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UrRAÇu caça. Envergadura de dois metros, asas arre- dondadas e vulro avantajado tornam-lhe incon- fundÍvel a silhueta. Nur.ra das árvores mais altas constrói o ninho tôsco, inteiramente à vista, ao invés de o esconder na ramagem como o f.azem as aves gue temem inimigos. Ali se rompem os ovos, surgindo dois filhotões brancacentos, ávidos da carne que lhes trazem os pais. Várias léguas quadradas em tôrno constituem o domínio abso- luto do casal, o território onde caçam seÍn cor- corrência. Em geral buscam prêsas grandes, que atacam destemidas: preguiças, guaribas e macacos diversos. Suas garras longas e sóli- das, servidas por musculatura incomum, imobi- lizam o animal, rasgam-lhe as carnes, quebram- -lhe a coluna vertebral, anulando-lhe aJ 'defesas naturais. E rápido o combate - apenas se ouve a bulha das asas agitadas e o guincho da vítima - e logo o uiraçu ergue altivamente o corpo e desafia, de olhos imóveis e com ã ?x- pressão dura que lhe da a profundidade das órbitas, a vastidão calma de seu mundo. O bico adunco e forte não é quase utilizado como arma. Com êle rasga o couro da vítima, ainda viva, e vai desfibrando a carne sangrenta, num repasto lento e meticuloso. Mas nem sempre procura caça grande, pois outras aves lhe ser- vem muitas vêzes de alimento, pêÍecefldo então que -requintam em Íazer sofrer a prêsa, depe- nando-a cuidadosamente, arrancando-lhe tufô a tufo as penas, demorando a olhar em volta antes de recomeçar, retalhando-lhe as carnes sem pressa, deixando que a vida se lhe esvaia aos poucos. Também não buscam prêsa ünicamente sôbre as árvores. Caçam e dominam, <:om a mesma facilidade, os animais ariscos do chão e transportam-nos em vôo pesado até um pouso adequado ao banquete ou até ao ninho onãe te- nham prole. Muitas vêzes falha o golpe, por afoiteza. Não muito, alguns habitantes do interior surpreenderam e aprisionaram um uiraçu que unnl viaja pelo interior do Brasil poderá ver o uiraçu planando em largo volteio sôbre as matas ou campos, entregue à J. MooyeN Naturalista do llluseu Nacional. tentara apresar um pato dentro d'água e que, falhando o ataque, viu-se molhado e incapaz de voar, à mercê dos inimigos. . Quando os nossos índios querem mais es- pecificamente mencionar o uiraçu, chamam-no uiraçu-eté, o gavião verdadeiro, porque o nome isolado também se aplica aos gaviões em geral, ao passo que êste revela a importância que para êles tem a ave. De fato, muitos indígenas não se atrevem a matá-lo e o temem, supondo-o ani- mado por espíritos malignos. Outros,. entre- tanto, roubam-lhe os filhotes ainda penugentos e os levam para as malocas, onde são criados em grandes gaiolas de taquara. As pernas gran- des têm o limbo muito rijo, difícil de esgarçar e dão as melhores guias ( ? ) para as flexas. Alem disso emprestam um pouco das virtudes vena- tórias do rapace à arma de caça. Acreditam que os uiraçus sangram com as garras o caule das plantas de curare e que dai lhes vem â câ- pacidade de dominar ràpidamente a prêsa, e veneram como totem a ave caçadora. Tais ín- dios mantêm homens todo o tempo entregues à busca de ninhos para a apanha de filhotes e, quando mudam a maloca, levam sempre os uira- çus para a nova morada. Para isso, peiam- -lhes as pernas, asas e cabeça com embiras for- tes, de modo que os podem transportar às cos- tas, qual um fardo comum. O uiraçu encontra-se em quase tôda â t?- gião neotropical, desde o México até o norte da Argentina. Os povos de língua espanhola chamam-no, por vêzes, aquila coronada, mas o nome que mais comumente se empregar, mesmo no Brasil, ê harpia. Certamente por- que Lineu o chamou Vultur hanpyia, em seu Systema Naturae, inspirado na ferocidade dos monstros mitológicos assim denominados, mulhe- res aladas, de faces maceradas pela fome e com dedos transformados em garras aduncas. Entre- tanto, parece mais interessante tornar usual o nome gue os nativos lhe deram, uiraçu-eté ou simplesmente uiraçu. Além de eufônico, anda êle na linguagem de todos os brasileiros dêsse sertão imenso, de gente que e conhece mais cousas de seu país do que o que anda pelos livros. 16 REVISTÀ IDO MUSEU NÀCIONÀL

UrRAÇu · 2018. 1. 17. · UrRAÇu caça. Envergadura de dois metros, asas arre- dondadas e vulro avantajado tornam-lhe incon- fundÍvel a silhueta. Nur.ra das árvores mais altas

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Page 1: UrRAÇu · 2018. 1. 17. · UrRAÇu caça. Envergadura de dois metros, asas arre- dondadas e vulro avantajado tornam-lhe incon- fundÍvel a silhueta. Nur.ra das árvores mais altas

UrRAÇu

caça. Envergadura de dois metros, asas arre-dondadas e vulro avantajado tornam-lhe incon-fundÍvel a silhueta.

