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7 III. Projeto Político-Pedagógico III.1 Composição, interpretação/execução e pesquisa em música –Projeto Político-Pedagógico para o DM-FFCLRP-USP com a fusão de horizontes das três grandes áreas da música Prof. Dr. Rubens Russomanno Ricciardi Decano e Professor Titular Breve introdução A música enquanto arte não apenas nos dá prazer, mas pode se configurar também como caminho para o conhecimento. Desde os tempos homéricos (ver Odisséia, 9, 6), os aedos, precursores não só dos músicos, mas também dos poetas e historiadores modernos, já eram “provedores de prazer e de sabedoria” (KRAUSZ, 2007, p.24). Aquela antiga tradição arcaica se consolida no período clássico grego. Segundo Aristóteles (384-322 a.C.), “é preciso fazer uso de todas as harmonias, mas não de todas do mesmo modo. Os vários tipos de música nos proporcionam prazer, incitando à ação e inspirando à comoção, e ainda nos fazem pensar enquanto aprendizado” (Política, VIII, 7, 1341 b30). Assim, apresentamos aqui neste projeto político-pedagógico para o DM-FFCLRP-USP (um curso novo, recém fundado a 14 de dezembro de 2010) aspectos da composição, interpretação/execução e pesquisa musical, de modo que o presente inventivo e a formação do intérprete-executor de modo algum se encontram desatrelados da pesquisa estético-histórica. A própria música enquanto arte é também história em seu sentido mais essencial. Segundo Martin Heidegger (1889- 1976), “a arte funda a história” (1960 [1935], p.80). É por isso que pensamos o presente e revisitamos o passado através da música. Poiesis, Praxis e Theoria em Música Deixando de lado o caráter excludente do par teoria/prática, procuramos chamar a atenção para o fato de que na verdade são pelo menos três (e não dois) os fundamentos das atividades musicais. Relacionamos assim os três principais ofícios da música: 1) composição (ofício do compositor), 2) interpretação/execução (ofício do instrumentista, cantor e regente) e 3) musicologia (ofício do pesquisador em música), retomando o trio de conceitos poética/práxis/teoria já tão estudados ao longo da história. Infelizmente, contudo, já há muito esquecidos pela opinião pública. Pois vejam que a poética sequer consta do vocabulário de hoje em dia.

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    III. Projeto Poltico-Pedaggico III.1 Composio, interpretao/execuo e pesquisa em msica Projeto Poltico-Pedaggico para o DM-FFCLRP-USP com a fuso de horizontes das trs grandes reas da msica

    Prof. Dr. Rubens Russomanno Ricciardi Decano e Professor Titular

    Breve introduo

    A msica enquanto arte no apenas nos d prazer, mas pode se configurar tambm como caminho para o conhecimento. Desde os tempos homricos (ver Odissia, 9, 6), os aedos, precursores no s dos msicos, mas tambm dos poetas e historiadores modernos, j eram provedores de prazer e de sabedoria (KRAUSZ, 2007, p.24). Aquela antiga tradio arcaica se consolida no perodo clssico grego. Segundo Aristteles (384-322 a.C.), preciso fazer uso de todas as harmonias, mas no de todas do mesmo modo. Os vrios tipos de msica nos proporcionam prazer, incitando ao e inspirando comoo, e ainda nos fazem pensar enquanto aprendizado (Poltica, VIII, 7, 1341 b30). Assim, apresentamos aqui neste projeto poltico-pedaggico para o DM-FFCLRP-USP (um curso novo, recm fundado a 14 de dezembro de 2010) aspectos da composio, interpretao/execuo e pesquisa musical, de modo que o presente inventivo e a formao do intrprete-executor de modo algum se encontram desatrelados da pesquisa esttico-histrica. A prpria msica enquanto arte tambm histria em seu sentido mais essencial. Segundo Martin Heidegger (1889-1976), a arte funda a histria (1960 [1935], p.80). por isso que pensamos o presente e revisitamos o passado atravs da msica.

    Poiesis, Praxis e Theoria em Msica

    Deixando de lado o carter excludente do par teoria/prtica, procuramos chamar a ateno para o fato de que na verdade so pelo menos trs (e no dois) os fundamentos das atividades musicais. Relacionamos assim os trs principais ofcios da msica: 1) composio (ofcio do compositor), 2) interpretao/execuo (ofcio do instrumentista, cantor e regente) e 3) musicologia (ofcio do pesquisador em msica), retomando o trio de conceitos potica/prxis/teoria j to estudados ao longo da histria. Infelizmente, contudo, j h muito esquecidos pela opinio pblica. Pois vejam que a potica sequer consta do vocabulrio de hoje em dia.

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    Mas afinal, o que ser esta tal potica em msica, que requer tanto teoria como prtica,

    mas que transcende a ambas, contemplando uma atividade prpria de sua essncia? o que vamos verificar logo a seguir. Em meio a estas trs atividades procuramos o tempo todo re-analisar contedos e conceitos, pois como afirmou Immanuel Kant (1724-1804), pensamentos sem contedo so vazios, convices sem conceitos so cegas (1781, A51).

    Composio - pi em msica

    De um modo geral podemos conferir equivalncias pi com nossos verbos produzir, fazer, fabricar, realizar, compor2. A potica (ou poitica, pois se trata do ensino da poiesis), neste sentido primordial, compreende ao mesmo tempo a concepo (projeto, programa, manifesto normativo) e a produo (composio, realizao) da obra de arte. O conceito vlido no s para a poesia, mas tambm para todas as artes, incluindo-se a msica. Digamos assim, tudo que envolve o trabalho de um compositor sua potica musical.

    E dos trs ofcios da msica a composio a atividade mais artstica em sua essncia. Como afirma Theodor W. Adorno (1903-1969), a composio, em todos os tempos, sempre decide sobre a posio da msica (1975 [1949], p.9). E se Friedrich Hlderlin (1770-1843) dizia que o que permanece, inauguram os poetas (apud HEIDEGGER, 2003 [1950/1959], p.132), o mesmo procede com os compositores. Cada grande compositor tambm inaugura a histria.

    A composio musical tanto fundamento da histria quanto inveno. Luigi Pareyson (1918-1991) enaltece o carter inventivo da arte, j que o simples fazer no basta para definir sua essncia. A arte tambm inveno. Ela no execuo de qualquer coisa j idealizada, realizao de um projeto, produo segundo regras dadas ou predispostas. Ela um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer (1997 [1966], p.25-26). Justifica-se assim que Igor Stravinsky (1882-1971) tenha se definido certa vez no como compositor, mas como inventor de msica (1996

    2 Na traduo de pi exclumos no s o verbo criar, como tambm o substantivo criao e ainda o

    adjetivo criativo. No apenas porque para Toms de Aquino o conceito de criao aplicado a obras humanas pareceria blasfmia (DAHLHAUS, 1967, p.9) - e por certo aquele santo medieval teria l suas razes para tal considerao - mas tambm porque os publicitrios e os profissionais da tecnologia gentica corromperam o conceito quem sabe j de modo irreversvel. Afinal, o que ainda resta de artstico na autoproclamada criatividade da propaganda e do marketing? E ser que Deus concedeu o dom aos tecnlogos da gentica, para que prossigam um pouco com a criao, quando criam, por exemplo, nossos replicantes?

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    [1942], p.55). Mas tal definio infelizmente passou despercebida e hoje ainda relacionamos mais comumente inveno figura de um Thomas Edison (1847-1931) ou de Santos Dumont (1873-1932). No entanto, o conceito bem antigo. De inventione, obra de juventude de Marco Tlio Ccero (10643 a.C.), encontra-se entre suas fontes primordiais. Oriundo da retrica latina o conceito passou posteriormente a outras reas do conhecimento. Na msica, o conceito de inveno enquanto composio inovadora remonta a ttulos de obras e prefcios do Renascimento e do Barroco, como as Inventions musicales (1555) de Clment Janequin (1485-1558). Entre outros, Johann Sebastian Bach (1685-1750), na introduo de uma entre suas obras didticas mais importantes, as Invenes a duas vozes (Leipzig, 1723), tambm pensava na importncia do conceito de inveno para a composio musical:

    Para que seja mostrado de maneira clara queles que tm amor pelos instrumentos de teclado e, em especial, queles que desejam ampliar o conhecimento, para que aprendam de maneira boa e correta a trabalhar no apenas (1) com duas vozes, mas tambm consequentemente aps a continuidade dos progressos, (2) para lidar com trs vozes todas elas escritas, e, ao mesmo tempo com isso, no obtenham apenas boas invenes, mas sim tambm, por si prprios, desenvolvam bem o mais possvel uma maneira cantabile de se tocar e simultaneamente um forte gosto pela composio (BACH, 1978 [1723], p.IV).

    Bach se preocupava com a boa formao geral do aluno de msica, devendo este aprender por si prprio. Ou seja, a ampliao do conhecimento condicionado no s ao estudo incessante, mas tambm a iniciativas prprias de aprendizado. E tambm no s atrelando a composio enquanto inveno interpretao/execuo, como estabelecendo relaes evidentes com o processo notacional e o carter grafocntrico (centrado na escritura) do 3 musical, articulando ainda conjuntamente teoria e

    3 um conceito central em Herclito. Ou mesmo, a palavra das palavras em Herclito (COSTA,

    2002, p.223). Hoje, contudo, o conceito de pertence ao vocabulrio dos mais diversos idiomas, j que as tradues possveis acabam lhe conferindo um significado estreitamente determinado, restringindo-se assim suas dimenses originais. De um modo geral, podemos traduzir num primeiro sentido maior relacionado s questes da linguagem humana (linguagem, enunciado, expresso, discurso, narrao, ditado, proposio, orao, sermo, palavra, verbo). No por menos, tem a ver com (colecionar, recolher, enumerar, bem como contar, dizer, falar, conversar, proferir um discurso ou conferncia, ler em voz alta, explicar, relatar, nomear, chamar, ordenar, declarar, avisar), e, em especial ainda, tambm com (dizer algo significativo, enunciar). Mas indica tambm no s os caminhos entre linguagem e pensamento (ensinamento, tratado, tema, considerao, modo, sentido, definio, conceito, termo), como ainda as dimenses do prprio pensamento. Neste segundo sentido maior e no menos importante, traduz-se o atravs da capacidade de discernimento por parte do ser humano (inteligncia, raciocnio, razo). Mas o aqui deve ser entendido sempre j enquanto grande pensamento, para alm de qualquer razo particular. No de Herclito temos a unidade da linguagem enquanto revelao e pensamento. No entanto, Heidegger, que se preocupou reiteradamente com o conceito de em Herclito, restringe sua anlise ao primeiro sentido acima citado. Ouamos agora algumas das concluses de Heidegger, em especial para desatrelar tanto da lgica como da racionalidade moderna: desde a Antiguidade, interpretou-se o de Herclito das maneiras mais

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    esttica musical. Passados quase 300 anos, ainda so estes mesmos exatos princpios bachianos que seguimos aqui.

