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URI - UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN – RS MESTRADO EM LETRAS - ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA LUCIANE FIGUEIREDO POKULAT UM OLHAR SOBRE O ROMANCE MALANDRO Prof. Dr. Robson Pereira Gonçalves Orientador Frederico Westphalen, julho, 2009.

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PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN – RS MESTRADO EM LETRAS - ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA

LUCIANE FIGUEIREDO POKULAT

UM OLHAR SOBRE

O ROMANCE MALANDRO

Prof. Dr. Robson Pereira Gonçalves Orientador

Frederico Westphalen, julho, 2009.

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LUCIANE FIGUEIREDO POKULAT

UM OLHAR SOBRE

O ROMANCE MALANDRO

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Letras na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Campus de Frederico Westphalen, pelo Departamento de Linguística, Letras e Artes.

Orientador: Prof. Dr. Robson Pereira Gonçalves

Trabalho apoiado pela CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

Nível Superior

Frederico Westphalen, julho, 2009

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA

A Comissão Examinadora, abaixo assinada,

aprova a Dissertação de Mestrado

UM OLHAR SOBRE O ROMANCE MALANDRO

Elaborada por

LUCIANE FIGUEIREDO POKULAT

como requisito parcial para a obtenção do grau de

Mestre em Letras

COMISSÃO EXAMINADORA

______________________________________________ Prof. Dr. Robson Pereira Gonçalves – URI

(Presidente/Orientador)

______________________________________________ Membro Profª. Dr. Silvia Helena Pinto Niederauer – UNIFRA

____________________________________________ Membro Prof. Dr. André Luis Mitidieri Pereira – URI

Frederico Westphalen, 24 de julho de 2009.

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AGRADECIMENTOS

À família, pela mansa compreensão.

À CAPES, pela disponibilização da bolsa de estudos.

À equipe de professores do Mestrado em Letras, Área de Concentração em

Literatura, pelos ensinamentos recebidos.

À professora Denise, pelas constantes e firmes exigências.

Ao professor André, pela preocupação com minha pesquisa e amizade

dispensada.

À professora Ada Maria Hemielewski, pelas constantes motivações, pelos

constantes desafios, pela amizade e pelo carinho de sempre.

À Magali pelo pronto atendimento.

Aos colegas Edevandro, Marli, Miquela e Neiva, pela cumplicidade e pelos

bons momentos juntos.

Um agradecimento especial ao professor Robson – um divisor de águas em

minha vida – pelos conhecimentos, pelos ensinamentos, pelas provocações, pela

confiança e pela amizade.

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RESUMO

A presente dissertação investiga como a formação da identidade nacional brasileira é retratada pela literatura nacional, verificando especialmente dois aspectos: o carnaval e a malandragem. A pesquisa centra-se na figura do malandro tomado como símbolo da identidade cultural brasileira, investigando as características do tipo, bem como suas manifestações em personagens da literatura nacional. A análise dar-se-á em um corpus formado por três narrativas da Literatura Brasileira, produzidas em três contextos sócio-históricos diferentes. Memórias de um sargento de milícias, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter e Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária são as narrativas selecionadas para a investigação acerca das características de obras classificadas como romance malandro. O foco do estudo, porém, dar-se-á em torno dos personagens centrais dessas narrativas – Leonardo, Macunaíma e Ralfo – verificando semelhanças entre eles, bem como as características que os aproximam do tipo malandro. O estudo será embasado nas teorias do antropólogo brasileiro Roberto DaMatta no que diz respeito a como se processa a dinâmica das relações sociais na cultura brasileira, com atenção especial ao fenômeno do Carnaval, na teoria da carnavalização literária do russo Mikhail Bakhtin, no conceito de homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda e na dialética da malandragem instaurada por Antonio Candido. Palavras-chave: Carnaval. Literatura carnavalizada. Identidade cultural. Romance

malandro.

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ABSTRACT

This dissertation investigates how the formation of the brazilian national identify is reveled by national literature, investigating, specially, two aspects: carnival and malandragem. The research focuses on the possibility malandro’s character as symbol of the national identify, investigating the characteristics about the malandro as well yours manifestations in the literature national’s characters. The analysis will be made in a corpus compound of three narratives from brazilian literature, produced in three different social history contexts. Memórias de um sargento de milícias, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter e Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária are the selected narratives to the investigation about the malandro novel. The study willl be made prioriting the reflection about the central characteres of the narratives - Leonardo, Macunaíma and Ralfo – checking affinities between them and the characteristics that approach them of malandro type. The study will be based in the theorie of the brazilian anthropologist Roberto DaMatta, specially, about how the social dynamics are processed in the brazilian culture, with focus in the Carnival concept, in the literature’s carnivalization theory organized by Mikhail Bakhtin, in the Sérgio Buarque de Holanda’s cordial man, and in the notions of the Antonio Candido’s malandragem dialectic. Key words: Carnival. Literature’s carnivalization. Cultural identity. Malandro novel.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8

1 POR UMA IDENTIDADE CULTURAL 12

1.1 IDENTIDADE CULTURAL BRASILEIRA E CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES 13 1.2 PADRÕES CULTURAIS BRASILEIROS 20 1.2.1 BRASIL: O PAÍS DAS RELAÇÕES 20 1.2.2 ENTENDENDO O BRASIL RELACIONAL 22 1.2.3 BRASIL: UM PAÍS DIALÉTICO 28 1.2.4 O “JEITINHO” E A MALANDRAGEM: COMPORTAMENTOS CULTURAIS 31 1.3 O CARNAVAL DO BRASILEIRO DAMATTA E DO RUSSO BAKHTIN 38 1.3.1 O CARNAVAL: UM ASPECTO CULTURAL BRASILEIRO 38 1.3.2 A LITERATURA CARNAVALIZADA 42

2 TRÊS TEMPOS, TRÊS OBRAS E A MANUTENÇÃO DE UM ÍCONE 48

2.1 MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS NO BRASIL IMPÉRIO 49 2.1.1 AS MEMÓRIAS E A DIALÉTICA DA MALANDRAGEM 53 2.2 MACUNAÍMA NO SÉCULO XX 62 2.2.1 A FORTUNA CRÍTICA DE MACUNAÍMA 66 2.3 CONFISSÕES DE RALFO UMA AUTOBIOGRAFIA IMAGINÁRIA NA DITADURA BRASILEIRA 74 2.3.1 DAS MEMÓRIAS ÀS CONFISSÕES 77 2.4 O ÍCONE 85 2.4.1 O MALANDRO E O HOMEM CORDIAL 88

3 O ROMANCE MALANDRO: DO IMPÉRIO À DITADURA 91

3.1 O NASCIMENTO DO PRIMEIRO MALANDRO 92 3.2 O ENRAIZAMENTO DO MALANDRO 99 3.3 UM MALANDRO NO MUNDO CARNAVALIZADO 104 3.4 MARCAS DA MALANDRAGEM: RELACIONANDO O CORPUS 119 3.5 UM FINAL PARA O MALANDRO 136

PALAVRA FINAL 144

REFERÊNCIAS 149

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INTRODUÇÃO

Em 1854, Manuel Antônio de Almeida assinou a única publicação em vida das

Memórias de um sargento de milícias com o pseudônimo de “Um Brasileiro”. Talvez o

autor não tivesse a dimensão de seu feito e mal soubesse que, ao criar o personagem

Leonardo, o primeiro malandro da história da literatura brasileira, cunhava de fato o

protótipo de um brasileiro. A prova disso é que já passados mais de 150 anos da

publicação da obra, as Memórias continuam vivas, com várias re-edições, sendo,

inclusive, traduzidas para outras línguas. Ainda hoje, 200 anos depois da chegada da

família real no Brasil - contexto histórico de referência às ações do romance – o ano de

1808 continua sendo objeto de várias publicações artísticas.

Ao longo do ano de 2008, os brasileiros relembraram os idos de 1808 retomando

acontecimentos históricos da época, os quais foram determinantes para o Brasil em que

hoje se vive. As comemorações alusivas aos 200 anos da chegada da família real ao

país oportunizaram que a Nação Brasileira retomasse suas reflexões em torno de uma

identidade cultural. Assim, revolveu-se novamente em um fundo e obscuro terreno na

busca das raízes que deram origem à cultura brasileira.

Sabe-se que a Nação brasileira formou-se pela junção de diferentes povos, ou

melhor, o Brasil nasceu da fusão entre os invasores portugueses, os índios da terra e

os negros africanos. É necessário lembrar, entretanto, que o que ocorreu no Brasil não

foi simplesmente uma junção de povos formando uma sociedade multiétnica. Na

verdade, o que se deu nessa terra por intermédio da fusão dos povos foi a formação de

uma entidade brasileira que fala uma mesma língua, é assentada em território próprio e

forma uma uniformidade cultural e uma unidade social.

Entretanto, ao falar de unidade cultural, é inevitável tocar em uma ferida ainda

aberta para a Nação Brasileira: quem é afinal o povo brasileiro; quais as características

que definem um brasileiro; que projeto possui a Nação Brasileira; que projeto possui o

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cidadão brasileiro, enfim, qual o traço identitário que define e une a sociedade

brasileira. E as respostas divergem: o Brasil é um país alegre, multicolorido, marcado

pela flexibilidade, é uma nação que forma um caleidoscópio no que diz respeito à

mistura de raças e ao pluralismo cultural; por outro lado, o Brasil é um país pautado por

grandes diferenças sociais e de classes e atrasado social e culturalmente.

Em busca de algumas respostas para essas indagações recorre-se, então, à

Literatura, pois sabe-se que as grandes narrativas são importantes para o

desenvolvimento de um povo, contribuindo para que ele possa pensar sobre quem é,

para que possa entender seus dilemas e também para pensar o que deseja ser, ou que

projeto possui. Além disso, uma obra literária é, muitas vezes, capaz de mostrar

aspectos sociais, culturais e históricos de uma sociedade com maior eficiência que a

história oficial, ou até mesmo trazer à baila acontecimentos que passaram

despercebidos pela história ou que, talvez, não devessem ser registrados por esta. Este

estudo propõe-se a verificar, pelos caminhos da arte literária, como a formação da

identidade nacional brasileira é retratada pela literatura e para tanto serão investigados

dois aspectos que fazem parte dessa identidade: o carnaval e a malandragem.

O fenômeno do carnaval na sua forma sincrética de espetáculo de caráter ritual e

festivo tem se constituído num dos problemas mais complexos e interessantes da

história da cultura. Ele ultrapassa as fronteiras das festas e dos ritos para adentrar em

outras esferas, inclusive na literatura. Este estudo ancorar-se-á na teoria de Mikhail

Bakhtin, teórico russo que vinculou o fenômeno do carnaval com a arte literária, a

chamada literatura carnavalizada. Ao lado de Bakhtin, esta pesquisa tomará por base

os estudos do antropólogo brasileiro Roberto DaMatta sobre os padrões culturais

brasileiros, especialmente em torno das relações da sociedade brasileira com a

dramatização do Carnaval.

Além disso, com o intuito de investigar os traços comportamentais do homem

constituinte da sociedade brasileira, refletir-se-á em torno do conceito de homem cordial

cunhado por Sérgio Buarque de Holanda, relacionando-o com a figura do malandro. O

malandro é um ícone que sulca profundamente o imaginário nacional e o discurso e o

modo de ser desse personagem povoam o imaginário nas mais diversas formas de

expressão identificadas com o brasileiro. A figura do malandro está presente na

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literatura, no anedotário, na música, na propaganda, enfim, em tudo aquilo que

simboliza o caráter do brasileiro.

A presente pesquisa está dividida em três capítulos, sendo que o primeiro

abordará o conceito de cultura e de identidade cultural, bem como o processo de

construção das identidades para, em seguida, investigar sobre os padrões culturais

brasileiros. Neste capítulo serão abordadas as teorias que Roberto DaMatta organizou,

observando o comportamento da sociedade brasileira, especialmente, as teorias do

dilema brasileiro e do triângulo ritual.

No segundo capítulo serão apresentados os contextos históricos de produção

das narrativa constituintes do corpus literário, assim como a figura do malandro será

apresentada como o ícone eleito para proceder-se a uma investigação acerca de sua

relação com a identidade cultural brasileira. A narrativa Memórias de um sargento de

milícias será um dos objetos desta análise, além da rapsódia Macunaíma, o herói sem

nenhum caráter e do romance Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária.

Três narrativas nacionais publicadas em três contextos históricos diferentes,

sendo a primeira nascida das mãos de Manuel Antônio de Almeida na segunda metade

do século XIX, mas cujas ações se passam na primeira metade do mesmo século; a

segunda, publicada em 1928, por Mário de Andrade e que completou, em 2008, seus

80 anos de criação; e a terceira, por sua vez, um romance da literatura contemporânea

datado de 1975 e publicado por Sérgio Sant’Anna num contexto de repressão nacional.

No terceiro capítulo, far-se-á uma análise em torno do nascimento do primeiro

malandro da Literatura Brasileira, o Leonardo, fruto de um encontro casual e acidental

de um casal português que se conhecera a bordo de um navio viajando para o Brasil a

fim de tentar a vida no Novo Mundo. Ao lado de Leonardo, o Macunaíma - personagem

que se consagrou como símbolo da identidade cultural brasileira - será resgatado para

o presente estudo por ser um malandro bastante conhecido da história da Literatura

Brasileira e hoje já enraizado no imaginário nacional. Por fim, apresentar-se-á Ralfo, um

personagem surgido na década de 70, não tão conhecido como Leonardo e

Macunaíma, mas igualmente pertencente, de acordo com o presente estudo, ao

romance malandro da literatura nacional.

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Assim, tomando por base as três narrativas selecionadas para o corpus, esta

pesquisa se dará em torno dos personagens Leonardo, Macunaíma e Ralfo que formam

o fio condutor das respectivas narrativas e serão analisados como personagens do

romance malandro. O objetivo do estudo consiste em colocar Ralfo, um personagem

não tão conhecido do público leitor, ao lado de Leonardo e Macunaíma, personagens já

consagrados pela crítica literária, e verificar em que medida esses personagens

nascidos da arte literária contribuíram para criar, reforçar ou negar o ícone do malandro

no imaginário da sociedade brasileira.

Da mesma forma objetiva-se, a partir dos preceitos que Antonio Candido

estabelece em Dialética da Malandragem, investigar o espaço especial existente na

sociedade brasileira onde acontecem as relações e onde o malandro age. Por fim, o

objetivo desta pesquisa é fazer uma aproximação entre Leonardo, Macunaíma e Ralfo,

personagens que simbolizam a figura do malandro, analisando-os esteticamente na

busca dos traços da malandragem, assim como aproximar as três narrativas do corpus,

incluindo-as na linhagem do romance malandro instaurado por Antonio Candido.

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1 POR UMA IDENTIDADE CULTURAL

brasil

O Zé Pereira chegou de caravela E perguntou pro guarani da mata virgem - Sois cristão? - Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da morte Teterê tetê Quizá Quizá Quecê! Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu! O negro zonzo saído da fornalha Tomou a palavra e respondeu - Sim pela graça de Deus Canhem Babá Canhem Babá Cum Cum! E fizeram o carnaval

(Oswald de Andrade)

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1.1 Identidade cultural brasileira e construção das identidades

O conceito de cultura é muito útil para a compreensão do paradoxo da enorme

diversidade cultural em que vive a espécie humana. Há quatro séculos antes de Cristo,

Confúcio já anunciava “A natureza dos homens é a mesma, são seus hábitos que os

mantêm separados.”1 Desde sempre são comuns as tentativas de explicar as

diferenças de comportamento entre os homens, a partir das variações dos ambientes

físicos, mas tanto o determinismo geográfico como o determinismo biológico tem se

mostrado incapazes de resolver o problema de conciliação entre a unidade biológica e

a grande diversidade cultural da espécie humana. O homem é considerado um ser

predominantemente cultural e seu comportamento não é biologicamente determinado.

Assim, todos os seus atos dependem inteiramente de um processo de aprendizado,

pois “tudo o que o homem faz, aprendeu com os seus semelhantes e não decorre de

imposições originadas fora da cultura.”2

Roque de Barros Laraia diz que a cultura é um processo cumulativo, o qual

resulta da experiência histórica das gerações anteriores que é transmitida aos demais

descendentes. O modo de ver o mundo, o valor dado às coisas que rodeiam o homem,

seus diferentes comportamentos sociais, os valores morais, etc. são produtos de uma

herança cultural e por causa dessa herança é que indivíduos de culturas diferentes

podem ser identificados facilmente, pois são comuns o seu modo de agir, comer, beber,

falar, vestir, caminhar, entre outros pontos comportamentais. Entende-se, então, que

cada cultura tem um determinado padrão que a acompanha ou a determina como tal.

Assim, entender a lógica de um sistema cultural depende de compreender os diversos

princípios de juízos e raciocínios presentes na linguagem ou nos hábitos de uma

determinada cultura, pois a condição humana determina que todos os indivíduos devem

1 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22.ed.Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p.10 2 Ibidem, p.51.

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alimentar-se, reproduzir-se, comer, beber, dormir, etc., mas, ao mesmo tempo, não é

prescrito o modo como cada um deverá fazê-lo. É justamente nesse espaço em aberto

que surgem as diferenças, os estilos, os jeitos de cada um, da comunidade ou do

grupo, constituindo aquilo que chamamos de identidade. Essa identidade dirá quem

somos, como pensamos e agimos e por que assim somos.

Os caminhos do Brasil desenham uma geografia humana recortada por uma

enorme diversidade física e cultural. Do ponto de vista biológico, os tipos brasileiros

extrapolam os já consagrados branco, preto e índio. E a junção desses, formando o

mameluco, mulato e cafuzo, já não dá conta do processo de aculturação entre os três

grupos étnicos formadores da população brasileira, pois há um grande deslocamento

dessa população por meio de correntes migratórias, intensificando a diferenciação dos

tipos brasileiros. A mulher brasileira famosa por sua beleza, por exemplo, não possui

um tipo físico único, uma descrição precisa, com aspectos convergentes capazes de

unificar essa sua beleza, pois essa mulher é a herança de todas as correntes

migratórias. Assim, ela pode ter cabelos lisos, sedosos ou encaracolados; pode ser

morena, loira, negra ou mulata; o tom de sua pele forma um degradé que varia entre o

branco e o preto; além das variações do formato do nariz, boca, olhos, etc. Nesse

sentido, vale a observação de Gevanilda Gomes dos Santos3, segundo a qual, no

censo de 1980, divulgado pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - os

brasileiros se auto-classificaram em 136 terminologias diferentes para definir sua cor:

polaca, pardo-clara, amarelo-queimada, mista, mulata, ruiva, dentre outras. Este fato

confirma a ideia de que o Brasil é um país indefinível em termos de tipo físico,

formando, portanto, uma população marcadamente mestiça. População esta que se

torna fonte de inspiração para a expressão “Brasil, caldeirão das raças”, muito utilizada

na literatura seguidora do pensador Gilberto Freyre, autor do clássico Casa-grande e

Senzala, publicado em 1933.4

Ora, se definir o Brasil sob o aspecto biológico é tarefa impossível, que dizer da

tarefa de defini-lo sob o aspecto cultural. O país conhecido como o “caldeirão das

raças” conjuga um sem-número de culturas e essa diversidade cultural é um dos fatores

3 SANTOS, Gevanilda Gomes dos. Um perfil do “brasileiro cordial” In: KUPSTAS, Márcia (Org.). Identidade nacional: em debate. São Paulo: Moderna, 1997. p. 58-73. 4 Ibidem, p.63.

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que nos leva a proclamar o Brasil como um país formado por vários brasis. Tanto a

cultura indígena como a negra marcam fortemente a identidade cultural brasileira. No

entanto, foram os costumes da cultura branca que preponderaram sobre todas as

outras, fato explicado de forma lógica, pois se os brancos eram os colonizadores,

obviamente, a eles pertencia o poder e, dessa forma, puderam facilmente colonizar (ou

dizimar) os índios e trazer os negros da África como mercadoria para servirem ao

trabalho escravo. Assim, índios e negros estavam a serviço do branco, e porque não

pertenciam ao grupo dos dominantes, também sua cultura, como eles, fora dominada.

Nos tempos atuais, já se tem clareza que esses primeiros contatos entre as três

raças não foram momentos tão românticos do processo de encontro como apregoa

muitas vezes a História oficial ou até mesmo a Literatura. Mas não se pode negar é que

o Brasil se forma a partir do encontro das três raças e devido à maneira como se deu a

colonização brasileira - pela junção das raças - evidenciam-se, em nossa sociedade,

vários padrões culturais. Embora um padrão seja o dominante, facilmente percebe-se

na cultura brasileira a presença ativa de aspectos culturais dos grupos dominados.

Como exemplo, podemos citar o fato de que a maioria da população brasileira se diz

católica, isto é, a religião católica é a dominante, mas em momentos de dificuldade é

comum pessoas de qualquer uma das raças – preta, branca ou indígena - apelar aos

santos, orixás, umbanda, candomblé, etc. na tentativa de resolver suas aflições.

Embora rituais africanos ou indígenas sejam frequentemente desprezados ou até

inadmissíveis pela cultura do dominante, pessoas desse grupo participam dos ritos, em

momentos aflitivos, sem o menor constrangimento.

As sociedades em geral realizam exercícios permanentes de autoconsciência e

promovem leituras de si próprias de várias maneiras, sendo os rituais uma delas. Os

rituais são importantes para que determinado grupo faça uma leitura de si próprio, o

que poderá desencadear solidariedade, mas também estranhamento entre os

indivíduos que o compõem. Por isso as festas, as celebrações, as comidas, as

atividades artísticas, as vestimentas, os momentos extraordinários planejados pela

sociedade são as formas com as quais uma comunidade pode rever o seu grupo,

afastando-se dele ou reafirmando aquilo que chamamos de identidade. Falar de

identidade cultural brasileira é falar de pluralidade e diversidade. É ponto de

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convergência o fato de que o Brasil, tendo surgido como colônia de Portugal, reflete até

hoje um passado de invasões, influências e assimilações culturais. Dos costumes

culturais indígenas, misturados aos costumes africanos, unidos à sempre presente

cultura portuguesa origina um universo cultural heterogêneo e diversificado de região

para região, que pode ser observado nos traços físicos da população, na culinária, no

linguajar, no folclore, nos ritmos, nas festas populares, na religião, dentre outros

elementos.

Segundo Roberto DaMatta,5 a identidade social é algo muito importante, mas

além de saber quem somos, também interessa descobrir como essa identidade é

construída. E falando sobre a busca de uma identidade cultural brasileira pelo povo

dessa nação, o autor explica que o processo de construção de identidades se dá por

meio das experiências vitais – as necessidades básicas do ser humano – mas também

sofre a influência das experiências acidentais e, nesse sentido, faz-se necessário levar

em conta os fatos históricos. Exemplifica o antropólogo:

o Brasil foi descoberto por portugueses e não por chineses, a geografia do Brasil tem certas características como as montanhas na costa do Centro-Sul, sofremos pressão de certas potências européias e não de outras, falamos português e não francês, a família real transferiu-se para o Brasil no início do século XIX, etc. 6

Então, pelo fato de a colonização ou a formação da nação brasileira acontecida

de uma determinada maneira e não de outra, pelo fato de que o decorrer da história do

Brasil se desenrolou de tal forma e não de outra, o povo brasileiro é receptor desta

herança cultural e não de outra. Por isso, segundo DaMatta:

Sei, então, que sou brasileiro e não norte-americano, porque gosto de comer feijoada e não hambúrguer; porque sou menos receptivo a coisas de outro país, gestos e relações sociais; porque vivo no Rio de Janeiro e não em Nova York; porque falo português e não inglês; porque, ouvindo música popular, sei distinguir imediatamente um frevo de um samba; porque o futebol, para mim, é um jogo que se pratica com os pés e não com as mãos; porque vou à praia para ver e conversar com os amigos, ver as mulheres e tomar banho de sol, jamais para praticar um esporte; porque sei que no carnaval trago à tona minhas fantasias sociais e sexuais; porque sei que não existe jamais um “não”

5 DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1984. 6 Ibidem, p.16.

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diante de situações formais e que todas admitem um “jeitinho” pela relação pessoal e pela amizade; porque entendo que ficar malandramente “em cima do muro” é algo honesto, necessário e prático no caso de meu sistema; porque acredito em santos católicos e também nos orixás africanos; porque sei que existe destino e, no entanto, tenho fé no estudo, na instrução e no futuro do Brasil; porque sou leal a meus amigos e nada posso negar à minha família; porque, finalmente, sei que tenho relações pessoais que não me deixam caminhar sozinho neste mundo, como fazem os meus amigos americanos, que sempre se vêem e existem como indivíduos! 7

Para DaMatta, a soma desses traços forma um todo identificatório e a presença

de determinados traços equivale à ausência de outros, o que vale dizer que se uma

sociedade é X, significa que não será Y. Por isso a construção de uma identidade social

depende de afirmativas e de negativas diante de certas questões. Ainda nesse sentido,

o autor esclarece:

Tome uma lista de tudo o que você considera importante - leis, idéias relativas à família, casamento e sexualidade; dinheiro; poder político; religião e moralidade; artes; comida e prazer em geral – e com ela você poderá saber quem é quem. [...] Descobrindo como as pessoas se posicionam e atualizam as ‘coisas’ desta lista, você fará um ‘inventário’ de identidades sociais e de sociedades. Isso lhe permitirá descobrir o estilo e o ‘jeito’ de cada sistema. Ou, como se diz em linguagem antropológica, a cultura ou ideologia de cada sociedade. Porque, para mim, a palavra cultura exprime precisamente um estilo, um modo e um jeito, repito, de fazer as coisas. 8

Os elementos citados na lista de DaMatta formam o retrato de um indivíduo ou

grupo, isto é, a sua identidade. É por meio das manifestações do comportamento

relativo a esses elementos que se pode definir uma identidade, seja ela de ordem

individual ou social. No intento de traçar uma definição para a identidade cultural

brasileira, as atenções devem voltar-se para tais aspectos constitutivos. Desse modo,

se de um lado o Brasil pode ser definido como uma sociedade moderna, globalizada,

desenvolvida tecnologicamente, de outro, encontramos esse mesmo Brasil com

estatísticas demográficas, econômicas, educacionais bastante arcaicas. As

disparidades econômicas e sociais existentes no Brasil deram origem ao irônico

neologismo ‘Belíndia’ – há regiões do Brasil que se assemelham à Bélgica no padrão

7 DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1984. p.16-17. 8 Ibidem, p.17.

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de vida e índices econômicos e outras que se assemelham à Índia no que se refere às

mazelas sociais. 9

Esses aspectos puderam ser comprovados pela Pesquisa Social Brasileira – a

PESB – publicada por Alberto Carlos Almeida em 200710, cujo objetivo foi retratar o

pensamento da sociedade brasileira do século XXI. Os resultados mostraram o que o

brasileiro pensa sobre ética, sexualidade, jeitinho, destino, família, punições, cor e raça,

economia, política, igualdade, civismo, etc. e foram reunidos na obra intitulada A

cabeça do brasileiro, onde é possível verificar que as conclusões da PESB vêm ao

encontro de muito daquilo que DaMatta já afirmara: o Brasil é hierárquico, familista,

patrimonialista, e se encaixa em vários outros adjetivos que significam arcaísmo, atraso.

Em sua pesquisa, Almeida afirma que o Brasil pode ser dividido em dois países

que se distinguem, na verdade, pela forma de pensamento, pela mentalidade. Constata

o autor que “Enquanto a classe baixa defende valores que tendem lentamente a morrer

ou a se enfraquecer, a classe alta mantém-se alinhada a muitos dos princípios sociais

dominantes nos países já desenvolvidos.”11 Isso demonstra que há um hiato na maneira

de pensar entre os menos favorecidos e as classes mais favorecidas e, no

entendimento do pesquisador, o fenômeno acontece em virtude da presença ou

ausência de escolaridade. Conclui ele:

Quem passou pelos bancos escolares de uma universidade e obteve diploma tende a ser uma pessoa moderna, impessoal; contra o jeitinho brasileiro; contra punições ilegais, como linchamentos e o estupro, na cadeia, de criminosos condenados pelo mesmo crime; refratária à crença de que o destino está completamente nas mãos de Deus; e a favor de confiar mais nos amigos. 12

Embora nos dias atuais não se possa afirmar com convicção que aqueles que

tiveram acesso aos bancos escolares demonstrem, realmente, a tendência de ser

modernos e contra o jeitinho, a PESB de Almeida aponta o Brasil como um país arcaico

devido ao fato de a população ainda possuir baixa escolaridade. Segundo a pesquisa

grande parte da população brasileira possui uma mentalidade bastante comum e sua

9 MAGNOLI, Demétrio. Nem Bósnia, nem Belíndia. In: KUPSTAS, Márcia (Org.). Identidade nacional: em debate. São Paulo: Moderna, 1997. p.106-125. 10 ALMEIDA, Alberto Carlos. A cabeça do brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. 11 Ibidem, p. 25. 12 Ibidem, p. 25.

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forma de pensamento resume-se na lista a seguir: apoia o jeitinho brasileiro, é

hierárquico, é patrimonialista, é fatalista, não confia nos amigos, não tem espírito

público, defende a ‘lei de Talião’, é contra o liberalismo sexual, é a favor de mais

intervenção do Estado na economia, é a favor da censura.

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1.2 Padrões culturais brasileiros

1.2.1 Brasil: o país das relações

O Estado está para o Deus Pai – intocável na sua onipotência e terrível no seu

poder – assim como o Governo está para Deus Filho que, por ser humano, está sujeito

a sofrimento e engano. Essa é uma metáfora criada por Roberto DaMatta13 para dizer

que o Estado é anônimo e invisível enquanto o Governo tem nome, rosto,

características físicas e morais; o Estado tudo pode, ao passo que o Governo é restrito

às limitações humanas; se para o Estado existem as regras, a lei, para o Governo, é

possível “dar um jeito” em tais normas. Isso causa um sentimento de indecisão para a

sociedade que, por ficar sem saber o que é o certo e o que é o errado “muito

frequentemente, ela (a sociedade) se manifesta demandando ou apoiando códigos e

leis tão distantes de suas práticas diárias que seu desenho aparece como pérolas

jurídicas impossíveis de serem seguidas.”14 Quer dizer a sociedade possui

determinadas leis para serem cumpridas, no entanto, muitas vezes as mesmas são

incompatíveis entre si, ou desnecessárias, ou impossíveis de serem fiscalizadas, enfim,

por inúmeras razões, as regras estabelecidas para e pela sociedade brasileira não

funcionam.

Outro aspecto que caracteriza essa sociedade é o fato de que muitas vezes

nossas instituições adotam um modelo jurídico oriundo da França, Inglaterra ou EUA,

desconsiderando que os modelos adotados vigerão brasileiros e não franceses,

ingleses ou norte-americanos, sendo, portanto, tais modelos fadados ao fracasso.

Ademais, existem ainda determinadas normas ou regras informais, ou seja, há aqueles

códigos que regem perfeitamente aspectos da sociedade brasileira, mas não são

legalizados, como acontece, por exemplo, com o jogo do bicho.

13 DAMATTA, Roberto. Estado e Sociedade: A Casa e a Rua. In: DEL PRIORE, Mary. Revisão do Paraíso: os brasileiros e o estado em 500 anos de história. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p.355. 14 Ibidem, p. 355.

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Percebe-se, com essas ilustrações, que no Brasil há um sistema relacional

criando uma sociedade capaz de conjugar igualdade com hierarquia, particularidade

com universalismo, holismo com individualismo, casa grande católica, culta, legalista e

nacional com a senzala animista, ignara e local, etc. Segundo DaMatta, essa junção de

valores é responsável por formar “a argamassa do clientelismo e do nepotismo que

singularizam o nosso uso característico do espaço e da coisa pública num hibridismo

institucional”15, o que, ao contrário do que muitos pensam, pouco tem de esplendoroso

e positivo, embora sejam básicas para o funcionamento do sistema. A característica

híbrida dessa sociedade denuncia a falta de regra, do acordo e, em decorrência disto,

cada um se baseia nas suas razões coletivas e pessoais para agir, ou seja, cada um se

dá o direito de não escolher, deixando as decisões para o Estado. Dessa forma, a vida

coletiva passa a ser de responsabilidade do Estado por meio dos atos jurídicos e

políticos, como se a sociedade com seus hábitos, suas crenças, seus valores, suas

relações e sua força não tivessem nenhuma responsabilidade na construção de uma

Nação organizada e justa.

A teoria de Roberto DaMatta é que, no Brasil, há uma combinação curiosa e,

segundo ele, até perversa, entre igualitarismo individualista cívico importado combinado

a uma organização social personalista e hierárquica. Diz o antropólogo:

Esse amálgama de holismo e individualismo, de igualdade e hierarquia, desemboca, inevitavelmente, no caudilhismo, no autoritarismo, nos vários personalismos (a crença de que há realmente um ‘salvador da Pátria’, uma pessoa que faria o ‘Brasil finalmente ir prá frente’), no ‘sabe com quem está falando?’, no ‘jeitinho’ e, mais rotineiramente, no clientelismo, no nepotismo e nas suas pequenas e grandes perversões (de pequenas corrupções corriqueiras, como furar sinais de trânsito, às mais vulgares apropriações da coisa pública), desempenhando na paisagem social brasileira o papel dos hóspedes não convidados da democracia, justamente porque jamais foram contemplados nas discussões do poder à brasileira.16

Fica então evidenciado que, no Brasil, há uma paixão pelo Estado e uma visão

primária de sociedade. O Estado moderno foi constituído ao longo de uma história e

através de um sistema social que se exprime em sua lógica e em seus valores. O

15 DAMATTA, Roberto. Estado e Sociedade: A Casa e a Rua. In: DEL PRIORE, Mary. Revisão do Paraíso: os brasileiros e o estado em 500 anos de história. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p.357. 16 Ibidem, p.358.

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grande problema, entretanto, reside na crença de que o Estado é acabado e

independente da sociedade e que deseja impor a ela os seus valores e a sua

racionalidade, renegando a verdadeira função do Estado, que deveria existir em função

da sociedade da qual ele faz parte. A verdade é que, no Brasil, a estrela é o Estado e

não a sociedade.

1.2.2 Entendendo o Brasil relacional

Tanto o tempo, quanto o espaço, são invenções sociais. Eles constroem e, ao

mesmo tempo, são construídos pela sociedade dos homens. Portanto, em todo sistema

social há uma noção de tempo e outra de espaço. Para Roberto DaMatta17, a sociedade

brasileira é singular no que diz respeito a esses aspectos, já que nela há vários

espaços e muitas temporalidades que convivem simultaneamente. O antropólogo

entende que a Casa e a Rua, complementadas pelo espaço do Outro Mundo, formam

os espaços básicos para a compreensão da sociabilidade brasileira. Em sua teoria, o

espaço da Casa é responsável por uma leitura especial do mundo brasileiro porque, na

sociedade brasileira, a casa organiza um universo com suas normas e práticas

diferenciadas das do mundo da rua. A casa não é governada pelas leis escritas do

Estado - as quais mudam com frequência - tornando-a, por isso, uma referência mais

confiável do que as instituições públicas. Quando se fala da casa, no Brasil, além de

residência, se faz alusão a um espaço de emoção, sentimento, história e personalidade.

Todas as sociedades modernas se organizam nos espaços da Casa e Rua,

sendo governadas tanto no espaço público – a Rua – como no espaço privado – a Casa

– pelas mesmas normas. No Brasil, entretanto, isto acontece de forma diferente, pois as

leis que governam a Rua (o espaço público) não têm o poder de governar a Casa (o

espaço privado), assim como em muitas ocasiões as normas vigentes na Casa são

extensivas ao espaço público. No espaço da Casa brasileira, reina a harmonia em

detrimento da confusão, competição e desordem da Rua. Na Casa, existem os favores,

17 DAMATTA, Roberto. O que é o Brasil? Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004. p.13-20.

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os presentes, o carinho familiar, a acomodação dos desejos de todos os membros da

família. Enfim, Casa é um espaço habitado por pessoas cujo núcleo é constituído por

aqueles que possuem a mesma substância: carne, sangue, interesses comuns, nome

comum, etc.

O Brasil já foi Reino, Monarquia Constitucional e Absolutista, República Velha,

Estado Novo, democracia liberal, regime parlamentar, autocracia militar com congresso

controlado, Nova República e Estado Liberal. O Brasil já teve seis constituições e cinco

tipos de moeda (nos últimos 45 anos)18 e essas frequentes mudanças talvez sejam

capazes de nos mostrar que o país ainda não acertou o passo e talvez, por isso, não

seja à toa que o espaço da Casa para o brasileiro seja a única fonte de identidade

confiável e permanente. Pela sua familiaridade com a Casa, parece ser comum, para a

sociedade brasileira, a pessoa ser tratada no espaço público com as mesmas regras de

convívio do universo da casa e da família. Para tanto que no Brasil se popularizou a

expressão “você sabe com quem está falando?” numa clara demonstração de que as

pessoas não são iguais e não estão todas sujeitas à lei universal, mas sim a situações

especiais. O problema é que essa expressão tornou-se absolutamente natural e

racional na sociedade brasileira, pois o país se desenvolveu em um sistema que

contempla mais a lealdade pessoal e a hierarquia do que a igualdade e a obediência a

normas impessoais e abstratas.

Mas se a Casa é o local da harmonia e da satisfação dos desejos, a Rua, por

sua vez, é o local do trabalho, do Estado, das leis, das surpresas, da tentação e do

lazer. A Rua é o local por onde transita o povo para a luta do dia-a-dia, onde o tempo é

medido, onde não há amor, consideração, respeito ou amizade. Em suma, a Rua é o

lugar do movimento e, por isso, perigoso, pois contrasta com a tranquilidade da Casa.

Na teoria de DaMatta, na sociedade brasileira, há um perfeito equilíbrio entre Casa e

Rua, pois o que é negado em casa, como a impessoalidade, a igualdade e o trabalho,

obtém-se na Rua. Em Casa, há uma hierarquia – pai, filhos e dona da casa – enquanto

na Rua há a igualdade de todos perante as leis, os sinais de trânsito e a ordem. Faz-se

aqui um parêntese: é justamente no espaço da Rua brasileira que surge uma figura do

18 DAMATTA, Roberto. Estado e Sociedade: A Casa e a Rua. In: DEL PRIORE, Mary. Revisão do Paraíso: os brasileiros e o estado em 500 anos de história. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p. 360.

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interesse dessa pesquisa - o malandro - um tipo cuja proeza consiste em vencer o

trabalho, o qual é visto por ele como castigo, ganhando o máximo com um mínimo de

esforço. Fecha-se o parêntese.

