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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
O nativo-‐experimental:
Música experimental e seus contatos com a cosmologia nativo-‐ancestral da América do Sul
Jonathan Xavier Andrade
São Paulo 2015
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
O nativo-‐experimental:
Música experimental e seus contatos com a cosmologia nativo-‐ancestral da América do Sul
Jonathan Xavier Andrade
Dissertação apresentado à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Música, sob a orientação do Prof. Dr. Rogério Luiz Moraes Costa.
São Paulo 2015
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO, CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Dados fornecidos pelo(a) autor(a)
JONATHAN XAVIER ANDRADE
O nativo-‐experimental: Música experimental e seus contatos com a cosmologia nativo-‐ancestral da
América do Sul
Dissertação apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Sonologia. Aprovado em: ___/___/______.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr.:__________________________________________________________________________________
Instituição: ______________________________________________________________________________
Assinatura: ______________________________________________________________________________
Prof. Dr.:__________________________________________________________________________________
Instituição: ______________________________________________________________________________
Assinatura: ______________________________________________________________________________
Prof. Dr.:__________________________________________________________________________________
Instituição: ______________________________________________________________________________
Assinatura: ______________________________________________________________________________
Agradecimentos
A Rogério Moraes Costa pela predisposição, apoio e gratas experiências musicais
compartilhadas durante a realização desta pesquisa.
Aos professores Alexandre Zamith e Silvio Ferraz pelas relevantes e frutíferas contribuições
no exame de qualificação.
A Fernando Iazzetta pela oportunidade de participar do Núcleo de Pesquisa em Sonologia
(NuSom) que foi uma fonte indispensável de conhecimentos teóricos e técnicos para
direcionar esta pesquisa, possibilitando o contato com colegas experimentadores.
A Secretaria de Educación, ciencia, tecnología e innovación (SENESCYT) pela bolsa
concedida, que possibilitou toda a pesquisa.
A meus colegas Lílian Campesato, Julián Jaramillo, Alexandre Porres e André Martins pelas
contribuições e conversas sempre importantes.
A meus colegas da Orquestra Errante: Fábio, Migue, Mari, Max, Felipe, Antônio e Renato
por todas essas improvisações e sons compartilhados.
A Yonara Dantas pela ajuda nas correções do texto, seu trabalho foi fundamental para esta
pesquisa.
Ao professor Manuel Falleiros por suas importantes contribuições junto com o Coletivo
Improvisado.
A meus pais Verónica e Alfonso pelo seu apoio eterno e incondicional. A minha família por
estar sempre aí.
A María Sol por proporcionar o amor e a inspiração para realizar qualquer projeto de
transcendência.
Este trabalho está dedicado para minha irmã Johana (1990 – 2013) por ser luz, amor e paz.
Resumo
A dissertação procura compreender os acontecimentos musicais derivados do contato da
denominada Música Experimental com realidades musicais Nativo Ancestrais Indígenas do
continente sul-americano. Para isso, realiza uma contextualização histórica da evolução do
experimentalismo musical desde 1950, seguindo um percurso linear até a atualidade, onde se
destacam trabalhos e pesquisas de compositores ativos, que têm abordado especificamente as
relações entre música, cosmovisão indígena e o xamanismo dentro do processo de
experimentação sonoro/musical. Nesse contexto, se evidencia a criação de relações
transculturais, produzidas entre duas realidades heterogêneas que, na contemporaneidade, se
complementam. Para finalizar a presente pesquisa apresenta o trabalho prático, decorrente da
criação de partituras gráficas e instruções verbais, desenvolvidas com o grupo de pesquisa em
improvisação e experimentação musical Orquestra Errante (ECA-USP), onde foram
utilizados elementos conceituais e sonoro/musicais nativo-indígenas e eco-escuta em práticas
regulares de improvisação livre, evidenciando as dificuldades e possíveis estratégias para a
conjunção entre o nativo-natural e o experimental.
Palavras chave: Música Experimental, Compositores, Transculturalidade, Cosmovisão
nativa-ancestral.
Abstract
The thesis seeks to understand musical events derivate from the contact of the so called
Experimental Music with musical realities of Indigenous Native-Ancestry of the South
American continent. To do so, it performs a historical context of the evolution of musical
experimentation since 1950, following a linear path to the present, which features work and
research of active composers who have specifically addressed the relationship between music,
indigenous worldview and shamanism within the process of sound/musical experimentation.
In this context, it highlights the creation of cross-cultural relations, produced between two
heterogeneous realities that, in contemporary times, complement each other. Finally this
research presents the practical work, arising from the creation of graphic scores and verbal
instructions, developed with the research group in improvisation and musical experimentation
Orchestra Errante (ECA-USP), where are used conceptual and sound/musical elements forma
indigenous native-ancestry of South America and eco-listening in regular practices of free
improvisation, highlighting the difficulties and possible strategies for the conjunction between
two antagonistic elements, native-experimental.
Keywords: Experimental Music, Compositors, transculturality, indigenous native-ancestry
cosmology.
7
Sumário
Agradecimentos ........................................................................................................................ 4
Resumo ..................................................................................................................................... 5
Abstract ..................................................................................................................................... 6
Introdução ................................................................................................................................ 9
Capítulo 1. Dois Paradigmas da Música Experimental: Considerações históricas, metodológicas e tecnológicas ................................................................................................. 15
I. Primeiro Paradigma: O som como experimento na Europa ...................................... 15
A. Schaeffer .................................................................................................................. 16
B. Stockhausen ............................................................................................................. 21
C. Apontamentos finais sobre o som na música experimental na Europa ................... 25
II. Segundo Paradigma: Experimentalismo Musical na América do Norte ...................... 28
A. Características gerais do Happening e da Performance. .......................................... 28
B. Diferenças entre o Happening e a Performance ...................................................... 30
C. Atitude experimental norte-‐americana: “Cage and Beyond” .................................. 34
D. Apontamentos finais sobre o experimentalismo musical na América do Norte ..... 41
Capítulo 2 . Improvisação e Indeterminismo (free-‐jazz, partitura gráficas/event score, improvisação livre) .................................................................................................................. 44
I. Três tipos de “improvisação” ...................................................................................... 52
A. Free Jazz como Improvisação não estruturada idiomática. ..................................... 53
B. Partituras gráficas e event-‐score como Improvisação estruturada não idiomática 57
C. Free Improvisation como Improvisação não estruturada não idiomática ................ 68
II. Apontamentos finais sobre a improvisação e o indeterminismo na música experimental. ...................................................................................................................... 77
Capítulo 3 . A máquina fazendo música: suas origens e sua projeção na América do Sul ..... 81
I. Revoluções desde 1950 .............................................................................................. 81
II. As máquinas de manipulação sonora analógica e sua progressiva digitalização na música experimental ........................................................................................................... 84
III. Música Experimental na América do Sul: uma revisão histórica ................................ 93
A. Argentina .................................................................................................................. 95
8
B. Brasil ....................................................................................................................... 100
IV. Apontamentos finais sobre as máquinas fazendo música na América do Sul .......... 112
Capítulo 4 . O experimental nativo: Música experimental, cosmovisão indígena e tecno-‐xamanismo ............................................................................................................................ 118
I. Generalidades da cosmovisão indígena e seu processo transcultural na atualidade 120
II. Música, Experimentação e Cosmovisão indígena (Cergio Prudencio) ...................... 127
A. La Ciudad (1980 – 1986) ......................................................................................... 133
B. Apontamentos finais sobre o termo Nativo-‐Experimental no trabalho de Cergio Prudencio. ..................................................................................................................... 139
III. Tecno-‐Xamanismo na composição multimídia e performance. ................................ 141
A. O tecno-‐xamanismo na música multimídia de Matthew Burtner .......................... 149
B. Apontamentos finais sobre o termo tecno-‐xamanismo na composiçnao musical e performance. ................................................................................................................. 155
IV. Dois trabalhos de experimentação musical transcultural ......................................... 157
A. Tato Taborda – Amazônia: A Queda do Céu (2010) ............................................... 158
B. Mesías Maiguashca – Canción de la Tierra (2012) ................................................. 169
V. Apontamentos finais sobre a música nativa-‐experimental. ..................................... 178
Capítulo 5 . A prática entre o nativo-‐experimental e a livre improvisação .......................... 181
I. Orquestra Errante como improvisação ecológica ..................................................... 184
II. Experimentação com os instrumentos musicais nativo-‐ancestrais .......................... 190
III. Duas Peças ................................................................................................................ 200
A. Do natural ao artificial (instrução verbal) ............................................................... 203
B. Ñan Urkuman ......................................................................................................... 208
Conclusões ............................................................................................................................ 213
Referências ........................................................................................................................... 225
Anexos .................................................................................................................................. 237
Anexo A -‐ Entrevista com o compositor Mesías Maiguahca ............................................. 238
Anexo B -‐ Análise espectro-‐morfológica da peça eletroacústica El Oro ............................ 246
Anexo C -‐ Imagens de instrumentos andinos .................................................................... 256
Anexo D -‐ Instrução verbal da peça Do natural ao ancestral ............................................ 259
Anexo E -‐ Partitura gráfica da peça Ñan Urkuman ............................................................ 260
9
Introdução
A presente pesquisa realiza o levantamento de informações de contextos práticos,
teórico e históricos que vem sendo, desde 1950, os fatores que demarcam a música
experimental, que se configura como uma série de características, processos e tecnologias
conseguidas por meio de renovações e avanços progressivos dos meios tecnológicos e modos
de criação musical, que resultaram em estéticas abstratas e não-representativas. Constatamos
que, durante os quarenta anos de avanços e desenvolvimento dessa prática, não se
manifestaram quaisquer tipos de contato evidente entre a música experimental e as
cosmologias e tradições indígenas. Apenas entre as décadas de 1980 e 2000 observamos o
aparecimento de gravações, composições, compositores e instituições que se dedicam a
pesquisar a música, os instrumentos e o pensamento nativo-ancestral1 indígena da América do
Sul, conseguindo inserir os mencionados conhecimentos e tradições musicais autóctones do
continente na experimentação musical.
