder de transformar criativamente o mundo e a si mesmo.

Ora, ―é necessário deixar de dar crédito à consciência e se direcionar para o corpo,

pois este é o único capaz de nos instruir sobre o valor de nossa personalidade profunda‖

(GRANIER, 1988, p. 90): o corpo jamais se revela enganador ou falseador. No Crepúsculo

dos ídolos é ressaltada a importância de ―aceitar o testemunho dos sentidos‖ (NIETZSCHE,

2007, p. 26), ou, em outros termos, de aguçá-los cada vez mais em detrimento dos estados

conscientes. O que Nietzsche atribui ao nariz – ―fino instrumento de observação‖ (Ib., p. 26,

grifos meus) – se aplica não apenas aos demais sentidos como também aos diversos

acontecimentos orgânicos que permeiam a vida cotidiana. A interpretação do mundo e de nós

mesmos deve ser feita ―da forma a mais fisiológica, epidérmica, verdadeiramente imediata e

anti-abstrata‖ possível (COLLI, 1996, p. 112). A noção de afeto se mostra aqui reveladora na

medida em que, ao se pautar nas ―avaliações fundamentais que regem a atividade de um tipo

determinado de ser vivo‖, possibilita ―a crítica do primado da razão e o reconhecimento do

privilégio da sensibilidade‖ (WOTLING, 2001, p. 7).

Nietzsche denuncia tanto um tipo de pensamento caracterizado pela ―hipertrofia do

lógico‖ (o que é demonstrado com o advento do socratismo em O nascimento da tragédia)

14

Como salienta o tradutor de Assim falou Zaratustra, o termo ―quadrado‖ não indica algo pejorativo, pois este

―era, para os antigos gregos [uma das principais referências da filosofia nietzschiana], símbolo de perfeição‖

(nota de rodapé, p. 50).

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quanto por uma ―atrofia dos instintos fundamentais‖ (MACHADO, 1985, p. 50), a partir do

surgimento de uma engrenagem estatal ou religiosa, que uniformiza respectivamente deveres

e culpas. Tais afirmativas nos levam a repensar a ênfase naturalmente atribuída à Alma (via

pensamento metafísico e doutrinas transcendentais). Uma epistemológica, na qual a Verdade

se revela de ordem corporal e não espiritual: ―tudo o que entra em nossa consciência é

produzido por um instinto de falsificação‖ (COLLI, 1996, p. 145). Outra consequência diz

respeito às considerações moralizantes, pois é graças à desvalorização dos estados fisiológicos

que os ―fracos, que se julgam bons‖, não percebem que ―são paralíticos das patas‖

(NIETZSCHE, 1989, p. 131).

V. CONCLUSÃO

Mais do que uma prioridade do Sensível em relação ao Inteligível, o projeto geral de

Nietzsche reside na possibilidade de recuperar um saber-poder que foi deixado de lado no

decorrer dos séculos. Pretende, assim, subordinar o querer individual a forças vitais que se

mostram mais verdadeiras por não envolverem ―disfarces‖ (a exemplo do Intelecto), nem

utilizarem acessórios discursivos meramente retóricos (no caso da lógica ou da dialética) ou

instâncias superficiais (como a consciência). De acordo com a leitura de Granier, a recusa

nietzschiana do primado da Alma (e, não se pode deixar de acrescentar, de outras

interioridades psíquicas correlatas como o Eu, o Cogito, o Sujeito, o Espírito etc.) resgata a

noção de ―subjetividade corporal‖ (p. 90). Tal ideia, a nosso ver, permite, num primeiro

momento, ressaltar a aliança indelével entre Terra, Corpo e Vida. Ocorre, a partir daí, toda

uma série de inversões de prioridade: do Espírito para a Carne, do Mundo Celestial para a

Vida Mundana, da Eternidade para o Devir.

Mas também, e principalmente, pode significar o resgate da nobreza dos instintos, o

que levaria o ato de pensar a se deixar guiar tanto pela sabedoria do organismo quanto pelo

poderio dos sentidos. Esse movimento, de forma alguma, justificaria a mera expressão de

desejos individuais, até porque não se trata de libertar uma ―consciência‖ – esteja ela

querendo ou não romper com quaisquer formas de repressão – muito menos de realizar uma

vontade pessoal, já que o livre-arbítrio passa a estar subordinado a algo que lhe é anterior e

determinante. Viver instintivamente significaria, pois, na presente interpretação, permitir que

o Corpo (e não a Alma) desempenhe a função de guia e princípio de avaliação, ou seja, é

preciso estar atento ao que ele nos revela de forma direta e autêntica.

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VI. BIBLIOGRAFIA

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Volume II. Paris: Gallimard, 1994, p. 136-156.

GIAMETTA, Sossio. Commento allo “Zarathustra”. Milão: Bruno Mondadori, 1996

(Capítulo: ―Di coloro che abitamo un mondo dietro il mondo e Dei disprezzatori del corpo‖,

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GRANIER, Jean. Nietzsche. Paris: PUF, 1988 (Coleção ―Que sais-je?‖).

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Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989 [Also Sprach Zarathustra: Ein

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__________. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e

posfácio de Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992 [Jenseits von Gut und

Böse: Vorspiel einer Philosophie der Zukunft, 1886].

__________. Genealogia da moral: um escrito polêmico [em adendo a “Além do bem e

do mal” como complemento e ilustração]. 2ª ed. Tradução de Paulo César de Souza. Rio de

Janeiro: Brasiliense, 1988 [Zur Genealogie der Moral: Eine Streitschrift, Dem

letztveröffentlichten ―Jenseits von Gut und Bose‖ Ergänzung und Verdeutlichung, 1887].

__________. O caso Wagner: um problema para músicos. Tradução, notas e posfácio de

Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 [Der Fall Wagner: Ein

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__________. Crepúsculo dos ídolos, ou como se filosofa com o martelo. Tradução, notas e

posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 [Die Götzen-

Dämmerung, oder wie man mit dem Hammer philosophiert, 1889].

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__________. O anticristo: maldição ao cristianismo. Tradução, notas e posfácio de Paulo

César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 [Der Antichrist: Fluch auf das

Christenthum, 1888; publicado em 1895].

__________. Ecce homo: como alguém se torna o que é. 2ª ed. Tradução e introdução de

Paulo César de Souza. São Paulo: Max Limonad, 1986 [Ecce homo: Wie man wird was man

ist, 1888; publicado em 1908].

__________. A vontade de potência [tentativa de uma tansvaloração de todos os valores].

Tradução do original alemão e notas de Marcos Sinésio P. Fernandes e Francisco José D. de

Moraes. Apresentação de Gilvan Fogel. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008 [Der Wille zur

Macht: Versuch einer Umwerthung aller Werthe, 1901-6].

__________. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. In: Os pensadores (obras

incompletas). 3ª ed. Seleção de textos de Gérard Lebrun; tradução e notas de Rubens

Rodrigues Torres Filho; posfácio de Antônio Cândido. São Paulo: Abril Cultural, 1983 [Über

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MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.

WOTLING, Patrick. Le vocabulaire de Nietzsche. Paris: Ellipses, 2001 (Verbetes: Afeto,

Corpo, Força e Instinto/Pulsão).

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LINGUAGEM E CORPOREIDADE: UMA PERSPECTIVA NEURODINAMICA

(PÓS-REICHIANA)

EMBODIMENT AND LANGUAGE: A NEURODYNAMIC (POST-REICHIAN)

APPROACH

Autor: JOSÉ IGNACIO TAVARES XAVIER

Médico psiquiatra. Doutor em Psicologia (IP/CFCH - UFRJ, 2005).

Coordenador do NEPP – Núcleo de Estudo e Pesquisa em Psicoterapia

www.neurodinamica.com

Endereço para correspondência: [email protected]

A linguagem, assim como a percepção da conduta, apresenta

inconscientemente o respectivo estado fisiológico; e não o faz de

forma figurada senão que de maneira imediata... Essa peculiar

vinculação entre a percepção do estado vegetativo e sua formulação

linguística merece um estudo detalhado. (Wilhelm Reich, 1935)

Se assumirmos que a razão é corporificada, então iremos querer

compreender as relações entre o corpo e a mente e encontrar os

meios de cultivar os aspectos corpóreos da razão. (George Lakoff,

1987)

Resumo

O paradigma conexionista atualmente em desenvolvimento na linguística, na filosofia,

na psicologia e nas neurociências permite a recuperação de um aspecto-chave da produção

teórica de Wilhelm Reich no seu período pré-orgonômico. O autor propõe uma releitura do

conceito de unidade somatopsíquica valendo-se das noções de esquema corporal e de imagem

corporal de Head a partir da articulação destes aspectos com o arco intencional de Merleau-

Ponty (Gallagher, 1998), o que desemboca num modelo de produção da singularidade pessoal

de onde derivam a constituição da mente e da linguagem conforme o paradigma conexionista

apresentado por Lakoff e Johnson (1980). O resultado parece corroborar o acerto dos

desenvolvimentos reichianos relativamente às complexas interrelações entre corporeidade e

linguagem numa perspectiva monista. Futuras modificações na teoria e na técnica das

psicoterapias corporais poderão emergir a partir desse novo paradigma.

Palavras-chave: corporeidade; neurodinâmica; cognitivismo linguístico.

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Sumary

The connectionist paradigm being currently developed in linguistics, philosophy,

psychology, and neuroscience allows us to recover a key aspect of Wilhelm Reich's theories

before he turned to orgonomy. The author proposes a re-reading of the concept of psycho-

somatic unity, validating it through the notions of body scheme and body image proposed by

Head, beginning with their articulation in the intentional approach of Merleau-Ponty

(Gallagher, 1998) and arriving at a model of the origin of personal uniqueness from which the

constitution of mind and language according to the connectionist paradigm proposed by

Lakoff and Johnson can be derived. The result appears to corroborate the accuracy of Reich's

view of the complex relations between embodiment and language in a monistic perspective.

Future modifications of the theory and methods of body psychotherapies can emerge from

this new paradigm.

Key-words: embodiment; neurodynamics; cognitive linguistics.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo explorar as origens corporais da linguagem e como a

experiência corpórea da vida pode se transformar em experiência subjetiva, mental e

linguística. Para tanto, tentarei articular um aspecto específico da teoria reichiana pré-

orgonômica com o paradigma conexionista do cognitivismo linguístico de Lakoff e Johnson

através da perspectiva neurodinâmica.

O nascente modelo da Psicoterapia Neurodinâmica (Haldane 2004; Xavier 2004;

2005) concebe a unidade somatopsíquica em termos das experiências relacionais constitutivas

do ser humano tanto na verticalidade do indivíduo com a sua própria experiência como na

horizontalidade de suas interações com os demais seres da natureza e com os entes e objetos

do mundo cultural.

Nesse sentido, valho-me das noções de esquema corporal e de imagem corporal de

Head articuladas através do arco intencional de Merleau-Ponty15

(Gallagher; 1998) como

15

O arco intencional de Merleau-Ponty (1990) implica que o sujeito cognoscente emerge das operações

fisiológicas do próprio cérebro, prescindindo do caráter transcendente até então privativo ao espírito objetivo

absoluto. Nesse sentido, o sujeito corpóreo encontra-se em ambos os lados da operação intencional, sendo ao

mesmo tempo o sujeito produtor da percepção e o sujeito perceptor, que a reconhece e dela extrai as leis e

procedimentos que engendram a razão que transcende os dados imediatos da consciência. Igualmente em

Merleau-Ponty a verdade perde o seu estatuto de coisa ideal e torna-se sempre relativa ao sujeito da percepção e

ao seu contexto.

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ferramentas que contribuem para a superação de uma concepção ainda predominante de corpo

(a matéria) e mente/linguagem (o espírito) como substâncias distintas.

É minha intenção apresentar ao leitor – bem como abrir o tema ao debate e aos

devidos aprimoramentos - alguns elementos para o entendimento de que a mente é uma

propriedade emergente da matéria, como preconizavam Reich na década de 30, e Lakoff e

Johnson em tempos mais recentes.

2. DO OBJETIVISMO AO CONEXIONISMO: O TRÂNSITO ENTRE OS

PARADIGMAS

Década de 80. Mark Johnson e George Lakoff investigam um tema complexo e

instigante: como as pessoas compreendem a linguagem e a própria experiência vital? Johnson

observa que as escolas da tradição filosófica não conferem maior importância à metáfora no

processo de apreensão do mundo e de nós mesmos; Lakoff, por sua vez, nos apresenta um

corpo de evidências que demonstra o papel-chave da metáfora como elemento que permeia a

linguagem e o pensamento cotidianos.

O papel periférico atribuído à metáfora (e à metonímia) decorre de uma perspectiva

ainda hegemônica nas ciências humanas e na própria ciência em geral que entende a razão

como uma instância do ser abstrata e desvinculada do corpo que expressa a presença de um

‗espírito objetivo absoluto‘, de modo que os conceitos significativos e a própria

racionalidade16

transcenderiam as limitações físicas de qualquer organismo.

As escolas do pensamento tradicional, embora concedam que os conceitos

significativos e a razão abstrata podem eventualmente exibir uma origem material

(embodiment) em seres humanos, em outros organismos e até mesmo nas máquinas, assumem

que a razão e a linguagem constituem uma dimensão abstrata e independente de qualquer

vínculo corporal em particular.

De acordo com Lakoff o paradigma tradicional decorre de uma visada filosófica que

remonta à Grécia antiga: trata-se de um produto de dois mil anos de filosofia acerca da

natureza da razão que, ainda hoje, é “automaticamente tomado não como simples verdade,

16

No sentido adotado por Reich ao longo de sua obra, o termo racionalidade ou pensamento racional pode ser

entendido contemporaneamente como aquela atividade cognitiva superior que opera em cooperação com os

aspectos emocionais próprios do indivíduo, ao passo que o pensamento irracional ou ‗encouraçado‘ caracteriza-

se por uma atividade mental que opera em oposição aos aspectos emocionais reprimidos forjando formações de

reação ao nível da atividade psíquica e adulterando a racionalidade da razão. É o tipo de pensamento emocional

que se acha na origem de sistemas de idéias preconceituosos como a homofobia, a sociofobia de classes, o

racismo e a educação das crianças através da intimidação e dos sentimentos de culpa.

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mas como uma óbvia e inquestionável verdade; uma crença amplamente difundida apesar da

enorme quantidade de evidências empíricas em contrário.” (1987; p. xii)

A primeira razão para a persistência da hegemonia do paradigma tradicional é de

caráter inercial, pois “o peso de dois mil anos de tradição filosófica é algo que não

desaparece da noite para o dia; todos nós fomos educados para pensar nesses termos”, diz

Lakoff. (Idem).

O segundo - e mais importante - motivo era a inexistência, até recentemente, de uma

abordagem alternativa bem elaborada que permitisse preservar o que é correto na visão

tradicional ao mesmo tempo em que a modificasse de acordo com os novos dados empíricos

encontrados.

O novo paradigma, engendrado pelas contribuições de Lakoff, Johnson e outros

pesquisadores da linguagem e das ciências neurocognitivas17

sugere que a razão é uma

propriedade emergente da corporeidade e que o significado das produções mentais é uma

extensão daquilo que é significativo para os seres vivos e pensantes: “A natureza do

organismo pensante e seu modo de funcionar no ambiente são de importância central para o

estudo da razão.” 18

(Lakoff 1987, p. xi).

Em ambos os paradigmas, a formação de categorias é a principal maneira de tornar a

experiência dotada de sentido. No novo modelo, porém, a experiência corporal e a maneira

como utilizamos os mecanismos imaginativos são centrais para o modo de construção das

categorias que conferem sentido à experiência.

No paradigma ‗objetivista‘ o pensamento consiste na manipulação de símbolos

abstratos que “tomam seu significado via correspondência com o mundo objetivamente

estruturado; isto é, independente da capacidade de entendimento de qualquer organismo.”

(Idem; grifo do Autor).

Dado o seu caráter transcendente, as proposições que derivam desse modelo sustentam

que o pensamento e as coisas existem de per se, ignorando que as propriedades

neurodinâmicas da própria organização perceptual e dos estados emocionais compõem um

filtro que se interpõe entre ‗as coisas lá fora‘ e a percepção da sua sensação, organizada em

17

Como Panksepp (1998); Damasio (1996; 2000; 2004); Gallagher (1998); Maturana e Varela (1995); Varela,

Thompson e Rosch (1991) e outros tantos. 18

As citações referentes à Reich (1935/1972), Lakoff e Johnson (1980), Lakoff (1987) e Gallagher (1998) ao

longo do texto foram traduzidas pelo próprio autor.

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totalidades significantes no córtex cerebral. Lakoff define o paradigma objetivista, ou razão

incorpórea, nos seguintes termos:

Quadro 1 - O Paradigma Objetivista

(Razão Incorpórea) 19

O pensamento consiste na manipulação mecânica de símbolos abstratos (palavras e

representações mentais);

Os símbolos ganham os significados em correspondência às coisas no mundo exterior;

A mente é uma máquina abstrata que manipula os símbolos de forma algorítmica como um

computador;

Os símbolos são representações internas da realidade externa;

A correspondência entre símbolos e as coisas no mundo independem das propriedades do

organismo;

Ao usar representações internas da realidade externa, a mente espelha a natureza; a razão

correta espelha a lógica do mundo externo;

É meramente incidental para a natureza dos conceitos e da razão que os seres humanos

tenham os corpos que têm e que funcionem no ambiente do modo como o fazem;

O pensamento é abstrato, desvinculado da matéria e independe de quaisquer limitações do

corpo, do sistema perceptual e do sistema nervoso humanos;

Máquinas que manipulam símbolos mecanicamente são capazes de pensamento

significativo e de entendimento;

O pensamento é atomístico, pode ser completamente quebrado em ‗blocos de armar‘ - os

símbolos de que se vale o pensamento - que são combinados em complexidades e

manipulados por regras;

O pensamento é lógico e pode ser acuradamente modelado por sistemas semelhantes aos

da lógica matemática.

