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Universidade Presbiteriana Mackenzie Edilene Silveira Alessi Lautenschlaeger O DESENHO COMO MÉTODO de INVESTIGAÇÃO do PROCESSO de PROJETO DO ARQUITETO EDUARDO SOUTO de MOURA São Paulo 2017

Universidade Presbiteriana Mackenzietede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/3410/5/Edilene Silveira Alessi... · arquitectura e a sua relação com a vida. A história da arquitectura

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  • Universidade Presbiteriana Mackenzie Edilene Silveira Alessi Lautenschlaeger O DESENHO COMO MÉTODO de INVESTIGAÇÃO do PROCESSO de PROJETO DO

    ARQUITETO EDUARDO SOUTO de MOURA

    São Paulo 2017

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    Edilene Silveira Alessi Lautenschlaeger

    O DESENHO COMO MÉTODO de INVESTIGAÇÃO do PROCESSO de PROJETO DO

    ARQUITETO EDUARDO SOUTO de MOURA

    Dissertação de Mestrado apresentado á Universidade Presbiteriana Mackenzie

    Orientador- Profº Rafael Antônio Cunha Perrone

    São Paulo 2017

  • 3

    L389d Lautenschlaeger, Edilene Silveira Alessi O desenho como método de investigação do processo de projeto do arquiteto Eduardo Souto

    de Moura / Edilene Silveira Alessi Lautenschlaeger. – 2017. 123 f. : il. ; 30 cm.

    Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2017.

    Bibliografia: f. 116-122. Orientador: Antônio Rafael Cunha Perrone

    1. Desenho. 2. Eduardo Souto de Moura. 3. Casa das histórias. I. Título.

    CDD 712.0221

    145 f.:il. ; 30cm.

  • 4

  • 5

    Agradecimentos A todo o corpo de professores da Pós Graduação que se esforçam em nos conduzir ao caminho

    correto para o enfrentamento de nossa pesquisa.

    Agradeço ao meu orientador que já foi meu professor na Graduação, e agora na etapa do

    Mestrado mostrou-se mais amigo do que Mestre, sem perder de vista sua tarefa de me ajudar a

    construir um trabalho sério, ético e produtivo do ponto de vista da disciplina.

    Agradeço ao meu esposo e companheiro que não me deixou desistir quando as portas pareciam

    todas fechadas.

    E agradeço principalmente a DEUS, que literalmente

    carregou-me nos braços quando minhas forças se acabaram.

  • 6

    OBJETIVO

    Na pesquisa em arquitetura, além de requerimentos teóricos e procedimentos operativos

    baseados em metodologias e regulamentos técnicos, observamos também a parte

    sensível da criação. O projeto arquitetônico como todo processo de concepção não é

    claro, simples e direto, possui uma margem de imprecisão, subjetividades que aparecem

    em cada solução diferenciada, em cada percurso gerador da obra.

    O objeto desta pesquisa é a análise destes percursos utilizados pelo arquiteto português

    Eduardo Souto de Moura, na concepção e desenvolvimento de seus projetos. É grande

    o reconhecimento de seu trabalho, tanto em terras portuguesas como em outros países

    e suas obras foram amplamente divulgadas após a sua premiação do Pritzker em 2011.

    Ao estudarmos os documentos utilizados no processo de concepção de Souto de Moura,

    podemos observar seu modo particular de perceber o mundo, a singularidade do seu

    olhar associada à natureza de suas escolhas. Na tentativa de interpretação dessas

    subjetividades, podemos sustentar uma rede relações, que culmina com os processos

    de concepção de seus projetos. Essas investigações podem trazer novos instrumentos

    para uma reflexão teórica da sistematização da prática arquitetônica, com ênfase nos

    processos de percepção, apropriação e transformação do mundo, que não podem ser

    dissociados do discurso projetual do arquiteto.

  • 7

    RESUMO

    Em uma atualidade conectada ao mundo digital em vários níveis, o desenho, ferramenta

    de trabalho do arquiteto também se modificou, porém para alguns profissionais de uma

    geração formada na construção de esboços e croquis à mão livre, essa metodologia de

    trabalho persiste, e se transforma em objeto de estudo, este é o caso do arquiteto

    português Eduardo Souto de Moura.

    Seus projetos nascem de croquis em perspectiva que já contém uma forte identidade

    figurativa do edifício e do lugar. Para o arquiteto desenhar é solucionar problemas, e

    seus cadernos de desenho são sua biblioteca particular a que ele recorre

    eventualmente.

    Eduardo Souto de Moura frequentemente coloca sua ambição de uma arquitetura

    anônima, construir no tempo e no espaço com a sabedoria de mil anos. Ao longo de sua

    caminhada profissional adotou várias referencias no seu trabalho, mas sempre

    reinvidicou o direito à diversidade, como a arquitetura de Mies de onde resgata regras

    clássicas de composição, as analogias ao mundo de imagens que o cerca, estudo do

    sítio com pesquisas históricas, todo esse material lhe serve de repertório para seus

    projetos, e principalmente as lições de profissionais que estiveram e ainda estão

    presente na sua formação, e no seu convívio.

    Palavras chaves – Desenho - Eduardo Souto de Moura – Casa das Histórias

  • 8

    ABSTRACT

    In a contemporary world at various levels, the design, the architect's work tool also

    changed, but for some professionals of a generation formed in the construction of

    sketches and freehand sketches, this working methodology persists, and becomes a

    study object, this is the case of the Portuguese architect Eduardo Souto de Moura.

    Their designs are born from perspective sketches that already contain a strong figurative

    identity of the building and place. For the architect to draw is troubleshooting, and his

    drawing notebooks are his private library to which he eventually appeals.

    Eduardo Souto de Moura often puts his ambition to an anonymous architecture, build in

    time and space with the wisdom of a thousand years. Throughout his professional walk

    has adopted several references in his work, but always claim the right to diversity, as

    Mies's architecture from where he rescued classical composition rules, analogies to the

    world of images that surround, study the site with historical surveys, all this material

    serves him repertoire for his designs, and mainly the lessons of professionals who have

    been and are still present in their formation And in your conviviality.

    Keywords – drawing – Eduardo Souto de Moura – House of Stories

  • 9

    SUMÁRIO Objetivo...................................................................................................................................................5 Resumo.......................................................................................................................................................6

    Abstract......................................................................................................................................................7

    Capítulo I

    I. Desenho e projeto de arquitetura - Fundamentos das relações..................................10

    Capítulo II

    2. O arquiteto e seu país

    2.1 Portugal - contexto historiográfico..............................................................................15

    2.2 Eduardo Souto de Moura – Vivências........................................................................20

    Capítulo III

    3. A importância do Desenho

    3.1 Escola de Belas Artes.....................................................................................................29

    3.2 Escola do Porto.................................................................................................................32

    Capítulo IV

    4. O arquiteto e suas ferramentas projetivas

    4.1 Os cadernos de desenhos..........................................................................................43

    4.2 A presença de Mies Van der Rohe..............................................................................53

    4.3 Analogias e Referências.................................................................................................61

    Capítulo V

    5. Casa das Histórias Museu Paula Rêgo - Análise de Projeto

    5.1. Contexto.............................................................................................................................72

    5.2. Lugar...................................................................................................................................79

    5.3. Implantação.......................................................................................................................83

    5.4. Forma..................................................................................................................................88

    5.5. Circulação..........................................................................................................................99

    5.6. Iluminação........................................................................................................................104

    5.7. Materialidade...................................................................................................................109

    Considerações Finais........................................................................................................................116

    Referências Bibliográficas..............................................................................................................118

    Anexo I – Casa das Histórias – Projeto Completo................................................................130

  • 10

    “De tudo que se faz, permanece a poesia, vital para as pessoas e para a história”.

    https://www.google.com.br/url?sa=i&rct=j&q=&esrc=s&source=images&cd=&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwjaufOH6rDQAhUIQ5AKHY32CsQQjRwIBw&url=http://www.archdaily.com.br/br/office/eduardo-souto-de-moura/page/2&psig=AFQjCNHHYPRM_QQMkYuc0WGrbqTB98aZSg&ust=1479507715647769

  • 11

    CAPÍTULO I

    1. Fundamentos das relações: Desenho e Projeto de Arquitetura

    A arquitetura do terceiro milênio não se limita apenas às questões espaciais e à estética

    da forma do edifício. A complexidade do mundo atual pede abordagens diferenciadas e

    sensíveis para as necessidades do indivíduo, da coletividade, de forma que não possam

    ser trabalhadas somente de maneira conceitual e racional.

    Até mesmo grandes e conhecidos arquitetos não inventam as realidades da arquitetura,

    eles revelam o que já existe e o que potencialmente pode vir a existir, não somente

    através da resolução de problemas colocados no projeto, mas também na expressão de

    suas experiências de vida, suas sensibilidades éticas e estéticas, sua visão de mundo,

    entrelaçando os universos internos e externos. O arquiteto português Alexandre Alves

    Costa em um de seus textos para os Cadernos da Universidade do Porto também cruza

    o mundo existencial do profissional com a disciplina:

    A arquitectura não se inventa, avança sobre o real por pequenos passos, por pequenos distúrbios da realidade. Ela é sempre uma reavaliação da memória. Daí a importância da intuição, depois de aprender a ver a arquitectura e a sua relação com a vida. A história da arquitectura é, assim para os arquitectos, matéria instrumental, não para fazer história, mas para lhe dar continuidade. (COSTA, 2012, p.10)

    O processo projetual do arquiteto se desenvolve de forma intuitiva e criativa, na forma de

    incorporação e síntese, entre o corpo de conhecimentos disciplinares, e a realidade

    prática da obra. Assim como a manipulação de uma ideia inicial de projeto aonde o

    arquiteto vai moldando e construindo, a pesquisa acadêmica de certa maneira também

    se desenvolve nesse ir e vir de informações recolhidas, cruzadas e reformuladas para

    montar uma rede de relações onde possamos encontrar respostas às questões

    colocadas. Dentro da complexa organização do pensamento que rege a atividade

    artística, os processos de criação, assim como a intuição, articulam-se com o nosso ser

    sensível, permitindo transpor possibilidades latentes para o mundo, como coloca Fayga

    Ostrover:

    Ao transformarmos as matérias, agimos, fazemos. São experiências existenciais – processos de criação – que nos envolvem na globalidade, em nosso ser sensível, no ser pensante, no ser atuante. Formar é mesmo fazer. É experimentar. É lidar com alguma materialidade e, ao experimentá-la, é configurá-la. [...] sempre é preciso fazer (OSTROVER,

    2013, p.69).