Importante destacar que a Rua é o local do trabalho e, para total compreensão,

da visão de trabalho no Brasil, é preciso um olhar à origem da palavra, a qual deriva do

latim tripaliare, que significa castigar com o tripaliu, instrumento utilizado para torturar

escravos na Roma Antiga. O trabalho - visto como um castigo pela religião católica e

mais tarde transformado em salvação das almas e aperfeiçoamento do mundo pela

reforma de Calvino - não era bem visto pela sociedade brasileira, pois a única forma

conhecida de trabalho por aqui fora o trabalho escravo, sendo que, como as pessoas

decentes não trabalhavam com as mãos, consequentemente, não precisavam sair às

ruas para trabalhar. Enquanto na cultura anglo-saxã o trabalho era visto como uma

forma de vencer na vida, adquirindo riqueza e dignidade com os próprios esforços, na

cultura católica era visto como um obstáculo, como um problema. Essa visão imprimiu

uma ideia negativa em relação ao trabalho, ratificando, assim, a sociedade patriarcal e

escravocrata anunciada por Gilberto Freyre em sua obra prima Casa Grande &

Senzala. Essa maneira de encarar o trabalho foi determinante para influenciar as

concepções de trabalho e suas relações na sociedade brasileira e, por isso, ainda nos

dias de hoje confunde-se tarefa com amizade e as relações entre patrão e empregado.

O terceiro espaço teorizado por DaMatta – o Outro Mundo – seria aquele local

onde não haveria sofrimento, poder, miséria e sobretudo impessoalidades e anonimatos

desumanos.19 Nesse espaço, todos seriam considerados como pessoas, as leis seriam

universais e válidas para todos. Diz o antropólogo “Todos teriam valor, porque o valor

não seria dado pela educação, pelo dinheiro, pelos títulos, pela idade ou pelo sexo, mas

pela fé e a sinceridade de cada um e de todos.”20 Ao apresentar esses três espaços

como determinantes na formação da identidade cultural brasileira, Roberto DaMatta

quis demonstrar que quem quiser entender a sociedade brasileira terá de compreender

o que se passa na vida em família, na rua, no universo da economia, das leis, do

mundo público, na vida religiosa, etc. E, nessa busca, percebe-se uma sociedade onde

19 DAMATTA, Roberto. O que é o Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p. 57-68. 20 Ibidem, p. 68.

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a ambiguidade é a raiz, pois o Brasil constituiu uma sociedade ao mesmo tempo

moderna e tradicional, que combina o indivíduo e a pessoa, a família e a classe social,

as crenças e as formas econômicas mais modernas.

Assim, o brasileiro é uma pessoa na Casa (espaço pessoal e particular), outra na

Rua (espaço impessoal e universal) e uma terceira pessoa, ainda, no Outro Mundo

(espaço renunciador). Em cada um desses espaços, há valores e visões diversas de

mundo, obrigando o brasileiro a comportamentos diferentes. DaMatta entende a lógica

brasileira resumindo-se na complementaridade e nas relações capazes de ligar a Casa

com a Rua, do mesmo modo que liga o carnaval com a festa religiosa, o homem com a

mulher, este mundo com o outro mundo. O trecho a seguir demonstra isso com muita

propriedade:

Esta seria a lógica que, no campo da política, aparece com o nome de negociação e conciliação; que no mundo econômico surge na curiosa combinação de uma economia que se quer controlada e de mercado; que na religião aparece com a intrigante mistura de catolicismo com religiões de possessão afro-populares; e que na cosmologia em geral – e eu penso em heróis como Pedro Malasartes, Dona Flor, João Grilo e Augusto Matraga – engendra personagens intermediários, gente que permite a conciliação de tudo o que a sociedade mantém irremediavelmente dividido. 21

A sociedade brasileira é mestre em transições equilibradas e em conciliações.

Ela consegue conciliar perfeitamente os espaços da Casa, Rua e Outro Mundo, porém

não é fácil para o brasileiro viver num sistema social onde ele tem uma cidadania em

casa, outra no centro religioso e outra ainda na rua. Por isso, no Brasil, se estabeleceu

a lógica relacional, cuja principal característica é a capacidade de inventar pontes e

formas de passagens entre os três espaços estabelecendo as relações.

A sociedade brasileira é uma sociedade em movimento, sendo este sempre no

sentido da relação e da conexão. Há sociedades onde os indivíduos são fundamentais

e há sociedades onde as relações é que são valorizadas e por isso elas são encaradas

como sujeitos importantes no desenrolar dos processos sociais. O Brasil se enquadra

no segundo modelo, pois a principal característica de sua sociedade é valorizar o que

está entre as coisas, é a valorização dos elos, dos conectivos, das ligações que não

desmancham nem isto, nem aquilo, ao contrário, os fundem. Nesse sentido explica 21 DAMATTA, Roberto. O que é o Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p.70.

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DaMatta que “o estilo brasileiro se define a partir de um &, um elo que permite batizar

duas entidades e que, simultaneamente, inventa o seu próprio espaço.”22 E esses elos,

essas ligações constituem a relação como um valor e como uma positividade,

permitindo que os diferentes espaços relacionem-se por seus subespaços –

constituídos pelas praças, mercados, jardins, janelas, portos, cozinhas e varandas e

também por meio de ocasiões especiais em que a comunicação é possível, obrigatória

ou desejável. Assim, formamos este Brasil dotado de uma cultura híbrida, capaz de

promover a união da hierarquia com a igualdade.

O Brasil constitui uma sociedade com um sistema dotado de múltiplas esferas de

ação e significação social, cuja lógica um tanto complexa, é capaz de relacionar um

sistema com o outro, fazendo com que as experiências negativas de um espaço

possam transformar-se em positivas no outro. O que se evidencia nessa lógica,

entretanto, é a capacidade de relacionar, criando assim uma posição intermediária,

posição que assume a perspectiva da relação e que se traduz numa linguagem de

conciliação, negociação, gradação. Para Roberto DaMatta “isto é tão crítico que explica

a popularidade de figuras como o malandro e o político populista (carioca ou mineiro),

que estão sempre manipulando com habilidade os dois lados.”23

Roberto DaMatta criou a tese do triângulo ritual para representar a sociedade

brasileira. Em sua obra prima Carnavais, Malandros e Heróis 24 o antropólogo mostra

que nenhum ritual, isoladamente, é capaz de representar o Brasil e, por isso, o triângulo

parece ser a figura perfeita na representação do país. A partir dos três espaços básicos

na formação da sociedade brasileira – a Casa, a Rua e o Outro Mundo - DaMatta

distribui no espaço do triângulo ritual os vários pontos de festividades brasileiras – as

carnavalescas, as cívicas e as religiosas. Além disso, o antropólogo ainda arrisca

montar um triângulo formado por Deus representado por suas três pessoas, em cuja

lógica, o Pai seria a Rua, o Estado e o universo das leis; o Filho representaria a Casa

com seu calor e humanidade; e o Espírito Santo representaria a relação entre o Pai e o

Filho, ou seja, o outro lado do mistério. Observe-se que esse triângulo ritual, sugerido

22 DAMATTA, Roberto. A Casa & A Rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 25. 23 Ibidem, p. 93. 24 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 260-262.

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por DaMatta, contém os ritos da ordem, da desordem e os cerimoniais “neutros” das

religiões. Assim, em um dos vértices se pode rir e brincar, no outro, é possível ser sério,

enquanto na terceira ponta se pode, ainda, ser neutro e renunciador.

O triângulo é a figura perfeita para representar a nação brasileira porque o Brasil

é o país dos três elementos, em detrimento do dual. Na sociedade brasileira tem-se o

preto/branco/mulato; preto/branco/índio; céu/inferno/purgatório; sim/não/mais-ou-menos

e como não é possível a determinação de um dos vértices do triângulo como o mais

importante ou o dominante, as relações assumem uma posição central e, talvez por

isso, as festas sejam tão representativas para a sociedade brasileira, pois elas são os

mecanismos mais importantes para relacionar os espaços segregados e afastados uns

dos outros, reunindo-os para a vivência da totalidade. Se no mundo real há uma disputa

entre Casa, Rua e Outro Mundo, na festa esses espaços se relacionam

harmonicamente, completando um ao outro, demonstrando que todos (os espaços) são,

em algum momento, importantes e por isso celebrados. Isso fica claro nas palavras de

DaMatta:

No Brasil, há a celebração da ordem e também da desordem. Da riqueza, ostentação, imodéstia e glória temporal (caso do carnaval) e também da renúncia, pobreza, miséria e sacrifício (caso das procissões e festividades da Igreja). Do mundo das leis e da impessoalidade do poder total (nas paradas de Sete de Setembro e nos ritos de posse a cargos públicos) e também das relações pessoais mais singulares e íntimas (como ocorre nas festas de batizado, aniversário, casamento e, mais nitidamente, nos ritos de possessão da umbanda e do espiritismo, e nos milagres em geral).25

Vê-se, portanto, que no Brasil a palavra de ordem é relacionar, juntar, confundir,

conciliar, ficar no meio, incluir e jamais excluir. Dessa forma, o traço distintivo que

caracteriza o brasileiro é a tentativa de sintetizar modelos e posições. Talvez por isso a

grande dificuldade e o grande empenho em definir uma característica cultural ou um

traço identitário definitivo para o Brasil. Assim, ao que parece, a melhor definição para a

sociedade brasileira é justamente a sua indefinição.

25 DAMATTA, Roberto. A Casa & A Rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p.108.

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1.2.3 Brasil: um país dialético

Conde de Gobineau, que morou no Rio de Janeiro como Cônsul da França e se

tornou interlocutor intelectual de D. Pedro II, foi um dos fundadores das teorias racistas

europeias e norte-americanas do século XIX, as quais proclamavam sua repulsa menos

em relação a uma determinada raça do que em relação à mistura entre estas.26 Para

Gobineau, cada raça tem suas qualidades e uma pode ser superior a outra em

determinado aspecto e inferior em outros tantos. Exceção feita à raça negra, sempre

situada abaixo de brancos, vermelhos, amarelos em quase tudo. O que nos interessa,

entretanto, é que Gobineau teria previsto o extermínio do Brasil como povo em menos

de 200 anos, porque a sociedade com a qual ele convivia no país era o maior exemplo

da mistura de raças. O que decretaria o fim do nosso povo, na opinião dele, era a

miscigenação e o acasalamento – fruto de uma intimidade sexual moralmente

condenável entre raças situadas em escalas diversas no plano natural – que produzia o

mestiço, o intermediário, a ambiguidade classificatória e desafiadora da

compartimentalização como um valor.

Porém, a previsão de Gobineau não se concretizou, pois em vez de o híbrido ser

o responsável pelo extermínio do povo, no Brasil o híbrido passou a ser visto “como um

dado positivo, na glorificação da mulata e do mestiço como sendo, no fundo, uma

síntese perfeita do melhor que pode existir no negro, no branco e no índio.”27 Portanto,

a mistura - o que seria um fator negativo – passa a ser, no Brasil, o fator principal de

construção da identidade de um povo que, dessa forma, possui como fonte nascedoura

o intermediário, o entre-meio, o ambíguo. DaMatta explica melhor essa ideia quando diz

que o Brasil ultrapassa todos os dualismos, pois este é um país onde não existe uma

lógica exclusiva do fora ou do dentro, do certo ou errado, do homem ou mulher, do

casado ou separado, do preto ou branco. Sempre há um outro termo, “um terceiro

termo ou elemento mediador”, diz DaMatta. Por isso entre “a oposição negro e branco

26 DAMATTA, Roberto. O que é o Brasil? Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004. p. 22-27. 27 Ibidem, p.23.

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há uma multidão de tipos intermediários e não um espaço vazio, como no caso dos

sistemas discriminatórios sul-africano e americano.” 28

Nesse ponto, é interessante citarmos a idéia do jesuíta Antonil, para quem “O

Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os

mulatos.”29 Nessa analogia, o mulato ficou situado no melhor espaço – segundo a

concepção católica romana – permitindo a inferência que o ser intermediário e ambíguo

no sistema simbólico brasileiro tem uma conotação positiva. Nesse sentido, esclarece

DaMatta “Enquanto nos outros racismos o mulato estaria no inferno, o negro no

purgatório e o branco no céu, no sistema de Antonil há uma inversão reveladora

quando ele situa o mulato como a salvação carnavalizadora do sistema.”30

Com isso, entende-se que o racismo no Brasil é diferente do racismo em outros

países. Nos EUA, por exemplo, existe uma legislação rígida, racista e dualística, capaz

de deixar bem definido quem tem direito e quem não o tem, quem é branco ou é negro,

e, por isso, nesse modelo de sociedade, não há espaço para o intermediário, da mesma

forma que não existe o jeitinho, o mais-ou-menos, o relativo. Outro ponto a ser

elucidado é que, em uma sociedade hierarquizada e pessoal como a brasileira, o

clientelismo ofusca o preconceito que sempre pode ser visto como dirigido contra uma

determinada pessoa e não contra toda uma etnia. Então, é possível que haja menos o

preconceito racial do que o social (o que seria a mesma coisa), ficando claro, porém,

que o racismo existe sim, mas é um “racismo à brasileira”. Novamente recorremos à

DaMatta para esclarecer:

Na nossa ideologia nacional, temos um mito de três raças formadoras originais. Não se pode negar o mito. Mas pode-se indicar que o mito é precisamente isso: uma forma sutil de esconder de nós mesmos um sistema de múltiplas hierarquias e classificações sociais. Assim, o “racismo à brasileira” paradoxalmente, torna a injustiça algo tolerável e a diferença, uma questão de tempo e amor. Eis, numa cápsula, o segredo da fabricação de três raças. 31

No entanto, não é somente por meio da mistura das raças que a sociedade

brasileira se manifesta como um país do híbrido, da miscigenação, do multi. Isso

28 DAMATTA, Roberto. O que é o Brasil? Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004. p.23-24. 29 Ibidem, p.21. 30 Ibidem, p.24. 31 Ibidem, p.26-27.

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também se dá por outras manifestações. Tomando por exemplo a comida, cujo famoso

feijão-com-arroz já é conhecido como um traço identitário brasileiro, pode-se entender

que, como o arroz é branco e o feijão é preto, a mistura entre eles não será nem

branca, nem preta, e sim uma síntese intermediária entre dois alimentos, não só em

termos de cor, mas também em relação ao paladar e às propriedades nutritivas.

Portanto, o feijão-com-arroz é uma combinação perfeita e comê-lo é mais uma vez

exercer o ato de misturar e desafiar a compartimentalização. Para DaMatta “Nossa

comida – que mistura e combina segue a mesma lógica de nosso mito de origem. Trata-

se de uma comida tão mulata quanto a nossa fábula das três raças. Temos uma

“culinária relacional” a falar de uma sociedade também relacional.”32

Em uma sociedade bem marcada por três espaços – casa/rua/outro mundo – há

ainda um terceiro fator de mistura e esta acontece no espaço do outro mundo, do

sobrenatural. A linguagem religiosa no Brasil também se manifesta na relação, na

ligação, buscando o meio-termo, o meio caminho. Como em outros países, o Brasil

possui uma religião formadora e dominante - no caso, o catolicismo Romano. Porém,

paralelo ao modelo religioso dominante, há uma infinidade de experiências religiosas

brasileiras que vão desde as várias denominações do Protestantismo até as religiões

orientais, as de origem africana, o espiritismo e outras tantas.

O curioso é que, no Brasil, todas as formas religiosas têm como ponto central “a

ideia de relação e a possibilidade de comunicação entre homens e deuses, homens e

espíritos, homens e ancestrais”33 numa demonstração clara que há uma relação entre

este mundo e o outro. Isso proporciona um fenômeno interessante que é a intimidade

entre os brasileiros e os santos – os padroeiros, os protetores. No Brasil, então, assim

como as pessoas têm pais, padrinhos e patrões, querem ter também entidades

sobrenaturais que as protejam, sendo que estas podem, inclusive, pertencer a tradições

religiosas diferentes. Cria-se, então, uma relação pessoal com os representantes de

outro mundo manifestada por meio de orações, preces, promessas, oferendas,

despachos, súplicas, etc.

32 DAMATTA, Roberto. O que é o Brasil? Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004. p.35. 33 Ibidem, p.64.

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O traço identitário brasileiro, nesse caso, é que nenhuma manifestação religiosa

exclui a outra, sendo todas complementares entre si, provando mais uma vez que o

Brasil é um país onde o ambíguo, o relacional, a síncrese, a mistura consegue sempre

acontecer. Um brasileiro pode ser católico e, ao mesmo tempo, frequentador dos

espaços de umbanda, ou seja, ele pode cultuar várias crenças ao mesmo tempo. Isso

prova que o Brasil é um país dialético, que aceita a relação e a mistura, ou por outro

lado, o Brasil pode ser um país formado por um povo insatisfeito e sem identidade e,

por não ter um traço cultural fortemente marcado que o identifique, atende a todos os

chamados.

Assim, a partir desses exemplos de misturas – na comida e na religião - é

perfeitamente possível a compreensão de por que o carnaval – a festa da inversão – e

um de seus principais símbolos – o malandro – encontram na sociedade brasileira um

terreno fértil para se manifestarem em todos os seus aspectos constitutivos que são a

criatividade, a irreverência, a liberdade e o reconhecimento popular. Além disso, os

exemplos facilitam a compreensão de por que o jeitinho brasileiro e a cultura do favor

ajustam-se bem nessa sociedade relacional. Dessa forma, o próximo passo será

enfocar os comportamentos culturais do brasileiro como o uso do favor, do jeitinho e da

malandragem, tentando pontuar semelhanças, diferenças e relações.

1.2.4 O “jeitinho” e a malandragem: comportamentos culturais

O “jeitinho brasileiro” é uma expressão largamente difundida dentro e fora do

país e serve para designar um traço identitário do povo que compõe a Nação brasileira,

retratando uma característica bastante comum aos brasileiros. De um lado, esse

atributo é visto como uma virtude e diz respeito a um povo alegre, versátil, dotado de

criatividade e jogo de cintura. Porém, por outro lado, é possível entendê-lo como um

traço lamentável do caráter do brasileiro, pois sugere que os indivíduos da Nação estão

dispostos sempre a explorar, a burlar regras e leis, a especular para tirar vantagem

sobre os outros ou sobre as instituições, etc. Geralmente o ‘jeitinho’ é uma solução

harmoniosa encontrada para determinada dificuldade, transformando situações difíceis

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ou sem solução, em solúveis. E ele é ‘brasileiro’ porque faz parte da identidade cultural

de um ser que foi criado em uma casa, na qual aprendeu que é especial e que sempre

há uma forma de satisfazer suas necessidades, mesmo que para isso, em alguns

momentos, as regras e os limites do bom senso sejam transgredidos.

Roberto DaMatta34 afirma que o brasileiro vive um dilema, o qual se constitui da

constante oscilação entre um esqueleto feito de leis cujo sujeito é o indivíduo e

situações em que cada um se salva como pode, utilizando para isso o seu sistema de

relações pessoais. Há, então, um dilema entre leis que deveriam valer para todos e

relações pessoais, obviamente exclusivas, que levariam a dobrar ou neutralizar essas

normas. O resultado disso, diz DaMatta, é um sistema social dividido e equilibrado entre

duas unidades sociais distintas: o indivíduo – o sujeito das leis universais e igualitárias

que modernizam a sociedade – e a pessoa – o sujeito das relações sociais que

conduzem as dimensões hierarquizadas do sistema. O ser é indivíduo quando sujeito

das leis universais e igualitárias e é pessoa quando se faz sujeito das relações sociais

que conduzem as dimensões hierarquizadas do sistema. Essa dualidade – indivíduo X

pessoa – possibilita a dualidade moderno X arcaico, combinando mais uma

característica representativa da formação da identidade nacional brasileira.

O brasileiro flutua entre a desordem carnavalesca – que estimula o excesso - e a

ordem - que requer disciplina, obediência às leis e continência. Ele não sabe como

proceder ante as regras criadas para todos representadas pela Rua - o público – pois

fora criado na Casa – o privado, o espaço da satisfação e das vontades pessoais.

Como o brasileiro tem dificuldade em saber se é indivíduo ou pessoa, quando é

indivíduo ou pessoa, surge um espaço nebuloso, o qual se torna propício para o

desenvolvimento do jeito malandro de ser. Segundo DaMatta, o coração do brasileiro

balança entre esses polos e “na gangorra, no espaço entre as leis e os amigos, surgem

a malandragem, o ‘jeitinho’ e o famoso e antipático ‘você sabe com quem está

falando?’.”35 Talvez seja difícil para um brasileiro entender esse dilema sem a

explicação do antropólogo transcrita no parágrafo a seguir:

34 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. 35 DAMATTA, Roberto. O que é o Brasil? Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004. p. 45-46.

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Nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra, somente para citar três bons exemplos, as regras ou são obedecidas ou não existem. Nessas sociedades, não há nenhum prazer em escrever normas que aviltam o bom senso e as práticas sociais estabelecidas, abrindo caminhos para a corrupção burocrática e ampliando a desconfiança no poder público. Em face da expectativa de coerência entre a regra jurídica e as práticas da vida diária, o inglês, o francês e o norte-americano param diante de uma placa de trânsito que diz ‘parar’ o que - para nós - parece um absurdo mágico. Ficamos sempre confundidos e fascinados com a chamada disciplina existente nesses países. 36

Fica sugerido pelas palavras de DaMatta que o brasileiro tem uma reação um

tanto incomum perante as regras e o mundo da ordem, ficando, absurdamente,

admirado com a educação de outros povos, pelo simples fato de estes obedecerem às

leis. Ao que parece, o que encanta os brasileiros é que nas sociedades organizadas a

lei é feita para que as mesmas funcionem bem e não para explorar o cidadão,

tampouco para corrigir e reiventar a sociedade. O que deveria ser uma lógica, em

qualquer sociedade organizada, acaba sendo motivo de admiração para o brasileiro,

provando que a relação deste com a lei ainda não está completamente esclarecida e

definida. O Brasil é um país que deseja ser moderno e caminha para isso. Porém, a

relação do povo dessa nação com as normas e as leis ainda é um tanto nebulosa, pois

frente a um limite estabelecido via de regra, o brasileiro adota um comportamento no

“entremeio” do “pode e não-pode” da lei. Entendendo melhor: existe um padrão

genuinamente brasileiro que se constitui em arranjar-se por meio dos furos da lei,

originando os famosos ‘jeitinhos’. Diz DaMatta:

Nesse sentido, o “jeitinho” é um modo simpático, muitas vezes desesperado e quase sempre humano, de relacionar o impessoal com o pessoal, propondo juntar um objetivo pessoal (atraso, falta de dinheiro, ignorância das leis, má vontade do agente da norma ou do usuário, injustiça da própria lei, rigidez das normas etc.) com um obstáculo impessoal. O ‘jeito’ é um modo pacífico e socialmente legítimo de resolver tais problemas, provocando uma junção casuística da lei com a pessoa.37

A Pesquisa Social Brasileira 38 – a PESB – de Alberto Carlos Almeida é

esclarecedora no que se refere à forma como o povo brasileiro encara o jeitinho. O

pesquisador elaborou 19 situações para serem classificadas como jeitinho, favor ou

36 DAMATTA, Roberto. O que é o Brasil? Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004. p.46. 37 Ibidem, p.48. 38 ALMEIDA, Alberto Carlos. A cabeça do brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 45-71.

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corrupção, entre seus pesquisados – um grupo formado por 2.363 pessoas, habitantes

de 102 municípios brasileiros, sendo 9% de analfabetos, 25% com até 4ª série, 23%

com escolaridade de 5ª a 8ª série, 31% com ensino médio e 12% com grau

superior.Deixemos que a tabela a seguir mostre por si só os resultados dessa pesquisa:

Tabela 1 – FAVOR, JEITNHO OU CORRUPÇÃO? Favor Jeitinho Corrupção

1- Uma pessoa que costuma dar boas gorjetas ao garçom do restaurante para, quando voltar, não precisar esperar na fila é:

14 59 27

2- Uma pessoa que trabalha em um banco ajudar um conhecido que tem pressa a passar na gente da fila é:

28 56 17

3- Uma pessoa que conhece um médico passar na frente da fila do posto de saúde é:

10 50 40

4- Uma mãe que conhece um funcionário da escola passar na frente da fila quando vai matricular seu filho é:

9 50 41

5- Alguém consegue um empréstimo do governo que demora muito a sair. Conseguir liberar o empréstimo mais rápido porque tem parente no governo é:

13 45 42

6- Pedir a um amigo que trabalha no serviço público para ajudar a tirar um documento mais rápido que o normal é:

26 43 31

7- Passar uma conversa em um guarda para não aplicar uma multa é:

6 41 53

8- Guardar o lugar na fila para alguém que vai resolver um problema é:

62 33 4

9- Na fila do supermercado, deixar alguém passar à frente porque tem poucas compras é:

67 27 6

10- Um funcionário público receber um presente de Natal de uma empresa que ele ajudou a ganhar um contrato do governo é:

30 27 44

11- Uma pessoa ter uma bolsa de estudo e um emprego ao mesmo tempo, o que é proibido, mas ela consegue esconder do governo é:

3 23 74

12- Fazer um gato/uma gambiarra de energia elétrica é:

4 22 74

13- Uma pessoa ter dois empregos, mas só ir trabalhar em um deles é:

3 19 78

14- Uma pessoa conseguir uma maneira de pagar menos impostos sem que o governo perceba é:

2 14 83

15- Dar 20 reais para um guarda para ele não aplicar uma multa é:

4 13 84

16- Um vizinho empresta ao outro uma panela ou fôrma que faltou para preparar a refeição é:

89 10 1

17- Pagar ao funcionário de uma companhia de energia para fazer o relógio marcar um consumo menor é:

5 10 85

18- Emprestar dinheiro a um amigo é:

90 9 1

19- Usar o cargo de governador para enriquecer é:

2 8 90

Fonte: Livro A cabeça do brasileiro39

39 ALMEIDA, 2007. p. 52-53.

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Frente a esses dados fica evidenciada a confusão existente entre os conceitos

de favor, corrupção e jeitinho para o povo brasileiro. Das 19 situações o maior nível de

concordância a respeito do que é favor se deu quanto a: a) emprestar dinheiro a um

amigo; b) um vizinho emprestar a outro uma panela ou fôrma que faltou para preparar a

refeição; c) na fila do supermercado deixar passar na frente uma pessoa que tem

poucas compras; d) guardar um lugar na fila para uma pessoa que vai resolver um

problema. Percebe-se que as duas primeiras situações pertencem à esfera do privado.

De acordo com Almeida, as outras duas situações – aquelas que envolvem filas - são

bastante improváveis de acontecer em lugares como os Estados Unidos e a Grã-

Bretanha, pois envolvem o espaço público. Frente aos dados da pesquisa, fica claro,

portanto, que para os brasileiros o favor ainda é concebido como uma possibilidade

também na esfera pública.

Quanto à classificação de uma situação como corrupção, as sete das 19

situações mais apontadas entre os pesquisados em ordem de maior concordância

foram: a) usar cargo no governo para enriquecer; b) pagar um funcionário de uma

companhia de energia para fazer o relógio marcar um consumo menor; c) dar vinte

reais para um guarda para ele não aplicar uma multa; d) uma pessoa conseguir pagar

menos impostos sem que o governo perceba; e) uma pessoa ter dois empregos, mas

só vai trabalhar em um deles; f) fazer um gato/uma gambiarra de energia elétrica; g)

uma pessoa ter uma bolsa de estudos e um emprego ao mesmo tempo, o que é

proibido, mas ela consegue esconder do governo. Fica clara, dessa forma, a dificuldade

que um brasileiro tem de julgar se determinado ato é ou não um ato corrupto.

É possível ler na tabela que a coluna do meio, a do jeitinho, não é apontada por

mais de 59% das respostas e nem por menos de 8%, em nenhuma das situações. Isso

demonstra a dificuldade entre classificar uma atitude como jeitinho, mas também é

necessária a percepção de que o jeitinho foi apontado em todas as 19 situações, numa

demonstração clara que o ‘jeitinho’ é uma alternativa altamente considerada entre os

brasileiros. Em ordem decrescente de percentagem, os pesquisados consideraram

como jeitinho as seguintes situações: a) uma pessoa que costuma dar boas gorjetas ao

garçom restaurante para quando voltar não precisar esperar na fila; b) uma pessoa que

trabalha em um banco ajudar um conhecido que tem pressa a passar na frente da fila;

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c) uma pessoa que conhece um médico passar na frente da fila do posto de saúde; d)

uma mãe que conhece um funcionário da escola passar na frente da fila quando vai

matricular seu filho; e) alguém consegue liberar um empréstimo do governo mais

rápido porque tem um parente no governo; f) pedir a um amigo que trabalha no serviço

público para ajudar a tirar um documento mais rápido do que o normal.

No entendimento de Almeida, as situações classificadas como jeitinho envolvem

algum tipo de burocracia, sendo necessário o apelo a uma relação pessoal, enquanto

que naquilo que se considera corrupção não há interferência de um conhecido ou

amigo. Neste caso as relações são impessoais, pois se faz necessário usar o dinheiro

em vez das relações pessoais para resolver o problema. Já em relação ao favor, as

situações envolvem as relações pessoais, embora também apareçam como favor

situações impessoais, envolvendo, inclusive, o espaço público. Por outro lado, a

situação “um funcionário público recebe um presente de Natal de uma empresa que ele

ajudou a ganhar um contrato do governo” não foi definida entre os entrevistados se é

favor, corrupção ou jeitinho, assim como “passar uma conversa em um guarda para ele

não aplicar uma multa”, deixando visível a confusão existente entre os pesquisados

acerca de o que é corrupção, favor ou jeitinho.

Certamente, ninguém dir-se-ia a favor da corrupção, se indagado fosse. Se

fossem questionadas entre o certo e o errado, entre a corrupção e o favor, entre o bem

e o mal, obviamente, as pessoas se posicionariam pelo certo, pelo favor e pelo bem.

Porém, para o povo brasileiro, o problema é a clareza entre o que é o certo e o que é o

errado – e a PESB de Almeida demonstra isso muito bem - pois isso depende do

contexto e das circunstâncias em que ocorrem os fatos. E é nessa zona nebulosa, que

nem sempre deixa claro o que é certo e o que é errado, quando é certo e quando é

errado, para quem é certo e para quem é errado, que reside e germina o ‘jeitinho

brasileiro’. O jeitinho brasileiro é um instrumento que possibilita a quebra de regras, mas

ao ser classificada como ‘jeitinho’, inclusive usando o sufixo no diminutivo, a infração

passa a impressão de não ser grave e, dependendo das circunstâncias, uma

determinada situação passa de errada a certa.

Dessa forma, o jeitinho não seria sinônimo de corrupção e, talvez por isso, a

expressão ‘jeitinho brasileiro’, tão difundida em nossa sociedade, seja socialmente

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aceita, contando, inclusive, com a aprovação da população, que as usam – a expressão

e a ação - frequentemente. A palavra ‘jeitinho’, por ser um substantivo no diminutivo, é

carregada de uma conotação positiva, apresentado-se como uma forma carinhosa e,

por isso, parece não transparecer más intenções do brasileiro. No entanto, é por meio

do jeitinho brasileiro que se criou um comportamento social ilícito, porém aceito pela

sociedade brasileira: a malandragem. O fenômeno da malandragem ocorre em nossa

sociedade com bastante frequência e, ao que parece, a figura do malandro alastra-se

dia a dia nas instituições, autarquias, famílias, etc., transformando-se numa figura

bastante familiar para a sociedade brasileira. Dessa forma, o jeitinho brasileiro e o tipo

malandro já estão enraizados na cultura da nação e são retratados por vários tipos de

arte, inclusive pela literatura objeto deste estudo, o qual analisará o comportamento de

três personagens - supostamente malandros - da literatura brasileira, criados em três

contextos históricos e sociais diferentes no Brasil. A referida análise será apresentada a

partir do II Capítulo desta pesquisa.

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1.3 O carnaval do brasileiro DaMatta e do russo Bakhtin

1.3.1 O carnaval: um aspecto cultural brasileiro

O carnaval é uma festa livre e que, portanto, dispensa os elementos da ordem.

No Brasil, sua importância se deve ao fato de que essa festa popular é um período de

tempo no qual se pode viver a fantasia de que não há miséria, nem obrigações, nem

pecado, nem deveres. No carnaval, não é preciso trabalhar, é um momento em que se

pode deixar de viver a vida como fardo e castigo e onde os excessos são permitidos:

excesso de prazer, de luxo, de alegria e riso, de prazer sensual, etc. Assim, o carnaval

inventa um universo social onde a regra é praticar, sistematicamente, todos os

excessos já que todos são iguais e podem, por isso, realizar todas as fantasias. O

carnaval, dessa forma, passa a ser uma festa popular conhecida como a festa de

inversão e o momento em que as desigualdades e a hierarquia estabelecidas pela

ordem da sociedade brasileira são suspensas. As regras do mundo diário

temporariamente ficam de cabeça para baixo, as hierarquias são suspensas, havendo

uma inversão da ordem.

No caso brasileiro, durante o carnaval o cidadão pode andar pelas ruas principais

de uma cidade sem o risco de ser atropelado, pois nesse tempo a rua cede o espaço

para a festa, para o desfile carnavalesco. No tempo de carnaval, se pode comer, beber,

pular, cantar, dançar e até mesmo dormir em plena rua. O universo da individualidade,

tão temido no dia-a-dia dos brasileiros, pode ser vivido durante o carnaval, pois cada

um pode interpretar o mundo do seu jeito e a seu modo e não será detido, nem

censurado por isso. Um fator que deve ser ressaltado é que durante o carnaval carioca

existe a valorização do concurso, da competição e para isso tanto os jurados oficiais

quanto o público em geral conhecem as regras e as mesmas são respeitadas. O

curioso é que, no caso brasileiro, isso é um fator de inversão da ordem, pois em um

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país marcado pelos sobrenomes, pela cor da pele, pelas posições sociais, pelo

apadrinhamento, como é o Brasil, o carnaval, inversamente, é o momento onde o

julgamento se dá pelo desempenho, pela competência, pelo empenho e vontade de

competir e vencer. Novamente é Roberto DaMatta quem nos permite total compreensão

do fenômeno. Diz ele:

Carnaval, pois, é inversão porque é competição numa sociedade marcada pela hierarquia. É movimento numa sociedade que tem horror à mobilidade, sobretudo à mobilidade que conduz à troca de posição social. É exibição numa ordem social marcado pelo falso recato de “quem conhece o seu lugar” – algo sempre usado para o mais forte controlar o mais fraco em todas as situações. É feminino num universo social marcado pelos homens, que controlam tudo o que é externo e jurídico, como os negócios, a religião oficial e a política.40

Em seguida, conclui:

o carnaval é a possibilidade utópica de mudar de lugar, de trocar de posição na estrutura social. De realmente inverter o mundo em direção à alegria, à abundância, à liberdade e, sobretudo, à igualdade de todos perante a sociedade. Pena que tudo isso só sirva para revelar o seu justo e exato oposto... 41

Para Roberto DaMatta,42 o universo carnavalesco é um espaço onde os múltiplos

da realidade brasileira acontecem. É onde a dialética ORDEM x DESORDEM formaliza

alguns aspectos da formação da sociedade brasileira. O antropólogo explica ainda que

é no ritual, em especial os coletivos, que a sociedade tem uma visão alternativa de si

mesma, pois é nesse momento que ela se afasta das regras, permitindo um espaço

ambíguo. Nesse espaço, a sociedade difere de seu normal, mas também não aparece

como poderia ser e, dessa forma, o ritual carnavalesco será apenas um cerimonial

momentâneo assim como os demais cerimoniais, já que todos são estados

passageiros.

O universo do carnaval, mesmo que delimitado por certa transitoriedade, é, como

todos os outros espaços restritos, um espaço diferente do cotidiano e para isso possui

40 DAMATTA, Roberto. O que é o Brasil? Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004. p.42. 41 Ibidem, p.42-43. 42 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 32.

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regras próprias, as quais organizam a lógica desse novo espaço. A oposição espacial

estabelecida por DaMatta, Casa x Rua possui determinadas regras e convenções para

o espaço da CASA e outras para a RUA. O ritual carnavalesco, entretanto, é um tempo

onde casa e rua se encontram em um espaço especial, já que a festa possui vários

aspectos da ordem pública – desfiles, grupos formais – e, ao mesmo tempo, permite

ações e gestos que teoricamente só seriam realizados em casa. No carnaval, portanto,

a mistura e a confusão das regras de hierarquia são permitidas com a fusão dos dois

espaços em um só, onde ações típicas de cada um deles acontecem com naturalidade

representando a síntese da Casa e da Rua. Por isso, nesse novo espaço e momento -

embora passageiro - será permitida a exibição em geral, quer seja a exibição da mulher

em oposição ao recato, ou de determinados gestos, ou de determinadas músicas e

danças, ou ainda da quebra das hierarquias.

Em seu Carnavais, Malandros e Heróis, DaMatta apresenta uma análise em

torno de personagens ou heróis que ficaram conhecidos como figuras paradigmáticas

do mundo social brasileiro, “seja como exemplo a ser imitado e possivelmente seguido,

ou como um tipo a ser evitado e banido para as zonas escuras do nosso mundo

social.”43 O antropólogo elenca uma série de atores que irão dinamizar o sistema

brasileiro - por meio de dramatizações regulares e com ações coerentes nos

cerimoniais básicos dessa sociedade - caracterizado sociologicamente pelo antropólogo

como o espaço do carnaval, das paradas, das procissões e dos rituais do ‘sabe com

quem esta falando’? Pensando que essas formas de comportamento coletivo são

capazes de contribuir na revelação da sociedade brasileira como um todo, entende-se

que a melhor definição desta é justamente definir-se pela sua indefinição social.

Para DaMatta, a sociedade é a responsável pela invenção/criação de seus

atores, além da elaboração dos atos, do cenário do palco, dos papéis dos atores e da

recepção do drama. As regularidades que regem o drama sustentam também as

motivações mais profundas dos atores. Por isso, os padrões de comportamentos

sociais são determinados pelos atores que vivem tais padrões ou estão submetidos a

eles na sociedade. Dessa forma, tanto o receptor quanto o criador de um determinado

43 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p.251.

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mito ou ação social são responsáveis por criar e fortalecer aquele mito ou padrão

comportamental.

O padrão do herói brasileiro é aquele personagem que desmascara e se vinga

como os personagens de novela de televisão, como Malasartes, Augusto Matraga,

Lampião ou Conselheiro, para citar alguns. O drama encenado no palco brasileiro não é

feito de conquista ou busca da felicidade com os recursos e posições ocupadas pelo

herói na abertura da narrativa. Para a sociedade brasileira, o que encanta e atrai são as

ações de enriquecimento e ascensão social violenta e irremediável do herói. A base do

drama brasileiro é fazer o personagem central terminar com muito mais do que possuía

no início da história. Nessa trajetória, o personagem passa de pessoa comum – que

trabalha, cumpre regras – a personalidade, ou seja, ela é transformada em uma

superpessoa, para quem passará a valer o jargão “sabe com quem está falando?”

