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0 UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE KATIA MELCHIADES O PAPEL AMALGAMADOR DO POETA NA GUINÉ-BISSAU ATUAL São Paulo 2015

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

KATIA MELCHIADES

O PAPEL AMALGAMADOR DO POETA NA GUINÉ-BISSAU ATUAL

São Paulo 2015

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KATIA MELCHIADES

O PAPEL AMALGAMADOR DO POETA NA GUINÉ-BISSAU ATUAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras.

ORIENTADORA: Profa. Dr

a. Maria Lucia M. Carvalho Vasconcelos

São Paulo 2015

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A Deus, que me capacitou;

à minha irmã Carla e à minha tia Oneide,

que me aconselharam.

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AGRADECIMENTOS

Dedico o presente trabalho especialmente a Deus, meu Pai, Amigo e

Orientador, sem o qual a realização deste não seria possível. Durante toda minha

jornada foi-me expandindo a compreensão e o desejo de conhecer mais sobre os

povos africanos de língua e expressão portuguesa, humanizando mais o meu olhar a

esse respeito.

Em segundo lugar dedico este trabalho a minha mãe Áurea (in memoriam),

que sempre acreditou em mim, mesmo quando a sociedade me dizia que a

concretização de meus sonhos não seria possível.

Jamais me esquecerei do grande apoio inicial dado pela Professora Doutora

Elisa Guimarães, pois foi por ela que fiz meus primeiros contatos com a

Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Agradeço profundamente a minha orientadora Professora Doutora Maria

Lucia M. Carvalho Vasconcelos, que sempre esteve disposta a me ajudar e a me

orientar mesmo quando ainda eu não sabia a quem recorrer na fase inicial deste

trabalho.

Agradeço, muitíssimo, a Professora Doutora Regina Helena Pires de Brito,

que me despertou o olhar para os estudos de lusofonia.

E, finalmente, mas de modo algum menos importante, meus grandes

agradecimentos também vão para o escritor da Guiné-Bissau, Rui Jorge Semedo,

que tão prontamente e com boa vontade me auxiliou na elaboração deste trabalho,

sempre que eu precisei.

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Líderes autênticos são os que procuram entregar o poder ao

Povo da África – não a si próprios.

(Kofi Annan)

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RESUMO

A literatura da Guiné-Bissau reflete com profundidade os problemas e desafios

desse país localizado no noroeste africano, que busca estabilizar-se

economicamente e reafirmar sua identidade após o recente processo de libertação

de Portugal, em 1974, e que se encontra atualmente num cenário repleto de graves

instabilidades sócio-políticas e de uma diáspora crescente. Tendo como ponto de

partida seu passado histórico e a língua portuguesa em comum com o Brasil e sob a

perspectiva dos estudos de Stuart Hall e da lusofonia, buscamos no presente

trabalho mostrar a importância do papel social do poeta na sociedade bissau-

guineense atual e o quanto a literatura de países africanos, onde também se fala o

português, pode contribuir com o processo de valorização e reafirmação da cultura

africana em estudos literários em sala de aula, em conformidade com a Lei Federal

10.639/03. O corpus do trabalho, o poema “Guinendade” do escritor bissau-

guineense Rui Jorge Semedo vai ao encontro do imprescindível estudo de

aproximação dos povos que compartilham a língua portuguesa e os traços históricos

de colonização. Dessa forma, este trabalho propõe aplicações de atividades

interdisciplinares em sala de aula da Educação Básica, tendo como meta a releitura

e valorização da cultura e literatura africanas nas salas de aula das escolas

brasileiras.

Palavras-chave: Guiné-Bissau, identidade, literatura, ensino de língua portuguesa.

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ABSTRACT

The literature of Guinea-Bissau reflects deeply the problems and challenges of this

country located in the Northwest of Africa that is searching its economical stability

and the reaffirmation of its identity after the recent process of Independence from

Portugal, in 1974, and is currently facing a scenario full of serious social and political

instabilities and a growing diapora. Having as a departure point its historical past and

the Portuguese language in common with the Brazilian history and language and

from the perspective of the studies of Stuart Hall and of lusophony, in the present

research we intend to demonstrate the relevance of the social role of the poet in

Guinea-Bissau today and how the literature of the African nations where Portuguese

is also spoken can contribute to the process of valorization and affirmation of the

African culture in literary studies in classrooms, according to the Brazilian Federal

Law 10.639/03. The corpus of this research, the poem “Guinendade”, by the Author

from Guinea-Bissau, Rui Jorge Semedo, meets the needs of the indispensable study

of the approaching of peoples that share the Portuguese language and the historical

traits of the colonization. Thus, this research suggests applications of interdisciplinary

activities in classrooms of the Elementary Education, aiming the rereading and

valorization of the African culture and literature in the curriculum of Brazilian schools.

Keywords: Guinea-Bissau, identity, literature, teaching of the Portuguese language.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 1 Imigrantes bissau-guineenses em Portugal 45

Ilustração 2

Natural da Guiné-Bissau, considerado o melhor aluno

72

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LISTA DE ABREVIATURAS

CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa

FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique

INE – Instituto Nacional de Estatística

LDB - Lei de Diretrizes e Bases (da Educação Nacional)

MPLA - Movimento Popular de Libertação de Angola

ONU – Organização das Nações Unidas

PAIGC - Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde

PALOP - Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa

PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais

UNAE – União Nacional de Artistas e Escritores

UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

1 SOBRE IDENTIDADE E CULTURA 18

1.1 LÍNGUA E IDENTIDADE 25

2 A HISTÓRIA DA EXPANSÃO PORTUGUESA NA ÁFRICA 31

2.1 A expansão portuguesa na África Oriental 31

2.1.2 A expansão portuguesa nas regiões de Angola 33

2.1.3 Os portugueses na região da Guiné-Bissau 35

2.1.4 O contexto das lutas pela independência das colônias portuguesas

36

2.1.5 Breve panorama da Guiné-Bissau desde as lutas de independência

38

2.1.6 O reflexo da colonização portuguesa na educação da Guiné-Bissau

43

2.2 ASPECTOS GEOGRÁFICOS DA GUINÉ-BISSAU 47

2.2.1 O mosaico cultural da Guiné-Bissau 48

2.2.2 Aspectos e história do estilo literário da Guiné-Bissau 50

3 GUINENDADE: A SOCIEDADE RETRATADA NA POESIA 61

3.1 A Guinendade e o valor da terra e das línguas 64

3.1.2 A Guinendade e a diversidade étnica 78

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3.1.3 A Guinendade e a musicalidade 81

3.1.4 A Guinendade e as lutas pela união nacional 82

4 A LITERATURA DA GUINÉ-BISSAU EM SALA DE AULA: O PONTO

DE PARTIDA PARA A VALORIZAÇÃO DA DIVERSIDADE CULTURAL

85

4.1 Problematização 85

4.2 Objetivos gerais e específicos 87

4.3 Tema e referencial teórico 88

4.4 Procedimentos metodológicos 89

4.5 Os Temas Transversais no contexto da lusofonia 98

4.6 Uma proposta de pesquisa de História 101

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 105

REFERÊNCIAS 107

ANEXOS

ANEXO 1 – Entrevista com o escritor, guineense, Rui Jorge Semedo 113

ANEXO 2 – Breve Cronologia da Guiné-Bissau a partir de 1999

117

ANEXO 3 – Escultura africana em marfim 119

ANEXO 4 – Cerco português na África no século XV 120

ANEXO 5 – Famílias linguísticas na região da Guiné-Bissau 121

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INTRODUÇÃO

Através da exegese da poesia da Guiné-Bissau, mais especificamente do

poema “Guinendade”, de Rui Jorge Semedo, o presente trabalho tem como principal

objetivo impulsionar uma reflexão sobre a importância dos estudos da literatura dos

países da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa)1, para uma maior

compreensão dos aspectos culturais desses países, para um melhor

reconhecimento de suas influências na formação da identidade brasileira e para uma

necessária mudança de visão de mundo.

Por meio do presente estudo, procuraremos mostrar a África em um

posicionamento atuante, operoso e engajado com a reconstrução nacional.

Analisaremos manifestações poéticas que explicam muito sobre as lutas que visam

à reescrita de uma história mais humana, democrática e profundamente

comprometida com sua preservação identitária, pois a literatura nos permite olhar e

entender melhor o outro.

Devido ao fato de distintos grupos étnicos oriundos de diferentes continentes

estarem tecendo, continuamente, a trama histórica do Brasil desde os tempos

coloniais, faz-se necessário um olhar crítico e com equidade da sociedade para as

questões histórico-culturais dessas diferentes etnias que constituem os pilares do

País. Não há dúvidas de que a escola, lugar de encontros e relações entre diversas

culturas desde os primeiros anos de vida da criança, seja um dos principais

instrumentos sociais com a maior responsabilidade de preparar o cidadão para um

mundo onde as fronteiras rompem-se cada dia mais, culturas distintas hibridizam-se

e intensifica-se a necessidade de aceitação, valoração e respeito mútuo entre os

povos.

Contudo, durante anos, a formação escolar brasileira preocupou-se apenas

em apresentar aos educandos uma visão totalmente eurocêntrica da história,

desconsiderando e silenciando o legado histórico dos africanos, afrodescendentes e

1 Integram a CPLP os seguintes Estados-membros: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné

Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Disponível em: < http://www.cplp.org>. Acesso em: 20 de fevereiro de 2015

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indígenas brasileiros, impedindo, assim, a visão social de seu papel na construção

da nação.

Considerando tais questões, julgamos ser necessária a elaboração do

presente estudo, que tem como objetivo aprofundar-se mais nas questões literárias

dos países africanos de língua portuguesa, a fim de enriquecer os estudos de língua

e literatura em sala de aula, no 1º ano do Ensino Médio, em consonância com o

estabelecido pelo Ministério da Educação que, comprometido com a implementação

de medidas que visem à igualdade de direitos na educação das diversas etnias

brasileiras, instituiu a Lei No 10.639/03, onde se lê que “Nos estabelecimentos de

ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o

estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena”2.

Diante desses novos desafios, os profissionais da educação, que buscam

trabalhar a pluralidade étnico-cultural em sala de aula, têm se deparado com a

limitação de materiais didáticos e paradidáticos que se aprofundem de maneira

satisfatória na história e literatura dos povos africanos e indígenas. Se nas

bibliotecas escolares poucas são essas obras sobre a história e a literatura, em

número mais reduzido são aquelas em que esses mesmos povos têm a

oportunidade de contar ao mundo a história da África ou das Américas sob seu

ponto de vista.

Projetos escolares que visem ao bem comum e que estejam bem

alicerçados em fontes históricas e literárias idôneas para alcançar as novas

gerações com equidade educacional e cultural são importantes desafios com os

quais a escola precisa se envolver. Na escola, espaço de encontros e trocas, o

trabalho de (re)construção da história por meio dos estudos de literatura,

especialmente os de países onde também se fala o português, precisa

urgentemente ser posto em prática. Segundo as palavras de Néstor García Canclini

(2006, p. 326), “os cruzamentos intensos e a instabilidade das tradições, bases da

abertura valorativa, podem ser também [...] fonte de preconceitos e confrontos.”. Por

isso, discernimos que é necessário haver um amadurecimento didático-pedagógico

para que estejamos preparados a derrubar estigmas e preconceitos em uma nação

que constantemente acolhe pessoas das mais diversas culturas do mundo.

2 Documento disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato 20072010/2008/lei/ l11645.htm.

Acesso em 12 de fevereiro de 2015.

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Temos, também, como meta, evidenciar o grande contributo dos estudos de

lusofonia, aplicados ao contexto escolar brasileiro, para se conhecer mais sobre as

nações que compõem a CPLP e um pouco mais sobre a história e literatura dos

países africanos, reconhecendo que, ao mesmo tempo em que a literatura deixa

transparecer os acervos histórico-culturais do outro, ela desencadeia novos olhares

sobre nós mesmos.

Outro grande contributo dos estudos lusófonos para o estudante do Ensino

Médio é a oportunidade de autoanalisar seus conceitos, a fim de que se dissipem

muitos estigmas e estereótipos acerca das culturas africanas e até mesmo indígenas

do Brasil. Buscaremos, no final do presente trabalho, um caminho para reflexões

sociais, em sala de aula, sobre as contribuições e as influências da cultura africana

na formação da identidade brasileira e sobre o planejamento pedagógico que

devemos ter para receber satisfatoriamente, em sala de aula, os filhos das mais

diversas comunidades africanas e das demais partes do mundo, que têm buscado

refúgio no Brasil.

Existe uma África literária a ser vastamente explorada, uma literatura

africana pouco conhecida, que evidencia a luta pela preservação da memória

cultural e dos feitos de seus povos, porém, por muitos séculos, a África foi

apresentada como um continente sem história, literatura ou cultura:

[...] os historiadores acreditaram que os povos da África não haviam

desenvolvido uma história autônoma, no quadro de uma evolução

que lhes fosse peculiar. Tudo o que representava uma aquisição

cultural parecia ter sido levado até eles do exterior por vagas

migratórias vindas da Ásia. (cf. OLDEROGGE, 2010, p. 295).

Acreditamos ser oportuno dar ouvido ao que o povo africano tem a dizer

sobre a sua História e cultura e não mais permitir que, num mundo onde há tantos

meios tecnológicos para se ouvir o outro, sua História seja primeiramente

“decodificada” pelo eurocentrismo, para depois ser recontada ao mundo. Como

afirma o filósofo ganense Paulin Hountondji: “A África produz a matéria-prima – óleo

de palma, textos literários -, e instituições europeias processam esses produtos –

como o sabonete Palmolive e obras teóricas sobre literatura africana”.

(HOUNTONDJI, 1994, p. 3 apud AUGEL, 2007, p. 36).

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Séculos de guerras e opressão colonial na África apagaram partes de sua

história e memória; sufocaram seus clamores, sonhos, concepções e sua

narratividade. É o que denuncia o poeta bissau-guineense Agnelo Regalla, no

período das lutas pela independência da Guiné-Bissau, em “Poema de um

Assimilado”: “Não me falaram de ti / E dos teus filhos, Mãe África/Esqueceram-se/De

Samory e Abdelkader/Cabral e Mondlane [...]”. (CAMPATO, 2012, p. 127).

Por essas razões, este estudo apresenta-se com o compromisso de trazer a

voz ao povo africano, por meio de suas obras literárias, para que sua História seja

conhecida com maior profundidade em sala de aula, pois, por muitos anos, a África

foi silenciada, como também afirma o intelectual senegalês Alioune Diop:

No século XX e, sobretudo, após a Primeira Guerra Mundial, durante as negociações do Tratado de Versalhes e a formação da Sociedade das Nações, foram os negros americanos quem defenderam energicamente os direitos dos negros africanos, pois, nesta época, nós não estávamos em condições de falar em nosso próprio nome. (DIOUP, 1958, apud MAZRUI, 2010, p. 849).

Outra motivação em elaborar o presente trabalho, tendo como pilar a literatura

da Guiné-Bissau, deve-se ao fato de que os estudos lusófonos têm a operosidade

de aproximar principalmente os povos do Brasil e da África de língua portuguesa,

sem se limitar às maculadas experiências da colonização portuguesa e da

escravidão, mas direcionando o olhar para experiências presentes e futuras que

esses povos podem ter mutuamente, por conta de um passado histórico em comum.

A Guiné-Bissau pareceu-nos um país que merece uma atenção especial por

ser, ao lado de Cabo Verde e sob a liderança de Amílcar Cabral, no período das

lutas da independência, o berço das revoluções que deflagraram os processos de

independência das ex-colônias portuguesas na África, além de dar-nos a

oportunidade de acompanhar, pelos escritos do punho do próprio povo, a evolução

das obras literárias e a história de sua reconstrução nacional.

O corpus do trabalho, a obra “Guinendade” do escritor bissau-guineense, Rui

Jorge Semedo, traz à tona o papel e a luta de reconstrução da Guiné-Bissau. É um

rico fragmento de uma literatura que por muito tempo ficou sufocada, mas

apresenta-se em “franco florescimento” (AUGEL, 2007). Fizemos a opção por

analisar e aplicar a obra “Guinendade” nos estudos de literatura em sala de aula,

pelo fato de ela envolver muitos aspectos sociais da realidade brasileira, que

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precisam ser revistos e repensados, principalmente, em sala de aula, onde há

muitos diálogos e trocas culturais entre os jovens, a fim de que, pela leitura, fique

elucidado para os educandos como a valorização da diversidade cultural, das

variantes da língua portuguesa, das riquezas regionais do País, e do papel social de

cada cidadão pode contribuir para a formação de uma sociedade mais democrática.

Além desses aspectos, veremos como esse poema traz respostas a muitos

questionamentos sobre a identidade, a reconstrução nacional e o papel da literatura

nos países africanos de língua e expressão portuguesas visto que focaliza um

assunto que:

[...] muito repercute, sobretudo para os povos que habitam nações pós-coloniais. O processo de colonização, de descolonização, [...] a questão da globalização, do nacionalismo, [...] da diáspora, tudo age no sentido de problematizar o sentimento de pertencimento cultural e de identidade dos povos desses países em particular. (CAMPATO, 2012, p. 177).

Tendo em vista o projeto a ser desenvolvido em sala de aula, sobre o qual

discorreremos no último capítulo, o corpus do trabalho torna evidente o papel

regulador e social do poeta, que busca unir as diversas etnias de seu país por meio

de um clamor à sociedade, e entra no âmbito da interdiscursividade com a realidade

brasileira, ao problematizar a diversidade étnica e cultural da Guiné-Bissau.

É de suma importância para os jovens brasileiros o estudo de obras da

literatura lusófona cujos escritores tracem

[...] o perfil do africano mentalmente emancipado, seguro de si, que recusa a coisificação. Consciente de sua responsabilidade [...], dirige com sabedoria a sua gente e reconhece que muitos males provocados pelo colonizador poderiam ser minimizados, se o povo tomasse consciência da própria força e capacidade. (AUGEL, 2007, p.135).

Ao optar pelos estudos lusófonos como ferramenta de implementação de um

projeto escolar, muitas foram as reflexões a respeito de qual o melhor caminho a se

seguir para alcançarmos um bom resultado.

Dessa forma, decidimos organizar o presente trabalho em quatro capítulos

que se subdividem entre si. Trazemos, inicialmente, uma explanação sobre as

questões da identidade e cultura, tendo como principais fundamentações teóricas os

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estudos de Stuart Hall, cuja linha de pensamento versa sobre a fragmentação e as

instabilidades das identidades e culturas, em um mundo sob constantes e inevitáveis

transformações sociais. Temas importantes para se tratar com os jovens em sala de

aula, considerando a formação da identidade brasileira. Em seguida, tratamos sobre

língua e identidade, dois aspectos intrinsecamente relacionados, que estão

analisados sob a ótica dos linguistas Lee Whorf e Bertil Malmberg, que defendem a

interdependência entre língua e cultura, o que traz à tona a riqueza das variantes do

português no Brasil e na África, pois a língua caminha passo a passo com as

transformações e formações culturais das sociedades. Igualmente, de grande valia,

demos voz a escritores africanos como Ngugi Wa Thiong‟o, que trata com

profundidade sobre a relação da língua como forte fator de identidade de um povo e,

finalmente, José Carlos Schwarz e Amílcar Cabral, que se posicionam mostrando as

razões pelas quais, de acordo com as situações que vivenciaram, optaram pelo uso

da língua crioula e/ou portuguesa.

No segundo capítulo, consideramos oportuno traçar um breve esboço sobre

os aspectos históricos da expansão portuguesa na África. Fazemos um afunilamento

desses estudos para a Guiné-Bissau, mostrando um pouco de seu processo de

colonização, das lutas de independência e de sua riqueza geográfica e cultural que

se refletem continuamente na literatura.

Sob o prisma dos estudos de lusofonia voltados para a sala de aula, no

terceiro capítulo, retratamos o poema “Guinendade”, que busca explorar os aspectos

étnicos, linguísticos, históricos e geográficos dos quais o poeta faz uso para ser o

porta-voz de seu povo.

Tendo atingido os patamares de estudo e investigação anteriormente

propostos, no quarto e último capítulo, voltamos nossa atenção para o uso desses

saberes em sala de aula e em toda a comunidade escolar, a fim de trazer a riqueza

dos estudos de literatura e lusofonia para o contexto escolar brasileiro, causando,

assim, uma mudança de visão de mundo em todos os envolvidos nessa ação social.

Nas considerações finais, fazemos uma reflexão sobre a importância do

estudo da história, literatura e cultura dos povos africanos em um país que ainda

precisa descobrir e resgatar muito de sua identidade e cultura. Retomamos, ainda, o

valor das atividades pedagógicas propostas, visando evidenciar o quanto é possível

e necessário trabalhar a literatura brasileira pari passu com o movimento literário da

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África de língua portuguesa, para que os primeiros passos rumo à diversidade do

ensino estejam bem ancorados no que diz respeito à pluralidade étnica e linguística

do Brasil.

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Capítulo 1

SOBRE IDENTIDADE E CULTURA

Ao abordarmos os estudos acerca de identidade cultural, em que um dos

focos desta pesquisa é a formação da sociedade afro-brasileira, o que temos em

mente é não nos limitarmos a resgatar ou a “desenterrar” histórias e experiências

que ficaram sufocadas no passado do Brasil colonial, mas buscarmos a

oportunidade de acrescentar, ao contínuo processo de formação da identidade

brasileira, muito de um legado ainda pouco explorado.

Sendo assim, não se trata aqui de uma mera volta cultural ao passado, mas

de uma busca de oportunidades para melhor elucidar a formação da identidade

brasileira e as prováveis transformações por que ela pode passar. Os estudos sobre

identidade cultural convidam-nos a refletir sobre o passado para que possamos

compreender o presente e reescrever melhor o nosso futuro. Temos sempre um

passado que não quer se calar e “esse passado continua a falar conosco”, como

afirmou Stuart Hall (1990, p. 226). Se renunciarmos a essa volta de resgate cultural,

estaremos sujeitos a “construir” um futuro com muitos cidadãos não ancorados

historicamente, indivíduos que no fundo sentir-se-ão parcialmente sem identidade,

“apátridas, desenraizados”. (FANON 1968, p. 181).

Segundo o sociólogo Manuel Castells, identidade é o “processo de

construção de significado com base em um atributo cultural ou ainda um conjunto de

atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes

de significado”. (CASTELLS, 1996, p. 26 apud. RODRIGUES, 2013, p. 8).

No mundo pós-moderno, faz-se necessário repensar sobre a questão da

identidade cultural e dos diferentes laços identitários entre os povos. Pelo fato de ser

um processo em constante movimento e transformações, o termo identidade não

apresenta uma definição concluída (HALL, 2006), refere-se à identificação que

determinados indivíduos de uma sociedade têm entre si, sem se limitar a espaços

geográficos, e “muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou

representado, a identificação não é automática”. (op. cit, p. 21).

Existe uma incompletude inerente a toda identidade cultural, por mais

“tradicional” e conservadora que esta pareça ser. Sua essência está inevitavelmente

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sujeita às transformações do mundo à sua volta, e constitui-se de um processo em

constante redefinição e expansão (HALL, 2006, p. 17). “Se cada cultura fosse tão

completa como se julga, existiria apenas uma só cultura [...] a incompletude é mais

facilmente perceptível do exterior, a partir da perspectiva de outra

cultura”. (SANTOS, 1997, p. 114). Por isso, não há como (re)pensar a própria

identidade sem confrontá-la com as demais, assim como não há como repensarmos

nossa identidade brasileira deixando de lado a cultura africana. As incessantes

mudanças sociais introduzem cada grupo social a uma confrontação com o novo, o

que resultará em mais transformações externas e internas, fragmentando ou até

mesmo multiplicando as identificações pré-estabelecidas, formando, de acordo com

as palavras de Brito (2013, p. 22), “um movimento de mão dupla”.

Nenhum ser humano já nasce com uma identidade formada, isso não é algo

inato; essa formação dá-se ao longo de todos os anos de nossa vida, através das

nossas escolhas e das transformações do mundo à nossa volta. Tais escolhas são

impulsionadas pela nossa consciência comum sobre as semelhanças e

dessemelhanças em relação às diferentes culturas que subjazem à unidade

nacional. Essa unidade não tem um caráter homogêneo, diz respeito a um espaço

comum, definido politicamente, onde diferentes culturas coexistem, transcendendo

suas delimitações geopolíticas e, mesclando-se, de forma transnacional, a outras

culturas.

A formação da identidade nunca é única ou “pura”. É o resultado de diversas

transformações e fragmentações histórico-sociais no decurso da humanidade. O ser

humano pode se sentir, muitas vezes, parte de uma identidade única ou “pura”, mas

paradoxalmente sua interioridade está repleta de identificações fragmentadas que,

no mundo pós-moderno, serão com maior constância repensadas, renegociadas e,

novamente, hibridizadas (HALL, 2006).

Mas hibridização não significa necessariamente um declínio pela perda da identidade. Pode significar também o fortalecimento das identidades existentes pela abertura de novas possibilidades. Somente uma identidade conservadora, fechada em si mesma, poderia experimentar a hibridização como uma perda. (LACLAU, 1996, apud HALL, 2013, p. 97).

Hall aprofunda-se mais nessa questão ao afirmar que:

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Não existem formas puras. Todas essas formas são sempre o produto de sincronizações parciais, de engajamentos que atravessam fronteiras culturais, de confluências de mais de uma tradição cultural, de negociações entre posições dominantes e subalternas [...], até certo ponto hibridizadas. (2013, p. 381).

Todo legado cultural está repleto de memórias e experiências históricas que

lhe dão um sentido único. Com o entrecruzamento e as confluências das novas

trocas de experiências que o mundo globalizado exige, são atribuídas novas leituras

a esse legado cultural, que automaticamente se transforma quando observado por

um novo prisma. Recentemente, as vozes quase inaudíveis dos grupos populares

menos favorecidos vêm recebendo cada vez mais atenção e passam a sair da

marginalização e a penetrar, por entre muros porosos, em um cenário político e

cultural, outrora destinado apenas às classes dominantes. É o exemplo da abertura

conquistada por artistas do hip-hop, dos desenhos em grafite legalmente expostos

em espaços públicos, da capoeira, do forró universitário, da presença da literatura

de cordel em livros didáticos, entre outros. É uma verdadeira quebra de tabus,

provocada pela confrontação das novas identidades.

“Dentro da cultura, a marginalidade, embora permaneça periférica em

relação ao mainstream3, nunca foi um espaço tão produtivo quanto é agora, [...]

resultado de políticas culturais da diferença”, mas devemos ser cautelosos, como

afirma Hall e “não cair na armadilha da [...] vitória total”. (op. cit., p. 376).

Apesar da intensificação das inter-relações no mundo pós-moderno, o

compartilhamento de um passado histórico repleto de um significado e de uma

língua em comum já não são mais fatores fortes o bastante para sustentar uma

identidade em comum de um povo. Faz-se também necessário haver uma

cumplicidade e um desejo de manter-se unido (RENAN, 1997, p. 173) para

compartilhar as mesmas transformações requeridas pela pós-modernidade. Sendo

assim, um dos pilares que concretizam a marca identitária de um povo está

essencialmente voltado aos anseios coletivos sobre o futuro da sociedade.

Contudo, “[...] nem sempre um grupo com uma cultura em comum percebe-

se, denomina-se, reconhece-se ou é objeto de discursos identitários”. (RODRIGUES,

2013, p. 7), pois somos indivíduos culturalmente fragmentáveis. Em busca de novos

3 Do inglês, corrente principal.

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pensamentos, experiências e anseios, mesclamo-nos com as diversas culturas

desde muito antes do mundo moderno ou pós-moderno e passamos a ter novas

marcas identitárias, que estão incessantemente em processo de construção. Seja

através do mundo físico ou virtual, todas essas trocas locais ou globais trazem-nos

inevitavelmente “um processo sem fim de rupturas e fragmentações”. (HALL, 2006,

p. 16).

Buscar definir a identidade de um grupo social não é tarefa simples e nem

nossa intenção no presente trabalho, pois, como anteriormente discutido, o que se

compreende por identidade é algo que passa por constantes concepções, revisões e

transformações. O que pretendemos é discutir situações que evidenciem como o

conceito de identidade está longe ainda de ser satisfatoriamente definido,

principalmente porque vivemos em um mundo marcado por ondas de

transformações culturais repentinas e desafiadoras, ao mesmo tempo em que

muitas sociedades se subdividem geograficamente por conflitos étnicos, sociais,

climáticos e religiosos, outras passam a ter seu cenário demográfico bruscamente

redesenhado por inesperadas e inevitáveis ondas migratórias.