    Est claro tambm que Herclito de feso (c.544-474 a.C.) a origem do aqui citado, conceito este que remonta a vrios fragmentos4 seus. J sobre o sentido grafocntrico do h que se lembrar de Jacques Derrida (1930-2004). A este filsofo francs remonta o conceito de criture (DERRIDA, passim, 2005 [1967]). Para que possamos compreend-lo, vamos citar uma definio elaborada por Srgio Paulo Rouanet (*1934):

    Para Derrida, preciso desconstruir o mito fonocntrico, mostrando que no a voz (oralidade) que primria, e sim a escrita, a criture, que esta que est na origem de toda linguagem. A escritura no secundria, mas original. No um veculo de unidades lingusticas j constitudas, mas o modo de produo que constitui essas unidades. A escrita, neste sentido amplo, significa toda prtica de diferenciao, de articulao, de espaamento. A palavra-chave diferena. A criture, no sentido de Derrida, a atividade mais primordial de diferenciao, e por isso que est na origem de toda linguagem, conjunto de unidades cujo sentido dado exclusivamente por seu carter diferencial com relao a todos os demais signos (ROUANET, 1987, p.242-243).

    No h dvida que uma mesma idia de criture enquanto alicerce para a inveno musical e diferena intrnseca na linguagem da obra de arte j era salientada por Bach quando se referia importncia das vozes todas elas escritas - ou ainda, numa outra traduo mais literal, da execuo obrigatria das partes5 (obligaten Partien). Ento, com isso queremos dizer que a obra de arte musical impossvel sem a partitura? Chegamos a tanto? No, porque a grafia musical s foi se aperfeioando na medida em que o experimento sonoro tambm sempre

    diversas: ora como ratio, ora como verbum, ora como lei do mundo, ora como o que lgico e a necessidade de pensamento, ora como sentido, ora como razo. Sempre de novo um convite razo insiste, como o parmetro de todo fazer e deixar fazer. Mas o que poder a razo se, junto com a des-razo e a anti-razo, ela se mantm no patamar de uma mesma negligncia? Ou seja, da negligncia, que se esquece de pensar de onde provm a essncia da razo e de se empenhar por seu advento? O que poder fazer a lgica, (pi), de qualquer espcie que seja, se nunca comeamos a prestar a ateno ao e em seguir sua essncia originria. do que depreendemos o que o . O que significa ? Todo mundo que conhece a lngua grega sabe a resposta: significa dizer e falar; significa: , como aussagen enunciar, e , como o enunciado ausgesagten (HEIDEGGER, 2001 [1954], p.184). 4 A numerao dos fragmentos de Herclito remonta aos fillogos alemes Hermann Diels (1848-1922) e

    Walther Kranz (1884-1960). J as tradues das fontes primrias de Herclito diretamente para o portugus sero sempre citadas aqui segundo Alexandre da Silva Costa (2002). Por sorte, ns lusfonos dispomos em vernculo no s destas extraordinrias tradues, como tambm deste que o mais importante e abrangente estudo crtico realizado at hoje sobre a integral dos fragmentos de Herclito em qualquer idioma. 5 A parte na msica a execuo individual de um instrumento ou voz. Bach designou aqui por parte

    cada uma entre as linhas meldicas de suas invenes a duas ou trs vozes, executadas sempre por um nico tecladista. Na msica de cmara ou sinfnica cada msico l em separado sua parte. J a solfa (antiga denominao em portugus para notao musical ou papis de msica) que rene todas as partes escritas pelo compositor recebe o nome de partitura ou grade. Geralmente os msicos trabalham com partes cavadas. J o compositor e depois tambm o regente com a partitura.

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    se renovou mesmo atravs de improvisos sem qualquer submisso a priori em relao escritura.

    Ainda naquela poca (primeira metade do sculo XVIII), numa perspectiva talvez no to pragmtica quanto Bach, mas de modo algum menos filosfica, Antonio Vivaldi (1675-1741) publicava seu Opus VIII (Amsterd, 1725), no qual esto contidas os concertos dAs quatro estaes, com o sugestivo ttulo Il cimento dellarmonia e dellinvenzione (O confronto da harmonia e da inveno). Submetida prova da harmonia, a inveno confirma a sua soberania, a ordem e a liberdade saem unidas desse confronto, desse fecundo cimento (CAND, 1990 [1967], p.132). Vivaldi, inspirado quem sabe em Herclito, compreende confronto do mesmo modo enquanto pi6, evidenciando o conflito musical da natureza (harmonia mundi enquanto 7) e da linguagem ( enquanto inventio) voltaremos ainda a esta mesma questo quando citarmos o Fragmento LIV de Herclito.

    Vamos abordar agora um pouco mais a questo da linguagem em msica. Alm da poesia e literatura - literalmente as artes de linguagem - abordamos sempre a questo da linguagem em relao msica atravs de uma metfora, assim como em relao s demais artes. Numa frase atribuda a Simnides de Cos (557/556 - 468/467 a.C.) temos j um exemplo de como so antigas as metforas entre as linguagens artsticas: a pintura uma poesia silenciosa e a poesia uma pintura que fala (apud DETIENNE, 1988 [1967], p.56). A metfora se faz presente e nas artes j sempre vigora a linguagem. Ser que podemos pensar tambm a

    6 O conceito de pi dos mais importantes em Herclito: necessrio saber que a guerra comum

    e a justia, discrdia, e que todas as coisas vm a ser segundo discrdia e necessidade (Fragmento LXXX), ou ainda, de todos a guerra pai, de todos rei; uns indica deuses, outros homens; de uns faz escravos, de outros, livres (Fragmento LIII). Alexandre Costa justifica sua traduo de pi por guerra: preciso salientar que o sentido predominante do termo , aqui, o figurado. A guerra , portanto, menos o acontecimento concreto e hopltico do que o combate, a luta intrnseca a toda guerra e constitutiva de todas as oposies e anteposies a tenso que une e distingue (COSTA, 2002, p.111). Por isso, ns utilizamos em nossa definio de arte o sentido do confronto tambm como polmica de idias, pois pode ser pensado de uma maneira mais ampla. Temos em vista, em especial, o conflito ideolgico, no reconhecimento das iluses no conhecimento humano e das distores na poltica. Lembremo-nos de Karl Marx (1818-1883) influenciado por Georg W. Friedrich Hegel (1770-1831). A influncia de Hegel foi decisiva para a elaborao das anlises crticas de Marx (no obstante a inexistncia do conceito de ideologia em Hegel). E o conceito de pi e todos demais contidos nos fragmentos de Herclito foram referncias fundamentais para que o prprio Hegel elaborasse suas teses dialticas (no obstante a inexistncia de sntese em Herclito). 7 O conceito de habitualmente traduzido por natureza que vem do latim, natura, nasci: nascer,

    surgir, crescer, ser criado. Assim, podemos at mesmo falar de um processo de pi na , ou seja, de uma potica da natureza. Mas o conceito, como por exemplo, em Herclito, a natureza ama ocultar-se (Fragmento CXXIII), de fato ainda mais amplo do que hoje poderamos entender como objeto das cincias naturais (fsica, qumica, biologia etc.). Heidegger a define como a vigncia auto-instauradora do ente na totalidade. Ou seja, a enquanto este ente na totalidade no pensada no sentido moderno e tardio da natureza, mais ou menos como o conceito contrrio ao conceito de histria. Ao invs disso, ela vista como mais originria do que estes dois conceitos: ela vista em uma significao originria, que diante da natureza e da histria encerra a ambos e que tambm contm em si de certa maneira o ente divino (HEIDEGGER, 2006 [1929/1930], p.32-33).

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    msica, como linguagem, tal qual a poesia? Claro que sim. Numa perspectiva heideggeriana, a linguagem no apenas e nem em primeira linha uma expresso sonora (palavra falada) ou escrita (palavra impressa) daquilo que deve ser comunicado. A linguagem promove aquilo que se pretende difundir no apenas com palavras e frases. Tal como a arte, a linguagem sempre essencialmente poesia. E a essncia da poesia est presente em todas as artes. A arte, em sua essncia indissocivel, como origem, da obra de arte e do prprio artista (ver HEIDEGGER, 1960 [1935], p.7-8), desdobra-se como linguagem entendida na presena inventiva e diferenciada da existncia humana. Na arte ocorre ainda a maior possibilidade de transcendncia do ser humano. E quais seriam as condies com as quais o compositor elabora sua linguagem musical?

    O compositor trabalha com pelo menos trs condies em seu ofcio, condies estas atreladas umas s outras: o carter operativo do arteso, a singularidade solitria e a exposio de mundo. Mesmo que esta diviso no deva se estancar em limites fronteirios por demais rgidos, certa epistemologia8 ainda se faz necessria. E justificamos tal necessidade epistemolgica com Ludwig Wittgenstein (1889-1951): mesmo sendo o mundo infinitamente complexo, de tal modo que cada fato consista infinitamente de muitos estados de coisas e cada estado de coisas seja composto infinitamente por muitos objetos, ainda assim h que haver objetos e estados de coisas (1963 [1918], 4.2211 / p.49). Em nosso caso, talvez seja o momento de repensarmos quais as verdadeiras condies para um compositor exercer seu ofcio, num cuidado maior que no se contenta apenas com argumentos tais como a espontaneidade do artista, seu talento nato ou sua inexplicvel genialidade. Mesmo que no tenhamos qualquer pretenso de subestimar todo um enigma que sempre envolve os processos inventivos na arte, ainda assim, por trs disso tudo, existem tarefas tanto incontornveis quanto exaustivas de trabalho. No propomos uma viso meramente romantizada sobre o ofcio do compositor (pelo menos pensamos que no). Alis, frequente hoje em dia a postura de se conferir um ideal romntico a qualquer atitude afirmativa ou proponente em arte. Mas se assim de fato o fosse, Herclito j teria sido romntico bem antes do inventor do romantismo, Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). Mesmo a essncia da paixo romntica no privilgio do perodo romntico. Leia-se, por exemplo, esta frase extrada de uma melodia cantada: voc est comigo, morrerei feliz... ah, como seria prazeroso se assim fosse meu fim, se as tuas belas mos fechassem meus olhos fiis. Seria de um compositor romntico do sculo XIX? No. Trata-se de Bist du bei mir, ria de Gottfried Heinrich Stlzel (1690-1749), arranjada por Bach por volta de 1725, logo aps seu casamento com a jovem cantora Anna Magdalena. Ser que Bach j era

    8 Este conceito definido comumente por teoria do conhecimento, cujas razes remontam pi

    (cincia, conhecimento) e ao (discurso).

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    romntico? Ou seja, mesmo que hoje em dia muitos faam piadas sobre qualquer proposta construtiva ou definidora em arte, este justamente o caminho que trilhamos.