A fórmula da narrativa que consagra essas figuras fictícias é simples: começa

com alguém pobre e desgraçado, localizado no mundo dos de baixo da ordem social.

Esse personagem sofre uma ascensão fulminante por meio do casamento com a filha

do rei, do magnata, etc. O herói, entretanto, em momento algum é marcado por falha ou

nobreza, enfrentando as provas que aparecerem em seu caminho, demonstrando suas

qualidades excepcionais e cumprindo essas provas que o conduziria ao glorioso

destino. Pelo fato de as dramatizações regulares acontecidas na sociedade brasileira

buscarem uma coerência entre atores e cerimoniais básicos dessa sociedade, o herói

brasileiro deve “sempre ser um pouco trágico para ser interessante, com sua vida sendo

definida por uma trajetória tortuosa, cheia de peripécias e desmascaramentos, como

prova a fórmula social do ‘sabe com quem está falando?’” 44

O mito brasileiro, a esperança brasileira reside no tempo futuro e no desejo da

grandeza e do enriquecimento. O mito que honra a sociedade brasileira segue,

segundo DaMatta, pelo menos duas vidas ou uma separação radical entre o que fomos

e o que seremos. O olhar do brasileiro está sempre no futuro porque somos uma

sociedade atrelada ao passado. Num Brasil, onde a sociedade participa da parada do

Sete de Setembro - a festa de ordem - do Carnaval – a festa da desordem - e ainda

44 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p.257.

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das procissões – o mundo renunciador – com certeza a teoria do triângulo ritual é

perfeita para retratá-la. DaMatta percebeu que na, sociedade brasileira, é possível

equacionar foliões/soldados/féis, bem como índios/brancos/negros, sendo que em cada

um dos vértices do triângulo se faz presente uma diferente leitura do mundo social

brasileiro e que dessa forma o Brasil é formado pelos três universos e sem um deles a

sociedade brasileira estaria desfalcada. Esses universos acontecem em momentos

singulares e cada qual é focalizado de modo particular. Roberto DaMatta montou a

equação abaixo para representar a sociedade brasileira:45

Carnaval = foliões = inversões = índios (ou marginais) Procissão = fiéis = negros (ou inferiores) Parada = soldados = brancos (ou superiores)

E é, pois, dentro desses três universos distintos, mas relacionais entre si que

surgem os heróis. No universo da procissão, o herói é o santo, o romeiro, o peregrino, o

renunciador. No universo das paradas, destaca-se o Caxias, a autoridade, as leis. No

espaço carnavalesco, por sua vez, o herói é o malandro e os seres marginais de todos

os tipos. Por isso, para DaMatta, um personagem que muito bem traduz o dilema

brasileiro bem como o fenômeno carnavalesco é o malandro, figura da qual a arte

brasileira, especialmente a literária, cria frequentes representações e figura a quem este

estudo se dedicará, analisando-a a partir de um corpus literário constituído por três

obras ficcionais.

1.3.2 A Literatura Carnavalizada

A carnavalização literária é a transposição do espírito carnavalesco para a arte.

A teoria da carnavalização foi apresentada pelo crítico russo Mikhail Bakhtin, na década

de 60, quando publicou Problemas da poética de Dostoievski e A cultura popular na

45 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p.262.

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Idade Média e no Renascimento: o contexto da obra de François Rabelais, sendo que

na primeira obra, o autor delineia o conceito de carnavalização para aprofundar na

segunda. Em Problemas da Poética de Dostoievski, Bakthin afirma que o carnaval é um

dos problemas mais complexos e interessantes da história da cultura. Quando se refere

ao carnaval, ele se reporta ao conjunto e a todas as variadas festividades, ritos e

formas de tipos carnavalescos. Fala em carnaval no sentido de sua essência, das suas

raízes profundas na sociedade primitiva e no pensamento primitivo do homem, do seu

desenvolvimento na sociedade de classes, de sua excepcional força vital e seu perene

fascínio no sentido de conjunto e de todas as variadas festividades. Diz Bakhtin:

O carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre os atores e espectadores. No carnaval todos são participantes ativos, todos participam da ação carnavalesca. Não se contempla, e em termos mais rigorosos, nem se representa o carnaval, mas vive-se nele, e vive-se conforme as leis enquanto estas vigoram, ou seja, vive-se uma vida carnavalesca. Esta é uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo sentido é uma ‘vida às avessas’ um ‘mundo invertido’.46

Note-se que o carnaval propriamente dito não é um fenômeno literário. Ao

transpor o espírito carnavalesco para a arte, Bakthin cria a Teoria da Carnavalização,

sendo que esta só será entendida ao se compreender os seus profundos laços com a

cultura popular e com o carnaval. A percepção carnavalesca coloca a palavra numa

relação particular com a realidade onde tudo é visto numa relatividade alegre. A

carnavalização não se apoia na tradição, no passado mítico. Ao contrário, ela os critica,

optando pela experiência e pela livre invenção. A literatura carnavalizada constrói uma

pluralidade intencional de estilos e vozes, mistura o sublime e o vulgar, intercala

gêneros (cartas, manuscritos, paródias de gêneros elevados, etc.), provocando uma

mescla de dialetos, jargões, vozes, estilos. A literatura carnavalizada é ambivalente,

pois nela não há a denúncia negativa de caráter moral ou sociopolítico que opera

apenas no plano da negação. Para ser carnavalizada, a obra precisa ser marcada pelo

riso, que dassacraliza e relativiza as coisas sérias, as verdades estabelecidas. A ironia

é dirigida aos poderosos, àquilo que é considerado superior. Aliam-se, então, a

46 BAKTHIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 122-123.

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negação através da zombaria e da gozação à afirmação que é a alegria. Edward Lopes,

em seu artigo intitulado Discurso literário e dialogismo em Bakhtin, afirma:

Quando o discurso se constrói de dois textos que se apresentam na forma de uma disjunção total, de tal modo que um deles surge como a inversão jocosa, paródica do outro, o resultado é uma típica inversão, ridícula ou risível da visão de mundo habitual, essência do procedimento que Bakhtin batiza de carnavalização.47

No mundo carnavalizado, são permitidas excentricidades e até desordem. Por

ser o riso um dos grandes objetivos do processo carnavalesco, a paródia é uma técnica

inseparável dos gêneros sério-cômicos e estranha aos gêneros elevados como a

epopeia e a tragédia. A paródia é ambivalente já que nela há uma bivocalidade – a voz

do parodiado e a do parodiante. A segunda voz, depois de se ter alojado na outra fala,

entra em antagonismo com a voz original que a recebeu forçando-a a servir a fins

diretamente opostos. Parodiam-se os textos sérios e, no momento em que se zomba da

voz séria, está-se negando o discurso da autoridade e afirmando a relatividade das

coisas. Esse é um importante traço da paródia, a qual, por sua vez, é o elemento

essencial que vai influir no modernismo e nas narrativas carnavalizadas.

A paródia é um discurso dialógico porque se biparte, ficando de um lado o

discurso sério e solene e, de outro, o jocoso, o ridículo. Entre esses dois extremos, o

discurso encena o espetáculo da vida e o espetáculo de sua própria constituição. E, no

momento em que inclui “a voz do outro” (a subversão, a falta de sentido, etc.), o

dialogismo se torna profundamente polifônico. Assim, o discurso dialógico pode mostrar

a polifonia de uma conversação entre o “eu” do destinador e o “eu” de um de seus

personagens, manifestada ora no registro formal, sério, ora no registro informal, jocoso.

Em resumo, o romance polifônico são todos os “eus” embaralhados.

Segundo Bakhtin, o romance polifônico de Dostoievski tem sua origem nos

gêneros sério-cômicos do período helenístico, principalmente, a sátira menipeia. Nessa

época, os gêneros dividiam-se em sérios (a epopeia, a tragédia, etc.), cômicos e sério-

cômicos (diálogo socrático, a sátira menipeia, a literatura de simpósio, etc.). A sátira

47 LOPES, Edward. Discurso Literário e dialogismo em Bakthin. In: BARROS, D. L. P. DE; & FIORIN, J. L. (Orgs.). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: em torno de Bakhtin. São Paulo: Edusp, 2003. p.76.

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menipeia era um gênero, enquadrada nos gêneros menores, praticada pelos gregos

nas festividades populares. Ela apresentava críticas e paródias aos mitos e aos deuses,

demonstrando seu caráter irônico, questionador das coisas de seu tempo. Fica evidente

que os questionamentos provocados pelos homens, através da sátira menipeia, tinham

por objetivo o riso, o cômico, o julgamento irônico e o grotesco popular.

O dialogismo é o ponto central de uma narrativa carnavalesca. O dialogismo,

para Bakhtin, é um processo no qual há espaço para as diferentes vozes, onde a voz

ou as vozes do(s) outro(s) aparecem, por meio do enunciado. Todo enunciado é

dialógico, pois se constitui a partir de outro enunciado. As relações dialógicas podem

ser de divergência ou convergência, de aceitação ou de recusa, etc., já que

representam as diversas vozes de um grupo social (ou indivíduo) e os enunciados são

o espaço de luta entre essas vozes divergentes. Portanto, é no enunciado que se tem o

espaço para a contradição.

O teórico russo defende que a língua em seu uso real é dialógica e que, em

todos os enunciados, há uma dialogização interna da palavra, pois todo discurso é

atravessado pelo discurso alheio. Nessa perspectiva, o dialogismo é a relação de

sentido que se estabelece entre dois enunciados. Por outro lado, Bakhtin diz que o

sujeito é constituído pelas várias vozes sociais de seu entorno e, como a realidade é

bastante diversificada, o sujeito será, então, constitutivamente dialógico. Portanto, o

mundo interior de cada um é formado por diferentes vozes em relações de

concordância ou discordância e, se todas as línguas são processos dialógicos e a

literatura é constituída essencialmente pela língua, então o sentido de uma obra literária

será fruto de uma construção dialógica.

De acordo com Bakhtin, a percepção carnavalesca do mundo inclui quatro

categorias: - a revogação de todas as formas de desigualdade entre os homens e eles

entram em livre contato familiar conhecida por familiaridade; - a excentricidade, quando

se busca captar e evidenciar apenas um lado, escondendo o outro; - as mésalliances

carnavalescas através da aproximação do sagrado com o profano, o sério com o

cômico, o sublime com o grotesco, o elevado com o baixo, o grande com o

insignificante, o sábio com o tolo; - e a profanação que é formada pelas indecências

carnavalescas com a valorização da paródia. Essas categorias têm funcionado ao longo

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46

do tempo, como um elo pelo qual o homem se familiariza com seu mundo oficial

desierarquizando-o. Na literatura, essas categorias irão permitir ao homem atuar em um

espaço de contato livre e familiar, pois por meio da carnavalização é construído um

mundo utópico, no qual reinam a liberdade, a igualdade, a abundância, a universalidade

e, principalmente, a excentricidade, valorizando o mundo às avessas. O espaço

privilegiado pela literatura carnavalizada são os diferentes lugares de encontro e

contato dos homens: rua, o bar, o banheiro, a praça; etc. Aí se dá o contato livre e

familiar, sem respeito a hierarquias, usando uma linguagem vulgar, livre do

autoritarismo da etiqueta. A excentricidade permite ao reprimido expressar-se

transformando, assim, em figura central o marginal, o excluído, o escandaloso.

Em sua teoria da carnavalização, Bakhtin apresenta como a principal ação

carnavalesca a coroação bufa e o posterior destronamento do rei do carnaval. Esse

ritual acontece das mais variadas formas nos festejos carnavalescos e é nele que

reside a base da cosmovisão carnavalesca: a ênfase das mudanças e transformações,

da morte e da renovação. A idéia fundamental é a de que o carnaval é a festa do tempo

que tudo destrói e tudo renova. Na cerimônia de coroação, todos os momentos do

ritual, os símbolos do poder que se entregam ao coroado e a roupa que ele veste

tornam-se ambivalentes, isto é, relativos. No carnaval, há mudanças de traje, de

situações reais, de destinos; etc.

De acordo com Bakhtin, o rito de destronamento é como se encerrasse a

coroação, da qual é inseparável, pois se trata de um ritual biunívoco. O momento de

destronamento se opõe ao rito de coroação, o destronado é despojado de todos os

símbolos de poder e ridicularizado. É nesse ritual que se manifesta a ênfase

carnavalesca nas mudanças e renovações, a imagem da morte criadora. Ao ser

coroado, o rei é elevado e em seu destronamento acontece a queda. Nessa elevação e

queda revela-se a festa em seu caráter destruidor e regenerador, de morte e de

renascimento. O entronizado como rei é o bufão e os símbolos de poder desse rei são

a negação da seriedade e a afirmação da relatividade.

Esse é o mundo ao inverso, demonstrando que o carnaval é a festa da mudança,

do processo em que a vida contém a morte e vice-versa. O carnaval visto dessa forma

é então um rito de passagem. Esses rituais transformam-se em literatura quando o

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enredo ou situações de enredo adquirem profundidade simbólica e ambivalência ou a

relatividade alegre, a leveza carnavalesca e a rapidez das mudanças. Uma obra

carnavalizada, inevitavelmente, é uma obra dialógica onde o autor não fala do herói.

Para Bakhtin, o carnaval estabelece nas sociedades hierarquizadas um continuum

marcado pelo diálogo e pela comunicação explosiva, sensual e concreta de todas as

categorias e grupos sociais. As distâncias são eliminadas porque o mundo está de

cabeça para baixo e a sociedade perde temporariamente os seus centros regulares de

poder e hierarquização.

É nesse ponto que o antropólogo brasileiro Roberto DaMatta aproxima sua tese

à teoria de Bakhtin – não sem antes avisar “e devo dizer que não havia lido Bakhtin

quando escrevi meus primeiros ensaios sobre o carnaval”48 – acrescentando que o que

se descobre no modelo da carnavalização é a possibilidade do diálogo entre as

categorias divergentes, rigidamente subordinadas pelas hierarquias no mundo diário. E

como dialogar é relacionar, quanto mais distantes estiverem as categorias entre si, mais

espaços ambíguos e possibilidades relacionais surgirão. Nesse sentido, arremata o

antropólogo: “Em outras palavras, carnavalizar é formar triângulos, é relacionar

pessoas, categorias e ações sociais que normalmente estariam soterradas sob o peso

da moralidade sustentada pelo estado.”49

Dessa forma, com base no que foi dito sobre identidade cultural brasileira e

construção de identidades, a partir do que se detectou como padrões culturais

brasileiros, embasados nos estudos de DaMatta sobre universo carnavalesco e

sociedade brasileira e com base na teoria de Bakthin a respeito da carnavalização

literária, bem como seu principal aspecto – a paródia – proceder-se-á a uma análise em

torno de um corpus literário formado por três obras da literatura nacional publicadas em

contextos históricos diferentes, com o intuito de investigar em que medida essas teorias

se revelam e ou se fundem na arte literária.

48 DAMATTA , Roberto. A Casa & A Rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p.109. 49 Ibidem, p.110.

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2 TRÊS TEMPOS, TRÊS OBRAS E A MANUTENÇÃO DE UM ÍCONE

A Volta do Malandro

Eis o malandro na praça outra vez Caminhando na ponta dos pés Como quem pisa nos corações

Que rolaram nos cabarés

Entre deusas e bofetões Entre dados e coronéis

Entre parangolés e patrões O malandro anda assim de viés

Deixa balançar a maré

E a poeira assentar no chão Deixa a praça virar um salão

Que o malandro é o barão da ralé

(Chico Buarque)

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2.1 Memórias de um sargento de milícias no Brasil Império

Memórias de um sargento de milícias é um romance folhetinesco que Manuel

Antônio de Almeida, com apenas 21 anos de idade, publica no suplemento A Pacotilha

do jornal fluminense Correio Mercantil entre os anos de 1852 e 1853. O tempo de

produção do texto, entretanto, não é o mesmo tempo em que se passam as ações, pois

a narrativa remonta à época da chegada da família real ao Brasil, ao ano de 1808,

portanto, como já anuncia o narrador logo no início “Era no tempo do rei”.50 Os capítulos

folhetinescos despertaram grande interesse entre o público leitor, fato que motivou o

autor à publicação da obra como livro, o qual foi montado em dois tomos com o primeiro

publicado em 1854 e o segundo no ano seguinte, ambos com o pseudônimo de “Um

brasileiro”. O nome de Manuel Antônio de Almeida, entretanto, só será conhecido em

1863, na terceira edição do romance publicada após a morte prematura de Almeida,

vítima de um naufrágio a bordo do navio ‘Hermes’ a 28 de novembro de 1861.51

A época retratada pela narrativa de Almeida é a do Brasil Império, um tempo no

qual o Brasil sofreu grandes e definitivas modificações desencadeadas pela chegada da

corte portuguesa, em 1808, ao território brasileiro. Ameaçada por Napoleão Bonaparte -

o então imperador da França - de ter suas portas invadidas, a coroa portuguesa se

transferiu em massa para o Brasil, contando para isso com o auxílio da Inglaterra,

principal rival dos franceses no período em questão. O Brasil que contava com uma

população em torno de 2,5 milhões de habitantes, a partir da chegada da família real dá

um salto populacional passando para quase 15 milhões em 1890, ou seja, com pouco

menos de um século a população cresceu quase seis vezes.

Além do aumento da população, o advento da chegada da corte portuguesa

também foi responsável pelas modificações culturais iniciadas no império. O rei D. João

50 ALMEIDA, Manuel Antônio. Memórias de um sargento de milícias. Martins Fontes: São Paulo, 2005. p.5. Todas as referências à obra foram retiradas da referida edição e a partir de então nos referiremos apenas ao título da mesma. 51 Dados extraídos da Cronologia inserida na obra anteriormente citada, p. XXXI – XXXVI.

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VI criou o Jardim Botânico, a Imprensa Régia, a Livraria Pública, a Academia de

Marinha e a Real Academia Militar, a Biblioteca Pública, a Academia de Belas-Artes, o

Teatro Real, a Escola Médico-Cirúrgica da Bahia, a Escola Anatômica, Cirúrgica e

Médica do Rio de Janeiro, O Banco do Brasil e a Casa da Moeda. Nessa época, a

sociedade brasileira recém saía de um regime escravocrata e o crescimento

populacional desencadeado pelo advento provocou um intenso processo de

urbanização e modernização. As cidades cresceram consideravelmente e a vida social

nos grandes centros urbanos se modificou bastante, embora a modernização não

tivesse sido um processo que atingisse todas as regiões, e sim os principais centros

urbanos. A chegada da corte, seguida pelas transformações sociais e culturais

ocorridas em território brasileiro, originaram a Independência do Brasil, ocorrida a 7 de

setembro de 1822.

Entretanto, mesmo após sua independência, o país ainda utilizava mão-de-obra

escrava e por esse e outros fatores percebe-se que a independência do Brasil, embora

tenha significado uma emancipação política para o país, não se deu igualmente no

campo social. Os escritores brasileiros, estimulados pelo processo de emancipação do

país, começavam a escrever com uma forte tendência nacionalista, embora o

nacionalismo brasileiro não se constituísse em uma escrita autenticamente nacional, já

que esta estava fortemente marcada pelo ideário europeu. Mesmo assim, o

nacionalismo romântico brasileiro procurou criar, mesmo que idealizada, uma imagem

própria para seu país.

Publicada na segunda metade do século XIX, num tempo em que

preponderavam os sentimentos nacionalistas românticos, Memórias de um sargento de

milícias assegurou um lugar de destaque a seu autor na história da literatura brasileira,

embora o reconhecimento de público e de crítica só tenha se consumado

posteriormente. A obra foi escrita na época do Romantismo, mas foge aos padrões

românticos, devido à maneira direta de focalizar os acontecimentos, tanto temporal

quanto espacial, e por trazer personagens e enredo muito diferentes para os padrões

do romance da época. É um livro sui generis, pois não se encaixa em nenhuma das

vertentes principais do Romantismo (indianista, sertanejista, nacionalista), não retrata

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personagens das elites, não promove idealizações dos personagens e nem do passado

nacional.

Memórias de um sargento de milícias é a história do filho de uma pisadela e um

beliscão, contada por um narrador onisciente que aponta e comenta as intrigas, os

sucessos e os fracassos dos personagens ao longo de 48 capítulos. A estrutura

narrativa dá saltos no tempo e no espaço e os comentários do narrador, com humor e

ironia, conferem unidade à obra. As ações se desenvolvem na cidade do Rio de Janeiro

e remontam ao tempo entre 1808 e 1821. O leitor toma conhecimento já no primeiro

capítulo de como iniciou a acidentada vida de Leonardo, o personagem principal:

Leonardo Pataca e Maria Hortaliça, ambos portugueses, se conhecem a bordo de um

navio que vinha para o Brasil e, entre beliscões e pisadelas, relata o narrador “Quando

saltaram em terra começou a Maria a sentir enojos”52 e sete meses depois nasceu um

filho “formidável menino de quase três palmos de comprido, gordo e vermelho,

cabeludo, esperneador e chorão; o qual, logo depois que nasceu, mamou duas horas

seguidas sem largar o peito.”53

O autor de as Memórias, ao fixar as ações no Rio de Janeiro, acaba realizando

uma reconstituição da época nas camadas suburbanas, abordando usos e costumes

daquela sociedade. O batizado de Leonardo pode ser tomado como exemplo de

desnudamento dos costumes e formas de relações sociais da época. Primeiramente, é

revelado ao leitor os critérios de escolha dos padrinhos: a Parteira foi escolhida como

madrinha, e para padrinho de seu filho, o pai, Leonardo Pataca, desejava o Sr. Juiz,

porém teve de ceder aos apelos de Maria e da Comadre para que escolhesse o

Barbeiro, que morava defronte. Durante a festa do batizado, os convidados de

Leonardo, que eram d’além-mar, cantavam o desafio; os convidados da Comadre, que

eram da terra, dançavam o fado; e o barbeiro, o Compadre, tocava a rabeca -

instrumento favorito da gente do ofício, numa clara demonstração de que a mistura (de

gêneros musicais, no caso) encontrara uma terra fértil para acontecer e disseminar-se.

Na intenção de que a festa tivesse ares aristocráticos, Leonardo Pataca propõe a

dança do minuete da corte, entretanto, os acordes da rabeca do Compadre não

52 Memórias de um sargento de milícias. p. 8. 53 Ibidem, p. 8.

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combinam com a coreografia de acordo com os padrões da corte. Ainda na festa,

Leonardo canta uma modinha de saudades da terra natal e, a partir do momento em

que se encerram os atos solenes da festa do batizado, inicia-se, então, um burburinho,

que dá lugar à gritaria e depois se torna uma verdadeira algazarra. Temos, portanto,

retratado de forma pitoresca, um exemplo de costumes e relações sociais peculiares do

meio enfocado pela narrativa, as quais se constituem na mistura, tanto de estilos

musicais como de costumes, como das pessoas pertencentes a diferentes classes

sociais e às diferentes origens.

Ao completar sete anos, Leonardo é um menino travesso, irrequieto e teimoso.

Maria, a mãe, abandona o marido e o filho e retorna para Portugal com o capitão do

navio e, porque Leonardo Pai não assume o filho, passando inclusive a viver com a

Cigana, o Padrinho fica de tutor da criança. Não são poucas as malandragens de

Leonardo: ele foge, embrenha-se no meio de ciganos, atiça os vizinhos, faz enormes

algazarras, desmancha procissões, etc., sendo sempre, no entanto, perdoado pelo

Padrinho que se afeiçoara muito ao afilhado. Tanto o Padrinho – barbeiro de profissão –

quanto a Madrinha – parteira de profissão e religiosa por convicção – desejavam um

grande futuro para o moleque. O barbeiro queria fazer do afilhado um padre; a

Madrinha desejava que aprendesse algum ofício. O menino, entretanto, “constitui-se um

completo vadio, vadio-mestre, vadio-tipo” revela a narrativa.

Leonardo cresce e a cada dia torna-se mais briguento e travesso. Envolve-se em

problemas com o major Vidigal - conhecido como o terror de todos os malandros e

baderneiros da época e como símbolo da ordem. Leonardo, no entanto, sempre agrega

a simpatia da maioria das pessoas. Além do Padrinho e da Madrinha, encanta Dona

Maria - mulher da vizinhança a qual recebera a tutela da sobrinha Luizinha. Leonardo

se apaixona por Luizinha, porém encontra José Manuel em seu caminho, personagem

que está de olho em Luizinha (e em sua herança). Após a morte do Padrinho, Leonardo

vai viver em companhia do pai e de Chiquinha, companheira deste. Das constantes

encrencas com Chiquinha resulta a expulsão do filho da casa do pai e o herói passa, a

partir do episódio, a vagabundear pelos subúrbios da cidade. É quando conhece

Vidinha, uma mulata sensual, com quem vai morar.

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53

Ao aproximar-se da faceira Vidinha, Leonardo abre caminho para José Manuel

pedir Luizinha em casamento e esta, desolada pelo desaparecimento do herói, sem

muitas alternativas, acaba aceitando. Simultaneamente, Leonardo envolve-se em brigas

por causa da mulata Vidinha, é preso por Vidigal, consegue fugir das garras do Major, o

qual passa a caçar o herói em qualquer canto da cidade, nutrindo por ele um

sentimento de vingança pela humilhação sofrida. Com a morte do Padrinho, Leonardo

tornara-se herdeiro de uma pequena fortuna, que aliás não pertencia ao Padrinho e,

com a ajuda da Madrinha, o herói entra para as hostes do Major Vidigal, mas Leonardo,

naturalmente, não gosta da profissão e acaba criando muitas confusões. Após a viuvez

da então abastada Luizinha, Leonardo herdeiro do Padrinho barbeiro e agora

promovido a sargento de milícias, une-se a ela em casamento e finaliza-se a narrativa.

Vê-se ao longo da obra que, em todas as ocasiões, o herói supera as dificuldades

sempre com a ajuda de alguém que interfere, positivamente, junto a ele.

2.1.1 As Memórias e a Dialética da Malandragem

Memórias de um sargento de milícias é um dos mais excêntricos romances do

século XIX, o primeiro da literatura a focalizar as camadas populares com cenas reais

em que a narrativa escapa da visão romântica. O autor alia bom humor e realismo e

apresenta personagens não idealizados. Analistas mais apressados costumam afirmar

que as Memórias constituem um romance de costumes. No entanto, Antonio Candido54,

em seu ensaio intitulado Dialética da Malandragem, publicado em 1970 na Revista do

Instituto dos Estudos Brasileiros, discorda dessa tese, dizendo que falta abrangência ao

romance de Manuel Antônio, pois nele estão ausentes os senhores e os escravos, bem

como a corte portuguesa. O foco do escritor gira em torno de um grupo social

específico: os homens livres que, não sendo escravos e também não dispondo de

poder econômico e político, viviam de acordo com suas possibilidades, numa espécie

54 CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo: USP, n.8, 1970. p.67-89.

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de zona de penumbra na qual os limites entre os valores da ordem vigente e da

desordem – a marginalização – se tornavam bastante tênues.

Por intermédio de Leonardo, fruto de um acidente - a pisadela e o beliscão -, dos

demais personagens e, especialmente, por meio do movimento da narrativa, Manuel

Antônio acaba retratando com objetividade os costumes e hábitos do grupo social mais

popular do Rio de Janeiro, o que leva a obra a ser classificada por alguns críticos como

um romance picaresco. Leonardo é, então, apresentado como traquinas, o que o

aproxima mais do anti-herói e lembra as peripécias de heróis do tipo picaresco.

Tanto o romance quanto o autor constituem-se em desvios dos padrões de seu

tempo: o primeiro tomando por base os padrões da literatura, o segundo levando em

conta os padrões de vida dos romancistas da época. O autor das Memórias era filho de

portugueses e por ter uma família de posição econômica modesta, sofreu muitas

privações, o que o diferenciava dos demais prosadores, contemporâneos seus, os

quais pertenciam a famílias mais abastadas não sofrendo, portanto, tantas privações,

tendo inclusive a oportunidade de participarem em cargos políticos. Coincidência ou

não, tanto romance como autor não pertenceram aos paradigmas vigentes na época, o

que confere a ambos uma singularidade na história da literatura brasileira.

A começar pelo título da narrativa, já se tem mostra da quebra de paradigmas.

Memórias de um sargento de milícias é ambíguo, pois a palavra ‘memórias’ sugere um

romance em 1ª pessoa, ao passo que as Memórias de Manuel Antônio são escritas em

3ª pessoa por um narrador que se fixa ora no ponto de vista de Leonardo Pataca, o pai,

ora no ponto de vista de Leonardo Filho, mantendo-se, em seguida, mais no ponto de

vista do segundo do que do primeiro. Mário de Andrade,55 em sua introdução à

narrativa de Almeida, informa que de fato existira um sargento veterano que contava ao

Maneco Almeida casos do tempo do rei velho. Português de nascimento, ele teria vindo

como soldado para participar da Guerra Cisplatina, em 1817, no Regimento de

Bragança. Depois chegara a sargento de milícias, ainda na Colônia, sob o mando de

um certo Major Vidigal - que também se tem notícias de que existira de fato e

transformou-se em personagem na obra de Almeida. Ao deixar o exército, o tal sargento

passou a trabalhar no mesmo jornal de Manuel Antônio, sendo que este teria retirado

55 Memórias de um sargento de milícias. p.XVI.

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55

dos relatos daquele a matéria prima para a sua narrativa: os costumes, casos de polícia

e gente sem lei da época de Dom João VI. O autor, então, transforma os fatos em

episódios anedóticos, num enredo carregado de tradições populares, fazendo surgir a

criação literária denominada Memórias de um sargento de milícias. O título do livro,

portanto, é ambíguo, pois não se sabe ao certo se o mesmo “é um preito de gratidão

prestado ao informador, ou se relaciona ao herói, cujas aventuras acabam justo quando

ele obtém as divisas de sargento”56.

Ao ser editado em livro, o romance, organizado em duas partes, apresenta na

primeira metade mais o aspecto de crônica de costumes com as ações girando em

torno de Leonardo Pai e seu filho, mas centra-se principalmente em torno da

movimentação dos personagens, tendo como foco principal a apresentação dos usos e

costumes populares da época. Já na segunda metade, o foco da narrativa centra-se

nas ações de Leonardo Filho, passando os usos e costumes para pano de fundo, o qual

perpassa toda a obra. Por romper com os modelos da ficção brasileira em voga, usando

o humor e a ironia e isentando-se dos traços idealizantes e sentimentais românticos, o

romance de Almeida provoca inúmeras reações e críticas, as quais perpassam o tempo

e, inclusive, resistem a ele. Segundo Antonio Candido57 quando as Memórias foram

publicadas em livro, pouca gente percebeu algo de novo. Dentre essa gente está Silvio

Romero, que destacou cinco aspectos do romance os quais vieram a contribuir para a

crítica e com os quais os críticos posteriores acabarão por concordar. Para Silvio

Romero, a obra destacar-se-ia por apresentar a) diálogo vivo; b) exposição natural dos

fatos; c) graça na descrição das cenas; d) ditos espirituosos e e) nacionalismo do

assunto.

Em 1894, José Veríssimo, por sua vez, afirma que Memórias é um romance de

costumes e o define como uma narrativa de antecipação ao realismo/naturalismo, pois

Manuel Antônio não embeleza as cenas ou os personagens e os mantém na linha da

originalidade. Ronald de Carvalho, na esteira do pensamento crítico de José Veríssimo,

acrescenta que Manuel Antônio, devido aos arranjos das situações, dá sangue e nervos

aos personagens e que o livro é uma espécie de fotografia, sem artifício, sendo real nas

56 Memórias de um sargento de milícias. p.XVI. 57 CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo: USP, n.8, 1970. p.67-89.

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partes belas e também nas feias. Em síntese, até o momento, a obra teria sido recebida

como um livro que trazia uma visão documental da época, capaz de flagrar uma

realidade sem artifício.

O romance praticamente fora esquecido pela crítica até 1941, quando Mário de

Andrade, ao elaborar a introdução para uma nova edição de Memórias de um sargento

de milícias, acaba por provocar uma reavaliação do romance. Afirma Mário que o livro

não apresenta nada de realismo ou naturalismo, não se caracterizando, portanto, como

precursor e que o substrato mesmo do romance é a interpolação entre realidade,

costumes e folclore, sugerindo que nele há traços da picaresca espanhola do século

XVI - em especial, semelhanças com Lazarillo de Tormes, definido como uma figura

errante, um personagem anti-heróico. Josué Montello fixa-se na tese de Mário de

Andrade concordando que o romance tem origem picaresca e que Leonardo encarna o

pícaro espanhol. Em seguida, é a vez de Darcy Damasceno se posicionar e rejeitar a

ideia de as Memórias serem vistas como precursora do realismo/naturalismo e como

romance picaresco, sugerindo que a mesma é a representação de um romance de

costumes.

As divergências e convergências em relação à recepção da narrativa são

relativamente suspensas quando Antonio Candido levanta as possibilidades de as

Memórias serem vistas como um romance picaresco, um romance malandro, um

romance documentário ou um romance representativo. Segundo o crítico, Manuel

Antônio de Almeida pode ter recebido sugestões marginais de algum romance

espanhol, que vieram a colaborar na construção do personagem Leonardo, mas isso

não seria o suficiente para caracterizar a obra como picaresca e nem Leonardo como

um pícaro, já que a este, segundo Antonio Candido

lhe falta um traço básico de pícaro: o choque áspero com a realidade, que leva à mentira, à dissimulação, ao roubo, e constitui a maior desculpa das ‘picardias’. Na origem, o pícaro é ingênuo; a brutalidade da vida é que aos poucos o vai tornando esperto e sem escrúpulos, quase como defesa; mas Leonardo, bem abrigado pelo Padrinho, nasce malandro feito, como se tratasse de uma qualidade essencial, não um atributo adquirido por força das circunstâncias. 58

58 CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo: USP, n.8, 1970. p.67-89.

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Como se vê, A. Candido não recebe o livro simplesmente como um romance

picaresco, o que justifica por meio do paralelo traçado entre as características dos

pícaros e as de Leonardo, sendo que aqueles precisam enfrentar a brutalidade da vida,

enquanto este é protegido pelo Padrinho e pela Madrinha; os primeiros são ajudantes

servis (principalmente na cozinha) e ao segundo nem se cogita a possibilidade de

trabalhar (quando a madrinha sugeriu ao Padrinho que o afilhado deveria aprender um

ofício o Padrinho ficou muito ofendido). De acordo ainda com as constatações de A.

Candido, a narrativa picaresca é sempre em primeira pessoa, ou seja, o narrador se

identifica ao longo da narrativa. As Memórias, no entanto, são narradas em terceira

pessoa com um narrador cedendo a palavra ora para o compadre, ora para a comadre,

ora para a cigana e assim por diante.

Por outro lado, assim como os pícaros, Leonardo é amável e risonho,

espontâneo em seus atos, vive ao sabor da sorte, não tem planos e nem momentos de

reflexão; mas, diferente dos pícaros, o herói não aprende com a experiência e deixa a

vida levar-lhe sem sua interferência. Isso tudo, somado ao fato de Leonardo ser avesso

ao trabalho, permite a A. Candido concluir que ele é um personagem de origem

malandra, já nasce malandro e, mais que isso, seria “o primeiro grande malandro que

entra na novelística brasileira, vindo de uma tradição quase folclórica e

correspondendo, mais do que se costuma dizer, a certa atmosfera cômica e

popularesca de seu tempo, no Brasil”.59

Quando Antonio Candido, em sua Dialética da Malandragem, cogita a possibilidade

de que Leonardo não deve ser visto como um pícaro retirado das consagradas formas

da tradição europeia e que Memórias de um sargento de milícias também não deve ser

tomada simplesmente como um romance precursor do realismo/naturalismo, o crítico

está sugerindo, na verdade, uma nova possibilidade de recepção para a narrativa e

inaugurando a linha da narrativa malandra brasileira. O crítico defende que Leonardo

Filho encarna a figura do malandro e Roberto Schwarz, por sua vez, endossa a idéia,

acrescentando que o malandro seria uma figura historicamente original o qual

sintetizaria “a) uma dimensão folclórica e pré-moderna – o trickster; b) um clima cômico

59 CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo: USP, n.8, 1970. p.67-89.

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datado – a produção satírica do período regencial; e c) uma intuição profunda do

movimento da sociedade brasileira.”60 Acrescente-se a isso tudo a idéia de que a mola

mestra do livro é o movimento: a um acontecimento, segue outro e mais outro, o que

faz Mário de Andrade assinalar que o livro só termina “quando o inútil da felicidade

começa”, referindo-se ao casamento de Leonardo com Luizinha quando, então, não são

mais possíveis as peripécias do herói.

Antonio Candido defende a idéia, portanto, de que Memórias de um Sargento de

Milícias seria um romance representativo de uma sociedade da época - entre 1808 e

1821, quando as ações se desenvolvem – e é, sobretudo nas ações das personagens

ao longo da narrativa, que a dinâmica histórica se aprofunda. Para A. Candido esse

movimento é o esqueleto de sustentação do romance e, na verdade, com essa

constatação ele mostra que Manuel Antônio de Almeida já começa a apontar uma

herança brasileira ao criar Leonardo calcado nas histórias populares que teria ouvido de

seu companheiro de jornal, o tal sargento, que de fato existiu e fora comandado por um

certo Major Vidigal - também uma pessoa real que vira personagem nas Memórias de

Manuel Antônio.

Para Mário de Andrade,61 Leonardo não é um homem que se faz por si, já que

não fala umas dez frases sequer em um livro farto de dialogação, e sim os outros é que

falam por ele. Leonardo encontra um caminho aplainado pelos outros, apenas jogando

com a simpatia irradiante do corpo. Assim como os demais personagens da narrativa,

Leonardo pode ser julgado como bom e como mau, pois o bem e o mal, na obra, não

aparecem como antítese entre os quais é preciso escolher. Quando um personagem

pratica uma ação reprovável, em seguida praticará outra digna de louvor para

acompanhar e compensar a atitude negativa. Nesse jogo, com uma ação compensando

a outra, ninguém merecerá a censura, e essa relatividade dos fatos e das ações dos

personagens é que remeterão a uma visão folgada dos costumes que aparecem nas

Memórias de um Sargento de Milícias.

O autor consegue reduzir os fatos e as pessoas a situações e tipos gerais que,

segundo A. Candido, geram a integridade da obra surgida da associação íntima entre a

60 SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de Dialética da Malandragem. In: LAFER, C. (Org.) Esboço de figura. Homenagem a Antonio Candido. São Paulo: Duas Cidades, 1979. p. 133-151. 61 ANDRADE, Mário. Introdução. In: Memórias de um sargento de milícias. p. XXIV.

