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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO JANOÍ JOAQUIM MAMEDES A MESQUITA DA LUZ: O ISLÃ SUNITA NO RIO DE JANEIRO SÃO PAULO 2013

UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE PROGRAMA DE …tede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2443/1/Janoi Joaquim Mame… · 2 JANOÍ JOAQUIM MAMEDES A MESQUITA DA LUZ: O ISLÃ SUNITA

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  • 1

    UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

    JANOÍ JOAQUIM MAMEDES

    A MESQUITA DA LUZ: O ISLÃ SUNITA NO RIO DE JANEIRO

    SÃO PAULO

    2013

  • 2

    JANOÍ JOAQUIM MAMEDES

    A MESQUITA DA LUZ: O ISLÃ SUNITA NO RIO DE JANEIRO

    Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação

    em Ciências da Religião como requisito parcial para a

    obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião.

    Orientadora: Profª. Dra. Lídice Meyer Pinto Ribeiro

    SÃO PAULO

    2013

  • 3

    M264m Mamedes, Janoí Joaquim

    A Mesquita da Luz: o Islã sunita no Rio de Janeiro / Janoí

    Joaquim Mamedes – 2014.

    116 f. : il. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2014.

    Orientador: Profa. Dra. Lídice Meyer Pinto Ribeiro

    Bibliografia: f. 111-116 1.Islamismo sunita 2. Mesquita da Luz 3. Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro I. Título LC BP161

  • 4

    Banca examinadora

    ______________________________________

    Professora orientadora: Dra. Lídice Meyer Pinto Ribeiro

    Universidade Presbiteriana Mackenzie

    ______________________________________

    Professora: Dra. Margarida Maria Moura

    Universidade de São Paulo - USP

    ____________________________________

    Professor: Dr. João Baptista Borges Pereira

    Universidade Presbiteriana Mackenzie

    ____________________________________

    Professor: Dr. Ricardo Bitum (suplente)

    Universidade Presbiteriana Mackenzie

    __________________________________

    Professor: Dr. Dario Paulo Barrera (suplente)

    UMESP

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Sou grato, pois sozinho jamais poderia concluir este trabalho. Agradeço

    a todos que colaboraram e me apoiaram em diversos momentos do curso.

    Em primeiro lugar, agradeço a Deus que me deu vida e oportunidades.

    Agradeço à minha família que abriu mão da minha presença em diversos

    momentos: esposa Adriana, meus filhos Levi e Carol e minha mãe Nancy.

    Agradeço à minha orientadora, professora Lídice Meyer Pinto Ribeiro pelo

    apoio e paciência; agradeço, também, aos professores João Baptista Borges

    Pereira e Margarida Maria Moura por aceitarem fazer parte da banca

    examinadora e contribuírem muito para a versão final.

    Agradeço ao conselho da IP de Tingui pelo apoio financeiro e

    motivacional. Agradeço ao Júlio pelo apoio em boa parte da digitação.

    Agradeço à liderança da SBMRJ, especialmente ao Fernando, pela recepção e

    informações. Agradeço aos amigos e professores do curso de Mestrado, à

    Igreja Presbiteriana do Brasil e à Universidade Presbiteriana Mackenzie pela

    bolsa.

  • 6

    MAMEDES, JJ. A Mesquita da Luz: O Islã Sunita no Rio de Janeiro.

    Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião, Universidade Presbiteriana

    Mackenzie, São Paulo, 2013.

    RESUMO

    A presente pesquisa aborda a Mesquita da Luz, o espaço físico onde se reúne

    a Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro (SBMRJ) movimento

    do Islã Sunita. O trabalho tem como objetivo identificar o nascedouro da

    SBMRJ e o que contribuiu para formação de sua identidade. Parte do histórico

    sobre o nascimento do Islamismo, os principais cismas, a mística, o livro

    sagrado, os cinco pilares: O testemunho, as orações diárias, as esmolas, o

    jejum durante o mês de Ramadan e a peregrinação à Meca. O Islã e os seis

    pilares da fé: fé em um Deus único, fé nos anjos, fé nos livros sagrados, fé nos

    profetas e mensageiros de Deus, fé na predestinação e a fé na ressurreição e

    no Juízo Final. A chegada do Islã ao Brasil, destacando o Islã afro que chegou

    com os escravos trazidos da África e o Islã dos imigrantes originários do

    Oriente Médio. A presente pesquisa aborda também a história da Sociedade

    Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro, a Mesquita abandonada de

    Jacarepaguá e a mudança para o atual endereço. Aborda também a

    construção da identidade a partir de grupos identificados como árabes e

    descendentes, os africanos e os brasileiros revertidos. A dinâmica da mesquita

    é apresentada destacando as principais atividades como as orações de sexta-

    feira, o departamento educacional, o departamento feminino e o departamento

    social da instituição. Chegando a conclusão de que a SBMRJ contribui para a

    criação de um Islã nacional, com uma ortodoxia corânica e uma ortopraxia

    brasileira e carioca.

    Palavras-chave: Islamismo; Sunitas; Mesquita da Luz; Sociedade Beneficente

    Muçulmana do Rio de Janeiro.

  • 7

    MAMEDES, JJ. A Mesquita da Luz: O Islã Sunita no Rio de Janeiro.

    Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião, Universidade Presbiteriana

    Mackenzie, São Paulo, 2013.

    ABSTRACT

    The research approaches the Mosque of light, the physical space were

    gathers the beneficent society Muslim of Rio de Janeiro (SBMRJ), movement of

    Sunni Islam. The Work aims to identify the hatcher of SBMRJ and what

    contributed to the formation of their identity. Part of the historical about

    renaissance of Islam, the main schisms, mystique, holy book, five pillars: The

    testimony, daily prayers, alms, fasting during the Ramadan’s month and

    pilgrimage to Mecca. Islam and the six faith’s pillars: Faith in just one God, faith

    in angels, faith in holy books, faith in predestination, faith in resurrection and in

    dooms day. The arrival of Islam to Brazil, highlighting the African Islam that

    arrived with slaves brought from Africa and the Islam of immigrants originating

    from the Middle East. This research also approaches the Rio de Janeiro’s

    Muslim Beneficent Society history, the Mosque abandoned of Jacarepaguá and

    its change to current address. Also approaches the construction of identify from

    groups identified like Arabs and its descendants, African, and Brazilian

    reversed. The dynamic of Mosque is show highlighting the main activities like

    prayers on Friday, department education, female department and the

    institution’s social department. The work conducts to the following conclusion:

    The SBMRJ contributes to the creation of a National Islam, with a Koranic

    Orthodoxy and a Brazilian Orthopraxis.

    Keywords: Islam; Sunni; Mosque of Light; Muslim Beneficent Society of Rio de

    Janeiro.

  • 8

    ÍNDICE DE IMAGENS

    Figura 1 - Fachada da Escola Muçulmana em 1977......................................... 57

    Figura 2 - Desfile de 7 de setembro, 1977, Escola Muçulmana....................... 57

    Figura 3 - Mesquita de Jacarepaguá em 1984.................................................. 59

    Figura 4 - Mesquita de Jacarepaguá em 2009.................................................. 59

    Figura 5 - Obras da Mesquita da Luz em 2009................................................. 62

    Figura 6 - Fachada da Mesquita da Luz em 2013............................................ 63

    Figura 7 - Placa de inauguração da Mesquita da Luz....................................... 63

    Figura 8 - Sala de Oração (fundos) da Mesquita da Luz................................... 64

    Figura 9 - Sala de Oração (frente) da Mesquita da Luz.................................... 64

    Figura 10 - Croqui da Sala de Oração da Mesquita da Luz.............................. 65

    Figura 11 - Banheiro masculino da Mesquita da Luz (espaço para ablução).. 66

    Figura 12 - Banheiro masculino da Mesquita da Luz........................................ 67

    Figura 13 - Curso de árabe na Mesquita da Luz............................................... 97

    Figura 14 - Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa (Copacabana).... 101

    Figura 15 - Fim do Ramadã (2013)................................................................... 102

    Figura 16 - Visita de jovens católicos na SBMJ 2013........................................ 103

    Figura 17 - Visita de jovens católicos na SBMJ 2013........................................ 103

  • 9

    SUMÁRIO

    O Tema ......................................................................................................... 17

    A Metodologia ............................................................................................... 19

    Capítulo 1: Uma breve história do Islã e sua chegada ao Brasil. ..................... 26

    O Nascimento do Islã .................................................................................... 26

    Os quatro califas ........................................................................................ 28

    Os principais Cismas .................................................................................... 30

    Os Xiitas .................................................................................................... 30

    Os Sunitas ................................................................................................. 32

    A Mística Islâmica: Os Sufis .......................................................................... 32

    O Alcorão ......................................................................................................... 34

    Os 5 pilares do Islã ....................................................................................... 35

    O Testemunho (Shahaadah) ..................................................................... 35

    As orações diárias (Aslat) .......................................................................... 36

    As esmolas (Zakat) .................................................................................... 37

    O jejum durante o Ramadan (Sawm) ........................................................ 38

    A peregrinação a Meca (Hajj) .................................................................... 39

    Os Seis Pilares Da Fé ................................................................................... 40

    1º - Fé em Deus Único (a unicidade de Deus) ........................................... 40

    2º - Fé nos Anjos ....................................................................................... 41

    3º - Fé nos Livros Sagrados ...................................................................... 41

    4º - Fé nos Profetas e Mensageiros de Deus ............................................ 42

    5º - Fé na Predestinação ........................................................................... 43

    6º - Fé na Ressurreição e no Juízo Final ................................................... 44

    A chegada do Islã ao Brasil .......................................................................... 47

    O Islamismo de Escravidão ....................................................................... 47

    O Islã dos imigrantes ................................................................................. 52

  • 10

    Capítulo 2 – A SBMRJ: História e construção da identidade ........................... 56

    História da SBMRJ ........................................................................................ 56

    A Escola Muçulmana ................................................................................. 58

    A Mesquita Abandonada ............................................................................ 60

    Uma nova liderança ................................................................................... 62

    A Mesquita da Luz (Masjid Al Nur): A volta às origens. ................................ 64

    A Construção da Identidade .......................................................................... 72

    Árabes e Descendentes ............................................................................. 73

    Os Africanos .............................................................................................. 76

    Os Brasileiros Revertidos .......................................................................... 78

    As Mulheres ............................................................................................... 81

    Capítulo 3 - A Dinâmica da Mesquita da Luz ................................................... 89

    Orações de sexta-feira .................................................................................. 93

    Departamento Educacional ........................................................................... 99

    Curso de Introdução ao Islã ....................................................................... 99

    Departamento Feminino .............................................................................. 102

    Departamento Social ................................................................................... 102

    Considerações Finais ..................................................................................... 109

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 113

  • 11

    Introdução ao Tema da Pesquisa

    A presente pesquisa traça uma breve introdução histórica sobre o

    nascimento do islamismo, seu desenvolvimento e crescimento, principais

    cismas, suas práticas e a chegada ao Brasil, especialmente no Rio de Janeiro

    com os escravos africanos e posteriormente com imigrantes do Oriente Médio.