    E longe de ns est tambm qualquer tentativa de solucionar problemas de adequao ao mercado real de trabalho, tanto mais se tivermos em vista os padres redutivos da indstria da cultura9, que impera de maneira hegemnica em todos os continentes. Idealizamos aqui as

    9 O conceito de indstria da cultura, central em toda a Escola de Frankfurt, remonta ao livro Dialtica do

    Iluminismo (Dialektik der Aufklrung), de Adorno & Max Horkheimer (1895-1973). Seu captulo mais famoso justamente Indstria da cultura Iluminismo enquanto logro massificado (ADORNO & HORKHEIMER, 1969 [1944/1947], Kulturindustrie Aufklrung als Massenbetrug, p.128-176). Entende-se logro aqui tal como no Dicionrio Aurlio: engano propositado contra algum, artifcio ou manobra ardilosa para iludir. Mrio de Andrade (1893-1945), quela altura, tambm se preocupava aqui no Brasil com a mesma questo: preciso lembrar que as massas dominadas, entre ns, so... dominadas. O que quer dizer que elas no tm suficiente conscincia de si mesmas, nem foras de reao para conscientizarem o seu gosto esttico e as suas preferncias artsticas (ANDRADE, 1945, p.12). Embora Mrio de Andrade tivesse reconhecido o problema, foram Adorno & Horkheimer que cunharam a expresso, reconhecendo que as massas so enganadas e iludidas atravs da indstria da cultura. As teses principais deste citado captulo so: Toda cultura de massa sob monoplio idntica. / Os interessados explicam a indstria da cultura de bom grado atravs do carter tecnolgico. / Racionalidade tcnica hoje a prpria racionalidade da dominao. / Por hora a tcnica da indstria da cultura s chegou estandardizao e produo em srie, sacrificando aquilo pelo qual a lgica da obra se distinguia da lgica do sistema social. / A completa semelhana a diferena absoluta. / Salienta-se na ideologia plano ou acaso, tcnica ou vida, civilizao ou natureza, de acordo com cada caso, em qual aspecto se encontra justamente sob medida. / O bonito aquilo que a cmera sempre reproduz. / A liquidao do carter trgico confirma a extino do indivduo. / O gosto dominante relaciona seu ideal a partir da propaganda, da beleza utilitria. Assim, ao final, realizou-se ironicamente a concepo socrtica: o belo o til. / [Desde Goebbels], tcnica e economicamente, a propaganda se confunde com a indstria da cultura, assim, Ausschwitz = Hollywood (passim ADORNO & HORKHEIMER, 1969 [1944/1947]). Estas teses centrais de Adorno e Horkheimer apontam para o fato de que a indstria da cultura se tornou o maior problema ideolgico de nossos tempos. Ouamos aqui as anlises de Leandro Konder (*1936) sobre a questo: Adorno e Horkheimer se dispem a aproveitar todos os sinais de contradies que estejam sendo camufladas, sonegadas pela iluso de harmonia, que caracteriza a forma dominante da ideologia na vida cultural contempornea. Os que sucumbem ideologia so exatamente os que ocultam a contradio. A idia de maior impacto veiculada pela Dialtica do Iluminismo a de que, na nossa poca, no sculo XX, a ideologia dominante e a sua capacidade de impingir s pessoas uma iluso de harmonia adquiriram um poder muito superior quele que Marx poderia ter imaginado no sculo XIX, graas indstria da cultura. Adorno e Horkheimer denunciam o funcionamento dos meios de comunicao de massa e a indstria de entretenimento como um sistema que no s assegurou a sobrevivncia do capitalismo como continua exercendo funo essencial em sua preservao, reproduo e renovao. A produo cultural em escala notavelmente ampliada exigiu colossais investimentos e rendeu lucros gigantescos. Para viabilizar-se, contudo, ela precisava de certa padronizao, de certa limitao imposta diversificao das expresses culturais: por isso, investiu tambm na formao de um vasto pblico consumidor de comportamento passivo e, tanto quanto possvel, desprovido de esprito crtico (KONDER, 2002, p.74-87). Vamos dar um exemplo. A ingenuidade de alguns pode levar concluso de que uma cantora de microfone como Madonna (*1958) seria politicamente incorreta na transgresso de valores ao insinuar-se em qualquer tipo de cena de sexo. Nada disso. Adorno & Horkheimer j haviam previsto esta lgica de sistema na qual uma pop-star como ela est impreterivelmente inserida, pois se as obras de arte so ascticas e desprovidas de vergonha, j a indstria da cultura pornogrfica e pudica (ibidem, p.148). Ocorre cada vez mais um contraponto ontologicamente precrio entre uma vida supostamente eficiente (a exigncia social inexorvel de alto desempenho, tendo-se em vista o esprito de competio capitalista) e todo tipo de curtio no crtica. Talvez possamos defini-la como a banalizao do entretenimento ou ainda o mundo compreendido como parque de diverses. No por menos, em relao a esta ltima questo, Adorno e Horkheimer j advertiam que quem se diverte, est de acordo (ibidem, p.153). Ou seja, de um lado, a presso por uma existncia eficaz, seja l o que isso for. De outro, a necessidade do prazer sempre imediato somada

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    condies no ofcio de compositor na perspectiva de uma ampla mesmo que rara singularidade potica.

    A primeira condio no ofcio de compositor diz respeito ao carter operativo do arteso, condio esta muito importante para o ofcio como um todo. O compositor precisa lidar com as ferramentas de trabalho e demais recursos artesanais com plena desenvoltura. Se nem todo arteso um artista, todo artista deve ser necessariamente um arteso. Como afirma Luigi Pereyson, o ofcio [de arteso] tem uma curiosa prerrogativa: pode existir sem a arte, enquanto, pelo contrrio, a arte no pode passar sem ele (1997 [1966], p.171) fundamento este, alis, ignorado pela arte conceitual10 do sculo XX. J segundo Paul Ricoeur (1913-2005), o autor [artista] o arteso em obra de linguagem (1990, p.52). Handwerk para os alemes ou mtier para os franceses, entendemos esta condio enquanto parte operativa da pi. Heidegger diria Herstellung inspirado em Aristteles. Em msica dizemos que o trabalho do compositor no tratamento dos materiais musicais e sua produo a partir dos princpios de repetio, contraste e variao. Deve-se lembrar ainda de suas disposies texturais e estruturais na utilizao conjunta dos parmetros musicais (altura, durao, intensidade e timbre), bem como de toda sorte de articulao sucessiva e simultnea dos sons musicais, independente de qual seja o sistema musical em questo. Nas escolas da assim chamada msica clssica11 estes conhecimentos artesanais imprescindveis recebem

    reiterada lgica de nossos tempos: eu consumo, logo existo. Os autores analisam criticamente ainda a suposta liberdade conferida indstria da cultura e suas mltiplas alternativas (diramos hoje uma liberdade de essncia neoliberal), concluindo que todos so livres para danar e se divertir, como, desde a neutralizao histrica da religio, so livres para ingressar em uma das inumerveis seitas. A liberdade na escolha das ideologias, contudo, que sempre reflete a presso econmica, revela-se em todos os setores como a liberdade para o sempre-igual (ibidem, p.176). Passados mais de 60 anos do livro de Adorno e Horkheimer, alguns dizem que o assunto j est ultrapassado. Mas no est. Como toda boa filosofia, a crtica contrria indstria da cultura se confirma cada vez mais proftica. Ou outros dizem que tudo se tornou indstria da cultura, at mesmo Bach, Mozart, Beethoven, Chopin, Stravinsky ou Villa-Lobos, gravados e difundidos desde sempre por grandes selos fonogrficos. S que em nenhum momento dissemos aqui que todo produto comercializado no mercado fonogrfico logo indstria da cultura, porque este conceito no se define pela venda ou difuso (afinal, de algum modo toda obra de arte tem que ser paga), mas sim pelo processo inventivo. A obra de arte traz a assinatura de um artista e contempla artesanato diferenciado, singularidade e exposio de mundo. Indstria da cultura uma linha de montagem de produtos padronizados em srie e o chefe do setor ou decisor atua no marketing. 10

    Arte conceitual aquela em que o suposto artista dispensa o trabalho com os recursos artesanais. Ou seja, arte conceitual uma arte sem artesanato. Algo diverso, portanto, daquilo que Pareyson neste caso como tambm os gregos entendiam por arte. 11

    Quando se fala de msica clssica geralmente se restringe o rtulo a grandes nomes de compositores invariavelmente do passado, dignos de pertencer a algum perodo nobre da histria. Estes compositores so sempre to clebres que podem constar como assunto escolar em classes da academia. Ignora-se assim o que poderia ser de fato um conceito pertinente, cronologicamente restrito ao estilo posterior ao Barroco e anterior ao Romantismo, conhecido mais precisamente por Escola de Haydn, qual se incluem

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    nomes de disciplinas: harmonia, contraponto, orquestrao, percepo e solfejo, anlise e estudo de linguagem, forma e estruturao etc. Contudo, nos cursos de composio por este mundo afora, raramente uma proposta curricular ousa se aventurar para alm destes primeiros passos. como se esta primeira condio fosse nica no ofcio de compositor. Ser mesmo? Se assim o fosse, seramos apenas eruditos12 e

    tambm Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e Ludwig van Beethoven (1770-1827). E sequer podemos generalizar o Estilo Clssico (lembremo-nos do livro de Charles Rosen, The Classical Style, publicado nos EUA, em 1971) a toda uma poca, porque estes trs compositores foram no a regra, mas a exceo do perodo. quela altura, fora Franz Joseph Haydn (1732-1809), Mozart e Beethoven, quase todos os demais compositores em todo o mundo praticaram uma espcie de Barroco tardio. Mas na ditadura da opinio pblica tal generalizao de msica clssica (ou msica erudita, alis, outro conceito igualmente distorcido como veremos na prxima nota de rodap) exclui qualquer possibilidade desta msica ser composta aqui e agora. Ela no pode ser contempornea nem muito menos experimental. Assim sendo, j deve estar extinta, pois no pertence nossa poca. Afinal, com o conceito clssico, neste sentido distorcido, a possibilidade de haver um compositor vivo passa a ser um absurdo. Como poder ser j um clssico se ainda estiver vivo? 12

    O adjetivo erudito remonta na msica Antiguidade romana e aos primrdios dos tempos medievais, reduzida condio acadmica e, portanto, num sentido de escolaridade em meio herana tardia da pi. Sua fonte mais antiga talvez seja Caio Plnio Segundo (ca.23-79) - nobre naturalista romano tambm conhecido por Plnio velho (Plinius maior). Em sua Historia naturalis (uma espcie de enciclopdia de todo o conhecimento da antiguidade, precursora do gnero iluminista), Plnio relacionou a msica condio de engenho e erudio no contexto da harmonia das esferas: tibiarum specie music arti portendere, obscenis autem moribus in verendis partibus signorum, ingeniis et eruditioni, si triquetram figuram quadratamve paribus angulis ad aliquos perennium stellarum situs edat; venena fundere in capite septentrionalis austrinaeve serpentis (Livro II, 93), ou seja, se [as estrelas cadentes ou cometas] desenham-se como flautas, predizem a arte da msica; caso apaream nas partes obscenas das constelaes, revelam comportamentos escandalosos; se por ventura mostrarem-se como um tringulo ou um quadrado de ngulos idnticos, significam engenho e erudio, em relao posio de certas estrelas perenes; [diz-se tambm que] derramam venenos quando aparecem na cabea da Serpente [= constelao] setentrional ou austral (traduo de Vivian Carneiro Leo Simes). E o documento que talvez realmente estabelea a ampla recepo posterior do conceito de erudio em msica vai ser a carta de Cassiodoro (ca.485-580) em que se refere ao seu mestre Bocio (ca.475-526) com a expresso eruditionis music peritum (Variarum libri XII - II, 40/1). Portanto, Cassiodoro se torna, no sculo VI, o responsvel pela idia de erudio atrelada msica. Mas lembremo-nos de que a valorizao da erudio na msica pode levar a um esquecimento das origens mais primordiais da msica. A erudio (no sentido da escolaridade ou da cultura geral enquanto pi) no nem a raiz nem muito menos a essncia da msica enquanto arte. A msica enquanto desde Herclito jamais fora concebida como resultado palpvel, em algo possvel de aplicao ou reproduo tcnica, como se qualquer um fosse capaz de aprend-la e repeti-la. Portanto, no ser nenhuma forma de erudio acadmica ou escolaridade humanstica que poder elucidar por si s o inaparente para alm do aparente em qualquer potica artstica, incluindo-se a msica. Heidegger procura identificar as origens e a essncia do conceito de erudio num contexto que envolve a assim chamada cultura humanista da qual ele pretende se afastar enquanto concepo filosfica: Somente na poca da repblica romana, humanitas foi, pela primeira vez, expressamente pensada e visada sob este nome. O homo humanus contrape-se ao homo barbarus. O homo humanus , aqui, o romano que eleva e enobrece a virtus romana atravs da incorporao, da pi herdada dos gregos. Estes gregos so os gregos do helenismo cuja cultura era ensinada nas escolas filosficas. Ela se refere eruditio et institutio in bonas artes. A pi assim entendida traduzida por humanitas. A romanidade propriamente dita do homo romanus consiste nesta tal humanitas. Em Roma, encontramos o primeiro humanismo. Ele permanece, por isso, na sua essncia, um fenmeno especificamente romano, que emana do encontro da romanidade com a cultura do helenismo. Assim, a chamada Renascena dos sculos XIV e XV, na Itlia, uma renascentia romanitatis. Como o que importa a romanitatis, trata-se da humanitatis e por isso, da pi grega. Mas a grecidade sempre vista na sua forma tardia sendo esta mesma vista de maneira romana. Tambm o homo romanus do Renascimento est em oposio ao homo barbarus. Todavia, o in-humano , agora, o

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    acadmicos, mas no artistas. Se assim o fosse, para se tornar artista bastaria frequentar uma escola. como se a essncia da arte fosse algo para ser explicado e compreendido em lies didticas. Mas a grande arte nos exige muito mais que isso. Quem sabe ento haja algo na arte da msica que esteja alm de uma mera escolaridade artesanal ou de ensinamentos em sala de aula. O fato que a pi em msica se configura no apenas pelos procedimentos operativos do arteso e seu engenho, mas engloba problemas que no so menores envolvendo a linguagem musical como um todo.