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representação dos costumes e cenas do Rio de Janeiro – que pertenceria a um plano

voluntário – e os traços semi-folclóricos, manifestados sobretudo no teor dos atos e das

peripécias – que seria um plano involuntário do autor. Somado a esses dois planos,

incluir-se-ia, ainda, um realismo espontâneo e corriqueiro, porém baseado na dinâmica

social do Brasil na primeira metade do século XIX. Por fim, A. Candido conclui que

talvez na junção desses ingredientes é que reside o segredo da força e projeção no

tempo de Memórias de um Sargento de Milícias.

O autor de Dialética da Malandragem amplia algumas sugestões de Mário de

Andrade e afirma que o livro de Manuel Antônio sugere a presença viva de uma

sociedade – a sociedade do século XIX - que parece ser bastante coerente. O

panorama traçado pela obra, no entanto, restringe-se ao Rio de Janeiro do começo do

século XIX e, no plano histórico, os personagens são restritos a uma faixa social

específica: aparece apenas a gente modesta, os homens livres. A gente modesta não

se comunica com a gente superior – que vivia no Paço – e nem com as camadas

inferiores – representadas pelos escravos, pela gente de cor. Dessa forma, para A.

Candido, se as Memórias forem encaradas como um romance documentário, este seria

um documentário restrito, pois estaria ignorando as camadas dirigentes, por um lado, e

as camadas básicas, por outro.

Porém, ao analisar-se qual a função exercida pela realidade social

historicamente localizada para constituir a estrutura da obra é possível o entendimento

de que as Memórias contribuem como documentário, especialmente porque há fatos e

personagens criados a partir de uma realidade da época, porque aparecem os usos e

costumes daquele tempo e porque há os comentários do narrador e de certos

personagens que acabam contribuindo para a revelação da época retratada. São vários

os elementos documentários da obra como, por exemplo, a procissão dos Ourives, a

festa do batizado de Leonardo, a festa de aniversário da cigana, o retrato físico e moral

do capoeira e outros tantos quadros descritivos dos costumes do tempo. Quando

Manuel Antônio integra todos esses elementos, a visão documental da época se

transforma em literatura. Porém, quando os elementos constitutivos da obra não se

integram, a visão documental perde toda a força de síntese ficando apenas como

expressão isolada do universo do folclore, o que os exclui da dinâmica social do

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romance, reduzindo-os no mesmo nível da informação e da produção cômico-satírica

típicas dos jornais da regência e dos primeiros anos do segundo reinado, os quais só

faziam a análise política e moral da sociedade da época.

Para A. Candido, a narrativa de Manuel Antônio sofre uma modificação em sua

composição inicial, pois passa de uma simples coleção de tipos curiosos e usos

pitorescos para uma narrativa com senso de unidade. Talvez, por isso, a primeira parte

da narrativa tenha mais aspecto de crônica, ao passo que a segunda metade surge

como romance, responsável pelo fortalecimento da primeira quando preserva o colorido

e o pitoresco da vida popular. A primeira metade, que se estende até o capítulo vinte e

três, possui um ar de crônica, com o predomínio dos estratos descritivos e com

episódios soltos e justapostos. São as descrições que dão conta dos costumes, dos

usos, das inserções folclóricas, da música, da dança e dos ritos daquela sociedade que

era quase uma aldeia portuguesa. Nessa primeira metade da narrativa, os capítulos

não se integram, as personagens surgem, desaparecem para depois retornar e não se

articulam em torno de uma ação central do romance, porque este não a possui. As

ações acontecem em quadros estanques como, por exemplo, o nascimento humilde de

Leonardo, seus primeiros infortúnios, a despedida de suas travessuras, a entrada do

Major Vidigal, da Comadre e de Dona Maria em cena, a fortuna ganha pelo Compadre,

as tentativas de mudança na vida do herói, os primeiros amores, etc. Em todos os

episódios, Leonardo está preso à sorte dos outros personagens, principalmente à do

pai Leonardo Pataca.

A partir da segunda metade, entretanto, a construção do livro altera-se pendendo

mais para o romance e a trajetória do filho passa a prevalecer na narrativa, enquanto a

descrição dos usos e costumes passam a dissolver-se na dinâmica dos

acontecimentos. É a partir daí que a malandragem do protagonista se acentua,

aproximando-se, inclusive, das duas faces do trickster - a do trapaceiro e a do tolo –

revelando que Leonardo Pai e Leonardo Filho são dois lados de um mesmo rosto: o da

tolice que depois se salva e o da esperteza que quase o leva ao desastre. É a partir de

então, quando a impressão da realidade já não vem essencialmente dos informes, dos

trejeitos, dos dados de superfície, que estamos diante de uma visão mais ampla do

destino social das personagens. É também nesse ponto que Antonio Candido levanta a

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quarta, última - e que vem se consagrando como definitiva - possibilidade de recepção

das Memórias. Para o crítico, a narrativa Memórias de um sargento de milícias,

publicado em 1852-53, por Manuel Antônio de Almeida é um romance representativo de

uma sociedade da época e sua eficiência e a durabilidade com que atua na imaginação

do leitor perpassa os tempos devido à sua natureza popular, aspecto que será

aprofundado nesse estudo mais adiante.

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2.2 Macunaíma no Século XX

Macunaíma, o herói sem nenhum caráter62 surge em uma época na qual os

principais debates a respeito da Nação giravam em torno das ideias de miscigenação. A

rapsódia foi escrita em seis dias de trabalho ininterrupto, durante umas férias de final de

ano de Mário, em dezembro de 1926. Em janeiro de 1927, os escritos são corrigidos e

aumentados para, finalmente, a obra ser publicada em 1928. E hoje, já passados 80

anos de sua primeira edição, Macunaíma ainda permanece como um dos símbolos

mais evidentes da cultura brasileira.

O Brasil da década de 20 começava a sentir processos de transformações

sociais e econômicos. Após o advento da República, inicia-se o desenvolvimento

industrial e o crescimento da produção cafeeira, movimentos situados especialmente no

Estado de São Paulo, o que conferia ao território um quadro vantajoso em relação à

capital, Rio de Janeiro. Além disso, a recente abolição da escravatura colocava no

mercado um enorme contingente de mão-de-obra e também um novo público

consumidor. Com o predomínio dos Estados de São Paulo e Minas Gerais na

alternância do poder, passa-se a viver uma política, onde as tendências regionalistas

escapam ao projeto inicial de fazer do Brasil uma República Federativa. A constante

troca de favores entre as oligarquias estatais negam os ideais republicanos e

federalistas e excluem a população em geral do processo político.

É também esse o momento em que o Brasil passa pelas transformações

importantes da Primeira Guerra Mundial e, assim como o resto do mundo, sofre várias

modificações, em especial no campo das ideias. A Guerra traz ao homem a

possibilidade de reconhecer sua fragilidade, provocando a queda do mito da liberdade

promovido pela era internacional, fato que acaba tornando obsoletos os nacionalismos.

62 ANDRADE, Mário. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Agir, 2008. Todas as referências à obra foram retiradas da referida edição e a partir de então nos referiremos apenas ao título da mesma.

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O mundo assiste, então, aos países europeus retomando seus valores nacionalistas e o

Brasil também é acometido por este sentimento, já que é um país com especificidades

capazes de traçar uma identidade de nação. Trava-se a partir daí uma luta na qual a

intelectualidade se engaja em busca da identidade nacional, voltando-se para o

passado, revisitando o período colonial e retomando as ideias da mistura de raças

constitutivas do povo brasileiro. Sua meta é tentar encontrar um tipo étnico cujas

características tenham condições de criar uma figura representativa da nacionalidade

brasileira.

Na década de 20, São Paulo era um estado em processo de franco

desenvolvimento econômico com um grande movimento de expansão territorial e

aparecia como o grande empreendedor e o centro do trabalho. Mostrava-se, dessa

forma, aos olhos da Nação Brasileira como o estado que dera origem ao verdadeiro

brasileiro e, por isso, seria capaz e merecedor de ser reconhecido como o estado

brasileiro símbolo de modernidade e brasilidade. Não é à toa, portanto, que foi

justamente São Paulo o palco do grande acontecimento cultural brasileiro – a Semana

de Arte Moderna, ocorrida em 1922 – cujos objetivos eram mostrar uma estética de

reação à mentalidade das velhas gerações e, ao mesmo tempo, buscar o detalhe da

realidade brasileira. Ancorados nas vanguardas francesas e italianas – representantes

da inovação – os artistas tentaram criar formas de expressão ao mesmo tempo local e

universal. Com isso, o movimento modernista gera entre o grupo dos intelectuais duas

linhas de raciocínio: de um lado, estavam os artistas que desejavam estabelecer o

símbolo da nacionalidade em algum espaço geográfico que seria o mais brasileiro; de

outro havia o grupo defensor da idéia que a identidade brasileira encontrava-se na

diversidade, ou seja, a unidade das diferentes culturas seria a própria identidade

nacional.

É, portanto, importante o fato de que até 1930 a economia brasileira se baseava

em plantações agrícolas voltadas para o mercado internacional. Pouco ou nada de

comunicação havia entre as diferentes regiões brasileiras, as quais mantinham

estruturas políticas autônomas e cujo estado era fraco demais para integrá-las. Com a

autonomia das regiões é inevitável a diversidade social e de culturas, o que acaba

sendo um entrave para a formação de uma consciência nacional. É nesse contexto que

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Mário de Andrade publica, em 1928, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. A obra

prima do autor, que é reconhecida pela crítica como um divisor de águas na literatura

brasileira, sugere a ideia da desgeografização do Brasil, mostrando que a unidade da

identidade nacional brasileira só ocorreria por meio de uma análise histórica da

formação da nacionalidade brasileira, sendo necessário, para isso, recolher elementos

folclóricos característicos de cada região. Assim, para Mário de Andrade, o Brasil é um

todo formado por partes, ideia oposta a de outros intelectuais, os quais pensavam o

Brasil como várias partes que formam um todo.

De 1930 a 1945, o Brasil é comandado por Getúlio Vargas, inicialmente como

chefe do governo provisório (1930-34), depois presidente eleito pela Assembleia

Constituinte (1934-37) e, finalmente, ditador imposto por um golpe militar (1937-1945).

Embora o período do Estado Novo – compreendido entre 1937 e 1945 – seja o auge da

Era Vargas, Getúlio já começava a mudar o país a partir de 1930, quando iniciava seu

Governo Provisório. Ao longo dos 15 anos como governo brasileiro, Vargas, por meio

de sua modernização conservadora63, fez com que o Brasil deixasse de ser um país

essencialmente agrário, transformando-o num país agrário-industrial. A partir da Era

Vargas os processos de industrialização e crescimento urbano tornaram-se

irreversíveis, avolumando-se as migrações internas ao rumo das zonas industriais. Com

a preocupação de unificar o país, Getúlio inicia a integração das diversas regiões do

Brasil com os novos meios de transporte e comunicação e também preocupa-se em

elevar o padrão educacional e cultural para o brasileiro. Essa modernização, no

entanto, apresentou desde o início o caráter conservador e o autoritarismo de Vargas

que exerceu um forte controle sobre a cultura. Mesmo assim, os movimentos

intelectuais – embora marcados por disputas ideológicas – colocavam a realidade social

do Brasil e seu povo no centro das preocupações intelectuais e artísticas, defendendo

uma arte brasileira, com elementos exclusivamente nacionais.

Ao que parece, a rapsódia Macunaíma de Mário de Andrade, ao lado dos

objetivos modernistas das primeiras décadas do século XX, foi um livro antecipador

daquilo que a arte brasileira passaria a se empenhar durante o Estado Novo: a busca

63 Termo utilizado pelos historiadores ao conjunto de mudanças políticas, econômicas e sociais promovidas por Vargas no período de 1930-1945. Ver em POMAR, Wladimir. Era Vargas A modernização conservadora. 4.ed. São Paulo: Ática, 2008. p. 4.

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de uma marca identificatória nacional que teria como centro, obviamente, elementos

nacionais. A rapsódia de Mário coloca em confronto polos culturais antagônicos no que

diz respeito ao desenvolvimento do Brasil, mostrando a acomodação de um Brasil

primitivo com suas lendas, mitos e explicações mágicas e um Brasil burguês e

industrializado desejoso de modernidade.

O livro Macunaíma é dividido em dezessete capítulos e um epílogo. Tem como

subtítulo “o herói sem nenhum caráter” e é uma narrativa classificada pelo próprio autor

como uma rapsódia. O termo rapsódia é retirado da música e refere-se a uma

variedade de motivos populares ligados entre si, por uma afinidade sonora. O termo faz

alusão também ao ‘rapsodo’ – poeta andarilho que na Grécia antiga fundia letras e sons

populares que tinham algo em comum. Em Macunaíma, Mário de Andrade combinou

assuntos variados, temas heterogêneos, gêneros diversos e estilos diferenciados. O

autor reuniu motivos populares de acordo com afinidades entre eles, montando uma

espécie de colcha de retalhos, misturando os aspectos folclóricos, populares e culturais

do Brasil. A narrativa foi classificada como rapsódia, então, por constituir-se de uma

colagem intencionalmente confusa de inúmeras fontes culturais que tenta estabelecer

‘um falar brasileiro e fazer uma leitura crítica do país’.

Macunaíma, o herói da nossa gente, nasceu no fundo do mato-virgem. O herói é

filho do medo da noite e de uma índia tapanhumas. Seu nascimento é apresentado

como um mito e narrado em tom de lenda. O herói inicia sua trajetória no Amazonas,

parte para os sítios pré-históricos em Santa Catarina e conversa com o bacharel de

Cananéia, em São Vicente. Em outro momento, foge da cidade de São Paulo para o

Rio e depois parte para a fronteira de Mato Grosso com o Amazonas. Volta para Minas

e acaba por esconder-se no oco de um formigueiro na ilha de Bananal, em Goiás. Não

existem fronteiras espaço-temporais em Macunaíma, fato que confere um caráter mítico

ao livro, assim como não existem espaços geográficos e históricos bem definidos -

configurando um universo anárquico em que tanto a Geografia quanto a História

pertencem ao mundo real, mas são manipulados pela magia. Da mesma forma, não há

um rigor linguístico, ocorrendo a aproximação da língua falada com a língua escrita.

O “herói da nossa gente” passa a ser o símbolo/modelo de uma nacionalidade.

Ele é tomado como o herói sem nenhum caráter e revela uma amoralidade (diferente de

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imoralidade), um modo de agir e pensar de um povo em formação, cuja identidade é um

misto da cultura selvagem, colonial e moderna que coexistem com o linguajar que

aproxima a língua escrita da falada e valoriza o uso do português coloquial, com as

rupturas gramaticais. Há várias divergências em relação à obra: para alguns,

Macunaíma aproxima-se da epopeia clássica, pois ambas tem em comum a trajetória

da aventura de um herói sobre-humano, que reverte a realidade em prol do

maravilhoso, fato que pode ser entendido como uma aproximação dos mitos e deuses

pagãos para que eles intervenham na natureza da narrativa literária; outros a

aproximam das novelas de cavalaria ou ainda ao gênero da sátira menipeia. De acordo

com determinados pontos de vista, Macunaíma é uma colagem, ou uma bricolagem, um

mosaico ou uma rapsódia, como define Mário de Andrade. Assim, o que se sabe é que

Macunaíma é uma montagem intencionalmente confusa, a qual reúne fontes pessoais,

eruditas, populares, nacionais, estrangeiras, o que termina por estabelecer uma leitura

crítica do Brasil.

2.2.1 A fortuna crítica de Macunaíma

Embora muita gente já tenha se debruçado sobre a rapsódia Macunaíma e dessa

dedicação muitos ensaios, artigos e estudos tenham sido produzidos, as possibilidades

de compreensão da mesma parecem não ter fim, pois a cada momento novas análises

são agregadas à já bastante extensa fortuna crítica de Macunaíma. Livro causador de

grandes polêmicas, ruidoso e provocador, a narrativa foi altamente rejeitada, mas

também muito celebrada pela crítica da época e ainda hoje suscita no leitor as mais

variadas e confusas interpretações. A sua complexidade deu origem aos inúmeros

estudos, os quais convergem em muitos aspectos, mas também divergem em outros

tantos.

Macunaíma é um livro revolucionário e antecipador de muitas questões. Em um

tempo em que ainda não se falava de teorias de recepção que privilegiassem a visão

do leitor, Mário de Andrade oferece ao público uma obra aberta. Em 1928, trinta e sete

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anos antes de a teoria da carnavalização ser apresentada por Bakhtin - o qual a faz em

forma de tese de doutoramento, em 1940, inicialmente rejeitada pelo comitê avaliador,

mas depois reconhecida e responsável por conferir renome mundial ao teórico russo em

1965 – é publicada, por Mário, a rapsódia Macunaíma, uma narrativa “extremamente”

carnavalizada. Isso só para citar alguns aspectos que provam o caráter inovador da

obra e a genialidade do poeta.

A rapsódia causou polêmicas, dificuldades de análise, divergências em relação

ao gênero e foi responsável por antecipar questionamentos - os quais persistem e ainda

se encontram sem respostas no Brasil do século XXI – como, por exemplo, as reflexões

em torno do caráter nacional, da identidade brasileira, da realidade multicultural do país,

da mistura de raças, da cultura popular, da formação da língua e literatura nacionais.

Assim se vê que Macunaíma, já com seus 80 anos, tem muito (e parece que cada vez

mais) a nos ensinar e, devido ao leque de possibilidades ofertado pela obra para a

compreensão da mesma, sua fortuna crítica se avoluma de forma galopante.

José de Paula Ramos Júnior,64 orientado por Telê Porto Ancona Lopez,

organizou sua tese de doutorado reunindo uma bibliografia crítica de Macunaíma. O

autor se ancorou na edição crítica de Telê Porto Ancona Lopez, publicada em 1978, por

ocasião dos 50 anos de Macunaíma e, para compor a tese, José de Paula arrolou cerca

de duas centenas e meia de registros (resenhas, artigos, ensaios, livros e teses)

publicados a respeito do “herói sem nenhum caráter”, entre 1928 e 2005. Como

procedimento metodológico escolheu dividir essa fortuna crítica em três fases: a

primeira de 1928 a 1954; a segunda, no período de 1955 a 1969; e a terceira, de 1970

em diante. O autor subdivide a primeira fase da crítica de Macunaíma - constituída por

pronunciamentos em periódicos - em três ondas: primeira onda, 1928-1936; segunda

onda, 1937-1943 e terceira onda, 1944-1954, sendo que aprofunda seus estudos na

primeira onda dessa primeira fase.

O autor da tese enumera treze recepções críticas à rapsódia surgidas logo após

a publicação da primeira edição de Macunaíma, a qual teve uma tiragem de 800

64 JÚNIOR, José de Paula Ramos. A Fortuna crítica de Macunaíma: primeira onda (1928-1936). São

Paulo. 2006. 525 f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) Universidade de São Paulo. São Paulo. 2006.

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exemplares pagos pelo próprio autor. A primeira crítica foi publicada anonimamente no

Diário Nacional - um jornal de São Paulo - e data de 07 de agosto de 1928, duas

semanas após o surgimento de Macunaíma. Há fortes evidências que o próprio Mário a

tenha escrito. No ano seguinte ao da publicação de Macunaíma são publicadas em

periódicos ao menos mais oito críticas. A oitava delas constitui-se no ensaio publicado

em livro sob o título “Todos cantam sua terra...” de Jorge de Lima. Para o autor, o herói

é símbolo do “homo brasiliensis”, cuja ausência de caráter Mário de Andrade haveria

consagrado como traço distintivo. No ensaio, Jorge de Lima aponta também que há

ausência de Brasil nos escritores do passado, sendo que, para haver a presença de

Brasil, teria de haver o abandono da intelectualidade nacionalista e do exagero ufanista,

possibilitando o encontro do homem brasileiro com a sua realidade étnica, política e

religiosa. Dentre os pioneiros da crítica, somente Ascenso Ferreira observou haver na

obra de Mário uma possibilidade de leitura alegórica e um espírito satírico.65 No grupo

da segunda onda é Augusto Meyer66 quem diz perceber a presença do humor não só

como elemento de crítica risonha aos costumes, mas como máscara de uma intenção

satírica nada divertida.

É, entretanto, na segunda fase da recepção de Macunaíma que surgem os

estudos mais conhecidos e relevantes de apreciação à obra prima de Mário de

Andrade. Nesse sentido, referencia-se Manuel Cavalcanti Proença, o qual contribuiu

com a leitura compreensiva da rapsódia ao publicar, em 1955, o seu Roteiro de

Macunaíma67 - obra hoje obrigatória para quem deseja realizar estudos sobre

Macunaíma. O Roteiro, ao promover uma análise do discurso ficcional e de suas

relações intertextuais com as fontes em diversos campos do saber, organizando uma

demonstração dos mitos e lendas indígenas, provérbios, ditos populares, etc.,

transforma-se em um exame minucioso da rapsódia e não mais uma simples opinião

sobre o texto.

Da mesma forma, Haroldo de Campos68 é responsável por uma bela fatia da

fortuna crítica da rapsódia, ao organizar outro estudo metódico sobre a obra. Morfologia

65 JUNIOR, A fortuna crítica de Macunaíma: Primeira Onda (1928-1936). São Paulo, 2006. p. 63. 66 Ibidem, p. 97. 67 PROENÇA, Manuel Cavalcanti. Roteiro de Macunaíma. 6.ed. São Paulo: Civilização Brasileira, 1987. 68 CAMPOS, Haroldo de. Morfologia do Macunaíma. São Paulo: Perspectiva, 1972.

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de Macunaíma, de Haroldo de Campos, é um estudo baseado na Morfologia do Conto

Maravilhoso de Vladimir Propp, no qual o autor aplica o método do módulo fabular para

realizar uma análise estrutural da narrativa macunaímica. Por meio de uma leitura

estruturalista, Haroldo de Campos estabelece uma lógica de compreensão de

Macunaíma em que se reconhecem as mesmas funções estabelecidas por Propp,

porém com uma peculiaridade brasileira. Tanto Roteiro de Macunaíma, quanto

Morfologia de Macunaíma antecipam um traço distintivo da terceira fase da crítica, cuja

principal característica será a investigação acadêmica de orientação científica.

Assim, é de 1970 em diante que se acentua o processo do enriquecimento da

fortuna crítica de Macunaíma, sendo o diferencial dessa terceira fase, segundo José de

Paula, a especificidade acadêmica. É justamente nesse período que surge um grande

número de estudos críticos sobre a obra: Telê Porto Ancona Lopez, Mario Chamie,

Gilda Mello e Souza, Eneida Maria de Souza e Susana Camargo são alguns nomes que

contribuíram com teorias a respeito da rapsódia. Mario Chamie69, por exemplo, foi o

primeiro a afirmar no ensaio crítico publicado no Jornal da Tarde de O Estado de São

Paulo do dia 01/11/1975, que “a característica da menipeia em que se destacam os

contrastes violentos encontra em Macunaíma um amplo campo de atuação” E apoiado

na teoria de Bakhtin, Chamie analisa em Macunaíma o processo de investidura e

destituição do herói, com os movimentos de entronização e destronização do herói.

Para Telê Porto, a principal razão de Macunaíma continuar a ser lido e relido na

atualidade é o fato de ser uma obra que continua dialogando conosco, porque toca não

só nas verdades do homem no Brasil, mas também nas verdades humanas atuais como

o medo de crescer, a fuga das responsabilidades, a importância do ócio criativo, a

crítica ao trabalho formiga e outros tantos. A autora entende que chamar Macunaíma de

estereótipo do homem brasileiro é uma visão muito esquemática sobre o personagem

da rapsódia. Para ela, o livro mostra uma extensa pesquisa de elementos de nosso

país, o que a faz concordar com Alfredo Bosi e Paulo Prado, ao destacarem que o

objetivo de Mário de Andrade era captar a “entidade brasileira”. É o próprio Mário quem

afirma em um prefácio a Macunaíma sobre sua intenção de retratar artisticamente a

69 CHAMIE, Mario. Mário de Andrade: Fato aberto e discurso carnavalesco In: SOUZA, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. São Paulo: Duas Cidades, 1979. p. 104.

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entidade nacional dos brasileiros. Usa o termo ‘entidade’ por ser isento de unidade ou

determinação particular e não estar associado às idéias de essência, origem ou fixidez,

associadas à noção de identidade.

Leyla Perrone-Moisés70 aponta em seu estudo sobre Macunaíma que para Gilda

de Mello e Souza, a rapsódia aproxima-se do romance de cavalaria, enquanto

Cavalcanti Proença a assemelha com a epopeia medieval, ao passo que Alfredo Bosi

qualifica-a como ‘meio epopéia, meio novela picaresca’. Moisés resume: “A crítica mais

recente tem-se emprenhado (até a saturação) em aplicar a Macunaíma o qualificativo

de ‘obra carnavalesca’, tal como foi definida e estudada por Mikhail Bakhtine: o avesso

paródico, cômico e popular do gênero heróico.”71 Nessa mesma linha de pensamento,

Eneida Maria de Souza72 - uma das organizadoras de Mário de Andrade – carta aos

mineiros e autora de A pedra do discurso - defende a ideia de que a estrutura de

Macunaíma segue os moldes dos enredos tradicionais dos contos populares e das

histórias orais, pois há o nascimento do herói, suas peripécias e um desfecho. Para a

autora, entretanto, o que distinguirá a rapsódia dos referidos relatos é a exploração

criativa da linguagem, a utilização do estilo oral de forma a captar as contradições e a

falta de controle do sujeito diante do discurso. A autora acrescenta ainda que as

peripécias do personagem, o aspecto lúdico da linguagem e a escatologia – uma forma

da expressão da linguagem popular – são marcas do escritor francês Rabelais, um das

fontes onde Mário bebeu.

O fio condutor de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, é a perda e a busca

da muiraquitã. Para Gilda de Mello e Souza, embora o episódio nuclear esteja bem

definido e dramaticamente conciso, ele não consegue se impor com exclusividade, pois

se vê “eclipsado permanentemente pela multiplicação incessante dos episódios

secundários.”73 A muiraquitã é uma pedra da cor verde que Ci a Mãe do Mato tira do

colar e antes de subir para o céu doa para Macunaíma como lembrança dos dias de

plenitude erótica que passaram juntos. Essa pedra é mágica e seu possuidor será feliz,

70 MOISES, Leyla Perrone. Macunaíma e a “entidade nacional brasileira” In: Vira e mexe, nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.197. 71 Ibidem, p.197. 72 SOUZA, Eneida Maria de. A pedra do discurso. 2.ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. 73 SOUZA, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. São Paulo: Duas Cidades, 1979. p.104.

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rico e poderoso. No entanto, Macunaíma perde o amuleto e a partir deste episódio inicia

uma busca repleta de aventuras, riscos e peripécias.

A busca pela muiraquitã metaforiza na rapsódia andradiana a busca da

identidade perdida, pois a pedra é o símbolo da iniciação à vida. Para Gilda de Mello e

Souza, a constante busca da muiraquitã se dá por um herói extremamente

carnavalizado, isto é, o avesso, por exemplo, de um herói do romance de cavalaria.

Assim, Macunaíma apresenta-se como um herói que foge das dificuldades e que não

ousa afrontar sozinho os perigos da aventura, necessitando sempre da ajuda dos

irmãos. Outro ponto de inversão é que, enquanto o herói de cavalaria parte para a

aventura, impulsionado por uma escolha, ou seja, por vontade própria, a trajetória do

nosso herói nacional “é uma sucessão de atos fortuitos (sem projeto) surgidos ao acaso

e visando muitas vezes dois alvos opostos”74 Para a autora, Macunaíma representa “o

ponto extremo de um conflito, cuja ação se projeta em dois planos simultâneos, não

mais de amor e da guerra, mas da atração da Europa e da fidelidade ao Brasil.”75

Da mesma forma, Eneida Maria de Souza diz que a muiraquitã é a peça central

na narrativa porque dá andamento e razão de ser para a mesma, sendo que o

movimento em torno da pedra representa uma sátira aos romances de cavalaria e de

gesta. Macunaíma, quando retorna com a muiraquitã não é mais o mesmo que partiu.

No fim de sua trajetória, ele é um herói cansado e doente e não é mais senhor de nada.

Diz Gilda Mello “A própria recuperação da muiraquitã já não parece significar a garantia

da felicidade, pois para se proteger na volta o herói surrupiou ao progresso alguns

amuletos estrangeiros, como o revólver Smith Wesson, o relógio Pathek Phillip e o

casal de galinhas legorne.”76 Como se vê, o herói da nossa gente tinha um objetivo bem

definido: a busca da pedra mágica. No entanto, ao recuperá-la, ele parece não dar mais

o devido valor a ela, pois volta triste e cansado e traz, inclusive, outros amuletos da

civilização, o que dá a impressão que a muiraquitã, para o nosso herói, é passível de

substituição, diferentemente de um herói clássico, cujos objetivos são bem definidos e

por nada seriam trocados ou suspensos.

74 SOUZA, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. São Paulo: Duas Cidades, 1979. p.92. 75 Ibidem, p. 92-93. 76 Ibidem, p.45.

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Robson Pereira Gonçalves, em sua obra Macunaíma, Carnaval e

Malandragem77, relaciona as marcas carnavalescas da rapsódia com uma sociologia do

ritual do carnaval brasileiro. O autor considera a teoria da carnavalização literária como

uma tentativa de explicar os fenômenos que sustentam as manifestações culturais

populares e se dedica a investigar as ideias sobre a sociedade brasileira na rapsódia de

Mário de Andrade com base na tese de Roberto DaMatta, autor que apresenta o

carnaval como um dos rituais que sustentam o dilema brasileiro. Para Gonçalves,

Macunaíma é uma obra de teor carnavalesco. Diz o autor: “Tanto a temática, como a

construção de personagens em Macunaíma, refletem o gosto pelo popularesco, pelas

inversões, pelo experimentalismo e pelo banimento de unidades clássicas da

narrativa.”78 e acrescenta que Mário acreditava numa consciência artística de cunho

eminentemente social e o modernismo representava a busca de uma identidade cultural

e social brasileira.

Nesse sentido, justifica-se a aproximação de Macunaíma ao gênero cômico da

sátira menipeia. Igualmente, para Suzana Camargo, a rapsódia se aproxima da

menipeia, porém para ela o texto de Mário se opõe à narrativa ocidental clássica e sua

característica carnavalesca é marcada pelo realismo grotesco. A sátira menipeia, ao

desgarrar-se da tradição, estabelece uma verossimilhança interior, evidenciando a

posição dialógica do homem frente ao mundo. Dessa forma, a literatura carnavalizada -

originada da sátira menipeia – fundamenta as ações, a perspectiva de mundo, a

formação dos personagens, a partir de uma verdade interna, o que lhe permite usar

“fantasmagorias e peripécias que criam situações excepcionais na busca da verdade de

um sábio ou de um herói que passa por situações extravagantes, aventuras e

misticismos.” - afirma Gonçalves.79

Porém, se para Suzana Camargo Macunaíma é uma sátira menipeia com

vocabulário típico de praça pública, com formas e imagens da festa popular, com

elementos cômicos e com a presença do baixo material e corporal, para Gonçalves “a

rapsódia de Mário de Andrade vai se configurar muito mais como uma sátira social na

77 GONÇALVES, Robson Pereira. Macunaíma: carnaval e malandragem. Santa Maria: Imprensa Universitária UFSM, 1982. p. 13. 78 Ibidem, p. 30. 79 Ibidem, p. 29.

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apresentação do dilema brasileiro do que uma reconstituição rabelaisiana na

modernidade tropicalista.”80 Portanto, a narrativa Macunaíma, o herói sem nenhum

caráter é tomada por Gonçalves como a representação do herói genuinamente nacional

que é o malandro, sendo que este seria o símbolo carnavalizado do brasileiro. Assim,

por meio da sátira social de Mário de Andrade, o personagem passa a ser um símbolo

da cultura brasileira e o grande mediador entre os polos ORDEM x DESORDEM da

esfera social brasileira. Percebe-se, então que Gonçalves privilegia a teoria da

dramatização do carnaval brasileiro conforme reza DaMatta, em detrimento aos moldes

europeus, sendo que é por esse caminho - da dramatização da heterogeneidade, onde

se criam os espaços da inversão – pela qual será conduzida esta pesquisa na ânsia de

entendermos o porquê de o malandro ser uma figura tão arraigada ao imaginário

nacional.

80 GONÇALVES, Robson Pereira. Macunaíma: carnaval e malandragem. Santa Maria: Imprensa Universitária UFSM, 1982. p. 32.

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2.3 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária na Ditadura

Brasileira

O Brasil sofre um abrupto golpe quando a 31 de março de 1964 os militares

tomam o poder de forma truculenta e assumem o controle do Estado. Inicia-se assim

um longo período ditatorial no país, o qual acaba se prolongando por muito mais tempo

do que os oposicionistas imaginam. Muitos apostavam que o Golpe fracassaria e

duraria pouco tempo, porém, o que ocorreu foi um longo regime, com significativo apoio

popular, que em seu momento mais violento chegou, inclusive, a suprimir o estado de

direito gerando uma grande e brutal repressão contra seus oponentes. Para Renato

Franco,81 entretanto, os problemas gerados no Brasil da época “não tiveram origem

apenas nas turbulências da vida política desses anos, mas também nos vagalhões do

processo de modernização imposto autoritariamente à sociedade brasileira”. Nesse

sentido, é prudente a lembrança de que há pouco mais de 40 anos o mundo viveu o

ano de 1968. Um tempo que ficou conhecido como o momento das grandes e

profundas transformações, devido aos acontecimentos que nele se deram. Atribui-se ao

ano de 68 o uso da minissaia, a livre experimentação de drogas, o sexo sem culpa, a

pílula anticoncepcional, a revitalização do movimento feminista, a defesa dos direitos

homossexuais, os protestos contra a Guerra do Vietnã, o assassinato de Martin Luther

King, a revolta dos estudantes em Paris, dentre outros acontecimentos.

No Brasil, especificamente, houve a radicalização da luta estudantil e, então, o

recrudescimento da ditadura por meio do Ato Institucional nº 5, conhecido como AI-5.

Na época, a principal transformação na área cultural foi o Tropicalismo – um movimento

liderado por Caetano Veloso, Nara Leão, Gilberto Gil e outros artistas. Eles propunham

mudanças radicais como a incorporação da guitarra elétrica e a mistura de gêneros

(boleros e músicas de raiz, por exemplo). Os tropicalistas eram artistas que

81FRANCO, Renato. O Romance de Resistência nos Anos 70. Disponível em http://lasa.international. pitt.edu/ LASA98/ FRANCO.PDF acessado em 28/05/2008.

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dispensaram os cuidados antiestrangeiros cultuados pelos artistas nacional-populares

misturando tudo em um mesmo caldeirão para usarem esses elementos em suas

canções. Conseguiram, com isso, misturar – e contrastar – o passado e o presente, o

arcaico e o moderno, o nacional e o estrangeiro, tudo mantido junto em tensão

irresolvida. Assim, ser brasileiro não seria rejeitar a guitarra elétrica ou deixar de lado

antigos sambas de roda, e sim misturar todos esses elementos, pois tudo era matéria

nacional, tudo era identidade em um país enorme, confuso e magnífico. 82

“Tropicália” é uma conhecida canção de Caetano Veloso, cuja letra, inicialmente,

parece incompreensível. O enigma era um recurso bastante utilizado pelos tropicalistas

numa tentativa de que seu público decifrasse a canção. O objetivo da obscuridade

esteve presente no Tropicalismo desde o que se pode chamar de seu primeiro

manifesto: o disco denominado Tropicália ou panis et circensis, lançado em agosto de

1968, trazia letra, música, capa e texto na contracapa como um signo complexo, por

onde passam as principais idéias do grupo. A ironia está presente no título do disco

quando aparece um slogan em latim – panis et circensis – sendo que a palavra

circensis não existe nessa língua. Por trás disso, porém, há uma questão a ser

decifrada: será função da arte, desviar o povo dos seus problemas reais, como no

tempo do pão e circo romano? Esse é o grande questionamento do grupo de

tropicalistas.83

Enfim, o Tropicalismo é uma manifestação cultural que só foi possível acontecer

porque se vivia em uma época em que se experimentava de tudo e, por isso, em suas

canções aparecem temas como a associação entre a miséria, o clima de missa e a

referência à solução política violenta; o contraste entre a realidade urbana e consumista

e a vida suburbana e monótona; a relação entre o passado colonial e os desejos

políticos e afetivos sufocados pela ditadura. O Tropicalismo pregava, então, uma

estética inclusiva, de convivência de opostos, mas também queria denunciar o

policiamento político da criação. Para Affonso Romano de Sant’Anna84 a moda e as

artes dos anos 60 instauravam uma forma de “carnavalização” quando apresentavam

atos de contracultura e contra-estilo. Segundo o autor, houve, nessa época, uma

82 FISCHER, Luis Augusto. Literatura Brasileira: modos de usar. Porto Alegre: L&PM, 2007. p. 89. 83 PAIANO, Enor. Tropicalismo: bananas ao vento no coração do Brasil. São Paulo: Scipione, 1996. 84 SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, Paráfrase & Cia. São Paulo: Editora Ática, 1985.

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inversão de papéis, um deslocamento de significados: passou-se a comprar/vender

roupas usadas e velhas, dessacralizou-se o corpo e também sua postura, as pessoas

tornaram-se desleixadas fisicamente optando por barbas e cabelos longos. Estourou,

então, o movimento hippie, o qual foi eminentemente um movimento de carnavalização,

na medida em que procedeu a uma inversão do cotidiano, fazendo a superposição do

sacro e do profano, do velho e do novo.

De 1970 em diante, o Brasil configura-se como uma nação capitalista e moderna,

mesmo que repleta de desigualdades sociais. O milagre econômico provoca um

espetacular crescimento das cidades, atraindo milhões de trabalhadores rurais à vida

urbana. A sociedade patriarcal/agrária predominante no Brasil dá lugar a novos

comportamentos e novas expectativas, todas relacionadas a princípios urbanos e

capitalistas. Isso tudo, somado às transformações culturais iniciadas no ano de 1968,

acaba provocando modificações no paradigma dos valores humanos. A partir de então

o individualismo, a busca da felicidade pessoal a qualquer custo (tanto nos aspectos

emocionais como sexuais), o culto ao dinheiro e o consumismo passam a ser os pilares

da sociedade brasileira. Com tantas transformações, o mundo se desorganiza, as

pessoas ficam desorientadas, não conseguem entender a si mesmas e tampouco

reorganizar e entender esse mundo à sua volta.