    Apresenta um estudo de caso da SBMRJ (Sociedade Beneficente Muçulmana

    do Rio de Janeiro), descrevendo um histórico e mostrando as principais

    mudanças estratégicas a partir do início da construção da Mesquita da Luz no

    bairro da Tijuca, Zona Norte da cidade, com o objetivo de demonstrar como são

    construídas, comunicadas e vivenciadas as diversas identidades existentes no

    espaço da SBMRJ. Busca identificar o processo que resultou em uma mudança

    de pensamento e direção da entidade a partir da visão empregada na

    instituição na década de 90, com a segunda geração de imigrantes, fazendo da

    SBMRJ um espaço divulgador e atraindo brasileiros ao Islã.

    Ainda que o foco central do trabalho seja o Islã Sunita da SBMRJ, é

    importante ressaltar o valor acadêmico e o contexto do islamismo na esfera

    mundial.

    Segundo Pinto (2010 a, p. 21), “Em março de 2008, o Vaticano anunciou

    que o número de muçulmanos ultrapassara o número de católicos. O número

    estimado de 1,3 bilhão de adeptos faria do Islã a denominação mais numerosa

    da Terra”. Esta informação torna o Islã mais que digno de atenção acadêmica.

    Da mesma forma destaca Azevedo:

    Sem dúvida a religião mais vigorosa, e mais controvertida, deste final de século e de milênio, o Islã forjou uma civilização de abrangência mundial que tem já quatorze séculos de realizações impressionantes em espiritualidade, intelectualidade, arte e sociedade (Azevedo, 2001, p. 25).

    SONN (2011, p. 12) ressalta que “O Islã é credo dominante em mais de

    50 países, e o da minoria que mais rapidamente cresce na Europa e nos

    Estados Unidos.” Mais de um quinto da população mundial professa esta

    religião atualmente. Percebe-se o crescimento do Islã no século passado

    observando um livro de 1973, intitulado: El Islam, modo de vida, de Hitti.

  • 12

    Este livro é o resultado de conferências feitas ante um auditório heterogêneo na Primavera de 1967 [...] O Islã é modo de vida. E como tal, ele tem três aspectos principais: religiosos, políticos e culturais. Os três se sobrepõem e se influenciam mutuamente; Algumas vezes a influência passa de forma imperceptível de um para o Outro [...] O Islã começou como uma religião simples e humilde de algumas tribos da Arábia [...] Hoje é de cerca de quatrocentos milhões de fiéis [...] De cada sete homens no mundo, um é muçulmano

    1(Hitti,1973, p.19)

    Esta declaração de Hitti alerta a comunidade científica para a

    importância do estudo do Islã. O autor era professor da Universidade de

    Minnesota, EUA, no departamento de línguas do Oriente Próximo e sua

    palestra foi transformada em livro.

    Da mesma forma destaca Ribeiro2.

    O Islã está presente em todo o mundo, em parte devido a migração, e em parte devido ao trabalho missionário, realizado sem muito alarde, através de ações sociais, divulgação de literatura e pela Internet através de diversas páginas da internet. Apesar da divulgação conflitante a seu respeito na mídia secular, onde figuram conversões como a do músico Cat Stevens, hoje Yusuf Islam, e do boxeador Cassius Clay, renomeado como Muhamad Ali, juntamente com alusões ao terrorismo e ao fundamentalismo

    3, o Islã cresce e

    espanta, pois mesmo contando com 1,57 bilhões de adeptos espalhados pelo mundo, ou cerca de 25% da população mundial, pouco se sabe realmente sobre ele. Apesar da origem do islamismo remontar à Ásia, a religião cresceu muito mais fora do mundo árabe, através de movimentos de conquista e de migração. Hoje o Islã já é considerado a segunda maior comunidade religiosa em países de formação protestante como Estados Unidos, (cerca de 6 milhões de muçulmanos), França, (5 milhões), Alemanha (2,5 milhões) e Holanda (500.000) (Ribeiro, 2012, p.107).

    Usarski, no prefácio ao livro que traduziu de Peter Antes, em 2002, fala

    sobre a importância do estudo do Islã no Brasil:

    1 Este libro es resultado de las conferencias pronunciadas ante ún auditório heterogêneo em La primavera de 1967 [...] El islam es ún modo de vida. Como tal tiene tres aspectos principales: el religioso, el político y el cultural. Lós tres se superponen e influyen mutuamente; algunas veces se passa imperceptiblemente de uno a outro.[...] el Islam, que comenzó como religión simple y humilde de unas pocas sencillas tribus de Arabia[...] Hoy tiene aproximadamente cuatrocientos millones de fieles[...] De cada siete hombres uno es musulmán. Importante ressaltar que esta declaração foi em 1967. Hoje de cada 5 habitantes, um é muçulmano. 2 Ribeiro, Lídice Meyer. Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo

    (USP). Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Escola Superior de Teologia desta Universidade. 3 Todas as religiões têm ciclos fundamentalistas ou estão sujeitas ao fundamentalismo. O

    fundamentalismo existe quando um grupo detentor de uma verdade oculta fecha-se em torno dela e passa a negar ou mesmo perseguir outras verdades discrepantes daquela.

  • 13

    A tradução justifica-se por três motivos inter-relacionados. [...] com a intensidade dos atentados de 11 de setembro, transmitidos ao vivo e, desde então [...] foram despertados sentimentos latentes profundamente enraizados na memória coletiva do Ocidente cristão. [...] há indícios suficientes de que o Islã corre o risco de tornar-se o objeto preferido de preconceitos religiosos, seja na forma de cenas sutilmente caricaturais da novela “O clone”

    4, seja pela insistência na

    acusação de que “existia vínculo entre habitantes de Foz do Iguaçu e a Al Qaeda”

    5.[...] A segunda razão tem relação com a falta de

    programas [...] essa situação desfavorável continua nas universidades brasileiras [...] há atualmente poucas dissertações e ainda menos teses sobre o Islã em 2002 [...] O terceiro motivo é tornar acessível uma versão em português do livro de Peter Antes.

    Tanto Usarski como Peter Antes demonstram preocupação com a

    repercussão dos episódios de setembro de 2001 e para isso incentivam a

    produção de artigos, dissertações e teses sobre o Islã na comunidade

    acadêmica.

    Segundo dados do censo demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de

    Geografia e Estatística (IBGE), o Islã ainda é pouco praticado no Brasil,

    contando com 35.167 seguidores. Entretanto, algumas instituições islâmicas

    brasileiras consideram que o número de seguidores é muito superior a isso. A

    Federação Islâmica Brasileira defende que há cerca de 1,5 milhão de fiéis do

    Islã no país6 e estima que existem 50 mesquitas e mais de 80 centros islâmicos

    espalhados pelo Brasil. A questão sobre o número de muçulmanos no Brasil é

    bastante controvertida. Segundo Pinto, “O Brasil possui uma grande

    comunidade muçulmana, com cerca de um milhão de membros, que foi

    formada desde o século XIX por diversas levas migratórias” (2005, p. 229).

    Segundo Vitória Peres de Oliveira, o número seria de 200 mil (2006, p. 3).

    Segundo Pinto (2005, p. 230), a comunidade muçulmana brasileira é

    quase totalmente urbana, tendo uma concentração maior nas cidades de São

    Paulo, Foz do Iguaçu e Rio de Janeiro, com maioria formada por imigrantes

    árabes e seus descendentes. No entanto, é possível verificar um crescente

    4 O fato de que representações inadequadas incomodam a comunidade islâmica foi mostrado,

    por exemplo, no artigo: Muçulmanos querem desculpas do “Casseta” por piadas com o islamismo. Folha de São Paulo, 19 out. 2001. 5 Foto de Iguaçu aparece em sede da Al Qaeda. Folha de São Paulo, 17 nov. 2001.

    6 http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2005/02/050203_diegomtc.shtml, site

    visitado em 10 de dezembro de 2013.

    http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2005/02/050203_diegomtc.shtml

  • 14

    número de revertidos7 tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo. No Rio de

    Janeiro, que é o nosso campo de pesquisa, dirigentes da SBMRJ presumem

    que haja cerca de 500 pessoas cadastradas. Gisele Chagas, em seu trabalho

    de campo em 2005, afirma que havia 190 muçulmanos cadastrados (Chagas,

    2006, p. 4). Pinto (2005, p. 231) e Montenegro (2000, p. 30) declaram que a

    comunidade muçulmana sunita no Rio de Janeiro possui cerca de 5 mil

    pessoas.

    O Sheik Muhammad Ragip al-Jerrahi, líder muçulmano, assim declara

    sobre a chegada do Islã ao Brasil:

    Pedro Álvares Cabral foi acompanhado em sua expedição do ano de 1.500 pelos muçulmanos Chuhabidin Bin Májid e o navegador Mussa Bin Sáte. Com o início da colonização, muçulmanos portugueses e espanhóis, embora em número reduzido, também vieram ao Brasil, mantendo suas práticas e tradições. Sua presença é denunciada já no final do século XVI, com a chegada da Inquisição. Processos e relatos do Santo Ofício referem-se à presença destes muçulmanos, descrevendo suas práticas e costumes. Como referência tem-se: Primeiras Visitações do Santo Officio às Partes do Brasil - Denunciações de Pernambuco, 1593 - 1595, do Visitador Heitor Furtado de Mendonça, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Cartório da Inquisição, Códice nº 130, com edição especial do editor Paulo Prado, série Eduardo Prado, São Paulo, 1929. A Inquisição atuou forçando a conversão dos muçulmanos ao cristianismo bem como a mudança de nomes. Os tribunais inquisitores puniam com a pena de morte os praticantes de cultos considerados heréticos e os que se recusavam a aceitar a nova ordem. Como resultado poucos registros restaram da presença destes muçulmanos na fase inicial da colonização. (http://www.masnavi.org/jerrahi)

    8

    A informação acima faz parte de palestras de diversos Sheiks, porém,

    não consegui identificar a confirmação dos dados em livros acadêmicos.

