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Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Instituto de Educação
Departamento de Psicologia
Reitor: Ricardo Motta Miranda
Vice-Reitora: Ana Maria Dantas Soares
Pró-Reitora de Ensino de Graduação: Nídia Majerowicz
Pró-Reitor de Extensão: José Claudio Souza Alves
Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-graduação: Aurea Echevarria
Diretor do Instituto de Educação: José Henrique dos Santos
Chefe do Departamento de Psicologia
Silvia Maria Melo Gonçalves
Coordenador do Curso de Psicologia
Denis Giovani Monteiro Naiff
EDITORIAL
A QUESTÃO DO CORPO (Seção Especial: Kairós 2010)
Dando continuidade ao trabalho que desenvolvemos desde 2007, apresentamos mais um
Boletim Interfaces da Psicologia da UFRRJ, publicação voltada para documentar os
seminários promovidos pelo departamento de Psicologia da mesma instituição, assim como
publicar trabalhos no mesmo espírito interdisciplinar de nossos eventos. Centrado no caráter
multifronteiriço da Psicologia, nosso Boletim tem se dedicado à temas onde a interlocução
com outras disciplinas é uma necessidade. É assim que apresentamos nosso quarto volume,
dedicado à questão do corpo. A reflexão sobre o papel do corpo na constituição da psique,
cognição, comportamento, subjetividade ou como queiram denominar o objeto da Psicologia
retomou força nos últimos anos. O impacto, para muitos indesejado, do avanço contínuo do
conhecimento neurocientífico para o conhecimento psicológico não pode mais ser
negligenciado por pesquisadores. A Filosofia da Mente ganhou papel central na Filosofia
contemporânea, e nesta, o problema da relação mente-corpo é o problema central. Na
Psicologia Filosófica, a obra de Merleau-Ponty tem sido redescoberta, e considerada relevante
teoricamente por muitos psicólogos. Na psicoterapia, a ciência tem constatado que
intervenções meramente corporais como atividade física e uso de psicofármacos são eficientes
para a melhora consistente dos sintomas de vários quadros psicopatológicos. Neste número,
apresentamos uma série de avaliações teóricas sobre a questão do corpo na Psicologia,
centradas principalmente na interlocução entre a obra psicológica de Jung e a obra filosófica
de Nietzsche. Outras ideias de autores como Merleau-Ponty, Freud e Heidegger são avaliadas,
oferecendo ao leitor algumas novas considerações sobre o diálogo entre a Psicologia e a
Filosofia nesta questão fundamental.
Gustavo Arja Castañon
Professor Doutor da UFJF
Nota: O conteúdo de cada resumo ou artigo é da responsabilidade dos autores, assim
como, o material divulgado também foi disponibilizado pelos respectivos palestrantes.
EDITOR
Professor Doutor Nilton Sousa da Silva
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ
COMISSÃO EDITORIAL
Professora Doutora Cecilia Raquel Satriano
Universidad Nacional de Rosario – UNR, Argentina
Professora Doutora Elena Moraes Garcia
Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ
Professor Doutor Flávio Pietrobon Costa
Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC
Professor Doutor Gustavo Arja Castañon
Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF
Professor Doutor Gustavo Corrêa Matta
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – FIOCRUZ
Professor Doutor José Kalunsiewo Nkosi
Universidade Agostinho Neto – UAN, Angola
Professor Doutor Luiz Celso Pinho
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ
Professor Doutor Paulo Guilherme Domenech Oneto
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Professor Doutor Roberto Novaes de Sá
Universidade Federal Fluminense – UFF
Professor Doutor Vitor José da Conceição Teixeira Amorim Rodrigues
Instituto Superior de Psicologia Aplicada – ISPA, Portugal
Professor Doutor Walter Melo Junior
Universidade Federal de São João Del-Rei – UFSJ
Projeto Gráfico e Diagramação: Vicente da Rocha Lima
Revisão de Texto e Ortográfica: Andressa Lorena Medeiros Miron
Revisão Gráfica e Diagramação: Juliana Fontenele Silva
Sumário
EDITORIAL…..………………………………………………………..……………………..2
O CORPO, A TERRA E O SENTIDO ÉTICO E ECOLÓGICO DA EXISTÊNCIA:
COLÓQUIO DA FILOSOFIA COM A PSICOLOGIA
Luiz José Veríssimo. .................................................................................................................. 5
A CRIAÇÃO DO GOSTO DA LEITURA: O CORPO MEDIANDO A FORMAÇÃO
DO SUJEITO LEITOR
José Ricardo da Silva Ramos ................................................................................................... 18
NIETZSCHE E A NOBREZA DOS INSTINTOS CORPORAIS
Luiz Celso Pinho ...................................................................................................................... 37
LINGUAGEM E CORPOREIDADE: UMA PERSPECTIVA NEURODINAMICA
(PÓS-REICHIANA)
José Ignacio Tavares Xavier ..................................................................................................... 48
OS GREGOS E JUNG
Alvaro de Pinheiro Gouvêa ...................................................................................................... 68
JUNG E A FILOSOFIA DA ALMA
José Carlos Leal ........................................................................................................................ 78
CIÊNCIA ROMÂNTICA E O PENSAMENTO JUNGUIANO
Maddi Damião Jr. ..................................................................................................................... 86
NOTAS SOBRE A PRESENÇA DO ZARATUSTRA DE NIETZSCHE NOS
ESCRITOS DE JUNG
Luiz Celso Pinho ...................................................................................................................... 99
A Questão do Corpo
Boletim Interfaces da Psicologia da UFRRJ - ISSN 1983-5507 Vol. 3, Nº. 1, Janeiro - Junho de 2010 5
O CORPO, A TERRA E O SENTIDO ÉTICO E ECOLÓGICO DA EXISTÊNCIA:
COLÓQUIO DA FILOSOFIA COM A PSICOLOGIA.
THE BODY, THE EARTH AND THE ETHIC AND ECOLOGIC SENSE OF THE
EXISTENCE: DIALOGUE BETWEEN PHILOSOPHY AND PSYCHOLOGY.
LUIZ JOSÉ VERÍSSIMO - [email protected]
Psicólogo (PUC/RJ) e Doutor em Filosofia (UERJ), professor de Psicologia na Universidade
Veiga de Almeida (UVA), membro do Laboratório Social do Mestrado Profissional em
Psicanálise, Saúde e Sociedade da UVA (LAPSI UVA).
Resumo
Este artigo procura compreender a relação entre o corpo e o processo de individuação,
através de uma interlocução entre Nietzsche e Jung. O nosso estudo inclui a articulação do
corpo com a natureza e a terra, assim como do processo de individuação com o cuidado e o
habitar humano, segundo um sentido ético e ecológico. Para isso, incluímos algumas
considerações de Leonardo Boff e Martin Heidegger.
Palavras-chave: Jung e existencialismo; ética e ecologia; corpo e individuação.
Abstract
This article tries to understand the connection between the body and the individuation
process trough a dialog between Nietzsche and Jung. Our study includes the articulation of
the body with the nature and the earth, as well as the individuation process with the care and
the human inhabit from an ethic and ecologic sense. For this purpose we include some
considerations of Leonardo Boff and Martin Heidegger.
Key-words: Jung and existentialism; ethic and ecology; body and individuation.
Eu vos ensino o super homem. O homem é algo que deve ser
superado. Que fizestes para superá-lo? (Nietzsche)
INTRODUÇÃO
O nosso esforço neste artigo é uma tentativa para compreender como o corpo se insere
na existência humana trabalhada sob o prisma do processo de individuação, isto é, do ser
humano como vir a ser, da sua confrontação contínua com as possibilidades mais próprias,
A Questão do Corpo
Boletim Interfaces da Psicologia da UFRRJ - ISSN 1983-5507 Vol. 3, Nº. 1, Janeiro - Junho de 2010 6
expressões do seu âmago, o si-mesmo. Pensar a relação entre o ser humano e o corpo se
expande para a ótica da relação do ser humano com a natureza, com a terra. A inspiração para
este trabalho veio da leitura do célebre texto de Nietzsche Assim falou Zaratustra. Nele, o
filósofo descortina um personagem, Zaratustra, que, por seu turno, propõe uma revolução nos
valores que culminam no nascimento do ―super-homem‖, aquele que resgata a dimensão do
corpo e da terra no barco pelo qual navega o existir humano.
Pelas nossas linhas, aparece uma interlocução de Nietzsche com Jung, seus pontos de
afinidade e de discussão. Ao pensar a inscrição do corpo no processo de constituição mais
próprio do ser humano, convidamos Leonardo Boff e Heidegger para participarem do
simpósio onde degustamos ideias e imagens reveladoras da condição humana e sua relação
com o corpo, que também é terra.
O SUPER-HOMEM E A INDIVIDUAÇÃO
O super-homem é, a nosso ver, um marco do processo de individuação. O
entendemos, antes do mais, como um símbolo do desejo de superação das condições a que
uma pessoa se encontre atrelada. Não se trata de um super-herói no estilo Clark Kent, ou seja,
não se trata de se propor a passagem do demasiado humano para um homem sobre-natural,
para um modelo de ser, que, por sua excelência, negue a imanência e a existência do ser
humano. Trata-se de atentar para o aspecto heróico do ser humano no que diz respeito a uma
atitude fundamental: a experiência da transcendência.
Essa é uma experiência arquetipicamente dionisíaca. Ela envolve a quebra dos limites
conhecidos e experimentados. Dionísio deseja a transgressão, sua medida é a desmedida. O
metron apolíneo é aquilo a ser ultrapassado. O processo de individuação apresenta uma esfera
dionisíaca, na medida em que se abre para a transformação e superação. O super-homem é
um símbolo do ser humano renascido, daquele que ―parte suas tábuas de valores, o destruidor,
o criminoso; - mas esse é criador‖ (Nietzsche, 1995, p. 39). A função transcendente é
justamente a condição de possibilidade dessa transformação. O símbolo abre um veio
estratégico de comunicação entre o consciente e o inconsciente, apresenta-se ele mesmo como
um complexo de opostos, cuja síntese eleva a psique a um nível mais integrado de
consciência.
Devemos não esquecer, que a individuação é um processo que se dá em torno de um
eixo, o si-mesmo, entendido por Jung como ―a totalidade humana‖ (1991, par. 20, p. 30). Ela
abarca tanto a esfera apolínea (a ordem, a medida, o senso e o estabelecimento de limites, a
consciência, a luz, a reflexão) quanto dionisíaca (a quebra dos limites, a experiência da
A Questão do Corpo
Boletim Interfaces da Psicologia da UFRRJ - ISSN 1983-5507 Vol. 3, Nº. 1, Janeiro - Junho de 2010 7
transcendência, as paixões, o corpo). O processo de individuação envolve a necessidade de
uma integração dessas duas instâncias. Nesse ponto, começamos a nossa reflexão a partir da
contribuição do pensamento de Nietzsche para descrever não apenas uma fenomenologia do
corpo, como uma ontologia: para Nietzsche, o corpo está implicado indissociavelmente com o
próprio si-mesmo.
Se não devemos tomar Nietzsche ao pé da letra e adotar, acriticamente, a sua adesão
apaixonada a Dionísio em detrimento dos significados apolíneos, por outro lado, o filósofo
chama atenção, de várias formas, para o problema do esquecimento do corpo em favor de
valores supostamente ―superiores‖. Nessa via, ele integra a imagem do super-homem à
dimensão da natureza e do corpo. Parece-nos que Nietzsche quer fundamentar o ser humano
no corpo. Levando isso a ponto de uma análise mais acutiladora, a própria noção de homem
sofre uma severa desconfiança por parte de Nietzsche. Ousaríamos dizer que o que nos parece
mais acentuado na leitura de Nietzsche não é tanto uma série de marteladas na antropologia
quanto uma rigorosa análise crítica do antropocentrismo.
Apesar de nos instalarmos num campo minado por inúmeras dificuldades, acreditamos
ser possível tentar na leitura de Nietzsche um convite à compreensão acerca do corpo, que se
abre para alcançarmos a terra, e sua integração no processo de vir a ser. Trata-se de uma
hermenêutica acerca das implicações do corpo no processo do ―tornar-se quem se é‖.
Nietzsche fala através de seu personagem Zaratustra: ―O super-homem é o sentido da terra.
Fazei a vossa vontade dizer: ‗que o super-homem seja o sentido da terra!‘‖ (1995, p. 30).
Aqui, Nietzsche ressalta, quase em tom profético, a referência à terra. Essa passagem
inspirou-nos a ideia de que a terra pode ser a um só tempo entendida como corpo, matéria,
terra, natureza, planeta terra, o ethos (morada) do habitar humano no seu círculo de relações.
Sem querer magoar o espírito filosófico, acentuamos que o tom de Nietzsche é quase
―profético‖ porque por mais de um século antecede as preocupações e discussões
contemporâneas acerca do futuro do mundo.
Nietzsche entende a existência articulada a um sentido fundamental: o sentido da
terra. A experiência da transcendência, imaginada através da figura do super-homem, nada
mais é do que o próprio sentido da terra. Nesse ponto, deparamo-nos com um cruzamento da
transcendência com a imanência. Imanência: o sentido da terra, fundamental para se pensar o
ser humano e a sua superação. Transcendência o ir além, que resultará na morte do próprio
homem.
A Questão do Corpo
Boletim Interfaces da Psicologia da UFRRJ - ISSN 1983-5507 Vol. 3, Nº. 1, Janeiro - Junho de 2010 8
É preciso ressaltar, nesse momento, uma distinção entre Jung e Nietzsche. Jung não
vê necessidade tanto da morte do homem quanto da de Deus. A morte do ―último homem‖
(expressão de Nietzsche) pode ser interpretada como a condição do homem que está diante de
sua própria crise, estagnação, diante da finitude, e é exatamente por isso que em termos
junguianos ele pode estar a um passo da transcendência. Destarte, a morte não é apenas
niilismo (negação do homem para afirmação dionisíaca do super-homem); é, em primeiro
lugar, metanoia: transformação radical da pessoa, que se desvela, por exemplo, na imagem de
teor alquímico, da transmutação do velho rei no ser renascido.
Ao invés de quebrar a noção de homem a marteladas, Jung descreve, no processo de
individuação, a metanoia. Ela é uma morte do homem no homem, e não o seu fim. Ao longo
da existência somos chamados a passar por várias mortes e renascimentos, como o nascer e o
ocaso do sol, um ciclo não apenas psicológico, como cósmico, que se alterna. Jung é
indiferente às investidas contra o fundamento antropológico (a noção de homem), pois está
interessado na metanoia. Nesse sentido, ele traz à luz um dos princípios da experiência
religiosa, a que se refere como ―educação religiosa‖, ou seja, à formação do homem no prisma
religioso. Jung inclui nessa formação um campo bem extenso, desde o homem arcaico ao
plano da instituição religiosa. Nesse âmbito, Jung nota a exortação ao despojamento do velho
Adão (Cl 3, 9). Isso não visaria transformar o ser humano no homem novo?
A psicologia nos ensina que, em certo sentido, não existe nada que
possa realmente se extinguir, e o próprio Paulo continuou com um
espinho na carne [2 Cor 12,7]. Quem se protege contra o que é novo e
estranho e regride ao passado está na mesma situação neurótica
daquele que se identifica com o novo e foge do passado. A única
diferença é que um se alheia do passado e o outro do futuro. Em
princípio, os dois fazem a mesma coisa: mantém a própria consciência
dentro de seus estreitos limites, em vez de fazê-la explodir na tensão
dos opostos e construir um estado de consciência mais ampla e mais
elevada. (1986, par. 767, p. 343)
O SENTIDO E O CLAMOR DA TERRA
Voltemos ao sentido da terra como uma condição essencial do ser humano. De fato, é
preciso se falar sobre o sentido da terra, uma vez que esse parece soterrado por um modo de
vida calçado no tecnocentrismo. Ele cria e dá corda a uma sociedade de consumo, que parece
ter elegido o seu deus: o mercado.
A cultura narcísica oferece um vasto campo para o cultivo do eu, do
corpo-objeto, das sensações. A começar, ela é regida pelo ―mercado‖.
A Questão do Corpo
Boletim Interfaces da Psicologia da UFRRJ - ISSN 1983-5507 Vol. 3, Nº. 1, Janeiro - Junho de 2010 9
Nada pode ser feito sem passar pelo crivo do mercado. Mercado
significa lucro, rendimento, ganho, vantagem, competição, sucesso.
Aos vencedores, o seu prêmio: o ―direito‖ de consumir. Os
perdedores também têm o seu prêmio: o desejo de consumir. E os
dois possuem um elo em comum: a demanda de nunca se sentir
satisfeito, e sempre, cada vez mais, perseguir e valorizar o que não se
tem. (Bassi e Veríssimo, 2007, p.128)
Tal quadro favorece o desenvolvimento de comportamentos estereotipados e
padronizados, regulados pelas ―tendências do mercado‖. Nesse caso, não é pouco comum o
desejo por uma vida que não se pode bancar, a negação da realidade mais própria em prol de
representações sociais idealizadas, a eleição de ―elevados‖ padrões corporais e estéticos que o
corpo não suporta, a ânsia por estar ―de bem com a vida‖, escamoteando a confrontação com
a angústia, a recusa sistemática a aceitar os próprios limites. Nesse contexto, o corpo é um dos
alvos prediletos da economia voraz do mercado. O sujeito tenta conformar o seu corpo e sua
consciência a padrões de grande eficácia persuasiva, sem qualquer elaboração reflexiva ou
crítica.
A alienação do ser humano de si mesmo admite uma correspondência com a alienação
do sujeito em relação à natureza. Como podemos cuidar da terra, se mal cuidamos de nós
mesmos? Como podemos nutrir o cuidado pela terra, leia-se, pela natureza, se mal
conseguimos nos sintonizar e responder afirmativamente aos apelos do si-mesmo? Será que
temos noção das implicações do nosso consumismo com a exploração da natureza num modo
tal que não devolve para ela o que retira e quer lucrar com ela?
Por Boff (1999), percebemos um alto índice de artificialismo a que ficou reduzida
nossa existência atrelada aos produtos da tecnociência e ao consumismo. É anunciado, aos
quatro cantos do globo, que somos a sociedade do conhecimento e da informação. Há um
ambiente de rede que, como sabemos, cria um ciberespaço, uma hiperestimulação de imagens
e mensagens, mas, espantosamente, nossa interação face a face, corpo a corpo parece estar
cada vez mais relegada a um plano de desinteresse. Podemos nos conectar com milhões de
pessoas sem nos encontrar face a face, sem apertar as mãos ou abraçar ninguém. Nossa
existência, cuja constituição é feita a partir da trama de relações que estabelecemos, é cada
vez mais uma realidade virtual, uma textura on-line.
A relação com o mundo não é apenas uma relação de ―informação‖, de um sobrevoo
sobre as coisas, como diria Merleau-Ponty (1989, p. 48), mas, é uma relação mediada pelos
cheiros, pelas cores, acolhida de forma fria ou calorosa, dá-nos a sensação do peso e
densidade, oferece resistência, provoca o nosso pensar. Essa relação fundamental é, cada vez
A Questão do Corpo
Boletim Interfaces da Psicologia da UFRRJ - ISSN 1983-5507 Vol. 3, Nº. 1, Janeiro - Junho de 2010 10
mais, refém de uma apropriação exclusivamente virtual: ―o pé não sente mais o macio da
grama verde. A mão não pega mais um punhado de terra escura. O mundo virtual criou um
novo habitat para o ser humano, caracterizado pelo encapsulamento sobre si mesmo e pela
falta do toque, do tato e do contato humano‖ (Boff, 1999, p. 11).
Essa tomada de direção histórica cria uma cultura hedonista, narcisista, consumista,
imediatista, competitiva, que agride a natureza, que regula os corpos em padrões
massificados, e tenta torná-los como máquinas produtivas, e reprodutoras de ideologias
comprometidas com o poder econômico, que, enfim, parece dispensar o homem do cuidado.
Para a cultura tecnoindustrial de mercado, a natureza não passa de um objeto de interesse
econômico.
E isso nos leva a preocupações, como a que apontou o filósofo Mário Cortella. Ele
alerta que talvez sejamos a primeira geração na história do Ocidente que não cuida direito da
próxima geração. Estamos procedendo ao um ―saque antecipado do futuro‖. Estamos
gastando não apenas nossas economias no shopping: estamos gastando o próprio futuro,
gastando o futuro por antecipação. Considera Cortella (A criança em seu mundo) que, de
maneira geral na história humana, a geração atual cuida da próxima. Cuida dos recursos, da
sobrevivência, de propiciar os meios que sustentem a existência. ―No entanto, a voracidade do
nosso cotidiano, a maneira como nós desmontamos as condições da existência coletiva à
medida que o econarcisismo é mais presente à nossa frente, acabamos esgotando as condições
de existência no futuro‖.
Na contramão dessa tendência preocupante, há quem acredite que a natureza mais
própria do homem é o cuidado, e associa-o à terra, entre eles, Boff, Heidegger.
Acrescentamos à lembrança desses autores as impressões assinaladas de Nietzsche (p. 30): o
super-homem é o sentido da terra, permanecei fiéis à terra.
Há muito o mito já havia se dado conta do sentido da terra na genealogia do humano,
através de um complexo simbólico que integra a terra ao corpo, à matéria, ao barro, ao
cuidado, ao ser humano na constituição de sua essência. Certo dia, Cuidado ao atravessar um
rio, depara-se com um pedaço de barro e resolve dar-lhe forma. Concluída a sua obra, surge
Júpiter, e Cuidado solicita ao deus que sopre espírito na sua criação. Júpiter aceita e realiza o
desejo de Cuidado, mas exige que o nome da criatura seja o seu próprio. Júpiter e Cuidado
passam a discutir, quando aparece a Terra. Ela reclama o direito de dar o nome à coisa criada,
uma vez que fora feito dela, de seu corpo, do barro. E, assim, a discussão aumentou. Agora
eram três disputando o privilégio de dar um nome ao que fora criado. Em face da falta de
A Questão do Corpo
Boletim Interfaces da Psicologia da UFRRJ - ISSN 1983-5507 Vol. 3, Nº. 1, Janeiro - Junho de 2010 11
acordo, decidiram apelar para Saturno, o deus ligado à noção de justiça, para que arbitrasse a
disputa. O deus deu, então, o seguinte veredicto:
Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito
por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo:
receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura
morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a
criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E uma vez que
entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta
criatura será chamada Homem, isto é, feito de húmus, que significa
terra fértil. (Higino citado e traduzido por Boff, 1999, p. 46)
Esse mito desvela que a origem do ser humano está ligada à terra, que lhe deu corpo.
Na verdade, o ser humano deve sua origem não só à terra, como a um quaternário, uma
totalidade onde participam céu e terra, mortais e imortais. O quaternário institui o próprio
habitar do ser humano, o modo como ele se apropria do mundo, e lhe dá sentido. O ser
humano se faz no mundo, faz o mundo, e é feito pelo mundo: é o habitar. O habitar precisa do
cuidado para que se mantenha o resguardo. ―Resguardar acontece quando deixamos alguma
coisa entregue de antemão ao seu vigor de essência, quando devolvemos, de maneira própria,
alguma coisa ao abrigo de sua essência‖ (Heidegger, 2002, p. 129). O cuidado com o
resguardo da própria essência significa o sentido mais pleno do processo de individuação.
Acreditamos que na individuação o sujeito deve abrir-se ao quaternário, conhecer-se e
experimentar-se a partir dessa totalidade.
O céu e, no mito relatado, Júpiter podem ser interpretados como o desejo de
transcendência, de realizar, seja pelo pensamento, seja pela imaginação, voos cada vez mais
ousados, que ultrapassem as medidas familiares, abrindo-se para um horizonte infinito que
contempla o universo, com os seus labirintos de luz e mistérios, coberto pelo brilho das
nebulosas e estrelas. Pela afinidade das imagens do céu e de Júpiter com o simbolismo da luz
(brilho, raios, estrelas, astros) podemos associá-los à consciência, ao espírito, à busca pelo
conhecimento em seus primeiros e últimos questionamentos.
Saturno volta e meia é representado como um símbolo do ideal de justiça e de ordem
que rege a sinfonia do universo. Por isso, pode também ser significado como a utopia, como
os valores éticos através dos quais o ser humano edifica um sentido de convivência com seus
pares, de tal forma que se possa abrigar o senso do bem comum. E, se passamos para o terreno
da ética, é preciso ter em conta que a ética hoje não mais permite omitir nem o corpo, nem a
terra. Pela redução do corpo a objeto de consumo, pela crise ambiental, pelos mandos e
desmandos de uma razão utilitária, somos cada vez mais apelados ao desenvolvimento de um
A Questão do Corpo
Boletim Interfaces da Psicologia da UFRRJ - ISSN 1983-5507 Vol. 3, Nº. 1, Janeiro - Junho de 2010 12
sentido éticológico (ético e ecológico) de vida, somos apelados a desenvolver respeito e
veneração, atenção e resguardo, parceria e diálogo com a natureza.
A terra é interpretada, como dissemos, como a dimensão do corpo, da natureza, do
nosso planeta. Ela tem a ver também com a noção de que precisamos cultivar a ligação com o
self (si-mesmo), assim como a sintonia e a abertura às formas de expressão do self. Desse
modo, podemos simbolizar o self como a semente das possibilidades existenciais. Ela precisa
ser resguardada e cuidada. A semente para germinar, para que possamos assegurar o
afloramento de todas as suas potencialidades, precisa de cuidados. Precisa ser regada,
observada, acompanhada com zelo. Devemos cultivar a nossa natureza mais íntima como
quem cuida de uma planta. Uma planta sem cuidado, degenera e morre. “Sem cuidado o si-
mesmo mais cedo ou mais tarde manifesta a sensação nítida (...) e constante de desarmonia,
(...) de caos improdutivo, a paralisia das forças, a impotência e o ressentimento contra si
próprio e as pessoas através de projeções reativas.‖ (Veríssimo, 2005, p. 144)
E os ―deuses e homens‖ redigidos por Heidegger (1992)? Como podemos pensá-los?
A nosso ver, correspondem ao bailado dos planos da imanência (homens) e da transcendência
(deuses). Esse cruzamento já foi interpretado, em termos literais, como uma disposição
hierárquica que apontava o divino acima do mortal, sua razão de ser, ao mesmo tempo a causa
e a finalidade do existir. E mais: a transcendência já foi entendida como o abrigo de valores
superiores tais que a alma detinha uma ―natureza‖ (ou essência) em muito superior à do
corpo, enquanto Deus era estimado como não só superior, como distinto das criaturas. É o que
Nietzsche significa ao dizer ―Eu vos rogo, meus irmãos, permanecei fiéis à terra e não
acrediteis nos que vos falam de esperanças ultraterrenas! Envenenadores, são eles que o
saibam ou não.‖ (1995, p. 30). As ―esperança ultraterrenas‖ dizem respeito a um descaso para
com o mundo em sua tragicidade elementar (belo, fascinante, aterrador e tremendo). O
descaso com o mundo corresponde ao ocaso do corpo do mundo, da terra, que resiste,
fricciona-se e dá guarida a esse mesmo mundo porque o abriga.
A relação entre terra e mundo entranha-se. O mundo relaciona-se ao habitar humano
na terra. Os homens erguem o templo. O templo é desejado como a morada do deus, e o
revela em sua ocultação, que, graças ao templo, advém no tempo. O edifício repousa e resiste,
com suas formas metafísicas, ao devir da natureza. Ainda que só restem colunas, a obra se
mantém de pé, pois, os homens imaginam que lá se abre o portal para o divino. Enquanto isso,
a tempestade se abate com toda a sua fúria sobre o templo, enquanto as ondas rugem, lá ao
fundo. Percebemos como o mar está bravo pelo contorno que envolve a própria serenidade da
obra e sua leveza. É o que nos relata Heidegger ao tentar compreender a relação entre terra e
A Questão do Corpo
Boletim Interfaces da Psicologia da UFRRJ - ISSN 1983-5507 Vol. 3, Nº. 1, Janeiro - Junho de 2010 13
mundo. Heidegger considera a physis ―a clareira daquilo sobre o qual e no qual o homem
funda o seu habitar. Chamamos isso a Terra‖ (1992, p. 33).
A MORAL ASCÉTICA E OS DESPREZADORES DO CORPO
Estávamos conversando sobre os valores superiores: aqueles valores que negam a
existência concreta, rejeitam a imanência e o mundo, esquecem-se do corpo e da natureza
para se projetarem num outro mundo, onde esperam obter a sua salvaguarda ou o preço a
pagar pelo sentimento de culpa que suscitam. Entre os valores superiores estão a apropriação
do sagrado, segundo doutrinas prontas e a moral ascética, que rejeita o corpo em favor do
espírito e da sua salvação em outro plano. Já se disse inclusive em rodas intelectuais, que
Deus não faz parte da natureza, pois, a criatura não pode se confundir com o Criador. A alma
era considerada o habitat do intelecto, enquanto o corpo navegava numa travessia perigosa no
mar das paixões. Na teleologia dos valores superiores, que germinavam com força antes da
emergência do homem de ciência, podia-se puxar um fio com Deus, a razão, a alma, o
espírito, a moral da contenção, da ascese a Deus, da negligência do corpo. Esse novelo
continha o que levava os créditos da essência do ser humano.
Desenrolando essa lógica, constatamos que a mistura entre religião e ideal ascético
pode conduzir a uma desesperada tentativa de salvação da morte, do sofrimento, da angústia,
da falta. O sujeito pode usar Deus como desculpa para se defender do desejo e das culpas
advindas dele. Jung observa como seu pai, pastor luterano, tocava a vida a partir de sua
procura de sentido com bases numa moral rígida que impôs a si mesmo. Por ela, apagou-se o
brilho da juventude, e, em seu lugar, Jung via um ser sempre voltado para fora: a vida interior
fora esvaziada de energia e significado, enquanto a vida conjugal o decepcionara.
―Consequentemente, estava quase sempre de mau humor e sofria de irritação crônica. (...)
Como é fácil compreender, sua fé entrou em crise, por causa dessas dificuldades.‖ (1992, p.
89). Jung desenha em suas memórias o retrato de um homem que aderira ordeiramente aos
dogmas, sem questionar ou sentir a experiência do numinoso de forma mais plena, vale dizer,
não apenas no seu aspecto cândido e atrativo, como no seu aspecto assustador e tremendo.
Seu pai adotou uma moral (uma regra de conduta) de acordo com o que acreditava que a
Bíblia exigia como os seus pais o haviam ensinado. Jung se ressente de não poder ajudar o seu
pai, e começou a questionar a educação religiosa que seu pai lhe ministrava. Jung não
conseguia ouvir passivamente os sermões, estava sempre antenado às suas experiências mais
próprias. Enquanto as palavras da doutrina soavam insípidas e vazias, ―tal como as de uma
história contada por alguém que nela não crê ou que só a conhece por ouvir dizer.‖ (1992, p.
50). Queria ajudar seu pai, aproximar-se mais dele, mas, não sabia como. Quando Jung
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ensaiava um debate, acabava numa discussão ou num dar de ombros do pai de forma
resignada. ―Uma espécie de pudor impedia que lhe contasse minha própria experiência ou me
imiscuísse em suas preocupações pessoais.‖ (1992, p. 50).