  • 12

    O ato criador não significa poder fazer qualquer coisa, em qualquer lugar, sob quaisquer

    circunstâncias. Há uma constante linha de tensão entre o limite e a liberdade criativa.

    Um limite baseado em restrições internas ou externas à obra, que muitas vezes

    funcionam como mola propulsora do ato criativo, quando o artista se propõe a superar

    os obstáculos.

    A criação, como um processo em rede, destaca o estabelecimento de relações; no entanto, para compreender melhor o ato criador, interessa-nos a natureza desses vínculos, que podem ser observados sob o ponto de vista das singularidades das transformações operadas. Essas transformações acontecem nos modos como se dá a percepção do artista, nas estratégias da memória, nos procedimentos artísticos agindo sobre as matérias primas e na força da imaginação. (SALLES, 2010, p.26)

    O impulso criativo frequentemente trabalha como se imagens e palavras fluíssem

    independentemente do desejo e da intenção do criador. Durante o árduo processo de

    criação, além de impulsos do inconsciente, informações de todo tipo, conhecimentos,

    conjecturas, dúvidas, enfim, tudo o que o homem pensa e imagina, estará impregnado

    em sua obra. Na transposição de vivências e valores para a linguagem expressiva,

    encontramos as especificidades de cada artista, para Peter Zumthor, projetar em

    arquitetura significa cooperação entre intelecto e emoção (2009, p.21). O filósofo Henry

    Bergson confirma essa ideia;

    Tem-se, portanto razão em dizer que o que fazemos depende daquilo que somos; mas deve-se acrescentar que, em certa medida, somos o que fazemos e que nos criamos continuamente a nós mesmos. Essa criação de si por si é tanto mais completa, aliás, quanto melhor raciocinarmos sobre o que fazemos. (2005, p.07)

    Na sua tarefa de trazer respostas adequadas para questões e contextos colocados no

    projeto, a arquitetura é uma disciplina complexa. É técnica enquanto sujeita a

    regulamentos técnicos e metodológicos, mas pode ser arte, cujo repertório se compõe

    de ambiguidades e percepções, experimentações e vivências, ou seja, uma síntese do

    ser interior. O arquiteto Pallasmaa sintetiza: “Penso que a disciplina da arquitetura deve

    estar embasada em uma tríade de análise conceitual, execução de arquitetura e

    experiência – ou encontro – em todo seu escopo mental, sensorial e emocional.” (2013,

    p.150).

  • 13

    A disciplina da arquitetura repousa sobre um conjunto de princípios, que podemos

    chamar de fundamentos, dos quais o desenho é o principal. Desenhar para os

    arquitetos, é lançar uma proposição investigativa da realidade.

    Na construção de uma ideia arquitetônica podemos sugerir um paralelo entre a literatura

    e a arquitetura, onde o desenho é um texto sendo construído passo a passo. Desenhar é

    pensar, e cada linha traçada é como a escolha da palavra certa na construção deste

    texto. Cada esboço ou desenho contém parte do universo particular do arquiteto, e ao

    projetar o arquiteto “passeia” entre o desenho físico e sua imagem mental. “Desenhar é,

    ao mesmo tempo, um processo de observação e expressão, recepção e doação”.

    (PALASMAA, 2013, p.92)

    Em arquitetura, o desenho desempenha um papel fundamental através de sua inserção

    em uma rede de referências. Expressões como “o arquiteto teve uma ideia”, ou o

    “arquiteto desenhou uma ideia”, refletem a intimidade do profissional com o ato criativo,

    como relata Souto de Moura: “Na realidade, ao desenhar um esquisso, sou eu quem

    estou a olhar para a montanha ao longe tentando incorporá-la ao projecto;” (MOURA,

    2008, p.62)

    Para Vittorio Gregotti o ato de desenhar é para o amigo Álvaro Siza não só um tipo de

    escrita, mas um método de aproximação do projeto. O papel é o primeiro contato, e

    através de gestos no papel vão se definindo direções, organizando percursos,

    procurando tensões e relações de forma que essas ressonâncias mantenham a

    identidade original, elevem a uma organização do espaço e desenvolvimento do projeto.

    ”Desenhar é para ele também um modo de tomar contato físico com a folha branca, de

    exercitar a memória e o prazer de uma antiga sapiência dos gestos e do olho.” (SIZA,

    2007, p.13)

    Para Derdik (2010) desenho como linguagem, atravessa a história e as fronteiras

    geográficas e temporais. Exercício da inteligência, ele é desejo e vontade do criador

    para revelar-se. Viaja lado a lado com a rapidez do pensamento, responde às urgências

    expressivas, utilizando o mínimo de concretude com o máximo de atuação.

    Representar uma ideia por meio de um desenho não se limita a uma imagem figurativa,

    mas articula a mente do artista com o mundo, em uma complexa rede de

    conhecimentos, vivências e reflexões. Para os arquitetos desenhos representam sua

  • 14

    linguagem, não são apenas formas sendo retratadas, mas são pensamentos que

    orientam suas mãos. Para Palasmaa :”É impossível saber qual surgiu primeiro: a linha

    no papel ou o pensamento, ou a consciência de uma intenção. De certo modo, a

    imagem parece desenhar a si própria por meio da mão humana.” (PALASMAA,

    2013,p.94). Enfático defensor do desenho, para o arquiteto para Michael Graves

    arquitetura e desenho são indissociáveis, não importa o quanto evolua a tecnologia dos

    programas computacionais:

    Desenhos não são somente produtos finais: eles são parte de um processo do desenho de arquitetura. Desenhos expressam a interação das nossas mentes, olhos e mãos. Esta é a última e crucial razão para diferenciar aqueles que caminham em um processo conceitual para arquitetura e aqueles que somente usam o computador para desenhar. (GRAVES, Michael. A arte perdida do desenho) http://www.nytimes.com/2012/09/02/opinion/Sunday/architecture-and-the-lost-art-of-drawing> Acesso em: 15 jul.2012 (tradução autora)

    “O desenho é um dos primeiros momentos no desenvolvimento do projeto, é um

    processo concreto”. (LAPUERTA, 1997, p.91). Desenhar é riscar, arriscar, tentativa

    inicial de transformar pensamento em objeto comunicativo. O primeiro ato é imaginar e

    desenhar, e redesenhar, depois construir uma maquete, estudar o sítio, o edifício, a

    escala, volta-se ao desenho, e assim vai se estabelecendo uma circularidade entre

    desenho e realização. Sobre a repetição e a prática, observa Renzo Piano: “É

    perfeitamente característico da abordagem do artífice. Ao mesmo tempo pensar e fazer.

    Desenhamos e fazemos. O ato de desenhar [...] é revisitado. Fazer e refazer e fazer

    mais uma vez”. (SENNET apud ROBBINS, 1994, p.126).

    Um ponto importante para maioria dos arquitetos, é que os primeiros croquis não agem

    como instrumento mas como gerador de novos caminhos. Ferramenta aberta a

    possibilidades, os croquis se caracterizam justamente pela rapidez , densidade e

    diversidade de interpretações. Atuam na geração de imagens arquitetônicas, não como

    um fim em si mesmo, mas como um processo provocativo de perguntas e respostas,

    pois os arquitetos parecem identificar muito mais informações nos seus esboços do que

    eles realmente parecem conter. Segundo Nelson Goodman: “Os documentos dos

    arquitectos são uma mescla curiosa”. (LAPUERTA, 1997, p.69). Para o arquiteto e

    professor Rafael Perrone a importância do desenho ultrapassa o esboço do lápis e

    papel:

    http://www.nytimes.com/2012/09/02/opinion/Sunday/architecture-and-the-lost-art-of-drawing%3ehttp://www.nytimes.com/2012/09/02/opinion/Sunday/architecture-and-the-lost-art-of-drawing%3e

  • 15

    O desenho não só expressa uma obra, ele representa sua intencionalidade. No conhecimento e produção de obras, desenho e edificação cruzam-se constantemente. O signo que substitui, representa, também pré-figura, constitui e opera sobre novas concepções. (PERRONE, 1993 p.54).

    O desenho vai ser um dos principais fundamentos da Escola do Porto, como resume

    arquiteto e professor Alexandre Alves Costa:

    A arquitetura não se ensina, aprende-se projetando. Não se ensinam linguagens codificadas, mas aprendem-se nas escolas os instrumentos para o exercício projectual, sendo o desenho um instrumento privilegiado para a descrição, interpretação e construção da proposta transformadora. (COSTA, 2012, p.10)

    A Faculdade de Arquitetura do Porto vai se formar a partir do desmembramento da

    Escola de Belas Artes, onde o desenho desempenha um papel relevante, e a ênfase no

    conhecimento da realidade com foco no desenho será uma das premissas da chamada

    Escola do Porto.

  • 16

    CAPÍTULO II

    Arquiteto e seu País

    Não sei se as minhas obras foram excepcionais, mas este prémio é excepcional. Prefiro pensar que sou normal. Mas tem algum significado a entrega do prémio a um arquitecto do país mais marginal da Europa e talvez o menos vistoso dos arquitectos portugueses.

    Eduardo Souto de Moura

    2. 1. Portugal – Contexto Historiográfico

    O homem como produto de uma cultura, possui determinados valores específicos e

    modos de interpretar esses valores diante da sociedade e do mundo. A arquitetura como

    atividade humana inserida nesta cultura, sofre o peso da narrativa histórica e suas

    consequências, através de conceitos e reflexões que posteriormente orientarão a práxis.

    Em uma análise dos processos projetivos do arquiteto Souto de Moura, não se pode

    desconsiderar o quadro e as circunstâncias da história de Portugal no desenvolvimento

    de sua formação arquitetônica.