Nossa perspectiva é de que o novo, o moderno, o experimental e o inovador na música
podem ser influenciados por tecnologias ancestrais, ligadas ao conhecimento e
relacionamento com a ordem natural, relacionada aos ciclos solares e cósmicos ou a uma
procura por ritualizar os modos de criação musical experimental. As tecnologias ancestrais
permitem a conexão com o ritual, o natural. As Técnicas arcaicas do êxtase, como as citadas
por Mircea Eliade2 (1998); processos técnicos dominados pelo xamã da comunidade indígena,
que no contemporâneo, se relacionam com os mais variados meios de criação multimídias,
além de se converter em atribuições técnicas e tecnológicas que podem transitar dentro de um
contexto moderno, dando origem ao termo tecno-xamanismo, o mesmo que será explicado no
transcurso deste trabalho.
Por outra parte os instrumentos autóctones ancestrais começam a cobrar novas 1 O termo nativo-ancestral é usado por nós entendendo sua dupla conotação. Primeiramente Nativo é explicado no dicionário Houaiss (2009) como: nascido ou oriundo de determinado local; natural; relativo, pertencente a, próprio de indígena (HOUAISS, 2009 p. 1342); por outra parte encontramos o termo Ancestral que é explicado como: relativo ou próprio dos antepassados; muito antigo, remoto (HOUAISS, 2009, p. 128). Para nós o termo nativoancestral significa: que pertence a um lugar geográfico ou etnologia específica com um passado de séculos ou milênios. As línguas nativas dos indígenas das Américas, os cantos e línguas aborígenes do norte da Austrália; Cantos e mantras da música do norte da Índia, e diversas outras manifestações culturais, podem ser definidas como nativo-ancestrais. Nesta pesquisa, partiremos da perspectiva nativo-ancestral na América do Sul, nós aproximando na música e cosmologia indígena. 2 Estas técnicas podem ser seus cantos, os ritos de iniciação, seus objetos sagrados e principalmente a capacidade de tornar o cotidiano numa experiência de hipersensibilidade.
10
dimensionalidades em orquestras de experimentação musical e multimídia e, dessa forma, se
consolida um importante processo de transculturalidade que, mediante a visão do
experimentalismo sonoro, resgata sonoridades e filosofias que tradicionalmente têm sido
marginalizadas, restritas a estudos do folclore musical ou pesquisadas dentro dos limites da
antropologia e etnomusicologia.
Para o desenvolvimento dessa pesquisa sintetizamos, mediante o levantamento
sistemático e contextualizado historicamente, os diversos aspectos da música experimental,
uma prática musical caracterizada por: (1) a emergência do ruído/silencio como material
musical; (2) o uso de tecnologias e meios de manipulação, interação e espacialização sonora;
(3) o desenvolvimento de processos criativos/compositivos relacionados com o
indeterminismo e a improvisação; (4) uma marcada direção estética de desestruturação e
abstração do discurso musical e (5) prática que foi desenvolvida primordialmente na Europa e
na América do Norte, apresentando a música experimental com uma prática etnocêntrica de
ocidente, que terá suas repercussões dentro da próprias fibras musicais de América do Sul.
O trabalho de compositores como Cergio Prudencio, Tato Taborda, Mesías
Maiguashca e Alejandro Iglesias Rossi certamente contemplam os aspectos da música
experimental acima mencionados, mas por uma perspectiva do nativo-ancestral da América.
Essa afinidade se manifesta como duas linhas de força: a primeira, que se exerce a partir da
tradição ancestral indígena para fora, levando esses conhecimentos para ampliar a concepção
da experimentação musical; e a segunda, que se exerce de fora da tradição nativo-ncestral,
proveniente do acúmulo de processos, meios e tecnologias que estão relacionados com o
experimentalismo, e que, relacionados com conceitos musicais e cosmológicos nativos,
permitem a sua permanência e reafirmação dentro do contemporâneo. É evidente que as
tradições nativas-indígenas pertencem ao contexto cultural especifico das comunidades e
povoados que se vêm representados naquelas manifestações. Mas, ultrapassando os conceitos
de globalização ou colonialismo, observamos que as filosofias indígenas nativas ancestrais
são, agora, parte dessa grande colagem que é a pós-modernidade; nesse contexto, defendemos
que a cultura indígena, seus mitos e tradições, sejam fontes de referência para potencializar a
criação de novas naturezas sonoras.
As culturas nativo-ancestrais de América do Sul, guardam dentro delas conceitos bem
11
definidos sobre o funcionamento do mundo, as relações dos seres que habitam nele e a função
do humano dentro do cosmo. Esses conceitos funcionam principalmente baseados num
pensamento ritualístico, influenciando evidentemente também suas manifestações musicais. A
imensa quantidade de instrumentação nativa indígena, as quais principalmente se caracterizam
por apresentar instrumentos aerófonos de diversos tamanhos e formas, também está incluía
dentro da cosmologia nativa, sendo fundamentais na realização de rituais, danças e
festividades representativas daqueles povos. Durante o processo de industrialização e
comercialização musical surgido desde começos do século XX, se desenvolveu um processo
de hibridismos, onde foram utilizados alguns elementos musicais nativo indígenas da América
do Sul dentro de cânones de produção musical com um fim comercializador, dirigido para as
massas da população. Esses elementos musicais nativo-ancestrais, os mesmos que guardam
profundas conexões dentro da cosmologia andina, tiveram que ser moldados para funcionar
dentro dos cânones próprios da música ocidental, procurando um temperamento de alturas das
notas, a esquematização da forma musical e a produção de artistas e agrupações que utilizem
aqueles instrumentos nativos ancestrais, dentro de um formato propício para sua reprodução.
Num exemplo de processo de hibridação acontecido entre a industrialização musical
(potencializada por tecnologias de produção e reprodução mediática) e música nativa
ancestral está a chica, gênero característico for incluir instrumentos e sonoridades eletrônicas
com alguns fundamentos de música indígena como melodias ou instrumentos tradicionais. O
pesquisador Rodrigo Montoya no seu texto Música Chica: Mudanças da canção andina
quéchua no Peru3 (1996). Explica que esse processo de “modernização” traz consigo a
criação de fundamentos novos dentro da música altiplánica4, os mesmos que geram uma perda
substancial da conotação ritual tradicional que tem aquelas manifestações musicais. Desde
essa perspectiva nasce esta pesquisa, originada pelo termo nativo experimental usados dentro
de uma entrevista realizada com o compositor Cergio Prudencio em 20105, que afirma não ter
simpatia por aqueles processos de hibridação ou criolozação antes mencionados, gerando
nele, a necessidade de transcender aqueles fundamentos colocados pela indústria musicais
para procurar, desde uma visão experimental, novas junções que permitam a subsistência
daquele material cosmológico e ritual inseparável da música nativa ancestral da América do
3 Original: Música Chicha: cambios de la canción andina quéchua no Perú 4 Que vêm das terras altas da zona dos Andes. 5 Ampliaremos as informações desta entrevista no capitulo 4 desta dissertação.
12
Sul.
Nós observamos que durante os primórdios da constituição da experimentação
musical, especificamente na década de 1960, compositores como John Cage, Cornelius
Cardew e Karlheinz Stockhausen aludiram a cosmologias ritualísticas orientais para a geração
de propostas de experimentação musical. Nesse sentido observamos uma primeira abertura
para aquelas manifestações ritualísticas que conseguem dialogar dentro dos fundamentos de
experimentação sonora que, desde suas origens, procura um afastamento progressivo daqueles
fundamentos musicais estabelecidos e consolidados pela música ocidental mediática.
