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1 USO DE ENTORPECENTES E OS CRITÉRIOS (?) DISTINTIVOS ENTRE OS DELITOS PREVISTOS NO ARTS. 28 E 33 DA LEI 11.343/06 À LUZ DA ATUAL JURISPRUDÊNCIA: PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E OFENSIVIDADE. (USE OF DRUGS AND THE CRITERIA (?) BETWEEN THE OFFENCES PROVIDED FOR IN THE DISTINCTIVE ARTS. 28 AND 33 OF THE LAW 11,343/06 IN THE LIGHT OF CURRENT CASE LAW: THE PRINCIPLE OF INSIGNIFICANCE AND OFFENSIVENESS.) Gustavo Tozzi Coelho 1 RESUMO: O presente artigo tem como escopo principal demonstrar as discrepâncias dentre a jurisprudência quanto aos critérios distintivos entre usuário e traficante de entorpecentes dispostos na Lei de Tóxicos. Tendo em vista que tais critérios não são auferidos minuciosamente pela jurisprudência, o presente artigo busca elencar algumas incongruências identificadas nos julgados de nossas Cortes. Desta forma, abordaremos as circunstâncias dispostas no §2º do art. 28 da Lei nº 11.343/06, demonstrando que tais critérios são insuficientes para a correta apuração da classificação dos delitos: se de porte para consumo pessoal ou tráfico. Igualmente, trabalharemos com a possibilidade de aplicação do Princípio da Insignificância em delitos de tóxicos por nossas Cortes, que atualmente resistem quanto à sua incidência. Ao final, concluiremos cotejando as posições jurisprudenciais aqui reproduzidas com os princípios da dignidade da pessoa humana e da ofensividade: nullum poena, nullum crimen sine iuria, Palavras-chave: Drogas; Critérios; Princípios da Insignificância e Ofensividade. ABSTRACT: This article has as main scope demonstrate the discrepancies among the jurisprudence regarding the distinctive criteria between user and trafficker of narcotics placed in Toxic law. Considering that such criteria are not earned thoroughly by the jurisprudence, this article if provided to point out some incongruities found in the judged of our Courts. In this way, we will discuss the circumstances provided for in paragraph 2 of art. 28 of law nº 11,343/06, demonstrating that such criteria are insufficient for the correct determination of the classification of offences: If, for personal consumption or trafficking. Also, we will work with the possibility of applying the principle of insignificance in toxic torts by our courts, which currently are obstacles in its incidence. However, the Supreme Court has been admitting such a possibility. In the end, we will conclude checking the jurisprudence positions here reproduced with the principles of human dignity and of offensiveness (nullum crimen sine iuria). Keywords: drugs; Criteria; Principles of insignificance and Offensiveness. SUMÁRIO: 1. APRESENTAÇÃO HISTÓRICA; 2. A DISCUSSÃO JURISPRUDENCIAL: 2.1 OS CRITÉRIOS (?) UTILIZADOS PARA DISTINGUIR O PORTE PARA CONSUMO PRÓPRIO E O TRÁFICO; 2.2 DA (IN)APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA EM DELITOS DA LEI DE TÓXICOS; 3. CONCLUSÃO; BIBLIOGRAFIA. 1 Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em 2008.. Juiz Leigo. Advogado. Extensão em Direito Penal e Processual Penal pelo Instituto de Desenvolvimento Cultural (IDC), em 2009.

USO DE ENTORPECENTES E OS CRITÉRIOS DISTINTIVOS ENTRE OS DELITOS PREVISTOS NO ARTS 28 E 33 DA LEI 11343

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    USO DE ENTORPECENTES E OS CRITRIOS (?) DISTINTIVOS

    ENTRE OS DELITOS PREVISTOS NO ARTS. 28 E 33 DA LEI 11.343/06 LUZ

    DA ATUAL JURISPRUDNCIA: PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA E

    OFENSIVIDADE.

    (USE OF DRUGS AND THE CRITERIA (?) BETWEEN THE OFFENCES

    PROVIDED FOR IN THE DISTINCTIVE ARTS. 28 AND 33 OF THE LAW

    11,343/06 IN THE LIGHT OF CURRENT CASE LAW: THE PRINCIPLE OF

    INSIGNIFICANCE AND OFFENSIVENESS.)

    Gustavo Tozzi Coelho1 RESUMO: O presente artigo tem como escopo principal demonstrar as discrepncias dentre a

    jurisprudncia quanto aos critrios distintivos entre usurio e traficante de entorpecentes dispostos na

    Lei de Txicos. Tendo em vista que tais critrios no so auferidos minuciosamente pela jurisprudncia,

    o presente artigo busca elencar algumas incongruncias identificadas nos julgados de nossas Cortes.

    Desta forma, abordaremos as circunstncias dispostas no 2 do art. 28 da Lei n 11.343/06,

    demonstrando que tais critrios so insuficientes para a correta apurao da classificao dos delitos: se

    de porte para consumo pessoal ou trfico. Igualmente, trabalharemos com a possibilidade de aplicao

    do Princpio da Insignificncia em delitos de txicos por nossas Cortes, que atualmente resistem quanto

    sua incidncia. Ao final, concluiremos cotejando as posies jurisprudenciais aqui reproduzidas com

    os princpios da dignidade da pessoa humana e da ofensividade: nullum poena, nullum crimen sine iuria,

    Palavras-chave: Drogas; Critrios; Princpios da Insignificncia e Ofensividade.

    ABSTRACT: This article has as main scope demonstrate the discrepancies among the

    jurisprudence regarding the distinctive criteria between user and trafficker of narcotics placed in Toxic

    law. Considering that such criteria are not earned thoroughly by the jurisprudence, this article if provided

    to point out some incongruities found in the judged of our Courts. In this way, we will discuss the

    circumstances provided for in paragraph 2 of art. 28 of law n 11,343/06, demonstrating that such criteria

    are insufficient for the correct determination of the classification of offences: If, for personal

    consumption or trafficking. Also, we will work with the possibility of applying the principle of

    insignificance in toxic torts by our courts, which currently are obstacles in its incidence. However, the

    Supreme Court has been admitting such a possibility. In the end, we will conclude checking the

    jurisprudence positions here reproduced with the principles of human dignity and of offensiveness

    (nullum crimen sine iuria).

    Keywords: drugs; Criteria; Principles of insignificance and Offensiveness.

    SUMRIO: 1. APRESENTAO HISTRICA; 2. A DISCUSSO

    JURISPRUDENCIAL: 2.1 OS CRITRIOS (?) UTILIZADOS PARA DISTINGUIR O

    PORTE PARA CONSUMO PRPRIO E O TRFICO; 2.2 DA (IN)APLICAO DO

    PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA EM DELITOS DA LEI DE TXICOS; 3.

    CONCLUSO; BIBLIOGRAFIA.

    1 Graduado em Direito pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em 2008..

    Juiz Leigo. Advogado. Extenso em Direito Penal e Processual Penal pelo Instituto de Desenvolvimento

    Cultural (IDC), em 2009.

  • 2

    INTRODUO

    A questo relativa ao uso de entorpecentes sempre foi questo de polmica, tanto em

    nossa sociedade como no meio jurdico. Muitas vezes, o assunto foi tratado com descaso, outras

    com rigor, mas a maioria das vezes o que realmente acontece uma distoro da realidade dos

    fatos, talvez por no quererem enxergar esta realidade que est to prxima de seus olhos, ou

    talvez por verdadeiro despreparo.

    Desde a confuso entre usurio e dependente qumico que existia anteriormente

    (somente hoje, aps a edio da Nova Lei de Txicos (Lei 11.343/06) que podemos perceber

    uma distino) at a introduo dos discursos de pnico por parte dos meios de comunicao

    em meados da dcada de setenta, possvel perceber uma poltica criminal anti-drogas no Brasil

    extremamente repressora, fundamentada no discurso jurdico-poltico, onde o traficante

    apontado como inimigo de Estado a ser eliminado pelas agncias punitivas.

    Pois bem.

    Passados quase sete anos da nova legislao e o temor da doutrina tornou-se realidade:

    a dificuldade na classificao dos fatos pelos rgos policiais e judiciais - se porte para consumo

    prprio ou se trfico - conforme se percebe pelos inmeros julgados de nossas cortes que aqui

    nos propomos a apontar.

    O que pretendemos trabalhar no presente artigo justamente a ausncia de qualquer

    parmetro distintivo entre os delitos de porte e trfico (arts. 28 e 33, L. 11.343/06); e a atual

    aceitao ainda que minoritria na jurisprudncia - da aplicao do princpio da

    insignificncia em delitos desta espcie. Ainda, a parte final do 2 do art. 28 da Lei de Txicos

    dispe critrios (um tanto quanto questionveis) para apurao pelo magistrado acerca da

    destinao do entorpecente, se para uso pessoal ou traficncia:

    2 - Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz

    atender natureza e a quantidade da substncia apreendida, ao local e s

    condies em que se desenvolveu a ao, s circunstncias sociais e

    pessoais, bem como conduta e aos antecedentes do agente. (grifo nosso).

    So essas incongruncias trazidas pela Lei 11.343/06 que continuam distorcendo a

    realidade ftica existente entre o usurio e o traficante, ainda no supridas por nossa

    jurisprudncia. Para tanto, remetemos o leitor ao captulo especfico, no antes de

    contextualizar a problemtica na histria.

  • 3

    1. APRESENTAO HISTRICA

    O uso, o porte e o comrcio de substncias entorpecentes foram criminalizados pela

    primeira vez quando foram institudas as Ordenaes Filipinas, que em seu Livro V, Ttulo

    LXXXIX, trazia a tipificao da conduta2.

    O Cdigo Penal Brasileiro do Imprio, de 1830, foi omisso quanto matria, no se

    encontrando nele nenhuma tipificao que se refira a entorpecentes.

    Veio ento o Cdigo de 1890, regulamentando os crimes contra a sade pblica, e no

    art. 159, o tipo penal3. Vrias circunstncias favoreceram, mas talvez o tratamento penal de

    forma indulgente estabelecido no Cdigo de 1890 tenha sido fundamental para com que

    membros da emergente burguesia de Rio de Janeiro e So Paulo formassem, no incio do sculo

    XX, clubes de toxicmanos, assim como em Paris. O consumo de pio e haxixe, no meio

    intelectual, aumentava cada vez mais, e havia necessidade de uma nova regulamentao sobre

    o uso e comrcio de substncias entorpecentes.