Partindo do fato de que a definição da identidade cultural depende muito da

forma como o sujeito é interpelado (HALL, 2006), observemos como muitos

haitianos que vivem na diáspora são vistos por seus compatriotas que

permaneceram na terra natal, segundo estudos de Nina Glick Schiller e Georges

Fouron, na sua obra “„Laços de sangue‟: os fundamentos raciais do Estado-nação

transnacional” (2000, p. 58). Para muitos dos que permanecem no Haiti, não importa

a condição nem o país em que os emigrantes haitianos passam a viver, eles sempre

serão tão haitianos quanto o eram antes da diáspora. Para aqueles, é inconcebível a

ideia de reconstrução, ou até mesmo remodelação da identidade dos que vivem na

diáspora, não importando a profundidade da imersão em outros contextos históricos

e sociais. Edner, um pintor haitiano que nunca havia deixado seu país de origem

dizia:

Uma pessoa nunca deixa de ser haitiana (se se tornar cidadã de outro país). O seu sangue continua a ser haitiano. [...] A pele da pessoa continua a ser haitiana e, além disso, a pessoa nasceu no Haiti e mesmo que essa pessoa não se considere haitiana, os brancos do país onde ela vive continuam a considerá-la haitiana (cf. SCHILLER; FOURON, 2000, p. 58).

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Por contraste, neste mesmo enfoque, há haitianos que consideram seus

compatriotas que vivem há tempo na diáspora, principalmente em nações

economicamente desenvolvidas como cidadãos parcialmente brancos, parcialmente

negros. Edline, uma jovem haitiana que permaneceu em sua terra de origem, afirma

que “Essa pessoa (que viveu no estrangeiro muito tempo) é duas pessoas ao

mesmo tempo. Ele/ela é haitiano/a e branco/a. Essa pessoa está desligada dos

nossos costumes [...], vejo-a mais como branca do que como haitiana” (op. cit., p. 57).

A identidade está intrinsecamente relacionada ao sentimento de pertença,

semelhança e inclusão a determinados grupos e, consequentemente, ao não-

pertencimento, dessemelhança e exclusão de outros. Identificamo-nos com alguns

ao mesmo tempo em que nos desassemelhamos de outros. Conscientizamo-nos de

nosso pertencimento cultural e identitário, ainda que fragmentado, ao nos

defrontarmos com as “particularidades” do outro (HALL, 2006). Assim, o conceito de

identidade é formado pelo contraste das diversas identidades em escalas locais e

globais. Em vista disso,

Uma identidade cultural particular não pode ser definida apenas por sua presença positiva e conteúdo. Todos os termos da identidade dependem do estabelecimento de limites – definindo o que são em relação aos que não são. (HALL, 2013, p. 94).

Tomemos como exemplo a identidade cultural brasileira. Temos consciência

da riqueza de sua particularidade por ter, na sua base, as influências indígena,

africana e européia, em oposição a algumas outras culturas do mundo que, apesar

de sua inegável hibridização, raramente apresentam uma etnicidade com essas

influências tão marcantes, oriundas de três continentes distintos e com fortes

representações na dança, culinária, folclore, arte, literatura etc. Temos, portanto, um

valor cultural tipicamente brasileiro.

Os diversos grupos que dão unidade à identidade brasileira provêm de

outras identidades outrora também fragmentadas. Mas, em um determinado

momento da história brasileira, seus olhares para o futuro e as experiências

históricas em comum tornaram o “e pluribus unum4” uma realidade. Deparamos-nos

4 Expressão latina que, literalmente, quer dizer “De muitos, um”.

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com sociedades híbridas, em que diferentes grupos étnicos partilham da mesma

cultura regional, mas que nem sempre trazem a mesma base histórica. É o exemplo

de festividades e das artes afro-brasileiras (samba, capoeira, congada, maracatu

etc.), atualmente partilhadas por quase todos os grupos étnicos e culturais no Brasil,

mas que teve inicialmente o papel de fazer um retorno “[...] a nós mesmos. Ao fazê-

lo, produziu „a África novamente‟”. (HALL, 2013, p. 47).

A população afrodescendente no Brasil, por exemplo, embora dispersada

geograficamente pelos diversos estados do País, partilha de um passado histórico

em comum, de uma mesma necessidade de afirmação e de um resgate cultural no

presente. Tem-se, então, um mesmo grupo social, mas que se apresenta atualmente

em processo de fragmentação no que tange às diversas realidades sócio-

econômicas de cada um de seus estados.

Cada estágio histórico representa uma condição humana e as comunidades,

que vivem cada uma dessas condições, têm moldadas em si novas formas de

identidade. Em relação à identidade afro-brasileira, há um entrecruzamento entre

passado, presente e perspectivas do futuro, que pode ser revisitado no mundo pós-

moderno por um simples deslocamento no espaço (FERNANDES, 2007, p. 104).

Assim,

Conforme a região do país que se considere e o grau de desenvolvimento das comunidades da mesma região, podemos focalizar cenas que relembram os contatos dos colonizadores e conquistadores com os indígenas ou registrar quadros que retratam o aparecimento tumultuoso da civilização industrial [...] Presente, passado e futuro entrecruzam-se e confundem-se [...]. (op. cit., p. 104).

Uma comunidade afro-brasileira de uma mesma época e local do Brasil não

é constituída por uma identidade única. Cada comunidade é formada por variados

grupos étnicos, vindos das mais diversas regiões africanas. Por terem passado pela

experiência da diáspora, da opressão escravagista, da abolição da escravatura que

os lançou às margens da sociedade, passaram a compartilhar uma nova história em

comum. Essa variedade étnica foi se unificando, afunilando-se, levando os diversos

grupos afro-brasileiros a reescreverem uma nova história em conjunto, com uma

nova identidade. Mais tarde, inevitavelmente, sofreria novas fragmentações

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causadas não só pelas diversidades regionais e culturais no Brasil, como menciona

Fernandes, mas também pelas demais influências estrangeiras que cada uma

dessas regiões receberia ao longo dos anos.

Com o advento da pós-modernidade, a identificação cultural limita-se cada

vez menos à região geográfica onde vive cada cidadão. Numa mesma região de

vários países do mundo, é comum haver pessoas de distintas culturas, mas que em

algum momento da história (re)identificar-se-ão com uma nova cultura e,

posteriormente, virão a se distanciar novamente, seja por novas diásporas ou por

novas (re)identificações culturais. Esse universo é como se fosse formado por

múltiplas linhas irregulares flutuando, que ora se entrecruzam, ora se descruzam,

para novamente se encontrar e se cruzar (HALL 2013, p. 287), gerando novas

transformações culturais. É um ir e vir dos laços culturais, o que Hall chama de

“pluralização” das identidades (2006).

Pelo estilo pós-moderno que nos permite uma maior integração com terras

estrangeiras, seja física ou virtualmente, as identidades, até então distanciadas,

passam a “flutuar livremente. Somos confrontados por uma gama de diferentes

identidades [...]”. (HALL, 2006, p. 75). Temos assim, em todo o globo, incontáveis

rupturas de muitas tradições culturais a favor de novos e constantes processos de

formação cultural; é algo nomeado por Hall (2006) de identidade fragmentada.

Um cidadão que nasceu e mora em São Paulo, outro em Tóquio e um

terceiro em Moscou, apesar de apresentarem formações histórico-sociais bem

distintas entre si e de viverem em consideráveis distâncias, não raramente

apresentam semelhantes ambições, como estudar em uma renomada universidade

dos Estados Unidos, gostar do mesmo refrigerante (Coca-Cola) ou hambúrgueres do

Mc Donald‟s e até mesmo expressar os mesmos temores quando ouvem falar em

crises diplomáticas no Oriente Médio. Não nos surpreenderíamos se soubéssemos

que esses mesmos jovens trocam mensagens entre si num fórum virtual ou no

Facebook a respeito dos filmes de Harry Potter, pois,

Passamos de sociedades dispersas em milhares de comunidades rurais com culturas tradicionais, locais e homogêneas, em algumas regiões com fortes raízes indígenas, com pouca comunicação com o resto de cada nação, a uma trama majoritariamente urbana, em que se dispõe de uma oferta simbólica heterogênea, renovada por uma constante interação do local com redes nacionais e transnacionais de comunicação. (CANCLINI, 2006, p. 285).

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Estas novas formas de (re)identificação cultural somente são possíveis

porque os sujeitos das mais diversas sociedades do mundo globalizado passam a

reavaliar seus valores e se reposicionam de acordo com as mudanças do mundo à

sua volta. As sociedades do mundo pós-moderno “[...] são atravessadas por

diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de

diferentes posições de sujeito [...]”. (HALL, 2006, p. 17). Sem, contudo, perder sua

essência histórica e social, as sociedades pós-modernas articulam-se a fim de

estreitar laços por toda a esfera global, expandindo-se de forma a não mais ser a

mesma como anteriormente, porém mantendo seu laço histórico, para que sua

identidade tenha garantida uma representação no mundo.

Neste mundo pós-moderno, com sociedades que fazem parte de uma

tecedura de longo alcance e cujas visões de mundo estão cada vez mais

partilháveis, os entrecruzamentos dos povos fazem com que as diferentes

identidades, ao se confrontarem, passem por uma autoavaliação, que lhes agregará

novas apreensões da realidade, contribuindo para as constantes transformações.

Como resultado disso, é cada vez mais constante, no Brasil e em muitos outros

países do mundo, o desenvolvimento de comunidades com múltiplas diversidades

culturais, que trazem de outras regiões do globo marcas identitárias fortemente

enraizadas e precisam passar pelo processo de adaptação e, principalmente,

aquisição de novos valores identitários do local onde se encontram, para que

possam encaixar-se socialmente e não legar a seus descendentes o risco de se

encontrarem isolados dessa sociedade.

1.1 Língua e identidade

A linguagem de um povo está intrinsecamente vinculada à sua identidade,

principalmente no que tange à expressão oral. É principalmente pela oratura 5 que a

5 “O termo oratura, proposto pelo linguista ugandês Pio Zirimu [...], surge como alternativa à

expressão literatura oral por apresentar-se mais apropriada para o fim a que se propõe: designar um conjunto de formas verbais orais, artísticas ou não. [...] alguns autores têm apontado que (literatura

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identidade de um povo é transmitida de geração a geração, seja no âmbito familiar

ou coletivo, seja pelas mais diversas manifestações literárias, artísticas, religiosas,

político-administrativas, entre outras.

No constante processo de reconstrução da identidade nacional, as línguas,

através de suas transformações, refletem inevitavelmente as culturas a que estão

expostas (MALMBERG, 1976), as construções e desconstruções ideológicas, as

conquistas e as renúncias, o aperfeiçoamento e as incompletudes das nações.

O linguista Lee Whorf (apud MATEUS, 2001, p. 85) já defendia em 1930 o

conceito de interdependência entre língua e cultura e de que a visão de mundo de

um povo está inerentemente marcada na língua. Como exemplo, Whorf cita as

muitas dificuldades de adaptação das traduções textuais que ocorrem devido às

diferentes apreensões da realidade entre os povos. O linguista Bertil Malmberg

igualmente afirma que “os modelos sociais e culturais refletem-se nas estruturas das

línguas” (1976, p. 22), consequentemente, “A análise do conteúdo linguístico não

pode fazer-se nunca sem referências ao meio sócio-cultural em que funciona a

língua.” (ibidem, p. 18). Ainda nesse viés interpretativo, Amílcar Cabral6 afirmava em

1969 que “a língua depende do ambiente em que se vive [...]. Se repararmos, por

exemplo, na gente que vive perto do mar, a sua língua tem muita coisa relacionada

com o mar [...]”. (CANIATO, 2005, p. 15).

Tão significativa é a importância entre a identidade e a língua que participa

de seu desenvolvimento, que o escritor queniano Ngugi Wa Thiong‟o (1994, p. 87)

não considera que sejam africanas as composições literárias de seu continente

originalmente escritas em inglês, francês, português ou outra língua europeia. Ele as

nomeia de literaturas afro-europeias, considerando africanas apenas as obras

literárias escritas originalmente em línguas africanas; por razões não apenas de

expressividade, mas pela pouca abrangência geográfica que as línguas europeias

apresentam nas diversas comunidades africanas.

oral) outros termos relacionados à oralidade sugerem uma preponderância ou supremacia da escrita em detrimento da oralidade. [...] O termo oratura, por sua vez, encerra em si mesmo sua abrangência no âmbito central da oralidade.” (MORAES, 2012). 6 Ex-político militante de Cabo Verde e Guiné-Bissau, co-fundador do PAIGC, Partido Africano da

Independência da Guiné e Cabo Verde, fundado clandestinamente em 1956 por ele e outros cinco camaradas, com o objetivo de derrubar o regime colonial (SEMEDO, 2009, p.16). Foi assassinado em 1973.

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Por questão de afirmação de identidade e pela busca de termos que externem

com fidelidade a cultura de seu povo, muitos escritores africanos optaram por

escrever apenas nas línguas nativas ou em línguas europeias enxertadas com

termos das línguas autóctones, modificando, assim, a estrutura sintática para

atribuir às suas obras uma marca essencialmente nativa. É o exemplo, de escritores

e músicos da Guiné-Bissau que, buscando a reafirmação de sua identidade e

cultura, compõem suas obras em crioulo (AUGEL, 2007, p. 87), como veremos com

mais detalhes quando estudarmos a questão das línguas da Guiné-Bissau

retratadas no poema “Guinendade”.

Como bem questionou o professor Thomas Bonnici, “Quando o escritor,

oriundo de um país que foi colônia europeia, usa a língua europeia, estará traindo a

língua nativa ou simplesmente estará assumindo uma nova identidade pós-colonial?”

(BONNICI, 2005, p. 33-34 apud CAMPATO Jr., 2012, p. 199). O uso da língua

europeia por um escritor africano não constitui uma traição aos seus laços culturais.

Pelo contrário, pode ser a língua que estabelece um vínculo de união de um povo.

Segundo o linguista moçambicano Gregório Firmino,

Sem o português, o país não seria o que é. Não digo que não haveria Moçambique - mas não com a configuração social, econômica e política que conhecemos. [...] Tanto que o português além de servir como instrumento de comunicação, é como se fosse uma bandeira, um hino. [...] O português está a sofrer um processo de nativização; que se associa a novos valores sociossimbólicos [...].Os portugueses querem cobrar o uso do português como se fosse um favor que nos fizeram. Não, eles nos deveriam muito mais. [...] A língua é nossa. E não só é nossa, mas é tão nossa quanto os outros dizem que é deles. Não devemos favor a ninguém [...]. (cf. KACZOROWSKI, 2014, p. 12-13).

Quanto a essas questões, Amílcar Cabral já fazia os seguintes

questionamentos:

Como é que vamos escrever balanta agora? Quem é que sabe a fonética do balanta? [...] Eu escrevo por exemplo, n‟ca na bai. Um outro pode escrever por exemplo n‟ka na bai. Dá na mesma. Não se pode ensinar assim, senão é um confusão do diabo. [...] Agora nossa língua para escrever é o português (NÔ PINTCHA, 1976).

A reflexão e a inquietação quanto ao vínculo entre língua e identidade não é

exclusividade dos países africanos e asiáticos que recém passaram pelo processo

de pós-independência. “No Brasil, no campo da literatura, já data do Romantismo a

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oposição aos modelos europeus [...]”. (AUGEL, 2007, p. 176). Mais tarde, por volta

de cem anos após os movimentos de independência do Brasil, com o advento das

manifestações da Semana da Arte Moderna de 1922, muitos escritores buscavam a

reafirmação da identidade brasileira por meio de um distanciamento cada vez maior

dos padrões literários europeus e de uma aproximação maior dos ícones identitários

brasileiros, como o negro, o mulato e o branco brasileiro. Sugeriam, pois, que não

seria um erro crasso se os escritores brasileiros fizessem uso, nos meios literários,

da linguagem popular brasileira, ao invés da linguagem imposta pelas normas

gramaticais do ex-colonizador. Oswald de Andrade, em sua obra “Pronominais”,

levanta esses questionamentos:

Dê-me um cigarro / diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido / Mas o bom negro e o bom branco / Da nação brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro. (2005, p. 167).

O poeta Mário de Andrade, em suas obras, também procurou enfatizar a força

da identidade nacional por meio da língua, ao fazer uso de palavras e expressões

indígenas, africanas ou portuguesas bastante abrasileiradas. Em sua obra “O poeta

come amendoim”, enxertou em seu poema palavras como caramurus, canhambora

e canjerana. E afirmou na quinta estrofe que o Brasil está “falando numa língua

curumim”. (ANDRADE, 1980, p. 132-133).

Não nos resta a menor dúvida de que a língua passa a ser não somente o

patrimônio de um povo, como também o receptáculo de seus múltiplos aspectos

identitários. A língua que é moldada, em seu uso, pelo contexto histórico, contribui

para moldar, direta ou indiretamente, a visão de mundo de quem dela se utiliza.

Como exemplo disso, temos os fortes traços culturais no uso de provérbios,

que trazem a lume os profundos saberes de comunidades. Embora, passem pelo

inevitável processo de (res)significação de seus sentidos, é necessário, em seu uso

atual, adequarmo-nos aos valores semânticos que lhes foram atribuídos por falantes

de gerações anteriores. Em virtude disso, Stuart Hall afirma que:

As palavras são “multimoduladas”. Elas sempre carregam eco de outros significados que elas colocam em movimento, apesar de nossos melhores esforços para cerrar o significado. Nossas afirmações são baseadas em proposições e premissas das quais nós

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não temos consciência, mas que são, por assim dizer, conduzidas na corrente sanguínea de nossa língua. (2006, p. 41)

O conhecimento da língua do outro é uma das principais, se não, a principal

ferramenta capaz de inserir pessoas de distintas culturas globais na cultura local. O

processo de aprendizagem da língua e da literatura do outro contribui para uma

releitura da própria realidade, mas dessa vez, de um ponto de vista, até então, não

vivenciado. Contudo, cabe ainda ressaltar que, para que haja um crescimento

cultural pleno das partes envolvidas no processo de integração e adaptação cultural,

uma língua não deve ser imposta sobre outra como se houvesse alguma

superioridade linguística. As nações, em seus intercâmbios culturais “Não devem

seguir uma direção unilateral [...]. Se querem conservar e desenvolver sua cultura

própria devem manter abertas as portas a todas as influências [...]”. (MALMBERG,

1976, p. 87).

Mesmo entre povos geograficamente distantes, o compartilhamento de uma

língua em comum é capaz de desempenhar o importante papel de resgate dessas

identidades que agora se reaproximam, por conta do processo de globalização e do

encurtamento do tempo e do espaço. Dentre as obras do poeta cabo-verdiano Jorge

Barbosa em homenagem ao Brasil, vejamos “Carta para o Brasil” (cf. SANTILLI,

2007, p. 28). Sua expressividade apresenta uma busca pela reaproximação cultural

entre Cabo Verde e Brasil. Nesse contexto, a língua portuguesa é a força motriz que

movimenta essa reaproximação por resgate e que transcende o Atlântico. Bastante

emotivo, o sujeito poético põe-se como porta-voz de toda a nação de Cabo Verde:

Eu gosto de você, Brasil, porque você é parecido com a minha terra. [...] Eu já ouvi falar de suas cidades: A maravilha do Rio de Janeiro, São Paulo dinâmico, Pernambuco, Bahia de Todos-os-Santos. Ao passo que as daqui Não passam de três pequenas cidades. Eu sei tudo isso perfeitamente bem, mas Você é parecido com a minha terra. E o seu povo que se parece com o meu, que todos eles vieram de escravos com o cruzamento depois de lusitanos e estrangeiros.

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E o seu falar português que se parece com o nosso falar, ambos cheiros de um sotaque vagaroso, de sílabas pisadas na ponta da língua, de alongamentos timbrados nos lábios e de expressões terníssimas e desconcertantes.

No outro extremo da luta pela reafirmação identitária, a escolha da língua

pode desempenhar um papel de resistência à imposição das línguas e da cultura de

um grupo economicamente mais influente. Na Guiné-Bissau, a maior parte das

poesias da década de 1970 tiveram forte estilo combatente e, não foram poucos os

poetas que conclamavam o povo à luta, ao fazer uso estratégico apenas da língua

crioula. O poeta José Carlos Schwarz, por exemplo, divulgava suas “canções

politicamente comprometidas, veiculadas no idioma kriol, o que não era bem visto

pelas autoridades locais. [...] Cantar na língua guineense constituía uma forma de

Schwarz desprezar a língua do colonizador e da elite local”. (CAMPATO, 2012, p.

78). Além disso, de acordo com as palavras de Thiong‟o (1987, p. 30), “Um escritor

que tenta transmitir a mensagem de união revolucionária e de esperança nas

línguas da população torna-se uma figura subversiva7.” Na Guiné-Bissau,

principalmente durante a década de 1970, lutava-se pela independência de Portugal,

o que se reflete no papel social e na preocupação dos poetas desse período em

trazer à tona a ideologia, identidade e cultura sufocadas pela opressão da

colonização, preferencialmente, na língua das massas.

Por outro lado, temos os casos em que muitas línguas nativas na Guiné-

Bissau, por razões administrativas locais e globais, vêm perdendo espaço para as

línguas europeias, que são, geralmente, política e economicamente predominantes.

É o exemplo de muitos jovens que, por falta de investimentos administrativos, não

aprendem a ler e a escrever em sua língua étnica, o que contribui para um

distanciamento ou, até mesmo, um rompimento cultural em relação ao repertório

literário de seu grupo étnico, algo que vem se intensificando diante da diáspora.

Analisaremos essas questões com mais detalhes no capítulo sobre “A Guinendade e

o valor da terra e das línguas”.

7 Tradução nossa. No original: “A writer who tries to communicate the message of revolutionary unity

and hope in the languages of the people becomes a subversive character.”

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Capítulo 2

A HISTÓRIA DA EXPANSÃO PORTUGUESA NA ÁFRICA 2.1 A expansão portuguesa da África Oriental

No final do século XV e início do XVI, os primeiros contatos dos portugueses

com os povos de toda a costa africana, mais especificamente dos povos que viriam

a ser colônias de Portugal, foram marcados por construções de fortes para trocas

comerciais de objetos preciosos, como ouro, marfim e cobre. Inicialmente, “O foco

era o valioso comércio de especiarias do Oriente, da África ocidental e do Brasil”8.

(MINTER, 1972, p. 14). Mais tarde, esses postos serviram para o tráfico humano

voltado à escravidão nas Américas.

Como afirma M. Malowist, por volta de 1500, enquanto muitos países da

Europa estavam ainda “confinados dentro de suas fronteiras” (2010, p.1), os povos

da costa oriental africana já mantinham um comércio cada vez mais crescente e

próspero com o Oriente e o Extremo Oriente. As cidades menores ocupavam-se

mais com as atividades agropastoris e com a pesca, já as maiores dedicavam-se

quase que exclusivamente ao comércio marítimo internacional. Embora a costa

oriental fosse constituída por uma miríade de comunidades distintas, a influência

árabe tornou-se o agente amalgamador que as tornava comunidades bastante

homogêneas em relação à cultura, à religião, ao comércio e até mesmo à língua, o

kiswahili (cf. SALIM, 2010, p. 887 - 888).

Em 1498, com a viagem de Vasco da Gama rumo às Índias, os portugueses

fizeram sua primeira inserção na região de Moçambique. Naquelas terras havia

importantes cidades como Mombaça, Malindi (atualmente cidades do Quênia),

Sofala, Inhambane, Quelimane (atuais cidades moçambicanas), que haviam

prosperado grandemente, por serem entrepostos comerciais de riquezas entre

mercadores africanos, de cultura árabe, e muçulmanos ou indianos vindos do

Extremo Oriente (cf. SALIM, 2010, p. 888-889). Em troca do ouro e do ferro que

levavam da África, esses mercadores deixavam na costa “[...] algodão, porcelanas,

seda, miçangas, perfumes e drogas medicinais” (HERNANDEZ, 2005, p. 584).

8 Tradução nossa. No original: “The focus was the rich spice trade from the East; West Africa and Brazil […].”

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O incômodo sentido pelos portugueses devido à forte presença muçulmana

na África oriental e à riqueza que dali era retirada desencadeou o desejo de

frustrarem as relações comerciais que os africanos mantinham com o Oriente, tudo

isso somado ao fato de almejarem as grandes riquezas e propriedades na África

oriental. Assim, grandes expedições portuguesas direcionaram-se àquela região

para dominá-la completamente, não importando se fosse em detrimento de vidas

humanas. Segundo Salim:

Através de suas expedições, os portugueses procuravam prejudicar o islã nos planos comercial, político, militar e religioso, ou seja, desmantelar o monopólio mameluco (depois, otomano) das rotas comerciais em direção a Ásia e a China, aliando-se a outros cristãos para colocar um fim à dominação muçulmana em todos os lugares onde ela era exercida. Além disso, almejavam, em última instância, apoderar-se dos territórios muçulmanos, pois se presumia que os não-cristãos não tivessem direito algum a propriedade (2010 p. 890).

Dessa forma, começou o processo de “roedura” (HERNANDEZ, 2005, p.

585) na costa oriental africana. Aos poucos, os portugueses tomaram o lugar dos

comerciantes vindos do oriente para, em troca, receber ouro, cobre, ferro e marfim

dos africanos. Mais tarde, algumas cidades da costa oriental africana, que passaram

para o domínio português, além de terem se submetido a grandes pilhagens que

sobrecarregaram os navios portugueses com marfim, pérolas, prata, cereais e outras

riquezas, também foram forçadas a pagarem altos tributos à Coroa Portuguesa, sob

ameaças de sanções em caso de descumprimento das ordens vindas de Portugal

(cf. SALIM, 2010, p. 891-893). É importante destacar que esses povos que se

encontravam sob o domínio português haviam lutado arduamente pela defesa de

suas terras antes de serem rendidos. Em uma das lutas de resistência, por exemplo,

Respondendo corajosamente aos tiros dos trabucos e dos mosquetes com uma saraivada de pedras e flechas, os habitantes de Mombaça, apoiados por centenas de aliados africanos, defenderam-na, passo a passo, das ruelas até o palácio do rei. Porém, finalmente, este teve que se render devido ao assalto dos portugueses, os quais haviam cercado seu palácio (op. cit., p. 893).

Ainda em relação às lutas de resistência, a cidade “Faza resistiu

obstinadamente e seus habitantes infligiram grandes perdas aos portugueses antes

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de serem vencidos por esses últimos” (op.cit., p. 897). Numerosas foram as batalhas

travadas na costa oriental contra a invasão dos portugueses, que decidiram instalar-

se em regiões recortadas por rios por onde escoavam facilmente do interior de

Moçambique os produtos a serem levados para a Europa.

Depois da dominação de Mombaça, até então a mais próspera antes da

chegada dos portugueses, há relatos de que “Como os lusitanos não possuíam um

plano a longo prazo destinado à cidade e não sabiam o que fazer com ela [...],

arrasaram‑na mais uma vez antes de partirem”. (Ibidem, p. 893).

Devido às muitas falhas na política administrativa de ocupação e imposição

na costa oriental africana, os portugueses não foram tão bem-sucedidos nessas

terras como esperavam. Principalmente porque o domínio dessas regiões lhes

demandava custos financeiros que os tributos locais, por mais altos que fossem não

chegavam a cobrir (Ibidem, p. 894). Ademais, havia outros terríveis custos a

Portugal, as vidas perdidas em batalhas ou por enfermidades.

Ao fim de tudo, a colonização da costa oriental tornou-se bastante

desafiadora para Portugal, não somente pelos entraves que viera a enfrentar do

império muçulmano ali presente, mas também pelas futuras disputas territoriais com

os holandeses e ingleses. Os portugueses “Tinham apenas o desejo mercenário de

dominar, senão monopolizar, todo o comércio”. Porém, “[...] um quarto de século

depois de sua chegada, eles se encontravam apenas em Moçambique e em Melinde

[...]”. (Ibidem, p. 895).

2.1.2 A expansão portuguesa nas regiões de Angola

Aproveitando-se das rivalidades internas entre os povos africanos, durante

os séculos XV e XVI, os portugueses intermediaram o comércio entre os povos da

costa ocidental da África e da Europa. “O sistema colonial implantou leis e

instituições destinadas a tirar proveito das divisões locais, a fim de impor o poder da

autoridade colonial em lugar de apaziguar essas divergências”. (ANNAN, 2012, p.