Sistemas simbólicos abstratos são definidos por princípios gerais da manipulação de

símbolos e de mecanismos para a interpretação dos símbolos em termos de ‗modelos do

mundo‘.

Lakoff observa que a habilidade para a construção de categorias, isto é; a capacidade

de agrupar as coisas com base em aspectos comuns compartilhados por todos os elementos

19

In: Lakoff, 1987; pp. xii-xiii.

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que a compõem (por exemplo: mobília, maridos, plantas, veículos) é o elemento-chave para a

percepção, para o pensamento, para a ação e para o discurso.

Na perspectiva clássica, a categorização ocorre com base nas propriedades comuns

exibidas entre os elementos que irão se agrupar sob uma mesma categoria (árvores, por

exemplo) e não contradiz o princípio básico da formação de categorias. Mas, observam

Lakoff e Johnson (1999), a cadeia inferencial conjunção → categorização → generalização

não esgota a questão de como formamos as categorias que engendram o conjunto da atividade

mental humana.

Examinadas desde o novo modelo, entretanto, as categorias conceituais divergem

significativamente dos requisitos delas exigidos pelo paradigma objetivista e o atual acervo de

evidências aponta para uma condição corpo-dependente, o que sugere uma realidade bem

distinta para as origens das categorias e da razão humana em geral:

Quadro 2 – O Paradigma Conexionista.

(Razão Corpórea) 20

O pensamento é corpóreo (embodied) em sua origem: as estruturas utilizadas na formação

do conjunto dos sistemas conceituais brotam da experiência corporal e só fazem sentido

nos termos da própria experiência;

O cerne dos sistemas conceituais está diretamente enraizado na percepção, no movimento

corporal e numa experiência de caráter físico e social;

O pensamento é imaginativo naqueles conceitos não diretamente embasados na experiência

e que se valem da metáfora, da metonímia e da formação de imagens mentais para se

constituir.

As imagens mentais vão além do mero espelhamento literal (representação) da realidade

externa;

É a capacidade imaginativa que possibilita o pensamento ‗abstrato‘ e conduz a mente para

além do que podemos ver e sentir;

A capacidade imaginativa depende indiretamente da corporeidade, pois as metáforas, as

metonímias e as imagens estão baseadas na experiência, frequentemente na experiência

corporal;

20

In: Lakoff, 1987; pp. xiv-xv.

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O pensamento possui propriedades gestálticas: a superestrutura conceitual vai além da

mera concepção atomística da ‗construção de blocos‘ conceituais a partir de regras gerais

de manipulação simbólica;

O pensamento apresenta uma estrutura ecológica: a eficiência do processamento cognitivo

no aprendizado e na memória depende da superestrutura do sistema conceitual e do

significado dos próprios conceitos que, por sua vez, emergem da experiência corpórea no

mundo. O pensamento é, portanto, mais do que a mera manipulação mecânica de símbolos

abstratos;

A estrutura conceitual é melhor descrita pela utilização de modelos que contenham as

propriedades acima;

A teoria dos modelos cognitivos incorpora o que está correto na visão tradicional ao

mesmo tempo em que acumula dados empíricos acerca das origens da categorização para a

construção de uma nova visão superestrutural.

Lakoff chama de realismo experiencial a esta nova visão do pensamento e da

linguagem observando que ―o corpo é quem possibilita a razão; isso inclui a razão criativa e

abstrata, bem como o raciocínio acerca das coisas concretas. A razão humana... brota da

natureza do organismo e de tudo aquilo que contribui para a sua experiência individual e

coletiva: a herança genética, a natureza do ambiente em que vive, a maneira como funciona

neste ambiente, a natureza de seu funcionamento social, etc.” (1987; p. xv)

3. CORPOREIDADE E COGNIÇÃO INVENTIVA

A epigênese e o continente corporal possuem, portanto, importância decisiva nos

processos geradores da linguagem e da razão, o que concorda com a perspectiva de Kastrup

(1999), que aborda o tema pelo ângulo da cognição inventiva de uma realidade sempre em

construção: “... O contato com a matéria se dá por meio de ações, não sendo intermediada

por qualquer representação. Contato, portanto, inventivo e não representativo.” (p. 52)

Ao enfatizar a importância das ações como o ponto de contato com a matéria ao redor,

Kastrup nos remete à importância da experiência corpórea enquanto fonte da subjetividade. É

o contato de uma dada organização material (o nosso corpo) com as demais expressões da

matéria (o ambiente em sua múltipla expressão de materialidades) que forja as bases

experienciais de onde emergem as construções imediatas que fazemos acerca de nós mesmos

e do mundo.

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Poder-se-ia argumentar que, no caso humano, tal contato já viria previamente

revestido de representações, posto que o corpo já se encontra simbolicamente investido pela

cultura e pela linguagem antes mesmo de sua constituição material. Desde uma perspectiva

científico-natural, entretanto, isso não acontece como um dado a priori: o que nos é dado a

princípio é tão somente a autoexperiência de um organismo dotado de sensações e de

sentidos interoceptivos e exteroceptivos, o que nos torna abertos à subjetivação; esta sim, um

produto complexo da atividade cerebral superior.

Trata-se de um organismo ‗colonizado pela cultura‘ desde a sua entrada no mundo21

e

cuja vanguarda colonizadora se materializa através de um adulto-precursor, cuja função

materna emerge de uma corporeidade por sua vez previamente colonizada e a quem cabe

introduzir o bebê no universo humano por todos os meios que lhe forem possíveis e

toleráveis.

De um ponto de vista materialista, as construções de si e do mundo só podem

acontecer a posteriori da experiência, pois não é possível construir a imagem de algo que não

tenha sido previamente experienciado22

. Como sustenta Kastrup, ―a matéria não se confunde

com a forma dos objetos, mas é algo amorfo, ao mesmo tempo pré-objetivo e pré-subjetivo. A

experimentação, por sua vez, não é subjetiva, mas a condição de constituição tanto do sujeito

cognitivo quanto do mundo conhecido... sujeito e objeto são formações experimentais,

inventadas” (1999, p. 52).

Tal é a própria petição de princípios da Psicoterapia Neurodinâmica: a instância

primordial da vida subjetiva é o próprio ato de nos sabermos vivos.

4. OS DOIS SALTOS NA EVOLUÇÃO HUMANA

Na hipótese de trabalho aqui oferecida à reflexão do leitor, a vida se define enquanto

complexidade biológica. O surgimento do fenômeno de membrana23

inaugura o domínio dos

seres vivos a partir de uma nova ordem da natureza – uma ordem bioenergética - que opera

21

Segundo Navarro (1991), a chegada ao mundo ocorre já a partir da fecundação e as primeiras interações com o

ambiente heterólogo ao ser já ocorrem a partir da nidação do óvulo fecundado na parede uterina. 22

Por exemplo: tente imaginar um ser extraterrestre destituído de quaisquer características humanas, sejam elas

físicas, psicológicas ou sociais; ou, ainda, uma forma qualquer de vida que não se ampare em nenhum princípio

conhecido acerca da biologia, da zoologia ou da botânica. 23

O fenômeno de membrana consiste numa diferença de tensão superficial que se verifica na interface entre dois

meios líquidos, porém heterogêneos em sua composição de partículas em solução, separados por uma membrana

biológica porosa que é incessantemente cruzada por partículas sólidas e suas respectivas cargas iônicas em

trânsito entre dois ambientes líquidos segregados pela barreira membranosa. No caso, trata-se de dois meios

líquidos - um intracelular e outro extracelular - em constante interação através de uma barreira sólida, permeável

e coerente, formada por cadeias de proteínas e mucopolissacarídeos. Reich, no início dos anos 30, empreendeu

uma revisão da teoria psicanalítica dos impulsos a partir dos estudos biofísicos de Hartmann, ancorando-a na

biologia celular da época.

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segundo a égide do metabolismo, da assimilação, do processamento e da eliminação de

resíduos da atividade metabólica.

O fenômeno de membrana inaugura uma nova ordem na evolução do universo – o

domínio das coisas vivas - e, até onde se pode saber, trata-se de uma ordem de fenômenos

possível apenas no domínio da materialidade biológico-energética, isto é: nos reinos vegetal e

animal. Nessa hipótese, a subjetividade encontra-se presente em todo o território das coisas

vivas e tem como corolário a formação de categorias, uma condição essencial para a

sobrevivência do indivíduo e das espécies.

Como nos dizem inicialmente Reich (1933/1972) e mais recentemente Lakoff e

Johnson (1999), até mesmo as amebas são capazes de categorizar, pois elas possuem a

habilidade de distinguir dentre os eventos ambientais aqueles que constituem alimento e

aqueles que constituem perigo à sua sobrevivência. A capacidade de formar categorias

independe da razão transcendental, pois “a ameba não pode escolher se categoriza ou não;

ela apenas o faz. O mesmo é verdadeiro em qualquer nível do mundo animal. Animais

categorizam alimento, predadores, possíveis parceiros, membros de sua própria espécie,

etc.” 24

(1999, p.17). Refletindo essa orientação científico-natural sobre a condição humana,

Reich postula a existência de um duplo salto na evolução: para ele, a unidade

somatopsíquica25

evolui em dois grandes saltos observáveis no desenvolvimento natural que

por sua vez dão origem a outros processos evolutivos, graduais:

Quadro 3 – Os dois saltos na evolução das espécies.

(Reich, 1935/1975, modificado por Xavier)

1. Primeiro salto evolucionário: transição do inorgânico ao orgânico-vegetativo (fenômeno

de membrana ou constituição do domínio das materialidades vivas; surgimento do sistema

nervoso primitivo no reino animal);

24 Apesar de Lakoff restringir a capacidade de categorização ao reino animal, ao menos algumas espécies

vegetais também parecem capazes de categorizar, como por exemplo, a popular ‘dormideira’ ou ‘sensitiva’

(Mimosa Pudica L., uma leguminosa da família Fabaceae), que fecha as suas folhas ao menor toque. A

mesma capacidade discriminatória também pode ser identificada nas plantas insetívoras que

desenvolveram vários dispositivos de captura, como os ‘nepentes’ (Nepenthes Alata;

Família Nepenthaceae) que apresentam folhas em forma de tubo que coletam água das chuvas e depois

liberam um odor que atrai os insetos, e as ‘dioneas’ (Dionea sp. da Família Droserácea, cujos tentáculos são

acionados quando um inseto pousa e debate-se sobre a folha, aprisionando-o.

25 Preferimos este termo ao consagrado ‗unidade psicossomática‘ porque do ponto de vista evolutivo o somático

antecede o psíquico. Ambos os termos foram criados por Heinroth (Apud Bercherie, 1989), com cerca de uma

década de intervalo.

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2. Segundo salto evolucionário: passagem da ordem orgânico-vegetativa (o vivo) à

constituição do aparelho psíquico; encefalização das espécies e emergência dos fenômenos

da consciência e da autopercepção nos mamíferos; surgimento da consciência nuclear e da

experiência da subjetividade individual.

De acordo com Reich, “o orgânico, ao surgir do inorgânico, e o psíquico, ao surgir

do vegetativo conservam, ambos, em sua função e processos as leis que regiam suas

respectivas matrizes.” (Op. cit. p. 359).

Nesta perspectiva, o ‗aparelho psíquico‘ nasce dos contatos da matéria com o

ambiente ao redor, um contato regrado pela cultura desde os seus primórdios, e o organismo

do bebê pode ser metaforicamente comparado a um território inexplorado - porém não vazio -

que recebe a chegada do Outro-colonizador. Assim como um continente recém descoberto e

dotado de riquezas naturais (rios, montanhas, planícies férteis e jazidas subterrâneas; isto é:

corpo, atividade fisiológica de base, emoções, sentimentos, germes de autoconsciência e

pensamento autônomo) ele é capturado pela vanguarda ‗colonizadora‘ da função-materna que

ali implanta a ordem cultural vigente na metrópole dos corpos subjetivados dotados de

história.

Trata-se do início de uma extensa rede de operações que tanto pode fazer do novo

território uma fonte de riqueza para o Outro-colonizador (explorando-o em proveito próprio)

ou ali instaurar as bases para o desenvolvimento de uma futura nação/pessoa autônoma,

independente e soberana.

5. ESQUEMA CORPORAL, IMAGEM CORPORAL, CORPOREIDADE

SUBJETIVADA.

Em 1920 Head introduziu os conceitos de esquema corporal e de imagem corporal,

salientando que na sua própria organização experiencial o corpo se apropria

inconscientemente dos movimentos e das posturas habituais bem como das partes

significantes do ambiente (Apud Gallagher; 1998).

Na elaboração neurológica do esquema corporal de Head encontramos que as marcas

do ambiente exterior ao corpo propriamente dito o constituem tanto quanto a própria

organização somática strictu sensu. É o esquema corporal que instrumentaliza26

o modus

operandi corpóreo que engendra a percepção ao mesmo tempo em que lhe impõe limites - os

26

A esta altura já devidamente simbolizado no cérebro através da experiência engramada nos núcleos neuronais

que contribuem com esta função.

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limiares perceptivos dependentes da estrutura caracterológica27

- à consciência intencional em

suas diversas modalidades.

Gallagher (Idem) aporta interessante reflexão sobre a subjetividade corporificada,

elaborada a partir de ambos os pólos do arco intencional de Merleau-Ponty. Nessa

perspectiva, o esquema corporal – o agenciador da percepção - encontra-se numa das pontas

do arco intencional, ao passo que a imagem corporal – o agente perceptor - ocupa o outro

extremo do arco e constitui a imagem mental de nossa dimensão corporal.

No domínio da imagem corporal, o corpo se apresenta como um objeto ou conteúdo da

consciência intencional: já estamos, portanto, no domínio da corporeidade: trata-se do corpo

que se é, que se lembra, que se imagina, se estuda, se ama, se odeia, e assim por diante.

Quadro 4. A elaboração da corporeidade.

(Head, Merlau-Ponty e Gallagher; modificado por Xavier)

Esquema corporal: agente da percepção (causalidade ascendente ou

processamentos bottom-up)

Imagem corporal: agente do percebido (causalidade descendente ou

processamentos top-down)

Corporeidade: o organismo subjetivado, elaborado a partir dos agenciamentos que

transitam via arco intencional em ambos os sentidos (causalidade circular

assimétrica)

Para Gallagher o esquema corporal age como um fator pré-noético que organiza e

delineia a experiência cognitiva, pois “os ajustes posturais e motores do esquema corporal

ficam sempre „por trás da cena‟, a tergo. Quando percebo, não percebo o meu corpo

efetuando os ajustes que possibilitam e delineiam o ato da percepção. Estes ajustes não

aparecem como partes explícitas do significado perceptual, embora colaborem

implicitamente na estruturação desse significado. Por esta razão, a postura corporal não é

redutível à sua posição objetiva” (1995/1998, p. 235. Grifo do autor)

Embora o esquema corporal de Head seja um constructo eminentemente neurológico,

pode se perceber aqui a importância capital das interações germinais com a pessoa da mãe28

na construção da identidade e do corpo próprios do bebê. É aí que entram, na construção da

sua futura pessoa, os ajustes posturais e autonômicos demandados pelo acoplamento com o

27

Ou terceiro nível de seletividade da rede neuronal (Xavier, 2004; 2005). 28

Eminentemente corpóreas a essa altura primeva dos acontecimentos, incluídas aqui as interações mediatizadas

através da troca de olhares, da interação entre feromônios materno-infantis e pelos sons da fala em suas

tonalidades emocionais.

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adulto-mãe (e a todos os demais que a ele se seguem); é através dos acoplamentos com ela e

seus sucedâneos que a cultura coloniza os nossos gestos, sentimentos e produções cognitivas.

Enquanto parte significante do ambiente (tão mais significativa quanto mais jovem for o bebê)

é ao adulto-mãe a quem ele se acopla29

para dar seguimento ao seu desenvolvimento

psicobiológico bem como à sua constituição enquanto sujeito da cultura.

O adulto-mãe é o aspecto significativo mais proeminente do meio ambiente inicial do

bebê e a corporeidade da mãe constitui função materna para além do mero significante

linguístico: os seus cheiros, as inflexões de sua voz, a qualidade dos seus olhares e as

maneiras como ela o vai manejando/segurando/amando constituem virtualmente o mundo na

sua totalidade para o bebê. Progressivamente, a interação vai se tornando mais e mais

complexa à medida que se desenvolvem as estruturas neurais, especialmente os hemisférios

cerebrais. Com o sistema nervoso central do bebê dotado de novas e assombrosas

possibilidades de processamento neurodinâmico, as materialidades exteriores aos limites do

seu ser vão gradualmente se ampliando, ganhando novas formas e a figura materna vai

gradualmente perdendo a sua primazia de principal aspecto veiculador da realidade somática,

ambiental e cultural.

Sobre a base primitiva do esquema corporal enriquecido pelas memórias emocionais

agregadas pela entrada em cena dos sistemas de memória de procedimento, as experiências

somato-emocionais primitivas perenizam-se em forma de corporeidade. No infante, os

núcleos da base e a amígdala já se encontram suficientemente desenvolvidos a ponto de

codificarem memórias de tipo implícito (movimentos, experiências, ‗dicas‘ relacionais)

enquanto a imaturidade do hipocampo (que só entra ‗online‘ por volta dos 18 meses) pode

explicar em parte a ‗amnésia infantil‘ para as memórias explícitas. (Blinder, 2003).