    Ocorre que o fato de as incriminaes terem se estendido, a substituio do termo

    substncias venenosas por substncias entorpecentes, a previso de penas carcerrias e as

    determinaes formais de venda e subministrao ao departamento Nacional de Sade,

    2 Nenhuma pessoa tenha em sua caza para vender, rosalgar branco, nem vermelho, nem amarello, nem

    solimo, nem agua delle, nem escamona, nem opio, salvo se fr Boticario examinado, e que tenha licena

    para ter Botica, e usar do Officio.

    E qualquer outra pessoa que tiver em sua caza alguma das ditas cousas para vender, perca toda sua fazenda,

    ametade para nossa Cmera, e a outra para quem o accusar, e seja degradado para frica at a nossa merc.

    1. E os Boticarios no vendo, nem despendo, se no com os Officiaes, que por razo de seus Officios as

    ho mistr, sendo porem Officiaes conhecidos per elles, e taes, de que se presuma que as no daro outras

    pessoas.

    E os ditos Officiaes as no daro, nem vendero a outrem, porque dando-as, e seguindo-se disso algum

    dano, havero a pena que de Direito seja, segundo o dano fr.

    2. E os Boticrios podero metter em suas mezinhas os ditos materiais, segundo pelos Mdicos, Cirurgies,

    Escriptores for mandada.

    E fazendo o contrario, ou venddedo-os a outras pessoas, que no forem Officiaes conhecidos, pola primeira

    vez paguem cincoenta cruzados, metade para quem accusar, e descobrir.

    E pola segunda havero mais qualquer pena, que houvermos por bem. In: PIERANGELI, Jos Henrique.

    Cdigos penais do Brasil. Evoluo histrica. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. 3 Expor venda, ou ministrar, substancias venenosas, sem legitima autorizao e sem as formalidades

    prescriptas nos regulamentos sanitrios:

    Pena de multa de 200$000 a 500$000. In: PIERANGELI, Jos Henrique. Cdigos penais do Brasil.

    Evoluo histrica. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 350.

  • 4

    passariam a formar um novo modelo repressivo, tendo seus fundamentos nos Decretos 780-36

    e 2.953/38 para marcar seu incio na luta contra as drogas no Brasil.

    Com o Decreto-Lei n. 891 de 25 de novembro de 1938, que fora inspirado na

    Conveno de Genebra, se definiram as substncias consideradas txicas, e foram estabelecidas

    normas que regulassem sua produo, comercializao e consumo, prevendo, a internao e

    inclusive a interdio civil dos toxicmanos. O Decreto-Lei n. 891 mantm praticamente o

    mesmo contedo do disposto no artigo 159 da Consolidao das Leis Penais de 1932, mas inova

    em alguns aspectos4.

    Diante do cenrio legislativo sobre entorpecentes no Brasil at o fim da dcada de 30,

    Salo de Carvalho comenta:

    [...] lcito afirmar que, embora sejam encontrados resqucios de

    criminalizao das drogas ao longo da histria legislativa brasileira, somente

    a partir da dcada de 40 que se pode verificar o surgimento de poltica

    proibicionista sistematizada. Diferentemente da criminalizao esparsa, a qual

    apenas indica preocupao com determinada situao, nota-se que as polticas

    de controle (das drogas) so estruturadas com a criao de sistemas punitivos

    autnomos que apresentam relativa coerncia discursiva, isto , modelos

    criados objetivando demandas especficas e com processos de seleo

    (criminalizao primria e incidncia dos aparatos repressivos (criminalizao

    secundria) regulados com independncia de outros tipos de delito.5

    Aps a homologao da Conveno nica Sobre Entorpecentes (onde foram elencadas

    quatro longas listas de drogas e seus preparados), a nossa legislao penal incorreu em mais

    algumas alteraes. Assim, a srie de entorpecentes listados e previstos no Decreto-Lei n. 891

    de 25 de novembro 1938, acabou por sofrer uma expressiva mudana. Porm, as alteraes no

    ficam por a. A Conveno nica Sobre Entorpecentes foi homologada pelo Decreto n. 54.126,

    sendo ento consagrada a reincidncia internacional, onde as condenaes que ocorressem no

    estrangeiro, passariam a ser consideradas para os efeitos da reincidncia.

    4 Art. 33 - Facilitar, instigar por atos ou por palavras, a aquisio, uso, emprego ou aplicao de

    qualquer substncia entorpecente, ou, sem as formalidades prescritas nesta lei, vender, ministrar,

    dar, deter, guardar, transportar, enviar, trocar, sonegar, CONSUMIR substncias compreendidas

    no Art.1 ou plantar, cultivar, colher as plantas mencionadas no Art.2, ou de qualquer modo

    proporcionar a aquisio, uso ou aplicao dessas substncias .

    Penas - um a cinco anos de priso celular e multa de 1:000$000 a 5:000$000. [Grifos nossos]. 5 CARVALHO, Salo de. A poltica criminal de drogas no Brasil (Estudo criminolgico e Dogmtico). 4.

    ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 12-13.

  • 5

    O disposto no art. 281 do Cdigo Penal de 19406, decorrente do princpio da

    proporcionalidade7, estabelecia a punio exclusiva do comerciante de drogas, uma vez que o

    entendimento do Supremo Tribunal Federal era o da abrangncia dos consumidores.

    A descriminalizao (caso de descriminalizao judicial) do uso, no entanto, causava

    preocupao entre os entes repressores.

    Ento, mesmo contrariando a orientao internacional e rompendo com o discurso da

    diferenciao (entre traficante/usurio), veio o Decreto-Lei para modificar o art. 281 do Cdigo

    Penal, agora criminalizando o usurio com a mesma pena aplicvel ao traficante8. O Decreto-

    Lei 385/68 teve vigncia por trs anos.

    Aps, a Lei n. 5.726/71 marca definitivamente a descodificao da matria, ao

    adequar o sistema repressivo brasileiro de drogas s orientaes internacionais. A Lei n.

    5.726/71 serviu para redefinir as hipteses de criminalizao e modificar o rito processual,

    mostrando certa inovao ao reprimir os entorpecentes9. Porm, pode-se afirmar que o fato de no

    considerar mais o dependente como um criminoso estaria mascarado pelo lado cruel da Lei, que

    continuava a equiparar o usurio ao traficante, cabendo-lhe pena restritiva de liberdade de 01 a 06

    anos.

    Salo de Carvalho leciona que no se percebem grandes diferenas entre as figuras

    tpicas encontradas nos estatutos precedentes, notadamente o texto do art. 281 do Cdigo Penal

    com a redao fornecida pela Lei 5.726/71, entendendo que a distino que se vislumbra residia

    6 6 Importar ou exportar, vender ou expor venda,, fornecer, ainda que a titulo gratuito, transportar, trazer

    consigo, ter em depsito, guardar, ministrar ou de, qualquer maneira, entregar a consumo substncia

    entorpecente, sem autorizao ou em desacordo com determinao legal ou regulamentar:

    Pena recluso, de um a cinco anos, e multa, de dois a dez contos de ris. 7 Ibidem, p. 17. 8 Foi includo um novo pargrafo que previa:

    Art. 281. Nas mesmas penas quem ilegalmente: traz consigo, para uso prprio, substncia entorpecente ou

    que determine dependncia fsica ou psquica. 9 Importar ou exportar, preparar, produzir, vender, expor a venda ou oferecer, fornecer, ainda que

    gratuitamente, ter em depsito, transportar, trazer consigo, guardar ou ministrar, ou entregar de qualquer

    forma ao consumo substncia entorpecente ou que determine de pendncia

    [...]

    Nas mesmas penas incorre: quem traz consigo, para uso prprio, substncia entorpecente, ou que determine

    dependncia fsica ou psquica.

  • 6

    na graduao das penas, cujo efeito reflexo foi a definio do modelo poltico-criminal

    configurador do esteretipo do narcotraficante10.

    Fica claro, portanto, que o discurso mdico-jurdico (usurio como dependente e traficante

    como delinquente) to utilizado na dcada de 60 se manteve.

    Advm, ento, a Lei n. 6.368/76, instaurando-se um modelo indito de controle,

    conforme as orientaes poltico-criminais dos pases centrais, fundadas nos tratados e

    convenes internacionais11.

    O projeto repressivo norte-americano refletiu diretamente nas polticas de segurana

    pblica de praticamente todos os pases da Amrica latina. Percebe-se na Lei 5.726/71 o reflexo

    desta assertiva; na Lei 6.368/76 entra em cena o discurso jurdico-poltico para servir de modelo

    oficial do repressivismo brasileiro12.

    Neste contexto, vale o registro sobre o fenmeno repressivo na Amrica Latina trazido

    pela sociloga venezuelana, Rosa Del Olmo:

    [...] em 1970 havia 68 mil 894 viciados registrados, enquanto em 1971 a cifra

    aumento para 490 mil 912 heronomanos. Evidentemente o consumo se

    estendia a todo tipo de droga, no apenas de origem vegetal (herona ou

    maconha), mas tambm s drogas sintticas produzidas pelos grandes

    laboratrios.

    As primeiras medidas internas da poca dentro dos Estados Unidos tinham a

    ver com o discurso jurdico, mediante a criao de uma srie de leis severas,

    como por exemplo o Comprehensive Drug Abuse Prevention and Control Act,

    o Controlled Substances Act, o Racketeer Influenced and Corrupt

    Organization Statue. Ao mesmo tempo, se criaria toda uma srie de escritrios

    federais at culminar com o surgimento, em 1973, da Drug Enforcement

    Agency, poteriormente Drug Enforcement Administration ou DEA, ligada ao

    Departamento de Justia, que fundia vrios escritrios federais criados

    anteriormente para converter-se no organismo responsvel pela coordenao

    e implementao das funes de informao e investigao relacionadas com

    a represso drogas ilcitas. Assim disse Nixon ao referir-se a ela: A

    10 CARVALHO, Salo de. A poltica criminal de drogas no Brasil (Estudo criminolgico e Dogmtico). 4.

    ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 21. 11 Durante os anos 60, a ratificao por mais de cem pases da Conveno nica sobre Estupefacientes,

    marcou o xito da chamada estratgia de globalizao do controle penal sobre drogas ilcitas. A

    consolidao ocorreu com a aprovao do Convnio sobre Substncias Psicotrpicas, (ocorrido em Viena,

    em 1971). No entanto, conforme as agncias centrais, especialmente as norte- americanas, mesmo com o

    esforo da poltica repressiva externa, o prolema das drogas s se agravava, pois o consumo de drogas como

    a maconha e a herona aumentava cada vez entre a classe mdia-alta, e no se conseguia reverter os ndices

    do comercio domstico. 12 CARVALHO, Salo de. A poltica criminal de drogas no Brasil (Estudo criminolgico e Dogmtico). 4.

    ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 22.

  • 7

    consolidao de todas as foras antidrogas sob um comando de todas as foras

    antidrogas sob um comando nico unificado.13

    Embrio da Lei 6.368/7614, o relatrio da Resoluo 116/74 demonstra a sintonia

    existente ao modelo transnacionalizado na preservao do discurso mdico-jurdico e na

    introduo normativa do discurso jurdico poltico.

    Portanto, quanto ao aspecto poltico-criminal, a Lei 6.368/76 preservou o discurso

    mdico-jurdico, com a distino tradicional entre o consumidor (tratando-se de dependente

    e/ou usurio) e traficante, na afirmao dos esteretipos consumidor-doente e traficante-

    delinqente. Assim, com o discurso jurdico-poltico sendo introduzido gradualmente na

    segurana pblica, o traficante tornou-se considerado inimigo interno, justificando, desta

    maneira, as exacerbaes de pena no que tange quantidade e forma de execuo, que

    ocorreram a partir do final da dcada de 70.

    A Lei 11.343/06 foi fundada com a mesma ideologia da antiga Lei 6.368/76, e tinha

    como um dos objetivos principais estabelecer importantes diferenas entre seus institutos

    criminais. Ao passo que na L. 6.368/06 o discurso jurdico-poltico tomava a frente do mdico-

    jurdico por pregar exatamente a eliminao do traficante, sendo, portanto, intensificada a

    represso ao comrcio ilegal e amenizada a resposta penal aos usurios e dependentes qumicos

    (situao mais perceptvel aps a redao da Lei dos Juizados Especiais, Lei n. 9.099/95), a

    Nova Lei de Txicos em um primeiro momento - ressaltava a importncia da distino do

    tratamento penal entre usurio e traficante, concebendo dois estatutos autnomos, com sanes

    completamente diferentes. O traficante tratado com alto nvel de represso, com o aumento

    na pena privativa de liberdade em relao lei anterior (pena pode ser fixada entre 05 e 15

    anos); quanto ao usurio, cabe aplicao de penas - consideradas pela doutrina15 de medidas

    socioeducativas, como advertncia sobre o uso da droga e comparecimento a curso educativo.

    Cumpre lembrar, que quando a nova legislao entrou em vigor, surgiram inmeras

    teses doutrinrias acerca da descriminalizao do porte para consumo, haja vista no caber mais

    13 OLMO, Rosa Del. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 42-43. 14 O art. 16 da Lei 6.368, que regulava o porte e o consumo trazia o seguinte texto:

    Art 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso prprio, substncia entorpecente ou que determine

    dependncia fsica ou psquica, sem autorizao ou em desacordo com determinao legal ou regulamentar:

    Pena - Deteno, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a 50 (cinqenta) dias-multa. 15 Vide Gilberto Thums.

  • 8

    pena privativa de liberdade ao usurio; outros sustentavam se tratar de infrao sui generis16,

    fundamentando sua posio no art. 1 da Lei de Introduo ao Cdigo Penal17, entendendo que

    o fato criminalizado saiu da esfera penal, pois cabveis apenas sanes de carter

    administrativo.

    No calor da divergncia, comeo de 2007, a Primeira Turma do Supremo Tribunal

    Federal se posicionou sobre o assunto quando do julgamento do RE-QO 430105 / RJ18, decidindo

    que no se tratava de abolitio criminis, mas de despenalizao, pois retirada a pena privativa de

    liberdade como sano.

    Mesmo diante do posicionamento do Pretrio Excelso, no houve uniformidade na

    doutrina, permanecendo at hoje inmeras teses e crticas sobre a natureza jurdica do tipo

    16 GOMES, Luiz Flvio. Nova lei de drogas: descriminalizao da posse de drogas para consumo pessoal.

    Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1236, 19 nov. 2006. Disponvel em:

    . Acesso em: 14 abr. 2008. 17 Considera-se crime a infrao penal a que a lei comina pena de recluso ou deteno, quer isoladamente,

    quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contraveno, a infrao a que a lei comina,

    isoladamente, pena de priso simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente 18 RE-QO 430105 / RJ - RIO DE JANEIRO QUESTO DE ORDEM NO RECURSO

    EXTRAORDINRIO Relator(a): Min. SEPLVEDA PERTENCE Julgamento: 13/02/2007 rgo

    Julgador: Primeira Turma.

    EMENTA:I. Posse de droga para consumo pessoal: (art. 28 da L. 11.343/06 - nova lei de drogas): natureza

    jurdica de crime. 1. O art. 1 da LICP - que se limita a estabelecer um critrio que permite distinguir quando

    se est diante de um crime ou de uma contraveno - no obsta a que lei ordinria superveniente adote

    outros critrios gerais de distino, ou estabelea para determinado crime - como o fez o art. 28 da L.

    11.343/06 - pena diversa da privao ou restrio da liberdade, a qual constitui somente uma das opes

    constitucionais passveis de adoo pela lei incriminadora (CF/88, art. 5, XLVI e XLVII). 2. No se pode,

    na interpretao da L. 11.343/06, partir de um pressuposto desapreo do legislador pelo "rigor tcnico", que

    o teria levado inadvertidamente a incluir as infraes relativas ao usurio de drogas em um captulo

    denominado "Dos Crimes e das Penas", s a ele referentes. (L. 11.343/06, Ttulo III, Captulo III, arts.

    27/30). 3. Ao uso da expresso "reincidncia", tambm no se pode emprestar um sentido "popular",

    especialmente porque, em linha de princpio, somente disposio expressa em contrrio na L. 11.343/06

    afastaria a regra geral do C. Penal (C.Penal, art. 12). 4. Soma-se a tudo a previso, como regra geral, ao

    processo de infraes atribudas ao usurio de drogas, do rito estabelecido para os crimes de menor

    potencial ofensivo, possibilitando at mesmo a proposta de aplicao imediata da pena de que trata

    o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, 1 e 5), bem como a disciplina da prescrio segundo as regras do

    art. 107 e seguintes do C. Penal (L. 11.343, art. 30). 6. Ocorrncia, pois, de "despenalizao",

    entendida como excluso, para o tipo, das penas privativas de liberdade. 7. Questo de ordem

    resolvida no sentido de que a L. 11.343/06 no implicou abolitio criminis (C.Penal, art. 107). II.

    Prescrio: consumao, vista do art. 30 da L. 11.343/06, pelo decurso de mais de 2 anos dos fatos, sem

    qualquer causa interruptiva. III. Recurso extraordinrio julgado prejudicado.

    Deciso : A Turma, resolvendo questo de ordem, julgou prejudicado o recurso extraordinrio. Unnime.

    No participou, justificadamente, deste julgamento, a Ministra Crmen Lcia. 1.Turma, 13.02.2007.

  • 9

    elencado no art. 28 da Lei de Txicos, bem como as maneiras de distinguir o usurio do

    traficante.

    poca da promulgao da atual legislao antitxica, j existia um temor por parte

    de doutrinadores19, que, para combater a despenalizao e impunidade to difundida pela mdia

    de massa, ocorressem exageros por parte dos rgos policiais e judiciais na classificao dos

    tipos para enquadr-los erroneamente como fatos incursos no art. 33 da Lei 11.34320.

    2. A DISCUSSO JURISPRUDENCIAL:

    2.1 OS CRITRIOS (?) UTILIZADOS PARA DISTINGUIR O PORTE PARA

    CONSUMO PRPRIO E O TRFICO.

    19 Vide Gilberto Thums, Alexandre Bizzoto e Samuel Miranda Arruda. 20 Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depsito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal,

    drogas sem autorizao ou em desacordo com determinao legal ou regulamentar ser submetido s

    seguintes penas:

    I - advertncia sobre os efeitos das drogas;

    II - prestao de servios comunidade;

    III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

    Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor venda, oferecer,

    ter em depsito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer

    drogas, ainda que gratuitamente, sem autorizao ou em desacordo com determinao legal ou

    regulamentar:

    Pena - recluso de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos)

    dias-multa.

    1o Nas mesmas penas incorre quem:

    I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expe venda, oferece, fornece, tem em

    depsito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorizao ou em desacordo

    com determinao legal ou regulamentar, matria-prima, insumo ou produto qumico destinado

    preparao de drogas;

    II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorizao ou em desacordo com determinao legal ou

    regulamentar, de plantas que se constituam em matria-prima para a preparao de drogas;

    III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administrao, guarda ou

    vigilncia, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorizao ou em

    desacordo com determinao legal ou regulamentar, para o trfico ilcito de drogas.

    2o Induzir, instigar ou auxiliar algum ao uso indevido de droga: (Vide ADI 4274)

    Pena - deteno, de 1 (um) a 3 (trs) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa.

    3o Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a

    consumirem:

    Pena - deteno, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.500 (mil e quinhentos)

    dias-multa, sem prejuzo das penas previstas no art. 28.

    4o Nos delitos definidos no caput e no 1o deste artigo, as penas podero ser reduzidas de um sexto a

    dois teros, vedada a converso em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primrio, de bons

    antecedentes, no se dedique s atividades criminosas nem integre organizao criminosa. (Vide Resoluo

    n 5, de 2012)

    http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=4274&processo=4274http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Congresso/RSF-05-2012.htmhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Congresso/RSF-05-2012.htmhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Congresso/RSF-05-2012.htm

  • 10

    Como se verifica pela leitura do 2, art. 28, Lei n. 11.343/06, mais uma vez o

    legislador no observou princpios bsicos do Direito Penal de um Estado Democrtico de

    Direito, onde o agente deve ser julgado pelos fatos e no pelo que .