    As ferramentas artesanais esto a servio da linguagem e cada linguagem requer maneiras diversas no uso destas ferramentas. H ainda um detalhe importante: a linguagem no deve estar a servio de uma ferramenta. Assim se justifica a crtica de Adorno contra Rimsky-Korsakov (1844-1908), por este ter corrigido a harmonia [da pera Boris Godunov] de [Modest] Mussorgsky [1839-1881] de acordo com as regras de conservatrio (ADORNO, 1975 [1949], p.129). Rimsky-Korsakov talvez no tenha compreendido as questes de linguagem propostas por Mussorgsky. Na verso original da pera j se encontrava devidamente resolvida tanto uma concepo de harmonia como de orquestrao no contexto inequvoco do estilo musical do prprio Mussorgsky. No estamos falando que este seja melhor que aquele, mas apenas que so diferentes. E, neste caso, Rimsky-Korsakov agiu contra a diferena, aniquilando um fundamento da arte.

    Vamos dar ainda outro exemplo, que s por acaso tambm envolve este mesmo compositor russo. A questo a seguinte: os Princpios de orquestrao (1 ed. 1913) de Rimsky-Korsakov seriam recomendados para servir como referncia na escritura de qualquer msica composta para orquestra desde ento? claro que no, pois se este

    assim chamado barbarismo da Escolstica gtica da Idade Mdia. Do humanismo, entendido historicamente, faz sempre parte um studium humanitatis; este estudo recorre, de uma certa maneira, Antiguidade, tornando-se assim, em cada caso, tambm um renascimento da grecidade. Isto evidente no humanismo do sculo XVIII, aqui na Alemanha, sustentado por Winckelmann, Goethe e Schiller. Hlderlin, ao contrrio, no faz parte do humanismo e isto pelo fato de pensar o destino da essncia do homem mais radicalmente do que este humanismo capaz (HEIDEGGER, 1987 [1945], p.39-40). Mas se por um lado indicamos a insuficincia da erudio para a garantia da obra de arte, por outro lado, tambm no resta dvida que a composio musical se torna invivel fora de uma unidade potico-prtico-terica. Assim, no estamos afirmando aqui que uma boa escolaridade a tal erudio no possa ser importante para a formao do compositor. Apenas reconhecemos que a erudio no se configura como o que h de mais essencial para a viabilidade da obra de arte musical enquanto tal. Da a inadequao de uma expresso como msica erudita um rtulo at mesmo grosseiro - para definir a obra de compositores como Bach, Mozart, Beethoven, Schumann, Stravinsky, Villa-Lobos e tantos outros. Em todos estes a arte sempre maior que a erudio.

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    livro importante no contexto da prpria msica de Rimsky-Korsakov, j se encontra aqum das dimenses de orquestrao mesmo de Stravinsky, que foi seu aluno mais ilustre.

    Pretendemos demonstrar aqui que aprender a lidar com uma ferramenta de trabalho (como as convenes escolares de harmonia e contraponto, como um manual qualquer de orquestrao) como uma escada que se usa para subir. Uma vez no alto (quando se atinge o domnio da linguagem), j se pode prescindir da escada. Friedrich Nietzsche (1844-1900) exps assim a questo: Foram degraus pra mim, e eu subi por eles para tanto, tive que passar por cima deles. Ainda que pensassem que eu queria descansar sobre eles... (2009 [1888], p.29). Wittgenstein ainda mais incisivo: ele tem que jogar a escada fora, aps ter subido nela (1963 [1918], 6.54 / p.115). Em cada linguagem musical, cuja posio na hierarquia ser sempre superior em termos de arte, temos sempre j propostas singulares de harmonia e sistema, contraponto, orquestrao, formas e estruturas. Estas ferramentas, como os degraus de uma escada, devem ser entendidas em sua finitude histrica, localizadas em determinado contexto estilstico e cuja transposio ser sempre algo forado. Saibamos ento apreciar as muitas formas de escaladas que existem por a, para depois construirmos uma linguagem que seja reveladora, alando vo prprio e sem obrigaes que impliquem no apoio direto dos degraus de uma escada.

    Concluindo o carter operativo do arteso em msica, incluem-se ainda relaes com a em procedimentos poticos (tanto abstraes quanto concretudes em toda possibilidade de smbolo, alegoria, analogia, metfora, imitao, citao, parfrase, intertextualidade, ironia, pardia, stira etc.).

    E a msica enquanto grande arte tambm no se submete lgica de um sistema, mesmo que estabelea relaes sistemticas. por isso que falamos de uma essncia tanto enigmtica quanto paradoxal da msica, envolvendo liberdade e disciplina. Superam-se regras anteriores e tambm se propem novas.

    No longe desta questo, Zdislas Milner advertiu, contudo, que o facto duma obra se afastar de preceitos e regras aprendidas, no d [toda] a medida do seu valor (apud ANDRADE, 1979 [1921], p.17). E neste incio do sculo XXI, j com boa dose de distanciamento crtico, podemos ler assim: no obstante o projeto conceitual de

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    muitas entre as macaquices modernistas (com todo respeito aos macacos), no se produz obra de arte apenas com irreverncia.

    E se a primeira condio tem a ver com disciplina, como acabamos de observar, j a segunda, num evidente conflito insolvel, diz respeito a um exerccio de liberdade. Vamos a esta agora.

    A segunda condio no ofcio de compositor, relacionada fantasia inventiva do compositor (enquanto capacidade de imaginao), tambm o alcance de uma singularidade solitria em sua pi. Podemos afirmar que a msica s se d na singularidade solitria da obra. Para alm de qualquer concepo romntica ou simbolista do sculo XIX, no sentido primordial grego que falamos de uma

    singularidade solitria enquanto 13.

    Se obra de arte, no se configura numa mecnica automatizada nem mera reproduo em srie enquanto parte do processo inventivo. No segue qualquer padronizao redutiva nem regras pr-

    estabelecidas, j que no h regras que possam garantir a obra de arte. Alis, assim consta originalmente do Dicionrio Kantiano (Kant-Lexikon, 1916) de Rudolf Eisler14 (1873-1926), numa definio tanto concisa quanto instigante em seu verbete regra esttica: no se pode presumir que diante dos olhos do

    artista tenha pairado uma regra para [a composio ou pi de] sua obra15.

    E se arte, nem ao menos se restringe subserviente lgica de um sistema, quer seja um sistema artesanal (como, por exemplo, o serialismo integral) ou ideolgico (como a indstria da cultura). Lembremo-nos mais uma vez de Herclito. Em sua utilizao do conceito de (que significava

    13 Heidegger, ao criticar a demarcao metafsico-kantiana tardia entre verdade (pertencente lgica) e

    beleza (pertencente esttica), retoma o conceito original de verdade como desvelamento, como revelao (), que remonta Grcia arcaica. Segundo Heidegger, este perodo anterior traduo latina (veritas) e sua interpretao - ambas inadequadas no contexto da essncia da verdade em meio s culturas ocidentais e em cuja filosofia permaneceu impensada (ver 1960 [1935], p.31). (enunciado, esclarecimento, memria) se encontra em oposio (silncio, obscuridade, esquecimento) (ver DETIENNE, 1988 [1967], p.21-23). Assim, a (esta verdade desvelada enquanto acontecimento da verdade) no se ope mentira, tal como em sua traduo latina tardia. Nem muito menos h uma oposio entre o verdadeiro e o falso. O prefixo indica aqui uma negao: indica lembrana, expressa por um no-esquecimento - ainda mais em nossos tempos, em que quase sempre esquecemos que esquecemos. Trata-se antes de uma oposio entre o revelado e o oculto. E pi (velar, esconder, cobrir, ocultar, calar, encobrir, enterrar) tambm se encontra em oposio . Neste sentido, Heidegger (entendendo o enquanto linguagem revelada) esclarece ainda a ligao interna entre o conceito contrrio pi [aquilo que se encontra velado] e o que o diz, , o desvelado (HEIDEGGER, 2006 [1929/1930], p.34-35). Entretanto, a traduo de por veritas culminou com o conceito de verdade no s enquanto certeza cartesiana, mas tambm relacionado incapacidade crtica e autocrtica de alguns setores das cincias modernas em meio condio redutiva de um determinismo tecnolgico. Assim, para Heidegger, a verdade (na dimenso primordial da ), que encontramos muito mais na grande arte do que nas cincias, um acontecimento da verdade, significa tirar o vu, desvelando-se e revelando-se o ente e a verdade do ser. Esta verdade Heidegger entendeu ainda como ex-sistncia, o estar postado na clareira do ser, iluminando-o. 14

    Rudolf Eisler, filsofo kantiano aqui citado, pai do compositor Hanns Eisler (1898-1962). 15

    Da Kritik der Urteilskraft, 45 (disponvel em http://www.textlog.de/33183.html).

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    msica, j que quela altura nem sequer havia a palavra ) h sempre um confronto, um conflito, uma tenso, um desvelar daquilo que se esconde por natureza: harmonia inaparente mais forte que a do

    aparente (Fragmento LIV). Entendemos deste fragmento de Herclito que a harmonia inaparente a verdade singular reveladora () do artista compositor, aquilo que estava oculto e est sendo revelado. Ou seja, a inveno. E ainda algo que jamais ser refutado. Alis, nem nada tem a ver com refutaes. J a harmonia aparente se reduz lgica de um sistema. No o sistema que possa ser inventado enquanto singularidade, mas aquele que cuja reiterao se torna padronizada, quer seja na academia ou na indstria da cultura.

    Jean le Rond DAlembert (1717-1783) afirma que o sistema tanto mais completo, quanto menor for o nmero de princpios (apud NAUMANN, 1984 [ca. 1750], p.751). Segundo Wittgenstein, o infinito nmero das sentenas da lgica (da matemtica) seguem uma meia dzia de leis fundamentais (1963 [1918], 5.43 / p.71). Portanto, h uma inequvoca aproximao quanto reduo de princpios e seu funcionamento entre sistema e lgica.