    Portugal com suas antigas fronteiras, sua atual uniformidade linguística e sua tradicional

    unanimidade religiosa, poderíamos presumir a existência de uma comunhão e uma

    manifestação de uma maneira de ser homogênea no seu território. No entanto Portugal

    é um país com enormes variações regionais, mais que generalizar, suas diferenças se

    contrastam e complementam em uma pluralidade de territórios e comunidades.

    Para se entender um pouco a cultura portuguesa, precisamos voltar no tempo. O Reino

    de Portugal foi fundado em 1139 entre os rios Minho e Douro, e com a estabilização de

    suas fronteiras em 1297, tornou-se o país com as fronteiras mais antigas do continente

    europeu. O atual território continental português constituiu durante a maior parte da sua

    História, apenas um ponto de partida da unidade política chamada Portugal, devido

    primeiro à expansão Ibérica e depois ás ilhas do Atlântico, África, América e Oceania.

    Até independência das últimas colônias em 1975, Portugal continental era apenas uma

    sede.

    Portugal é um país relativamente pequeno e isolado. Faz fronteira com a Espanha de

    um lado, e o Oceano Atlântico do outro. Esta situação geográfica, na qual a única

  • 17

    abertura se dava ao mar, foi uma das razões que impulsionaram a navegação do séc.

    XIII e XIV, e em consequência contribuiu para o poder de Portugal sobre suas colônias

    na época. O jornalista português José Manuel Fernandes em um artigo para o Boletim

    dos Arquitectos (FERNANDES, 2012, p.6) escreve sobre a internacionalização da

    arquitetura portuguesa, e faz um interessante paralelo ao colocar que este fenômeno,

    vem ocorrendo desde o século XV.

    O processo conhecido como Expansão Marítima, as conquistas de vários e sucessivos

    “impérios” transoceânicos, e a construção de várias cidades além-mar, atravessaram

    seis séculos, dos anos de 1400 ao século XX. Todo esse esforço, contudo, cobrou um

    alto preço do país, no final do séc. XIX, o país enfrentava uma sucessão de problemas à

    medida que começou a perder as antigas colônias e enfrentar dificuldades econômicas.

    Dentro do continente português algumas particularidades irão estabelecer o modo de

    desenvolvimento de sua cultura e economia. Na geografia do país, por exemplo, suas

    montanhas peninsulares possuem diferentes altitudes e cortam o território português em

    vales, montanhas e planaltos relativamente isolados e diferenciados o suficiente para

    que seus habitantes tenham desenvolvido formas contrastantes de relação entre si e o

    meio natural.

    Em 1946 o geógrafo Orlando Ribeiro em seu livro Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico,

    sistematizou a variedade do território em três sistemas ecológicos: norte atlântico, norte

    interior ou transmontano, e o sul mediterrâneo. O Sul possui 62% de suas terras baixas,

    com apenas uma serra de 1000m de altitude. Já na região Norte, 95% das terras estão

    em terreno de mais de 400m de altitude. O Norte é uma região úmida e chuvosa e o Sul

    possui uma estação bem seca e verões muito quentes.

    Isso gerou o isolamento de uma população em regiões onde havia apenas uma forte

    ação histórica (romana) em contraste com as portas de entrada do sul e suas constantes

    invasões, sob influência de diversas culturas mediterrâneas: fenícias, gregas, e a

    ocupação romana e árabe que deixaram no sul uma cultura, uma língua, estruturas

    familiares e práticas religiosas, e até opiniões políticas divergentes. (RAMOS,

    www.esferadoslivros.pt, 2014)

    Souto de Moura em uma entrevista sobre a restauração do Mosteiro do Bouro faz uma

    interessante colocação sobre essas diversidades da geografia do território português

    http://www.esferadoslivros.pt/

  • 18

    nas regiões: “Orlando Ribeiro fala muito bem, do granito duro do norte e celta, com a

    cultura árabe macia e mole, no sentido plástico, achei muito interessante.” Disponível em:

    Acesso em:11jan. 2016.

    Em um país de pequenas comunidades rurais, dificuldades de produção agrícola e

    dependente de matérias primas, Portugal foi um dos poucos países durante o século XIX

    e XX onde a industrialização não ocupou a maior parte da população ativa. O arquiteto

    Fernando Távora assistiu todo esse atraso do país, e o sofrimento de seu povo:

    A vida não foi fácil para os portugueses. Pobreza em seu próprio país, a busca de maior felicidade em outro lugar em um mundo que tinha aberto a expansão, permanentes dificuldades com o clima, etnias e culturas diferentes e, em arquitetura, a necessidade de criar soluções que eram menos acadêmicas e mais híbridas, rápidas, flexíveis e adaptadas. Não só: sempre ter que viver com um sentimento de pesar, a memória de alguém, algo ou algum lugar que tinha sido abandonado - senão a memória de alguém, algo ou algum lugar que eles ainda não tinham conhecido e de que eles nem sequer sabiam se havia existido ou foi apenas imaginação”. (VITALE apud Távora, 1997) (tradução autora)

    A consequência desses fatores resultou que os portugueses estiveram implicados nos

    grandes êxodos da Europa para a América e da Europa do Sul para o Norte. A

    proporção da emigração no fim do séc. XIX e início do século XX foi de tal modo que

    passou a depender de políticas conjunturais do Estado para sua diminuição, nas

    décadas de 1930 e 1940, isso contribuiu para Portugal manter sempre a mais baixa

    densidade do ocidente.

    Em 1933 com o regime do Estado Novo, uma nova situação se apresenta, com a

    instalação de um regime fascista em que dominava a autopromoção nacional. A partir

    dos novos valores defendidos, gerou-se um enorme centralismo no país que se refletiu

    no desenvolvimento de apenas algumas cidades portuguesas. Lisboa passou a estar

    claramente na proa do barco, com a reconstrução de monumentos e palácios, abertura

    de avenidas e edificações de grande porte do Estado, enquanto o restante do país ficou

    esquecido, quase ao abandono. Agravando as circunstâncias, a ideologia do radical

    nacionalismo, tratava tudo o que estava dentro das fronteiras do país de modo

    igualitário, de norte a sul, de leste a oeste ignorando-se a extrema diversidade de

    Portugal.

    http://expresso.sapo.pt/premio-pessoa/laureados/2010-10-31-Laureado-Premio-Pessoa-1998---Eduardo-Souto-de-Mourahttp://expresso.sapo.pt/premio-pessoa/laureados/2010-10-31-Laureado-Premio-Pessoa-1998---Eduardo-Souto-de-Moura

  • 19

    Em 1961 foi publicado o documento Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa até

    então, o primeiro estudo sobre a arquitetura vernacular de Portugal. Segundo LAND,

    quem folhear este estudo abre-se para a diversidade do território português e suas

    paisagens e os materiais utilizados presentes até hoje (2005, p.13). A necessidade deste

    estudo era reivindicada pelos arquitetos, mas somente teria inicio nos anos cinquenta de

    1955 a 1961. Os esforços necessários para se obter um conhecimento da arquitetura

    tradicional portuguesa, estavam na base de uma resistência contra a Teoria da Casa

    Portuguesa (LAND, 2005) cujo seu maior protagonista era Raul Lino. Esta arquitetura

    feita pela elite em cidades como Cascais e Lisboa, tinha como ideal passar uma imagem

    da arquitetura portuguesa regional e kitsch (notadamente neoclássica), em uma época

    nacionalista, e esta arquitetura eclética serviria aos interesses de uma política que

    cultivava as aparências em detrimento dos problemas reais do país. Por outro lado o

    Inquérito também formulava críticas ao movimento moderno dos encontros do CIAM,

    pois em Portugal já nos anos 1940 e 1950, a importância do contexto e do lugar era uma

    realidade para os arquitetos de Portugal.

    Após 25 de abril de 1974, um das questões problemáticas do país a ser colocadas para

    os primeiros governos provisórios é o “direito à habitação”. É um momento-chave, em

    que o arquiteto surge como agente social, tentando melhorar as condições de vida das

    pessoas. O processo SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local), lançado por Nuno

    Portas, então secretário de Estado da Habitação, torna-se marcante entre 1974 e 1976,

    e Eduardo Souto de Moura ainda na faculdade participa do projeto, e conhece Álvaro

    Siza, que na época não era professor da Escola, mas a pedido dos estudantes vai

    monitorar os trabalhos:

    [...] a experiência SAAL e o projeto Bouça Porto, posterior à Revolução de Abril foi muito estimulante, porque vivíamos um momento que nos tocava a todos não só como arquitectos. Ainda por cima, foi praticamente a minha oportunidade de trabalhar no centro da cidade (Porto) e num projecto para um grupo de vivendas, não para um edifício isolado [...] A acção era muito apaixonada, quase fulminante, não era um momento ideal para reflexão, era um momento para a acção, se é que se pode separar uma coisa da outra, e então [...] caímos na tentação de questionarmos toda essa acumulação de experiência ou de aprendizagem [...] as pessoas que optaram por recuperar as casas exigiam: “não queremos discutir mais estas coisas, vamos fazer os detalhes, as janelas, as portas, etc. Foi muito divertido ver os estudantes–porque várias intervenções realizadas foram feitas por estudantes e professores – voltarem ansiosamente à escola e dizerem temos que

  • 20

    saber fazer detalhes de janelas e essas coisas horrorosas! [...] (BELEM, www.incm.pt ,2015)

    Com a deposição do Estado Novo, uma nova constituição entra em vigor, e os

    portugueses voltam-se para a Europa após décadas de introversão. A Espanha também

    sai de um governo ditatorial em 1975, e depois de séculos de desavenças com os

    portugueses, abre-se a fronteira que tinha dividido o mundo em 1494. Em 1986 celebra-

    se então a adesão destes dois países à União Europeia.

    Pela primeira vez a Europa é o foco central de Portugal, e assim como foi absorvendo

    durante séculos as influências culturais das antigas colônias, recebe agora as influências

    da Europa Central. Esta dinâmica refletiu-se na arquitetura e na construção, pois

    enquanto nos anos 1970 o Estado sustentava a atividade da construção habitacional

    como prioridade, agora o interesse pela modernização do país vai ser dirigido para uma

    nova infraestrutura, com surgimento de bibliotecas, praças, quartéis, centros de saúde.