    Reflexo imediato, restou jurisprudncia estabelecer ou, ao menos, tentou alguns

    parmetros de valorao acerca da destinao do entorpecente (uso ou traficncia) que no se

    mostram harmnicos e, s vezes, desamparados de qualquer critrio lgico e coerente.

    Assim, para corroborar o que estamos nos propondo a apresentar, citam-se os julgados

    de nosso Egrgio Tribunal de Justia quanto s hipteses de desclassificao (ou no) dos

    delitos de porte e trfico e os critrios utilizados: Apelao Crime N 7005433950221; Apelao

    21 APELAO-CRIME. TRFICO ILCITO DE ENTORPECENTES. INSUFICINCIA DE PROVAS

    DA CIRCULAO DA DROGA. DESCLASSIFICAO PARA USO. PRESCRIO.

    MANUTENO DA SENTENA. Trfico. O contexto probatrio no evidencia a ocorrncia da

    traficncia. O ru manteve hgida sua verso desde a fase investigativa aduzindo que a droga era para

    consumo prprio. Sua companheira confirmou que ele era usurio. Alm disso, o policial ouvido apresentou

    depoimento judicial com detalhes distintos daqueles fornecidos na fase investigativa. Somente restou

    comprovado que o apelado estava na posse de 81,84 gramas de maconha na ocasio dos fatos. No

    comprovada a circulao da droga caso de manuteno da sentena que extinguiu a punibilidade pela

    prescrio da pretenso punitiva estatal. APELAO IMPROVIDA. SENTENA MANTIDA. (Apelao

    Crime N 70054339502, Terceira Cmara Criminal, Tribunal de Justia do RS, Relator: Diogenes Vicente

    Hassan Ribeiro, Julgado em 13/06/2013)

  • 11

    Crime N 7005452001022; Apelao Crime N 7004301472923; Apelao Crime N

    7005132316024.

    22 APELAO CRIME. TRFICO DE DROGAS. ART. 33 DA LEI N. 11.343/06.

    DESCLASSIFICAO. ART. 28. PORTE PARA USO PRPRIO. A quantidade da droga apreendida

    (08 pedras de crack, pesando 1,30g), ainda que possa ser destinada ao trfico, tambm compatvel com

    o porte para consumo pessoal. O monitoramento e a abordagem casual, aliados s circunstncias do

    flagrante do delito, que no evidenciam o comrcio de drogas, bem como quantidade da droga, no so

    indicativos suficientes da traficncia. Inexistente prova segura do trfico, opera-se a desclassificao. O

    porte de substncia entorpecente para uso pessoal, mesmo com a edio da nova Lei de Drogas, manteve a

    natureza da conduta ilcita, apenas, agora, considerada como de menor potencial ofensivo. O Plenrio do

    STF, por ocasio do julgamento de Questo de Ordem suscitada nos autos do RE 430.105 QO/RJ, rejeitou

    as teses de abolitio criminis e infrao penal sui generis para o delito previsto no art. 28 da Lei 11.343/06,

    afirmando a natureza de crime da conduta perpetrada pelo usurio de drogas, no obstante a

    descarcerizao. Embora comprovada a posse, esta Terceira Cmara Criminal sufragou o entendimento de

    que a soluo a absolvio (Smula n. 453 do STF), pois no h emendatio libelli na desclassificao do

    delito de trfico para posse de drogas e, sim, mutatio libelli. Ressalvado o entendimento do Relator. APELO

    DEFENSIVO PROVIDO. (Apelao Crime N 70054520010, Terceira Cmara Criminal, Tribunal de

    Justia do RS, Relator: Jayme Weingartner Neto, Julgado em 27/06/2013) 23 Ementa: APELAO DEFENSIVA. TRFICO DE DROGAS. - H prova da existncia do fato. - O

    ru, ouvido em Juzo, negou a prtica do delito. Asseverou, em suma, que era usurio de drogas ("Juza:

    Voc era usurio de drogas? Interrogado: Usava nos finais de semana assim, mas no era sempre."). Negou,

    contudo, que o entorpecente apreendido lhe pertencia, sendo que no sabia da existncia da balana. - Elvis,

    ouvido na polcia e em Juzo, confirmou que consumia cocana junto com o ru, na residncia deste.

    Assegurou, contudo, no adquiria a droga do acusado. - Na fase inquisitorial foram ouvidas vrias

    testemunhas, entre eles usurios e ex-viciados que apontaram o ora recorrente como traficante. - A

    testemunha Ivan confirmou, em juzo, suas declaraes. verdade, tambm, que as testemunhas Luciana e

    Gustavo, conforme aponta a combativa defesa, bem assim Eli, em juzo, retrataram-se. - Temos que o dito

    condenatrio no merece censura. Na espcie, no h dvida que r. sentena, da lavra da digna Magistrada,

    Dra. Lilian Raquel Bozza Pianezzola, que concluiu pela condenao do ora apelante, tem base nos

    elementos da prova colhida, sendo que ao reexame do conjunto probatrio no chegamos a concluso

    diversa. Com efeito, o dito condenatrio deu valorao adequada a fatores (circunstncias) que mereciam

    ponderao, apreciando na justa medida a prova colhida, chegando a acertada concluso. Os argumentos

    defensivos no tm fora para alterar a deciso combatida. -Anotamos, ento. A eficcia probatria do

    testemunho do policial no pode ser desconsiderada. Precedentes dos Tribunais Superiores. - Quanto a

    retratao do depoimento pela testemunha, temos lio do insigne processualista Eduardo Espnola Filho.

    Na espcie, as declaraes prestadas, em juzo, pelas testemunhas que se retrataram no demonstraram que

    as afirmaes anteriores foram fantasistas, principalmente frente a apreenso do carto magntico da Caixa,

    pertencente a G.S., na residncia do ora apelante. - Devemos lembrar que "A deciso judicial", conforme

    deixou assentado o eminente Ministro Felix Fischer, quando do julgamento, em 12/11/2002, do RESP

    282.728/GO, pela egrgia 5 Turma do Superior Tribunal de Justia, "no pode escapar da prova colhida e

    admitida e nem ferir o senso comum.". - No que tange a configurao do delito (trfico), no podemos

    olvidar que as Turmas (5 e 6) componentes da 3 Seo do Superior Tribunal de Justia j haviam firmado

    orientao no sentido de que para a consumao do delito de trfico de entorpecentes bastava prtica de

    qualquer um dos verbos previstos no art. 12 da Lei n 6.368/76. Para adequao tpica no se exigia qualquer

    elemento subjetivo adicional. O entendimento jurisprudencial, deve ser lembrado, continua atual, pois "Na

    nova Lei de Txicos (Lei n 11.343/06) as exigncias para a tipificao do delito de trfico so as mesmas

    da Lei n 6.368/76" (passagem da ementa do REsp 846481/MG, Relator Ministro FELIX FISCHER). -

    Alm disso, na espcie, diferentemente do alegado pela defesa (pequena quantidade de droga), a quantidade

    da substncia entorpecente apreendida, considerando sua espcie, foi expressiva (6 gramas) - poderiam ser

    confeccionadas, no mnimo, 120 doses, podendo alcanar a feitura de 240 doses. - e tambm est a indicar

    a configurao do injusto previsto no artigo 33, caput, da Lei n. 11. 343/06. Precedente da Corte, do

  • 12

    Superior Tribunal de Justia e magistrio do perito Marcos Passagli. - O pedido de desclassificao, desta

    forma, no tem passagem. Para evitar futura alegao de omisso do julgado consigno que Superior

    Tribunal de Justia j deixou assentado que " O juiz no est obrigado a apreciar as teses da defesa que

    restam logicamente excludas pelas razes de decidir." (passagem da ementa do HC 27347/RJ, Rel.

    Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 16/12/2004, DJ 01/08/2005, p.

    560). - Cumpre repisar que o trfico ilcito de entorpecente resta configurado com a prtica de qualquer das

    condutas descritas na norma incriminadora, entre elas a simples guarda, posse ou depsito de substncia

    entorpecente, tratando-se, assim, de tipo misto alternativo ou de ao mltipla ou de contedo variado

    [Edilson Mougenot Bonfim e Fernando Capez, in Direito Penal, Parte Geral, Editora Saraiva, 2004, pg.

    459/460), relativamente a "CLASSIFICAO DOS CRIMES", ensinam: "Crime de ao mltipla ou

    contedo variado: aquele em que o tipo penal descreve vrias modalidades de realizao do crime (trfico

    de drogas - art. 12 da Lei n. 6.368/76; instigao, induzimento ou auxlio ao suicdio - art. 122 etc.)." ] -

    Alm disso, trata-se de tipo congruente ou congruente simtrico, esgontando-se o seu tipo subjetivo no dolo

    genrico. Precedentes. - Anotamos, ento, que cumpria a defesa o nus da prova da ocorrncia do elemento

    subjetivo alegado em favor do recorrente (posse, guarda ou depsito para exclusivo uso prprio). Aplica-

    se a espcie, mutatis mutandis, o seguinte precedente do Superior Tribunal de Justia: REsp 704.188/SC,

    Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 11/04/2006, DJ 08/05/2006, p. 273. -

    Importante salientar, por fim, que a alegada situao de viciado ou usurio, conforme reiteradamente

    se tem decidido, no afasta a traficncia. Precedentes. - Por fim, tratando-se de delito de trfico de drogas

    - tendo em considerao, ainda, a quantidade de entorpecente apreendido -, invivel a incidncia do

    princpio da insignificncia. Observe-se: HC 122.682/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA

    TURMA, julgado em 18/11/2010, DJe 06/12/2010; HC 156543/RJ, Ministro OG FERNANDES, SEXTA

    TURMA, j. em 25/10/2011; e, HC 104158/SP, Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA

    TURMA, j. em 27/09/2011. APELAO DESPROVIDA. (Apelao Crime N 70043014729, Segunda

    Cmara Criminal, Tribunal de Justia do RS, Relator: Marco Aurlio de Oliveira Canosa, Julgado em

    27/06/2013)

    No dia 19 de fevereiro de 2010, por volta das 13 horas, na Rua Albino Xavier Teixeira, n 223, Bairro So

    Paulo, em Tapejara-RS, o denunciado tinha em depsito, drogas, para fins de venda, uma pedra de crack,

    pesando seis gramas, conforme auto de fls., substncia que causa dependncia fsica e psquica, sem

    autorizao e em desacordo com determinao legal e regulamentar. 24 APELAO. TRFICO DE ENTORPECENTES. DESCLASSIFICAO PARA USO

    COMPARTILHADO. Ao afastar a hiptese de trfico de entorpecentes e dar ao fato definio jurdica

    diversa, de posse para uso compartilhado, reconheceu o magistrado singular circunstncia elementar do

    tipo penal que no constou na denncia e, por isso, no foi objeto do contraditrio judicial. Hiptese, pois,

    de mutatio libelli, e no de emendatio libelli, que como tal depende de prvio aditamento da acusao e da

    abertura de prazo para o exerccio da ampla defesa. Impossibilidade de desclassificao de trfico para

    posse, seja para consumo pessoal, seja para consumo compartilhado, sem a observncia do procedimento

    disposto no artigo 384 do Cdigo de Processo Penal. Precedentes dessa Cmara Criminal. Vedao da

    mutatio libelli em segunda instncia, nos termos da smula 453 do STF. Juzo desclassificatrio reformado.