    Líderes muçulmanos apresentam ainda outras informações, como

    registrou Cavalcante Júnior, em sua tese de doutorado:

    Durante o meu trabalho de campo, o então imam Abdu disse durante o sermão de sexta-feira, em 2006, ter participado de um Congresso sobre Islã na América Latina realizado em Buenos Aires, organizado por instituições islâmicas como a Liga Islâmica e o CDIAL (Centro de

    7 Para os muçulmanos, o termo “revertido” significa “aquele que retorna a Deus.” O muçulmano considera que todos nascem muçulmanos, mas muitos se afastam de Deus. O retorno a Deus é chamado, por eles, de reversão. É revertido todo aquele que professa a Shahada: “Não há Deus, se não Deus, e o profeta Muhammad é seu mensageiro.” 8 Artigo apresentado no site: http://www.masnavi.org/jerrahi/ArtigosPalestras/Historia_da_

    presenca_ Islamica /historia_da_presenca islamica.html, visitado em 10 de dezembro de 2012.

    http://www.masnavi.org/jerrahi/ArtigosPalestras/Historia_da_%20presenca_%20Islamica%20/historia_da_presenca%20islamica.htmlhttp://www.masnavi.org/jerrahi/ArtigosPalestras/Historia_da_%20presenca_%20Islamica%20/historia_da_presenca%20islamica.html

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    Divulgação do Islã para a América Latina). Neste evento, os palestrantes falaram da contribuição dos muçulmanos na região e de sua presença aqui. Segundo o imam Abdu, a presença mais antiga do Islã na América Latina teria sido no Brasil, anterior ao Descobrimento. Teriam sido quatro as etapas da presença do Islã na região: (1) século VII um pouco depois da Conquista da Península Ibéria, o que teria sido comprovado em grutas no sul da Bahia em que foram encontradas inscrições em árabe; (2) com a chegada dos europeus, com a vinda de muçulmanos como guias de navegação ou marinheiros; (3) com os escravos negros da África a partir do descobrimento e (4) com a vinda de imigrantes do Líbano, Síria e Palestina. (Cavalcante, 2008, p. 14).

    Assim, torna-se possível inferir que o tráfico de escravos africanos tem

    relação direta com a presença islâmica no Brasil. Contudo, o Islã somente se

    solidifica em solo brasileiro a partir da chegada dos imigrantes de origem

    árabe: libaneses, sírios, egípcios etc. que constituem hoje o grande contingente

    de muçulmanos no Brasil. Assim relacionou Pinto Hilu, no livro Árabes no Brasil

    (p. 15):

    A chegada no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX de milhares de imigrantes de fala e cultura árabe proveniente de diversas regiões do Oriente Médio – em particular Líbano, Síria e Palestina – e sua bem-sucedida instalação e adaptação constituem um importante capítulo da história da imigração no Brasil.

    Torna-se importante destacar que deste grupo de imigrantes que vieram

    fugidos do Império Otomano9, a maioria era de cristãos.

    Porém, há registros da presença de líderes muçulmanos em 1866, como

    nos apresenta Pinto citando al-Baghdadi al-Dimachqi (2007).

    Em 1866, um navio da marinha otomana aportou no Rio de Janeiro trazendo, além dos marinheiros, um religioso muçulmano (‘alim, pl. ‘ulama) chamado ‘Abd al-Rahman al-Baghdadi al-Dimachqi, que sabemos ter nascido em Damasco de uma família originária de

    9 Começou a nascer no século XI, quando tribos turcas nômades se fixaram na Anatólia, região

    que hoje é parte da Turquia. Tais tribos ajudaram a difundir a religião muçulmana em terras que até então estavam sob o domínio de outro império, o Bizantino. "O termo otomano deriva do nome Osman, ou em árabe, Uthman", diz o historiador inglês Malcolm Yapp, da Universidade de Londres. Osman, ou Otman I (1258-1324), foi um chefe turco que transformou essas tribos nômades em uma dinastia imperial. Durante os séculos XV e XVI, o Império Otomano se tornou um dos estados mais fortes do mundo, englobando boa parte do Oriente Médio, do Leste Europeu e do norte da África. Além do poderio militar, o que ajudou a garantir essa expansão foi a tolerância dos otomanos com as tradições e as religiões dos povos conquistados. Foi abolido em 1923, quando foi proclamada a República da Turquia.

  • 16

    Bagdá. Após desembarcar para conhecer a cidade, ‘Abd al- Rahman foi saudado por negros muçulmanos, provavelmente ex-escravos ou seus descendentes, que depois foram ao seu navio para fazerem as orações com os demais membros da tripulação. Ao saberem que era uma autoridade religiosa os muçulmanos o convidaram para ficar no Rio de Janeiro e liderar sua comunidade. Ele aceitou e permaneceu no Brasil até 1869, primeiro liderando a comunidade muçulmana composta por ex-escravos no Rio de Janeiro, depois como iman (líder religioso) das comunidades muçulmanas semelhantes as que existiam em Salvador e Recife (Pinto, 2010, p. 46).

    Sobre esta importante informação comenta também Ribeiro:

    Abdurrahman al’Baghdadi, nascido em Bagdá, era súdito do Império Otomano, que controlava o Oriente Médio. Embarcou como imã, responsável pelo cuidado espiritual da tripulação, em uma viagem de Istambul a Barsa, mas uma tempestade fez com que a embarcação viesse à costa brasileira, aportando no cais do Rio de Janeiro em setembro de 1866, apenas 30 anos após o último levante male na Bahia (Ribeiro, 2012, p. 113).

    Ribeiro ressalta a possibilidade de que os escravos que foram recebidos

    por al’Baghdadi eram remanescentes das revoltas malês, confirmando, assim,

    que naquele tempo já existia uma comunidade muçulmana organizada no Rio

    de Janeiro.

    Portanto, estas são as principais datas documentadas da presença

    islâmica no Brasil.

    Não é possível comentar sobre a origem do Islã desassociado do povo

    árabe. Deste modo, para um melhor entendimento do trabalho, tornou-se

    necessário um estudo sobre imigração árabe no Rio de Janeiro, com a

    finalidade de identificar o início das atividades da SBMRJ. Pinto destaca que a

    produção acadêmica nesta área é bem escassa:

    A história da comunidade árabe no Rio de Janeiro foi objeto apenas de um artigo (Mauad 2000) e duas dissertações de mestrado não publicadas (Francisco 2005; Karaam 2000). Outras três dissertações de mestrado, também inéditas, trataram da relação entre identidade étnica árabe e a identidade religiosa na comunidade muçulmana sunita (chagas 2006; Montenegro 2000) [...] tal escassez de estudos acadêmicos sobre os árabes cariocas é surpreendente, pois, embora a maior parte tenha-se dirigido a São Paulo, muitos ou passaram ou se fixaram no Rio de Janeiro, que era a capital federal na época do auge da imigração proveniente do oriente Médio. (Pinto, 2010 a, p.16)

  • 17

    O Tema

    Como nosso assunto principal é a SMBRJ10, outros movimentos

    migratórios árabes desligados do Islã não são comentados nesta dissertação.

    A SBMRJ, o foco de nosso estudo, surgiu em 1951, reunindo

    muçulmanos sunitas do Rio de Janeiro; nesta época, já existia a sociedade

    Alauíta, que foi a única instituição muçulmana no Rio de Janeiro até os anos

    50, porém sua visão sectária impediu a unidade dos muçulmanos no RJ11.

    Sociedade Beneficente muçulmana Alauíta do Rio de Janeiro, foi organizada

    em 1931. Os Alauítas constituem uma seita esotérica xiita existente na Síria,

    Líbano e sul da Turquia. Os Alauítas não seguem os pilares rituais do Islã,

    como as orações diárias nas mesquitas, sendo considerados por muitos

    muçulmanos sunitas como heréticos. Porém, na ocasião, havia uma utilização

    do espaço comum em muitas celebrações.

    A sede da SBMRJ era uma sala comercial na Rua Gomes Freire onde,

    inicialmente, dividia o espaço com a Sociedade Beneficente Palestina.

    Posteriormente, a Sociedade Palestina mudou de lugar e a sala foi comprada

    ampliando, assim, o espaço da SBMRJ, que passou a ser referência para os

    muçulmanos sunitas do Rio de Janeiro.

    Em 1984, foi construída uma Mesquita em Jacarepaguá e, a princípio,

    as atividades religiosas foram transferidas para a nova Mesquita. Com o tempo,

    a baixa frequência fez a liderança discutir o assunto, pois a nova Mesquita

    estava distante dos locais de trabalho e da residência dos membros que na

    maioria moravam no Centro, Tijuca e Copacabana12.

    Assim, a Mesquita de Jacarepaguá foi desativada nos meados da

    década de 90; retornando às atividades a mussala13. A partir de 2007, as

    atividades foram transferidas para a Mesquita em construção na Rua Gonzaga

    Bastos no bairro da Tijuca.

    10

    Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro 11

    Segundo Pinto, 2010 b, p.115 os próprios estatutos da sociedade refletem o caráter suprassectário que possuía neste período. 12

    Sobre este assunto trataremos no capítulo primeiro. 13

    Sala de oração. Quando não existe uma mesquita próxima, um grupo de muçulmanos separa um lugar para suas atividades religiosas.

  • 18

    O projeto de construção está dividido da seguinte forma: no primeiro

    pavimento há uma sala principal de oração e banheiros, masculino e feminino.

    No segundo pavimento estão: as salas administrativas, salas de aula, biblioteca

    e dois banheiros (um masculino e um feminino). No terceiro pavimento se

    encontram: um salão de festas, uma cozinha industrial, um pequeno estúdio

    audiovisual e um auditório reversível. No quarto pavimento se localizam: a

    residência do Iman, uma área de lazer com parque para as crianças, salão de

    jogos e de ginástica.