Nesse contexto se coloca esta pesquisa, a mesma que têm como propósito
primeiramente: evidenciar quais são as características que constituem a experimentação
musical, através do levantamento de diversas informações que ajudaram a delimitar o
território daquela prática. O segundo propósito está direcionada à evidenciar quais são as
características cosmológicas e musicais das manifestações nativas ancestrais e descobrir quais
são os compositores ou pesquisadores que têm optado por criar processos de
transculturalidade onde tanto a experimentação quanto o nativo, conseguem subsistir em
complementação e equilíbrio.
Finalmente este trabalho propõe uma aproximação prática direta aos desafios que este
processo transcultural apresenta; desenvolvendo principalmente a criação de peças musicais
que dialoguem dentro do contexto experimental, mas que estejam fundamentadas desde uma
visão musical nativo-ancestral proveniente dos indígenas de América do Sul. Ao final
conseguiremos formular conclusões sobre as principais características que a música nativa
experimental tem, as possíveis estratégias utilizadas para criar o nexo transcultural e sua
importância no mundo musical contemporâneo.
Para conseguir abarcar as diversas informações que representam tanto a música
experimental, quanto a cosmologia nativa sul-americana, nós optamos por dividir nosso
trabalho em duas partes bem definidas. A primeira realiza uma pesquisa desde os primórdios
da música experimental entendida como prática desde 1950. Dividiremos a primeira parte em
três capítulos os quais giram em torno de dois paradigmas que consideramos fundamentais
para o entendimento desta prática musical. O primeiro capítulo intitulado: Dois paradigmas
da música experimental: Considerações históricas, metodológicas e tecnológicas afirma a
13
existência de duas tendências, a primeira fundamentada num projeto de tratamento
laboratorial do som, propiciando o uso de máquinas de manipulação sonora. Em paralelo
afirmamos que através de procedimentos de indeterminação e acaso tenta-se atribuir novas
funcionalidades e meios de criação musical. O segundo capítulo intitulado: Improvisação e
Indeterminismo: free jazz, partitura gráficas/event score e improvisação livre amplia as
informações relevantes para a música experimental indeterminada, as quais serão
fundamentais para contextualizar o trabalho prático deste trabalho em conjunto com a
Orquestra Errante, grupo de pesquisa em improvisação e música experimental que foi o ateliê
para a criação de peças transculturais dentro desta pesquisa. O terceiro capítulo intitulado: A
máquina fazendo música: seus primórdios e sua projeção na América do Sul retoma a
ideia de música laboratorial apresentando sua expansão para diversos meios tecnológicos que
conseguiriam seu total desenvolvimento mediante o uso do computador, como ferramenta de
criação musical experimental. Neste capítulo também levantamos informações sobre a
atividade musical experimental na América do Sul, principalmente no Brasil e na Argentina,
onde observamos uma clara influência dos meios de experimentação sonora provenientes de
Europa e América do Norte, sendo fundamental para nós, constatar o ponto histórico onde os
compositores de nossa região começam a se interessar por uma experimentação musical
próxima aos elementos cosmológicos ou instrumentais provenientes das culturas nativas
ancestrais em América do Sul.
A segunda parte desta dissertação faz um enfoque no trabalho de pesquisadores e
compositores relacionados com o estudo de dois pontos fundamentais dentro da cosmologia
nativa ancestral. O primeiro é o conceito de cosmovisão indígena, o mesmo que está
relacionado com as tradições ancestrais e práticas musicais desenvolvidas no contexto da
comunidade indígena. O segundo foca na figura do xamã como entidade capaz de guiar e
conectar tanto o mundo físico quanto o espiritual, e que é agente social fundamental do
desenvolvimento dessas comunidades. Dessa forma apresentamos o quarto capítulo intitulado:
Tranculturalidade e relações nativo-ancestrais: Música, cosmovisão indígena e Tecno-
xamanismo, o mesmo que começa propondo os termos transcultural versus hibridação,
permitindo entender as diferenças entre dois processos relacionados com a mistura entre dois
conceitos evidentemente heterogêneos (a música experimental e a cosmologia nativa-
indígena) dando como resultado o surgimento do nativo experimental. Em seguida se
aprofunda no trabalho do compositor Cergio Prudencio, conseguindo formular as principais
14
características dos instrumentos nativo ancestrais pertencentes às comunidades indígenas dos
Andes, conjuntamente com suas relações cosmológicas dentro da música nativa dessa região;
posteriormente levanta informações do pesquisador Pedro Peixoto Ferreira o qual
fundamentará os conceitos relativos ao tecno-xamanismo e suas traduções dentro da música
eletrônica atual. Ainda neste capítulo desenvolvemos nossa pesquisa em torno de dois
compositores transculturais: Tato Taborda e Mesías Maiguashca, quando evidenciaremos
algumas de suas características compositivas através de uma análise dos aspectos estruturais
de uma peça respectivamente, a partir das perspectivas cosmológicas nativo-ancestrais.
Finalmente propomos um quinto capítulo intitulado: A prática entre o nativo-
ancestral e o experimental, onde levantaremos informações relacionado às práticas de
improvisação livre com a Orquestra Errante, colocando alguns apontamentos relacionados
com a improvisação desde a visão eco-acústica6 e a ecologia sonora7 permitindo interligar
aqueles conceitos com diversas perspectivas de relacionamento autossustentável com o
entorno fundamentadas na cosmovisão nativo-ancestral, e que podem servir como marco
conceitual dentro de processos criativos espontâneos de livre improvisação. Neste contexto,
continuaremos explicando nossas experiências e estratégias de aproximação aos instrumentos
e cosmologias nativo-ancestrais indígenas, que foram realizadas mediante a interpretação de
instrumentos tradicionais indígenas variados dentro de um marco de experimentação, além de
expor as vivências resultantes do contato com uma comunidade nativa do Equador (Kotama)
onde reforçaremos os apontamentos sobre música e cosmologia indígena. Por último
apresentaremos três peças compostas com a finalidade de criar processos de transculturalidade
onde evidenciamos as dificuldades e estratégias para contextualizar diversos pensamentos
nativo indígenas dentro de um marco de experimentação musical.
Dessa forma é que propomos, dentro desta dissertação, um percurso com o objetivo de
evidenciar as conotações relacionados ao termo nativo experimental, conduzindo a conclusões
relevantes num esforço por decifrar os acontecimentos relacionados a uma prática musical
experimental com raízes próprias de América do Sul.
6 Termo formulado por Murray Schafer em 1977 que trata de uma escuta atenta do entorno sonoro específico do ouvinte. 7 Termo utilizado por Makis Solomos (2012) e Rogério Costa (2014) o mesmo que explica o relacionamento autossustentável e auto-gerativo do processo sonora dentro de espaços interativos e espontâneos de criação musical.
15
. Dois Paradigmas da Música Experimental: Considerações históricas, metodológicas e tecnológicas
O primeiro capítulo de nossa pesquisa se destina a enquadrar contornos, limites e
observações gerais sobre o que chamaremos de música experimental. Para isso identificamos
algumas relações na composição, interpretação e apreciação desta música. Colocaremos
informações inerentes aos processos de experimentação musical ocorridos na década dos 50’s,
tanto na Europa quanto na América do Norte, onde transitaremos por alguns conceitos
apontados por compositores como Schaeffer, Stockhause, John Cage, grupo Fluxus. Todos
eles de alguma forma se relacionam com as seguintes qualidades que temos limitado em dois
paradigmas inerentes à experimentação musical de pós-guerra: O paradigma do som como
experimento (objeto sonoro - sínteses sonoras Schaeffer - Stockhausen), e o paradigma do
experimentalismo musical (happening-performance - Fluxus - John Cage).
O que é sonoro, o audível para nós, vira objeto de experimento quando é tratado de
forma laboratorial dentro dos estudos de gravação e sínteses a partir dos anos 50´s. Schaeffer,
Stockhausen. Outra perspectiva do agenciamento desse material sonoro, é a desenvolvida por
John Cage e o grupo performático Fluxus, os quais por meio de uma atitude e predisposição
para a experimentação, derivada de valorização significativa do momento presente, que se
transforma em ritual, atribuindo sentido estético de aquilo que emerge como material criativo
do cotidiano ou do caótico, o não intencional.
I. Primeiro Paradigma: O som como experimento na Europa
A partir da segunda metade do século XX as tecnologias de registro sonoro expandiram-se para tecnologias de produção sonora e a própria criação musical sem a participação de intérpretes tornou-se possível. Ainda no mesmo período a performance sofre um outro deslocamento em virtude das propostas associadas ao experimentalismo. (IAZZETTA, 2011, p. 2-3)
Michael Chion (1994), em seu livro Músicas: Mídia e Tecnologia, argumenta sobre as
consequências artísticas, criativas e sociais sobre a música em meio à massificação
progressiva das diferentes plataformas midiáticas (álbuns, radio, cinema). Segundo o autor,
16
esse acontecimento se deve ao desenvolvimento de diversas tecnologias de gravação,
reprodução e transmissão sonora, que facilitam a comercialização das manifestações musicais
ao redor do mundo, possibilitando o intercâmbio de referências entre culturas de diversos
pontos geográficos e com variadas referências históricas. Nas palavras do autor:
Todos eles transitam exclusivamente pelo mesmo canal acústico, incluindo certos tipos, até então inseparáveis do seu contexto dramático, como a ópera ou seu contexto circunstancial – música de caça, de trabalho – dessa forma, diversas músicas encontraram-se em fileira, lado a lado em lojas de discos, e tratados como uma mesma coisa, ou seja, um material sonoro (CHION, 1994, p. 64 nossa tradução8).