Assim, o esquema corporal deixa de ser um construto neurológico strictu sensu, posto

que enriquecido (para o bem e para o mal) pelas marcas das emoções carreadas pela mãe,

retransmitidas pelo caráter da sua movimentação corporal em interação íntima com o corpo do

bebê30

. É no âmbito experiencial das vivências emocionais arroladas ao longo da primeira

infância que Reich irá identificar a formação da estrutura caracterológica, em especial na sua

fração neuromuscular; isto é, no domínio das memórias implícitas, que se encontram na base

da organização da subjetividade individual.

29

Através de um equipamento etológico de ligação filogeneticamente constituído, conforme descrito por Bowlby

(1958b). 30

Imagine, por um instante: o que pode sentir um bebê no colo de uma mãe nervosa? São experiências desta

ordem que estão nas origens ‗extracorpóreas‘, por assim dizer, do nosso esquema corporal.

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Uma vez incorporado o significado emocional pela via da experiência primitiva

embricada no esquema corporal estendido (núcleos da base, amígdala, hipocampo) o

organismo – agora devidamente mergulhado na pia batismal da cultura veiculada pela

corporeidade emocional da mãe - se instaura enquanto corporeidade gradualmente

subjetivada.

Quadro 5 – Organismo, corpo e corporeidade.

(estrutura caracterológica)

Organismo: conjunto de estruturas organizado em totalidades complexas e

coerentes de tecidos, órgãos e sistemas fisiológicos constituindo uma unidade

biológica viva (vegetal ou animal). Aporta conteúdos à rede

cognitiva/consciência.

Corpo: organismo subjetivado (colonizado pela experiência/cultura).

Representações conscientes e inconscientes (rede cognitiva subsimbólica) que

constituem o objeto da percepção.

Corporeidade: organismo subjetivado em dupla deriva mental, ou

‗mentação‘.31

Gallagher nos diz ainda ser impossível um trânsito – seja em sentido bottom-up ou

top-down - entre a experiência corporal e sua transdução em imagens mentais, mnêmicas ou

mesmo linguísticas ‗por fora‘ das rotas e estruturas que configuram o esquema corporal:

assim, as operações de transdução corpo ↔ mente “não são fenômenos estritamente mentais

(intencionais) nem estritamente físicos, embora seus efeitos atravessem tal distinção” (Op.

Cit., p. 227)

A neurobiologia de Damásio (1996; 2000; 2004), por sua vez, reconhece que a mente

existe dentro de um organismo integrado e para ele, pois “nossas mentes não seriam o que

são se não existisse uma interação entre o corpo e o cérebro durante o processo evolutivo, o

desenvolvimento individual e no momento atual. A mente teve primeiro que se ocupar do

corpo, ou nunca teria existido.” (1996, p. 17). Segundo Damásio, essa conclusão deriva das

seguintes evidências:

31 A teoria de Huglinghs-Jackson (1931/1932) pressupõe a existência de três níveis de atividade neuronal

simultânea: apresentação (sensação), representação (percepção) e re-representação (‘mentação’).

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Quadro 6. Organização neurodinamica da unidade somatopsíquica.

(Damásio, 1996)

a) O cérebro humano e o resto do corpo constituem um organismo indissociável,

formando um conjunto integrado por meio de circuitos reguladores bioquímicos e

neurológicos mutuamente interativos (incluindo componentes endócrinos,

imunológicos e neurais autonômicos);

b) O organismo interage com o ambiente como um conjunto: a interação não é

exclusivamente do corpo nem do cérebro;

c) As operações fisiológicas que denominamos por mente derivam desse

conjunto estrutural e funcional e não apenas do cérebro: os fenômenos mentais

só podem ser cabalmente compreendidos no contexto de um organismo em

interação com o ambiente que o rodeia.

Damásio enfatiza a constituição subjetiva daquilo que categorizamos como meio

ambiente, observando: “O fato de o ambiente ser, em parte, um produto da atividade do

próprio organismo apenas coloca ainda mais em destaque a complexidade das interações que

devemos ter em conta.” (Op. cit.; p. 17).

Além disso, a interação entre regiões cerebrais filogeneticamente mais recentes com as

mais antigas, dos córtices pré-frontais até o hipotálamo e o tronco cerebral, se manifestará na

esfera da subjetividade em forma de razão e linguagem: “Os níveis mais baixos do edifício

neurológico da razão são os mesmos que regulam o processamento das emoções e dos

sentimentos e ainda as funções do corpo necessárias para a sobrevivência do organismo (...),

os níveis mais baixos mantêm relações diretas e mútuas com praticamente todos os órgãos do

corpo, colocando-o assim diretamente na cadeia de operações que dá origem aos

desempenhos de mais alto nível da razão, da tomada de decisão e, por extensão, do

comportamento social e da capacidade criadora.” (Idem; p. 13).

6. METÁFORA E METONÍMIA NA CORPOREIDADE.

O realismo experiencial de Lakoff e Johnson postula um papel fundador para o corpo

na produção da linguagem e da subjetividade ao identificar que “assim como as experiências

básicas da orientação espacial humana dão origem a metáforas orientacionais, nossas

experiências com os objetos físicos, (especialmente nossos próprios corpos) constituem as

bases para uma variedade extremamente ampla de metáforas ontológicas, isto é, modos de

ver eventos, atividades, emoções, ideias, etc., como entidades e substâncias.” (1980, p. 25;

grifo meu).

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Em Lakoff e Johnson as metáforas ontológicas servem a múltiplos propósitos e os

refletem. Alguns exemplos:

―A globalização está rebaixando nosso padrão de vida‖ (a globalização como uma

entidade com vida própria);

―Será necessário um bocado de paciência para chegar ao fim deste texto‖ (a paciência

como uma substância quantificável);

―A borboleta está no jardim‖ (o jardim como uma metáfora-continente, que contém a

borboleta).

―A virtude é o bem mais alto que um ser humano pode alcançar‖ (a orientação vertical

indica, de forma hierárquica e ascendente, a superioridade das coisas nobres em

oposição à baixeza dos comportamentos animalescos e incivilizados);

―São Paulo verticaliza as pessoas enquanto o Rio de Janeiro as horizontaliza‖ (metáfora

orientacional equivalendo o eixo vertical ao princípio da realidade - introspecção,

seriedade, trabalho e acumulação - enquanto o eixo horizontal fornece a base metafórica

para a socialização, a alegria e o imediatismo da vida – o princípio do prazer).

Orientações espaciais, tais como em cima/em baixo, na frente/atrás, dentro/fora,

centro/periferia e longe/perto também dão suporte a uma extensa variedade de metáforas para

a compreensão de conceitos orientacionais, cujos sentidos que variam em função da

conotação emocional envolvida com a orientação espacial utilizada. Por exemplo:

―Estar ao pé da lista‖ implica em um sentimento diverso do que sentimos quando

―Estamos ao pé da montanha‖;

―Estar no fundo do poço‖ implica em um estado de ânimo distinto do que em ―Ir ao

âmago da questão‖.

Assim, “a metáfora permeia toda nossa vida cotidiana; não apenas na linguagem,

mas no próprio pensamento e na ação. Nosso sistema conceitual ordinário, em termos do

qual pensamos e agimos, é fundamentalmente metafórico em sua natureza.” (1980, p. 3)

A experiência corporal é estruturante da razão e da linguagem não por ser a mera base

física através da qual estamos em contato com o mundo, mas porque cada percepção afeta a

neurodinâmica corrente e gera – a partir da atividade em curso na amígdala e nas demais

estruturas implicadas- uma valência emocional que qualifica o registro em termos de

sentimento.

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A memória implícita incorporada ao registro modifica-o, agrega-lhe valor e instaura o

primado do objeto ‗interno‘ ou partes dele: o objeto da mente corporificada, portanto, já não

mais corresponde exatamente ao fenômeno sensorial-perceptivo que lhe deu origem.

7. A MENTE ALÉM DA MÁQUINA.

Ao estender o campo de ação da psicanálise ao corpo, Reich observava que “a tensão

e o alívio psíquico não podem existir sem uma representação somática, pois tensão e

relaxamento são processos biofísicos. Até o momento, temos transferido esses conceitos para

o domínio psíquico. Isto era correto, exceto que não se trata de uma analogia senão de uma

verdadeira identidade, a identidade das funções psíquica e somática.” (1935/1975, pp.

348/349).

No contexto da Psicoterapia Neurodinâmica, podemos encontrar alguns exemplos de

como as experiências eliciadas pela fase corporal do processo terapêutico podem trazer as

metáforas e as metonímias para o centro da cena terapêutica.

Jonas, 46 anos, funcionário público, traz o seguinte relato subjetivo de sua experiência

após permanecer algum tempo alternando o seu ponto de mirada entre um ponto imaginário

no teto da sala e a ponta do seu próprio nariz: ―Vi a imagem de um bico de seio. Lembrei de

não ter lembranças de amamentação e do cheiro de leite que me enjoa...‖ A MeSA (Metáfora

Somática Ativadora ou acting) utilizada naquele momento consistia exatamente em

metaforizar corporalmente o ato de alternar o ponto de mirada do olhar entre um ponto focal

distante (o olhar ou o rosto da mãe) e a ponta do seu próprio nariz, o primeiro referente

somático do self primal, onde o sujeito da experiência teoricamente começa a se reconhecer

na própria corporeidade como instancia alternativa ao adulto-mãe.

No caso, ―vi um bico de seio‖ expressa uma metonímia da mãe (a parte pelo todo)

enquanto ―lembrei de não ter lembranças da amamentação e do cheiro de leite que me enjoa‖

expressa a atividade mental concomitante de Jonas, ou seja: o ato de corporeidade (a re-

representação ou ‗mentação‘ de Hughlings-Jackson; com direito, inclusive, a uma produção

denegatória) produzido nos níveis mais sofisticados de processamento cognitivo recorrente

das operações neurodinâmicas, replicadas a partir da experiência sensoriomotora elementar

em que Jonas se encontrava engajado naquele momento da sessão.

Assim:

1. Se a metáfora e a metonímia são corporalmente originárias,

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2. Se a linguagem32

opera como uma usina conceitualizadora dos fenômenos emergentes da

corporeidade em interação com as materialidades que não lhe são próprias;

3. Se, como os anéis do tronco de uma árvore, a corporeidade subjetivada guarda viva em

seu núcleo as relações entre os modos prévios e os modos atuais de funcionamento que

engendram as categorias que formatam a percepção, a linguagem e a própria experiência

de nossa corporeidade, conforme Reich antecipara ao abordar a representação psíquica do

orgânico;

Então a posição reichiana da unidade somatopsíquica e a perspectiva linguística de

Lakoff e Johnson se encaixam com precisão suíça. Comparem novamente a posição de Reich

com a de Lakoff e Johnson nas citações utilizadas na abertura do texto.

Os estudos neurológicos de Damásio fornecem subsídios adicionais que permitirão a

futura verificação objetiva da intuição reichiana ao reportar que “metaforicamente, a razão e

a emoção „se cruzam‟ nos córtices pré-frontais ventromedianos e também na amígdala. Além

disso, o comprometimento do complexo dos córtices somatossensoriais no hemisfério direito,

onde se representa o corpo e suas paisagens viscerais também compromete o raciocínio e a

tomada de decisão bem como as emoções e os sentimentos e, adicionalmente, destrói os

processos de sinalização básica do corpo.” (1996; pp. 95/96).

A assertiva de Damásio parece responder à dificuldade com que Reich se deparava em

1935: “A questão é, pois, como é possível que uma função fisiológica encontre uma

representação tão imediata no comportamento psíquico. Sinceramente, não o sei. Porém,

esclarecer esta questão significará um grande passo adiante em nossa compreensão das

relações entre funções fisiológicas e psicológicas.” (Reich, 1935/1972; p. 341).

8. CONCLUSÃO

As metáforas e as metonímias constituem uma efetiva apresentação no campo da

linguagem daquilo que se passa na corporeidade. A linguagem constitui a transdução no plano

mental das derivas em acoplamento estrutural entre uma forma específica de matéria (a

corporeidade) em interação complexa com as demais materialidades em curso.

A própria cultura é em si uma forma de materialidade, pois constitui um regramento

dos usos e costumes da corporeidade e das materialidades que nos são ‗exteriores‘, produzido

às expensas de uma forma específica de modelagem da matéria, a memória.

Possíveis respostas para a questão levantada por Reich podem e devem ser buscadas

na imensa vazão de dados aportados pelo manancial das pesquisas atuais sobre o

32

Um produto da atividade psíquica, ápice da neurodinâmica humana até o momento.

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funcionamento do sistema nervoso central e seus módulos perceptivos, emocionais e

cognitivos; e a possibilidade de integrá-los numa perspectiva inventiva, conforme sugere

Kastrup, poderá responder à complexa questão da superação das perspectivas dualistas ainda

hegemônicas: o objetivismo positivista no campo da investigação científico-natural, por um

lado, e a subjetividade filosófica pela vertente das ciências humanas.

Mais uma vez, vemos que as proposições reichianas do período pré-orgonômico se

revelam corretas desde que devidamente refinadas e desenvolvidas pelos conhecimentos

aportados pelas neurociências, pela filosofia e pela lingüística que emergem do paradigma

conexionista.

As implicações desta perspectiva deverão produzir novos agenciamentos no campo da

clínica corporalista para além dos dispositivos clínicos até então conhecidos e aplicados nas

técnicas das diversas correntes da psicoterapia corporal, com renovada atenção aos aspectos

linguísticos e relacionais que ocorrem no âmbito da relação de trabalho terapêutica.

Agradecimentos: Aos colegas psicólogos Sophie Farhi, Fabian Dullens e Marco Aurélio

Mendes pela leitura e comentários às versões intermediárias do texto. Agradeço também à

engenheira agrônoma Angela Iaffe pela consultoria botânica que aparece na nota 10 e a Sean

Haldane pela contínua inspiração nesse árduo e gratificante caminho da releitura dos

cometimentos reichianos à luz da neurodinâmica relacional.

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OS GREGOS E JUNG

THE GREEKS AND JUNG

Alvaro de Pinheiro Gouvêa33

Resumo

Tendo por base o livro ―Paidéia – A Formação do Homem Grego‖ de Werner Jaeger,

traço nesse trabalho, um breve paralelo entre alguns aspectos do pensamento dos gregos e o

conceito junguiano de ―Processo de Individuação‖.

O processo histórico pelo qual se chegou à formação do homem grego e o processo

espiritual que levou os gregos a elaborarem seu ideal de humanidade expressam altas formas

de cultura até os tempos modernos.

A Arte, a Vida e a ―teoria‖ da filosofia grega estão intimamente ligadas. A força

criadora, vital e plástica que move a comunidade humana hoje se deve em grande parte à

inteligência clara dos gregos que souberam por meio da vontade consciente e da razão levar o

homem à descoberta de si próprio.

Sendo assim, a filosofia depois dos gregos não poderia deixar de influenciar tanto

Jung como Freud. Não é difícil encontrar traços essenciais do ideal grego do homem no

pensamento freudiano e junguiano. Isso porque fora Sócrates o guia de todo Iluminismo

surgido na França, também chamado ―período das Luzes‖, do Romantismo na Alemanha e de

toda a filosofia Moderna. Ambos apesar de serem filhos do Romantismo alemão, também

guardam vestígios em suas ideias da época clássica da Paidéia.

Palavras-chave: Individuação, Homem, Educação Grega - Paidéia.

Abstracts

Based on the book "Paideia - The Formation of Greek Man" by Werner Jaeger, a trait

this study, a brief comparison between some aspects of the thought of the Greeks and the

Jungian concept of "individuation process".

33

Analista Junguiano, Doutor em Psicologia Clínica, Professor do Departamento de Psicologia e Coordenador

do curso de pós-graduação Lato-Sensu ―Psicologia Junguiana, Arte e Imaginário‖ na PUC-Rio. Graduado em

Economia, Filosofia e Psicologia, mestrado em Psicologia e DEA em Filosofia da Existência no ―Centro Gaston

Bachelard de Pesquisa sobre o Imaginário e a Realidade‖ na Universidade da Borgonha – França. Publicou os

livros: ―Sol da Terra: o uso do barro em Psicoterapia‖, 1989, São Paulo: Summus editora e, ―A

Tridimensionalidade da Relação Analítica‖, 1999, São Paulo: Cultrix. Vários artigos publicados em revistas

nacionais e estrangeiras.

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The historical process by which man came to the training of Greek and spiritual

process that led the Greeks to build their ideal of humanity expressing high cultural forms to

modern times.

Art, Life, and "theory" of Greek philosophy are intimately linked. The creative force,

vital and plastic that moves the human community today is in large part to the clear

intelligence of the Greeks who learned through conscious will and reason lead to the

discovery of the man himself.

Thus, philosophy after the Greeks could not but influence both Jung and Freud. It is

not difficult to find essential features of the Greek ideal of man in Freudian and Jungian

thought. That is because Socrates was the guide of all Enlightenment emerged in France, also

called "period of the Enlightenment, Romanticism in Germany and the whole of modern

philosophy. Although they are both children of German Romanticism, also remains on guard

ideas of the classical age of Paideia.

Keywords: Individuation, Man, Greek Education – Paidéia.

A partir do invisível de dentro, ali onde não pude ver nem

querer aquilo mesmo que sempre tive medo de deixar revelar-se no

scanner, na análise – radiológica, ecografia, endocrinologia,

hematologia -, veia crural, expulsava meu sangue para fora, e eu o

achava belo, uma vez coletado naquele frasco sob uma etiqueta a qual

eu duvidava pudesse prevenir a confissão ou o desvio de propriedade

quanto ao cruor – sem me deixar mais nada a fazer, o dentro de minha

vida exibindo-se sozinho no fora, exprimindo-se sozinho fora,

exprimindo-se sob meus olhos, absolvido sem um gesto, [...] o sangue

sozinho se entrega, o dentro se entrega e de si pode dispor, sou eu,

porém mais nada tenho com isso, nem com ninguém, [...] deve-se ao

fato de o volume de sangue incrível para a criança que continuo a ser

esta noite, expor para fora, portanto para a sua morte, o que de mais

vivo terá em mim havido... (DERRIDA, 1996:15, 16).