    Segundo o secretário da Instituição, tanto a escolha do bairro como o

    nome da mesquita foram decididos por votação dos membros, incluindo as

    mulheres. Mesmo antes da mudança da sede para o bairro da Tijuca, a SBMRJ

    já apontava para um caminho diferente das demais instituições islâmicas do

    Brasil. Como foi documentado por pesquisadores14, a comunidade do Rio de

    Janeiro apresenta uma particularidade: a maioria de seus membros não é

    árabe e/ou descendente de árabes.

    Atualmente, a maioria dos membros é de revertidos, como foi informado

    em uma entrevista15 feita pelo pesquisador com o secretário da instituição.

    Segundo o secretário, é possível que este fato se deva a uma mudança na

    visão da liderança a partir da década de 90, mais precisamente a partir de

    1993, quando ocorreu uma renovação no quadro de líderes, filhos de

    imigrantes, que criaram o curso de introdução ao Islã e à língua árabe16 e

    facilitaram o atendimento à imprensa, aos estudantes e aos pesquisadores,

    com a finalidade de divulgar o Islã à sociedade brasileira e carioca. Com o

    tempo, a mussala não comportava mais o número de pessoas que apareciam

    para as atividades, obrigando à divisão em turnos diferentes.

    14

    MONTENEGRO, Silvia, M. Dilemas identitários do Islam no Brasil – a comunidade muçulmana sunita do Rio de Janeiro. 2000. 334 f. Tese (doutorado em Sociologia), IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 2000.; PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. “Ritual, etnicidade e identidade religiosa nas comunidades muçulmanas no Brasil” in: revista USP, nº 67, set/nov, São Paulo; USP, 2005, p.231; CAVALCANTE JUNIOR, Claudio. Processos de construção e comunicação das Identidades Negras e Africanas na Comunidade Muçulmana Sunita do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Antropologia, PPGA. UFF, Niterói, 2008; CHAGAS, Gisele Fonseca. Identidade religiosa e fronteiras étnicas In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 29(2): 152-176, 2009. 15

    Entrevista concedida no dia 03 de Agosto de 2012 após a oração das 12 horas, na sede da SBMRJ. 16

    A primeira turma teve somente 3 alunos e apenas um foi até o final do curso. Fui informado que já foi criada uma turma com 90 alunos.

  • 19

    Outra medida seguindo o mesmo viés foi a ampliação da literatura de

    divulgação do Islã. Foram publicados cerca de 10 livros sobre o Islã pela

    editora Qualitymark17 com o selo azam. Procedeu-se à criação do jornal

    informativo Nurul Islam18 (Luz do Islam), publicado trimestralmente com tiragem

    de 4 mil exemplares. A SBMRJ também esteve presente na Bienal do Livro de

    2011, no Riocentro, e na Conferência das Nações Unidas sobre

    Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, realizada de 13 a 22 de junho de

    2012, na cidade do Rio de Janeiro, no espaço denominado Cúpula dos Povos.

    Foram criadas atividades no espaço físico da Mesquita como gincanas e um

    projeto inovador de ginástica voltada para as mulheres. Destes modos, a

    SBMRJ tem divulgado o Islã e se tornado conhecida da sociedade carioca.

    Segundo o secretário da Instituição, com a conclusão da obra da

    Mesquita – incluindo a casa do Sheik – o local será um centro islâmico, um

    espaço para agregar muçulmanos de todo o estado, vindo a ser um local de

    base para coordenação de atividades sociais e estratégicas, que incluem

    abertura de mussalas em diversas regiões do estado. Outros planos incluem a

    participação em encontros ecumênicos, palestras em escolas, universidades e

    associações de moradores. Paralelamente, haverá o incremento de atividades

    sociais voltadas à distribuição de roupas e alimentos para pessoas carentes. A

    SBMRJ pretende continuar com o curso de Árabe e Introdução ao Islã e criar

    espaços para estudo nas cidades mais importantes do estado, como já existe

    em Niterói19. Além disso, ter o seu próprio Sheik também faz parte do projeto

    futuro da instituição.

    A Metodologia

    A metodologia é importante no sentido de nortear o trabalho. Para tal

    tarefa, utilizei o livro: O Trabalho do Antropólogo, de Roberto Cardoso de

    Oliveira, como teórico principal, especificamente o capítulo primeiro: olhar,

    ouvir e escrever: 17

    Editora de um membro da SBMRJ. 18

    Destaca-se no exemplar de nº 07 uma declaração do Professor Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto de como conheceu a SBMRJ e escreveu artigos e passou a enviar alunos de mestrado e doutorado das instituições nas quais leciona. 19

    Jornal Nurul Islam, p. 4, Ano II n° 9, Abril/Junho de 2012.

  • 20

    Talvez a primeira experiência do pesquisador de campo – ou no campo – esteja na domesticação teórica de seu olhar. Isso porque, a partir do momento em que nos sentimos preparados para investigação empírica, o objeto, sobre o qual dirigimos o nosso olhar, já foi previamente alterado pelo próprio modo de visualizá-lo. Seja qual for esse objeto ele não escapa de ser apreendido pelo esquema conceitual da disciplina formadora de nossa maneira de ver a realidade (Oliveira, Roberto Cardoso, 1996 p.19).

    Percebi esta experiência na primeira visita que fiz a SBMRJ, pois fazia

    uma ideia completamente diferente do que seria o espaço da Mesquita da Luz.

    Entrei com vários planos em mente e a partir da terceira visita comecei a

    refazê-los. Precisei me concentrar, pois meu olhar sempre se desviava dos

    objetivos traçados. Quando comecei a doutrinar o meu olhar, saía sempre com

    muitas informações oriundas somente da observação.

    Roberto Cardoso de Oliveira também nos ensina a ouvir, pois o olhar por

    si só não seria suficiente.

    Se o olhar possui uma significação específica para um cientista social, o ouvir também goza dessa propriedade […] tanto o ouvir como o olhar não podem ser tomados como faculdades totalmente independentes no exercício da investigação. Ambas complementam-se […] O ouvir ganha em qualidade e altera uma relação, qual estrada de mão única, em uma outra de mão dupla, portanto, uma verdadeira interação. (Oliveira, Roberto Cardoso, 1996 p.22-24).

    Um atento ato de ouvir é primordial na Mesquita da Luz. Foi através

    deste sentido que pude perceber que estava em um ambiente familiar. Achei

    que não poderia dar continuidade à pesquisa sem conhecer a língua árabe

    quando a iniciei. Entretanto, percebi meu engano ao participar de algumas

    orações na mesquita e constatar que 90% das cerimônias, comunicações e até

    conversas de corredores são em português e, além disso, um “português

    carioca”20. O ouvir me deu esperança para continuar o trabalho. Pude caminhar

    um pouco mais seguro aliando visão e audição.

    20

    Um dos pioneiros na identificação do dialeto carioca foi Antenor de Veras Nascentes (Rio de Janeiro, 19 de junho de 1886 — 6 de setembro de 1972), filólogo, etimólogo, dialectólogo e lexicógrafo brasileiro de grande importância para o estudo da língua portuguesa no Brasil.

  • 21

    Se o olhar e o ouvir podem ser considerados como os atos cognitivos mais preliminares no trabalho de campo – atividade que os antropólogos designam pela expressão inglesa fieldwork –, é, seguramente, no ato de escrever, portanto na configuração final do produto desse trabalho, que a questão do conhecimento torna-se tanto ou mais crítica […] o olhar e o ouvir seriam parte da primeira etapa enquanto o escrever seria parte da segunda […] Se o olhar e o ouvir constituem a nossa percepção da realidade focalizada na pesquisa empírica, o escrever passa a ser parte quase indissociável do nosso pensamento, uma vez que o ato de escrever é simultâneo ao ato de pensar. Quero chamar a atenção sobre isso, de modo a tornar mais claro que – pelo menos no meu modo de ver – é no processo de redação de um texto que nosso pensamento caminha, encontrando soluções que dificilmente aparecerão antes da textualização dos dados provenientes da observação sistemática. […] o ato de escrever e o de pensar são de tal forma solidários entre si que, juntos, formam praticamente um mesmo ato cognitivo. Isso significa que, nesse caso, o texto não espera que seu autor tenha primeiro todas as respostas para, só então, poder ser iniciado. Entendendo que na elaboração de uma boa narrativa o pesquisador, de posse de suas observações devidamente organizadas, inicia o processo de textualização. (Oliveira, Roberto Cardoso, 1996 p. 22-24)

    O olhar e o ouvir são descritos por Roberto Cardoso de Oliveira como

    atos cognitivos mais preliminares, porém, para que o trabalho fique

    “completo”21, torna-se necessário escrever. Olhar, ouvir, “pensar” e escrever,

    pois é na escrita que o autor põe sua parcela. O que vi e ouvi, trouxe para o

    “meu mundo” para escrever. Precisei doutrinar meu olhar para não perder o

    essencial, precisei doutrinar meu ouvir para compreender melhor aquilo que

    via, mas na hora de escrever precisei parar, pensar, incluir, retirar, cortar,

    acrescentar a fim de completar aquilo que tinha para produzir.

    Utilizei também Sérgio Vasconcelos Luna22, que apresenta o papel do

    pesquisador como intérprete da realidade pesquisada. Explanando ainda sobre

    a figura do pesquisador, ele destaca:

    Não se espera, hoje, que ele estabeleça a veracidade das suas constatações. Espera-se, sim, que ele seja capaz de demonstrar –segundo critérios públicos e convincentes – que o conhecimento que ele produz é fidedigno e relevante teórica e/ou socialmente (LUNA, p. 14)

    21

    Não tenho a pretensão de fazer um trabalho completo, mas falo no sentido de completar minha tarefa como pesquisador, escrevendo a dissertação. 22

    O autor é professor titular do departamento de Métodos e Técnicas da PUC- SP. O livro: Planejamento de Pesquisa é fruto de sua experiência como professor de Metodologia da Pesquisa na PUC-SP e, durante 10 anos (1982-1992), na Universidade Estadual de Campinas (Departamento de Psicologia Educacional).

  • 22

    Assim sendo, a pesquisa foi realizada da seguinte forma: para o trabalho

    de campo utilizei o método qualitativo, um estudo de caso na SBMRJ. Porém, a

    escolha do método qualitativo não implica no abandono da abordagem

    quantitativa, visto que a utilizei quando avaliei algumas pesquisas estatísticas.

    Apenas é importante deixar claro aqui que considero o método qualitativo mais

    adequado aos objetivos do presente trabalho já que o mesmo teve um foco

    antropológico.