    E a questo do sistema faz ainda parte da essncia da msica enquanto paradoxo. A msica pode no ter sido a harmonia primordial, pois este conceito remonta filosofia e literatura da Grcia arcaica. Mas com certeza a msica foi o sistema primordial, dando origem a todos os demais sistemas, j que o primeiro sistema moderno concebido teoricamente foi o (systema teleion) atribudo a Aristxeno de Tarento (sculo IV a.C.), num contexto evidentemente musical. Se por um lado, a obra no se submete lgica de um sistema j que, segundo Wittgenstein, todas sentenas da lgica dizem o mesmo, justamente nada (1963 [1918], 5.43 / p.71) - por outro, desenvolve relaes sistemticas incontornveis.

    Na escola de Arnold Schnberg (1874-1951) falava-se da emancipao da dissonncia. Mas hoje, no incio do sculo XXI, podemos falar mais adequadamente da superao da lgica de um sistema16. E sempre esta questo, justamente a da

    16 O sentido aqui que propomos para superao (supresso, suspenso) remonta Aufhebung, um

    conceito central em Hegel. Trata-se de um processo com trs momentos: 1) finalizao, superao de uma etapa de desenvolvimento, negao (Negation); 2) manuteno de seu lado fecundo (Aufbewahrung); 3) integrao deste lado numa etapa mais alta de desenvolvimento, atravs do qual obtm sua funo (Erhhung). Como sempre difcil a traduo para o portugus da Aufhebung hegeliana, lembremo-nos ainda dos vrios termos em portugus para estes mesmos trs momentos: 1) suprimir, pr fim, anular, abolir, abrogar, revogar, cancelar, compensar-se (lat. tollere); 2) guardar, conservar, guardar e entregar em custdia (lat. conservare); 3) elevar, levantar(-se), erguer(-se) (lat. elevare) (MLLER, 2005, p.87). Mesmo que deixemos de lado alguns dos principais conceitos hegelianos neste mesmo contexto (tais como dialtica, contradio, tese, anti-tese, sntese ou etapas de um desenvolvimento), estes trs

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    superao da lgica de um sistema, que diferencia todos os grandes compositores desde pelo menos o surgimento da polifonia (infelizmente no h partituras gregas que tenham sobrevivido aos tempos para que se possa estender retroativamente esta anlise at a Antiguidade). Tais fatos provam que no a antinomia consonncia ou dissonncia que decide, pois estas so sempre j contextuais, mas sim a superao do sistema. Alis, neste sentido, a idia da emancipao da dissonncia no passa de um engodo.

    A origem desta confuso talvez esteja mesmo l trs em Pitgoras de Samos (sculo VII a.C.), quem sabe o grande precursor das cincias emprico-matemticas. Em Pitgoras, a harmonia est diretamente relacionada afinao musical e s propores numricas dos intervalos musicais. Os pitagricos se preocuparam, em especial, com o estabelecimento das consonncias ditas matemticas. Entenderam a matemtica enquanto fundamento determinante da harmonia musical. esta concepo pitagrica prevaleceu ao longo dos sculos. Mas em Herclito, talvez o grande precursor dos estudos que envolvem os conflitos enigmticos da existncia e linguagem humanas, temos j uma dimenso maior e mais crtica da harmonia enquanto processo de elaborao de linguagem atravs de seu novo conceito de . Em Herclito, o no est subordinado matemtica. Segundo Wittgenstein, a matemtica um mtodo lgico. As sentenas da matemtica so igualdades, ou seja, sentenas aparentes. A sentena da matemtica no expressa qualquer pensamento. (...) A lgica do mundo, que mostra as sentenas da lgica em tautologias, mostra a matemtica em igualdades (1963 [1918], 6.2-6.22 / p.102). por isso que as funes de verdade na lgica (na matemtica) no so funes materiais (ibidem, 5.44 / p.71). No dizem nada, no tm contedo. Desse modo, no so as propores matemticas que determinam a priori os enigmas da linguagem. As supostas consonncias e dissonncias so sempre j contextuais em meio a uma complexidade de elementos constituidores de uma fecunda tenso entre movimentos contrrios. Segundo Herclito, o contrrio convergente e dos divergentes, a mais bela harmonia (Fragmento VIII). Neste mesmo sentido, Aristteles (Do mundo, 5.396b 7) confirma o quanto o conceito de harmonia representa uma questo musical essencial em Herclito:

    momentos (tollere, conservare, elevare) no deixam de ser ainda assim interessantes para a compreenso do processo em msica na Aufhebung da lgica de um sistema. Se a tentativa de tolimento de um sistema musical atravs de outro no inviabiliza a conservao de elementos existentes anteriormente, a tal elevao se torna a incontornvel lembrana a articular um dilogo incessante do presente com o passado.

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    A msica mescla notas agudas e graves, longas e curtas, realizando, de diferentes sons, uma inequvoca harmonia; a gramtica mescla vocais e consoantes e, a partir disso, compe toda sua arte. O mesmo dito tambm pelo obscuro Herclito: conjunes: completas e no completas, convergente e divergente, consonante e dissonante, e de todas as coisas um e de um todas as coisas (Fragmento X).

    A mesma concepo de confronto (ver nota de rodap n 5) em Herclito - que sempre j uma questo maior do , da linguagem estende-se tambm para a tenso entre a lgica de um sistema

    (que ele chama de harmonia aparente) e sua superao atravs de uma singularidade reveladora (harmonia inaparente).

    Finalizando a condio de singularidade solitria da obra musical, trata-se ainda do exerccio de imaginao do inexistente por parte do compositor, mesmo quando se possa chegar to-somente a um

    novo contexto para velhos materiais musicais. Lembremo-nos, por exemplo, do incio do poema sinfnico

    Also Sprach Zarathustra de Richard Strauss (1864-1949), quando toda uma monumentalidade da linguagem musical se arquiteta sobre as mais banais funes harmnicas (em D maior, nas articulaes maior/menor sbitas sobre a tnica, e depois to-somente com as funes de subdominante, subdominante

    menor com sixte ajoute, tnica com quinta no baixo, tnica paralela, dominante e tnica). Estava tudo ali por natureza, mas a verdadeira harmonia se encontrava ainda sim escondida, s revelada ento de forma singular. Estamos afirmando ento que devemos ter Richard Strauss como modelo para a msica de hoje? De modo algum. Apenas que os caminhos para a msica de nosso tempo no podem mais ser trilhados

    atravs de um nico sistema fechado. Vivenciamos hoje tempos de dilogos abertos. Em msica isso se traduz no s por sistemas abertos, mas tambm por dilogos entre sistemas. S que neste caso ocorre algo que nada tem a ver com um ecletismo gratuito, nem vale tudo e muito menos que tudo seja relativo, pois a questo da verdade (ainda mais se pensarmos com maior profundidade a ) no um problema particular de cada um - conforme os referenciais estudos de Hilton Japiassu (2001). E lembremo-nos ainda com maior ateno da advertncia de Herclito: embora sendo o lgos comum, a massa vive como se tivesse um pensamento particular (Fragmento II). Da tambm aqui nossa tentativa epistemolgica de universalizao, para talvez procurar recuperar um pouco da dignidade do ofcio de

    compositor na arte da msica. Temos em vista acima de tudo o trabalho com as novas geraes de alunos,

    quem sabe poder despertar neles um esprito crtico, j que o espao perdido para a indstria da cultura nos ltimos anos no deixa de ter sido brutal.

    Por fim, a terceira condio no ofcio de compositor a exposio de mundo. Trata-se tambm das questes alm-msica, as chamadas referncias externas que configuram a autonomia relativa do material musical - mesmo que as questes do mtier interno da msica sejam por si s sempre ainda apaixonantes e inesgotveis. Falamos aqui que a obra musical culmina na exposio de mundo enquanto interao existencial. Heidegger define neste mesmo sentido o Dasein - um dos conceitos centrais em sua filosofia. O Dasein (o ser/estar a) diz respeito verdade existencial revelada, a presena ou realidade humana, o ser do homem no mundo. Segundo Alexander Kojve

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    (1902-1968), sem seres humanos o Ser seria mudo: estaria a, mas no seria o Verdadeiro (apud SAFRANSKI, 2005 [2000]). Assim, a obra musical no se configura apenas na capacidade inventiva do compositor, mas acima de tudo linguagem enquanto morada do ser: e em ideais contextuais de beleza, afinal, segundo Bernard Chapman Heyl, a noo de belo suficientemente ampla para qualificar qualquer obra de arte bem realizada (texto original de 1943, apud ABBAGNANO, 1998 [1960], p.367).

    E na msica h muitas possibilidades de confrontos e sentimentos (pi) em meio finitude humana sempre j historial. A palavra grega pi pode traduzir toda possibilidade de sentimento humano: paixo, emoo, afeto, dor, prazer, tristeza, alegria, dio, amor, angstia, medo, coragem, desnimo, desejo, vontade etc. No entanto, o pi na arte jamais ser um dado antropolgico nem psicolgico. Heidegger nos ensina, por exemplo, que no devemos de modo algum conceber a dor, antropologicamente, como um sentimento que nos aflige e faz sofrer. Tampouco

    devemos conceber a dor, psicologicamente, como o ninho de toda sentimentalidade (2003 [1950], p.21). Para Heidegger, o pi na arte a prpria dimenso da diferena, a articulao de ser em relao a outro (ibidem, p.22).

    A exposio de mundo tambm a paisagem que a grande msica sempre proporciona, numa dialtica sem sntese entre o concreto e o abstrato. Conforme j dito aqui (ver nota de rodap n 5), esta uma diferena entre Herclito e a dialtica hegeliana. Em Herclito a harmonia um confronto constante e no h conciliao

    algo talvez mais instigante para a arte ainda hoje. So na msica tambm as incontornveis relaes entre e , como diria o prprio Herclito.

    No sculo XIX, temos j uma perspectiva no menos fecunda que vai durar por geraes. Heinrich Heine (1797-1856) inaugura o conceito de Lebenswelt (2005 [1833], p.575), ou mundo da vida, num contexto tanto pictrico quanto musical, enaltecendo de maneira otimista a fora proponente da vida humana, mesmo que simultaneamente revele com sarcasmo seus lados mais sombrios. J Nietzsche afirma que a arte o maior estmulo para a vida: como se poderia entend-la como sendo sem propsito, sem finalidade, apenas lart pour lart? (2009 [1888], p.104). Talvez seja ainda neste mesmo sentido que, segundo Wittgenstein, o mundo e a vida so um s (1963 [1918], 5.621 / p.90). A mesma relao mundo/vida (Lebenswelt) se torna ainda um conceito

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    central na obra de Edmund Husserl (1859-1938), onde se coloca as questes sobre sentido e falta de sentido deste Dasein humano como um todo (1976 [1935]). Com certeza, um dos maiores legados que o Romantismo e logo aps tambm a gerao dos filsofos da vida nos deixaram foi este conceito de Lebenswelt, talvez um tanto esquecido... E se havamos falado da exposio de mundo, poderamos falar tambm da exposio de mundo da vida, pois no h como apartar a vida do mundo exposto pela obra de arte. Alis, a msica enquanto linguagem artstica acima de tudo uma instituio humana. Justamente por isso, so pobres de mundo as obras que ficam encerradas em tecnicismos redutivos, mesmo hermticos, como se a autonomia do material musical fosse absoluta. o trabalho de Ssifo de se tentar resolver questes musicais restringindo-se to-somente s prprias questes musicais: ser sempre um esforo intil. Neste caso a viso do artista se torna miopia. No devemos esquecer que os caminhos da msica se encontram muitas vezes fora da msica. Tendo-se em vista as referncias externas da msica, tratamos aqui acima de tudo de um encaixe crtico-contextual da obra, pois o artista, numa perspectiva brechtiana, no pode deixar de perguntar sobre as complexas relaes no mundo em que vivemos: o que ? como ? de onde vem? a quem serve?