A tecnologia da fonofixação permite “não só a retenção dos sons existentes, mas
também produzir aqueles especificamente destinados a ficar gravados na mídia, usando a voz,
instrumentos, ou qualquer ação sonora voluntária ou não” (CHION, 1994, p. 16 – grifo nosso
- nossa tradução9). Antes da invenção da fonofixação, o som pertencia inseparavelmente ao
instante temporal no qual acontecia. Só aqueles ouvintes presentes no momento poderiam
guardar em suas memórias o evento sonoro. O som pertencia ao efêmero: um concerto, um
trovão, um discurso - cada evento sonoro era único e irrepetível. A fonofixação chega para
modificar radicalmente o modo de conceber e interagir com o som, nos permitindo traduzir
alguns dos seus atributos dentro de uma mídia: timbre, alturas, dinâmicas, podendo reproduzi-
lo inúmeras vezes. Esse desenvolvimento técnico motivou o desenvolvimento de laboratórios
acústicos, altamente especializados, permitindo a realização de diversos “experimentos” com
o som.
A. Schaeffer
Pierre Schaeffer (1910-1995) foi um dos precursores desses experimentos na Office de
Radiodifussion Télévision Fraçaise (ORTF). Schaeffer (1936) desenvolveu seu trabalho sobre
a gravação, edição e tratamento de diferentes sons, apoiado pelo uso de alto-falantes, filtros e
equipe de gravação, edição e mixagem. Em 1952, Schaeffer e outros pesquisadores criaram o
8 Original: “Les ont toutes fait transiter par le même canal exclusivement acoustique, y compris certains genres jusque-là indissociables de leur contexte dramatique, comme l’opéra, ou de leur contexte circonstanciel – musiques de chasse, de travail -, de sorte qu’elles se sont trouvées alors rangées côte à côte chez les disquaires, et traités comme une seule et même chose, à savoir une matière audible” (CHION, 1994, p. 64) 9 Original: “non seulement de les sons existants, mais aussi de produire des sons spécifiquement destinés à être gravés sur le support, à l’aide de la voix, d’instruments, ou de n ‘importe quelle cause actionnée volontairement ou non” (CHION, 1994, p. 16)
17
Grupe de Recherche de Musique Concrète-GRMC que posteriormente se transformaria no
Groupe de Recherches Musicales-GRM (1958-1960).
A partir da noção de matéria concreta, de objeto concreto ou, empregando o termo preferido por Schaeffer, de objeto sonoro, que deve ser entendido no sentido que vai do ruído de uma porta ao ruído de um suspiro, passando neste percurso pelo instrumento tradicional de música, é a partir, pois, dessa noção bem estendida, que se estabeleceu definitivamente o conceito, diríamos, de uma pan-música, de uma música na qual cada evento sonoro possa ter lugar – na medida em que a intenção assim o deseje. (MENEZES, 2009, p. 18)
Pierre Schaeffer (1966) no seu livro Traité Des Objets Musicaux, explica que os
compositores concretos10 utilizam diversos atributos que a fonofixação permite registrar.
Esses valores são tomados de sons de várias procedências, mas preferentemente de realidades
acústicas diversas: ruídos, sons de instrumentos tradicionais ocidentais, instrumentos exóticos,
vozes, linguagens e alguns sons sintéticos11. Estes sons gravados eram transformados graças a
diversos processos de manipulação eletrônica. A principal mídia era a fita magnética e sua
apreciação era realizada mediante alto-falantes. Este processo daria origem, posteriormente, a
discussões relacionadas com a acusmática, possibilitando a interação com a acústica dos
espaços, o posicionamento dos alto-falantes e a recepção e percepção das fontes sonoras.
A princípio a aceleração e desaceleração que permitiu o acetato em 1948 e,
continuamente a fita magnética, foi um procedimento utilizado de forma empírica por
Schaeffer; consequentemente, essa experiência daria lugar à divisão de sons no tempo (cortes
de fita), a modificação das qualidades tímbricas mediante filtros, criando a possibilidade de
decompor e recompor o som em função de técnicas de mixagem e montagem. Neste sentido a
música concreta poderia realizar (em teoria) síntese de qualquer som preexistente, passando
previamente por uma fase de análise.
Os esforços por concretizar uma análise musical, tanto da música romântica-clássica
(Heinrich Schenker, 1954), quanto do dodecafonismo e serialismo de começos do século XX
(Allan Forte, 1977 - teoria dos conjuntos), se mostraram pouco eficientes para realizar uma
aproximação precisa da concretude do material sonoro; devido a que essas novas perspectivas
10 Schaeffer faz diferenciação entre os compositores concretos (França) e os compositores eletrônicos (Alemanha) 11 Sons sintéticos são aqueles produzidos mediante síntese sonora, criada a partir de uma frequência fundamental senoidal que pode ser alterada a través de processos de sínteses: aditiva, subtrativa, por modulação, modelagem física e granular. (Iazzetta) http://www2.eca.usp.br/prof/iazzetta/tutor/
18
sonoras se mostravam afastadas das relações com o temperamento das doze notas.
Nesse contexto, Pierre Schaeffer (1966) cria um conjunto de conceitos que procuram
descrever de forma objetiva as qualidades dos objetos sonoros. Analisar o som mediante sua
morfologia e tipologia geraria uma série de ferramentas conceituais úteis para a qualificação e
contextualização de sons: enarmônicos, harmônicos, espectralmente simples e complexos12.
Schaeffer (1966) também realiza apontamentos e discussões sobre a escuta, voltando
sua atenção para a materialidade mesma do som, ou objeto sonoro. Para conceber a
fundamentação do objeto sonoro, é preciso considerar “a escuta enquanto instrumento
musical, um elemento fenomenológico, e uma via de acesso à percepção” (REYNER, 2011,
p.78).
Entre os anos 1941-1942 Schaeffer, no ensaio Sur la Radio e le Cínema: estethique e
technique des arts-relais, expõe alguns dos seus primeiros pensamentos sobre a escuta. Ele
concebe a escuta como um instrumento, quer dizer, como uma ação sonoro-perceptiva focada
especificamente nas qualidades de ressonância das coisas vibrantes: a voz, o tráfego, uma
língua nativo-ancestral, enfim, tudo quanto nossos ouvidos podem escutar estaria sujeito a
uma escuta com possibilidades estéticas, destacando a concretude dos sons como material
criativo.
Para Schaeffer existem quatro funções da escuta, as quais classificou como: ouir,
écouter, enténdre e compréendre.13 Essas funções da escuta constituem para Schaeffer o
“circuito da comunicação sonora, que vai desde a emissão até a recepção” (SCHAEFFER,
1966, p. 113). Apresentamos as principais diferenças entre esses quatro estados fundamentais
da escuta:
4.- Compréendre
- para mim: signos
1.- Écouter
- para mim: indícios
- diante de mim: acontecimentos exteriores
1 e 4: Referências
12 O termo espectral de um evento sonoro se refere à quantidade de parciais (frequências que ressoam sobre uma frequência fundamental) determinando o timbre característico daquele som. 13 Utilizamos aqui estes termos em francês devido a falta dessas palavras na tradução à línguas como o português ou inglês. No espanhol também existem as palavras: oir, escuchar, compreender y entender, como quatro processos diferenciados da escuta.
19
- diante de mim: valores
(sentido-linguagem)
Aparecimento do conteúdo do som e referências, confrontação das noções extra-sonoras.
(agente-instrumento)
Emissão do som.
Reconhecimento das fontes.
externas.
2 e 3: Experiência interna.
3.- Enténdre
- para mim: percepções qualificadas
- diante de mim: objeto sonoro qualificado.
Seleção de alguns aspectos particulares do som, Qualificação do objeto.
2.-Ouïr
- para mim: percepções brutas, esboços do objeto.
- diante de mim: objeto sonoro bruto.
Repetição do som, Identificação do objeto.
3 e 4: abstrato.
1 e 2: concreto.