Nesse novo contexto, com tamanhas e radicais transformações, a literatura do

país, influenciada diretamente pelo novo cenário político e social conturbados, toma

novos rumos. O regime de violência da época e a censura imposta pelo regime militar

atuaram de modo significativo na produção da geração de escritores da década de 70.

A censura proibia a imprensa de noticiar os aspectos negativos do país, por isso, os

textos memorialistas e o romance-reportagem - também denominado por alguns de

reportagens ficcionalizadas por serem escritas por jornalistas que utilizavam as

possibilidades oferecidas pela ficção para driblar a censura da época - acabam sendo

alternativas de expressão literária. Dessa forma, o contexto da época possibilitava a

produção de livros de memórias - biográficos ou autobiográficos - de relatos e do

romance-reportagem.

A literatura da época apresentava-se como revolucionária já que denunciava as

opressões sociais, colaborando com a criação da “verdadeira identidade nacional”.

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Mas, tanto no texto memorialista como no texto reportagem, os fatos históricos eram

escolhidos para os relatos e, por serem “escolhidos”, obedeciam, portanto, a enfoques

pessoais. Ora, se o seu caráter era de uma literatura de denúncia, por que, então, não

sofria censuras? Talvez esse tipo de produção literária interessasse ao Estado pelo fato

de que o modelo artístico literário da época tinha a tendência para construir identidades,

reformar nacionalismos pouco críticos, além de omitir algumas divisões e fraturas

históricas da época. Sendo, portanto, uma produção calcada na realidade, de certa

forma, é possível desconfiar que o referido modelo literário ou a forma como os fatos da

época eram retratados pela literatura servisse ao Estado.

No entanto, por outro lado, há um grupo de escritores da década de 70 que,

impedidos de dizerem o que gostariam de expressar, passam a procurar uma nova

possibilidade estética e criam estruturas narrativas capazes de retratar o estado social

fragmentado e, ao mesmo tempo, atacar, mesmo que indiretamente, o regime imposto.

Surgem, então, as técnicas da alegoria e da fragmentação, as quais procuram refletir o

desespero social e ao mesmo tempo driblar a censura. Assim, no auge dos romances

de memórias, Sérgio Sant’Anna publica um romance de ruptura, criando uma obra de

Confissões.

2.3.1 Das memórias às confissões

O romance Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária,85 publicado em

1975, marca a estreia de Sérgio Sant’Anna como romancista. A narrativa se enquadra

como um romance de ruptura, pois não segue a linha memorialista da época. Ela reúne

os diferentes gêneros literários – narrativo, dramático, lírico - numa tentativa de afastar-

se dos paradigmas literários vigentes na época, sugerindo uma poética, supostamente

mais adequada ao novo contexto histórico. Sant’Anna produz um romance

85 SANT’ANNA, Sérgio. Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995. Todas as referências à obra foram retiradas da referida edição e a partir de então nos referiremos apenas ao título da mesma.

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completamente carnavalizado, aos moldes da teoria de Mikhail Bakhtin, cujo teor

estético, ao que parece, condiz com o contexto histórico de produção da referida obra.

Confissões de Ralfo constitui exatamente o avesso do romance de memórias,

pois em Confissões não há uma única voz narrando os acontecimentos e sim um jogo

de vozes, as quais formam a polifonia do texto. Ralfo, insatisfeito com seu presente e

descrente do futuro, se traveste de personagem, o qual se apresenta como escritor e

anuncia seu plano: narrar uma autobiografia imaginária, ou seja, narrar um destino que

ainda não aconteceu e que será por ele inventado para ser relatado. O romance de

Sérgio Sant’Anna apresenta-se com uma estrutura narrativa estranha aos padrões

estéticos da literatura brasileira da época, em concordância, portanto, com os

antagonismos sociais e com as questões políticas e econômicas do momento. A

narrativa fragmentada foi um meio encontrado pelo autor para dificultar a apreensão de

sentido do texto, para driblar a censura e também expressar, esteticamente, a

segmentação do contexto dilacerado social, cultural e politicamente.

A narrativa apresenta uma diversidade formal e temática e suas relações com o

contexto da época extrapolam os limites do cenário brasileiro, apresentando inclusive

um diálogo crítico com o momento sócio-histórico da década de 70. Assim, Confissões

de Ralfo é uma tentativa de discutir não só as questões reinantes no país, mas também

aquelas que estavam em evidência no mundo todo. Confissões de Ralfo não quer

apenas apresentar o outro lado da moeda, como o romance-reportagem ao mostrar a

sua ‘outra’ visão do Brasil. O livro é um romance de ficção e não encobre seu caráter

ficcional, o que fica evidente já no Prólogo:

Ralfo é este homem. Nasceu com a minha primeira morte, a morte de alguém cuja identidade não interessa. Porque em homem que recusou a si próprio e murchou, cedendo lugar a um personagem.

[...] Resumindo, digamos que este livro trata da vida real de um homem imaginário ou da vida imaginária de um homem real. 86

Enquanto o romance-reportagem incumbia-se de mostrar o retrato retocado do

Brasil, o romance de ruptura surge com o objetivo de se manter ligado a uma

referencialidade histórica utilizando, entretanto, outras formas estéticas. A pluralidade 86 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p.6.

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de vozes é um recurso narrativo, usado ao longo do texto e já no Prólogo o narrador

anuncia: “Antes de tudo quero divertir-me – ou mesmo emocionar-me – vivendo e

escrevendo este livro e tomando com ele diversas liberdades, como o de objetivar-me,

algumas vezes, na 3ª pessoa do singular ou através da fala de terceiros.”87 O leitor fica

avisado, então, da mobilidade das pessoas do discurso, mas também fica duvidoso em

relação à autoria autobiográfica da narrativa que pode ser tanto a voz de Ralfo, quanto

a de um personagem qualquer que interprete os papéis do narrador e do próprio Ralfo.

Nove livros subdivididos em trinta e duas partes, antecedidos por um Prólogo e

um Roteiro e finalizados com um Epílogo e uma Nota Final – esta assinada pelo autor

Sérgio Sant’Anna - formam Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária, na qual

Ralfo, um aspirante a escritor, apresenta sua trajetória em forma de autobiografia.

Depois do nascimento do personagem com a passagem “Ralfo é este homem. Nasceu

com a minha própria morte, a morte de alguém cuja identidade não interessa.”88, inicia a

trajetória do personagem-escritor “O primeiro passo é abandonar a cidade e qualquer

vínculo com a existência anterior. Mais do que isso: apagar todos os traços desse

passado”89. Em seguida, Ralfo-personagem-escritor relata suas experiências em

Eldorado - um campo de guerra – suas relações amorosas com as gêmeas Sofia e

Rosângela, com a prostituta de bordo e com Rute; sua internação em um hospício; seu

encontro com Alice e Pancho Sança, sua passagem pelo teatro, sendo que sua

trajetória termina com o julgamento da obra por ele escrita. Assim, a autobiografia

criada pelo escritor Ralfo é julgada pela Comissão Internacional de Literatura, a qual

condena o livro à destruição numa metáfora explícita às atitudes censoras à arte

ocorridas no contexto brasileiro dos anos 70.

Em Confissões de Ralfo, Sant’Anna utiliza-se de estratégias estéticas como a

paródia, o dialogismo, a ironia, a mistura de gêneros para promover a crítica social.

Lança mão também da narrativa fragmentada e, em conformidade com o mundo atual

que se encontra destroçado, Sant’Anna rompe com a lineariedade narrativa,

abandonando qualquer tentativa de concepção totalizante e lógica do mundo. As

Confissões constituem-se numa narrativa preocupada em mostrar a derrocada social

87 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p.6. 88 Ibidem, p.6. 89 Ibidem, p.3.

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através de Ralfo, um personagem desprovido de unidade psicológica, de memória e

identidade.

As diversas facetas do herói representam a multiplicidade de “eus” aos quais o

homem contemporâneo está submetido. A constituição do sujeito dessa época é muito

complexa e essa complexidade está representada no romance por meio da organização

da narrativa e através da criação de vários personagens para representar Ralfo. Os

conflitos vividos pelo personagem principal aparecem por meio das variações do ponto

de vista do narrador, mas se evidenciam principalmente no próprio discurso como se

pode verificar nos trechos a seguir:

Primeiramente, de que fantasiou-se o sr. Ralfo, pivô de todos os acontecimentos? Ora, o sr. Ralfo, num claro deboche, fantasiou-se nada menos que de “si mesmo”. Sim, exatamente isso: o sr. Ralfo compareceu vestido de si mesmo, encarnando sua própria pessoa. 90 E quanto a mim, finalmente, de novo só e como todos aqueles que, após várias tentativas, não conseguem encontrar sua identidade, só me restava procurar uma profissão em que não é preciso tê-la: o teatro.91

No começo de cada um dos nove pequenos livros constituintes da odisseia,

Ralfo encarna uma nova identidade, recriando-se em um novo contexto, com novas

possibilidades para a integração de seu caráter. Como ele nunca consegue atingir a

plenitude do ser, ao final de cada capítulo, aquele Ralfo some para ressurgir um outro

Ralfo, com outra identidade, pronto para novas aventuras no próximo capítulo. Embora

apresente uma diversidade de personalidades, o personagem Ralfo permanece ao

longo de toda a narrativa, ao passo que os demais personagens desfilam por ela,

aparecendo e desaparecendo a cada capítulo para dar vez e voz a outros personagens.

Traçar um perfil identitário de Ralfo como um sujeito uno, único, exclusivo, é

absolutamente impossível. Logo, sua identidade é não possuir uma identidade definida

e esse caráter antagônico de sua personalidade dialoga, paradoxalmente, com heróis

clássicos, os quais se mantinham coerentes e unos ao longo da narrativa. As diversas

máscaras usadas por Ralfo ao longo da narrativa podem ser compreendidas como mais

90 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p.21-22. 91 Ibidem, p.193.

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uma marca do homem contemporâneo, que vive em um tempo no qual questões

identitárias tornaram-se centrais. Devido às grandes mudanças sociais da época dos

anos 60, especialmente durante o ano de 1968, e dos acontecimentos políticos que

inauguram o período ditatorial brasileiro, as pessoas sofrem uma crise de identidade.

Na época, a dúvida e a incerteza eram sentimentos muito vivos na vida das

pessoas, devido à extraordinária transformação que experienciavam. Os movimentos

sociais emergidos nos anos 60 questionavam as lealdades políticas tradicionais

baseadas na classe social, dirigindo-se às identidades particulares de seus

sustentadores. A política de identidade era o que definia os movimentos sociais

(feministas, negros, homossexuais) marcados por uma preocupação profunda pela

identidade: o que ela significa, como ela é produzida e como ela é contestada.

Na década de 70, assistiu-se à substituição da sociedade patriarcal agrária por

novos comportamentos e novas expectativas, todos correspondendo a princípios

urbanos e capitalistas. O domínio do individualismo, a busca da felicidade pessoal

(emoções, sexo), o culto ao dinheiro e ao consumo constituíam a formação ética da

sociedade brasileira. E Ralfo, com suas várias facetas, é um personagem capaz de

representar o mundo frenético e instável da época. Janete Gaspar Machado92 considera

a fragmentação do texto como uma característica da ficção dos anos 70, cujo objetivo

era expressar esteticamente a segmentação do contexto, o qual se mostrava dilacerado

e com alto nível de degradação cultural e política. Em Confissões de Ralfo, a

fragmentação está presente por meio da segmentação entre os capítulos, da

fragmentação do discurso e, inclusive, da segmentação da personalidade de Ralfo, pois

as várias máscaras identitárias usadas por ele são uma mostra clara de como o sujeito

se vê em meio a um contexto bastante conturbado. Assim, os vários “eus” de Ralfo são

uma alusão à complexidade da constituição do sujeito, tão ambivalente quanto a própria

narrativa.

Os fatos não são apresentados de modo ordenado, com apenas um fio condutor,

e sim por meio de uma interação de ações, personagens, linguagens e universos

diversificados. A multiplicidade de vozes que ecoam pela narrativa representa as

92 MACHADO, Janete A. Gaspar. Os romances brasileiros nos anos 70 – fragmentação social e estética. Florianópolis: Ed.da UFSC, 1981.

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diversas situações que dão origem e são matéria de ficção, ou seja, o contexto é a

referencialidade da obra. Quanto maior for o número de vozes, maiores as

possibilidades de discussão presentes no texto literário e, como Confissões de Ralfo é

uma obra que mantém a pluralidade de vozes, a narrativa, inevitavelmente, permitirá

várias possibilidades de recepção, transformando-se, por isso, em uma obra aberta.

O diálogo entre vozes discursivas será uma constante ao longo da narrativa e a

diversidade de gêneros também é uma marca fundamental em Confissões de Ralfo,

pois a obra é elaborada a partir de paródias dos procedimentos narrativos mais

comuns, satirizando estilos consagrados. Constituem-se paródias porque há um caráter

irônico na segunda voz – a do parodiante – em relação à primeira voz – a do parodiado.

Ao utilizar os três gêneros, o autor zomba da voz séria – os gêneros textuais – e afirma-

se uma alegria com a outra voz – a imitação jocosa de tais gêneros. Além do objetivo

de ironia, a junção de gêneros é uma estratégia carnavalizada utilizada com o intuito de

que o romance assuma o mundo polifônico – um mundo que apresente várias e

diferentes vozes - e a partir daí permita aparecer mais de uma verdade.

Sabe-se que a paródia é um discurso dialógico porque este se biparte ficando de

um lado o discurso sério e solene, e de outro, o jocoso, o ridículo. Entre esses dois

extremos, o discurso encena o espetáculo da vida e o espetáculo da sua própria

constituição. E, no momento em que inclui “a voz do outro” (a subversão, a falta de

sentido, etc.), o dialogismo se torna profundamente polifônico. Assim, o discurso

dialógico pode mostrar a polifonia de uma conversação entre o “eu” do destinador e o

“eu” de um de seus personagens, manifestada ora no registro formal, sério, ora no

registro informal, jocoso. Em resumo, o romance polifônico são todos os “eus”

embaralhados e a polifonia é um excelente recurso para expressar os impasses do

contexto sócio-político dos anos de repressão.

A última parte dos nove livros que constituem a aventura de Ralfo intitula-se

Literatura e nela será narrada uma espécie de julgamento da obra autobiográfica escrita

pelo personagem-escritor Ralfo, que a apresenta num tribunal às autoridades da

literatura, as quais determinarão a glória ou a desgraça do escritor. Assim como os

demais, esse capítulo também é uma sátira, e desta vez, o objeto satirizado é a própria

literatura e os recursos utilizados por esta forma de arte. O Livro IX encerra-se com

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Ralfo jogando para o alto as folhas de seus originais escritos, os quais ao se

espalharem ao chão, misturam-se e possibilitam uma nova versão para a obra,

confirmando, dessa forma, que a mesma é desconexa e não necessita de uma ordem

predeterminada. Ralfo por fim tem sua obra rasgada em pedacinhos e, com tal atitude,

despersonaliza-se por completo. A narrativa se encerra com o Epílogo, onde o

personagem-escritor se encarrega de sua própria destruição, mas não sem antes lançar

mais uma de suas ambiguidades, provocando interrogações no leitor, como se vê no

trecho a seguir:

Que nós vamos retirar da máquina [...] páginas onde já estará escrito o que agora estamos escrevendo: que nós vamos chegar mais uma vez à janela e medir o espaço que nos separa do solo. Que, depois, o corpo de Ralfo – carregando também, felizmente, sua alma – se despregará de mim, seu criador, até agora indivisível. E que logo esse corpo passará ao peitoril da janela.93

Praticamente ao final da narrativa, surgem para o leitor novas interrogações:

Sant’Anna é o próprio Ralfo? Ou é o narrador quem está falando que Ralfo se

desapegará dele, seu criador? Quem é o criador e quem é a criatura? Os

questionamentos ficarão ecoando ainda mais depois da Nota Final assinada por Sérgio

Sant’Anna, na qual lemos:

Entre as várias incoerências deste livro está a de ser guardado ou publicado, uma vez que todas as suas cópias foram supostamente destruídas, no capítulo em que se deu o nome de “Literatura”[...] A Ralfo não restava outra alternativa senão desaparecer, o que ele cumpriu fielmente. Quanto ao autor alguém poderia argumentar que deveria seguir o mesmo caminho. [...] O fato é que, ao autor faltou evidentemente coragem para destruir qualquer coisa que fosse, depois do trabalho que lhe deu escrever o livro. E o que resta é a possibilidade consoladora de que o façam todos os leitores e críticos, se algum dia os houver. Destruírem este livro apoiados, inclusive, na tranqüila convicção de que Ralfo aprovaria com grande entusiasmo tal gesto. 94

Portanto, ao repassar aos leitores e aos críticos a responsabilidade da decisão

de destruir ou não o livro, assim como de decidir quem escreveu os nove capítulos –

Sant’Anna ou Ralfo – e decidir quem é Ralfo – escritor, personagem, narrador, escritor-

93 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p.247. 94 Ibidem, p.251.

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narrador, escritor-personagem, o próprio Sant’Anna ou ainda a soma de todos esses

elementos – o escritor Sérgio Sant’Anna apresenta mais uma ironia sobre uma situação

concreta. Ele finaliza sua obra satirizando o fenômeno literário e suas implicações no

ato da escritura, não oferecendo ao leitor informações precisas sobre o narrador, o

personagem, o escritor, bem como sobre as relações entre eles. Sela-se, então, um

final dúbio e irônico - da mesma forma como a obra iniciou com um título ambíguo -

encerrando uma sequência de episódios incoerentes que procuram metaforizar o

contexto histórico e social da época.

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2.4 O ícone

“No campo das representações culturais voltadas às identitárias, o malandro

ocupa lugar preminente”, manifesta-se Heloisa Costa Milton falando sobre a figura que

foi incluída no Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas – DFMLA –

organizado por Zilá Bernd.95 O malandro é uma figura que incide sobre um campo

cultural de longo alcance. Velho conhecido em canções, obras literárias, danças e no

teatro e também objeto de estudo da sociologia, história, filosofia e antropologia, ele se

articula a partir de uma realidade social e imortaliza-se especialmente nas letras de

samba.

O estereótipo do malandro brasileiro surgiu na primeira metade do século XX.

Envolto, inicialmente, por certo romantismo, esse ícone surge como uma figura

essencialmente urbana – carioca mais precisamente – e habita os guetos. Veste uma

camisa regata listrada, usa chapéu panamá, calça sapatos nas cores branco e preta e

carrega no bolso do paletó uma navalha. O malandro não vê o trabalho como uma

forma confiável de ganhar a vida, escolhendo, portanto, outros caminhos para a sua

sobrevivência como os pequenos golpes. Ele é boêmio, apreciador de roda de samba,

é sensível, sentimental, galante e cavalheiro e configura-se como um bom amante.

O malandro é um ser deslocado por excelência e se instala nos espaços de

carnavalização dos valores comunitariamente aceitos. Avesso ao trabalho, ele é um tipo

individualizado que possui um modo próprio de falar, andar e vestir-se. Para Roberto

DaMatta, no mundo da malandragem, o que conta é a voz, o sentimento e a

improvisação. Nesse universo, quem inventa as regras é o coração, o sentimento. Para

o malandro, a palavra de ordem é a sobrevivência. Definir o malandro em seus vários

aspectos não é, na verdade, uma tarefa muito simples, pois ele se constitui em um

personagem múltiplo: não é um trabalhador bem comportado, mas também não é o

ladrão, o marginal; não pertence ao mundo da ordem, nem ao mundo da desordem; é

visto como um ser esperto, porém, se escorregar, pode cair na marginalidade.

95 MILTON, Heloisa Costa. O Malandro. In: BERND, Zilá. Dicionário de figuras e mitos literários das Américas DFMLA. Porto Alegre: Tomo Editorial Editora Universidade, 2007. p.395-401.

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Para entender a criação e a proliferação dessa figura, na sociedade brasileira, é

preciso conhecer sua trajetória, cuja história na formação cultural brasileira está ligada à

formação das cidades brasileiras, em especial, o Rio de Janeiro – primeiro grande

centro urbano. Com a vinda da família real para o Brasil, em 1808, a provinciana Rio de

Janeiro passa a ser sede da Coroa Portuguesa, tornando-se depois sede do Império,

originando novas formas de vida, novos hábitos, outros valores em virtude da

organização de uma nova sociedade. São criados na Corte os cafés, o teatro, o museu,

a biblioteca, a livraria, a imprensa e outras instituições, responsáveis por tirar a cidade

do ostracismo cultural, no qual vivia.

Com a implantação dos novos hábitos no Rio, atendendo às necessidades de

uma população formada, em grande parte, por indivíduos que fazem parte da nobreza

portuguesa e se instalam na cidade, acabam surgindo as diferenças sociais. A corte de

D. João VI conta com, basicamente, duas classes de indivíduos: os nobres e os não-

nobres. De outro lado, a sociedade carioca também agrega um contingente de

indivíduos sem reconhecimento social: os mulatos, negros libertos, brancos não nobres,

todos lutando pela sobrevivência em uma sociedade que valoriza a fortuna, a herança

nobre e as aparências. É nesse contexto que surge o malandro, figura brasileira que

talvez possamos entender melhor nas palavras de Heloísa Costa Milton:

Desse quadro, emerge a figura do malandro e a sistemática da malandragem como práxis alternativa à superação dos obstáculos, fundamentando-se na consciência de que o trabalho não é conduto eficiente para a promoção social. Deslocados das esferas de prestígio, os seres à margem da dinâmica social redesenham a cidade com seu deslocamento para áreas periféricas que comporão arremedos urbanos do universo burguês, tais como os subúrbios, os bairros afastados, os conglomerados coletivos que originaram, no caso do Rio de Janeiro e posteriormente no de outros centros urbanos, a vida no morro e na favela. 96

Percebe-se, a partir dessa explicação de Milton, o surgimento de novos

contornos para a cidade e novas tendências para a formação da brasilidade. As

camadas populares formadas pelos remanescentes da senzala, os caboclos e os

imigrantes europeus, alastram-se, confirmando um Brasil mestiço e plural. Esse

96 MILTON, Heloisa Costa. O Malandro. In: BERND, Zilá. Dicionário de figuras e mitos literários das Américas DFMLA. Porto Alegre: Tomo Editorial Editora Universidade, 2007. p. 397.

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contexto múltiplo e variado é terreno fértil para o desenvolvimento do malandro que, de

figura anônima, passa a representante cultural e, inclusive, apoio ideológico do Estado

Novo instituído por Vargas, a partir de 1935.

Na verdade, Vargas em seu governo populista conhecia a diversidade do Brasil,

mas tentava criar uma identidade brasileira única e rígida na tentativa de diminuir as

diferenças e, dentre outras ações, tentou disciplinar a figura do malandro. As

propagandas oficiais passaram a enaltecer o trabalho, projetando a imagem de um

malandro “bem-comportado” enaltecedor das instituições burguesas como a família, o

casamento, as vias de produção. É ainda a voz de Milton que conclui:

Apesar desse vetor, o malandro, como representação simbólica seguirá instalado no mundo da ordem/desordem condensando em si ambiguidade, humor, festa, além dos anseios populares de inversão das normas estabelecidas. Continuará protagonizando letras de samba e enredos de carnaval, cingindo-se plenamente aos modelos vivos presentes na realidade social, modelos que tanto não se ajustam aos padrões do trabalhador comum, quanto não se inserem no universo do banditismo. Vertente importante na literatura brasileira reflete, em sua poética e nas formulações críticas, tal tensão.97

Como se vê, o malandro é a condensação das díspares ideias, imagens,

costumes, comportamentos e ideologias remanescentes da tradição histórico-social e

cultural. Essa figura contribui para fortalecer a idéia do brasileiro como maleável, alegre,

com jogo de cintura e eficaz no uso do “jeitinho” na solução de impasses. No entanto, a

figura estereotipada do malandro se sobrepõe, de certa forma, a outros aspectos

inerentes à identidade nacional, ao mesmo tempo em que escamoteia os inúmeros

tipos de malandros que se encontram em permanente transformação, como ocorre,

inclusive, em relação aos diversos aspectos que envolvem o universo da malandragem.

Jeitinho e malandragem, apurou DaMatta, são formas de navegação social,

sendo que esta última se define como um conjunto de artimanhas utilizadas para se

obter vantagem em determinadas situações, as quais podem ser lícitas ou ilícitas. Para

o sucesso da malandragem é necessário carisma, destreza, lábia, sutileza ou quaisquer

outros recursos que possibilitem a manipulação de pessoas no sentido de obter destas

97 MILTON, Heloisa Costa. O Malandro. In: BERND, Zilá. Dicionário de figuras e mitos literários das Américas DFMLA. Porto Alegre: Tomo Editorial Editora Universidade, 2007. p. 397.

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o que se deseja. O malandro repele a argumentação lógica e a honestidade pois, para

ele, essas qualidades pessoais são incapazes de produzir resultados rápidos e

satisfatórios, logo, não servem ao malandro.

O malandro é um tipo social que caminha em busca da felicidade e tem ojeriza

ao trabalho. A sua ética consiste na lógica do prazer, sua regra é “levar vantagem em

tudo”. Para a malandragem ser bem-sucedida, o malandro deve obter vantagem sem

que sua ação se faça perceber e, por isso ele engana sua vítima – o popular otário –

sem que este perceba que foi enganado. Assim, a malandragem é uma prática

alternativa para a superação de todo e qualquer obstáculo e, tal como o jeitinho, é um

recurso de esperteza utilizado por indivíduos de pouca influência social ou socialmente

desfavorecidos, o que não impede – evidentemente – que o recurso seja utilizado por

indivíduos mais bem posicionados socialmente.

Para Heloisa Costa Milton98, no âmbito da ficção, a figura do malandro tem

origem no período colonial a partir da tradição folclórica ibérica - como é o caso de

Pedro Malasartes - e na tradição satírica, por meio do discurso literário, do teatro, da

imprensa, da propaganda e de outros sistemas. Contudo, acrescenta ela, “assinala-se

como marco original da estética da malandragem a obra Memórias de um sargento de

milícias (1854-1855), de Manuel Antônio de Almeida”. A autora, que eleva a figura do

malandro a mito, prossegue seu raciocínio: “Se Memórias é o primeiro romance da linha

da malandragem e Leonardo o primeiro malandro literário, conforme Candido (1970),

esse malandro será elevado à categoria de símbolo por Mário de Andrade em

Macunaíma, o herói sem nehum caráter (1928).”99

2.4.1 O malandro e o homem cordial

O malandro é um ser de fronteiras – sendo inclusive capaz de diluir essas

fronteiras - que vive sempre entre dois polos e usa nesse interstício a sua melhor

qualidade: o jeitinho. O malandro é aquele ser que se disfarça de bom moço para

realizar suas conquistas, as quais podem ser de ordem material ou sexual. Ele age por

98 MILTON, Heloisa Costa. O Malandro. In: BERND, Zilá. Dicionário de figuras e mitos literários das Américas DFMLA. Porto Alegre: Tomo Editorial Editora Universidade, 2007. p. 397-398. 99 Ibidem, p.398.

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seus próprios impulsos, de acordo com sua vontade própria, destituído de qualquer tipo

de moral ou pudor e, por isso, é espontâneo em seus atos. Essa espontaneidade,

inclusive, remete à ideia do “homem cordial” difundida por Sérgio Buarque de

Holanda100 na tentativa de explicitar as características do brasileiro.

Esse traço identificatório seria, segundo o autor de Raízes do Brasil, um modo de

ser do brasileiro, o qual usa exageradamente os afetos a fim de estabelecer intimidade

o que acarretará na mistura e, principalmente, na confusão entre o público e o privado.

Ao procurar nas marcas estruturais da formação histórica e social do Brasil o que define

e ao mesmo tempo impede o Brasil de ser uma verdadeira Nação, Sérgio Buarque de

Holanda, em 1936, acabou descobrindo a contribuição do brasileiro ao mundo: o

homem cordial. O ensaísta brasileiro esclarece que a lhaneza no trato, a hospitalidade,

a generosidade - virtudes pelas quais somos conhecidos como um povo amável - nada

teria de boas maneiras ou marcas de civilidade. Para Sérgio, essas virtudes seriam

antes de tudo “expressões legítimas de um fundo emotivo extremamante rico e

transbordante”.101

É certo que a expressão cunhada por Sérgio Buarque de Holanda causou

inúmeras interpretações, mas o que se quer destacar aqui é a herança deixada pelo

autor ao assinalar que o povo brasieliro é um povo distante de noções ritualistas da

vida, desencadeando uma forma ordinária de convívio social oposta à polidez. Por

polidez, o autor entende os vários disfarces usados pelos indivíduos a fim de preservar-

lhes intatas sua sensibilidade e suas emoções. A polidez detém-se na parte exterior do

indivíduo e pode servir de peça de resistência quando necessária, transformando-se em

organização de defesa ante a sociedade. De certa forma, a polidez constitui-se pelo

oposto às atitudes do homem cordial, porém, assim como o indivíduo polido lança mão

de máscaras sociais, também o homem cordial arma-se com suas máscaras que,

entretanto, não precisam ser legítimas para se manifestarem. Para o homem cordial, “a

vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente

em viver consigo mesmo”,102 já que a forma expansiva como se relaciona com os outros

100 HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 101 Ibidem, p.147. 102 HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.147.

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o reduz cada vez mais à parcela social periférica que, para o brasileiro, tende a ser a

que mais importa.

A generosidade e as gentilezas do homem cordial não significam civilidade ou

bondade, mas sim o predomínio dos comportamentos de aparência afetiva. Assim, o

significado de homem cordial é determinado pelas emoções, pela subjetividade e pelo

coração (cordis). Para Francisco de Oliveira,103 o homem cordial é o homem

aventureiro, cujo espírito vai criar uma sociabilidade, uma regra de conduta, uma moeda

de troca, que é a regra da cordialidade. Nesse sentido, Oliveira acrescenta “Uma

sociabilidade antecipada por Machado de Assis, aquela da sociedade do favor que é,

na verdade, a sociedade do homem cordial onde o favor é a moeda de troca das

relações sociais.” Se, para Oliveira, a sociedade do favor fora antecipada por Machado

de Assis no século XIX, pode-se afirmar que realmente esse modelo de sociedade

atravessou os tempos, pois persiste ainda nos dias de hoje, mesmo em um Brasil

moderno, industrializado e globalizado. E, se para Oliveira, a sociedade do favor era a

sociedade do homem cordial entende-se, então, que o homem cordial conquistou seu

espaço no Brasil do século XIX, persistiu ao longo dos tempos e adentrou o século XXI,

instaurando a ética da cordialidade, cujo teor seria a ética do favor, das trocas, das

conciliações, das negociações, enfim, das relações sociais que podem, por um lado, ser

amáveis e gentis, mas podem, perigosamente, transformar-se pura e simplesmente no

uso da malandragem.

Dessa forma, como já foi dito, a intenção deste estudo é analisar a manifestação

e a permanência de um ícone na literatura brasileira: o malandro, verificando as

características constituintes dessa figura em um corpus constituído por três narrativas

da literatura nacional, publicadas em contextos históricos e sociais diferentes. Passa-se,

então, a investigar Leonardo, Macunaíma e Ralfo como personagens malandros,

tentando verificar que traços os unem e os definem como malandros, em que medida o

universo carnavalesco e a literatura carnavalizada se relacionam com o romance

malandro e quais as características necessárias a uma narrativa para que seja

enquadrada na linhagem do romance malandro.

103 RAMOS, Alba Regina Neves. Homem Cordial. In: BERND, Zilá. Dicionário de figuras e mitos literários das Américas DFMLA. Porto Alegre: Tomo Editorial Editora Universidade, 2007. p. 318.

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3 O ROMANCE MALANDRO: DO IMPÉRIO À DITADURA

Homenagem ao Malandro

Eu fui fazer um samba em homenagem à nata da malandragem, que conheço de outros carnavais.

Eu fui à Lapa e perdi a viagem, que aquela tal malandragem não existe mais. Agora já não é normal, o que dá de malandro

regular profissional, malandro com o aparato de malandro oficial, malandro candidato a malandro federal, malandro com retrato na coluna social;

malandro com contrato, com gravata e capital, que nunca se dá mal.

Mas o malandro para valer, não espalha, aposentou a navalha, tem mulher e filho e tralha e tal.

Dizem as más línguas que ele até trabalha, Mora lá longe chacoalha, no trem da central

(Chico Buarque)

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3.1 O nascimento do primeiro malandro

Partido alto Diz que deu, diz que dá, e se Deus negar, ô nega

Eu vou me indignar e chega, Deus dará, deus dará Deus é um cara gozador, adora brincadeira

Pois prá me jogar no mundo, tinha o mundo inteiro Mas achou muito engraçado me botar cabreiro

Na barriga da miséria nasci batuqueiro Eu sou do Rio de Janeiro

Diz que Deus dará, diz que dá, não vou duvidar,ô nega E se Deus não dá, como é que vai ficar, ô nega?

(Chico Buarque)

Em 1970, Antonio Candido publica o ensaio Dialética da Malandragem,104 cujo

teor consiste em consagrar o romance Memórias de um sargento de milícias como um

romance capaz de promover a representação arquetípica da sociedade brasileira

contemporânea à narrativa, por meio do personagem Leonardo encarnando a figura do

malandro. No ensaio, A. Candido compara o malandro ao pícaro espanhol, pois ambos

são espécies de um gênero mais amplo do aventureiro astucioso, comum a todos os

folclores. No entanto, o malandro, além de visar ao seu próprio bem-estar e

frequentemente lesar os outros na solução de seu problema assim como o pícaro, tem

a peculiaridade de usar a malandragem em virtude do amor pelo jogo-em-si. Nessa

visão, o malandro é malandro porque quer e gosta de ser malandro, ou seja, é uma

opção sua.

A. Candido apresenta a dialética da ordem e desordem como o princípio formal

das Memórias de um sargento de milícias, valorizando um setor da sociedade que nem

trabalha regularmente, nem acumula ou manda, que é a camada social intermediária.

Além disso, o crítico aponta que a Dialética da Malandragem está no centro de uma

104 CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo: USP, n.8, 1970. p.67-89.

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grande tradição literária brasileira que vem da Colônia e chega às obras-primas do

Modernismo Brasileiro. Isso provoca em Schwartz o questionamento sobre o porquê de

interpretar o Brasil através da relação, o porquê de analisar o país pela camada

intermediária, aquela que parece ser a menos essencial. Nesse sentido, A. Candido

entende que o caráter nacional das Memórias se refere “a um aspecto indescartável,

ainda que apenas complementar, da travação social do país em seu conjunto.”105 O fato

é que a linha da malandragem perdura ao longo do tempo persistindo às mudanças de

estilo, de moda, de regime, de contexto histórico e social, etc.

A. Candido classifica as Memórias como um romance representativo. Para o

crítico, a natureza popular da narrativa é um dos fatores da eficiência e durabilidade da

mesma, pois a imaginação do leitor reage a personagens e situações arquetípicas.

Segundo A. Candido,

há no livro um primeiro estrato universalizador, onde fermentam arquétipos válidos para a imaginação de um amplo ciclo de cultura, que se compraz nos mesmos casos de tricksters ou nas mesmas situações nascidas do capricho da ‘sina’; e há um segundo estrato universalizador, de cunho mais restrito, onde se encontram representações da vida capazes de estimular a imaginação de um universo menor dentro deste ciclo, o brasileiro. 106

A partir desse segundo estrato, quando a impressão da realidade já não vem

essencialmente dos informes e dos trejeitos, dos dados de superfície, nos defrontamos

com uma visão mais ampla do destino social das personagens. Aquela ideia mais

impressionista de Mário de Andrade como o homem que se fazia pelos outros, será

apresentada agora por Antonio Candido com uma fundamentação sociológica. O crítico

organiza os polos da ordem e da desordem, transformando as relações humanas e a

direção do argumento do livro e criando a dialética da ordem e da desordem – o que

acabará por imprimir à narrativa seu caráter singular. Essa singularidade se constitui na

relação dos personagens pertencentes ao mundo da ordem com o mundo da

desordem, mostrando a tranquila relação ordem/desordem da sociedade brasileira da

primeira metade do século XIX.

105 CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo: USP, n.8, 1970. p.67-89. 106 Ibidem.

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Para ilustrar sua tese, Antonio Candido organiza as personagens das Memórias

nos polos por ele sugeridos, colocando Leonardo Filho – o personagem central – sua

mãe e seu pai no mesmo plano, reservando a eles o espaço central em linha horizontal.

Acima da posição ocupada pelos três, aloca os que vivem segundo as normas

estabelecidas pela sociedade, representado, no caso, pelo Major Vidigal. Logo abaixo

dos personagens centrais, o crítico situa os que vivem em oposição aos da linha

superior, ou seja, fora da ordem ou em conflito com a ordem. Esta sociedade poderia

ser representada com a seguinte fórmula:

POLO POSITIVO

MUNDO DA ORDEM

Major Vidigal

PAI - LEONARDO - MÃE

POLO NEGATIVO

Os que vivem fora da ordem

Segundo A. Candido, o hemisfério positivo da ORDEM é atraído como um imã

pelo polo negativo da DESORDEM, o que confere à narrativa uma dinâmica

semelhante a uma grande gangorra. Como exemplo dessa oscilação entre

ordem/desordem, o crítico cita as ações em torno das personagens. No que se refere a

Leonardo Pai, por exemplo, ora faz parte do mundo da ordem – ele é um oficial de

justiça – ora escorrega para o polo da desordem – é abandonado pela mulher, envolve-

se com a cigana, que o atrai para as feitiçarias proibidas, é preso pelo Major Vidigal,

contrata o desordeiro Chico-Juca para promover um sarilho na festa da cigana, expõe à

vergonha pitoresca um padre, o Mestre de Cerimônias, etc. Mais tarde, entretanto, ao

unir-se com Chiquinha, a filha da comadre, se reabilita e retorna ao mundo da ordem,

completando o ciclo oscilatório.

Da mesma forma, Leonardo Filho também oscila nessa gangorra.

Representando o lado positivo em torno de Leonardo, situam-se a Madrinha e o

Padrinho, em nível mais modesto; dona Maria e sua sobrinha Luizinha, em nível mais

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elevado. Todos estão do lado positivo - onde a polícia respeita - e preocupam-se em

conduzir o herói ao caminho da ordem. Leonardo, entretanto, seguidamente desliza

para o mundo da desordem: foge da casa do pai, amiga-se com Vidinha (uma mulata

sensual), engana Vidinha, desrespeita a função da milícia atraindo a ira de Vidigal, etc.

No entanto, sempre retorna ao mundo da ordem, ancorado por alguém que pode ser

tanto a comadre, como o compadre, Dona Maria ou Luizinha.