    Absolvio decretada. RECURSO PROVIDO. (Apelao Crime N 70051323160, Terceira Cmara

    Criminal, Tribunal de Justia do RS, Relator: Nereu Jos Giacomolli, Julgado em 13/06/2013)

  • 13

    No mbito do Superior Tribunal de Justia, citam-se: RHC 35.519/MG25; AgRg no

    REsp 1007409/PR26 e REsp 1133943/MG27.

    25 RECURSO ORDINRIO EM HABEAS CORPUS. TRFICO DE DROGAS. TESE DE QUE O

    RECORRENTE SERIA APENAS USURIO DE DROGAS. REEXAME DE MATRIA FTICO-

    PROBATRIA. PRISO PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PBLICA. REITERAO

    CRIMINOSA. MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISO. DESCABIMENTO.

    CONSTRANGIMENTO ILEGAL NO EVIDENCIADO. RECURSO DESPROVIDO.

    1. Hiptese em que o Recorrente foi preso em flagrante, no dia 27 de outubro de 2012 - na posse de trs

    pores de cocana, uma de maconha e de pedras de crack, alm da quantia de R$ 195,00 (cento e noventa

    e cinco reais) - e denunciado como incurso no delito previsto no art. 33 da Lei 11.343/06.

    2. No cabvel, na estreita via do writ, proceder ao aprofundado reexame de fatos e provas para apreciar

    o pleito de desclassificao da conduta de trfico para a de uso de entorpecentes.

    3. O decreto de priso preventiva, mantido pelo acrdo recorrido, encontra-se suficientemente

    fundamentado no fato de o denunciado ser conhecido por envolvimento com o comrcio de drogas, tanto

    que j foi preso em flagrante em outras ocasies pelo suposto cometimento do mesmo delito, o que indica

    a reiterao na prtica criminosa e justifica a medida constritiva para a garantia da ordem pblica, evitando,

    assim, a reiterao e a continuidade da atividade ilcita.

    4. Vlida a fundamentao utilizada pelas instncias ordinrias que, com expressa meno situao

    concreta, entenderam inadequadas e insuficientes para garantia da ordem pblica quaisquer das medidas

    cautelares alternativas priso, elencadas no art. 319 do Cdigo de Processo Penal, com redao dada pela

    Lei n. 12.403/2011.

    5. Recurso desprovido. (RHC 35.519/MG, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em

    28/05/2013, DJe 06/06/2013) 26 AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. DESCLASSIFICAO DA CONDUTA DO

    AGRAVANTE, PELO TRIBUNAL A QUO, DE TRFICO DE ENTORPECENTES PARA USO

    PRPRIO. AUSNCIA DE INDICAO DO DOLO ESPECFICO DO AGENTE.

    PRECEDENTES DO STJ. POSSE DE 21 EMBALAGENS CONTENDO COCANA. AGRAVO

    REGIMENTAL DESPROVIDO.

    1. Conforme registrado na deciso ora guerreada, entendimento h muito sedimentado nesta Corte

    Superior exige, para caracterizao do delito tipificado no art. 16 da Lei 6.368/76, um especial dolo do

    agente, consubstanciado no uso prprio do entorpecente, mas no especificado pelo Tribunal a quo quando

    da desclassificao operada.

    2. Assim, ao contrrio do sustentado pelo agravante, inexiste necessidade de revolvimento do conjunto

    probatrio - inadmissvel na espcie recursal em exame -, tratando-se, to-somente, de hiptese de mero

    juzo de subsuno dos fatos narrados figura tpica prevista no delito de trfico de entorpecentes (posse

    de 21 invlucros de plstico contendo cocana).

    3. Agravo Regimental desprovido. (AgRg no REsp 1007409/PR, Rel. Ministro NAPOLEO NUNES

    MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 30/10/2008, DJe 01/12/2008) 27 PENAL. RECURSO ESPECIAL. TRFICO DE ENTORPECENTES. TIPO SUBJETIVO.

    ESPECIAL FIM DE AGIR (FINS DE MERCANCIA). DESNECESSIDADE.

    DESCLASSIFICAO DO DELITO. IMPOSSIBILIDADE.

    I - O tipo previsto no art. 33 da Lei n 11.343/06 congruente ou congruente simtrico, esgotando-se, o seu

    tipo subjetivo, no dolo.

    As figuras, v.g., de transportar, trazer consigo, guardar ou, ainda, de adquirir no exigem, para a adequao

    tpica, qualquer elemento subjetivo adicional tal como o fim de traficar ou comercializar.

    Alm do mais, para tanto, basta tambm atentar para a incriminao do fornecimento (Precedentes).

    II - O tipo previsto no art. 28 da Lei n 11.343/06, este sim, como delictum sui generis, apresenta a estrutura

    de congruente assimtrico ou incongruente, visto que o seu tipo subjetivo, alm do dolo, exige a finalidade

    do exclusivo uso prprio. (Precedentes). Recurso especial provido. (REsp 1133943/MG, Rel. Ministro

    FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 06/04/2010, DJe 17/05/2010)

  • 14

    Importante ressaltar, que a maioria dos casos que chegam ltima instncia (STF),

    elegem a via do Habeas Corpus para rediscusso da matria, o que resulta no prejuzo do pedido,

    pois incabvel o reexame aprofundado dos fatos.

    De acordo com os precedentes supracitados, percebe-se certa incongruncia em

    relao aos critrios utilizados, seno vejamos: v.g. no julgado de n. Apelao Crime N

    70054339502, a quantidade de droga apreendida (mais de 80g de maconha) no foram

    suficientes para condenao por trfico, operando-se a desclassificao para uso; da mesma

    forma, no julgamento da Apelao Crime N 70054520010, 8 pedras de crack foram

    consideradas como porte para consumo prprio. Mais: em quase todos os casos que operou-se

    a desclassificao de trfico para uso, decorreu de insuficincia probatria.

    Ainda, em se tratando de nus probatrio para desclassificao de tais delitos, a

    matria foi recentemente tratada quando da publicao do Informativo de Jurisprudncia n.

    711 do STF.28

    Em sentido contrrio, na Apelao Crime N 70043014729, uma pedra de crack

    pesando 6g foi considerada suficiente para caracterizar o trfico, em face da potencialidade

    lesiva da droga.

    J na esfera do STJ, dificilmente se opera a desclassificao das condutas, ora

    condenando por trfico o ru porque na posse de trs pores de cocana, uma de maconha e

    28 INFORMATIVO N 711 TTULO Trfico de drogas e lei mais benfica 3 PROCESSO HC - 107448

    ARTIGO: Em concluso de julgamento, a 1 Turma, por maioria, concedeu habeas corpus para determinar

    a designao de audincia na qual os pacientes devero ser advertidos sobre os efeitos do uso de

    entorpecente. Na espcie, pretendia-se a desclassificao da conduta imputada, prevista no art. 12 da Lei

    6.368/76 (Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor venda ou

    oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depsito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever,

    ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substncia entorpecente ou que determine dependncia

    fsica ou psquica, sem autorizao ou em desacordo com determinao legal ou regulamentar), para a

    disposta no art. 33, 3, da Lei 11.343/2006 ( 3 Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro,

    a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem) v. Informativo 626. Aduziu-se que o

    acrdo impugnado teria invertido a ordem processual quanto prova, atribuindo aos pacientes o dever de

    demonstrar sua condio de usurios, o que no se coadunaria com o Direito Penal. Registrou-se que eles

    no teriam o dever de demonstrar que a droga apreendida se destinaria ao consumo prprio e de amigos, e

    no ao trfico. Asseverou-se que caberia acusao comprovar os elementos do tipo penal. Reputou-se que

    ao Estado-acusador incumbiria corroborar a configurao do trfico, que no ocorreria pela simples compra

    do entorpecente. Salientou-se que o restabelecimento do enfoque revelado pelo juzo seria conducente a

    afastar-se, at mesmo, a condenao pena restritiva da liberdade. Vencido o Min. Ricardo Lewandowski,

    que denegava a ordem. O Min. Dias Toffoli reajustou seu voto para conceder o writ. HC 107448/MG, rel.

    orig. Min. Ricardo Lewandowski, red. p/ o acrdo Min. Marco Aurlio, 18.6.2013. (HC-107448)

  • 15

    de pedras de crack, alm da quantia de R$ 195,00 (cento e noventa e cinco reais); ora

    condenando o ru por trfico pela posse de 21 invlucros contendo cocana. Assim como

    ocorrente no STF, grande parte dos julgados se d em se de Habeas Corpus, o que impede a

    rediscusso da matria.