210).

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A colonização de Angola por parte de Portugal oficializou-se quando Paulo

Dias em 1575 fundou a cidade de Luanda, atual capital angolana. Muito antes desse

período, os portugueses já estavam nas regiões do Congo, país fronteiriço com

Angola, interessados na retirada de metais preciosos e semipreciosos, como o

cobre. “No decorrer do século XVI, os portugueses acreditaram que o Congo estava

repleto de minas de ouro, das quais almejaram controlar a exploração”. (cf.

VANSINA, 2010, p. 659).

Com certa iniciação ao tráfico de escravos em terras congolesas, foi em

Angola que Portugal intensificou o comércio escravagista.

Paulo Dias chegou em 1575 e fundou Luanda no ano seguinte. Ali se consagrou ao tráfico de escravos e tentou sobrepujar uma comunidade de afro-portugueses oriunda de São Tomé que o havia precedido na região (Ibidem, p. 662).

Os portugueses passaram, então, a escoar a rota de escravos do Congo

para Luanda, cidade angolana. “A rede do Congo e de Angola foi abalada pela

criação de Luanda que, de início, já exportava mais escravos do que Mpinda: as

primeiras exportações oscilaram entre 12.000 e 13.000 escravos, principalmente

prisioneiros de guerra” (cf. VANSINA, 2010, p. 665).

Podemos afirmar que, no início, um dos fatores que mais atraiu os

portugueses para a África foram os metais preciosos exportados para os países

muçulmanos. Contudo, devido à imbatível concorrência com os holandeses, ingleses

e franceses, que possuíam melhores recursos financeiros e não pagavam taxas de

importação, os portugueses decidiram investir na exportação de pessoas para

trabalharem como escravas nas Américas (SILVÉRIO, 2013, p. 18). Dessa forma,

países da África ocidental, como o Congo, Angola e a Guiné-Bissau foram o maior

alvo de captura e exportação de pessoas para o comércio escravagista.

Ao analisarmos a questão do grande número de escravos trazidos da África

para as Américas, vemos o grande impacto na mudança das estruturas sociais das

comunidades atingidas. “A baixa densidade populacional em todo continente [...]

atrasou o avanço da produção comercial.” (cf. INIKORI, 2010, p. 130). Devido à

escravidão, a África viu reduzida sua oportunidade de expandir-se comercial e

economicamente pelo mundo, por meio de exportações. “Eis o porquê do atraso da

África no plano econômico, nos primórdios do século XX”. (op, cit., 2010, p. 134).

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Além disso, a intensificação do tráfico humano já existente na África ganharia, nesse

momento, imensas proporções, a fim de suprir e engrenar todo um mercado

algodoeiro, cafeeiro e açucareiro nas Américas.

Em relação ao empobrecimento no comércio interno da África, o historiador

e antropólogo belga Jan Vansina, afirma que:

No Norte do Zaire, uma ampla parte do território constituiu-se em um conjunto de especializações regionais complementares. Aqui se produzia ráfia ou tabaco, ali vinho de cana-de-açúcar ou marfim, lá produtos alimentícios, objetos de ferro, cerâmicas, canoas etc. Isso [o tráfico] provocou um empobrecimento técnico em cada uma dessas partes. (2010, p. 686)

2.1.3 Os portugueses na região da Guiné-Bissau A chegada dos portugueses à costa da Alta Guiné transformou

completamente o ritmo e estilo de vida das comunidades ali presentes.

Primeiramente, o comércio costeiro passou por uma intensificação maciça, visto que

os portugueses mudaram a rota de muitos produtos que iam rumo ao norte e

passaram a seguir rumo a oeste. Yves Person afirma que:

Apesar de o ouro não ser extraído na região, a travessia dela faz-se obrigatória a partir do instante em que a exportação do metal passa a ser dirigida, não mais para o norte, mas para a costa marítima. Veremos, porém, que logo os escravos tomarão seu lugar como principal item do comercio (2010, p. 339).

Os contatos dos portugueses com os povos costeiros e interioranos da

região da Alta Guiné foram constantes e abrangentes. Essas afirmações tanto se

confirmam pelas influências linguísticas dos povos locais que dominam o crioulo,

língua com influência portuguesa, como pelo próprio comércio, dos séculos XV ao

XVIII, que movimentou mercadores e comunidades interioranas da África (cf.

WONDJI, 2010, p. 468). Porém, cumpre-nos lembrar que a Guiné-Bissau foi

submetida a uma modalidade de colonização que não lhe permitia um

desenvolvimento semelhante ao das outras colônias de Portugal na África. Segundo

afirma o poeta Rui Jorge Semedo:

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[...] contrariamente do que acontecia “nas colônias de povoamento” (Angola, Moçambique e Cabo Verde), na Guiné, Portugal não chegou a criar uma base social com competência administrativa e muito menos infra-estruturas públicas adequadas ao funcionamento do país. Fato pelo qual, saíam pessoas de Cabo Verde e outras colônias para serem servidores públicos na Guiné. (SEMEDO, 2013, p. 19).

Em consonância com essas palavras, Caniato (2002, p.135) também ratifica

que “A Guiné não teve a mesma atenção que as outras colônias. Geralmente eram

comerciantes portugueses que iam para lá, ficando apenas algum tempo”.

Por sofrer as pressões da Coroa Portuguesa para aquisição de riquezas, os

colonizadores portugueses empenharam-se unicamente na extração de riquezas

das terras africanas (cf. DEVISSE, 2010, p.756), sem haver, contudo, uma política

de assentamento que colaborasse com o desenvolvimento local.

2.1.4 O contexto das lutas pela independência das colônias portuguesas

Como visto anteriormente, a colonização portuguesa, que apenas visava à

exploração, barrou e retrocedeu o desenvolvimento da costa oriental africana, ao

impedir sua autonomia de fazer comércio com o Oriente. Quanto à costa ocidental,

seu alvo de extração de riqueza, além de alguns metais preciosos, eram vidas

humanas, que seriam comercializadas nas Américas, desarticulando, assim, a

engrenagem que mantinha a atividade econômica das comunidades locais.

Assim como afirma Kofi Annan, ex-secretário-geral da Organização das

Nações Unidas (ONU), em nenhum momento pretendemos minimizar a

responsabilidade dos líderes africanos. Muitos deles, após os processos de

descolonização, contribuíram para as más condições que ainda se vê na África

atual. Contudo, é importante “desmentir a ideia falsa de que esse sistema de

governo está enraizado na alma e na cultura dos africanos. Muito pelo contrário, ele

surgiu de implicações causadas pela imposição de estruturas alheias”. (ANNAN,

2012, p. 210).

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Todas essas atividades de opressão e exploração das vidas humanas

deflagraram, ao longo de todo o período de colonização, diversas resistências por

parte das sociedades africanas, porém, o êxito dessas resistências somente se

concretizaria no final do século XX, com as lutas de independência.

Dentro de um cenário mais panorâmico e que englobe todo o continente

africano, as lutas de independência das ex-colônias britânicas e francesas também

exerceram grandes influências sobre as ex-colônias portuguesas. Se analisarmos a

linha do tempo dos processos independentistas na África, veremos que as nações

de colonização portuguesa foram praticamente as últimas a se tornar

independentes. Os anos de independência (entre parênteses) das ex-colônias

britânicas, francesas e belgas, como Gana (1957), Zâmbia (1964), Tanzânia (1963),

Costa do Marfim (1960), Camarões (1960), Senegal (1960), Quênia (1963) e Congo9

(1960), demonstram a procrastinação de Portugal em reconhecer a importância da

independência de suas ex-colônias, que só obtiveram êxito em suas lutas mais de

uma década depois, em comparação às ex-colônias já citadas.

Moçambique, Angola, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe tornaram-se

independentes de Portugal em 1975. Guiné-Bissau, em 1974, foi a primeira das ex-

colônias portuguesas a independentizar-se. Esses países tiveram como

organizações pela luta da independência partidos como o MPLA10 de Angola, a

FRELIMO11 de Moçambique e o PAIGC da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.

Em 1935, tropas italianas invadiram a Etiópia, uma nação que, até então,

nunca estivera sob domínio europeu. Para os africanos, dentro da África ou vivendo

na diáspora, “a crise etíope assinalou uma virada, pois suscitou uma condenação

unânime das elites e dos povos da África, o que favoreceu o fortalecimento das

idéias Pan-africanistas e dos movimentos de emancipação política” (CLARO, 2012,

p. 153).

9 Os dados sobre os anos de independência dos países mencionados foram consultados no endereço

eletrônico da British Broadcasting Corporation (BBC). Disponível em http://www.bbc.com/news/world/africa. Acesso em 07 de abril de 2015. 10

Movimento Popular para a Libertação de Angola, que surgiu no final dos anos 1950 por grupos anti-coloniais. 11

Movimento anti-colonialista fundado por Eduardo Mondlane na Tanzânia em 1962, que atuou militarmente em 1964 em Moçambique por sua independência de Portugal. Para saber mais sobre a FRELIMO, recomendamos a pesquisa no site frelimo.org.mz.

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Segundo Annan, outro fator culminante para o processo de independência

das ex-colônias africanas ocorreu logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Ele

afirma que,

Como em muitas outras colônias africanas, foram os soldados que voltavam da Segunda Guerra Mundial, depois de servir no Exército britânico, que começaram a questionar mais radicalmente as iniquidades das práticas coloniais. Eles viram soldados britânicos brancos, ao lado dos quais tinham lutado e derramado seu sangue, receberem generosas pensões, terras e outros benefícios na África – e nada disso foi oferecido aos africanos. [...] esses veteranos deram início à campanha pela independência (2012, p. 38).

Por mais que os sistemas coloniais tenham tentado, e por um certo tempo

logrado, deixar os povos colonizados excluídos dos mecanismos que engrenam a

economia mundial, a cedência, ainda que tardia, dos países europeus em relação à

independência das nações africanas demonstra que “os políticos sabem que os

pobres não serão excluídos dessa „modernidade‟ ou definidos fora dela.” (HALL,

2013, p. 49).

2.1.5 Breve panorama da Guiné-Bissau desde as lutas de independência.

Como vimos anteriormente, pelas palavras de Kofi Annan, os processos de

luta pela independência na África intensificaram-se depois da Segunda Guerra

Mundial. Ao passo que muitos países colonizadores concederam, a contragosto, a

independência às suas colônias, Portugal, devido à sua precária situação financeira

no período pós-guerra, relutou o quanto pôde, agarrando-se com “unhas e dentes às

suas colônias e dela não abria mão”. (BARBOSA, 1984, p. 37).

O militante Amílcar Cabral, nascido na Guiné-Bissau e criado em Cabo

Verde, líder supremo e mentor das lutas de libertação de Cabo Verde e Guiné-

Bissau, reconhecido internacionalmente como sábio chefe militar e revolucionário

(AUGEL, 2007, p. 60-61), juntamente com mais cinco camaradas, da Guiné-Bissau e

Cabo Verde, cuidadosamente e às ocultas, reunia-se em assembleias sob a fachada

de associações desportivas, com o intuito de traçar planos e metas de libertação

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desses dois países, de instauração da paz e de crescimento econômico (BARBOSA,

1984, p. 37). A luta por esses ideais culminou na fundação do PAIGC em 1956.

Seus principais fundadores foram, além do líder Amílcar Cabral, Aristides Pereira,

Luís Cabral, Inácio Júlio Semedo, Fernando Fortes e Elisée Turpin. Todos

servidores públicos que mantinham constantes e estreitos contatos com o

colonizador. Esse cenário sofreu mudanças após as lutas de libertação, quando o

quadro do PAIGC passou também a ser preenchido por camponeses, operários e

desempregados (SEMEDO, 2009).

Em 1959, um terrível massacre contra estivadores bissau-guineenses, que

faziam greve como forma de luta por melhores condições de trabalho, deixou um

saldo de mais de cinquenta corpos pela praia do Pindjiguiti, na Guiné-Bissau. O

descaso e a afronta de terem seus direitos trabalhistas violados e de serem

dispersos e mortos a tiros pelas tropas portuguesas determinou o marco histórico

pela luta da tão almejada independência. O povo recusar-se-ia a permitir que aquele

sangue houvesse sido derramado em vão. Nas palavras de Barbosa (1984, p. 37), o

massacre de Pindjiguiti determina “a derrocada final do Império do Ultramar.”

Esgotadas todas as possibilidades de acordos políticos, a intensidade da

luta pela independência teve seu percurso de 1963 a 1973, com o reconhecimento

pela parte de Portugal em 1974. Uma conquista profundamente significativa,

principalmente porque as lutas que se haviam travado foram totalmente assimétricas

(AUGEL, 2007). Guiné-Bissau enfrentara um exército “superior em armamentos [...],

ataques aéreos e as bombas de napalm12, jogadas indiscriminada e criminosamente

sobre suas aldeias e plantações”. (BARBOSA, 1984, p. 37). Porém, no ultramar

ocorreriam fatos que contribuíram para as lutas de independência da Guiné-Bissau:

a queda do governo fascista de Salazar, em 25 de abril de 1974.

Por razões políticas Amílcar Cabral foi assassinado em 1973 na Guiné-

Conakry, meses antes de ver recompensada sua luta pela independência da Guiné-

Bissau. Além disso, segundo Semedo (2009), depois da morte de seu líder, o PAIGC

passou por profundas transformações de visão e até mesmo de atuação. Há relatos

de que, por receio de grandes motins e de fortes oposições partidárias (como vinha

ocorrendo em Angola e Moçambique), que pudessem comprometer sua posição no

12

Agente gelificante empregado na fabricação de bombas incendiárias. Do inglês, napalm, ácidos naftênico e palmítico, seus constituintes principais. (HOUAISS, 2009).

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poder, o PAIGC passou a travar uma luta interna em seu país, oprimindo

brutalmente cidadãos que apresentavam ideologias partidárias contrárias. Como por

conseguinte, a tão esperada unidade binacional, entre Cabo Verde e Guiné-Bissau,

ficou comprometida. Semedo afirma em seus estudos que

os fuzilamentos dos „implicados‟, em atos considerados graves pelo partido, sempre foram os métodos para colocar ordem e garantir o controle político e social sobre os militantes e/ou massas. [...] Mas, um dos maiores episódios de fuzilamento que ocorreu no PAIGC foi para punir os assassínios13 de Amílcar Cabral. Nessa ocasião, mais de duzentos militares foram condenados à pena de morte pela direção do PAIGC. Entretanto, desde a época em que Amílcar Cabral era principal dirigente até a independência, o líder nunca aparecia como quem autorizava os fuzilamentos [...] (2009: 49).

Considerando essas transformações dentro do PAIGC, julgamos proveitoso

fazer uso das palavras de Frantz Fanon, quando afirmou que:

O partido que mobiliza o povo pouco se preocupa com esse problema da legitimidade (refere-se, aqui, à legitimidade da reivindicação). [...] O partido político pode perfeitamente falar da nação em termos comoventes, mas o que lhe interessa é que o povo que o escuta compreenda a necessidade de se participar do combate se aspira simplesmente a existir (1968, p. 172).

Entre muitos cidadãos, prosseguiam os ideais da concretização da

unificação entre Cabo Verde e Guiné-Bissau. No entanto, isso não era do agrado de

todos, pois havia um grande desequilíbrio entre a legislação e os interesses desses

dois países e quanto ao número de representantes bissau-guineenses no PAIGC, o

que poderia deflagrar revoltas populares (SEMEDO, 2009, p. 56).

Toda essa instabilidade e insatisfação resultaram em um golpe de estado

em 1980, em que João Bernardo “Nino”14 Viera depôs da presidência Luís Cabral,

meio-irmão de Amílcar Cabral, permanecendo no poder até 1984. Segundo alguns

críticos (SAMBU, 1998 apud SEMEDO, 2009, p. 56), foi um movimento “anti-

caboverdiano”, para assegurar a unidade nacional e os ideais da revolução. De

13

Embora os executores tenham sido brutalmente punidos pelo PAIGC, os mandantes do crime nunca foram encontrados. (AUGEL, 2007). 14

O nome do ex-presidente João Bernardo Vieira carrega a alcunha Nino, por isso muitos o conhecem como Nino Vieira ou João Bernardo Nino Vieira, assim como ocorreu com o ex-presidente brasileiro Luís Inácio “Lula” da Silva.

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acordo com as palavras do poeta e militante político Helder Proença: “as razões são

várias, e muitas das vezes, pertencem a um plano subjetivo” (op, cit., p. 56).

Os anos da década de 1980 foram marcados por um governo opressor, que

fazia uso de mãos de ferro (AUGEL, 2007, p. 63) para tentar eliminar qualquer

adversário do governo. Esses conflitos de administração interna e de relações com

Cabo Verde formaram uma terrível mácula na história da Guiné-Bissau, que buscava

provar, primeiramente para seus próprios cidadãos e, posteriormente, para outras

nações, sua potencialidade, autonomia e maturidade para a reconstrução nacional.

Semedo afirma que esses conflitos foram um verdadeiro desperdício de cérebros em

que a violência corroeu o diálogo e obstaculizou o desenvolvimento (2009, p. 64).

Não é de nos surpreender que o alto fluxo da “migração dos anos 80 e 90 para

Portugal não tem precedentes na história da Guiné-Bissau” (MACHADO, 1998, p.

11).

Como agravamento da instabilidade política da Guiné-Bissau, no cenário

internacional,

presenciava-se a crise mundial de petróleo ocorrida em 1979, que teve repercussões nas economias mundiais e que, consequentemente, afetou a embrionária economia guineense provocando uma crise alimentar com escassez de gêneros de primeira necessidade (SEMEDO, 2009, p. 55).

Em 1994, por uma baixa margem de votos, Nino Vieira voltou à presidência,

porém sua gestão foi marcada pela desconfiança e insatisfação popular e seus

discursos faziam sempre uma volta a um passado heróico, dos tempos da

“revolução cabralina” (AUGEL, 2007), uma constante evocação do passado. Todo

esse desprestígio desembocou em um novo golpe militar em 1998, destituindo Nino

Vieira do poder.

Os conflitos desse novo golpe de estado duraram um ano e foi marcado pela

presença de soldados senegaleses que praticaram maus tratos à população

desarmada que, muitas vezes, dormia ao relento por conta de suas casas terem sido

saqueadas e incendiadas, assim como muitos edifícios públicos. Por toda a Guiné-

Bissau foi intenso o derramamento de sangue e, com a desestabilização social,

intensificaram-se a fome e as moléstias (op. cit., p. 69).

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Semedo ressalta que na segunda metade da década de 1980 a Guiné-

Bissau se viu obrigada a abandonar o unipartidarismo político. Tal transformação se

iniciou na Europa socialista e refletiria nos países alinhados a esse eixo político.

Esse fato fez com que fossem soprados ventos de esperança, pois “de modo geral,

o regime de partido único por si só traz marcas (repressão, ausência de diálogo e

personificação do líder) que gradativamente arruínam o seu tempo de vida (2009, p.

88).”

A Guiné-Bissau, até hoje, não se recuperou economicamente de suas

instabilidades políticas e sociais, haja vista que mais um golpe de estado ocorreu em

2003, depondo Koumbá Yaká. Nino Vieira, expulso do PAIGC e proibido de retornar

ao país ganhou as eleições presidenciais em 2005 e, segundo Augel, (2007, p. 71),

o clima político continuava inseguro e problemático. O país situa-se entre os dez

mais pobres do mundo, segundo dados recentes do Desenvolvimento Humano15.

Atualmente imperam

na consciência popular o orgulho sempre realimentado em relação à vitoriosa luta libertária e à independência nacional, [...] (e) a desilusão e a indignada revolta devido aos muitos fracassos e desmandos de uma política arbitrária, autoritária e mesmo ditatorial (op.cit., p. 70).

A trama que forma o tecido histórico da Guiné-Bissau desde o período pós-

independência é vasta e complexa, por conta disso, não nos caberia aqui nos

aprofundarmos nos demais fatos políticos. O intuito é o de apresentar os principais

aspectos sociais do país para que haja uma compreensão mais ampla do papel

amalgamador16 dos escritores da Guiné-Bissau de hoje.

Dessa forma, passemos para o foco da reconstrução nacional, por via da

educação, pois, o presente estudo tem como meta a introdução da história e da

literatura da Guiné-Bissau em sala de aula, frisando a importância da educação para

a democracia e o crescimento cultural e pessoal.

15

Dados disponíveis em: < http://noticias.uol.com.br/infograficos/2013/03/14/brasil-fica-na-85-posicao-no-ranking-mundial-de-idh-veja-resultado-de-todos-os-paises.htm>. Acesso em 25 jun. 2015. 16

Amalgamador, termo utilizado, por Augel (2007, p. 202) em um contexto de união entre as etnias da Guiné-Bissau. Daí o título do presente trabalho.

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2.1.6 O reflexo da colonização portuguesa na educação da Guiné-Bissau.

Como anteriormente analisado, em meados dos anos 1970, com a

população bastante engajada com a reconstrução nacional, a Guiné-Bissau, dentro

de um cenário de muita instabilidade política e econômica, transitava entre o

amanhecer da recente independência e o anoitecer do futuro golpe de estado de

1980. Ainda inexperiente em alguns aspectos e sem o jugo do colonialismo, o país

estava aprendendo a caminhar sozinho, mas em tão breve tempo deparar-se-ia com

os anos terríveis da ditadura que fariam com que a esperança de muitos se

apagasse (AUGEL, 2007, p. 70).

Logo após a independência, o país, com quase a totalidade da população

sem saber ler nem escrever, pôs-se em marcha rumo à formação de professores,

visando à alfabetização em escalas sem precedentes, e estava aberto a apoios e

laços internacionais em prol de sua reconstrução. “A alfabetização era tomada como

um ato político [...]”. (FREIRE, 1984, p. 27).

No ano de 1975, o educador brasileiro Paulo Freire, desde a sua estadia em

Genebra até sua visitação à Guiné-Bissau, encontrou no país além de portas

abertas à sua vinda, esperança e otimismo por parte de muitos bissau-guineenses e

do então comissário da educação Mário Cabral17, com quem manteve estreitas

relações para traçar metas educacionais eficientes e bem ancoradas na realidade do

país, fatos detalhadamente encontrados na obra Cartas à Guiné-Bissau de Paulo

Freire (1978).

Esse trabalho de reconstrução, que teria a educação como ponto de partida,

fincava suas raízes naquilo que o líder Amílcar Cabral acreditava: as crianças são as

“flores da nossa revolução” (FREIRE, 1984, p. 24). Sábia metáfora, pois de muitas

flores surgem os frutos. Amílcar Cabral buscava partir do ponto de vista da realidade

do país, não de como gostaria que essa realidade fosse. A realidade era a de

alfabetizar os adultos para que esses pudessem alfabetizar as crianças.

Os primeiros passos da educação vieram apenas no período pós-

independência, em que se buscava alfabetizar as crianças tanto do campo como da

17

Ministro da Educação da Guiné-Bissau na referida época, a Mário Cabral foram destinadas onze cartas sobre a reestruturação educacional no país, presentes na obra de Paulo Freire, Cartas a Guiné-Bissau.

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cidade. De acordo com os recursos e ferramentas disponíveis e sem sair do seu real

contexto, a comissão de Mário Cabral passou a investir na formação de professores

para a alfabetização de adultos em todas as regiões do país, o que resultou num

significativo avanço. Freire (op.cit., p. 25) salientou que “não se estuda para

trabalhar nem se trabalha para estudar; estuda-se ao trabalhar” e que a educação

não deveria ocorrer de forma mecânica, mas sim pela prática e pelas trocas de

experiências. Dessa forma, foram construídas em muitas regiões do país as escolas

de campo que, além de envolverem a associação da prática com a realidade,

levavam estudantes da capital para as áreas de campo agrícola e de pecuária.

Amílcar Cabral atentamente observava e reconhecia que a luta de libertação

era “um fato cultural e um fator de cultura” (op. cit., p. 29) que envolveria tanto os

adultos quanto as crianças. Em um de seus discursos, citou o exemplo do

conhecimento das crianças alemãs sobre a aceleração da gravidade, frisando que

para que a Guiné-Bissau avançasse a sério no futuro, não só os dirigentes (adultos),

mas todas as crianças de nove anos de idade no país teriam que saber o que é

aceleração da gravidade (MONTEIRO, 2012). Analisaremos melhor parte desse

discurso de Cabral quando discorrermos, no capítulo 3 deste estudo, sobre a

importância da língua portuguesa no contexto da Guiné-Bissau atual.

Nos dias de hoje, metade da população adulta do país é alfabetizada,

segundo dados de 2014 do Instituto Nacional de Estatística da Guiné-Bissau (INE)18.

Se considerarmos o contexto recente de quase total analfabetismo do qual o país

saiu assim que se libertou de Portugal, segundo relatos do cineasta da Guiné-

Bissau, Flora Gomes19, notamos que tem havido um trabalho pedagógico incessante

por boa parte da população da Guiné-Bissau. No entanto, “a forte aposta na

escolarização iniciada após as independências e que se prolonga até à actualidade

não surtiu os efeitos esperados em termos de desenvolvimento”. (MACHADO, 1998,

p. 13).

A Guiné-Bissau passou por uma crise econômica instalada logo nos

primeiros anos de independência, agravada pelo golpe de estado de 1980 e pelas

negociações, em 1987, com o Fundo Monetário Internacional, o que causou um

18

Dados consultados disponíveis em: < http://www.stat-guinebissau.com/>. Acesso em: 23 jul. 2015 19

Relatos obtidos do vídeo “África lusófona: educação e cultura”, de realização, em 2012, da ECOSS/Unilab, sob pesquisa e direção de Paulo Carrano e Javier Lifschitz. Disponível em: http://www.uff.br/observatoriojovem/materia/entrevista-com-flora-gomes-cineasta-africano. Acesso em: 23 jul.2015.

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disparo da inflação para mais de 70%, um endividamento externo de milhões de

dólares e salários em atraso multiplicados (op.cit., p.12).

Desde então, como podemos ver no gráfico abaixo, a Guiné-Bissau vem

perdendo, para a diáspora, um grande número de pessoas com boas qualificações

profissionais, capazes de engrenar a economia do país se houvesse postos de

trabalho suficientes para absorver todo esse contingente profissional.

Imigrantes bissau-guineenses em Portugal (MACHADO, 1998, p. 16). Fonte: https://repositorio.iscte-iul.pt/handle/10071/776

Cientes de que a educação é um dos principais pilares para o

desenvolvimento social, os cidadãos do país têm buscado rotas alternativas para

garantir a boa qualificação das gerações mais novas. Atualmente, a Guiné-Bissau

conta com muitas escolas comunitárias distribuídas por todo o país. Devido ao fato

de que o Ministério da Educação não dispõe de recursos para garantir a construção

de escolas em todos os vilarejos, essas escolas comunitárias são construídas pela

própria comunidade, com os materiais e recursos levantados pelos moradores

locais. Cabe, então, ao Ministério da Educação disponibilizar o material didático e o

pagamento do corpo docente, segundo informações da Diretora Geral da

Alfabetização e Educação de Adultos, Maria Francisca Dabo20.

Dabo também afirma que, aos mais anciãos, cabe a responsabilidade de

irem à escola em datas programadas para ensinar a história e a cultura do país e, se

tiverem alguma aptidão manual, por exemplo, são convidados a ensinar os mais

jovens.

20

Vide referência 19. A entrevista foi concedida no ano de 2012 e, não nos foi possível encontrar

dados que confirmem se Maria Francisca Dabo, a entrevistada, prossegue no mesmo posto de trabalho em que atuava na época das filmagens.

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Existem ainda as escolas de autogestão, em que o Ministério da Educação

paga os professores, porém, as famílias dos alunos precisam pagar as

mensalidades para a aquisição de materiais. As escolas privadas têm autonomia

econômica, custeiam o salário dos professores e a utilização dos materiais didáticos,

porém, precisam aplicar os planos de ensino do Ministério da Educação.

Todavia, essas alternativas não são garantia de que os jovens que

frequentam essas escolas de fomento público tenham ensino de qualidade. Os

atrasos nos salários dos professores têm sido uma constante nos últimos anos, o

que resulta em greves desses profissionais, fazendo com que o ano letivo raramente

termine de acordo com o calendário escolar21. O futuro do país fica, assim,

seriamente comprometido, pois o estímulo à visão crítica e participativa, que deve

ser reforçada na vida de cada jovem, passa por constantes instabilidades de cunho

político e econômico. “Com um salário médio mensal, no serviço público, na ordem

dos 25 dólares americanos, a maior parte dos guineenses não tem condições de

adquirir no fim do mês mais do que um saco de 50 quilos de arroz [...]”. (AUGEL,

2007, p. 72).