A moral ascética é uma utopia, ela deseja um mundo melhor. Mas, parece-nos que não
começa do mundo para os sonhos, e sim, da idealização calcada em valores superiores para
uma imposição deles sobre o mundo e o corpo. Nietzsche aponta sua escrita para os
desprezadores do corpo. A lógica do ideal ascético estabelece uma hierarquia rígida, em que a
alma se promove como superior em tudo ao corpo, e olha desdenhosamente para ele,
orgulhando-se de tal contemplação. A alma ―era o que havia de mais elevado: queria [o
corpo] magro, horrível, faminto. Pensava-se assim, escapar-se dele e da terra.‖ (Nietzsche,
1995, p. 30). Não nos iludamos a pensar que o ideal ascético não passa de um romantismo
medieval. Em nossos dias o vemos a cada esquina, ou melhor, a cada 30 segundos, numa
considerável parcela das peças publicitárias, nas figuras esculturais que a televisão e o cinema
de entretenimento insistem em apresentar como a única estética possível. Enfim, pelos
símbolos da cultura de massa e narcísica observamos que ela também pode ser admitida entre
os ―desprezadores do corpo‖. Querem-no igualmente magro e faminto: eternamente jovem,
sem rugas, perfeito. Para isso, rasgam-no e despedaçam-no, torturam-no, submetem-no aos
maiores e impossíveis rigores, tentam discipliná-lo regiamente, metem-no numa coleira pela
vaidade e insegurança pessoal, põem em risco a própria vida, tudo isso para uma existência
ascética, nos modelos da moral narcísica. Assim, acreditam se livrar das ―inconveniências‖ do
corpo, quando ele não se encaixa nos padrões de beleza vigentes.
Nietzsche tenta inverter a hierarquia entre espírito e corpo. Não é mais o espírito que
se utiliza do corpo, como um instrumento da sua vontade de ascese, mas, ao revés, é o corpo
quem se utiliza do espírito. O espírito é instrumento do teu corpo, aliás, o corpo é, na verdade,
a grande razão. O que chamas ―espírito‖ nada mais é do que a tua pequena razão, ―pequeno
instrumento e brinquedo da tua grande razão.‖ (1995, p. 51). A seguir, Nietzsche faz uma
associação entre o si-mesmo e a dimensão corporal. Por trás dos instrumentos e brinquedos
que são o espírito e os sentidos (as bases do pensamento científico mecanicista) encontra-se o
ser próprio. Pois, ―aquilo que os sentidos experimentam, aquilo que o espírito conhece, nunca
tem seu fim em si mesmo. (...). O ser próprio procura também com os olhos dos sentidos,
escuta também com os ouvidos do espírito‖ (1995, p. 51).
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INTEGRANDO A TOTALIDADE HUMANA
Nesse ponto, não conseguimos deixar de cair na tentação de associar o pensamento de
Nietzsche ao de Jung, quanto à relação do ego com o si-mesmo (self). O que Nietzsche
chamou de alma, sobretudo, de ―espírito‖, fazemos uma ligação com a noção ego enunciada
por Jung. O ego tem relação com a nossa vontade de conhecer, de ser objetivo, de manejar
satisfatoriamente as tarefas práticas, com o desejo de dominar a si próprio, de afirmar-se no
mundo. O self é a ―totalidade humana‖, inclui o próprio ego. Por vezes, há uma dialética tensa
entre ambos, quando os cálculos egoicos acerca da ―realidade‖ prática e o seu conhecimento
não coincidem com as necessidades advindas do si-mesmo (expressas através dos mitos,
símbolos, sonhos, sintomas, intuições, imagens, sentimentos, ideias); o sujeito já não mais se
experimenta como uma totalidade, e começa a desenvolver ações e percepções parciais,
desenvolve uma armação racional tal que deixa para lá os avisos do corpo, as paixões e o
desejo. Isso não passa de uma capa sobre a natureza mais própria, o si-mesmo. Em face das
dissonâncias muito críticas entre a razão e a totalidade orgânica que é o sujeito, a razão se
perde num labirinto de explicações que não respondem mais à busca de sentido significativo
para a existência. Dessa forma, ―o espírito‖ pode se reduzir a um instrumento alucinado do
corpo, bem ao estilo do que nos mostra Nietzsche.
Em sua insistência na inversão de valores, podemos inferir, interpretando a
argumentação de Nietzsche, como o ego (o eu) pode se tornar uma presa fácil da nossa
totalidade. O self diz ao ego: ―agora, sente dor!‖. O ego, então, cogita e tenta achar uma saída
para como evitar o sofrimento. ―Agora, sente prazer!‖, diz, novamente o ser próprio ao eu
(ego). ―E, então, o eu se regozija e reflete em como poderá ainda regozijar-se muitas vezes – e
para isso, justamente, deve pensar.‖ (1995, p. 52). Observemos como o pensamento está
articulado à nossa totalidade, e deriva dela.
Nietzsche aposta todas as suas fichas numa ontologia a partir do corpo. ―Mas o
homem já desperto, o sabedor, diz: ―Eu sou todo corpo e nada além disso; e a alma é somente
uma palavra para alguma coisa no corpo‖. Nesse ponto, cabe uma discussão com respeito à
primazia da alma (tradição metafísica) ou do corpo na definição do que é o mais propriamente
o ser humano. E convidamos, uma vez mais, Jung para apresentar uma réplica às
considerações do filósofo.
Em primeiro lugar, parece-nos que Jung não estima a alma, como grande parte da
metafísica, como a sede da racionalidade. A alma, por vezes, aparece na obra de Jung como a
dimensão do feminino, outras vezes como a própria psique. E, se Nietzsche observa, com sua
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analítica afiada, os desprezadores do corpo, Jung, observa, por sua vez, o desprezo sistemático
pela alma, ao menos no Ocidente. ―Quem quer que fale da realidade da alma será censurado
por seu ―psicologismo‖ e quando se fala em psicologia é neste tom: ―é apenas psicológico...‖
(1991, par. 9, p. 22). De fato, quantas vezes já não ouvimos, inclusive nos bancos escolares da
filosofia, uma afirmação do tipo ―isso não é psicologia!‖. Como se fosse possível separar o
psíquico do filosófico. Como se a ordem do psíquico fosse somente uma interferência,
somente um obstáculo epistemológico ao pensar. Como se fosse possível pensar sem sentir,
imaginar, desejar. Como se fosse possível separar a psique do pensar, como se o pensar
pudesse se fundamentar única e exclusivamente no pensamento. Isso a nosso ver é mais uma
das formas do ideal ascético sinalizado por Nietzsche.
A existência humana, em todas as suas faces, inclusive a da construção do saber,
reside num habitar, num modo de ser no mundo que se dá como uma totalidade de sentido,
como enfatizam Nietzsche, Jung, Boff e Heidegger, cada um a seu modo, cada um se sentindo
tomado e tocado por algum aspecto dessa totalidade. Essa totalidade pode ser expressa sob
várias formas: o corpo e a terra (Nietzsche), o si-mesmo (Jung), o quaternário (Heidegger), o
Cuidado (Boff). Júpiter, o céu, a terra, Saturno, o Cuidado, os deuses e os homens, o corpo, a
alma expressam a trama que unifica e distende os opostos, numa contração e tensão que
resulta num ponto, ou, talvez, em inúmeros pontos de entrelaçamento da imanência com a
experiência da transcendência.
Nesse último pedacinho do fio que ora desenrolamos, que se encontra com o primeiro,
gostaríamos de trazer alguns trechos de uma criação que tem como título ―A Oração ao Deus
Desconhecido‖. Foi traduzida por Leonardo Boff, que não permite esquecer que ela foi feita
por quem ―fez a crítica mais violenta do cristianismo, mas o fez a partir da uma experiência
radical do Deus vivo‖.
Antes de prosseguir em meu caminho e lançar o meu olhar para a
frente uma vez mais, elevo, só, minhas mãos a Ti na direção de quem
eu fujo. A Ti, das profundezas de meu coração, tenho dedicado altares
festivos para que, em cada momento, Tua voz me pudesse chamar.
Sobre esses altares estão gravadas em fogo estas palavras: ‗Ao Deus
desconhecido‘. (...) Seu, sou eu, não obstante os laços que me puxam
para o abismo. (...) Eu quero Te conhecer, desconhecido.
Tu, que me penetras a alma e, qual turbilhão, invades a minha vida.
(...) (Nietzsche apud Boff, 2000, pp. 84-85).
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A CRIAÇÃO DO GOSTO DA LEITURA: O CORPO MEDIANDO A FORMAÇÃO
DO SUJEITO LEITOR
Autor: José Ricardo da Silva Ramos
(Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)
Sem ser um meio para complemento ou uma compensação, a
literatura nos permite moldar ativamente o mundo e a nós mesmos, ao
propiciar o contato com alguma coisa que não podemos conhecer ou
vivenciar de forma consciente. (Gabriele Ichuvab)
Este trabalho buscará discutir as possibilidades da expressão corporal na formação do
leitor na escola. Sendo assim, tratará da importância do corpo mediando à aquisição da leitura
através da expressão corpórea. Entretanto, por que essa proposta é interessante para as
diferentes instâncias educacionais que procuram despertar o gosto pela leitura?
Participando de um curso de formação do leitor1, lendo os diferentes textos sugeridos
pelo curso, estudando e registrando suas palavras, fui buscando compreender as relações que
os autores estabeleceram para a criação do gosto pela leitura e do papel fundamental daquele
que deve mediar o livro ou o objeto a ser lido com a leitura. Os textos falavam como deve ser
prazerosa a leitura, de como deve ser importante despertar o gosto de ler, comentavam as boas
lembranças da leitura de distintos autores, o que suscitava neles, que ela não deve ser imposta
e que existem diferentes meios de orientar a leitura como por meio do computador, da pintura,
da poesia e das artes. Conheci histórias de lazer, prazer e de vontade de se apropriar da leitura.
Mas se os textos lembravam caminhos pedagógicos para criar o gosto de ler,
demonstrando pertinência e autonomia com relação a formas de apropriação e utilização de
recursos para leitura, a escola, por sua vez, desconhece as possibilidades para despertar o
hábito da leitura. Muitos colegas do curso relataram que a leitura na escola se fecha na leitura
dos livros didáticos, em resumos de histórias, em provas e que os alunos, na sua maioria, não
gostam de ler, tem aversão pelos textos literários, pela literatura que é ensinada na escola.
Fiquei conhecendo alguns métodos que os colegas construíram para romper com o desprazer,
a imposição e a obrigatoriedade de ler determinada pela escola. Nesse sentido, percebi que a
escola forma não-leitores, que os alunos não conseguem desfrutar do prazer de ler um livro e
1 O curso ―O leitor em questão: entre o texto e a leitura‖ é desenvolvido pela disciplina ―Análise da Interação‖
da Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Estudos da Linguagem da Universidade Federal Fluminense –
UFF, com a orientação e dinamização da Professora Maria Elizabeth Chaves de Mello
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que os mesmos têm medo, timidez e vergonha de ler para o outro, para a classe ou para o
professor e ser avaliado como mau leitor.
Como pode a intervenção pedagógica resolver esses problemas? Como não temer
diante dos textos literários? Drummond no texto ―O leitor e o lido‖ diz: ―Às vezes penso que o
leitor é alguém que deseja estar no meu lugar, um concorrente em potencial, um amigo-
inimigo.‖ Será que temos tido a oportunidade de fazer outros tipos de leituras na escola? Será
que estamos buscando outros tipos de leituras na formação do sujeito-leitor? Será que nós,
professores, temos tido a oportunidade de ler a postura, o corpo, ou seja, as escrituras
corporais dos nossos alunos? É possível tornar os nossos alunos, sujeitos que expressam
alguma coisa por meio dos seus corpos e ao mesmo tempo leitores daquilo que expressaram?
Como encontrar caminhos pedagógicos em que os alunos gostem de ler, passem a ler, voltem-
se para o livro e a literatura sem temer diante deles? Será que a expressão corpórea como uma
proposta de leitura pode ser útil na formação do aluno leitor?
Assumindo uma perspectiva que é a linguagem como ação, tenho como objetivo neste
trabalho, levantar algumas reflexões sobre o que significa compreender a leitura como
expressão corporal – uma linha de pesquisa que tenho discutido e estudado, buscando
interlocutores para construir caminhos pedagógicos comprometidos com a teoria e a prática
na formação de leitores. No contexto dessa perspectiva, analisaremos diferentes modos de
entender a leitura na escola como instrumento, necessidade, gosto, exercício ou mera
atividade curricular.
LENDO ALÉM DAS LETRAS
Tomando como possibilidade de intervenção pedagógica a metodologia criativa que
parte da proposição de atividades assemelhada às das várias artes, como experiência de
criação, coerente com aquilo que os alunos desejam para aprender para a sua vida, estudamos
a distinção que Bordini & Aguiar (1988) estabelecem entre constatar uma carência e
reproduzir histórias a partir de narrativas ouvidas. Desse modo, a literatura pode ser vivida,
experimentada e contada para o outro, compartilhada, se tornando leitura corporal, através do
caráter cênico expresso pelo que a dança pode devolver e despertar no aluno o gosto pela
leitura.
Divulgarei assim, que a leitura como uma forma de expressão corporal seja uma
prática pedagógica, em que o aluno possa interagir, criar, divertir-se, informar, comunicar e
partilhar saberes tanto para quem lê, quanto para quem propiciou a leitura, ao representá-la
corporalmente, crescer, ser desafiado, aprender e construir conhecimentos.
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A área pedagógica da leitura vem recebendo, durante séculos importantes
contribuições tanto no que se refere à procura de caminhos concretos para o ensino da leitura
quanto no que diz respeito a uma direção epistemológica para o assunto. Sartre (1989),
através da denúncia a uma pedagogia morta, a qual o livro é um objeto sem nenhuma ação,
nos apresenta a leitura ―engajada‖, em que a palavra é ação, que desvenda e procura
mudanças. Esta decide desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens,
a fim de que estes assumam em face do objeto (livro) a sua inteira responsabilidade. Desse
modo, a função de um professor ―engajado‖ é construir o como a leitura pode atingir a sua
máxima ressonância.
Com o impulso na área epistemológica, a mudança paradigmática parte da tentativa de
desconstruir a equivocada experiência da leitura conservadora: a leitura como uma destreza.
―Porque a leitura, ao contrário da carpintaria ou do bordado, não é meramente uma
habilidade; é uma ativa elaboração de significados dentro de um sistema de comunicação.‖
(DARNTON, 1986, p. 279). Desde Rousseau e sua compreensão de leitura como
sensibilidade romântica, entrando pelas correntes da filosofia, da psicologia, da sociologia e
da linguagem, vamos conhecendo os estudos do passado, que ora conservam ou enfrentam
questões ligadas ao prazer e o gosto pela leitura. Estes campos teóricos nos situam no espaço
da reflexão, da política, da ideologia e do problema de apresentar caminhos concretos para a
prática da leitura.
Chartier (1998), entre as limitações e a liberdade na leitura, chama a atenção para o
caráter histórico da experiência humana de ler, ostentando a aventura social da leitura.
Experiências humanas marcadas nos modos de lembrar e recordar dos sujeitos que
procuravam diferentes formas de leituras. Suas investigações indicam que a consideração do
livro como objeto vivo, do ambiente, como conteúdo educacional e da memória como
elemento de leitura do mundo, incorporou diferentes modelos explicativos de leitura na
dinâmica social de cada época, aumentando os processos relacionados à informação e a
comunicação humana, mudando o panorama estático, conservador para um panorama
modular e flexível. As ideias dos diferentes modos de leitura vêm repercutindo, durante
séculos, em desdobramentos pedagógicos significativos para que os indivíduos se apropriem
do ato de ler.
Entre os vários modos de leitura, Chartier (1998) pontua a revolução que os textos
eletrônicos vêm fazendo com as suas ideias contemporâneas ofertando mais comunicação e
informação, cujas contribuições promoveram impactos no delineamento de questões sobre o
ato de ler e novas propostas para apropriação do gosto de ler.
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No conjunto dessas contribuições teóricas e de busca por caminhos pedagógicos
concretos para que a escola se aproprie do gosto de ler é que se coloca o presente estudo. Ao
levantar questões sobre os modos de ler, de diferentes tipos de alunos e escolas, onde a leitura
de fato não acontece, sou direcionado também pelo problema do ―como‖ fazer. Na busca da
direção epistemológica e o como intervir, me desloco neste trabalho inquietante, observando
algumas manifestações corporais de negação com a leitura, estudando esses comportamentos,
entrevistando professores ―engajados‖ na busca de novas alternativas pelo gosto da leitura,
procurando compreender a escola, como também buscando caminhos e respostas. Ao longo
desse processo, encontro meus interlocutores e levanto as seguintes questões: o que é ler?
Qual a sua natureza? Como se lê o mundo? Como a escola entende a leitura? Existem outros
modos de ler e narrar o que leu? No emaranhado dessas questões é que estudo diversos
modos, conceitos e teorias para compreensão da leitura. Ler é uma destreza? É exercício? É
prazer, hábito, uma necessidade virtual para o mundo de hoje ou um instrumento para
apropriação de outros mundos? Pretendo apresentar algumas implicações dessas questões
suscitadas neste trabalho ao apresentar a leitura através da expressão corporal.
Para responder essas questões e tentar resolver esses problemas, faz-se necessário
inicialmente retomar os Parâmetros Curriculares Nacionais que orientam atualmente a lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96). Na orientação da lei, o ensino da
literatura e da área corpórea já está amplamente conhecido como área das linguagens,
inseparáveis no desenvolvimento de habilidades e competências do alunato. Julgo necessárias
retomá-las a fim de tornar transparentes os princípios, pressupostos e a metodologia que me
fundamento para responder as questões formuladas. Assim, busco as interferências dessas
linguagens no processo de aquisição da leitura na escola, distinguindo-se, para tornar o
trabalho mais explícito, duas faces dessas linguagens nesse processo: a apresentação da
linguagem não verbal, e o desenvolvimento da literatura na utilização do corpo para a
interação dessas linguagens.
No campo dos sistemas e linguagem, podemos delimitar a linguagem
verbal e não verbal e seus cruzamentos verbo-visuais, audio-visuais,
audio-verbo-visuais etc. A estrutura simbólica da comunicação visual
e/ou gestual como da verbal constitui sistemas arbitrários de sentido e
comunicação. A organização do espaço social, as ações dos agentes
coletivos, normas, os costumes rituais e comportamentos
institucionais influem e são influenciados na e pela linguagem, que se
mostra produto e produtora da cultura e comunicação social. (PCN‘s,
1999, p. 126).
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A partir da retomada de uma concepção da área da linguagem configurando relações
pedagógicas entre a Educação Física e a Língua Portuguesa pelos seus aspectos
interdisciplinares, ancoro minha proposta com a tentativa de responder às perguntas acima
formuladas, apresentando, sobretudo, a prática pedagógica de alguns professores que se
orientam e controlam o ensino e a aprendizagem literária nas suas ações. Com esta
consideração os PCN‘s orientam os professores da área das linguagens para que exerçam suas
ações nesta direção:
Podemos assim falar em linguagens que se confrontam, nas práticas
sociais e na história, e fazem com que a circulação de sentidos
produza formas sensoriais e cognitivas diferenciadas. (id. Ibid.).
Todos os professores que atuam na área das linguagens na escola devem considerar a
interferência de aspectos dos estudos da linguagem no ensino e aprendizagem de textos,
discurso verbais e não-verbais aqui destacados para apropriação da leitura.
No que se refere ao processo de apropriação literária, a linguagem corporal na
aquisição daquela, transformam o conceito de leitor fragmentado, que se apropria do texto por
associação para um leitor ator, autor e coautor que atua com e sobre a leitura, buscando
compreender um texto ou uma obra literária, levantando hipóteses sobre ela, submetendo a
prova essas hipóteses pela expressão corporal. O processo que rege esta orientação é a escrita
do texto em forma de dança – uma coreografia que conduzirá o aluno progressivamente por
uma prática de sucessivas correspondências entre o não verbal e o escrito nas sequências de
movimentos que suscitam os sentidos do texto. Sentidos que sugerem novas possibilidades de
leituras.
O aluno lê agindo e interagindo com um texto, experimentando corporalmente,
ousando a descrevê-lo, fazendo uso de técnicas corporais e testando hipóteses entre o gestual
e o escrito através de seus discursos motrizes organizados comparados às estruturas narrativas
a fim de tornar sua narração semanticamente interpretada.
As dificuldades enfrentadas pelos alunos nesse processo são consideradas como uma
prática refletida, e para isso acontecer, as expressões corporais são dinamizadas com
exercícios, técnicas corporais que associam texto ao discurso motriz. Nesse processo de
apropriação literária, as expressões corporais são consideradas constitutivas, sinalizadores no
processo de apropriação e construção de um texto, que o aluno vivência, revelando sua escrita
através da sua atuação, se identificando com a leitura.
Como apresentar o livro para os alunos? – é a questão central deste estudo neste
trabalho de curso, dando sequência ao tema: ―a formação do leitor em questão‖, a proposta de
trabalho foi construída considerando o projeto pedagógico e as questões postas pelo curso
ministrado pela professora Elizabeth Chaves.
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EXPERIMENTANDO O CORPO COMO LINGUAGEM: A HISTÓRIA DOS
CORPOS HUMANOS.
Procurando compreender a linguagem corporal na formação do leitor, podemos
começar na esfera pré-histórica do sistema da linguagem, pois o começar de tudo nos
remeterá aos atos de leitura dos nossos antepassados. Iser (1999), por exemplo, atribui a
estética da recepção a capacidade de ler que os seres humanos dispõem, traçando lacunas
ocultas entre textos de ficção à previsões futuras partindo da mobilidade do ser no modo que
lhe permita ler uma realidade de acordo com o seu contexto social e histórico. Nesse sentido,
a teoria da recepção no ato de ler, desde o momento da evolução, já estariam sinalizados nas
escrituras corporais da espécie humana.
Nesse sentido, a formação da leitura parte de uma trajetória sócio-ontológica. Desde a
pré-história, o homem reuniu pistas, conhecimentos indiciários que o formaram um leitor do
mundo. O homem pré-histórico construiu sua formação humana no seu modo de ler a natureza
para transformá-la e domesticá-la. Por uma série de experiências corporais, o homem como
leitor, afrontou mistérios, descobriu e criou coisas e se constituiu leitor que agiu, interagiu no
mundo e desvelou a linguagem humana.
Segundo Paulo Freire (1986), aprender a ler é antes de mais nada aprender a ler o
mundo; compreender uma realidade, interagir num espaço social, a partir da relação
linguagem e ação. O processo de leitura se realiza no movimento dinâmico de ler o mundo e
flui no corpo humano carregado de significação existencial: uma ―prática refletida‖ – a
tradução de leitura do ser humano. Do ponto de vista da Educação Física, podemos dizer que
ler o corpo é estudar a humanidade: sua construção histórica, cultural e social no seu discurso
motriz. Como instância da linguagem corporal, a dança é objeto do corpo de conhecimento da
Educação Física; disciplina que a analisa, interpreta e a explica, como resultante da cultura.
Assim, ler através da é uma prática de leitura. É pelo uso do corpo em movimento que o
homem se produz, se humaniza e se realiza na produção de uma cultura técnica que (a dança)
determina o tipo de leitura que produzimos2.
No livro A importância do ato de ler, Paulo Freire reconhece o seu mundo da infância
pela leitura. Ele revivia o seu quintal, lembrando objetos, conhecimentos, sentidos e sabores.
O modo com que ele lia o seu mundo precedia a leitura da palavra: ler é viver, conhecendo-se,
construindo o seu mundo em permanente interação. Dessa forma, as disciplinas das
2 O corpo é um território revelador, porque não pode nada esconder. Porque ele é o lugar da vida, cultura e
circulação, é o lugar das relações sociais, do trato entre os indivíduos e da manifestação total do ser. (Lopes, L.
P. M. Discurso, corpo e identidade: masculinidade hegemônica com comunidade imaginada na escola Revista
Gragoatá, Niterói p. 207-226, 2, sem. 2001, UFF organizada pela professora Elizabeth Chaves)
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linguagens precisam considerar um leitor do mundo que se interroga, interpreta, pensa e
captura recortes do mundo nas suas experiências corporais. Ao propor a dança para a
apropriação da leitura, buscamos dar visibilidade à condição de ler necessariamente implicada
no corpo dos sujeitos que dançam uma escrita coreográfica que a literatura atravessa.
EXPERIMENTANDO A DANÇA COMO LINGUAGEM
A dança como objeto da linguagem estuda o corpo virtual, resultante das obras de
artes dos homens. A dança é uma prática usada, de natureza cultural, para dar movimento ao
viver-fazer artístico do homem. O ato de ler o homem se reflete também no território da
dança, o que nos possibilita definir metaforicamente o corpo como uma escrita virtual de uma
obra literária.
Assim, entender a leitura do ponto de vista corporal é interpretá-la como um mundo
virtual, a partir da produção técnica de um sistema de ações que caracterizam as danças
coreográficas. O caráter da dança nos possibilita entende-la como um sistema de ações que
leva a criação de objetos técnicos que se encontra no corpo seu espaço para se expressar.
A linguagem corporal é considerada importante e fundamental na apropriação da
leitura. Basta considerar que a dança é na sua maioria, baseada em situações que dependem
prioritariamente de encenações corporais sobre conteúdos literários. Uma pesquisa
interessante de pesquisa sobre leitura, na qual Foucault (1987) a partir de uma obra: ―Las
Meninas‖ de Velásquez procura investigar a integração da informação sígnica na leitura
visual do quadro, o qual, autor, personagens e cenário são integrados como prova da própria
obra de arte. Ao pesquisar aspectos estruturais, visuais em um quadro de pintura, Foucault
admite a dificuldade de ler e dos cuidados que devemos ter com a leitura devido à enorme
polissemia sígnica enviadas pelo texto do autor. Rousseau (apud DARNTON, 1986) também
menciona a leitura de Jean-Jacques por trás dos textos, para o reconhecimento das faces e da
descrição corporal dos autores, o que rompe as barreiras que separam o escritor do leitor e
sugere em seu livro Émile ir além daquilo que pode ser apenas posto na escrita (p. 301). Essa
tendência rosseauísta nos estudos passados sobre a leitura examinou autobiografias,
depoimentos, expressões corporais, em que leitor e escritor comunicam-se, cada um deles
assumindo a forma ideal imaginada nos textos.
Se a comunicação entre o leitor e o escritor é seguramente real e provavelmente
possível (DARNTON, 1986); a leitura não se reduz à mera introspecção ou a um texto vazio,
mas ao compartilhar com outros. Assim, a leitura guarda no seu bojo literário, características e
especificidade corporais com relação dinâmica entre a comunicação, linguagem e as artes que
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não têm sido pedagogicamente exploradas nos programas de leitura ou na educação formal. O
que se pode ler na experiência de dizer pelo próprio corpo? Qual o papel da linguagem
corporal na construção do conhecimento literário no interior da escola?
Na concepção de leitura rousseauísta, identificamos a comunicação discursiva,
ecológica e experimental, com uma atenção explícita na construção, e a divulgação da leitura
relacionada à imagem e a dinâmica sócio-cultural do leitor. Suas propostas teóricas e
metodológicas orientam-se fundamentalmente para a pesquisa sobre a leitura coletiva, em voz
alta, na família, em reuniões sociais, enfim em contextos naturalmente diferenciados, com a
elaboração do imaginário individual, por meio da relação leitor/escritor.
Iser (1999) nos adverte para o desenvolvimento de ―instrumentos interpretativos‖ do
ato de ler, através dos quais diferentes estruturas de constituição de sentido são examinadas e,
logo, decodificadas, ou seja, o analista deve fornecer uma certa interpretação para um
determinado texto (p. 11). Ele propõe a estética da recepção, referindo-se a um esforço
heurístico que podemos conceber na leitura de um texto, percebendo sinais, conceituando
fatos organizar modos de interpretação, caracterizados na experiência de ler, que não se
restringem apenas a um funcionamento estrutural indicado pelo texto. Pelo contrário, na
abordagem iseriana se almeja um sistema de referências no âmbito do qual as realizações de
leituras adquiram sua especificidade. Não se trata de elaborar métodos particulares de
interpretação, mas de mapear as disposições mais básicas no interior dos quais o ato
interpretativo se torna concebível e necessário.
JOGANDO E APRENDENDO COM AS LINGUAGENS
No processo de inserir os aparatos de referência teórica e metodológica, vamos
apresentar o nosso material empírico, com entrevistas e análise de aulas em situações
literárias, registradas em um contexto de dança na escola, a qual a literatura foi tematizada e
apresentada através do corpo. Procuramos investigar o desenvolvimento da leitura na dança,
enfocando as relações de ensino e aprendizagem de textos literários representados na dança-
educação. Colhemos os dados da literatura em entrevistas e filmagens em três escolas, com
três professoras de dança, em horários previamente combinados. Sendo assim, as práticas
corporais a partir da dança foram pensadas e postas em ação, uma vez que correspondiam aos
nossos interesses de mostrar a apropriação e a apresentação da leitura pelo corpo.
A discussão sobre ―como ler‖ mostrou-nos de uma forma geral uma certa
concordância com a necessidade da transformação da leitura escolar. As professoras3 as quais
3 As professoras Arabel e Liliam Mattos são professoras Educação Física do Ensino Fundamental e possuem um
conhecimento acumulado sobre literatura e dança construídos num fazer leituras que possuam sentido na escola.
A Questão do Corpo
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estabeleci diálogos tinham muito claro o que é um novo paradigma de leitura e mostraram os
seus saberes sobre ―como fazer‖ leitura na escola de uma forma diferente.
Este foi o ponto de partida. A leitura com os seus conhecimentos corporais e os seus
diferentes modos de apreender um livro e as possibilidades de ampliação, transformação da
leitura. Tomamos a dança nas leituras vividas, como o fio condutor dos nossos encontros,
tecido pelo modo de olharmos as diferentes práticas de leitura no cotidiano escolar.
As discussões travadas ao longo dos encontros sobre suas práticas e suas
possibilidades de despertar o gosto da leitura através da dança se basearam em perguntas
abertas sobre ―um diferente modo de ler‖ que as professoras buscavam responder, surgiram
práticas interessantes com coreografias e leituras. Eis as questões: como apresentar um outro
tipo de leitura para o aluno? Como fazer diferente? Como fazer diferente e o aluno se
apropriar do gosto de ler? Como garantir que cada aluno tenha as oportunidades de se
expressar corporalmente? Como construir uma ação pedagógica em que o corpo seja
reconhecido no ato de ler? Como criar espaço na escola para a leitura corporal? As ações das
professoras na condução do processo de leitura através da dança mostram, nesse sentido, a
literatura orientada para traduzir os possíveis significados coreográficos na produção de várias
leituras. É isso que buscaremos mostrar nesse ensaio.
A preocupação com a inclusão de entrevistas e filmagens como forma de registro
remontou a literatura pelos gestos capturados como leitura, substituindo o objeto livro no
percurso da coreografia. A sucessão de movimentos elaborados, de imagens corporais ganham
nova materialidade na leitura e o sólido conhecimento do texto é dissolvido na ação corporal.