    Marx diria que se faz necessria uma crtica ideologia. Trata-se do processo de reconhecimento atravs de um incontornvel cdigo ideolgico. Mas se o conceito de ideologia remonta a um Zeitgeist17 francs do final revolucionrio do sculo XVIII, no significa que muito antes sempre j no houvesse, mesmo sem possuir este nome, a questo ideolgica na arte. O mesmo vale para outros conceitos, igualmente neologismos, que tambm surgiram naquele mesmo exato momento, tais como esquerda poltica, direita poltica (e se ambos so anteriores a Marx e ao socialismo, por que ento no mant-los tambm aps Marx e a queda do socialismo?), vanguarda, banalizao e ainda terrorismo. Todos estes conceitos remontam ao Zeitgeist da Revoluo Francesa (1789) e do perodo logo seguinte de Napoleo Bonaparte (1769-1821), que afinal, ao lado da Revoluo Industrial, inauguraram muitos dos fundamentos da nossa modernidade. Mas desde os primrdios dos tempos sempre houve prxis tanto revolucionria quanto reacionria na poltica, um esprito tanto de

    17 O esprito do tempo nos leva a crer que dois indivduos de uma mesma poca, mesmo que em lugares

    distintos, so mais parecidos entre si que indivduos de um mesmo lugar, mas de pocas distintas.

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    modernidade como conservador nas artes, bem como momentos de estagnao ou descaso e ainda outros tantos de violncia extrema na sociedade.

    E ainda em relao questo ideolgica, o fato que com Marx, a fecunda hiptese de trabalho sobre a questo ideolgica passa a ser reconhecida pelos critrios de dominao e distoro18. O problema ideolgico na msica remonta aos primrdios de sua prpria histria e no se delimita a qualquer momento em especial, pois, onde h arte, h ideologia. Em arte no existe nem nunca houve algo como iseno ideolgica absoluta, queiram ou no queiram os granfinos do esteticismo (ANDRADE, 1945, p.15). O problema ideolgico persiste no s nas artes, como tambm nas cincias. Lembremo-nos de Jrgen Habermas (*1929) e sua conhecida tese de que todo saber est baseado num interesse (1968), j que no h um saber no ideolgico.

    No macrocosmo do mundo de hoje vivenciamos situaes as mais drsticas. Todos estes so problemas ideolgicos incontornveis de nosso tempo. Ser que vale a pena elencar aqui algumas mazelas? Podemos citar a impossibilidade de crescimento sustentvel, a degradao ambiental, o consumismo predatrio, a injustia social, a pobreza e mesmo ainda a misria, a imprensa sensacionalista e o totalitarismo da mdia19 (de modo algum um problema menor que a corrupo em geral, mesmo na poltica), a lgica oportunista do sistema financeiro, a metanarrativa do desempenho (lucro) e o

    18 Segundo Ricoeur (1990, p.67-75), podemos identificar os seguintes critrios do fenmeno ideolgico:

    a) Ideologia como representao simplificadora de classe ou organizao social. a Weltanschauung (viso de mundo), [como concepo geral da natureza e da sociedade de um determinado grupo, incluindo-se a formulao de regras para o comportamento do ser humano na prtica social e em relao ao meio ambiente]. a retrica, ou o reino dos ismos [cristianismo, comunismo, anarquismo, marxismo, nazi-fascismo, neoliberalismo etc.]. b) Ideologia como dominao funo justificadora do poder, que sempre procura legitimar-se. Carter de distoro e dissimulao, a mais valia entre autoridade e crena. [Assim entendemos que a Inquisio tentou se legitimar em nome de Cristo, bem como o Stalinismo em nome de Marx]. c) Ideologia como deformao trata-se de imagens invertidas da vida. No devemos esquecer um dos mais terrveis exemplos contemporneos: a relao entre tecnologia (pretensa neutralidade cientfica) e a indstria blica do capitalismo avanado (essncia ideolgica). A religio, neste mesmo sentido, tambm a ideologia por excelncia, reconhecida por Marx, e ainda se mantm como hiptese de trabalho (Escola de Frankfurt). Trata-se da inverso entre cu e terra, e que faz com que os homens andem de cabea para baixo, num menosprezo ao tomar imagem pelo real, reflexo pelo original, da religio funo de classe dominante. Segundo nos informa Marcelo Backes, o poeta Heinrich Heine chegou a antecipar vrios dos conceitos que Marx eternizaria mais tarde. At mesmo a famosa frmula que v a religio como pio do povo (MARX, 1962, p.488) havia sido adiantada por Heine, quando este escreveu primeiro que a religio o pio espiritual para uma humanidade sofredora (HEINE, 2005 [1840], p.111). Backes completa: se Marx disse no Prefcio crtica da filosofia do direito hegeliana que a crtica da religio o pressuposto de toda crtica, Heine a praticou j bem antes de Marx fazer sua constatao. 19

    S para citar um exemplo trgico, quem no se lembra do Caso Escola Base, ocorrido em So Paulo, em 1994. Como determinar com exatido onde comea a exceo e onde termina a regra na verdade miditica?

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    terror tecnocrata dos decisores20. H tambm o crime organizado em toda parte, a truculncia do relativismo cultural21, as hipocrisias politicamente corretas, os culturalismos corporativistas. E ainda o mau gosto globalizado22 atravs da indstria da cultura e seu agressivo marketing massificador.

    Ento queremos afirmar com tais teses que a arte s pode se inspirar em graves problemas ideolgicos, tragdias humanas ou mesmo desastres causados pelos homens? Uma perspectiva excludente assim no seria menos empobrecedora. Lembremo-nos de Antonio Gramsci (1891-1937): sou pessimista com a inteligncia, mas otimista pela vontade23. Do mesmo modo, no podemos subtrair da arte o sonho, em suas relaes evidentes com a utopia. E eis que uma das teses centrais de Karl Mannheim (1893-1947), numa interessante releitura de Marx, a de que as ideologias olham para trs, ao passo que as utopias olham para frente. As ideologias se acomodam realidade que justificam e dissimulam, ao passo que as utopias enfrentam a realidade e a fazem explodir24 (apud RICOEUR, 1990, p.88). Ou seja, as ideologias procuram manter aparelhos de poder j estabelecidos ao passo que as utopias pretendem mudar a realidade. Em todos os casos, a morte da ideologia seria uma estril lucidez. Porque um grupo social sem ideologia e sem utopia seria sem projeto, sem distncia em relao a si mesmo, sem representao de si (ibidem, p.89), conforme reiterou Ricoeur.

    20 O conceito de decisor remonta a Jean-Franois Lyotard (1924-1998). Trata-se de uma nova classe

    dirigente constituda por diretores de empresas e altos funcionrios, dirigentes de grandes rgos profissionais, sindicais, polticos, confessionais, universitrios etc. Segundo Lyotard, em tempos da sociedade ps-industrial, os decisores atuam sob uma discutvel lgica do melhor desempenho, muitas vezes atendendo a interesses os mais questionveis (ver LYOTARD, 1998 [1979]). 21

    O relativismo cultural no a voz do oprimido contra o opressor, nem ao menos qualquer valorizao da possibilidade de pluralidade cultural em nosso mundo de hoje. Trata-se antes da alternativa que o medocre encontra, uma vez que no tem idias, para combater aqueles que as tm. Assim, defende seus interesses corporativistas e pessoais. E a fora do relativismo proveniente do grande nmero de pessoas com este perfil. 22

    Dizem que o mundo uma aldeia global. Muito bem. S que o gosto de todas as aldeias no mundo determinado em nossa poca s por aquela nica aldeia, detentora dos satlites conexos sua indstria da cultura. Ou seja, processos de globalizao sempre houve no mundo. O que ocorre agora de diferente que as influncias so de mo nica. Antigamente a histria era outra. Os dominadores assimilavam muito do que havia em suas colnias. Lembremo-nos dos romanos e dos gregos, bem como dos portugueses e dos brasileiros. Os romanos liam Plato. J os portugueses cantavam modinhas e danavam chulas cariocas e lundus. J hoje, como disse certa vez numa palestra Jlio Medaglia (*1938), em Caruaru tambm se dana break e se declama o chatssimo hip-hop, mas ningum em Nova York toca numa banda de pfaros. 23

    Stio do Seminrio Gramsci de Ribeiro Preto (disponvel em http://www.atual.jc.nom.br, acesso a 19 de julho de 2010). Gramsci se encontrava preso por Mussolini na Penitenciria de Turim (Itlia) quando redigiu este enunciado numa carta a seu irmo Carlo, a 19 de dezembro de 1929. 24

    O livro original de Karl Mannheim se intitula justamente Ideologie und Utopie (Ideologia e utopia) e foi publicado em Bonn, em 1929.

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    Localizando a distoro ideolgica, o artista se ocupa da verdade. o momento de sua utopia, de sua transcendncia, uma condio para se ir alm. Provavelmente at no v melhorar o mundo, mas quem sabe sua arte se torne mais instigante. Quando discorremos sobre a singularidade solitria da verdade na arte, acabamos por lidar com a questo da exposio de mundo, e, agora, com este tema, voltamos quele. Em Bertolt Brecht (1898-1956), por exemplo, temos a seguinte concepo sobre a tarefa contextual do artista: ele precisa ter a coragem de escrever a verdade, embora ela esteja sendo reprimida em toda parte; a inteligncia de reconhec-la, embora ela esteja sendo ocultada em toda parte; a arte em sua utilizao como uma arma; o julgamento na escolha daqueles em cujas mos ela se tornar eficaz; a astcia de viabilizar sua disseminao entre eles (BRECHT, 1966 [1920/1939], p.265). A exposio de mundo atravs da arte pode se configurar assim num fecundo exerccio de utopia.

    Ser que com isso queremos afirmar que a obra de arte se reduz a um panfleto poltico? Jamais. O prprio Hanns Eisler, justamente ele que foi o compositor mais politicamente engajado de todo o sculo XX, chegou a afirmar que a superpolitizao na arte leva barbrie na esttica (1975, p.155 - na sexta conversa com Hans Bunge, gravada a 18 de julho de 1961). Eisler quer aqui realar a autonomia da arte, mesmo que relativa, considerando que ela tem um campo prprio e que no poder se tornar um mero veculo poltico. Neste sentido, a esttica diz respeito ao modo como percebemos a arte, percepo esta que envolve um nmero maior e mais complexo de elementos.

    E como citamos o conceito de esttica j mais de uma vez neste ensaio, talvez caiba aqui um breve parntese. Vejamos que a palavra remonta a (percepo, sensao, sensibilidade, reconhecimento, compreenso). Sexto Emprico (sculo II) (Contra os matemticos, VII, 126 - apud COSTA, 2002, p.171) aponta em Herclito a importncia da e do para o reconhecimento da verdade:

    Herclito, tendo considerado que o homem [ dotado] de dois elementos para o conhecimento da verdade, aisthsis e lgos, diz (...) que a aisthsis no confivel, e adota o lgos como critrio. A aisthsis, contudo, Herclito censura expressamente, dizendo: para homens que tm almas brbaras, olhos e ouvidos so ms testemunhas (Fragmento CVII).