    Ora, como facilmente se percebe, no h um critrio especfico para aferio se a droga

    se destinava para o consumo prprio ou para fins de mercancia. Como acima exposto, no

    parece ser a quantidade da droga o critrio mais valorado: por que mais de 80g de maconha

    considerado para consumo prprio, ao passo que 6g de crack ou mesmo uma poro de

    maconha junto com outras drogas - conduz condenao por trfico? No podemos olvidar que

    os testemunhos dos policiais no momento da abordagem do agente so praticamente

    determinantes para as decises de tais demandas, o que muitas vezes acaba por prejudicar a

    defesa do ru, pois dificilmente palavra dos policiais ser avaliada de forma minuciosa pelo

    magistrado; ao contrrio, por muitas vezes acaba sendo o fator probatrio decisivo no destino

    do ru: condenao por trfico.

    E neste contexto que se insere a parte final do 2 do art. 28: ... s circunstncias

    sociais e pessoais, bem como conduta e aos antecedentes do agente.

    Analisando tais critrios, percebe-se o porqu das decises acima elencadas: nos casos

    envolvendo condenao por trfico (onde no ocorreu a desclassificao), a maioria se no

    todos os rus possuam maus antecedentes, alm de viverem margem da sociedade. Logo,

    o que se coloca de maneira temerria a possibilidade ou probabilidade? de se fazer um

    juzo valorativo em face de tais circuntncias, sociais e pessoais de agente; sem falar, claro, nos

    antecedentes.

    Explico: algum dirigindo uma camionete de luxo, portando consigo 80g de maconha

    (como no julgado acima colacionado), e uma carteira com vrias notas de R$100,00, poderia

    ser enquadrado no art. 28, alegando que a droga era para curtir suas frias no litoral

    catarinense, e o dinheiro para gastar na viagem, alm do fato de ser primrio. Agora, se algum

    flagrado perto de alguma periferia, conduzindo uma motocicleta, p.ex., e portando duas

    buchinhas de cocana e duas pedrinhas de maconha, com dinheiro trocado no bolso porque

    acabou de abastecer o veculo, tendo maus antecedentes, ser preso em flagrante e

    dificilmente escapar da condenao por trfico.

  • 16

    Mas afinal de contas, devemos ser julgados pelo que somos ou pelo que fizermos? No

    estaramos estimulando cada vez mais o direito penal do autor?

    Num breve cotejo doutrinrio, BITENCOURT ressalta o fato de que um indivduo,

    mesmo que sem antecedentes criminais, possa ter sua vida repleta de deslizes, infmias,

    imoralidade, reveladores de desajuste social29. Contudo, alerta o doutrinador que tambm seria

    possvel que um indivduo, mesmo que portador de antecedentes criminais seja autor de atos

    benemritos, ou de grande relevncia social ou moral. Por entender que nem sempre os autos

    do processo oferecem elementos suficientes para aferir um juzo de valor sobre a conduta social

    do ru, BITENCOURT assevera que milita em favor do ru o princpio constitucional da

    presuno de inocncia.30

    Alis, consoante ZAFFARONI, para o direito penal do autor identificado como uma

    divindade interpessoal e mecnica, o delito se mostra como uma falha em um aparato complexo,

    mas que no deixa de ser uma complicada pea de outro maior, que a sociedade31. Deste

    modo:

    a falha no pequeno mecanismo acarreta um perigo para o mecanismo maior,

    isto , indica um estado de periculosidade ... bom destacar que os argumentos

    do direito penal do autor, que idolatra a divindade mecnica e impessoal, nem

    sempre so coerentes com suas exposies, pois costumam ocultar posies

    de sua verso contrria e revestir de cincia mecanicista valoraes

    meramente moralizantes... o discurso do direito penal do autor prope tipos

    operadores jurdicos de negao de sua prpria condio de pessoa humana.32 Destarte, pelos posicionamentos at aqui esposados, questiona-se: at quando, na

    sociedade moderna em que vivemos, preconceitos de cunho moral/religioso tambm

    remanescente do discurso do pnico pregado pelo DEA Norte-Americano (Drug

    Enforcement Administration) influenciaro nosso legislador e a jurisprudncia?

    No deveria o Direito Penal de Garantias prevalecer em nosso Estado Democrtico

    de Direito?

    Sendo crime de perigo abstrato o tipo do art. 28, Lei n. 11.343/06, desnecessitando de

    efetiva leso ao bem jurdico tutelado (sade pblica), no haveria ofensa ao princpio da

    29 Idem. 30 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Parte Geral 1. 19 ed. rev, ampli e atual.

    So Paulo: Saraiva, 2013., pg. 769. 31 ZAFFARONI, E. Ral. Direito penal do autor e Direito penal do Ato, p. 132 32 ZAFFARONI, Ob.cit. pg. 133

  • 17

    ofensividade? Ainda, se o delito tipificado no art. 28 da Lei antitxicos de nfimo potencial

    ofensivo33, por que a jurisprudncia vem resistindo em aplicar o princpio da insignificncia?

    o que pretendemos expor nas prximas linhas.

    2.2 DA (IN)APLICAO DO PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA EM

    DELITOS DA LEI DE TXICOS:

    Quanto aplicao do princpio da insignificncia, tambm os critrios utilizados

    quando o so no se mostram suficientes; mas a maioria da jurisprudncia insiste em no

    admitir a insignificncia em delitos dessa espcie em face do bem jurdico tutelado (= sade

    pblica), o que pretendemos abordar em cotejo com os princpios da ofensividade, legalidade

    e, consequentemente, da taxatividade da lei penal.

    Atualmente, tanto a doutrina quanto a jurisprudncia ainda resistem na aplicao do

    princpio da insignificncia; ora sob o argumento de que a porte de pequena quantidade

    inerente ao tipo do art. 28, ora veem no cometimento do delito em questo dano sade pblica,

    bem jurdico tutelado, no se abrindo espao, portanto, para a aplicao do Princpio da

    Insignificncia34; ou, ainda, sob a tese de que a insignificncia no est na quantidade da

    substncia apreendida, mas na qualidade desta e na circunstncia de perigo decorrente do fato35.

    33 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. Vol. I. 7 ed. So Paulo,

    ed. Revista dos Tribunais, p. 369. 34 Recurso Crime N 71003816436, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Fabio Vieira

    Heerdt, Julgado em 20/08/2012. 35 Recurso Crime N 71004409884, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Edson Jorge

    Cechet, Julgado em 08/07/2013.

  • 18

    Na jurisprudncia gacha, para ilustrar melhor os questionamentos suscitados, citam-

    se: Recurso Crime N 7100387311436; Recurso Crime N 7100289462437; Recurso Crime N

    7100424933038; Apelao Crime N 7005392711739; Recurso Crime N 7100430816940;

    36 APELAO CRIME. POSSE DE SUBSTNCIA ENTORPECENTE. ART. 28 DA LEI 11.343/06. 1.

    No h inconstitucionalidade a ser reconhecida quanto ao delito de posse de substncia entorpecente. A

    disposio prevista no art. 28 da Lei n. 11.343/06 busca coibir a difuso da droga, resguardando a sade

    pblica, sem afronta a qualquer das franquias constitucionais. MATERIALIDADE. RESQUCIO DE

    DROGA QUE NO GERA OFENSA AO BEM JURDICO TUTELADO. 2. Inincidncia da norma penal

    quando se trata de resqucio de droga (guimba, bituca, ponta ou pedao), cuja potncia no mais existe,

    afastando o carter penal do fato em relao ao portador ou ao usurio. Quantidade apreendida (0,242g),

    em forma de uma ponta de cigarro artesanal, que no chega a ofender o bem jurdico tutelado, sem que isso

    altere a posio da Turma no tocante ao princpio da insignificncia. ABSOLVIO POR ATIPICIDADE.

    APELO PROVIDO. (Recurso Crime N 71003873114, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais,

    Relator: Edson Jorge Cechet, Julgado em 06/08/2012) 37 APELAO CRIME. ART. 28 DA LEI 11.343 DE 2006. POSSE DE DROGAS. REJEIO DE

    DENNCIA. Deciso que rejeitou a denncia mantida, eis que a norma penal no incide quando se trata

    de resqucio de droga, cuja potncia no mais existe e afasta o carter penal do fato em relao ao portador

    ou usurio. A quantidade apreendida no chega a ofender o bem jurdico tutelado, sem que isso altere a

    posio da Turma no tocante ao princpio da insignificncia. Deciso mantida. APELO DESPROVIDO.

    (Recurso Crime N 71002894624, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Edson Jorge

    Cechet, Julgado em 13/12/2010) 38 PORTE DE SUBSTNCIA ENTORPECENTE. ART. 28 DA LEI N 11.343/2006. SENTENA

    CONDENATRIA REFORMADA. - O ru no foi beneficiado anteriormente pela transao penal e a

    conduta social, personalidade, motivos e circunstncias do crime no se mostram capazes de inviabilizar o

    oferecimento da benesse. Entretanto, no o caso de anular o feito, considerando o encaminhamento do

    voto no sentido da absolvio, sendo, portanto, mais benfico ao ru. - O ato de portar uma "ponta de

    cigarro" ou "guimba" de maconha j parcialmente consumida, quando pequena a quantidade da substncia

    entorpecente remanescente, no importa em ofensa ao bem jurdico tutelado, ou seja, sade pblica.

    RECURSO PROVIDO. (Recurso Crime N 71004249330, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais,

    Relator: Eduardo Ernesto Lucas Almada, Julgado em 10/06/2013). 39APELAO CRIME. POSSE DE SUBSTNCIA ENTORPECENTE PARA USO PRPRIO. ART. 28

    DA LEI N 11.343/06. ABOLITIO CRIMINIS INEXISTENTE. CONDUTA TPICA. O porte de

    substncia entorpecente para uso pessoal, mesmo com a edio da nova Lei de Drogas, manteve a natureza

    da conduta ilcita, apenas, agora, considerada como de menor potencial ofensivo. A posse de drogas crime

    formal e de perigo abstrato, cujo bem jurdico a sade pblica. Presente a ofensividade presumida,

    desnecessria a efetiva leso sade para se consumar. O Plenrio do STF, por ocasio do julgamento de

    Questo de Ordem suscitada nos autos do RE 430.105 QO/RJ, rejeitou as teses de abolitio criminis e

    infrao penal sui generis para o delito previsto no art. 28 da Lei 11.343/06, afirmando a natureza de crime

    da conduta perpetrada pelo usurio de drogas, no obstante a descarcerizao. Embora comprovada a posse,

    esta Terceira Cmara Criminal sufragou o entendimento de que a soluo a absolvio (Smula n. 453

    do STF), pois no h emendatio libelli na desclassificao do delito de trfico para posse de drogas e, sim,

    mutatio libelli, que exige aditamento da denncia e no se aplica em grau de recurso. Ressalvado o

    entendimento do Relator. Absolvio mantida. RECURSO DESPROVIDO. 40 PORTE DE SUBSTNCIA ENTORPECENTE. ART. 28 DA LEI N 11.343/2006. CASSADA A

    DECISO QUE REJEITOU A DENNCIA. TRANSAO PENAL NO OFERECIDA. REQUISITOS

    LEGAIS PREENCHIDOS.