Essa forma de leitura considera uma especificidade de lembrar e capturar o texto. Certos jogos
corporais falam as formas transcrever o texto, de análise, de leitura e de interpretar os atos
corporais No trabalho de dirigir a coreografia, a professora e os alunos têm a intenção de
prescrever as minuciosidades dos movimentos técnicos a partir do texto, de estudar a
coreografia e do cenário. No trabalho de sentir o texto, nós (leitores), buscamos captar e
distinguir o enfoque literário, os ditos corporais com música no fundo. Numa nova abordagem
da fita de vídeo, trabalhamos com as possibilidades de significação dos bailarinos, o que
buscavam dar relevo, realce e destaque na obra literária. O detalhe do movimento vira um
acontecimento, o que é invisível no texto torna-se tema, narrado apenas no corpo.
Em uma outra forma de exercício literário, a professora apresentou a dança sem o som.
Registramos o corpo dos bailarinos conduzidos pelos recortes dos textos literários, buscando
falar corporalmente na cena, os movimentos e as ações dos bailarinos que dançam, interagem
entre eles, sentam, levantam, correm, aproximam-se do público, apontam para o cenário e
usam segmentos corporais para dizer alguma coisa. Em alguns momentos passamos a
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observar o cenário, os elementos do palco e os materiais disponíveis e percebemos a
possibilidade da leitura de uma história. Na movimentação dos bailarinos, alguns sinais
corporais nos indicaram um tema em andamento. As atenções dirigem-se para os corpos dos
bailarinos que os nossos olhos também focalizam como forma de leitura, modos de dançar, de
falar corporalmente imprimem a relevância do tema. São seus modos de significação literária.
O dizer corporal orienta e restringe a leitura e o olhar do público. O cenário limita a leitura do
público.
Depois, iniciamos outra forma de leitura com uma pergunta: Como surge um
determinado espaço na dança?4 Fala-se do espaço? Como é que se fala do espaço
corporalmente? Perto, longe, dentro, fora como se aprende a pensar o espaço e representá-lo?
Nomear o espaço, conhecer o espaço, marcar o espaço e registrá-lo corporalmente. São
objetivos na leitura de uma obra de arte na dança. Como o corpo demarca, circunscreve, se
situa no palco, ordena, organiza, refere-se a algo. Nas formulações corporais de um grupo de
dança contemporânea identificamos o espaço marcado na dança. Marcas de um desenho
geométrico socialmente constituído e vivenciado nos corpos dos bailarinos forjando os
conceitos de limitação espacial, de pausas nos traços e linhas do desenho, dando ao público a
possibilidade de leitura dos desenhos ortogonais da obra de Mondrian através da dança.
O espaço, como tema e modo de ler pela recepção visual de uma dança, incorpora na
atuação coreográfica o espacial inscrevendo outros modos de leitura. O espaço produzido
corporalmente trás uma referência fundamental nas atividades artísticas. São outras formas
culturais de registro que também deixam marcas de leituras para o público. O espaço marcado
pela dança, conduzido como linguagem. O corpo transformado e constituído pelos modos de
fazer leituras, de agir e pensar através de fontes artísticas. Essa forma de uso da linguagem
insiste e persiste na busca da leitura.
Nesse sentido, analisamos caminhos diferenciados de leituras, que podem advir
constructos teóricos distintos, com intervenções concretas que estão relacionadas com a
constituição do sujeito leitor. Da identificação e a discussão dessas questões foram surgindo
caminhos pedagógicos de produção e organização da leitura no espaço escolar; sobre a
constituição da literatura corporal; sobre a transformação das práticas de leitura sem sentido
para os alunos.
O trabalho parte desse quadro pedagógico interpretativo como um todo, tratando do
intercâmbio entre a linguagem corporal, da literatura e os estudos da linguagem, buscando
4 Uma série de espetáculos de dança vem sendo mostrada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) no mês de
abril de 2004, com uma programação variada sobre os conceitos de espaços em que as coreografias são feitas
para influenciar na leitura de temas especiais a partir da dança contemporânea com o tema: ―O espaço que nos
inspira‖.
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compreender e conceituar modos de elaboração e transmissão literária nas práticas corporais,
principalmente no contexto escolar. Entendendo a linguagem corporal com atividade sígnica e
constitutiva da experiência estética, da cultura, patrimônio histórico e artístico, analisamos
situações corporais vivenciadas pela literatura enfocando a dança como expressão prática
interativa entre o fictício e o imaginário do aluno.
Proponho uma concepção pedagógica em que a leitura precisa ser apropriada como
vivência, como experiência necessária importante, lúdica com envolvimento prático. É a ação
da leitura que mais nos interessa como atribuição de significados de ordem corporal tentando
entendê-la como narrativa, como relatos para um grupo que seja praticado como algo que
possa ser realizado e ao mesmo tempo vivido e assim supere o caráter utilitário da leitura
escolar.
A leitura utilitária é aqui denunciada como uma leitura em fragmentos, onde os textos
para leitura são incompletos, curtos: mensagens, trechos, resumos e informações. São partes
inacabadas, sem sentido que marcam o ato de ler em pedaços freqüentemente interrompidos
pelo aluno que não consegue estabelecer com o texto, a fruição, o divertimento e a
interlocução. Este tipo de leitura se caracteriza pela falta de espaço de leitura na escola. Falta
espaço para o contato com textos, obras literárias e práticas corporais que incentivem a leitura
como vivência. Eis o problema. Apesar de se falar muito sobre leitura na escola e muitas
propostas serem apresentadas, mas que tipos de livros são lidos pelos alunos? Existem
livrarias em todos os bairros e municípios brasileiros? Qual o modo mais frequente do aluno
obter um livro? Existem bibliotecas em todas as escolas? Além do paradoxo, as novas
tecnologias com sua modernidade e a quantidade de informações e estímulos que chegam aos
alunos estão cada vez mais afastando os alunos da experiência corporal. Isto torna a leitura
uma atividade estática e sem sentido. A leitura imediata, a-temporal que não permite a
reflexão, a criticidade, relacionamento com o escritor, e depois nada se fala, a história fica
fragmentada, o aluno não se sente parte dela e não pode continuá-la ou modificá-la.
A leitura corporal impressiona de um modo diferente quem lê. Ela move as ideias,
ações, valores e sentimentos que nos são afetados corporalmente, quando a praticamos. Levar
essa prática para o contexto escolar é o desafio que lançamos para os professores. Essa
prática, por considerar o processo de apropriação da leitura como vivência engendra atos,
técnicas e formas como uma prática refletida, fundamental para a leitura compartilhada com o
escritor, professor e alunos.
Compreender a leitura a partir desse olhar superador, tem implícito o reconhecimento
da importância da leitura como vivência na escola, movimenta o que podemos fazer com e
sobre os livros, textos que lemos, trocamos e refletindo corporalmente. A professora Liliam
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Mattos diz que sempre partiu dos livros para criar situações corporais de contos, poesias
através da dança partilhando sentimentos e reflexões junto com seus alunos, representando
para o leitor a arte narrada corporalmente. Assim a professora assevera: ―O que trás vida para
a leitura é entrar numa prática que a leitura pode ser partilhada com os seus interlocutores,
tanto para que lê quanto para quem pode proporcionar a leitura, coreografando a literatura, a
poesia, os textos com uma dimensão artística de clássicos literários, diferentes gêneros e
estilos.‖
O modo de realização dessa prática é capaz de inserir uma prática refletida no
momento que acontece e se situar em qualquer espaço da escola onde se podem concretizar
situações em que o grupo assume o caráter de narrar corporalmente uma história construída
coletivamente, uma música, registrar ações de personagens ou grupos que foram lidos por
aqueles que coreografam, seja uma autobiografia, relatos ou histórias de vida. A isso
chamamos de vivência da leitura, a leitura em ação, real e corporal permitindo fazer e refazer
o processo de ler, sistematizando e suavizando-a através da dança.
Nesse sentido, ler, para nós, significa representar, interferir no processo de
apropriação, deixar as marcas corporais nos traços da escrita. Dançar textos e histórias
interpretadas pela própria experiência corporal, singular e coletiva, engendrando novos
sentidos para a superação da dureza da leitura instrumental.
É preciso lembrar que no âmbito da rede eletrônica, os jovens têm outros modos e
lugares de ler. Lê-se nos jogos eletrônicos, nas aventuras do RPG, nos blogs, na internet, em
toda uma produção atual que faz uso de meios tecnológicos que favorecem que lêem e
escrevem. Essa é uma prática de leitura experimentada que a escola precisa reconhecer e
também com ela aprender.
Minha escolha se insere na linguagem como ação e se caracteriza no discurso motriz.
Iser, Rosseau, Austin, Vygotisky e Fihs são os que mais ostentam as dimensões da linguagem
constitutiva, social, enunciativa e performativa do ser e tem investigado esta como atividade
social, coletiva, motivada e contextualizada, pelos quais, o discurso motriz pode intervir como
educação e cultura. Desse modo, esses autores ressaltam a ―linguagem como ação‖,
destacando o uso da enunciação geral que tem como principal finalidade a comunicação social
e histórica do ser. Eles estão atentos para a produção de sentidos em fatos e eventos,
entendendo que as ideias significativas expostas nos panoramas comunicativos dentro da
linguagem humana devem ter algum modo de leitura ou representação social que se alicerça
na performance cultural de quem as usa.
Iser (1999), ao falar da teoria da recepção, sugere a leitura perceptiva do leitor com
relação direta com suas bagagens culturais ou autobiográficas. O autor diz que a formação do
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―eu‖ do leitor está no encontro de várias vozes e nas suas representações sociais. Ele também
menciona que os efeitos da recepção na ficcionalidade devem ter algum tipo de efeito na
realidade sócio-psicológica do sujeito.
Essa direção fundamenta a relação entre a ficção, a realidade psicológica do sujeito, a
linguagem e a literatura. Nesse sentido, as questões relacionadas aos modos da construção
literária, da leitura, da instância ficcional buscam diversas possibilidades pedagógicas para a
produção da leitura, espaços e tempos singulares para a construção literária e variados
contextos para a linguagem ficcional se manifestar.
Tais possibilidades surgem tanto no texto, quanto das disposições
peculiares do leitor: o texto permite diferentes opções, as tendências
próprias do leitor, diferentes insights. E como não há sentido
específico no texto, essa aparente deficiência é, na verdade, a matriz
produtiva que torna o texto significativo, que lhe permite fazer sentido
em diversos contextos históricos. (ISER, 1999, p. 33)
Portanto, quero argumentar que analisando os movimentos corporais em forma de
dança, dentro de uma perspectiva literária, podemos ler corporalmente o funcionamento de
um texto coreográfico, e podemos também estabelecer elos entre a literatura e a linguagem
corporal.
A maneira como Vygotsky, fala do funcionamento do signo e o modo educacional de
se interpretar a interação semiótica na história social do sujeito nos sugerem que a dimensão
sígnica não pode estar ausente das questões de ordem literárias no interior da escola. A
realidade inter e intrapsicológica do sujeito são de natureza histórica e social,
fundamentalmente mediadas e construídas por signos. As atividades corporais expressas pela
dança têm uma significação social, constituem-se com atos específicos na linguagem
educacional, de modo que a corporeidade do sujeito, sua história de vida, suas leituras de
mundo tornam-se possíveis no seu discurso motriz. Assim, a cultura do sujeito, construída
significativamente pelos signos nos apresenta um caminho específico para a compreensão de
ler as escrituras corporais do ser humano.
O uso de signos conduz os seres humanos a uma estrutura específica
de comportamento que se destaca do desenvolvimento biológico e cria
novas formas de processos psicológicos enraizados na cultura.
(VYGOTSKY, 1991, p.45)
Compreendendo que os signos são representações mentais que substituem os objetos
do mundo real, podemos considerar o corpo como um elemento mediador do livro, do texto,
da escrita, da palavra, com uma ação para significar algo, como atividade constitutiva
coreográfica de um evento literário. Concebemos assim, a dança como um modo de ler
situado, contextualizado, em que podemos analisar versões de fatos literários com efeito
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estético corpóreo e expressivo, compreendendo a leitura como produção cultural de signos e
sentidos. Queremos experimentar a leitura integrada com os processos de significação
corporal dos alunos. Os pressupostos teóricos dos signos, os autores da linguagem e da
estética da recepção cooperam para o nosso estudo.
A conclusão a que chegamos, pois, é que todos os objetos são
construídos e não descobertos e que são construídos através das
estratégias interpretativas que colocamos em funcionamento. Isto, no
entanto, não implica a subjetividade, pois os meios através dos quais
os objetos são construídos são sociais e convencionais. Ou seja, o ‗eu‘
que realiza o trabalho interpretativo, que dá vida a poemas, indicações
de leituras e listas é um eu público e não um indivíduo isolado.
Ninguém acorda de manhã e (à moda francesa) reinventa a poesia ou
elabora um novo sistema educacional ou decide rejeitar a série em
favor de uma outra forma de organização totalmente original (FISH,
1993, p. 162)
É assim que a leitura atua na cultura, desenvolvendo em nós formas cada vez mais
complexas de interpretação de fatos e eventos, transformando assim a leitura em construções
coletivas. O efeito da dança é semelhante a um ato de leitura, cria a transmissão de
experiências, implementa um grande número de signos visuais complexos e convencionais e
abre inúmeros tipos de leituras para o ‗eu‘ realizar o trabalho interpretativo. Desse modo,
assumir pedagogicamente a ideia de mediação semiótica leva-nos a uma posição educacional
entre leitura, dança e as artes em de que o fenômeno da leitura é humano, social, coletivo e ao
mesmo tempo individual.
Da dança, passa-se à leitura. Do esforço de significação que o leitor faz ao querer
interpretar as construções artísticas pela apropriação e utilização de recursos semióticos que
este dispõe na sua vida cultural. As suas condições sociais são determinantes e vão se
constituindo em categorias que organizam diferentes modos de ler. Nessa pressuposição de
significação, Fish (1993) apresenta o olhar como um valor significativo no ato de ler:
De fato estas categorias são a própria forma do ato de ver, no sentido
de que há como se imaginar um fundamento perceptual mais básico
do que aquele que elas oferecem. Ou seja, não há como se imaginar
um momento em que os meus alunos ‗apenas vejam‘ uma
configuração física de átomos e só então atribuam a esta configuração
uma significação, de acordo com a situação em que eles se encontrem.
Estar em uma situação (esta ou em qualquer outra) significa ‗ver‘ com
os olhos dos interesses, objetivos, valores, normas e práticas
estabelecidas desta situação, e significa, portanto, conferir significação
ao ver e não depois de ver (p. 163).
Podemos ver nos corpos dos sujeitos que dançam indícios das obras de artes,
inscrevendo-se nos seus corpos os produtos de estruturas de pensamento sociais e culturais:
A Questão do Corpo
Boletim Interfaces da Psicologia da UFRRJ - ISSN 1983-5507 Vol. 3, Nº. 1, Janeiro - Junho de 2010 32
poesias, textos, desenhos, rituais e pinturas (FISH, 1993, p. 162). Podemos observar o público
apropriando-se ativamente daquilo que os seus corpos transmitem. Eles vêem, apontam,
discutem as práticas motrizes. Além do sistema da leitura apresentando uma configuração
física de textos literários e desenhos, o sistema da escrita funciona como forma de registro
coreográfico e auxílio para a representação corporal. As leituras do público são interiorizadas
na medida em que vão presenciando os atos motrizes dos bailarinos, interagindo com eles,
para ler seus corpos. Pode-se ler pela escritura corporal do outro o que ainda não conhece,
pode-se vir a saber o que ainda não sabe pelo corpo do outro. Desse modo, a dança e os seus
saberes se interpenetram então na elaboração coletiva da leitura pela transmissão artística
inserida em um livro, na pintura, nas palavras e objetos.
Mas se os ‗eus‘ são constituídos por formas de ver e de pensar que são
inerentes às organizações sociais, e se estes ‗eus‘ constituídos, por sua
vez, constituem textos de acordo com estas mesmas formas, então não
pode haver relação de adversidade entre textos e ‗eus‘ porque ambos
são produtos correlatos das mesmas possibilidades cognitivas (FIHS,
1993, p. 165).
A possibilidade de conhecimento de algo pela leitura, em uma determinada situação
depende da ajuda dos signos. Os usos dos signos permitem ao leitor ampliar seu ‗eu‘, mediar
suas leituras. Atuando externamente ao homem, os signos realizam a constituição do ‗eu‘. Isto
é, a mediação semiótica (a mediação pelos signos) acontece no nível intrapsicológico, no
plano cognitivo, revelando a essência da leitura humana.
Nesse sentido, a leitura exige como recurso constitutivo do ‗eu‘, os signos como
instrumento que fundam uma nova maneira de se compreender o funcionamento das formas
mais complexas de leitura do ser humano, que media, regula, transforma-se e constitui uma
atividade meramente humana. A relevância fundamental das práticas corporais da leitura parte
da constituição das funções psicológicas superiores do ‗eu‘, que se organizam e regulam as
condutas simbólicas dos que dançam, cujo efeito se manifesta no jogo sedutor que as práticas
corporais constituem entre os interlocutores. Segundo Luria (1987) um aspecto importante da
cognição é o sentido que o leitor elabora e vive: ―O sentido é o elemento fundamental da
utilização viva, ligada a uma situação concreta efetiva por parte do sujeito‖ (p. 46).
Os sentidos do dizer corporal se transformam em leitura significativa, aprofundam a
busca ativa do ler, mudam os modos de elaborar a leitura, operam com signos para estabelecer
relações e interlocuções. A intenção se transforma em texto e a atenção em leitura, emergindo
na cognoscitividade o poder de constituição do seu ‗eu‘. Serão os signos motrizes que
apontarão para o leitor os objetos culturalmente significativos e que dirigirão sua leitura com
gestos literários. Será através da interação com os outros, com o livro ou com outro objeto
A Questão do Corpo
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significativo que o sujeito poderá desenvolver seu ‗eu‘. ―As relações sociais ou relações entre
as pessoas estão na origem de todas as funções psíquicas superiores‖ (VYGOTSKY, 1985 p.
54). As práticas corporais humanizam a leitura, tornando-a mais visceral e sedutora, lúdica
por excelência, que possibilita o planejamento literário/coreográfico, age no plano concreto
interpsicológico e se torna intrapsíquica quando forja o posicionamento do leitor.
Por essas considerações podemos dizer que os temas literários tratados na escola
podem expressar um sentido/significado onde dança e literatura se interpenetram
disciplinarmente. As atividades de literárias podem dar oportunidades para que o aluno
reconheça a possibilidade de usar o seu corpo como forma de expressão e comunicação, o que
sugere o estabelecimento de situações pedagógicas de construção de textos corporalmente.
Essas situações em que a expressão corporal se apresenta como um dizer textual, desejo de ser
lido, e os destinatários, seus leitores buscam descobrir as propostas, os temas de leitura foram
apresentados anteriormente: nas atividades de leituras de diferentes espaços na mostra de
dança do CCBB; a proposta de produção coletiva de um texto entre os alunos e a professora; a
proposta de produção corporal das obras de Clarice Lispector com a professora Carlota
Portela. Segundo esta professora, para a construção de textos nos moldes corporais, os atores
sociais devem se guiar por atividades de avaliação e interpretação. São atividades em que os
alunos e professor discutam as características de gênero do texto que serão trabalhados, se o
dizer corporal tem dissonância com o texto, se há coerência no desenvolvimento das ideias
expressas no texto, se o nível do conteúdo literário corresponde às bagagens culturais do leitor
escolhido, se os recursos corporais são utilizados de forma que possa se apropriar do texto, se
a obra literária pretendida é adequada à classe, aos objetivos interdisciplinares, a situações de
interlocução professor/aluno. A professora Arabel concorda também que essas atividades
devam ser discutidas coletivamente entre professores, alunos e texto e que a revisão da obra
literária e da coreografia são procedimentos pertinentes para a reflexão e a apreensão da
prática da leitura.
Para Carlota Portela, o contato com a coreografia na produção do texto parte de uma
análise criteriosa do texto coletivamente (alunos e professor), dos problemas e dificuldades
enfrentados pelo grupo na construção do texto. Isto permitirá possíveis caminhos pedagógicos
de estruturação do texto, o uso de outros recursos de articulação dança/texto, de orientação na
comunicação e exercícios para a construção corporal do texto: exercícios para apreensão do
texto, experimentar e produzir o texto com o corpo. O fato de experimentar diferentes tipos de
espaços apresentado na mostra de dança do CCBB (descrição do espaço e do ambiente com o
corpo), segundo a professora Liliam Mattos é um bom exemplo de atividade de construção de
um texto, é um exercício de leitura para aprender a estruturar um texto relações espaciais e
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temporais (conceitos como antes, depois, aqui, agora, longe e perto), usando o corpo como
instrumento de leitura. ―Ao lado dos exercícios corporais, que são de extrema importância na
produção do texto, devemos levar o aluno a formas mais elaboradas, ao domínio das normas
cultas, das características de um texto escrito, fazer menção do gênero do texto‖.
Iser (1993) faz menção dos exercícios estruturantes do texto, faz menção da coautoria
que o leitor deve ter como responsabilidade social quando busca os recursos de coesão, de
identificação e preenchimento de lacunas de informatividade do texto, de estruturação, de
variedades de registros ao gênero literário. Tais lacunas vão sendo preenchidas através de
aproximações sucessivas do sujeito que pensa com o texto e se envolve com ele, podendo
representá-lo e mediá-lo nas suas ações corpóreas.
Na escola, essa concepção de leitura pode orientar o horizonte dos educadores
comprometidos com a formação plena do aluno, dos que buscam uma prática consubstanciada
em teorias nas áreas dos estudos da linguagem, da literatura e das práticas corporais
significativas. Desse modo, para organizar sua ação pedagógica partindo da construção
coreográfica / literária, é preciso que os professores estabeleçam bem as relações entre dança
e literatura, compreendam as práticas corporais como caminhos possíveis de representação
literária, sejam capazes de identificar a variedade artística impressa num texto e, assim prever
a polissemia de significados que os alunos enfrentarão de acordo com as suas bagagens
culturais, mas também com a intervenção que orienta para ação de preencher lacunas nos
indivíduos, comporta alguns momentos interativos, conforme menciona Iser:
Em princípio, as lacunas organizam os segmentos num campo de
mútua projeção interativa, que conduz a uma estrutura do tipo ‗figura
e fundo‘. Cada segmento lido pode ser visto como figura contra o
fundo do segmento lido antes, e o fundo, por sua vez, necessariamente
molda a figura. Essa interação latente atualizada durante o processo de
leitura, leva a uma instabilidade que se encerra com a produção de
uma gestalt 5 (1993, p. 30).
Por outro lado, é necessário que os educadores conheçam o processo sígnico da
aprendizagem de um texto literário. Este conhecimento deve estar associado à compreensão
das relações entre a literatura e a dança, permitindo ao professor orientar as coreografias
literárias, o que pode ser dito corporalmente, identificar como o processo de leitura e o aluno
se encontram, interpretando hipóteses com que o grupo opera, levando-os a confrontar essas
hipóteses com a experiência corporal, com as convenções literárias, os gêneros, etc.
5 Pedagogicamente, a teoria gestalt supõe atividades de diferentes naturezas em que o sujeito possa falar do seu
mundo, ser espontâneo, mostrar a sua situação psicológica e social, e assim atuar com e seu mundo buscando a
compreensão de si mesmo e ao mesmo tempo sendo acompanhado por um professor facilitador da sua
aprendizagem.
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Desse modo, a sequência de ideias que se forma na mente do leitor
com base na estruturação prefigurada do texto, isto é, nas suas
operações estruturantes previamente determinadas, é a maneira pela
qual o texto é traduzido na imaginação do leitor (ISER, 1993. P. 31).
Além disso, para definir a ação pedagógica na direção e orientação da apropriação da
leitura literária pelos alunos, o professor precisa compreender e assumir a linguagem como
ação, de leitura como atividade coletiva, precisa ter clareza da expressão corporal, do que é
arte, o que é uma coreografia. Precisa compreender os princípios que falam das relações
escritor / leitor, texto / leitor e precisa conhecer as peculiaridades de diferentes gêneros
literários, os níveis de tratamento pedagógico de diferentes textos.
Urge a necessidade de uma mudança significativa na concepção dura de leitura e é o
que vem ocorrendo desde o século XVII, e é interessante que essa mudança também deva
chegar às escolas, sobretudo às escolas públicas do ensino de jovens. Todavia, as respostas
que o nosso trabalho tentou dar às questões no início do nosso estudo parecem deixar claro a
função social que tem a escola na orientação do processo de apropriação da leitura,
conduzindo os alunos da exploração corporal dos textos à leitura, com a dança levando-os a
conhecer melhor a literatura para a interlocução e a expressão cultural.
É importante ressaltar que a concepção de leitura que defendemos se faz presente em
algumas manifestações artísticas em nível nacional, especialmente àquelas integradas no
quadro de novos caminhos para a arte contemporânea neste momento, ensinando a arte, a
literatura, a dança; assim como as professoras mencionadas, que deram uma direção e
algumas orientações pedagógicas, que podem ser exercidas e fundamentadas em uma teoria
segura, culminando num processo sólido para formação do leitor. Acreditamos que a
socialização desse trabalho fornecerá os elementos de base, para a construção de uma
perspectiva pedagógica, de formação do leitor, via a dança que supere a dureza das práticas
fragmentadoras e que venha responder os desafios para o gosto da leitura nos nossos dias.
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A Questão do Corpo
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NIETZSCHE E A NOBREZA DOS INSTINTOS CORPORAIS
Luiz Celso Pinho6
―Outrora, a alma olhava desdenhosamente o corpo; e esse desdém era
o que havia de mais elevado; queria-o magro, horrível, faminto.
Pensava, assim, escapar-se dele e da terra‖ (NIETZSCHE, Friedrich.
Assim falou Zaratustra, Prólogo, # 3).
Resumo
Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche se refere a um tipo de indivíduo que considera
todos os instintos sagrados. Pretende, com isso, ressaltar a indelével aliança entre Corpo,
Terra e Vida, que o pensamento metafísico desfaz ao distinguir dois tipos de mundo: o da
experiência sensível, e outro inacessível aos sentidos. Mas seu intuito reside também em
assinalar que o aspecto instintivo é a base – segura e precisa – a partir da qual nos damos
conta do que somos e daquilo que nos rodeia (função esta que Descartes atribui à
Consciência).
Palavras-chave: corpo, vida, fisio-psicologia nietzschiana, metafísica.
Résumé
Dans Ainsi parlait Zarathoustra, Nietzsche se rapporte à un type de personne qui croit
que tous les instincts sont sacrés. Il s‘agit donc de souligner l'alliance indélébile entre le
Corps, la Terre et la Vie, que la pensée métaphysique défait en distinguant deux types de
monde: celui de l'expérience sensible et d'autre inaccessible aux sens. Mais son but c‘est
également de signaler que l'aspect instinctif est la base – à la fois plus sûr et précise – à partir
de laquelle nous nous rendons compte de que nous sommes et de ce qui nous entoure (une
fonction qui Descartes assigne à la Conscience).
Mots-clés: corps; vie, physiopsychologie nietzschéenne, métaphysique.
I. UM PONTO DE PARTIDA: DELEUZE
Uma passagem da Ética (1667)7 de Espinosa retrata, de acordo com Deleuze, em pelo
menos duas ocasiões – Nietzsche e a filosofia (1962) e Espinosa e o problema da expressão
(1968)8 –, uma linha de investigação praticamente deixada de lado ao longo da História da
Filosofia: ―O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a
6 Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da UFRRJ / Pesquisador APQ-1 da FAPERJ.
7 Spinoza, Benedictus de. Ética. Edição Bilígue: Latim-Português. 3ª ed. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo
Horizonte: Autêntica, 2010. 8 Deleuze, Gilles. Spinoza et le problème de l'expression. Paris: Minuit, 1968.
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experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo (...) pode e o que não pode fazer.
Pois, ninguém conseguiu, até agora, conhecer tão precisamente a estrutura do corpo que fosse
capaz de explicar todas as suas funções (...)‖ (Terceira Parte, Proposição 2, Escólio, p. 167).
Do ponto de vista deleuzeano, perguntar sobre o que pode um corpo, implica compreender
toda e qualquer ―materialidade‖ como expressão de um ―campo de forças‖ múltiplo (que,
acrescente-se, tanto não se expande ou se contrai como é regido pelo princípio do Acaso). Tal
leitura, de inspiração nietzschiana, parte do pressuposto de que o organismo somático resulta
do conflito entre ―forças superiores ou dominantes‖ e ―forças inferiores ou dominadas‖
(DELEUZE, 1962, p. 45)9. Estas últimas são Reativas, e se caracterizam por querer se
conservar, se adaptar, se defender. As primeiras, diversamente, buscam a apropriação, o
subjugar, o dominar. Deleuze afirma que o corpo deve ser entendido a partir de seu poder de
afetar e ser afetado, dos encontros que proporcionam alegria ou tristeza, de sua capacidade
intrínseca de agir, em suma, do conjunto de relações que lhes são constitutivas.
Tomando como referência tais assertivas a respeito do binômio Corpo-Força,
pretendemos desenvolver uma discussão voltada para a elucidação do que vem a ser Instinto
para Nietzsche10
. Em O nascimento da tragédia (1872), instintos designam o elemento a
partir do qual irrompe uma sabedoria mais profunda através da conciliação entre as potências
apolínea e dionisíaca. Mais adiante, com A gaia ciência (1881-2), e em diversas passagens
que a antecedem, eles são diretamente confrontados com a racionalidade científico-filosófica.
Na Genealogia da moral (1887), por sua vez, a interiorização dos instintos – através da ação
inibidora do Estado ou da Religião – resulta no surgimento da Consciência (e das noções
correlatas de ―alma‖, ―eu‖, ―subjetividade‖ etc.). No entanto, o que se pretende aqui é discutir,
parodiando a indagação deleuzeana, a seguinte questão: ―O que podem os instintos
corporais?‖. Sabe-se que o termo instinto remete invariavelmente a uma instância biológica, o
que lhe confere um sentido naturalista. Essa compreensão – correta, porém limitativa – não
distingue um desejo desenfreado (estado primitivo, bestial, selvagem) de uma condição vital,
ou ainda, da expressão de uma ―vontade mais fundamental‖, na qual, como procuraremos
demonstrar, agir instintivamente equivale a entrar em consonância com o fluxo da Vida, com
o efetivar-se das forças que compõem o mundo a cada instante, com aquilo que se apresenta
como mais visceral em nós. Esse será o fio condutor do presente ensaio introdutório.
9 Deleuze estende tal ideia aos organismos sociais e políticos, e mesmo aos processos químicos (cf. DELEUZE,
1962, p. 45). O que tanto se mostra em consonância com o caráter abrangente da noção nietzschiana de Vontade
de Potência [Wille sur Macht] quanto ―explica a apreciação de doutrinas e sistemas de pensamento (...) em
termos de saúde ou doença‖ (WOTLING, 2001, p. 20). 10
Instintos, impulsos, pulsões e impulsões podem ser considerados sinônimos (cf. Machado, R. Nietzsche e a
verdade, p. 102).