Antes e durante a Psicologia, tive a sorte de cursar a faculdade de filosofia e de ter

tido como professor o grande filósofo brasileiro Pe. Henrique de Lima Vaz. Conhecedor

profundo de Platão e Hegel, esse jesuíta foi quem me ensinou a expulsar-me para fora,

exibindo sozinho no de fora, algo de mim ainda criança, que mal conhecia dentro, contudo

tão vulnerável que só o precioso filosofar poderia não ameaçar sentimentos e pareceres

aparentemente contraditórios mais cheios de confidências. Entre uma sabedoria e outra me

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indicou o livro de Werner Jaeger - ―Paidéia34

– A Formação do Homem Grego‖ (JAEGER,

1986).

Tendo por base esse livro de Jaeger, traço nesse trabalho, um breve paralelo entre o

conceito junguiano de individuação e alguns aspectos do pensamento dos gregos,

fundamentalmente da filosofia de Platão.

O processo histórico pelo qual se chegou à formação do homem grego e o processo

espiritual que levou os gregos a elaborarem seu ideal de humanidade expressam altas formas

de cultura até os tempos modernos.

Percebi a minha simpatia pelos Gregos quando recentemente escutei o comentário de

um amigo a propósito da atual crise econômica grega, dizia ele: ―os Gregos não devem nada

ao mundo e muito menos aos europeus‖. E continuou: ―É historicamente indiscutível que

foram os Gregos os primeiros a perceberam que a ‗Educação e a Formação do Homem‘ deve

ser um processo de construção consciente‖.

Verdade, a humanidade é devedora aos Gregos. Os Euros que somam toda a dívida

europeia não pagam aquilo que os ancestrais da atual Grécia fizeram pela Europa e por toda

comunidade internacional.

A importância universal dos Gregos para a cultura e educação não pode ser esquecida

em meio às graves crises que abalam os países europeus e o nosso mundo globalizado atual.

O grego é naturalmente um povo filosófico, tornando-se com Sócrates o guia de todas

as ideias éticas e religiosas que se seguiram ao fim da Idade Média. Na verdade fora a

tendência anti-socrática do Alemão Friederich Nietzsche que em sua juventude criticara o

humanismo dos gregos pregando o advento do super-homem. Contudo, o chamado idealismo

alemão valorizaria novamente os antigos pensadores gregos.

Segundo Jaeger ―A teoria hegeliana da contradição tem o ponto de partida em

Heráclito, e a teoria de Schopenhauer sobre a vontade na natureza apresenta alguma

semelhança com outro tipo de pensamento pré-socrático, o de Empédocles, que fazia de

“Amor” e “Discórdia” as forças dominantes da natureza‖ (JAEGER, 1996:345).

34

Os gregos pensavam que assim como o oleiro modela a sua argila, o homem deve modelar-se a si mesmo e a

seu espírito como se fora fundir-se numa unidade com o mundo eternizando o instante criador na própria ação

de dar forma à sua individualidade. Cada alma humana tem como tarefa principal a Educação de suas

potencialidades cuja erupção no mundo criará as mais altas formas culturais. A palavra ―Paidéia‖ aparece no

século V para designar exatamente esse ideal grego de Educação que procura manifestar na vida comunitária o

espírito criador de que é movido o ser humano.

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A Arte, a Vida e a ―teoria‖ da filosofia grega estão intimamente ligadas. A força

criadora, vital e plástica que move a comunidade humana atualmente, se deve em grande

parte à inteligência clara dos gregos que souberam por meio da vontade consciente e da razão

levar o homem à descoberta de si próprio.

OS GREGOS E A PAIDÉIA

Do ponto de vista de Platão a filosofia e todo o saber humano nascem de duas

vertentes: a Doxa e a Epistéme. A Doxa é o saber que temos sem procurá-lo (nasce do

instinto humano do Ser humano por excelência) e, a Epistéme o saber que temos porque

procuramos.

Portanto, a Filosofia em Platão não é propriamente ―amor à sabedoria‖ e nem

tampouco ―o saber em geral‖. Filosofia para Platão é o saber que temos ou adquirimos por tê-

lo buscado METODICAMENTE. Este método é a DIALÉTICA. Trata-se de um método de

AUTODISCUSSÃO fundado em torno de um DIÁLOGO consigo mesmo e num

ADMIRAR-SE (Thaumátzein – em grego). No dizer de Platão é no admirar-se (Thaumátzein

– em grego) que está fundada a nossa capacidade de intuir, problematizar e racionalizar

sempre num processo de contrapor dialéticamente ―afirmações e negações‖.

Sendo assim, do diálogo intermitente exercido entre diferentes Doxas (opiniões que

nascem naturalmente na alma humana) pouco a pouco se chega a um conhecimento que

resiste às discussões e se transforma em Epistéme, ou a sabedoria autêntica, ou ―ciência‖.

Diríamos que essa dialética nos aproxima o máximo possível das essências ideais, avançando

rumo aos objetos na natureza em busca da ―verdade absoluta‖.

Movido por um encantamento sem fim o movimento dialético, apesar de nos

deixarem sempre inquietos e intranquilos, segue o ―conhece-te a ti mesmo‖ de Sócrates.

Nessa procura interna o indivíduo eleva-se por instinto e desejo à função profética de criar o

mundo criando a si próprio. Movido, também, por uma divina inquietação provocada tanto

pelos objetos ideais como pela realidade sensível com seus objetos concretos, a vida interior

do homem, a sua alma, transforma-se em vida vivenciada.

Ao tentar abrir caminhos em seu ser e a desenhar planos que se misturam na

diversidade das experiências vividas no seu cotidiano, o homem grego segue uma evolução

progressiva moldando o seu espírito segundo as suas duas divindades das artes, Apolo e

Dionísio. Para os Gregos a mais alta obra de arte é a criação do Homem Vivo e envolve a

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dialética entre mundo interno e mundo externo. Assim a ciência estética liga-se à métrica

desses dois deuses gregos ―Apolo e Dionísio‖.

Para os Gregos é preciso dar formas às realidades internas que se escondem por trás

da realidade em que vivemos. E, dar forma a essência desse espírito que habita na alma

humana é o mesmo que lidar com nossas emoções internas produzindo Educação. Para os

Gregos os instintos impulsivos caminham lado a lado inspirando e dotando o homem de um

espírito filosófico.

Nietzsche inspirando-se nos gregos disse em seu livro ―A origem da tragédia‖: ―Todo

o homem que for dotado de espírito filosófico há de ter o pressentimento de que, atrás da

realidade em que existimos e vivemos, se esconde outra muito diferente, e, que, por

consequência a primeira não passa de uma aparição da segunda.‖ (NIETZSCHE, 1985:37).

O que existe verdadeiramente para os gregos é uma ―imago arquetípica‖ - origem de

todo o ser. Essa ideia de uma imago do ser vai ajudar Jung a construir a sua tópica, ou seja, a

sua maneira de olhar o funcionamento da psique.

JUNG E A PAIDÉIA

A filosofia depois dos gregos não poderia deixar de influenciar tanto Jung como

Freud. Ambos apesar de serem filhos do Romantismo alemão, também foram influenciados

pela época clássica da Paidéia. Não é difícil encontrar traços essenciais do ideal grego do

homem em Freud e Jung. Isso porque fora Sócrates o guia de todo Iluminismo surgido na

França, também chamado ―período das Luzes‖, do Romantismo na Alemanha e de toda a

Filosofia Moderna.

Vejamos brevemente algumas ideias que percebo unir a tópica junguiana à formação

do homem grego. Lembrando que esse assunto é tratado aqui de maneira incompleta e que

merece ser abordado de maneira mais profunda.

Diria que o conceito de ―Processo de Individuação‖ em Jung pode se servir do

Método dialético de Platão para pensar o ―Eixo Eu-Si-mesmo‖. A consciência de que existe

uma realidade vital e criadora própria ao ser do homem – a noção de Si-mesmo e dos

arquétipos, ilumina a práxis de Jung na clínica e guarda elementos da paidéia platônica.

A relação dialética entre o conceito de Eu e de Inconsciente no qual se traduz a

mecânica do ―Processo de Individuação‖, é uma espécie de revivência da dialética platônica.

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Jung proclama que a nossa consciência nasce ―de dentro de nós mesmos‖ como uma criança

do seio materno e sempre em dialética.

O indivíduo para Jung, como para Platão, não se forma a partir de um espaço vazio,

ao contrário, se desenvolve no social e em meio ao solo e vivências do povo e atravessando

todas as mudanças históricas. A consciência seria a depositária das opiniões que nascem

naturalmente da alma humana (doxa) e o saber que adquirimos porque procuramos

(epistéme).

O Eu proclama de maneira mais concisa a pedagogia da alma humana que quer e

exige um saber baseado no conhecimento da natureza do Homem envolvendo tanto a alma

como o corpo. Por conseguinte, esse processo envolve tanto o indivíduo como a coletividade

na qual ele está inserido.

A ―individuação‖ deve ser pensada como um método de diálogo consigo mesmo e

voltado para as necessidades da comunidade. Jung nos fala de uma voz interior que é

substituída pela voz do grupo social e de suas convenções e, uma vez estando a pessoa nesse

estado social inconsciente é chamado por uma voz individual. Assim o EU enquanto o

―Centro da Consciência‖ e o ―Self‖ ou ―Si-mesmo‖ como o ―Centro da totalidade da Psique‖

unem-se em dialética inserindo o indivíduo na arte de educar-se a si mesmo no social.

Diria então, que no modelo junguiano de individuação o Homem busca a verdadeira

essência humana quando a contrapõe sistematicamente às exigências da comunidade.

Segundo a concepção grega, o fator decisivo em toda EDUCAÇÃO é a energia que

envolve o gênio criador do Homem grego e o eleva à sua plenitude criadora capaz de dar

forma a modelos heroicos e de ajudá-lo em sua luta em prol de um objetivo elevado. Também

o romantismo alemão do tempo de Jung considerou a ―humanidade‖, a ―cultura‖ e o

―espírito‖ dos Gregos ou dos antigos, como manifestações naturais da expressão humana.

Podemos afirmar que em Jung, o Processo de Individuação não é uma realidade

completa e acabada, mas que ela resulta de um trabalho poético ininterrupto do Si-mesmo em

seu desejo de realizar no cotidiano da comunidade social. Pela mediação do Eu, o Si-mesmo

aparece como parte essencial de uma realidade que ganha significado pleno no agir ―ético‖ do

indivíduo no mundo.

Para os Gregos a superior força do espírito humano tem seu enraizamento na vida

comunitária, também em Jung vemos que a noção de ―Individuação‖, conceito central de sua

teoria, lança suas raízes na esfera material e exterior. O homem na luta contra o ―destino‖ e

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em prol de uma estrutura interna que quer se realizar no mundo, muitas vezes mergulha em

dificuldades inextrincáveis, em combates singulares e muitas vezes trágicos que exigem a

intervenção de ideais imperativos provindos da numinosidade do Si-mesmo como o arquétipo

central da ordem.

ARTE, VIDA, CRIATIVIDADE E INDIVIDUAÇÃO

Mesmo na tragédia as ações dos gregos apontam para uma ação. É na dialética do

mundo externo pelo mundo enquanto substância pura e idealizada que veremos nascer modos

de agir criativo dos gregos.

Debater-se em meio a contradições internas e externas desencadeia na lógica interna

do desejo um efeito angustiante e criativo. Experimentalmente, a ―individuação‖ enquanto

―consciência de si no mundo e no social‖ é também vivida pelo indivíduo com uma certa

angústia criativa. A Angústia Criativa é Encantamento e Memória.

Arte e Angústia Criativa são formas de Encantamento (numinosidade) e estão

presentes tanto na tragédia humana tão bem investigada pelos gregos, como no ―Processo de

Individuação‖. Em face dessa realidade existencial que é a angústia como modelo formal de

arte, é possível mudar profundamente a estrutura de compreensão da tragédia humana.

Individuar-se é Educar-se no sentido da Paidéia grega.

Na individuação, a pessoa está mergulhada em sua essência mesma e das profundezas

de sua alma a força criadora busca o som, a palavra, o ritmo e a harmonia que irá se

transformar sua ação numa medida de valor para a comunidade. Em sua arte, o indivíduo

busca vivenciar suas emoções, angústias e tragédias como substância real de sua existência. É

certo que ligar uma emoção a um objeto concreto ou a uma cor, buscando metamorfosear e

colorir o desejo no espaço e tempo são atributos do ato criador e do processo de individuação.

O indivíduo instintivamente transforma emoções em imagens querendo encontrar um sentido

para sua existência. A arte conceitual abandona suas certezas e chegam a conclusões quase

que místicas. As convenções da arte são alteradas diante de uma força interior e numinosa

que leva o indivíduo a abandonar uma posição definida pelo Eu e se vê impulsionado por

demandas internas que tentam se tornar algo físico em seu viver cotidiano.

Ao agir e reorganizar o cotidiano e movido mentalmente pelo encantamento e pela

falta quase que total das virtudes estéticas das obras dos chamados ―grandes artistas‖, o

indivíduo comum cria e transita entre imaginários percebendo que o reflexo de seu valor

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interno corresponde exatamente a um gênero de beleza e grandeza que ultrapassa a produção

artística em si mesmo.

Contudo, a reflexão teórica e o trabalho artesanal produzido são partes do mesmo

pacote artístico. Ao unir tristeza e pão, argila e angústia, experiências sensoriais e a realidade

física dos objetos imaginários, acaba unindo a própria vida no peito partida e repartida

quando descobre num prazer intenso que o mundo dos heróis é o seu também. Que a sua vida

ganha sentido a cada obstáculo que sucede em sua vida, sua evolução e suas altas exigências

espirituais.

C. G. Jung, no livro ―O Espírito na Arte e na Ciência‖ (Jung: 74, 79) tece algumas

reflexões sobre Vida/Arte/Individuação. Segundo Jung, as fontes da criatividade científica e

artística da psicologia se apoiam nas regiões ESTRUTURAIS e ARQUETÍPICAS de nossa

psique. Principalmente na DINÂMICA ARQUETÍPICA fonte do ENCANTAMENTO que

supõe qualquer atividade espiritual ou artística.

Aqui cabe a pergunta: Haveria uma relação dialética entre a psicologia pessoal do

criador e o traçado de sua obra? A psicologia pessoal do criador revela certos traços em sua

obra, mas não a explica em sua totalidade. E mesmo supondo que a explicasse, e com

sucesso, seria necessário admitir que aquilo que a obra contém de pretensamente criador não

passa de um mero sintoma de algo maior que existe em seu inconsciente; o que não seria

vantajoso nem glorioso para a obra em si.

Ainda que ―obra de arte‖ e o ―homem criador‖ estejam ligados entre si, por uma

profunda relação e numa interação recíproca, ainda assim não se explicam mutuamente. Em

parte isso significa dizer que o ―momento criador‖ envolve a percepção das leis profundas

que governam a natureza humana e das quais derivam a força formativa a serviço da

Educação humana.

No momento me vem essa equação numa tentativa de juntar os Gregos à minha

maneira de pensar a teoria analítica de Jung.

Força espiritual criadora

Política

Sabedoria

Arquétipo = Individuação = Educação = comunidade

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Como justificaria essa minha modesta equação? Sabemos que foram os Gregos que

juntaram ―Educação e Consciência‖. Os poetas gregos diziam que o processo educativo

deveria ―ser construído de modo correto e sem falha, nas mãos, nos pés e no espírito‖.

É preciso ter em conta que a Paidéia grega ultrapassa a soma das técnicas e

organizações privadas para se ligar na intimidade da alma humana.

Os grandes homens da Grécia assentam seu conhecimento para além do virtuosismo

intelectual e artístico da civilização moderna. A trindade grega encana a mais alta direção da

nação envolvendo – o Poeta Grego, o Homem de Estado e o Sábio. Para os Gregos o ―ser do

homem‖ se vincula essencialmente às características do homem como ser político. E ―ser

político‖ implica em ―estar em processo de individuação‖ estando o indivíduo em íntima

conexão com a vida espiritual criadora e sempre a serviço da comunidade.

Mesmo quando se trata do culto religioso, o homem grego tem suas raízes no solo

social e político que coincide substancialmente com o ideal de Homem que mantêm o seu

lugar no mundo e travam sua batalha no terreno da filosofia.

Segundo os ensinamentos dos heróis gregos, o nosso próprio movimento espiritual

cujas raízes mergulham na imensidão do inconsciente é que nos permite pensar a concepção

de Estado como sendo algo quase que impalpável em nosso cotidiano. O Estado para os

Gregos está longe de poder ser considerado como um projeto acabado. Na verdade, o Estado

não é um lugar determinado por estruturas físicas. Essas estruturas construídas pelo homem

para que se reúnam e se eduquem como Estado-nação é fundamental, mas jamais

indispensável para que o povo se organize e possa manifestar seu aprimoramento pessoal

dentro da comunidade.

Diria que a Paidéia grega nos fez constatar que somos, no íntimo, como Estados e

cidades eternamente inacabadas. Singularmente selvagens os homens precisam passar por

processos contínuos de construção e desconstrução, envolvendo mutações orgânicas, tanto

ficcionais como reais. Assim, em dialética, fragmentos de sentimentos se juntam ao espiritual

em busca de uma organização: a arte do Vir-a-Ser do Ser.