Tabela 1: Funções da escuta (SCHAEFFER, 1966, p. 116)
Num esforço por contextualizar o termo objeto sonoro e suas vinculações com as
funções da escuta, observamos que écouter representa uma percepção empírica do som,
primeira, libertada de qualquer atribuição conceitual ou abstrata; é uma escuta não intencional
onde são percebidas as fontes sonoras, mas sem identificar maiores qualidades nem atributos,
“em geral, é uma identificação do som dentro do seu contexto causal e instantâneo, mas
também pode ser que os indícios se mostrem equivocados, e que a dedução só seja produzida
depois de comparação e dedução” (SCHAEFFER, 1966, p. 114-115 – tradução nossa14).
A segunda função da escuta, o ouïr, envolve uma atenção direcionada ao elemento
sonoro, mas ainda como esboço; isto é, o que Schaeffer chamaria de objeto sonoro bruto: “É
o que permanece idêntico através do fluxo de impressões diversas e sucessivas que tenho dele
e das minhas diversas intenções a respeito dele” (SCHAEFFER, 1966, p. 115 – nossa
14 Original: “En général, cette identification de l’événement sonore à son contexte causal est instantanée. Mais il se peut aussi, les indices étant équivoques, qu’elle ne se produise qu’après diverses comparaisons et déductions.” (SCHAEFFER, 1966, p. 114-115).
20
tradução15)
Para a função de enténdre, mencionaremos os apontamentos de Rogério Costa
referindo-se a uma “intenção de escuta dirigida às características pré-musicais do som
descontextualizado de sistemas abstratos ou idiomas e tomado como um objeto em si mesmo”
(COSTA, 2003, p. 38). Dessa maneira, o enténdre é a função de escuta que está interessada na
concretude do som, suas qualidades acústicas especificas, próprias das atribuições ressonantes
desse elemento sonoro. Por exemplo, se queremos “entender” o som do trovão, ressaltamos
suas qualidades tímbricas, de duração e dinâmica: rugoso, curto, estridente, mas não serão
atribuídas essas características relacionando-as com outros elementos que compõem o trovão
(descarga eletromagnética que libera som e luminosidade); pelo contrário, focamos em
descrever suas qualidades estritamente sonoras.
A respeito da última função da escuta, o compréendre, Costa comenta que “os sons
valem por sua função dentro de um sistema que os articula” (COSTA, 2003, p. 37). Neste
sentido, os sons são percebidos pelo ouvinte com todo seu conteúdo semântico. Um apito, por
exemplo, passa a representar um sinal de aviso, sem ressaltar suas qualidades sonoras
próprias: agudo, curto, simples, etc. Dentro da linguagem, as palavras, por exemplo, além de
suas qualidades fonéticas, estão carregadas de sentido semântico, representando funções
especificas (gramaticais, de sintaxe, etc.) próprias em cada idioma. As notas musicais, por seu
turno, também passam a ter funções interligadas a um contexto musical específico.
Uma nota assume certo valor expressivo dentro de um determinado discurso musical (uma melodia) articulado sobre um sistema hierarquizado e gramaticalizado (o sistema tonal), ela não vale por si mesma. Seus atributos acústicos e perceptivos, se definem em função de seus relacionamentos com os outros elementos e de sua colocação dentro do discurso. (COSTA, 2003, p. 38)
Podemos dizer, então, que as diversas funções da escuta estão ligadas à disposição de
escuta do receptor, isto quer dizer, as funções de escuta écouter e ouïr podem ser percebidas
primeiramente de forma externa ao indivíduo, para serem posteriormente processadas
internamente mediante as outras funções enténdre e compréendre. Por conseguinte, o objeto
sonoro nasce daquilo que Schaeffer denomina de escuta reduzida. A escuta reduzida será
15 Il est cela qui reste identique à travers le – flux d’impressions – diverses et successives que j’en ai, tout autant qu’au regard de mes diverses intentions le concernant.” (SCHAEFFER, 1966, p. 115).
21
definida como uma escuta intencionalmente afastada de qualquer conteúdo semântico,
potencializando as singularidades acústicas de determinado som. De acordo com o autor:
O objeto sonoro aparece quando levo a cabo, tanto material, quanto espiritualmente, uma redução ainda mais rigorosa que a redução acusmática (...) não procuro nada no meio dele, não me direciono a outra coisa (o interlocutor ou seu pensamento), mas é o próprio som o que me interessa, aquilo que eu identifico. Esta intenção de escutar exclusivamente o objeto sonoro, é chamada de escuta reduzida. (SCHAEFFER, 1988, p.268 – nossa tradução16)
B. Stockhausen
A partir dos anos de 1950, Karlheinz Stockhausen junto com outros compositores
como Pierre Boulez e Luciano Berio, constituíram o que, na Alemanha, seria chamada de
Neue Musik. Stockhausen (1928-2007) é um dos mais proeminentes nesse movimento, um
compositor e pesquisador altamente produtivo, com mais de 300 trabalhos e 10 volumes de
textos sobre música. Foi ele quem desenvolveu alguns dos primeiros trabalhos com base em
geradores eletrônicos de frequência, explorando uma variedade de estratégias para moldar e
sintetizar sons. Diferentemente do francês Pierre Schaeffer, que usava a gravação como
ferramenta criativa, Stockhausen partia do zero para criar uma única frequência fundamental
senoidal; a partir desse elemento, ele pesquisaria diversos procedimentos acústicos e
matemáticos, vislumbrando a mesma constituição do som desde suas características
atômicas17. Segundo Stockhausen (1953), as possibilidades advindas de síntese sonora seriam
inúmeras, criando, mediante processos laboratoriais, materiais sonoros impossíveis de serem
concebidos de forma convencional. Desse modo pode-se criar todo tipo de som, de qualquer
altura, dinâmica ou espectro, abrindo caminho para o surgimento de novas ferramentas
criativas. Flo Menezes (1991) pode nos ajudar com alguns apontamentos importantes a
respeito:
16 Original: “El objeto sonoro aparece cuando llevo a cabo a la vez material y espiritualmente una reducción más rigorosas aún que la reducción acusmática. (…) no intento nada por medio de él, no me dirijo hacia otra cosa (el interlocutor o su pensamiento), sino que es propio sonido lo que me interesa, aquello que yo identifico. Esta intención de escuchar más que el objeto sonoro, la llamamos de escucha reducida.” (SCHAEFFER, 1988, p. 268). 17 Para maiores informações sobre conceitos de acústica e matemática relacionada com o som, visitar os tutoriais de Fernando Iazzetta: http://www2.eca.usp.br/prof/iazzetta/tutor/, acesso 01-04-2015)
22
Em princípio, a música eletrônica não se interessaria pelos dados sonoros concretos, provenientes do mundo exterior, mas visaria ao contrário, à elaboração mais elementar do som a partir de suas mais fundamentais propriedades físicas trazendo ao seio das experiências um alto grau, ao mesmo tempo, de abstração e de racionalidade (...). É nesse sentido que podemos interpretar a postura eletrônica como sendo o apogeu do pensamento weberniano. Coerência e rigor aliavam-se, pelas vias de um racionalismo absoluto, a serviço da abstração. Ao isolamento do som, à importância implacável de cada gesto sonoro – por mais ínfimo que este seja (o que se configura, em Webern, nada mais e nada menos do que a consequência mais lógica da exacerbação expressionista) -, típica da escrita weberniana, corresponderia à elaboração minuciosa do som eletrônico a partir de suas componentes senoidais, ou seja, a partir de sua constituição “atômica” (MENEZES, 1991p. 31).
Desde seu início como estudante em Darmstadt (1951), Stockhausen começaria a
exploração de novas formas estruturais, estéticas e tecnológicas dentro de suas composições.
Sua formação foi reforçada pelo acesso que teve Stockhausen a um equipamento altamente
sofisticado de produção sonora; voltando para sua cidade em 1953, começa seu trabalho na
Rádio de Colônia (WDR), equipada com um estúdio-laboratório de instrumentos: “melo-
chord, Trautonium, dois moduladores de anel, um filtro-oitavador, dois filtros W49
desenvolvidos para aplicações em rádio-drama, dois estúdios full-track de gravação em fita e
quatro canais de gravação” (MACCONIE, 1990, p. 50); o laboratório também contava com
equipamento de análise de som como espectrômetros e oscilo-gráficos permitindo a realização
de inúmeras experimentações, junto com os técnicos Meyer-Eppler e o engenheiro de som
Heinz Schutz. A partir disso, Stockhausen decidiu focar no uso de sinais de tom puro
(senoidal), produzidos por geradores de frequência. O próprio Stockhausen aponta:
Para resumir: tornou-se tecnicamente viável a realização deste objetivo. A prática analítica e o estúdio nos conduziram à uma ideia: se o espectro sonoro podia ser analisado, possivelmente ele poderia ser também gerado sinteticamente. Goeyvaerts escreveu para mim de Paris, que ele tinha feito estudos em Bruxelas e aprendido alguma coisa sobre geradores de sinal de onda. (...). Em 1953 meu trabalho em Colônia começou com os instrumentos eletrônicos (melochord e Tratonium) que serviria para a realização de alguns experimentos; mas logo depois que a ideia de síntese mediante espectro-sonoro foi adotada, os outros instrumentos não foram utilizados mais (STOCKHAUSEN, 2004, p. 372 – tradução nossa18).