No plano da representação social, o que marca o romance é a percepção de

que, aparentemente, não há limites definidos para a dignidade, a ordem e a decência.

Vimos que um oficial de justiça pode virar arruaceiro e recuperar-se sem ser punido por

isso; um religioso transforma-se em mestre de intrigas; um mestre-de-cerimônias

transforma-se num pândego; um pai de família vira um contraventor. Até mesmo o

Major Vidigal, que parecia enraizado no polo da ordem, resvala para o outro polo

quando cede aos apelos de Maria Regalada, um ex-amor seu. Maria Regalada,

atendendo a um pedido de D. Maria, interfere junto a Vidigal a fim de libertar Leonardo

da prisão, quando em um momento da narrativa este é preso por conta de mais uma de

suas arruaças, e o Major acaba cedendo aos apelos da ex-amante.

É esta situação, em especial, que talvez mostre que ordem/desordem são

extremamente relativas e capazes de se comunicarem por caminhos variados. O Major

Vidigal é o representante do mundo da ordem na narrativa, ele é a força reguladora de

um mundo solto, ele é capaz de controlar todos os agentes da desordem. Entre outras

atitudes suas, prende Leonardo Pai na casa do caboclo e o Mestre de Cerimônias na

da cigana, ronda o baile de batizado de Leonardo Filho, persegue Teotônio, desmancha

o piquenique de Vidinha, atropela o Toma-Largura, persegue e prende Leonardo,

obrigando-o a sentar praça na tropa. Por ser o representante da ordem e todos

temerem o Major, é surpreendente que a comadre lembre exatamente de socorrer-se

junto a Vidigal para interceder na soltura do afilhado. Entretanto, a maior surpresa - e a

revelação de que entre os mundos da ordem e desordem há alguns atalhos - é a série

de mediações que sucedem para que a comadre alcance seu objetivo, considerando

que estas passam pelos polos da ordem e da desordem. É na voz de Antonio Candido

que veremos a sequência dos fatos:

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Modesta socialmente, enredeira e complacente, [a comadre] reforça-se procurando a próspera Dona Maria, que seria empenho forte para a representante da lei, sempre acessível aos proprietários bem situados. Mas dona Maria vira habilmente o leme para outra banda e recorre a uma senhora de costumes que haviam sido fáceis, como se dizia quando eles ainda eram difíceis. E é com a pura ordem de um lado, encarnada em Dona Maria, e de outro a desordem feita ordem aparente, encarnada em sua pitoresca xará Maria Regalada, que a Comadre parte para assaltar a cidadela ríspida, o Tutu Geral, o desmancha prazeres do Major.107

E acrescenta:

Vidigal é declarado ‘babão’ e se desmancha de gostos entre as saias das três velhotas. Como resistisse enfronhado na intransigência dos oficiais conscientes, Maria Regalada o chama de lado e lhe segreda qualquer coisa, com certeza alusiva a alguma relação apetitosa no passado, quem sabe com possibilidades de futuro.108

Dessa forma, Vidigal é provocado a afastar-se do mundo da ordem, o que o faz

ao soltar Leonardo, promovendo-lhe, inclusive, a sargento. Simultânea e

paradoxalmente, Leonardo retorna ao mundo da ordem. Ele se livra da prisão, é

promovido, casa-se com Luizinha - agora viúva - e recebe cinco heranças, o que lhe irá

conferir solidez no hemisfério positivo. Com essa passagem, fica explícita a livre

articulação entre os dois hemisférios, pois no momento em que Vidigal desce das

alturas para o polo inferior, sucumbindo à sedução da antiga amante, o representante

da ordem permite a fusão dos hemisférios e equipara-se aos malandros que antes

perseguia. Assim, de repente, o mundo hierarquizado vem abaixo, ocorrendo a

decadência da consciência ética, deixando à mostra que a chave para o mundo da

ordem e da desordem condena, mas também recupera o personagem e, às vezes, até

o promove.

Na opinião de Antonio Candido, o romance não realiza uma análise interior dos

personagens e a repressão moral na sociedade retratada pelas Memórias só ocorre

fora das consciências. É, portanto, um mundo onde não há remorsos e a eficácia de

107 CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo: USP, n.8, 1970. p.67-89. 108 Ibidem.

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cada gesto só é avaliada pelas vantagens que se obtém dele. O que prevaleceu no

romance foram as formas de sociabilidade, abrandando o choque entre a norma e a

conduta, o que podemos traduzir por “jeitinho”. O crítico diz ainda que ao excluir o

escravo da narrativa, Manuel Antônio excluiu quase totalmente o trabalho, assim como

ao suprimir as classes dirigentes, suprimiu os controles de mando. Restou uma

“sociedade na qual uns poucos livres trabalhavam e os outros flauteavam a deus-dará,

colhendo as sobras do parasitismo, dos expedientes, das munificiências, da sorte ou do

roubo miúdo”.109 Tem-se, então, uma sociedade fissurada que se traduz na dança dos

personagens entre lícito e ilícito, onde é impossível determinar se o personagem é bom

ou é mau, onde não se consegue definir o que é um e o que é o outro, até porque todos

ora estão no mundo da ordem, ora migram para o polo da desordem. De acordo com

Antonio Candido “todos acabam circulando de um para outro com uma naturalidade que

lembra o modo de formação das famílias, dos prestígios, das fortunas, das reputações

no Brasil urbano da primeira metade do século XIX”. E conclui “Romance

profundamente social, pois, não por ser documentário, mas por ser construído segundo

o ritmo geral da sociedade, vista através de um dos seus setores. E, sobretudo, porque

dissolve o que há de sociologicamente essencial nos meandros da construção

literária.”110

Portanto, Memórias de um Sargento de Milícias é uma narrativa que dialoga com

o seu tempo e que, mesmo apresentando apenas personagens simples e de

caracterização elementar, aprofunda uma visão das relações humanas na sociedade

brasileira dos primeiros anos do século XIX, revelando um nível de realidade que a

literatura até então não havia revelado no Brasil. Dotado de um princípio moral que

balanceia entre o bem e o mal, com um compensando o outro, surge uma ideia de

equivalência que numa sociedade caótica como a brasileira restabelece a posição

normal de cada personagem, pois à medida que os extremos se anulam, a moral dos

fatos é tão equilibrada quanto as relações dos homens.

Numa época em que, em termos de arte literária, o que se procurava era a

equiparação às velhas sociedades que serviam de modelo para a jovem sociedade

109 CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo: USP, n.8, 1970. p.67-89. 110 Ibidem.

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brasileira, em que havia uma necessidade de se igualar às sociedades já existentes,

em que se desejava criar a aparência e a ilusão de uma ordem regular que poderia

existir na sociedade de lá, porém não havia pelos lados de cá - e talvez por isso

constituísse em um ideal a ser perseguido - a publicação das Memórias é uma ruptura.

O romance rompe com o modelo literário da época, tornando-se um dos mais

excêntricos do século XIX, o primeiro da literatura brasileira a focalizar as camadas

populares com cenas reais em que a narrativa escapa da visão rósea do Romantismo.

Assim, com humor, linguagem próxima do linguajar oral, estilo descontraído,

Manuel Antônio de Almeida arquitetou o estilo malandro de ser, uma malandragem

alegre, versátil, inteligente, característica de certos tipos de brasileiros e que, segundo

Antonio Candido, dialeticamente oscila entre dois universos antagônicos: o da ordem (o

casamento, a religião, a polícia) e o da desordem (a vida desregrada, a corrupção da

Igreja, as algazarras populares). Enfim, Manuel Antônio desnuda, no século XIX, uma

sociedade que nunca encontrou efetivamente as formas da ordem e, por isso, as

formas espontâneas das relações da sociedade brasileira servem para abrandar os

choques entre a norma e a conduta, tornando menos dramáticos os conflitos de

consciência. Assim, ao mesmo tempo em que o Brasil é formado por uma sociedade

flexível, também é formado por uma sociedade incoerente, sempre em busca e, por

isso, eternamente insatisfeita.

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3.2 O enraizamento do malandro

Diz que deu, diz que dá, e se Deus negar, ô nega Eu vou me indignar e chega, Deus dará, Deus dará

Jesus cristo ainda me paga, um dia ainda me explica Como é que pôs no mundo essa pouca titica Vou correr o mundo afora, dar uma canjica

Que prá ver se alguém me embala ao ronco da cuíca E aquele abraço prá quem fica

Diz que Deus dará, diz que dá, não vou duvidar E se Deus não dá, como é que vai ficar, ô nega? Diz que deu, diz que dá, e se Deus negar, ô nega

Eu vou me indignar e chega, Deus dará, Deus dará Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio Pele e osso simplesmente, quase sem recheio

Mas se alguém me desafia e bota a mãe no meio Dou pernada a três por quatro e nem me despenteio

Que eu já tô de saco cheio Diz que Deus dará, diz que dá, não vou duvidar,ô nega

E se Deus não dá, como é que vai ficar, ô nega?

(Chico Buarque)

Em 1970, com Dialética da Malandragem A. Candido apresenta Leonardo como

o primeiro malandro da literatura brasileira. Porém, em 1941, Mário de Andrade ao

escrever uma introdução da edição de Memórias de um sargento de milícias para a

editora Martins, já apontava “tudo isso é tão de hoje que lembra a imagem de um Brasil

eterno...”111 Ao comentar sobre o personagem Leonardo, o criador de Macunaíma

assim se referia: “é admirável de estupidez longínqua, encolhida num corpão bonito e

num mutismo convencido. Não falará umas dez frases sequer, num livro farto de

dialogação, os outros é que falam por ele.”112 Mário repara também que Leonardo é um

autêntico rabo-de-saia por quem as mulheres de todas as idades se engraçam e “lhe

fornecem espontaneamente pão, guarida, amor, sacrifício...113

111 ANDRADE, Mário. Introdução. In: Memórias de um sargento de milícias. p. XXIV. 112 Ibidem, p. XXIV. 113 Ibidem, p. XXIV.

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Pensando no que diz Mário de Andrade sobre Leonardo e sobre as Memórias na

introdução que formulou à obra de Manuel Antônio, é possível que o Leonardo tenha

sido o personagem malandro responsável por antecipar a criação do Macunaíma.

Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, constitui-se, assim como as Memórias, em

um romance de ruptura: rompe com os modelos narrativos de tempo, espaço e

composição de personagem; rompe com os padrões linguísticos; rompe com a

linearidade narrativa. O personagem principal é Macunaíma - o herói sem nenhum

caráter - e a tradução de Makunaíma, na língua dos povos da Venezuela e da Guiana,

de onde veio a lenda original, é “o Grande Mau”. O personagem representa uma

variedade de personagens que espelha o pensamento primitivo no processo mágico de

construção, reconstrução e destruição que acompanha o personagem.

Noemi Jaffe114 reuniu em sua obra intitulada Macunaíma algumas tentativas de

definição do herói. “O heterogêneo, o indeciso, o descaracterizado” para Gilda de Mello

e Souza; “inocente e astuto, enfastiado e insaciável, esperto e crédulo, encantador e

grotesco, imprudente e confiante, mentiroso, covarde e preguiçoso”, de acordo com

Darcy Ribeiro. Alfredo Bosi diz que “alguma coisa de visceralmente infantil cria em torno

de Macunaíma um aura de espontaneidade polimorfa, que parece situá-lo em um

espaço aquém da consciência entendida como responsabilidade ou coesão moral” e

para Haroldo de Campos, Macunaíma é “o herói in progress, insubmisso a padrões

rígidos, insuscetível de ser legitimado”. Para Mário de Andrade – o seu criador –

Macunaíma é uma “sátira universal ao homem contemporâneo, principalmente do ponto

de vista desta sem-vontade itinerante, dessas noções criadas no momento de as

realizar, que sinto e vejo também no homem de agora”. Resumindo, Macunaíma é

indefinível, é um herói incaracterístico a quem Mário delegou a tarefa de metaforizar o

homem brasileiro.

Já com o nascimento do herói, Mário de Andrade satiriza um clássico da

literatura brasileira da fase romântica “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma,

herói da nossa gente.”115 é a frase inicial do livro, constituindo-se em uma paródia à

Iracema de José de Alencar. Ao contrário de Iracema, porém, o herói nasce preto

114 JAFFE, Noemi. Macunaíma. Folha Explica. São Paulo: PubliFolha, 2001. p. 12-13. 115 Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. p.13.

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retinto, feio e filho do meio da noite. Numa clara ironia à virgem dos lábios de mel, a

mãe de Macunaíma, uma índia tapanhumas, também é virgem. As primeiras palavras

pronunciadas pelo herói constituem-se na frase que perpassa toda a narrativa e se

estenderá ao longo da vida do herói: “Ai! que preguiça!...”. Desde cedo Macunaíma

demonstra sua tendência malandra como se vê na passagem “No outro dia esperou

com o olho esquerdo dormindo que a mãe principiasse o trabalho.”116

Macunaíma tem impulsos sexuais incontroláveis e desde menino ‘brinca’ com as

mulheres, inclusive com Sofará, mulher do irmão Jiguê. Ele não tem preocupações

morais, deixa-se levar pelo erotismo, pela magia e pelo fantasioso. O herói da nossa

gente não tem forma definida e está em constante transformação, sempre pronto a uma

nova aventura, a um novo recomeço. O herói é trapaceiro e isso fica evidenciado ao

longo da narrativa como, por exemplo, no capítulo Maioridade quando ele trapaceia os

irmãos fingindo saber onde tem timbó, apenas para enganá-los e não ter de dividir com

eles a comida. Macunaíma mente com frequência e seus oportunismos são

escancarados. Vive aproveitando as oportunidades que se lhe apresentam, enganando

para não ser enganado e está sempre propenso à aventura, ao lucro fácil e fabuloso e à

facilidade de vida.

Macunaíma não se acostuma ao trabalho e, ao chegar a São Paulo, em busca

da muiraquitã - pedra que é sua própria razão de viver - quase desiste porque precisa

trabalhar. É inteligente e, para se livrar do trabalho, converte o cacau em dinheiro e põe

o capital a render, jogando no bicho. O herói não conhece o espírito de vida

comunitária, nem o significado de fraternidade e não tem persistência em seus intentos.

Mesmo quando alcança algum objetivo que satisfaça sua vaidade, ele desiste,

inventando um pretexto qualquer para não seguir adiante. Macunaíma é um herói

individualista, pois faz o que gosta e o que quer, não tem preocupações sociais ou

políticas, é inconsequente e inconsciente dentro de seu egoísmo sincero e primitivo.

O herói é vaidoso e por isso necessita de espectadores. Em uma passagem, por

exemplo, quando sente vontade de chorar, observa se há público porque, se estiver

sozinho, não vale à pena. O herói da nossa gente mente com a maior naturalidade; trai

seus irmãos, tomando-lhes as mulheres; joga no bicho; sonha em encontrar uma

116 Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. p. 14.

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panela com dinheiro enterrada na mata; pratica safadezas intencionais ou gratuitas e

passa a maior parte de seu tempo deitado na rede fumando ‘fava de paricá’ para

espantar os mosquitos e ter sonhos alegres. Macunaíma é católico e espírita, mas nos

momentos aflitivos não dispensa o terreiro de macumba.

Dessa forma, Macunaíma revela-se como múltiplo: ora bom, ora mau, ora

ingênuo, ora mentiroso, ora contraditório e, por isso um herói indefinível. Recebe da

mulher Ci, a Mãe do Mato, um amuleto denominado de “muiraquitã”. Perde a pedra e

maior parte da narrativa se dá em torno da tentativa de recuperação da muiraquitã:

parte para São Paulo com os irmãos Maanape e Jiguê em busca do amuleto que se

encontra nas mãos de um mascate peruano – Venceslau Pietro Pietra - que é na

verdade o gigante Piaimã, comedor de gente. Macunaíma perde e recupera a pedra

inúmeras vezes, e a tentação ao sexo, à qual não sabe resistir, é um dos motivos que

faz o herói, algumas vezes, perder a muiraquitã. Em suas andanças, o herói desanima,

pois sem o amuleto, que na verdade é o seu próprio ideal, o motivo de todas as suas

aventuras, o herói reconhece a inutilidade de sua vida. Não queria transformar-se em

nada que servisse aos homens e, por isso, vai parar no campo vasto do céu, sem dar

calor nem vida. Macunaíma escolhe ser brilho inútil das estrelas no céu porque ele

mesmo se julga um inútil.

Macunaíma é amoral, mas não imoral e pertence à classe daqueles seres nem

culpados, nem inocentes, nem alegres, nem tristes, dotados de indiferença. Macunaíma

é um herói em formação, é uma síntese e um símbolo popular. É um esperto ingênuo

capaz de pequenas nobrezas e malvadezas e, por isso, o narrador, assim como o leitor,

nutre um estranho carinho por ele. Nesse sentido, vale a pena a reflexão em torno do

episódio da morte do filho de Macunaíma e Ci, a Mãe do Mato. O menino mama no

peito envenenado da mãe e morre. Ci, tomada pela tristeza, decide subir aos céus.

Ambas as mortes são sacrificiais, porque geram a vida. Do túmulo do filho, nasce a

planta do guaraná e Ci transforma-se em uma estrela que brilha no céu. Pela morte do

filho e sofrimento da mãe, nasce o bom e o belo, uma planta e uma estrela.

Macunaíma sofre muito com essas duas perdas e seu sentimento desperta no

leitor uma mistura de ternura e simpatia, pois mesmo que o herói trapaceie e traia – e

isso sempre ocorre de maneira acidental, ‘sem querer’, como justifica o personagem – o

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herói é bom. Seus gestos e ações são todos gratuitos, é o fazer pelo prazer de fazer e,

por isso, beiram mais o risível do que a condenação de Macunaíma, tanto por parte dos

personagens da narrativa como também da parte do leitor. Um leitor, aliás, que talvez

por já ter mentido, trapaceado ou se aventurado acabe por identificar-se com

Macunaíma coroando-o como o herói da nossa gente. Talvez se tenha aí uma

explicação de por que o malandro seja bem aceito e muitas vezes até idolatrado em

nossa sociedade.

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3.3 Um malandro no mundo carnavalizado

Diz que deu, diz que dá, e se Deus negar, ô nega

Eu vou me indignar e chega, Deus dará, Deus dará Deus me deu mão de veludo prá fazer carícia Deus me deu muita saudade e muita preguiça Deus me deu perna cumprida e muita malícia

Prá correr atrás da bola e fugir da polícia Um dia ainda sou notícia

Diz que Deus dará, diz que dá, não vou duvidar,ô nega E se Deus não dá, como é que vai ficar, ô nega? Diz que deu, diz que dá, e se Deus negar, ô nega

(Chico Buarque)

Se Leonardo é o gérmen do romance malandro, como quer Antonio Candido, dir-

se-ia que Macunaíma cria as raízes necessárias para a definitiva implantação do ícone

no imaginário brasileiro e, consequentemente, no romance nacional. Sendo assim, o

malandro é um personagem originado em uma sociedade de ordem escravista, mas

que tem atravessado séculos, demonstrando grande capacidade de adaptação a novos

contextos históricos e sociais no Brasil. Distantes mais de um século e meio da criação

do primeiro malandro da ficção brasileira e há 80 anos de criação do malandro mais

conhecido da literatura nacional, pode-se enumerar vários outros personagens

malandros surgidos da arte literária brasileira. No entanto, esta pesquisa terá como foco

a análise de três personagens malandros surgidos da arte literária brasileira: Leonardo,

Macunaíma e Ralfo, sendo este último criado por Sérgio Sant’Anna na época da

ditadura brasileira. Ralfo – personagem surgido mais de 120 anos depois do primeiro

malandro nacional – virá, então, provar que o ícone resiste ao tempo e sobrevive aos

mais variados contextos sócio-históricos brasileiros.

Para Antonio Candido, a eficiência e durabilidade com que Memórias de um

sargento de milícias penetra na imaginação do leitor e a resistência da obra ao longo do

tempo deve-se à sua natureza popular. Da mesma forma, Macunaíma, o herói sem

nenhum caráter, é uma narrativa tomada por grande parte da crítica como uma obra

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carnavalizada, portanto, cômica e popular, e que já faz parte do imaginário do povo

brasileiro. Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária, assim como as outras

duas obras, apresenta igualmente uma estrutura carnavalizada e o personagem central

é um malandro. Portanto, as três narrativas possuem pontos em comum: a estrutura

carnavalizada, a natureza popular e o personagem malandro.

A carnavalização da literatura é a vinculação do fenômeno do carnaval com a

arte literária e, em sua teoria da carnavalização, Bakhtin prevê que, durante o carnaval,

se vive um mundo às avessas onde se estabelece o livre contato familiar entre os

homens. O universo carnavalesco é constituído por grande quantidade de personagens

e por temas variados e, em uma sociedade que possui todos os ingredientes

necessários para o desenvolvimento do universo carnavalesco, não será, certamente,

mera coincidência o grande número de narrativas do romance malandro com o

desenvolvimento de dramas e personagens carnavalizados. As três narratovas sob

análise nesta pesquisa constituem-se como romances com elementos carnavalizantes,

seja pela paródia, pelo dialogismo, pela coroação bufa, pela polifonia.

Confissões de Ralfo, a partir dos elementos de sua poética, é um romance que

pode ser classificado dentro dos chamados gêneros sério-cômicos, nos quais para

Bakhtin, debilita-se a seriedade retórica unilateral, a univocidade, a racionalidade e o

dogmatismo para dar lugar a situações desviadas de sua ordem habitual, criando um

mundo invertido, um mundo às avessas. Tomemos como exemplo o trecho a seguir:

O primeiro passo é abandonar a cidade e qualquer vínculo com a existência anterior. Mais do que isso: apagar todos os traços desse passado. Compenetrar-me de que sou Ralfo, concebido do nada, com uma realidade física e mental de vinte e poucos anos de idade.117

No mundo do real, onde predominam a ordem e a hierarquia, é possível

abandonar a cidade. Por outro lado, como poderíamos entender o abandono dos

vínculos com a existência anterior? Seria a morte de Ralfo? E sua proposta seria morrer

e continuar vivendo após a morte? O personagem prossegue ainda sua apresentação

dizendo que também gostaria de apagar todos os traços desse passado. Então ele já

117 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p. 13.

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nem seria o que foi antes de morrer, seu passado também morreria, sumiria? Essas

idéias são impossíveis de acontecer no mundo da ordem, portanto, esse é o mundo às

avessas, é o mundo invertido proposto por Bakhtin quando fala em literatura

carnavalizada. Além disso, outro forte traço de carnavalização é quando o narrador-

personagem se apresenta como Ralfo - o novo homem que nasce. Nascer é ter

princípio ou origem, surgir de algo. Ralfo, entretanto, é concebido do nada. Para

completar o dado absurdo, ele é concebido do nada, mas surge com vinte e poucos

anos de idade. Comprovam-se, novamente, traços carnavalescos já que nosso herói

acaba de nascer e no mundo do real é impossível nascer com uma certa idade. Assim,

o nascimento é remetido para outro campo de significação.

Na visão de Bakhtin,118 o mundo carnavalesco tem relação direta com a cultura

popular e se origina da sátira menipeia, cujos objetivos eram o riso, o cômico, o

julgamento irônico e o grotesco popular. A paródia torna-se, assim, uma técnica

inseparável dos gêneros sério-cômicos e nela há uma bivocalidade – a voz do

parodiado e a do parodiante. Em Confissões de Ralfo, a paródia está explícita já em

seu título, pois a palavra autobiografia “é a vida de um indivíduo escrita por ele mesmo”,

de acordo com o dicionário. Se o livro se intitula autobiográfico há, portanto, uma

contradição no adjetivo imaginária que acompanha o substantivo no título. Sabemos

que o contexto histórico em que acontece a publicação da obra privilegiava o texto

memorialista e o romance-reportagem, formas estas mais próximas de autobiografias

ou de biografias. No título reside, portanto, a primeira negação ao paradigma da época

e constitui-se na primeira marca de carnavalização da obra. De qualquer sorte, essa

confusão adquirirá maiores dimensões ao abrirmos o livro e lermos o Prólogo, cujos

trechos merecem destaque para aprofundarmos a dúvida lançada pelo título:

E parto, agora, de corpo e alma, a escrever minha história. Mais do que isso: passo a viver intencionalmente uma história que mereça ser escrita, ainda que incongruente, imaginária e até mesmo fantasista . 119

Resumindo, digamos que este livro trata da vida real de um homem imaginário ou da vida imaginária de um homem real. 120

118 BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. 119 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p. 5

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Confissões de Ralfo é dividido em Prólogo, Roteiro, nove pequenos livros (que

se subdividem em trinta e duas unidades ou episódios), Epílogo e Nota Final. Em toda a

narrativa, aparecem paródias dos procedimentos narrativos mais comuns e satirizam

estilos consagrados como o tradicional rompimento do herói com seu mundo em busca

do desconhecido, a narrativa épica para registro em livros histórico-didáticos, o roteiro

turístico, o diário de louco, o relatório médico, o diário de bordo, o interrogatório policial,

a encenação teatral, a descrição de um julgamento, etc. Constituem-se paródias porque

há um caráter irônico na segunda voz – a do parodiante – em relação à primeira voz – a

do parodiado. Assim, zomba-se da voz séria – os gêneros textuais – e afirma-se uma

alegria com a outra voz – a imitação jocosa de tais gêneros.

Além do objetivo de ironia, essa junção de textos de gêneros variados é uma

estratégia carnavalizada utilizada com o intuito de que o romance assuma o mundo

polifônico – um mundo que apresente várias e diferentes vozes - e, a partir daí, permita-

se a presença de mais de uma verdade. O dialogismo é um dos pontos centrais de uma

narrativa carnavalesca e, em Confissões de Ralfo,o espaço para as várias vozes se dá

por meio da diversidade de personagens apresentados os quais desfilam pela narrativa

com características próprias, bem definidas, diferentes uns dos outros. Essa gama de

personagens aparece e desaparece a cada capítulo da obra depois de cumprir sua

tarefa na construção da autobiografia de Ralfo, possibilitando assim que o tom

polifônico fique evidente, por meio da presença das múltiplas vozes e dos universos

variados e independentes.

A literatura carnavalizada vem, inclusive, ao encontro das ideias estéticas da

literatura que aflorava nos anos 70, quando se procurava retratar de forma direta os

dramas das camadas subalternas – a prostituta, o operário, o excluído – sem muitas

preocupações com a linguagem. Na segunda unidade do primeiro capítulo de

Confissões de Ralfo, o personagem central relata sua experiência com Sofia e

Rosângela – as duas gêmeas irmãs gordas – com quem morou por um tempo em São

Paulo, e a quem atendia sexualmente. Observemos os seguintes trechos:

120 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p. 6.

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Sofia e Rosângela, as duas irmãs gordas. Nos dias em que me dedico a uma delas, a outra se retira discretamente a seu quarto, quando não sai melancolicamente de casa para um teatro mofado ou estúdio de televisão. E muitas vezes desconfio de olhares curiosos pelo buraco da fechadura. Que pouco me incomodam. 121

E amanhã será o dia de Sofia. E depois de amanhã novamente Rosângela. E depois Sofia e depois Rosângela e assim por diante. E se o todo é mais do que a soma de partes, não possuo duas mulheres, mas uma só e gigantesca, como um réptil de mil braços e mil gemidos e um milhão de desejos implacáveis. E cheguei a pensar na sugestão de abandonarmos o revezamento, entregando-nos sem inibições a esse triângulo que temos vivido tão hipocritamente.122

Por toda a barrativa encontra-se a presença das quatro categorias que

caracterizam o universo carnavalesco, teorizadas por Bakhtin: - a revogação de todas

as formas de desigualdade entre os homens e eles entram em livre contato familiar; - a

excentricidade; - as mésalliances carnavalescas através da aproximação do sagrado

com o profano, o sério com o cômico, o sublime com o grotesco, o elevado com o baixo,

o grande com o insignificante, o sábio com o tolo; - e a profanação que é formada pelas

indecências carnavalescas com a valorização da paródia.

Tomando por base os trechos anteriormente selecionados, vê-se que a

familiaridade é estabelecida pela suspensão das normas vigentes que regem o

comportamento humano na sociedade, quando se expõe de forma tão natural o

triângulo amoroso formado no texto em oposição às condições pré-estabelecidas para

um adequado comportamento social. Além disso, a excentricidade se manifesta no

momento em que repressão e censura foram afastadas. Comprova-se isso nos trechos

acima, quando se percebe o pacto estabelecido entre os três personagens: nos dias

que Ralfo dedica-se à Sofia, Rosângela sai e quando é dia de Rosângela, Sofia

desaparece. Outro fator excêntrico é apontado pelo próprio Ralfo, ao relatar sua

desconfiança de que quando se dedica a uma gêmea, a outra estaria espiando pelo

buraco da fechadura. Fato que, segundo ele, pouco lhe incomoda.

As mésalliances ocorrem quando o sagrado (relacionamento monogâmico)

aproxima-se do profano (o triângulo amoroso); o sério aproxima-se do cômico (quando

Ralfo dedica-se a uma, a outra se retira); o sublime aproxima-se do grotesco (Ralfo 121 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p.21-22. 122 Ibidem, p.22.

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descreve as gêmeas e suas manifestações em tom pejorativo). Por fim, a profanação

acontece pela eliminação de qualquer limite de tempo, de espaço, de amplitude

humana, pois tudo é levado a situações excepcionais. No caso de uma sociedade

monogâmica como a nossa, o fato de um triângulo amoroso ser apresentado com

tamanha naturalidade, quebrando regras morais e sociais pré-estabelecidas, causa

espanto e furor. Isso é mais uma das características da carnavalização, enquadrando-

se na categoria da profanação.

Em sua teoria da carnavalização, Bakhtin apresenta como a principal ação

carnavalesca a coroação bufa e o posterior destronamento do rei do carnaval. Esse

ritual acontece das mais variadas formas nos festejos carnavalescos e é nele que

reside a base da cosmovisão carnavalesca: a ênfase das mudanças e transformações,

da morte e da renovação. No caso de Confissões de Ralfo, podemos analisar a

coroação bufa na narrativa como um todo ou pode-se analisar, separadamente, os nove

livros que compõem a obra. Em uma análise separada dos nove livros observar-se-á a

ação carnavalesca de coroação-destronamento inúmeras vezes, sendo que Ralfo é

coroado toda vez que aparece em um novo contexto – a cada novo capítulo – e é

destronado ao final de cada um desses capítulos.

Por outro lado, ao verificarmos o romance em sua totalidade - prólogo, roteiro, os

nove livros, epílogo e nota final – assistiremos à coroação de Ralfo logo no início da

narrativa. A principal ação carnavalesca - a coroação - inicia no Prólogo quando ele é

nomeado para assumir o papel de um novo homem e segue no Livro I, denominado A

Partida, onde a narrativa começa em 1ª pessoa, contada pela voz do próprio Ralfo, o

qual se apresenta como “um ser concebido do nada” pronto para iniciar o novo desafio.

Diz o narrador-personagem:

Roupas novas, cabelos cortados, começar tudo desde o princípio. Nenhuma idéia precisa na cabeça, mas a certeza de que algo tem de acontecer. Porque sou Ralfo, o personagem, à procura de seus acontecimentos. 123

Aqui Ralfo se apresenta como o novo homem que sofreu pequenas mudanças:

roupas, cabelos, ideias (não as tem). Por conta dessas transformações, Ralfo se mostra

123Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p.13.

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livre para assumir os novos papéis. A ideia da carnavalização está presente pelo fato

de que depois da morte vem o renascimento e este homem – que surge como Ralfo –

renasce para a história que ele vai à procura, isto é, Ralfo se propõe a relatar uma

autobiografia que ainda não existe. Além do mais, para o relato autobiográfico, ele

assume o status de personagem, o que lhe dá a permissão para todo e qualquer tipo de

acontecimento. A partir da coroação de Ralfo cria-se a inversão da ordem, revelando a

alegre relativização das estruturas sociais do sistema e da hierarquização institucional.

Ralfo, coroado rei, parte então para o mundo às avessas, que por ser às avessas,

permite os mais extraordinários acontecimentos. Como já se constatou, Ralfo é um

personagem indescritível, uma vez que não possui uma imagem bem definida, aliás, a

dificuldade está no fato de ele ter várias imagens em função de encarnar diversos

traços em sua personalidade e participar de múltiplas aventuras e fantasias. Isso tudo

torna Ralfo um personagem extremamente carnavalizado sem uma imagem, um

caráter, um tipo ou temperamento bem definidos. Ralfo assume vários papéis e,

principalmente, adere a eles, numa clara demonstração que está disponível para tudo.

Ralfo, o homem sem pai e sem pátria. Cavaleiro andante de boas e péssimas intenções.124 Revolvendo os armários como um ladrão vulgar. Ralfo, o ladrão sem casaca, seria um bom título para as minhas memórias. Por isso é que juro, neste exato momento, nunca mais roubar.125 Eles varrem ainda máscaras, dores, sorrisos, lágrimas, gritos selvagens, gargalhadas, insultos, fantasias e, finalmente, varrem a mim, Ralfo, o Magnífico. Todo o fantástico lixo que se acumula depois dos espetáculos de teatro.126

Ralfo vai sendo apresentado aos poucos ao longo da narrativa e por meio de

suas peripécias, sendo que ao final da narrativa temos um Ralfo multifacetado com

muitas identidades. No jogo armado para encontrar e contar sua própria história, o

personagem assume papéis temporários, incorporando traços positivos e negativos e,

ao encarnar o homem sem nenhum caráter com múltiplas personalidades e extrema

mobilidade, Ralfo simboliza o tipo malandro.

124 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p.13. 125 Ibidem, p.25. 126 Ibidem, p.225.

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Ao analisarmos, separadamente, os nove livros que compõem o romance,

encontraremos um Ralfo assumindo novas identidades a cada capítulo: o ladrão, o

rufião, o conquistador, o louco, o hippie, o artista, mas sempre o escritor. O

personagem-escritor se apresenta como “Eu, Ralfo decadente de Ulisses”, numa alusão

ao famoso guerreiro, personagem de Homero, da epopéia grega em Tróia, conhecido

como Odisseu (na Grécia) ou Ulisses (em Roma). Em outro momento, designa-se como

“O mago” o que nos lembra personagens detentores de poderosas formas de magia.

Aparece também com a alcunha de o “Magnífico”, remetendo ao Solimão ou Salomão,

considerado o maior governante do Império Otomano e reconhecido como o Magnífico

por causa do esplendor da sua corte e das suas muitas vitórias militares na Europa.

Ralfo também se auto-define como “Conde”, - um título militar do Baixo Império

associado à autoridade militar e civil ou como eram conhecidos os senhores feudais - e

assim por diante.

A última parte dos nove livros que constituem a aventura de Ralfo intitula-se

Literatura e nela será narrada uma espécie de julgamento da obra autobiográfica escrita

pelo personagem-escritor Ralfo que a apresenta num tribunal às autoridades da

literatura, as quais determinarão a glória ou a desgraça do escritor. Assim como os

demais, esse capítulo também é uma sátira e, desta vez, o objeto satirizado é a

literatura e os recursos utilizados por essa forma de arte. O estilo artístico literário,

adotado por Ralfo em sua obra, visivelmente desaponta o Promotor e os Ministros (da

Língua, dos Lugares-Comuns, dos Monólogos Interiores, etc.) que realizam o

julgamento do escritor e sua obra sob a ótica da estrutura do romance tradicional.

Comprova-se a condenação de Ralfo e seu livro com os excertos abaixo:

O PROMOTOR: Mas num ponto sejamos justos: o autor-personagem sempre se manteve fiel ao propósito de divertir-se à custa de todos, extremando ao ridículo situações, personagens e até a si mesmo, além, é claro, daquela senhora a quem juramos devotar nossas vidas: Madame la Littérature. 127

O PROMOTOR: Ao livro sugiro que se dê o destino que merece: seja rasgado em pedacinhos e atirado ao lixo. 128

127 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p.237. 128 Ibidem, p.239.

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O Livro IX - Literatura - é um capítulo extremamente carnavalizado satirizando a

criação artística literária e encerra-se com Ralfo jogando para o alto as folhas de seus

originais escritos, os quais, ao se misturarem, possibilitam uma nova versão para a

narrativa, confirmando, dessa forma, que a mesma é desconexa e não necessita de

uma ordem predeterminada. Ao jogar seus originais para o alto, Ralfo sai correndo e

provoca grande tumulto entre o povo que assistia à condenação do livro, como se

observa nos trechos que seguem:

tirei do bolso uma flautinha e pus-me a tocá-la. Eu tocava uma canção doce, deixando um rastro de fonemas, acentos, vírgulas, frases inteiras que se contorciam no ar como minhocas. [...] E o povo brincava com a corda mágica, agarrando-se a hífens, engolindo vogais, tropeçando em consoantes. O povo brincava como num circo, cantarolando as canções formadas casualmente pelas palavras em liberdade [...] assaltava, agora, a mesa enorme dos ministros, pegando as pastas de originais, arrancando folhas ao acaso, rasgando-as, jogando-as para o alto, fazendo delas aviõezinhos. 129

A partir dos aviõezinhos construídos com as páginas do livro de Ralfo e jogados

pelo povo ocorre uma mistura entre os capítulos da autobiografia:

De modo que não havia mais várias cópias de um livro, mas centenas, milhares de livros, conforme os fragmentos que se uniam acidentalmente para formar às vezes, um nexo inesperado, como um interrogatório policial entremeando-se com um exame de literatura. Ou duas gêmeas gordas numa guerra de Eldorado. Ou uma gigantesca cidade que se transforma num imenso hospício. Ou ainda, ao contrário, um hospício que cresce tão espantosamente que se torna uma cidade, com casas, ruas, cinemas, monumentos e até uma administração pública integralmente formada por loucos. E muitas coisas mais.130

A desordem permanece até o cumprimento da sentença final:

E finalmente havia eu, Ralfo, subitamente livre, não mais impelido a cumprir ritos, discursos e representações; cada vez mais livre à medida que me rasgavam em pedacinhos junto com meu livro. Eu, Ralfo, de repente esquecido de todos e me esgueirando para fora do recinto, não sem antes observar os ministros que se transformavam em morcegos e também escapuliam do salão – esvoaçando, cegos, a esbarrarem nas colunas e paredes e a emitirem horríveis guinchos desprovidos de significado. 131

129 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p.241. 130 Ibidem, p.241. 131 Ibidem, p.242.