Concluiria concordando com Schopenhauer, nessa citação que faz de Nietzsche:

Como um pescador no seu barco, tranquilo e pleno de

confiança na sua embarcação, no meio de um mar desmesurado que

sem limites e sem obstáculos, levanta e derruba montanhas de ondas

cheias de espuma, mugindo e bramindo, o homem individual, no meio

de um mundo de dores, permanece sereno e impassível, porque se

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apoia confiadamente ‗principium individuationis‘. (NIETZSCHE,

1985:38).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACHELARD, G. O Ar e os Sonhos. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

DERRIDA, J.; GEOFFREY, B. Jacques Derrida por Geoffrey Bennington & Jacques

Derrida. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1996.

JAEGER, W. Paidéia – A formação do Homem Grego. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes,

1986.

NIETZSCHE, F. A origem da Tragédia. 4ª ed. Lisboa: Guimarães Editores, Ltda, 1985.

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JUNG E A FILOSOFIA DA ALMA

José Carlos Leal

Mestre em Ciência da Literatura pela UFRJ e professor da UNIG

O Conceito de alma, como o elemento que dá vida ao corpo e sobrevive a este depois

da morte é muito antigo. Já no Egito faraônico, ele existia, mas atrelado ao pensamento

religioso, ao discurso mítico. O mesmo acontece nas culturas da Mesopotâmia, da Índia entre

outras culturas antigas. É na Grécia, porém que a alma ganha importância fora da religião,

tornando-se um objeto da especulação filosófica em estrito senso. Nesse contexto, dois

pensadores são extremante importantes: Platão e Aristóteles.

PSICOLOGIA DE PLATÃO

Platão sempre apresentou uma relativa dificuldade em fazer uma descrição direta da

natureza da alma. Segundo o Platonismo, a alma deve ser compreendida por suas operações e

nada mais. Este é o motivo por que a doutrina de Platão se encontra recheada de mitos,

entretanto, a mitologia nesse caso não deve ser entendida como produto da fantasia, porém,

como um modo de dizer o indizível. A psicologia de Platão possui uma natureza

acentuadamente ética. Com ela e por ela, pretende-se explicar o conflito interior entre

tendências opostas, experimentado pelo homem continuamente.

A alma, no Platonismo, é, antes de tudo, uma entidade transfísica que se encontra

relacionada com a ordem religiosa. Em As Leis, ele escreve: “A alma é aquilo que o ser

humano possui de mais divino e de mais particular”. Ao contrário dos pensadores anteriores

que sempre deixaram a alma envolta em uma certa materialidade, embora na maioria das

vezes bastante sutil, como é por exemplo, o caso dos atomistas, Platão quer que ela seja

absolutamente incorpórea imaterial. Por este motivo ele repudia todas as teorias sobre a alma,

na qual ela seja identificada como uma mistura de elementos ou mesmo com um simples

elemento, para perfilhar apenas a doutrina sobre a espiritualidade total da alma e da

destinação metafísica ou sobrenatural desta. Seguindo o pensamento tradicional Platão

acredita no Hades ou Mundo dos Mortos para onde vão as almas ao deixarem esta vida. Isto

fica bastante claro na República quando ele trata do mito de Her - o Armênio, um soldado que

foi dado como morto e reviveu no momento em que ia ser cremado.

Para defender a sua metapsicologia, Platão se vale de cinco argumentos básicos como:

1. A alma possui, desde sempre, a verdade.

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2. A alma é o princípio do movimento.

3. A alma é simples, indivisível, incorruptível e, por conseguinte escapa à destruição.

4. A alma é capaz de reminiscência e isto prova a sua existência anterior.

5. A alma participa da ideia da vida.

Desse ponto de vista, Platão e o Platonismo encaram a vida psíquica como

inteiramente independente do corpo que é uma espécie de veste da alma, ou domicílio, ou

ainda prisão desta. A alma particular, entretanto, preside o movimento do corpo como a alma

universal preside o movimento do cosmo. Ela não é da mesma natureza do corpo (soma) e, se

a ele se encontra adida, isto se dá em virtude de ter cometido, em experiências passadas, uma

falta que a degradou, fazendo mesclar-se com a matéria e sujeitando-a ao devir. Como um

prisioneiro em sua cela que deseja ardentemente libertar-se, a alma também anseia por

escapar da prisão do corpo. Seu destino (e o seu maior desejo) é retornar à sua verdadeira

origem. Que é o Mundo Superior e, para tanto, deverá passar por encarnações sucessivas

como acontece com a Índia na Lei do Carma. Estabelece-se, então, um conflito entre a

aspiração da alma em busca do infinito e as seduções e apelos próprios da vida material. 35

A vida no mundo sensível, embora atraente, é insuficiente para aplacar na alma a sua

sede de infinito; por isso, ela deve lutar para superar as condições precárias da matéria para

que possa ascender aos páramos celestiais, o seu verdadeiro lar.

A alma, prisioneira do corpo, como já vem, busca libertar-se, entretanto, como superar

a condição humana? A resposta que Platão oferece a esta questão é a seguinte: apenas a

dialética é capaz de superar a multiplicidade dos dados sensoriais e, por meio deste recurso,

será capaz de dissipar a ilusão de que se encontra presa só assim a alma poderá escapar à

reclusão no corpo e poderá contemplar o Sol do Mundo das Ideias, representado pela Ideia do

Bem.

Platão explica que a alma, não purificada pela filosofia dialética, deverá descer ao

Hades, Mundo dos Mortos, onde será castigada ou premiada de acordo com o tipo de vida que

teve na Terra. Outras, depois de passarem no Hades, por um certo tempo, voltam à vida

terrena em um corpo humano ou animal. A escolha (corpo humano ou animal) dependerá de

suas necessidades espirituais e do tipo de vida que levou na última existência.

35

Müeller. História da Psicologia. P. 46

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A PSICOLOGIA DE ARISTÓTELES OPOSIÇÃO A PLATÃO

Quando se estuda a Psicologia de Aristóteles, o primeiro aspecto que se nota é a clara

oposição ao Platonismo. Em verdade, Platão foi o primeiro pensador que procurou demonstrar

a imaterialidade da alma como garantia de sua imortalidade. Nessa tentativa, Platão se viu

obrigado a separar a alma do corpo, integrando-a em um sistema muito mais metafísico do

que psicológico. A alma é uma estrangeira na Terra, está aqui de passagem. Aristóteles sente

uma espécie de repugnância com respeito à tendência ao transcendente de seu mestre. Desse

modo, ele vai considerar a alma como a forma do corpo e, assim, não haveria corpo sem alma

e nem alma sem corpo. A alma, segundo Aristóteles, é o princípio da vida e do movimento e

é imanente às funções biológicas e fisiológicas do corpo. Em De Anima, escreveu Aristóteles:

Eis mais um absurdo peculiar a essa doutrina e à maior parte

das teorias relativas à alma: unem a alma ao corpo e aí colocam, sem

precisar em nada, o motivo desta união, nem a disposição do corpo

que isso comporta. Parece claro, entretanto, que tal explicação é

indispensável; pois, em virtude das relações mútuas entre a alma e o

corpo, um que age e o outro que sofre, um que é movido e o outro que

move; ora, nenhuma dessas relações recíprocas pertence a coisas

quaisquer. Contudo, esforçam-se esses pensadores apenas em explicar

a natureza da alma, mas, no referente ao corpo que deve recebê-la, não

acrescentam precisão alguma, como se fosse possível que, segundo os

mitos pitagóricos, qualquer alma revestisse qualquer corpo. Mas isso é

inadmissível, pois parece claro que cada corpo possui uma forma, uma

figura que lhe é própria. Os partidários da metempsicose apresentam

as coisas de modo semelhante a quem sustenta que a arte do

carpinteiro possa ser exercida com a flauta: isso é impossível, pois

toda técnica deve servir-se dos instrumentos próprios, e a alma, do

corpo que lhe convém.

Essa discussão sobre a alma vai passar pelo Epicurismo, Estoicismo e as escolas

neoplatônicas e neopitagóricas, mas sem muitas alterações das ideias básicas de Platão e

Aristóteles. Na Idade Média, a discussão avança muito pouco e a alma prossegue associada ao

espaço da religião.

Com o passar do tempo, a alma vai se afastando cada vez mais da esfera religiosa e

buscando de um status científico. Com o avanço do Iluminismo, a Psicologia já se arroga ser

uma ciência que nada mais tenha com a religião. Com isso, o próprio nome Psicologia se

torna inadequado e se prefere chamar esse estudo de: ciência da vida mental, ciência da vida

psíquica, ou ciência do comportamento. A escola Behaviorista faz uma campanha forte e

permanente contra o conceito de alma e até mesmo o de consciência. Um psicólogo deste

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movimento teria dito: ―Os psicólogos que procuram a alma se assemelham a cegos que, em

um quarto escuro, procuram um chapéu preto que ali não está‖. Antes dele, o francês Claude

Bernard afirmava que o cérebro produzia pensamentos, como o fígado produz a bílis.

Assim, como se pode ver, existe um esforço para a criação de uma Psicologia sem

alma, ou seja, uma Psicologia que nega a sua própria etimologia e defende o ponto de vista de

que a alma não pode ser objeto de ciência, mas da religião. Os behavioristas clássicos, por

exemplo, prefere ver a psicologia como a ciência do comportamento enquanto observado em

rígidas condições de laboratório.

Esta situação começa a mudar com o advento da escola freudiana. Muito cedo, logo

em suas primeiras obras, Freud reconhece que a vida psíquica se manifesta em dois níveis, um

consciente e outro inconsciente. Usando a metáfora de Fechner sobre o iceberg, Freud lembra

que a vida consciente (a ponta do iceberg) representa uma parte mínima da vida mental. Por

baixo, na base do iceberg, está uma grande área submersa e ali se encontram as pulsões

(instintos) que, segundo a psicanálise, são as forças propulsoras do comportamento. Freud

criou também um outro conceito que ele denominou pré-consciente ou ante-consciente, ou

ainda, ante-sala da consciência. No pré-consciente, encontra-se o material parcialmente

recalcado e que, por isso, aflui facilmente à consciência. Suponhamos que, na hora do almoço,

você se lembre da briga que teve com um amigo no dia anterior e isso atrapalhe o seu apetite;

o material da desavença que interferiu naquele momento estaria na pré-consciência.

Freud ainda inclui outros conceitos como o de ego, super-ego e id, entre outros

conceitos não menos revolucionários. O trabalho de Freud não devolve a alma ao espaço da

religião, mas por outro lado, busca conter os excessos, às vezes simplistas da Psicologia do

comportamento. Freud, assim, continua materialista e filosoficamente agnóstico.

Assim, chegamos ao pensamento de C.G.Jung. Como ele via a alma. Em primeiro

lugar ele se opõe a Freud muito claramente, ponto de ter havido entre os dois uma cisão. Jung

possuía uma tendência para rever o conceito de alma, considerando-a muito mais complexa

do que a imaginavam os psicólogos antes dele. Freud, por isso, teme que seu amigo se

aproxime do ocultismo, então em voga na época. Ficou famoso o conselho de que ele deu a

Jung: “Meu amigo, afasta-te do lodo negro do ocultismo”. Pela palavra ocultismo deve-se

entender a mediunidade e os estudos da chamada Matagnomia e Metapsíquica.

Jung não foi capaz de atender o seu amigo, pois continuou interessado no lado oculto

da mente, assistindo, inclusive sessões mediúnicas onde, supostamente, se comunicavam

almas de pessoas que viveram na Terra. Basta lembrar que a sua tese de final de curso foi feita

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com o material que ele colheu nas sessões mediúnicas que realizou, tendo a sua prima Helena

Preiswerk como médium. Em um de seus livros, Jung declara com toda a franqueza as suas

dúvidas sobre a alma e a sua imortalidade:

Não desejo nem deixo de desejar que tenhamos uma vida

depois da morte e, absolutamente, não cultivo pensamentos desta

ordem, mas, para escamotear a realidade, preciso constar que, sem que

o deseje ou procure, ideias desse gênero palpitem em mim. São

verdadeiras ou falsas? Eu ignoro, entretanto, constato a sua presença

e sei que podem ser expressas desde que não as reprima por um

preconceito qualquer.

Este texto é muito interessante. Nele vê-se um homem lutando contra os seus próprios

preconceitos que ele mesmo reconhece como sendo um entrave na busca da verdade. Ele

mesmo confessa que possui ideias que lhe assaltam sem que ele saiba a origem delas. Ao

contrário de Sigmund Freud que havia fechado as portas para o transcendente com a frase que

ficou famosa: “Deixemos o céu para os anjos e os pardais”, Jung se debate corroído pela

dúvida. Talvez desejasse participar do agnosticismo radical de Freud, entretanto, para ele, era

muito difícil já que os fenômenos psíquicos o atraiam como ímã atrai o ferro.

Ele reconhece que as ideias preconcebidas são um grande entrave para a compreensão

mais ampla do fato psíquico. Em seu tempo, imaginava-se que o Racionalismo, por um lado,

e o Positivismo por outro, haviam eliminado por completo a possibilidade de se acreditar,

seriamente, na vida depois da morte e ele inquestionavelmente, acredita nesta hipótese. Um de

seus textos mais curiosos sobre a imortalidade é o prefácio que ele faz para o Livro dos

Mortos Tibetano. Ao mesmo tempo, ele parece reconhecer que nem a Filosofia nem a Ciência

de seu tempo deram uma resposta definitiva a esta questão. Principalmente a Psicologia,

etimologicamente a ciência da alma, que deveria ter uma resposta, no mínimo diferente para

os problemas, imersa no Materialismo, perdera a sua identidade.

Mesmo com toda esta abertura Jung procurou se manter aprisionado na concepção

materialista da alma. Em verdade ele era um psicólogo de renome e tinha medo de associar

seu nome a uma teoria maldita nas academias. Ele não teve coragem suficiente para enfrentar

os seus críticos, inclusive o próprio Freud, caso defendesse a realidade da alma e a sua

continuidade depois da morte. Assim, ele vai procurar formular teorias que impeçam a

espiritualidade da alma e a coloque dentro do campo da Psicologia materialista. Explicando a

crença na imortalidade da alma, ele escreveu:

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Uma das principais fontes das crenças dos primitivos nos

espíritos é o sonho. Nos sonhos aparecem pessoas, muito

frequentemente, como protagonistas e a consciência primitiva

acreditam, facilmente, que se trata realmente de espíritos. É sabido

que certos sonhos têm um valor infinitamente maior para o primitivo

do que para o civilizado. Ele não somente fala, muitas vezes, de seus

sonhos, mas também lhes atribui grande importância, de sorte que,

frequentemente, o primitivo é incapaz de distingui-lo da realidade Os

sonhos não têm valor aos olhos do civilizado em geral, entretanto,

entre esses há indivíduos que dão grande importância a certos sonhos,

justamente em virtude de seu caráter estranho e impressionante. Esta

particularidade confere alguma plausibilidade à opinião de que esses

sonhos sejam inspirações. Mas a inspiração implica a existência de um

inspirador, um espírito, embora pouco se fale dessa consequência

lógica. Um exemplo bastante ilustrativo, nesse sentido, é o fato de

que, nesses sonhos aparecem muitas pessoas já falecidas. As mentes

ingênuas acreditam facilmente que são espíritos dos mortos que

voltam a se manifestar. 36

Conforme Jung, a segunda fonte para a crença em espíritos são as doenças psicógenas,

ou distúrbios nervosos de fundo histérico, muito comum entre os povos primitivos. Um

grande número de indígenas - continua Jung - acredita que muitas doenças físicas ou

psicológicas são motivadas por espíritos de pessoas desencarnadas. Esses primitivos parecem

crer firmemente, que os seus mortos continuam a viver, espiritualmente, em algum lugar de

onde poderão vir a interferir na vida dos vivos, provocando-lhe certas enfermidades.

Uma outra fonte são as doenças mentais. A esquizofrenia provoca alucinações

auditivas e visuais que as pessoas tomam como manifestações de espíritos sem imaginar que

tais sintomas são em verdade, produtos de sua atividade psíquica. Não existem, portanto,

pensa Jung, espíritos de mortos que aparecem para os vivos. Se não existem, poderíamos

perguntar por que algumas pessoas (inclusive o próprio Jung) dizem ter visto os espíritos de

pessoas que já morreram em sonho ou mesmo em estado de vigília? Ele responde sem

titubear: ―O que as pessoas veem e julgam ser espíritos, é apenas a exteriorização de

complexos ou centros da alma, carregados de afetividade podem ganhar certa autonomia e se

manifestar como espíritos”.

Como se pode ver facilmente, Jung nega, veementemente, o conceito de alma

transcendente explicando a sua existência por meio dos sonhos ou da alienação mental. Há,

contudo, algumas questões que perturbam as certezas junguianas. Em um certo momento de

sua obra, ele chama a atenção para o fato de que a crença nos espíritos não se restringe aos

36

Jung In. A natureza da Psiké. p.243

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primitivos e camponeses incultos. Também, em cidades importantes como Londres, Paris,

Nova Iorque, há pessoas que acreditam nesse tipo de fenômeno e o que mais o intriga é o fato

de que homens de ciência, como William James, Walace, Lombroso, Crooks, entre muitos

outros, têm se dedicado a estudar determinados médiuns e parecem acreditar na possibilidade

da vida depois da morte. Jung admira-se ainda de que tais homens possam ter tido a coragem

de arriscarem seus nomes e suas carreiras defendendo destemerosamente pontos de vista

condenados pelos meios acadêmicos.