18 Original: “In short: it has become technically feasible to realize this aim. Practical analyses and studies led us to the idea: if sound spectra can be analysed, perhaps they can also be synthetically generated. Goeyvaerts wrote to me at the time in Paris, that he had made inquiries in Brussels and learn something about generators of sine waves (...) In 1953 my work at the Cologne Radio began. Among the sound sources of the Cologne Studio were first of all electronic performance instruments – a melochord and a Trautonium – which serves as sound sources in some experiments but then, soon after the idea of sound – spectrum synthesis was adopted, were no longer used” (STOCKHAUSEN, 2004, p. 372).
23
Na sequência, apresentamos brevemente os apontamentos descritos por Robie
Maconie (1990) sobre uma das peças de Stockhausen, fruto da pesquisa com sons senoidais:
Elektronische Estudie I (1953), que foi realizada com a combinação de frequências parciais de
sons previamente concebidas mediante a germinação de séries simétricas. Partindo de uma
frequência 1920 Hz, a série de seis frequências se desenrola de acordo com a sucessão de
intervalos: décima menor descendente, terça maior ascendente, sexta menor descendente,
décima maior ascendente e terça maior descendente, num processo conhecido como sínteses
aditivas (MACCONIE, 1990, p. 52).
Elektronische Studie II, também de Stockhausen, pode ser observada como a
continuação das pesquisas com síntese aditiva. Para isso Glenn Llorente argumenta:
Diferentemente do Study I, Stockhausen não se apoia na série harmônica como fonte do material sonoro (ou fonte de frequências), no Study II pelo contrário, ele usou o número cinco de forma serial ao redor da partitura. Para gerar os materiais sonoros, Stockhausen utiliza o número 5 dentro de um algoritmo exponencial para determinar exatamente que frequências usar. Este algoritmo exponencial 25√5, gera a série de frequências desde um espectro sonoro que vai desde 100 até 17200 Hz. (LLORENTE, 2014, p. 4 – nossa tradução19).
Paul Griffiths no livro “Modern Music and After” (2010) menciona que uma das
características mais significativas do uso da música eletrônica de Stockhausen foi a
oportunidade de apresentar o uso da fusão coerente dos três parâmetros: timbre, altura e
duração, ou como “Stockhausen preferia dizer, enfatizando a mudança da nota escrita,
atômica, para o som percebido, substancial - composição colorística, composição harmônico-
melódica e composição rítmico-métrica”. (GRIFFITHS, 2010, pos. 3320, versão eletrônica –
nossa tradução20). Nesse sentido podemos afirmar que Stockhausen, teria um conceito de
estruturação musical, que em conjunto com seus conhecimentos na música serial,21 poderia
19 Original: “Unlike in Studie I, Stockhausen does not rely on the harmonic series as a source of sound materials (or frequency sources) in Studie II. Instead, he uses the number 5 serialistically throughout the score. In generating the sounding materials, Stockhausen uses the number 5 within an exponential algorithm to determine exactly which frequencies to use. This exponential algorithm, 25√5, generates the series of frequencies within the selected sound spectrum (100-17200 Hz)” (LLORENTE, 2014, p. 4). 20 Original: “as Stockhausen preferred to call them, his emphasis shifting from the atomic, written note to the substantial, heard sound-“coloristic composition, harmonic-melodic composition and metrical-rhythmic composition”. (GRIFFITHS, 2010, pos. 3320, versão eletrônica) 21 O serialismo musical, derivasse de uma das correntes musicais fundamentais no processo de ruptura com a tradição musical na Europa de começos do século XX: A música Atonal-Dodecafónica. Idealizada e concebida por Arnold Schomberg desde 1908. Nesse sentido a série é uma sequência numérica específica, a mesma que pode ser aplicada para marcar no pentagrama qualquer microestrutura da composição (alturas, dinâmicas, timbres, ritmo), sendo a escola de Darmstadt, o centro do serialismo integral. Stockhausen conhecia muito bem esta técnica de composição, o que foi aplicado
24
permitindo a emergência do ruído como material musical, possibilitando a exploração de
camadas sonoras complexas.
Observamos só o início das pesquisas de Stockhausen com a música eletrônica, que
seria desenvolvida mediante a estreita relação que ele manteve com a teoria acústica,
composição, as matemáticas, o cálculo, eletrônica e computação, fazendo pesquisas sobre a
constituição do som senoidal que podia ser transformado em diferentes tipos de onda: dente
de serra, quadrada, triangular, além de abrir a possibilidade de trabalhar com síntese de
frequência modulada e amplitude modulada, modulação em anel, obtendo resultados sonoros
únicos, exclusivamente mediante a utilização de fórmulas matemáticas com relação à
ressonância das frequências senoidais, além de ferramentas tecnológicas especificas como
geradores de som, sintetizadores, espectrômetros, etc. Stockhausen não tardaria em misturar
sons eletrônicos e instrumentos convencionais. Isso ocorreria na peça Kontakte (1959-1960),
música eletrônica para quatro canais de fita com piano e percussão onde os elementos sonoros
eletrônicos se fundem com os sons de instrumentos tradicionais mediante relações espectrais
naturais dos instrumentos tradicionais potencializadas pelos sons eletrônicos, fazendo com
que as duas camadas sonoras, tanto a instrumental quanto a eletrônica, consigam se
complementar numa massa sonora espectralmente ampla. Por conseguinte, Stockhausen
identifica quatro áreas distintivas onde a música eletrônica é capaz de expandir e informar
sobre as percepções humanas do mundo sonoro, elas são:
(1) a estruturação temporal ou integração proporcional de micro e macro sons; (2) a divisão do som para revelar seus elementos constitutivos; (3) espaços de multicamadas, que são a criação e revelação de perspectivas profundas do som; e (4) a igualdade do tom e ruído. (MACONIE, 1990, p. 107.- Nossa tradução22)
Dessa forma podemos observar as novas atribuições que passa a ter o ruído dentro da
composição musical, permitindo que possa ser apreciado como um recurso útil dentro da
construção do discurso musical. O ruído pode ser apreciado pela sua estrutura interna que está
mais perto de estruturas complexas que de tons puros. Nesse sentido os diferentes sons
apresentados em Kontakte dão abertura para identificar diferentes tipos de ruído com micro- da sua obra Gruppen (1957) para três orquestras, conseguindo a serialização de uma ampla quantidade de parâmetros musicais em conjunção; realizando um complexo jogo de relações, estruturas, e blocos sonoros. Para mais informações sugerimos MACONIE, 1990. 22 Original: “(1) the unified time-structuring or integrated proportioning of micro and macrostructures: (2) the splitting of the sound to reveals its constituent elements: (3) multi-layered space, which is the creation and revelation of depth perspectives in sound: and (4) the equality of tone and noise” (MACONIE, 1990, p. 107).
25
estruturas, descobrindo beleza e ordem onde antes existia exclusivamente ruído sem ser
atribuído como material musical.
C. Apontamentos finais sobre o som na música experimental na Europa
Foi fundamental apresentar o início da música eletrônica, observando três exemplos
das obras de Stockhausen, que estariam em relação com nosso critério do som como
experimento. Metzger pode nos dar uma ideia concreta sobre este assunto:
Uma pesquisa em Die Reihe ou Perspectives of New Music é suficiente para notar que, em alguns aspectos, a música nova aceita tal analogia; linguagem e teoria emprestadas das ciências é um dos pilares do discurso entre os compositores. Mas a crítica vem reclamando da música de vanguarda ser desumanizada, e não natural. "Experimental", junto com adjetivos como "antisséptico" e "clínico" contribuíram para essa tradição de crítica. Metzger coloca o uso do "experimental" na companhia de termos como "música de laboratório" e "música de engenheiros". Estes modificadores sugerem que essa música substitui procedimentos e meios artificiais pelo imediatismo da expressão natural encontrado na música de concerto tradicional (MAUCERI, 1997, p.189 – nossa tradução23).
“O humano e o natural são construídos como normativas e como representações
próprias da tradição. O artificial está associado com novas forças de produção musical
manifestada pela vanguarda” (MAUCERI, 1997, p. 189 – grifo nosso – nossa tradução24).