Nur.ra das árvores mais altas constrói oninho tôsco, inteiramente à vista, ao invés deo esconder na ramagem como o f.azem as avesgue temem inimigos. Ali se rompem os ovos,surgindo dois filhotões brancacentos, ávidos dacarne que lhes trazem os pais. Várias léguasquadradas em tôrno constituem o domínio abso-luto do casal, o território onde caçam seÍn cor-corrência. Em geral buscam prêsas grandes,que atacam destemidas: preguiças, guaribas emacacos diversos. Suas garras longas e sóli-das, servidas por musculatura incomum, imobi-lizam o animal, rasgam-lhe as carnes, quebram--lhe a coluna vertebral, anulando-lhe aJ 'defesasnaturais. E rápido o combate - apenas seouve a bulha das asas agitadas e o guincho davítima - e logo o uiraçu ergue altivamente ocorpo e desafia, de olhos imóveis e com ã ?x-pressão dura que lhe da a profundidade dasórbitas, a vastidão calma de seu mundo. Obico adunco e forte não é quase utilizado comoarma. Com êle rasga o couro da vítima, aindaviva, e vai desfibrando a carne sangrenta, numrepasto lento e meticuloso. Mas nem sempreprocura caça grande, pois outras aves lhe ser-vem muitas vêzes de alimento, pêÍecefldo entãoque -requintam em Íazer sofrer a prêsa, depe-nando-a cuidadosamente, arrancando-lhe tufô atufo as penas, demorando a olhar em volta antesde recomeçar, retalhando-lhe as carnes sempressa, deixando que a vida se lhe esvaia aospoucos. Também não buscam prêsa ünicamentesôbre as árvores. Caçam e dominam, <:om amesma facilidade, os animais ariscos do chão etransportam-nos em vôo pesado até um pousoadequado ao banquete ou até ao ninho onãe te-nham prole.

Muitas vêzes falha o golpe, por afoiteza.Não há muito, alguns habitantes do interiorsurpreenderam e aprisionaram um uiraçu que

unnl viaja pelo interior do Brasil poderáver o uiraçu planando em largo volteiosôbre as matas ou campos, entregue à

J. MooyeNNaturalista do llluseu Nacional.

tentara apresar um pato dentro d'água e que,falhando o ataque, viu-se molhado e incapaz devoar, à mercê dos inimigos.

. Quando os nossos índios querem mais es-pecificamente mencionar o uiraçu, chamam-nouiraçu-eté, o gavião verdadeiro, porque o nomeisolado também se aplica aos gaviões em geral,ao passo que êste revela a importância que paraêles tem a ave. De fato, muitos indígenas nãose atrevem a matá-lo e o temem, supondo-o ani-mado por espíritos malignos. Outros,. entre-tanto, roubam-lhe os filhotes ainda penugentose os levam para as malocas, onde são criadosem grandes gaiolas de taquara. As pernas gran-des têm o limbo muito rijo, difícil de esgarçar e

dão as melhores guias ( ? ) para as flexas. Alemdisso emprestam um pouco das virtudes vena-tórias do rapace à arma de caça. Acreditamque os uiraçus sangram com as garras o cauledas plantas de curare e que dai lhes vem â câ-pacidade de dominar ràpidamente a prêsa, eveneram como totem a ave caçadora. Tais ín-dios mantêm homens todo o tempo entregues àbusca de ninhos para a apanha de filhotes e,quando mudam a maloca, levam sempre os uira-çus para a nova morada. Para isso, peiam--lhes as pernas, asas e cabeça com embiras for-tes, de modo que os podem transportar às cos-tas, qual um fardo comum.

O uiraçu encontra-se em quase tôda â t?-gião neotropical, desde o México até o norteda Argentina. Os povos de língua espanholachamam-no, por vêzes, aquila coronada, maso nome que mais comumente se vê empregar,mesmo no Brasil, ê harpia. Certamente por-que Lineu o chamou Vultur hanpyia, em seuSystema Naturae, inspirado na ferocidade dosmonstros mitológicos assim denominados, mulhe-res aladas, de faces maceradas pela fome e comdedos transformados em garras aduncas. Entre-tanto, parece mais interessante tornar usual onome gue os nativos lhe deram, uiraçu-eté ousimplesmente uiraçu. Além de eufônico, anda êlena linguagem de todos os brasileiros dêsse sertãoimenso, de gente que vê e conhece mais cousasde seu país do que o que anda pelos livros.

16 REVISTÀ IDO MUSEU NÀCIONÀL

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Harpia Horp ia harpt/ia (Linnaeus)

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