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II. A IMAGEM DOS CHIFRES E DAS PRESAS
O interesse nietzschiano pelo aspecto fisiológico remonta a um dos principais textos
redigidos após O nascimento da tragédia: ―Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral‖
(1873). Nesse provocante ensaio (que em muito antecipa problemáticas típicas do período
genealógico e adota juízos incompatíveis com evidências detectadas pelos filósofos que o
antecederam) a origem do pensamento racional não é explicada a partir de algum processo de
aprimoramento, mas como uma forma de ―disfarce‖, cujo efeito principal reside na tentativa
de prolongar a existência da humanidade. Sentencia Nietzsche: somente através desse artifício
enganador ―os indivíduos mais fracos, menos robustos, se conservam, aqueles aos quais está
vedado travar uma luta pela existência com chifres ou presas aguçadas‖ (NIETZSCHE, 1983,
p. 45, grifos meus).
Ora, essa alternativa indica, sem dúvida, uma alegoria. Não corresponde a um episódio
que possa ter ocorrido em algum momento da trajetória humana. No entanto, sua dimensão
diagnosticadora se revela bastante precisa: pensar não remete à busca natural da verdade,
como apregoava Aristóteles, ou à descoberta de essências imutáveis, numa abordagem
platônica. O pensamento consiste no meio através do qual surge ―o lisonjear, mentir e
ludibriar, o falar-por-trás-das-costas, o representar, o viver em glória do empréstimo, o
mascarar-se, a convenção dissimulante, o jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo‖
(Ib., p. 46). Nietzsche pretende destacar, através dessa imagem, que a interação com mundo e
com nós mesmos não pode ficar restrita à mediação da linguagem – no seu entender,
superficial, antropomórfica e pragmática. Utilizar ―chifres e presas‖ significa, pois, agir de
forma instintiva. Seu intuito consiste em contornar as astúcias do intelecto (da lógica dos
discursos) para poder expressar o que autenticamente o indivíduo sente ou pensa. Não se trata
de uma volta a uma animalidade originária ou de uma apologia da brutalidade física, mas sim
de denunciar um erro que passou despercebido à análise filosófica da linguagem e que fica
patente num simples exemplo: alguém diz ―‗sou rico‘, quando para seu estado seria
precisamente ‗pobre‘ a designação correta‖ (Ib., p. 46).
Se adotarmos um referencial ―demasiado humano‖, a condição de riqueza indica algo
externo ao indivíduo: suas propriedades, seus bens materiais, sua renda mensal etc. Por sua
vez, para a análise fisio-psicológica de Nietzsche (que procura dar conta dos instintos
tomando como referência os valores aos quais eles estão associados), o trabalho filosófico
envolve o diagnóstico de determinada modalidade de existência a partir de uma dinâmica de
acumulação ou de transbordamento. Uma frase lapidar, encontrada no Segundo Pós-escrito de
O caso Wagner (1888), traduz o que se pretende aqui explicitar: um artista tanto ―cria a partir
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da abundância‖ quanto porque ―tem sede da abundância‖ (NIETZSCHE, 1999, p. 40). Deste
modo, a atividade criativa pode ser movida por um excedente de energia vital que impulsiona
sempre além a cada momento ou, num sentido diametralmente oposto, pela necessidade de
retê-la, pois ela está praticamente ausente ou mesmo se exaurindo.
Esse tema não é abordado explicitamente em ―Sobre verdade e mentira no sentido
extra-moral‖. Além disso, o termo instinto, quando aparece nesse ensaio, remete
inevitavelmente a uma necessidade de conservação, como já afirmamos, a uma artimanha – na
qual a figura do Intelecto representa seu símbolo maior. A alusão aos ―chifres e presas‖
permite justamente abrir caminho para uma discussão que se tornará central no pensamento
nietzschiano, notadamente por ser um dos pilares de sua recusa à reflexão filosófica
tradicional. De acordo com Foucault, o que está em jogo é o confronto entre uma avaliação
que toma como referência a estrutura corporal (―o sistema nervoso, os alimentos e a digestão,
as energias‖) e uma valorização da esfera espiritual (―as formas mais elevadas, as ideias mais
abstratas, as individualidades mais puras‖): de um lado, acontecimentos que remetem ao
―próximo‖ e inauguram uma Filosofia do Presente; de outro, que apontam para o ―longínquo‖,
em direção ao campo da Metafísica (FOUCAULT, 1994, p. 149).
III. ZARATUSTRA E A INVERSÃO DE PRIORIDADES
Dois capítulos, no início da Primeira Parte de Assim falou Zaratustra (1883-5), são
fundamentais para o entendimento dos motivos que levam Nietzsche a combater a oposição
metafísica entre a vivência sensível cotidiana e uma realidade que, além de inacessível aos
sentidos, caracteriza-se por sua superioridade ontológica (lugar das essências), epistemológica
(fonte da verdade), genética (momento originário, antes da ―queda‖ no reino dos simulacros)
e, até mesmo, axiológica (envolve o que é considerado de maior valor): ―Dos ultramundanos‖
[Von den Hinterweltlern] e ―Dos desprezadores do corpo‖ [Von den Verächtern des Leibes].
Ambos não apenas se sucedem diretamente na ordem dos discursos de Zaratustra como
também são mutuamente complementares ao afirmarem categoricamente que ―enfermos e
moribundos‖ são todos aqueles ―que desprezaram o corpo e a terra e inventaram o céu‖
(NIETZSCHE, 1989, p. 49). Daí serem nomeados de os ―pregadores da morte‖ (Ib., p. 50).
Expressão esta contemplada com um capítulo homônimo também na Primeira Parte e
aplicável aos que se sentem atraídos ―para fora desta vida‖, que propagam as ―doutrinas do
cansaço e da renúncia‖, e para os quais a existência terrena não passa de ―árduo trabalho e
inquietação‖ (NIETZSCHE, 1989, p. 61-2).
Essa desqualificação do mundo terreno e da existência corporal reflete uma atitude
predominante no âmbito filosófico e religioso, o que leva Nietzsche a realizar, nas duas
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passagens acima destacadas, uma ―imponente defesa da imanência‖ (GIAMETTA, 1996, p.
22). Sendo que tal postura se mantém inalterada até seus últimos escritos. Conceder primazia
ao corpo significa, pois, adotar a perspectiva da Terra e da Vida como princípio de avaliação
da forma como vivemos e interpretamos o mundo e a nós mesmos, assim como as teorias
filosóficas. Eis porque a perspectiva fisio-psicologia define a Alma como má (cf. Genealogia
da moral, Primeira Dissertação, # 6, p. 29), como uma noção que permitiu ―à grande maioria
dos mortais, aos fracos e oprimidos de toda espécie, enganar a si mesmos com a sublime
falácia de interpretar a fraqueza como liberdade‖ (Ib., # 13, p. 45), como superstição (Além do
bem e do mal, Prólogo, p. 7), como ―causa imaginária‖ (O anticristo, # 15, p. 20), como
―instrumento de tortura [e] sistema de crueldade‖ (Ib., # 38, p. 44), como ―conceito auxiliar
de moral‖ (Ecce homo, ―Aurora‖, p. 116).
No Prefácio tardio de A gaia ciência (1881-2), redigido em 1886, fica claro o erro de
se ter atribuído a Alma um estatuto superior em relação ao Corpo: ―por trás dos mais altos
juízos de valor, pelos quais até agora a história do pensamento foi guiada, estão escondidos
mal-entendidos sobre a índole corporal, seja de indivíduos, seja de classe, ou de raças
inteiras‖ (NIETZSCHE, 2001, p. 12). Além de alertar criticamente que a Alma ―foi até o
momento o mais sólido artigo de fé sobre a terra‖ (NIETZSCHE, 1988, p. 45), Nietzsche, no
capítulo ―Dos preconceitos dos filósofos‖, de Além do bem e do mal, insiste que se faz
necessário elaborar novas hipóteses para defini-la: algo ―mortal‖, uma ―pluralidade do
sujeito‖, a ―estrutura social dos impulsos e afetos‖ (NIETZSCHE, 1992, p. 19).
Os defensores de um mundo superior, situado no Além, sempre ―desprezaram o corpo:
não o levaram em conta: mais ainda, trataram-no como inimigo‖ (NIETZSCHE, 2008, p.
136). Já Zaratustra considera que ―o homem já desperto, o sabedor, diz: ‗Eu sou todo corpo e
nada além disso; e alma é somente uma palavra para alguma coisa no corpo‘‖ (NIETZSCHE,
1989, p. 51). Temos aqui uma clara distinção em relação a Descartes, que defendia justamente
o oposto: ―eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste no pensar, e que, para ser,
não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material‖.11
É preciso ressaltar, como assinala Wotling, que, ―longe de defender uma posição
materialista, Nietzsche repensa o estatuto do corpo fora de qualquer referência à matéria
(WOTLING, 2001, p. 34). Deleuze reforça essa concepção ao pensar a dinâmica biológica
norteada por um conjunto de forças heterogêneas num estado permanente de tensão entre si:
―o corpo é um fenômeno múltiplo, sendo composto de uma pluralidade de forças irredutíveis‖
(DELEUZE, 1962, p. 45). Tal entendimento está em consonância com o aspecto monista do
11
Descartes, René. Discurso de método [para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências].
Introdução de Gilles-Gaston Granger; prefácio e notas de Gérard Lebrun; tradução de J. Guinsburg e Bento
Prado Júnior. 2ª ed. São Paulo: DIFEL, 1973, p. 67 (Quarta Parte).
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pensamento nietzschiano, que é reforçado pela seguinte advertência: ―a nós, filósofos, não nos
é dado distinguir entre corpo e alma, como faz o povo (...)‖ (NIETZSCHE, 2001, p. 12).
Deste modo, pode-se afirmar que, num caminho inverso ao que foi reiteradamente dito desde
os primórdios da cultura ocidental, tanto a Alma consiste numa ―espiritualização do corpo‖
quanto o Corpo representa uma ―somatização da alma‖ (GIAMETTA, 1996, p. 23): ―alma e
corpo são, em suma, a mesma coisa, (...) não são contrários, não se opõem‖ (IZQUIERDO,
2000, p. 55).
A inversão nietzschiana dos valores fica patente quando Zaratustra define o corpo a
partir de dois aspectos incompatíveis com o que tem sido propalado através da História da
Filosofia: ―soberano poderoso‖ e ―sábio desconhecido‖ (NIETZSCHE, 1989, p. 51). Essas
definições associam o corpo, por um lado, ao exercício de um poderio; por outro, a uma
forma de sabedoria. Mas o que significa essa modalidade de Poder-Saber?
Em primeiro lugar, como já indicamos, isso não implica reduzir (a exemplo de um
materialismo simplório) o orgânico à sua estrutura visível, pois ―o que repousa oculto atrás da
consciência, o que se chama corpo, é um território extenso cujos limites não podem ser
verificados‖ (IZQUIERDO, 2000, p. 56). Zaratustra concebe o corpo como uma instância que
―compara, subjuga, conquista, destrói. Domina e é, também, o dominador do eu‖
(NIETZSCHE, 1989, p. 51). Mais ainda, não apenas através dele obtemos ―a solução dos
problemas fundamentais‖ (GRANIER, 1988, p. 92) como ele ―atravessa a história (...) e o
espírito é o eco de suas lutas e vitórias‖ (NIETZSCHE, 1989, p. 89-90). Nesse sentido, o
corpo, além de poder ser definido como ―superfície de inscrição dos acontecimentos‖
(FOUCAULT, 1994, p. 143), constitui a matriz a partir da qual todo querer se expressa, ou
ainda, nas palavras de Zaratustra, corresponde a uma modalidade de racionalidade superior:
―‗Eu‘ – dizes; e ufanas-te dessa palavra. Mas ainda maior – no que não queres acreditar – é o
teu corpo e a sua grande razão: esta não diz eu, mas faz o eu‖ (NIETZSCHE, 1989, p. 51,
grifos meus). Em suma, através da inversão operada por Zaratustra, a Alma perde seu estatuto
milenar de fonte de conhecimento.
IV. INSTINTOS NOBRES E INSTINTOS DECADENTES
O diagnóstico fisio-psicológico realizado por Nietzsche denuncia que todo o processo
civilizatório resulta de uma série de ―mentiras oriundas dos instintos ruins de naturezas
doentes, nocivas no sentido mais profundo‖, ou ainda, de conceitos mentirosos como: ―Deus‖,
―alma‖, ―virtude‖, ―além‖, ―verdade‖, ―vida eterna‖, entre tantos outros (NIETZSCHE, 1986,
p. 77), o que resultou numa insidiosa ―reinterpretação dos instintos naturais como vícios‖
(NIETZSCHE, 2008, p. 103).
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Temos aqui duas formas de compreender o emprego do termo Instinto: uma ligada à
decadência do pensamento ocidental e outra que procura resgatar valores historicamente
desqualificados por estarem vinculados à esfera mundana. No entanto, faz-se necessário
destacar que, do ponto de vista estritamente conceitual, a terminologia nietzschiana não
obedece a critérios bem delimitados. Inicialmente, Nietzsche se refere a instinto tanto no
singular quanto no plural. Encontramos expressões do tipo: ―instinto de rebanho‖ (Genealogia
da moral, Primeira Dissertação, # 2) e ―instinto teológico‖ (O anticristo, # 9), ambos
designado um apequenamento da Vida. Mas há referências destoantes como: ―instintos
reguladores inconscientes‖ (Genealogia da moral, Primeira Dissertação, # 10), ―instinto de
auto-restabelecimento‖ (Ecce homo, Prólogo, # 2), cujo teor se mostra afirmativo e expansivo.
Independente desses usos heterogêneos, trata-se de um ―centro de perspectiva a partir da qual
se elabora uma interpretação (...) – uma expressão particular da vontade de potência‖
(WOTLING, 2001, p. 34).
Nietzsche ora se refere a um estado de nobreza (cf. O anticristo, # 59, p. 76) ora a um
estado de decadência, de modo que a efetiva vitalidade do homem depende de suas condições
orgânicas. Não no sentido de algo que possa ser mensurado quantitativamente (e mesmo
qualitativamente), mas em função de um princípio de intensidade, onde se ―manifesta o
instinto aristocrático e o vulgar‖ (COLLI, 1996, p. 110). São duas modalidades distintas de
expressar as forças inerentes à materialidade corpórea.
Uma demonstração exemplar desses ―processos pulsionais hierarquizados‖
(WOTLING, 2001, p. 19) reside na análise fisio-psicológica do regime elaborado por Luigi
Cornaro12
, cuja repercussão no século XVI foi notável. Seu cardápio consistia da ingestão
mínima de alimentos, somente do estritamente necessário (pão, uma gema ovo e um pouco de
carne e sopa por dia bastavam para adoecê-lo severamente)13
. Não se ―exceder‖ nas refeições
seria, para Cornaro, um método seguro para uma existência longeva e virtuosa. Porém,
Nietzsche, ao avaliar tal prática alimentar, chega a uma conclusão destoante:
O bom italiano via em sua dieta a causa de sua longa vida: ao passo
que a precondição para uma longa vida, a extraordinária lentidão do
metabolismo, o baixo consumo, era a causa de sua exígua dieta. Ele
não tinha a liberdade de comer pouco ou muito, sua frugalidade não
era um ―livre-arbítrio‖: ele ficava doente quando comia demais
(NIETZSCHE, 2006, p. 39).
12
Nasceu em Veneza por volta de 1457-1468. Faleceu em Pádua, no ano de 1566. Diz-se que viveu até os 103
anos de idade, mas existem inúmeros relatos destoantes. Autor de Discurso sobre a vida comedida (Discorsi
della vita sobria, 1558). 13
Cf. Cornaro, Louis. The Art of Living Long. Tradução de Willian F. Butler (a partir da edição de 1903).
Nova York: Springer Publishing Company, 2005, p. 13-14.
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A longevidade de Cornaro resulta de um instinto de conservação, ou melhor, de
limitação diante dos jogos de força vitais. Para isso, ele recorre a uma digestão minimalista
calcada numa argumentação generalizante (a dieta em questão seria universalmente válida) e
moralista (ou se segue o caminho da alimentação correta ou se está fadado a constantes
doenças ou à morte prematura). Seu discurso racional não lhe permite se dar conta de sua
debilidade fisiológica, de sua morbidez crônica.
De acordo com Nietzsche, a fórmula da decadência se resume ao seguinte postulado:
―ter de combater os instintos‖ (NIETZSCHE, 2007, p. 22). Mas se pode afirmar também que
―o decadente é um aleijado dos instintos que tenta compensar suas deficiências através de
uma hipertrofia da lógica e da consciência do puro Dever‖ (GRANIER, 1988, p. 93). É nesse
sentido, como salienta Löwith, que as objeções nietzschianas ao estado consciente ―são parte
integrantes de seu esforço para reinserir o homem na Natureza e, consequentemente, na vida
do mundo‖ (LÖWITH, 1967, p. 75), tendo em vista que houve uma ―redução por princípio de
todos os sentimentos integrais do corpo a valores morais‖ (NIETZSCHE, 2008, p. 136). Daí
Zaratustra ensinar que ―de modo mais honesto e mais puro fala o corpo são, perfeito e
quadrado‖ (NIETZSCHE, 1989, p. 50, grifos meus)14
. Valorizar a dimensão física do homem
– ao invés de sua ―espiritualidade‖ – inaugura um era na qual ―todos os instintos tornam-se
sagrados‖ (NIETZSCHE, 1989, p. 91), pois não há milagre maior do que a complexidade do
organismo, e seu poder de transformar criativamente o mundo e a si mesmo.
Ora, ―é necessário deixar de dar crédito à consciência e se direcionar para o corpo,
pois este é o único capaz de nos instruir sobre o valor de nossa personalidade profunda‖
(GRANIER, 1988, p. 90): o corpo jamais se revela enganador ou falseador. No Crepúsculo
dos ídolos é ressaltada a importância de ―aceitar o testemunho dos sentidos‖ (NIETZSCHE,
2007, p. 26), ou, em outros termos, de aguçá-los cada vez mais em detrimento dos estados
conscientes. O que Nietzsche atribui ao nariz – ―fino instrumento de observação‖ (Ib., p. 26,
grifos meus) – se aplica não apenas aos demais sentidos como também aos diversos
acontecimentos orgânicos que permeiam a vida cotidiana. A interpretação do mundo e de nós
mesmos deve ser feita ―da forma a mais fisiológica, epidérmica, verdadeiramente imediata e
anti-abstrata‖ possível (COLLI, 1996, p. 112). A noção de afeto se mostra aqui reveladora na
medida em que, ao se pautar nas ―avaliações fundamentais que regem a atividade de um tipo
determinado de ser vivo‖, possibilita ―a crítica do primado da razão e o reconhecimento do
privilégio da sensibilidade‖ (WOTLING, 2001, p. 7).
Nietzsche denuncia tanto um tipo de pensamento caracterizado pela ―hipertrofia do
lógico‖ (o que é demonstrado com o advento do socratismo em O nascimento da tragédia)
14
Como salienta o tradutor de Assim falou Zaratustra, o termo ―quadrado‖ não indica algo pejorativo, pois este
―era, para os antigos gregos [uma das principais referências da filosofia nietzschiana], símbolo de perfeição‖
(nota de rodapé, p. 50).
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quanto por uma ―atrofia dos instintos fundamentais‖ (MACHADO, 1985, p. 50), a partir do
surgimento de uma engrenagem estatal ou religiosa, que uniformiza respectivamente deveres
e culpas. Tais afirmativas nos levam a repensar a ênfase naturalmente atribuída à Alma (via
pensamento metafísico e doutrinas transcendentais). Uma epistemológica, na qual a Verdade
se revela de ordem corporal e não espiritual: ―tudo o que entra em nossa consciência é
produzido por um instinto de falsificação‖ (COLLI, 1996, p. 145). Outra consequência diz
respeito às considerações moralizantes, pois é graças à desvalorização dos estados fisiológicos
que os ―fracos, que se julgam bons‖, não percebem que ―são paralíticos das patas‖
(NIETZSCHE, 1989, p. 131).
V. CONCLUSÃO
Mais do que uma prioridade do Sensível em relação ao Inteligível, o projeto geral de
Nietzsche reside na possibilidade de recuperar um saber-poder que foi deixado de lado no
decorrer dos séculos. Pretende, assim, subordinar o querer individual a forças vitais que se
mostram mais verdadeiras por não envolverem ―disfarces‖ (a exemplo do Intelecto), nem
utilizarem acessórios discursivos meramente retóricos (no caso da lógica ou da dialética) ou
instâncias superficiais (como a consciência). De acordo com a leitura de Granier, a recusa
nietzschiana do primado da Alma (e, não se pode deixar de acrescentar, de outras
interioridades psíquicas correlatas como o Eu, o Cogito, o Sujeito, o Espírito etc.) resgata a
noção de ―subjetividade corporal‖ (p. 90). Tal ideia, a nosso ver, permite, num primeiro
momento, ressaltar a aliança indelével entre Terra, Corpo e Vida. Ocorre, a partir daí, toda
uma série de inversões de prioridade: do Espírito para a Carne, do Mundo Celestial para a
Vida Mundana, da Eternidade para o Devir.
Mas também, e principalmente, pode significar o resgate da nobreza dos instintos, o
que levaria o ato de pensar a se deixar guiar tanto pela sabedoria do organismo quanto pelo
poderio dos sentidos. Esse movimento, de forma alguma, justificaria a mera expressão de
desejos individuais, até porque não se trata de libertar uma ―consciência‖ – esteja ela
querendo ou não romper com quaisquer formas de repressão – muito menos de realizar uma
vontade pessoal, já que o livre-arbítrio passa a estar subordinado a algo que lhe é anterior e
determinante. Viver instintivamente significaria, pois, na presente interpretação, permitir que
o Corpo (e não a Alma) desempenhe a função de guia e princípio de avaliação, ou seja, é
preciso estar atento ao que ele nos revela de forma direta e autêntica.
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LINGUAGEM E CORPOREIDADE: UMA PERSPECTIVA NEURODINAMICA
(PÓS-REICHIANA)
EMBODIMENT AND LANGUAGE: A NEURODYNAMIC (POST-REICHIAN)
APPROACH
Autor: JOSÉ IGNACIO TAVARES XAVIER
Médico psiquiatra. Doutor em Psicologia (IP/CFCH - UFRJ, 2005).
Coordenador do NEPP – Núcleo de Estudo e Pesquisa em Psicoterapia
www.neurodinamica.com
Endereço para correspondência: [email protected]
A linguagem, assim como a percepção da conduta, apresenta
inconscientemente o respectivo estado fisiológico; e não o faz de
forma figurada senão que de maneira imediata... Essa peculiar
vinculação entre a percepção do estado vegetativo e sua formulação
linguística merece um estudo detalhado. (Wilhelm Reich, 1935)
Se assumirmos que a razão é corporificada, então iremos querer
compreender as relações entre o corpo e a mente e encontrar os
meios de cultivar os aspectos corpóreos da razão. (George Lakoff,
1987)
Resumo
O paradigma conexionista atualmente em desenvolvimento na linguística, na filosofia,
na psicologia e nas neurociências permite a recuperação de um aspecto-chave da produção
teórica de Wilhelm Reich no seu período pré-orgonômico. O autor propõe uma releitura do
conceito de unidade somatopsíquica valendo-se das noções de esquema corporal e de imagem
corporal de Head a partir da articulação destes aspectos com o arco intencional de Merleau-
Ponty (Gallagher, 1998), o que desemboca num modelo de produção da singularidade pessoal
de onde derivam a constituição da mente e da linguagem conforme o paradigma conexionista
apresentado por Lakoff e Johnson (1980). O resultado parece corroborar o acerto dos
desenvolvimentos reichianos relativamente às complexas interrelações entre corporeidade e
linguagem numa perspectiva monista. Futuras modificações na teoria e na técnica das
psicoterapias corporais poderão emergir a partir desse novo paradigma.
Palavras-chave: corporeidade; neurodinâmica; cognitivismo linguístico.
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Sumary
The connectionist paradigm being currently developed in linguistics, philosophy,
psychology, and neuroscience allows us to recover a key aspect of Wilhelm Reich's theories
before he turned to orgonomy. The author proposes a re-reading of the concept of psycho-
somatic unity, validating it through the notions of body scheme and body image proposed by
Head, beginning with their articulation in the intentional approach of Merleau-Ponty
(Gallagher, 1998) and arriving at a model of the origin of personal uniqueness from which the
constitution of mind and language according to the connectionist paradigm proposed by
Lakoff and Johnson can be derived. The result appears to corroborate the accuracy of Reich's
view of the complex relations between embodiment and language in a monistic perspective.
Future modifications of the theory and methods of body psychotherapies can emerge from
this new paradigm.
Key-words: embodiment; neurodynamics; cognitive linguistics.
1. INTRODUÇÃO
Este artigo tem por objetivo explorar as origens corporais da linguagem e como a
experiência corpórea da vida pode se transformar em experiência subjetiva, mental e
linguística. Para tanto, tentarei articular um aspecto específico da teoria reichiana pré-
orgonômica com o paradigma conexionista do cognitivismo linguístico de Lakoff e Johnson
através da perspectiva neurodinâmica.
O nascente modelo da Psicoterapia Neurodinâmica (Haldane 2004; Xavier 2004;
2005) concebe a unidade somatopsíquica em termos das experiências relacionais constitutivas
do ser humano tanto na verticalidade do indivíduo com a sua própria experiência como na
horizontalidade de suas interações com os demais seres da natureza e com os entes e objetos
do mundo cultural.
Nesse sentido, valho-me das noções de esquema corporal e de imagem corporal de
Head articuladas através do arco intencional de Merleau-Ponty15
(Gallagher; 1998) como
15
O arco intencional de Merleau-Ponty (1990) implica que o sujeito cognoscente emerge das operações
fisiológicas do próprio cérebro, prescindindo do caráter transcendente até então privativo ao espírito objetivo
absoluto. Nesse sentido, o sujeito corpóreo encontra-se em ambos os lados da operação intencional, sendo ao
mesmo tempo o sujeito produtor da percepção e o sujeito perceptor, que a reconhece e dela extrai as leis e
procedimentos que engendram a razão que transcende os dados imediatos da consciência. Igualmente em
Merleau-Ponty a verdade perde o seu estatuto de coisa ideal e torna-se sempre relativa ao sujeito da percepção e
ao seu contexto.
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ferramentas que contribuem para a superação de uma concepção ainda predominante de corpo
(a matéria) e mente/linguagem (o espírito) como substâncias distintas.
É minha intenção apresentar ao leitor – bem como abrir o tema ao debate e aos
devidos aprimoramentos - alguns elementos para o entendimento de que a mente é uma
propriedade emergente da matéria, como preconizavam Reich na década de 30, e Lakoff e
Johnson em tempos mais recentes.
2. DO OBJETIVISMO AO CONEXIONISMO: O TRÂNSITO ENTRE OS
PARADIGMAS
Década de 80. Mark Johnson e George Lakoff investigam um tema complexo e
instigante: como as pessoas compreendem a linguagem e a própria experiência vital? Johnson
observa que as escolas da tradição filosófica não conferem maior importância à metáfora no
processo de apreensão do mundo e de nós mesmos; Lakoff, por sua vez, nos apresenta um
corpo de evidências que demonstra o papel-chave da metáfora como elemento que permeia a
linguagem e o pensamento cotidianos.
O papel periférico atribuído à metáfora (e à metonímia) decorre de uma perspectiva
ainda hegemônica nas ciências humanas e na própria ciência em geral que entende a razão
como uma instância do ser abstrata e desvinculada do corpo que expressa a presença de um
‗espírito objetivo absoluto‘, de modo que os conceitos significativos e a própria
racionalidade16
transcenderiam as limitações físicas de qualquer organismo.
As escolas do pensamento tradicional, embora concedam que os conceitos
significativos e a razão abstrata podem eventualmente exibir uma origem material
(embodiment) em seres humanos, em outros organismos e até mesmo nas máquinas, assumem
que a razão e a linguagem constituem uma dimensão abstrata e independente de qualquer
vínculo corporal em particular.
De acordo com Lakoff o paradigma tradicional decorre de uma visada filosófica que
remonta à Grécia antiga: trata-se de um produto de dois mil anos de filosofia acerca da
natureza da razão que, ainda hoje, é “automaticamente tomado não como simples verdade,
16
No sentido adotado por Reich ao longo de sua obra, o termo racionalidade ou pensamento racional pode ser
entendido contemporaneamente como aquela atividade cognitiva superior que opera em cooperação com os
aspectos emocionais próprios do indivíduo, ao passo que o pensamento irracional ou ‗encouraçado‘ caracteriza-
se por uma atividade mental que opera em oposição aos aspectos emocionais reprimidos forjando formações de
reação ao nível da atividade psíquica e adulterando a racionalidade da razão. É o tipo de pensamento emocional
que se acha na origem de sistemas de idéias preconceituosos como a homofobia, a sociofobia de classes, o
racismo e a educação das crianças através da intimidação e dos sentimentos de culpa.
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mas como uma óbvia e inquestionável verdade; uma crença amplamente difundida apesar da
enorme quantidade de evidências empíricas em contrário.” (1987; p. xii)
A primeira razão para a persistência da hegemonia do paradigma tradicional é de
caráter inercial, pois “o peso de dois mil anos de tradição filosófica é algo que não
desaparece da noite para o dia; todos nós fomos educados para pensar nesses termos”, diz
Lakoff. (Idem).
O segundo - e mais importante - motivo era a inexistência, até recentemente, de uma
abordagem alternativa bem elaborada que permitisse preservar o que é correto na visão
tradicional ao mesmo tempo em que a modificasse de acordo com os novos dados empíricos
encontrados.
O novo paradigma, engendrado pelas contribuições de Lakoff, Johnson e outros
pesquisadores da linguagem e das ciências neurocognitivas17
sugere que a razão é uma
propriedade emergente da corporeidade e que o significado das produções mentais é uma
extensão daquilo que é significativo para os seres vivos e pensantes: “A natureza do
organismo pensante e seu modo de funcionar no ambiente são de importância central para o
estudo da razão.” 18
(Lakoff 1987, p. xi).
Em ambos os paradigmas, a formação de categorias é a principal maneira de tornar a
experiência dotada de sentido. No novo modelo, porém, a experiência corporal e a maneira
como utilizamos os mecanismos imaginativos são centrais para o modo de construção das
categorias que conferem sentido à experiência.
No paradigma ‗objetivista‘ o pensamento consiste na manipulação de símbolos
abstratos que “tomam seu significado via correspondência com o mundo objetivamente
estruturado; isto é, independente da capacidade de entendimento de qualquer organismo.”
(Idem; grifo do Autor).
Dado o seu caráter transcendente, as proposições que derivam desse modelo sustentam
que o pensamento e as coisas existem de per se, ignorando que as propriedades
neurodinâmicas da própria organização perceptual e dos estados emocionais compõem um
filtro que se interpõe entre ‗as coisas lá fora‘ e a percepção da sua sensação, organizada em
17
Como Panksepp (1998); Damasio (1996; 2000; 2004); Gallagher (1998); Maturana e Varela (1995); Varela,
Thompson e Rosch (1991) e outros tantos. 18
As citações referentes à Reich (1935/1972), Lakoff e Johnson (1980), Lakoff (1987) e Gallagher (1998) ao
longo do texto foram traduzidas pelo próprio autor.