Neste sentido, podemos argumentar que existe uma evolução dentro da música experimental
europeia, a mesma que nos começos se bifurca em música concreta e música eletrônica, se
unificando mediante a utilização do termo como música eletroacústica, rapidamente abrindo
passagem à música mista, onde o material sonoro pré-gravado e editado, em conjunto com
sons dos instrumentos ao vivo, seriam utilizados para a constituição do todo da composição
musical. Desta forma a música experimental europeia foi constituída por “diversas técnicas de
23 Original: “A survey of Die Reihe or New Music is sufficient to note that in some respects new music invites such an analogy; language and theory borrowed from sciences is a mainstay of discourse among composers. But criticism has long complained of vanguard music as dehumanized, and unnatural. “Experimental” along with adjectives like “antiseptic” and “clinical,” contribute to this tradition of criticism. Metzger places the use of “experimental” in the company of terms such as “laboratory music” and “engineers’ music”. These modifiers suggest that this music substitutes artificial procedures and means for the immediacy of natural expression. Found in traditional concert music” (METZGER apud MAUCERI, 1997, p.189). 24 Original: “The “human” and the “nature” are constructed as normative and as representatives of the tradition. The “artificial” is associated with the new forces of musical production manifested by the vanguard” (MAUCERI, 1997, p. 189).
26
experimentação ou produção experimental de dados (sonoros), como uma forma de expressão
de processos que envolvem experimentos com vários tipos de materiais, ferramentas ou
instrumentos” (GOEHR, 2008, p. 113), criando a ilusão de controle para o músico
experimentador. Nesse sentido Goehr aponta que “o experimento sempre está do lado das
ciências e da sociedade enquanto o experimentalismo sempre está ao lado das artes”
(GOEHR, 2008, p. 127), explicando essa dupla função que teve a música quando, mediante
estudo acústico e cientifico conseguisse experimentar com o som, e por outro lado, mediante
uma atitude de experimentação sonora, foram se constituindo novas formas de criação
musical.
Para ampliar nossa discussão sobre o som como experimento, Lílian Campesato
(2012) sugere diversos apontamentos a respeito:
Nesse processo, a aproximação entre o espírito artístico e o científico desempenha um papel importante. O artista, ao tomar o modelo das ciências aplicadas, acaba por afastar a arte do que é humano ao evidenciar o métier como um fim em si mesmo. O seu atelier se transforma em laboratório, na qual ele testa e verifica o funcionamento de suas “obras”, ou melhor, de seus “experimentos”, os quais são baseados em dinâmicas estabelecidas por um sistemático e refinado método” (CAMPESATO, 2012, p.27).
A exaltação do métier, relacionada por Campesato (2012) à ideia de arte por si mesma,
significa que os próprios processos e descobertas utilizados na criação de uma peça musical
eram o sustento estético e objetivo da arte sonora que estava nascendo; o compositor “tinha
que acrescentar seu métier além de seus estudos de acústica para poder obter maiores
conhecimentos sobre seu material” (STOCKHAUSEN, 2004, p. 371 – nossa tradução25).
As manifestações musicais europeias de pós-guerra foram influenciadas
principalmente pelas metodologias científicas e avanços tecnológicos próprios daquela época,
gerando uma tecnificação de procedimentos relacionados à construção do som, tanto da
concepção conceitual do objeto sonoro de Pierre Schaeffer, quanto dos diversos processos
acústicos e síntese sonora da música eletrônica de Stockhausen. A partir desse ponto, a
música experimental teria um aspecto científico, onde os compositores europeus observariam
nas características e propriedades da constituição do sonoro, elementos para criar novas
estéticas audíveis; a descoberta de sons sintéticos, ou a repetição de um som só, além do ruído 25 Original: “He had to enlarge his métier and study acoustics in order to get to know his material better” (STOCKHAUSEN, 2004, p. 371)
27
como grande renovador da música experimental, modificariam irremediavelmente todas as
relações que a música tem conosco, expandindo-se para diversas áreas do conhecimento.
Nosso interesse foi apresentar os pilares geradores que se mostraram indispensáveis
para a constituição da música de vanguarda na Europa, possibilitando que a música adquirisse
um enfoque científico-experimental. Entendemos que os desenvolvimentos tecnológicos
proporcionaram melhoras significativas nas áreas de gravação, sínteses e reprodução do som.
Também se modificaram substancialmente as relações entre compositor-intérprete-público.
Fernando Iazzetta (2009) resume esta ideia da seguinte maneira:
Compositores aventaram a hipótese do surgimento de uma arte nova, intérpretes sentiram-se ameaçados pela reprodução em massa de gravações e pela automatização da performance trazida por sistemas eletroeletrônicos, ao passo que os ouvintes viram-se, em mais de um sentido, obrigados a desenvolver novas estratégias de escuta, à medida que o contato com a música passou a ser mediado pelas tecnologias de áudio, em última instância emblematizadas pela onipresença dos alto-falantes (IAZZETTA, 2009 ,p. 21).
Finalmente podemos concluir, que no desenvolvimento técnico científico de meados
do século XX, a música incorpora a ciência em seus procedimentos, produzindo visões do
mundo obviamente permeadas pelas percepções culturais, científicas e mediáticas que
afetaram as relações compositor-performer-público. Fruto dessa mudança de relações, a
música toma diversos caminhos, possibilitando o contato com uma ampla gama de áreas
interdisciplinares como a física, a acústica, a fonética, a construção de instrumentos, a
psicoacústica, a cognição, as ciências computacionais, a eletrônica, a musicologia, a
improvisação, a instrumentação e a performance, constituindo-se como uma arte sonora
dotada de fundo e contexto laboratorial. Concluímos que as experiências científico-artísticas
dos compositores e pesquisadores europeus de pós-guerra deixaram caminho fértil para que
surgissem ainda mais inovações tecnológicas (novas mídias e aparelhos de gravação e
reprodução), permitindo que dessa forma proliferassem obras sonoras laboratorialmente
concebidas.
28
II. Segundo Paradigma: Experimentalismo Musical na América do Norte
Afirmamos a existência de um segundo paradigma na música experimental que se
bifurca do trabalho compositivo na Europa, para criar um paralelo com os compositores norte-
americanos da década de 1950. Para isso será fundamental estabelecer alguns conceitos
relativos ao happening e à performance, explicando suas origens nas artes plásticas e teatrais,
e sua rápida expansão para outras áreas das artes, criando assim uma nova corrente da música
experimental com centro em Nova Iorque.
Seguidamente colocaremos diferentes apontamentos ao redor dos compositores e
performers (grupo Fluxus) afirmando sua importância para definir uma postura diante da
composição e execução da música experimental, influenciada, e em contraposição ao
movimento de vanguarda europeu.
A. Características gerais do Happening e da Performance.
A característica de arte de fronteira da performance que rompe convenções, formas e estéticas, num movimento que é ao mesmo tempo de quebra e aglutinação, permite analisar, sob outro enfoque, numa confrontação com o teatro, questões complexas como a representação, do uso da convenção, do processo de criação, etc., questões que são extensíveis à arte em geral (COHEN, 2001, p. 27).
Os limites da performance estão definidos como uma “função do espaço e do tempo
(...); para caracterizar uma performance, algo precisa estar acontecendo naquele instante,
naquele local” (COHEN, 2001, p. 28). Uma performance então pode ser composta por uma
gama de procedimentos multimídia descritos por Richard Schechner (1978) como multiplex
code, aceitando relações com áreas do audiovisual, as artes plásticas, a música, instalações26,
e teatro e a dança.
Tanto o happening quanto a performance são pensados como uma manifestação de
26 Renato Cohen aclara no seu texto “Performance como linguagem” (2001) que uma instalação é algum elemento sígnico, que pode ser um objeto, um ator, um vídeo, uma escultura etc, que fica “instalado num local fixo e é observado por pessoas que geralmente chegam em tempos distintos (COHEM, 2001, p. 28).
29
ruptura com o que poderia ser descrito como arte estabelecida27, dando origem a uma
valorização de procedimentos, situações e objetos que antes não eram apreciados como
artísticos, expandindo os limites entre arte e vida. O happening e a performance procuram
uma ritualização das ações, toma o presente e seus acontecimentos como material potencial de
criação. Nesse sentido encontraremos claras conexões com a action painting de Pollock, “as
pinceladas, as manchas, as linhas, os borrões se tornaram cada vez menos ligados a objetos
representados e passaram a existir cada vez mais por conta própria, de maneira auto-
suficiente” (KAPROW, 2006, p. 39), é assim que Pollock utiliza os próprios devires de suas
pinceladas realizadas espontaneamente sobre a tela, se deixando levar pelo momento presente,
intensificando sua atenção e ação e imprimindo seus traços espontâneos de tal forma que a
pintura vai tomando forma e contexto ao vivo. Por outro lado, a ideia de John Cage de
musicalizar o ruído do entorno, aquelas manifestações sonoras que vêm da não
intencionalidade, do acaso e da entropia do sonoro cotidiano, tomam valor substancial para a
performance.
Outra das características gerais, tanto do happening quanto da performance, é que são
expressões desligadas dos locais destinados para a realização de eventos artísticos. Elas
podem se manifestar em diversos espaços físicos como elevadores, parques, igrejas,
instituições político-sociais, piscinas, enfim, qualquer espaço que permita um contato direto
com o espectador, o qual não será delimitado pela diferenciação palco-plateia - próprio de
lugares destinados para as artes tradicionais -, e sim serão incluídos muitas vezes como
elementos e estruturadores do processo criativo.