Permita-me o leitor que eu coloque aqui um pequeno texto de um psicólogo junguiano

a fim de que, quem nos leia, possa ter uma ideia melhor e mais ampla deste assunto. O

psicólogo se chama Erlo Van Weaveren e o texto é o seguinte: ―Certa vez falei com o

professor Jung sobre o tema da reencarnação, entretanto, depois desta conversa a sua esposa

(de Jung) me disse: ‗Não fala a ninguém sobre o que disse o professor, ainda não é tempo‘.‖

Que teria dito Jung? Por certo, algo que a sua esposa considerou como comprometedor

ou talvez um apoio às ideias de Weaveren que havia escrito um livro sobre Doroty Ead, uma

mulher que acreditava ter sido a esposa do faraó egípcio Setti I.

Jung, possivelmente, sente-se mal quando toca nesse assunto uma vez que ele, ao

longo de sua vida, vivera experiência que deveriam tê-lo levado, pelo menos, a dar maior

atenção ao problema da imortalidade da alma e da comunicação dos espíritos. Ele, porém, não

o fez. Não ultrapassou os limites que se impôs. Isso, contudo, não o diminui nem lhe rouba o

lugar de destaque que ele merece entre os grandes psicólogos do século XX.

Jung deixou esta vida no dia seis de junho de 1961. Estava então com oitenta e seis

anos de idade. Fora uma longa vida dedicada ao conhecimento da alma humana. Segundo o

seu projeto, procurou mergulhar o máximo no mundo interior do seres humanos. Viu muitas

coisas, coisas espantosas que ele não soube ou não quis significar corretamente. Passou por

experiências que o deixaram atordoado e confuso, entretanto, nenhuma dessas experiências

foi o suficiente para que ele desse um passo à frente na direção de um verdadeiro

espiritualismo. Quais teriam sido os motivos de Jung? Excesso de escrúpulos? Amor à

verdade científica? Receio de perder a sua posição no mundo acadêmico? Não sabemos e,

talvez, jamais o saberemos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDREWS, S. Jung e os Junguianos. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1987.

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COTT, J. A Reencarnação de OMM Seti Vergara. Buenos Aires, 1993.

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FRAILE, G. Historia de la Filosofia. Vols. BAC. Madrid, 1980.

JAFFÉ, A. Mito e Significado na obra de Jung. São Paulo: Cultrix, 1983.

JUNG. C. G. Memórias Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1963.

___________. Tipos Psicológicos. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara.

LEAL, J. C. O Universo do Mito. Rio de Janeiro: Mil Folhas, 1985.

___________. Jung na Fronteira do Espírito. Rio de Janeiro: Ed Lemarie, 2001.

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CIÊNCIA ROMÂNTICA E O PENSAMENTO JUNGUIANO

RONATIC SCIENCE AND JUNGUIAN THINKING

Maddi Damião Jr. - [email protected]

Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense – RIR/ PURO

Resumo

Este trabalho se propõem a refletir, a partir da entrevista dada por Jung em 1959 sobre

questões relevantes para o entendimento de sua cosmovisão e como esta encontra ressonância

em algumas ideias caracteristicamente pertencentes ao pensamento romântico. Assim, a partir

de uma fonte documental, mesmo sabendo-se editada e baseada no livro ―Memórias, Sonhos e

Reflexões‖ faz-se possível pensar a relação homem-natureza, saúde-doença e a questão do

sentido a partir de algumas indicações apontadas por Jung ao longo deste diálogo com

Richard Freeman.

Palavras-chave: Romantismo, natureza, sentido, diálogo.

Abstract

This work intends to reflect, from the interview given for Jung in 1959 on excellent

questions for the understanding of its ―cosmovision‖ and as this finds resonance in some

characteristically pertaining ideas to the romantic thought. Thus, from a documentary source,

exactly knowing itself edited and based in the book ―Memories Dreams and Reflections‖ one

becomes possible to think the relation man-nature, health-illness and the question of the

meaning from some indications pointed for Jung throughout this dialogue with Richard

Freeman.

Key-words: Romantismo, nature, meaning, dialogue.

Houve uma terrível seca, na parte da China, onde vivia Richard Wilhelm amigo de

Jung e tradutor do I Ching. Depois das pessoas terem tentado em vão os meios conhecidos

para obter a chuva, decidiram mandar buscar um fazedor de chuva. Isto interessou muito a

Wilhelm que se preparou para estar lá quando o fazedor de chuva chegasse. O homem veio

numa carroça coberta, um pequeno velho ressequido, que fungava com uma repugnância

evidente quando saiu da carroça e que pediu que o deixassem sozinho numa pequena cabana

em frente da aldeia; mesmo as suas refeições deviam ser deixadas no exterior diante da porta.

Não se ouviu falar mais dele durante três dias, pois, não somente choveu, mas houve uma

grande caída de neve, o que nunca se tinha visto nesta época do ano. Muito

impressionado,Wilhelm procurou o fazedor de chuva na cabana e perguntou-lhe como podia

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ter feito chuva e mesmo neve. O fazedor respondeu: ‗Eu não fiz a neve; não sou responsável

por isso‘. Wilhelm insistiu: havia uma terrível seca até à sua vinda e depois, passados três

dias, houve grande quantidade de neve. O fazedor de chuva respondeu: ‗Oh! Isso eu posso

explicar. Veja, eu venho dum lugar onde as pessoas estão em ordem; estão em Tao; então o

tempo também está em ordem. Mas chegando aqui, vi que as pessoas não estavam em ordem

e também me contaminaram. Por esse motivo fiquei sozinho até estar de novo em Tao, e

então, naturalmente, nevou!‘ (Hannah, 1981: pp 21)37

Em 1959 C. G. Jung deu uma entrevista para Richard Freeman, registrada em filme

com o título de ―Face to Face‖38

, esta entrevista tem cerca de quarenta minutos de duração, foi

realizada poucos anos antes de Jung morrer. Nesta época ele já estava com 82 anos e viria a

morrer dali a quatro anos.

A entrevista como podemos ver é montada a partir do livro ―Memórias, sonhos e

reflexões‖ escrito por ele junto com sua secretária Aniela Jaffè, 1986. Este não é um livro

autobiográfico, apesar de poder parecer assim, é um livro exemplar, no sentido em que nele,

Jung expõe o que era chamado, antigamente, de ―profissão de fé‖, ou seja, suas crenças e

perspectivas mais pessoais, porém não no sentido subjetivista, mas reflexivo e existencial, em

síntese, sua visão de mundo, de psicologia e de práxis. Assim, este livro pode ser situado no

que Eliade (1992, 2002) descreve como a forma contemporânea de se fazer teoria, uma forma

romântica, que preserve a presença do mito e do imaginário. Isto é, construir teoria a partir da

arte, da vida e das narrativas pessoais. Para Eliade este seria um modo de produção de

conhecimento legítimo, na medida em que não separaria razão de experiência ou a

imaginação de ciência, em função disto ele (Mircea Eliade) dava tanta importância aos

romances e diários, tendo escrito mais de oito volumes de diários e ―jornais‖ onde expõe suas

reflexões mais intimas e singulares assim como suas ―reflexões científicas‖.

37

http://pt.shvoong.com/humanities/163827-fazedor-chuva/ Em 10 de novembro de 2009. 38

"Face to face" é uma série de entrevistas que a BBC fez entre 1959 e 1962. A entrevista com Carl Gustav Jung

ocorreu em 22 de Outubro de 1959. Foi a partir dessa entrevista é que surgiu a ideia, por parte do repórter e de

um editor, de escrever um livro sobre a Psicologia Analítica voltada ao público "leigo". Os livros de Jung eram

considerados de extrema complexidade para a população em geral. E aí surgiu "O Homem e seus Símbolos".

Este livro foi finalizado por uma das colaboradoras de Jung, pois este faleceu antes da finalização do livro.

Vamos ao filme! Pela pesquisa que eu fiz, as entrevistas da série "Face to Face" eram todas feitas nos estúdios da

BBC, em Londres. Apenas uma foi feita fora dos estúdios: a com Carl Gustav Jung, que foi gravada em sua

própria casa, na Suíça. No filme, Jung fala sobre sua vida, infância, e sobre seus pais. Fala também sobre religião

e Deus. Em um momento, o repórter lhe pergunta: "O senhor acredita em Deus"? E Jung responde: "Agora?

Bem, isso é difícil de responder... Eu sei. Eu não preciso acreditar. Eu sei."

(http://psicologiafilmes.blogspot.com/2007/06/face-to-face-entrevista-de-jung-bbc.html em 10 de novembro de

2009).

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Assim, podemos identificar o que foi dito na direção tomada por Jung ao escrever o

livro, fundamentalmente balizada pelos sonhos que teve ao longo de suas vivências internas,

ao invés de basear-se em ―fatos‖ externos ou como também nomeado ―objetivos‖, esta é uma

identificação corriqueira feita pela nossa forma de pensar que separa o objetivo do subjetivo,

criando uma consistência da realidade objetiva e tornando tudo o que se refere à subjetividade

como relativo e provisório.

Encontramos esta perspectiva confirmada no próprio prólogo do livro de Jung/ Jaffè,

quando diz:

Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou.

Tudo o que nele repousa aspira a tornar-se acontecimento, e a

personalidade, por seu lado, quer evoluir a partir de suas condições

inconscientes e experimentar-se como totalidade a fim de descrever

esse desenvolvimento, tal como se processou em mim, não posso

servir-me da linguagem científica; não posso me experimentar como

um problema científico. (JUNG apud JAFFE, 1986, p. 5).

Esta é a ―confissão de fé de Jung‖ tal como apresentada em seu livro Memórias,

Sonhos e Reflexões - M S R39

. Logo em seu prefácio, ele prepara, assim, o leitor para o que

virá, lhe dando uma chave de interpretação para a leitura do livro. A ênfase, como pode

perceber, é dada no processo de ―realização do inconsciente‖, na transformação em vida e

acontecimento daquilo que vigora operacionalmente no ―inconsciente‖ que para Jung é

natureza. Assim, para descrever este acontecer não há uma linguagem conceitual ou

representacional que possa dar conta por esta ser abstrata, genérica e afastar-se, desta forma,

da experiência. Porém, como vemos neste mesmo livro, há uma preocupação permanente de

Jung em afirmar o seu trabalho como ciência, em fundamentar epistemologicamente aquilo

que faz, seja a partir de seus pressupostos metodológicos seja por seus pressupostos

históricos. Mas, como veremos, a ciência que faz não é uma ciência iluminista ou positivista;

Jung não trabalha com modelos representacionais apenas, nem com a linguagem como signo,

mas com uma perspectiva que muitas vezes descreve como fenomenológica e outras como

empírica, assim como pragmática (identificamos nele a influência tanto de Brentano quanto

de William James). Porém se inscreve efetivamente em uma concepção do conhecimento que

poderíamos nomear de ―romântica‖ ou anti-iluminista, hermenêutica ao invés de

representacional. Uma ciência romântica visaria à integração do formalismo da razão com a

experiência vivida, construir o conhecimento de forma histórica e singular, como um processo

39 Passarei a abreviar o nome do livro Memórias Sonhos e Reflexões como MSR, para fins de facilidade de

leitura.

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de contínuo devir, porém sem perder o rigor metodológico ou reflexivo. Para tal seria precisa

desfazer a dicotomia entre pensamento e experiência ou subjetividade e objetividade,

podemos encontrar este modo de construção do conhecimento em A. R. Luria, Oliver Sacks,

Stepher Jay-Gould, Gerome Bruner, Mircea Eliade, dentre outros. Jung pertencente a esta

orientação irá dar ênfase na integração das ciências da explicação e da interpretação, fazendo

uma ciência empírica, sendo vivencial e singular, mas não obtusa ou reducionista, mas não

reducionista ou presa à crença em uma objetividade dada como fundamento do ato de

conhecer ou do existir.

Os sábios clássicos consideram os acontecimentos a partir de suas partes constituintes.

Passo a passo, eles isolam as unidades e os elementos importantes até que eles possam

formular as leis gerais e abstratas. Ora, este método reduz a realidade vivente, com toda sua

riqueza de detalhes a esquemas abstratos. As propriedades da vida, apreendidas como um todo

são perdidas, por isto Goethe os deplorava quando escreveu: ‗Cinza é toda a teoria, mas é

sempre verde a árvore da vida‘.

Os sábios românticos possuem posições, atitudes e estratégias que se opõem em todos

os pontos a essa. Eles não tomam esta via do reducionismo que é a filosofia dominante do

grupo clássico. Os cientistas românticos não querem cindir a realidade em seus constituintes

elementares nem representar os acontecimentos concretos da vida através de modelos

abstratos que despojam os fenômenos de suas propriedades. Para esses românticos, preservar

a riqueza da realidade viva e da mais alta importância, e eles sonham então com uma ciência

que conserve esta riqueza. (A. R. Luria apud Sacks, Oliver in LURIA, A. L´homme dont le

monde volait em éclats. 1991/1994: p. 10)

Jung não é um ―sábio romântico‖ estritamente, como descreve Luria, pois ele não se

opõe ao racionalismo de uma ciência iluminista de uma forma obtusa, mas tenta integrar e

criar uma ciência que vá além das cisões. Assim, pretende criar uma ciência do singular, um

conhecimento metodologicamente apoiado em uma reflexão consistente e rigorosa,

sistematizar sem criar sistemas restritivos ou excludentes, para tal reconhece a necessidade de

uma linguagem que corresponda a esta tarefa e irá encontrar na metáfora e nos símbolos tal

linguagem40

.

40

Conforme Bornheim (2005, p.96) existe uma ciência romântica e esta opõe-se a toda e qualquer interpretação

racionalista da realidade, contrapondo o universo de Newton ao de Goethe e propondo olhar a natureza com os

olhos do artista. A natureza passa a ser entendida como um organismo vivo, demandando um saber qualitativo,

vivo, ao invés de ser um problema matemático.

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O que se é, mediante uma intuição interior e o que o homem

parece ser sub specie aeternitatis só pode ser expresso através de um

mito. Este último é mais individual e exprime a vida mais exatamente

do que o faz a ciência, que trabalha com noções médias, genéricas

demais para poder dar uma ideia justa da riqueza múltipla e subjetiva

de uma vida individual. (JUNG apud JAFFE, 1986, p. 5)

Porém o mito, tal como toda linguagem simbólica, possui uma narrativa constante e

geral, pertence a uma coletividade e por esta é partilhado, mas sem que tenha um sentido ou

uma ―certeza‖ dada a priori. Isto é, na linguagem mítica, como se origina de uma dimensão da

experiência anterior a consciência faz com que esta seja confrontada a cada momento que

tenta dar um sentido a este. Assim, os mitos, requerem que sempre e de novo a consciência se

dirija a eles, na busca de uma compreensão, e, isto, faz com que ela, a consciência, se renove

e modifique a cada vez que por eles é confrontada. Tal como toda linguagem simbólica, o

mito, mantendo-se como o mesmo, só assim, permanece na medida em que se atualizam de

formas diversas. Ele se singulariza a cada nova forma de compreensão, torna-se atuante e

vivo, enquanto se faz ponte para o imaginário e dimensões da experiência que estão além ou

aquém da consciência e da cultura. Uma ciência do singular lida com o problema da verdade,

da interpretação, do sentido e do devir, da criação e é para esta ciência e para esta forma de

pensar a psicologia que Jung nos orienta.

Assim, pois, comecei agora, aos oitenta e três anos, a contar o

mito da minha vida. No entanto, posso fazer apenas constatações

imediatas, contar histórias. Mas o problema não é saber se são

verdadeiras ou não. O problema é somente este: é aminha aventura a

minha verdade? (JUNG apud JAFFE, 1986, p. 5)

Vemos, pois, através das próprias palavras de Jung que o problema da vida singular de

cada um é uma questão de sentido e de um contar histórias, estas inacabadas, pois somente

podem ser contadas retrospectivamente. A verdade é sempre singular, pois é a linha de

narrativa integradora das vivências e valores que as articulam como uma unidade no mundo.

Singulares por serem dependentes, também, da experiência mais própria de cada um em

problematizar e viver o que possui de mais próprio e indizível, que encontra,

implacavelmente, diante da experiência do nascimento e do morrer. Singularidade com a qual

nos deparamos diante das questões sem resposta do viver, do amor e da morte. Assim, o que

podemos fazer e temos o dever de fazer é contar histórias, e quanto mais significativas e

consistentes para cada um, mais esta história integra a multiplicidade da experiência de

mundo de si e da totalidade da existência como uma unidade tensa e dinâmica.

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A partir destas histórias contadas por Jung, sem ficarmos presos a busca de uma

correspondência daquilo que nos é dado a um referencial objetivo, externo, o que caracteriza

o modo de fazer ciência baseado na busca de certeza e estabilidade, o que pretendo me utilizar

de algumas passagens da entrevista de Jung como sementes para refletir sobre ―algumas

recomendações para o futuro‖, ou para uma ―psicopatologia da vida social‖ em suas

considerações com algumas ideias básicas do romantismo. Como trata-se de uma das poucas

entrevistas dadas por ele, na verdade foram duas em toda sua vida, alguns anos antes de

morrer, me permito servir-me dela como um emblema daquilo que poderíamos chamar de

suas ―recomendações para o futuro‖ ou mesmo ―profissão de fé‖.

Dentre as muitas passagens da entrevista irei selecionar algumas, não por serem as

mais importantes ou impactantes mais por considerar como momentos de ―virada‖ em seu

discurso, dentro de minha perspectiva, e levando em conta o método fenomenológico de

análise de conteúdo na identificação dos núcleos semânticos, tal como sistematizado por

Amadeo Giorgio (1983).

São quatro passagens que irei tematizar, sucintamente:

a) ―Se você pensar conforme as linhas da natureza pensará de maneira adequada‖.