    Talvez Herclito tenha tido mesmo razo ao conferir uma dimenso filosfica inferior ao . Por isso tambm que Heidegger jamais se refere a uma esttica enquanto categoria filosfica, mas sim se concentra no problema maior da origem da obra de arte. Est claro, portanto, porque no h uma esttica na antiguidade.

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    O conceito moderno de esttica (atividade filosfica e especulativa) enquanto categoria tardia remonta ao Iluminismo (sculo XVIII).

    Segundo Luigi Pareyson, a esttica no uma parte da filosofia, mas a filosofia inteira enquanto empenhada em refletir sobre os problemas da beleza e da arte, de modo que uma esttica no seria tal se, ao enfrentar tais problemas, implicitamente tambm no enfrentasse todos os outros problemas da filosofia (1997 [1966], p.4). Pareyson, com toda a razo, ainda chama a ateno para a confuso que se faz frequentemente entre esttica e potica:

    A distino entre esttica e potica particularmente importante e representa, entre outras coisas, uma preocupao metodolgica cuja negligncia conduz a resultados lamentveis. Se nos lembrarmos que a esttica tem um carter filosfico e especulativo enquanto que a potica, pelo contrrio, tem um carter programtico e operativo, no deveremos tomar como esttica uma doutrina que , essencialmente, uma potica. Isto , tomar como conceito de arte aquilo que no quer ou no pode ser seno um determinado programa de arte (ibidem, p.15).

    De fato, nos jornais e revistas de hoje em dia constam reiteradamente aluses esttica de determinado artista, quando na verdade se pretende aludir ao seu estilo artstico. Ou seja, querem falar sobre sua potica, mas desconhecem este conceito, acabando por empregar mal o outro. Resumindo, para Pareyson, esttica teoria, observao, anlise, especulao, enfim, um ofcio de filsofo. J a potica ofcio de artista, que elabora seu projeto e compe (produz) sua obra.

    Mas h uma questo talvez ainda no resolvida em Pareyson. Se por um lado, a esttica no pode ser considerada uma prerrogativa exclusiva do ofcio de filsofo, j que este nem sequer goza de iseno absoluta em ideologia ou matria de gosto, por outro lado, no s o artista, como tambm o historiador e mesmo o crtico de arte sempre j se encontram incontornavelmente atrelados a uma dimenso esttica, sua capacidade de percepo. As observaes e anlises de artistas, historiadores e crticos, entre outros, no podem ser subestimadas a priori, tal como o julgamento de Pareyson, que as considera notas esparsas... sem uma reflexo filosfica que as fecunde... [e que] elas prprias ainda no so esttica (ibidem, p.7).

    Na esttica musical em especfico h ainda outra questo que permanece aberta: a condio de um msico leitor de filosofia pode ser julgada a priori inferior quela de

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    um filsofo ouvinte de msica? Em ambos os casos no haveria sempre um lado mais diletante e outro mais aprofundado em cada um?

    Pareyson aponta ainda com lucidez para o fato de que os olhares [do artista] so reveladores sobretudo porque so construtivos, como o olho do pintor, cujo ver j um pintar e para quem contemplar se prolonga no fazer (ibidem, p.25). Mas no devemos esquecer que tambm o artista desenvolve um senso esttico justamente para o no fazer, rejeitando ou evitando aquilo que, aps suas anlises estticas, deve permanecer fora de sua potica, no pertencendo assim aos seus recursos estilsticos. Quando Heitor Villa-Lobos (1887-1959), por exemplo, afirma que logo que sinto a influncia de algum, me sacudo todo e salto fora (apud HORTA: 1987, p.22), est demonstrando uma percepo profunda da msica de seu tempo, percepo esta que no deixa de ser uma anlise (mesmo que oral e no escrita) de fato esttica. Mesmo ele, que no tinha qualquer diploma.

    E finalmente, fechado o parntese sobre esttica e voltando ao problema ideolgico na msica (mas a relao permanece, pois uma verdadeira crtica ideolgica no pode prescindir de uma anlise esttica), apenas afirmamos aqui que um suposto artista alienado25 ter maior dificuldade em cuidar da exposio de mundo em sua obra. Embora a alienao (Entfremdung) seja um conceito importante para vrios filsofos, como Marx (enquanto trabalho alienado) ou ainda Heidegger (enquanto esquecimento do ser), aqui ns pretendemos entender por alienado to-somente aquele que no se interessa por problemas gerais, quer sejam poltico-ideolgicos ou sociais. Os gregos j definiam h muito um mesmo perfil de indivduo, aquele voltado to-somente a interesses particulares, chamado ento de - o precursor do nosso idiota moderno. E longe de ser uma pessoa de pouca inteligncia (alis, pode ser at bem esperto, por isso em alemo se diz Fachidiot, ou seja, idiota com conhecimento de matria), o idiota, bem como o alienado (neste sentido popular que propomos aqui), tem como caracterstica principal a mesquinhez intelectual sempre j perfeitamente adequada indstria da cultura.

    25 No Aurlio consta a definio de que alienado aquele sem conscincia dos problemas polticos e

    sociais.

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    Mas que fique claro, por fim, no s a arte gozar sempre de uma relativa autonomia como seus caminhos so sempre multifrios - tais como aqueles da vida. O artista livre por natureza e no h tema ou assunto que lhe possa ser tabu salvo, claro, a questo do bom gosto26.

    Concluindo as condies do ofcio de compositor, no obstante todas estas consideraes aqui expostas, o fato decisivo que Gustave Flaubert (1821-1880), no Prface La vie dcrivian, j havia reconhecido um desequilbrio evidente em qualquer pi em arte. Ele indica o problema desde as origens da arte na tragdia grega, da qual todos ns artistas do mundo inteiro somos descendentes: possvel que desde Sfocles todos ns sejamos selvagens tatuados. Mas na Arte existe alguma outra coisa alm da retido das linhas e do polido das superfcies. A plstica do estilo no to ampla como a idia... Temos coisas demais para as formas que possumos (apud DERRIDA, 2005 [1967], p.11). Ou seja, na arte h incontornveis limites no s conceituais como tambm potico-operacionais. Portanto, tudo que propomos so apenas caminhos para se construir uma postura crtica.

    26 Citamos aqui o problema do gosto na obra de arte devido polmica de Karlheinz Stockhausen (1928-

    2007) referente ao atentado de 11 de setembro de 2001 no World Trade Center em Nova York: o que aconteceu de fato foi naturalmente e agora vocs todos tm que re-posicionar os crebros a maior obra de arte de todos os tempos (entrevista gravada em Hamburgo, a 16 de setembro de 2001). Com esta afirmao se torna evidente a considerao mesquinha que Stockhausen tem tanto pela arte quanto pela vida. Diferentemente de Stockhausen, entendemos que no caso do 11 de setembro no se trata de uma obra de arte. Trata-se sim de um problema meramente cultural e no artstico. H todo um triunfo sensacionalista aqui aos moldes da indstria da cultura. Uma lio de aprendiz de feiticeiro. Portanto, no devemos nem empregar aqui numa metfora biolgica um conceito como autopoiesis (ver, entre outros escritos, MATURANA, Humberto & VARELA, Francisco. Autopoiesis and Cognition: The Realization of the Living, 1979), ou seja, um fenmeno de autopoiesis deste mesmo sistema cultural, como se ele fosse autoprodutivo. Como se a indstria da cultura enquanto sistema fechado fosse capaz de se autoproduzir. Devemos antes pensar num sistema automimtico (que vem de ), porque ele to-somente imita a si prprio. por isso que podemos afirmar que a cultura mimtica e a arte potica. E a indstria da cultura no lugar do eterno retorno nietzschiano estabeleceu o eterno remake hollywoodiano. Tal como uma banda de rock que grava seu CD alternativo numa garagem qualquer, aquele espetculo no menos alternativo dos terroristas foi elaborado em outras tantas garagens. So elementos orgnicos aparentemente independentes, mas que se automimetizam, sempre j articulados num mesmo sistema ao qual pertencem. No 11 de setembro em Nova York ocorreu antes mais um exemplo de banalizao. Um caso evidente de mau gosto enquanto clich cinematogrfico (hollywoodiano) tornado realidade. Atravs de recursos tecnolgicos cada vez mais facilmente disponveis pode ocorrer a cada instante um hiper-dimensionamento oportunista no s da mediocridade como ainda do pior que pode haver num ser humano. O 11 de setembro se reduz dimenso da cultura (um tipo de cultura kamikase) e do showbiz (dado o resultado de fato mais meditico que militar). Algo que se encontra aqum da arte e, pior ainda, nocivo vida. Lembremo-nos, por fim, de Wittgenstein: tica e esttica so um s (1963 [1918], 6.421 / p.112). Teramos aqui a tarefa de no s estetizar a tica como ainda etizar a esttica? Neste sentido, a questo do gosto tambm se torna incontornvel na arte em meio exposio de mundo no contexto humano.

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    Mesmo que no se pretenda aqui uma cartilha para nefitos em msica, no temos qualquer pretenso de radicalismo como alguns mestres do passado. Nietzsche, por exemplo, chamava a ateno para o problema de discpulos que seguem um determinado mestre: Como? Procuras? Gostarias de multiplicar-se por dez, por cem? Procuras proslitos? Procura por zeros! (2009 [1888], p.24). E Mrio de Andrade confirma a mesma convico: E no quero discpulos. Em arte: escola = imbecilidade de muitos para a vaidade dum s (1979 [1921], p.32). J Machado de Assis (1839-1908) - de suas Memrias pstumas de Brs Cubas (1880) que jamais fora professor, no pretendeu ter filhos, segundo ele prprio, para no transmitir a nenhuma criatura o legado de sua misria. Se esta postura excludente de Nietzsche, Machado de Assis e Mrio de Andrade fosse levada ao p da letra, Villa-Lobos, que no teve filhos nem alunos, seria um raro privilegiado. Mas Villa-Lobos privilegiado no por isso, mas sim por ter sido o maior compositor do Novo Mundo. E nossa inteno ao escrever este ensaio, na condio de professor do Departamento de Msica da FFCLRP-USP, sempre j levantar algum assunto para discusso em sala de aula. Que mal h nisso? sim para nossos alunos que escrevemos.

    E uma vez finalizadas estas trs condies (mas deve haver outras) no ofcio de compositor, bem como alguns de seus senes, passemos agora a outra grande rea da msica: a interpretao/execuo.

    Interpretao/execuo - pi em msica

    diz respeito prtica, ao, aplicao, execuo. No caso do intrprete-executante em msica, a prtica vem sempre j procedida do estudo das fontes musicais, de um exame rigoroso e detalhado da partitura. Alm da escritura musical do compositor que deve ser exaustivamente estudada, h ainda o mundo da obra exposta, bem como o contexto histrico-estilstico deste mundo, sua paisagem pictrica, sua poesia. por isso que para o msico executante o constante exerccio de interpretao e ainda mais, uma atividade mesmo hermenutica, uma conditio sine qua non em seu ofcio. E da tambm sua dupla condio, tanto interpretativa como performtica. Em latim h a expresso que bem define este ofcio: mente manuque. Em 1993, em Ribeiro Preto, ao lado de Disnio Machado Neto e Domingos Iunes Elias, fundamos o Ensemble Mentemanuque, voltado msica contempornea, tendo como princpio esta atividade de interpretao/execuo musical nas mais estreitas relaes com a pesquisa musicolgica e com a composio musical preferencialmente indita. Ou seja, ao

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    mesmo tempo uma habilidade mental (hermenutica) e uma manual (e mais que com as mos, executando msica com o corpo num todo, tocando um instrumento, cantando ou regendo).