    Somente a partir do início dos anos 1980 com a estabilização política, a recuperação

    financeira do setor privado, e principalmente a adesão à Comunidade Comum Europeia

    em 1986 e a consequente chegada dos Fundos Estruturais, haverá um desenvolvimento

    de conjuntura nacional favorável aos investimentos.

    Com o dinamismo da economia e necessidade de igualar-se aos novos padrões de

    exigência da economia europeia, teriam início as encomendas da iniciativa privada,

    como sedes de bancos, escritórios e empresas multinacionais. A globalização

    econômica exigiu que Portugal acompanhasse a cena internacional, renovando a sua

    imagem e capacidade empreendedora.

    O território estendeu-se para além das fronteiras nacionais, e no panorama da produção

    arquitetônica, Portugal contaminou e foi contaminado por essa abertura. Mas é no

    projeto de Álvaro Siza (que já havia recebido o Prêmio Pritzker em 1995) para o

    Pavilhão de Portugal na Exposição Mundial de 1998, que o país encontraria através da

    arquitetura, sua grande visibilidade, como podemos constatar nas palavras do

    pesquisador em arquitetura Carsten Land:

    A admirável pala de betão concebida por Álvaro Siza que, como um baldaquino, dá sombra á praça de cerimônias do Pavilhão de Portugal, tornou-se de imediato na imagem-marca da Expo ’98 e da arquitectura

    portuguesa contemporânea. (LAND, 2005, p.7)

    http://www.incm.pt/

  • 21

    Foram anos em que a arquitetura enquanto atividade profissional adquiriu forte

    protagonismo em Portugal, e um grande interesse dos jovens pela faculdade de

    arquitetura como aponta o arquiteto Nuno Portas:

    [...] ganhou importância política e visibilidade social, isto é, popularizou-se, acabando por se tornar [...] um valor acrescentado de políticos, gestores de fundações, em grupos empresariais e, em consequência, objeto de marketing ou valor mediático e turístico que já não pode ser

    subestimado. (PORTAS, 1991, p.35/ 36)

    Eduardo Souto de Moura costuma afirmar que o início de sua carreira estabeleceu-se na

    convicção, ou na ilusão, de que havia um projeto de modernidade por cumprir, num país

    que experimentava, simultaneamente, a ressaca de uma longa era de imobilismo e a

    desejada festa do fim de um período tão difícil.

    Com uma grande capacidade de olhar o vasto universo da arquitetura no contexto da

    sua formação e criar uma linguagem própria e diferenciada, o jovem Eduardo Souto de

    Moura vai destacar-se como figura de relevo no grupo de jovens arquitetos do norte que

    irão revolucionar o modo de pensar a arquitetura em Portugal. Toda a problemática dos

    CIAM (Congresso Internacional da Arquitetura Moderna), e os dogmas do movimento

    moderno serão questionados, em função de uma necessidade integradora da arquitetura

    em seu contexto, com sua historia.

    Esse jovem arquiteto vai aproveitar as circunstâncias do momento da arquitetura como

    um elemento propulsor do ato criativo e através do desenho vai expressar seu

    pensamento e sua poética como ferramenta para a transformação da realidade do país.

    Figuras singulares estarão à sua volta, e serão referências em todo seu caminho

    profissional como Álvaro Siza e do mestre Fernando Távora do qual levará sempre

    consigo (inclusive em suas palestras) as palavras do professor: “A boa arquitetura é

    aquela onde as pessoas se sentem bem”. (BELEM, www.incm.pt, 2015)

    http://www.incm.pt/

  • 22

    2.2. Eduardo Souto de Moura – Vivências

    O que você espera que o Prêmio Pritzker possa trazer? “Estabilidade, que é algo que eu preciso”.

    Eduardo Souto de Moura

    O prémio Pritzker foi instituído pela Fundação Hyatt, de Chicago, em 1979, por sugestão

    de Philip Johnson, primeiro ganhador e responsável pelo credito inicial do prêmio, hoje

    frequentemente descrito como o "Nobel" da arquitetura. O processo de seleção do

    premiado parte de uma consulta a profissionais ligados à área da arquitetura (não só

    arquitetos, mas também políticos, críticos, historiadores, etc.), completado pelas

    nomeações que qualquer arquiteto pode submeter sobre as quais um júri delibera no

    início de cada ano. “Os seus edifícios apresentam uma capacidade única de conciliar,

    simultaneamente, o poder e a modéstia, a coragem e a subtileza, a ousadia e a

    simplicidade”. Estas foram as palavras utilizadas pelo júri ao anunciarem o nome do

    vencedor do Pritzker de 2011 - e ainda:

    [...] destacar uma prática sustentada de resistência ao imediatismo da cultura contemporânea, estruturadora de propostas de continuidade com a história milenar da nossa área disciplinar, numa síntese equilibrada da tríade vitruviana que aparece gravada no reverso da medalha oferecida ao premiado.

  • 23

    mais sofridas. Gosto de contradições, de inquietude, da palavra do Pessoa

    ‘desassossego’.” (BELEM, www.incm.pt, 2015).

    No período de 1981 até 1990, é convidado para professor assistente no curso de

    arquitetura da FAUP (Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto) e, a partir de

    1988, é professor convidado de diversas faculdades de Arquitetura: neste mesmo ano

    na Faculdade de Paris-Belleville, em 1989 nas Escolas de Arquitetura de Harvard e

    Dublin, nos anos 1990 e 1991, na ETH de Zurich e em 1994 na Escola de Arquitetura de

    Lausanne.

    Da Escola do Porto, o arquiteto Fernando Távora será seu mestre e uma de suas

    referências: “Creio que eu tenha recebido influências diretas, porém não transposições

    diretas, por exemplo, se tenho que reformar um edifício antigo, é muito difícil não fazer

    referência a Távora”. (ESPÓSITO, LEONI, 2013, p.14) (tradução autora). No amigo,

    professor e vizinho Álvaro Siza (possuem escritório no mesmo edifício, projetado por

    Siza), ocorre a mesma situação:

    Valorizo suas obras uma a uma, e não me deixo prender pelo seu tom, mas as considero como um Neufert subconsciente que surge em determinadas circunstâncias, sobretudo com relação aos materiais, cores ou qualquer outro elemento. (ESPÓSITO, LEONI, 2013, p.14) (tradução autora)

    Eduardo Souto de Moura aprecia a música de Miles Davis, os escritos de Fernando

    Pessoa, onde o livro do Desassossego é para ele o “diário do arquiteto”, e a poesia de

    seu amigo e escritor Herberto Helder, um dos maiores poetas portugueses que o

    denominou “o poeta das pedras”, e no discurso da cerimônia do Pritzker Souto de Moura

    o referencia: ”trabalhar na transformação, transmutação é obra própria nossa”.

    (ESPOSITO, LEONI, 2013, p.265) (tradução autora).

    O jovem arquiteto levou muito a sério o conselho de seu professor Fernando Távora na

    época da faculdade, quando lhe disse que um arquiteto precisa ser culto. No processo

    de reflexão que faz da sua própria arquitetura, procura aprimorar seu entendimento

    cultural de tudo que o rodeia, passando por música, artes plásticas, filosofia, tudo

    contribui para a maneira de entender o passado e a época em que ele vive Álvaro Siza o

    admira:

    Ele tem uma ideia de cultura global, tão difícil de manter, quando constatamos a que ponto o saber e o pensamento são fragmentados,

    http://www.incm.pt/

  • 24

    divididos em disciplinas por vezes herméticas entre si. Ele vela por não se deixar fechar por uma abordagem disciplinar e demasiado particular dos problemas. (BELEM, www.incm.pt, 2015)

    Adequação é a palavra que sintetiza sua maneira de ser e fazer arquitetura, que procura

    a racionalidade na disciplina influenciada por Aldo Rossi (seu professor até o 4º ano da

    faculdade). Para Rossi é através de instrumentos teóricos e de análise onde o conceito

    da arquitetura como disciplina influencia o arquiteto, que podemos obter resultados que

    podem ser aplicados ao projeto, além da importância de um sistema que coloca a

    tipologia em relação com a forma e o local.

    Para Souto de Moura o processo de projeto é um caminhar progressivo entre o

    conhecimento, o entendimento e o saber fazer, com uma gramática de valores

    respaldados da arquitetura clássica como ponto de partida, pois para ele é onde tudo

    começa:

    Sempre entendi o Movimento Moderno como uma continuidade do Classicismo, por mais verborreia que se disse contra o Classicismo. No fundo, é um discurso de continuidade com meios técnicos e intenções diferentes, mas com um campo comum: as proporções, a relação da estrutura com a forma, a linguagem depurada. O Schinkel fazia essa relação com o Classicismo, não prescindindo das novas aquisições que havia de materiais. […] Ele usa o ferro, percebendo que o ferro é um novo material que pode substituir outros e que até dá para fazer Neogótico. E depois também deu o Mies, e por aí afora. Acesso em: 25 set.2016.

    Equilíbrio entre tradição e inovação, ritmos e proporções, distâncias e elementos, cheios

    e vazios, Souto de Moura se fixa no conceito de uma “arquitetura adequada”, construir

    um objeto com máximo rigor, que perdure e possa ser utilizado por várias pessoas: ”[...]

    do que deve ser a arquitetura na atualidade: projeto e construção, e como consequência

    disto, capacidade de transmitir ‘poieses’ sem intencionalidade. [...]” (ESPOSITO, 2013,

    p.39) (tradução autora)

    Segundo Souto de Moura no início de sua atividade profissional desenvolvia o projeto

    integralmente, dos esboços iniciais até o projeto de execução. ”Projectar significa colher

    informação do sítio adequado, como dizia Leonardo da Vinci, ‘algo mental”. (NUFRIO,

    2008, p.60) Para Álvaro Siza o projeto é “a procura da inteligência:” (NUFRIO, 2008,

    p.60), projeta-se para encontrar uma a solução e encontrando construímos.

    http://www.incm.pt/

  • 25

    Eduardo Souto de Moura alcançou com certa precocidade o cenário da fama

    internacional (ESPÓSITO, 2013, p. 46) e suas obras foram amplamente divulgadas nos

    meios de comunicação, o que acabou por incluí-lo entre aqueles profissionais

    referenciados, sobretudo pelos arquitetos mais jovens, não só de Portugal, mas com

    uma voz importante no debate internacional.