Finalmente podemos argumentar que o importante para o happening e para a
performance é o processo, valorizando as nuances do procedimento criativo ao vivo,
engajando o risco do momento presente com a criatividade do performer. Ao contrário das
obras artísticas que são exibidas e adquirem seu valor quando são expostas como concluídas,
o happening e a performance constituem obras de arte vivas, que ganham seu valor estético
exclusivamente no tempo presente onde estão sendo realizadas. Esse valor estético estará 27 Em seguida apresentamos o que descreve Cohen (2001) como arte e não arte: “Allan Kaprow, o idealizador de Happening, que se autodenomina um fazedor de conceitos, estabelece o contraponto ARTE-Arte e NÃO-Arte. A primeira, que chamamos de arte estabelecida, é herdeira da arte instituída, é intencional, tem fé e aspira a um plano superior. Exprime-se numa série de formas e ambientes sagrados (exposições, livros, filmes, monumentos etc.). A NÃO-Arte engloba tudo o que não tenha sido aceito como arte, mas que haja atraído a atenção de um artista com essa possibilidade em mente (...). Um exemplo claro disto são os ready-mades de Marcel Duchamp, que vão dar um valor de objetos de arte a produtos industrias, feitos em série e absolutamente cotidianos, como uma bicicleta ou um vaso sanitário” (COHEN, 2001, p. 38).
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determinado pela qualidade do processo em si, quer dizer, na capacidade do performer de
transmitir seus valores e habilidades dentro do espaço-temporal em conjunto com o
espectador.
B. Diferenças entre o Happening e a Performance
Umas cinquenta pessoas se juntam para a visita, que transcorreu sob uma forte chuva. Bréton e Tzara ficam provocando o público com discursos, Ribemont-Dessaignes se faz de guia – diante de cada coluna ou estátua ele lê um trecho, escolhido no acaso, do Dicionário Larousse. Depois de uma hora e meia os espectadores começam a se dispersar. Recebem então pacotes contendo retratos, ingressos, pedaços de quadros, figuras obscenas e até notas de cinco francos com símbolos eróticos. Não será esta excursão de 1921 um típico happening dos anos sessenta? (GLUSBERG, 1987, p. 20).
Em 1958, dois anos depois da morte de Jackson Pollock (1912-1956) o artista visual
Allan Kaprow (1927-2006) escreveria um artigo intitulado “O legado de Jackson Pollock”.
Nesse texto, Kaprow “parece prever o futuro da produção artística dos anos 60, em sua
tendência a diluir-se na vida cotidiana” (KAPROW, 2006, p. 38). No final do texto, Kaprow
envia uma mensagem para a geração seguinte de artistas, argumentando que deixem as
etiquetas (pintor, poeta, músico) para se abrir como entes artísticos livres, não tentando tornar
extraordinário o natural, mas simplesmente exprimindo o significado real das coisas. Criando
o extraordinário a partir do nada. Finalmente expõe que essa habilidade será a alquimia dos
artistas dos anos 60.
Kaprow fez diversos assemblages como uma continuação do action painting de
Pollock. Nas assemblages são recolhidos materiais pouco convencionais ou reciclados e
colocados em forma de “colagens de impacto”. Para a criação, são usados elementos como
máquinas, espelhos que refletiam o público, fotografias, palha, telas, alimentos, além de
colocar efeitos de iluminação (luzes que se acendem em intervalos) e som (ruídos de
campanas, sinos, brinquedos). Sua intenção, como ele mesmo explica, foi “acumular quase
todos os elementos sensoriais com os quais trabalharia nos anos seguintes” (GLUSBERG,
1987, p. 29).
O happening pode ter conexões fundamentais com a pintura e com a escultura, além
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de ser uma atividade teatral; também pode conter material musical – sonoro e até aromas,
integrando diferentes camadas de inserções sensitivas dentro de um mesmo plano. Para
esclarecer este conceito, colocamos o exemplo da obra Untitled Event (1952), realizada no
Black College Mountain da qual participaram John Cage, Merce Cunningham, o pintor Robert
Rauchenberg, o pianista David Tudor e os poetas Mary Richards e Charles Olsen. Para isso
“Cage se propôs uma fusão original de cinco artes: o teatro, a pintura, a dança e a música, e o
cinema” (GLUSBERG, 1987, p. 25). Nesta obra “ele [Cage] foi capaz de combinar uma
variedade de elementos expressivos incluindo matrizes de realizadas numa estrutura
indeterminada e compartimentada que faz uso da relação expressiva do espectador-performer”
(KIRBY, 1995, p.19 – nossa tradução28). Nesse sentido Michael Kirby, no seu texto
Happenings: An Introduction (1965), explica como foi realizada Untitled Event:
As cadeiras, todas apontando ao centro, foram colocadas no meio da sala de jantar, deixando espaço aberto entre a audiência e as paredes da sala. Programado por segundos como numa composição musical, as diferentes performances ocorriam ao redor da audiência. Cage, vestido com terno preto e gravata, lia um manifesto do Meisnter Eckhart em uma estante ao seu lado (...). M.C. Richards recitava desde uma escada, Charles Olsen e outros performers “plantados” na plateia se levantam quando sua hora chega e falam uma ou duas linhas. David Tudor toca piano preparado. Filmes são projetados no teto: no princípio mostram a cozinha da escola, logo o sol, e, conforme a imagem ia se movimentando desde o teto para a parede, o pôr do sol. Robert Rauschenberg colocava velhas gravações num fonógrafo de mão e Merce Cunningham improvisava uma dança ao redor do público. Logo mais um cachorro começou a seguir a Cuningam sendo aceito na apresentação (KIRBY, 1995, p.19 – nossa tradução29).
Entre os anos 1956 e 1958, Allan Kaprow estudaria com John Cage na New School em
Nova Iorque, a matéria composição musical. Cage viu que não existia impedimento para
incluir material visual dentro de suas aulas de composição. Em consequência Cage compôs
pequenas peças onde seriam usados sons concretos, além de movimentação e imagens
puramente visuais. Estes trabalhos influenciariam a Kaprow para, no ano 1959, estruturar seus
18 happenings in 6 parts, dando origem a esta expressão multidiversa. 28 Original: “He was able to combine a variety of expressive elements including indeterminate nonmatrixed performing in a compartmented structure that made use of an expressive spectator-performance relationship” (KIRBY, 1995, p. 19) 29 The chairs, all facing the center, were arranged in the middle of the dining room hall, leaving open space between the audience and the walls of the room. Timed to the second as in a musical composition, the various performances took place in around the audience. Cage, dressed in a black suit and tie, read a lecture on Meinster Eckhart from a raised lectern to the side. (...). M.C. Richards recited from a ladder. Charles Olsen and others performers “planted” in the audience each stood up when their time came and said a line or two. David Tudor played prepared piano. Movies where projected on the ceiling: at first they showed the school cook, then the sun, and, as the image moved from the ceiling down the wall, the sun sank. Robert Rauschenberg operated old records on a hand-wound phonograph, and Merce Cunningham improvised a dance around the audience. A dog began to follow Cunningham and was accepted into the presentation” (KIRBY, 1995, p.19).
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Na procura por estabelecer um nome para suas propostas de ação em tempo real,
Kaprow cria o termo happening. Como ele mesmo menciona: “não sabia como chamar
minhas peças que supostamente devem acontecer de forma natural” (HIGGINS, 1976, p.368).
Suas propostas incluíam em muitos casos a participação do público, como foi no caso de
Household (fevereiro de 1964); acontecido na Universidade de Cornell (Ithaca-NY). Este
happening consiste em treze instruções que os participantes deveriam realizar em horas
determinadas. O lugar também é especificado: deve ser isolado num campo aberto, com
acúmulo de lixo, parte pegando fogo. As ações são as mais diversas: criar torres de lixo,
construir ninhos com ramas, gritar, bater, ficar nu, cantar canções de rock & roll, etc. Kaprow,
dessa maneira, outorga ações que incitam o participante a vivenciar uma seqüência de atos
descontextualizados da rotina e do cotidiano, criando momentums, estados de permanência
carregados de significado estético, que são vivenciados em primeira pessoa pelos atuantes,
sem a mediação de nenhum artista-criador que represente aqueles acontecimentos.
Uma característica fundamental do happening é sua ação no aqui-agora. Cohen
aponta:
Algo que está acontecendo naquele espaço, naquele instante; sua realização é viva naquele momento. (...). Existe uma acentuação maior do instante presente, do momento da ação (o que acontece no tempo real). Isso cria uma característica do rito, com o público não sendo mais o espectador, e sim, estando numa espécie de comunhão (e para isto acontecer não é absolutamente necessário suprimir a separação palco-plateia e a participação do mesmo, como nos espetáculos