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totalidades significantes no córtex cerebral. Lakoff define o paradigma objetivista, ou razão
incorpórea, nos seguintes termos:
Quadro 1 - O Paradigma Objetivista
(Razão Incorpórea) 19
O pensamento consiste na manipulação mecânica de símbolos abstratos (palavras e
representações mentais);
Os símbolos ganham os significados em correspondência às coisas no mundo exterior;
A mente é uma máquina abstrata que manipula os símbolos de forma algorítmica como um
computador;
Os símbolos são representações internas da realidade externa;
A correspondência entre símbolos e as coisas no mundo independem das propriedades do
organismo;
Ao usar representações internas da realidade externa, a mente espelha a natureza; a razão
correta espelha a lógica do mundo externo;
É meramente incidental para a natureza dos conceitos e da razão que os seres humanos
tenham os corpos que têm e que funcionem no ambiente do modo como o fazem;
O pensamento é abstrato, desvinculado da matéria e independe de quaisquer limitações do
corpo, do sistema perceptual e do sistema nervoso humanos;
Máquinas que manipulam símbolos mecanicamente são capazes de pensamento
significativo e de entendimento;
O pensamento é atomístico, pode ser completamente quebrado em ‗blocos de armar‘ - os
símbolos de que se vale o pensamento - que são combinados em complexidades e
manipulados por regras;
O pensamento é lógico e pode ser acuradamente modelado por sistemas semelhantes aos
da lógica matemática.
Sistemas simbólicos abstratos são definidos por princípios gerais da manipulação de
símbolos e de mecanismos para a interpretação dos símbolos em termos de ‗modelos do
mundo‘.
Lakoff observa que a habilidade para a construção de categorias, isto é; a capacidade
de agrupar as coisas com base em aspectos comuns compartilhados por todos os elementos
19
In: Lakoff, 1987; pp. xii-xiii.
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que a compõem (por exemplo: mobília, maridos, plantas, veículos) é o elemento-chave para a
percepção, para o pensamento, para a ação e para o discurso.
Na perspectiva clássica, a categorização ocorre com base nas propriedades comuns
exibidas entre os elementos que irão se agrupar sob uma mesma categoria (árvores, por
exemplo) e não contradiz o princípio básico da formação de categorias. Mas, observam
Lakoff e Johnson (1999), a cadeia inferencial conjunção → categorização → generalização
não esgota a questão de como formamos as categorias que engendram o conjunto da atividade
mental humana.
Examinadas desde o novo modelo, entretanto, as categorias conceituais divergem
significativamente dos requisitos delas exigidos pelo paradigma objetivista e o atual acervo de
evidências aponta para uma condição corpo-dependente, o que sugere uma realidade bem
distinta para as origens das categorias e da razão humana em geral:
Quadro 2 – O Paradigma Conexionista.
(Razão Corpórea) 20
O pensamento é corpóreo (embodied) em sua origem: as estruturas utilizadas na formação
do conjunto dos sistemas conceituais brotam da experiência corporal e só fazem sentido
nos termos da própria experiência;
O cerne dos sistemas conceituais está diretamente enraizado na percepção, no movimento
corporal e numa experiência de caráter físico e social;
O pensamento é imaginativo naqueles conceitos não diretamente embasados na experiência
e que se valem da metáfora, da metonímia e da formação de imagens mentais para se
constituir.
As imagens mentais vão além do mero espelhamento literal (representação) da realidade
externa;
É a capacidade imaginativa que possibilita o pensamento ‗abstrato‘ e conduz a mente para
além do que podemos ver e sentir;
A capacidade imaginativa depende indiretamente da corporeidade, pois as metáforas, as
metonímias e as imagens estão baseadas na experiência, frequentemente na experiência
corporal;
20
In: Lakoff, 1987; pp. xiv-xv.
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O pensamento possui propriedades gestálticas: a superestrutura conceitual vai além da
mera concepção atomística da ‗construção de blocos‘ conceituais a partir de regras gerais
de manipulação simbólica;
O pensamento apresenta uma estrutura ecológica: a eficiência do processamento cognitivo
no aprendizado e na memória depende da superestrutura do sistema conceitual e do
significado dos próprios conceitos que, por sua vez, emergem da experiência corpórea no
mundo. O pensamento é, portanto, mais do que a mera manipulação mecânica de símbolos
abstratos;
A estrutura conceitual é melhor descrita pela utilização de modelos que contenham as
propriedades acima;
A teoria dos modelos cognitivos incorpora o que está correto na visão tradicional ao
mesmo tempo em que acumula dados empíricos acerca das origens da categorização para a
construção de uma nova visão superestrutural.
Lakoff chama de realismo experiencial a esta nova visão do pensamento e da
linguagem observando que ―o corpo é quem possibilita a razão; isso inclui a razão criativa e
abstrata, bem como o raciocínio acerca das coisas concretas. A razão humana... brota da
natureza do organismo e de tudo aquilo que contribui para a sua experiência individual e
coletiva: a herança genética, a natureza do ambiente em que vive, a maneira como funciona
neste ambiente, a natureza de seu funcionamento social, etc.” (1987; p. xv)
3. CORPOREIDADE E COGNIÇÃO INVENTIVA
A epigênese e o continente corporal possuem, portanto, importância decisiva nos
processos geradores da linguagem e da razão, o que concorda com a perspectiva de Kastrup
(1999), que aborda o tema pelo ângulo da cognição inventiva de uma realidade sempre em
construção: “... O contato com a matéria se dá por meio de ações, não sendo intermediada
por qualquer representação. Contato, portanto, inventivo e não representativo.” (p. 52)
Ao enfatizar a importância das ações como o ponto de contato com a matéria ao redor,
Kastrup nos remete à importância da experiência corpórea enquanto fonte da subjetividade. É
o contato de uma dada organização material (o nosso corpo) com as demais expressões da
matéria (o ambiente em sua múltipla expressão de materialidades) que forja as bases
experienciais de onde emergem as construções imediatas que fazemos acerca de nós mesmos
e do mundo.
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Poder-se-ia argumentar que, no caso humano, tal contato já viria previamente
revestido de representações, posto que o corpo já se encontra simbolicamente investido pela
cultura e pela linguagem antes mesmo de sua constituição material. Desde uma perspectiva
científico-natural, entretanto, isso não acontece como um dado a priori: o que nos é dado a
princípio é tão somente a autoexperiência de um organismo dotado de sensações e de
sentidos interoceptivos e exteroceptivos, o que nos torna abertos à subjetivação; esta sim, um
produto complexo da atividade cerebral superior.
Trata-se de um organismo ‗colonizado pela cultura‘ desde a sua entrada no mundo21
e
cuja vanguarda colonizadora se materializa através de um adulto-precursor, cuja função
materna emerge de uma corporeidade por sua vez previamente colonizada e a quem cabe
introduzir o bebê no universo humano por todos os meios que lhe forem possíveis e
toleráveis.
De um ponto de vista materialista, as construções de si e do mundo só podem
acontecer a posteriori da experiência, pois não é possível construir a imagem de algo que não
tenha sido previamente experienciado22
. Como sustenta Kastrup, ―a matéria não se confunde
com a forma dos objetos, mas é algo amorfo, ao mesmo tempo pré-objetivo e pré-subjetivo. A
experimentação, por sua vez, não é subjetiva, mas a condição de constituição tanto do sujeito
cognitivo quanto do mundo conhecido... sujeito e objeto são formações experimentais,
inventadas” (1999, p. 52).
Tal é a própria petição de princípios da Psicoterapia Neurodinâmica: a instância
primordial da vida subjetiva é o próprio ato de nos sabermos vivos.
4. OS DOIS SALTOS NA EVOLUÇÃO HUMANA
Na hipótese de trabalho aqui oferecida à reflexão do leitor, a vida se define enquanto
complexidade biológica. O surgimento do fenômeno de membrana23
inaugura o domínio dos
seres vivos a partir de uma nova ordem da natureza – uma ordem bioenergética - que opera
21
Segundo Navarro (1991), a chegada ao mundo ocorre já a partir da fecundação e as primeiras interações com o
ambiente heterólogo ao ser já ocorrem a partir da nidação do óvulo fecundado na parede uterina. 22
Por exemplo: tente imaginar um ser extraterrestre destituído de quaisquer características humanas, sejam elas
físicas, psicológicas ou sociais; ou, ainda, uma forma qualquer de vida que não se ampare em nenhum princípio
conhecido acerca da biologia, da zoologia ou da botânica. 23
O fenômeno de membrana consiste numa diferença de tensão superficial que se verifica na interface entre dois
meios líquidos, porém heterogêneos em sua composição de partículas em solução, separados por uma membrana
biológica porosa que é incessantemente cruzada por partículas sólidas e suas respectivas cargas iônicas em
trânsito entre dois ambientes líquidos segregados pela barreira membranosa. No caso, trata-se de dois meios
líquidos - um intracelular e outro extracelular - em constante interação através de uma barreira sólida, permeável
e coerente, formada por cadeias de proteínas e mucopolissacarídeos. Reich, no início dos anos 30, empreendeu
uma revisão da teoria psicanalítica dos impulsos a partir dos estudos biofísicos de Hartmann, ancorando-a na
biologia celular da época.
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segundo a égide do metabolismo, da assimilação, do processamento e da eliminação de
resíduos da atividade metabólica.
O fenômeno de membrana inaugura uma nova ordem na evolução do universo – o
domínio das coisas vivas - e, até onde se pode saber, trata-se de uma ordem de fenômenos
possível apenas no domínio da materialidade biológico-energética, isto é: nos reinos vegetal e
animal. Nessa hipótese, a subjetividade encontra-se presente em todo o território das coisas
vivas e tem como corolário a formação de categorias, uma condição essencial para a
sobrevivência do indivíduo e das espécies.
Como nos dizem inicialmente Reich (1933/1972) e mais recentemente Lakoff e
Johnson (1999), até mesmo as amebas são capazes de categorizar, pois elas possuem a
habilidade de distinguir dentre os eventos ambientais aqueles que constituem alimento e
aqueles que constituem perigo à sua sobrevivência. A capacidade de formar categorias
independe da razão transcendental, pois “a ameba não pode escolher se categoriza ou não;
ela apenas o faz. O mesmo é verdadeiro em qualquer nível do mundo animal. Animais
categorizam alimento, predadores, possíveis parceiros, membros de sua própria espécie,
etc.” 24
(1999, p.17). Refletindo essa orientação científico-natural sobre a condição humana,
Reich postula a existência de um duplo salto na evolução: para ele, a unidade
somatopsíquica25
evolui em dois grandes saltos observáveis no desenvolvimento natural que
por sua vez dão origem a outros processos evolutivos, graduais:
Quadro 3 – Os dois saltos na evolução das espécies.
(Reich, 1935/1975, modificado por Xavier)
1. Primeiro salto evolucionário: transição do inorgânico ao orgânico-vegetativo (fenômeno
de membrana ou constituição do domínio das materialidades vivas; surgimento do sistema
nervoso primitivo no reino animal);
24 Apesar de Lakoff restringir a capacidade de categorização ao reino animal, ao menos algumas espécies
vegetais também parecem capazes de categorizar, como por exemplo, a popular ‘dormideira’ ou ‘sensitiva’
(Mimosa Pudica L., uma leguminosa da família Fabaceae), que fecha as suas folhas ao menor toque. A
mesma capacidade discriminatória também pode ser identificada nas plantas insetívoras que
desenvolveram vários dispositivos de captura, como os ‘nepentes’ (Nepenthes Alata;
Família Nepenthaceae) que apresentam folhas em forma de tubo que coletam água das chuvas e depois
liberam um odor que atrai os insetos, e as ‘dioneas’ (Dionea sp. da Família Droserácea, cujos tentáculos são
acionados quando um inseto pousa e debate-se sobre a folha, aprisionando-o.
25 Preferimos este termo ao consagrado ‗unidade psicossomática‘ porque do ponto de vista evolutivo o somático
antecede o psíquico. Ambos os termos foram criados por Heinroth (Apud Bercherie, 1989), com cerca de uma
década de intervalo.
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2. Segundo salto evolucionário: passagem da ordem orgânico-vegetativa (o vivo) à
constituição do aparelho psíquico; encefalização das espécies e emergência dos fenômenos
da consciência e da autopercepção nos mamíferos; surgimento da consciência nuclear e da
experiência da subjetividade individual.
De acordo com Reich, “o orgânico, ao surgir do inorgânico, e o psíquico, ao surgir
do vegetativo conservam, ambos, em sua função e processos as leis que regiam suas
respectivas matrizes.” (Op. cit. p. 359).
Nesta perspectiva, o ‗aparelho psíquico‘ nasce dos contatos da matéria com o
ambiente ao redor, um contato regrado pela cultura desde os seus primórdios, e o organismo
do bebê pode ser metaforicamente comparado a um território inexplorado - porém não vazio -
que recebe a chegada do Outro-colonizador. Assim como um continente recém descoberto e
dotado de riquezas naturais (rios, montanhas, planícies férteis e jazidas subterrâneas; isto é:
corpo, atividade fisiológica de base, emoções, sentimentos, germes de autoconsciência e
pensamento autônomo) ele é capturado pela vanguarda ‗colonizadora‘ da função-materna que
ali implanta a ordem cultural vigente na metrópole dos corpos subjetivados dotados de
história.
Trata-se do início de uma extensa rede de operações que tanto pode fazer do novo
território uma fonte de riqueza para o Outro-colonizador (explorando-o em proveito próprio)
ou ali instaurar as bases para o desenvolvimento de uma futura nação/pessoa autônoma,
independente e soberana.
5. ESQUEMA CORPORAL, IMAGEM CORPORAL, CORPOREIDADE
SUBJETIVADA.
Em 1920 Head introduziu os conceitos de esquema corporal e de imagem corporal,
salientando que na sua própria organização experiencial o corpo se apropria
inconscientemente dos movimentos e das posturas habituais bem como das partes
significantes do ambiente (Apud Gallagher; 1998).
Na elaboração neurológica do esquema corporal de Head encontramos que as marcas
do ambiente exterior ao corpo propriamente dito o constituem tanto quanto a própria
organização somática strictu sensu. É o esquema corporal que instrumentaliza26
o modus
operandi corpóreo que engendra a percepção ao mesmo tempo em que lhe impõe limites - os
26
A esta altura já devidamente simbolizado no cérebro através da experiência engramada nos núcleos neuronais
que contribuem com esta função.
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limiares perceptivos dependentes da estrutura caracterológica27
- à consciência intencional em
suas diversas modalidades.
Gallagher (Idem) aporta interessante reflexão sobre a subjetividade corporificada,
elaborada a partir de ambos os pólos do arco intencional de Merleau-Ponty. Nessa
perspectiva, o esquema corporal – o agenciador da percepção - encontra-se numa das pontas
do arco intencional, ao passo que a imagem corporal – o agente perceptor - ocupa o outro
extremo do arco e constitui a imagem mental de nossa dimensão corporal.
No domínio da imagem corporal, o corpo se apresenta como um objeto ou conteúdo da
consciência intencional: já estamos, portanto, no domínio da corporeidade: trata-se do corpo
que se é, que se lembra, que se imagina, se estuda, se ama, se odeia, e assim por diante.
Quadro 4. A elaboração da corporeidade.
(Head, Merlau-Ponty e Gallagher; modificado por Xavier)
Esquema corporal: agente da percepção (causalidade ascendente ou
processamentos bottom-up)
Imagem corporal: agente do percebido (causalidade descendente ou
processamentos top-down)
Corporeidade: o organismo subjetivado, elaborado a partir dos agenciamentos que
transitam via arco intencional em ambos os sentidos (causalidade circular
assimétrica)
Para Gallagher o esquema corporal age como um fator pré-noético que organiza e
delineia a experiência cognitiva, pois “os ajustes posturais e motores do esquema corporal
ficam sempre „por trás da cena‟, a tergo. Quando percebo, não percebo o meu corpo
efetuando os ajustes que possibilitam e delineiam o ato da percepção. Estes ajustes não
aparecem como partes explícitas do significado perceptual, embora colaborem
implicitamente na estruturação desse significado. Por esta razão, a postura corporal não é
redutível à sua posição objetiva” (1995/1998, p. 235. Grifo do autor)
Embora o esquema corporal de Head seja um constructo eminentemente neurológico,
pode se perceber aqui a importância capital das interações germinais com a pessoa da mãe28
na construção da identidade e do corpo próprios do bebê. É aí que entram, na construção da
sua futura pessoa, os ajustes posturais e autonômicos demandados pelo acoplamento com o
27
Ou terceiro nível de seletividade da rede neuronal (Xavier, 2004; 2005). 28
Eminentemente corpóreas a essa altura primeva dos acontecimentos, incluídas aqui as interações mediatizadas
através da troca de olhares, da interação entre feromônios materno-infantis e pelos sons da fala em suas
tonalidades emocionais.
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adulto-mãe (e a todos os demais que a ele se seguem); é através dos acoplamentos com ela e
seus sucedâneos que a cultura coloniza os nossos gestos, sentimentos e produções cognitivas.
Enquanto parte significante do ambiente (tão mais significativa quanto mais jovem for o bebê)
é ao adulto-mãe a quem ele se acopla29
para dar seguimento ao seu desenvolvimento
psicobiológico bem como à sua constituição enquanto sujeito da cultura.
O adulto-mãe é o aspecto significativo mais proeminente do meio ambiente inicial do
bebê e a corporeidade da mãe constitui função materna para além do mero significante
linguístico: os seus cheiros, as inflexões de sua voz, a qualidade dos seus olhares e as
maneiras como ela o vai manejando/segurando/amando constituem virtualmente o mundo na
sua totalidade para o bebê. Progressivamente, a interação vai se tornando mais e mais
complexa à medida que se desenvolvem as estruturas neurais, especialmente os hemisférios
cerebrais. Com o sistema nervoso central do bebê dotado de novas e assombrosas
possibilidades de processamento neurodinâmico, as materialidades exteriores aos limites do
seu ser vão gradualmente se ampliando, ganhando novas formas e a figura materna vai
gradualmente perdendo a sua primazia de principal aspecto veiculador da realidade somática,
ambiental e cultural.
Sobre a base primitiva do esquema corporal enriquecido pelas memórias emocionais
agregadas pela entrada em cena dos sistemas de memória de procedimento, as experiências
somato-emocionais primitivas perenizam-se em forma de corporeidade. No infante, os
núcleos da base e a amígdala já se encontram suficientemente desenvolvidos a ponto de
codificarem memórias de tipo implícito (movimentos, experiências, ‗dicas‘ relacionais)
enquanto a imaturidade do hipocampo (que só entra ‗online‘ por volta dos 18 meses) pode
explicar em parte a ‗amnésia infantil‘ para as memórias explícitas. (Blinder, 2003).
Assim, o esquema corporal deixa de ser um construto neurológico strictu sensu, posto
que enriquecido (para o bem e para o mal) pelas marcas das emoções carreadas pela mãe,
retransmitidas pelo caráter da sua movimentação corporal em interação íntima com o corpo do
bebê30
. É no âmbito experiencial das vivências emocionais arroladas ao longo da primeira
infância que Reich irá identificar a formação da estrutura caracterológica, em especial na sua
fração neuromuscular; isto é, no domínio das memórias implícitas, que se encontram na base
da organização da subjetividade individual.
29
Através de um equipamento etológico de ligação filogeneticamente constituído, conforme descrito por Bowlby
(1958b). 30
Imagine, por um instante: o que pode sentir um bebê no colo de uma mãe nervosa? São experiências desta
ordem que estão nas origens ‗extracorpóreas‘, por assim dizer, do nosso esquema corporal.
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Uma vez incorporado o significado emocional pela via da experiência primitiva
embricada no esquema corporal estendido (núcleos da base, amígdala, hipocampo) o
organismo – agora devidamente mergulhado na pia batismal da cultura veiculada pela
corporeidade emocional da mãe - se instaura enquanto corporeidade gradualmente
subjetivada.
Quadro 5 – Organismo, corpo e corporeidade.
(estrutura caracterológica)
Organismo: conjunto de estruturas organizado em totalidades complexas e
coerentes de tecidos, órgãos e sistemas fisiológicos constituindo uma unidade
biológica viva (vegetal ou animal). Aporta conteúdos à rede
cognitiva/consciência.
Corpo: organismo subjetivado (colonizado pela experiência/cultura).
Representações conscientes e inconscientes (rede cognitiva subsimbólica) que
constituem o objeto da percepção.
Corporeidade: organismo subjetivado em dupla deriva mental, ou
‗mentação‘.31
Gallagher nos diz ainda ser impossível um trânsito – seja em sentido bottom-up ou
top-down - entre a experiência corporal e sua transdução em imagens mentais, mnêmicas ou
mesmo linguísticas ‗por fora‘ das rotas e estruturas que configuram o esquema corporal:
assim, as operações de transdução corpo ↔ mente “não são fenômenos estritamente mentais
(intencionais) nem estritamente físicos, embora seus efeitos atravessem tal distinção” (Op.
Cit., p. 227)
A neurobiologia de Damásio (1996; 2000; 2004), por sua vez, reconhece que a mente
existe dentro de um organismo integrado e para ele, pois “nossas mentes não seriam o que
são se não existisse uma interação entre o corpo e o cérebro durante o processo evolutivo, o
desenvolvimento individual e no momento atual. A mente teve primeiro que se ocupar do
corpo, ou nunca teria existido.” (1996, p. 17). Segundo Damásio, essa conclusão deriva das
seguintes evidências:
31 A teoria de Huglinghs-Jackson (1931/1932) pressupõe a existência de três níveis de atividade neuronal
simultânea: apresentação (sensação), representação (percepção) e re-representação (‘mentação’).
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Quadro 6. Organização neurodinamica da unidade somatopsíquica.
(Damásio, 1996)
a) O cérebro humano e o resto do corpo constituem um organismo indissociável,
formando um conjunto integrado por meio de circuitos reguladores bioquímicos e
neurológicos mutuamente interativos (incluindo componentes endócrinos,
imunológicos e neurais autonômicos);
b) O organismo interage com o ambiente como um conjunto: a interação não é
exclusivamente do corpo nem do cérebro;
c) As operações fisiológicas que denominamos por mente derivam desse
conjunto estrutural e funcional e não apenas do cérebro: os fenômenos mentais
só podem ser cabalmente compreendidos no contexto de um organismo em
interação com o ambiente que o rodeia.
Damásio enfatiza a constituição subjetiva daquilo que categorizamos como meio
ambiente, observando: “O fato de o ambiente ser, em parte, um produto da atividade do
próprio organismo apenas coloca ainda mais em destaque a complexidade das interações que
devemos ter em conta.” (Op. cit.; p. 17).
Além disso, a interação entre regiões cerebrais filogeneticamente mais recentes com as
mais antigas, dos córtices pré-frontais até o hipotálamo e o tronco cerebral, se manifestará na
esfera da subjetividade em forma de razão e linguagem: “Os níveis mais baixos do edifício
neurológico da razão são os mesmos que regulam o processamento das emoções e dos
sentimentos e ainda as funções do corpo necessárias para a sobrevivência do organismo (...),
os níveis mais baixos mantêm relações diretas e mútuas com praticamente todos os órgãos do
corpo, colocando-o assim diretamente na cadeia de operações que dá origem aos
desempenhos de mais alto nível da razão, da tomada de decisão e, por extensão, do
comportamento social e da capacidade criadora.” (Idem; p. 13).
6. METÁFORA E METONÍMIA NA CORPOREIDADE.
O realismo experiencial de Lakoff e Johnson postula um papel fundador para o corpo
na produção da linguagem e da subjetividade ao identificar que “assim como as experiências
básicas da orientação espacial humana dão origem a metáforas orientacionais, nossas
experiências com os objetos físicos, (especialmente nossos próprios corpos) constituem as
bases para uma variedade extremamente ampla de metáforas ontológicas, isto é, modos de
ver eventos, atividades, emoções, ideias, etc., como entidades e substâncias.” (1980, p. 25;
grifo meu).
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Em Lakoff e Johnson as metáforas ontológicas servem a múltiplos propósitos e os
refletem. Alguns exemplos:
―A globalização está rebaixando nosso padrão de vida‖ (a globalização como uma
entidade com vida própria);
―Será necessário um bocado de paciência para chegar ao fim deste texto‖ (a paciência
como uma substância quantificável);
―A borboleta está no jardim‖ (o jardim como uma metáfora-continente, que contém a
borboleta).
―A virtude é o bem mais alto que um ser humano pode alcançar‖ (a orientação vertical
indica, de forma hierárquica e ascendente, a superioridade das coisas nobres em
oposição à baixeza dos comportamentos animalescos e incivilizados);
―São Paulo verticaliza as pessoas enquanto o Rio de Janeiro as horizontaliza‖ (metáfora
orientacional equivalendo o eixo vertical ao princípio da realidade - introspecção,
seriedade, trabalho e acumulação - enquanto o eixo horizontal fornece a base metafórica
para a socialização, a alegria e o imediatismo da vida – o princípio do prazer).
Orientações espaciais, tais como em cima/em baixo, na frente/atrás, dentro/fora,
centro/periferia e longe/perto também dão suporte a uma extensa variedade de metáforas para
a compreensão de conceitos orientacionais, cujos sentidos que variam em função da
conotação emocional envolvida com a orientação espacial utilizada. Por exemplo:
―Estar ao pé da lista‖ implica em um sentimento diverso do que sentimos quando
―Estamos ao pé da montanha‖;
―Estar no fundo do poço‖ implica em um estado de ânimo distinto do que em ―Ir ao
âmago da questão‖.
Assim, “a metáfora permeia toda nossa vida cotidiana; não apenas na linguagem,
mas no próprio pensamento e na ação. Nosso sistema conceitual ordinário, em termos do
qual pensamos e agimos, é fundamentalmente metafórico em sua natureza.” (1980, p. 3)
A experiência corporal é estruturante da razão e da linguagem não por ser a mera base
física através da qual estamos em contato com o mundo, mas porque cada percepção afeta a
neurodinâmica corrente e gera – a partir da atividade em curso na amígdala e nas demais
estruturas implicadas- uma valência emocional que qualifica o registro em termos de
sentimento.
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A memória implícita incorporada ao registro modifica-o, agrega-lhe valor e instaura o
primado do objeto ‗interno‘ ou partes dele: o objeto da mente corporificada, portanto, já não
mais corresponde exatamente ao fenômeno sensorial-perceptivo que lhe deu origem.
7. A MENTE ALÉM DA MÁQUINA.
Ao estender o campo de ação da psicanálise ao corpo, Reich observava que “a tensão
e o alívio psíquico não podem existir sem uma representação somática, pois tensão e
relaxamento são processos biofísicos. Até o momento, temos transferido esses conceitos para
o domínio psíquico. Isto era correto, exceto que não se trata de uma analogia senão de uma
verdadeira identidade, a identidade das funções psíquica e somática.” (1935/1975, pp.
348/349).
No contexto da Psicoterapia Neurodinâmica, podemos encontrar alguns exemplos de
como as experiências eliciadas pela fase corporal do processo terapêutico podem trazer as
metáforas e as metonímias para o centro da cena terapêutica.
Jonas, 46 anos, funcionário público, traz o seguinte relato subjetivo de sua experiência
após permanecer algum tempo alternando o seu ponto de mirada entre um ponto imaginário
no teto da sala e a ponta do seu próprio nariz: ―Vi a imagem de um bico de seio. Lembrei de
não ter lembranças de amamentação e do cheiro de leite que me enjoa...‖ A MeSA (Metáfora
Somática Ativadora ou acting) utilizada naquele momento consistia exatamente em
metaforizar corporalmente o ato de alternar o ponto de mirada do olhar entre um ponto focal
distante (o olhar ou o rosto da mãe) e a ponta do seu próprio nariz, o primeiro referente
somático do self primal, onde o sujeito da experiência teoricamente começa a se reconhecer
na própria corporeidade como instancia alternativa ao adulto-mãe.
No caso, ―vi um bico de seio‖ expressa uma metonímia da mãe (a parte pelo todo)
enquanto ―lembrei de não ter lembranças da amamentação e do cheiro de leite que me enjoa‖
expressa a atividade mental concomitante de Jonas, ou seja: o ato de corporeidade (a re-
representação ou ‗mentação‘ de Hughlings-Jackson; com direito, inclusive, a uma produção
denegatória) produzido nos níveis mais sofisticados de processamento cognitivo recorrente
das operações neurodinâmicas, replicadas a partir da experiência sensoriomotora elementar
em que Jonas se encontrava engajado naquele momento da sessão.
Assim:
1. Se a metáfora e a metonímia são corporalmente originárias,
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2. Se a linguagem32
opera como uma usina conceitualizadora dos fenômenos emergentes da
corporeidade em interação com as materialidades que não lhe são próprias;
3. Se, como os anéis do tronco de uma árvore, a corporeidade subjetivada guarda viva em
seu núcleo as relações entre os modos prévios e os modos atuais de funcionamento que
engendram as categorias que formatam a percepção, a linguagem e a própria experiência
de nossa corporeidade, conforme Reich antecipara ao abordar a representação psíquica do
orgânico;
Então a posição reichiana da unidade somatopsíquica e a perspectiva linguística de
Lakoff e Johnson se encaixam com precisão suíça. Comparem novamente a posição de Reich
com a de Lakoff e Johnson nas citações utilizadas na abertura do texto.
Os estudos neurológicos de Damásio fornecem subsídios adicionais que permitirão a
futura verificação objetiva da intuição reichiana ao reportar que “metaforicamente, a razão e
a emoção „se cruzam‟ nos córtices pré-frontais ventromedianos e também na amígdala. Além
disso, o comprometimento do complexo dos córtices somatossensoriais no hemisfério direito,
onde se representa o corpo e suas paisagens viscerais também compromete o raciocínio e a
tomada de decisão bem como as emoções e os sentimentos e, adicionalmente, destrói os
processos de sinalização básica do corpo.” (1996; pp. 95/96).
A assertiva de Damásio parece responder à dificuldade com que Reich se deparava em
1935: “A questão é, pois, como é possível que uma função fisiológica encontre uma
representação tão imediata no comportamento psíquico. Sinceramente, não o sei. Porém,
esclarecer esta questão significará um grande passo adiante em nossa compreensão das
relações entre funções fisiológicas e psicológicas.” (Reich, 1935/1972; p. 341).
8. CONCLUSÃO
As metáforas e as metonímias constituem uma efetiva apresentação no campo da
linguagem daquilo que se passa na corporeidade. A linguagem constitui a transdução no plano
mental das derivas em acoplamento estrutural entre uma forma específica de matéria (a
corporeidade) em interação complexa com as demais materialidades em curso.
A própria cultura é em si uma forma de materialidade, pois constitui um regramento
dos usos e costumes da corporeidade e das materialidades que nos são ‗exteriores‘, produzido
às expensas de uma forma específica de modelagem da matéria, a memória.
Possíveis respostas para a questão levantada por Reich podem e devem ser buscadas
na imensa vazão de dados aportados pelo manancial das pesquisas atuais sobre o
32
Um produto da atividade psíquica, ápice da neurodinâmica humana até o momento.