    O primeiro trabalho de Souto de Moura (1979) foi um monumento ao General Humberto

    Delgado na Avenida dos Aliados no Porto, mas não foi construído. Consistia em uma

    plataforma de concreto revestida de mármore na forma de um paralelepípedo com 50

    cm de altura de um lado e degraus que levam ao piso novamente de outro. Em um dos

    cantos um grande volume como se fosse um meteorito, esmaga a escadaria separando-

    a do volume principal. Segundo o arquiteto: Fig. 1

    A plataforma representa o espaço, o dia a dia das pessoas, dos cidadãos, enquanto a massa áspera de pedra, expressa “a força da repressão durante muitos anos sobre o homem, um povo, um território”. (ESPÓSITO, LEONI, 2013, p. 57) (tradução autora).

    Fig. 1 Maquete Monumento ao General Humberto Delgado – 1979 Eduardo Souto de Moura

    Fonte: Atlas de Parede, 2011, p.21.

    O primeiro projeto que colocou o jovem arquiteto em visibilidade no cenário arquitetônico

    foi o Mercado Municipal de Braga em 1980:

    Quando projetei o mercado há mais de vinte anos, a ideia básica era criar uma rua coberta, um fragmento da cidade que iria instituir uma malha urbana. Mas cidade cresceu demais, toda a malha urbana foi construída e agora o mercado está sufocado por escolas, comércios, e descontrolada especulação imobiliária. (MOURA, 2013, p.76) (tradução autora).

    Com o tempo o mercado perdeu a sua função e tornou-se um espaço abandonado.

    Souto de Moura foi chamado para transformar o espaço em um centro cultural. Para ele

  • 26

    demolir o edifício e construir um novo era mais sensato, mas a cidade foi contra, pois o

    edifício tornou-se um ícone arquitetônico e gostariam de preservá-lo. Souto demorou

    decidiu não preservar o ícone, mas destruir a forma que tinha projetado. Ele começou a

    reforma do lado oeste, preservando e restaurando a parede de granito, criando um novo

    caminho para o jardim antes do mercado do outro lado.

    Tempos depois, visitando a ruína em diferentes momentos, observei que o mercado foi usado como uma ponte, uma estrada que ligava as duas ruas principais da cidade. No projeto de conversão sugeri retirar o telhado, estabeleceu-se um jardim e uma rua, com um programa "cultural" para o pequeno espaço coberto que sobrou. (MOURA, 2013, p.76) (tradução autora).

    O arquiteto estabeleceu dois eixos ortogonais, preocupado com a inserção do edifício no

    terreno, “um fragmento da cidade capaz de se dissolver na malha urbana” (MOURA,

    2013, pg.76) (tradução autora) Fig.2.

    Fig. 2 Mercado de Braga 1980-1984- Esboço Eduardo Souto de Moura e foto

    Fonte: Moura, 2013,pg. 65. Foto:Moura,2013 pg.62

    Duas longas paredes, uma feita de blocos de granito em junta seca que pousa

    diretamente no solo, e outra de concreto pintado de branco colocada sobre uma base

    com três degraus de altura, e uma terceira parede formando um ângulo reto também em

    granito. Uma placa contínua como cobertura e 32 pares de pilares de secção circular,

    estruturam e organizam o edifício e seu entorno. Eixos ortogonais, linearidades,

  • 27

    articulação da forma arquitetônica com o lugar, trazendo forte identidade urbana; e uma

    abordagem referenciando Mies estruturando o edifício através de elementos verticais

    (pilares) e horizontais, (a cobertura plana), montando volumes livres e fluidos. Com este

    projeto o jovem arquiteto já lançava as bases do que seriam algumas das características

    da sua arquitetura.

    Segundo Souto de Moura os problemas do país vivenciados na época de seus estudos

    de arquitetura o levaram à procura de soluções: “Do que precisávamos era de uma

    linguagem clara, simples e pragmática para reconstruir um país, uma cultura, e ninguém

    melhor que o proibido Movimento Moderno poderia responder a esse de

    desafio”. Acesso em: 25 set.2016.

    As reflexões da Escola do Porto sobre a vanguarda do movimento moderno o levariam

    aos conceitos de Mies van der Rohe de um lado, e de outro a possibilidade de criar uma

    nova linguagem, e resgatar um país de seu atraso ao longo de décadas sem, contudo

    perder a identidade e a forma de construir local. A importância do sítio, os muros de

    granito aparelhados, que estariam muito presentes em suas obras residenciais, não por

    nostalgia, mas pelo respeito à materialidade, seriam uma característica marcante no

    início da sua carreira.

    Em um olhar mais atento podemos reconhecer a linguagem do Pavilhão de Barcelona, o

    pódio utilizado como acesso, a combinação construtiva entre estrutura e fechamento, e

    os materiais como diria Mies: ”[...] o que realmente interessa é a construção, quanto aos

    materiais, o que temos a fazer é utilizá-los corretamente [...]” (BELEM, www.incm.pt,

    2015) Fig. 3/4.

    Fig. 3 Mercado de Braga – 1980-1984

    Fonte: Desenho autora com base Livro – Moura, 2013, p. 60/63

    https://www.publico.pt/2011/06/03/culturaipsilon/noticia/discurso-de-souto-de-moura-ao-receber-o-pritzker-1497325https://www.publico.pt/2011/06/03/culturaipsilon/noticia/discurso-de-souto-de-moura-ao-receber-o-pritzker-1497325http://www.incm.pt/

  • 28

    Fig. 4 Pavilhão de Barcelona

    Fonte: Desenho do autora com base em foto acesso- 25 set.2016

    Segundo o texto de Antônio Espósito sobre a solução do arquiteto de deixar as antigas

    colunas como um jardim de ruínas: “[...] é difícil saber se foi irônico desinteresse ou um

    impulso autodestrutivo que levou Souto de Moura compor uma verdadeira ruína com um

    sabor pitoresco, com pedaços do edifício original. [...]”. (ESPÓSITO, LEONI, 2013, p.58)

    (tradução autora) Fig.5.

    Fig.5 Reconversão do Mercado de Braga – 1997- 2001

    Fonte: Moura, 2013, p.74

    Souto de Moura ao contrário de outros arquitetos, não esconde suas escolhas, suas

    referências, seu método de trabalho, e até dificuldades na hora de projetar (o que ele até

    aprecia) como, por exemplo, quando discorre sobre a oportunidade que teve de realizar

    o projeto do Estádio de Braga e “agarrou-a com os dentes todos”:

    Muito preocupado. Fiquei sem dormir. Mas resultou que ficou bom. Quando as situações são favoráveis, o cliente é bom, há muito dinheiro, não há crítica, o arquiteto não sente as contradições, o projeto não tem consistência. Só os problemas é que obrigam a procurar soluções. Esse projeto custou anos de minha vida, mas convenceu http://piniweb.pini.com.br/construcao/arquitetura/portugues-eduardo-souto-de-moura-vence-pritzker-2011-212388-1.aspx Acesso: 25 set.2016.

    http://divisare.com/projectshttp://piniweb.pini.com.br/construcao/arquitetura/portugues-eduardo-souto-de-moura-vence-pritzker-2011-212388-1.aspxhttp://piniweb.pini.com.br/construcao/arquitetura/portugues-eduardo-souto-de-moura-vence-pritzker-2011-212388-1.aspx

  • 29

    Da escala gigante do estádio ao restauro de edifícios históricos, passando por

    residências e instalações artísticas, a versatilidade de Eduardo Souto de Moura não se

    esgota, como prova o extenso trabalho do Metro do Porto, e até de uma hidrelétrica.

    Está construindo o projeto de uma barragem na região do Alto Douro, obra que muito

    empolga pelo seu tamanho, e também pelo universo de complexidades que começam

    no sítio, a montanha, passando pela opinião pública e os ambientalistas. Como diz: “A

    arquitectura é uma profissão interessante, mas os arquitectos são todos obstinados e

    obcecados. Nós temos a possibilidade de alterar mundo, para melhor”. Acesso em: 25 set.

    2016.

    O arquiteto que projeta como se fosse para ele: “Quando projeto uma casa é como se

    fizesse para mim [...] tento fazê-la ao máximo nível, de modo que o resultado satisfaça,

    sobretudo, o meu gosto pessoal” (BELEM, www.incm.pt, 2015), constrói espaços

    completamente diferentes, viaja, busca, lê, projeta e transforma os ambientes, para ele

    um eterno aprendizado. O arquiteto professor como coloca Margarida Belém (2015) se

    propõe a salvar memórias arqueológicas, trabalhar em equipe, respeitar a dignidade de

    um edifício de quatrocentos anos, retirar da pedra o necessário para construir um

    estádio, e acima de tudo trabalhar, trabalhar muito, contra todos os imprevistos, e as

    condicionantes e com a mesma paixão como se fosse a primeira vez.

    http://obviousmag.org/archives/2011/04/eduardo_souto_moura_os_sonhos_inventam-e.htmlhttp://obviousmag.org/archives/2011/04/eduardo_souto_moura_os_sonhos_inventam-e.htmlhttp://www.incm.pt/

  • 30

    CAPÍTULO III

    3. A importância do desenho para o arquiteto

    Eu acho que é preciso ‘roubar’ a um professor, mas não as

    formas ou as obsessões pessoais, mas a forma com a qual

    ele observa a arquitectura e a paisagem. A forma como ele

    define a primeira ideia de um projecto e como aos poucos a

    põe à prova com funções, técnicas construtivas e materiais.

    Eduardo Souto de Moura

    3.1 A Escola de Belas Artes

    A formação dos arquitetos á época de graduação de Eduardo Souto de Moura (1981-

    1989), vinha da Escola de Belas Artes do Porto ou de Lisboa. As aulas de arquitetura

    eram ministradas junto com os estudantes da Escola de Belas Artes, o que propiciou a

    eles, profundos conhecimentos em artes e desenho, e também contato estreito com as

    vanguardas e culturas de experimentação baseada em conceitos artísticos.