Para Jung não há uma dicotomia ontológica entre natureza e cultura ou homem e

mundo, isto vemos em todos seus escritos assim como em sua atitude em relação ao próprio

inconsciente. Para ele a consciência é um processo emergente do inconsciente, que se dá a

partir de uma série de modificações e iterações que permitam que algo surja diferenciado,

porém sem ser dissociado. Assim, o inconsciente é a matriz primordial da qual a consciência

emerge, em princípio como uma multiplicidade e posteriormente esta se integra em um

―complexo‖ que nomeia como complexo do eu consciência. Ambos se identificam, apesar de

Jung não os situar como o mesmo, em alguns trechos de seus escritos diz ser o ―complexo do

eu‖ o mesmo que a consciência em outros os descreves como correlatos ou sinônimos. Em

1916 Jung escreve um pequeno texto, ―Função Transcendente‖, em que tematiza seu

entendimento a respeito do inconsciente da seguinte forma. Diz que o que chama por

inconsciente coletivo é a mesma coisa que natureza, assim como a matriz a partir da qual este

é entendido como tal é a mesma de onde surge a ciência, a filosofia, a religião e a arte, mas

ele por ser psiquiatra e estar fazendo psicologia nomeia por inconsciente. Assim, seguir as

linhas da natureza é procurar corresponder de forma mais fidedigna e própria à experiência do

inconsciente, não o inconsciente pessoal, mas o coletivo, ou seja, a totalidade da natureza

presente em nós e a partir da qual nos constituímos.

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Para Jung, como fica claro, natureza não é somente a árvore ou os animais, não se trata

de natureza objetiva e física, tal como tratada pelas ciências da biologia, química ou física,

mas para entender sua intuição seria preciso que remontemos a origem do pensamento, aos

gregos e além deles, aos pensadores originários, que chamados de ―físicos‖ por pensarem a

―physus‖41

e problematizarem a questão da origem, do ―archê‖ de todas as coisas. Para este

―physus‖ era ―potência criativa‖, força de criação a partir da qual tudo vigorava e base de

sustentação de todas as coisas, pensar a ―physus‖ é pensar o ―archê‖, ou seja, a origem

criativa e o principio de todos os entes e da vida. Natureza é criação, diferenciando-se da ideia

de repetição ou fabricação, tão comum nas nossas formar de entendimento da vida. No ato de

criar não há molde ou fórmula dada, mas estes são criados na própria ação de forma original,

ou seja, primeira. Um exemplo trivial, vemos nas árvores, ao olharmos suas folhas, que não

há uma igual à outra nem em sua cor nem forma, assim a vida, tal como o inconsciente para

Jung, é marcada pela multiplicidade, pelo excesso, pela necessidade de criação.

A natureza, assim como o inconsciente, em Jung, é criação. Diferente de uma força

caótica e irracional que se oponha à vida ou a consciência é a matriz de criação destas. Assim,

possui uma lógica que é ―a-racional‖, que está fora da dicotomia entre razão e irracional, uma

lógica que Jung descreve, conforme entende as propriedades especiais da consciência e do

inconsciente, como paradoxal. Esta é a lógica do terceiro incluído, onde os opostos coexistem

de forma indissociada, a lógica do ―e‖, isto e aquilo e um terceiro termo, não redutível a

nenhum dos dois termos anteriores, desta forma Jung descreve o símbolo, e a função

transcendente, “tercio non datur”. Somos conduzidos para a compreensão do inconsciente

como totalidade, ou o horizonte da multiplicidade integrada de forma não representacional.

Natureza é o todo, todo que integra as possibilidades de existir e escapa a qualquer forma de

representação. Pensar segundo as linhas da natureza, teria, assim, como uma forma de sentido,

pensar a partir da totalidade, não de forma parcial ou a partir dos modos de constituição da

consciência, mas olhando a partir do inconsciente para esta e para as atitudes tomadas pelo

homem. Este olhar a partir da totalidade implica assim, em princípio, duas dimensões da

conduta, primeiro a dimensão existencial, pois olhar a partir do todo ou da natureza situa o

homem como criatura no mundo, não apenas mais como criador, por outro lado faz com que

tenha que suportar a tensão dos opostos, os conflitos e as frustrações, decorrentes deste

confronto e da relativização de sua perspectiva. A segunda dimensão é a questão ética que se

41 ―A natureza assume importância fundamental, sendo inteiramente subtraída à concepção mecanicista-

iluminista: passa a ser entendida como vida que cria eternamente, na qual a morte nada mais é do que um

‗artifício para ter mais vida‘ (Goethe). A natureza é grande organismo, inteiramente afim com o organismo

humano: é jogo móvel de forças que, operando intrinsecamente, gera todos os fenômenos...‖ (REALE, 1991,

p.20)

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encontra aí implicada, pois há uma ética do inconsciente que se diferenciando da moral

coletiva e da consciência faz com que o indivíduo tenha que constituí-la a partir da sua

singularidade, não mais atribuindo a responsabilidade por seus atos e decisões no outro ou nos

costumes. Esta é uma ética que podemos nomear como ―cru‖, pois não é determinada ou

matizada pelos gostos ou desgostos do ―eu‖. Resumidamente, pensar conforme as linhas da

natureza é pensar a partir da perspectiva do Unus Mundus, da interdependência de todos os

seres e de uma perspectiva sistêmica e não dissociada. Para tal é preciso que consigamos

suportar a tensão dos opostos e as frustrações, inerentes ao nos reconhecermos como criadores

e criatura, simultaneamente. Pensar conforme as linhas da natureza é pensar criativamente e

de forma singular, mas a partir do contexto de vida na qual estamos enraizados.

b) ―O homem não pode viver uma vida nadificada, de forma comunal e indiferenciada‖.

Como dito anteriormente, toda a psicologia de Jung se orienta em função de um

desenvolvimento singular do indivíduo, o que ele nomeia por ―processo de individuação‖.

Este seria o processo através do qual o homem torna-se um indivíduo ou inteiro, na medida

em que estabelece a integração entre consciente e inconsciente e a realização do Selbst. Por

Selbst devemos entender, conforme a origem linguística do termo, próprio, singular.

A partir disto na medida em que nos perdemos na consciência coletiva e na

indiferenciação perdemos exatamente aquilo que, para Jung, nos torna singulares, nossa

história mais própria, deixamos de ir em direção a questão mais fundamental de cada um de

nós, o que nos torna singular, porque existimos, quando há tantas forças que levam em

direção oposta, o que faz com que apesar de sermos seres coletivos, pertencentes a um

mundo, possuamos algo que faz com que sejamos diferentes uns dos outros, de tal forma que

na medida em que vou em direção a isto mais e mais encontro somente o silêncio do mistério

do existir. Diante destas questões nos diz Jung em MRS que quando se ouve este chamado, do

mistério de cada ser individual para tornar-se aquilo que é de forma mais própria e singular, e

procura-se permanecer identificado na coletividade isto torna-se fonte de patologias e

neuroses, pois faz com que vivamos cindidos e alienados da fonte singular de nossas vidas.

Porém, não devemos pensar que Jung seja contra o social ou promulgue uma

psicologia do individualismo ou solipsista, pelo contrário, pois na medida em que o homem se

realiza através do ―processo de individuação‖ ele estreita relações e integra o inconsciente e a

consciência, promovendo, assim, sua constituição como uma totalidade. O ―processo de

individuação‖ é descrito como um ir em direção aquilo que se é de forma mais própria, isto é,

ir em direção a matriz da própria existência, ao inconsciente coletivo, como fonte a partir da

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qual toda a vida vigora. Assim, na medida em que nos singularizamos, e quanto mais

singulares e próprios nos tornamos, mais diferenciados, mas por outro lado, mais enraizado no

inconsciente como totalidade e mais aberto para a diversidade e multiplicidade da vida se

torna, permitindo que os paradoxos surjam em toda sua força criativa. Na medida em que nos

abrimos como ser que habitamos nesta matriz primordial realiza a experiência do Unus

Mundus, a consciência da totalidade da vida como unitária. Passamos a reconhecer a vida que

se apresenta como o grande outro, não apenas como o outro em mim, mas o outro fora de

mim, isto permite a Jung dizer: não há ―processo de individuação‖ sem o outro — aquele que

traz a minha sombra e a totalidade da experiência a mim.

Na medida em que nos tornamos singulares, vivemos a nossa vida a partir de uma

medida que é própria a cada um, isto é, passamos a nos ocupar de nós próprios ao invés de

nos perdermos nas vidas alheias. Uma forma deste processo de dar é pelo recolhimento das

projeções que constantemente fazemos sobre os outros, permitindo que estes possam existir

em suas singularidades e de forma mais estreita a nós.

Construímos, assim, uma morada ou um ―ethos‖, que implique o indivíduo por inteiro

e faça com que o outro seja levado a ser a sua morada, eticamente, no mundo e em sua própria

vida, de maneira indissociável42

.

c) Quando perguntado sobre alguma recomendação para os idosos, diz: ―Viva na preocupação

do dia de amanhã, pois para o inconsciente não há fim‖.

Como vimos, o inconsciente para Jung possui algumas características especificas que

podem ser descritas como segue.

O inconsciente é devir, ou seja, ele é criação e movimento. Esta característica é

descrita pelo princípio finalista que rege o inconsciente, para Jung, isto encontramos de forma

mais explícita e tematizada nos livros ―Símbolos da Transformação‖ e ―Energia Psíquica‖,

onde desenvolve o modelo energético e finalista de forma a se contrapor ao causal e

hidráulico/ mecanicista. Assim, enquanto a consciência baseia-se em princípios deterministas

para obtenção de segurança e estabilidade o inconsciente funciona a partir de uma perspectiva

não determinista, mas que poderíamos nomear, tal como faz Jung, pelo princípio da eficácia e

sincronicidade. Desta forma o que importaria é o sentido dado à experiência, sendo que este

42

Esta etimologia de ética é oriunda da forma mais arcaica de escrita da palavra, com eta ou ―e‖ longo ao invés

de epsilon ou ―e‖ breve. Ética provém, assim, de morada, local em que se alimenta, manjedoura, somente

posteriormente adquirindo o sentido de ―estudo das regras de conduta social‖ ou sinônimo de moral. Vemos este

uso em Nietzsche, Heidegger, Jung e em um dos livros de Leonardo Boff, ―Saber Cuidar‖ em que emprega esta

etimologia arcaica de ética.

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não é fruto de um acúmulo de experiências ou dados, mas sim um acontecimento, um sentido

é espontâneo, por se fazer a partir de condições dadas no momento em que há uma

reorganização do campo da experiência e da consciência. Como diz um filósofo, se nós

apreendêssemos com a nossa experiência não faríamos tantas guerras ainda.

Do ponto de vista clínico isto é descrito através da pergunta ―para quê?‖ ao invés de

―por quê?‖, a primeira seria a pergunta típica da perspectiva junguiana, pois ela visa o sentido

para o qual aponta o inconsciente. Assim, diz Jung em uma passagem de ―Psicologia da

Religião Ocidental e Oriental‖: ―Graças a Deus ele se tornou neurótico, pois somente assim

para olhar par si‖.

Como atividade a tarefa da consciência seria dar forma a essa necessidade de criação

que é nativa do inconsciente, dar direção à força do devir e se permitir levar por ela, ao invés

de tentar controlá-la e inibi-la. Viver como se não houvesse amanhã, significaria, assim, viver

para o amanhã, não para o ontem ou o hoje, mas viver a vida com projetos e sentido, até seu

término. Término este certo e inevitável para a consciência, mas não para o inconsciente, que

é regido pelo tempo da eternidade e do acontecimento, tempo da criação e do devir.

d) Ao final da entrevista, a fala de encerramento: ―O homem não pode viver uma vida sem

significado‖.

Como encontramos no prólogo de MSR, tudo o que podemos fazer é contar histórias,

que sejam significativas e traduzam o mito pessoal de cada um. Desta forma, podemos dizer

que a psicologia junguiana é uma psicologia que se baseia no sentido, ou numa perspectiva

hermenêutica, ou seja, no entendimento que a vida singular de cada um é uma história que se

constrói na medida em se vive. Isto se encontra descrito na própria noção de ―processo de

individuação‖, onde ao problematizar a experiência da finitude e da questão do sentido da

vida de cada um não há uma palavra coletiva ou uma linguagem coletivizada que possa ser

usada para descrevê-la. Assim, Jung faz uso constantemente de metáforas e imagens,

consideradas por ele como a forma mais rigorosa e apropriada para descrever e aproximar-se

do inconsciente. Mais rigorosas por permitirem que vigore todo seu mistério, criatividade e

força, ou seja, permite que o inconsciente modifique o sentido das mesmas e assim as

transforme e recrie na medida em que se tornam ponte e abertura para sua presença.

Em outro aspecto, nessa afirmação, encontramos, também, a perspectiva finalista

presente no modelo psicológico junguiano, pois na medida em que a existência particular de

cada um torna-se uma narrativa e um problema hermenêutico, ou seja, de significado, não há

nada dado, assim, a priori — de forma acabada e fechada. Não há certezas, somente,

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interpretações, histórias a serem contadas, onde subjetividade e objetividade, mundo interno e

mundo externo, individuo e coletivo encontram-se indissociavelmente implicados. No plano

do conhecimento só haveria objetividade na medida em que a subjetividade estivesse

implicada, ou como diz Jung subjetivo e objetivo é uma questão de ponto de vista do

observador.

Viver com sentido é, por conseguinte, viver lançado para diante, olhando para as

possibilidades que a vida ainda disponibiliza para cada um, seguir o fluxo do inconsciente e

situar a consciência a partir de sua totalidade43

.

Todas estas quatro passagens encontram-se interligadas e são coerentes na medida em

que as contextualizamos e interpretamos a partir do todo da obra de Jung. Aqui ressalto

alguns aspectos do seu pensamento, que ficam para nós ao longo de sua entrevista e pode ser

compreendido como alertas contra o que considera condições etiológicas das nossas doenças

contemporâneas.

Este adoecimento seria, assim, fruto de uma dissociação, que se dá em quatro níveis e

faz com que nos percamos e vaguemos pelo mundo sem alma. No primeiro nível, uma

dissociação entre natureza e cultura, homem e mundo, onde aquele se vê apenas como criador

ou como criatura, e o mundo como objeto e realidade desprovida de vida. Segundo, uma

dissociação do homem consigo mesmo, pela massificação e alienação de sua singularidade

criativa. Terceiro, esquecimento das forças criativas do psiquismo, que visto apenas como

depósito ou estrutura sobredeterminante da realidade da consciência é entendido apenas de

forma causal e adaptativa. Por fim, cisão com o todo; com o mistério da existência que faz

com que procuremos o sentido do existir de forma acabada e pronta ou deixemos de acreditar

na sua possibilidade, este mistério é descrito como o numinoso, do qual fugimos a cada

instante, nos embotando com receitas prontas, evitando assim conflito e tensões insolúveis,

porém que nos levam a ir além de nossa condição cotidiana.

Podemos dizer, assim, que a cisão é o princípio etiológico básico de todas as nossas

patologias. Haveria uma separação necessária, inevitável como forma de diferenciação da

consciência e singularização, pois como diz o mito é necessária para a criação de uma

consciência diferenciada, porém esta diferenciação é distinta de um corte ou uma ruptura,

43

Aqui poderíamos escrever todo um ensaio sobre a relação entre Stimmung dos românticos e o stimmen a que se

refere Jung quando fala do ―processo de individuação‖, este ele traduz como ―vocação‖ não no sentido

confessional, mas como um ―corresponder a um chamado da consciência‖. Para os românticos um dos sentidos

seria o afinar-se do homem com a natureza ou da mão a ferramento, significando um corresponder e partilha;

vale lembrar que não estamos lidando com conceitos, assim estes termos são praticamente impossíveis de serem

traduzidos.

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onde haveria a contraposição radical de duas instancias distintas e incomunicáveis, o

consciente e o inconsciente.

Mas esta diferenciação torna-se um esquecimento que faz com que percamos o contato

com as forças criativas de vida, pela atitude antagônica produzida pela consciência em relação

à experiência do inconsciente.

O homem é ―fonte de todo mal vindouro‖, por isto precisamos de ―mais e mais

psicologia‖, como diz Jung na metade da entrevista. De forma correlata podemos dizer

também que o homem é fonte de todo o bem vindouro, desde que perceba isto. Para tal,

precisamos ainda de muita psicologia e o problema desta não é do horizonte da cura ou da

doença, mas sim do sentido que se realiza na experiência do humano.

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NOTAS SOBRE A PRESENÇA DO ZARATUSTRA DE NIETZSCHE NOS

ESCRITOS DE JUNG

Luiz Celso Pinho44

Resumo

Este estudo tem por objetivo fornecer uma visão panorâmica de algumas

considerações feitas por Jung a respeito de Zaratustra desde os seus primeiros escritos.

Pretendemos recorrer à leitura junguiana no intuito de assinalar como a filosofia de Nietzsche

é avaliada a partir do referencial da Psicologia Analítica. No entanto, priorizaremos elementos

de cunho simbólico e mitológico em detrimento do olhar clínico.

Palavras-chave: Assim falou Zaratustra, análise psicológica junguiana, referências

simbólicas e mitológicas.

Abstract

This paper intends to supply a panoramic vision of some Jung´s ideas regarding

Zarathustra since his very earliest writings. Our aim is to demonstrate how Nietzsche's

philosophy is evaluated for the referential system of the Analytical Psychology. However, we

will give priority to elements of mythological and symbolic nature at the expense of a clinical

point of vie.

Key-words: Thus Spoke Zarathustra, Jung‘s psychological analysis, symbolic and

mythological references.