    Fiz visitas à Mesquita da Luz na Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro,

    nas orações de sexta-feira e nos estudos da língua Árabe e Introdução ao

    Islamismo. Realizei, também, entrevistas com a liderança, com membros

    antigos e recém-revertidos. Li os jornais da entidade e todo tipo de escrito que

    informava sobre as atividades da SBMRJ. Consultei o site da instituição, assim

    como livros e teses que tratam diretamente do assunto.

    O projeto de pesquisa foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa

    envolvendo Seres Humanos da Universidade Presbiteriana Mackenzie para

    apreciação e a cada entrevistado foi entregue uma carta de consentimento.

    Na tentativa de apresentar um trabalho qualitativo, busquei no primeiro

    capítulo do livro O trabalho do antropólogo de Roberto Cardoso de Oliveira,

    informações para obter uma base metodológica, especialmente para

    desenvolver o trabalho de campo.

    Segundo o autor, o olhar é domesticado pelas disciplinas acadêmicas e

    isso faz com que o mesmo altere o objeto de estudo desde a sua primeira

    percepção. O autor também destaca que é importante que o antropólogo tenha

    o olhar disciplinado. Acrescenta, ainda, que o olhar não pode ser usado de

    forma independente no exercício da investigação, mas que seria

    complementado pelo ouvir. Os dois – olhar e ouvir – devem estar sempre

    juntos e servem como apoio ao pesquisador para que este passe pelo difícil

    caminho até a chegada ao conhecimento. Dessa forma, o ouvir também deve

    ser disciplinado para superar as dificuldades do caminho, saber separar o que

    é ruído, o que não é necessário e que pode atrapalhar a chegada ao

    conhecimento, ao que é realmente relevante.

    O entrevistador deve saber ouvir. A grande dificuldade das entrevistas

    está na diferença de culturas entre o entrevistador e o nativo, chamado pelo

  • 23

    autor de “idiomas culturais”. O bom antropólogo tem que saber se afastar de

    sua cultura no momento da entrevista para não fazer uma análise de forma

    incorreta. Entretanto, diz Roberto, como sempre haverá uma interferência do

    pesquisador no resultado da entrevista, é impossível haver uma total

    neutralidade. Uma solução para o problema da entrevista seria criar algum tipo

    de relação entre o entrevistador e o entrevistado para que se estabeleça um

    diálogo. Assim, haverá um encontro etnográfico, podendo haver uma fusão de

    horizontes, se ambas as partes se ouvirem. Dessa forma, não haverá receios

    de contaminação do discurso do nativo. A partir do momento em que o

    antropólogo assumir uma posição de observador participante, se inserir na

    sociedade observada de alguma forma aceita pelos nativos, poderá conhecer a

    realidade.

    O escrever seria a configuração final do produto de todo o trabalho de

    campo realizado pelo antropólogo ou estudioso de ciências sociais e seria

    também o ponto mais crítico. O ato de escrever fora do campo de pesquisa é o

    que gera o verdadeiro conhecimento. O processo de textualização é essencial

    para a comunicação de divulgação do conhecimento. No momento de

    transcrição de suas análises para o idioma da disciplina, o pesquisador tem

    autonomia e acaba interpretando as análises com base nos conceitos que

    conhece. Para Roberto Cardoso de Oliveira, o escrever está altamente

    associado ao pensamento, e é no escrever que o pesquisador tem seu

    momento de reflexão sobre os problemas encontrados na observação e tenta

    encontrar soluções para eles. É no ato de escrever que as informações são

    organizadas e as ideias surgem e se aperfeiçoam na reescrita.

    Sobre a teoria específica para entendimento do Islamismo utilizei a obra

    Observando o Islã: o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia do

    antropólogo Geertz (2004), que destaca a diferença do Islã no Marrocos e

    Indonésia, demonstrando assim a pluralidade em um sistema supostamente

    homogêneo. Geertz analisa a evolução de estilos religiosos divergentes nos

    dois cenários, produzindo climas espirituais extremamente diversos. Com base

    no que diz Geertz, podemos discutir a diferença do Islã em diversas

    localidades, comprovando que o meio interage e modifica a religião com o

    passar do tempo. Portanto, utilizamos Geertz na intenção de exemplificar que

    existem diferentes formas de Islã; ou seja, que o Islã recebe e adquire uma

  • 24

    forma diferente dependendo da cultura na qual está inserido. Neste ponto

    vemos claramente esta modificação nos diferentes “islãs” do Brasil. Hoje em

    dia no Brasil, das cidades que possuem comunidades muçulmanas, o Rio de

    Janeiro é o que possui um menor fluxo migratório, o que segundo Pinto (2005,

    p. 230), torna o processo de reformulação e criação de identidades

    muçulmanas muito mais dependente dos elementos culturais locais ou

    nacionais, enquanto que em outras comunidades como a de São Paulo, o

    contato constante com o Islã praticado no Oriente Médio faz com que se

    aproxime mais de sua origem.

    Com respeito à teoria geral sobre o Islamismo utilizei a obra Islamismo,

    História e Doutrina de Jomier (1992), da editora Vozes. A partir desta obra

    identifico o Islã como um movimento político-religioso. Neste livro, Jomier

    ressalta os principais acontecimentos da história deste “movimento” e sua

    influência na história política, cultural e religiosa do mundo. O livro trata do

    nascimento do Islã, suas leis e dogmas, das relações islamo-cristãs e da

    apologética muçulmana. É importante salientar que Jacques Jomier é um

    padre dominicano que passou a maior parte de sua vida no Cairo.

    A obra O Islã e a Política de Antes (2003), situa o Islã no panorama

    mundial e procura mostrar a “multiplicidade” da realidade do Islã,

    compreendendo o fator político desde a “auto-imagem islâmica”. Nessa

    perspectiva, de alguma forma, Antes privilegia uma “ciência da religião”,

    tentando resgatar elementos fundamentais da fé islâmica. Daí sublinhar a

    permanência de certo preconceito reducionista, o que chama de “preconceito

    islamófobo” agindo na avaliação dos mulçumanos como “ameaça”. Em que

    pese o esforço de indicar onde está, de fato, o perigo ameaçador, como o ódio

    racial e suas consequências nacionais e internacionais.

    Peter Berger (2001), não descarta a afirmação de que a relação entre

    religião e a modernidade é muito complicada. Por isso ele reconhece a

    necessidade de análises mais detalhadas sobre o papel da religião nos

    assuntos mundiais ao invés de extremas generalizações.

    No caso do Islã, por exemplo, Berger expõe também as diferenças no

    interior do movimento. Ele diz:

  • 25

    “O ressurgimento islâmico não se limita aos setores menos modernizados ou “atrasados” da sociedade, como os intelectuais progressistas ainda gostam de pensar. Pelo contrário, é muito forte em cidades com um alto grau de modernização, e em alguns países é particularmente visível em pessoas com educação superior de modelo ocidental. No Egito e na Turquia, por exemplo, muitos filhos de profissionais secularizados usam o véu e outros parâmetros para o relato islâmico (Berger, 2001, p. 14)”.

    No primeiro capítulo, que tem como título: Uma breve história do Islã e

    sua chegada ao Brasil, escrevo sobre o surgimento do profeta Muhammad, as

    primeiras revelações, o Alcorão, a hégira, a implantação da religião islâmica e

    os primeiros califas. A grande divisão do mundo muçulmano (Os Sunitas e os

    Xiitas). Os cinco pilares: Shahâdah (a fórmula de confissão), salat (a oração),

    zakat (imposto de esmola), sawn (jejum) e hajj (peregrinação à Meca). Segue a

    explanação sobre os seis Pilares da Fé, que são: Fé em Deus Único, Fé nos

    Anjos, Fé nos Livros Sagrados, Fé nos Profetas, Fé na Predestinação, Fé na

    Ressurreição e no Juízo Final. Apresento em linhas gerais a história do Islã no

    Brasil desde a chegada dos escravos islamizados do século XVIII passando

    pelo islamismo de imigração, oriundo de povos árabes após a Primeira Guerra

    Mundial, dando assim início à construção da primeira mesquita no Estado de

    São Paulo.

    No segundo capítulo descrevo a fundação da SBMRJ, suas

    características e principais atividades desde 1951, sua mais significativa

    mudança por meio de uma nova diretoria eleita na década de 1990, com

    abertura maior, que incluía: sermões em português, curso de árabe e

    divulgação fora da mussala; até o início da construção da Mesquita da Luz no

    bairro da Tijuca.

    No terceiro capítulo, que tem por título: A dinâmica da Mesquita da Luz,

    apresento o desenvolvimento das principais atividades, os departamentos, os

    objetivos e estratégias para a divulgação do Islã, fortalecimento da SBMRJ e o

    desenvolvimento das atividades internas e externas.

    Com este trabalho não se pretende esgotar o assunto, mas apenas

    fomentar, no âmbito das ciências da religião, o estudo de um movimento que

    certamente ainda será objeto de muitos questionamentos.

  • 26

    Capítulo 1: Uma breve história do Islã e sua chegada ao Brasil.

    O Nascimento do Islã

    Não existem informações históricas sobre o profeta Muhammad fora do

    islamismo23. Muhammad, o profeta do Islã, nasceu em Meca em 570 (Jomier,

    1992, p. 18)24 e pertencia à poderosa tribo dos Coraixitas. Não conheceu o pai

    e perdeu a mãe quando tinha 6 anos de idade. Foi criado pelo avô até

    completar oito anos, quando este também veio a falecer. Foi educado então

    pelo tio Abu Taled e na idade adulta passou a exercer a função de

    comerciante. Foi então que conheceu uma viúva chamada Khadija (quinze

    anos mais velha que ele) e aos 25 anos de idade casou-se com ela.

    Muhammad casou-se por volta de 595 e em 610 recebeu as primeiras

    revelações.