    A história da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto remonta a uma

    solicitação da Junta Administrativa da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do

    Alto Douro ao rei para a criação de um estabelecimento de ensino – Aula de Debuxo e

    Desenho – (grifo nosso) por um decreto em 27 de Novembro de 1779, para auxiliar as

    indústrias da cidade do Porto. O primeiro professor foi Antônio Fernandes Jácome.

    Em 1802 foi substituído pelo pintor Vieira Portuense, e por ocasião da abertura solene

    das aulas nas quais contavam já com 120 alunos inscritos, designa por Academia essa

    Aula de Desenho, tentando assim dignificar a instituição e apelando para uma formação

    mais completa, apoiada em sólidos e diversificados estudos teóricos, bem como em

    exemplos artísticos de qualidade.

    Depois de uma reforma em 1836, contemplando um reforço do número de docentes e

    disciplinas, Passos Manuel, ministro de D. Maria II, funda as duas Academias de Belas

    Artes portuguesas, uma em Lisboa e outra no Porto (LISBOA, 2007, p.33), que na parte

    pedagógica englobavam o ensino do Desenho, de Pintura, Escultura e Arquitetura Civil,

    com antecedentes históricos que remontam a 1577 e 1594, datas que, respectivamente,

    foi reconhecida em Portugal a Pintura como Arte (e não mais apenas ofício) e iniciou-se

  • 31

    o ensino da Arquitetura Civil. Nas duas Academias, haveria ainda um curso preparatório

    de Desenho e na cidade do Porto a instituição passaria a denominar-se Academia

    Portuense de Belas-Artes.

    No projeto pedagógico das academias de Belas Artes de Portugal, divisam-se duas

    linhas de formação: uma que apontava para o ensino dos futuros artistas das chamadas

    ‘belas-artes’; e a outra linha dirigia-se à preparação dos artistas ‘fabris’, passando agora

    para o Estado a responsabilidade da formação profissional, tarefa das antigas

    corporações de ofícios. (LISBOA, 2007, p.15/ 16)

    Segundo a historiadora Maria Helena Lisboa, apesar de assimilarem em linhas gerais o

    modelo francês, as Academias de Belas Artes portuguesas ampliaram com uma

    formação inovadora com essas duas linhas de ensino: Fig. 1

    Na primeira metade do século XIX, nenhuma das academias de arte

    europeias, e muito menos as francesas, estavam em condições de

    encaram a possibilidade de dirigir os seus estudos artísticos também para

    as Artes e Ofícios. (LISBOA, p.15/16)

    Fig.1 Foto Academia Belas Artes do Porto

    Fonte: http://www.repositório-tematico.up.pt acessado 15 ab. 2017

    A implantação da República em 1910 trouxe consigo a extinção das Academias de Belas

    Artes, criando-se conselhos de Arte e Arqueologia em sua substituição. O

    funcionamento da Escola do Porto manteve-se sensivelmente dentro dos mesmos

    moldes até 14 de Novembro de 1957, data em que foi promulgado o diploma que

    http://www.repositório-tematico.up.pt/

  • 32

    aprovou o Regulamento das Escolas Superiores de Belas-Artes. A organização dos

    cursos de Pintura e Escultura é remodelada passando a serem considerados cursos

    superiores. É criado o Curso de Arquitetura com duração de seis anos.

    Com a Revolução dos Cravos, as mudanças ocorridas na Escola Superior de Belas

    Artes após 25 de Abril de 1974 repercutiram na sua estrutura pedagógica e científica.

    Verificou-se a reformulação dos cursos de Pintura e Escultura, os quais adquiriram a

    designação de ‘Artes Plásticas’. Entretanto em 21 de Dezembro de 1979, é criada a

    Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto fato que entre outras implicações,

    significou a desvinculação do Curso de Arquitectura da Escola Superior de Belas Artes.

    Na realidade, porém, o Curso manteve-se em funcionamento na ESBAP ainda durante

    alguns anos, pois só em Outubro de 1984 é que foi aprovada a nova estrutura curricular

    da Faculdade de Arquitetura. Em 1994 a Escola Superior de Belas Artes do Porto

    também passou a fazer parte da Universidade do Porto e a designar-se por Faculdade

    de Belas Artes.

    Em Portugal, as Academias seguiram o princípio e a prática de um ensino fundamentado

    no Desenho como coloca Margarida Acciaiuoli:

    [...] como processo de inter-acção entre a pura criação e a prática

    artística, pelo que se tornou a principal matéria ensinada. Se é verdade

    que em outras Academias estrangeiras a mesma realidade se verificava,

    entre nós tomou relevância maior, uma vez que para além de adquirir

    uma função preparatória para todos os outros cursos – Arquitectura,

    Pintura, Escultura e Gravura – o desenho acabaria por constituir-se em si

    mesmo como uma formação artística completa, sendo por essa razão o

    curso mais frequentado quer por alunos estudantes desses cursos, quer

    por alunos aprendizes ou oficiais das ‘artes fabris”. A principal aposta no

    ensino era por conseguinte, a do seu centramento no Desenho .(LISBOA,

    2007,p.8)

    Situado na zona oriental da cidade do Porto, a alguns minutos do centro histórico, o

    edifício da Escola de Belas-Artes ocupa um antigo palacete do século XIX. Idealizado

    por António Forbes, o Palacete Braguinha foi construído entre 1863 e 1873, já após sua

    morte depois de uma viagem o Brasil, a viúva Maria do Carmo Rodrigues, mandou

    concretizar o projeto. O edifício esteve sempre nas mãos de homens de negócios, tendo

    servido de palco a várias atividades culturais da cidade do Porto. Em 1917, após a morte

    de um dos seus proprietários, José Braga, o palacete é ocupado pelo Instituto Superior

  • 33

    de Comércio do Porto, e onze anos mais tarde, vai dar lugar à Escola de Belas-Artes do

    Porto. Fig. 1/2

    Fig. 1 Fachada da Escola de Belasr Artes do Porto Fig. 2 Jardins da Escola de Belas do Porto

    Fonte: http://wooportugal.com/2016/02 acesso 15 ab.2017 Fonte https://sigarra.up.pt/fbaup/pt/

    Em relação à Faculdade de Arquitetura do Porto, que foi desmembramento da Escola

    de Belas Artes, a disciplina do Desenho continuou sendo fundamental na formação dos

    alunos até os dias de hoje, e segundo o professor Jorge Figueira, o que há de melhor e

    de pior da Escola:

    […] como instrumento convencional e consistente, na tradição

    humanística de representar o homem no centro de onde parte o espaço

    imaginado, ligando o exercício projetual às tradições da arquitetura,

    integrando as regras de composição nas regras de representação, o

    desenho é um mecanismo insubstituível mecanismo de domínio do

    projeto, da sua invenção e verificação […] E como lado negativo se

    coloca quando o desenho se torna no “campo de concentração que se

    pensa poder substituir a crítica e o conhecimento; que encarcerará

    modos e permitirá tiques, rotinas no projeto. (FIGUEIRA, 2002, p. 100)

    http://wooportugal.com/2016/02https://sigarra.up.pt/fbaup/pt/https://www.google.com.br/url?sa=i&rct=j&q=&esrc=s&source=images&cd=&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwjs8-6espjTAhXMfZAKHbWGDKEQjRwIBw&url=http://wooportugal.com/2016/02/sabados-sao-dias-de-cinema-na-faculdade-de-belas-artes/&bvm=bv.152174688,d.Y2I&psig=AFQjCNH4bll7G_pJln7FJDvtSLEoj1xldg&ust=1491862258252752

  • 34

    3.2. Escola do Porto

    A Faculdade da Arquitetura do Porto pode ser entendida como uma escola onde o

    ensino de projeto principalmente no ateliê segue a linha de tradição artística herdada da

    Escola de Belas Artes, assumindo o desenho como instrumento necessário para o

    processo de projetação. Entre os ensinamentos das escolas de Belas Artes de Lisboa e

    Porto, esta última possuía as plataformas mais progressistas.

    Entre os principais arquitetos que deixaram suas marcas na Escola, encontra-se

    Marques da Silva entrando na Escola de Belas Artes do Porto como professor da

    cadeira de Arquitetura Civil em 1906, lecionando até sua aposentadoria em 1939. Na

    época em que é convidado a participar do corpo docente da Escola, Marques da Silva já

    era um arquiteto prestigiado na cidade do Porto e lecionava no Instituto Industrial e

    Comercial do Porto. De formação na Escola de Belas Artes do Porto, Marques da Silva

    frequentou o atelier de Victor Laloux em Paris, na época, a educação dos estudantes de

    arquitetura na França não se fazia na “École”, mas nos “ateliês”. Marques da Silva vai

    deixar como principal herança do seu ensino a exigência e o rigor, o prazer do desenho

    no sentido da plasticidade e uma atenção especial no caso dos projetos, dada à planta

    baixa (como parte predominante e geradora do projeto), qualidades que sobressaem nos

    trabalhos dos alunos desde sua atividade na Cadeira de Arquitetura Civil. (CARDOSO,

    1997, p.162)

    Carlos Ramos (1897-1969) assumiu a Escola em 1940 primeiro como docente e mais

    tarde, a sua direção em 1952. Neste ano formou-se Fernando Távora que sendo seu

    discípulo e colaborador foi convidado para ser seu assistente. O ensino de Carlos

    Ramos é marcadamente diferenciado da Escola de Belas Artes de Lisboa, onde as

    diretrizes são procedentes dos antigos mestres. Ramos defende que a formação do

    arquiteto deveria ser mais abrangente do que apenas desenhar e fazer projeto.