A Questão do Corpo
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funcionamento do sistema nervoso central e seus módulos perceptivos, emocionais e
cognitivos; e a possibilidade de integrá-los numa perspectiva inventiva, conforme sugere
Kastrup, poderá responder à complexa questão da superação das perspectivas dualistas ainda
hegemônicas: o objetivismo positivista no campo da investigação científico-natural, por um
lado, e a subjetividade filosófica pela vertente das ciências humanas.
Mais uma vez, vemos que as proposições reichianas do período pré-orgonômico se
revelam corretas desde que devidamente refinadas e desenvolvidas pelos conhecimentos
aportados pelas neurociências, pela filosofia e pela lingüística que emergem do paradigma
conexionista.
As implicações desta perspectiva deverão produzir novos agenciamentos no campo da
clínica corporalista para além dos dispositivos clínicos até então conhecidos e aplicados nas
técnicas das diversas correntes da psicoterapia corporal, com renovada atenção aos aspectos
linguísticos e relacionais que ocorrem no âmbito da relação de trabalho terapêutica.
Agradecimentos: Aos colegas psicólogos Sophie Farhi, Fabian Dullens e Marco Aurélio
Mendes pela leitura e comentários às versões intermediárias do texto. Agradeço também à
engenheira agrônoma Angela Iaffe pela consultoria botânica que aparece na nota 10 e a Sean
Haldane pela contínua inspiração nesse árduo e gratificante caminho da releitura dos
cometimentos reichianos à luz da neurodinâmica relacional.
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A Questão do Corpo (Seção Especial Kairós 2010)
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OS GREGOS E JUNG
THE GREEKS AND JUNG
Alvaro de Pinheiro Gouvêa33
Resumo
Tendo por base o livro ―Paidéia – A Formação do Homem Grego‖ de Werner Jaeger,
traço nesse trabalho, um breve paralelo entre alguns aspectos do pensamento dos gregos e o
conceito junguiano de ―Processo de Individuação‖.
O processo histórico pelo qual se chegou à formação do homem grego e o processo
espiritual que levou os gregos a elaborarem seu ideal de humanidade expressam altas formas
de cultura até os tempos modernos.
A Arte, a Vida e a ―teoria‖ da filosofia grega estão intimamente ligadas. A força
criadora, vital e plástica que move a comunidade humana hoje se deve em grande parte à
inteligência clara dos gregos que souberam por meio da vontade consciente e da razão levar o
homem à descoberta de si próprio.
Sendo assim, a filosofia depois dos gregos não poderia deixar de influenciar tanto
Jung como Freud. Não é difícil encontrar traços essenciais do ideal grego do homem no
pensamento freudiano e junguiano. Isso porque fora Sócrates o guia de todo Iluminismo
surgido na França, também chamado ―período das Luzes‖, do Romantismo na Alemanha e de
toda a filosofia Moderna. Ambos apesar de serem filhos do Romantismo alemão, também
guardam vestígios em suas ideias da época clássica da Paidéia.
Palavras-chave: Individuação, Homem, Educação Grega - Paidéia.
Abstracts
Based on the book "Paideia - The Formation of Greek Man" by Werner Jaeger, a trait
this study, a brief comparison between some aspects of the thought of the Greeks and the
Jungian concept of "individuation process".
33
Analista Junguiano, Doutor em Psicologia Clínica, Professor do Departamento de Psicologia e Coordenador
do curso de pós-graduação Lato-Sensu ―Psicologia Junguiana, Arte e Imaginário‖ na PUC-Rio. Graduado em
Economia, Filosofia e Psicologia, mestrado em Psicologia e DEA em Filosofia da Existência no ―Centro Gaston
Bachelard de Pesquisa sobre o Imaginário e a Realidade‖ na Universidade da Borgonha – França. Publicou os
livros: ―Sol da Terra: o uso do barro em Psicoterapia‖, 1989, São Paulo: Summus editora e, ―A
Tridimensionalidade da Relação Analítica‖, 1999, São Paulo: Cultrix. Vários artigos publicados em revistas
nacionais e estrangeiras.
A Questão do Corpo (Seção Especial Kairós 2010)
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The historical process by which man came to the training of Greek and spiritual
process that led the Greeks to build their ideal of humanity expressing high cultural forms to
modern times.
Art, Life, and "theory" of Greek philosophy are intimately linked. The creative force,
vital and plastic that moves the human community today is in large part to the clear
intelligence of the Greeks who learned through conscious will and reason lead to the
discovery of the man himself.
Thus, philosophy after the Greeks could not but influence both Jung and Freud. It is
not difficult to find essential features of the Greek ideal of man in Freudian and Jungian
thought. That is because Socrates was the guide of all Enlightenment emerged in France, also
called "period of the Enlightenment, Romanticism in Germany and the whole of modern
philosophy. Although they are both children of German Romanticism, also remains on guard
ideas of the classical age of Paideia.
Keywords: Individuation, Man, Greek Education – Paidéia.
A partir do invisível de dentro, ali onde não pude ver nem
querer aquilo mesmo que sempre tive medo de deixar revelar-se no
scanner, na análise – radiológica, ecografia, endocrinologia,
hematologia -, veia crural, expulsava meu sangue para fora, e eu o
achava belo, uma vez coletado naquele frasco sob uma etiqueta a qual
eu duvidava pudesse prevenir a confissão ou o desvio de propriedade
quanto ao cruor – sem me deixar mais nada a fazer, o dentro de minha
vida exibindo-se sozinho no fora, exprimindo-se sozinho fora,
exprimindo-se sob meus olhos, absolvido sem um gesto, [...] o sangue
sozinho se entrega, o dentro se entrega e de si pode dispor, sou eu,
porém mais nada tenho com isso, nem com ninguém, [...] deve-se ao
fato de o volume de sangue incrível para a criança que continuo a ser
esta noite, expor para fora, portanto para a sua morte, o que de mais
vivo terá em mim havido... (DERRIDA, 1996:15, 16).
Antes e durante a Psicologia, tive a sorte de cursar a faculdade de filosofia e de ter
tido como professor o grande filósofo brasileiro Pe. Henrique de Lima Vaz. Conhecedor
profundo de Platão e Hegel, esse jesuíta foi quem me ensinou a expulsar-me para fora,
exibindo sozinho no de fora, algo de mim ainda criança, que mal conhecia dentro, contudo
tão vulnerável que só o precioso filosofar poderia não ameaçar sentimentos e pareceres
aparentemente contraditórios mais cheios de confidências. Entre uma sabedoria e outra me
A Questão do Corpo (Seção Especial Kairós 2010)
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indicou o livro de Werner Jaeger - ―Paidéia34
– A Formação do Homem Grego‖ (JAEGER,
1986).
Tendo por base esse livro de Jaeger, traço nesse trabalho, um breve paralelo entre o
conceito junguiano de individuação e alguns aspectos do pensamento dos gregos,
fundamentalmente da filosofia de Platão.
O processo histórico pelo qual se chegou à formação do homem grego e o processo
espiritual que levou os gregos a elaborarem seu ideal de humanidade expressam altas formas
de cultura até os tempos modernos.
Percebi a minha simpatia pelos Gregos quando recentemente escutei o comentário de
um amigo a propósito da atual crise econômica grega, dizia ele: ―os Gregos não devem nada
ao mundo e muito menos aos europeus‖. E continuou: ―É historicamente indiscutível que
foram os Gregos os primeiros a perceberam que a ‗Educação e a Formação do Homem‘ deve
ser um processo de construção consciente‖.
Verdade, a humanidade é devedora aos Gregos. Os Euros que somam toda a dívida
europeia não pagam aquilo que os ancestrais da atual Grécia fizeram pela Europa e por toda
comunidade internacional.
A importância universal dos Gregos para a cultura e educação não pode ser esquecida
em meio às graves crises que abalam os países europeus e o nosso mundo globalizado atual.
O grego é naturalmente um povo filosófico, tornando-se com Sócrates o guia de todas
as ideias éticas e religiosas que se seguiram ao fim da Idade Média. Na verdade fora a
tendência anti-socrática do Alemão Friederich Nietzsche que em sua juventude criticara o
humanismo dos gregos pregando o advento do super-homem. Contudo, o chamado idealismo
alemão valorizaria novamente os antigos pensadores gregos.
Segundo Jaeger ―A teoria hegeliana da contradição tem o ponto de partida em
Heráclito, e a teoria de Schopenhauer sobre a vontade na natureza apresenta alguma
semelhança com outro tipo de pensamento pré-socrático, o de Empédocles, que fazia de
“Amor” e “Discórdia” as forças dominantes da natureza‖ (JAEGER, 1996:345).
34
Os gregos pensavam que assim como o oleiro modela a sua argila, o homem deve modelar-se a si mesmo e a
seu espírito como se fora fundir-se numa unidade com o mundo eternizando o instante criador na própria ação
de dar forma à sua individualidade. Cada alma humana tem como tarefa principal a Educação de suas
potencialidades cuja erupção no mundo criará as mais altas formas culturais. A palavra ―Paidéia‖ aparece no
século V para designar exatamente esse ideal grego de Educação que procura manifestar na vida comunitária o
espírito criador de que é movido o ser humano.
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A Arte, a Vida e a ―teoria‖ da filosofia grega estão intimamente ligadas. A força
criadora, vital e plástica que move a comunidade humana atualmente, se deve em grande
parte à inteligência clara dos gregos que souberam por meio da vontade consciente e da razão
levar o homem à descoberta de si próprio.
OS GREGOS E A PAIDÉIA
Do ponto de vista de Platão a filosofia e todo o saber humano nascem de duas
vertentes: a Doxa e a Epistéme. A Doxa é o saber que temos sem procurá-lo (nasce do
instinto humano do Ser humano por excelência) e, a Epistéme o saber que temos porque
procuramos.
Portanto, a Filosofia em Platão não é propriamente ―amor à sabedoria‖ e nem
tampouco ―o saber em geral‖. Filosofia para Platão é o saber que temos ou adquirimos por tê-
lo buscado METODICAMENTE. Este método é a DIALÉTICA. Trata-se de um método de
AUTODISCUSSÃO fundado em torno de um DIÁLOGO consigo mesmo e num
ADMIRAR-SE (Thaumátzein – em grego). No dizer de Platão é no admirar-se (Thaumátzein
– em grego) que está fundada a nossa capacidade de intuir, problematizar e racionalizar
sempre num processo de contrapor dialéticamente ―afirmações e negações‖.
Sendo assim, do diálogo intermitente exercido entre diferentes Doxas (opiniões que
nascem naturalmente na alma humana) pouco a pouco se chega a um conhecimento que
resiste às discussões e se transforma em Epistéme, ou a sabedoria autêntica, ou ―ciência‖.
Diríamos que essa dialética nos aproxima o máximo possível das essências ideais, avançando
rumo aos objetos na natureza em busca da ―verdade absoluta‖.
Movido por um encantamento sem fim o movimento dialético, apesar de nos
deixarem sempre inquietos e intranquilos, segue o ―conhece-te a ti mesmo‖ de Sócrates.
Nessa procura interna o indivíduo eleva-se por instinto e desejo à função profética de criar o
mundo criando a si próprio. Movido, também, por uma divina inquietação provocada tanto
pelos objetos ideais como pela realidade sensível com seus objetos concretos, a vida interior
do homem, a sua alma, transforma-se em vida vivenciada.
Ao tentar abrir caminhos em seu ser e a desenhar planos que se misturam na
diversidade das experiências vividas no seu cotidiano, o homem grego segue uma evolução
progressiva moldando o seu espírito segundo as suas duas divindades das artes, Apolo e
Dionísio. Para os Gregos a mais alta obra de arte é a criação do Homem Vivo e envolve a
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dialética entre mundo interno e mundo externo. Assim a ciência estética liga-se à métrica
desses dois deuses gregos ―Apolo e Dionísio‖.
Para os Gregos é preciso dar formas às realidades internas que se escondem por trás
da realidade em que vivemos. E, dar forma a essência desse espírito que habita na alma
humana é o mesmo que lidar com nossas emoções internas produzindo Educação. Para os
Gregos os instintos impulsivos caminham lado a lado inspirando e dotando o homem de um
espírito filosófico.
Nietzsche inspirando-se nos gregos disse em seu livro ―A origem da tragédia‖: ―Todo
o homem que for dotado de espírito filosófico há de ter o pressentimento de que, atrás da
realidade em que existimos e vivemos, se esconde outra muito diferente, e, que, por
consequência a primeira não passa de uma aparição da segunda.‖ (NIETZSCHE, 1985:37).
O que existe verdadeiramente para os gregos é uma ―imago arquetípica‖ - origem de
todo o ser. Essa ideia de uma imago do ser vai ajudar Jung a construir a sua tópica, ou seja, a
sua maneira de olhar o funcionamento da psique.
JUNG E A PAIDÉIA
A filosofia depois dos gregos não poderia deixar de influenciar tanto Jung como
Freud. Ambos apesar de serem filhos do Romantismo alemão, também foram influenciados
pela época clássica da Paidéia. Não é difícil encontrar traços essenciais do ideal grego do
homem em Freud e Jung. Isso porque fora Sócrates o guia de todo Iluminismo surgido na
França, também chamado ―período das Luzes‖, do Romantismo na Alemanha e de toda a
Filosofia Moderna.
Vejamos brevemente algumas ideias que percebo unir a tópica junguiana à formação
do homem grego. Lembrando que esse assunto é tratado aqui de maneira incompleta e que
merece ser abordado de maneira mais profunda.
Diria que o conceito de ―Processo de Individuação‖ em Jung pode se servir do
Método dialético de Platão para pensar o ―Eixo Eu-Si-mesmo‖. A consciência de que existe
uma realidade vital e criadora própria ao ser do homem – a noção de Si-mesmo e dos
arquétipos, ilumina a práxis de Jung na clínica e guarda elementos da paidéia platônica.
A relação dialética entre o conceito de Eu e de Inconsciente no qual se traduz a
mecânica do ―Processo de Individuação‖, é uma espécie de revivência da dialética platônica.
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Jung proclama que a nossa consciência nasce ―de dentro de nós mesmos‖ como uma criança
do seio materno e sempre em dialética.
O indivíduo para Jung, como para Platão, não se forma a partir de um espaço vazio,
ao contrário, se desenvolve no social e em meio ao solo e vivências do povo e atravessando
todas as mudanças históricas. A consciência seria a depositária das opiniões que nascem
naturalmente da alma humana (doxa) e o saber que adquirimos porque procuramos
(epistéme).
O Eu proclama de maneira mais concisa a pedagogia da alma humana que quer e
exige um saber baseado no conhecimento da natureza do Homem envolvendo tanto a alma
como o corpo. Por conseguinte, esse processo envolve tanto o indivíduo como a coletividade
na qual ele está inserido.
A ―individuação‖ deve ser pensada como um método de diálogo consigo mesmo e
voltado para as necessidades da comunidade. Jung nos fala de uma voz interior que é
substituída pela voz do grupo social e de suas convenções e, uma vez estando a pessoa nesse
estado social inconsciente é chamado por uma voz individual. Assim o EU enquanto o
―Centro da Consciência‖ e o ―Self‖ ou ―Si-mesmo‖ como o ―Centro da totalidade da Psique‖
unem-se em dialética inserindo o indivíduo na arte de educar-se a si mesmo no social.
Diria então, que no modelo junguiano de individuação o Homem busca a verdadeira
essência humana quando a contrapõe sistematicamente às exigências da comunidade.
Segundo a concepção grega, o fator decisivo em toda EDUCAÇÃO é a energia que
envolve o gênio criador do Homem grego e o eleva à sua plenitude criadora capaz de dar
forma a modelos heroicos e de ajudá-lo em sua luta em prol de um objetivo elevado. Também
o romantismo alemão do tempo de Jung considerou a ―humanidade‖, a ―cultura‖ e o
―espírito‖ dos Gregos ou dos antigos, como manifestações naturais da expressão humana.
Podemos afirmar que em Jung, o Processo de Individuação não é uma realidade
completa e acabada, mas que ela resulta de um trabalho poético ininterrupto do Si-mesmo em
seu desejo de realizar no cotidiano da comunidade social. Pela mediação do Eu, o Si-mesmo
aparece como parte essencial de uma realidade que ganha significado pleno no agir ―ético‖ do
indivíduo no mundo.
Para os Gregos a superior força do espírito humano tem seu enraizamento na vida
comunitária, também em Jung vemos que a noção de ―Individuação‖, conceito central de sua
teoria, lança suas raízes na esfera material e exterior. O homem na luta contra o ―destino‖ e
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em prol de uma estrutura interna que quer se realizar no mundo, muitas vezes mergulha em
dificuldades inextrincáveis, em combates singulares e muitas vezes trágicos que exigem a
intervenção de ideais imperativos provindos da numinosidade do Si-mesmo como o arquétipo
central da ordem.
ARTE, VIDA, CRIATIVIDADE E INDIVIDUAÇÃO
Mesmo na tragédia as ações dos gregos apontam para uma ação. É na dialética do
mundo externo pelo mundo enquanto substância pura e idealizada que veremos nascer modos
de agir criativo dos gregos.
Debater-se em meio a contradições internas e externas desencadeia na lógica interna
do desejo um efeito angustiante e criativo. Experimentalmente, a ―individuação‖ enquanto
―consciência de si no mundo e no social‖ é também vivida pelo indivíduo com uma certa
angústia criativa. A Angústia Criativa é Encantamento e Memória.
Arte e Angústia Criativa são formas de Encantamento (numinosidade) e estão
presentes tanto na tragédia humana tão bem investigada pelos gregos, como no ―Processo de
Individuação‖. Em face dessa realidade existencial que é a angústia como modelo formal de
arte, é possível mudar profundamente a estrutura de compreensão da tragédia humana.
Individuar-se é Educar-se no sentido da Paidéia grega.
Na individuação, a pessoa está mergulhada em sua essência mesma e das profundezas
de sua alma a força criadora busca o som, a palavra, o ritmo e a harmonia que irá se
transformar sua ação numa medida de valor para a comunidade. Em sua arte, o indivíduo
busca vivenciar suas emoções, angústias e tragédias como substância real de sua existência. É
certo que ligar uma emoção a um objeto concreto ou a uma cor, buscando metamorfosear e
colorir o desejo no espaço e tempo são atributos do ato criador e do processo de individuação.
O indivíduo instintivamente transforma emoções em imagens querendo encontrar um sentido
para sua existência. A arte conceitual abandona suas certezas e chegam a conclusões quase
que místicas. As convenções da arte são alteradas diante de uma força interior e numinosa
que leva o indivíduo a abandonar uma posição definida pelo Eu e se vê impulsionado por
demandas internas que tentam se tornar algo físico em seu viver cotidiano.
Ao agir e reorganizar o cotidiano e movido mentalmente pelo encantamento e pela
falta quase que total das virtudes estéticas das obras dos chamados ―grandes artistas‖, o
indivíduo comum cria e transita entre imaginários percebendo que o reflexo de seu valor
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interno corresponde exatamente a um gênero de beleza e grandeza que ultrapassa a produção
artística em si mesmo.
Contudo, a reflexão teórica e o trabalho artesanal produzido são partes do mesmo
pacote artístico. Ao unir tristeza e pão, argila e angústia, experiências sensoriais e a realidade
física dos objetos imaginários, acaba unindo a própria vida no peito partida e repartida
quando descobre num prazer intenso que o mundo dos heróis é o seu também. Que a sua vida
ganha sentido a cada obstáculo que sucede em sua vida, sua evolução e suas altas exigências
espirituais.
C. G. Jung, no livro ―O Espírito na Arte e na Ciência‖ (Jung: 74, 79) tece algumas
reflexões sobre Vida/Arte/Individuação. Segundo Jung, as fontes da criatividade científica e
artística da psicologia se apoiam nas regiões ESTRUTURAIS e ARQUETÍPICAS de nossa
psique. Principalmente na DINÂMICA ARQUETÍPICA fonte do ENCANTAMENTO que
supõe qualquer atividade espiritual ou artística.
Aqui cabe a pergunta: Haveria uma relação dialética entre a psicologia pessoal do
criador e o traçado de sua obra? A psicologia pessoal do criador revela certos traços em sua
obra, mas não a explica em sua totalidade. E mesmo supondo que a explicasse, e com
sucesso, seria necessário admitir que aquilo que a obra contém de pretensamente criador não
passa de um mero sintoma de algo maior que existe em seu inconsciente; o que não seria
vantajoso nem glorioso para a obra em si.
Ainda que ―obra de arte‖ e o ―homem criador‖ estejam ligados entre si, por uma
profunda relação e numa interação recíproca, ainda assim não se explicam mutuamente. Em
parte isso significa dizer que o ―momento criador‖ envolve a percepção das leis profundas
que governam a natureza humana e das quais derivam a força formativa a serviço da
Educação humana.
No momento me vem essa equação numa tentativa de juntar os Gregos à minha
maneira de pensar a teoria analítica de Jung.
Força espiritual criadora
Política
Sabedoria
Arquétipo = Individuação = Educação = comunidade
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Como justificaria essa minha modesta equação? Sabemos que foram os Gregos que
juntaram ―Educação e Consciência‖. Os poetas gregos diziam que o processo educativo
deveria ―ser construído de modo correto e sem falha, nas mãos, nos pés e no espírito‖.
É preciso ter em conta que a Paidéia grega ultrapassa a soma das técnicas e
organizações privadas para se ligar na intimidade da alma humana.
Os grandes homens da Grécia assentam seu conhecimento para além do virtuosismo
intelectual e artístico da civilização moderna. A trindade grega encana a mais alta direção da
nação envolvendo – o Poeta Grego, o Homem de Estado e o Sábio. Para os Gregos o ―ser do
homem‖ se vincula essencialmente às características do homem como ser político. E ―ser
político‖ implica em ―estar em processo de individuação‖ estando o indivíduo em íntima
conexão com a vida espiritual criadora e sempre a serviço da comunidade.
Mesmo quando se trata do culto religioso, o homem grego tem suas raízes no solo
social e político que coincide substancialmente com o ideal de Homem que mantêm o seu
lugar no mundo e travam sua batalha no terreno da filosofia.
Segundo os ensinamentos dos heróis gregos, o nosso próprio movimento espiritual
cujas raízes mergulham na imensidão do inconsciente é que nos permite pensar a concepção
de Estado como sendo algo quase que impalpável em nosso cotidiano. O Estado para os
Gregos está longe de poder ser considerado como um projeto acabado. Na verdade, o Estado
não é um lugar determinado por estruturas físicas. Essas estruturas construídas pelo homem
para que se reúnam e se eduquem como Estado-nação é fundamental, mas jamais
indispensável para que o povo se organize e possa manifestar seu aprimoramento pessoal
dentro da comunidade.
Diria que a Paidéia grega nos fez constatar que somos, no íntimo, como Estados e
cidades eternamente inacabadas. Singularmente selvagens os homens precisam passar por
processos contínuos de construção e desconstrução, envolvendo mutações orgânicas, tanto
ficcionais como reais. Assim, em dialética, fragmentos de sentimentos se juntam ao espiritual
em busca de uma organização: a arte do Vir-a-Ser do Ser.
Concluiria concordando com Schopenhauer, nessa citação que faz de Nietzsche:
Como um pescador no seu barco, tranquilo e pleno de
confiança na sua embarcação, no meio de um mar desmesurado que
sem limites e sem obstáculos, levanta e derruba montanhas de ondas
cheias de espuma, mugindo e bramindo, o homem individual, no meio
de um mundo de dores, permanece sereno e impassível, porque se
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apoia confiadamente ‗principium individuationis‘. (NIETZSCHE,
1985:38).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACHELARD, G. O Ar e os Sonhos. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
DERRIDA, J.; GEOFFREY, B. Jacques Derrida por Geoffrey Bennington & Jacques
Derrida. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1996.
JAEGER, W. Paidéia – A formação do Homem Grego. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
1986.
NIETZSCHE, F. A origem da Tragédia. 4ª ed. Lisboa: Guimarães Editores, Ltda, 1985.
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JUNG E A FILOSOFIA DA ALMA
José Carlos Leal
Mestre em Ciência da Literatura pela UFRJ e professor da UNIG
O Conceito de alma, como o elemento que dá vida ao corpo e sobrevive a este depois
da morte é muito antigo. Já no Egito faraônico, ele existia, mas atrelado ao pensamento
religioso, ao discurso mítico. O mesmo acontece nas culturas da Mesopotâmia, da Índia entre
outras culturas antigas. É na Grécia, porém que a alma ganha importância fora da religião,
tornando-se um objeto da especulação filosófica em estrito senso. Nesse contexto, dois
pensadores são extremante importantes: Platão e Aristóteles.
PSICOLOGIA DE PLATÃO
Platão sempre apresentou uma relativa dificuldade em fazer uma descrição direta da
natureza da alma. Segundo o Platonismo, a alma deve ser compreendida por suas operações e
nada mais. Este é o motivo por que a doutrina de Platão se encontra recheada de mitos,
entretanto, a mitologia nesse caso não deve ser entendida como produto da fantasia, porém,
como um modo de dizer o indizível. A psicologia de Platão possui uma natureza
acentuadamente ética. Com ela e por ela, pretende-se explicar o conflito interior entre
tendências opostas, experimentado pelo homem continuamente.
A alma, no Platonismo, é, antes de tudo, uma entidade transfísica que se encontra
relacionada com a ordem religiosa. Em As Leis, ele escreve: “A alma é aquilo que o ser
humano possui de mais divino e de mais particular”. Ao contrário dos pensadores anteriores
que sempre deixaram a alma envolta em uma certa materialidade, embora na maioria das
vezes bastante sutil, como é por exemplo, o caso dos atomistas, Platão quer que ela seja
absolutamente incorpórea imaterial. Por este motivo ele repudia todas as teorias sobre a alma,
na qual ela seja identificada como uma mistura de elementos ou mesmo com um simples
elemento, para perfilhar apenas a doutrina sobre a espiritualidade total da alma e da
destinação metafísica ou sobrenatural desta. Seguindo o pensamento tradicional Platão
acredita no Hades ou Mundo dos Mortos para onde vão as almas ao deixarem esta vida. Isto
fica bastante claro na República quando ele trata do mito de Her - o Armênio, um soldado que
foi dado como morto e reviveu no momento em que ia ser cremado.
Para defender a sua metapsicologia, Platão se vale de cinco argumentos básicos como:
1. A alma possui, desde sempre, a verdade.
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2. A alma é o princípio do movimento.
3. A alma é simples, indivisível, incorruptível e, por conseguinte escapa à destruição.
4. A alma é capaz de reminiscência e isto prova a sua existência anterior.
5. A alma participa da ideia da vida.
Desse ponto de vista, Platão e o Platonismo encaram a vida psíquica como
inteiramente independente do corpo que é uma espécie de veste da alma, ou domicílio, ou
ainda prisão desta. A alma particular, entretanto, preside o movimento do corpo como a alma
universal preside o movimento do cosmo. Ela não é da mesma natureza do corpo (soma) e, se
a ele se encontra adida, isto se dá em virtude de ter cometido, em experiências passadas, uma
falta que a degradou, fazendo mesclar-se com a matéria e sujeitando-a ao devir. Como um
prisioneiro em sua cela que deseja ardentemente libertar-se, a alma também anseia por
escapar da prisão do corpo. Seu destino (e o seu maior desejo) é retornar à sua verdadeira
origem. Que é o Mundo Superior e, para tanto, deverá passar por encarnações sucessivas
como acontece com a Índia na Lei do Carma. Estabelece-se, então, um conflito entre a
aspiração da alma em busca do infinito e as seduções e apelos próprios da vida material. 35
A vida no mundo sensível, embora atraente, é insuficiente para aplacar na alma a sua
sede de infinito; por isso, ela deve lutar para superar as condições precárias da matéria para
que possa ascender aos páramos celestiais, o seu verdadeiro lar.
A alma, prisioneira do corpo, como já vem, busca libertar-se, entretanto, como superar
a condição humana? A resposta que Platão oferece a esta questão é a seguinte: apenas a
dialética é capaz de superar a multiplicidade dos dados sensoriais e, por meio deste recurso,
será capaz de dissipar a ilusão de que se encontra presa só assim a alma poderá escapar à
reclusão no corpo e poderá contemplar o Sol do Mundo das Ideias, representado pela Ideia do
Bem.
Platão explica que a alma, não purificada pela filosofia dialética, deverá descer ao
Hades, Mundo dos Mortos, onde será castigada ou premiada de acordo com o tipo de vida que
teve na Terra. Outras, depois de passarem no Hades, por um certo tempo, voltam à vida
terrena em um corpo humano ou animal. A escolha (corpo humano ou animal) dependerá de
suas necessidades espirituais e do tipo de vida que levou na última existência.
35
Müeller. História da Psicologia. P. 46
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A PSICOLOGIA DE ARISTÓTELES OPOSIÇÃO A PLATÃO
Quando se estuda a Psicologia de Aristóteles, o primeiro aspecto que se nota é a clara
oposição ao Platonismo. Em verdade, Platão foi o primeiro pensador que procurou demonstrar
a imaterialidade da alma como garantia de sua imortalidade. Nessa tentativa, Platão se viu
obrigado a separar a alma do corpo, integrando-a em um sistema muito mais metafísico do
que psicológico. A alma é uma estrangeira na Terra, está aqui de passagem. Aristóteles sente
uma espécie de repugnância com respeito à tendência ao transcendente de seu mestre. Desse
modo, ele vai considerar a alma como a forma do corpo e, assim, não haveria corpo sem alma
e nem alma sem corpo. A alma, segundo Aristóteles, é o princípio da vida e do movimento e
é imanente às funções biológicas e fisiológicas do corpo. Em De Anima, escreveu Aristóteles:
Eis mais um absurdo peculiar a essa doutrina e à maior parte
das teorias relativas à alma: unem a alma ao corpo e aí colocam, sem
precisar em nada, o motivo desta união, nem a disposição do corpo
que isso comporta. Parece claro, entretanto, que tal explicação é
indispensável; pois, em virtude das relações mútuas entre a alma e o
corpo, um que age e o outro que sofre, um que é movido e o outro que
move; ora, nenhuma dessas relações recíprocas pertence a coisas
quaisquer. Contudo, esforçam-se esses pensadores apenas em explicar
a natureza da alma, mas, no referente ao corpo que deve recebê-la, não
acrescentam precisão alguma, como se fosse possível que, segundo os
mitos pitagóricos, qualquer alma revestisse qualquer corpo. Mas isso é
inadmissível, pois parece claro que cada corpo possui uma forma, uma
figura que lhe é própria. Os partidários da metempsicose apresentam
as coisas de modo semelhante a quem sustenta que a arte do
carpinteiro possa ser exercida com a flauta: isso é impossível, pois
toda técnica deve servir-se dos instrumentos próprios, e a alma, do
corpo que lhe convém.
Essa discussão sobre a alma vai passar pelo Epicurismo, Estoicismo e as escolas
neoplatônicas e neopitagóricas, mas sem muitas alterações das ideias básicas de Platão e
Aristóteles. Na Idade Média, a discussão avança muito pouco e a alma prossegue associada ao
espaço da religião.