    Pelo ano de 610, Mohammad fez um retiro de longa duração em uma gruta do monte Hira, a alguns quilômetros de Meca, em pleno deserto, quando teve um sonho. Outras tradições falam de uma visão em estado de vigília. Viu um ser sobre-humano que lhe deu a ordem de recitar um texto e o chamou de “Enviado de Deus” (rasulAllah). Esse texto consistia naquilo que se constitui atualmente os cinco primeiros versículos do capítulo 96 do Corão. Transcrevemo-los a seguir: Em nome de Deus, Muito Bom e Misericordioso: Recita em nome de teu Senhor que te criou: que criou o homem de um grumo de sangue coagulado. Recita: Teu Senhor é Muito Generoso que ensinou graças ao junco para escrever, que ensinou ao homem o que este não sabia. (JOMIER, 1992, p. 19)

    Muhammad voltou assustado e procurou Khadija, que logo o conduziu

    ao seu primo Waraqa25, que afirmou que a visão de Muhammad era de um anjo

    enviado por Deus. O profeta recebeu as primeiras revelações e dois meses

    depois começou a pregar (Armistrong, 2001, p. 11). Logo ocorrem as primeiras

    conversões. Algumas pessoas do círculo mais chegado a Muhammad

    converteram-se rapidamente à nova fé: sua mulher Khadija, seu primo Ali e

    Abu Bakr, o futuro primeiro califa (Jomier, 1992, p. 21), depois seu filho adotivo

    23

    As fontes são o próprio Alcorão e as coleções sobre a vida do profeta, chamadas hadith. 24

    ELIADE, no livro História das crenças e das ideias religiosas, destaca que o nascimento foi entre 567 e 572. 25

    Waraqa bin Naufal, que era um cristão convertido e usado para ler o Evangelho em árabe, era primo de Khadija (JOMIER, 1992, p. 14)

  • 27

    Zaid e também o futuro califa Othman. Em 612, Muhammad teve uma visão

    que o ordenava tornar públicas todas as revelações.

    A partir daí a mensagem de Muhammad lhe trouxe grandes problemas,

    pois pregava o monoteísmo e antes do Islã, Meca26 era uma cidade politeísta.

    Nela já estava a Caaba (cubo, literalmente), um edifício retangular que

    abrigava a pedra negra, que segundo religiosos islâmicos é de origem celeste,

    bem como diversas imagens. Neste centro religioso o serviço do santuário

    estava confiado aos membros das famílias influentes, e os cargos –

    possivelmente bem remunerados – passavam de pai para filho (Eliade, 1978, p.

    85). Hoje em dia a Caaba é uma construção semicúbica que possui cerca de

    15 metros de altura e 10 a 12 metros de largura. É uma estrutura antiga e

    simples, feita de granito. No canto SE, um meteorito negro (a "Pedra Negra") é

    incorporado a uma moldura de prata. Escadas no lado norte levam a uma

    porta, que permite a entrada para o interior, que é oco e vazio. A Caaba é

    coberta com uma kiswah , um pano de seda preto, que é bordado em ouro com

    versos do Alcorão. O kiswah é substituído uma vez por ano.

    Mesmo sendo Allah um Deus reconhecido pelo povo de Meca como o

    criador, a mensagem de que “não há senão um Deus”, não foi bem aceita pelos

    moradores e principalmente pelos líderes de Meca, especialmente da própria

    tribo de Muhammad, os Coraixitas, que não queriam perder o privilégio que o

    paganismo trazia. Em 616 começou a perseguição a Muhammad e em 620 os

    árabes de Yathrib (mais tarde chamada Medina) estabeleceram contato com

    Muhammad e o convidaram para liderar a comunidade (Armistrong, 2001,

    p.11).

    Em 622 ocorre a Hégira. O profeta, acompanhado de dezenas de

    famílias, segue para Yathrib. Os anos seguintes retratam guerras e acordos até

    630, quando ocorre a derrota voluntária dos moradores de Meca. Segundo

    Armistrong (2011), Eliade (1978) e Jomier (1992), não ocorreu derramamento

    de sangue nem conversão forçada ao Islã:

    Muitas fontes erroneamente indicam que a Hégira - a data em que Maomé e seus seguidores deixaram Meca, e depois de cerca de duas

    26

    Segundo ELIADE, o nome Meca (Makkah) é mencionado no Corpus Ptolemaico (século II A.D) como Makoraba, vocábulo derivado do sabeu makuraba, “santuário”. Meca era primitivamente um centro cerimonial, em torno do qual a cidade se ergueu pouco a pouco.

  • 28

    semanas de caminhada chegaram a Yathrib, depois conhecida como Madinatal-Nabī (Cidade do Profeta), a atual Medina - ocorreu em 1 Muharram, 1 aH. Entretanto, a data da Hégira não é mencionada no Corão ou em outros antigos textos islâmicos. Antigas tradições, como as mencionadas no Hadith (reunião de ditos e ações do profeta e seus seguidores), antigas biografias de Maomé e tabelas cronológicas/astronômicas islâmicas sugerem que a Hégira ocorreu na última semana do mês Safar (provavelmente no 24º dia) e que Maomé e seus seguidores chegaram às cercanias de Yathrib no oitavo dia do mês Rabī‘ al-Awwal, num dia em que os judeus de Yathrib estavam observando um dia de jejum, e depois de uns poucos dias, entraram em Yathrib no 12º dia do mês Rabī‘ al-Awwal. Convertendo-se essas datas ao antigo calendário Juliano, e tendo em conta os meses de intercalação (possivelmente três), que foram inseridos entre a Hégira e a última peregrinação de Maomé (10 aH), a Hégira provavelmente ocorreu na quinta-feira, 10 de junho do ano cristão 622, e Maomé chegou às cercanias de Yathrib provavelmente na quinta-feira 24 de junho de 622 da era cristã, ali entrando provavelmente na segunda-feira 28 de junho de 622 da era cristã. Fonte: www.novomilenio.inf.br/porto/mapas/nmcalens.htm, acessado em 15 de outubro de 2012.

    A conquista de Meca foi um marco importantíssimo para o

    desenvolvimento e afirmação do Islamismo como a esperança dos Árabes.

    Os quatro califas

    Sobre a definição e importância dos primeiros quatro califas, escreve

    Jomier:

    [...] constituem um grupo à parte entre todos os que ocuparam este cargo. Os turcos otomanos escrevem os nomes deles sobre grandes estandartes caligrafados em muitas das suas mesquitas. Quanto aos muçulmanos modernos de tendência reformista, tem-nos em grande consideração em bloco, e alguns até acrescentam que, depois deles, o Islã perdeu até hoje a sua pureza original. Segundo esta tendência reformista, portanto, o ideal seria voltar à fonte, ao Islã do Corão e dos primeiros companheiros (Jomier, 1992, p. 40)

    Estes homens mudaram a história do Islã. Transformaram um

    movimento religioso em um quase império.

    Ao retratarmos a história do Islã mesmo que de forma breve, não

    podemos omitir os quatro primeiros califas, pois além da importância para os

    reformistas, o conhecimento desta parte da história nos auxiliará quando

    tratarmos dos principais cismas.

    http://www.novomilenio.inf.br/porto/mapas/nmcalens.htm

  • 29

    Muhammad morre em 632 e é eleito o novo califa Abu Bakr, pai de

    Aisha, uma das esposas do profeta. Abu Bakr consegue dominar a revolta e

    unir todas as tribos da Arábia.

    Quando Abu Bakr morreu, em 634 todas as tribos da península arábica tinham sido trazidas para a órbita política islâmica. Sob a liderança dos sucessores de Abu Bakr, Omar e Osman, o exército islâmico partiu para libertar a Síria e a Mesopotâmia (Iraque) dos odiados Impérios Bizantino e Sassânida. (SONN, 2011, p. 52)

    Foi nesta campanha que morreram muitos companheiros que sabiam de

    cor passagens inteiras do Alcorão. Foi então que a conselho de Omar, Abu

    Bakr mandou que se colocasse por escrito, pela primeira vez, a totalidade do

    Alcorão, com a finalidade de preservar-lhe o texto (Jomier, 1992, p. 37).

    Após a morte de Abu Bakr, assume como califa Omar Ibnal-Khattab, que

    morreu assassinado após um reinado de dez anos. Dentre as conquistas de

    Omar, estão: Síria e Jerusalém. O papel de Omar pode ser comparado ao do

    apóstolo Paulo no cristianismo (Jomier, 1992, p. 37), haja vista que ele deu

    partida ao movimento que tornou o Islã um Império Árabe.

    Omar reinou de 634 a 644 e após sua morte assumiu como califa

    Othman ibn Affan (644 a 656), que deu continuidade à política de Omar,

    aumentando também o espólio de guerra. Riquezas começaram a fluir para as

    mãos dos clãs árabes mais favorecidos. As diferenças de renda se tornaram

    cada vez mais marcantes e a competição pelo controle do espólio se acirrou

    (Demant, 2011, p. 38). Othman foi assassinado, assumindo então Ali ibn Abi

    Taled (656 a 661). Ali era genro e primo do profeta, casado com Fátima. Algo

    marcante deste reinado foi a disputa com o grupo de Aisha (a esposa do

    profeta, filha do primeiro califa); tiveram vários confrontos armados, sendo Ali

    vencedor na batalha do monte Carmelo em 656. Mais tarde, seu grupo foi

    enfraquecido, possivelmente, pelo acordo que fez com Moawiya, o governador

    da Síria que era parente de Othman, o terceiro califa, sendo Ali assassinado

    em 661.

  • 30

    Os principais Cismas

    Moawiya se proclamou o quinto califa, com o apoio da maioria do Islã. O

    núcleo do poder islâmico se transferiu de Medina para Damasco, capital da

    Síria, iniciando uma nova fase de expansão do Islã. Hassan, o filho mais velho

    de Ali, adotou uma posição conciliadora. Com a morte de Moawiya em 680,

    Hussein, o filho mais novo de Ali, reclamou direito à sucessão e foi morto por

    Yazid, filho de Moawiya.

    A questão da sucessão sempre foi conturbada no Islã. Com a ausência

    de um herdeiro masculino do profeta, o que seria natural seguindo costumes da

    tradição pré-islâmica, a comunidade teve que seguir um caminho e logo se

    formaram dois campos de opinião: aqueles que consideravam os membros da

    família do Profeta como seus únicos sucessores e aqueles que enfatizavam a

    igualdade entre os fiéis, afirmando que qualquer muçulmano poderia suceder o

    Profeta, desde que se mostrasse apto (Pinto, 2010, p. 73).

    Segundo Pinto (2010 a, p. 73), as principais divisões do Islã foram frutos

    de um processo que teve início logo após a morte de Muhammad e que se

    consolidou por volta do século IX. Percebe-se, também, que tais divisões têm

    pouco a ver com questões de dogma; são principalmente de origem política e

    dizem respeito à questão do califado, ou melhor, quais condições eram

    exigidas para que alguém fosse um califa.