    A reforma do ensino das Belas Artes era uma necessidade sentida por vários arquitetos

    portugueses e uma aspiração das sucessivas gerações de estudantes. Interessante

    notar já em Agosto de 1933 que a preocupação com o ensino de arquitetura, que leva

    Carlos Ramos a fazer uma célebre “Palestra dedicada exclusivamente a todos os alunos

    da Escola de Belas Artes de Lisboa”, na qual coloca oito regras mínimas (ALMEIDA,

    1968, s/n) para o correto funcionamento pedagógico:

  • 35

    1 – “que o aluno de arquitectura não desenhasse um único traço sobre o papel branco

    sem saber o que traduz e a sua relação com todos outros”;

    2 – “que ao proceder ao estudo de qualquer problema de arquitectura o fizesse sempre

    de acordo com o local para onde se destina a natureza, a orientação e a topografia de

    um determinado terreno”;

    3 – “que as dificuldades e exigências de programas fossem sendo progressivamente

    ajustadas”;

    4 – “que sobre cada um dos pontos distribuídos se fizessem lições de teoria por forma a

    interessar nelas todos os alunos do curso”;

    5 – “que as visitas às obras em construção se fizesse todas as semanas”;

    6 – “que a existência de um museu de materiais de construção seja um fato”;

    7 – “que os temas para a execução de motivos de escultura e pintura resultem de

    exigências dos programas e pontos da arquitectura, e que dali sejam emanados para as

    respectivas especialidades, concedendo aos alunos que num tal conjunto colaborem, e a

    faculdade de se reunir superiormente orientados para a indispensável troca de

    impressões”;

    8 – “que para os trabalhos assim elaborados seja feita uma exposição anual de

    Arquitectura, Pintura e escultura, na Sociedade Nacional de Belas Artes”.

    Na EBAP, Carlos Ramos tenta dar alguns passos para implantação desses pontos;

    procurou melhorar as instalações, revolucionar as estratégias de ensino, aproximando a

    escola das condições reais da profissão, e de um modo geral, dinamizar a vida da

    escola para alunos e professores como, por exemplo, em 1949 quando organiza

    (financia) uma visita de estudos dos alunos do Porto à Exposição de Arquitetura

    Moderna Brasileira” em Lisboa (FILGUEIRAS, 1986)

    Em novembro de 1957 entra finalmente em vigor a aguardada Reforma que permitiu

    oficializar o aumento de docentes para a cadeira de Arquitetura, entre eles estarão o

    recém-formado Fernando Távora e Carlos Loureiro.

  • 36

    Carlos Ramos se aposentaria em 1967 e viria a falecer dois anos depois, deixando um

    vazio institucional, pois a ESBAP entrará em um ciclo de instabilidade crescente que só

    terminaria com a revolução de 1974. Segundo Fernando Távora que conviveu de perto

    com ele, Ramos amava abrir caminhos, mais do indica-los:

    Ramos criava, junto dos seus alunos, um clima de certa libertação formal, aliado à sua consequente responsabilização e ressalvava que esta libertação era um princípio de pedagogia, os temas da variedade na unidade e do nacional no internacional, como o moderno versus o

    clássico. (TAVORA, 1987, p.75)

    Nos anos 70 a Escola do Porto vai passar por um processo de descentralização

    disciplinar, o mundo em ebulição que a rodeia, vai arrastar o ensino da arquitetura para

    objetivos práticos e sociais, como responder às necessidades de habitação das

    populações da cidade. Com a Revolução dos Cravos a Escola vai tornar-se uma força

    de referência no processo revolucionário em curso, consciente de sua importância na

    possibilidade de realização dos objetivos sociais abertos pela nova realidade política.

    Na segunda metade da década de 1970, o envolvimento dos professores e alunos da

    ESBAP no SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local) vai marcar profundamente a

    identidade da Escola. O arquiteto Nuno Portas lecionava Projeto na ESBA de Lisboa

    entre 1965 e 1971, em 1974 vai aceitar o cargo de secretário da Habitação gerando um

    grande impulso para o Projeto do SAAL, onde a iniciativa teve seu maior impacto em

    Lisboa e no Porto.

    Foi uma ideia inovadora e um privilégio fazer parte de um momento histórico, comenta

    Álvaro Siza (2015) que estabeleceu um papel relevante. A pressão do debate popular na

    época foi um passo muito importante, completa Siza, pois a qualidade da arquitetura a

    ser construída dependia das discussões sobre as vivências pessoais de cada um, suas

    necessidades. Quando todos os envolvidos em um projeto opinam, o trabalho adquire

    uma densidade, uma complexidade que geralmente as residências sociais não

    possuem, pois o modelo já vem pronto a ser instalado. No caso do SAAL segundo ele, o

    resultado foi muito satisfatório e rico, e arquitetura em certa medida cumpriu seu papel

    social naquele momento. (BELÉM www.incm.pt 2015) Fig.1/2

    http://www.incm.pt/

  • 37

    Fig.1 Esboços de Álvaro Siza para o SAAL Bouça Social Housing, São Vitor, Porto 1974/1977.

    Fonte: http://www.moma.org - acesso 25 set.2016

    Fig. 2 Foto do Conjunto habitacional, São Vitor, Porto 1974/1977.

    Fonte: Atlas de Parede Imagens de Método, 2011 – ilustração 326.

    A introdução dos cânones modernistas coincide, com a realização do texto de

    Fernando Távora em 1941, O Problema da Casa Portuguesa e da pesquisa realizada

    para o Inquérito à Arquitetura (grifo autora), entre 1955 e 1961, no qual os arquitetos

    http://www.moma.org/

  • 38

    portugueses procuraram a face arquitetônica de Portugal. A partir da leitura das

    construções do país, a utopia do modernismo que balizava tudo como um horizonte

    abstrato que se construiria a partir do zero, será revista em função da procura do caráter

    na identidade cultural. Nuno Teotônio Pereira em Lisboa e Fernando Távora na Escola

    do Porto serão figuras importantes para uma reflexão e uma opinião crítica não só sobre

    arquitetura que se realizava no país, mas também sobre a própria profissão do arquiteto

    como descreve Álvaro Siza:

    Não foi um período tranquilo na universidade; havia reinvindicações estudantis, um debate sobre a situação do arquiteto, e era considerado quase um pecado pegar um lápis e desenhar. Foram as experiências do movimento do SAAL, que nos fizeram repensar e considerar a importância do desenho para as novas gerações. (ESPÓSITO, LEONI, 2013, p.09) (tradução autora).

    A Escola do Porto vai dispor de professores de grande valor como Álvaro Siza, Maurício

    Vasconcelos, Manuel Tainha entre outros, além de Fernando Távora que vai imprimir

    sua marca na escola. Em sua maioria os arquitetos eram figuras atuantes no exercício

    de sua profissão, o que vai levar os estudantes a uma estreita relação de alunos com

    professores, e o desenvolvimento de projetos antes restrito ao âmbito disciplinar, vai

    ganhar as ruas e os ateliers dos profissionais. Esses encontros promoveriam discussões

    muito além das matérias disciplinares, fato que acabaria integrando ideias inovadoras no

    ensino, contribuindo para uma nova identidade para a Escola.

    A inexistência de núcleos ou de figuras mais proeminentes, fizeram mestres e alunos

    percorrem juntos os novos caminhos, proporcionando um legado singular no ensino e na

    aprendizagem, um nível um pouco autodidata e experimental, aproximando-se de um

    processo mais receptivo às novas experiências da geração de jovens arquitetos.

    Foram anos de dúvidas e caminhos contraditórios, correntes que atravessavam a Escola

    desde os anos de 1950 criando tensões, a partir da década de 1960 vão encontrar na

    figura de Fernando Távora um porto seguro para a sua direção. Além de ser uma figura

    respeitada no meio arquitetônico, vai ser um elemento agregador em uma época de

    distensões, vai reunir capacidades necessárias para levar em frente os propósitos de

    Carlos Ramos. O arquiteto Fernando Távora terá um papel relevante na denominada

  • 39

    Escola do Porto, ou Escola Tendência como era denominada por Nuno Portas e Manuel

    Mendes. Mais que defender uma arquitetura portuguesa ou contemporânea, Távora vai

    apontar um caminho, uma metodologia, um “saber fazer”, que vai definir uma prática

    futura construída ao lado de um trabalho teórico. Diplomado pela ESBAP, e lecionando

    na Escola desde 1952, participa do Inquérito à Arquitetura e vai ser presidente da

    Comissão Instaladora da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto de 1979 a

    1984.

    Nesta árdua tarefa vai contar com a presença estabilizadora de Álvaro Siza, que

    permanecerá como uma referência na história da Escola. Os dois arquitetos lutarão pela

    autonomia da disciplina da arquitetura, pela afinidade na utilização dos seus

    instrumentos, especialmente o desenho, e na defesa e respeito pela memória da cidade,

    patrimônio que deve ser levado em conta nas intervenções. Estas serão as principais

    diretrizes que vão pautar o desenvolvimento e a história da Escola do Porto. E de forma

    contraditória, segundo Souto de Moura, o desenho um dos principais pilares do ensino

    na Escola não era prioridade: Não se faziam projetos nem se desenhava; a arquitetura

    era uma ciência social:

    Távora um dos meus professores era um dos poucos que nos pediam para projetar. Ele estava de acordo com a importância dos valores sociais, porém sustentava que não eram suficientes, e que era

    necessário projetar. (ESPÓSITO, LEONE, 2013, p.09) (tradução autora)

    Observando os esboços do jovem Souto de Moura enquanto brigadista do SAAL e aluno

    da faculdade, à primeira vista seus esboços demonstram pensamentos a serviço da

    inteligência, procurando respostas a questões ainda não formuladas. Seus desenhos de

    formas clássicas parecem jogos combinatórios, tentando se apropriar de uma imagem

    que possa representar o seu presente, revelar novas formas que de certa maneira

    incorpore a tradição clássica com a transgressão do movimento moderno, até então a

    única linguagem inovadora que se apresenta aos estudantes da arquitetura. A

    necessidade de procurar uma linguagem adequada ao momento e os problemas

    vivenciados na própria Escola o levam a escrever no seu relatório de estágio: “Projectar

    torna-se então um fenômeno cultural complexo. É o medo, é silêncio dos poetas, é o

    desespero legítimo do não desenho” (MOURA, 1980, p.4) Fig. 3.

  • 40

    Figura 3 – Desenhos Eduardo Souto de Moura – 1970-1974

    Fonte: Atlas de Parede, 2011, ilustração 54

    Para Távora mesmo em uma época de grandes incertezas, o ensino da arquitetura

    estará sempre de mãos dadas com a experiência do projeto, e quando o Processo SAAL

    demonstra a necessidade do desenho para o contributo social do arquiteto, a Escola

    encontrará nele uma das suas principais referências. Távora vai defender a

    sobrevivência do desenho na pedagogia da ESBAP, e Álvaro Siza vai assegurar a

    sobrevivência do desenho na atividade do profissional.