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Ralfo, enfim, com tal atitude, despersonaliza-se por completo, pois desta vez

fora rasgado em pedacinhos junto com seu livro. De acordo com Bakhtin, o rito de

destronamento é como se encerrasse a coroação, da qual é inseparável, pois trata-se

de um ritual biunívoco. O momento de destronamento se opõe ao rito de coroação, o

destronado é despojado de todos os símbolos de poder e ridicularizado. É nesse ritual

que se manifesta a ênfase carnavalesca nas mudanças e renovações, a imagem da

morte criadora. Ao ser coroado, o rei é elevado e em seu destronamento acontece a

queda. Nessa elevação e queda revela-se a festa em seu caráter destruidor e

regenerador, de morte e de renascimento. Há de se chamar a atenção para o fato de

que o entronizado como rei é o bufão e que os símbolos de poder desse rei são a

negação da seriedade e a afirmação da relatividade. Esse é o mundo ao inverso,

demonstrando que o carnaval é a festa da mudança, do processo em que a vida

contém a morte e vice-versa. O carnaval visto dessa forma é, então, a passagem.

Na narrativa de Sant’Anna, já no Prólogo, Ralfo é nomeado para ser um outro

homem, tornar-se personagem e escrever sua autobiografia. Esse é o momento de sua

coroação e já aí pode-se prever o seu futuro destronamento, o que vem a acontecer no

Epílogo, quando Ralfo desaparece por não lhe restar outra alternativa. No momento da

destronização do personagem, ocorre a mudança, a morte que confere um significado

de denúncia social e que demonstra a criação de um mundo paralelo ao mundo oficial e

real. Confissões de Ralfo é então um romance construído sobre os alicerces da

estrutura carnavalizante teorizada por Bakthin.

Por outro lado, ao longo na narrativa são notáveis os traços malandros de Ralfo:

na maneira como o personagem se apresenta “Roupas novas, cabelos cortados,

carregando uma mala com meus poucos pertences e uma vaga noção de para onde

ir”132; no modo de se portar: “E saio de braços dados com as duas. Como duas mamães

que eu tivesse. Ralfo, filhinho mimado, trajes esporte rigorosamente na moda, um leve

toque de displicências”133; e no modo de se vestir: “Cabelo um pouco mais crescido,

132 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p.13. 133 Ibidem, p.24.

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mala na mão, roupas novas e elegantes dinheiro no bolso, uma vaga noção de para

onde ir.[...].”134

Além disso, outro aspecto da malandragem presente na narrativa é o fato do

herói encontrar-se em constante e incessante busca por algo, desencadeando um

espírito do tipo inquieto e aventureiro “Ralfo, o homem sem pai e sem pátria. Cavaleiro

andante de boas e péssimas intenções. [...] Porque sou Ralfo, o personagem, à procura

de seus acontecimentos.”135; “Andando sempre em frente, sem memórias e passados,

um homem que se renova a cada instante.”136; “Meu caminho é sempre em frente, sou

um homem que viaja pelo tempo e pelo espaço.”137 Essa busca não cessa nunca, nem

mesmo quando o herói já apresenta alguns sinais de decadência: “Cabelos ao vento,

caspas voando nas correntes de ar, cicatrizes. Um coração sangrando, mas

determinado. Atravessando a ponte imensa que liga, sobre a foz de um rio, dois países,

duas cidades.”138

Ralfo é um tipo malandro porque comete o delito e em seguida tenta se

desculpar, justificando seu ato e tentando a complacência do leitor como se comprova

no episódio em que saqueia as irmãs gêmeas:

Mesmo com um certo remorso (juro), eu havia esperado pacientemente por essa oportunidade. Deixaram-se sozinho por uma longa tarde, como um pássaro sem gaiola. Imaginando que um pássaro, como Ralfo, pudesse apegar-se à prisão. Pássaros não são fiéis.

[...] Revolvendo os armários como um ladrão vulgar. Ralfo, o ladrão sem casaca, seria um bom título para minhas memórias. Por isso é que juro, neste momento, nunca mais roubar. Pagarei com suor e sangue a culpa dos meus crimes. Um pensamento que logo me devolve o amor-próprio e a tranquilidade. 139

O trecho acima é rico em informações a respeito de como Ralfo pensa e como

ele vê a si mesmo. Baseados no conceito de dialogismo de Bakhtin, é possível afirmar

que a expressão ‘certo remorso’ demonstra que Ralfo não sente um remorso

verdadeiro, apenas um pequeno remorso justificado pela palavra ‘certo’, o que não

134 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p.26. 135 Ibidem, p. 13. 136 Ibidem, p. 102. 137 Ibidem, p. 103. 138 Ibidem, p. 169. 139 Ibidem, p. 25.

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bastaria para desculpá-lo de seu ato delinquente. Quando coloca entre parênteses a

palavra ‘juro’, Ralfo assim o faz porque sabe que não está convencendo o outro de que

realmente sente remorso. Ralfo compara-se a um pássaro, cuja gaiola seria a casa das

irmãs gêmeas e cujo alimento, vestes e conforto a ele chegava pelas mãos das irmãs,

por meio do trabalho das duas. Ralfo, entretanto, avisa que é um pássaro do tipo que

não se apega à prisão, metáfora do tipo malandro, o qual não vive no espaço da Casa

(na teoria de DaMatta) ou ao lado da ordem (na teoria de A. Candido). Por isso Ralfo

precisa libertar-se e partir para um espaço mais adequado a ele – o espaço da Rua, o

espaço da desordem, o lugar onde as coisas acontecem, onde são possíveis as

aventuras. E deixa bem claro que pássaros – metáfora de malandro – não são fiéis.

Na sequência, Ralfo se mostra como um ladrão vulgar, mas fica evidente sua

preocupação em não ser visto como um ladrão e, desejando o perdão do leitor,

novamente ele jura remissão, tentando mostrar que os fins justificam os meios. No

entanto, em pleno ato delinquente, demonstrando preocupação com a atitude injusta,

fazendo as devidas reflexões sobre o não-roubar, Ralfo revela-se, deixando escapar o

pensamento “Ralfo, o ladrão sem casaca, seria um bom título para minhas memórias”,

numa clara demonstração de que o que realmente importa para o personagem são

seus objetivos, no caso, a escritura de suas memórias, provando que o malandro é um

ser individualista por natureza. Por fim, quase ao final da narrativa, temos a certeza de

que o malandro não se emenda, pois nos deparamos com Ralfo novamente prestes a

roubar, e já de antemão desculpando-se e pedindo a clemência do leitor, como se vê no

trecho abaixo:

E já me antevendo a roubar novamente, embora houvesse jurado neste mesmo livro nunca mais retornar ao crime. Mas pequenos furtos são desculpáveis quando um homem tem fome e uma noiva (pensei logo em arranjar anéis). Além de tudo, empregos honestos são difíceis de encontrar hoje em dia em terras da Europa. Sobretudo se o cidadão é estrangeiro e não está de posse de todos os seus documentos.140

Observe-se que Ralfo pensou “logo” em arranjar anéis ao afirmar que era noivo

(pressupomos, então, que ele na verdade não era noivo), pois sua justificativa ao leitor

140Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p.185.

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seria roubar porque estava com fome e para dar comida à sua noiva. Ralfo,

ironicamente, também reclama da dificuldade de arranjar empregos honestos em outra

passagem carnavalizada, na qual supõe-se que o personagem só arranja empregos

desleais, pois não possui documentos necessários para ter um emprego nos moldes da

lei.

Queremos apresentar Ralfo como um personagem malandro do romance nacional e

para isto ele tem de ser dotado de uma qualidade inerente à figura do malandro: o

jeitinho. Uma atitude dele capaz de comprovar seu pensamento malandro é quando no

Livro II – Eldorado – após o grupo ter lutado e vencido a guerrilha, estando todos à

sacada do palácio em frente à praça e sob o clamor do povo de Eldorado, Ralfo

assume o poder. Observe-se a cena, na voz do escritor-narrador-personagem Ralfo:

Havia milhares de pessoas na Praça do Palácio. Era o primeiro dia do novo regime de Eldorado, e nada ainda se definira. Com a morte de Ramiro, o chefe, no cerco à cidade, não existia nem mesmo um líder revolucionário. Não se sabia exatamente que revolução era aquela e o povo aguardava algum pronunciamento. Foi quando Ralfo, no meio do clamor da multidão, adiantou-se aos outros guerrilheiros na sacada do palácio e disse: - Povo de Eldorado. Vencemos. Essa é uma vitória do povo. Do povo de Eldorado, dos povos da América Latina, dos povos do mundo.141

E Ralfo prossegue seu demagogo e infindável discurso, sendo ovacionado pelo

povo até que em um dado momento uma rajada de metralhadora é disparada

traiçoeiramente por detrás dele, do salão do palácio ligado à sacada onde discursava, e

o herói cai dramaticamente nos braços do povo. O que queremos destacar nesse

episódio é o fato de Ralfo, malandramente, ter assumido o poder, pois como diz o texto

‘nada ainda se definira’ e ‘não existia nem mesmo um líder revolucionário’ e ele, com

muita astúcia, dá um passinho à frente, adiantando-se aos outros guerrilheiros, e

começa seu discurso, transformando-se, então, no líder. Isto é, Ralfo não fora escolhido

para ser líder, mas assume a liderança ao perceber, oportunamente, que ninguém

estava a postos.

141 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p.48.

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Outro episódio que merece destaque é o momento em que Ralfo pensa em uma

tese de doutoramento, a qual versaria sobre o crescimento da delinquência e da

loucura em escala planetária. Nessa sua tese está explícita a idéia de que, se não há

um lugar para o sujeito ocupar na sociedade, há um ‘outro jeito’ que pode ser usado por

ele para aquele fim. Diz a tese:

Já que as sociedades são sempre mães seletivas, que não podem abrigar todos os filhos em seu aconchego, só resta uma alternativa para os rejeitados: espernear violentamente, tentando arrancar do seu posto os que se encontram comodamente instalados a chupar um seio. Mas não se trata de organizar-se ideologicamente, pois no todo de qualquer ideologia encontram-se os mesmos vivaldinos de sempre. Trata-se, simplesmente, de espernear, não cumprir as regras do jogo, de qualquer jogo.142

Nesse sentido, o personagem-escritor sugere que o jogo malandro é um recurso

de sobrevivência em uma sociedade onde não há lugar para todos. Acrescente-se a

isso o fato de que, na sociedade brasileira, quando não houver regras claras e definidas

tanto para o universo da ordem como para o da desordem, na ausência de um limite

claro capaz de estabelecer onde começa um mundo e termina o outro, a malandragem

se torna um comportamento comum e até necessário para a sobrevivência de alguns,

chegando ao ponto de ser socialmente aceitável.

Em outro momento da narrativa, Ralfo encanta e conquista todos os hóspedes

do Laboratório existencial do Dr. Silvana - local onde ele é um interno sujeito às

experiências da ciência – exclusivamente com sua lábia como se vê no trecho: “E ele se

encontra bem mais à vontade na casa. Fez vários amigos, gosta de contar casos aos

hóspedes, tornou-se popular entre todos. Parece um homem viajado e experiente o Sr.

Ralfo.”143 - relata Madame X em Fragmentos do diário de Madame X, psicopata. Tantos

outros trechos mostram claramente a relação entre Ralfo e o arquétipo do malandro,

mas o excerto a seguir nos parece particularmente esclarecedor:

Andando sempre em frente, sem ficar cansado. Uma noite que passa e cede lugar a novo dia. Noite sem estrelas ou planetas visíveis. Apenas luzes artificiais que se projetam na neblina. Andando sempre em frente eu vou. Simplesmente

142 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p. 100. 143 Ibidem, p.144.

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não podendo parar. Sem muita pressa ou destino, sem desejos no corpo e na alma. Simplesmente andando com as pernas, assim como Deus quer. 144

O trecho revela o verdadeiro malandro: com o jogo de corpo, vivendo o

momento, sem projeto, sem planos para o futuro e, principalmente, sem demonstrar

preocupação alguma. Além disso, o personagem se revela cumprindo sua sina, ao

sabor da sorte, entregue à vontade de Deus.

144 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p.103-104.

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3.4 Marcas da malandragem: relacionando o corpus

O malandro é visto como um personagem capaz de traduzir o dilema brasileiro,

além de ser capaz de sintetizar o fenômeno carnavalesco. O crítico Antonio Candido

consagra Leonardo como o primeiro malandro da ficção brasileira. Eneida Maria de

Souza afirma que Macunaíma ostenta, ao longo dos anos, a imagem do malandro

tupiniquim, da astúcia mesclada à ingenuidade, da preguiça como resposta ao

modernizante apelo da civilização do trabalho. Robson Pereira Gonçalves vê em

Macunaíma o arquétipo do malandro, por ser um herói cômico/trágico que representa

os anseios e as dificuldades da brasilidade. Este estudo incumbir-se-á, por sua vez, de

incluir ao lado de Leonardo e Macunaíma – personagens já consagrados pela literatura

brasileira – Ralfo, um personagem-escritor, surgido na década de 70, que transita

livremente por espaços aparentemente absurdos, em uma narrativa aparentemente

sem nexo e apresenta – no nosso entendimento - características de um típico malandro

brasileiro.

Ralfo, como Macunaíma e Leonardo, é um personagem da literatura brasileira

que também traduz a relativização do texto literário com a dramatização do rito popular.

Através de Ralfo, constatamos a permanência da figura do malandro na sociedade

brasileira, uma sociedade que, independente de contexto histórico, político ou social,

parece estar sempre de braços abertos para receber um novo malandro, figura infiltrada

e tão bem adaptada nessa sociedade. Várias são as facetas que unem Ralfo,

Macunaíma e Leonardo: do modo de vestir ao modo de se portar; da maneira de

resolver os problemas às formas de encarar a sobrevivência; de como encaram o amor

e as amizades às formas como se relacionam com a lei e de como a narrativa se

desenrola.

No que se refere ao espaço, por exemplo, normalmente o malandro sobrevive

em um local marginal quer seja na vila, quer no bairro periférico, etc. O fato é que ele

não tem lugar certo de moradia e por isso perambula por lugares decadentes.

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Leonardo, o malandro das Memórias, transita entre os hemisférios da ordem e da

desordem e de sua desastrada concepção – filho de uma pisadela e um beliscão -

passa a habitar o mundo da ordem, crescendo na casa do Padrinho. Porém com

frequência vive pelas ruas, avesso às regras, habitando o espaço da desordem. Sai da

casa do Padrinho para morar na casa de Vidinha – personagem que simboliza o mundo

da desordem, pois é alheia às regras sociais. Na narrativa, não se percebe uma

posição negativa em relação a esse trânsito de Leonardo, nem por parte do próprio

personagem, nem da parte dos personagens com quem ele convive e nem por parte do

narrador. A impressão que se tem é que essa livre transitoriedade do personagem

pelos diferentes espaços fazia parte de uma sociedade, cuja organização era regida por

uma espécie de neutralização moral e, portanto, aceitava a forma de se portar e livre

trânsito do malandro.

Em Macunaíma, o trânsito e a mudança de espaços são mais evidentes. O

personagem, filho da índia da tribo tapanhumas, que nasce às margens do rio

Uraricoera, parte com os manos Jiguê e Maanape por este mundo afora, encontrando

Ci, a Mãe do Mato, que se junta a eles para a viagem. Seguem a caminhada até chegar

na cidade grande: São Paulo. Por causa de suas aventuras, Macunaíma precisa fugir

para o Rio de Janeiro, passando pela fronteira de Mato Grosso com o Amazonas e vai

a Minas, onde se esconde no oco de um formigueiro na ilha do Bananal em Goiás. Não

há fronteiras espaço-temporais na obra, o que confere um caráter mítico à rapsódia.

A movência do herói - que nasce no fundo da mata virgem - e parte em direção a

São Paulo – símbolo da civilização - e sua passagem por vários outros espaços, exige

do personagem a criação de determinadas características que lhe permitam a

sobrevivência nessa infinidade geográfica. Segundo Gonçalves145 “o herói assimila e

atua em todos esses lugares como se estivesse naquele espaço primeiro, onde começa

a enfrentar o mundo.” Com as andanças de Macunaíma em busca da muiraquitã, Mário

de Andrade nos mostra a eterna busca do personagem o que representa aquilo que

Roberto DaMatta define como o dilema brasileiro: a incessante busca de um traço

identificatório por parte da nação brasileira. Da mesma forma, por meio das peripécias

145 GONÇALVES, Robson Pereira. Macunaíma: carnaval e malandragem. Santa Maria: Imprensa Universitária UFSM, 1982. p. 48.

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do herói é possível perceber que Macunaíma se adapta bem aos vários espaços e às

novas situações e essa adaptação se dá via malandragem, pois as artimanhas

utilizadas pelo personagem procuram sempre, de forma lícita ou ilícita, obter vantagens

naquela situação, garantindo a sua sobrevivência.

Ralfo, o personagem malandro do romance de ruptura e fragmentado da década

de 70, inicia seu deslocamento no Livro I, intitulado A Partida, quando anuncia “O

primeiro passo é abandonar a cidade e qualquer vínculo com a existência anterior. Mais

do que isso: apagar todos os traços desse passado”146. De roupas novas e cabelos

cortados parte para uma nova vida que iniciará na estação de trem. Pula em um vagão

qualquer de um trem qualquer, cujo destino, assim como em Macunaíma, é São Paulo:

“Quem poderia imaginar que aquele trem fosse justamente para São Paulo?”147 Lá,

passa a morar com Sofia e Rosângela, irmãs gêmeas que conhece no trem e a quem

passará a suprir as carências afetivas e necessidades sexuais.

Cansado do triângulo amoroso, Ralfo foge embarcando em uma viagem marítima

que lhe levará até a ilha de Eldorado, onde participa de uma guerrilha, cujas tropas são

por ele comandadas e, vitorioso, é proclamado o Guia Provisório de Eldorado. Após

sofrer uma tentativa dramática de assassinato, Ralfo acorda em um hospital

acompanhado por Rute com quem terá um caso passageiro. Ralfo cruza imensos

espaços geográficos num piscar de olhos. De um capítulo a outro, ele muda de lugar e

também de personalidade, fato capaz de caracterizá-lo como um “ser sem nenhum

caráter” que precisa estar sempre a reiventar-se com gestos, personalidade e

comportamentos diferentes.

O próximo espaço da narrativa é uma cidade grande – Goddamn City – para

onde Ralfo fora deportado a partir de uma ordem do governo de Eldorado. Na

sequência, o herói se antevê frente a interrogatórios policiais e é acusado e condenado

a nova deportação, desta vez para terras espanholas, onde um certo Dr. Silvana realiza

experiências psiquiátricas com seres humanos. Ralfo atravessa uma grande ponte e

conhece Alice e Pancho Sança formando um trio marginal que parte em busca da

sobrevivência. Após todas as peripécias, depois de vários deslocamentos, depois de ter

146 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p.13. 147 Ibidem, p.18.

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ocupado os mais diversos e indefinidos espaços, Ralfo percebe-se só e sem identidade

e procura espaço no Teatro. Assim como um típico malandro, Ralfo é individual e age

em prol de sua sobrevivência. Não tem local certo de moradia, desloca-se por vários

espaços, sobrevive em lugares marginais e decadentes. Como Leonardo e Macunaíma,

Ralfo transita pelos polos da ordem e da desordem e tenta justificar os meios em

detrimento de seus objetivos. Tanto Leonardo, como Macunaíma e Ralfo, estão

dispostos ao afastamento do mundo da ordem para aventurar-se na Rua, no espaço

desconhecido e perigoso. Nesse espaço, eles usam a sutileza, destreza, carisma e

lábia para alcançar os resultados desejados. DaMatta já constatava que o espaço da

Rua está relacionado ao local do trabalho. Nesse sentido, um aspecto que vale a pena

ser analisado são as relações que Leonardo - o Malandro do Império – Macunaíma - o

Malandro da 1ª metade do século XX - e Ralfo - o Malandro da Ditadura, mantêm com

a ideia do trabalho.

Leonardo originou-se numa sociedade de ordem escravista, em cuja organização

social o trabalho com as mãos era responsabilidade dos escravos e, por isso, visto

como inaceitável para as pessoas decentes das classes superiores, as quais não

precisavam e nem deveriam sair às ruas para trabalhar. Macunaíma surge em um

contexto sócio-histórico no qual a velha ordem oligárquico-senhoril do Império e das

primeiras décadas da República chegara ao fim e estava sendo rapidamente

substituída por uma incipiente sociedade urbano-industrial de massas. Ralfo, por sua

vez, surge em um tempo no qual o mundo passa por grandes transformações e o país

vive a época da ditadura. Nesse período, o Brasil configura-se como uma Nação

capitalista e moderna, com o milagre econômico causando crescimento das cidades e

atraindo milhões de trabalhadores rurais à vida urbana. Dessa forma, a sociedade

patriarcal/agrária ainda predominante no país, cede espaço a novos comportamentos

ligados aos princípios capitalistas e urbanos e tendo o trabalho com uma forma de

progresso. Além disso, pelo fato de o consumismo e o culto ao dinheiro serem formas

de aquisição de felicidade, o trabalho passa a ser de grande importância para os

indivíduos dessa sociedade.

Como se vê, a maneira de encarar o trabalho sofre modificações ao longo da

história. Porém, independente do contexto histórico e dos valores sociais vigentes, o

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malandro é um tipo social que caminha em busca da felicidade, mas tem ojeriza ao

trabalho. A sua ética consiste em se dar bem sem grandes esforços; seu lema é colher

os frutos sem se dar ao trabalho de cultivar a semente e sem precisar esperar o tempo

da colheita. Por isso, a ética do trabalho é avessa à ética do malandro. O malandro é o

sujeito que abdica de suas funções e obrigações sociais - como obediência às

autoridades, respeito à propriedade alheia, consideração ao próximo - e opta por viver o

dia-a-dia da forma mais hedonista possível. Essa aversão ao trabalho está evidenciada

nas três narrativas do corpus.

Em Memórias de um sargento de milícias a proposta da comadre para que o

compadre enviasse o menino à Conceição (uma fábrica de armas instalada no Morro da

Conceição) com o objetivo de aprender um ofício desagrada imensamente o compadre,

pois este quer vê-lo padre. Perseguindo seu sonho, o compadre faz várias tentativas

para que o afilhado se apegue aos estudos:

Entretanto o compadre aplicava-se a trabalhar na realização de seus intentos, e começou por ensinar o ABC ao menino; porém, por primeira contrariedade, este empacou no F, e nada o fazia passar adiante.148

À custa de muitos trabalhos, de muitas fadigas, e sobretudo de muita paciência, conseguiu o compadre que o menino freqüentasse a escola durante dois anos e que aprendesse a ler muito mal e escrever ainda pior.149

Porém, o comportamento de Leonardo na escola já demonstrava sua aversão à

vida regrada e às futuras conquistas por meio do estudo:

Nunca uma pasta, uma lousa, um tinteiro lhe durou mais de 15 dias: era tido na escola pelo mais refinado velhaco; vendia aos colegas tudo que podia ter algum valor, fosse seu ou alheio, contanto que lhe caísse nas mãos um lápis, uma pena, um registro, tudo lhe fazia conta; o dinheiro que apurava empregava sempre do pior modo que podia.150

Finalmente, a sina do herói é revelada pelo narrador:

148 Memórias de um sargento de milícias. p. 40. 149 Ibidem, p. 66. 150 Ibidem, p. 66.

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Como sempre acontece a quem tem muito onde escolher, o pequeno, a quem o padrinho queria fazer clérigo mandando-a a Coimbra, a quem a madrinha queria fazer artista metendo-o na Conceição, a quem D. Maria queria fazer rábula arranjando-o em algum cartório, e a quem enfim cada conhecido ou amigo queria dar um destino que julgava mais conveniente às inclinações que nele descobria, o pequeno, dizemos, tendo tantas coisas boas, escolheu a pior possível: nem foi para Coimbra, nem para Conceição, nem para cartório algum; não fez nenhuma dessas coisas, nem também outra qualquer: constituiu-se um completo vadio, vadio-mestre, vadio-tipo.151

No que diz respeito à forma como o trabalho é encarado pelo personagem

Macunaíma parece que os dois dísticos presentes na obra Macunaíma, o herói sem

nenhum caráter do início ao fim da narrativa são capazes de traduzir perfeitamente o

que o trabalho representa no contexto macunaímico. Assim “Ai! que preguiça!...” e

“Muita saúva e pouca saúde os males do Brasil são.” resumem a relação entre a

sociedade brasileira - simbolizada por Macunaíma - e o trabalho. Essas duas frases

fundem duas idéias da história cultural brasileira. Saint Hilaire152 dizia “Ou o Brasil

acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”, referindo-se aos estragos feitos

pelas formigas nas lavouras dos colonizadores. Por outro lado, Miguel Pereira, um

grande médico brasileiro afirmava que “O Brasil é ainda um vasto hospital” referindo-se

às inúmeras moléstias que atacavam a saúde do povo brasileiro. Estaria então o povo

condenado às tarefas de acabar com a saúva para que esta não acabasse com ele e

acabar com a pouca saúde para que o Brasil não se transformasse em um vasto

hospital.

Está criado, dessa forma, um grande dilema - o qual Mário de Andrade consegue

magnificamente representar com os dísticos que perpassam a obra – que é a escolha

entre o ócio e o trabalho. Gilda de Mello e Souza aprofunda a ideia com o trecho a

seguir:

Deste modo, se a exclamação ai que preguiça! exprimia o desejo ancestral de se ver reincorporado ao âmbito do Uraricoera e da muiraquitã - a tudo aquilo, enfim, que nos definia como diferença em relação à Europa -, a metonímia geminada (‘ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil’) instalava no discurso a exigência de uma escolha, que só podia ser feita do lado dos valores ocidentais do trabalho. Os dois dísticos resumiam, por conseguinte, as contradições insolúveis espalhadas pela narrativa, a tensão

151 Memórias de um sargento de milícias. p. 97. 152 SOUZA Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. São Paulo: Duas Cidades, 1979, p. 57.

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entre o princípio do prazer e o princípio de realidade, entre a tendência espontânea a mergulhar no repouso integral do mundo inorgânico, no Nirvana, e o esforço de obedecer aos imperativos da realidade, da luta pela existência, das restrições e das renúncias, que caracterizam a civilização e o progresso, simbolizados em Prometeu.153

Em Confissões de Ralfo, a relação com o trabalho evidencia-se em várias

passagens e de diversas formas. Em alguns momentos, o herói apresenta claramente

seu desprezo pelo trabalho e pelos trabalhadores:

À nossa direita, temos a sede do banco mais próspero do país. Os banqueiros ficam cada vez mais ricos e os bancários cada vez mais putos da vida. Mas quem permanece bancário merece de certa forma tal destino. 154 ali adiante é o bairro boêmio da cidade, com suas luzes, bares, restaurantes, clubes noturnos. Ali se divertem os nossos anônimos heróis depois de um dia de intensa faina construtiva (pois o progresso é o nosso lema)155

Em outro momento da narrativa, o personagem responsável por promover o

prazer carnal às irmãs gêmeas encara sua atividade como um árduo trabalho:

Mas não posso perder-me em divagações. Do contrário não conseguiria executar meu trabalho. Deus sabe que árduo trabalho, ao menos em cada novo princípio, quando é preciso convencer o corpo de que ele se acha excitado e cheio de vitalidade. [...] Que mistérios esconde essa criatura [...] cujo corpo acaricio com a mais absoluta consciência profissional? Chego a orgulhar-me de minhas aptidões.156

E um autêntico trabalhador precisa do merecido descanso, debocha o herói:

Felizmente existem os domingos. Consegui convencê-las de que aos domingos religiosamente descanso. Santo hábito adquirido na infância. [...] O máximo permitido aos domingos é um leve beijo na testa, sem qualquer sensualidade. [...] Aos domingos, descansa-se de todas as fatigantes atividades da semana. Eu disse todas.157

Observe-se a visão socialista de Ralfo a respeito do trabalho:

153 SOUZA Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. São Paulo: Duas Cidades, 1979, p. 58. 154 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p.14. 155 Ibidem, p.15. 156 Ibidem, p. 21. 157 Ibidem, p. 22–23.

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Em Eldorado, quem não trabalha também come. Porque plantaremos bananas suficientes para alimentar todos. Mas também se aconselha a todos o trabalho, no setor de atividades com que mais se identificarem, não só para evitar o tédio, mas para que a nova nação floresça.158

Ao final de mais uma aventura sua, Ralfo decide “Preciso trabalhar” (por falta de

opção, diga-se de passagem), mas como um autêntico malandro imediatamente

justifica “Embora isso seja frontalmente contrário aos meus hábitos e princípios”.159

Finalmente, Ralfo dedica um episódio de sua autobiografia imaginária para refletir sobre

o trabalho, onde se percebe claramente a repugnância do personagem pelo assunto,

provando mais uma vez que ele representa o arquétipo do malandro. O episódio

intitulado Um dia de trabalho assim inicia:

Quanto um homem é obrigado a se sujeitar para sobreviver? Semi-acordar às seis horas da manhã. Dirigir-se ao banheiro como um sonâmbulo. Mijar de olhos fechados, aproveitando alguns minutos mais. Escovar os dentes de olhos fechados, aproveitando outros minutos mais. Vestir um terno. Sair rapidamente para a rua, quando todo o corpo pede um pouco mais de cama. Misturar-se aos outros milhares de sonâmbulos que marcham resolutamente para o ponto de ônibus ou a estação de trens. [...] A fila do relógio de ponto. Não se esquecer de cumprimentar discretamente os colegas, para que eles não pensem em fazer qualquer sacanagem com você (maledicências com os superiores, principalmente). Não se esquecer de sorrir servilmente para os superiores, para que eles também não façam qualquer sacanagem com você.160

E mais adiante a crítica ao trabalho fica evidente:

Um desses gigantescos e integrados complexos industriais, que fabricam desde leite em pó, passando por uma infinidade de artigos consumidos por uma pessoa em vida, até elegantes lápides de mármore com inscrições graciosas. Aqui jaz Ralfo, Auxiliar de Escritório, servidor de seus chefes, de sua pátria e seu Deus. Ciclos complexos de produção para a humanidade e visando não apenas o lucro, mas a finalidade social do lucro, que é dar uma ocupação murrinha a todos, além de austeros salários, para que os filhos de Deus não se percam no meio da paixão, da ganância e da luxúria. 161

158 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p. 50. 159 Ibidem, p. 90. 160 Ibidem, p. 91. 161 Ibidem, p. 93.

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Um outro traço a ser levado em conta e que demarca o comportamento malandro

são as formas como esse tipo social se porta para com seus amores e amizades. Nas

Memórias, o herói gosta de Luizinha desde menino, mas como a sina os afasta,

Leonardo parte em busca de novos amores e encontra Vidinha. Luizinha e Vidinha

representam os polos opostos, sendo que esta pertence ao mundo da desordem e

aquela faz parte do mundo da ordem. Segundo A. Candido Luizinha “é a mocinha

burguesa com quem não há relação viável fora do casamento, pois ela traz consigo

herança, parentela, posição e deveres.”162 Vidinha, por sua vez, pode ser amada sem

casamento e sem deveres, já que pertence a um universo onde não há sanções, no

qual a regra é entregar-se aos instintos e ao prazer. Leonardo, ao viver com Vidinha

passa a fazer parte do mundo da desordem e é nessa fase de sua vida que ele

participa das encrencas mais sérias afastando-o do mundo da ordem.

Macunaíma, por sua vez, é revelado pela narrativa como um herói que, já desde

pequeno, gosta de brincar com as mulheres, como se vê na passagem abaixo:

E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava o tempo do banho dando mergulho e as mulheres soltavam gritos gozados por causa dos guianamuns diz-se que habitando a água-doce por lá. No mocambo si alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava.163

Sua conduta amorosa, ao longo da rapsódia, revela um herói com impulsos

sexuais incontroláveis, traduzido numa arte de amar de forma violenta com uma

conotação sado-masoquista, podendo inclusive atingir o limite da mutilação humana,

como no episódio que segue:

No outro dia pediu pra Sofará que levasse ele passear e ficaram no mato até a boca-da-noite. Nem bem o menino tocou no folhiço e virou um príncipe gostoso. Brincaram. Depois de brincarem três feitas, correram mato fora fazendo festinhas um pro outro. Depois das festinhas de cotucar, fizeram a das cócegas, depois se enterraram na areia, depois se queimaram com fogo de palha, isso foram muitas festinhas. Macunaíma pegou num tronco de copaíba e se escondeu por detrás da piranheira. Quando Sofará veio correndo, ele deu com o pau na cabeça dela. Fez uma brecha que a moça caiu torcendo de riso aos pés dele. Puxou-o por uma perna. Macunaíma gemia de gosto se agarrando no

162 CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo: USP, n.8, 1970. p.67-89. 163 Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. p. 13.

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tronco gigante. Então a moça abocanhou o dedão do pé dele e engoliu. Macunaíma chorando de alegria tatuou o corpo dela com o sangue do pé. Depois retesou os músculos, se erguendo num trapézio de cipó e aos pulos atingiu num átimo o galho mais alto da piranheira. Sofará trepava atrás. O ramo fininho vergou oscilando com o peso do príncipe. Quando a moça chegou também no tope eles brincaram outra vez balanceando no céu.164

A linha mestra de Macunaíma é a trajetória do herói em busca da muiraquitã,

uma pedra que fora ganha por Ci, a Mãe do Mato, com quem Macunaíma se relacionou

e teve um filho que morrera. O relacionamento com Ci, que pouco durou, foi o único

relacionamento estável mantido pelo herói durante toda a narrativa, e também com Ci o

herói revela seus fortes impulsos sexuais: “Macunaíma dava um safanão na rede

atirando Ci longe. Ela acordava feito fúria e crescia pra cima dele. Brincavam assim. E

agora despertados inteiramente pelo gozo inventavam artes novas de brincar.” 165

É, inclusive, devido a seus impulsos sexuais incontroláveis que Macunaíma

perde definitivamente a muiraquitã – o amuleto nacional que lhe dava razão de ser –

quando, de volta ao Uraricoera, se atira na água fria nos braços de uma uiara ilusória.

Vei – a Sol – preparou essa vingança para Macunaíma disfarçando a Uiara com traços

lusitanos de Dona Sancha. A vingança de Vei se deve ao fato de ter oferecido uma de

suas filhas em casamento para o herói e este, tendo prometido que seria fiel à filha de

Vei, não consegue cumprir a promessa, amulherando-se com uma portuguesa e

despertando a fúria de Vei.

Quanto a seus amores, a história de Ralfo é complexa e diversificada. São

inúmeras as relações amorosas nas quais o personagem–escritor se envolve. Suas

relações amorosas são evidenciadas na paixão avassaladora e carnal por Rute

“Beijando-nos depois em todas as partes, misturando os pedaços desses corpos” 166; “

O nosso modo de gemidos roucos e distensões dos músculos”167 ou pela manifestação

do desejo, aparentemente (ou seria malandramente?) ingênuo, por Helga, a secretária

do chefe “Ou acariciar distraidamente os seios da secretária (por que não posso? por

164 Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. p.16. 165 Ibidem, p.34. 166 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p. 63. 167 Ibidem, p. 69.

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que não posso?) apenas para conhecer o que está ali. Serão redondinhos ou

pontudos?”168

Ralfo, como Macunaíma, mostra-se com impulsos sexuais incontroláveis.

Comprova-se isso quando relata seus pensamentos com a suposta babá de um

suposto garotinho que estaria nos balanços de uma praça. O personagem imagina-se

acarinhando a moça que aceita seus carinhos sem repeli-los. “E por que haveria ela de

repeli-lo? Hem? Não é agradável alguém acariciando o seu braço?”[...] E você fica ali,

acariciando o braço dela, os cabelos e, vejam só, até mesmo os seios dela, enquanto

ela lhe devolve um sorriso encantador.”169 Relata também a invasão pacífica de uma

casa escolhida ao acaso, onde banha-se na piscina e solicita à empregada um suco de

laranja e sua companhia: “- Agora venha nadar comigo. - Obrigada senhor Conde; o

senhor é muito gentil.”170 Ralfo demonstra toda sua prepotência, ao relatar o encontro

casual com uma mulher que caminha cheia de embrulhos pelas ruas do centro da

cidade:

E ela vem tão preocupada com os embrulhos que cai gentilmente em meus braços. [...] Mas ela é exatamente aquilo de que eu preciso: uma boa mulherzinha que cuide de mim. [...] Mas acho perfeitamente natural que ela se desvencilhe de mim, inibida com esse primeiro encontro. Não fomos apresentados, mas isso não significa que eu não possa ajudá-la a catar os embrulhos que caíram ao chão. [...] Pequenas caixinhas, com várias surpresas para serem abertas junto a uma árvore de Natal. Certamente haverá algum presente para mim.171

E revela-se, na sequência do encontro, extremamente abusado, mas

ingenuamente magoado por sua vontade não ter sido satisfeita:

Na afobação nossas mãos se encontram. Ela que retira a sua, com muita timidez e recato. Ela que se debruça sobre um embrulho e mostra seus lindos seios, que eu gostaria de ver todas as noites, guardá-los para mim. Ela que me dá um tapa no rosto, quando simplesmente quero tocá-los. Há muito de criança dentro de mim e sempre quero tocar as coisas que amo.172

168 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p. 94. 169 Ibidem, p. 98. 170 Ibidem, p.103. 171 Ibidem, p.111. 172 Ibidem, p.112.

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O personagem-escritor de índole malandra ratifica o amor que nutre por si

mesmo, ao criar a personagem de Madame X, uma psicopata interna do Laboratório do

Dr. Silvana, a qual confessa em seu diário a atração e admiração pelo artista recém-

chegado à clínica: “Ainda não sei seu nome, mas me pareceu um homem belo e

sensível e de fina educação, embora um pouco maltratado pelas conjunturas da

vida.”173 Ideia que corrobora mais adiante: “Que homem bonito, meu Deus! Mais bonito

ainda que o Dr. Silvana.” 174 Esse sentimento aprofunda-se com o passar dos dias: “[...]

não deixei de sonhar com um casamento meu aqui na clínica. E vocês já sabem com

quem.”175 e chega ao êxtase, quando da descoberta: “Fiquei muita excitada, hoje, com

a notícia de que o novo hóspede é nada mais nada menos do que um escritor.”176

Ralfo cria Madame X para criar o olhar do Outro sobre si mesmo. A forma como

Madame X descreve Ralfo é a forma como o personagem-escritor gostaria de ser visto

pelos outros: bonito, sensível, bem educado, bom escritor. Além disso, pelas palavras

de Madame X, Ralfo reafirma-se como personagem versátil e sem vestígios de uma

identidade: “E além disso o sr. Ralfo me dá a impressão de um homem sem idade, se é

que vocês me entendem. Uma pessoa que pode surgir de lugar nenhum e a qualquer

tempo, para depois desaparecer sem deixar vestígios”177

Nada desnorteia tanto Ralfo, entretanto, quanto a figura de Alice. Ela é uma

mistura de garotinha – Alice – com a mulher – Lolita – que dorme todas as noites,

agarrada à sua boneca e chupando o próprio dedo, junto a (e para desespero de) Ralfo

todas as noites. “Não, o velho Ralfo se sentiria o próprio Ralfo, o Estuprador, se a

tocasse. Aquele anjo de inocência e seus cabelos louros.”178 Decisão, em seguida,

reconsiderada por Ralfo: “ele decide finalmente, naquela mesma noite que terá Alice ou

Lolita, custe o que custar, até mesmo uma condenação por estupro”179 o que de fato

acontece “ e naquela mesma noite eu tive Alice (ou Lolita) que não era a virgem antes

pensada, mas cortesã experimentada e sabedora de todos os segredos do corpo.”180

173 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p.137. 174 Ibidem, p.138. 175 Ibidem, p.139. 176 Ibidem, p.140. 177 Ibidem, p.140. 178 Ibidem, p.178. 179 Ibidem, p.179. 180 Ibidem, p.183.