Mas há esperança para essa jovem nação. Com a inauguração de duas

universidades em 2004, que apresentam um número bastante significativo de

estudantes, a Guiné-Bissau tem boas possibilidades de melhorar seus índices

precários em relação à educação e ao trabalho infantil. Existem ainda outras

parcerias bastante significativas, com médicos cubanos que fundaram uma Escola

de Medicina e uma Faculdade de Direito que recebe apoio de uma universidade

portuguesa. (op. cit., p. 74).

Em 2009, jovens da Guiné-Bissau enviaram uma carta à Fundação Gol de

Letra22, no Brasil, solicitando ajuda para a construção de uma escola na Guiné-

Bissau. A parceria da Fundação, com a atuação dos jovens da comunidade local

que, por meio de um mutirão comunitário, se responsabilizariam pela aquisição de

boa parte dos materiais para a construção, da UNESCO e do Instituto de Arquitetos

do Brasil – Departamento Distrito Federal (IAB-DF), concretizou a inauguração da

escola com espaços poliesportivos e um poço de água equipado com painel solar

21

Informação disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YNVOLsGgSRo>. Acesso em 02 out. 2015. 22

A fundação Gol de Letras foi criada, em 1998, pelos ex-jogadores de futebol Raí e Leonardo, com o intuito de contribuir com a educação de jovens menos favorecidos. Essas informações foram obtidas em: <http://www.goldeletra.org.br/Nossa-Historia.aspx?sm=2> . Acesso em11 out. 2015.

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em novembro de 2014. Apesar de passar pelos obstáculos causados pelo golpe de

estado em 2012 na Guiné-Bissau, que ocasionou na inatividade da construção

nesse mesmo ano, hoje, essa escola oferece educação integrada a 198 crianças

desde o início de 2015.

2.2 ASPECTOS GEOGRÁFICOS DA GUINÉ-BISSAU

Para que possamos melhor compreender as razões das composições da

poesia de denúncia na Guiné-Bissau contemporânea e da escolha do poema

“Guinendade”, de Rui Jorge Semedo como corpus desse trabalho, faz-se necessário

entendermos um pouco o panorama histórico-geográfico da Guiné-Bissau.

A República da Guiné-Bissau23 é um país tropical, situado na costa

ocidental, na região noroeste da África. Faz fronteira ao Norte com Senegal, ao sul

com a República da Guiné e a oeste é banhada pelo Oceano Atlântico. Sua pouca

extensão geográfica compreende 36.125 km2, com nove divisões administrativas e a

parte habitável limita-se aos 24.800 km2. Sua capital, Bissau, é povoada por cerca

de 300 mil habitantes e, por ser o centro cultural e financeiro, não agrícola, mais

importante da Guiné-Bissau, é onde se concentra o uso da língua portuguesa no

país.

O gentílico de quem nasce na Guiné-Bissau é guineense, porém, visto que

Hildo Honório do Couto, um dos maiores pesquisadores brasileiros da literatura e da

língua crioula da Guiné-Bissau, usa em seus textos o gentílico bissau-guineense

(COUTO, 2008), também optamos por assim fazer, a fim de se evitar equívocos com

os gentílicos das outras nações africanas, a saber, Guiné Conacri e Guiné

Equatorial.

Sua maior fonte de renda na área agrícola é o cultivo de caju, por conta da

exportação de sua castanha. Quanto ao consumo interno, a agricultura produz

principalmente o arroz, planta bem aclimatada em um território tropical irrigado por

23

Os dados geográficos aqui apresentados, assim como muitas outras informações sobre língua, cultura e a literatura da Guiné-Bissau foram baseados principalmente nos estudos de Moema Parente Augel, em O Desafio do Escombro (2007).

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diversos “rios caudalosos” (AUGEL, 2007, p. 50). Sua população está amplamente

redistribuída em diversas comunidades culturalmente bem distintas entre si e, quase

a totalidade de toda a população é de “africanos negros” (CAMPATO, 2012, p. 22),

com grande parte de animistas, povos que cultuam antepassados e elementos da

natureza, de muçulmanos e de uma minoria cristã.

Grande parte da população da Guiné-Bissau vive em condições econômicas

bastante precárias, o que é confirmado pelo fato de que a expectativa de vida,

segundo dados de 2014 do Instituto Nacional de Estatística da Guiné- Bissau

(INE)24, é de apenas 52,4 anos. Outros dados apontam que a população é bastante

jovem: as pessoas de 0 a 14 anos de idade correspondem a 42,6% da população.

Certamente, esse é um dos principais motivos que fazem com que 39% das crianças

de 5 a 17 anos sejam economicamente ativas. Coube a elas suprir a carência da

mão de obra adulta.

Quanto à alfabetização, o censo de 2009 do INE apontou que 51,9% das

pessoas acima de 6 anos apresentam domínio das competências da leitura e da

escrita, embora 43,7% dessa mesma população alfabetizada nunca tenha

frequentado a escola, aprenderam a ler na informalidade. A qualidade de ensino na

Guiné-Bissau é uma das mais baixas em toda a África, o que contribui para

classificar o país nas últimas posições do Índice do Desenvolvimento Humano (IDH):

de 186 países considerados, a Guiné-Bissau encontrou-se na 176ª colocação,

segundo dados de 201425.

2.2.1 O mosaico cultural da Guiné-Bissau26

Devido à diversidade histórico-cultural na Guiné-Bissau, podemos falar, sem

equívocos, que existem diversas literaturas bissau-guineenses, pois, segundo Couto

e Embaló, “parece mais adequado falar-se em literaturas guineenses, no plural. Elas

24

Dados retirados do Recenseamento Geral da População e Habitação / Guiné-Bissau, 2009 (RGPH), do RAPPORT FINAL Enquête nationale sur le travail des enfants en Guinée-Bissau e do Instituto Nacional de Estatística (INE), todos disponíveis em:< http://www.stat-guinebissau.com/>. Acesso em 04 de março de 2015. 25

Dados disponíveis em: http://noticias.uol.com.br/infograficos/2013/03/14/brasil-fica-na-85-posicao-no-ranking-mundial-de-idh-veja-kl;;\resultado-de-todos-os-paises.htm. Acesso em: 07 de abr. de 2015. 26

A expressão “mosaico cultural” é de Augel (2007).

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compreenderiam a literatura em português, a literatura em crioulo, a literatura em

francês e as literaturas étnicas” (COUTO; EMBALÓ, 2010, p. 61).

Essa pluralidade de literaturas na Guiné-Bissau não se limita a enxergar

somente suas múltiplas identidades. Não são raros os casos em que seus poetas

dialogam com o mundo exterior. Rui Jorge Semedo, por exemplo, em sua antologia

poética, Retrato (2007), apresenta obras que falam diretamente ao povo brasileiro

sobre identidade e cultura. O que indubitavelmente reforça o vínculo entre a história

dessa jovem nação e a formação histórico-cultural do Brasil, por compartilharem de

memórias que remetem a um passado colonial em comum.

A Guiné-Bissau tem seu tecido cultural formado por variados fios

multicoloridos, advindos de outros entrelaçamentos culturais. Essa multifacetada

formação histórica, além de lhe imprimir uma nova identidade, posiciona o povo

bissau-guineense diante de um grande desafio: sem abrir mão da preservação de

seus fios pluriétnicos, dos “contornos” e “meandros” (AUGEL, 2007, p.34) dessa

identidade, seus cidadãos precisam se unir para encontrar seu espaço em um

mundo globalizado e pós-moderno. Como afirma Augel:

Essa modernidade, uma fuga do atraso e do subdesenvolvimento, foi primeiro imposta pelo regime colonial sob forma retrógrada; depois, redefinida nas visões do anticolonialismo e das guerras de libertação nacional. [...] a Guiné-Bissau, no momento, está novamente envolta

em cuidadosas esperanças. (op. cit., p. 22-23).

Contudo, devemos levar em conta que novos e maiores desafios já

despontam no horizonte: os conflitos mundiais da pós-modernidade, direta ou

indiretamente, cooperam para o fenômeno de desconstrução das nações. Essas

“frágeis” nações, ainda em vias de reconstrução, constantemente estão mais

vulneráveis e sujeitas a ver seus esforços para unificar-se, amalgamar-se e

alavancar serem rapidamente fragmentados por conflitos internacionais de ordem

étnico-religiosa, econômica ou até mesmo por cataclismos naturais, como as

terríveis secas que assolaram Cabo Verde, motivo pelo qual em Guiné-Bissau foi

publicado o folheto Fraternidade, em 1883, em solidariedade ao povo cabo-verdiano

que havia sofrido o flagelo da seca (COUTO; EMBALÓ, 2010, p. 64).

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2.2.2 Aspectos e história do estilo literário da Guiné-Bissau

Em comparação com as demais colônias portuguesas, e devido à modalidade

de colonização a que foi submetida27, a literatura escrita bissau-guineense iniciou-se

tardiamente. Podemos fazer essas afirmações, baseando-nos no fato de que

somente em 1924 foi fundado o primeiro jornal do país, denominado Pró-Guiné; Em

1958 teve início a primeira instituição de ensino secundário; Em 1994 foi inaugurada

a primeira editora privada da Guiné-Bissau e, ainda, por volta de 2011, não havia

livrarias no país (CAMPATO, 2012). A publicação do primeiro conto escrito, “Amor e

trabalho”, no Boletim cultural da Guiné Portuguesa de autoria de James Pinto Bull,

ocorreu em 1952 (COUTO, 2008).

Não acreditamos que, anteriormente a essas datas, havia na literatura

bissau-guineense um “espaço vazio”, como o afirmou Manuel Ferreira (COUTO;

EMBALÓ, 2010, p. 61). Pensamos exatamente o oposto disso: “não há povo sem

literatura e o firme propósito de descobri-la” (AUGEL, 2007, pp. 19-20). Há séculos

que diversas etnias de diferentes línguas convivem na Guiné-Bissau, cada uma

delas com suas ricas tradições de (re)contar a literatura oralmente, o que podemos

chamar de oratura ou oralitura (COUTO, 2008, p. 83).

Nessa mesma linha de pensamento, Santilli afirma que “muito antes dos

(sic) europeus chegarem à América e à África, havia culturas fortemente

solidificadas e altamente elaboradas [...]. No entanto, certa visão eurocêntrica

insistia nos „povos sem história.‟ (2007b, p. 16-17)”.

Também julgamos importante mencionar que há registros oficiais de

descrições informativas de navegadores portugueses a respeito da Guiné-Bissau

datados no ano de 1594. Portanto, como afirma Couto, “Se tomarmos o termo

„literatura‟ ao pé da letra, ou seja, reportando-se a textos escritos, podemos pôr o

seu início em 1594, data da publicação de Tratado breve dos rios de Guiné de Cabo

Verde (2010, p.63)”. Como podemos perceber, um consenso plausível a respeito da

periodização da literatura bissau-guineense ainda está sendo traçado (CAMPATO,

2012, p. 24).

27

A Guiné-Bissau, por muitos anos, foi tida por Portugal apenas como um entreposto de escravos (AUGEL, 2007, p. 54), e não como uma colônia de assentamento como ocorreu com Angola ou Moçambique.

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Segundo Fanon (1968, p.184-185), a literatura africana no período da

colonização, de um modo geral, passou por três etapas marcantes. Na primeira

etapa, o escritor colonizado fazia de suas obras um tipo de literatura metropolitana,

com inspiração africana, o que Fanon chama de período “assimilacionista integral”.

Por conta dessa assimilação, a segunda etapa mostrou muitos escritores

distanciados de seu próprio povo. Como resultado, esses escritores encontravam-se

inseridos na fase das memórias, suas obras expressavam as recordações da

infância e das lendas de seu povo, algo que já não experimentavam mais. Muito

provavelmente, o contraste entre a realidade anterior e a que esses escritores

passaram a viver, ou seja, a realidade da experiência da sufocação cultural, tornou-

se um fator desencadeador de angústia, resultando num estilo literário que Fanon

chama de “literatura de pré-combate” (op. cit., 1968, p. 184). Finalmente, e ainda no

período colonial, chegou-se à etapa da literatura de combate. O poeta não mais

estava distanciado nem excluído de seu povo, mas buscou despertá-lo em prol da

libertação e da reconstrução nacional.

A Guiné-Bissau apresenta profunda criatividade na literatura oral, por meio de

seus contadores de história. Mas esbarra-se fortemente em entraves quando se

trata da divulgação impressa de seus trabalhos. “Habita um espaço tão rico em

termos de valores que inspiram o fazer literário, no entanto, escasso em

oportunidade de traduzir essa prática em textos impressos que permitam sua

visibilidade nos mercados literários”. (SEMEDO, 2013, p. 78). Assim, para que a

literatura não deixe de caminhar rumo a uma periodização funcional, os escritores do

país têm feito vasto uso das ferramentas da Internet para veicularem seus trabalhos.

Recordando o que nos diz Hall: “o mundo é menor e as distâncias mais curtas, [...]

os eventos em um determinado lugar têm um impacto imediato sobre pessoas e

lugares situados a uma grande distância”. (HALL, 2006, p. 69). Páginas da Internet

como www.didinho.org e http://djambadon.blogspot.com apresentam grandes

variedades de trabalhos publicados tanto em língua portuguesa como em crioulo;

“Em geral, trata-se de uma „literatura da diáspora‟, pois a maioria dos autores em

questão mora fora da Guiné-Bissau”. (COUTO, 2008, p. 98).

Não somente na Guiné-Bissau, mas em praticamente todas as outras

colônias na África, as cantigas, os provérbios, a filosofia, contos e adivinhas das

diversas etnias ali já enraizadas por séculos não receberam a merecida e justa

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valoração por parte do colonizador, por motivos de controle mental (THIONG.O,

1994). Por outro lado, como afirma Semedo (2013, p. 78), “[...] há que existir cautela

em não utilizar as razões históricas como o único pretexto explicativo dos cenários

existentes”.

Apesar de todos esses obstáculos, a expressividade escrita vem crescendo

continuamente por parte de movimentos estudantis desde as lutas de

Independência. Artistas como José Carlos Schwarz que, na década de 1970, deixou

rica inspiração cultural aos jovens de sua posteridade, que passaram a produzir

textos de cunho revolucionário, patriótico e de reafirmação do valor literário de seu

país. Uma resposta incisiva às afrontas do mundo europeizado que tanto os

estigmatizara como povos sem história nem cultura. As obras musicais de José

Carlos Schwarz, que se uniu ao músico Cobiana Djaz, “fizeram a sociedade

acreditar na música como princípio de resistência”. (SEMEDO, 2013, p. 69).

Mais tarde, surgiram outros movimentos de engajamento social, como os

literatos Meninos da Hora do Pindjiguiti28. Dessa forma, as composições poéticas e

musicais de denúncia contra a opressão, mas a favor da reafirmação cultural e que

conclamam o povo à luta em prol da reconstrução de uma nação mais justa, ganham

inúmeros adeptos que, até os dias atuais, compõem obras de teor de denúncia

contra as situações sociopolíticas do país.

Em grande parte dessas obras poéticas da Guiné-Bissau “predomina uma

crítica à má governança e à ambição pelo poder que levaram o povo a essa situação

extrema, sofrendo o desgosto pelas consequências desastrosas que caem sobre a

população” (AUGEL, 2007, p. 222). É o que se observa na terceira estrofe do poema

“Angústia da Guiné”, de Respício Nuno, datado de 1999, durante um conflito armado

no país: “os pés vão andar sem cabeça / [eles] procuram tirar [para si] / a flor do

arroz (a melhor parte) / as contas não estão certas (há desordem) / para o

desassossego da Guiné” (Ibidem, p. 223).

Um dos principais traços da literatura de resistência, durante o processo de

independência, é o fato de seus autores não se sentirem presos à estilística poética.

28

Como visto anteriormente, o "Massacre de Pindjiguiti" ocorreu em 3 de Agosto de 1959, durante a

greve dos trabalhadores do porto de Pindjiguiti em Bissau (Guiné-Bissau). Os estivadores e marinheiros reivindicavam um aumento salarial. O movimento foi violentamente reprimido pelas autoridades coloniais, registando-se cerca de 50 mortos e uma centena de feridos. Disponível em: http://guineaos.blogspot.com.br/2012/08/3-de-agosto-de-1959-massacre-de.html. Acesso em 12 de fev. de 2015.

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Sua preocupação maior focava a crítica e a denúncia contra a repressão, tanto das

políticas externas como das internas (CAMPATO, 2012; AUGEL, 2007). Esse olhar

quase que exclusivo para as questões militantes representou uma incompletude no

que se refere às demais abordagens cotidianas que a poesia tem a exteriorizar.

Dado ao fato de essa diversidade de temas ter ficado longe de concorrer ao mesmo

compasso que a temática das lutas de resistência, podemos afirmar, em

concordância com Semedo, que o “envolvimento militante do poeta inibiu o senso

crítico literário que emergia nos primeiros momentos do pós-independência e

permitiu-se que a produção cultural ficasse atrelada ao regime”.(2013, p. 77).

Desde o período das lutas de independência, gradualmente, os poetas

bissau-guineenses vão se afastando de traços fortemente ideológicos e

combatentes e se aproximando de um estilo mais artístico, “voltando mais para o

intimismo e o lirismo, além de problemas do dia a dia do guineense, como a miséria,

a fome [...] e questões familiares” (COUTO, 2008, p. 89). A partir da primeira década

de 2000, muitos jovens passaram a compor textos de forma mais inovadora,

introspectiva, explorando muito mais a exaltação à pátria, à cultura e à reafirmação

da identidade guineense, até então sufocadas pela opressão.

Nas obras de Rui Jorge Semedo, por exemplo, notamos uma constante

intervenção a favor de todos os bissau-guineenses, independentemente do gênero

ou da idade. No poema “Caros Poetas”, Semedo exige um compromisso maior dos

demais poetas em relação ao povo: “Poeta e poetisa da minha terra / A vocês dirijo o

esplendor da minha angústia / Fala-se muito do povo / E pouco, se faz por ele [...]

Acordem os que estão dormindo, consolem os oprimidos [...] Quero ver homens com

arado [...] Mulheres com a rede / Dançando em direção ao rio / Jovens com livro em

direção à escola / Crianças com aquele sorriso lindo [...]”. (CAMPATO, 2012, p. 240).

Vejamos um outro exemplo do que acabamos de afirmar acima. Semedo, no

poema “Somos irmãos”, vai além de suas fronteiras para abrir denúncias contra as

misérias não somente na Guiné-Bissau como também na terra de seus irmãos, o

Brasil. É interessante observar como o eu poético reconhece publicamente o grau de

consanguinidade entre os dois povos:

De século de dores / E de esperança.../Somos vossos irmãos/ Da outra margem do Atlântico/ Lá do Continente Negro/Onde apesar da pobreza e do sofrimento /As pessoas vivem ricas de alegria/E o orgulho de ser negro.../Vocês são nossos irmãos /Somos homens e

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filhos do mesmo sangue/Unidos pela língua da escravatura/ A portuguesa [...] (CAMPATO, 2012, p. 237).

Por um período significativo, a poesia guineense ficou muito atrelada ao

regime político em vigor. “Em tais ocasiões, a pretensa obra de arte cede lugar ao

puro e unívoco discurso político social [...]”. (Ibidem p. 34). Algo que Semedo aponta,

em tom crítico, ao afirmar que a UNAE29 “pecou por ignorar a necessidade de

distanciamento entre o poeta e o militante político, entre o canto e o discurso e, entre

a liberdade cultural e a ideologia partidária [...]”. (SEMEDO, 2013, p. 77). Contudo,

deve ser levado em conta que a literatura escrita da Guiné-Bissau é uma

manifestação bastante recente e que de muitas coisas não se há registros, pois, o

conhecimento e as tradições desse povo sempre foram passados oralmente de

geração a geração, nas mais diversas línguas.

Atualmente, são abundantes os temas explorados pelos poetas do país, pois

muitas são suas memórias, os patrimônios nacionais, a multiplicidade de

entrelaçamento histórico entre as etnias, a biodiversidade, as incertezas quanto ao

que esperar do futuro, os temores e os sonhos. Porém, toda essa expressividade

artística em potencial tem se esbarrado na dificuldade do acesso à leitura pela

maioria da população e, como já analisado, no pouco investimento na educação e

na divulgação dos trabalhos escritos no país, não somente em português, como

também nas línguas nativas de cada comunidade. Como já afirmara Paulo Freire:

“um país que tem dificuldades para formar professores já numa determinada língua,

imagine agora esse país tendo que formar professores em x línguas”. (2003, p. 177).

Esse investimento quase nulo na educação por parte do colonizador e a

tentativa de anulação cultural a qual foram submetidos os nativos de muitas colônias

na África foram investidas para aculturar os colonizados. Fazendo uso das palavras

de Semedo,

[...] a política colonial não permitia aos “ocupantes tradicionais”, que os colonos denominavam de “gentios”, o acesso à instrução, razão pela qual o primeiro liceu só começou a funcionar muito depois do fim da II Guerra-Mundial, mais precisamente nos finais da década de 50. Isso quer dizer que até antes desse período não se constituía ainda uma “elite escolarizada guineense” em condições de se refletir, debruçar e/ou de produzir obras literárias a partir de manifestações

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União Nacional de Artistas e Escritores, associação guineense criada nos adventos revolucionários da literatura.

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culturais resultantes da diversidade do produto existente no país. (2013, p.70-71).

Por um lado, foi através do uso de armas de fogo que os colonizadores

controlavam as terras (THIONG‟O, 1994, p. 9), mas por outro, foi pelo descaso por

políticas educacionais democráticas e pela imposição da língua portuguesa em

detrimento do uso das línguas nativas que as poucas crianças que frequentavam as

escolas deixaram de vivenciar sua cultura e identidade ou de se autoperceber de

maneira completa. Além disso, praticamente todas as línguas nativas eram ágrafas,

o que fortaleceu a imposição da língua portuguesa sobre as demais, num contexto

em que a escrita passou a garantir determinados privilégios. O processo do

colonialismo envolveu “[...] a destruição ou a desvalorização deliberada da cultura

das pessoas, de suas artes, danças, religiões, histórias, geografia, educação,

oratura e literatura [...]” 30. (Ibidem, p. 16).

Nos dias atuais, o problema da desilusão da população atual da Guiné-

Bissau, refletido na poesia, diz respeito aos problemas da política interna dos

gestores do país. Por questões de finanças e de administração pública, pouco se

tem investido na educação dos cidadãos, o que não garante o direito de muitas

crianças serem alfabetizadas em suas línguas maternas.

Raras são as publicações poéticas em línguas que não sejam o português

ou o crioulo, pois algumas das línguas mais faladas da Guiné-Bissau, como o

manjaco, o mancanha e o pepel ainda não passaram pelo processo de codificação

e, consequentemente, não fazem parte do currículo escolar. Naturalmente, dentro

deste quadro político-administrativo, línguas pouco faladas como o bayote, o

badyara e o nalu dificilmente passarão, algum dia, por esse processo de codificação,

pois estão muito próximas de seu desaparecimento, como o cassanga, considerada

língua desaparecida (COUTO; EMBALÓ, 2010, p. 31). Outros fatores como a

influência de línguas economicamente fortes como o francês, língua oficial do

Senegal, com quem os bissau-guineenses mantêm frequentes contatos comerciais

(op.cit. 2010, p. 30), também contribuem para o desaparecimento de algumas

línguas que dificilmente terão passado por algum registro fonético-fonológico.

30

Tradução nossa. No original: “[…] the destruction or the deliberate undervaluing of a people's culture, their art, dances, religions, history, geography, education, orature and literature […]”(THIONG‟O, 1994).

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Atualmente, já se pode notar na literatura bissau-guineense uma mudança

bastante significativa na opção da língua em que se expressa a literatura. Muitas

obras dos escritores encontram-se em edições bilíngues, seja por meio de línguas

mescladas no mesmo poema (a língua portuguesa e as línguas nativas ou crioula),

principalmente porque nem sempre há um termo correspondente na língua

portuguesa para exprimir as especificidades da cultura africana, seja por meio de

edições em que os poemas em português também se encontram traduzidos em

crioulo. De uma maneira ou de outra, essa presença de termos em crioulo ou em

outras línguas nativas certamente ocorre por uma questão de reafirmação cultural. É

o que podemos constatar na primeira estrofe do poema “Urok” de Rui Jorge Semedo

(2013, p. 20):

Ninho de cultura Protegido no cacinque de cabonghá Na garandesa de cadjona No ritmo de pis berga de cabaró Ao som de kunderé de kampuni

Temos aqui a revalorização da cultura da Guiné-Bissau, a qual os poetas

tanto conclamam o povo para fazer parte. É uma volta a si mesmo. Ao (re)ativar o

uso das línguas nativas na literatura, cada leitor do chão bissau-guineense passa a

ver a sua cultura mais vivificada em si. Dessa forma, o poeta desperta seu povo a

trazer seu olhar de volta a sua cultura de origem, principalmente pela inserção nos

poemas de vocábulos que estrategicamente despertam fortemente a memória

coletiva.

Em vista do estudo até então analisado e do que ainda veremos, realmente

não é de nos surpreender que boa parte das obras poéticas da Guiné-Bissau

demonstre “a frustração dos sonhos não realizados pela independência política”.

(CAMPATO, 2012, p. 33).

Para compreendermos melhor a questão dos poemas de denúncia na

literatura atual, faz-se necessário afunilarmos este estudo nos trabalhos de um poeta

específico. Ser-nos-á, de grande proveito e riqueza analisar as obras literárias do

poeta bissau-guineense Rui Jorge Semedo que, além de fazer uso de poemas que

denunciam a corrupção interna da Guiné-Bissau, apresenta em alguns de seus

trabalhos uma vasta interdiscursividade com a História do povo brasileiro, como já

citado.

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O corpus de trabalho desta dissertação será seu poema “Guinendade”,

extraído da obra Sem Intenção, publicado na Guiné-Bissau em 2013, pela Edições

Corubal. Contudo, antes de aprofundarmo-nos no corpus, faremos breves análises

de alguns outros trabalhos seus. Isso ajudar-nos-á a compreender um pouco mais

sobre seu estilo literário.

Passemos à analise das estratégias e recursos poéticos dos quais Semedo

faz uso para trazer à memória de seu povo a relevância da afirmação da

nacionalidade, nutrindo o sentimento de pertencimento entre as mais diversas etnias

bissau-guineenses, sempre nos lembrando de que:

Com pouco mais de três décadas de existência, a Guiné-Bissau não é homogênea, nem seu passado oferece uma base que possa fazer germinar sentimentos de unidade, pertença e lealdade – nem para com o Estado [...] nem em relação à coletividade [...] (AUGEL, 2007, p. 266).

De maneira bastante livre, Rui Jorge Semedo estabelece uma boa

articulação entre seus ideais sócio-culturais e a riqueza estética do poema

“Preferência” (SEMEDO, 2013, p. 16). A criação obteve sucesso ao trazer à tona

esperanças de cicatrização para as feridas de um passado opressor. Fazendo uso

mínimo de palavras, expressou-se com plenitude:

Prefiro rir a chorar perdoar a odiar partilhar a escamotear Prefiro falar das crianças da minha terra [...] Enquanto isso... Falarei do sol que brilha [...]

É útil reparar, nos versos acima, como o eu poético não se limita nem se

enclausura em uma atmosfera derrotista, sombria ou de sofrimento. Menciona o

choro, o ódio, a escamoteação, mas apresenta ao seu povo o caminho para a

reconstrução nacional, ou seja, a opção pelo riso, pelo perdão e pela partilha. Essas

palavras de otimismo nos remetem às palavras de Amílcar Cabral, que buscava

alimentar seu povo com esperanças por um futuro melhor:

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[...] jurei a mim mesmo que tenho que dar a minha vida, toda a minha energia, toda a minha coragem, toda a capacidade que posso ter como homem, até ao dia em que morrer, ao serviço do meu povo, na Guiné e Cabo Verde. Ao serviço da causa da humanidade, para dar a minha contribuição, na medida do possível, para a vida do homem se tornar melhor no mundo. Este é que é o meu trabalho. (CABRAL, 1969).