    Inexiste inconstitucionalidade, porquanto o art. 28 da Lei de Drogas tenha como objetivo tutelar a sade

    pblica, que se reveste do carter de direito coletivo, sobrepondo-se ao direito individual daquele que utiliza

    substncia entorpecente. No se cogita quanto descriminalizao da conduta em face do advento da lei

    n. 11.343/06. Com efeito, a infrao tipificada no artigo 28 da Lei de Drogas se caracteriza como de menor

  • 19

    Recurso Crime N 7100440988441; Recurso Crime N 7100136487642; Recurso Crime N

    7100381643643.

    potencial ofensivo, comportando a aplicao de penas mais brandas, dentre as quais no se insere a privao

    de liberdade, o que no significa dizer tenha a conduta sido descriminalizada. Impossvel desconsiderar, na

    hiptese, que o seu cometimento configura dano sade pblica, bem jurdico tutelado, no se abrindo

    espao, portanto, para a aplicao do Princpio da Insignificncia. Tpica se afigura, portanto, a conduta de

    quem porta substncia entorpecente, mesmo que nfima a quantidade, o que se constitui em caracterstica

    do delito em questo. Hiptese em que se impunha, por preenchidos, em tese, os requisitos que autorizariam

    a transao penal, ter sido oferecida a medida, j que tal se constitui em direito subjetivo do acusado e pode

    ser oferecida at o final da instruo processual. RECURSO PROVIDO. (Recurso Crime N 71004308169,

    Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Roberto Behrensdorf Gomes da Silva, Julgado em

    08/07/2013) 41 POSSE DE SUBSTNCIA ENTORPECENTE. ART. 28, CAPUT, DA LEI 11.343/06. "CRACK".

    "COCANA". INSUFICINCIA PROBATRIA. SENTENA ABSOLUTRIA MANTIDA. A Lei n.

    11.343/2006 no descriminalizou a conduta de porte de substncia entorpecente para uso prprio, vindo

    apenas a cominar novas modalidades de sano para o tipo penal previsto em seu artigo 28, inexistindo

    impedimento legal a que penas restritivas de direito sejam a nica sano cominada ao tipo penal. Conduta,

    por sinal, lesiva, por extrapolar a esfera da discricionariedade do indivduo em causar dano prprio para

    atingir o coletivo. Princpio da insignificncia afastado. A insignificncia no est na quantidade da

    substncia apreendida, mas na qualidade desta e na circunstncia de perigo decorrente do fato. Prova

    produzida mediante contraditrio judicial que desautoriza a condenao do recorrente. Inexistncia de

    elementos probatrios suficientes, que determinam a aplicao do brocardo in dubio pro reo. APELAO

    DESPROVIDA. (Recurso Crime N 71004409884, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator:

    Edson Jorge Cechet, Julgado em 08/07/2013): Primeiramente, deve-se ter em conta a necessria correlao

    entre o fato imputado e o que reconhecido na prova e que influi, ento, no ato decisrio. A denncia

    refere que o denunciado trazia consigo, para consumo pessoal, uma pedra de crack e duas buchas de

    cocana, pesando respectivamente, 0,276g e 0,481g. 42 APELAO CRIME. POSSE DE SUSBSTNCIA ENTORPECENTE. ART. 28 DA LEI 11.343/06.

    COCANA. TIPICIDADE. DESCRIMINALIZAO. INSIGNIFICNCIA . PENA DE

    ADVERTNCIA. 1.Abolitio Criminis inexiste, porque, pela Lei 11.343/06, a posse de substncia

    entorpecente crime com punio diferente da pena carcerria. 2.Insignificncia afastada pela posse de

    quantidade igual a 11g de cocana. 3. Havendo prova da materialidade e autoria certa, a condenao

    imperativa. 4. A pena de advertncia sobre os efeitos das drogas suficiente para reprovar a conduta do

    acusado com nico antecedente criminal, cuja pena j cumpriu, sem reincidncia. PROVIDA A

    APELAO. UNNIME. (Recurso Crime N 71001364876, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais,

    Relator: Nara Leonor Castro Garcia, Julgado em 13/08/2007) (nfase acrescentada) 43 APELAO CRIMINAL. PORTE DE SUBSTNCIA ENTORPECENTE. ART. 28 DA LEI N.

    11.343/2006. DEPOIMENTO POLICIAL APTO A EMBASAR JUZO CONDENATRIO.

    SUFICIENCIA DE PROVAS. PENA READEQUADA DE OFCIO. A conduta de quem porta substncia

    entorpecente, mesmo que nfima a quantidade, afigura-se tpica, o que se constitui em caracterstica do

    delito em questo. No se cogita quanto descriminalizao da conduta em face do advento da lei n.

    11.343/06. A infrao tipificada no artigo 28 da Lei de Drogas se caracteriza como de menor potencial

    ofensivo, comportando a aplicao de penas mais brandas, dentre as quais no se insere a privao de

    liberdade, o que no significa a descriminalizao da conduta. Jurisprudncia majoritria que v no

    cometimento do delito em questo dano sade pblica, bem jurdico tutelado, no se abrindo espao,

    portanto, para a aplicao do Princpio da Insignificncia. O depoimento policial, aliado s demais provas

    dos autos, se mostra apto a embasar a condenao, visto trata-se de pessoa idnea e que merece

    credibilidade, no se verificando, ainda, que tivesse qualquer motivo para realizar uma falsa imputao

    contra o ru. Pena readequada para advertncia, j que todos os vetores do art. 59 so favorveis ao acusado.

    RECURSO IMPROVIDO. PENA READEQUADA DE OFCIO. (Recurso Crime N 71003816436, Turma

  • 20

    Novamente, a incoerncia demonstrada nos julgados acima colacionados gritante:

    um cigarro de maconha parcialmente consumido parcialmente e pesando 0,643g no representa

    perigo de leso ou ofensa sade pblica; contudo, uma pedra de crack e duas buchas de

    cocana, pesando respectivamente, 0,276g e 0,481g, afastam a insignificncia pela qualidade

    e potencialidade das mesmas.

    Num silogismo infame, podemos concluir que maconha seria melhor ou menos

    lesiva sade pblica? Diante de tais critrios, a questo se torna complexa.

    A situao se repete no STJ: HC 171655 / SP44.

    Contudo, a jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal tem admitido a aplicabilidade,

    aos crimes militares, do princpio da insignificncia, mesmo que se trate do crime de posse de

    Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Fabio Vieira Heerdt, Julgado em 20/08/2012) (nfase

    acrescentada). 44 HABEAS CORPUS. EXECUO PENAL. FALTA GRAVE. POSSE DE DROGAS PARA USO

    PRPRIO. QUANTIDADE NFIMA. PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. INAPLICABILIDADE.

    DESCRIMINALIZAO DA CONDUTA PELA LEI N. 11.343/2006. INOCORRNCIA. FATO

    DEFINIDO COMO CRIME DOLOSO. INTERRUPO DA CONTAGEM DO TEMPO PARA A

    CONCESSO DE BENEFCIOS. IMPOSSIBILIDADE. AUSNCIA DE PREVISO LEGAL. PERDA

    DOS DIAS REMIDOS. LEI N. 12.433/2011. NORMA POSTERIOR MAIS BENFICA. APLICAO

    RETROATIVA.

    1. Esta Corte possui o entendimento de que "a pequena quantidade de substncia entorpecente, por ser

    caracterstica prpria do tipo de posse de drogas para uso prprio (art. 28 da Lei 11.343/06), no afasta a

    tipicidade da conduta" (HC n. 158.955/RS, Ministro Napoleo Nunes Maia Filho, Quinta Turma, DJe

    30/5/2011).

    2. A posse de drogas para uso prprio, no estabelecimento prisional, configura falta grave, nos termos do

    art. 52 da Lei de Execuo Penal, haja vista a natureza de crime da conduta do usurio de drogas,

    reconhecida pelo Plenrio do Supremo Tribunal Federal no julgamento de questo de ordem suscitada nos

    autos do RE n. 430.105 QO/RJ.

    3. O cometimento de falta grave no curso da execuo penal no implica a interrupo do cmputo do

    tempo para a concesso de benefcios, incluindo a progresso de regime, sob pena de violao do princpio

    da legalidade. Precedentes da Sexta Turma.

    4. A prtica de falta grave impe a perda de dias remidos.

    5. A partir da vigncia da Lei n. 12.433, de 29/6/2011, que alterou o disposto no art. 127 da Lei de Execuo

    Penal, a perda de dias remidos est limitada a 1/3 do total.

    6. Por se tratar de norma penal mais benfica, deve a nova regra incidir retroativamente.

    7. Cabe ao Juzo da execuo, considerando "a natureza, os motivos, as circunstncias e as consequncias

    do fato, bem como a pessoa do faltoso e seu tempo de priso", consoante o disposto no art. 57 da Lei de

    Execuo Penal, aferir o quantum da penalidade.

    8. Habeas corpus parcialmente concedido, apenas para afastar a interrupo do cmputo do tempo para a

    concesso de benefcios inerentes execuo penal, ante o cometimento de falta grave pelo paciente. Ordem

    concedida de ofcio, a fim de determinar que o Juzo da execuo proceda nova anlise da perda de dias

    remidos com base na atual redao do art. 127 da Lei de Execuo Penal.

    HC 171655 / SP, 6. Turma, Rel. Min. Sebastio Reis Jnior, julgado em 18/10/2011 (nfase acrescentada)

  • 21

    substncia entorpecente, em quantidade nfima, para uso prprio, ainda que cometido no

    interior de Organizao Militar. Entendimento que se extrai do HC 94809/RS45.