    Os Xiitas

    Este ramo despertou a atenção do mundo ocidental, principalmente

    devido à chamada “revolução islâmica” ocorrida no Irã em 1978/7927. Como já

    descrito, este ramo teve início com os partidários de Ali, tio do profeta.

    27

    Segundo Demant (p. 230), a revolução iraniana de 1978/1979 é a única revolução islâmica dos tempos modernos que derrubou um regime secularista e estabeleceu um regime islâmico, expressado pela vontade política da grande maioria do povo. Essa foi também uma das maiores revoluções da história, que só se compara à francesa, à russa ou à chinesa. Importante destacar que Peter Demant escreve antes dos acontecimentos da chamada

  • 31

    O termo xiita vem de Shi’a (partidários). Para eles, o Califa deveria ter

    sido escolhido automaticamente entre os descendentes diretos de Ali e Fátima,

    ou seja, deveria ter sido da família do profeta. Conservam a lista oficial dos que

    deveriam ter governado o mundo muçulmano. Segundo Demant, 2011, p. 51, o

    xiismo se mostra mais suscetível a fragmentação sectária e mística. Isso

    também demonstra Jomier (1992, p. 42) quando descreve sobre os imanes28

    que determinado grupo declara serem doze e outro grupo declara que foram

    somente sete.

    Os que reconhecem doze imanes são mais numerosos. De uma forma

    geral, os xiitas se subdividem da seguinte maneira: Xiitas Duocedimanos (que

    reconhecem doze imanes) e os Ismaelitas (que reconhecem sete imanes).

    Dentre os Ismaelitas, existem os Musta’li e os Nizari. Os xiitas se caracterizam

    por uma grande devoção à família do Profeta, Fátima, Ali e os diversos imanes

    cujos túmulos são lugares de peregrinação. Além destas informações, destaca

    Jomier:

    Ficaram profundamente marcados pelas perseguições de que foi vítima a família de Ali, particularmente o assassinato do filho dele, Hosayn, em Karbala (no Iraque, na chegada ao vale cultivado da estrada procedente de Medina) em 680. Particularmente a paixão de Hosayn, morto por ter se oposto a Yasid, filho de Moawiya que se tornou califa, revalorizou entre eles uma certa sensibilidade pelo sofrimento, desconhecido ao Islã sunita; a cada ano a recordação deste evento é comemorada no dia 10 do primeiro mês do ano através de procissões nas quais figuram com frequência flagelantes (JOMIER,1992, p. 44).

    Segundo, Jomier (1992, p. 42) os xiitas perfazem 10% do total de

    muçulmanos, para Demant (2011, p. 220) este número chega a 15%. Estes

    números se referem ao total mundial, sendo que no Brasil este percentual é

    bem próximo deste número.

    “Primavera Árabe”. A expressão Primavera Árabe faz referência a uma série de protestos que ainda ocorrem no chamado “mundo árabe”, compreendendo basicamente os países que compartilham a língua árabe e a religião islâmica, apesar de etnicamente diversos. As causas já estavam de certo modo presentes e o descontentamento em vários países era já patente, pela comum falta de emprego e oportunidades para as gerações mais jovens, além da repressão política e a concentração de poder e riqueza na mão de poucos. Assim, já ocorria mobilização por parte de vários grupos, mostrando que este não era um fenômeno novo na região. 28

    Autoridade suprema legítima da umma muçulmana (correspondente ao califa). Para os xiitas, Ali e seus descendentes.

  • 32

    Os Sunitas

    Este é o maior grupo das divisões do Islã. Para eles o califa deveria ser

    escolhido dentre os árabes coraixitas, ou seja, da tribo de Muhammad, assim

    escreve Jomier (1992, p. 42). Já segundo Pinto, (2010 a p. 74), eles são os que

    evocam a tradição (Sunna), que não incluía regras de sucessão, sendo então

    seus líderes escolhidos através de eleições.

    Os dois grupos (sunitas e xiitas) também seguem diferentes coleções de

    Hadith, as narrativas sobre atos e palavras do Profeta. Isso porque cada lado

    confia em narradores diferentes. Sunitas preferem aqueles que eram próximos

    de Abu Bakr, enquanto os xiitas confiam nos que pertenciam ao grupo de Ali.

    Aisha, por exemplo, é considerada uma fonte importante pelos sunitas e

    desprezada pelos xiitas por ter lutado contra Ali. Atualmente no Brasil, assim

    como a média mundial, o maior número de muçulmanos é de sunitas.

    Além do Sunismo e Xiismo, existem em número bem menos expressivo

    os chamados Caregitas, que – segundo Jomier (1992, p. 42) – entendem que o

    chefe da comunidade muçulmana deve ser o muçulmano mais digno, sejam

    quais forem as suas origens. Já os Alauítas, citados no próximo capítulo, são

    compreendidos como uma seita xiita que tem uma crença diversificada e

    rejeitada pelos demais muçulmanos.

    Assim como na apresentação mundial, o Islã sunita é o mais praticado

    no Brasil. A SBMRJ é uma instituição que vive o islamismo sunita.

    A Mística Islâmica: Os Sufis

    A mística, de uma forma geral, é o que impulsiona a religiosidade

    humana. Muhammad teve um encontro místico quando estava em oração,

    dando início ao Islã.

    Ao movimento místico do Islã chamamos de Sufismo. Segundo

    Azevedo:

    O Sufismo nasceu historicamente com o Islã e é nesta tradição, e na civilização engendrada pela revelação corânica, que encontra ambiente propício para sua sustentação e florescimento. Como diz o contemporâneo filósofo das religiões Frithjof Schuon, “O Profeta

  • 33

    Maomé instituiu duas correntes tradicionais relativamente diferentes, simultaneamente solidárias e divergentes: uma legal, comum e obrigatória [o Islã] e a outra ascética, particular e vocacional [o Sufismo]”. Isto, contudo, não significa que o Sufismo não possa ser fonte de sabedoria e esclarecimento para aqueles que não seguem a religião fundada por Maomé ou Mohammed (como preferem os muçulmanos) no ano 622 depois do advento de Jesus Cristo, mas apenas que, em termos operativos ou práticos, a participação concreta no Sufismo é exclusiva aos que foram batizados em nome do Deus uno do Islã. Colocando as coisas de forma algo simplista, poder-se-ia dizer que o “sufi” do judaísmo é o cabalista e o “sufi” do cristianismo é o místico (Azevedo, 2002, p. 8).

    O sufismo possui diversos ramos chamados de confrarias, nas quais são

    utilizados textos do Alcorão, crendo que existem práticas diversas para se

    alcançar a verdadeira espiritualidade.

    Um dos elementos sobre os quais se assenta o Sufismo é o sentido da presença de Deus: não de uma presença tão íntima quanto a de Deus no Cristianismo, mas a de um Senhor amado cujas exigências se aliam a uma bondade muito grande para quem lhe obedece […] Os inícios do Islã terão sido marcados na história do Sufismo especialmente por dois fatores. Por um lado, a austeridade de vida, as orações em Meca e as vigílias noturnas, a pobreza da comunidade nascente em Medina deixaram lembranças que mais tarde os sufis gostavam de recordar (Jomier, 2002, p. 168-170)

    Apesar da identificação da mística islâmica estar presente desde

    Muhammad, assim destaca Shah sobre o início de métodos sufis:

    Data da última metade do século XI a adaptação dos preceitos dos sufismo para a constituição de uma escola islâmica organizada; sua extensão na forma de grupo esotérico foi inaugurada por um ramo da comunidade ismaelita liderada por Hassan Sabah, que tendo saído do Cairo por causa da perseguição dos ortodoxos difundiu uma forma modificada da doutrina ismaelita por toda a Síria e Pérsia.

    Toda prática religiosa evolui, pois a mente humana busca explicação

    para os diversos sentimentos que aparecem no contato com o sobrenatural.

  • 34

    O Alcorão29

    O Alcorão é resultado textual da recitação da palavra divina por

    Muhammad entre 610 e 632 a.d. (Pinto, 2010a, p. 45) Foi recitado oralmente

    antes de ser escrito. Os textos proclamados por Muhammad são considerados

    pelos muçulmanos como mensagens vindas de Deus por intermédio do anjo

    Gabriel. O Alcorão é composto de 114 suras (capítulos), cada uma dividida em

    ayas (versos). Possui 6.432 versículos e 77.930 palavras. A maior parte do

    Alcorão é escrita na primeira pessoa do singular ou do plural (Challita, 197? p.

    27)30, e contém algumas histórias da Bíblia que citam várias personagens

    como: Adão, Eva, Noé, Abraão, Ló, Ismael, Isaque, Jacó, Moisés, Elias, Eliseu,

    Jonas, João Batista, Maria e Jesus. Observa também Jomier:

    A figura de Moisés é destacada desde as páginas mais antigas do Corão, no seu duplo aspecto de depositário da revelação e de líder de seu povo. Sob certos aspectos Muhammad apresenta-se então como um novo Moisés, o Moisés dos árabes. Nessa época o Corão não sublinha nenhuma oposição entre a nova religião e a dos contemporâneos que seguiam a Moisés ou a Jesus. Pelo contrário, em determinado momento cita estes últimos para confirmar a sua própria autoridade: “Se tiveres dúvida acerca daquilo que Nós te revelamos, pergunta aos que recitam a Escritura (sagrada) antes de ti” Corão 10,94 (Jomier, 1992, p. 22).

    O Alcorão é a base de fé do Islamismo e oferece normas e valores

    religiosos, morais e legais. De uma forma geral, os muçulmanos não aceitam o

    Alcorão traduzido como a Palavra de Alah, e sim como um comentário ao texto

    árabe.

    Ao citar a crença nos livros, que é um dos pilares da fé islâmica, Isbelle

    faz a seguinte declaração:

    As mensagens divinas, reveladas por Allah aos seus mensageiros, estão contidas em livros. À medida que estas mensagens iam sendo

    29

    Preferi utilizar o termo Alcorão, por verificar que as principais fontes de minha pesquisa assim o utilizam. Importante destacar que Luiz João Baraúna, tradutor do livro: Islamismo História e doutrina, de Jacques Jomier, prefere utilizar Corão. Etimologicamente os adeptos do termo Corão estão certos; porém, a maioria das palavras árabes ao passarem para o português, o artigo já vem incorporado, como nos seguintes exemplos: alfândega, açúcar, álgebra, algodão, alquimia, dentre outras. Importante destacar que existem edições do Alcorão que são chamadas: O significado do Glorioso Corão. 30

    O comentário de Mansour Challita na tradução que fez do Alcorão pela editora ACIGI, distribuído pela Record Distribuidora, não tem data de impressão.