Ainda sob a égide da luta pela reafirmação identitária, pelas metáforas

presentes em “Vassoura”, também de Semedo (2013, p. 37), a expressividade do

poema torna-se mais incisiva e procura tirar as escamas dos olhos de cada cidadão,

ao apontar-lhes o caráter dos administradores corruptos da Guiné-Bissau:

Preciso de uma vassoura / para varrer, / detesto o lixo / não suporto o ódio / a corrupção cheira-me mal / a traição tira-me o sono / a violência impacienta-me / preciso de uma vassoura para varrer, / sanguessugas, / baratas, / cobras, / parasitas, / lobos, / que nojo me causam… (SEMEDO, 2013, p. 37).

Embora a conotação esteja ricamente explorada no poema acima, é válido

observar que, não são raros os poemas de denúncia de Semedo em que os

vocábulos sejam predominantemente denotativos, representando o sentido real do

que é escrito (CAMPATO, 2012). A força da denotação no poema transcrito a seguir

faz com que cada cidadão reconheça e visualize os reais problemas sociais em que

estão inseridos. Vejamos um exemplo da relevância e da força da denotação na

poesia de combate “Minha Terra”, de Semedo (2013, p. 40):

Fica situada no continente das guerras Faz fronteira a norte com instabilidades A sul com divisões étnico-religiosas A leste e a oeste é banhado por miséria e desespero. As principais atividades económicas são: ser ministro, traficar drogas, revoltas militares, corrupção, peculato e desvio de bens públicos. O modelo político é a golpecracia Os políticos se vendem por cargos Os juízes por carros de luxo Os deputados por dinheiro Enquanto militares mandam e matam. A língua oficial é a mentira Mas, a socialmente mais falada é a bajulação

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A moeda nacional é o suborno Nossa bandeira nacional é salário atrasado A população, cerca de 1.700.000 bananas E o nosso presidente é uma Adrem31.

A denotação das palavras do poema transcrito reforça o caráter de denúncia

da poesia atual na Guiné-Bissau. Notamos, dessa forma, que a literatura nem

sempre expressa a “arte pela arte” (CAMPATO, 2012, p. 31), apresentando obras

literárias autônomas. A literatura de denúncia apresenta, muitas vezes, obras

compromissadas, sem aquele “dissídio extremo com a sociedade”. (op.cit, p. 31).

A razão de a poesia de combate despojar-se de boa parte de sua autonomia

estética deve-se ao fato de estar fortemente vinculada a contextos políticos, militares

e sociais contra os quais abre denúncia. Por esta razão, no poema “Minha Terra” o

eu poético surpreende o seu leitor ao desprender-se totalmente da descrição da

natureza, para descrever as atividades ilícitas de sua terra. É o contrário do que

espera o leitor, num primeiro momento, quando lê o título “Minha terra”,

principalmente, o leitor brasileiro, quando está familiarizado com o estilo saudosista

e nacionalista da “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, em que o primeiro verso se

inicia com as mesmas palavras, “Minha terra...”.

Apesar do fato de a Guiné-Bissau ter conquistado uma honrosa vitória pela

Independência em 1973, ainda no início do século XXI muitos poetas têm a plena

consciência de que seus concidadãos encontram-se ainda “escravizados” ou até

mesmo reféns da corrupção interna, o que os situa numa “Fase de Desilusão”

(COUTO; EMBALÓ, 2010, p. 73). É um regresso que novamente os deixa na

contramão, pois a fase ideal seria aquela que elucida Frantz Fanon: “A jovem nação

independente evolui durante os primeiros anos numa atmosfera de campo de

batalha. [...] O programa consiste não somente em sair do atraso, mas em alcançar

as outras nações [...]”. (1979, p. 75-76).

Semedo escreveu seu protesto contra a tentativa de seus próprios

governantes de ofuscar a História e desrespeitar a dignidade de seu povo. Seu livro

de poesia intitulado Retrato (2007) fala “da inquietação do mundo que cada vez

desumaniza o valor da vida e da minha Guiné-Bissau que por conta da corrupção

31

Segundo o autor, o termo “Adrem”, para ser compreendido, deve ser lido de trás para frente.

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desenfreada deixou de cuidar de suas crianças, jovens e adultos” (COUTO;

EMBALÓ, 2010, p. 107).

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Capítulo 3

GUINENDADE: A SOCIEDADE RETRATADA NA POESIA

O corpus principal e fio condutor do presente estudo, o poema de Rui Jorge

Semedo, “Guinendade”32, abarca os estudos de lusofonia que, por seus aspectos

culturais e identitários do mundo pós-moderno, podem ser um ponto de partida para

os estudos de cultura e identidade em sala de aula. Como veremos, esse texto

desperta a memória coletiva das mais diversas etnias e das diferentes gerações

bissau-guineenses, visto que o eu poético está “buscando ser nação, buscando uma

identidade amalgamadora para cimentar definitivamente as muitas pedras do seu

mosaico étnico [...]”. (AUGEL, 2007, p. 266).

Vejamos a seguinte composição.

Guinendade Sou tudo e muito mais… o pedaço desta terra, a língua destas etnias, o rio deste chão, o sentimento deste povo… Sim sou… sou gente da minha terra manjaco33, fula, balanta, mandinga, papel mancanha, felupe, bijagó beafada, nalu, sou burmedju e sou desta terra… Sou o djambadon34 que rompe o clarear da madrugada,

32 Assim como o Dicionário Eletrônico Houaiss define o termo brasilidade como “sentimento de

afinidade ou de amor pelo Brasil” (HOUAISS, 2009), podemos interpretar os termos guinendade (usada em Guiné-Bissau) ou guineidade como um sentimento de afinidade e amor pela Guiné-Bissau.

33 Manjaco, Fula, Balanta, Mandinga, Papel, Mancanha, Felupe, Bijagó, Beafada, Nalu: nome dos

diversos grupos étnicos da Guiné-Bissau, sendo os Balanta os mais numerosos (AUGEL, 2007, p. 77). Burmedju: Na Guiné-Bissau, nome dado aos cabo-verdianos, “chamados de burmedjos, vermelhos, mestiços.” (op. cit., p. 61).

34 djambadon: ritmo musical da etnia Mandinga, tocado com instrumentos de percussão, comum em

casamentos e em batismos. Disponível em: < http://www.dansdojon.nu/wordpress/wp-content/uploads/2013/02/126+Rhythmen+ West+African+Percussion.pdf>. Acesso em: dez. 2015.

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o presságio do kusunde 35que anuncia o começo de um novo dia a força do gumbe 36que aglutina sentimentos, o entoar do broksa 37que embala os passos o rapicar de tina que nina corações…

Sou do campo, e da cidade, sou lavrador, sou professor… Sou deficiente, sou adulto, sou jovem, sou criança, sou mulher, sou homem, sou cidadão, sou honesto…

Nasci em Cacheu dos descobrimentos, me criei em Bolama capital estudei em Quinará libertada morei em Gabú das colinas casei em Oio da pacificação trabalhei em Biombo resistente meu filho nasceu em Bafatá de setembro conheci minha esposa em Tombali do congresso brinquei em Bissau do Pindjiguiti E…

Sim sou com todas as letras…. de A a Z sou guineense a exaltar minha guinendadi e tu criminoso? Tu mesmo! Sim! tu que ainda desconheces a m`pária da identidade. és o quê afinal? um separatista perdido.

(SEMEDO, 2013, pp. 29-31)

35 kusunde: espécie de alaúde feito de cabaça, tocado pelos músicos da etnia Balanta; ritmo musical

com o uso desse instrumento. Disponível em: http://worldlyrise.blogspot.com.br/2015/01/guinea-bissau-music-and-dance.html. Acesso em: dez. 2015.

36 gumbe: gênero musical que nasceu da junção de alguns ritmos da Guiné-Bissau. Disponível em: <

https://coracaoafricano2532014.wordpress.com/2015/01/27/a-musicalidade-em-guine-bissau-com-o-gumbe/>. Acesso em 18 fev. 2015.

37

Broksa: estilo musical do povo Balanta.

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Antes de fazermos uma análise da temática de cada estrofe, consideramos

importante analisarmos primeiramente o poema como um todo.

Neste estudo, aprofundar-nos-emos mais nos aspectos culturais do que nas

análises do discurso, principalmente porque o objetivo aqui é suprir os estudos de

Língua Portuguesa e literatura em sala de aula com aspectos culturais e históricos

da África, em conformidade com o estabelecido por lei, como já mencionado na

introdução deste trabalho.

Passada a fase dos poemas de combate, escritos no período das lutas de

resistência, “Guinendade”, publicado em 2013, volta-se mais para o estilo de

denúncia, pois busca despertar a consciência do leitor para os problemas das

questões políticas da própria administração interna da Guiné-Bissau. Conforme

afirma o ganês Kwame A. Appiah, “o que ocorreu em grande parte da África deveu-

se ao fato de que o Estado que surge após a independência tenha passado a

apresentar os mesmos vícios e vivenciar as mesmas conjunturas do Estado colonial”

(APPIAH, 1997, p. 230 apud AUGEL, 2007, p. 149).

O poema “Guinendade” parte de um plano geral, falando das terras, línguas e

etnias e passa para um enquadramento mais específico, sendo até mesmo subjetivo

ao tratar de questões de foro íntimo (3ª estrofe) para, finalmente, voltar a tratar de

temas da coletividade e questões exteriores ligadas à política. É um poema que

segue um percurso cíclico, que se inicia voltado à união das etnias, faz seus

meandros por questões de memórias e sentimentos coletivos e, finalmente, volta o

olhar para o social e a união, combatendo o separatismo.

O uso de versos livres e a ausência de uniformidade no número de versos de

cada estrofe mostram que “à literatura do país aparentam desagradar as formas

poemáticas fixas”. (CAMPATO, 2012, p. 50). Em cada estrofe o eu poético

apresenta um cenário multifacetado, com riqueza temática, mas que sempre se

direciona ao tema da unidade entre as etnias.

Diferentemente de muitas obras poéticas do período de independência ou

pós-independência, a poesia bissau-guineense atual inclina-se mais para a “égide

da introspecção”. (op. cit., p. 38). Dessa forma, o poema em questão, embora com

teor de forte denúncia, principalmente na última estrofe em que o separatismo é

combatido, não exclui por completo o estilo lírico-amoroso. O eu poético deixa

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transparecer apaixonadamente seu amor pelo povo, pelas línguas, pelo lavrador,

pela mulher, pelo professor, pela criança etc.

Apesar de o poema “Guinendade” encontrar-se em uma obra antológica

bilíngue, com alguns poemas em crioulo, outros em português e também poemas

com a presença de ambas as línguas, não encontramos, na obra Sem Intenção, o

poema em estudo escrito todo em crioulo, embora apresente em línguas nacionais

vocábulos intraduzíveis para o português, como kusunde, mancanha, djambadon,

entre outros.

É bastante provável que essa preferência do poeta por escrever em

português o que poderia ter sido escrito também em crioulo deva-se à mesma

problemática levantada por Maria Odete Semedo em “Em que língua escrever”: “[...]

Ou terei que falar / Nesta língua lusa / E eu sem arte nem musa / Mas assim terei

palavras para deixar / Aos herdeiros do nosso século [...]”. (CAMPATO, 2012, p.

196-197). Como analisaremos mais adiante, a língua portuguesa mostra-se

fundamental para inserir a Guiné-Bissau no mundo científico e econômico e para

garantir que sua história chegue às futuras gerações daqueles que se encontram na

diáspora. Isso, provavelmente, explique as preferências, embora cada vez mais

raras, por composições em língua portuguesa.

Basicamente, “Guinendade”, em que o eu poético afirma que é “tudo e muito

mais” (estrofe 1, verso 1), mostra-se um poema que vem ao encontro do que Stuart

Hall discute em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade: “O sujeito,

previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando

fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades [...]”. (2006, p.

12).

Passemos, então, para a análise mais aprofundada de cada estrofe e de cada

tema nela discutido.

3.1 A Guinendade e o valor da terra e das línguas

Sou tudo e muito mais… o pedaço desta terra, a língua destas etnias, o rio deste chão,

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o sentimento deste povo…

Nessa primeira estrofe o eu poético mostra-se bastante incisivo quanto ao

anseio de romper as barreiras étnico-geográficas dentro de uma nação fragmentada.

Ele não se limita nem se encerra numa mesquinha pequenez cultural que abarcaria

alguns poucos grupos étnicos. Ao contrário, seu primeiro posicionamento é o de se

identificar com todos, como parte de “[...] tudo e muito mais...” (verso 1),

representando e sendo representado por todas as etnias do seu chão. Ele busca

estreitar os laços que ligam os múltiplos grupos étnicos presentes na Guiné-Bissau.

Para um nítido estudo e boa compreensão da vastidão dessas etnias, nunca

devemos nos limitar às fronteiras geográficas desenhadas e estabelecidas pelas ex-

colônias européias, pois a grande maioria desses grupos tem suas origens nas mais

diversas e remotas terras da África. A dilaceração das terras africanas, assegurada

pela Conferência de Berlim38, nunca levou em consideração as localizações das

famílias e comunidades africanas, o que as reposicionou desrespeitosamente em

diferentes territórios. É importante lembrarmos que:

De fato, a população dos países guineenses impressiona, primeiramente, pelo desmembramento em numerosas etnias. [...] Esta multiplicidade de grupos humanos explica as numerosas diferenças linguísticas que afetam a paisagem cultural [...] Às vezes, as variantes dialetais multiplicam-se numa mesma língua, limitando, de forma estranha, a intercompreensão linguística no interior de uma mesma etnia (cf. WONDJI, 2010, pp. 437-438).

Ao afirmar ser “[...] muito mais...” (verso 2), o eu poético passa a discorrer

sobre os aspectos geográficos, linguísticos e sentimentais de seu povo, um resgate

coletivo, um acervo cultural que abastece sua memória (versos de 2 a 5). Urge

ressaltar que esses aspectos por ele inicialmente citados (terra, língua, etnia e

sentimento) compõem os principais pilares que sustentam a cultura, a identidade e a

memória coletiva de um povo (HALL, 2006).

De suma importância para o povo bissau-guineense é a terra de onde se

extrai a principal fonte econômica do país. As comunidades que vivem mais no

38 A Conferência de Berlim realizou-se na Alemanha em 1884 e 1885, com o intuito de organizar a

corrida pela partilha de terras africanas entre os países europeus. Nessa conferência, a África foi tratada como “terra nullius” (cf. AJAYI, 2010, p. 929), e os interesses dos povos africanos foram completamente ignorados.

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interior da Guiné-Bissau, como os Fula39 e os Mandinga, muito provavelmente

devido à tradição dos ancestrais muçulmanos, dedicam-se mais ao comércio de

artesanatos e tecelagem. Nas comunidades costeiras, vemos a agricultura de

subsistência, os Balanta trabalham nas preciosas bolanhas, terras de plantação de

arroz, naturalmente irrigadas por rios, ao passo que outros se dedicam à criação de

gado (AUGEL, 2007, p. 77).

Destacam-se ainda a produção do óleo de palma40 (Elaeis guineensis),

proveniente da seiva da palmeira, da qual se produz o vinho de palma, servido em

celebrações como casamento ou nascimento, e a plantação de caju (op. cit., 2007).

É de grande valia ressaltar que o óleo de palma da Guiné-Bissau é exportado tanto

para países vizinhos como para outros continentes, para usos industriais e

cosméticos, como é o caso da indústria de origem norte-americana Colgate-

Palmolive, cujos produtos derivavam principalmente dos “óleos de palma e de

oliva”41. (MENDY; LOBBAN, 2013, p. 295), dando origem a seu nome.

Tendo ciência do sustento proveniente da riqueza de seu chão, é

compreensível a importância dada pelos poetas à luta pela defesa de seus solos

férteis que engrenam sua economia e mantêm a sobrevivência de suas múltiplas

comunidades e, consequentemente, de todo seu legado histórico-cultural.

Quanto à questão linguística, segundo as palavras de Dalby, “embora tenha

uma densidade populacional inferior à do mundo tomado como um todo, a África

possui um grau de complexidade linguística mais elevado do que qualquer outro

continente”. (2010, p. 337). Naturalmente, a Guiné-Bissau não foge à regra. Devido

à sua grande variedade de etnias e línguas, é necessário que haja uma língua

veicular para que todos seus cidadãos estabeleçam uma intercomunicação efetiva

nas mais diversas áreas sociais.

Rememoradas pelo eu poético (estrofe 2), as etnias Manjaco, Fula, Balanta,

Beafada, embora distintas entre si, tiveram a ratificação de que suas línguas

partilham uma origem comum. Estudiosos como David Sapir, confirmaram em

39

À semelhança da obra de Augel (2007), a grafia dos etnônimos da Guiné-Bissau seguirão, neste

trabalho, a convenção estabelecida na 1ª Reunião Brasileira de Antropologia, no Rio de Janeiro, em novembro de 1953, onde foi determinado que “os substantivos e adjetivos são invariáveis e grafam-se, no caso dos primeiros, com inicial maiúscula” (HOUAISS, 2009) 40

No Brasil, esse óleo é popularmente conhecido como azeite de dendê, que é o óleo extraído do

fruto do dendezeiro (Elaeis guineensis), “Palmeira africana aclimatada no Brasil” (LOPES, 2004, p. 232). 41

Tradução nossa. No original: “palm and olive oils”.

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estudos recentes que essas línguas são pertencentes a um mesmo ramo linguístico,

ou seja, ao “ramo norte” (GREENBERG, 2010, p. 331). Quando o eu poético declara

ser “o sentimento deste povo...” (estrofe 1, verso 5) e não “destes povos”, torna-se

evidente sua sabedoria em visualizar todas as comunidades de seu país como um

povo único. São nações com um passado histórico em comum, algo confirmado pela

proximidade entre as línguas de grupos étnicos considerados distintos. “É preciso

ressaltar que muitas variedades linguísticas tidas como „línguas‟ diferentes não

passam de „nomes‟ diferentes para dialetos de uma mesma língua”. (COUTO;

EMBALÓ, 2010, p. 31).

Porém, mesmo que os estudiosos venham a classificar muitas outras línguas

da Guiné-Bissau como não pertencentes a um mesmo ramo, como é o caso do

bidjago, que David Sapir propôs que fosse classificada em um ramo separado da

classe dos ramos norte e sul (GREENBERG, 2010, p. 331), as comunidades bissau-

guineenses sempre deverão se reconhecer com unicidade, para que, em conjunto,

concretizem a meta da reconstrução do país.

Correspondendo a essa necessidade, a língua crioula desempenha o papel

de língua veicular, solidifica o sentimento de pertença nacional e “constitui sem

dúvida um elemento aglutinador e de identificação” (AUGEL, 2007, P. 279). É

importante lembrar que a língua crioula surge como resultado do contato da língua

do colonizador europeu com a dos povos nativos e constitui-se de uma mescla do

vocabulário europeu com a base e estruturas gramaticais de línguas africanas

(op.cit., p.83). É uma língua autônoma, já desenvolvida e solidificada, falada pela

maioria da população da Guiné-Bissau e oriunda do provisório pidgin42. (LOPES,

2004). Como afirma Campato:

Sendo, por essência, língua oral, há algum tempo o crioulo está ganhando espaço como língua escrita, embora não tenha ele ainda norma ortográfica unificada. Essa evolução resultou no fato de que existem algumas escolas, ainda que poucas, nas quais a alfabetização é realizada em crioulo (2012, p. 29).

Em consonância com o trecho acima, Couto também afirma que o crioulo:

42

“O encontro de dois grupos linguisticamente diferenciados acarreta a necessidade de encontrar um meio de comunicação que não raro se traduz numa língua franca, provisória, de emergência, chamada pidgin. (LOPES, 2004, p. 215).

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é um pidgin que passou a ser a língua principal de uma comunidade. Se o pidgin só servia para uma comunicação precária, o crioulo serve para todas as necessidades expressivas e comunicacionais de seus usuários. [...] as línguas crioulas são interessantes não por serem "exóticas" ou "anormais", uma vez que são línguas naturais como as demais, mas devido ao processo de sua formação (cf. VOGT, 2011).

No período colonial, o crioulo foi considerado uma língua de pessoas não-

civilizadas, a ponto de ser reprimida. No contexto africano de opressão colonial, não

era incomum que crianças fossem forçadas a abandonar o uso das línguas nativas

que haviam aprendido com seus pais. Dessa forma, uma vasta riqueza da literarura

e oralitura (literatura oral) de muitos países africanos foi perdida ao longo da

História. O escritor queniano Ngugi Wa Thing‟o, em seu livro Decolonising the Mind

(1994, p. 11), declara-nos que:

A língua dos meus estudos não era mais a língua da minha cultura. [...] Assim, uma das experiências mais humilhantes era a de ser flagrado falando em Gykuyu nos arredores da escola. Ao infrator era dado castigo físico – de três a cinco chibatadas nas nádegas nuas – ou teria que carregar uma placa de metal em volta do pescoço com inscrições do tipo: EU SOU UM ESTÚPIDO ou EU SOU UM JUMENTO. Às vezes os infratores tinham que pagar uma multa que eles mal poderiam custear43.

Em paralelo com o relato acima, Frantz Fanon44, em sua obra Os

condenados da Terra, salientou que “[...] nas colônias, o indígena sempre soube que

não havia nada a esperar do outro lado. O trabalho do colono é tornar impossíveis

até os sonhos de liberdade do colonizado”. (1979, p. 73).

Durante o período de colonização não houve nenhuma preocupação, por

parte do colonizador português, em preservar as línguas étnicas dos países que

estavam sob seu domínio nem de alfabetizar em língua portuguesa. “As autoridades

imperiais de Lisboa insistiam na supremacia e primazia do Português, em nítido

43

Tradução nossa. No original: The language of my education was no longer the language of my

culture. […] Thus one of the most humiliating experiences was to be caught speaking Gikuyu in the vicinity of the school. The culprit was given, corporal punishment - three to five strokes of the cane on bare buttocks - or was made to carry a metal plate around the neck with inscriptions such as I AM STUPID or I AM A DONKEY. Sometimes the culprits were fined money they could hardly afford.

44

Psiquiatra e ensaísta, nascido na Martinica, lutou na Segunda Guerra Mundial e graduou-se em psiquiatria na França. Suas obras de destaque são Os condenados da terra (1961) e Pele negra, máscaras brancas (1952). Veio a falecer em 1961 nos Estados Unidos.

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contraste com o que predominou nas colônias britânicas, onde jornais em línguas

indígenas não eram raros45”. (MENDY, 2013 p. 257).

Porém, com as lutas de independência, o crioulo adquiriu um status de

prestígio no país (AUGEL, 2007, p. 83) e, embora em documentos oficiais seja

utilizada a língua portuguesa, por questão de acordos e negociações internacionais,

os fóruns nacionais, debates e deliberações são feitos em língua crioula.

Tem havido a tentativa de se alfabetizar as crianças em língua crioula, mas

tais esforços não abrangeram amplamente grande parte das comunidades, devido

aos parcos investimentos para a formação de professores, para a impressão de

materiais didáticos e para a regulamentação da escrita crioula (EMBALÓ, 2008, p.

103).

Em sua obra sobre a alfabetização em crioulo na Guiné-Bissau, A África

ensinando a gente, Paulo Freire e Eduardo Guimarães já afirmavam que:

[...] a questão que se coloca no caso da Guiné, não é tanto mais a de

pretender alfabetizar as grandes massas populares em português,

mas, pelo contrário, de disciplinar escritamente a língua crioula, ao

mesmo tempo que enfatizando, respeitando e desenvolvendo as

demais línguas nacionais [...] (2003, p. 39).

Paulo Freire demonstrava sua preocupação com a memorização mecânica

em detrimento de um processo de alfabetização eficiente, e preocupava-se,

também, com o distanciamento entre os intelectuais e as massas populares da

Guiné-Bissau. Assim, ele frisou a “reconversão”, ou seja, a transformação das

mentalidades. Em uma de suas cartas, presente na obra Cartas à Guiné-Bissau,

destinadas ao Comissário da Educação Mário Cabral, Paulo Freire explicita a

importância da proximidade e humildade que os intelectuais, responsáveis pela

alfabetização em massa, deveriam ter em relação ao povo. Vejamos um trecho

dessa carta, enviada em setembro de 1975:

Sem esta “reconversão” a tendência do alfabetizador é alfabetizar os alfabetizandos, é transmitir-lhes “seus” conhecimentos, sua visão

45

Tradução nossa. No original: [...] the imperial authorities in Lisbon insisted on the supremacy and primacy of Portuguese, in sharp contrast to what prevailed in the British colonies, where newspapers in the indigenous languages were not uncommon […] (tradução nossa).

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urbanamente deformada. A alfabetização deixa de ser um ato criador e se “burocratiza” na repetição mecânica dos ba-be-bi-bo-bu. [...] dessa forma, se arvora em educador do povo sem aceitar ser educando do povo (1984, p. 100).

Ao escrever “a língua destas etnias,” (estrofe 1, verso 3), é muito provável

que o eu poético refira-se à língua crioula, pelo fato de vincular uma língua (no

singular) às etnias (no plural), não com uma visão de imposição de uma língua sobre

as demais, mas no sentido de ser, de acordo com o contexto social do país, uma

língua que vai além das diferenças étnicas e estabelece a comunicação entre a

grande maioria da população. “O crioulo, proibido durante o tempo colonial,

resgatado pelos revolucionários [...] nunca mais perdeu seu prestígio e se tem

afirmado cada vez mais”. (AUGEL, 2007, p. 289).

Sentimo-nos brasileiros porque compartilhamos um espaço geográfico em

comum e principalmente porque comunicamo-nos uns com os outros tendo uma

língua em comum. Embora partilhar uma mesma língua não seja o único fator

determinante para o sentimento de pertença, se considerarmos o conceito língua e

cultura, a língua passa a ser “um sistema social e não um sistema individual [...].

Falar uma língua significa também ativar a imensa gama de significados que já estão

embutidos em nossa língua e em nossos sistemas culturais”. (HALL, 2006, p. 40).

No tempo presente, somente a língua crioula pode fluir de uma comunidade

a outra, levando consigo os ideais para se reescrever uma nova história, visto que a

língua oficial, que é o português, limita-se a Bissau, centro econômico, e é dominado

por pouco mais de 10% da população de todo o país (COUTO; EMBALÓ, 2010, p.

30). “Como a língua portuguesa é só utilizada na escrita (livros, jornais,

comunicações oficiais), acabou por não criar raízes no país e a intercomunicação

entre os vários grupos se faz em crioulo”. (CANIATO, 2002, p. 133).

Para algumas pessoas da Guiné-Bissau, o status da língua portuguesa

como língua oficial do país é visto como uma imposição neocolonialista (CAMPATO,

2012, p. 30), a língua do colonizador em detrimento das línguas nativas e do crioulo,

pois a maioria dos documentos oficiais está escrita em português. Na literatura, é

expressivo o número de artistas que compõem cada vez mais em crioulo, pois

sabem que:

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recolhidos, analisados, recontextualizados e transmitidos pela escrita, assim como pela imagem e pelo som, [...] os conhecimentos ancestrais dos africanos permitirão as gerações futuras voltarem as suas fontes e manterem os indispensáveis laços íntimos com o seu passado (MAZRUI, 2010, p. 662).

A língua portuguesa, imposta pelo colonizador, nem sempre se mostra

capaz de ir ao âmago das questões e reflexões sócio-culturais das diversas

comunidades da Guiné-Bissau a ponto de retratar toda sua expressividade artística,

histórica e cultural através de canções, contos e provérbios, seja pela escrita ou pela

própria oralidade. Lembremo-nos de que “os modelos sociais e culturais refletem-se

nas estruturas das línguas”. (MALMBERG, 1976, p. 22). A estrutura linguística do

crioulo está muito mais próxima da tradição da oralidade das mais diversas línguas

do povo da Guiné-Bissau do que o português, que reflete em sua estrutura toda uma

realidade social, científica e religiosa do mundo europeu. Como já afirmava Sérgio

Guimarães46 em contextos de alfabetização das comunidades da Guiné-Bissau: “a

língua portuguesa não corresponde à realidade cotidiana do aluno.” (cf. FREIRE,

2003, p. 174). Nesse mesmo viés, Semedo47 nos afirma que:

Sobre o ensino do português, ainda há muita dificuldade visto que não é a língua materna dos guineenses e o seu uso nas salas de aulas acaba atrapalhando a assimilação do conteúdo por parte do aluno. Obviamente, aprender em sua língua materna é sempre mais acessível em termos pedagógicos do que recorrer a uma língua que embora é oficial no nosso país, vimo-la como estrangeira. A adoção do Crioulo no sistema de ensino pode contribuir para o bom desempenho dos alunos na sala de aula.