Com o passar do tempo, a alma vai se afastando cada vez mais da esfera religiosa e
buscando de um status científico. Com o avanço do Iluminismo, a Psicologia já se arroga ser
uma ciência que nada mais tenha com a religião. Com isso, o próprio nome Psicologia se
torna inadequado e se prefere chamar esse estudo de: ciência da vida mental, ciência da vida
psíquica, ou ciência do comportamento. A escola Behaviorista faz uma campanha forte e
permanente contra o conceito de alma e até mesmo o de consciência. Um psicólogo deste
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movimento teria dito: ―Os psicólogos que procuram a alma se assemelham a cegos que, em
um quarto escuro, procuram um chapéu preto que ali não está‖. Antes dele, o francês Claude
Bernard afirmava que o cérebro produzia pensamentos, como o fígado produz a bílis.
Assim, como se pode ver, existe um esforço para a criação de uma Psicologia sem
alma, ou seja, uma Psicologia que nega a sua própria etimologia e defende o ponto de vista de
que a alma não pode ser objeto de ciência, mas da religião. Os behavioristas clássicos, por
exemplo, prefere ver a psicologia como a ciência do comportamento enquanto observado em
rígidas condições de laboratório.
Esta situação começa a mudar com o advento da escola freudiana. Muito cedo, logo
em suas primeiras obras, Freud reconhece que a vida psíquica se manifesta em dois níveis, um
consciente e outro inconsciente. Usando a metáfora de Fechner sobre o iceberg, Freud lembra
que a vida consciente (a ponta do iceberg) representa uma parte mínima da vida mental. Por
baixo, na base do iceberg, está uma grande área submersa e ali se encontram as pulsões
(instintos) que, segundo a psicanálise, são as forças propulsoras do comportamento. Freud
criou também um outro conceito que ele denominou pré-consciente ou ante-consciente, ou
ainda, ante-sala da consciência. No pré-consciente, encontra-se o material parcialmente
recalcado e que, por isso, aflui facilmente à consciência. Suponhamos que, na hora do almoço,
você se lembre da briga que teve com um amigo no dia anterior e isso atrapalhe o seu apetite;
o material da desavença que interferiu naquele momento estaria na pré-consciência.
Freud ainda inclui outros conceitos como o de ego, super-ego e id, entre outros
conceitos não menos revolucionários. O trabalho de Freud não devolve a alma ao espaço da
religião, mas por outro lado, busca conter os excessos, às vezes simplistas da Psicologia do
comportamento. Freud, assim, continua materialista e filosoficamente agnóstico.
Assim, chegamos ao pensamento de C.G.Jung. Como ele via a alma. Em primeiro
lugar ele se opõe a Freud muito claramente, ponto de ter havido entre os dois uma cisão. Jung
possuía uma tendência para rever o conceito de alma, considerando-a muito mais complexa
do que a imaginavam os psicólogos antes dele. Freud, por isso, teme que seu amigo se
aproxime do ocultismo, então em voga na época. Ficou famoso o conselho de que ele deu a
Jung: “Meu amigo, afasta-te do lodo negro do ocultismo”. Pela palavra ocultismo deve-se
entender a mediunidade e os estudos da chamada Matagnomia e Metapsíquica.
Jung não foi capaz de atender o seu amigo, pois continuou interessado no lado oculto
da mente, assistindo, inclusive sessões mediúnicas onde, supostamente, se comunicavam
almas de pessoas que viveram na Terra. Basta lembrar que a sua tese de final de curso foi feita
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com o material que ele colheu nas sessões mediúnicas que realizou, tendo a sua prima Helena
Preiswerk como médium. Em um de seus livros, Jung declara com toda a franqueza as suas
dúvidas sobre a alma e a sua imortalidade:
Não desejo nem deixo de desejar que tenhamos uma vida
depois da morte e, absolutamente, não cultivo pensamentos desta
ordem, mas, para escamotear a realidade, preciso constar que, sem que
o deseje ou procure, ideias desse gênero palpitem em mim. São
verdadeiras ou falsas? Eu ignoro, entretanto, constato a sua presença
e sei que podem ser expressas desde que não as reprima por um
preconceito qualquer.
Este texto é muito interessante. Nele vê-se um homem lutando contra os seus próprios
preconceitos que ele mesmo reconhece como sendo um entrave na busca da verdade. Ele
mesmo confessa que possui ideias que lhe assaltam sem que ele saiba a origem delas. Ao
contrário de Sigmund Freud que havia fechado as portas para o transcendente com a frase que
ficou famosa: “Deixemos o céu para os anjos e os pardais”, Jung se debate corroído pela
dúvida. Talvez desejasse participar do agnosticismo radical de Freud, entretanto, para ele, era
muito difícil já que os fenômenos psíquicos o atraiam como ímã atrai o ferro.
Ele reconhece que as ideias preconcebidas são um grande entrave para a compreensão
mais ampla do fato psíquico. Em seu tempo, imaginava-se que o Racionalismo, por um lado,
e o Positivismo por outro, haviam eliminado por completo a possibilidade de se acreditar,
seriamente, na vida depois da morte e ele inquestionavelmente, acredita nesta hipótese. Um de
seus textos mais curiosos sobre a imortalidade é o prefácio que ele faz para o Livro dos
Mortos Tibetano. Ao mesmo tempo, ele parece reconhecer que nem a Filosofia nem a Ciência
de seu tempo deram uma resposta definitiva a esta questão. Principalmente a Psicologia,
etimologicamente a ciência da alma, que deveria ter uma resposta, no mínimo diferente para
os problemas, imersa no Materialismo, perdera a sua identidade.
Mesmo com toda esta abertura Jung procurou se manter aprisionado na concepção
materialista da alma. Em verdade ele era um psicólogo de renome e tinha medo de associar
seu nome a uma teoria maldita nas academias. Ele não teve coragem suficiente para enfrentar
os seus críticos, inclusive o próprio Freud, caso defendesse a realidade da alma e a sua
continuidade depois da morte. Assim, ele vai procurar formular teorias que impeçam a
espiritualidade da alma e a coloque dentro do campo da Psicologia materialista. Explicando a
crença na imortalidade da alma, ele escreveu:
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Uma das principais fontes das crenças dos primitivos nos
espíritos é o sonho. Nos sonhos aparecem pessoas, muito
frequentemente, como protagonistas e a consciência primitiva
acreditam, facilmente, que se trata realmente de espíritos. É sabido
que certos sonhos têm um valor infinitamente maior para o primitivo
do que para o civilizado. Ele não somente fala, muitas vezes, de seus
sonhos, mas também lhes atribui grande importância, de sorte que,
frequentemente, o primitivo é incapaz de distingui-lo da realidade Os
sonhos não têm valor aos olhos do civilizado em geral, entretanto,
entre esses há indivíduos que dão grande importância a certos sonhos,
justamente em virtude de seu caráter estranho e impressionante. Esta
particularidade confere alguma plausibilidade à opinião de que esses
sonhos sejam inspirações. Mas a inspiração implica a existência de um
inspirador, um espírito, embora pouco se fale dessa consequência
lógica. Um exemplo bastante ilustrativo, nesse sentido, é o fato de
que, nesses sonhos aparecem muitas pessoas já falecidas. As mentes
ingênuas acreditam facilmente que são espíritos dos mortos que
voltam a se manifestar. 36
Conforme Jung, a segunda fonte para a crença em espíritos são as doenças psicógenas,
ou distúrbios nervosos de fundo histérico, muito comum entre os povos primitivos. Um
grande número de indígenas - continua Jung - acredita que muitas doenças físicas ou
psicológicas são motivadas por espíritos de pessoas desencarnadas. Esses primitivos parecem
crer firmemente, que os seus mortos continuam a viver, espiritualmente, em algum lugar de
onde poderão vir a interferir na vida dos vivos, provocando-lhe certas enfermidades.
Uma outra fonte são as doenças mentais. A esquizofrenia provoca alucinações
auditivas e visuais que as pessoas tomam como manifestações de espíritos sem imaginar que
tais sintomas são em verdade, produtos de sua atividade psíquica. Não existem, portanto,
pensa Jung, espíritos de mortos que aparecem para os vivos. Se não existem, poderíamos
perguntar por que algumas pessoas (inclusive o próprio Jung) dizem ter visto os espíritos de
pessoas que já morreram em sonho ou mesmo em estado de vigília? Ele responde sem
titubear: ―O que as pessoas veem e julgam ser espíritos, é apenas a exteriorização de
complexos ou centros da alma, carregados de afetividade podem ganhar certa autonomia e se
manifestar como espíritos”.
Como se pode ver facilmente, Jung nega, veementemente, o conceito de alma
transcendente explicando a sua existência por meio dos sonhos ou da alienação mental. Há,
contudo, algumas questões que perturbam as certezas junguianas. Em um certo momento de
sua obra, ele chama a atenção para o fato de que a crença nos espíritos não se restringe aos
36
Jung In. A natureza da Psiké. p.243
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primitivos e camponeses incultos. Também, em cidades importantes como Londres, Paris,
Nova Iorque, há pessoas que acreditam nesse tipo de fenômeno e o que mais o intriga é o fato
de que homens de ciência, como William James, Walace, Lombroso, Crooks, entre muitos
outros, têm se dedicado a estudar determinados médiuns e parecem acreditar na possibilidade
da vida depois da morte. Jung admira-se ainda de que tais homens possam ter tido a coragem
de arriscarem seus nomes e suas carreiras defendendo destemerosamente pontos de vista
condenados pelos meios acadêmicos.
Permita-me o leitor que eu coloque aqui um pequeno texto de um psicólogo junguiano
a fim de que, quem nos leia, possa ter uma ideia melhor e mais ampla deste assunto. O
psicólogo se chama Erlo Van Weaveren e o texto é o seguinte: ―Certa vez falei com o
professor Jung sobre o tema da reencarnação, entretanto, depois desta conversa a sua esposa
(de Jung) me disse: ‗Não fala a ninguém sobre o que disse o professor, ainda não é tempo‘.‖
Que teria dito Jung? Por certo, algo que a sua esposa considerou como comprometedor
ou talvez um apoio às ideias de Weaveren que havia escrito um livro sobre Doroty Ead, uma
mulher que acreditava ter sido a esposa do faraó egípcio Setti I.
Jung, possivelmente, sente-se mal quando toca nesse assunto uma vez que ele, ao
longo de sua vida, vivera experiência que deveriam tê-lo levado, pelo menos, a dar maior
atenção ao problema da imortalidade da alma e da comunicação dos espíritos. Ele, porém, não
o fez. Não ultrapassou os limites que se impôs. Isso, contudo, não o diminui nem lhe rouba o
lugar de destaque que ele merece entre os grandes psicólogos do século XX.
Jung deixou esta vida no dia seis de junho de 1961. Estava então com oitenta e seis
anos de idade. Fora uma longa vida dedicada ao conhecimento da alma humana. Segundo o
seu projeto, procurou mergulhar o máximo no mundo interior do seres humanos. Viu muitas
coisas, coisas espantosas que ele não soube ou não quis significar corretamente. Passou por
experiências que o deixaram atordoado e confuso, entretanto, nenhuma dessas experiências
foi o suficiente para que ele desse um passo à frente na direção de um verdadeiro
espiritualismo. Quais teriam sido os motivos de Jung? Excesso de escrúpulos? Amor à
verdade científica? Receio de perder a sua posição no mundo acadêmico? Não sabemos e,
talvez, jamais o saberemos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDREWS, S. Jung e os Junguianos. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1987.
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COTT, J. A Reencarnação de OMM Seti Vergara. Buenos Aires, 1993.
EDINGER, E. F. Ego e Arquétipos. São Paulo: Cultrix, 1986.
FRAILE, G. Historia de la Filosofia. Vols. BAC. Madrid, 1980.
JAFFÉ, A. Mito e Significado na obra de Jung. São Paulo: Cultrix, 1983.
JUNG. C. G. Memórias Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1963.
___________. Tipos Psicológicos. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara.
LEAL, J. C. O Universo do Mito. Rio de Janeiro: Mil Folhas, 1985.
___________. Jung na Fronteira do Espírito. Rio de Janeiro: Ed Lemarie, 2001.
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CIÊNCIA ROMÂNTICA E O PENSAMENTO JUNGUIANO
RONATIC SCIENCE AND JUNGUIAN THINKING
Maddi Damião Jr. - [email protected]
Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense – RIR/ PURO
Resumo
Este trabalho se propõem a refletir, a partir da entrevista dada por Jung em 1959 sobre
questões relevantes para o entendimento de sua cosmovisão e como esta encontra ressonância
em algumas ideias caracteristicamente pertencentes ao pensamento romântico. Assim, a partir
de uma fonte documental, mesmo sabendo-se editada e baseada no livro ―Memórias, Sonhos e
Reflexões‖ faz-se possível pensar a relação homem-natureza, saúde-doença e a questão do
sentido a partir de algumas indicações apontadas por Jung ao longo deste diálogo com
Richard Freeman.
Palavras-chave: Romantismo, natureza, sentido, diálogo.
Abstract
This work intends to reflect, from the interview given for Jung in 1959 on excellent
questions for the understanding of its ―cosmovision‖ and as this finds resonance in some
characteristically pertaining ideas to the romantic thought. Thus, from a documentary source,
exactly knowing itself edited and based in the book ―Memories Dreams and Reflections‖ one
becomes possible to think the relation man-nature, health-illness and the question of the
meaning from some indications pointed for Jung throughout this dialogue with Richard
Freeman.
Key-words: Romantismo, nature, meaning, dialogue.
Houve uma terrível seca, na parte da China, onde vivia Richard Wilhelm amigo de
Jung e tradutor do I Ching. Depois das pessoas terem tentado em vão os meios conhecidos
para obter a chuva, decidiram mandar buscar um fazedor de chuva. Isto interessou muito a
Wilhelm que se preparou para estar lá quando o fazedor de chuva chegasse. O homem veio
numa carroça coberta, um pequeno velho ressequido, que fungava com uma repugnância
evidente quando saiu da carroça e que pediu que o deixassem sozinho numa pequena cabana
em frente da aldeia; mesmo as suas refeições deviam ser deixadas no exterior diante da porta.
Não se ouviu falar mais dele durante três dias, pois, não somente choveu, mas houve uma
grande caída de neve, o que nunca se tinha visto nesta época do ano. Muito
impressionado,Wilhelm procurou o fazedor de chuva na cabana e perguntou-lhe como podia
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ter feito chuva e mesmo neve. O fazedor respondeu: ‗Eu não fiz a neve; não sou responsável
por isso‘. Wilhelm insistiu: havia uma terrível seca até à sua vinda e depois, passados três
dias, houve grande quantidade de neve. O fazedor de chuva respondeu: ‗Oh! Isso eu posso
explicar. Veja, eu venho dum lugar onde as pessoas estão em ordem; estão em Tao; então o
tempo também está em ordem. Mas chegando aqui, vi que as pessoas não estavam em ordem
e também me contaminaram. Por esse motivo fiquei sozinho até estar de novo em Tao, e
então, naturalmente, nevou!‘ (Hannah, 1981: pp 21)37
Em 1959 C. G. Jung deu uma entrevista para Richard Freeman, registrada em filme
com o título de ―Face to Face‖38
, esta entrevista tem cerca de quarenta minutos de duração, foi
realizada poucos anos antes de Jung morrer. Nesta época ele já estava com 82 anos e viria a
morrer dali a quatro anos.
A entrevista como podemos ver é montada a partir do livro ―Memórias, sonhos e
reflexões‖ escrito por ele junto com sua secretária Aniela Jaffè, 1986. Este não é um livro
autobiográfico, apesar de poder parecer assim, é um livro exemplar, no sentido em que nele,
Jung expõe o que era chamado, antigamente, de ―profissão de fé‖, ou seja, suas crenças e
perspectivas mais pessoais, porém não no sentido subjetivista, mas reflexivo e existencial, em
síntese, sua visão de mundo, de psicologia e de práxis. Assim, este livro pode ser situado no
que Eliade (1992, 2002) descreve como a forma contemporânea de se fazer teoria, uma forma
romântica, que preserve a presença do mito e do imaginário. Isto é, construir teoria a partir da
arte, da vida e das narrativas pessoais. Para Eliade este seria um modo de produção de
conhecimento legítimo, na medida em que não separaria razão de experiência ou a
imaginação de ciência, em função disto ele (Mircea Eliade) dava tanta importância aos
romances e diários, tendo escrito mais de oito volumes de diários e ―jornais‖ onde expõe suas
reflexões mais intimas e singulares assim como suas ―reflexões científicas‖.
37
http://pt.shvoong.com/humanities/163827-fazedor-chuva/ Em 10 de novembro de 2009. 38
"Face to face" é uma série de entrevistas que a BBC fez entre 1959 e 1962. A entrevista com Carl Gustav Jung
ocorreu em 22 de Outubro de 1959. Foi a partir dessa entrevista é que surgiu a ideia, por parte do repórter e de
um editor, de escrever um livro sobre a Psicologia Analítica voltada ao público "leigo". Os livros de Jung eram
considerados de extrema complexidade para a população em geral. E aí surgiu "O Homem e seus Símbolos".
Este livro foi finalizado por uma das colaboradoras de Jung, pois este faleceu antes da finalização do livro.
Vamos ao filme! Pela pesquisa que eu fiz, as entrevistas da série "Face to Face" eram todas feitas nos estúdios da
BBC, em Londres. Apenas uma foi feita fora dos estúdios: a com Carl Gustav Jung, que foi gravada em sua
própria casa, na Suíça. No filme, Jung fala sobre sua vida, infância, e sobre seus pais. Fala também sobre religião
e Deus. Em um momento, o repórter lhe pergunta: "O senhor acredita em Deus"? E Jung responde: "Agora?
Bem, isso é difícil de responder... Eu sei. Eu não preciso acreditar. Eu sei."
(http://psicologiafilmes.blogspot.com/2007/06/face-to-face-entrevista-de-jung-bbc.html em 10 de novembro de
2009).
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Assim, podemos identificar o que foi dito na direção tomada por Jung ao escrever o
livro, fundamentalmente balizada pelos sonhos que teve ao longo de suas vivências internas,
ao invés de basear-se em ―fatos‖ externos ou como também nomeado ―objetivos‖, esta é uma
identificação corriqueira feita pela nossa forma de pensar que separa o objetivo do subjetivo,
criando uma consistência da realidade objetiva e tornando tudo o que se refere à subjetividade
como relativo e provisório.
Encontramos esta perspectiva confirmada no próprio prólogo do livro de Jung/ Jaffè,
quando diz:
Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou.
Tudo o que nele repousa aspira a tornar-se acontecimento, e a
personalidade, por seu lado, quer evoluir a partir de suas condições
inconscientes e experimentar-se como totalidade a fim de descrever
esse desenvolvimento, tal como se processou em mim, não posso
servir-me da linguagem científica; não posso me experimentar como
um problema científico. (JUNG apud JAFFE, 1986, p. 5).
Esta é a ―confissão de fé de Jung‖ tal como apresentada em seu livro Memórias,
Sonhos e Reflexões - M S R39
. Logo em seu prefácio, ele prepara, assim, o leitor para o que
virá, lhe dando uma chave de interpretação para a leitura do livro. A ênfase, como pode
perceber, é dada no processo de ―realização do inconsciente‖, na transformação em vida e
acontecimento daquilo que vigora operacionalmente no ―inconsciente‖ que para Jung é
natureza. Assim, para descrever este acontecer não há uma linguagem conceitual ou
representacional que possa dar conta por esta ser abstrata, genérica e afastar-se, desta forma,
da experiência. Porém, como vemos neste mesmo livro, há uma preocupação permanente de
Jung em afirmar o seu trabalho como ciência, em fundamentar epistemologicamente aquilo
que faz, seja a partir de seus pressupostos metodológicos seja por seus pressupostos
históricos. Mas, como veremos, a ciência que faz não é uma ciência iluminista ou positivista;
Jung não trabalha com modelos representacionais apenas, nem com a linguagem como signo,
mas com uma perspectiva que muitas vezes descreve como fenomenológica e outras como
empírica, assim como pragmática (identificamos nele a influência tanto de Brentano quanto
de William James). Porém se inscreve efetivamente em uma concepção do conhecimento que
poderíamos nomear de ―romântica‖ ou anti-iluminista, hermenêutica ao invés de
representacional. Uma ciência romântica visaria à integração do formalismo da razão com a
experiência vivida, construir o conhecimento de forma histórica e singular, como um processo
39 Passarei a abreviar o nome do livro Memórias Sonhos e Reflexões como MSR, para fins de facilidade de
leitura.
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de contínuo devir, porém sem perder o rigor metodológico ou reflexivo. Para tal seria precisa
desfazer a dicotomia entre pensamento e experiência ou subjetividade e objetividade,
podemos encontrar este modo de construção do conhecimento em A. R. Luria, Oliver Sacks,
Stepher Jay-Gould, Gerome Bruner, Mircea Eliade, dentre outros. Jung pertencente a esta
orientação irá dar ênfase na integração das ciências da explicação e da interpretação, fazendo
uma ciência empírica, sendo vivencial e singular, mas não obtusa ou reducionista, mas não
reducionista ou presa à crença em uma objetividade dada como fundamento do ato de
conhecer ou do existir.
Os sábios clássicos consideram os acontecimentos a partir de suas partes constituintes.
Passo a passo, eles isolam as unidades e os elementos importantes até que eles possam
formular as leis gerais e abstratas. Ora, este método reduz a realidade vivente, com toda sua
riqueza de detalhes a esquemas abstratos. As propriedades da vida, apreendidas como um todo
são perdidas, por isto Goethe os deplorava quando escreveu: ‗Cinza é toda a teoria, mas é
sempre verde a árvore da vida‘.
Os sábios românticos possuem posições, atitudes e estratégias que se opõem em todos
os pontos a essa. Eles não tomam esta via do reducionismo que é a filosofia dominante do
grupo clássico. Os cientistas românticos não querem cindir a realidade em seus constituintes
elementares nem representar os acontecimentos concretos da vida através de modelos
abstratos que despojam os fenômenos de suas propriedades. Para esses românticos, preservar
a riqueza da realidade viva e da mais alta importância, e eles sonham então com uma ciência
que conserve esta riqueza. (A. R. Luria apud Sacks, Oliver in LURIA, A. L´homme dont le
monde volait em éclats. 1991/1994: p. 10)
Jung não é um ―sábio romântico‖ estritamente, como descreve Luria, pois ele não se
opõe ao racionalismo de uma ciência iluminista de uma forma obtusa, mas tenta integrar e
criar uma ciência que vá além das cisões. Assim, pretende criar uma ciência do singular, um
conhecimento metodologicamente apoiado em uma reflexão consistente e rigorosa,
sistematizar sem criar sistemas restritivos ou excludentes, para tal reconhece a necessidade de
uma linguagem que corresponda a esta tarefa e irá encontrar na metáfora e nos símbolos tal
linguagem40
.
40
Conforme Bornheim (2005, p.96) existe uma ciência romântica e esta opõe-se a toda e qualquer interpretação
racionalista da realidade, contrapondo o universo de Newton ao de Goethe e propondo olhar a natureza com os
olhos do artista. A natureza passa a ser entendida como um organismo vivo, demandando um saber qualitativo,
vivo, ao invés de ser um problema matemático.
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O que se é, mediante uma intuição interior e o que o homem
parece ser sub specie aeternitatis só pode ser expresso através de um
mito. Este último é mais individual e exprime a vida mais exatamente
do que o faz a ciência, que trabalha com noções médias, genéricas
demais para poder dar uma ideia justa da riqueza múltipla e subjetiva
de uma vida individual. (JUNG apud JAFFE, 1986, p. 5)
Porém o mito, tal como toda linguagem simbólica, possui uma narrativa constante e
geral, pertence a uma coletividade e por esta é partilhado, mas sem que tenha um sentido ou
uma ―certeza‖ dada a priori. Isto é, na linguagem mítica, como se origina de uma dimensão da
experiência anterior a consciência faz com que esta seja confrontada a cada momento que
tenta dar um sentido a este. Assim, os mitos, requerem que sempre e de novo a consciência se
dirija a eles, na busca de uma compreensão, e, isto, faz com que ela, a consciência, se renove
e modifique a cada vez que por eles é confrontada. Tal como toda linguagem simbólica, o
mito, mantendo-se como o mesmo, só assim, permanece na medida em que se atualizam de
formas diversas. Ele se singulariza a cada nova forma de compreensão, torna-se atuante e
vivo, enquanto se faz ponte para o imaginário e dimensões da experiência que estão além ou
aquém da consciência e da cultura. Uma ciência do singular lida com o problema da verdade,
da interpretação, do sentido e do devir, da criação e é para esta ciência e para esta forma de
pensar a psicologia que Jung nos orienta.
Assim, pois, comecei agora, aos oitenta e três anos, a contar o
mito da minha vida. No entanto, posso fazer apenas constatações
imediatas, contar histórias. Mas o problema não é saber se são
verdadeiras ou não. O problema é somente este: é aminha aventura a
minha verdade? (JUNG apud JAFFE, 1986, p. 5)
Vemos, pois, através das próprias palavras de Jung que o problema da vida singular de
cada um é uma questão de sentido e de um contar histórias, estas inacabadas, pois somente
podem ser contadas retrospectivamente. A verdade é sempre singular, pois é a linha de
narrativa integradora das vivências e valores que as articulam como uma unidade no mundo.
Singulares por serem dependentes, também, da experiência mais própria de cada um em
problematizar e viver o que possui de mais próprio e indizível, que encontra,
implacavelmente, diante da experiência do nascimento e do morrer. Singularidade com a qual
nos deparamos diante das questões sem resposta do viver, do amor e da morte. Assim, o que
podemos fazer e temos o dever de fazer é contar histórias, e quanto mais significativas e
consistentes para cada um, mais esta história integra a multiplicidade da experiência de
mundo de si e da totalidade da existência como uma unidade tensa e dinâmica.
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A partir destas histórias contadas por Jung, sem ficarmos presos a busca de uma
correspondência daquilo que nos é dado a um referencial objetivo, externo, o que caracteriza
o modo de fazer ciência baseado na busca de certeza e estabilidade, o que pretendo me utilizar
de algumas passagens da entrevista de Jung como sementes para refletir sobre ―algumas
recomendações para o futuro‖, ou para uma ―psicopatologia da vida social‖ em suas
considerações com algumas ideias básicas do romantismo. Como trata-se de uma das poucas
entrevistas dadas por ele, na verdade foram duas em toda sua vida, alguns anos antes de
morrer, me permito servir-me dela como um emblema daquilo que poderíamos chamar de
suas ―recomendações para o futuro‖ ou mesmo ―profissão de fé‖.
Dentre as muitas passagens da entrevista irei selecionar algumas, não por serem as
mais importantes ou impactantes mais por considerar como momentos de ―virada‖ em seu
discurso, dentro de minha perspectiva, e levando em conta o método fenomenológico de
análise de conteúdo na identificação dos núcleos semânticos, tal como sistematizado por
Amadeo Giorgio (1983).
São quatro passagens que irei tematizar, sucintamente:
a) ―Se você pensar conforme as linhas da natureza pensará de maneira adequada‖.
Para Jung não há uma dicotomia ontológica entre natureza e cultura ou homem e
mundo, isto vemos em todos seus escritos assim como em sua atitude em relação ao próprio
inconsciente. Para ele a consciência é um processo emergente do inconsciente, que se dá a
partir de uma série de modificações e iterações que permitam que algo surja diferenciado,
porém sem ser dissociado. Assim, o inconsciente é a matriz primordial da qual a consciência
emerge, em princípio como uma multiplicidade e posteriormente esta se integra em um
―complexo‖ que nomeia como complexo do eu consciência. Ambos se identificam, apesar de
Jung não os situar como o mesmo, em alguns trechos de seus escritos diz ser o ―complexo do
eu‖ o mesmo que a consciência em outros os descreves como correlatos ou sinônimos. Em
1916 Jung escreve um pequeno texto, ―Função Transcendente‖, em que tematiza seu
entendimento a respeito do inconsciente da seguinte forma. Diz que o que chama por
inconsciente coletivo é a mesma coisa que natureza, assim como a matriz a partir da qual este
é entendido como tal é a mesma de onde surge a ciência, a filosofia, a religião e a arte, mas
ele por ser psiquiatra e estar fazendo psicologia nomeia por inconsciente. Assim, seguir as
linhas da natureza é procurar corresponder de forma mais fidedigna e própria à experiência do
inconsciente, não o inconsciente pessoal, mas o coletivo, ou seja, a totalidade da natureza
presente em nós e a partir da qual nos constituímos.
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Para Jung, como fica claro, natureza não é somente a árvore ou os animais, não se trata
de natureza objetiva e física, tal como tratada pelas ciências da biologia, química ou física,
mas para entender sua intuição seria preciso que remontemos a origem do pensamento, aos
gregos e além deles, aos pensadores originários, que chamados de ―físicos‖ por pensarem a
―physus‖41
e problematizarem a questão da origem, do ―archê‖ de todas as coisas. Para este
―physus‖ era ―potência criativa‖, força de criação a partir da qual tudo vigorava e base de
sustentação de todas as coisas, pensar a ―physus‖ é pensar o ―archê‖, ou seja, a origem
criativa e o principio de todos os entes e da vida. Natureza é criação, diferenciando-se da ideia
de repetição ou fabricação, tão comum nas nossas formar de entendimento da vida. No ato de
criar não há molde ou fórmula dada, mas estes são criados na própria ação de forma original,
ou seja, primeira. Um exemplo trivial, vemos nas árvores, ao olharmos suas folhas, que não
há uma igual à outra nem em sua cor nem forma, assim a vida, tal como o inconsciente para
Jung, é marcada pela multiplicidade, pelo excesso, pela necessidade de criação.
A natureza, assim como o inconsciente, em Jung, é criação. Diferente de uma força
caótica e irracional que se oponha à vida ou a consciência é a matriz de criação destas. Assim,
possui uma lógica que é ―a-racional‖, que está fora da dicotomia entre razão e irracional, uma
lógica que Jung descreve, conforme entende as propriedades especiais da consciência e do
inconsciente, como paradoxal. Esta é a lógica do terceiro incluído, onde os opostos coexistem
de forma indissociada, a lógica do ―e‖, isto e aquilo e um terceiro termo, não redutível a
nenhum dos dois termos anteriores, desta forma Jung descreve o símbolo, e a função
transcendente, “tercio non datur”. Somos conduzidos para a compreensão do inconsciente
como totalidade, ou o horizonte da multiplicidade integrada de forma não representacional.