OBRA E PERSONAGEM

Basta uma rápida leitura em algumas páginas de Assim falou Zaratustra para

constatarmos que estamos diante de um texto que destoa do material tradicionalmente

encontrado no âmbito da História da Filosofia. Seu estatuto inovador se faz notar desde o

subtítulo – ―um livro para todos e para ninguém‖ –, onde já esbarramos em obstáculos lógicos

e práticos, pois, independente da nítida contradição entre ―qualquer um‖ e ―nenhum‖, trata-se

de uma advertência que nos obriga a refletir a respeito de quem está devidamente habilitado a

ler, entender e tirar conclusões das palavras que se seguem. Mas essa é apenas uma

dificuldade preliminar. Heidegger, no ensaio ―Quem é o Zaratustra de Nietzsche?‖, por

exemplo, nos alerta que encontraremos uma ―linguagem meio cantante, meio gritante, ora

temperada, ora tempestuosa, quase sempre elevada, às vezes dura e chã‖ (HEIDEGGER,

2008, p. 87). Pretende, com isso, ressaltar que emana do livro uma fala capaz de suscitar as

44

Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da UFRRJ / Pesquisador APQ-1 da FAPERJ.

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mais díspares reações, devido ao tom irregular e mesmo iconoclasta com que se apresenta sua

mensagem filosófica. Além disso, como salienta Roberto Machado, em Zaratustra: tragédia

nietzschiana, os discursos proferidos pela personagem-chave da obra, momento de profunda

inflexão do pensamento de Nietzsche, conjugam uma ―forma poética‖ com uma ―forma

narrativo-dramática‖ ao empregarem um estilo que tanto alia a reflexão filosófica à criação

artística quanto guardam ―grande proximidade com o romance de aprendizado, ou de

formação‖, no qual culmina na ―descoberta de um segredo‖ (MACHADO, 1997, p. 30). Para

muitos intérpretes – e, em determinadas passagens, o próprio Jung – essa literatura singular se

reduz a mera poesia, o que implica, pelo menos sub-repticiamente, uma desqualificação de

seu teor conceitual. Entendemos, ao contrário, que esse relato une, de forma provocante e

indelével, o que diz respeito à esfera da Arte, do Pensamento e da Vida. E o que é, então,

revelado através das páginas de Assim falou Zaratustra? Apenas a resposta parece frugal: a

necessidade de superar a si mesmo, a coragem de tornar sagrado todos os acontecimentos, um

olhar agudo sobre o que é a existência, em suma, dar-se conta do verdadeiro significado de

viver. Independente dos debates suscitados pelo estado de saúde de Nietzsche, iremos

priorizar nas análises junguianas alguns aspectos que retratam a dimensão simbólica da

trajetória de Zaratustra, notadamente em relação ao que é dito sobre Deus e a formação de

uma individualidade humana.

UMA LONGA HISTÓRIA

O primeiro ―encontro‖ com Zaratustra ocorre quando Jung tinha vinte e três anos.

Logo ao ingressar na universidade, proferiu algumas palestras (quatro, para ser exato) na

associação de alunos da qual fazia parte. Numa delas – ―Pensamentos sobre a natureza e o

valor da investigação especulativa‖ – Jung faz três menções a Nietzsche (cf. BISHOP, 1999,

p. 206). Uma delas se remete a Zaratustra, através da bela imagem evocada nos discursos do

Prólogo: ―É preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante‖

(NIETZSCHE, 1989, p. 34).

Em seguida, aos vinte e sete anos, na sua Tese de Doutorado em Medicina – ―Sobre a

psicologia e a patologia dos supostos fenômenos ocultos‖ (1902) – relata um impressionante

evento relacionado ao livro Assim falou Zaratustra, no que ficou conhecido como um

episódio de criptomnésia, ou seja, de ―recordação escondida‖. Trata-se da notável relação

entre uma passagem de Zaratustra – o capítulo ―Dos grandes acontecimentos‖ – e o relato

feito por Justinus Andreas Christian Kerner (1786-1862): poeta, médico e estudioso de

ocorrências sobrenaturais e magnetismo animal, além de fundador do periódico ―Folhas de

Prevorst‖ (1831-1837), que abordava justamente esses assuntos pouco comuns.

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Jung recorda, no ensaio ―Chegando ao inconsciente‖, que abre a coletânea elaborada

por ele, O homem e seus símbolos:

Eu mesmo encontrei um exemplo fascinante deste processo, no

livro de Nietzsche, Assim falou Zaratustra, onde o autor reproduz

quase literalmente um incidente relatado num diário de bordo, no ano

de 1686. Por mero acaso, eu havia lido um resumo desta história num

livro publicado em 1835 (meio século antes do livro de Nietzsche).

Quando encontrei a mesma passagem em Assim falou Zaratustra

espantei-me com o estilo, tão diverso do de Nietzsche. Convenci-me

de que também Nietzsche lera aquele antigo livro, apesar de não lhe

ter feito qualquer referência. Escrevi à sua irmã, que ainda vivia

naquela ocasião, e ela me confirmou que, na verdade, o livro fora lido

tanto por ela quanto pelo irmão, quando este tinha onze anos.

Verifica-se, pelo contexto, que é inconcebível pensar que Nietzsche

tivesse qualquer ideia de estar plagiando aquela história. Creio que,

simplesmente, cinquenta anos mais tarde, a história entrou em foco na

sua consciência (JUNG, s. d., p. 37).

Eis a passagem à qual se refere:

os quatro capitães e um comerciante, Mr. Bell, desembarcaram

na ilha do Monte Stromboli para caçar coelhos. Às três horas reuniram

o equipamento para regressar a bordo quando, para seu indizível

espanto, viram dois homens voando velozmente no ar em sua direção.

Um estava vestido de preto, outro de cinza. Passaram perto deles em

grande velocidade, e para ainda maior susto seu desceram na cratera

do terrível vulcão. Reconheceram-nos como dois conhecidos de

Londres (KERNER, Blätter aus Prevorst, vol. IV, p. 57, ―Extrato de

Significação Amedrontadora‖ apud JUNG, s. d., p. 311, nota).

E o caso de criptomnésia em Assim falou Zaratustra:

Ora, no tempo em que Zaratustra se achava nas ilhas bem-

aventuradas, aconteceu que um navio deitou âncora na ilha em que há

o vulcão; e sua tripulação desceu a terra para caçar coelhos. Pelo

meio-dia, porém, quando o comandante e seus homens estavam

novamente reunidos, viram repentinamente um homem rumar para

eles no ar, e uma voz disse distintamente: ―É chegado o tempo! É mais

que chegado o tempo!‖. Mas, quando o vulto se achou no ponto mais

próximo deles – passava voando velozmente, como uma sombra na

direção do vulcão –, reconheceram, com grande alvoroço, que era

Zaratustra; pois todos, menos o próprio comandante, já o tinham visto

antes e o amavam como ama o povo: ou seja, unindo, em partes

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iguais, amor e medo. ―Olhai!‖, disse o velho timoneiro, ―‗lá vai

Zaratustra para o inferno!‖ (NIETZSCHE, 1989, p. 142).45

Aos trinta e nove anos ocorre um diálogo mais consistente. E Jung se refere a ele no

Seminário dedicado ao estudo da principal personagem nietzschiana: ―Eu estudei [Assim falou

Zaratustra] muito cuidadosamente e fiz inúmeras anotações‖ (JUNG, 1997, vol. I, p. 259

apud Bishop, 1999, p. 215).46

O derradeiro ―encontro‖ se dá justamente no Seminário

dedicado ao Zaratustra de Nietzsche.

O SEMINÁRIO SOBRE ZARATUSTRA

Entre maio de 1934 e fevereiro de 1939, ou seja, durante vinte e sete meses, sendo que

ocorreram diversas interrupções, Carl Gustav Jung realizou um ciclo de oitenta e seis

conferências a respeito da personagem central de Assim falou Zaratustra. Essa atividade

desenvolvida com um grupo seleto de alunos foi proferida em inglês. E, na época, deu origem

a uma edição mimeografada, de uso reservado, organizada em dez volumes por Mary Foote

(um décimo primeiro continha apenas notas). Em 1988, nos Estados Unidos, todo o material

foi editado, por James Louis Jarrett, em dois volumes, totalizando 1578 páginas.47

Este ainda

elaborou, nove anos depois, uma versão resumida de 393 páginas.48

A iniciativa de Jung de se deter meticulosamente, aos cinquenta e nove anos, no

Prólogo e nos três primeiros segmentos de Assim falou Zaratustra, cuja interrupção (por volta

de março de 1939) se deu em função do advento da Segunda Guerra Mundial, mais

exatamente na passagem intitulada ―De velhas e de novas tábuas‖ (restando ainda quatro

capítulos para encerrar a Terceira Parte). Deste modo, a Quarta e Última Parte não pôde ser

devidamente abordada.

As conferências sobre Assim falou Zaratustra foram quase que imediatamente

precedidas pelo exame minucioso, por dois anos e meio, do ―Seminário das visões‖, que tinha

por objetivo ―mostrar como os desenhos de Christiana Morgan – que, inclusive, à época,

passava por um processo de análise com Jung – continham material simbólico e arquetípico

que refletia os modos pelos quais o inconsciente coletivo se revelava para essa paciente em

particular‖.49

Jung, de certa forma, aplicou o mesmo procedimento interpretação aos discursos

45

Trata-se de um dos últimos capítulos da Segunda Parte: ―De grandes acontecimentos‖. 46

Essa passagem não se encontra na versão resumida do Seminário. 47

Jung, C. G. Nietzsche’s Zarathustra: notes of the seminar given in 1934-1939. 2 vols. Editado por James L.

Jarrett. Princeton/NJ: Princeton University Press, 1988. 48

Jung, C. G. Jung’s seminar on Nietzsche’s Zarathustra. Princeton/NJ: Princeton University Press, 1997. O

presente estudo tomou como referência essa segunda edição. 49

Deirdre, Bair. Jung: uma biografia. 2 vols. Tradução de Helena Londres. São Paulo: Globo, 2006, p. 52

(Segundo Volume).

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de Zaratustra. Mas também advertiu, logo em suas primeiras palavras, seus ouvintes: ―Se

consideram que Zaratustra é tão fácil como aquelas visões, estão muito enganados, é um

terrível emaranhado [hell of a confusion] de extraordinária dificuldade‖ (JUNG, 1997, p. 3).

Contudo, outra característica importante da análise psicológica junguiana consiste em

homogeneizar o que diz respeito à existência pessoal do Autor e o modo como se conduz a

Personagem central do texto. Daí se poder considerar que ―encontramos nos escritos de Jung

as mais importantes ideias e os princípios psicológicos necessários para a compreensão da

personalidade de Nietzsche‖ (MORENO, 1974, p. 216 apud BISHOP, 1995, p. 4).50

Essa

postura fica patente em diversas passagens. Eis alguns exemplos (entre inúmeros que se

podem localizar na edição completa): ―Nietzsche não teria condição de fazer diferença entre

ele mesmo e Zaratustra‖ (Conferência de 09 de maio de 1934, p. 27); ―Nietzsche se identifica

amplamente com a figura de Zaratustra‖ (Conferência de 05 de maio de 1937, p. 258); ―Em

sua solidão [Nietzsche] (...) tornou-se Zaratustra‖ (Conferência de 26 de outubro de 1938, p.

331); ―Ninguém nunca tem certeza se quem fala a Zaratustra ou Nietzsche‖ (id., p. 331). Ora,

o que nos chama atenção é que tal princípio interpretativo não diferencia o ―Nietzsche

personagem psicológico‖ da ―leitura de Zaratustra‖ (PARKES, 1999, p. 221). No entanto,

como pretendemos situar o Seminário a partir de um referencial mitológico, priorizaremos

aspectos simbólicos e mesmo oníricos, ao invés de nos determos nas considerações sobre as

tendências neuróticas, e mesmo psicóticas, detectadas nos escritos nietzschianos.

Inegavelmente, em alguns momentos, o tom do Seminário retrata um fascínio por

Zaratustra. Aliás, é sabido que, desde jovem, Jung relata a sensação de que era na verdade

duas pessoas distintas. Essa experiência será traduzida, na maturidade, como o embate entre

uma personalidade que interage com outras personalidades e uma personalidade que

representava o Outro de si mesmo, isto é, o Inconsciente. Através dessa dinâmica se

estabelece o que Jung entende por ―processo de individuação‖. Desta forma, cada capítulo de

Assim falou Zaratustra não apenas é entendido como retratando situações oníricas como

também etapas de uma experiência arquetípica, onde invariavelmente Jung estabelece

correlações com antigos mitos. A personagem de Zaratustra designa, nesse sentido, o Outro

de Nietzsche. Em termos junguianos, como assinala Bishop, ―a dinâmica psicológica

subjacente no Zaratustra retrata a enantiodromia, ou seja, a emergência de opostos

inconscientes numa sequência cronológica‖ (BISHOP, 1999, p. 216). Sendo que, ao contrário

de Jung, Nietzsche teria falhado em identificar e solucionar o dilema da ―dupla

50

Moreno, Antonio. Jung, Gods, and Modern Man. Londres: University of Notre Dame Press, 1974 (Capítulo:

―Nietzsche and Jung‖).

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personalidade‖, perdendo, pois, a capacidade de dialogar com o seu tempo, o que explicaria,

na perspectiva da Psicologia Analítica, seu colapso mental aos quarenta e quatro anos (o que o

levou, inclusive, a permanecer mais de uma década praticamente isolado em casa, até a sua

morte).

No entanto, o elemento que talvez melhor colabore para enriquecer a inteligibilidade

de Assim falou Zaratustra consista em avaliar determinados temas do livro a partir de um

referencial simbólico. Em sua autobiografia intelectual – Ecce homo –, Nietzsche declara, a

respeito de Zaratustra: ―ele viu mais longe, quis mais longe e pôde mais longe do que

qualquer homem‖, antes dele ―não se sabe o que é altura, o que é profundidade, sabe-se

menos ainda o que é a verdade‖ (NIETZSCHE, 1986, p. 130). A grande desmesura de

Nietzsche talvez não resida na ideia de que a ―verdadeira verdade‖ emana dos discursos de

Zaratustra (sábios e profetas já reivindicaram tal feito), mas que ele encarna a necessidade de

operar uma metamorfose de si mesmo, de ir além de suas próprias fronteiras. E, para tanto,

faz-se necessário criar novos valores. Isso requer, do ponto de vista conceitual, a Morte de

Deus.

Ambos – Jung e Nietzsche – concordam que o Cristianismo representa uma sociedade

fadada a perecer. Zaratustra considera a Morte de Deus condição sine qua non para o resgate

do valor da Vida, para a saída do estado de decadência no qual a civilização mergulhou. Jung

constata inclusive o quase desaparecimento da imagem de Deus nos relatos oníricos de seus

pacientes. Sendo que numa carta a Oskar Schmitz, em 1923, declara: ―Precisamos de novos

fundamentos. Devemos escavar profundamente até o primitivo que habita em nós. Somente

deixando de lado o conflito entre o Homem civilizado e o Bárbaro germânico surgirá o que

precisamos: uma nova experiência de Deus‖ (JUNG, 1973, p. 39-40 apud BISHOP, 1999, p.

222).51

Daí Jung fornecer a seguinte explicação na Conferência de 16 de maio de 1934:

Quando Nietzsche declara que Deus está morto,

instantaneamente ele começa a se transformar. Pouco importa se com

essa declaração ele não é mais cristão ou se tornou um ateu. Ele

imediatamente entra no processo [do] arquétipo do renascimento, pois

esses poderes vitais em nós, que chamamos ―Deus‖, são poderes de

auto-renovação, poderes de mudança eterna (JUNG, 1997, p. 37).

51

Jung, C. G. Letters (1906-1950). Volume 1. Editado por Gerhard Adler e Aniela Jaffé. Tradução do alemão

de R.F.C. Hull. Londres: Routledge/Kegan Paul, 1973.

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De fato, Zaratustra passa ao longo de sua sinuosa trajetória por diversas

transformações – e essa descrita acima retrata uma delas. O que entra em choque com a

filosofia nietzschiana é que Jung estabelece uma correspondência entre o conceito de Self – a

totalidade do Homem – e o conceito de Deus. Daí a grande relevância que ele atribui ao

ditado medieval: ―Deus é um círculo cujo centro está em toda parte e a circunferência em

nenhum lugar‖ (BISHOP, 1999, p. 227). O que o leva a afirmar: ―O Self não é apenas o

centro, mas também a circunferência que [abrange] tanto a consciência quanto o inconsciente‖

(ib.).

NOTA FINAL

Neste breve e preliminar estudo procuramos situar o fenômeno humano a partir de

duas vertentes. De um lado, uma Antropologia Filosófica, erudita, abrangente, calcada em

mitos e símbolos. De outro, uma Filosofia do Martelo que despedaça as noções de Unidade,

Identidade, Substância, Ser, Causalidade, que nos desperta do sonho em que vivemos para nos

levar à afirmação incondicional da Vida. Sem dúvida, Jung e Nietzsche compartilham do

imperativo de vasculhar as profundezas do ser humano. Mas esse alicerce comum se desfaz

quando nos damos conta que a proposta de compreender a força vital que nos constitui através

do aspecto criativo do Inconsciente vai de encontro a um pensamento calcado na convicção de

que o homem é algo que deve ser superado, ou ainda, que não passa de um ―átomo fictício‖.

Uma analogia talvez permita melhor visualizar a incompatibilidade que há entre o dois:

coloquemos, lado a lado, a organização estruturada da Mandala e a dispersão caótica do

Fractal. Duas imagens cujos pontos e linhas dificilmente se sobrepõem, apesar de serem

formas de expressar a dinâmica da Vida. Porém, enquanto uma converge para um ―centro‖, a

outra mais se parece com aquela estrela dançante sem rumo na imensidão a que o Prólogo de

Assim falou Zaratustra se refere.

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