    Desta forma, questiona-se: por que a diferena verificada nos julgados supracitados

    quando da aplicao da insignificncia, se o Direito Penal entendido como ultima ratio - no

    deveria se ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor - por no importar em

    45 E M E N T A: "HABEAS CORPUS" IMPETRADO POR MEMBRO DO MINISTRIO PBLICO

    MILITAR DE PRIMEIRA INSTNCIA - PORTE DE SUBSTNCIA ENTORPECENTE - CRIME

    MILITAR (CPM, ART. 290) - PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA - IDENTIFICAO DOS

    VETORES CUJA PRESENA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE

    POLTICA CRIMINAL - CONSEQENTE DESCARACTERIZAO DA TIPICIDADE PENAL EM

    SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE POSSE DE SUBSTNCIA ENTORPECENTE -

    QUANTIDADE NFIMA, PARA USO PRPRIO - DELITO PERPETRADO DENTRO DE

    ORGANIZAO MILITAR - CONSIDERAES EM TORNO DA JURISPRUDNCIA DO

    SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - DOUTRINA - PRECEDENTES - PEDIDO DEFERIDO.

    "HABEAS CORPUS" IMPETRADO, ORIGINARIAMENTE, PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL

    FEDERAL, POR MEMBRO DO MINISTRIO PBLICO MILITAR DE PRIMEIRA INSTNCIA.

    LEGITIMIDADE ATIVA RECONHECIDA. DOUTRINA. JURISPRUDNCIA. - O representante do

    Ministrio Pblico Militar de primeira instncia dispe de legitimidade ativa para impetrar "habeas corpus",

    originariamente, perante o Supremo Tribunal Federal, especialmente para impugnar decises emanadas do

    Superior Tribunal Militar. Precedentes. O PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA QUALIFICA-SE COMO

    FATOR DE DESCARACTERIZAO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. - O princpio da

    insignificncia - que deve ser analisado em conexo com os postulados da fragmentariedade e da

    interveno mnima do Estado em matria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a prpria tipicidade

    penal, examinada na perspectiva de seu carter material. Doutrina. Tal postulado - que considera necessria,

    na aferio do relevo material da tipicidade penal, a presena de certos vetores, tais como (a) a mnima

    ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ao, (c) o reduzidssimo grau

    de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da leso jurdica provocada - apoiou-se, em

    seu processo de formulao terica, no reconhecimento de que o carter subsidirio do sistema penal

    reclama e impe, em funo dos prprios objetivos por ele visados, a interveno mnima do Poder Pblico.

    O POSTULADO DA INSIGNIFICNCIA E A FUNO DO DIREITO PENAL: "DE MINIMIS, NON

    CURAT PRAETOR". - O sistema jurdico h de considerar a relevantssima circunstncia de que a privao

    da liberdade e a restrio de direitos do indivduo somente se justificam quando estritamente necessrias

    prpria proteo das pessoas, da sociedade e de outros bens jurdicos que lhes sejam essenciais,

    notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou

    potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal no se deve ocupar de condutas que

    produzam resultado cujo desvalor - por no importar em leso significativa a bens jurdicos relevantes -

    no represente, por isso mesmo, prejuzo importante, seja ao titular do bem jurdico tutelado, seja

    integridade da prpria ordem social. APLICABILIDADE, AOS DELITOS MILITARES, INCLUSIVE AO

    CRIME DE POSSE DE QUANTIDADE NFIMA DE SUBSTNCIA ENTORPECENTE, PARA USO

    PRPRIO, MESMO NO INTERIOR DE ORGANIZAO MILITAR (CPM, ART. 290), DO PRINCPIO

    DA INSIGNIFICNCIA. - A jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal tem admitido a aplicabilidade,

    aos crimes militares, do princpio da insignificncia, mesmo que se trate do crime de posse de substncia

    entorpecente, em quantidade nfima, para uso prprio, ainda que cometido no interior de Organizao

    Militar. Precedentes.

    (HC 94809, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 12/08/2008, DJe-202

    DIVULG 23-10-2008 PUBLIC 24-10-2008 EMENT VOL-02338-04 PP-00644 RTJ VOL-00209-01 PP-

    00292)

  • 22

    leso significativa a bens jurdicos relevantes - no represente, por isso mesmo, prejuzo

    importante, seja ao titular do bem jurdico tutelado, seja integridade da prpria ordem social?

    Justamente, tal questionamento tem sua resposta prejudicada em face da ausncia de

    critrios suficientes para apurar se suficientemente lesiva a conduta do usurio que porta

    substncia entorpecente para consumo prprio.

    Na doutrina, Fbio Roberto DAvila aduz que:

    O modelo de crime como ofensa a bens jurdicos corresponde a uma

    compreenso material do ilcito penal centrada na ofensa a bens

    juridicamente tutelados, na qual o desvalor de resultado , por isso,

    chamado para a posio de pedra angular do ilcito-tpico. O crime

    encontra-se materialmente limitado s hipteses de ofensa ao objeto da

    tutela penal da norma, no havendo crime (legtimo) sem ofensa ao bem

    jurdicopenal.46

    Entendendo que o modelo de crime como ofensa a bens no se esgotaria em uma

    compreenso material do fato criminoso, Fbio Roberto DAvila assevera que a mais

    significativa expresso do modelo de crime como ofensa a bens no espao de discursividade

    jurdico penal advm do princpio da ofensividade, e explica:

    O princpio da ofensividade, lmpida projeo deste modelo de crime, do

    crime como ofensa a bens jurdicos, representa, antes de qualquer coisa, a

    expresso poltico-ideolgica de um estado pluralista, laico, inspirado em

    valores de tolerncia, no qual todo o poder estadual emana do povo soberano,

    que reconhece no homem o valor da dignidade e um ncleo de direitos

    inviolveis. Logo, de um Estado que no pode admitir seno um direito penal

    de efetiva tutela de bens jurdicos no qual no absolutamente espao para a

    persecuo de objetivos ticos, para a punio de inclinaes anti-sociais ou

    da mera infrao ao dever.47

    Ainda nessa linha, Fbio Roberto DAvila explica ser o princpio da ofensividade um

    princpio de Direito penal com um carter garantista destacado e que surge, ao lado da

    culpabilidade e da materialidade como um dos princpios fundamentais dos ordenamentos de

    inspirao liberal e democrtica.48

    46 DAVILA, Fbio Roberto. Ofensividade e Crimes omissivos prprios. Coimbra: Editora Coimbra, 2005,

    p. 46. 47 Ibidem, p. 48. 48 DAVILA, Fbio Roberto. Ofensividade e Crimes omissivos prprios. Coimbra: Editora Coimbra, 2005,

    p. 48.

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    Pelo que j foi colocado at o momento, fica claro que de acordo com o princpio da

    ofensividade (nullum crimen sine iniuria), s h crime se existir leso ou perigo concreto de

    leso ao bem jurdico tutelado.

    3. CONCLUSO

    Pelos julgados aqui reproduzidos, tentamos demonstrar as incongruncias que assolam

    nossa jurisprudncia, pois se utiliza de critrios descompassados na aplicao do 2 do art. 28

    da Lei de Txicos (11.343/2006); seja para enquadrar erroneamente o usurio no delito de

    trfico, seja para desclassificar o trfico para o porte para consumo prprio.

    Em clara violao da dignidade da pessoa humana, princpios basilares do Direito

    Penal de Garantias esto sendo esquecidos quando no distorcidos ou desconsiderados

    por nossas Cortes, pois fazem uso de critrios que ousamos discordar:

    Condies sociais e pessoais do agente: Valorar (negativamente) a conduta social do

    indivduo afronta o princpio da dignidade da pessoa humana (art. 1, III, CF), uma vez que no

    pode o agente ser julgado pelo modo de vida ou comportamento. Da mesma forma, a condio

    pessoal do agente, em virtude dos argumentos doutrinrios aqui expostos, tal circunstncia no

    deve ser levada em conta pelo juiz quando da apurao dos critrios para caracterizao do

    porte para consumo prprio ou para operar a desclassificao do trfico, pois configura o temido

    direito penal do autor e afronta a dignidade da pessoa humana. Ainda, no possui o magistrado

    conhecimentos tcnicos especficos para aferio da personalidade do agente, por isso que no

    dever valorar tal circunstncia.

    Antecedentes: Aps a matria ter sido sumulada (n.444, STJ), ainda assim

    entendemos que tal circunstncia no deveria ser valorada, corroborando com o entendimento

    de CARVALHO49 e ZAFFARONI, uma vez que o que deve ser valorado o fato e no o autor:

    o direito penal do autor parece o produto de um crtico desequilbrio deteriorante da dignidade

    humana daqueles que o sofrem e o praticam.50. Deste modo, entendemos que a valorao dos

    49 CARVALHO, Salo. CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicao da pena e garantismo, pg. 45. Rio de

    Janeiro: Lumen Juris, 2001 50 ZAFFARONI, Op. cit. p.132

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    (maus) antecedentes viola o princpio constitucional da presuno de inocncia (art. 5, LVII,

    CF).

    No que tange aplicao do princpio da insignificncia, o principal bice do qual

    tambm discordamos reside no fato de ser a sade pblica, a coletividade, o bem jurdico

    tutelado pela lei em questo, fazendo com que em uma hiptese de flagrante, a posse de uma

    pequena quantidade j seria suficiente para uma incriminao, tal qual demonstrado pela

    jurisprudncia aqui elencada.

    Assim, claro que o princpio da interveno mnima no aplicado na sua

    integralidade; consequncia direta, em virtude da dignidade da pessoa humana que um dos

    princpios fundamentais de nossa Repblica (art.1, III, CRFB88) no se mostra cabvel

    qualquer punio, dentro da esfera penal, que resulte em sano, por menor que seja, se o bem

    jurdico tutelado no for de fato lesionado. Neste interim, a quantidade mnima de entorpecente

    no seria suficiente nem para a tipificao do delito previsto no art. 28 da Lei de Txicos.51

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    51 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit., p.299

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    Porto Alegre: Verbo Jurdico, 2007.

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