Quanto ao fato de o português estar estabelecido como a primeira língua de

ensino na escola, Augel questiona se “o êxodo escolar e o mau desempenho de

uma grande parte dos alunos podem ter aí a sua origem”. (2007, p. 88).

Contudo, por mais paradoxal que pareça ser, é o português, a língua da

independência, que pode garantir o espaço da Guiné-Bissau no mundo das relações

internacionais. E os registros de seus poetas terão muito mais possibilidade de

alcançar as futuras gerações dos bissau-guineenses que se encontram na diáspora

se forem escritos em português.

46

Professor brasileiro, linguista e pedagogo que atuou ao lado de Paulo Freire no processo de alfabetização da Guiné-Bissau após sua independência. 47 Relato fornecido, a esta pesquisadora, pelo poeta bissau-guineense, Rui Jorge Semedo, via correio

eletrônico, em 04 de novembro de 2014.

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A língua portuguesa foi amplamente usada pelos revolucionários durante as

lutas pela independência nos anos 1970. Foi estrategicamente escolhida, para que

se pudesse evitar o favoritismo em relação à escolha de uma língua autóctone ao

invés de outra, atuou como uma língua neutra, um “elo de ligação” (COUTO;

EMBALÓ, 2010, p. 47), a ponto de o principal revolucionário da independência da

Guiné-Bissau, Amílcar Cabral, afirmar que:

O português (língua) é uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram, porque a língua não é prova de nada mais senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros, é um instrumento, um meio para falar, para exprimir as realidades da vida e do mundo (CABRAL, 1976 apud CANIATO, 2002, p. 134).

Hoje, o português tem garantido a alguns jovens a oportunidade de

prosseguirem seus estudos em Portugal e no Brasil. Há casos em que eles, pelo

conhecimento da língua, vivem um período em Portugal, mas não permanecem ali.

Com o aprendizado de uma nova língua partem para a Espanha ou França, visando

o ingresso nas universidades desses países. As pesquisas e entrevistas mais

aprofundadas em que Machado baseou seu estudo figuram que “[...] alguns tinham o

projecto inicial de usar Portugal apenas como ponto de passagem [...]”. (MACHADO,

1998, p. 15).

Fica evidente, assim, a relevância do conhecimento da língua portuguesa

para o crescimento intelectual e profissional desses jovens que, na Guiné-Bissau, a

duras penas, encontrariam um posto de trabalho que se igualaria às oportunidades

que encontrarão ao concluir seus estudos no exterior. É o exemplo do que vemos

abaixo, no caso do jovem Naloan Coutinho Sampa, que tem se destacado em seus

estudos no Brasil devido também ao seu conhecimento da língua portuguesa.

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Natural da Guiné-Bissau, considerado o melhor aluno. Fonte:http://conosaba.blogspot.com.br/2014/08/naloan-coutinho-sampa-natural-da- guine.html

Quanto aos que não são contemplados por bolsas de estudo nem encontram

a oportunidade de saírem do país, muitas vezes dão “por terminado o trajecto

escolar, o que, na maioria dos casos, não corresponde aos projectos pessoais”. (op.

cit., 1998, p. 14).

Diante de todo esse contexto e do empenho da população em educar as

gerações mais novas, faz-se mais do que necessário que o governo da Guiné-

Bissau encontre urgentemente soluções para a instabilidade política e econômica, a

fim de que postos de trabalho das médias e grandes indústrias possam ingressar no

país. Pois o que temos visto são jovens que se preparam, mas dão seus frutos em

outras nações ou que, em caso de permanência no país natal, têm muitos de seus

sonhos frustrados. A língua portuguesa, ao lado do crioulo e das demais línguas

étnicas, tem que refletir no crescimento do país, não no crescimento da diáspora.

É importante observar as transformações do papel da língua portuguesa nas

ex-colônias de Portugal ao longo dos anos. De língua limitada inicialmente a trocas

comerciais e explorações de recursos no período de colonização, passou a ser a

língua da luta e da declaração da independência dessas ex-colônias, principalmente

nos anos de 1960 e 1970. Atualmente é uma ferramenta para que aqueles que a

dominam partam para outros horizontes em busca de condições mais dignas de

vida.

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A língua portuguesa detém também o status de língua de relações e

aproximações identitárias dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa

(PALOP) e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). A CPLP trata

das questões da lusofonia, termo que, segundo a professora Brito, pode ser definido

como:

um sistema de comunicação linguístico-cultural no âmbito da língua portuguesa e nas suas variantes lingüísticas que, no plano geo-sócio-político, abarca os países que adotam o português como língua materna (Portugal e Brasil) e língua oficial (Angola, Cabo-Verde,

Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau) [...] (2013, p. 52).

Aprofundando-se de forma um tanto mais abrangente no que diz respeito à

concepção de lusofonia, o professor Moisés de Lemos Martins define a lusofonia

como a representação de um espaço supranacional, que transcende a questão

linguística e mobiliza povos, governos e organizações, fazendo parte de uma

comunidade pouco coesa e bastante desigual com grandes desequilíbrios culturais,

econômicos e demográficos (MARTINS, 2006, p. 79).

Contudo, muitos escritores e linguistas das ex-colônias portuguesas na

África, como o moçambicano Eduardo Namburete, vêem com ceticismo o que se

chama de lusofonia. Namburete afirma que na África “A língua portuguesa continua

sendo uma língua de elite, cujos utilizadores são pessoas com alguma escolaridade

e geralmente nos centros urbanos”. (2006, p.68). O historiador angolano Carlos

Pacheco entende a lusofonia como um “conceito vago, uma estratégia política e

cultural sem qualquer correspondência com a alma e o sentir dos povos africanos”.

(PACHECO apud BRITO, 2013, p. 5).

Atualmente, para muitos jovens da Guiné-Bissau, que almejam dar alguma

continuidade a seus estudos acadêmicos, dedicar-se a aprender bem o português

parece ser muito mais atrativo e é “uma língua que permite maior abertura para o

mundo, ela permitirá que quem a domine ultrapasse as fronteiras...”. (FREIRE, 2003,

p. 180).

Não somente na Guiné-Bissau como em muitas outras ex-colônias

europeias da África, o hábito de ler e escrever fluentemente a língua do ex-

colonizador passou a desempenhar um papel importantíssimo para se ultrapassar as

fronteiras e se inserir economicamente em um mundo globalizado, marcado pelo

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poder de consumo. Lúcio Lara, ex-deputado do Parlamento angolano e ex-integrante

do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), discutiu sobre a diáspora

dos países africanos que foram colônia de Portugal:

[...] nós temos muitos jovens fora do país. Muitos! O que não está certo, porque deveriam ser formados aqui, no seu país! Temos muitos pais que mandam os filhos para a África do Sul, para Portugal, para a América até, para os Estados Unidos! Não deveria ser, mas os pais também no fundo sentem que é necessário dar educação aos filhos, e mandam-nos, e têm razão! Eu não posso condenar um pai que deseja o bem do seu filho! (cf. FREIRE, 2003, p. 127).

Por essas razões, vemos que é de extrema importância que os bissau-

guineenses não fiquem “ilhados” nem isolados em suas línguas nativas. O

conhecimento da língua portuguesa (e até mesmo de outros idiomas internacionais)

pode garantir-lhes que suas histórias sejam repassadas além das fronteiras. Se

conhecerem com proficiência sua língua oficial, um idioma historicamente melhor

adaptado à linguagem das ciências, das relações internacionais, do direito, da

engenharia, entre outros, terão maior oportunidade de crescimento social, local e

global. Amílcar Cabral exemplifica essas verdades ao indagar:

Satélite natural, digam isso em balanta, digam em mancanha. É preciso falar muito para o dizer [...] Enquanto que em português, basta uma palavra” [...] Como é que se diz aceleração da gravidade em nossa língua? Em crioulo não há, temos que dizer em português. Mas para a nossa terra avançar, todo o filho da nossa terra, daqui a alguns anos tem que saber o que é aceleração da gravidade. (CABRAL apud MONTEIRO, 2012).

Sendo assim, não somente os jovens, mas os cidadãos de todas as idades,

incluindo os que migram e os que permanecem, têm a oportunidade de crescimento

acadêmico e profissional, ainda que em menor proporção, proporcionado pela

abertura das fronteiras por meio da língua portuguesa. Segundo Malmberg (1976, p.

86-87):

O unilinguismo impede ver o que há de valor nos outros, e cria, facilmente, uma fé cega na própria superioridade, perigo que pode ser mortal, ao longo do tempo, para toda a forma de atividade cientifica, artística ou intelectual em geral. [...] Ampliar o vocabulário é ampliar os conhecimentos acerca do mundo que nos rodeia.

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Quanto às línguas nativas ou “étnicas” (AUGEL, 2007, p. 78), raramente

fazem parte do processo de alfabetização de suas comunidades na Guiné-Bissau, o

que não corresponde ao previsto pela UNESCO, que

Prosseguindo e desenvolvendo a sua ação, no quadro do Programa Mundial de Luta contra o Analfabetismo, a UNESCO pronunciou-se, em 1962, em favor da educação dos adultos em línguas africanas e prometeu acordar sua ajuda aos Estados da região onde existisse a demanda. Esta decisão incrementou o reconhecimento destas línguas e estimulou a sua introdução no setor moderno do sistema educativo dos Estados africanos (MAZRUI, 2010, p. 641).

A Guiné-Bissau ainda está solitária nesta luta pela preservação de suas

línguas nativas, que correm um sério risco de desaparecimento por falta de recursos

financeiros e administrativos. Poucos são os investimentos voltados à alfabetização

em português e em crioulo na Guiné-Bissau, e pouquíssimo ou nada restaria para

uma alfabetização eficaz nas inúmeras línguas nativas.

Porém, o que impede as línguas nativas ou até mesmo o crioulo de obter

êxito na alfabetização, semelhante ao que ocorreu com o suaíli48, uma língua nativa

de ex-colônias inglesas, fortemente híbrida, que obteve um êxito satisfatório em seu

processo de adaptação gráfica? Mário Cabral nos responde a essa questão quando

diz que “A questão da língua (...) é um problema político (...) o suaíli é uma língua

regional: não é um país, são vários países”. (FREIRE, 2006, pp. 180-181).

Conforme se verifica, o que uma nação de língua suaíli não atinge em

questão de alfabetização, outra pode fazê-lo. Preserva-se, assim, a continuidade da

língua e de seus registros. Ao contrário do que vem ocorrendo na Guiné-Bissau, que

parece estar solitária na luta pela preservação de suas línguas.

As línguas nativas, bastante precisas no expressar dos mais profundos

pensamentos, sentimentos e tradições de seu povo, encontram-se atualmente

ameaçadas, pois não lhes são conferidas, no cenário econômico internacional,

apreço suficiente para tratar das relações acadêmicas e profissionais. Algo que

ocorre não pelo fato de que essas línguas não estejam aparelhadas a ponto de

exprimir com exatidão os discursos de um mundo globalizado, mas porque as regras

48

Suaíli (Dicionário Houaiss) ou suaíle (Novíssimo Aulete) refere-se à língua banta, amplamente falada na África oriental, constituída pela forte presença de elementos do árabe e do inglês. (LOPES, 2004).

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do jogo internacional exigem que as línguas europeias tenham preferência e sejam

dominantes nas negociações internacionais. Consequentemente, para o cidadão

bissau-guineense “conseguir um trabalho, construir seu espaço, existir na cidade ou

no mundo, ele tem primeiro que se dobrar face à língua dos outros [...], sua língua

materna é humilhada, esmagada”. (MEMMI, 1966 apud AUGEL, 2007, p. 167).

Todavia, uma manifestação, de iniciativa privada, em prol da valorização das

línguas do país vem adquirindo cada vez mais espaço nos movimentos culturais e

literários. De acordo com Semedo, “[...] já existem sinais manifestos, sobretudo

através de semanas culturais de "Krioulofonia" que anualmente são realizadas pela

Editora Corubal e que aponta para a urgência de resgate e valorização das [...]

línguas.”49

A falta da descrição linguística de muitas línguas da Guiné-Bissau não

inviabiliza a transmissão das informações que os órgãos governamentais têm a

passar a toda a população. Devido à força da tradição da oratura e da oralidade

africana, informações dos mais diversos aspectos têm sido transmitidas à maioria

das vilas e tribos, via comunicação radiofônica. Em situações que demandam

extrema urgência quanto à propagação de informações entre todos os cidadãos,

como é caso de orientações sobre a prevenção de doenças como a malária, o cólera

ou casos de HIV50, as “mensagens de comunicação sempre são feitas em quase

todas as línguas”, pelo rádio (op. cit.).

Quanto aos meios de comunicação escrita, como cartazes, folhetos ou jornal,

por via de regra, o português e principalmente o crioulo são as línguas que

permaneceram como “o centro de referência para as comunidades étnicas, não

tendo jamais perdido seu status de meio de comunicação [...]”. (AUGEL, 2007, p.

166).

49

Relato fornecido, a esta pesquisadora, pelo poeta bissau-guineense, Rui Jorge Semedo, via correio eletrônico, em 01 de setembro de 2015. 50

Sigla conhecida na Guiné-Bissau como VIH.

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3.1.2 A Guinendade e a diversidade étnica

No que tange à diversidade étnica na região, muitos povos ali se

estabeleceram ao longo dos séculos impulsionados pelos mais diversos motivos.

Desde o fato de boa parte de essas comunidades migrantes estar “animada pelo

desejo de participar das trocas comerciais, cada vez mais numerosas na região da

fronteira ocidental, e de ter parte na riqueza que estava aumentando”, como afirma

Wondji (2010, p. 442), até o fato de grandes conquistas de um reino sobre o outro,

como no caso dos Mandinga, que por anos subjugaram e dominaram outros povos

(AUGEL, 2007, p. 51).

Os Mandinga, majoritariamente muçulmanos e oriundos do Império Mali,

estabeleceram sua expansão étnico-religiosa desde o interior da África ocidental

rumo à sua costa. Tanto os Fula como os Mandinga concentram-se mais nas

planícies do interior da Guiné-Bissau, “perfazendo cerca de 38% do total da

população” (Ibidem, p. 77). Vejamos os grupos de maior destaque que fazem parte

da cultura da Guiné-Bissau: os Balanta (32%), os Fula (21%), os Mandjaco (14%),

os Mandinga (14%), os Pepel (7%) (Ibidem, p. 409), os Bigadjó, os Brame e muitos

outros que totalizam vinte e sete etnias, segundo estudos Luigi Scantamburlo (2002,

p.9 apud AUGEL, 2007, p. 76).

O historiador Christophe Wondji afirma que:

Traçar a evolução dos países da costa Oeste Africana, de Casamansa à Costa do Marfim, entre os séculos XV e XIX, é uma das mais difíceis e ingratas tarefas dos historiadores da África. Não se trata apenas de povos e de sociedades que, em sua maioria, vêm sendo recentemente integrados a Estados cuja história nacional encontra-se em vias de reconstrução, mas também de territórios que, não tendo pertencido às grandes entidades políticas do passado pré-colonial africano, apresentam ao historiador uma série de delicados problemas metodológicos (cf. WONDJI, 2010, p. 438-440).

Retomando a primeira estrofe do poema “Guinendade”: “Sou tudo e muito

mais... / o pedaço desta terra, / a língua destas etnias, / o rio deste chão, / o

sentimento dese povo...”, notamos que é trazida a lume, pelo eu poético, a questão

dos sentimentos da nação recém-independente, que tenta engatinhar coletivamente

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rumo à reconstrução nacional. Embora, muitas vezes, a corrupção interna

redirecione seus cidadãos na contramão.

Ao se identificar como sendo “o sentimento deste povo” (estrofe 1, verso 5),

o eu poético apresenta a relevância do desejo de união coletiva para a permanência

e ininterrupção da guineidade. “O fim almejado será sempre a conquista da adesão

afetiva, canalizando os interesses, emoções, aspirações e medos coletivos”.

(RODRIGUES, 2013, p. 22). Augel reitera que “A força que leva uma comunidade

(ou um grupo social) a querer viver em conjunto e a permanecer coesa no âmbito

nacional [...] pode ser atribuída ao passado em comum [...]”. (2007, p. 290). No

entanto, muitas comunidades da Guiné-Bissau não sentem que têm um passado em

comum.

Esse almejado sentimento de pertença pelo qual luta o eu poético de

Semedo é importante para dar liga às diferentes comunidades que constituem a

Guiné-Bissau e, embora venham de ramificações étnico-religiosas diferentes,

compartilharam experiências comuns no período colonial, sobre o mesmo chão, sob

o peso de uma mesma mão opressora e devem unir-se para reconstruir uma nova

nação sem mais o domínio da opressão nem da corrupção interna.

Em conformidade com essas questões aqui levantadas, Stuart Hall afirma

que “a força social e política que se torna decisiva em um momento de crise

orgânica não será composta por uma classe única e homogênea, mas terá uma

composição social complexa. [...] terá que ser um „sistema de alianças‟” (2013, p

347), e os poetas da Guiné-Bissau têm plena consciência disso.

Passemos para a análise da segunda estrofe:

Sim sou… sou gente da minha terra manjaco, fula, balanta, mandinga, papel mancanha, felupe, bijagó beafada, nalu,

sou burmedju e sou desta terra…

Vemos logo no primeiro verso dessa estrofe uma reiteração da identidade

guineense. A assertiva “sim sou...” indubitavelmente é uma resposta incisiva contra

a desvalorização da cultura africana ao longo de séculos, por parte não apenas do

ex-colonizador, mas também dos atuais administradores públicos das nações

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africanas que, devido à corrupção, pouco investem na formação educacional e

cultural de seu próprio povo, de forma que poucos jovens estão incluídos nas

carreiras acadêmicas ou nos serviços públicos e privados. É a autoafirmação em

resposta às quase incessantes tentativas de se desconstruir e derruir a memória

cultural e coletiva, as línguas, a identidade e a dignidade do povo africano, pois

“representar negativamente a cultura autóctone do africano [...] é típico do discurso

colonial”. (CAMPATO, 2012, p. 129).

As múltiplas etnias bissau-guineenses, por longos anos, têm carregado

consigo o acervo histórico que reflete o seu rico “mosaico étnico-cultural”. (EMBALÓ,

2008, p. 101). São histórias preservadas por meio de provérbios, reflexões,

narrativas heroicizantes, feitos guerreiros, epopeias, cantadores populares e muitos

outros (AUGEL, 2007, p.79). Com tamanha riqueza sociocultural, não é de nos

surpreender essa asseveração do eu poético. Ele não somente fala ao seu povo,

conclamando-o a despertar para um futuro que garanta a dignidade, mas também

fala, no lugar do povo, ao mundo e aos atuais opressores internos da Guiné-Bissau.

Ao afirmar “sou gente da minha terra” (estrofe 2, verso 2), o eu poético vai além de

ser um porta-voz, posiciona-se como a própria voz de todas as comunidades da

Guiné-Bissau.

Atualmente, um dos maiores desafios dos poetas bissau-guineenses é fazer

com que as linhas coloridas da identidade e da cultura que se entrelaçam com a

linha da História da Guiné-Bissau e do mundo sejam resgatadas e preservadas o

mais integralmente possível, sem se romper em meio ao extremo descaso e à

corrupção da política interna e das visões estereotipadas vindas do exterior.

Segundo afirma o poeta Semedo, “[...] existe na Guiné-Bissau uma identidade

fragmentada em razão da disputa política e que precisa ser costurada a partir do

reforço de comportamentos de cidadania que ajudam a consolidar o processo de

construção da Nação.”51

51

Relato fornecido, a esta pesquisadora, por Rui Jorge Semedo, via correio eletrônico, em 3 de março

de 2015.

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3.1.3 A Guinendade e a musicalidade

A esperança do eu poético por um futuro melhor para todas as comunidades

de seu país está ricamente metaforizada no poema em questão pela expressão

“rompe o clarear da madrugada” (estrofe 3, verso 1), remetendo-nos à ideia de um

salto que se dá de anos de trevas e escuridão rumo à claridade e à esperança de

que dias frutuosos ainda são possíveis: “Sou o djambadon que rompe o clarear da

madrugada, / o presságio do kusunde qua anuncia / o começo de um novo dia”

(estrofe 3, versos de 1 a 3).

A madrugada, embora metaforize a escuridão, sempre é seguida pelo raiar

de um novo dia, trata-se de um novo início, o novo tempo tão ansiado pelas nações

recém-independentes, mas que carecem de bons líderes que lhes apontem a

direção correta a ser seguida.

Quanto à musicalidade, bastante presente na vida de cada comunidade

africana, é representada na terceira estrofe pelos termos djambadon, kusunde,

gumbe e broksa. São termos que metaforizam a alegria das múltiplas etnias da

Guiné-Bissau que, mesmo sem vivenciar satisfatoriamente os dias de justiça e

dignidade, mantêm essa esperança quanto ao futuro. Aqui, a música desempenha o

papel do “presságio” (verso 2) do “começo de um novo dia” (verso 3). Não é uma

mera fuga da realidade ou uma alienação coletiva, é algo consciente e racional que

faz com que os sentimentos estejam prontamente “aglutinados” (verso 4).

Tamanha é a perspectiva e esperança do eu poético, que ele não deseja

que o povo fique inerte, esperando concluir a “travessia do Mar Vermelho” para só

então dançar e cantar com seus tamborins52. Basta-lhes apenas um presságio e o

“rapicar (no português brasileiro, “repicar”) de tina (que) embala os corações” (verso

6) para as pessoas já terem um bom motivo de alegria. Atualmente, muitos cidadãos

da Guiné-Bissau vivenciam um grande desalento em relação à vida administrativa

de seu país, o que vem se prolongando há algum tempo, pois a vitória pela

independência não assegurou a libertação do povo do jugo da opressão, que agora

seria praticada pelos próprios administradores locais que, por muito tempo, também

almejaram e até lutaram pela independência do país.

52

Alusão à História Bíblica encontrada em Êxodo, cap. 15, verso 20.

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3.1.4 A Guinendade e as lutas pela união nacional “Sou do campo, / e da cidade, / sou lavrador, / sou professor... // Sou

deficiente, / sou adulto, / sou jovem, / sou criança, / sou mulher, / sou homem, / sou

cidadão, / sou honesto...” (estrofes 4 e 5). Um olhar bastante atento nessas estrofes

permite-nos afirmar que a conclamação poética para a luta não faz nenhuma

distinção de gênero, classe social, profissão, condições físicas ou idade. Tudo se

resume a um único requisito: basta que o cidadão seja honesto. É o termo “honesto”

que além de sintetizar, no final da estrofe, como deve ser o caráter do cidadão para

que faça parte da luta social, também se contrasta com o caráter da “máfia corrupta

no poder”. (COUTO, EMBALÓ, 2010, p. 73). A responsabilidade da reconstrução

nacional é atribuída pelo poeta a todos. Por isso, Amílcar Cabral sabiamente afirmou

que:

[...] a dinâmica da luta exige a prática da democracia, da crítica e da autocrítica, a crescente participação das populações na gestão de sua própria vida, a alfabetização, [...] a formação de „quadros‟ extraídos dos meios camponeses e operários, e outras tantas realizações que implicam em grande aceleração do processo cultural da sociedade. Tudo isso torna claro que a luta pela libertação não é apenas um fato cultural mas também um fator de cultura (FREIRE, 1984, p. 90).

Segundo afirma Couto em relação às publicações da Guiné-Bissau, “Grande

parte das últimas obras parecem pertencer a uma outra fase da literatura guineense,

que poderíamos chamar de Fase de Desilusão”. (COUTO; EMBALÓ, 2010, p. 73).

Por mais paradoxal que pareça ser, é exatamente essa desilusão com os gestores

públicos que se torna uma mola propulsora, redirecionando, assim, com mais

intensidade, a esperança dos poetas não mais nos líderes políticos, mas no povo

simples de seu chão. Acrescentamos, ainda, o que afirma Couto:

[...] após algumas décadas de poder nas mãos dos próprios guineenses veio a desilusão. Muitos dos ex-combatentes ardorosos se transformaram em uma máfia corrupta no poder, que só se preocupa com os próprios interesses, não com o sofrimento do povo humilde. Muito da poesia, e até da prosa pós-independência reflete esse sentimento. Aliás, isso não é apanágio da Guiné-Bissau. No Brasil temos muito disso também. (op.cit., p. 73-74)

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A sexta estrofe, em que o eu poético discorre sobre a variedade de regiões

da Guiné-Bissau por onde foi escrita sua história, mostra-nos o entrelaçamento e a

interdependência que vinculam as diversas etnias nacionais e as dos países

vizinhos, ciente de que a relação entre esses povos transcende a linha histórica das

fronteiras geográficas impostas pelos colonizadores europeus.

As diversas etnias da região da Guiné-Bissau há muito tempo

desenvolveram a tradição da migração pelo norte da África, seja por questões de

sobrevivência como pelo cultivo agrícola, por mudanças climáticas e pelas trocas

comerciais, seja por razões políticas e econômicas, como vem ocorrendo mais

recentemente (MACHADO, 1998). É ainda bastante comum que jovens das etnias

fula, mandinga, manjaca e balanta, partam “no fim das estações das chuvas, das

regiões de Oio, Bafatá e Gabu em direção às zonas de cultura de amendoim no

Senegal” e que os mais velhos “vão trabalhar em artesanato e comércio no Senegal

e na Gâmbia [...]”. (op. cit., p. 10).

No entanto, essa interdependência comercial entre as diversas etnias não

tem assegurado uma estabilidade econômica entre elas. O que se segue é um

cenário repleto de instabilidades e desmantelamentos sócio-culturais que levam

muitos jovens das correntes migratórias internas a se inserir nas correntes

emigratórias intercontinentais.

Ainda na sexta estrofe, quando o eu poético cita os nomes das muitas

cidades por onde escreveu sua história, num primeiro momento ele nos mostra a

riqueza histórica e geográfica de sua terra: “Cacheu dos descobrimentos [...] Quinará

libertada [...] Bafatá de setembro [...] Bissau do Pindjiguiti”. Mas com um olhar mais

atento, percebemos, como pano de fundo, uma forte crítica às instabilidades

econômicas que agem como força antagônica, impedindo o protagonista de escrever

sua história, em linha reta, sem os repentinos rompimentos e deslocamentos

internos. Essa estrofe retrata a vida daqueles que precisam deixar suas terras para

obter oportunidades de estudo, moradia e trabalho.

Ao mesmo tempo em que o poeta enaltece a sua terra, buscando nela

reforçar ainda mais suas raízes, levanta a denúncia contra a instabilidade política

que permeia o país. Segundo Augel, “a novíssima literatura guineense reflete, ao

lado desses fortes sentimentos de pertença em relação à nação-território,

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igualmente o receio da desarmonia entre as etnias e a preocupação face a uma

instabilidade social [...]”. (AUGEL, 2007, p. 214).

O eu lírico, parece posicionar-se ora como personagem ora como espectador,

enfatiza as múltiplas resistências de toda a Guiné-Bissau não somente à imposição

do domínio português, como também aos recentes conflitos e instabilidades

internas. Ele apresenta-nos claramente o papel histórico de cada uma das lutas do

país que não se limitaram a uma única região. Desde Cacheu, por onde começaram

os registros históricos dos portugueses no país, passando por Quinará e por Oio da

pacificação que, como as demais regiões, lutaram pela libertação. Faz menção a

Biombo resistente e a Bafatá de setembro, assim conhecida por ser a terra natal de

Amílcar Cabral e pelo fato de a libertação da Guiné-Bissau ter ocorrido no mês de

setembro, chegando a Pindjiguiti onde houve o terrível massacre dos estivadores

que lutavam por um país melhor.

Seja sob a ótica das resistências, desde os tempos do massacre do

Pindjiguiti, até as recentes lutas pela libertação, seja sob a ótica das migrações

internas atuais devido às constantes instabilidades políticas, como golpes de estado

e a frágil economia que posiciona a Guiné-Bissau como um dos países de menor

nível do desenvolvimento humano no mundo, o povo da Guiné-Bissau é

enfaticamente apresentado, na sexta estrofe, como pessoas ativas que lutam em

todo o tempo e em todo o território pela concretização de uma Guiné-Bissau

reconstruída e preparada para abrigar as novas gerações.

Arrematando o poema, na última estrofe, o eu lírico opõe-se explicitamente

aos ideais que ainda ameaçam a união da Guiné-Bissau, fazendo referência aos

conflitos políticos que muitas vezes dividem o país por conta de uma Guiné-Bissau

fragmentada no que diz respeito à fragilidade do Estado em representar, de forma

igualitária, cada região e grupo étnico.