    Homem de cultura, Távora viaja durante toda a sua vida para estudar in loco a

    arquitetura de todas as épocas e dos diferentes continentes. Considera que um bom

    conhecimento da história da arquitetura está na base de um bom projeto. É essa base

    de conhecimento que procura incutir nos seus alunos, incitando-os a viajar. O saber

    tradicional aliado ao erudito, vai permitir ao arquiteto “certa liberdade” não se ligando a

    nenhum estilo evidente, o importante para ele é a qualidade atemporal da arquitetura.

    O arquiteto instituiu uma disciplina no primeiro ano do curso de arquitetura denominada

    “Teoria geral da organização do espaço,” e podemos observar sua forma de ensino

    através de um desenho que documenta uma dessas aulas de Távora (1.3.1991).

  • 41

    Geralmente não utilizava slides, preferia desenhar com canetinhas enquanto falava,

    prendendo assim a atenção dos alunos. Podemos observar com esses esboços, que os

    desenhos são as palavras que o arquiteto se utiliza para se expressar, neste caso

    ultrapassando fronteiras. Os croquis de Távora “falam” sobre projetos de cidades

    planejadas e suas diretrizes como Brasília e Washington e os famosos edifícios do

    Congresso Nacional e a Catedral de Niemayer em Brasília.Fig.4

    Fig. 4 Esboços de uma aula de Fernando Távora

    Fonte: https://restavora.wordpress.com acesso 25 set.2016

    Esta cadeira foi criada por Fernando Távora, e ainda hoje representa um dos pontos

    importantes na formação do arquiteto português, além de ensinar o arquiteto instigava

    os alunos a viajar a conhecer: ”[...]Num já longo percurso cruzam-se recordações,

    realidades e sonhos, o passado e o futuro, factos, lugares, imagens, ideias e formas,

    gentes, viagens e leituras, assim se construindo a vida e a obra de um homem e de um

    arquitecto.”Acesso em: 25 set 2016< https://revisitavora.wordpress.com/category/da-formacao-

    do-arquitecto/page/2/>.

    https://restavora.wordpress.com/https://revisitavora.wordpress.com/category/da-formacao-do-arquitecto/page/2/https://revisitavora.wordpress.com/category/da-formacao-do-arquitecto/page/2/

  • 42

    Para Souto de Moura a maior influência de Távora estava em alguns de seus princípios

    projetuais relevantes para o arquiteto como, o conhecimento do lugar, o contexto

    histórico e o papel fundamental do desenho, através do entendimento de proporções e

    escalas do projeto. Para o arquiteto Remo Dorigati (2008) o conceito de construir a

    forma através da disposição dos espaços, levando em conta à matéria, as dimensões, a

    continuidade, o respeito do lugar, realmente estavam a serviço do projeto e da

    sensibilidade humana, e não meros elementos estilísticos apoiados em uma tipologia.

    E em uma série de Cadernos em 2012, arquitetos importantes da Escola do Porto

    colocam suas ideias sobre o ensino, a disciplina e a própria Escola, como Jorge

    Figueira:

    Aquilo que hoje define a proposta mais qualificada no arco tenso da relação Escola do Porto com a contemporaneidade é a hegemonia no comando do acto criativo e a utilização da História num fluxo interpretativo de onde decorre o projecto de arquitectura. [...] A História que se lê e projecta, carregada de invenção, cria uma estrutura relacional, mas não inibe necessariamente a formulação do novo, sem o estigma do historicismo. (FIGUEIRA, 2012, p.6)

    Em um país saindo de um sistema político extremamente opressor, um povo sofrido com

    grandes dificuldades econômicas, isolado durante décadas, principalmente nas regiões

    do Norte como já vimos, vão determinar certas características da sociedade do Porto, e

    que por sua vez terão ressonâncias na arquitetura da Escola, como coloca Alexandre

    Alves da Costa “[...] no desenvolvimento da sua prática disciplinar, a mais seca de

    discurso teórico, afirma-se fazendo, em silêncio, puritana, respeitadora dos seus

    maiores, anti-cosmopolita e inquisitorial [...]” 1991, s/n). E quanto ao homem do Porto,

    sua essência se confunde com a natureza de sua cidade:

    O granito e um tempo mais lento e concentrado, um céu mais cinzento e a humidade permanente, condição das árvores de grande porte e de um verde único, fazem do homem do norte um ser independente e violento, com grande desejo de acção e mobilidade [...]. Primário e intuitivo, profundo e verdadeiro, generoso e profundamente individualista, exacerbadamente moralista, o portuense é também gostosamente perverso na sombra das aparências, por detrás do que se constrói. [...] (COSTA, 1991, s/n).

    Arquitetura como modo de aprender a modificar a circunstância criando novas

    circunstâncias, foi e tem sido princípio e experiência para o ofício do projeto. Não se

    pode projetar sem memória, sem a existência de uma relação com o existente, o mundo

    está em constante transformação, não iniciamos do zero, precisamos: “emprestar nosso

  • 43

    olhar para compreender, num processo de leitura complexa do objeto em si e na sua

    relação comparada com outros objectos”, segundo Alexandre Alves da Costa.

    Por todos os elementos expostos, a arquitetura portuguesa vai possuir características

    próprias, e obra arquitetônica de Eduardo Souto de Moura vai se pautar por ser uma

    síntese compositiva de todas essas vivências, ancorada em um rigor conceitual e

    respeito à historia.

    O arquiteto que aprecia Fernando Pessoa e a poesia pretende com sua arquitetura

    comunicar algo profundo, que tenha a ver com a evolução da disciplina e com o bem

    estar do usuário e a qualidade atemporal da boa arquitetura, herança de seu mestre

    Távora, também reverencia outros dois mestres: ”[...] se Siza me deu a ‘mecânica’ do

    projecto, Rossi deu-me a “epistemologia”, o suporte conceptual à leitura da realidade e

    do projecto.”(ESPOSITO, LEONI, 2013,p.162) (tradução autora)

    Para Souto de Moura a forma não é o objetivo, mas a consequência. As imagens de sua

    arquitetura que evocam aparente simplicidade são construídas através de complexas

    multiplicidades, não percebidas à primeira vista, sua estratégia para construir o que ele

    denomina “arquitetura anônima”. Para ele a arquitetura tem de estar próximo das

    pessoas e respeitar a história do homem: “Quando a natureza e o artefacto coexistem

    em perfeito equilíbrio, então se alcança o estado supremo da arte, o silencio das coisas.”

    (GUELL, 1998, p. 135) (tradução autora).

  • 44

    CAPÍTULO IV

    [...] possuo um livro vermelho 11x17 sempre ao meu alcance, ao lado de uma Bic. O que está escrito apesar de nada te m a ver com nada, são fragmentos que, por sua lucidez e essencialidade, coabitam entre linhas azuis, como se tratasse de um livro sério. É uma espécie de escrita automática, lenta – pratico desde os vintes anos – onde registro o que me interessa, mesmo sem saber por que, pois poderá ser útil mais adiante. Não é minha impressão ser pretencioso, porém quando o releio, quando tenho que montar um texto, é o meu livro preferido. Eu o reescrevo como uma colagem: são palavras de outros, as vezes minhas. De alguns nem sequer sei o nome. É como um reflexo condicionado, um vértigo sobre papel.

    Eduardo Souto de Moura

    4.1 Os cadernos de desenho como registro de referências

    Para o arquiteto, desenhar significa projetar, inventar o objeto, e ao mesmo tempo

    representá-lo. O desenho é a elaboração sensível de uma ideia, que encontra sua

    expressão na execução manual de um contorno, de um conjunto de traços. Por outro

    lado o desenho também pode ser entendido como desígnio, vontade e projeto. O

    desenho neste aspecto é concepção, invenção, atividade mental que orienta a execução

    manual.

    Esta dualidade no desenho de arquitetura deve ser vista de outro modo. O mesmo

    processo que alimenta a reprodução está presente de forma marcante nos

    procedimentos de “criação”. Desenhar um objeto é condição para concepção de uma

    forma imaginada. Assim a criação arquitetônica se faz por meio de traços, linhas, claros

    e escuros, e da presença de registros gráficos, memórias, anotações, experiências, e

    Edith Derdyk coloca uma metáfora interessante sobre o desenho autoral do arquiteto:

    O traço que caminha na folha de papel, resultante da conjunção mão/ gesto instrumento/ suporte, denota suas singularidades intransferíveis: o timbre e a impressão digital daquele que desenha. (DERDYK, 2010, p.131)

    O projeto arquitetônico envolve complexidades, além de resolver problemas racionais e

    satisfazer requisitos funcionais, técnicos e de outras naturezas. A arquitetura combina a

    singularidade da experiência profissional, com processos interdisciplinares. Segundo o

    arquiteto Louis Khan: “O mundo da arquitetura é o mundo no qual estão todas as outras

    coisas. No mundo da arquitetura, existe escultura, existe pintura, existe física, existe

  • 45

    música-tudo está dentro dele”. (KHAN, 1991, p.93). Nossos pensamentos não são

    abstratos ou alienados da realidade vivida, eles articulam, comparam, separam e

    fundem as experiências da vida, e a atividade criativa do arquiteto os elabora,

    transformado possibilidades em existência efetiva. O arquiteto inventa o objeto no ato de

    representá-lo, e na tarefa de desenhar e redesenhar ele vai solucionando problemas e

    criando alternativas.

    Para compreender o processo projetivo de um artista, analisamos tudo o que se

    costuma denominar hoje de “rastros”, no caso de Eduardo Souto de Moura, seus

    esboços, registros, cadernos de desenho, colagens nas paredes do escritório, enfim, sua

    própria experiência, ou certo “saber”, (grifo autora) como propõe Paulo Mendes da

    Rocha no livro “Maquetes de Papel”:

    [...] devemos começar invocando aquilo que a experiência humana acumulou em forma de conhecimento, desde as origens de nossa existência até hoje [...] se você vai fazer um projeto, antes de mais n