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Por outro lado, nenhum personagem encarnado por Ralfo na narrativa ou

passagem relatada por ele consegue explicitar tão bem quem é Ralfo como o capítulo

que trata do baile à fantasia. O Baile de Gala acontece no Laboratório existencial do Dr.

Silvana e este convoca uma comissão para observar e relatar o comportamento dos

internos. Ralfo apresenta-se no Baile à fantasia fantasiado de “si mesmo”, o que soa

para o narrador responsável pelo relato do baile como um certo deboche: “Sim,

exatamente isso: o Sr. Ralfo compareceu vestido de si mesmo, encarnando sua própria

pessoa”181 Ser ele mesmo, para Ralfo, significava assumir vários papéis, isto é, trocar

de identidade com constância. No caso do Baile ele assumiu o papel de louco e parecia

divertir-se com isso, o que provocou a ira da Comissão: “Podemos afirmar, então, que

se tratava de uma loucura inautêntica, desejada, como se a vida fosse um teatro onde

pessoas pudessem arvorar-se um papel e representá-lo enquanto lhes desse

vontade.”182

Um verdadeiro malandro não se prende a nada, apenas às suas necessidades.

Por isso, logo após o Baile de Gala no Laboratório Existencial do Dr. Silvana, Ralfo foge

da clínica, confirmando sua tendência aventureira a qual fica explícito no trecho abaixo:

Sou simplesmente um cara que atravessa uma ponte. E não quero ficar preso a nada, não quero possuir lembranças de quem e do que ficou para trás. Quem ficou, ficou, entenderam? E quem vai, vai. Não se deve perturbar uma travessia com lágrimas e memórias, remorsos. [...] Do princípio da minha história, até agora, podem ter decorrido cinco dias ou cinco anos ou, quem sabe, tudo se fez simultaneamente. O negócio é ir em frente: conhecer os que estão do outro lado.183

A ponte seria então a metáfora da eterna busca do herói, bem como da eterna

insatisfação do personagem. A passagem entre os dois pontos demarcados pela ponte,

assim como a maioria das ações do personagem ao longo da narrativa, acontece de

acordo com a performance do malandro: Ralfo dribla os guardas aduaneiros,

manifestando-se “Ali adiante está uma barraca de frutas [...] Vou apenas pegar um

181 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p.156. 182 Ibidem, p.157. 183 Ibidem, p.169.

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níquel no bolso e comprar uma banana bem grande. Depois vou descascá-la e cruzar

assim a fronteira: comendo calmamente minha banana.”184

Como se viu Leonardo, Macunaíma e Ralfo possuem um traço que os une: seu

comportamento malandro. E numa aproximação entre os três personagens com o

intuito de observar as possíveis semelhanças e diferenças entre eles, bem como entre

as três narrativas do corpus selecionado chegou-se às seguintes constatações:

a) A estrutura das três narrativas é organizada mediante a seriação dos episódios

que aparentemente não tem outro elo comum a não ser o herói.

b) Os enredos são dinâmicos devido à inquietude de Leonardo, Macunaíma e

Ralfo, pois nem termina uma aventura, os personagens já embarcam em outra.

Assim o que se destaca nas narrativas é a movência do herói.

c) Nas três narrativas os espaços são variados chegando a ponto de serem

indefiníveis e o tempo não foi levado em conta. Os dias parecem emendar-se um

ao outro, privilegiando assim as ações.

d) Embora os espaços variem do início ao fim das narrativas, as ações estão

centradas nas cidades.

e) O título das três obras é carregado de ambiguidade e todas são obras de

ruptura, pois rompem com os padrões estéticos de seu tempo.

f) Os três personagens são seres à margem na sociedade de seu tempo.

g) As obras têm como referente a sociedade brasileira e os personagens Ralfo,

Macunaíma e Leonardo sofrem o dilema brasileiro, teorizado por DaMatta,

comportando-se como malandros.

h) Ralfo, Macunaíma e Leonardo não trabalham regularmente, nem estudam,

vivendo de tarefas ocasionais e ao sabor da sorte. Quando se dedicam a alguma

atividade não persistem nela por muito tempo.

i) Os três personagens não se mantêm nem no polo da ordem, nem no polo da

desordem, pois não se encaixam em nenhuma convenção. Transitam livremente

de um a outro e por isso não podemos identificá-los nem como bons, nem como

maus.

184 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p.173.

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j) Os três personagens violam a lei inúmeras vezes. Embora não se convertam em

criminosos, também não podem ser vistos como heróis, pois não apresentam

características positivas.

k) Ao longo da narrativa, Leonardo, Macunaíma e Ralfo cometem atos

delinquentes. No entanto, são sujeitos simpáticos e, com lábia e carisma,

conquistam os personagens que gravitam ao seu redor e essa conquista

estende-se ao leitor.

l) Tanto Leonardo, como Macunaíma ou Ralfo não se satisfazem no espaço da

CASA, procurando sempre estar no ambiente da RUA, já que este é o local da

aventura, do desconhecido e do inusitado.

m) Os três configuram-se como aventureiros e, tal como um bom aventureiro,

encontram-se sempre em busca do novo, do desconhecido. Como eles não têm

projetos definidos, contentam-se em apenas passar os dias. Dessa forma a nova

aventura passa a ser a pulsão de vida dos personagens.

n) Os personagens se mostram como seres solitários e individualistas e

demonstram claramente que para eles o que importa é o seu bem-estar. São

protagonistas que mantêm a mesma postura de malandro do início ao fim da

narrativa e embora se tornem cada vez mais experientes, não evoluem

intelectual ou socialmente, contentando-se em apenas participar de uma nova

aventura.

o) Os personagens não demonstram grandes paixões, sentimentos de amor ou

apego a alguma coisa ou por alguém, o que lhes permite trocar de ambiente ou

relacionamento com grande desenvoltura. Eles desenvolvem, portanto, uma

grande capacidade de adaptação aos diferentes modos de vida e aos inúmeros

ambientes.

p) Ralfo, Macunaíma e Leonardo são instáveis, sem características bem definidas,

sem um perfil identitário. Eles não possuem uma identidade moral e social bem

definidas.

q) Os três personagens revelam-se seres insatisfeitos e por isso estão sempre em

busca. Buscam uma identidade ou simplesmente outro lugar para viver e, porque

seu objetivo maior é a sobrevivência, se apegam apenas aos instintos.

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r) Ralfo, Macunaíma e Leonardo satisfazem suas necessidades mais elementares,

desgastando-se o menos possível. Ao contrário de um típico herói, não possuem

fins mais elevados e por isso constituem-se como o avesso do herói ou um anti-

herói.

s) As aventuras de Ralfo, Macunaíma e Leonardo encerram-se sem um final feliz

ou uma situação de repouso, o que permite uma continuação das aventuras,

sugerindo novas possibilidades e por isso as três narrativas são obras abertas.

t) A sátira ocupa um lugar importante nas três narrativas, permitindo-nos afirmar

que todas elas são obras carnavalizadas aos moldes da teoria de Bakhtin.

Na intenção de entender quem é o malandro e quais as características

necessárias ao personagem para que seja tomado como um malandro far-se-á um

movimento ao contrário, investigando as características de um herói clássico com base

no estudo de Gilda de Mello e Souza.185 A autora arrolou as qualidades de um herói

típico das novelas de cavalaria, para entender o herói Macunaíma e segundo ela, o

herói cavaleiresco se caracteriza em síntese pelas seguintes qualidades: nobreza,

coragem, lealdade, verdade, justiça e desprendimento. Esse herói pertence ao ápice da

hierarquia aristocrática; enfrenta as provas com coragem e determinação; é um

personagem simpático sempre em busca da aventura, mas sempre lutando lealmente;

ele não aceita a mentira; posta-se em defesa dos mais fracos, ignorando qualquer

proveito pessoal; na vida amorosa manifesta-se com sutileza, elegância, refinamento e

gentileza, sendo que os traços ostensivos da paixão devem ser contidos pelo herói.

Com facilidade percebe-se que Leonardo, Macunaíma e Ralfo são o avesso do

herói acima descrito. Leonardo é arruaceiro, individualista, safado, apegado aos

confortos de qualquer tipo, sejam eles materiais, carnais, amorosos e não trabalha.

Macunaíma é exatamente a carnavalização do nobre, é a paródia do herói em todos os

seus aspectos: é medroso, desleal, mentiroso, injusto, preguiçoso, ganancioso e possui

impulsos sexuais incontroláveis. Da mesma forma, Ralfo é um típico anti-herói, pois não

tem identidade bem definida, desfilando pela narrativa como ladrão, conquistador,

185 SOUZA, Gilda de Mello. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. São Paulo: Duas Cidades, 1979.

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mentiroso, desleal, avesso ao trabalho, individualista, sempre preocupado com seus

objetivos e vantagens pessoais e, assim como Macunaíma, não controla os impulsos

sexuais. Além disso, os três personagens não pertencem nem ao mundo da ordem,

nem ao mundo da desordem e transitam livremente entre os dois polos, tirando proveito

de ambos. A julgar pelas atitudes dos personagens não se percebe a intenção do herói

em abandonar aquela vida, por isso o caráter gratuito do malandro. Além disso,

Leonardo, Macunaíma e Ralfo são incapazes de vincular-se a alguma ideia ou ideal de

conduta, assumindo vários papéis numa demonstração clara da instabilidade de sua

personalidade. Aventureiros e trapaceiros, sujeitam-se a qualquer atividade para ganhar

a vida e por isso burlam a lei, mentem, fazem armadilhas, enganam, roubam e

seduzem. Todas suas ações - atitudes de um típico malandro - entretanto, são avessas

a uma sociedade democrática e moderna como quer ser o Brasil.

Isso tudo permite a conclusão de que o malandro pertence ao grupo do herói

carnavalizado, ou seja, ele é o avesso de um herói clássico e por isso conhecido como

o anti-herói. Assim, a partir das análises das três narrativas do corpus, cujos heróis

simbolizam a figura do malandro e dos estudos de Roberto DaMatta a respeito da

sociedade brasileira, paira a grande dúvida: se a figura do malandro perpassa os

tempos históricos, resistindo às mudanças sociais, é porque ela está arraigada na

cultura brasileira? O Brasil seria, então, uma potencialidade que ainda não foi

explorada, com um fenômeno carnavalesco ainda incompreendido ou o Brasil

realmente é um país sem uma solução possível, capaz apenas de gerar heróis

carnavalizados ou anti-heróis na arte literária?

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3.5 Um final para o malandro

Passado o tempo indispensável do luto, o Leonardo em uniforme de Sargento de Milícias, recebeu-se na Sé com Luizinha, assistindo à cerimônia a família em peso. Daqui em diante aparece o reverso da medalha. Seguiu-se a morte de D. Maria, a de Leonardo-Pataca, e uma enfiada de acontecimentos tristes que pouparemos aos leitores, fazendo aqui o ponto final. 186 Dizem que um professor naturalmente alemão andou falando por aí por causa da perna só da Ursa Maior que ela é o saci... Não é não! Saci inda pára neste mundo espalhando fogueira e trançando crina de bagual... A Ursa Maior é Macunaíma.É mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu. 187 E finalmente havia eu, Ralfo, subitamente livre, não mais impelido a cumprir ritos, discursos e representações; cada vez mais livre à medida que me rasgavam em pedacinhos junto com meu livro. Eu, Ralfo, de repente esquecido de todos e me esgueirando para fora do recinto, não sem antes observar os ministros que se transformavam em morcegos e também escapuliam do salão – esvoaçando, cegos, a esbarrarem nas colunas e paredes e a emitirem horríveis guinchos desprovidos de significado.188

Esses são os finais das três narrativas do corpus sob análise, sendo que, em

Macunaíma e Confissões de Ralfo, acresce-se ainda um Epílogo. Como se vê, nas três

obras as ações narrativas diluem-se e os personagens como que desaparecem,

esvaídos em um final que fica evidentemente em aberto. Durante a narrativa de

Almeida, o leitor conhece Leonardo por meio dos personagens ou do narrador em

passagens referentes a ele como “constitui-se um completo vadio, vadio-mestre, vadio-

tipo” ou “coitado, disse lamentando a comadre, aquele nasceu com má sina” ou ainda

“Leonardo passava vida completa de vadio, metido em casa todo santo dia, sem lhe

dar o menor abalo o que se passava lá fora pelo mundo”. Assim, embora a narrativa

apresente um herói desacreditado, mesmo que tenhamos um Leonardo malandro,

186 Memórias de um sargento de milícias. p. 152. 187 Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. p. 208. 188 Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. p. 242.

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esperto, safado, aparentemente o herói é vitorioso ao realizar um rentável e satisfatório

casamento.

Mário de Andrade, em sua introdução às Memórias de um sargento de milícias,

posiciona-se a respeito do final que Almeida preparou para Leonardo, dizendo “e é

comovente observar que contra os costumes dramáticos do tempo, ele fazia o seu herói

acabar bem à feição dos filmes de cinema comercial, casado e nulificado em cinzenta

burguesia.”189 Mais adiante, Mário refere-se a essa união com as seguintes palavras

“Leonardo se une fácil à Luizinha abastada e vão ambos viver uma felicidade cinzenta e

neutra que a pena de Manuel Antônio de Almeida seria incapaz de descrever por

excessivamente afiada. O livro acaba quando o inútil da felicidade principia.”190 Vê-se, a

partir da opinião do inventor de Macunaíma, que o final de Leonardo não seria

exatamente uma vitória, pois embora aparente um triunfo, a perspectiva mostrada por

Mário para esse final tem um fundo nostálgico com a dissolução da personagem e,

consequentemente, da própria narrativa.

Por outro lado, quando Macunaíma encerra suas andanças em busca da

muiraquitã voltando para a Terra Natal, cessam as peripécias do herói, e este de volta à

Mata do Uraricoera, doente e cansado se aborrece de tudo e de todos e opta por ir para

o céu onde banza solitário. Assim como o final de Leonardo, Macunaíma também

encerra suas aventuras de forma nostálgica, indo embora para o céu para viver do

brilho bonito, mas inútil das estrelas. Para Haroldo de Campos, a morte de Macunaíma

não se configuraria, entretanto, como fatalidade ou derrota e sim abriria outras

possibilidades coerentes com a vida ao mesmo tempo selvagem e urbana do herói.

Para o autor, o fato de o herói tornar-se um brilho inútil no céu não se consistiria em

uma crítica de Mário à preguiça do brasileiro, mas estaria confirmando a existência

poética do herói.

Gilda de Mello Souza diverge de Campos. Para a autora, a morte de Macunaíma

seria um sacrifício para seu ressurgimento como estrela. Gilda entende a rapsódia

como a oscilação entre elementos representantes do mundo prometéico, europeu e

trabalhador e as representações do mundo brasileiro, narcísico e preguiçoso. Nesse

189 ANDRADE, Mário. Introdução. In: Memórias de um sargento de milícias. p. XI. 190 Ibidem, p. XXV.

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embate, Macunaíma sucumbe narcisicamente ao seu fascínio pelo estrangeiro e esse

deslumbramento lhe levará à derrota. Por outro lado, na visão de Eneida Maria de

Souza, Macunaíma assume a preguiça como um valor. Para ela, o debate travado entre

o herói solar, mestre da preguiça, com a cultura do trabalho, culmina com o sentimento

de fracasso experimentado pela personagem, que, incapaz de realizações exigidas pela

civilização cristã, encarna, de maneira indireta, esta culpa, assim como uma saída

utópica transformando-se em constelação.

Quando a rapsódia termina, Macunaíma está no espaço da casa – o Uraricoera –

e a ele restam três opções: ir morar no céu, morar na ilha de Marajó - o espaço original

- ou voltar para a cidade. Os espaços do céu e da cidade são antagônicos: o primeiro

apresenta a inutilidade do brilho das estrelas e o segundo representaria a organização

pragmática da cidade, responsável por desencantar a vida na terra, de acordo com o

herói.191 Macunaíma decide, então, por morar no céu, encerrando-se aí a trajetória do

herói. Para José Luiz Passos

Na imagem do brilho inútil das estrelas se encontra este ideal do puramente estático, da contemplação que se opõe ao ritmo pragmático da metrópole moderna. A imagem da estrela concentra e representa em ideal a máxima do herói ‘Ai!... que preguiça!...’, associada à idéia do ócio criativo, que funcionava na narrativa pausando a construção agitada das ações do protagonista e solapando seu engajamento a qualquer princípio homogêneo.192

Ser o brilho inútil no céu foi uma estratégia encontrada por Macunaíma que, na

verdade, escolhe pelo meio termo. Ele não optou nem pela casa – ilha de Marajó – nem

pela rua – trabalhar com o Delmiro Gouveia. Preferiu o terceiro espaço, mostrando

novamente sua faceta “sem nenhum caráter”, ou seja, a sua essência incaracterística e

misturada que se debate entre o primitivo e o civilizado, o arcaico e o moderno, o mítico

e o cristão. Nessa mesma linha de raciocínio, Robson Pereira Gonçalves revela um

Macunaíma capaz de romper com os espaços hierarquizados impostos pela civilização,

relativizando os espaços da Ordem e da Desordem quando nega o sistema de castas

191 PASSOS, José Luiz. Ruínas de Linhas Puras: quatro ensaios em torno a Macunaíma. São Paulo: Annablume, 1998, p. 127. 192 Ibidem, p. 128.

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da sociedade organizada e forja leis individuais e autônomas que remetam a um

espaço próprio. As palavras de Gonçalves são esclarecedoras nesse sentido:

Macunaíma é assim, um personagem que se nutre entre a Ordem e a Desordem, fazendo para si um caminho intermediário. Pois desloca daqueles polos os elementos que melhor se adaptam à sua trajetória malandra, individualista. Trajetória que se não é uma solução para o dilema de não possuir caráter, se abre como tomada de consciência e de apreensão por esta sociedade complexa e disforme, que é a sociedade brasileira.193

Como se vê, o final de Macunaíma suscita divergências entre a crítica devido à

ambiguidade com que Mário providenciou as ações finais do herói em sua rapsódia. No

entanto, a julgar pelas palavras do próprio criador da narrativa compreende-se que

prevalece no final de Macunaíma o aspecto negativo. No 1º Prefácio à obra, escrito em

1926, assim manifestava-se Mário de Andrade:

O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros. Ora depois de pelejar muito verifiquei uma coisa me parece certa: o brasileiro não tem caráter. Pode ser que alguém já tenha falado isso antes de mim porém a minha conclusão é (uma) novidade para mim porque tirada da minha experiência pessoal. E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não em vez entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes na ação exterior no sentimento na língua na História na andadura, tanto no bem como no mal.194

Em seu 2º prefácio, escrito em 1928, Mário mantém seu pensamento em relação

à negatividade do herói. Vejamos:

E resta a circunstância da falta de caráter do herói. Falta de caráter no duplo sentido de indivíduo sem caráter moral e sem característico. Está certo. Sem esse pessimismo eu não seria amigo sincero dos meus patrícios. É a sátira dura do livro. Heroísmo de arroubo é fácil de ter. Porém, o galho mais alto dum pau gigante que eu saiba não é lugar propício pra gente dormir sossegado. 195

Mário, depois de muito pelejar, em torno da ideia de descobrir a identidade

brasileira, acaba descobrindo Macunaíma. O herói seria então a personificação de uma

193 GONÇALVES, Robson Pereira. Macunaíma: carnaval e malandragem. Santa Maria: Imprensa Universitária UFSM, 1982. p. 62. 194 ANDRADE, Mário de. Dossiê Macunaíma.. In: Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. p.217. 195 Ibidem, p. 228.

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sociedade formada pelos grupos dominantes da civilização urbano-industrial do Brasil

da segunda metade do século XX. Mas, se ao longo de seus 80 anos de existência,

Macunaíma continua sendo considerado como o símbolo do homem brasileiro, supõe-

se que o brasileiro continua sendo visto como um “homem sem caráter” isto é, amoral.

Ou seja, Macunaíma representaria uma coletividade formada por homens cujo

comportamento é amoral, desabusado e carnavalesco.

Essa suposição vem a ser confirmada em Confissões de Ralfo uma

autobiografia imaginária, narrativa que, nascida quase meio século depois de

Macunaíma, também apresenta um herói sem nenhum caráter: Ralfo não tem uma

identidade, não possui qualidades que o individualizem como bom ou como mau, é um

ser formado por vários “eus”, sujeita-se a inúmeras aventuras e fantasias. Ralfo é um

personagem fragmentado e, embora represente uma época também fragmentada,

simboliza o personagem malandro que quer se dar bem a qualquer custo. Assim como

Macunaíma, Ralfo não tem qualquer coerência psíquica, não possui moral, não tem

caráter que o identifique ou que lhe confira uma identidade. Ralfo, como Macunaíma,

encarna o brasileiro: um ser em constante busca. A busca da identificação.

Se considerarmos que toda a epopeia clássica busca a marca da nacionalidade,

a rapsódia de Mário de Andrade, de certa forma, pode ser tomada como uma epopeia.

Ao menos, foi a obra épica possível de ser criada no Brasil. Macunaíma é épico porque

busca e, de certa forma encontra, muito embora por via da ironia, a marca da

nacionalidade. Mário usa a ironia para desconstruir, pelo riso e pelo deboche, as

construções idealizadoras da nação. Macunaíma é épico porque o seu herói “sem

nenhum caráter” está perto da verdade nacional brasileira. Esperteza, sensualidade,

extremada, troca de raça e cor (a mestiçagem), andanças por vários brasis compõe a

figura do herói brasileiro. Um herói completamente inverso ao heroísmo clássico, mas

comprovadamente capaz de representar a sociedade brasileira.

A rapsódia dá conta da luta contra um dilema que assola os brasileiros e parece

não ceder espaço para a solução: a busca do saber quem somos, como pensamos, que

projeto temos, como se dá a nossa organização como brasileiros e como Nação. E se

pensarmos que essa busca é ainda uma ferida aberta na alma brasileira, pode-se dizer

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que o fato de Macunaíma continuar sendo um símbolo expressivo da identidade cultural

brasileira dói. E como dói...

Por fim, o fato de Macunaíma desistir de viver na terra e retirar-se para o céu

para “ser o brilho bonito, mas inútil das estrelas” permite pensar que o herói não é

vitorioso, pois por preguiça, por não querer trabalhar, falta-lhe um sentido na vida e ele,

enfarado e derrotado, decide por juntar-se aos parentes-estrelas. Um aspecto de

extrema relevância para essa pesquisa é revelado ao final da rapsódia, no momento em

que Macunaíma não acha mais graça na terra e decide ir para o céu. O narrador

justifica a decisão do herói da seguinte forma:

Tudo o que fora a existência dele apesar de tantos casos tanta brincadeira tanta ilusão tanto sofrimento tanto heroísmo, afinal não fora sinão um se deixar viver; e pra parar na cidade do Delmiro ou na ilha de Marajó que são desta terra carecia de ter um sentido. E ele não tinha coragem pra uma organização.196

Leyla Perrone-Moisés entende, a partir dessa revelação final, que Macunaíma

tem alguma consciência de que sua infelicidade é o resultado de suas ações, ou seja,

tem razões históricas. E Moisés destaca especialmente a palavra “organização”, sendo

que, para a autora, o vocábulo é usado com frequência por Mário – tanto na rapsódia,

quanto em suas cartas - atribuindo à palavra o sentido de ética, de projeto, de trabalho.

Nessa perspectiva é possível a inferência de que se o herói não tinha coragem para

uma organização, ele não se encorajava a manter uma ética, um projeto. E, se

Macunaíma tem sido considerado como símbolo do homem brasileiro é porque o

brasileiro não tem definido para si uma ética ou um projeto que seja capaz de servir-lhe

como linha de conduta ou padrão para determinado comportamento social. Ou seja, se

Macunaíma representa o caráter (amoral) do povo brasileiro, isso acontece porque ao

Brasil falta uma organização moral, legítima e funcional determinante para sua

sociedade e por causa dessa lacuna é que a figura do malandro permanece viva em

várias instâncias sociais e é aceita como representante legítimo dessa sociedade.

Ao propor-se a investigação do aspecto da malandragem na cultura da

sociedade brasileira pelo viés da arte literária, e ao arrolar-se personagens malandros

da história da literatura nacional, teve-se a oportunidade de conhecer Ralfo,

196 Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. p. 208.

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personagem que, ao lado de Leonardo e Macunaíma, simboliza o ícone do malandro.

Assim, três personagens diferentes, criados em três contextos históricos diferentes

foram capazes de simbolizar um único ícone, provando a permanência deste através

dos tempos. É certo, porém, que Leonardo representa uma malandragem mais

romântica, quase que ingênua, ao passo que Macunaíma surge reafirmando essa

ingenuidade, mas já dando sinais de que veio para ficar. Ralfo, por sua vez, nada tem

de pureza ou ingenuidade, pois está sempre pronto a uma nova aventura com o claro

intuito de levar vantagem em tudo a qualquer custo. Desculpa-se constantemente por

seus atos ilícitos, mas nem bem termina uma aventura já está arquitetando o próximo

intento.

Ao final desse estudo, nos damos conta de que não é tão fácil demarcar o campo

do malandro. Se de um lado há um mundo da Ordem, definido por regras, leis e

decretos que valem para todos, do outro lado há um mundo individualizado de cada um,

da pessoa, da vontade própria no qual a parte pode triunfar sobre o todo. Se no

primeiro mundo - o mundo da Ordem - o Caxias é nosso representante, no lado oposto

há o mundo da malandragem, no qual, segundo Roberto DaMatta, o que conta é a voz,

o sentimento e a improvisação, pois nesse universo quem inventa as regras é o

coração. Assim, as fronteiras do mundo da malandragem são bastante tênues e se de

um lado existe a malandragem socialmente aceita, vista como esperteza e vivacidade,

de outro, há um ponto mais pesado quando o malandro deixa de viver do jeito e do

expediente para viver de golpes, transformando-se em marginal ou bandido.

Considerando-se, então, que o malandro é a representação do sintoma nacional

e levando-se em conta o atual cenário brasileiro, quase que sentimos saudades do

malandro Leonardo e daquele tempo em que o mundo da Ordem estava bem mais

distante do mundo da Desordem, pois ao menos nesse tempo se podia reconhecer os

malandros e o mundo da malandragem, o que hoje ficou bem mais nebuloso. E por

causa dessa triste constatação finaliza-se esse trabalho com um sentimento parecido

ao de Mário de Andrade ao falar sobre Macunaíma em uma carta a Fernando Sabino,

datada de 16/02/1942, na qual assim dizia:

o que posso lhe jurar é que Macunaíma foi detestavelmente doloroso para mim. Nos momentos mais anedóticos, mais engraçados do entrecho, eu não deixava de sofrer pelo meu herói, sofrer a falta de organização moral dele (do brasileiro,

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que ele satiriza), de reprovar o que ele estava fazendo contra a minha vontade. E quando no fim Macunaíma no ponto de se regenerar, fraqueja mais uma vez e prefere ir viver o brilho ‘inútil’ das estrelas, meus olhos se encheram de lágrimas. Se encheram e se encherão sempre.197

197 ANDRADE, Mário de. Apud: MOISÉS, Leyla Perrone. Vira e mexe, nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 207.

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PALAVRA FINAL

Ao final desse estudo confirma-se que o malandro é uma figura que sulca

profundamente o imaginário nacional, pois nesse país de grande extensão territorial,

sem uma unidade cultural única a figura do malandro tem se mostrado conhecida de

norte a sul, numa clara demonstração de que o arquétipo é um expoente da

representação coletiva, ou seja, o tipo malandro definitivamente faz parte do imaginário

nacional. O que se quis nessa pesquisa foi refletir em torno da sociedade que gerou

esse malandro, bem como sobre os costumes dessa sociedade na qual ele está

inserido e adapta-se tão bem.

Para o entendimento da relação do ícone com a sociedade brasileira a pesquisa

recorreu à teoria de DaMatta sobre o dilema brasileiro, o qual se constitui da constante

oscilação entre duas unidades sociais distintas: o indivíduo e a pessoa. De igual forma,

o estudo ancorou-se na teoria do triângulo ritual, também do antropólogo, pela qual ele

esclarece que o Brasil é na verdade uma sociedade formada pela relação entre três

espaços - a casa, a rua e o outro mundo - e que os rituais da festa são muito

importantes na sociedade brasileira, pois é através dos ritos que os três espaços

distintos podem ser reunidos e relativizados.

No intuito de verificar a trajetória do malandro pela arte literária nacional, fez-se

um percurso em torno da história da literatura brasileira em busca de personagens com

características do tipo malandro. Constatou-se, assim, que em 1852, com a publicação

de Memórias de um sargento de milícias, Almeida, ao criar Leonardo, cria o primeiro

personagem malandro da literatura brasileira. A narrativa que se passa no início do

século XIX – no tempo do rei – só teve o devido reconhecimento depois do

Modernismo. A crítica afirma que as Memórias de Almeida teriam sido a semente de

Macunaíma de Mário de Andrade e, portanto, Leonardo teria sido o malandro

responsável por antecipar a figura de Macunaíma, conhecido pelo público em 1928. Em

1941, Mário escreveu uma introdução para o romance de Almeida publicado pela

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editora Martins e, de fato, é possível perceber muito das Memórias de Almeida no

Macunaíma de Mário. Parece, inclusive, Mário estar falando de sua própria obra ao falar

das Memórias: “As Memórias de um sargento de milícias são um desses livros que de

vez em quando aparecem mesmo, por assim dizer, à margem das literaturas. O que

leva seus autores a criá-los é especialmente um reacionarismo temperamental que os

põe contra a retórica.” 198

Em 1970, Antonio Candido propõe uma interpretação das Memórias redefinindo

a maneira como o romance era tomado até então e, ao instaurar a Dialética da

Malandragem descobrindo uma dialética entre a ordem e a desordem, A. Candido

acaba descobrindo e identificando uma nova linha de força teórico-literária brasileira: o

romance malandro. Em 1979, Roberto DaMatta, por sua vez, publicava Carnavais,

Malandros e Heróis - obra que pode ser considerada um marco nos estudos do

pensamento social no Brasil - na tentativa de entender o Brasil, ou como diz DaMatta

na introdução da obra “saber o que faz o brasil, Brasil” e “discutir os caminhos que

tornam a sociedade brasileira diferente e única, muito embora esteja, como outros

sistemas, igualmente submetida a certos fatores sociais, políticos e econômicos

comuns.”199 Assim, temos de um lado Antonio Candido tentando entender a sociedade

brasileira e definir o Brasil como uma Nação por meio da literatura, e do outro Roberto

DaMatta, um antropólogo que tenta descobrir o Brasil, fazendo uso da dramatização do

Carnaval e de todos os elementos que integram essa festa popular.

Entre os anos das referidas publicações dos dois teóricos contemplados nesta

pesquisa - A. Candido (1970) e Roberto DaMatta (1979) – foi publicada, em 1975, a

obra de Sérgio Sant’Anna intitulada Confissões de Ralfo Uma autobiografia imaginária –

obra igualmente elencada para o corpus literário deste estudo. O que se desejou aqui

foi aproximar a obra de Sant’Anna, publicada em um contexto ditatorial, às obras já

consagradas pela crítica - Memórias e Macunaíma - na intenção de mostrar que o ícone

do malandro brasileiro perdura através dos tempos, já que ele perpassa por três

contextos históricos extremamente diferentes, mantendo as mesmas características do

arquétipo.

198 ALMEIDA, Manuel Antonio de. Memórias de um sargento de milícias. p. XXVI. 199 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6.ed. Rio de Janeiro, 1997. p.15.

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Com isso, foi possível perceber que o malandro adapta-se muito bem ao solo

brasileiro pois, gerado em navios portugueses, ele surgiu no tempo do rei, adentrou

pelo século XX enfrentando as mudanças históricas e sociais da época e sobreviveu,

inclusive, aos tempos ditatoriais da década de 70. É bem provável que essa bela

adaptação aconteça porque o tipo é capaz de manter múltiplas éticas ou uma ética

híbrida, cuja essência é a mistura e a relação e, por isso, ele sabe ser um ou ser outro,

quando se portar desta ou daquela forma. E é por meio de sua postura e dessa ética

híbrida que o malandro transita livremente entre os polos da ordem e da desordem,

garantindo a sua sobrevivência. Assim, é justamente na perspectiva da ética, em

especial a cultura do trabalho, que será colocado um ponto final neste estudo,

visivelmente inacabado.

Roberto DaMatta diz que para a sociedade brasileira o modelo do(s) herói(s)

brasileiro(s) oscila entre a imagem deificada do malandro (que não se apega ao

trabalho e consegue as coisas com o menor esforço), o renunciador ou o santo (o que

abandona o trabalho neste e deste mundo e vai trabalhar para o outro, como fazem os

santos e líderes religiosos) e o Caxias (que pode não ser o trabalhador, mas é o ser

cumpridor de leis e que obriga os outros a trabalhar). Vê-se, portanto, que a ideia do

trabalho duro e honesto ou a glorificação do trabalhador não são modelos ou padrões

enaltecidos por essa sociedade. Considerando-se que a literatura é capaz de

representar o modus vivendi de uma sociedade e que os três heróis analisados durante

a pesquisa se mostraram avessos ao trabalho, mas hedonistas e sedentos por

conquistas, é possível o entendimento de que os personagens literários representem

uma forma de como a sociedade brasileira vê e entende o trabalho.

Além disso, em seus estudos antropológicos sobre a sociedade brasileira,

Roberto DaMatta mostra que o carnaval é a festa da desordem que celebra o riso, as

inversões, a liberdade, a igualdade e a ausência do trabalho, acrescentando que o rito

carnavalesco é perfeito para representar a sociedade brasileira. Por outro lado,

DaMatta aponta que há um diferencial nessa sociedade, pois nela, além do polo da

ordem e da desordem, existe um terceiro polo: o polo do meio, o intermediário. Como

cada polo é demarcado por espaços diversos com códigos específicos para cada

espaço, faz-se necessário, portanto, o uso de éticas múltiplas, isto é, o brasileiro pode

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ter um comportamento em casa, outro na rua e um terceiro na igreja. Nesse sentido, no

Brasil, em vez de haver uma decisão por um ou outro polo, normalmente se decide pelo

elo, pela conciliação, pela moderação, pelo intermediário.

O que singulariza a sociedade brasileira, portanto, não é o fato de ela ter três

espaços bem definidos – a casa, a rua e o outro mundo, sendo que em um momento se

deve rir, em outro é necessário ser sério e em um terceiro momento é preciso ser

neutro e renunciar a favor dos menos favorecidos – e sim o fato de que é pela junção

desses espaços que o universo brasileiro é revelado. Por isso a festa, vista como uma

forma de relacionar domínios segregados e afastados uns dos outros, é um mecanismo

eficiente para estabelecer as relações entre os vários espaços e é nesse sentido que o

carnaval torna-se um ritual-símbolo do Brasil, que o malandro é um personagem-

símbolo do brasileiro e que as atitudes malandras ou as malandragens continuam

sendo aceitas como um inocente e inofensivo ‘jeitinho brasileiro’, proliferando-se dia-a-

dia nessa sociedade.

Acrescente-se a isso a constatação a que se chegou a partir da teoria do

‘homem cordial’ de Sérgio Buarque de Holanda, pela qual é possível dar-se conta de

que o brasileiro não possui um estilo de vida coeso ou disciplinado capaz de integrar e

definir sua personalidade no sistema social. Tem-se, dessa forma, um indivíduo livre, o

que lhe permite entregar-se a quaisquer ideias, gestos e formas encontradas pelo

caminho, assimilando-as sem nenhuma dificuldade. Nessa sociedade com dificuldades

em identificar um herói por falta de um padrão, por falta de um modelo a seguir, há o

espaço para o anti-herói, nesse caso, o malandro. O malandro é, então, a paródia do

herói, um herói carnavalizado, é o anti-herói que encontra no mundo carnavalesco – o

mundo da inversão – o espaço ideal para movimentar-se, pois entre os ‘pode’ e ‘não-

pode’ estipulados pelas leis brasileiras, há a possibilidade da junção destes, criando o

‘jeitinho’ e os espaços para os arranjos pessoais. O espaço carnavalesco é

especialmente adequado para esses arranjos e o malandro transforma-se em um

profissional do jeitinho e da arte de sobreviver em situações difíceis, safando-se pela

sua criatividade. Dessa forma, a malandragem é um papel social à disposição de

qualquer brasileiro que poderá encarnar o malandro a qualquer momento em que julgue

que a lei pode ser esquecida ou burlada.

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Assim, constatou-se neste estudo que o romance malandro encontra, de fato, no

Brasil um terreno fértil e propício para se desenvolver, porém, se o estilo malandro

prolifera-se na novelística brasileira devido às características sociais e culturais desse

povo, há que se registrar que a carnavalização literária, aos moldes de Bakhtin, é um

ótimo instrumento para dar vida e vigor à figura do malandro e ao romance malandro. A

literatura carnavalizada, portanto, contribui tanto para as ações da narrativa quanto para

a construção dos personagens e, por isso, o romance malandro afirma-se como icônico

na teoria da literatura carnavalizada.

Ora, em uma sociedade caracterizada pelo dilema brasileiro, pela mistura, pela

ambiguidade, pelo homem cordial, pelo livre trânsito e aceitação entre o mundo da

ordem e da desordem, é perfeitamente compreensível que o universo carnavalesco -

caracterizado como o mundo invertido - e seu principal representante – o malandro –

sirvam de símbolos do modo de ser do brasileiro. E, se na sociedade brasileira

prevalecem os espaços carnavalizados no sentido da mistura e da inversão de valores,

das múltiplas éticas ou até mesmo da falta de ética (definida), daí a resposta de por que

o malandro adapta-se tão bem a essa sociedade a ponto de ser conhecido como

personagem nacional, de ser cantado em prosa e verso durante tanto tempo e dessa

figura ter, inclusive, conseguido instaurar uma nova vertente na literatura brasileira: o

romance malandro.

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