  • 35

    esquecidas ou deturpadas, Allah enviava novas mensagens. Dentre estas encontramos o Torá de Moisés, os Salmos de Davi e o Evangelho de Jesus. O último desses livros é o Alcorão. (Isbelle, 2011, p. 8).

    Para o muçulmano, o Alcorão é a Revelação que deve ser seguida por

    ser a última das revelações.

    Apesar de considerar o Alcorão como única e indispensável palavra

    divina, o Islã aceita também outros livros revelados como a Torá (formada

    pelos cinco primeiros livros da Bíblia), os Salmos e os Evangelhos. Entretanto,

    à medida em que a comunidade muçulmana cresceu e evoluiu, surgiu a

    necessidade de se referir não só ao Alcorão, mas “às palavras e atitudes do

    profeta”. As palavras, hadithe; suas atitudes, a sunna.

    Para o muçulmano ainda se torna imprescindível a prática do que

    chamamos de cinco pilares do Islã.

    Os 5 pilares do Islã

    O Islã possui cinco pilares. São obrigações que o muçulmano deve

    cumprir no decorrer de sua estada na terra, para que assim possa ter êxito na

    outra vida (Isbelle, 2011, p. 14)31. São práticas básicas; estruturavam a vida

    islâmica em Medina, no início, e continuam a fazer sentido até hoje. Segundo

    Sonn (2011, p. 49), em torno dessas práticas e valores essenciais a primeira

    comunidade muçulmana foi criada e prosperou.

    O Testemunho (Shahaadah)

    “Não existe outra divindade exceto Deus e Muhammad é o Seu

    mensageiro”. A Shahada é uma profissão de fé. Na cerimônia para recepção

    de novos seguidores, o indivíduo deve recitar a frase em Árabe32, sendo aceito

    como membro pela comunidade após a declaração.

    31

    Livro: Descobrindo o Islam. O autor é membro da liderança da SBMRJ e filho de imigrantes árabes. 32

    La ilahila Allahwa Muhammad rasul Allah, pude presenciar tal cerimônia no dia 20 de Julho de 2012 na Mesquita da Luz no Rio de Janeiro.

  • 36

    Segundo Seda (2004, p. 25), os conceitos contidos no testemunho de fé

    podem ser explicados pela análise de cada uma das três partes que a

    constituem:

    A primeira parte é “outra divindade”[...], é uma negação do politeísmo.

    33 É uma negação da existência de qualquer entidade que

    partilhe de algum dos atributos de Deus. A segunda parte “[...] exceto Deus” é uma afirmação do monoteísmo. É o único a quem deve ser prestado culto. “Muhammad é o mensageiro de Deus” constitui a terceira parte da declaração de fé. Trata-se de uma afirmação da profecia de Muhammad, como o último dos profetas e mensageiros de Deus. Isso exige a aceitação incondicional do Alcorão e do que verdadeiramente foi dito por Muhammad, assim como as suas tradições. (Seda, 2004, p. 25-26)

    As orações diárias (Aslat)

    Os muçulmanos oram cinco vezes ao dia: na madrugada (fajr), ao meio-

    dia (zuhud), no meio da tarde (‘asr), ao pôr do sol (maghrig) e à noite (‘isha).

    Como as orações são marcadas pela posição do sol ou da lua no céu, elas não

    possuem hora fixa, variando de acordo com a época do ano (Pinto, 2010a, p.

    56). Para a organização do trabalho no Brasil, entidades como a UNI34, sediada

    em São Paulo, elaboram calendários com os horários nas cidades onde se

    encontram as instituições associadas.

    Segundo Jomier (1992, p. 97), todo muçulmano a partir da puberdade e

    sob algumas condições especiais (especialmente de pureza legal) é obrigado a

    efetuar individualmente cinco orações cotidianas. Torna-se importante destacar

    que embora não seja obrigatória a ida a uma mesquita, tal fato é recomendado

    (Pinto, 2010a, p. 56) especialmente na oração de meio-dia da sexta-feira, que

    vem acompanhada de um sermão. Outro aspecto muito importante para o

    muçulmano é que as orações devem ser feitas com o orante voltado para

    Meca, como destaca Seda:

    É exigido ao muçulmano que realize cinco orações diárias obrigatórias. Um muçulmano dirige-se a Makkah (Meca), enquanto realiza essas orações, direcionando-se à primeira Casa construída para adorar ao Deus Único. [...]Um muçulmano pode, voluntariamente, orar mais vezes. As orações, no sentido geral de súplicas, podem, praticamente, ser oferecidas em qualquer momento e lugar. (Seda, 2004, p. 27)

    33

    Uma expressão muito utilizada pelos muçulmanos é que Allah não possui sócios. Para eles ma doutrina da Trindade é inaceitável. 34

    União Nacional das Entidades Islâmicas.

  • 37

    De uma forma geral, as orações consistem em recitações de versículos

    do Alcorão assumindo algumas posturas, incluindo ficar de joelhos, de forma

    que a testa toque o solo; também, em muitos casos, são utilizados tapetes. A

    oração é feita em estado de pureza (Jomier, 1992, p. 98), daí as chamadas

    abluções35, com finalidade de purificação.

    As esmolas (zakat)

    Jomier (1992, p. 109) chama as esmolas de imposto social, enquanto

    Sonn (2011, p. 48), as classifica como dádiva; Pinto, (2010 a, p. 109) chama de

    esmola ou caridade; Isbelle (2011, p. 27) denomina pagamento de esmolas

    anuais.

    O texto do Alcorão destaca em 2:43, 273-277, que todo muçulmano

    deve ajudar os pobres, os órfãos e as viúvas. Assim destaca Seda sobre o

    zakat:

    É dever de todo religioso muçulmano, suficientemente próspero para acumular a reter lucros, dar parte dos seus ganhos anuais aos mais necessitados. [...] zakat em árabe significa “purificação” [...] o pagamento dessas esmolas é uma forma que as pessoas, financeiramente estáveis, tem de purificarem os lucros honestos que Deus lhes concedeu. [...] valor médio dessas esmolas é de dois e meio por cento das poupanças acumuladas durante um ano. Essas caridades são deduzidas das poupanças, não dos rendimentos e salários. (Seda, 2004, p. 28)

    Destaca Jomier (1992, p. 109) que no início do Islã, as tribos que se

    “haviam submetido mas que em seguida se recusaram a continuar a pagar o

    Zakat foram atacadas militarmente e forçadas a se submeterem.” O beneficiário

    35

    Lavagem ritual. Ato de lavar-se com água antes de uma prece, simbolizando a purificação. Antes da ablução devemos ter consciência da oração e da intenção da mesma. Comece lavando as mãos, repita este processo por três vezes. Lave a boca com água, repita isto por três vezes. Limpe as fossas nasais, utilizando-se da água. Lave a face por três vezes. Lave o ante braço direito e esquerdo, repita isto três vezes; Limpe a cabeça; passa-se a mão direita em cima da cabeça até onde termina o cabelo, de trás para a frente, uma única vez. Limpe o ouvido com os dedos e atrás das orelhas, faça isto uma vez. Lava-se a nuca, uma vez. Lava-se os pés três vezes. Existem outros tipos de rituais de lavagem (consulta ao site http://www.mundoislamico.com/orando.htm no dia 4 de janeiro de 2013).

    http://www.mundoislamico.com/orando.htm

  • 38

    do zakat deve ser um muçulmano; desta forma, tal prática incentiva a unidade

    dentro da comunidade.

    O jejum durante o Ramadan (Sawm)

    Todo muçulmano que atinge a puberdade deve jejuar durante o mês

    Ramadan. O nono mês do calendário lunar muçulmano é especial, pois se

    acredita que neste período Muhammad recebeu a primeira revelação do

    Alcorão:

    Foi no mês de Ramadã que o Alcorão foi revelado, um guia para os homens, com provas manifestas para a orientação e o discernimento. Quem, pois, estiver presente durante este mês, que jejue; e quem estiver doente e viajando, que jejue durante outros dias em substituição. Deus deseja facilitar, e não dificultar. E ele quer que jejueis durante todo o mês e proclameis Sua grandeza pela orientação que d’Ele recebestes. E possais ser agradecidos! (Alcorão 2:185 - tradução de Mansour Challita)

    Destaca Pinto (2010 a, p. 61) que além da revelação no mês de

    Ramadan ocorreram outros episódios importantes para os muçulmanos. O

    nascimento de Hussein, neto de Muhammad e terceiro iman (líder) para os

    xiitas; a morte de Ali, quarto califa e o primeiro iman; a morte de Khadija,

    esposa de Muhammad; e a batalha de Badr, onde ocorreu a primeira vitória do

    profeta sobre as forças de Meca.

    O jejum é obrigatório para todo muçulmano que tenha atingido a

    puberdade e que goze de perfeita saúde física e mental. Mulheres gestantes,

    lactantes, menstruadas ou em resguardo e os enfermos ou em viagem estão

    isentos do jejum, devendo repor os dias não jejuados após o término do

    período que os impossibilitou. Esta reposição será feita após o mês sagrado,

    podendo ser em dias alternados ou seguidamente, mas terá como prazo o

    último dia antes do início do próximo mês de Ramadan.

    Para o idoso ou portador de uma doença incurável, o jejum deixa de ser

    uma obrigação, devendo fornecer uma refeição a um necessitado (ou o valor

    equivalente) por cada dia não jejuado, caso tenha condições. O jejum tem

    início ao amanhecer e termina ao pôr do sol da hora local. As mesquitas

    determinam o horário da alvorada e do poente referente a cada cidade com a

    finalidade de que o ritual seja cumprido de forma correta. Em algumas

    mesquitas, como na Mesquita da Luz, no Rio de Janeiro, a quebra do Jejum é

  • 39

    feita em conjunto para aqueles que têm acesso à mesquita todos os dias do

    mês.

    A peregrinação à Meca (Hajj)

    O muçulmano que disponha de recurs