Natureza é o todo, todo que integra as possibilidades de existir e escapa a qualquer forma de
representação. Pensar segundo as linhas da natureza, teria, assim, como uma forma de sentido,
pensar a partir da totalidade, não de forma parcial ou a partir dos modos de constituição da
consciência, mas olhando a partir do inconsciente para esta e para as atitudes tomadas pelo
homem. Este olhar a partir da totalidade implica assim, em princípio, duas dimensões da
conduta, primeiro a dimensão existencial, pois olhar a partir do todo ou da natureza situa o
homem como criatura no mundo, não apenas mais como criador, por outro lado faz com que
tenha que suportar a tensão dos opostos, os conflitos e as frustrações, decorrentes deste
confronto e da relativização de sua perspectiva. A segunda dimensão é a questão ética que se
41 ―A natureza assume importância fundamental, sendo inteiramente subtraída à concepção mecanicista-
iluminista: passa a ser entendida como vida que cria eternamente, na qual a morte nada mais é do que um
‗artifício para ter mais vida‘ (Goethe). A natureza é grande organismo, inteiramente afim com o organismo
humano: é jogo móvel de forças que, operando intrinsecamente, gera todos os fenômenos...‖ (REALE, 1991,
p.20)
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encontra aí implicada, pois há uma ética do inconsciente que se diferenciando da moral
coletiva e da consciência faz com que o indivíduo tenha que constituí-la a partir da sua
singularidade, não mais atribuindo a responsabilidade por seus atos e decisões no outro ou nos
costumes. Esta é uma ética que podemos nomear como ―cru‖, pois não é determinada ou
matizada pelos gostos ou desgostos do ―eu‖. Resumidamente, pensar conforme as linhas da
natureza é pensar a partir da perspectiva do Unus Mundus, da interdependência de todos os
seres e de uma perspectiva sistêmica e não dissociada. Para tal é preciso que consigamos
suportar a tensão dos opostos e as frustrações, inerentes ao nos reconhecermos como criadores
e criatura, simultaneamente. Pensar conforme as linhas da natureza é pensar criativamente e
de forma singular, mas a partir do contexto de vida na qual estamos enraizados.
b) ―O homem não pode viver uma vida nadificada, de forma comunal e indiferenciada‖.
Como dito anteriormente, toda a psicologia de Jung se orienta em função de um
desenvolvimento singular do indivíduo, o que ele nomeia por ―processo de individuação‖.
Este seria o processo através do qual o homem torna-se um indivíduo ou inteiro, na medida
em que estabelece a integração entre consciente e inconsciente e a realização do Selbst. Por
Selbst devemos entender, conforme a origem linguística do termo, próprio, singular.
A partir disto na medida em que nos perdemos na consciência coletiva e na
indiferenciação perdemos exatamente aquilo que, para Jung, nos torna singulares, nossa
história mais própria, deixamos de ir em direção a questão mais fundamental de cada um de
nós, o que nos torna singular, porque existimos, quando há tantas forças que levam em
direção oposta, o que faz com que apesar de sermos seres coletivos, pertencentes a um
mundo, possuamos algo que faz com que sejamos diferentes uns dos outros, de tal forma que
na medida em que vou em direção a isto mais e mais encontro somente o silêncio do mistério
do existir. Diante destas questões nos diz Jung em MRS que quando se ouve este chamado, do
mistério de cada ser individual para tornar-se aquilo que é de forma mais própria e singular, e
procura-se permanecer identificado na coletividade isto torna-se fonte de patologias e
neuroses, pois faz com que vivamos cindidos e alienados da fonte singular de nossas vidas.
Porém, não devemos pensar que Jung seja contra o social ou promulgue uma
psicologia do individualismo ou solipsista, pelo contrário, pois na medida em que o homem se
realiza através do ―processo de individuação‖ ele estreita relações e integra o inconsciente e a
consciência, promovendo, assim, sua constituição como uma totalidade. O ―processo de
individuação‖ é descrito como um ir em direção aquilo que se é de forma mais própria, isto é,
ir em direção a matriz da própria existência, ao inconsciente coletivo, como fonte a partir da
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qual toda a vida vigora. Assim, na medida em que nos singularizamos, e quanto mais
singulares e próprios nos tornamos, mais diferenciados, mas por outro lado, mais enraizado no
inconsciente como totalidade e mais aberto para a diversidade e multiplicidade da vida se
torna, permitindo que os paradoxos surjam em toda sua força criativa. Na medida em que nos
abrimos como ser que habitamos nesta matriz primordial realiza a experiência do Unus
Mundus, a consciência da totalidade da vida como unitária. Passamos a reconhecer a vida que
se apresenta como o grande outro, não apenas como o outro em mim, mas o outro fora de
mim, isto permite a Jung dizer: não há ―processo de individuação‖ sem o outro — aquele que
traz a minha sombra e a totalidade da experiência a mim.
Na medida em que nos tornamos singulares, vivemos a nossa vida a partir de uma
medida que é própria a cada um, isto é, passamos a nos ocupar de nós próprios ao invés de
nos perdermos nas vidas alheias. Uma forma deste processo de dar é pelo recolhimento das
projeções que constantemente fazemos sobre os outros, permitindo que estes possam existir
em suas singularidades e de forma mais estreita a nós.
Construímos, assim, uma morada ou um ―ethos‖, que implique o indivíduo por inteiro
e faça com que o outro seja levado a ser a sua morada, eticamente, no mundo e em sua própria
vida, de maneira indissociável42
.
c) Quando perguntado sobre alguma recomendação para os idosos, diz: ―Viva na preocupação
do dia de amanhã, pois para o inconsciente não há fim‖.
Como vimos, o inconsciente para Jung possui algumas características especificas que
podem ser descritas como segue.
O inconsciente é devir, ou seja, ele é criação e movimento. Esta característica é
descrita pelo princípio finalista que rege o inconsciente, para Jung, isto encontramos de forma
mais explícita e tematizada nos livros ―Símbolos da Transformação‖ e ―Energia Psíquica‖,
onde desenvolve o modelo energético e finalista de forma a se contrapor ao causal e
hidráulico/ mecanicista. Assim, enquanto a consciência baseia-se em princípios deterministas
para obtenção de segurança e estabilidade o inconsciente funciona a partir de uma perspectiva
não determinista, mas que poderíamos nomear, tal como faz Jung, pelo princípio da eficácia e
sincronicidade. Desta forma o que importaria é o sentido dado à experiência, sendo que este
42
Esta etimologia de ética é oriunda da forma mais arcaica de escrita da palavra, com eta ou ―e‖ longo ao invés
de epsilon ou ―e‖ breve. Ética provém, assim, de morada, local em que se alimenta, manjedoura, somente
posteriormente adquirindo o sentido de ―estudo das regras de conduta social‖ ou sinônimo de moral. Vemos este
uso em Nietzsche, Heidegger, Jung e em um dos livros de Leonardo Boff, ―Saber Cuidar‖ em que emprega esta
etimologia arcaica de ética.
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não é fruto de um acúmulo de experiências ou dados, mas sim um acontecimento, um sentido
é espontâneo, por se fazer a partir de condições dadas no momento em que há uma
reorganização do campo da experiência e da consciência. Como diz um filósofo, se nós
apreendêssemos com a nossa experiência não faríamos tantas guerras ainda.
Do ponto de vista clínico isto é descrito através da pergunta ―para quê?‖ ao invés de
―por quê?‖, a primeira seria a pergunta típica da perspectiva junguiana, pois ela visa o sentido
para o qual aponta o inconsciente. Assim, diz Jung em uma passagem de ―Psicologia da
Religião Ocidental e Oriental‖: ―Graças a Deus ele se tornou neurótico, pois somente assim
para olhar par si‖.
Como atividade a tarefa da consciência seria dar forma a essa necessidade de criação
que é nativa do inconsciente, dar direção à força do devir e se permitir levar por ela, ao invés
de tentar controlá-la e inibi-la. Viver como se não houvesse amanhã, significaria, assim, viver
para o amanhã, não para o ontem ou o hoje, mas viver a vida com projetos e sentido, até seu
término. Término este certo e inevitável para a consciência, mas não para o inconsciente, que
é regido pelo tempo da eternidade e do acontecimento, tempo da criação e do devir.
d) Ao final da entrevista, a fala de encerramento: ―O homem não pode viver uma vida sem
significado‖.
Como encontramos no prólogo de MSR, tudo o que podemos fazer é contar histórias,
que sejam significativas e traduzam o mito pessoal de cada um. Desta forma, podemos dizer
que a psicologia junguiana é uma psicologia que se baseia no sentido, ou numa perspectiva
hermenêutica, ou seja, no entendimento que a vida singular de cada um é uma história que se
constrói na medida em se vive. Isto se encontra descrito na própria noção de ―processo de
individuação‖, onde ao problematizar a experiência da finitude e da questão do sentido da
vida de cada um não há uma palavra coletiva ou uma linguagem coletivizada que possa ser
usada para descrevê-la. Assim, Jung faz uso constantemente de metáforas e imagens,
consideradas por ele como a forma mais rigorosa e apropriada para descrever e aproximar-se
do inconsciente. Mais rigorosas por permitirem que vigore todo seu mistério, criatividade e
força, ou seja, permite que o inconsciente modifique o sentido das mesmas e assim as
transforme e recrie na medida em que se tornam ponte e abertura para sua presença.
Em outro aspecto, nessa afirmação, encontramos, também, a perspectiva finalista
presente no modelo psicológico junguiano, pois na medida em que a existência particular de
cada um torna-se uma narrativa e um problema hermenêutico, ou seja, de significado, não há
nada dado, assim, a priori — de forma acabada e fechada. Não há certezas, somente,
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interpretações, histórias a serem contadas, onde subjetividade e objetividade, mundo interno e
mundo externo, individuo e coletivo encontram-se indissociavelmente implicados. No plano
do conhecimento só haveria objetividade na medida em que a subjetividade estivesse
implicada, ou como diz Jung subjetivo e objetivo é uma questão de ponto de vista do
observador.
Viver com sentido é, por conseguinte, viver lançado para diante, olhando para as
possibilidades que a vida ainda disponibiliza para cada um, seguir o fluxo do inconsciente e
situar a consciência a partir de sua totalidade43
.
Todas estas quatro passagens encontram-se interligadas e são coerentes na medida em
que as contextualizamos e interpretamos a partir do todo da obra de Jung. Aqui ressalto
alguns aspectos do seu pensamento, que ficam para nós ao longo de sua entrevista e pode ser
compreendido como alertas contra o que considera condições etiológicas das nossas doenças
contemporâneas.
Este adoecimento seria, assim, fruto de uma dissociação, que se dá em quatro níveis e
faz com que nos percamos e vaguemos pelo mundo sem alma. No primeiro nível, uma
dissociação entre natureza e cultura, homem e mundo, onde aquele se vê apenas como criador
ou como criatura, e o mundo como objeto e realidade desprovida de vida. Segundo, uma
dissociação do homem consigo mesmo, pela massificação e alienação de sua singularidade
criativa. Terceiro, esquecimento das forças criativas do psiquismo, que visto apenas como
depósito ou estrutura sobredeterminante da realidade da consciência é entendido apenas de
forma causal e adaptativa. Por fim, cisão com o todo; com o mistério da existência que faz
com que procuremos o sentido do existir de forma acabada e pronta ou deixemos de acreditar
na sua possibilidade, este mistério é descrito como o numinoso, do qual fugimos a cada
instante, nos embotando com receitas prontas, evitando assim conflito e tensões insolúveis,
porém que nos levam a ir além de nossa condição cotidiana.
Podemos dizer, assim, que a cisão é o princípio etiológico básico de todas as nossas
patologias. Haveria uma separação necessária, inevitável como forma de diferenciação da
consciência e singularização, pois como diz o mito é necessária para a criação de uma
consciência diferenciada, porém esta diferenciação é distinta de um corte ou uma ruptura,
43
Aqui poderíamos escrever todo um ensaio sobre a relação entre Stimmung dos românticos e o stimmen a que se
refere Jung quando fala do ―processo de individuação‖, este ele traduz como ―vocação‖ não no sentido
confessional, mas como um ―corresponder a um chamado da consciência‖. Para os românticos um dos sentidos
seria o afinar-se do homem com a natureza ou da mão a ferramento, significando um corresponder e partilha;
vale lembrar que não estamos lidando com conceitos, assim estes termos são praticamente impossíveis de serem
traduzidos.
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onde haveria a contraposição radical de duas instancias distintas e incomunicáveis, o
consciente e o inconsciente.
Mas esta diferenciação torna-se um esquecimento que faz com que percamos o contato
com as forças criativas de vida, pela atitude antagônica produzida pela consciência em relação
à experiência do inconsciente.
O homem é ―fonte de todo mal vindouro‖, por isto precisamos de ―mais e mais
psicologia‖, como diz Jung na metade da entrevista. De forma correlata podemos dizer
também que o homem é fonte de todo o bem vindouro, desde que perceba isto. Para tal,
precisamos ainda de muita psicologia e o problema desta não é do horizonte da cura ou da
doença, mas sim do sentido que se realiza na experiência do humano.
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NOTAS SOBRE A PRESENÇA DO ZARATUSTRA DE NIETZSCHE NOS
ESCRITOS DE JUNG
Luiz Celso Pinho44
Resumo
Este estudo tem por objetivo fornecer uma visão panorâmica de algumas
considerações feitas por Jung a respeito de Zaratustra desde os seus primeiros escritos.
Pretendemos recorrer à leitura junguiana no intuito de assinalar como a filosofia de Nietzsche
é avaliada a partir do referencial da Psicologia Analítica. No entanto, priorizaremos elementos
de cunho simbólico e mitológico em detrimento do olhar clínico.
Palavras-chave: Assim falou Zaratustra, análise psicológica junguiana, referências
simbólicas e mitológicas.
Abstract
This paper intends to supply a panoramic vision of some Jung´s ideas regarding
Zarathustra since his very earliest writings. Our aim is to demonstrate how Nietzsche's
philosophy is evaluated for the referential system of the Analytical Psychology. However, we
will give priority to elements of mythological and symbolic nature at the expense of a clinical
point of vie.
Key-words: Thus Spoke Zarathustra, Jung‘s psychological analysis, symbolic and
mythological references.
OBRA E PERSONAGEM
Basta uma rápida leitura em algumas páginas de Assim falou Zaratustra para
constatarmos que estamos diante de um texto que destoa do material tradicionalmente
encontrado no âmbito da História da Filosofia. Seu estatuto inovador se faz notar desde o
subtítulo – ―um livro para todos e para ninguém‖ –, onde já esbarramos em obstáculos lógicos
e práticos, pois, independente da nítida contradição entre ―qualquer um‖ e ―nenhum‖, trata-se
de uma advertência que nos obriga a refletir a respeito de quem está devidamente habilitado a
ler, entender e tirar conclusões das palavras que se seguem. Mas essa é apenas uma
dificuldade preliminar. Heidegger, no ensaio ―Quem é o Zaratustra de Nietzsche?‖, por
exemplo, nos alerta que encontraremos uma ―linguagem meio cantante, meio gritante, ora
temperada, ora tempestuosa, quase sempre elevada, às vezes dura e chã‖ (HEIDEGGER,
2008, p. 87). Pretende, com isso, ressaltar que emana do livro uma fala capaz de suscitar as
44
Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da UFRRJ / Pesquisador APQ-1 da FAPERJ.
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mais díspares reações, devido ao tom irregular e mesmo iconoclasta com que se apresenta sua
mensagem filosófica. Além disso, como salienta Roberto Machado, em Zaratustra: tragédia
nietzschiana, os discursos proferidos pela personagem-chave da obra, momento de profunda
inflexão do pensamento de Nietzsche, conjugam uma ―forma poética‖ com uma ―forma
narrativo-dramática‖ ao empregarem um estilo que tanto alia a reflexão filosófica à criação
artística quanto guardam ―grande proximidade com o romance de aprendizado, ou de
formação‖, no qual culmina na ―descoberta de um segredo‖ (MACHADO, 1997, p. 30). Para
muitos intérpretes – e, em determinadas passagens, o próprio Jung – essa literatura singular se
reduz a mera poesia, o que implica, pelo menos sub-repticiamente, uma desqualificação de
seu teor conceitual. Entendemos, ao contrário, que esse relato une, de forma provocante e
indelével, o que diz respeito à esfera da Arte, do Pensamento e da Vida. E o que é, então,
revelado através das páginas de Assim falou Zaratustra? Apenas a resposta parece frugal: a
necessidade de superar a si mesmo, a coragem de tornar sagrado todos os acontecimentos, um
olhar agudo sobre o que é a existência, em suma, dar-se conta do verdadeiro significado de
viver. Independente dos debates suscitados pelo estado de saúde de Nietzsche, iremos
priorizar nas análises junguianas alguns aspectos que retratam a dimensão simbólica da
trajetória de Zaratustra, notadamente em relação ao que é dito sobre Deus e a formação de
uma individualidade humana.
UMA LONGA HISTÓRIA
O primeiro ―encontro‖ com Zaratustra ocorre quando Jung tinha vinte e três anos.
Logo ao ingressar na universidade, proferiu algumas palestras (quatro, para ser exato) na
associação de alunos da qual fazia parte. Numa delas – ―Pensamentos sobre a natureza e o
valor da investigação especulativa‖ – Jung faz três menções a Nietzsche (cf. BISHOP, 1999,
p. 206). Uma delas se remete a Zaratustra, através da bela imagem evocada nos discursos do
Prólogo: ―É preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante‖
(NIETZSCHE, 1989, p. 34).
Em seguida, aos vinte e sete anos, na sua Tese de Doutorado em Medicina – ―Sobre a
psicologia e a patologia dos supostos fenômenos ocultos‖ (1902) – relata um impressionante
evento relacionado ao livro Assim falou Zaratustra, no que ficou conhecido como um
episódio de criptomnésia, ou seja, de ―recordação escondida‖. Trata-se da notável relação
entre uma passagem de Zaratustra – o capítulo ―Dos grandes acontecimentos‖ – e o relato
feito por Justinus Andreas Christian Kerner (1786-1862): poeta, médico e estudioso de
ocorrências sobrenaturais e magnetismo animal, além de fundador do periódico ―Folhas de
Prevorst‖ (1831-1837), que abordava justamente esses assuntos pouco comuns.
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Jung recorda, no ensaio ―Chegando ao inconsciente‖, que abre a coletânea elaborada
por ele, O homem e seus símbolos:
Eu mesmo encontrei um exemplo fascinante deste processo, no
livro de Nietzsche, Assim falou Zaratustra, onde o autor reproduz
quase literalmente um incidente relatado num diário de bordo, no ano
de 1686. Por mero acaso, eu havia lido um resumo desta história num
livro publicado em 1835 (meio século antes do livro de Nietzsche).
Quando encontrei a mesma passagem em Assim falou Zaratustra
espantei-me com o estilo, tão diverso do de Nietzsche. Convenci-me
de que também Nietzsche lera aquele antigo livro, apesar de não lhe
ter feito qualquer referência. Escrevi à sua irmã, que ainda vivia
naquela ocasião, e ela me confirmou que, na verdade, o livro fora lido
tanto por ela quanto pelo irmão, quando este tinha onze anos.
Verifica-se, pelo contexto, que é inconcebível pensar que Nietzsche
tivesse qualquer ideia de estar plagiando aquela história. Creio que,
simplesmente, cinquenta anos mais tarde, a história entrou em foco na
sua consciência (JUNG, s. d., p. 37).
Eis a passagem à qual se refere:
os quatro capitães e um comerciante, Mr. Bell, desembarcaram
na ilha do Monte Stromboli para caçar coelhos. Às três horas reuniram
o equipamento para regressar a bordo quando, para seu indizível
espanto, viram dois homens voando velozmente no ar em sua direção.
Um estava vestido de preto, outro de cinza. Passaram perto deles em
grande velocidade, e para ainda maior susto seu desceram na cratera
do terrível vulcão. Reconheceram-nos como dois conhecidos de
Londres (KERNER, Blätter aus Prevorst, vol. IV, p. 57, ―Extrato de
Significação Amedrontadora‖ apud JUNG, s. d., p. 311, nota).
E o caso de criptomnésia em Assim falou Zaratustra:
Ora, no tempo em que Zaratustra se achava nas ilhas bem-
aventuradas, aconteceu que um navio deitou âncora na ilha em que há
o vulcão; e sua tripulação desceu a terra para caçar coelhos. Pelo
meio-dia, porém, quando o comandante e seus homens estavam
novamente reunidos, viram repentinamente um homem rumar para
eles no ar, e uma voz disse distintamente: ―É chegado o tempo! É mais
que chegado o tempo!‖. Mas, quando o vulto se achou no ponto mais
próximo deles – passava voando velozmente, como uma sombra na
direção do vulcão –, reconheceram, com grande alvoroço, que era
Zaratustra; pois todos, menos o próprio comandante, já o tinham visto
antes e o amavam como ama o povo: ou seja, unindo, em partes
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iguais, amor e medo. ―Olhai!‖, disse o velho timoneiro, ―‗lá vai
Zaratustra para o inferno!‖ (NIETZSCHE, 1989, p. 142).45
Aos trinta e nove anos ocorre um diálogo mais consistente. E Jung se refere a ele no
Seminário dedicado ao estudo da principal personagem nietzschiana: ―Eu estudei [Assim falou
Zaratustra] muito cuidadosamente e fiz inúmeras anotações‖ (JUNG, 1997, vol. I, p. 259
apud Bishop, 1999, p. 215).46
O derradeiro ―encontro‖ se dá justamente no Seminário
dedicado ao Zaratustra de Nietzsche.
O SEMINÁRIO SOBRE ZARATUSTRA
Entre maio de 1934 e fevereiro de 1939, ou seja, durante vinte e sete meses, sendo que
ocorreram diversas interrupções, Carl Gustav Jung realizou um ciclo de oitenta e seis
conferências a respeito da personagem central de Assim falou Zaratustra. Essa atividade
desenvolvida com um grupo seleto de alunos foi proferida em inglês. E, na época, deu origem
a uma edição mimeografada, de uso reservado, organizada em dez volumes por Mary Foote
(um décimo primeiro continha apenas notas). Em 1988, nos Estados Unidos, todo o material
foi editado, por James Louis Jarrett, em dois volumes, totalizando 1578 páginas.47
Este ainda
elaborou, nove anos depois, uma versão resumida de 393 páginas.48
A iniciativa de Jung de se deter meticulosamente, aos cinquenta e nove anos, no
Prólogo e nos três primeiros segmentos de Assim falou Zaratustra, cuja interrupção (por volta
de março de 1939) se deu em função do advento da Segunda Guerra Mundial, mais
exatamente na passagem intitulada ―De velhas e de novas tábuas‖ (restando ainda quatro
capítulos para encerrar a Terceira Parte). Deste modo, a Quarta e Última Parte não pôde ser
devidamente abordada.
As conferências sobre Assim falou Zaratustra foram quase que imediatamente
precedidas pelo exame minucioso, por dois anos e meio, do ―Seminário das visões‖, que tinha
por objetivo ―mostrar como os desenhos de Christiana Morgan – que, inclusive, à época,
passava por um processo de análise com Jung – continham material simbólico e arquetípico
que refletia os modos pelos quais o inconsciente coletivo se revelava para essa paciente em
particular‖.49
Jung, de certa forma, aplicou o mesmo procedimento interpretação aos discursos
45
Trata-se de um dos últimos capítulos da Segunda Parte: ―De grandes acontecimentos‖. 46
Essa passagem não se encontra na versão resumida do Seminário. 47
Jung, C. G. Nietzsche’s Zarathustra: notes of the seminar given in 1934-1939. 2 vols. Editado por James L.
Jarrett. Princeton/NJ: Princeton University Press, 1988. 48
Jung, C. G. Jung’s seminar on Nietzsche’s Zarathustra. Princeton/NJ: Princeton University Press, 1997. O
presente estudo tomou como referência essa segunda edição. 49
Deirdre, Bair. Jung: uma biografia. 2 vols. Tradução de Helena Londres. São Paulo: Globo, 2006, p. 52
(Segundo Volume).
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de Zaratustra. Mas também advertiu, logo em suas primeiras palavras, seus ouvintes: ―Se
consideram que Zaratustra é tão fácil como aquelas visões, estão muito enganados, é um
terrível emaranhado [hell of a confusion] de extraordinária dificuldade‖ (JUNG, 1997, p. 3).
Contudo, outra característica importante da análise psicológica junguiana consiste em
homogeneizar o que diz respeito à existência pessoal do Autor e o modo como se conduz a
Personagem central do texto. Daí se poder considerar que ―encontramos nos escritos de Jung
as mais importantes ideias e os princípios psicológicos necessários para a compreensão da
personalidade de Nietzsche‖ (MORENO, 1974, p. 216 apud BISHOP, 1995, p. 4).50
Essa
postura fica patente em diversas passagens. Eis alguns exemplos (entre inúmeros que se
podem localizar na edição completa): ―Nietzsche não teria condição de fazer diferença entre
ele mesmo e Zaratustra‖ (Conferência de 09 de maio de 1934, p. 27); ―Nietzsche se identifica
amplamente com a figura de Zaratustra‖ (Conferência de 05 de maio de 1937, p. 258); ―Em
sua solidão [Nietzsche] (...) tornou-se Zaratustra‖ (Conferência de 26 de outubro de 1938, p.
331); ―Ninguém nunca tem certeza se quem fala a Zaratustra ou Nietzsche‖ (id., p. 331). Ora,
o que nos chama atenção é que tal princípio interpretativo não diferencia o ―Nietzsche
personagem psicológico‖ da ―leitura de Zaratustra‖ (PARKES, 1999, p. 221). No entanto,
como pretendemos situar o Seminário a partir de um referencial mitológico, priorizaremos
aspectos simbólicos e mesmo oníricos, ao invés de nos determos nas considerações sobre as
tendências neuróticas, e mesmo psicóticas, detectadas nos escritos nietzschianos.
Inegavelmente, em alguns momentos, o tom do Seminário retrata um fascínio por
Zaratustra. Aliás, é sabido que, desde jovem, Jung relata a sensação de que era na verdade
duas pessoas distintas. Essa experiência será traduzida, na maturidade, como o embate entre
uma personalidade que interage com outras personalidades e uma personalidade que
representava o Outro de si mesmo, isto é, o Inconsciente. Através dessa dinâmica se
estabelece o que Jung entende por ―processo de individuação‖. Desta forma, cada capítulo de
Assim falou Zaratustra não apenas é entendido como retratando situações oníricas como
também etapas de uma experiência arquetípica, onde invariavelmente Jung estabelece
correlações com antigos mitos. A personagem de Zaratustra designa, nesse sentido, o Outro
de Nietzsche. Em termos junguianos, como assinala Bishop, ―a dinâmica psicológica
subjacente no Zaratustra retrata a enantiodromia, ou seja, a emergência de opostos
inconscientes numa sequência cronológica‖ (BISHOP, 1999, p. 216). Sendo que, ao contrário
de Jung, Nietzsche teria falhado em identificar e solucionar o dilema da ―dupla
50
Moreno, Antonio. Jung, Gods, and Modern Man. Londres: University of Notre Dame Press, 1974 (Capítulo:
―Nietzsche and Jung‖).
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personalidade‖, perdendo, pois, a capacidade de dialogar com o seu tempo, o que explicaria,
na perspectiva da Psicologia Analítica, seu colapso mental aos quarenta e quatro anos (o que o
levou, inclusive, a permanecer mais de uma década praticamente isolado em casa, até a sua
morte).
No entanto, o elemento que talvez melhor colabore para enriquecer a inteligibilidade
de Assim falou Zaratustra consista em avaliar determinados temas do livro a partir de um
referencial simbólico. Em sua autobiografia intelectual – Ecce homo –, Nietzsche declara, a
respeito de Zaratustra: ―ele viu mais longe, quis mais longe e pôde mais longe do que
qualquer homem‖, antes dele ―não se sabe o que é altura, o que é profundidade, sabe-se
menos ainda o que é a verdade‖ (NIETZSCHE, 1986, p. 130). A grande desmesura de
Nietzsche talvez não resida na ideia de que a ―verdadeira verdade‖ emana dos discursos de
Zaratustra (sábios e profetas já reivindicaram tal feito), mas que ele encarna a necessidade de
operar uma metamorfose de si mesmo, de ir além de suas próprias fronteiras. E, para tanto,
faz-se necessário criar novos valores. Isso requer, do ponto de vista conceitual, a Morte de
Deus.
Ambos – Jung e Nietzsche – concordam que o Cristianismo representa uma sociedade
fadada a perecer. Zaratustra considera a Morte de Deus condição sine qua non para o resgate
do valor da Vida, para a saída do estado de decadência no qual a civilização mergulhou. Jung
constata inclusive o quase desaparecimento da imagem de Deus nos relatos oníricos de seus
pacientes. Sendo que numa carta a Oskar Schmitz, em 1923, declara: ―Precisamos de novos
fundamentos. Devemos escavar profundamente até o primitivo que habita em nós. Somente
deixando de lado o conflito entre o Homem civilizado e o Bárbaro germânico surgirá o que
precisamos: uma nova experiência de Deus‖ (JUNG, 1973, p. 39-40 apud BISHOP, 1999, p.
222).51
Daí Jung fornecer a seguinte explicação na Conferência de 16 de maio de 1934:
Quando Nietzsche declara que Deus está morto,
instantaneamente ele começa a se transformar. Pouco importa se com
essa declaração ele não é mais cristão ou se tornou um ateu. Ele
imediatamente entra no processo [do] arquétipo do renascimento, pois
esses poderes vitais em nós, que chamamos ―Deus‖, são poderes de
auto-renovação, poderes de mudança eterna (JUNG, 1997, p. 37).
51
Jung, C. G. Letters (1906-1950). Volume 1. Editado por Gerhard Adler e Aniela Jaffé. Tradução do alemão
de R.F.C. Hull. Londres: Routledge/Kegan Paul, 1973.
A Questão do Corpo (Seção Especial Kairós 2010)
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De fato, Zaratustra passa ao longo de sua sinuosa trajetória por diversas
transformações – e essa descrita acima retrata uma delas. O que entra em choque com a
filosofia nietzschiana é que Jung estabelece uma correspondência entre o conceito de Self – a
totalidade do Homem – e o conceito de Deus. Daí a grande relevância que ele atribui ao
ditado medieval: ―Deus é um círculo cujo centro está em toda parte e a circunferência em
nenhum lugar‖ (BISHOP, 1999, p. 227). O que o leva a afirmar: ―O Self não é apenas o
centro, mas também a circunferência que [abrange] tanto a consciência quanto o inconsciente‖
(ib.).
NOTA FINAL
Neste breve e preliminar estudo procuramos situar o fenômeno humano a partir de
duas vertentes. De um lado, uma Antropologia Filosófica, erudita, abrangente, calcada em
mitos e símbolos. De outro, uma Filosofia do Martelo que despedaça as noções de Unidade,
Identidade, Substância, Ser, Causalidade, que nos desperta do sonho em que vivemos para nos
levar à afirmação incondicional da Vida. Sem dúvida, Jung e Nietzsche compartilham do
imperativo de vasculhar as profundezas do ser humano. Mas esse alicerce comum se desfaz
quando nos damos conta que a proposta de compreender a força vital que nos constitui através
do aspecto criativo do Inconsciente vai de encontro a um pensamento calcado na convicção de
que o homem é algo que deve ser superado, ou ainda, que não passa de um ―átomo fictício‖.
Uma analogia talvez permita melhor visualizar a incompatibilidade que há entre o dois:
coloquemos, lado a lado, a organização estruturada da Mandala e a dispersão caótica do
Fractal. Duas imagens cujos pontos e linhas dificilmente se sobrepõem, apesar de serem
formas de expressar a dinâmica da Vida. Porém, enquanto uma converge para um ―centro‖, a
outra mais se parece com aquela estrela dançante sem rumo na imensidão a que o Prólogo de
Assim falou Zaratustra se refere.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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