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4. A LITERATURA DA GUINÉ-BISSAU EM SALA DE AULA: O PONTO DE

PARTIDA PARA A VALORIZAÇÃO DA DIVERSIDADE CULTURAL

Por meio do presente estudo, procuraremos mostrar, em sala de aula, a África

em um posicionamento atuante, operoso, engajado e comprometido com a

reconstrução nacional. Analisaremos manifestações poéticas que explicam muito

sobre as lutas que visam à reescrita de uma história mais humana, democrática e

profundamente comprometida com sua preservação identitária, pois “muitos

conhecimentos e informações a respeito de um país e sua cultura são transmitidos

pelo viés da literatura” (AUGEL, 2007, p. 36).

Uma das características mais marcantes das sociedades do século XXI é,

sem dúvida, a necessidade constante de não somente os povos interagirem entre si,

como também de conhecerem as diversas culturas que cada vez mais convivem

dentro de uma mesma fronteira nacional, e que constroem, naturalmente, uma nova

história em comum.

Com a crescente democratização do ensino no Brasil, o ambiente escolar tem

se tornado um dos principais cenários onde os contínuos contatos interculturais e

contrastes locais e globais ocorrem. A escola deve estimular os jovens a

desenvolver a cidadania e o respeito mútuo entre os diversos grupos culturais nela

presentes, para que direta e indiretamente, venha a contribuir com o bom

desenvolvimento social do País. Segundo Paulo Freire, “[...] a educação em geral

não pode superpor-se à prática social que se dá numa certa sociedade, mas, ao

contrário, deve emergir desta prática, enquanto uma de suas dimensões” (1978, p.

33).

4. 1 Problematização

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) atesta na Lei

9.394/96, Art. 3º, que os educandos devem ter garantido o direito a um ensino

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baseado no “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” e “respeito à

liberdade e apreço à tolerância”. (BRASIL, 1996).

Esse direito passou a ser amparado pela Lei nº 10.639 de 9/1/2003 e pela

RESOLUÇÃO número 1, de 17 de junho 2004, do CONSELHO NACIONAL DE

EDUCAÇÃO, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das

Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e

Africana, que, em condições de igualdade, deve fazer parte do conteúdo

programático da educação básica, contemplando as diferentes culturas e etnias que

contribuem para a formação do Brasil, em especial as culturas europeia, indígena e

africana. Busca-se, assim, garantir a compreensão das transformações históricas e

culturais da sociedade brasileira, ter sua história e cultura explicitamente estudadas

nas instituições de ensino básico, para que todos os cidadãos possam reconhecer a

verdadeira identidade histórica do Brasil em meio à diversidade étnica e cultural do

meio social em que se encontram.

Contudo, ainda são poucos os materiais voltados aos estudos culturais que

englobem a literatura dos países africanos que compartilham de uma história comum

com o Brasil e, consequentemente, pouquíssimos são os docentes que têm acesso

a esses materiais ou que tenham recebido, em sua formação inicial, treinamento

pedagógico para atuar com os desafios de se trabalhar democraticamente em sala

de aula com e a respeito da diversidade étnica no Brasil. Não é raro algum docente

de História ou Língua Portuguesa afirmar que durante a graduação nunca tenha

elaborado estudos sobre os escritores e pensadores africanos.

Quando se trata dos estudos culturais em sala de aula, em muitas situações,

a África é retratada de forma depreciativa, por parte de uma visão extremamente

eurocêntrica que inferiorizou os valores culturais africanos, acarretando, em muitas

crianças afrodescendentes, um sentimento de “esvaziamento de seus bens culturais,

[...] de desqualificação, de inoperância, de falta de confiança em si mesmo”,

[sentimentos que] “não foram ainda completamente suplantados”. (AUGEL, 2007, p.

132). Consequentemente, muitos educandos de escolas de educação básica,

afrodescendentes ou não, persistem, ainda hoje, na ideia de que, por mais que

estudem, nunca estarão qualificados o bastante para as melhores vagas no mercado

de trabalho e nas grandes universidades, sentem-se como se estivessem

submetidos a um “emparedamento a que estão condenados os descendentes dessa

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África „medonha‟” (op. cit, p. 132), ideias que podem irradiar-se até mesmo à futuras

gerações.

Na luta contra a exclusão e a depreciação cultural, deve se fazer sempre

presente, nos estudos escolares, o papel das contribuições culturais, econômicas,

literárias, entre outras, de todos os grupos sociais na constante formação da

sociedade brasileira. Dessa forma, a participação do jovem nas relações sociais

tende a tornar-se cada vez mais flexível, ampliada e aberta. Em face disso, os

estudos de literatura africana de língua portuguesa podem e devem promover

eficientemente este desenvolvimento, pois:

Esse tipo de educação constrói, de forma cooperativa e solidária, uma síntese dos saberes produzidos pela humanidade ao longo de sua história e dos saberes locais. Tal síntese é uma das condições para o indivíduo acessar o conhecimento necessário ao exercício da cidadania em dimensão mundial (cf. FINI, 2011, p. 11-12).

Além disso, “Outra exigência imperativa é que essa historia seja enfim vista

do interior, a partir do pólo africano, e não medida permanentemente por padrões de

valores estrangeiros [...]”. (KI-ZERBO, J, 2010, p. LII, grifo do autor).

4. 2 Objetivos gerais e específicos

O presente projeto pedagógico visa incentivar a equipe gestora, os docentes

e os educandos a redescobrirem, juntamente com os educandos, a formação da

identidade brasileira por meio de atividades pedagógicas que trarão reflexões sobre

o convívio na comunidade escolar. As propostas aqui apresentadas são meras

sugestões que podem ser seguidas e modificadas de acordo com a realidade e a

necessidade de cada comunidade escolar. Principalmente devido ao fato de que o

universo da literatura africana é bastante amplo e os inúmeros escritores dos países-

membros da CPLP trazem à tona uma grande multiplicidade de questões sócio-

culturais que cabem aos diretores, docentes e coordenadores, em conjunto,

pesquisarem e discutirem para chegarem à conclusão acerca das obras literárias

mais adequadas às questões sociais de seu cotidiano escolar.

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Outro fator muito importante que nos impulsiona à realização deste projeto é a

importância que se deve dar à qualidade da educação oferecida nas escolas

públicas e o diferencial na vida de cada educando que essa qualidade proporcionará

para a construção de uma sociedade com menos injustiças sociais (cf. FINI, 2011, p.

10). Nada disso seria satisfatoriamente cumprido sem uma aplicação pedagógica

que abranja a história dos diversos grupos étnico-culturais presentes dentro e fora

da sala de aula.

Um projeto pedagógico eficiente deve levar-nos a refletir, a inovar e a adaptar

nossas ações à realidade social da escola, considerando a melhoria da convivência

dos educandos em um ambiente de diversidade cultural. Dessa forma, estaremos

garantindo o foco na expansão da cultura, na valorização da identidade brasileira e

na melhoria da qualidade de ensino, pois:

Convivem no Brasil, de maneira tensa, a cultura e o padrão estético e africano e um padrão estético e cultural branco europeu. Porém, a presença da cultura negra e o fato de 45% da população brasileira ser composta de negros não tem sido suficientes para eliminar ideologias, desigualdades e estereótipos racistas. Ainda persiste em nosso país um imaginário étnico-racial que privilegia a brancura e valoriza principalmente as raízes européias da sua cultura, ignorando ou pouco valorizando as outras, que são a indígena, a africana, a asiática (ARAÚJO, 2007, p. 34).

4. 3 Tema e referencial teórico

Em vista do anteriormente exposto, o presente estudo versa sobre a

importância, em sala de aula, dos estudos literários dos países lusófonos na

compreensão da formação da identidade brasileira. A literatura além de abranger

diferentes épocas, histórias e lugares pode nos ensinar sobre nossa realidade atual,

tendo em vista o mesmo objetivo: levar o leitor a uma profunda reflexão e mudança

de visão de mundo, considerando que,

Construir identidade, agir com autonomia e em relação com o outro, bem como incorporar a diversidade, são as bases para a construção de valores de pertencimento e de responsabilidade, essenciais para a inserção cidadã nas dimensões sociais e produtivas. Preparar os indivíduos para o diálogo constante

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com a produção cultural, num tempo que se caracteriza não pela permanência, mas pela constante mudança – quando o inusitado, o incerto e o urgente constituem a regra –, é mais um desafio contemporâneo para a educação escolar (cf. FINI, 2011, p. 12).

Durante a pesquisa, inspiramo-nos nas obras de Paulo Freire em sua obra

Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo, em que nos

exemplifica a importância de relacionarmos a realidade social com a prática

pedagógica. Nessa obra, Paulo Freire mostra-nos como Amílcar Cabral apresentava

boa “capacidade de analisar a realidade do país [Guiné-Bissau], de jamais negá-la,

de partir sempre dela como estava sendo e não como ele gostaria que ela fosse, de

denunciar, de anunciar”. (FREIRE, 1984, p. 23).

É de suma importância sempre ter em mente que, embora cada escola tenha

uma determinada autonomia, de acordo com sua realidade social, para a escolha

das obras do vasto leque da literatura dos países africanos onde também se fala

português, a implementação do presente projeto pedagógico deve constantemente

considerar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e a proposta curricular

do Estado.

O corpo docente e todos os implicados precisam estar inclinados a encontrar

um norte em conjunto para que possam realizar um trabalho de qualidade na escola,

buscando o reflexo de suas ações nas famílias dos educandos e em toda a

comunidade ligada à escola. Isso requer um trabalho laborioso, com constantes

reflexões sempre voltadas para o futuro, mas com os pés bem fincados na realidade

presente.

4. 4 Procedimentos metodológicos

Equipe gestora, coordenação, docentes e pais devem estar abertos a

analisar, discutir e refletir com os educandos acerca das ações de valorização e

integração entre as diferentes culturas presentes na comunidade escolar. Como

reflexão inicial, a equipe gestora pode propor a si mesma, a educandos e a

educadores as seguintes questões:

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a) Qual é o contexto sóciocultural da escola?

b) Quais ações priorizar para que a escola seja conduzida às primeiras

mudanças?

c) Qual tem sido o papel da escola na comunidade que a envolve?

d) Quais ações devem ser tomadas para que a escola esteja preparada para

integrar harmoniosamente a diversidade cultural em um mundo marcado

por constantes correntes migratórias?

Essas reflexões devem sempre atentar para o fato de que uma escola que

considera sua importância no processo de aproximação de distintas culturas deve

ter em seu currículo a história dos povos que vêm contribuindo para a formação do

País.

Como mencionado anteriormente, em conformidade com a Lei 10.639/03 das

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação, que determina a inclusão dos

estudos de História e Literatura africana no currículo escolar, notamos a importância

de se incluir no projeto, que será especificado no capítulo seguinte, o estudo de uma

obra literária da Guiné-Bissau, visto que um eficiente

ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, evitando-se distorções, envolverá articulações entre passado, presente e futuro no âmbito de experiências, construções e pensamentos produzidos em diferentes circunstâncias e realidades do povo negro (ARAÚJO, 2007, p. 40).

Por meio do estudo da expressão literária das nações onde também se fala o

português, o estímulo proporcionado ao jovem a procurar entender o outro

estabelece um vínculo importantíssimo entre a teoria proposta em sala de aula, que

é a “reflexão crítica” (FREIRE, 1978, p. 25), e a prática, que faz parte de sua

realidade cotidiana.

Façamos nossas as palavras do professor Carlos Emílio Faraco quando

afirma que:

A literatura africana expressa-se em mais de um idioma. A que nos

interessa é a literatura africana em língua portuguesa. Trata-se de uma visão de mundo concretizada por meio da mesma língua que se fala em Portugal e no Brasil e, por isso, tem forte relação com nosso patrimônio cultural (2014, p. 328).

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No primeiro bimestre do ano letivo, o Currículo Oficial do Estado de São

Paulo, de utilização obrigatória nas escolas da rede pública estadual, propõe aos

alunos do primeiro ano do Ensino Médio uma apresentação sobre lusofonia, história

e variantes da língua portuguesa no Brasil e no mundo. Dessa forma, no Material de

Apoio ao Currículo do Estado, Caderno do Professor, volume 1, destinado a alunos

do referido ano letivo, há uma introdução, na Situação de Aprendizagem 2, referente

aos estudos de lusofonia. Sua importância se justifica como algo que fará com que:

O aluno reconheça a língua portuguesa como realidade social que identifica e aproxima povos e culturas variadas, tanto dentro do Brasil como fora dele. Embora não seja um conteúdo muito comum na escola, é fundamental para compreender a dimensão da língua portuguesa no tempo e no espaço (FINI, 2014, p. 18).

Proporemos, a seguir, algumas atividades que poderão ser desenvolvidas

paralelamente ao Currículo Oficial, a fim de que seja atingido, com maior êxito, o

objetivo de levar educandos e mestres a estarem mais conscientes da relevância de

se desenvolver, no âmbito escolar, meios para que haja aproximações culturais

entre as diferentes etnias que convivem no Brasil, preparando, assim, a sociedade

para as futuras vindas e adventos étnico-culturais a que o Brasil está cada dia mais

propenso em um mundo bastante instável e globalizado.

Considerando que um projeto escolar eficaz deva ser aplicado

permanentemente na comunidade escolar, desejamos aqui frisar que, embora

selecionamos um poema de um país-membro da CPLP, ou seja, a Guiné-Bissau, o

principal objetivo desse projeto é o de trazer uma mudança de visão de mundo que

seja refletida em todas as esferas sociais e que passe a fazer parte das atividades

culturais presentes no calendário escolar.

Resumidamente e de acordo com o currículo de Língua Portuguesa e

Literatura do 1º ano do ensino médio, dos aspectos tratados no poema

“Guinendade”, podem ser trabalhados:

a) a difusão da língua portuguesa através das expansões ultramarinas;

b) a importância da língua portuguesa para os Estados-membros da CPLP;

c) a valorização das variedades linguísticas da língua portuguesa;

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d) o papel da língua portuguesa para a aproximação dos povos;

e) passado histórico em comum e perspectivas compartilháveis referentes ao

futuro do Brasil e da Guiné-Bissau.

Como vemos na ilustração abaixo, sob o título de Sondagem, na página 17 do

Caderno do Aluno53, um mapa-múndi é apresentado ao aluno, tendo destaque, em

tons de verde, as nações e regiões onde o Português é tido como língua materna

(Portugal e Brasil) e língua oficial e administrativa (Angola, Moçambique, Cabo

Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, Timor Leste e Macau).

Fonte: Caderno Oficial do Aluno, volume 1, do 1º ano do Ensino Médio54 (2015)

É importante que o professor escolha uma obra literária de um dos países

acima mencionados, para que seja trabalhado seu contexto histórico paralelamente

com obras da literatura brasileira, a fim de elucidar aos estudantes sobre a

proximidade na formação histórica entre o Brasil e esses países.

A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo tem disponibilizado, nas

escolas de sua rede de ensino, materiais de apoio de literatura dos países africanos

onde também se fala o português. Sugerimos aos professores de Língua Portuguesa

53

Assim como o mencionado Caderno do Professor, esse material é disponibilizado a todos os alunos das escolas estaduais do Estado de São Paulo, de acordo com o Currículo Oficial do Estado. 54 Caderno do Aluno de Língua Portuguesa e Literatura, Ensino Médio, 1ª série, volume 1/ Secretaria da Educação. São Paulo, 2014.

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e História, que almejem desenvolver o projeto de estudo aqui proposto, a consulta

da obra Poesia Africana de Língua Portuguesa55 e a pesquisa das obras de

pensadores bissau-guineenses como Amílcar Cabral, Helder Proença, Abdulai Sila,

Odete Semedo, Carlos Schwarz, Rui Jorge Semedo, entre outros.

O presente trabalho propõe um plano de estudo de lusofonia mais

aprofundado, tendo como corpus a obra “Guinendade”, anteriormente analisada. É

importante lembrarmo-nos de que o corpus abrange muitos aspectos dos estudos de

lusofonia, ou seja, as variedades do português no mundo, a história da colonização

e o processo de independência, o convívio entre as diversas etnias, as atuais

transformações geopolíticas por que passam as ex-colônias de Portugal e suas

possíveis implicações para o futuro.

Dessa forma, far-se-á necessário, para que o projeto seja bem sucedido, uma

atuação interdisciplinar em conjunto com os educadores de História, Artes e

Geografia. Além disso, “Para obter êxito, a escola e os professores não podem

improvisar. Têm que desfazer mentalidade racista e discriminadora secular,

superando o etnocentrismo europeu, reestruturando relações étnico-raciais e

sociais”. (cf. ARAÚJO, Ulisses F., 2007, p. 35).

Antes da leitura do poema é essencial que o educando compreenda que a

história de um povo adquire mais legitimidade quando é contada por aqueles que a

têm vivenciado. Daí a importância de analisarmos, nos estudos de lusofonia, obras

cujos autores viveram ouvivem a realidade dos países-membros da CPLP.

A leitura, em sala de aula, do poema “Guinendade” suscita o debate muito

importante sobre a identidade de cada um de nós. Embora faça referência à

formação identitária do bissau-guineense, O “Sou tudo e muito mais”, mencionado

no primeiro verso da primeira estrofe, torna-se uma ferramenta importante que põe

em marcha a reflexão sobre a formação cada vez mais multifacetada que o cidadão

brasileiro vem vivenciando em seu espaço social, principalmente no convívio

escolar.

Ao concluirmos a leitura do poema proposto, sugerimos que, em sala de aula,

sejam abertamente levantadas as seguintes questões:

55

Obra de Maria Alexandre Dáskalos, Lívia Apa e Alexandre Barbeitos – Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003. Para os demais autores, sugerimos a coleção Literaturas de Língua Portuguesa: Marcos e Marcas, que será citada mais adiante.

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a) O que é ser brasileiro?

b) Considerando as mais diversas variedades culturais por todo o Brasil, o

que determina a brasilidade de cada um?

c) Qual é a importância de estudarmos e valorizarmos a diversidade

étnica e linguística que compõem a identidade brasileira?

d) Havendo, na formação brasileira, muitas diversidades culturais em

todas as regiões, é natural que haja variantes da Língua Portuguesa.

Por que é importante respeitarmos as diferentes formas de se falar o

português?

É importante destacar para os educandos o papel de entrelaçamento que

uma língua pode exercer na união de culturas distintas. Fazendo uso da análise do

mapa geolinguístico proposto pelo Caderno do Aluno, que aponta os países do

mundo onde também se fala o português, o educando deve perceber, ao final das

atividades propostas, a importância da aproximação cultural que o estudo da língua

portuguesa e de suas literaturas pode estabelecer entre o Brasil e os demais países-

membros da CPLP. Nessa ótica, são profundas as palavras de Semedo (2013, p.

78):

[...] a literatura nacional precisa de condições institucionais para manter vivo o diálogo com as outras literaturas do mundo, principalmente no âmbito [...] da CPLP [...]. Laços que não deveriam limitar-se apenas à vertente histórico-linguístico, política, econômica, mas que fundamentalmente precisariam de construir uma base cultural artistico-literária para registar e consolidar o entendimento sobre as semelhanças e as diferenças existentes no redemoinho da complexidade da cooperação [...].

Como atividade coletiva, sugerimos que os educandos reúnam-se em grupos

e elaborem, após o debate sobre as questões acima mencionadas, uma produção

de texto argumentativo sobre o que os faz sentirem-se brasileiros. É importante que

cada grupo se socialize, oralmente, com os demais a respeito do que escreveram e,

posteriormente, tenham o incentivo de publicar suas formulações em um jornal mural

da escola, sobre o qual falaremos mais adiante, relacionado a algum tema da

brasilidade no contexto da lusofonia.

Embora o presente estudo concentrar-se-á em uma obra literária da Guiné-

Bissau, todos os educandos precisam sentir-se estimulados a pesquisar, com mais

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profundidade, a realidade histórica e as literaturas dos demais países-membros da

CPLP e identificar, no mapa-múndi, a localização de cada um desses países, suas

bandeiras oficiais e a história em comum que o Brasil e os países africanos

compartilham em relação ao período de colonização.

Propomos que, com o auxílio do professor de Artes e Geografia, os

educandos ampliem um mapa-múndi em papel suficientemente grande para ser bem

visualizado no mural da escola. Todos os países onde o português é língua oficial,

materna ou veicular poderão ser pintados com cores de destaque e sobre eles, é

interessante que sejam afixadas as respectivas bandeiras, reproduzidas em papel

pelos próprios educandos, assim como setas, que saem de Portugal e se direcionam

a todos os países-membros da CPLP, como ilustração da difusão do português no

mundo. Para uma melhor distribuição das tarefas e para que todos tenham a

oportunidade de participar das atividades, é aconselhável que os educandos sejam

organizados em grupos, que subdividir-se-ão para: a) ampliar o mapa-múndi; b)

destacar em guache os países componentes do estudo em questão; c) pintar as

setas e as bandeiras.

Para a segunda etapa de produção de textos, sugerida aqui como a reescrita

do poema “Guinendade”, os mesmos grupos poderão se reunir tanto na biblioteca

quanto na sala de informática, se houver disponibilidade, para realizarem pesquisas

sobre o que é lusofonia e identidade. Para isso, indicamos os seguintes endereços

eletrônicos: www.cplp.org, www.ecoss.unilab.edu.br, http://www.legis-palop.org/bd,

http://www.ibge.gov.br/paisesat/, http://djambadon.blogspot.com e

http://www.linguaportuguesa.ufrn.br/pt_3.php.

Devem ser disponibilizadas duas ou três aulas para a pesquisa e,

preferencialmente, essas pesquisas devem ser compartilhadas entre as disciplinas

de História, Português e Geografia. O objetivo aqui é o de despertar e aguçar a

curiosidade do educando acerca do universo lusófono – mais especificamente dos

Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) - e “fazer a ligação entre a

escola e a vida – ligá-la à comunidade onde se encontra”. (FREIRE, 1978, p. 50).

Devemos conscientizar sempre os educandos sobre a importância de

socializarem, de forma oral e ilustrativa, suas pesquisas elaboradas, que podem ser

posteriormente publicadas em um jornal mural ou em um blogue para a difusão na

comunidade.

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Visto que, no poema “Guinendade”, Semedo direciona os passos de sua

escrita rumo aos diferentes desafios do processo de reconstrução da identidade

nacional, ao educando pode ser proposta a reescrita desse poema, de acordo com

sua realidade social e experiências de vida, ampliando o leque para os desafios de

nossa construção e reconstrução identitária brasileira e para a multiplicidade étnico-

cultural.

Para que a reescrita do poema exalte a brasilidade as diversas culturas, é

preciso que haja uma intensa pesquisa sobre as diversas comunidades indígenas no

Brasil; os estilos musicais, como o samba e a bossa-nova; as diversidades

geográficas como o sertão, as matas, o pantanal e as grandes cidades; as

festividades regionais, entre outros.

De volta ao poema “Guinendade”, ao lermos a segunda estrofe do poema:

“Sim sou…/ sou gente da minha terra/ manjaco,/ fula, balanta, mandinga, papel/

mancanha, felupe, bijagó/ beafada, nalu,/ sou burmedju e sou desta terra…”, é

importante que os educandos organizem-se em grupos para pesquisar na Internet e

fazer anotações em seus cadernos sobre as influências das línguas africanas e

indígenas no português do Brasil, lembrando-nos de que:

Ao longo de 500 anos de história, a situação linguística do Brasil foi supercomplexa, pela presença das línguas indígenas (desde sempre), do português dos colonizadores, das línguas faladas pelos escravos africanos (a partir de 1532) e, depois, das línguas européias e asiáticas faladas pelos imigrantes (ILARI, 2011, p. 60).

Levando em conta que o Currículo Oficial do Estado propõe um estudo sobre

as variedades regionais brasileiras (vide Caderno do Aluno56, volume 1, p. 21), e

traçando um paralelo desse estudo com o referido poema, o professor precisa

apresentar aos alunos textos complementares sobre o multilinguismo no Brasil, para

que sejam analisados e interpretados em casa pelos próprios estudantes e

socializados oralmente entre os grupos nas aulas seguintes.

Rodolfo Ilari faz uma clara síntese sobre o multilinguismo no Brasil, que pode

ser utilizado pelo professor, como um ponto de partida para melhor preparar seus

alunos na elaboração do texto poético anteriormente proposto e na resolução das

56

A proposta pedagógica aqui apresentada terá como base/foco o material do primeiro ano do Ensino Médio, conhecido como Caderno do Aluno, 1ª série do Ensino Médio, volume 1, que é oficial do Estado de São Paulo.

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atividades sobre lusofonia presentes no Caderno do Aluno em questão. Vejamos o

que o texto de Ilari diz a respeito do assunto:

[...] o tráfico de escravos, que termina oficialmente em 1850, mas que na prática durou até o final do século XIX, trouxe para o Brasil alguns milhões de africanos, falantes de línguas pertencentes ao tronco níger-congo. Por muito tempo, o elemento indígena foi predominante na população rural [...]. Para complicar o quadro, lembre-se de que os portugueses não foram os únicos europeus que tentaram estabelecer colônias no atual território brasileiro. (op. cit., p. 60).

Vale a pena aqui considerar que a terceira estrofe de “Guinendade”, onde

lemos “Sou o djambadon que rompe o clarear da madrugada” (primeiro verso) e “o

começo de um novo dia” (terceiro verso), mostra perspectivas otimistas e áureas em

relação ao futuro da Guiné-Bissau. O professor pode explorar aqui a oportunidade

de levar seus educandos a refletirem, por meio de um debate aberto, sobre as

perspectivas que eles têm em relação ao futuro do País e às causas pelas quais

devemos lutar para alcançar uma sociedade democraticamente mais justa.

Para isso, precisa ser elucidado para os alunos, em uma lista no quadro, os

principais desafios enfrentados atualmente por sua comunidade e pela nação

brasileira. É o momento de cada jovem analisar e refletir sobre seu importante papel

na sociedade que faz de cada um deles “o começo” de um novo dia e, refletir ainda,

sobre quais são os desafios que compete a cada um deles enfrentar para que se

aproxime, com menos exclusão social, esse “novo dia”, mencionado no poema.

Quanto às estrofes quatro e cinco do poema, que trata dos cidadãos do

campo e da cidade, do homem e da mulher, do adulto e da criança, é importante que

o professor, nesse contexto de valorização e respeito às diversidades, direcione o

foco para o reconhecimento da importância das mais variadas profissões exercidas

em todo do território nacional, ilustrando como a força de todas elas tem

propulsionado a engrenagem econômica do País. Julgamos necessário que nunca

passe despercebido, nos trabalhos pedagógicos sobre diversidade cultural, o grande

contributo de todos os trabalhadores da nação, estejam eles no campo ou na cidade,

sejam homens ou mulheres, brancos ou não-brancos, pois não são raras as

situações em que o preconceito e estereótipos a determinados grupos étnico-

culturais também se estendam para as questões profissionais.

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Um método que tem trazido bons resultados, quando aplicado em sala de

aula, são as ilustrações que cada educando faz de si mesmo. Em um pedaço

pequeno de cartolina cada educando pode desenhar a si mesmo de acordo com a

profissão que lhe será atribuída pelo professor. Após se autorretratar, ao educando é

apresentado o desafio de escrever adjetivos que acompanharão a figura e que

descrevam a contribuição que aquele profissional traz à sociedade, cada um

socializa oralmente e suas ilustrações podem ser anexadas ao mural da sala de aula

ou ao jornal mural da escola.

4. 5 Os Temas Transversais no contexto da Lusofonia

Os Parâmetros Curriculares Nacionais57 (PCNs), que trata dos Temas

Transversais, têm principais objetivos levar o educando a:

[...] conhecer características fundamentais do Brasil nas dimensões sociais, materiais e culturais como meio para construir progressivamente a noção de identidade nacional e pessoal e o sentimento de pertinência ao País; conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais [...]. (cf. BRASIL, 1998, p. 7).

Em um mundo em constantes transformações, cujos reflexos rapidamente se

manifestam no ambiente escolar, é necessário que cada educando, desde seus

primeiros anos de formação escolar, tenha contato com a arte, história e literatura de

povos diversos para que, como uma janela aberta, essas áreas do conhecimento

humano permitam a cada um enxergar e ouvir o outro, concretizando, assim, as

reflexões sobre ética e cidadania, presentes nos Temas Transversais.

Tendo em vista que os Temas Transversais propõem a aplicação de ações

pedagógicas que contemplem a dignidade à pessoa humana e a igualdade de

direitos, vimos nos Estudos Culturais, aqui direcionados para a literatura da Guiné-

Bissau, uma ferramenta a mais para os estudos de literatura no Ensino Médio, que 57

Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Disponível em: http://portal.mec.gov.br/ seb/arquivos/pdf/livro081.pdf. Acesso em 02 de agosto de 2015.