    Devemos lembrar tambm que a potica (produtivo, inventivo) diferente da prtica (ao). Segundo Aristteles, h que se distinguir o que produtvel daquilo que realizvel pela ao. A produo (pi) diferente da ao (pi) (tica a Nicmaco, Livro VI, IV, 1140a1). por isso que dizemos corretamente que um intrprete performtico no tem um estilo, mas sim ele interpreta e executa o estilo de cada compositor. Eis a diferena entre composio e interpretao/execuo em msica. Mas no raramente se fala por a de um suposto estilo de intrprete ou estilo de interpretao. Como o intrprete performtico aquele que trabalha na rea das prticas interpretativas poder possuir um estilo prprio? H que se estar atento s incontornveis idiossincrasias de um intrprete-performtico. Por um lado, o compositor no pode perder de vista as especificidades bem como toda possibilidade de recurso para o meio musical para o qual escreve. Afinal, na escritura musical de hoje j esto mais que sugeridas todo um conjunto de informaes voltadas execuo27. Por outro lado, o intrprete-performtico tem uma inequvoca obrigao de fidelidade potica do compositor. Mas existe ainda sim e sempre um amplo espao por parte do intrprete-performtico para exercer seu ofcio com dignidade.

    Pesquisa musicolgica - em msica

    em sua origem um neologismo. Embora no se possa precisar qual autor o utilizou primeiramente, a data de aparecimento desde conceito coincide com o surgimento da filosofia nos sculos VII e VI a.C (mais provvel VI do que VII, ou na virada de um sculo para outro). At ento havia dois verbos relativos viso, e pi, indicando o fenmeno do olhar imediato. Enfim, equivalente aos nossos verbos olhar e ver. Contudo, com o aparecimento de temos o incio de um modo de viso que, ainda que dependa da viso sensvel, atravessa essa sensibilidade no intuito de penetrar agudamente no que seria a natureza () dos fenmenos. Da que originalmente a palavra significa uma pi da viso, uma viso analtica do concreto, aquela que pretende ver a fundo as coisas ao redor, um modo distinto do olhar.

    27 No entanto, se pensarmos na escritura musical do sculo XVIII para trs como exemplo de indicaes

    restritas quase que exclusivamente s alturas e s duraes, como poderemos ento insistir na tese de tal fidelidade ao compositor por parte do intrprete/executor, ainda mais com toda esta recente discusso da performance com instrumentos de poca? Este j outro problema, pois os processos notacionais mais antigos realmente no nos do referncias definitivas ou integrais para a resoluo de questes interpretativo-performticas. Mas devemos lembrar que a escritura musical no sculo XXI viabiliza j um conjunto muito mais aperfeioado tanto quanto detalhado de sinais notacionais para todos os parmetros musicais.

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    por isso que se torna precria sob um ponto de vista tanto histrico quanto filosfico qualquer suposio hoje de uma teoria apartada do mundo real. Ela no seria nem certa nem errada. Apenas no faria sentido enquanto teoria. Neste sentido tambm, a teoria de modo algum oposta prtica, mas sim, encontra-se em oposio abstrao. Se teoria, no pode ser jamais uma abstrao. Alis, abstrao um atributo da pi, no da . E por em msica, tendo-se em vista as origens histrico-filosficas do conceito, podemos entender hoje a musicologia como um todo. A pesquisa em msica deve abranger necessariamente histria, crtica, esttica e potica, anlise estrutural, sistemas harmnicos, teoria da interpretao/execuo e edio musical, em suas evidentes relaes com as demais questes internas e externas msica, bem como com suas interfaces com outras reas do conhecimento. A musicologia trata tambm dos universos musicais, suas diferenas e interfaces. Neste amplo sentido, a pesquisa musicolgica uma atividade de estudo, essencialmente hermenutica, contemplando toda possibilidade analtica, observacional, especulativa e editorial em msica. O musiclogo se encontra ainda em meio s contradies do conflito entre arte e cultura28, analisando os processos de aculturao que j no

    28 Reveladoras so as palavras de Jean-Luc Godard (em seu vdeo-ensaio Je vous salue, Sarajevo, 1993):

    Cultura regra, arte exceo... A regra quer a morte da exceo. Ou seja, a msica enquanto arte no faz parte da cultura. Faamos aqui um pequeno estudo. Propomos uma hiptese de trabalho na qual podemos conferir duas acepes cultura. A primeira acepo, que chamaremos de significado forte da cultura, menos utilizada. Mas aqui o conceito de cultura adquire um sentido crtico e talvez de maior profundidade filosfica. Nesta primeira acepo (sempre assumida neste ensaio), as dimenses da cultura se restringem condio mediana da existncia humana (da tambm o fecundo significado da expresso indstria da cultura cunhada por Adorno). Assim, o conceito de cultura se restringe ao costume, ao hbito, ao cotidiano, norma, regra, repetio no crtica de padres e a toda forma restante de comunicao ou retrica (tanto arbitrria como manipulada), incluindo-se ainda a lgica de sistemas. Portanto, nesta acepo, a obra de arte (enquanto exceo e singularidade solitria) sequer pertence cultura. Ou seja, aqui exclumos a arte da cultura. Teixeira Coelho elucida esta questo da seguinte forma: na arte tambm h regras - mas a arte no a regra, enquanto a cultura, se no for regra, nada (Teixeira Coelho, p.11). Ainda neste primeiro significado forte, jamais se poder afirmar que algum seja "culto" ou "inculto", pois o homem "inculto", aquele desprovido de cultura ou mesmo sem cultura, em si um paradoxo, pois teramos que pensar abstratamente o homem fora de qualquer sociedade e convvio humano. Um homem que sequer sabe falar ou produzir gestos. Aproximamos ainda este significado forte de cultura a Heidegger. Para Heidegger, a liberdade da cultura uma liberdade cmoda, mesmo preguiosa. Quando estancada num estado de cultura, a liberdade j se perdeu (ver SAFRANSKI, 2005, p.230). J na segunda acepo, que chamaremos aqui de significado fraco da cultura, justamente a mais corrente, mesmo sendo talvez a mais superficial, cultura se confunde com escolaridade, com os diferentes nveis de erudio ou instruo de um indivduo. Uma cultura geral estaria de alguma forma relacionada antiga tradio da pi. Aproximamos aqui o significado fraco da cultura a Ernst Cassirer: a cultura o transcender tornado forma, que erige a ampla casa do ser humano, mais fcil de destruir do que de preservar, frgil proteo contra a barbrie que sempre ameaa o humano possvel (apud SAFRANSKI, ibidem). Assim, aqui neste significado fraco que ocorre a metafsica de uma cultura humanstica. O indivduo culto seria aquele letrado, altamente sensvel ou com formao erudita. Alguns falam tambm de uma diferenciada cultura cientfica, como na tese das duas culturas de Snow. A primeira cultura seria a cultura tradicional, os no cientistas, como os literatos. J a segunda cultura

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    vocabulrio de Luis Felipe Pond se torna uma incontornvel promiscuidade cultural - bem como das manifestaes musicais em meio s mais amplas perspectivas interdisciplinares.

    Fuso de horizontes

    Finalizadas as anlises sobre as trs grandes reas da musica, podemos concluir que se deve evitar a especializao precoce por parte do estudante de msica. Alis, deve-se estimular antes o constante exerccio de cruzamento e fuso de horizontes29 entre estas trs principais reas da msica. No vivemos num horizonte fechado, nem tampouco num nico horizonte, da a necessidade de uma compreenso transcendental, quando procuramos compreender a perspectiva do outro. Para ser mais claro, o aluno de composio deve por bem conhecer os amplos problemas da interpretao/execuo e da pesquisa em msica. O aluno das prticas interpretativas deve se inteirar profundamente sobre as questes relativas composio e musicologia. E o futuro musiclogo no poder jamais exercer seu ofcio com a devida dignidade se no conhecer em detalhes e profundamente tanto a atividade do msico intrprete-performtico como aquela do compositor. Antes destas etapas no poderemos sequer falar sobre uma formao especfica de um professor de msica. E ainda mais importante, as referncias externas msica no podem ser ignoradas, pois no h artista e/ou pesquisador que no saiba pensar ou desprovido de um esprito crtico. E neste projeto poltico-pedaggico para o DM-

    seria a cultura cientfica, os cientistas puros, como os fsicos, e aplicados, como os engenheiros (passim SNOW, 1995). Entendemos aqui que ambas as culturas relatadas e assim definidas por Snow e no importa se concordamos ou no com suas teses - esto inseridas em nosso significado fraco de cultura. Nesta acepo, no s existem indivduos cultos e incultos, ignorantes e instrudos, como tambm a arte est inserida na cultura. A arte aqui uma mera manifestao cultural. Uma ilustrao aos demais conhecimentos humanos. Por fim, poderamos concluir que se no significado fraco (como em Cassirer) temos a arte de morar na cultura, por sua vez, em seu significado forte (como em Heidegger), devemos antes transformar este cho num abismo: Cassirer a favor do trabalho de conferir significado pela cultura, da obra que com sua necessidade interna e sua durao triunfe sobre a contingncia e efemeridade da existncia humana. Heidegger rejeita tudo isso como um gesto pattico. O que permanece so poucos momentos de grande intensidade (SAFRANSKI, op. cit. p.231). Ainda para Heidegger, a cultura poupa ao ser humano o confronto com sua finitude e sua insignificncia: a mais alta forma de existncia do dasein s se deixa referir a bem poucos e raros momentos de durao do dasein entre a vida e a morte, e o ser humano s em muitos poucos momentos existe no auge de suas prprias possibilidades (apud SAFRANSKI, ibidem) - e estas so exigncias no s da filosofia como tambm da arte. Heidegger ainda pergunta e ele mesmo responde: A filosofia [assim como a arte] no ter exatamente a tarefa de entregar o homem radicalmente angstia? A filosofia [assim como a arte] deve antes de mais nada provocar terror no ser humano e for-lo a recuar para aquele desamparo do qual ele sempre volta a fugir para a cultura (ibidem). Por fim, apesar da crtica de Heidegger e de sua distino fecunda entre cultura e filosofia (e o mesmo vale para a arte), no podemos subestimar a importncia de instituies culturais (as universidades, as fundaes, os teatros pblicos etc.) no raro momento em que elas funcionam como mecenas para a viabilidade do trabalho independente ou livre do artista. Neste ltimo aspecto, portanto, a arte depende de alguns poucos, mas essenciais procedimentos culturais. Mas que fique claro, no para o processo inventivo da arte, mas sim meramente para a viabilidade de sua performance. 29

    Lembramos que o conceito de Horizontverschmelzung remonta a Hans-Georg Gadamer (1900-2002) e s suas obras Wahrheit und Methode e ainda Kleine Schriften - Tbingen: Mohr, 1967.

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    FFCLRP-USP, neste mesmo sentido da fuso de horizontes, efetua-se tambm uma ponte entre passado e presente, entre os vrios tons brasileiros, entre a espontaneidade gestual da msica popular e a elaborao mais extensiva dos parmetros musicais atravs da partitura em seu evidente alicerce grafocntrico.

    Bibliografia especfica do PPP

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