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podem contribuir com os jovens diante dos desafios de se inserirem nas mais

diversas situações de relações humanas, em sua comunidade e no mundo.

Os educandos precisam se sentir estimulados a pôr em prática os múltiplos

aspectos elucidados pelo poema “Guinendade”, que faz constante

interdiscursividade com o contexto social brasileiro, como a diversidade cultural, a

diversidade linguística do português no Brasil e no mundo, a riqueza histórica,

geográfica, cultural e étnica de cada região do País, entre outros. Esses aspectos a

serem trabalhados em sala de aula devem ser um ponto de partida para que os

educandos tracem uma análise de nossa cultura em paralelo com a cultura dos

demais países de língua e expressão portuguesa, a fim de perceberem, em seu

meio social, o quanto a formação da identidade brasileira tem em suas raízes a

história de outros povos.

Pelo fato de os Temas Transversais tratarem de questões diversificadas,

como justiça, respeito mútuo, diálogo, pluralidade cultural, cidadania, meio ambiente,

entre outros, propomos um trabalho prático e interdisciplinar, dentro e fora de aula,

cujas atividades possam ser visualmente subdivididas de acordo com os temas

citados. Os trabalhos anteriormente sugeridos podem ser expostos em um jornal

mural que, por sua característica de trazer informações sobre os mais diversos

temas, pode atender às necessidades de trabalhos de amplo mosaico social como a

literatura do Brasil e da Guiné-Bissau.

Para que os educandos tenham uma melhor compreensão da abrangência

dos Temas Transversais e de como estes podem ser trabalhados em paralelo com a

literatura dos países componentes da CPLP, eles podem pesquisar e traçar

paralelos históricos e culturais simultaneamente entre duas nações na mesma

edição [Angola e Portugal; Brasil e Cabo Verde; Brasil e Moçambique e assim

sucessivamente].

Quando se opta por trabalhar, em cada edição do jornal, com, no máximo,

dois países de língua portuguesa, cada grupo de pesquisadores depara-se com a

necessidade de se aprofundar mais na contextualização sócio-cultural, artística e

literária de cada país, em vez de abordar mais países, por edição, de forma menos

aprofundada.

Vejamos um esquema que pode ser elaborado pelos educandos para o

planejamento do jornal mural.

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Proposta 1: Confecção de um jornal mural no pátio escolar

Tempo estimado Quinze dias, com periodicidade mensal para atualização

Materiais e recursos Quadro de aviso de tamanho médio, preferencialmente de

cortiça ou feltro, lápis, papel, canetas hidrográficas e

esferográficas de cores diversas, tinta guache, papel cartão

colorido, cola, tesoura, impressora, fotocópia, biblioteca e

Internet.

Equipe escolar envolvida Equipe gestora, coordenação, professores e alunos.

Habilidades e competências

desenvolvidas

Reconhecer a língua portuguesa como realidade histórica, social e geográfica, como manifestação do pensamento, da cultura e identidade de um indivíduo, de um povo e de uma comunidade. Elaborar estratégias de leitura e de produção de textos diversos, verbais e não verbais. (cf. FINI, 2011, p. 79).

Público-alvo Toda a comunidade escolar e seu entorno.

Bibliografia sugerida http://www.publico.pt/palop

www.cplp.org

http://www.ibge.gov.br/paisesat/

http://www.linguaportuguesa.ufrn.br/pt_3.php

O jornal mural é uma ferramenta de grande utilidade não somente porque os

estudantes têm a oportunidade de divulgar suas idéias e pesquisas, mas

principalmente porque desperta, em todos os envolvidos da comunidade escolar, o

interesse pela leitura e por uma participação direta ou indireta na continuidade das

publicações. É bastante conveniente o incentivo à implementação desse tipo de

jornal, pois, além de oferecer acesso gratuito a todos, embora em um espaço social

um tanto limitado, faz uso da criatividade de seus elaboradores quanto ao uso das

ilustrações, pesquisas na Internet e na biblioteca, redação, uso de gráficos etc.

Esse tipo de jornal, que pode ter uma periodização ou atualização quinzenal

ou mensal, proporciona a interdisciplinaridade, que vem a ser o trabalho em conjunto

dos professores que contribuirão com as experiências e saberes advindos das mais

diversas disciplinas.

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Sugerimos que sejam reservados espaços para a coluna “Lusofonia ao redor

do mundo”, onde podem ser publicadas as curiosidades sobre os costumes,

variedades linguísticas e história dos países-membros da CPLP; o “Editorial” para a

publicação dos artigos de opinião sobre a importância do respeito mútuo entre os

povos e questões dos Direitos Humanos. A Internet torna-se crucial para a

realização dessas pesquisas.

Também é indispensável termos um “Espaço literário” para resenhas ou

ilustrações de obras de escritores africanos de língua portuguesa. Sempre há uma

excelente devolutiva, por parte dos educandos, quando eles têm a oportunidade de

ilustrar, segundo a imaginação, poemas dos mais variados temas. Essa é uma

oportunidade que pode ser aproveitada fazendo uso de materiais paradidáticos

sobre a literatura africana dos países de língua portuguesa58, que têm sido

disponibilizados nas escolas estaduais pela Secretaria da Educação do Estado de

São Paulo.

A todos os alunos deve ser dada a oportunidade e a responsabilidade de

redigir e elaborar a coluna a respeito das curiosidades do mundo da lusofonia.

Nessa coluna, o professor pode lhes propor que tragam informações sobre as

línguas faladas juntamente com o português em países africanos e no Timor-Leste,

assim como a porcentagem de seus falantes, variedades linguísticas no Brasil e

entre o Brasil e Portugal, entre outros. Sugerimos, desta vez, a pesquisa no

endereço eletrônico < http://www.publico.pt/palop>, que traz uma vasta variedade de

informações sobre muitos temas de cunho social, linguístico e cultural.

4.6 Uma proposta de pesquisa de História

Em relação ao calendário escolar, sugerimos que, na edição do jornal mural

no período de setembro, em que se comemora a Independência do Brasil, seja feito

um estudo paralelo entre a independência do Brasil e da Guiné-Bissau, que também

celebra essa data no mesmo mês. Em parceria com o professor de História, é

58

Está disponível em grande parte das escolas públicas do Estado de São Paulo a coleção Literaturas de Língua Portuguesa: Marcos e Marcas, de autoria de Maria Aparecida Santilli e Suely Fadul Villibor Flory, da Arte & Ciência Editora, 2007. Essa coleção, composta de cinco volumes (Angola, Brasil, Cabo Verde, Moçambique e Portugal) foi, posteriormente enriquecida pelo sexto volume sobre a Guiné-Bissau (ainda não disponível nas escolas), por João Adalberto Campato Jr.

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importante que os educandos analisem quais foram os principais fatores que

desencadearam as lutas pela libertação das duas nações.

Quanto às questões de administração interna, ambos os países passavam

por lutas constantes devido aos abusos administrativos cometidos por Portugal. Mas

no cenário internacional, em 1808, a vinda da família Real para o Brasil foi mais um

dos fatores que desestabilizou a administração portuguesa, o que colaborou, poucos

anos depois, com a concretização da independência brasileira. Em relação à Guiné-

Bissau, a crise que se estabeleceu na Europa, depois da Segunda Grande Guerra e

da queda do regime ditatorial de Salazar, em 1974, o que, semelhantemente,

fragilizou e desestabilizou a administração de Portugal em relação às suas colônias

na África, o que viabilizou a libertação de suas colônias africanas.

Como influência externa, nos processos de independência, o Brasil sentiu-se

mais pressionado a lutar por sua libertação após a Independência dos Estados

Unidos em 1776 e estimulado pelos ideais da Revolução Francesa, iniciada em

1789. Da mesma forma, a Guiné-Bissau via-se sob uma certa pressão pelo fato de

as ex-colônias inglesas e francesas já estarem libertas enquanto os países

colonizados por Portugal estavam ainda sob o jugo colonial.

Ao realizar este estudo paralelo das independências, mesmo que em

períodos históricos diferentes, sugerimos a realização de uma linha do tempo dos

fatos mais marcantes que levaram ambas as nações às conquistas da

independência e, que alguns alunos ilustrem esses marcos históricos por meio de

historia em quadrinhos, para o acesso de todos no jornal mural. O importante é

demonstrar aos educandos a proximidade histórica entre as ex-colônias de Portugal.

De volta ao campo da literatura, para a confecção de livros de antologia

poética, vejamos o seguinte quadro.

Proposta 2: Confecção de livros artesanais sobre antologia poética

Tempo estimado Um mês

Materiais e recursos Lápis, papel, canetas hidrográficas e esferográficas de

cores diversas, tinta guache, papel cartão colorido, cola,

tesoura, impressora, fotocópia, biblioteca e Internet.

Equipe escolar envolvida Equipe gestora, coordenação, professores e alunos.

Habilidades e competências Reconhecer a língua portuguesa como realidade histórica, social e geográfica, como manifestação do pensamento, da

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desenvolvidas cultura e identidade de um indivíduo, de um povo e de uma comunidade. Elaborar estratégias de leitura e de produção de textos diversos, verbais e não verbais. (cf. FINI, 2011, p. 79).

Público-alvo Toda a comunidade escolar e seu entorno.

Bibliografia sugerida SANTILLI, Maria A.; FLORY, S. F. V. (org.). Literaturas de

língua portuguesa: marcos e marcas. São Paulo: Arte &

Ciência, 2007.

CAMPATO JÚNIOR, João Adalberto. Literaturas de língua

portuguesa: Marcos e Marcas – Guiné-Bissau. São Paulo:

Arte & Ciência, 2012.

Em algumas escolas, anualmente, os alunos, o corpo docente, juntamente

com a coordenação e a equipe gestora promovem uma feira do conhecimento, em

que educandos e professores de todas as disciplinas têm a oportunidade de expor a

seus colegas, de modo interdisciplinar, as descobertas e aprendizados adquiridos ao

longo do ano. É algo que envolve a integração e trocas de experiências de

educandos de todas as idades.

Para essas oportunidades, propomos a educandos e educadores a

elaboração de livros artesanais de antologia poética, tendo como tema principal a

diversidade cultural. A coleção anteriormente citada (em nota de rodapé) Literaturas

de Língua Portuguesa: Marcos & Marcas torna-se uma excelente ferramenta para

este trabalho. As principais disciplinas envolvidas serão História, Sociologia,

Filosofia, Artes e Língua Portuguesa.

Aos alunos, que elaborarão esse trabalho em grupo, caberá decidir se cada

livro abordará um tema específico, fazendo a inclusão de obras de todos os volumes

da coleção ou se cada livro abordará temas variados de um único país. Por

experiência podemos adiantar que, geralmente os educandos não gostam de se

sentir limitados à literatura de um único país, quando se trata de escolher os poemas

de sua preferência. Preferem elaborar um trabalho mais diversificado com um ou

dois poemas de cada um dos países.

Deve haver liberdade para escolherem como elaborarão os livros, que

poderão ter o tamanho, a forma e as ilustrações que desejarem. Os alunos são

bastante criativos, por isso, precisamos ter o cuidado de quando lhes dermos

sugestões, não sufocarmos a ideia que inicialmente tinham a respeito do projeto,

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pois muitos ainda acreditam que o professor tem a palavra final quando a questão é

conhecimento ou criatividade.

A elaboração, em 2014, de livros artesanais de antologia poética dos países

onde também se fala o português59, com alunos do ensino médio de uma escola

estadual deixou muito claro que trabalhos interdisciplinares, realizados algumas

vezes ao ar livre e na sala de informática, que dêem total liberdade de criação aos

alunos e que envolvam ilustração e antologia poética de países que fazem parte de

todo o processo histórico, étnico e cultural do Brasil, têm muito boas chances de ser

bem sucedidos.

Por meio da coleção Literaturas de Língua Portuguesa, Marcos e Marcas, o

aluno tem a oportunidade de pesquisar um pouco mais sobre a cultura de Portugal,

Moçambique, Guiné-Bissau, Angola, Cabo Verde e Brasil. Devemos ainda frisar que

o acréscimo, nas obras, de uma breve biografia de cada autor enriquece e

contextualiza a leitura das obras. O uso de recursos gráficos, como impressoras de

boa qualidade para ilustrar as fotos dos poetas ou as paisagens dos países, é muito

apreciado pelos educandos.

Esse é um trabalho de parceria entre a equipe gestora, a coordenação, a

equipe da sala de informática e da biblioteca e de toda a equipe docente. O poema

“Guinendade”, embora permita reflexões mais profundas sobre a nossa realidade

social, deve ser visto como um ponto de partida para futuros projetos escolares que

visem à melhoria do convívio social em meio à diversidade, preparando, assim, o

jovem para futuros desafios dentro e fora de sua comunidade.

59

Em 2014, realizamos a experiência com alunos do 3º ano do Ensino Médio em uma escola estadual, no interior de São Paulo, em adaptação a uma proposta do Caderno Oficial do Aluno de Língua Portuguesa do 3º ano, em que os educandos confeccionaram artesanalmente livros de antologia poética de autores dos países membros da CPLP. A seleção de poemas, por eles feita, deu-se de acordo com o tema de cada livro que iriam elaborar, a saber, vida, morte, família, amor, amizade, cultura etc.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Os estudos de língua portuguesa e da literatura dos países onde também se

fala português podem, quando bem aprofundados em sala de aula, desempenhar

um papel fundamental para a compreensão da formação da cultura brasileira. As

análises de seu vasto campo literário trazem à tona o vínculo da memória coletiva

que as ex-colônias portuguesas na África têm com o Brasil e evidenciam como a

formação histórica e cultural dessas nações está profundamente imbricada entre si.

Ao estudarmos a literatura da Guiné-Bissau, país de ampla diversidade étnica

e que passa por uma profunda reestruturação política e identitária, deparamo-nos

com sua poesia compromissada com os atuais aspectos políticos e sociais e somos

convidados a refletir a respeito do processo de formação da identidade do Brasil,

país que, tal como a Guiné-Bissau, foi submetido à colonização portuguesa e

incessantemente tem seu quadro de diversidade étnica redesenhado pelas

inevitáveis transformações econômicas, políticas e religiosas em que o mundo

globalizado se encontra.

Por meio da expressão literária bissau-guineense, fica-nos evidente a grande

importância do papel dos escritores do país que, como agentes amalgamadores,

comprometem-se a levantar denúncias contra as agruras, injustiças e opressões a

que seu povo tem sido submetido. Como bem salientou Amílcar Cabral:

As manifestações culturais adquirem um conteúdo novo e novas formas de expressão. Tornam-se, assim, um instrumento poderoso de informação e de formação política, não somente na luta pela independência mas ainda na batalha maior pelo progresso. (FREIRE, 1984, p. 90).

Esse engajamento literário de muitos poetas bissau-guineenses suscitam

oportunidades para que muito da história da África, que ficou encoberta durante o

regime colonial e também nos dias atuais, venha à tona e coopere com o

encadeamento da cultura, da literatura e da história que entrelaçam o Brasil e a

África.

No presente estudo, pudemos constatar que, ao contrário do que muito se

apregoa, a África é um continente repleto de criatividade literária a ser compartilhada

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pelo mundo e tem lutado arduamente para reescrever sua história e reafirmar sua

identidade. Haja vista que muitos poetas bissau-guineenses têm se posicionado face

a face aos desafios, em prol do povo.

Algo que, semelhantemente, deve ser trazido como reflexão é o quanto o

status conferido à língua do ex-colonizador realmente representa a necessidade de

um país africano em se posicionar internacionalmente, no que diz respeito ao

comércio, às ciências e à literatura. É essencial não deixarmos de ouvir o apelo que

muitos intelectuais africanos fazem para que sejam preservados os patrimônios de

suas línguas étnicas, principalmente na literatura, a fim de que essas línguas não

fiquem preteridas em suas comunidades, correndo-se o risco de perder muito da

memória cultural coletiva.

Os estudos de literatura no Ensino Médio no Brasil, tendo em vista a

aplicabilidade da Lei nº 10.639 de 9/1/2003 em sala de aula, podem e precisam

instruir o jovem a respeito da importância dos estudos da literatura do Brasil

vinculada a dos demais países de língua portuguesa, em especial na África, para

que tenham acesso a uma história que faz parte da realidade brasileira, a fim de não

mais ser perpetuada a equivocada ideia de esvaziamento histórico, cultural e literário

dos povos africanos e afrodescendentes no Brasil, como se estes vivessem

passivamente à sombra das linhas históricas eurocêntricas.

Em suma, o que precisamos buscar são estratégias para o bom

aproveitamento dos estudos literários em salas de aula, que são étnica e

culturalmente diversificados, e mostrar aos jovens educandos que não somente os

países africanos, mas o Brasil, considerado em muitos de seus aspectos, igualmente

precisa reconstruir e resgatar boa parte de sua história e identidade, visando ao bem

comum e ao estreitamento de laços culturais, internos e externos.

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ANEXO I

Entrevista com o escritor, guineense, Rui Jorge Semedo. 60

1) Em sua obra poética, “Guinendade”, vemos como o senhor direciona o olhar

para a pluralidade étnica de seu país, tendo a preocupação em preservar a

união entre as etnias. Minha questão é, tem se concretizado uma nova visão

política na Guiné-Bissau, menos centralizada e efetivamente mais presente e

voltada à união dessas etnias?

A Guiné-Bissau teve um passado colonial que muito contribuiu na

fragmentação do seu mosaico étnico através de política que o Amílcar Cabral

denominava de “dividir para reinar”. Por conseguinte, o processo revolucionário

que conduziu o país à independência ensaiou construir uma identidade

nacional, mas encontrou empecilho nas subsequentes crises e contradições

institucionais que o país conheceu e ainda vive permanentemente. Mas, a

construção identitária precisa ser observada sob duas perspectivas: social e

política.

Do ponto de vista social sobretudo de relação interétnica, ainda não é visível

situações de conflitos que ponham em risco o princípio de convivência e

solidariedade entre as diferentes sociedades étnicas. Elas continuam a produzir

manifestações estruturantes, exemplo do casamento interétnico que está a

contribuir para o processo de miscigenação e, obviamente, de homogeneização

da identidade guineense.

Contrariamente, o aspecto político sobretudo a partir da abertura política em

1991, os atores políticos (partidos e candidatos), passaram a reproduzir

exatamente a técnica colonial “dividir para reinar”, em suas estratégias de caça

ao voto. Durante as eleições a distribuição de votos obedece ao critério de

pertencimento étnico, tendo em conta que os políticos durante o período da

campanha eleitoral induzem eleitores menos esclarecidos (que é a maioria) a

comportarem-se dessa forma. Embora essa estratégia é reconhecida, até hoje

60

Entrevista concedida via correio eletrônico no dia 09 de out. 2015.

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não é visível manifestações públicas efetivas para desincentivar o tal

comportamento.

2) Quais as expectativas que a juventude da Guiné-Bissau hoje pode alimentar em

relação ao futuro do país no que tange à economia e à educação?

As expectativas para esses propósitos devem ser conquistadas pelos próprios

jovens mediante as suas capacidades organizativas e postura cidadã. Vivemos

num contexto que não reconhece minimamente o direito dos cidadãos à bem-

estar social. A corrupção e irresponsabilidade pública é uma prática corrente, às

vezes, parece ser legitimada pelo próprio Estado. E os jovens para combaterem

o sistema precisam rejeitar reproduzi-lo. Mas o erro que na Guiné está se a

cometer é que os jovens que substituíram a geração que participaram na saga

libertadora estão a ter um comportamento pior daquele que os seus

antecessores tiveram.

3) A publicação de sua obra de antologia poética, Sem Intenção, se deu em 2013,

pouco tempo depois da conclusão de seus estudos no Brasil. Qual a influência

desse período em sua visão de mundo?

Esse período foi muito importante na minha vida, porque pela primeira vez as

circunstâncias me obrigaram a sair da minha realidade para viver

temporariamente noutra. E a partir do Brasil pude compreender melhor a

minha própria realidade quer nas suas manifestações negativas como nas

positivas. O contato com as universidades, e consequente debate acadêmico no

qual participava contribuiu para o fortalecimento da minha visão sobre os

direitos humanos e a minha responsabilidade social, político e ambiental

enquanto cidadão. Por exemplo, passei três anos no posto avançado do

Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA), em Roraima,

primeiramente como estagiário voluntário, depois como bolsista PIBIC e tive a

oportunidade de trabalhar de perto com as comunidades indígenas no domínio

de uso dos recursos e gestão de espaços, experiência que hoje estou a utilizar

na minha vida profissional nas ilhas Bijagós. Ainda em Roraima através da Casa

do Poeta, tive o privilégio de conviver com poetas e músicos da cidade de Boa

Vista e a minha passagem em São Carlos-SP me possibilitou praticar a capoeira

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e conhecer a sua filosofia e visão de mundo. No geral, posso concluir afirmando

que os sete anos passados no Brasil deixaram marcas positivas tanto na minha

vida pessoal como profissional.

4) Em alguns momentos em que eu lia algo sobre a Guiné-Bissau e Amílcar Cabral,

parece-me que, por parte dos escritores atuais, há ainda algum tipo de volta ao

passado glorioso. Seria isso um tipo de fuga da realidade atual ou uma

inspiração que realmente vem trazendo algum resultado para o presente e o

futuro?

Essa leitura não é só sua, mas é muito comum entre os críticos da literatura

guineense. Talvez para compreender melhor essa manifestação seria necessário

não deixarmos de levar em consideração, por um lado, o período histórico é

insignificante entre o Amílcar Cabral e a geração atual de escritores e, por

outro, a atual geração ainda é confrontada por sistema repressivo e outros

males que põem em causa a dignidade humana. Mas, embora a poesia de

intervenção continue a predominar no estilo poético guineense, os escritores

hoje também procuram cantar riquezas e belezas que o país oferece.

5) Praticamente todas as pessoas, a quem eu mostro seu poema “Minha Terra”,

dizem-me que sentem que a obra está descrevendo a realidade brasileira. Seu

poema “Brasil”, do volume Retrato, traz à tona as injustiças sociais das quais o

Brasil e a Guiné-Bissau compartilham. Como foi sua experiência, ao vir para o

Brasil, e descobrir que o “irmão mais velho” e tão “gigante pela própria

natureza” padece tanto quanto a Guiné-Bissau em questões tão básicas como a

educação e a saúde?

Como dizem os sábios, só podemos conhecer uma realidade vivendo nela. O

Brasil que eu conhecia antes da minha deslocação para fazer os meus estudos,

era o Brasil que o poderio futebolístico exportava e que as telenovelas nos

apresentavam como país real. O meu contato com o Brasil real foi um choque,

mas não foi difícil perceber que uma das explicações está na formação do seu

processo colonial. Daí a minha congratulação com a adoção de políticas de

Ação Afirmativas que visa fazer correções dos erros cometidos contra

determinadas classes sociais.

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6) Qual o primeiro sentimento que o sensibiliza quando você vê tantos jovens da

Guiné-Bissau, com grande potencial para o crescimento do país, partindo para

a diáspora? Seria um pesar pela perda de mais um “cérebro” ou uma satisfação

por saber que aquele/a jovem não desperdiçará seu potencial em um país que

não pode lhe proporcionar uma boa carreira?

O sentimento é de dor e tristeza em ver pessoas com muita potencialidade para

servir o país a abandonarem, não por vontade própria, mas porque forçadas a

sair ou a não voltarem. É verdade que uns procuram resistir como é o meu caso,

mas muitos preferem mesmo não voltar porque partem do pressuposto de que

o país ainda não está preparado e organizado para atender suas necessidades

ou exigências do mundo moderno. Existe uma enorme dificuldade para uma

pessoa com o curso superior conseguir um emprego na Guiné-Bissau. O Estado

continua a ser o maior empregador e não elege o concurso público como

mecanismo legítimo e “mais justo” de acesso ao mercado de trabalho e tudo

funciona a base de clientelismo, nepotismo e outros tipos de favorecimentos.

Outra situação, é a permanente instabilidade que assola as nossas instituições

e, muitos preferem não trocar o “certo” pelo “duvidoso”.

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ANEXO II

Breve Cronologia da Guiné-Bissau a partir de 1999 61

Maio de 1999 – O Presidente Nino Vieira, que havia afastado o General Ansumane Mané

do cargo de Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas sob a acusação de envolvimento

com tráfico de armas, é destituído da Presidência do país por militares comandados pelo

próprio Ansumane.

Fevereiro de 2000 – Koumba Yalá é eleito o novo presidente, pelo Partido da Renovação

Social.

Novembro de 2000 – Ansumane Mané é assassinado.

Setembro de 2003 – Koumba Yalá é destituído da presidência por um Golpe de Estado.

Henrique Pereira assume a presidência.

Abril de 2005 – O ex-presidente Nino Vieira, destituído da presidência em 1999,

vence as eleições para a Presidência do país pelo PAIGC, após seu retorno do exílio

em Portugal.

Agosto de 2008 – O Chefe de Estado-Maior da Armada, Bubo Na Tchuto, é

destituído sob a acusação de confrontar a ordem constitucional. Em setembro, ele

exila-se na Gâmbia.

Outubro de 2008 – O Secretário Geral da ONU, Ban Ki-Moon, recrimina o crescente

mercado de drogas na Guiné-Bissau.

Março de 2009 – O General Tagmé Na Waié é morto em uma explosão no Quartel-

General das Forças Armadas.

61 Sites consultados para essa pesquisa

http://www.dw.com/pt/refugiados-sírios-abalam-relaões-entre-portugal-e-a-guiné-bissau/a-17292004 http://www.dn.pt/globo/cplp/interior/as-principais-datas-da-guinebissau-2366022.html http://www.dw.com/pt/novo-presidente-josé-mário-vaz-quer-fazer-valer-a-lei-na-guiné-bissau/a-17639066 http://www.bbc.com/news/world-africa-13579838 http://www.reuters.com/article/us-bissau-economy-donors-idUSKBN0ML2BG20150325 http://www.gbissau.com/ http://www.oje.pt/objetivo-cumprido-guine-bissau-consegue-mais-de-mil-milhoes/

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2 de março de 2009 – Logo após o assassinato de Tagmé Na Waié, militares

dirigem-se à residência do Presidente Nino Vieira e o assassinam.

5 de junho de 2009 – Baciro Dabó, candidato às presidenciais, é assassinado em

sua residência.

8 de Setembro de 2009 - Malam Bacai Sanhá torna-se o novo Presidente,

prometendo fim às instabilidades políticas do país.

26 de dezembro de 2011 – Nova tentativa de Golpe de Estado, que resultou em

trocas de tiros e na prisão de muitos militares.

9 de janeiro de 2012 – O Presidente Malam Bacai Sanhá, seriamente enfermo,

falece em Paris.

12 de abril de 2012 – Novo Golpe de Estado destitui o Primeiro-Ministro Carlos

Gomes Júnior.

Abril de 2013 - O ex-Chefe de Estado-Maior da Armada, Bubo Na Tchuto, é preso

por uma agência estadunidense, sob a acusação de tráfico de drogas. O

Departamento de Justiça dos Estados Unidos acusa alguns militares do Governo da

Guiné-Bissau de vender drogas e fornecer armas à Venezuela.

Dezembro de 2013 – A Guiné-Bissau é acusada pelo Governo português de rejeitar

refugiados sírios e enviá-los com passaportes falsos a Portugal. Esse incidente

causou transtornos diplomáticos, que levaram à suspensão do tráfego aéreo entre

Portugal e a Guiné-Bissau.

18 de Maio de 2014 – José Mário Vaz é eleito o novo Presidente.

Março de 2015 – A União Europeia comprometeu-se a conceder 1 bilhão de Euros

para o desenvolvimento social da Guiné-Bissau.

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ANEXO III

Escultura africana em marfim.

Escultura africana em marfim, ilustrando os portugueses e uma embarcação (foto Werner Forman). Fonte: coleção História Geral da África, vol. IV, NIANE, Djibril Tamsir (2010).

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ANEXO IV

Cerco português na África no século XV

Mapa do cerco português na África no séc. XV. (J. Devisse). Fonte: coleção História Geral da África, vol. IV, NIANE, Djibril Tamsir (2010).

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ANEXO V

Famílias linguísticas na região da Guiné-Bissau

Mapa das famílias linguísticas na região da Guiné-Bissau Fonte: Coleção História Geral da África, vol. III, FASI, Mohammed El (2010).